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ANDRÉ BUENO · RENAN BIRRO · RENATO BOY

ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL


E HISTÓRIA PÚBLICA
Reitor
Ricardo Lodi Ribeiro

Vice-Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
2 Domenico Mandarino

Edições Especiais Sobre Ontens


Comissão Editorial & Científica
Dulceli Tonet Estacheski [UFMS]
Everton Crema [UNESPAR]
Carla Fernanda da Silva [UFPR]
Carlos Eduardo Costa Campos [UFMS]
Gustavo Durão [UFPI]
José Maria Neto [UPE]
Leandro Hecko [UFMS]
Luis Filipe Bantim [UFRJ]
Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP]
Maytê R. Vieira [UFPR]
Nathália Junqueira [UFMS]
Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER]
Thiago Zardini [Saberes]
Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO]
Washington Santos Nascimento [UERJ]

Rede:
www.revistasobreontes.site

Coordenador
José Maria Neto

Ficha Catalográfica

Bueno, André; Birro, Renan; Boy,Renato (org.)


Ensino de História Medieval e história Pública. 1ª Ed. Rio de
Janeiro: Sobre Ontens/UERJ,2020. ISBN: 978-65-00-02127-1
199pp.

Ensino de História; História Medieval; História Pública.


Sumário
ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL E HISTÓRIA PÚBLICA: DESAFIOS ATUAIS EM FORMATO DE
APRESENTAÇÃO por Renan Birro & Renato Viana Boy ................................................................. 5
A EXTREMA-DIREITA BRASILEIRA E SUA VISÃO (IDEOLÓGICA) DA CAVALARIA MEDIEVAL por 3
Ana Lucia Santos Coelho e Ygor Klain Belchior ........................................................................... 12
O CINEMA E O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL: REFLEXÕES E PROPOSTAS por Flávia Amaral 19
DIÁLOGOS E CAMINHOS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL por
Isabela Albuquerque ................................................................................................................... 26
A UTILIZAÇÃO DE “BATALHAS CAMPAIS” COMO FERRAMENTA DE ENSINO-APRENDIZAGEM por
Marcio Felipe Almeida da Silva ................................................................................................... 39
O ENSINO DA IDADE MÉDIA NA CONTEMPORANEIDADE: A INQUISIÇÃO COMO OBJETO DE
ESTUDO/EXEMPLO por Adrienne Peixoto Cardoso .................................................................... 47
A RELIGIÃO ANALISADA POR MEIO DO MEDIEVALISM: A NARRATIVA DE JOANA D’ARC PELOS
ARAUTOS DO EVANGELHO por Clinio de Oliveira Amaral e João Guilherme Lisbôa Rangel ...... 53
A HISTÓRIA PÚBLICA E A REDENÇÃO DO MEDIEVO por Eduardo Leite Lisboa ........................... 59
REPRESENTAÇÕES DE EVA E MARIA NA IDADE MÉDIA: A CONDIÇÃO FEMININA NO
PENSAMENTO RELIGIOSO E IMAGENS MEDIEVAIS por Esteffane Viana Felisberto e Marcos de
Araújo Oliveira............................................................................................................................. 65
A IDADE MÉDIA E O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL À LUZ DA HISTÓRIA PÚBLICA: O SITE THE
PUBLIC MEDIEVALIST por George Araújo.................................................................................... 75
ESTUDAR A PESTE NEGRA EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS: RELAÇÕES ENTRE A IDADE MÉDIA E
O TEMPO PRESENTE NO ENSINO DE HISTÓRIA por Geraldo Neto ............................................. 81
A NARRATIVA EM WALTER BENJAMIN E AS TRANSFORMAÇÕES DA IDENTIDADE CRISTÃ NA
PRIMEIRA IDADE MÉDIA ATRAVÉS DOS SERMÕES SOBRE A QUEDA DE ROMA por Geraldo
Rosolen Junior ............................................................................................................................. 90
OS USOS DA ESCRITA DA HISTÓRIA CAROLÍNGIA EM SEU TEMPO por Guilherme Tavares Lopes
Balau ............................................................................................................................................ 97
MEDIEVO NA REDE: ELABORAÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA por
Jefson Bezerra de Azevedo Filho e Vanessa Spinosa ................................................................ 103
OS DITOS CRUZADOS DO SÉCULO XXI: O BRASIL E A IDEALIZAÇÃO CONSERVADORA ACERCA DA
PRIMEIRA CRUZADA por Juan Stephanié Leal Araújo ............................................................... 111
LITERATURA ESCANDINAVA NO ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL por Lucas Pinto Soares...... 118
HELOÍSA: O CONHECIMENTO POR TRÁS DAS EPÍSTOLAS por Luciana Alves Maciel ................ 125
MEDIEVALISMO E O ENSINO DE HISTÓRIA: SOBRE BRUXOS, CASTELO E MAGIA HARRY POTTER
(2001-2011) por Jônatas José da Silva e José Natal Souto Maior Neto .................................... 133
ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL, ESQUEMATISMO E TELEOLOGIA por Manoel Adir Kischener e
Everton Marcos Batistela .......................................................................................................... 141
O FENÔMENO “BOLENA”: PROTAGONISMO FEMININO E NOVAS REPRESENTAÇÕES DE ANA
BOLENA (1501-1536), A “RAINHA DE MAIO” por Marcos de Araújo Oliveira .......................... 151
A IMPORTÂNCIA DE MARTINHO LUTERO NO ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL por Marcos
4 Vinícius da Silva Ramos ............................................................................................................. 159
A HISTÓRIA DAS ENFERMIDADES: DA POSSÍVEL CAUSA DA PESTE NEGRA AO SURGIMENTO DO
MÉDICO DA PESTE [SÉC. XIII-XIV] por Mauricio Ribeiro Damaceno.......................................... 167
ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL, EUROCENTRISMO E BNCC (2015-2018): UM DEBATE
RECENTE? por Renan Marques Birro ........................................................................................ 175
AS COMUNIDADES CRISTÃS PRÉVIAS À CONSOLIDAÇÃO DO CORPO ECLESIÁSTICO NA
ESCANDINÁVIA MEDIEVAL por Rodrigo Kmiecik....................................................................... 184
O CONTO DO GRAAL E SUA DESCRIÇÃO SOBRE A CAVALARIA FRANCESA DA SEGUNDA METADE
DO SÉCULO XII por Wesley Bruno Andretta .............................................................................. 192
ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL E HISTÓRIA PÚBLICA:
DESAFIOS ATUAIS EM FORMATO DE APRESENTAÇÃO
Renan Birro & Renato Viana Boy

Ao perscrutar a produção nacional sobre o Ensino de História Medieval, com


particular apreço por teses e dissertações, um(a) interessado(a) pode
constatar algo rapidamente: entre 1942 (quando a primeira tese em 5
História Medieval foi defendida) e 2020, raras são as reflexões que
avançaram nesse sentido. Estamos próximos do centenário dos estudos
medievais no Brasil e mesmo em mestrados profissionais em Ensino de
História há poucos medievalistas. Enquanto abordagens, campos e recortes
até então marginais ganharam espaço e força, as preocupações sobre
ensino e medievo permaneceram episódicas e fora do centro de
preocupações.

Parece pertinente afirmar, portanto, que a historiografia sobre Idade Média


produzida no Brasil avançou em termos de pesquisas, inclusive com uma
diversificação temática e diálogos mais próximos e profícuos com centros
respeitados da medievística internacional. Todavia, percebemos
simultaneamente um distanciamento destes pesquisadores das relações
com o exercício educacional escolar.

Ainda não estão claros os motivos para compreendermos como, ao mesmo


tempo em que o recente processo de expansão das universidades
brasileiras permitiu que historiadores dedicados à Idade Média se fizessem
presentes em partes do país outrora quase desprovidas de especialistas da
área, como as regiões Norte e Nordeste, o campo do ensino do medievo não
se viu contemplado por essa expansão, diversificação e fortalecimentos dos
estudos medievais no Brasil. Sejam quais forem as razões, os medievalistas
brasileiros parecem ter se dedicado mais esforços à construção e
manutenção dos espaços de legitimidade de suas pesquisas do que do
ensino no âmbito escolar.

Mas a luz de alerta foi acendida em 2015, quando a remoção da História


Medieval do currículo da Educação Básica no país entrou em pauta - basta
conferir a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as
reações dos medievalistas em copiosas declarações (individuais e coletivas),
em artigos, em capítulos de livros, notas oriundas de associações de
pesquisadores e laboratórios, entre outras manifestações análogas. Era
preciso repensar o Ensino de História Medieval e a legitimidade do campo
sob o risco dele ser sumariamente excluído da formação dos estudantes
brasileiros. Diante desse esforço, as versões seguintes da BNCC foram
matizadas, diminuindo a verve dos medievalistas nacionais e esfriando os
nervos daqueles que pareciam avançar em reflexões que abraçavam o
Medievo e o Ensino de História.

Entrementes, a atenção dos historiadores do país foi derradeiramente


arrastada para o cenário político nos últimos cinco anos. Neste período, a
temática da Idade Média apareceu como apropriação inadequada para
justificar argumentos de grupos políticos populares, o que deixou claro o
pouco conhecimento do grande público sobre o período medieval. Cenas de
homens e mulheres lançando apelos de “Deus vult” (lema dos cruzados
medievais) a plenos pulmões, cingidos de capa, espada, elmo e da bandeira
nacional (em certos casos, até mesmo montados a cavalo), conclamando
uma luta contra os inimigos políticos em termos inequivocamente
6
contemporâneos; ou magnatas brasileiros vestidos com os hábitos da
Ordem do Templo de Jerusalém, em um misto (alegórico) da pobreza
mendicante e das boas obras, por um lado; mas, por outro, em um retrato
paradoxal e pitoresco do desconhecimento sobre o passado medieval. Ou
ainda argumentos genéricos de que esse ou aquele comportamento político
se assemelhava a imagem da Idade Média, numa clara alusão a uma “Idade
das Trevas”, há muito contestada pela historiografia especializada. Por
intermédio dessas e de outras intervenções, a Idade Média, esse período
desconhecido do público geral e, consequentemente, capaz de ser
empregado com grande plasticidade, passou a ser instrumentalizado no
Brasil contemporâneo por grupos políticos, econômicos e ideológicos a seu
bel-prazer.

Manifestas as agruras, cremos piamente que o estudo e o ensino sobre a


Idade Média, sua recepção e sua reprodução na esfera pública se fazem
mais necessárias do que nunca. Enquanto a reflexão em torno da História
Pública avançou no país durante a última década, muitos medievalistas
sentiram-se seguros com o aplacamento da proposta da BNCC e, ao mesmo
tempo, concentraram suas atenções nos desdobramentos da apaixonante (e
muitas vezes frustrante) política cotidiana.

Todavia, a cada dia novas manifestações populares – e, vez por outra, de


colegas de ofício – continuam a demonstrar publicamente o déficit no
conhecimento sobre o medievo através do mau uso do aparato conceitual e
temático que diz respeito a este período da História. Em tempos de COVID-
19, não é difícil encontrarmos em redes sociais e veículos amplamente
consumidos, como vídeos e podcasts de divulgação científica, comparações
pouco fundamentadas sobre a pandemia atualmente vivida no mundo e a
Peste do século XIV.

A analogia é certamente válida: tal quadro pandêmico de desinformação


deve ser acompanhado de um reconhecimento dos problemas da área, de
maiores reflexões que abracem simultaneamente as dimensões da pesquisa
histórica e do ensino e, por fim, de um diálogo mais aberto, intenso,
humorado e leve. É preciso travar um contato direto com esse público tão
apaixonado, interessado e ávido pelo período medieval.

Aproveitando o jogo de palavras, se, por outro lado, os medievalistas


brasileiros adotarem o encastelamento como forma de sobreviver e manter
suas condições e postos de trabalho, eles poderiam contribuir para um
distanciamento cada vez maior entre especialistas e a sociedade; e, pouco a
pouco, para que novas (e talvez definitivas) críticas ao ensino de História
Medieval retornem ao debate.
Com base nessas premissas, surgiu a proposta de uma mesa/simpósio
temático para o 6º Simpósio Internacional Eletrônico em Ensino de História.
Surpreendentemente, muitos interessados enviaram suas reflexões, que
foram intensamente debatidas, matizadas, ponderadas e relativizadas no
transcorrer dos dias.

Mais importante: colegas de diversas partes do país estão agora em 7


contato, unidos não só nesta publicação, neste esforço indubitavelmente
coletivo, mas pelo anseio de preencher incômodos e vazios. Celebramos
aqui um conjunto de propostas que certamente contribuirão no futuro
próximo para refletir sobre nosso exercício cotidiano como historiadores,
educadores e humanistas.

Considerando esse horizonte de preocupações, a conferência de Ana Lucia


Coelho e Ygor Belchior, A extrema-direita brasileira sua visão (ideológica)
da cavalaria medieval, versou sobre o avanço da direita conservadora no
cenário político nacional, tal como a apropriação da cavalaria medieval por
segmentos de seus apoiadores. Os autores concentraram-se na análise da
bibliografia, com apontamentos dessa recepção e reprodução da Idade
Média no Brasil.

Em O cinema e o ensino de História Medieval: reflexões e propostas, Flávia


Amaral nos premiou com a forma como Joana d'Arc ofereceu algumas
formas de trabalhar o cinema e a Idade Média, além de propiciar as linhas
de análise de duas obras cinematográfica. Como uma das principais vias de
contato com a Idade Média é o cinema, as ponderações de Amaral são
particularmente pertinentes, visto que se trata de um recurso recorrente
aplicado em sala de aula.

De maneira arrojada, a conferência de Isabela Albuquerque, intitulada


Diálogos e caminhos para a descolonização do Ensino de História Medieval,
ofereceu uma abordagem crítica e prática para considerar a descolonização
do Ensino de História Medieval. Considerando as críticas ao Ensino de
História Medieval presentes na primeira versão da BNCC, trata-se de uma
contribuição generosa e de uma resposta pertinente ao problema.

Por fim, em A utilização de "batalhas campais" como ferramenta de Ensino-


Aprendizagem, Marcio Felipe Silva demonstrou uma aplicação prática de um
dos temas que mais é recobrado no cenário da História Pública sobre a
Idade Média: batalhas e guerras. Mobilizando tal interesse, Marcio refletiu
sobre como empregar esse mecanismo na Educação Básica (Fundamental e
Médio) e no Ensino Superior, concluindo com chave de ouro nosso ciclo de
conferências.

Avançando para as comunicações, a primeira delas, O Ensino da Idade


Média na Contemporaneidade: a Inquisição como objeto de
estudo/exemplo, de Adrienne Cardoso, dedicou-se especialmente ao ensino
de uma temática específica de História Medieval, a Inquisição, a partir de
uma comparação entre os conteúdos encontrados em três livros didáticos
do Ensino Médio e o que se pode encontrar em pesquisas historiográficas
sobre o tema. O texto, além de apontar para as questões sobre como a
Inquisição é abordada nos três livros didáticos, também propôs atividades
em uma sala de aula, buscando um melhor aproveitamento no aprendizado.

A contribuição de Clinio Amaral e João Guilherme Rangel, A religião


analisada por meio do medievalism: a narrativa de Joana D’Arc pelos
8
Arautos do Evangelho, deixou perceptível a possibilidade de análise da
religião por meio do medievalism. Apresenta uma crítica do artigo de
Richard Utz ao narrar sobre Joana D’Arc e constrói, em seu texto, uma
idade média específica, criada e idealizada para legitimar a Associação dos
Arautos do Evangelho.

No texto A História Pública e a Redenção do Medievo, Eduardo Lisboa fez


um esforço de síntese dos estudos medievais no Brasil, considerando seu
papel marginal no cenário nacional até o início da década de 1990. Em
seguida, avançou para o crescimento da área, da quantidade de
especialistas e sua difusão nas universidades brasileiras; por fim, tentou
traçar paralelos, a partir de exemplos pontuais, de exercícios de Ensino de
História Medieval cotejados com as reflexões da História Pública.

Em Representações de Eva e Maria na Idade Média: a condição feminina no


pensamento religioso e imagens, Esteffane Felisberto e Marcos Oliveira
propõem uma análise das representações de Eva e Maria na Idade Média; o
anseio avança na reflexão sobre a situação feminina, as questões religiosas
e sua expressão imagética medieval. A análise considerou ainda a categoria
de gênero, tal como sua aplicação ao refletir sobre a condição feminina
neste recorte espaço-temporal.

Em A Idade Média e o Ensino de História Medieval à luz da História Pública:


o site The Public Medievalist, texto de George Araújo, fica evidente a
discussão sobre a história pública, com reflexões atuais sobre o tema, a
saber, como o ensino de História Medieval se viu afetado pelo ensino de
história pública. O autor citou o site The Public Medievalist, que lida com
história pública medieval para um público mais amplo.

No texto de Geraldo Menezes Neto intitulado Estudar a Peste Negra em


tempos de coronavírus…, o autor recobrou a bibliografia clássica sobre a
Peste dos séculos XIV e XV para propor uma reflexão das possibilidades do
Ensino de História Medieval diante do cenário pandêmico vigente no mundo
atualmente.

Por sua vez, Geraldo Rosolen Junior dedicou metade do texto A narrativa
em Walter Benjamin e as transformações da identidade cristã na Primeira
Idade Média através dos Sermões sobre a Queda de Roma ao debate
teórico entre Benjamin e Arendt principalmente, cotejado com outros
autores como Carr, Le Goff, Ricoeur e Skinner, no intuito de pensar o
impacto das memórias nas produções de narrativas e identidades. Em
seguida, o autor refletiu sobre os sermões de Agostinho dedicados aos
ataques e saques que Roma sofreu no início do século V sob um viés
hegeliano, isto é, da dialética entre indivíduo, seus discernimentos e a
sociedade circundante. Neste ínterim, sob a retórica do Hiponense, a
maleabilidade das identidades cristã e romana convergiu até ser formatada
em uma única expressão identitária.

Guilherme Balau trabalhou com as concepções de consciência histórica, da


narrativa como instrumento sobre as experiências e expectativas de seus
contemporâneos como construção no texto Os usos da escrita na História 9
carolíngia em seu tempo. Para tanto, remeteu a duas biografias de Carlos
Magno: a de Einhard e Notker.

Doutra feita, em Medievo na rede: elaboração de materiais didáticos para o


Ensino de História, a contribuição de Jefson Azevedo Filho e Vanessa
Spinosa, nota-se a defesa da utilização das Tecnologias Digitais da
Informação e Comunicação (TDIC's) no Ensino de História Medieval,
manifestando preocupações quanto ao Ensino de História, a História Pública
e o protagonismo do educando no processo de ensino-aprendizagem. Além
disso, o texto agregou uma experiência aparentemente bem sucedida
desenvolvida no Campus Caicó da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN) que envolveu as mídias digitais e a produção de materiais
didáticos.

A contribuição de Jônatas Silva e José Natal Maior Neto, intitulada


Medievalismo e o Ensino de História: sobre bruxos, castelo e magia em
Harry Potter (2001-2011), buscou articular filmes de Harry Potter com o
ensino de História Medieval a partir de três elementos específicos: bruxo,
castelo e magia. Os autores buscam discorrer seus estudos articulando
passagens dos filmes com uma bibliografia sobre História e cinema e sobre
o período medieval.

A seguir, Juan Araújo buscou problematizar a invocação da Idade Média por


uma direita conservadora em Os ditos cruzados do século XXI: o Brasil e a
idealização conservadora acerca da Primeira Cruzada, que teria tido sucesso
justamente pelo pouco conhecimento que as pesquisas sobre o período
medieval alcançam no ensino regular e médio. Araújo trabalhou a relação
entre uma apropriação da Idade Média e, mais especificamente, das
Cruzadas, para atender a interesses sócio-políticos atuais, fundamentado no
conhecimento superficial das grandes massas sobre o tema.

Em Literatura escandinava no Ensino de História Medieval, Lucas Soares


tentou apresentar o potencial da utilização da literatura escandinava para o
Ensino de História Medieval. Para tanto, o texto travou um diálogo
principalmente com a produção nacional sobre o tema, sem ignorar o
contexto de produção escandinavo nos séculos XII e XIII.

Avançando para uma análise das cartas de Heloísa, Consolation, Luciana


Maciel buscou uma estratégia para se colocar numa rede de contatos nas
emoções presentes nas missivas de Heloísa. Apresenta uma proposta de
aprofundamento de pesquisa, com hipóteses e conclui com um objetivo a
ser alcançado.
Em Ensino de História Medieval, esquematismo e teleologia, de Manoel
Kischener e Everton Batistela, é possível notar os problemas de abordagens
teleológicas da História aplicadas ao período medieval, tal como a
possibilidade de ultrapassar tal limitação repensando a relação entre o
passado nacional e suas possíveis conexões com o período medieval na
Península Ibérica.
10
No texto O Fenômeno “Bolena”: protagonismo feminino e novas
representações de Ana Bolena (1501-1536) a “Rainha de Maio”, Marcos
Oliveira abordou uma ressignificação da figura de Ana Bolena num contexto
de crescimento dos estudos de gênero e, mais especificamente, das
mulheres, desde os anos 1960/1970, até a atualidade. Argumentou ainda
que essa ressignificação está diretamente relacionada com o fortalecimento
dos debates sobre a posição da mulher na sociedade desde a segunda
metade do século XX. O autor faz apontamentos no campo literário e
audiovisual, além do historiográfico.

Considerando o entrelaçamento entre a figura de Martinho Lutero, os livros


didáticos e o imaginário alimentado sobre a Idade Média, Marcos Ramos
propôs uma crítica da visão tradicional de que a Era Moderna inaugurou um
rompimento com a Idade Média em termos de religiosidades - com atenção
especial para a Reforma. Assim, Ramos utilizou Martinho Lutero como
objeto, avançando na análise da bibliografia especializada e de como ele é
representado em relação ao período "anterior".

Na contribuição de Maurício Damaceno A História das enfermidades: da


possível causa da Peste Negra ao surgimento do médico da peste (sécs. XII-
XIV), o autor abordou o tema da Peste, as preocupações papais e sociais
em torno da doença e, por fim, as representações dos médicos da Peste. O
tema mostra-se pertinente diante do atual quadro pandêmico global e pode
contribuir sobremaneira no futuro para a proposição de novas formas de
abordar o Ensino de História Medieval.

Renan Birro problematizou a recente discussão da BNCC sobre a exclusão


do tema da História Medieval do ensino de História no Brasil,
fundamentando num eurocentrismo no ensino, no texto Ensino de História
Medieval, eurocentrismo e BNCC (2015-2018): um debate recente? O autor
articulou discussões de eurocentrismo, relações do ensino de História no
Brasil com uma raiz francesa desde meados do século XX e desconstruiu o
argumento da BNCC com debates referentes a questões de identidade
brasileira e a presença da temática do medievo em diversos formatos de
mídia atuais.

No trabalho intitulado As comunidades cristãs prévias à consolidação do


corpo eclesiástico na Escandinávia Medieval, Rodrigo Kmiecik direcionou sua
reflexão para pensar as concepções de realidade de relatos de comunidades
cristãs sem igreja no contexto escandinavo da Era Viking/Escandinávia
Medieval. A partir de uma acurada análise documental e bibliográfica, o
autor concluiu que os documentos de época elencados demonstram a
retórica de seus autores em defesa da atividade missionária na região, com
a finalidade de consolidar a presença da Igreja na Europa Nórdica.

Por fim, a pesquisa de Wesley Andretta, sob o título O conto do Graal e sua
descrição sobre a cavalaria francesa da segunda metade do século XII,
propôs uma análise da cavalaria francesa entre c.1150-1200, com foco no
Conto do Graal conforme a obra de Chrétien de Troyes. O autor dialogou 11
com a historiografia do tema para refletir sobre o ideário cavaleiresco. O
conjunto de representações culminou, conforme o autor, na inclusão de um
objeto místico (o Santo Graal) no conjunto de produções daquele tempo
que compõem a Matéria da Bretanha.

Acreditamos que a reunião deste material de pesquisa, divididos em


conferências e comunicações, são significativas amostragens não apenas da
diversidade e qualidade que atualmente as pesquisas em História Medieval
apresentam no Brasil, como também apontam para uma carência no
cuidado do tratamento destas temáticas nas escolas brasileiras. Longe de
pretender preencher de uma vez por todas uma perigosa lacuna nas
práticas de Ensino de História, a reunião destes trabalhos aponta, com
seriedade e rigor científico, para a necessidade de uma reflexão por parte
dos historiadores que se dedicam aos estudos medievais e os diálogos que
devem ser mantidos de maneira criteriosa, crítica e constante com as áreas
de ensino.
A EXTREMA-DIREITA BRASILEIRA E SUA VISÃO
(IDEOLÓGICA) DA CAVALARIA MEDIEVAL
Ana Lucia Santos Coelho e Ygor Klain Belchior

A ascensão global da extrema-direita no mundo contemporâneo resultou


nas eleições de governantes como Donald Trump, Boris Johnson e Jair
12 Bolsonaro. Suas vitórias foram sustentadas por manipulações ideológicas do
passado trilhadas, sobretudo, a partir de interpretações negacionistas e
enviesadas de episódios traumáticos da História. Por exemplo, no Brasil,
não é incomum encontrarmos pessoas que negam a existência da Ditadura
e da escravidão dos africanos.

Segundo Rüsen [2007, p. 57], as manipulações do passado interferem


diretamente na construção das Consciências Históricas, que correspondem
“a soma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua
experiência [...] temporal [...], de forma tal que possam orientar,
intencionalmente, sua vida prática no tempo”. Ou seja, se lermos o passado
por meio do negacionismo da Ditadura, podemos afirmar que não há, no
Brasil hoje, perseguição às ideologias de esquerda. De igual modo, se
lermos o passado por meio do negacionismo da escravidão dos africanos,
podemos afirmar que não há racismo no país.

Não esqueçamos que os negacionismos estão ligados às manipulações


ideológicas do passado. A nosso ver, elas são muito mais nocivas à
Consciência Histórica, pois, por serem divulgadas como estudos sérios,
convencem um imenso público. Por exemplo, na eleição de Jair Bolsonaro à
Presidência da República, em 2018, tivemos manipulações ligadas ao papel
das Ordens Militares no Medievo. A partir delas, seus apoiadores adquiriram
uma identidade política, cujo mote era defender o Ocidente, entendido
como um mundo de brancos, cristãos e defensores da monarquia.
Observemos uma ilustração:

Fonte: https://www.facebook.com
[Optamos por preservar a identidade do autor].
Nas imagens, notamos que a identidade política bolsonarista estava calcada
na admiração do passado medieval. Tal admiração tomou uma dimensão
tão grande que, alguns órgãos midiáticos, decidiram entrevistar
medievalistas a fim de compreenderem a conexão estabelecida entre a
Idade Média e Jair Bolsonaro/Extrema-Direita. Nesse sentido, o blog
Agência Pública divulgou, em abril de 2019, uma reportagem intitulada
Deus vult: uma velha expressão na boca da extrema direita, na qual Paulo 13
Pachá, Professor de História Medieval da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) comentava sobre o assunto. Para ele, a Extrema-Direita
manipulou ideologicamente o passado no intuito de criar uma sociedade
idealizada – ficcional – que era, em sua maioria, branca, cristã e patriarcal.
Por conseguinte, essa sociedade trazia discursos preconceituosos de como
racismo, homofobia, islamofobia e machismo. Vejamos as palavras do
entrevistado:

“No Brasil, essa referência cruzadista tem sido utilizada por bolsonaristas na
esteira da direita alternativa norte-americana, também conhecida como alt-
right. ‘Está decretada a nova cruzada. Deus vult!’, comemorou no Twitter o
analista político Filipe Garcia Martins quando da vitória de Bolsonaro. Aluno
de Olavo de Carvalho e atual assessor para assuntos internacionais da
Presidência da República, Martins escreveu durante a posse: ‘A nova era
chegou. É tudo nosso! Deus vult!’. Além dele, outros apoiadores
bolsonaristas têm feito uso da expressão. ‘Precisamos de um São Bernardo
de Claraval [abade encarregado pelo papa de pregar a Segunda Cruzada]
para animar novas Cruzadas. CHEGA’, escreveu o tuiteiro e youtuber
Bernardo P. Küster, após ataques de terroristas muçulmanos contra cristãos
no Sri Lanka em 21 de abril deste ano” [Oliveira; Rudnitzki; 2019].

Por trás dessas visões aristocráticas e nacionalistas, escondiam-se


pressupostos problemáticos da pesquisa científica. A partir daqui,
objetivamos apontar os equívocos que a extrema-direita brasileira
promoveu em sua manipulação do passado. Para tanto, dissertaremos sobre
as Ordens Militares na Europa medieval, entre os séculos VIII ao XIII.
Antes, porém, discutiremos os conceitos de Feudalismo e Cristianismo.

Feudalismo
O conceito de Feudalismo é a origem maior dos equívocos. Há um
desconhecimento sobre o fato de que a Idade Média e o Feudalismo são
construções históricas, fabricadas posteriormente por pessoas que tentaram
impor suas ideologias aos eventos.

Abels [2009] explica que o conceito de Feudalismo é um “tipo ideal” surgido


no século XVII e consagrado no XIX, com diversos significados, desde uma
qualidade, a “feudalidade”, até a sua consolidação como um modo de
produção entre o antigo e o moderno, com Karl Marx.

Strayer e Coulborn [1956] concordam com Abels [2009]. Os primeiros


apontam o Feudalismo como uma abstração evocada para descrever
práticas de sociedades posteriores ao medievo, a exemplo da Ordem do
Santo Sepulcro no Brasil, existente no Rio de Janeiro. Por sua vez, o
segundo comprova, através da análise dos vocábulos “feudo”, “benefício” e
“vassalo”, a inexistência de uma definição legal para o conceito de
Feudalismo até o século XII.

Ao seu turno, Bennett e Hollister [2006] consideram que, se o Feudalismo


existiu, foi estritamente um fenômeno de fragmentação territorial ocorrido
14
na França. Ele nunca se desenrolou como um sistema universal ou
simétrico, nem mesmo onde surgiu, no norte da França, pois coexistiu com
uma variedade de formas de posse da terra, a exemplo dos alódios
(propriedades de camponeses livres). Ademais, o conceito de Feudalismo
não possuía relação com cavalheirismo e nunca foi uma instituição militar.

Os historiadores contemporâneos preferem utilizar o conceito de Dominação


Senhorial em detrimento de Feudalismo. Eles defendem que a dominação
senhorial permite entender o poder dos senhores para além do feudo,
centrando-se no grande domínio. Para Cândido da Silva [2019], o maior
problema do conceito de Feudalismo é que ele privilegia as relações
interpessoais, associando-se ao conceito de Vassalagem, conjunto de
relações de uma pequena parcela aristocrática nascida da concessão de um
“feudo”. É por isso que o termo Senhorio é mais adequado, pois abrange,
de modo amplo, tanto as relações entre a aristocracia fundiária e os
camponeses – livres ou não –, quanto às relações dentro da própria
aristocracia. Além disso, Senhorio possibilita a compreensão do fato de que
a dominação aristocrática ocorreu não apenas sob as terras, mas também
sob os homens. Segundo o autor, tal sistema atingiu o seu apogeu entre os
séculos XI e XIII, permitindo o enraizamento da nobreza e a ascensão do
grupo mais rico de camponeses: os Cavaleiros.

Sobreira [2015] complementa o raciocínio de Cândido da Silva, sustentando


que o grande domínio surgiu com as primeiras menções às corveias
campesinas, datadas do século VI. Contudo, o autor defende que as
práticas das corveias só se desenvolveram de maneira sistemática a partir
do século VIII, haja vista que a sua existência é atestada por polípticos,
fontes redigidas nos monastérios, entre os séculos IX e X. O políptico mais
famoso contém o Breviarium de Gagny, documento que arrola a descrição
das possessões da abadia local. Nele, temos a informação da existência de
inúmeras formas de se caracterizar a posse da terra, como o manso
dominal, manso dependente, manso independente, manso servil e a
floresta, além de diversas formas de pagamento das obrigações senhoriais:
em soldos de prata; vinho; sementes; trigos; carretagens; galinhas; ovos;
telhas; entre outros.

Mas, se o Feudalismo não existiu, como explicamos o Encastelamento? De


acordo com Johanek [1999], a construção dos castelos foi um fenômeno
onde os nobres e os eclesiásticos tentaram intensificar o seu controle sobre
os mercados que não eram necessariamente urbanos. Assim, não existiu
uma desfragmentação das terras, na qual os senhores feudais recrutavam
os cavaleiros e os entocavam em fortalezas para possíveis guerras. O que
existiu foi uma divisão comercial das posses entre eclesiásticos e nobres,
cujo impacto foi o crescimento das cidades, do comércio e da produção
agrícola.

Cristianismo
Chevitarese [2006] argumenta que a gênese do cristianismo não teve nada
de excepcional. Classificado como superstitio, e não como religio licita por
Tácito e Dião Cássio, o culto cristão era só mais um dentre vários existentes 15
na Antiguidade politeísta.

As primeiras comunidades cristãs floresceram em Roma, segundo Silva


[2006], durante as décadas de 50 e 60 do século I d.C. Reunidas em
pequenos grupos fora dos limites citadinos, não causaram boa impressão
em seus primeiros anos. Inclusive, elas chegaram a ser objetos de lendas
urbanas: nutriam ódio por todo o gênero humano, sacrificavam crianças em
seus ritos e praticavam o canibalismo. No final do século III d.C.,
começaram as perseguições sob os governos de Trajano e Diocleciano,
governantes que queriam restaurar os costumes do mos maiorum. A
situação só mudou no século IV, com o governo de Constantino, o qual teve
a audácia de aliar uma ideologia religiosa a um projeto de poder. Ele reuniu
o primeiro Concílio ecumênico da história da nova religião, marcando o
nascimento daquilo que chamaremos de Igreja Medieval, comunidade de
fiéis organizados em torno da autoridade dos bispos, sobretudo os de
Roma. A partir de Constantino, a aliança entre o poder temporal e a religião
cristã fortaleceu a Igreja Católica.

Tal conversão, explica Segalen [2012], alterou a instituição do casamento e


algumas normas sociais em Roma. A nova religião proibia que viúvas e
divorciados se casassem novamente, o que limitou as descendências.
Somado a isso, a pregação do abandono dos bens materiais em troca da
salvação, tornou a Igreja a grande herdeira dos sem herdeiros. No final do
século VII, estima-se que um terço das terras aráveis da França pertencia à
Igreja. E mais: Cândido da Silva [2019] afirma que a maioria dos bispos
católicos gauleses do final do século VII era originária de famílias da
aristocracia imperial romana, desempenhando um papel preponderante na
administração das civitates de procedência romana.

Podemos dizer, então, que entre os séculos VIII a IX, a Igreja não só era
detentora de terras como também os seus líderes – os bispos – exerciam
dominação senhorial, comandando juridicamente diversos territórios e
explorando a mão de obra camponesa, através da cobrança do dízimo nas
vilas e nas cidades e da cobrança das taxas do comércio.

A identificação dos habitantes da Europa com o cristianismo prosseguiu com


as dinastias francas Merovíngia e Carolíngia, alega Cândido da Silva [2008].
Carlos Magno, por exemplo, foi aclamado pelo papa como Imperador do
Sacro-Império Romano, expandindo a fé e a cultura cristãs por toda a
Europa. Ele também ajudou a consolidar a ideia de que o soberano era o
responsável, perante Deus, pela manutenção da paz e da justiça na terra.
Quando o Império Carolíngio desapareceu, no final do século IX, os bispos
de Roma eram os únicos a poderem reivindicar um poder universal. Isso fez
com que os efeitos da dominação senhorial fossem sentidos pela Igreja:
muitos cargos de bispos e bens da Igreja passaram a ser transmitidos como
herança. Ademais, tornou-se comum a venda de cargos eclesiásticos,
prática conhecida como “simonia”, e a obediência política dos senhores à
16
Igreja por meios dos juramentos de fidelidade. Portanto, a Igreja do período
feudal, estava mais preocupada com a lógica da dominação senhorial do
que com a pregação da palavra divina e com a defesa dos princípios
cristãos.

A Cavalaria
Comentados os conceitos de Feudalismo e Cristianismo, falemos sobre o
conceito de Cavalaria. A primeira observação concerne às leituras que a
consideram como um resquício da herança bárbara, um resquício, porém,
cristianizado e civilizado pela Igreja. Os pesquisadores preferem dizer que
ao invés de ter existido um processo de cristianização dos bárbaros houve
uma militarização do cristianismo.

Em primeiro lugar porque não existiram bárbaros. Segundo Dumézil [2016],


os grupos étnicos classificados como bárbaros já habitavam o Império
Romano antes mesmo de sua dissolução, a exemplo dos Francos. Avaliando
os artefatos arqueológicos, em especial, os túmulos, o autor atestou que as
práticas consideradas “bárbaras”, como a diferenciação social através do
exercício militar, são posteriores a entrada desses povos nos limites
romanos e, como tal, devem ser entendidas como tentativas de reivindicar
uma parcela de poder no Império em crise. Ademais, os reinos mantiveram
e adaptaram a administração romana, o latim permaneceu a língua oficial e
até o calendário era o mesmo dos romanos.
Em segundo lugar porque o termo “Cruzadas” é recente e anacrônico. De
acordo com Franco Júnior [1991], ele foi cunhado no século XIX para
descrever práticas ocorridas na segunda metade do século XIII, sendo as
verdadeiras “cruzadas” datadas no século XI. E mais: os membros das
ordens de cavaleiros se consideravam como “soldados de cristo” (milites
Christi) e não como cruzados, bem como buscavam o perdão para os seus
pecados e não a guerra contra o infiel. Existe ainda outro problema: o do
embate religioso entre cristãos e muçulmanos. Para Maalouf [1988], aos
olhos dos medievais orientais, as “cruzadas” não foram vistas como uma
espécie de jihad, pois permaneceram durante muito tempo como conflitos
defensivos contra os francos, não os cristãos.

Visto isso, falaremos sobre as origens da cavalaria. Barthélemy [2007]


defende que o seu surgimento ocorreu no período da “mutação feudal”
(século IX), isto é, alguns anos depois do fim do Império Carolíngio.
Sustenta também que não houve uma cristianização da cavalaria, pois, os
milites já eram cristãos. Porém, o cristianismo criou uma nova forma de se
fazer guerras, pois promoveu o encontro entre as práticas monásticas e as
guerreiras. Portanto, o autor acredita no surgimento de um novo tipo de
cristianismo, oriundo da religiosidade militar. Em outras palavras, houve, na
verdade, a militarização do vocabulário cristão, uma prática que, se não for
bem estudada, pode gerar leituras equivocada do papel das ordens.

Por fim, resta observar como próprios cavaleiros se entendiam. Carraz


[2017] estuda as pinturas das capelas dos Templários e dos Hospitalários
na França. Para ele, na prática templária havia a preferência por uma
iconografia martirológica relacionada à vocação das ordens, isto é, os 17
Templários não se viam como assassinos fanáticos, mas como mártires
prontos a se sacrificarem pelos peregrinos.

Considerações Finais
Nesse pequeno texto, vimos que as ordens militares foram utilizadas pelos
clérigos para a inserção do cristianismo dentro de um comportamento
bélico. Ou seja, as ordens militares já eram cristãs e bélicas. Mas, os
clérigos queriam usá-las para promoverem o comportamento cristão bélico,
de luta contra o infiel. Para isso, a Igreja criou uma imagem quixotesca dos
cavaleiros, como se o único papel deles na sociedade fosse lutar contra os
infiéis. Todavia, os cavaleiros eram homens do seu tempo, que
participavam da lógica social e que se viam mais como protetores dos
peregrinos. Portanto, cabe concluir dizendo que a leitura bolsonarista do
passado é completamente equivocada, estando mais interessada em
levantar uma bandeira política do que em compreender os eventos
históricos.

Referências biográficas:
Ana Lucia Santos Coelho é doutoranda em História Antiga na Universidade
Federal de Ouro Preto (UFOP). Atualmente, trabalha como professora de
Metodologia Científica e de Estágio Supervisionado em História na
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). E-mail:
ana.scoelho@hotmail.com
Ygor Klain Belchior é doutor em História Antiga pela Universidade de São
Paulo (USP). Atualmente, é professor de História Antiga, História Medieval e
História da Arte da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG –
Campanha). Email: ygorklain@gmail.com

Referências:
ABELS, R. The historiography of a construct: “Feudalism” and the medieval
historian. History Compass, v. 7, p. 1008-1031, 2009.
BARTHÉLEMY, D. La Chevalerie: de la Germanie antique à la France du XIIe
siècle. Paris: Fayard, 2007.
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Boston: McGraw-Hill, 2006.
CÂNDIDO DA SILVA, M. A Realeza Cristã na Alta Idade Média: Os
fundamentos da autoridade pública no período merovíngio [séculos V-VIII].
1ª ed. São Paulo: Alameda Editorial, 2008.
_______. História Medieval. 1ª ed. São Paulo: Editora Contexto, 2019.
CARRAZ, D. O lugar da imagem pictórica e da espiritualidade junto aos
Templários e Hospitalários: estado da questão no espaço francês. Horizonte,
Belo Horizonte, v. 15, n. 48, p. 1191-1219, p. 1191-1219, 2017.
CHEVITARESE, A. L. Cristianismo e Império Romano. In: SILVA, G. V. da
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[Ed.]. Feudalism in History. Princeton: Princeton University Press, 1965. p.
3-11.
18
DUMÉZIL, B. Les Barbares. Paris: Presses Universitaires France, 2016.
FRANCO JÚNIOR, H. As Cruzadas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.
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1999. p. 64-94.
MAALOUF, A. As Cruzadas vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense,
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SOBREIRA, V. O modelo do grande domínio: os polípticos de Saint-
Germain-des-Prés e de Saint-Bertin. São Paulo: Intermeios, 2015.
O CINEMA E O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL: REFLEXÕES E
PROPOSTAS
Flávia Amaral

O desafio de abordar a temática do ensino de História Medieval relacionada


ao cinema nos leva a discutir, no mínimo, dois conjuntos de problemáticas
que constituem o pano de fundo a partir do qual os parâmetros do debate 19
podem ser delineados. Em primeiro lugar é necessário tratar da relação
entre história e cinema, abordando a aproximação e as tensões entre essas
áreas. A partir disso, podemos refletir sobre o emprego de filmes no ensino
de História, especificamente no ensino de História Medieval, recorte definido
para o diálogo proposto nessa mesa redonda. Esse artigo irá apresentar o
debate básico que envolve essas problemáticas para, ao final, oferecer dois
breves exemplos de como podemos lidar metodológica e didaticamente com
filmes no ensino de História Medieval.

História e cinema
A relação entre história e cinema é umbilical. Um dos primeiros filmes
exibidos, ainda pelos irmãos Lumière, em 20 de novembro de 1898 foi A
execução de Joana d’Arc.

Desde então os temas, personagens e acontecimentos históricos são


transpostos à linguagem cinematográfica ininterruptamente, em que pese a
imensa diversidade de abordagens, releituras, apropriações e usos do
passado das sociedades. Dos clássicos do “cinema mudo” aos filmes
carregados de efeitos especiais, dos filmes cults aos hollywoodianos, do
Cinema Novo à Bollywood, não importa o gênero, estilo ou período: lá estão
eles, os filmes históricos, revelando que a linguagem cinematográfica é uma
das formas mais disseminadas entre os diferentes povos para lidar com a
construção de sua própria memória.

Desde a década de 1970 o trabalho de Marc Ferro vem sendo referência


para analisar a relação entre História e cinema. Esse historiador introduziu
um importante debate, não só por evidenciar e esmiuçar a relação
inequívoca e flagrante que os filmes sempre tiveram com os temas
históricos, mas também por alçar o registro cinematográfico à condição de
documento [Ferro, 1992] A partir das discussões propostas pela chamada
“Nova História” essa relação entre História e cinema tem sido cada vez mais
explorada, tornando-se um verdadeiro campo de investigação. Os debates
suscitados por esse autor tocaram em uma questão fundamental
relacionada ao problema da imagem como reflexo ou representação da
realidade e a forma como o historiador deve lidar com a complexidade e
particularidade desse tipo de fonte. Expressões como “realizar uma leitura
histórica do filme” e “realizar uma leitura fílmica da história” [Ferro, 2010]
passaram a estar presentes na maior parte das análises de filmes históricos.
Ferro defende que o historiador deve considerar, em sua análise, “tanto a
narrativa quanto o cenário, a escritura, as relações do filme com aquilo que
não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime de governo.
Só assim se pode chegar à compreensão não apenas da obra, mas também
da realidade que ela representa”. [Ferro, 1992, p. 88].

Entretanto as discussões posteriores avançaram na direção de uma


aproximação cada vez maior entre os filmes históricos e as tradições
historiográficas, como podemos observar nos trabalhos de autores como
20
Robert Rosenstone [2010], Eduardo Morettin [2001] e Alcides Freire Ramos
[2002]. Essa tendência propõe considerar o filme “de época” como uma
forma legítima de discurso histórico. Isso significa dizer que ao invés de ser
interpretado, exclusivamente, como uma fonte histórica, tendo mais a dizer
do período em que foi lançado e produzido do que sobre a época que
retrata, o filme histórico deve ser considerado como produtor de
conhecimento, que veicula uma interpretação a respeito de eventos
passados, em um diálogo com a historiografia que discute o tema,
personagem ou evento em destaque no filme, ainda que os diretores e
roteiristas não sejam historiadores.

Cinema e ensino de história medieval


O debate a respeito do potencial pedagógico das imagens, obviamente, vem
de longa data. Os recursos audiovisuais, inclusive, têm sido pensados como
ferramentas pedagógicas no Brasil, desde, pelo menos os anos 20 do século
passado. [Pereira e Silva, 2014]. Há uma farta utilização desses recursos no
ensino de História, em especial dos filmes. Os livros didáticos trazem vários
títulos, às vezes como sugestão ou ainda propondo uma análise e
interpretação. No entanto, como associar as reflexões teóricas à prática em
sala de aula? Como conduzir e quais resultados esperar nessas atividades?

As reflexões anteriores sobre a relação entre cinema e História podem nos


indicar caminhos profícuos a serem trilhados. A historiadora Vitória Fonseca,
que pesquisa nessa área há muitos anos, traz uma sugestão instigante a
esse respeito:

“Na oposição entre julgar o filme nos seus mínimos detalhes em busca de
suas “falhas históricas” – algo presente numa tradição de análise desse
gênero – ou considerá-lo uma ficção, num sentido quase pejorativo, que
pouca relação tem com o passado, pois tudo não passaria de invenções
exóticas de um artista, proponho um caminho alternativo que venho
trilhando, que envolve a exibição de filmes que tratem temas
historiográficos – ou, podemos dizer, os tradicionais filmes históricos (com
critérios de seleção que se equilibrem entre o público, a qualidade do filme
e a intencionalidade do professor) – e a comparação com as tradições
historiográficas às quais o filme faz referência. A essa altura do
campeonato, na qual a cultura visual e virtual está impregnada nas nossas
vidas (professores e alunos), não parece fazer nenhum sentido julgar filmes
históricos a partir do binômio falso/verdadeiro” [Fonseca, 2016, p. 416].

Com o objetivo de superar esse binômio seria ainda mais importante


considerar “efeito do real” dos filmes, não apenas para detectar as
estratégias de simulação de um passado irrepresentável, mas também para
acessar reflexões e debates que estão além do filme e que podem dialogar
com a construção e os usos da memória veiculados em diversos âmbitos da
sociedade, do político ao religioso, os quais se cercam de símbolos e
apropriações de outras temporalidades no intuito de garantir a legitimidade
de seu discurso. É nesse contexto que pretendemos inserir o debate sobre o
uso do cinema no ensino de História Medieval, que, sendo uma área
específica, merece uma reflexão particular. 21

Toda boa aula de História Medieval deveria, em minha opinião, começar


com a seguinte pergunta: mas, o que é a Idade Média? Questionar o uso
desse termo ou conceito leva os estudantes a entrarem em contato com
uma das premissas mais importantes na construção do conhecimento
histórico, a arbitrariedade das cronologias. Possibilita que, em primeiro
lugar, tenha-se clareza sobre o processo ao mesmo tempo consciente e
contingente que levou o homem moderno europeu, no início do século XV, a
subdividir o tempo da sua história em três eras. Uma “idade antiga”, base e
raiz de uma civilização a ser cultural e politicamente retomada; uma “idade
média”, tenebrosamente caracterizada pelas trevas do obscurantismo
religioso, artístico e político, a ser negada e confrontada; e, finalmente,
uma “idade moderna” vista e sentida como o momento presente, no qual se
abria oportunidade de superação dos males medievais e de reestruturação
dos fundamentos, supostamente superiores, da antiguidade clássica. Ao
contrário do que se pode pensar, levantar esse debate não leva a uma
negação da existência do período medieval, mas o coloca no ponto de
partida para qualquer debate qualificado sobre essa temporalidade. A ideia
de Idade Média foi gestada a partir de preconceitos, em um ambiente
social, político, econômico e culturalmente datados, a partir do qual foi
projetada a sombra das contradições de uma época nos séculos
imediatamente anteriores.

O contato com filmes cujas histórias se passam no período medieval vai ao


encontro desse debate, oportunizando um ambiente amplamente favorável
para que sejam detectadas as inúmeras apropriações, anacronismos e
estereótipos associados a essa época medieval. Mas não é só isso.
Enquanto recurso audiovisual, o filme pode ser muito útil no
desenvolvimento de uma série de habilidades e competências, conforme
vimos na discussão anterior. Unir cinema e ensino de História Medieval é,
portanto, uma proposta estimulante que pode ser muito eficaz se o
professor compreender com clareza o potencial que essa ferramenta tem na
construção do conhecimento histórico. O ensino de História Medieval
encontra sua importância exatamente na contribuição que pode dar no
processo de abstração e contato com a alteridade que uma “temporalidade
recuada” oferece:

“O que é relevante nessas temporalidades muito recuadas como a ‘Idade


Antiga’ e a ‘Idade Média’, muito distantes do ‘ser’ e ‘estar’ contemporâneos,
não é a busca pelas permanências ou tradições remanescentes por elas
produzidas, mas justamente sua condição de demonstrar a alteridade
extrema que as sociedades humanas mantiveram e ainda mantêm umas
com as outras. Retomamos aqui um dos ensinamentos de Jörn Rüsen a
respeito da formação histórica, “ela amplia a orientação histórica por
recurso a fatos passados que não se encontram sedimentados nas
circunstâncias da vida prática atual. Ela abre o olhar histórico para uma
amplidão temporal em que o presente e a história inserida nele são
relativizados em contraste com outras histórias” [Rüsen, 2007, p.104; Bovo
e Degan, 2017, p.72].
22
Ao unirmos o potencial do ensino de História Medieval ao do uso do cinema
como recurso didático, podemos ter resultados que vão muito além de uma
mera expectativa de que o “filme ajude o aluno a compreender como foi
aquele período de fato” ou de que o filme seja exibido “para que todos
vejam o quão longe ele está do que realmente foi vivido pelos homens
daquela época”. Em nossa opinião, superar essa dicotomia é uma das
chaves para que a utilização do cinema no ensino de História Medieval seja
capaz de aproximar os estudantes da construção do conhecimento histórico.

Cinema e Idade Média


O período medieval vem sendo frequentemente apropriado por vários
setores da cultura de massa, como jogos, séries, novelas e filmes.
Referências “medievais” são associadas a bandas de Heavy Metal e de New
Age, jogos de RPG e livros de ficção, como no caso das flagrantes
referências medievais do mundo criado por J. R. Tolkien em O Senhor dos
Anéis. Muito do que se pensa sobre a Idade Média é de fato uma construção
dos produtos que atendem a esse mercado que faz do “medieval” mais do
que uma temporalidade histórica, tornando-o uma verdadeira referência
comportamental, ora reverenciada, ora vilipendiada. O cinema, de fato, tem
uma enorme contribuição na construção da imagem da Idade Média ao
redor do mundo. No entanto trata-se de uma imagem um tanto difusa,
como bem pontuou José Rivair Macedo: “(...) A Idade Média pode vir a ser
muito mais imprecisa na inspiração de temas (magos, feiticeiros, dragões,
monstros, guerreiros, assaltos a fortalezas) produzidos pelos meios de
comunicação de massa e pela indústria cultural”. [Macedo, 2009, p. 17]

Muitos dos preconceitos e estereótipos associados à Idade Média vêm de


uma dupla interpretação desse período, a primeira reifica a ideia da “Era
das trevas” e calamidades, e a outra, remanescente do movimento
romântico do século XIX, idealiza essa temporalidade como repositório de
todos os princípios morais e éticos, uma verdadeira era dourada durante a
qual a humanidade teria se movido por valores de solidariedade. No
cinema, sem dúvida, essa dicotomia está presente, por vezes em um
mesmo filme que pode oscilar entre cenas que retratam o devotamento do
cavaleiro a seus companheiros e sua dama, a tomadas que fazem o
espectador ter verdadeiro ódio dos “senhores feudais” e da exploração
servil. Um dos exemplos é o filme, ganhador do Oscar, Coração Valente
[1995], que traz na figura de William Wallace todas as virtudes de um
verdadeiro guerreiro medieval idealizado: o destemor, a fidelidade absoluta
à sua causa e o heroísmo. Já os ingleses, que antagonizam o filme,
encerram os vícios associados à organização de poder da Idade Média, em
especial os desmandos da nobreza em associação com o domínio da Igreja
Católica. Além disso, esse filme foi um dos responsáveis por disseminar o
mito historiográfico do direito do senhor feudal à primeira noite com a
esposa de um subordinado. Essa suposta instituição apareceu pela primeira
vez no filme “O Senhor da Guerra”, de 1965, sendo a partir de então
tomada como verídica e como mais uma característica tenebrosa do período
medieval.

Os filmes que se passam na Idade Média sofrem influências externas dos 23


romances históricos, do modelo didático escolar, do romance gótico, das
óperas, das pinturas históricas do século XIX e as pré-rafaelitas, do teatro
de marionetes do cinema italiano, além das interpretações historiográficas
do século XX. Além disso alguns temas são privilegiados :

“Quando se diz ‘Idade Média’, é na feudalidade, na cavalaria, nos castelos


fortes e nas catedrais que a gente pensa espontaneamente. (...) Os séculos
‘bárbaros’, construíram outro imaginário cinematográfico que veio à moda
somente em períodos bem recentes – desde os anos 1980, aqueles da
ascensão da heroic fantasy. Algumas exceções, como os filmes legendários
germânicos dos anos 1920 e os filmes de vikings que conheceram um breve
florescimento no início dos anos 1960” [Amy de la Bretèque, 2015, p.07].

Existem, portanto, assuntos e personagens mais recorrentes na produção


de filmes que se passam na Idade Média. Mas para ampliar o alcance do
debate, os títulos aqui sugeridos se localizam nos dois extremos do
conjunto. A primeira indicação traz o personagem histórico medieval sobre
o qual mais se filmou, Joana d’Arc. A segunda, apresenta dois ícones da
história indiana, pouquíssimo conhecidos, mesmo entre os historiadores
brasileiros, Jodha e Akbar.

Propostas de análise

Joana d’Arc, Luc Besson. 1999.

É possível escrever uma história do cinema apenas com os filmes sobre


Joana d’Arc, que somam 34 títulos! O longa dirigido por Luc Besson foi
produzido na França e lançado em 1999. Joana é representada como uma
camponesa, desde sempre muito religiosa, que tem na infância o contato
direto com os horrores da Guerra dos Cem Anos. Ela vê a própria irmã ser
morta e estuprada por soldados ingleses. As visões místicas de Joana são
bastante exploradas no filme, bem como sua crença no caráter divino da
missão que deveria cumprir. O filme narra toda a trajetória da vida pública
de Joana d’Arc, desde seu encontro com o Delfim da França, passando pela
libertação da cidade de Orléans, a coroação do Delfim, como Carlos VII até
chegar no julgamento de Joana, sua condenação e morte na fogueira. A
abordagem proposta pelo diretor traz uma ambiguidade à história dessa
personagem, pois no decorrer do enredo, ela passa a questionar suas
visões: seriam realmente verdadeiras? Teriam origem divina ou satânica?
Sua obstinação na luta contra os ingleses viria da obediência a Deus ou em
razão dos horrores vividos na infância?
Joana d’Arc, de Luc Besson, traz uma heroína bem diferente da tradição
cinematográfica anterior. Sua fé e dedicação à causa ficam evidentes na
maior parte do tempo, mas não são raros seus momentos de dúvida e
hesitação em relação à veracidade das suas experiências místicas, algo que
não aparece em nenhum outro filme anterior. Para uma abordagem em sala
de aula, esse título traz inúmeras possibilidades, dentre as quais gostaria de
24
destacar uma: o processo de construção de um personagem histórico em
um filme. Dentro desse aspecto podem ser trabalhadas as seguintes
questões: quais as fontes históricas para a construção da imagem de Joana
d’Arc? A partir dessas fontes disponíveis, por quais delas o diretor optou na
construção da narrativa? No diálogo com a historiografia joânica, que
respostas o diretor oferece às principais questões sobre o personagem:
quando deveria terminar sua missão? Ela realmente ouvia vozes? Qual o
comportamento da nobreza e do rei Carlos VII em relação à Joana após ela
ter sido presa?

Jodha Akbar, Ashutosh Gowariker. 2008.

Como segunda sugestão trazemos um filme indiano, do premiado diretor


Ashutosh Gowariker. A opção por esse filme toca em um debate essencial
no ensino de História Medieval: como abordar os espaços fora da Europa
para esse período? Na última década, os livros didáticos brasileiros tem
dado cada vez mais espaço para a história africana e oriental. Acreditamos
que, a partir da exibição desse filme, pode-se estabelecer um rico debate a
esse respeito, como pretendemos demonstrar a seguir.

Jodhaa-Akbar narra a história do casamento do imperador Mughal, Akbar


com uma princesa Rajput, Jodha. Trata-se de uma aliança política entre
hindus e muçulmanos quando da expansão do império Mughal no
subcontinente, durante o século XVI. A tônica do filme é o romance entre os
protagonistas, a forma como se apaixonam após o casamento, mesmo com
todas as diferenças culturais. No entanto, o filme dá amplo espaço para o
debate a respeito da tolerância religiosa, visto que Akbar sempre permitiu
que Jodha mantivesse seus hábitos e tradições, não tendo obrigado sua
esposa à conversão ao islamismo. Essa, inclusive é a memória do governo
de Akbar entre o povo indiano até hoje, uma vez que esse imperador
enveredou esforços não apenas para construir alianças políticas e religiosas
com líderes cristãos e hindus, como também se cercou de grandes
pensadores do islamismo, do cristianismo e do hinduísmo com o objetivo de
criar uma religião única que abarcasse elementos das três tradições. Nesse
sentido, Jodha- Akbar tornou-se uma ode à luta pela tolerância religiosa na
Índia, um símbolo dos movimentos que vem, desde Mahatma Gandhi,
buscando estabelecer uma convivência harmônica entre hindus e
muçulmanos. Ironicamente, nesse mesmo ano de 2008, aconteceu o mais
terrível atentado terrorista em Mumbai, quando um grupo islâmico agiu em
diversos pontos da cidade executando centenas de indianos e estrangeiros,
de diferentes religiões. No ano de 2018 o filme “Atentado ao hotel Taj
Mahal” apresentou um dos mais sangrentos episódios desse ataque.
Além dessa temática, a exibição e debate sobre esse filme proporciona o
contato dos estudantes com a história da expansão do Império Islâmico na
Ásia, tema que pode ser trabalhado de forma conectada à tradicional Idade
Média Ocidental, exatamente para questionar os pressupostos eurocêntricos
e debater outras questões, como o orientalismo. Além disso, dá a
oportunidade de contato com uma linguagem cinematográfica muito
diferente do estilo hollywoodiano, ampliando fortemente os horizontes 25
culturais dos estudantes.

A partir desses exemplos esperamos ter evidenciado, minimamente, a


diversidade de possibilidades de debates que podem ser suscitados a partir
do uso do cinema no ensino de História Medieval. Nossa perspectiva foi
associar a prática com o debate teórico apresentado anteriormente,
apresentando alternativas que não tomem o filme apenas como uma
tentativa fracassada de retratar um período ou como um combinado de
projeções da época em que foi produzido, mas que proponham também o
“uso do cinema como dispositivo pedagógico e catalisador de
aprendizagens.” [Fonseca, 2016, p. 416]

Referências
Flávia Amaral realizou pós-doutorado em História pela Unicamp; é doutora
em História pela Universidade de São Paulo e Professora de História Antiga
e Medieval na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri

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Historique et Artistique. Paris: Armand Colin, 2015.
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contribuição
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RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos fracos: cinema e história do Brasil.
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ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. São
Paulo: Paz e Terra, 2010.
DIÁLOGOS E CAMINHOS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO
ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL
Isabela Albuquerque

Breve panorama da medievalística brasileira


Como qualquer país do continente americano, o Brasil não vivenciou a
26 Idade Média. Enquanto um campo de estudos, frequentemente os
pesquisadores da área buscavam – e ainda buscam em certa medida –
legitimar o porquê dos estudos medievísticos no Brasil e qual a relevância
em se estudar o período em detrimento a outras áreas como História do
Brasil ou História Contemporânea.

A organização dos estudos medievais nos cursos de História nas


universidades brasileiras ocorreu mais pela necessidade da compreensão do
período para a formação geral da história a partir de uma formação
integrada, do que para buscarmos nossas identidades enquanto Estado
Nacional. Isso posto, sua inserção nos currículos não foi estabelecida
necessariamente a partir de uma vinculação identitária a nível cultural ou
acadêmica com o período, a fim de justificar nosso passado e nossas
origens. A exceção a respeito do medievo talvez esteja presente, de forma
mais específica, nas atenções voltadas para a história portuguesa,
especialmente para seu precoce Estado nacional e os desdobramentos
decorrentes para o a formação do império português. [Almeida, 2013, p. 2]

Na Europa, o estudo da Idade Média justificou-se a partir da segunda


metade do século XIX, balizando sua narrativa na busca das origens dos
povos europeus. Vinculado a essa ideia, apresentava-se o conceito de etnia,
que muitas vezes acompanhava pari passu o nacionalismo, mantendo suas
raízes fincadas nos tempos da Antiguidade Tardia, sobretudo após a
desagregação do mundo romano e seguido pelo assentamento e
constituição dos reinos germânicos. Ao longo do XIX, historiadores,
arqueólogos e linguistas contemplavam o período medieval e a organização
dos grupos étnicos em busca da gênese de seus Estados Nacionais,
vislumbrando a possibilidade de dar coesão aos grupos humanos que
compunham suas fronteiras. Logo, na relação entre o passado medieval e o
fortalecimento do Estado Nacional, trata-se o mesmo de uma comunidade
imaginada, no qual as tradições, os símbolos e os heróis, por exemplo, são
criados, a fim de legitimá-lo [Anderson, 2008] e é justamente nos primeiros
tempos do medievo a qual essa gênese remonta.

Voltando ao caso da academia brasileira, dos idos de 1990 para cá, o


crescimento de pesquisas dentro dos medievísticos no Brasil, numa ação
conjunta de cursos de pós-graduação, laboratórios, grupos e centros de
pesquisa foram responsáveis pelo aumento no volume de estudos sobre o
período. Apesar de relativamente recentes quando comparados com a
academia europeia e estadunidense, desenvolveram-se não como uma
resposta às demandas na área de História, mas graças ao aumento do
incentivo à pesquisa, ao alocar jovens doutores em universidades públicas e
proporcioná-los o desenvolvimento de suas pesquisas. [Almeida, 2013, p.
7-8] Desde então o interesse de estudantes em universidades brasileiras
pelo período medieval cresceu consideravelmente, o que pode ser atestado
pelo aumento do número de dissertações e teses defendidas na área de
História Medieval. No caso específico da UFRJ, por exemplo, de 1990 a 2017
foram defendidas 111 trabalhos – entre teses e dissertações – que
correspondem a área de História Medieval. [Silva; Silva; Silva, 2019, p 351
e 359]. 27

Nos últimos anos o medievo tem sido alvo nas mídias, nos discursos
lugares-comum e de personalidades políticas. Se de um lado observamos o
crescimento do que Umberto Eco chamou de “Idade Média sonhada”, por
outro há a adoção de narrativas que reforçam as representações negativas
sobre o período, cercada de juízos de valores e tornando ainda mais difícil
desconstruí-las. Jérôme Baschet, na Introdução do seu livro A civilização
feudal: Do ano mil à colonização da América, afirma que a imagem sobre a
Idade Média é ambígua, pois, simultaneamente à simpatia pelos castelos,
pela literatura sobre a Távola Redonda, o deslumbramento pelas catedrais
góticas, denota também o obscurantismo, o atraso e a barbárie. [2006, p.
23-24]

Todavia, discussões e reformulações das concepções acerca do medievo já


foram feitas em diversos artigos e livros de historiadores brasileiros e
estrangeiros. Nos últimos trinta anos, principalmente, muito já foi discutido
sobre os estereótipos a respeito da Idade Média e em como os mesmos são
tendenciosos – para não dizer danosos – para a compreensão do período
dentro do universo não-acadêmico, e não cabe aqui retomarmos a esse
tópico no momento, pois foge do nosso escopo de análise. O objetivo deste
artigo não é exaurir ainda mais esse debate, que outros medievalistas já
fizeram tão pujante e brilhantemente.

A finalidade de nosso texto é discutir e propor novas abordagens, olhares e


análises a serem trabalhadas em sala de aula sobre o período medieval,
trazendo à luz recentes debates travados. Tanto na Educação Básica quanto
nas Universidades, o ensino de História Medieval ainda é expressivamente
marcado pela visão de uma Idade Média tipicamente ocidentalizada,
eurocêntrica e marcada por um viés francófano, sobretudo por conta da
influência francesa em nossa tradição historiográfica. Tal fato extrapola ao
considerarmos o acesso limitado a maior parte da bibliografia traduzida do
inglês ou do alemão – em comparação com as traduções da língua francesa
e a produção ibérica – à qual normalmente os estudantes de graduação têm
acesso. A partir dos estudos pós-colonialistas e de novos paradigmas
discutidos e incorporados pela História Global buscaremos contribuir com
novos olhares e abordagens dentro estudos medievalísticos.

A contribuição dos estudos pós-colonialistas na História


Antes de iniciarmos nossa discussão, convém melhor elucidarmos o que
entendemos por estudos pós-coloniais. Embora não esteja sistematizado
como teoria propriamente, mas enquanto um campo de estudos que
sinaliza novos paradigmas metodológicos para análise das relações sociais e
da análise cultural, o termo foi empregue inicialmente no contexto pós-
guerra, mas seu uso ganhou mais força a partir da década de setenta,
dentro dos estudos literários. A obra de Salman Rushdie The empire writes
back: theory and practice in post-colonial literatures (1989) é considerada
um dos primeiros livros a abrir os estudos pós-coloniais como um campo de
investigação.

28
Em linhas gerais, os estudos pós-colonialistas correspondem ao apelo e ao
compromisso ético em se “desocidentalizar” e “deseuropeizar” às
perspectivas de mundo e as formas de saber, lembrando que as ideologias
presentes nos modelos pré-existentes e nas representações tendem a
naturalizar a subalternidade, a exclusão e o estatuto periférico, impondo
uma expressiva carga darwinista e juízos de valores e estéticos. [Mata,
2014, p. 30] Sua importância reside justamente no fato de desconstruir e
desnaturalizar tais estereótipos, trazendo a discussão mais ampla de como
as estruturas do saber estão vinculadas a aspectos ideológicos e,
consequentemente, servindo também a estruturas de poder.

Os estudos pós-colonialistas salientam, portanto, que é preciso tomar certos


cuidados com as construções epistemológicas e na forma em que as
mesmas abordam as relações de poder e em atividades marcadas pela
diferença, como etnia, religião, orientação sexual, gênero, classe, dentre
outros, pois tendem a não problematizar processos históricos, sobretudo
quanto às relações centro versus periferia e colonizador versus colonizado.
Para tanto, entraram no bojo da discussão conceitos como cultura,
identidade e etnicidade, por exemplo.

Um dos destaques recentes dentro deste campo de estudos tem sido o


acadêmico indiano Homi K. Bhabha (1949-). Influenciado pelo pensador
pós-colonialista Franz Fanon (1925-1961) e partindo de pressupostos
teóricos dentro da linguística e da psicanálise, Bhabbha, ao abandonar as
teorias que privilegiam o binarismo maniqueísta, busca compreender de que
maneiras as relações entre colono e colonizador foram constituídas, indo
além da representação que a literatura faz dos sujeitos envolvidos neste
contexto. O autor convida-nos ainda a refletir acerca das relações que
perpassam a construção das identidades de colonizador e colonizado e o
espaço de circunscrição da identidade que ultrapassam os símbolos e signos
visuais. De acordo com essa perspectiva, o autor tece algumas
considerações

“Primeira: existir é ser chamado à existência em relação a uma alteridade,


seu olhar ou locus. (...) “É a relação dessa demanda com o lugar do objeto
que ela reivindica que se torna base de identificação”. Este processo é
visível na troca de olhares entre o nativo e colono, que estrutura sua
relação psíquica na fantasia paranóide da posse sem limites e sua
linguagem familiar de reversão: “Quando seus olhares se encontram, ele [o
colono] verifica com amargura, sempre na defensiva, que ‘Eles querem
tomar nosso lugar’. E é verdade, pois não há um nativo que não sonhe pelo
menos uma vez por dia se ver no lugar do colono”. É sempre em relação ao
lugar do Outro que o desejo colonial é articulado: o espaço fantasmático da
posse, que nenhum sujeito pode ocupar sozinho ou de modo fixo e,
portanto, permite o sonho da inversão de papéis”. [Bhabha, 1998, p. 76]

As reflexões de Bhabha permitem-nos vislumbrar como se desenrolam as


relações entre nativo e colono sob o prisma do primeiro. A partir do
momento em que o nativo tem suas liberdades cerceadas e reduzidas por
conta de um domínio político, social, econômico, cultural e militar 29
estabelecido, seu objeto de desejo passa a ser poder desempenhar o papel
do colono, ao qual, no momento, ele é obrigado a se sujeitar. O nativo, ao
lembrar o que perdeu, deseja, na verdade, inverter esse jogo e transmutar-
se no papel do colonizador. No processo de violência física e psíquica ao
qual é submetido não existe apenas o desejo de que o colono se ausente do
território que outrora era seu, mas levar ao rancor vingativo, o qual o
impele à vontade de desempenhar o papel do colono, numa espécie de
revanchismo que mantém viva a memória do que é ser colonizado.

Análise de Bhabha complexifica as relações sociais envolvidas neste espaço,


enriquecendo e acrescentando à ideia binária que define quem é o colono e
quem é o colonizado. O processo de construção das identidades de nativo e
colono é realizado no espaço de cisão, o hiato que faz com que a distância
tome uma proporção – como ele mesmo definiu – perturbadora. O ser
diferente traduz, mesmo que de forma inconsciente, uma relação de
alteridade. [Bhabha, 1998, p. 77)] O colonizador constitui o colonizado
tanto quanto o colonizado constitui o colonizador, um papel agonístico e
antagonístico ao mesmo tempo e é justamente nesse espaço intersticial
onde as identidades de ambos são forjadas. Logo, no entendimento de
Bhabha, o processo de formação das identidades ocorre num nível
psicológico bem mais profundo e complexo do que as relações sociais
tendem a presumir.

Bhabha atenta ainda para o fato também que o colonizado, ao mesmo


tempo em que deseja ocupar o local do colonizador, também não quer abrir
mão do papel de colonizado. Tal explicação reside no fato de que, por ser
colonizado, está intrínseco à sua natureza um desejo de vingança e, caso
este objetivo seja atingido, ele perde a sua identidade com relação ao
colonizador. [Sousa, 2004, p. 121]

O conceito de identidade proposta por Bhabha nos levam a refletir sobre a


própria construção dos grupos sociais na Idade Média. Em constantes
interações, seja por meio de conflitos ou de forma amistosa, os espaços
medievais estavam marcados por constantes contatos culturais, que
mutuamente também se influenciam, e foram parte integrantes na
organização dos mesmos e na organização de suas identidades. A ideia de
que as identidades são constituídas num espaço de cisão, intertiscial –
inbetween – nos levam a pensar em que medida as denominações de que
lançamos mão para explicar grupos específicos no medievo são de fato
válidas. Classificar a Inglaterra anglo-escandinava ou Al-Andaluz no século
X como um amálgama ou fruto de um simples hibridismo é desconsiderar o
processo de interação entre grupos distintos e relativizar sua complexidade.
O que torna um indivíduo ou um grupo franco, bretão, moçárabe, etíope,
sassânida como tantas vezes empregamos esses vocabulários? O que o
torna cavaleiro, mercador, herege, sodomita, judeu? A revisão dos
conceitos adotados deve sempre fazer parte do exercício do historiador. O
sentido das palavras não são dotados de vida própria e contextualizar seu
surgimento e propósito se faz mister, tanto para questões de compreensão
30
do posicionamento do pesquisador e de sua filiação teórica, quanto para
não incorrer na banalização do seu uso. [Silveira, 2016 p.49]

História Global, periodização do tempo e “desocidentalização” da


História
Tempo e espaço não são meros coadjuvantes no processo histórico,
desempenhando o papel de cenário – onde e quando uma narrativa se
passa. Constituem-se como elementos fundamentais que são responsáveis
por conectar pessoas, ideias, bens materiais, dentre outros. Partindo de
outra perspectiva teórico-metodológica a respeito do que esses dois
componentes, podemos repensar também a maneira como lidamos com
essas categorias na nossa prática historiográfica e no Ensino de História.

A periodização da História – e consequentemente os reflexos gerados no


seu Ensino – estão marcados por episódios considerados expressivos à luz
do Ocidente. A nossa divisão tradicional, por exemplo, em quatro grandes
períodos (Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade
Contemporânea) remete a momentos considerados cruciais para o mundo
ocidental: o colapso do Império Romano do Ocidente (476), o Renascimento
(século XIV), a Revolução Francesa (1789), a Revolução Industrial (século
XVIII). Nosso objetivo não é desmerecer ou diminuir a importância da
periodização do tempo, haja vista que não há como fazer pesquisa na área
deixando de lado a organização como tempo histórico, mas atentarmos que
tais marcos não são puros e naturais e que se ordenam a partir de
construções narrativas.

Nos últimos vinte e cinco anos, muito tem se discutido sobre novos
arcabouços metodológicos e conceituais para o estudo da história, dos quais
História Cruzada, Histórias Conectadas, História Transnacional e História
Global são apenas alguns desses exemplos. No caso específico da História
Global, uma série de obras, seminários, grupos de pesquisas e periódicos
organizaram suas pesquisas a partir desse novo paradigma historiográfico.
Em síntese, pode-se afirmar que a História Global baseia-se em duas
principais características: superar o nacionalismo metodológico como
principal forma de análise das sociedades e evitar o
eurocentrismo/ocidentalismo. [Santos Júnior; Sochaczewski, 2017,p. 491]
No entanto, o que essa modalidade historiográfica traz de novo em
comparação com a chamada História Universal? Em seu artigo Experiências
do tempo: da história universal à história global?, o historiador francês
François Hartog afirma que enquanto a primeira tendeu a naturalizar ou
absolutizar a história da Europa – a ponto de transformá-la num parâmetro
narrativo para toda uma história da humanidade – a segunda privilegia a
busca por conexões, numa espécie de rede, na qual não há,
consequentemente, uma visão única a seu respeito. [Hartog, 2013, p. 170]
A ideia de uma História Universal, que caminha inevitavelmente para o
futuro, centrada na concepção de progresso, tal como pensavam os
intelectuais do século XVIII, não faz mais sentido nos dias de hoje. Não
obstante, a história não poderia ser apenas uma mera soma de diversas
conexões, como uma colcha de retalhos, prontos a serem costurados e
formar um desenho, numa espécie de quebra-cabeça. Não há um roteiro ou 31
um manual prévio o qual consultar, pois é o próprio historiador que
(re)organiza essas conexões, a partir de seus objetivos, objetos, recorte,
teoria, metodologia, conferindo novas formas de interpretação. Logo, a
perspectiva da História Global ultrapassa a simples ideia da busca por
conexões entre culturas e sociedades, contribuindo com um novo olhar
sobre as sociedades como objeto de estudo e para a tessitura de novas
interpretações e narrativas.

As perspectivas da História Global, sobretudo no que tange à


desocidentalização da história, trazem à tona questão da organização do
tempo e a periodização. Para que a divisão em temporalidades específicas
faça sentido dentro da história, a mesma deve vir acompanhada de dois
conceitos fundamentais para a disciplina: as concepções de permanência e
mudança, pois a transição de um período para o outro deve estar
precisamente marcada pela dissolução de antigas características de um
período e o início de novas particularidades, sem perder de vista que,
distintamente das ciências naturais, as classificações na história refletem as
escolhas de quem a analisa e classifica, no caso, o historiador. [Green,
1992, p. 14] Sobre as relações entre a História, construção de sua(s)
narrativa(s) e o tempo, o historiador indiano A. Gangatharan afirma que

“O conceito de periodização está essencialmente ligado à nossa


compreensão do passado e em como analisamos metodologicamente o
desdobramento dos eventos de um tempo para outro, de uma época para
outra. Desnecessário dizer que a objetificação do tempo a partir de
categorias reconhecíveis e com sua coesão interna oferece uma lógica
significativa para entender a natureza compreensiva dos eventos históricos,
correspondente ao seu contexto sociocultural”. [2008, p. 864]

Organizar o tempo em períodos diz respeito a uma ferramenta metodológica


para a disciplina, com o objetivo de facilitar a análise do historiador frente
ao seu objeto de estudo e, por mais que se saiba que a divisão do tempo é
uma operação arbitrária e baseada em quesitos específicos, não seria
possível fazer história sem tal variável em nossa equação. Sem ele não
seria possível delimitar os ritmos e as dinâmicas que compõem as
transformações na sociedade.

A partir de uma teoria da mudança, supõem-se que as épocas históricas


devem exibir importantes continuações em longo prazo, ao passo que as
transições de um período para outro devam envolver a dissolução de
antigas continuidades e a construção de novas formas de organização. Esse
processo, entretanto, não é isento de valores, haja vista que toda teoria
está baseada e reflete onde residem as prioridades do pesquisador. [Green,
1995, p. 101] e cabe aí verificar quais os objetivos que se almeja atingir.

Logo, repensar a maneira como demarcamos os períodos da nossa


disciplina leva-nos a pensar questões pertinentes de uma maneira global,
afinal, se utilizamos os mesmos referenciais de uma história europeia
32
ocidental para abordarmos sociedades diversas, como tal periodização pode
ser fortuita? Ao utilizamos expressões como China medieval, Japão feudal e
Índia moderna, de que forma não estamos tentando também encaixar
modelos de uma história ocidental?

Nesse sentido, é preciso “desocidentalizar” a história. A célebre obra


Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, de Edward Said, ainda
é um dos principais fundamentos na discussão e na compreensão das
representações ocidentais acerca do Oriente. Ora um local de abundância e
exótico, ora caótico e incoerente, a forma como os ocidentais
compreendem-no nada mais é do que fruto de uma invenção europeia,
influenciada, principalmente, pelas visões do imperialismo britânico e
francês e reproduzidos posteriormente. [Said, 1990, p. 14-15]

Ao desnaturalizar os conceitos de Oriente e Ocidente, Said evoca sua


construção enquanto um fato político, rompendo com a ideia de que se
tratam de entidades geográficas, culturais e históricas pré-determinadas. O
intelectual britânico-palestino completa sua ideia afirmando que o
orientalismo não seria uma mera fantasia da Europa sobre o Oriente, “mas
um corpo criado de teoria e prática em que houve, por muitas gerações um
considerável investimento material.”. [Said, 1990, p. 18]

(Re)construindo novas abordagens para o Ensino da Idade Média


Como pensar ou aplicar pressupostos epistemológicos dos estudos pós-
colonialistas e dos paradigmas da História Global na medievalística e no
Ensino de História Medieval? A começar, a reflexão sobre o próprio nome
atribuído ao período – Idade Média –, o qual reforça aspectos da
colonização do tempo. Por não partir de uma perspectiva própria do ou
sobre o período, mas de autores da chamada Modernidade, sobretudo do
contexto do movimento do Renascimento, o período medieval já nasce
colonizado. A ideia de Modernidade vem dessa forma associada a uma visão
positiva, a uma perspectiva mais ampla e ao anseio pela mudança, numa
espécie de contraponto ao mundo medieval, retrógrado e obscuro.

Apesar de recorrentemente problematizado pelos medievalistas, o vocábulo


"Idade Média" não foi substituído, repensado ou readotado e que se referir
a uma Idade Média pós-colonial seria, no mínimo, um oxímoro, para não
dizer um anacronismo. [Cohen, 2000, p. 4] Desde a maneira como os
currículos nas instituições de ensino superior estão estruturados à divisão
por disciplinas ainda em esquemas bastante tradicionais e que remontam
uma história dividida em quatro grandes eixos cronológicos (Antiga,
Medieval, Moderna e Contemporânea), pode-se atestar como nossa
principal forma de concepção e de organização da passagem do tempo
ainda é composto por elementos de uma tradição, digamos, colonizadora.
Entretanto, mesmo ainda presos a essa organização, tal assertiva não
significa que os historiadores abstiveram-se de debater, propor, repensar e
dialogar com outras áreas do saber para questionar os limites que a
organização de um tempo cronológico impunha à nossa disciplina. Ao tomar
consciência de que tanto o tempo quanto a própria história foram alvo da
colonização, não fomos inertes às discussões, nem permanecemos 33
obcecados com a objetividade de que as fontes documentais eram dotadas
de vozes próprias, prontas para revelar o que tinham a comunicar. No caso
específico da medievalística, os pesquisadores também contribuíram dentro
desse processo.

Ao escrever sobre a descolonização do Ensino de Idade Média, Macedo


aborda-a como uma crítica ao ponto de vista que parte da própria Europa, a
partir da ideia de centro e periferia. Enquanto muitas vezes os conteúdos
lecionados nas instituições de educação básica focam nos recortes
geográficos que correspondem aos atuais Estados de França, Inglaterra,
Alemanha e Itália, tendem a negligenciar territórios considerados de
segunda importância, como Península Ibérica, os Bálcãs ou o Leste
Europeu, por exemplo. [Macedo, 2009, p. 115] No caso específico da
Península Ibérica, faria até mais sentido, tendo em vista que, como um país
colonizado por Portugal, somos herdeiros dessa tradição ibero-americana.

A descolonização abordada por Macedo, portanto, ainda está centrada em


visões tipicamente eurocêntricas, muito embora o autor proponha um olhar
mais atento a algumas questões como a convivência entre cristãos,
muçulmanos e judeus na Espanha medieval, a qual proporcionaria a
discussão de temáticas como intolerância e liberdade religiosa, conflitos
étnicos e as relações com o Outro. [Macedo, 2009, p. 116]

Apesar de uma proposta bastante válida, gostaríamos de avançar mais no


debate. Vislumbramos a necessidade de novos referenciais teóricos e
metodológicos que nos auxiliem na maneira como enxergamos e
entendemos a Idade Média, a fim de assentar as bases de sua
(re)construção no que tange ao Ensino de História Medieval.

A primeira perspectiva versa sobre a concepção de temporalidade na


história. Considerando que tanto as organizações do tempo quanto da
história também são alvo de um processo de colonização, pautado em
disputas de poder e tensões políticas e, portanto, nunca neutros, o tempo
não é um objeto inocente e inerte aguardando ser escavado e desvendado
pelo historiador. Tendo em vista que a Idade Média surge dentro dessa
perspectiva já colonizada, ausente de voz própria quanto à sua
temporalidade, mas apenas confinada a metade entre dois outros períodos,
os estudos medievalísticos buscaram aprimorar sua capacidade de se
reinventar. A compreensão de que a disciplina foi forjada no seio da
chamada Modernidade gerou uma espécie de trauma, ao mesmo tempo em
que possibilitou alianças trans-históricas e transformações recíprocas
[Cohen, 2000, p. 5], como uma forma de superar esse “trauma”.
O passado não é estático e passível de investigação como um mero objeto
de estudo – ou ao menos não deveria ser. O Ensino de História Medieval
deve permitir analisar as relações entre temporalidades distintas para além
da perspectiva de uma mera relação de alteridade, mas como um passado
que descortina um presente para novas possibilidades num futuro.

34
Na introdução da obra organizada pelo acadêmico estadunidense Jeffrey
Jerome Cohen, The Postcolonial Middle Ages [Palgrave Macmillan,
2000], o autor questiona em que e com o que os estudos medievísticos
podem contribuir dentro da abordagem pós-colonialista. Como uma Idade
Média colonizada, que corresponde a um tempo longínquo - se comparada
com o próprio fenômeno do neocolonialismo no século XIX - pode auxiliar
nos estudos pós-colonialistas dentro do Ensino de História?

A resposta vem na forma de cinco temáticas: 1) Abandonar os modelos


explicativos generalizantes; 2) Desnaturalizar as concepções de verdade
dentro da disciplina, geralmente vinculados a projetos de poder; 3)
Desestabilizar identidades hegemônicas, no que concerne a etnias,
orientação sexual, religião, classe, idade, dentre outros; 4) Relativizar a
posição dominante do cristianismo dentro da sociedade medieval; 5)
Descentralizar a Europa e reconfigurar geograficamente o mapa da Idade
Média ao incluir Ásia, África e o Oriente Médio. [Cohen, 2000, p. 6-7]

Os estudos sobre identidade auxiliam nessa visão de uma Idade Média a


partir da alteridade. Conteúdos antes identificados como marginalizados,
tais como o incesto, masoquismo, estupro e travestismo, são agora
reintroduzidos como objetos importantes nos estudos medievísticos, não
apenas com o objetivo principal de expandir, enriquecer ou complexificar
nosso entendimento sobre a cultura medieval, mas para a compreensão de
que foram categorias de análise excluídas na representação medieval e
também das nossas representações acerca da Idade Média. [Freedman;
Spiegel, 1998, p. 699]

Quanto às possibilidades de visões que essas novas abordagens


proporcionam, ao analisar temáticas do gênero, devemos rejeitar a ideia de
que se tratava de uma visão alternativa sendo meramente reprimida,
excluída ou abandonada, substituindo-a por um campo mais amplo de
possibilidades, negado durante o momento de estabelecimento de
representações. [Freedman; Spiegel, 1998, p.700] Como foram
negligenciadas como escopo da medievalística tradicional, tendemos a
analisá-los como ausentes ou marginais dentro da sociedade medieval,
como se houvesse uma Idade Média oficial e outra excluída.

Entretanto, de todas as assertivas, as três primeiras cabem não apenas ao


estudo da Idade Média, mas àqueles circunscritos a outras temporalidades.
Os grandes modelos explicativos tendem a estabelecer visões reducionistas,
ao tentar encaixar os olhares sobre um objeto a partir de um viés
homogeneizante. Como exemplo, podemos incluir como a historiografia
tradicional francesa abordou temas como o sistema feudal, na tentativa de
fazer dele um modelo explicativo que corresponde aos territórios
administrados pelos carolíngios e depois “exportado” pelos normandos para
a Inglaterra no século XI como presente em outras regiões do continente de
forma adaptada ou modificada.

Focaremos aqui nas duas últimas, pois julgamos serem as maiores


contribuições dentro dos estudos sobre o medievo. A alusão a uma Idade
Média dominada pela Igreja e pelo cristianismo, sem levar em consideração 35
que havia outras formas de religiosidade concomitante ao mesmo. O
discurso eclesiástico, apesar de dominante na documentação escrita
produzida ao longo do medievo, não era a única forma de concepção,
leitura e interpretação de mundo e analisá-lo a partir das conexões com
islamismo, judaísmo e religiões pré-cristãs é mais producente do que
explorá-los apenas pelo viés do discurso cristão. Havia formas heterogêneas
de cristianismos, frequentemente em disputas, até sua tentativa de
sistematização e unificação em torno de um ideal de cristandade presente
nas Reformas Gregorianas (1050-1150).

Quanto às reflexões relativas às representações geográficas e o espaço na


Idade Média, Kathleen Biddick elucida de que forma o espaço e a cartografia
também foram colonizados ao longo do século XV e em como isso contribuiu
para a concepção de mapas produzidos nos século seguinte, já sobre a
égide do chamado Mundo Moderno. Ao analisar projetos de cartografia de
finais da Idade Média, a historiadora americana deparou-se com duas
tradições distintas. A primeira delas corresponde aos chamados mappae
mundi (cartografia responsável pela representação do século XII ao XV) e
mais racional e "moderno" mapa ptolomaico – em referência a Claudio
Ptolomeu (90-168), considerado pai da cartografia – que se tornou
predominante na Europa Ocidental a partir no século XV.

A concepção de mapa que adotamos nos nossos dias não está pautada nos
mesmos elementos para o homem medieval. A cartografia não existia
enquanto uma ciência ou uma disciplina no período e a produção de mapas
estava diretamente vinculada a aspectos do universo clerical. Os mappae
mundi não tinham por objetivo apenas a descrição do espaço ou determinar
a localização de um território, mas, antes de tudo, correspondia a uma
representação de mundo, seguindo regras muito particulares, com
informações geralmente oriundas de obras dos padres da Igreja, da
narrativa bíblica e de fragmentos de informações da Antiguidade. [Deus,
2001, p. 178] Os mappae mundi tendem a ser identificados como narrativas
para fins didático e simbólico, representando a fé a partir versões morais
situadas entre a Criação e o Juízo Final, enquanto que as instruções de
Ptolomeu quanto à compilação dos mapas eram estritamente prática e mais
racionais.

O mapa de Hereford, produzido provavelmente entre os anos de 1276 e


1285 e vinculado à catedral da cidade, situada nas Midlands Ocidentais, é
um dos mais famosos por ser o maior em extensão que tenha sobrevivido
aos nossos dias. Um dos aspectos particularmente interessante desse mapa
está, na vinculação dos judeus aos povos do Gog e Magog, presentes na
tradição apocalíptica e referenciados na cartografia como Outro [Soares,
2012, p. 220] e cabe ressaltar que isso era algo relativamente comum na
cartografia medieval.

Com o dos estudos humanistas, os mappae mundi abriram espaço aos


mapas ptolomaicos, os quais começaram a ganhar espaço a partir do século
XV. A primeira tradução do grego para o latim da "Geografia" de Ptolomeu
36
foi entre os anos de 1405-09, como um guia prático para construção de
mapas – baseado em longitude e latitude – e composto de uma lista dessas
coordenadas e uma relação de oito mil nomes relacionados a regiões
imperiais no mundo tardo antigo. [Hoogvliet, 2002, p. 8]

Biddick destaca em sua obra que, a partir do século XV, os estudos


humanísticos procuraram excluir a participação dos judeus no processo de
produção das interpretações a respeito desses espaços, enquanto as
posições importantes dentro estudos hebraicos passaram a ser ocupadas
por classicistas [1998, p. 287], o que se seguiu a recorrente adoção do
alfabeto latino em sua escrita buscou excluir intelectuais judeus da
especialidade dos estudos hebraico-cristãos.

Não apenas o tempo e sua representação foram colonizados, mas o espaço


e a cartografia também. Analisar os mapas produzidos no período medieval
não inclui apenas descentralizar a Europa e incluir também Ásia, África e o
Oriente Médio, - geralmente representados como meras periferias do
mundo medieval - e compreendê-los como participantes e intercambiantes
de um mundo largo e ao mesmo tempo fragmentado em suas localidades e
especificidades geográficas. Tal estudo desloca a perspectiva de regiões
caracterizadas como periferias, são identificadas a partir de lógica interna,
como seus próprios centros.

É necessária a compreensão também de como esses mapas reproduzem


discursos e interpretações que remetem a colonização do espaço, das
representações cartográficas e de quem está autorizado a produzi-las. A
cartografia na época também não estava associada a objetividade ou
neutralidade e sua produção estava marcada também por relações de
poder, como no exemplo da exclusão dos judeus no século XV.

Considerações finais
Atividades de pesquisa e ensino não vêm dissociadas. As investigações
sobre a medievística refletem nossa forma de pensar a história e as teorias
e ferramentas de que dispomos em nosso fazer historiográfico. O caminho
para o medievalista desconstruir os pré-conceitos e estereótipos dentro da
sua disciplina é árduo, pois, se a Idade Média não foi uma Era de Ouro,
tampouco foi um período de trevas. É preciso estudá-lo a partir dos objetos
recortados e dos objetivos acadêmicos os que se almeja alcançar.As
reflexões advindas dos estudos pós-colonialistas reforçam o olhar cuidadoso
acerca dos objetos de investigação do medievo, da importância de uma
análise a partir de dinâmicas próprias e desnaturalizando conceitos
cristalizados na medievalística.
Contudo, é inegável que aquilo que o período de que denominamos de
Medievo não correspondia a espaços fechados, ausentes de conexões e
trocas das mais diversas naturezas. Tampouco o mundo medieval estava
restrito apenas ao continente europeu, sobretudo à sua porção ocidental.
Tomar consciência dessa dimensão espacial mais ampla permite vislumbrar
uma Idade Média a partir das conexões entre Europa, Oriente e África, bem
como considerar que esses elos não devem ser analisados de uma 37
perspectiva eurocêntrica. Nesse aspecto, os pressupostos teórico-
metodológicos da História Global endossam quanto à observação das trocas
culturais, rompendo o paradigma ocidental e eurocêntrico e relativizando os
conceitos de Oriente e Ocidente.

Deste entroncamento dos estudos pós-colonialistas e dos pressupostos


metodológicas da História Global, podemos vislumbrar novas perspectivas,
objetos, recortes e horizontes dentro dos estudos medievais.

Referências
Isabela Albuquerque é Professora Adjunta do Curso de História da
Universidade de Pernambuco – Campus Garanhuns e Doutora em História
Comparada pela Universdade Federal do Rio de Janeiro. E-mail para
contato: isabela.albuquerque@upe.br

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A UTILIZAÇÃO DE “BATALHAS CAMPAIS” COMO FERRAMENTA
DE ENSINO-APRENDIZAGEM
Marcio Felipe Almeida da Silva

Já a um bom tempo que o interesse pelos estudos do medievo vem


crescendo em todo o Brasil. No Rio de Janeiro, por exemplo, o trabalho
desenvolvido por alguns grupos de pesquisa como o LINHAS, o PEM e o 39
Translatio Studii, já se tornaram conhecidos entre os acadêmicos. De
maneira geral, a curiosidade sobre a idade média entre os leigos tem sido
estimulada por séries como Game of Thrones [2011], Vikings [2013] e The
Last Kingdom [2015]. Ainda que a última das séries mencionadas aqui
ainda não tenha provocado um grande impacto entre os jovens e os
adultos, a exemplo do que fizeram Game of Thrones e Vikings, a série The
Last Kingdom possui muitos admiradores em virtude da sua construção
basear-se nas obras literárias de Bernard Cornwell, autor inglês que utilizou
a Idade Média como cenário para a maior parte de seus romances
históricos.

Os filmes cujas temáticas foram ambientadas na Idade Média possuem forte


influência e sedução histórica, por exibirem tramas e heróis do passado,
contribuiram para o sucesso entre os mais jovens. Trilogias como O Senhor
dos Anéis [2001] e O Hobbit [2012], enredados nos livros de J. R. R.
Tolkien, provocaram um inegável encantamento pelo medievo entre os
amantes de RPG e games. Todavia, o crescente sucesso da Idade Média não
deve ser creditado apenas aos blockbusters.

Alguns filmes de menor proporção também despertaram o interesse do


público, como os remakes de Ben Hur [2016] e Rei Arthur [2017]. Podemos
dizer que até a Marvel Comics e a DC – duas editoras de norte-americanas
consideradas as maiores do mundo - contribuíram indiretamente para essa
recente popularização do medievo, uma vez que ambas têm procurado
incorporar ao vestuário e ao armamento de seus heróis elementos
medievais.

Com relação ao universo cinematográfico, é sempre bom ressaltar que,


independente da sua qualidade, nenhum filme pode reconstruir
inteiramente o passado, pois nem mesmo o historiador, com toda sua
bagagem de conhecimento adquirido pelo mergulho nas fontes de pesquisa,
é capaz de resgatar o passado em sua totalidade.

Como bem destacou José Rivair de Macedo, “um filme tem mais a dizer
sobre o momento em que foi produzido do que a época que pretende
narrar” [2004, p.119]. Logo, o cinema pode e deve ser utilizado pelo
professor como uma ferramenta para estimular os alunos a refletirem sobre
algumas questões referentes às aulas, promovendo também um momento
de entretenimento e descontração no ambiente escolar.

O clima de ação e a narrativa de aventura promovidos pelos games também


têm contribuído para o entusiasmo com relação à Idade Média. Desde 2007,
a premiada sequência de Assassins’s Cred vem conquistando uma legião de
fãs em todo o mundo e atingiu a marca de oito milhões de cópias vendidas,
apenas nos dois primeiros anos de lançamento do game. Outro videojogo
de sucesso entre as novas gerações é o game For Honor, que se tornou
popular ao permitir que o jogador escolha seus personagens entre vikings,
samurais ou cavaleiros medievais.
40
Sendo assim, não há como negar que na atualidade a internet, os filmes e
os games têm atuado como potenciais divulgadores da Idade Média entre
os jovens. Ainda que o medievo apresentado por tais mídias esteja mais
próximo do gênero fantasia, é preciso que o professor construa um novo
olhar sobre essas ferramentas, reconhecendo que elas não precisam ser
adversárias no processo de ensino-aprendizagem. Até porque, para o
professor, concorrer com a internet e os games seria uma tarefa árdua e
que, por fim, teria uma grande chance de ser derrotado, já que nosso
alunado é composto, basicamente, por crianças e adolescentes que anseiam
por uma educação um pouco mais divertida.

Segundo Nei Nordin, “é preciso que todo professor tenha consciência de que
não vai para a sala de aula formar historiadores” [2013, p.181]. Logo, a
metodologia de ensino, não só de História, pode sofrer alterações para se
adequar ao perfil de alunos de hoje. Sem desrespeitar as orientações da
equipe pedagógica e o material didático utilizado no espaço escolar,
podemos colaborar para estimular a criatividade e o interesse em nossos
alunos. Notamos que, basicamente, todos os exemplos que citamos até
aqui, sejam de filmes ou de jogos, tornaram-se populares devido as suas
cenas de batalhas ou pelo armamento tático que compunha o figurino dos
personagens.

Na contramão de toda esta fantasia vem o ensino tradicional de História,


apresentado muitas vezes frio e sem emoção. Por esta razão, a realização
de batalhas campais na Educação Básica surgiu como um interessante
mecanismo para quebrar a rotina das aulas expositivas e permitir que o
aluno experimente parte do apaixonante mundo dos games e dos filmes.

O swordplay e sua experimentação no ensino superior.


Tradicionalmente, as batalhas campais são disputadas pelos praticantes de
Swordplay em locais abertos e de fácil acesso. É um esporte que simula
batalhas medievais utilizando réplicas de armamentos fabricados pelos
próprios participantes, onde, na maioria dos casos, os combatentes utilizam
escudos e espadas. Entretanto, existem diversas possibilidades de
armamentos para serem confeccionados, desde que atendam aos critérios
de segurança, como por exemplo, revestindo todos os instrumentos com
espuma, os participantes podem utilizar martelos, lanças ou até arcos e
flechas.

Em geral, recomenda-se que todas as superfícies de impactos sejam


protegidas com uma camada de espuma de polietileno ou de poliuretano,
com espessura mínima de 15 mm. Outra orientação para garantir a
segurança dos participantes é não usarem folhas de E.V.A. nas superfícies
impactantes, pois esse material não tem a suavidade necessária para conter
as concussões durante a atividade.

Os praticantes do Swordplay dividem-se em clãs, adotando, na maioria das


vezes, um tipo de sociedade guerreira para servir de inspiração. A
construção das indumentárias envolve uma pesquisa prévia sobre os tipos
de vestimenta e de armamentos utilizados pela sociedade escolhida. Não 41
obstante, alguns clãs acabam fugindo à regra e misturam elementos de
diversas sociedades que não viveram na mesma época. Contudo, se
levarmos em consideração que a confecção muitas vezes é realizada com
base nos personagens dos games e que nem sempre recebe a orientação de
um historiador, podemos dizer que esse anacronismo é aceitável.

Acreditando que a prática do Swordplay poderia a trazer grandes


contribuições para o ensino de história, iniciamos, em fevereiro de 2016,
um lento processo de adaptação das batalhas campais para o espaço
escolar. Refletindo sobre a possibilidade que essa novidade não traria o
sucesso esperado sem um processo prévio de experimentação, a conclusão
mais pertinente foi desenvolver a batalha campal primeiramente com os
alunos do curso de graduação, que têm mais maturidade de compreensão
das regras do jogo.

Em julho de 2016, realizamos, na quadra da Uniabeu, em Belford Roxo,


uma batalha campal experimental com cerca de 40 alunos do curso de
Licenciatura em Educação Física. A tarefa fazia parte da avaliação da
disciplina de História da Educação Física e serviu como uma estratégia para
ensinar história em um curso que tradicionalmente é conhecido por seu
entusiasmo e sua mobilidade.

Utilizamos como critérios de avaliação a participação do aluno na atividade,


o respeito às regras previamente estabelecidas e a confecção do material.
Durante o desenvolvimento da batalha campal formamos duas “paredes de
escudos”, simulando táticas de ataque e defesa apresentadas pelo
professor. Toda a reconstrução das táticas foi organizada com base na
pesquisa em livros e na observação das encenações cinematográficas.

Figura 1: Primeira batalha campal realizada pelo curso de Educação Física


em 2016 [Acervo pessoal].
Nessa ocasião, reafirmamos os objetivos pedagógicos da atividade e com a
utilização das práticas didáticas das aulas de história antes do início da
batalha campal, destacando as características da Idade Média, seus
personagens principais e as fontes de pesquisa. Toda a atividade ocorreu de
forma disciplinada e de acordo com as regras estabelecidas. Os alunos
foram orientados a não exagerarem no uso da força e a respeitarem o
42
toque de apito que indicava o início e o término da batalha campal.

Desde 2016 temos repetido semestralmente esta atividade com o curso de


Educação Física. De lá para cá, por já ter se tornado popular entre os
alunos, a batalha campal desperta grande interesse e ansiedade já no início
do ano letivo e a cada semestre a qualidade das pesquisas, das
indumentárias e dos adereços vêm se destacando. Em setembro de 2019,
realizamos no mesmo espaço a maior batalha campal de todas as edições,
com cerca de 80 participantes. Foi certamente através dos erros e acertos
dessa experiência com o Ensino Superior que conseguimos pensar em uma
forma de adaptar as batalhas campais para o Ensino Fundamental.

Figura 2: Última batalha campal realizada pelo curso de Educação Física


em 2019 [Acervo pessoal].

As batalhas campais no ensino fundamental


Para realizar as batalhas campais no Ensino Fundamental foi preciso
implementar uma metodologia completamente diferente daquela que
utilizada no Ensino Superior. Ainda que a experiência com o curso de
Educação Física tenha sido fundamental para viabilizar essa atividade, o
desenvolvimento das batalhas campais na Educação Básica só foi possível
através de uma fase prévia de planejamento, levando em consideração as
alterações propostas pela Base Nacional Comum Curricular [BNCC].

Publicado pela primeira vez em setembro de 2015, o texto da BNCC já


passou por algumas revisões e ainda sim tem causado desconforto, pela sua
complexidade, em muitos professores. De maneira geral, a BNCC reduziu o
espaço para abordar a Idade Média no Ensino Fundamental, espremendo
todo o conteúdo de história medieval com o conteúdo de história antiga em
apenas um período, o 6º ano. Em sua maioria, os alunos do 6º ano estão na
faixa dos 11 anos, uma idade que já manifesta curiosidade pelos elementos
históricos da antiguidade e do medievo que aparecem nos games e nos
filmes.

Infelizmente, os inúmeros temas a serem lecionados nesse período


condiciona os professores a trabalharem de maneira “relâmpago”, cujo
conteúdo inicia-se com o surgimento do hominídeo, há 4,2 milhões de anos,
e termina bem próximo aos acontecimentos que antecedem a formação do 43
mundo moderno. Isso dificulta o esclarecimento de falsas concepções sobre
a Idade Média e nos impede até mesmo de propor um modelo de aula mais
criativo, uma vez que estamos fadados a explicar uma grande quantidade
de conteúdos em tão pouco tempo.

Em meio a todas essas dificuldades, muitos experts em educação ainda


acreditam que lecionar história no Ensino Fundamental é algo que não exige
um alto grau de dificuldade e que o professor está fadado a simples
repetição dos assuntos do livro didático. Segundo Ubiratan Rocha, “Às
vezes, nem mesmo o próprio professor, habituado a repetir o mesmo
assunto em diferentes turmas, se dá conta de que o caminho que segue é
apenas um dentre diferentes alternativas possíveis” [2019, p.51]. Em suas
análises, o autor também defendeu que o uso abusivo das aulas expositivas
no ensino de História contribui para uma visão de mundo de baixo senso
crítico, já que o aluno é colocado apenas na condição de objeto a ser
moldado. Sendo assim, é importante que mesmo um conteúdo tradicional
sofra ajustes para torná-lo adequado aos objetivos do processo de ensino-
aprendizagem.

Nesse contexto, as batalhas campais foram inseridas no Ensino


Fundamental para despertar o interesse do aluno, valorizando sua
participação e contribuindo para deixar o ensino de História mais agradável.
Para se adequar ao conteúdo programático, passamos a realizar as batalhas
campais com o 6º ano a partir do segundo semestre do ano letivo, período
onde os alunos conhecem o mundo greco-romano e a transição para a
Idade Média, sendo apresentados aos conteúdos dos povos vikings e dos
cavaleiros das cruzadas. Assim, organizamos essas oficinas de maneira que
possa prevalecer uma abordagem lúdica e interdisciplinar, que respeite a
faixa etária dos alunos e permita a associação com ícones dos principais
games ou filmes.

No Ensino Fundamental realizamos duas edições da batalha campal, uma


em 2017 e outra em 2019. O intervalo de um ano entre as duas edições
ocorreu em virtude do apertado calendário escolar de 2018, que previa a
execução de diversos projetos, como o Café Filosófico e a Feira de Ciências.
Assim, julgamos que a realização da batalha campal no ano de 2018
acabaria aumentando a carga de trabalho dos alunos, já que a confecção do
material exige bastante tempo. Com relação à edição de 2017, escolhemos
homenagear os povos romanos.

Ainda que o trabalho tenha sido realizado durante as aulas de história


medieval, procuramos discutir como o método de batalha romano na
antiguidade garantiu a expansão que favoreceu a fusão entre a cultura
romana e a cultura dos povos bárbaros, com reflexos na Europa Medieval. A
tarefa determinada aos alunos foi a confecção de um escudo retangular,
com papelão e pintado na cor vermelha, possuindo as dimensões de 1
metro de comprimento por 50 cm de largura.

A definição de um tamanho padrão para os escudos fez-se necessária de


44
modo a realizarmos a “formação tartaruga”, uma tática defensiva famosa
dos povos romanos. Ainda que não tenha sido exigida a decoração dos
escudos, próxima a que era utilizada pelos antigos romanos, os alunos
apresentaram peças muito bem decoradas e com símbolos típicos dos povos
romanos, a exemplo do que é retratado em filmes como o Gladiador [2000].

Levando em consideração a imaturidade e o excesso de energia que


geralmente possuem os alunos do 6º ano, optamos por solicitar como tarefa
apenas a confecção dos escudos. Sendo assim, não foi exigida a construção
de espadas, justamente para evitar qualquer tipo de acidente que pudesse
prejudicar o bom andamento da tarefa. Também não realizamos simulações
de ataque, apenas solicitamos a formação de uma parede de escudos
defensiva, seguindo o padrão da “formação tartaruga”, e arremessamos
sobre ela bolinhas plásticas para criar obstáculos ao deslocamento do
grupo.

Figura 3: Formação tartaruga realizada pelos alunos do 6º ano em 2017


[Acervo pessoal].

Para a edição de 2019, solicitamos aos alunos do 6º ano a elaboração de


escudos circulares com cerca de 50 centímetros de diâmetro e feitos de
papelão. Para a decoração, o aluno poderia utilizar qualquer tipo de símbolo
que o agradasse. Obviamente apareceram ícones históricos, como os
símbolos utilizados pelos espartanos em seus escudos e o sinal visto por
Constantino em sua suposta conversão ao Cristianismo.

Entretanto, símbolos pessoais como cupcakes, flamingos e emblemas de


grupos musicais também decoraram os escudos, favorecendo um bom
debate sobre o respeito às opiniões individuais e as características de cada
aluno. Dessa forma, e antes da atividade prática, iniciamos o trabalho de
discussão sobre o pluralismo cultural presente na sociedade brasileira e
procedemos com a comparação entre a sociedade contemporânea e as
populações que viveram na Idade Média.
Com relação à parte prática, a metodologia da edição de 2019 não foi muito
diferente da edição de 2017. Em ambas versões não simulamos estratégias
ofensivas e ensaiamos apenas posições de defesa, criando obstáculos para
os participantes com bolinhas de plástico e flutuadores de piscina. Toda a
atividade ocorreu sob a supervisão do professor e as normas de segurança
foram apresentadas logo no início da oficina. 45

As duas atividades foram realizadas no pátio da escola para romper com os


paradigmas das aulas expositivas e proporcionar a quebra da rotina. O uso
do celular foi permitido para fotografar e postar as atividades nas redes
sociais, se esse fosse o desejo do aluno. Aproveitamos essa ocasião para
enfatizar que o celular não precisa ser um inimigo do processo de ensino-
aprendizagem e, em seguida, conversamos sobre a responsabilidade que
possuímos com as informações que colocamos nas mídias digitais, suas
características, sua veracidade, sua parcialidade ou se é tendenciosa.

Figura 4: Parede de escudos formada pelos alunos do 6º ano em 2019


[Acervo pessoal].

Considerações finais
Assim como na antiguidade e no medievo, a encenação de “paredes de
escudos” serve para fortalecer os laços de amizade e respeito entre os
participantes, favorecendo o espírito de trabalho em equipe. Preparar uma
batalha campal, seja no Ensino Superior ou na Educação Básica, requer
horas de planejamento e de preparação. Afinal:

“Preparar boas aulas demanda tempo, e materiais alternativos não são


abundantes. Precisam ser confeccionados. Contudo, se você é daqueles que
não se contenta em sentar e mandar abrir o livro didático em tal página,
precisará encontrar tempo para preparar materiais diferenciados, nem que
seja eventualmente” [Nordin, 2013, p.183].

Os resultados de atividades lúdicas como as batalhas campais podem ser


extremamente positivos, já que contribuem para estimular a criatividade e
a participação dos alunos nas aulas. A construção dos escudos e demais
ferramentas para a execução da atividade rompe, temporariamente, a
sequência de aulas expositivas e melhor atrai a atenção dos estudantes.
Convidados a construírem seus próprios materiais, que serão utilizados nas
oficinas, os alunos colocam-se como sujeitos ativos do processo de
aprendizagem e se sentem como parte importante para o sucesso daquela
aula.

Sem falar que a própria elaboração das ferramentas possui uma dupla ação
46
benéfica: primeiro, porque “a memória adquire vínculos maiores com
aqueles conhecimentos que foram preparados e pensados pelo próprio
aluno” [Nordin, 2013, p.183]; e em segundo, o objeto construído por ele
cria um elo entre o passado e o presente através da recordação de eventos
marcantes para a história da humanidade.

Por fim, a participação nas batalhas campais constrói uma oportunidade


única para simular as cenas das lutas nos games, séries e filmes marcantes
para os alunos, mostrando que o ensino de história pode e deve renovar-se
através da introdução de elementos que chamam e prendem a atenção do
aluno, sem deixar de desenvolver uma leitura objetiva da realidade social.

Referências
Marcio Felipe Almeida da Silva é Doutor em História pela Universidade
Federal Fluminense, Pesquisador do Translatio Studii e professor do Centro
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e saberes no Medievo: São Leopoldo: Oikos, 2013.
O ENSINO DA IDADE MÉDIA NA CONTEMPORANEIDADE: A
INQUISIÇÃO COMO OBJETO DE ESTUDO/EXEMPLO
Adrienne Peixoto Cardoso

José Rivair Macedo no capítulo “Repensando a Idade Média no Ensino de


História” do livro “História na Sala de Aula: Conceitos, Práticas e Propostas”
escreve que a História da Idade Média que é ensinada na escola não é a 47
mesma que os pesquisadores estudam, explicando a diferença da função
social da História na forma do conhecimento erudito e do acadêmico. Como
exemplo, a forma de governo do feudalismo apresentada nos livros de
História: a caracterização da história política e os aspectos mais gerais da
estrutura social e econômica do período se conferindo uma lógica de
desenvolvimento por toda a Europa. Enquanto para o pesquisador o sistema
feudal não vai passar de um conceito operatório em análise. O erro do livro
didático é caracterizar os mil anos que duraram a Idade Média como um
período sem suas próprias transformações conforme o tempo e conforme o
espaço, pois a cada reino, a cada senhor feudal, o sistema poderia ser
diferente. Ou seja: os mil anos que representam a Idade Média não foram
engessados e sem qualquer tipo de mudança.

Três livros didáticos diferentes da primeira série do Ensino Médio são


usados na proposta, “Conecte História”, organizado por Ronaldo Vainfas
[2014], “História”, organizado por Ronaldo Vainfas [2016], e “História
Global”, organizado por Gilberto Cotrim [2016]. São ferramentas para
análise comparativa, busca-se usar a temática da Inquisição para perceber
as semelhanças e diferenças entre os pesquisadores e o ensino de História
Medieval nas escolas por meio do livro didático, e assim, entender o que
escreveu Macedo sobre a profundidade de observação entre os dois locais.

No primeiro livro didático, o capítulo “A Cristandade Medieval em Conflito


com o Islã” está dividido em subcapítulos que explicam a História Medieval
de forma sucinta e correlacionada em seus temas específicos. Assim, no
subcapítulo “O Apogeu do Feudalismo”, está a “Cristandade Desafiada por
Dentro” onde consta 4 parágrafos sobre o significado de heresia, um quadro
explicativo da Inquisição Medieval de 11 linhas, uma pintura ilustrativa de
uma pessoa sendo queimada na fogueira por heresia e uma indicação para
que o estudante pesquise o significado da palavra “cátaro” e a sua relação
como movimento que foi perseguido pela Igreja.

No segundo livro didático não consta nenhuma menção ou explicação a


Inquisição. O capítulo “A Cristandade Medieval em Conflito com o Islã”
aborda temáticas medievais e no subcapítulo “Heresias e Conflitos Sociais”
está escrito em 4 parágrafos sobre o significado de heresia e a configuração
da heresia Cátara. Ainda que a Inquisição tenha sido uma forma de
contenção da Igreja Católica para frear a heresia cátara, nada é
mencionado.

No terceiro livro didático, a unidade 3 é nomeada “Identidade e


Diversidade”, com capítulos que abordam a temática medieval, o que se
refere à proposta é “Mundo Cristão”, no subcapítulo “Heresias: Perseguição
a Outras Crenças e Percepções”. São 6 parágrafos sobre heresia, 3
marcadores que definem aspectos religiosos dos quais os grupos heréticos
resistiam e reagiam, 1 imagem ilustrativa do filme “Joana D’arc”, 3
parágrafos sobre a Inquisição, 1 pintura retratando um tribunal inquisitorial
e 1 quadro elucidativo sobre a heresia e a contestação.
48
A primeira questão a ser definida para conseguir explicar o que foi a
Inquisição são as razões da sua instituição e as pessoas a qual foram
atingidas. Os hereges foram aqueles que iam contra os dogmas
inquestionáveis da Igreja Católica, quem escolhia praticar uma crença
contrária. Esta informação consta nos três livros didáticos e usam o
catarismo como exemplo de grupo herético existente. O que não coube no
livro didático foi todo o processo de descobrimento das heresias e como a
Igreja Católica tentou combatê-la antes da Inquisição.

Como pesquisa algumas informações essenciais podem ser acrescidas. As


heresias contestavam os ensinamentos da Igreja Romana. Durante os
séculos XI e XII, surgem movimentos que rejeitam os sinais exteriores da
fé cristã católica, como sacramentos, liturgias e hierarquias. Ainda na
primeira metade do século XI surgiram heresias que impugnavam os
dogmas fundamentais da cristandade, como a Santíssima Trindade e a
Ressurreição de Cristo. Tamanha força e proporção tomaram as heresias,
que em 1049 foi realizado o Concílio de Reims, na França, que organizou
medidas para identificá-las e combatê-las com energia.

As heresias se tornaram um problema para a Igreja Católica, pois além de


criticarem seus dogmas e renegavam sua organização institucional,
afirmavam que o clero era corrupto e não seguia os preceitos proclamados
por Jesus Cristo. Para combater esses pensamentos heréticos a Igreja
estipulou três estratégias: a persuasão (forma de pregação e (re)conversão
missionária); a repressão (perseguições e punições que buscavam controlar
ações e pensamentos) e a satanização (forma de transformar os hereges
em agentes desviantes e sismáticos a serviço do demônio) [Richards,
1993].

Os hereges eram basicamente definidos por três ações: ser contrário a


qualquer artigo de fé; ser contrário a qualquer verdade declarada pela
Igreja e ser contrário aos livros canônicos. [Eymerich, 1993].
Possivelmente, a maior atração em tornar-se herege era a desvinculação
das imposições da Igreja, diversas vezes contestada, por suas ações
mundanas ao longo do medievo ocidental. O objetivo das heresias era de
contestar os ensinamentos da Igreja e rejeitar muitos dos sinais exteriores
da fé cristã: sacramentos, liturgia e hierarquia.

No medievo, oito situações determinavam a utilização do adjetivo herético:


1) excomungado; 2) simoníaco; 3) quem se opunha à Igreja Romana e
contestava a autoridade que ela recebeu de Deus; 4) quem cometia erros
na interpretação das Sagradas Escrituras; 5) quem criava uma nova seita
ou aderia a uma já existente; 6) quem não aceitava a doutrina romana no
sentido dos sacramentos; 7) quem tinha opinião diferente da Igreja de
Roma sobre um ou vários artigos de fé; 8) quem duvidava da fé cristã. As
condições para a qualificação como herege estavam relacionadas a
inteligência, se o erro estava na má interpretação da pessoa no referido à
fé, e sobre a vontade, se há apego teimoso ao erro da inteligibilidade
[Eymerich, 1993].
49
Uma dinâmica que pode ser utilizada na sala de aula para explicar as
heresias é separar a classe por grupos e dá-los determinadas configurações.
Alguns irão ser os hereges, aqueles que vão contra as regras impostas pela
Igreja Católica. Alguns irão ser os representantes da Igreja Católica, quem
impõe as regras. E os outros podem ser o povo comum, aqueles que podem
ser tanto puxados para o lado dos hereges quanto para o lado da instituição
depois de pequenos discursos dados por representantes de cada grupo –
afinal, as convicções devem ser repassadas de modo que todo mundo se
escute. O objetivo da dinâmica é mostrar aos alunos a segmentação dos
grupos e as configurações de cada um, assim, que eles possam pensar,
aproximadamente, como esses grupos. Além de ser uma forma divertida de
entender a História.

Com a questão da heresia respondida a Inquisição consegue tomar forma e


a sua configuração se torna o próximo passo. Nos dois livros didáticos nas
quais ela aparece, a Inquisição é definida como uma forma de repressão da
Igreja Católica para conter as heresias do período. Entretanto, os dois livros
não utilizam as mesmas informações sobre a sua criação. Enquanto no
“Conecte a História” a Inquisição é decretada no Concílio em 1229, na
França e que assumem juízes inquisidores em 1235 por Gregório IX, no
livro “História Global” institui a Inquisição por Gregório IX em 1231. A
função dos Tribunais são a mesma, no entanto, descobrir e julgar os
acusados de heresia.

Como pesquisa algumas informações essenciais podem ser acrescidas. As


heresias se tornaram um risco para o poder da Igreja Católica, tão grande
que ameaçava não apenas a ordem, mas a estrutura social e política da
Instituição, ao ponto de ser necessária a criação do Tribunal do Santo Ofício
(a Inquisição), durante o Concílio de Toulouse (o Concílio de Toulouse foi o
Concílio da criação oficial do Tribunal do Santo Ofício, advindo do Quarto
Concílio de Latrão, ocorrido em 1215, que decretou medidas contra os
senhores seculares que protegessem os hereges) [Falbel, 2007] , em 1229.
Esta instituição foi uma união entre o Estado e a Igreja com ideais
religiosos, políticos e econômicos [Novinsky, 1983]. Tinha por objetivo
procurar, julgar e erradicar grupos divergentes. Com o retorno da Lei
Romana a Igreja Católica não criou formas de julgamento, apenas adaptou
para o Direito Canônico a Justiça Comum Secular já existente. O Tribunal
tornou-se completo, adequado na lei que o legitimava a caçar pessoas que
não se enquadravam nos preceitos definidos do Direito Canônico, provindo
da religião oficial. Para a prisão e o julgamento existia o apoio do Estado. O
poder secular era o responsável, efetivamente, por executar as sentenças.
A condição para a realização da Inquisição, imposta por Gregório IX, foi que
o Tribunal não tivesse outra razão que não fosse o julgamento das heresias
[Falbel, 2007].

O processo inquisitorial era realizado de maneira padronizada, por isso


havia manuais de como o inquisidor deveria agir, de acordo com diversas
possibilidades – ainda que em alguns casos fosse permitido utilizar sua
50
subjetividade para dar resposta aos problemas. O primeiro ato do inquisidor
era a legitimação na localidade em que foi designado, apresentando-se ao
rei logo depois de ser empossado pelo papa (num claro objetivo de manter
a unidade político-cristã). Solicitava salvo-condutos, apresentava os
mandatos aos bispos da região e requeria o juramento das autoridades civis
para proteção da Igreja e do trabalho inquisitorial a ser desenvolvido
[Eymerich, 1993].

Então, dava-se o sermão geral de reconhecimento do novo juiz inquisidor.


Sob recompensas de indulgências, o povo era convidado ou convocado a
participar de uma missa. Este sermão tinha o intuito de espalhar na
população a vontade denunciar os hereges, limpando a comunidade, para o
maior bem da divina providência. No sermão geral o juiz inquisitorial
determinava a época do perdão (quando o Inquisidor dava um período para
que as pessoas que incorreram em crimes se acusassem sendo que bastava
o simples arrependimento para um perdão completo ou uma pena mais
branda), explicava o funcionamento da Inquisição e as indulgências que
todos ganhariam por ouvir suas palavras, além de outras recebidas na
denúncia de hereges. Os processos se iniciavam por três maneiras:
acusação, denúncia e investigação [Eymerich, 1993].

O processo de acusação se inicia com o interrogatório das testemunhas


dadas pelo acusador. Há a opção de trocar o processo por denúncia, para
que o acusador não seja exposto, se ainda o for do seu desejo, as
testemunhas são incisivamente interrogadas. Se há crime, primeiro
procura-se conhecer o réu e convergências entre os depoimentos tanto
dele, quanto das testemunhas. O interrogatório com o acusado não é direto,
e sim, subjetivo. Ouve-se muitas vezes o acusado para que não haja erros
na sentença, se for provado crime, prisão. A interrogação das testemunhas
procura por fatos, não por boatos, assim, são chamadas pessoas de
credibilidade do inquisidor para confirmação, ou não, dos interrogatórios.
[Eymerich, 1993].

Nos interrogatórios precisa-se de cinco pessoas para definir a regularidade


da ação: o juiz inquisidor, o acusado, duas testemunhas e o escrivão. Os
interrogatórios na visão do juiz inquisitorial são feitos de maneira padrão,
busca-se alguns indícios de heresia nas palavras usadas ou na própria
postura do suspeito. Dependendo do caso pode ser pedido um advogado,
entretanto, este tem o papel de ajuda a uma confissão, não a prática real
da defesa em busca da absolvição. Se o réu confessar, não há necessidade
de um advogado [Eymerich, 1993].

Uma dinâmica que pode ser realizada na sala de aula é o uso de um


julgamento de acordo com os casos de hereges existentes. O professor
pode procurar nos Registros de Inquisição algum episódio e fazer um roteiro
que simplifique o acontecido com os alunos. O objetivo é a interação dos
alunos e a proximidade deles com a História de forma que esta se torne,
sempre, atraente e de fácil entendimento.

Conclusão
A Idade Média europeia é uma realidade geográfica e sociocultural 51
anacrônica ao Brasil, muitos historiadores ainda discutem a necessidade de
estudar algo tão distante, como escreve Ronaldo Amaral no artigo “O
Medievalismo no Brasil”. Ele continua que a Idade Média pode ser
encontrada nas estruturas elementares da civilização ocidental, o que inclui
a brasileira. Podem ser encontradas nas estruturas interiores como as
crenças, o imaginário, ideais conectados à ética e moral, direito, religião,
política, expressões e sensibilidades. Estas nuances que podem ser
utilizadas dentro da sala de aula para que os estudantes alcancem uma
proximidade com o período e queiram estudá-lo a fundo, buscando mais
informações do que lhes é passado na sala de aula.

Mesmo que seja anacrônico, pode ser percebido ligações com a Inquisição e
a ditadura civil militar, por exemplo. Fatos que aconteceram no Brasil e que
os estudantes podem refletir sobre as influências de uma na outra. Como o
mecanismo de tortura, a “Coroa de Cristo”, método usado na ditatura que
consiste em um torniquete que esmaga o crânio do indivíduo.

A Educação Tradicional monta um ensino de História fixo que não permite


uma instrução mais bem explorada, os livros didáticos não são uma
ferramenta a ser utilizada sozinha, visto que nem todos abordam assuntos
importantes e impactantes como foi o exemplo da Inquisição neste artigo.
Os estudantes precisam ser indagados e influenciados a gostarem de
História muito além de apenas os dois períodos a qual estão designados
para o ensino no Ensino Médio. A utilização de elementos contemporâneos
para o entendimento de fatos históricos do passado podem ser uma
resposta para que os alunos entendam o mundo e a própria História mais
do que cabem em palavras.

Referências
Adrienne Cardoso é graduada em Licenciatura em História pela Universidade
Federal do Pampa e membro do Laboratório de Pesquisa e Estudo de
História Medieval (Lapehme) da mesma universidade.

AMARAL, Ronaldo. O Medievalismo no Brasil. Revista História Unisinos - Vol.


15 Nº 3 - setembro/dezembro de 2011.
COTRIM, Gilberto. História Global 1. 3 e.d. São Paulo: Saraiva, 2016.
EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos; Brasília, DF: Fundação Universidade de Brasília, 1993.
FALBEL, Nachman. Heresias medievais. 1° Edição, São Paulo: Editora
Perspectiva, 2007.
MACEDO, José Rivair. Repensando a Idade Média no Ensino de História. In:
KARNAL, Leandro (org.). História na Sala de Aula: Conceitos, Práticas e
Propostas. 5.ed. São Paulo: Contexto, 2007.
NOVINSKY, Anita. “Sobre O Conceito de Heresia”. In: A Inquisição. Ed.
Brasiliense, 1983.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
VAINFAS, Ronaldo. Conecte História, 1. 2 e.d. São Paulo: Saraiva, 2014.
VAINFAS, Ronaldo. História 1: Ensino Médio. 3 e.d. São Paulo: Saraiva,
52
2016.
A RELIGIÃO ANALISADA POR MEIO DO MEDIEVALISM: A
NARRATIVA DE JOANA D’ARC PELOS ARAUTOS DO
EVANGELHO
Clinio de Oliveira Amaral e João Guilherme Lisbôa Rangel

Em nossa reflexão em 2019, analisamos a Associação Religiosa dos Arautos


do Evangelho [Amaral; Rangel, 2019]. Na ocasião, o objetivo do trabalho 53
foi, por intermédio da teoria do medievalism, compreender a utilização,
realizada por esse grupo, da hagiografia medieval de Raimundo de Penãfort
(1175-1275). Nessa análise, demonstramos a existência de um propósito de
autolegitimação ao mesmo tempo em que se forjava uma idade média
“encantada”, alinhada aos objetivos e aos compromissos missionários da
Associação, bem como de seu fundador Mons. João Clá.

Para a discussão encetada agora, embora a análise permaneça sobre o


mesmo grupo religioso, aprofundaremos a discussão mencionada
anteriormente, e, ao mesmo tempo, demonstraremos, ainda de forma
incipiente, a viabilidade de se aplicar as teorias do medievalism à religião
(compreendida, aqui, em sua dimensão teológico-dogmática e não tanto
prática). Tal propósito aparece em razão do pouquíssimo número de
trabalhos sobre essa relação, apesar do caráter codisciplinar do
medievalism [Hsy, 2017]. Isso se de deve a vários motivos, contudo, o
principal diz respeito à temporalização. Desde o historicismo, a disciplina
história estabeleceu uma epistemologia para lidar com a temporalidade
histórica, a qual, tende a acentuar a distinção entre os períodos, ao passo
que a religião possui uma relação sincrônica com o tempo, que, segundo
Richard Utz, seria contratemporal. [Utz, 2015]

Portanto, para Utz, o problema reside nas diferentes formas de se


relacionar com o tempo e, ao mesmo tempo, nas diferentes formas de
conceitualizar a relação entre passado e presente e na própria relação com
o mundo. Assim, ao se considerar o tempo como uma categoria
conscientemente temporalizadora, estabeleceu-se uma premissa diacrônica
no campo das humanidades, sobretudo, no campo da história. Essa
categoria passou a orientar a relação dos historiadores com o passado,
sobretudo, a partir do advento da história como disciplina acadêmica no
século XIX.

Para Utz, como uma espécie de subproduto do processo acelerado da


temporalização e da institucionalização da disciplina história, foi necessário
o estabelecimento de diferentes formas de ver o passado, um exemplo
disso, foi a constituição de um limite epistemológico, assim, dever-se-ia
considerar os limites intransponíveis de uma história não contínua. Segundo
esse autor, a teologia teria sofrido pressões no sentido de estabelecer uma
historicização e, em função disso, teria estabelecido as cátedras de história
eclesiástica, as quais, apesar de seus contornos acadêmicos concebiam a
religião e a sua temporalidade de formas completamente opostas ao
historicismo. Para corroborar a sua argumentação, Utz cita o exemplo
abaixo.
“A majority of Christians maintain that the person of Christ is spiritually
present in the Eucharist. Roman Catholic Christians affirm what they term
‘real presence’ of the body and blood of Christ as resulting from a change of
the elements of bread and wine. Lutherans agree with them in a real eating
and drinking of the body and blood of Christ except that they define it as
54
happening by sacramental union: ‘in, with, and under the forms’ of bread
and wine. Methodists and Anglicans tend to avoid the controversy
surrounding the question by relegating Christ’s presence to the realm of
religion’s mystery”. [Utz, 2015]

Apesar das nuances entre as denominações, Utz insiste em alguns aspectos


capazes de, ao que tudo indica, excluir o campo da religião dos estudos
sobre o medievalism. Trata-se do desejo comum em estabelecer duas
pontes não contínuas no tempo. No centro está o reconhecimento da
celebração da Eucaristia como uma memória da santa ceia para demonstrar
a natureza sempre eterna de Cristo, ajudando aos crentes estabelecer uma
união à divindade. Para o autor, trata-se de seguir Lc 22,19. Assim, por
intermédio de formas litúrgicas e do próprio ritual da reconstituição,
culmina-se na consecução de uma suspensão temporária da história
humana, do próprio tempo humano, por meio da Eucaristia. Em seguida, ele
sustenta que o caráter sempiterno da religião seria o principal motivo para a
não inclusão da religião nos estudos do medievalism.

“I believe, a good answer to the question why scholars of medievalism


studies find it difficult engage in a critical (and ‘critical’ has been
synonymous with ‘historicizing’) discussion of religion. (…) Religion,
however, because it resists historicity’s epistemological predominance, may
remain too difficult a topic for most academic scholars, which is why they
responded to this foundational epistemological aporia in variety of ways”.
[Utz, 2015]

Dessa forma, a questão diz respeito à forma como a religião coloca-se fora
do campo epistemológico da historicidade e, de certa forma, da própria
história. Após expor o problema da temporalização, esse autor apresenta
diferentes autores cujos trabalhas, grosso modo, corroborariam a
inviabilidade de pensar a religião por meio da teoria do medievalism.

Antes de voltarmo-nos à análise sobre os Arautos do Evangelho,


consideramos importante voltar à contribuição de Utz, especificamente, a
sua conclusão, na qual apresenta a sua opinião. “To me, this example
leaves no doubt that scholars in medievalism studies have an ethical
obligation to investigate and historicize religion and theology, at leaves in
all its temporal manifestations” [Utz, 2015, p. 18-19]. Outrossim, por mais
desafiador que seja, chegou o momento de encarar o problema de Utz,
embora o façamos, neste trabalho, de forma incipiente.

Com base na narrativa, escrita em forma de artigo online, de Mons. João


Clá sobre Joana D’Arc publicada no site da Associação Arautos do Evangelho
[Dias, 2020] pretendemos demonstrar como o agir da Providência, bem
como as virtudes da própria personagem, estão circunscritas a um “tempo”
que não é o da religião, mas sim o da própria história. A relação por meio
da qual o autor do artigo vincula-se à idade média, seria, é o que
sustentamos, uma criação/apropriação de uma idade média idealizada
capaz de legitimar, por conseguinte, a Associação.

“Surpreendente e variadas são as vias da Providência!” 55


Com a frase acima, Mons. João Clá atribui o título de seu artigo sobre Joana
D’Arc. Um artigo relativamente pequeno, mas que, ao final, apresenta
considerações de Bento XVI, realizadas em 2011, sobre a santa,
demonstrando a sua relação com a política e como seu exemplo serve ao
presente. Pelo título, podemos supor qual mensagem esperar, a saber:
Deus age das mais diversas maneiras, ainda que não a compreendamos ou
que, no presente, sejamos condenados. Finalmente, esta é a síntese de
Joana D’Arc, a santa que em seu tempo foi condenada pela própria Igreja,
mas que, séculos depois, teve seus méritos e sua santidade reconhecida.

Em outubro do ano passado, a Associação Arautos do Evangelho foi alvo de


inúmeras reportagens que os acusavam de abusos psicológico, sexual,
dentre outras acusações [Globo, 2019] e Oliveira [2019]. Nesse sentido,
não é de surpreender que a imagem e o exemplo, aqui entendido em sua
acepção medieval, de Joana D’Arc, tenha sido trazido à tona pela
Associação.

Novamente, os Arautos recorrem ao tempo medieval a fim de plasmarem


sua imagem ao período, obtendo legitimidade e, ao fim, corroborando sua
atuação no mundo, ainda que sob acusações e críticas. Contudo, para além
desses elementos, podemos notar a própria construção da idade média
operada na narrativa e instrumentalizada, em duas temporalidades, na
idade média, e no presente, e ainda na própria história.

Já no começo do texto, Mons. João Clá apresenta alguns topos dos santos
medievais como a virgindade, a humildade, a precocidade intelectual,
sobretudo, a forma extemporânea em que os santos são, pela Providência,
apresentados às suas missões terrenas, entre outros. Todavia, além disso,
ele faz questão de demarcar o período em que a vida e os feitos da santa
ocorrem, isto é: a idade média. Neste momento, o autor afirma que a
Inglaterra dominava o território francês e que Joana foi a escolhida por
Deus para libertar a França. Sendo, inclusive, conduzida por vozes do
Espírito, a “donzela”, a “imaculada” e a “santa” Joana apresenta-se ao rei
Carlos VII a fim de revelá-lo a visão e a missão que Deus lhe havia
conferido. Esse, sem acreditar na missão entregue à jovem esconde-se em
meio aos seus súditos, disfarçando-se de nobre e colocando uma outra
pessoa em seu trono para confundir Joana. Contudo, confirmando sua
eleição, Joana dirige-se imediatamente ao rei, embora não o tivesse
conhecido preteritamente.

Até este momento da narrativa, duas interpolações importantes são feitas


pelo autor do artigo. Na primeira ele “contextualiza” a França daquele
período, ou seja, explica as características daquele país à época. Sendo
assim, afirma que, naquele tempo, a França “feudal”, “do heroísmo e da
cavalheirosidade” encontrava-se sob domínio inglês. Mais à frente, ao
comentar o episódio do reconhecimento do rei por parte da santa, ele
explica que não havia imprensa ou televisão naquela época e, por isso,
Joana não teria como saber quem era o rei.

56
Ora, tanto a primeira, quanto a segunda interferência do autor,
demonstram, por um lado, a concepção que este tem sobre a idade média,
especialmente a França, bem como a relação com o presente. Aqui, o
presente é acionado não apenas como forma de facilitar a compreensão por
parte do leitor, mas também como operação narrativa, isto é, o passado
está sendo lido pelo olhar do presente e é para este que aquele interessa,
por meio do recurso à exemplaridade, tanto da santa, quanto do período
que o autor tem por “verdadeiro”.

Ao dar continuidade ao texto, o autor apresenta os feitos da santa, as suas


vitórias até o momento de sua derrota e de sua captura. Embora se defenda
como uma leoa contra as acusações, o bispo que a condena, supostamente,
havia sido expulso de sua diocese na França porque apoiava os “invasores”.
Dessa maneira, Joana é condenada como “vil feiticeira” e, assim, conduzida
à fogueira. Neste momento, aproxima-se o auge do relato:

“Deus, que estivera tão presente em todos os combates dela, agora fazia-se
ausente. Na manhã da morte, vestem-na com uma túnica infamante e a
conduzem numa carreta, de pé, com mãos amarradas às costas, como se
fosse malfeitora, em direção ao local do suplício. O povo enche as vias por
onde ela passa, e no caminho era lido a sentença, toda feita de infames e
falsas acusações. Continuando seu trajeto, a carreta chega à praça onde
está armada a fogueira. Santa Joana d’Arc desce e caminha em sua direção.
Pode-se bem imaginar a perplexidade que invafia(sic) sua alma: “Mas,
então, aquelas vozes não eram verdadeiras? Aquelas vozes teriam mentido?
Meu Deus, será que minha vida não foi senão um engano? É a Inquisição
que me condena! É um tribunal eclesiástico, dirigido por um Bispo,
composto por teólogos e por homens de lei… Será que eu não me enganei,
ó meu Deus?!”” [Dias, 2020]

Joana é queimada e na narrativa enfatiza-se toda dor e suplício que ela


sofreu. Contudo, enquanto o fogo consumia seu corpo, a santa, enquanto
morre, pronunciava: “As vozes não mentiram, as vozes não mentiram”.
Aqui, mais uma interpolação do autor que faz questão de explicar o sentido
das últimas palavras de Joana, qual seja: embora houvesse um mistério
naquilo tudo, Joana não estava mentindo porque cumprira a vontade de
Deus. Por fim, Mons. João Clá afirma que após o “sacrífico” da santa, o
exército inglês não conseguiu resistir ao francês e que 120 anos depois, a
última cidade, Calais, sucumbiu à reconquista francesa. Desta maneira, ele
encerra dizendo: “O nome de Santa Joana d’Arc permanecerá como uma
saga, um mito, um poema, até o fim do mundo: a virgem heroica e débil,
que expulsou os ingleses do doce Reino da França e realizou, assim, a
vontade de Nossa Senhora, Rainha do Céu e da terra”. [Dias, 2020]
Observemos a maneira que se refere ao reino de França (“doce”). Este, ao
contrário da Inglaterra, não se converteu a “heresia” protestante [Dias,
2020] e, durante a época feudal, como fora dito, figurava como espaço do
heroísmo e da cavalheirosidade”.

Através da narrativa sobre Joana D’Arc, o fundador da Associação não


apenas responde às acusações e às desconfianças que pairam sobre eles, 57
isto é, ainda que desconfiem da missão deles, a Providência tem várias vias
que podem surpreender. Mas também apresenta sua própria compreensão
sobre o período medieval. Uma época de heroísmo, cavalheirismo, milagres,
ação direta da Providência, a qual, supostamente, estaria fora do tempo. No
entanto, é precisamente por meio desta elaboração sobre a idade média
feita por João Clá, que a Providência sai da eternidade e entra para a
história na medida em que sua ação ocorre em um tempo e espaço
circunscrito e, por isso, historicizável.

Nesse sentido, o medievalism aparece como ferramenta profícua para


análise dessas apropriações, construções e (re)elaborações que a idade
média é alvo. Inclusive, no que se refere à religião. Finalmente, como
demonstramos, esta não se descola de um tempo/espaço a ser apresentada
e representada. Este tempo, ao ser descrito como “medieval” aparece
carregado de sentidos, significados e características que não existem por si
só, mas são produto de uma escrita, de uma interpretação sobre a idade
média a qual ocorre no tempo e no espaço histórico.

Apesar de consideramos pertinentes as questões sobre a temporalização,


consideramos que Utz está equivocado por apresentar aspectos dogmáticos
e teológicos como dados intrínsecos à religião. Além disso, é importante
considerar que, grande parte do que ele escreveu sobre a temporalização,
é, na verdade uma reflexão da própria idade média, notadamente, de santo
Agostinho e de são Tomás de Aquino, no que pesem as diferentes reflexões
desses autores sobre o tempo e a própria história, eles se preocuparam em
demonstrar como Deus, que estaria na Eternidade, e não no tempo
humano, inscreveu-se na história humana por intermédio de Jesus Cristo,
ou seja, a Encarnação, representa, a inscrição da Eternidade no tempo
humano, portanto, na própria história, e os medievais redigiram muito
sobre isso.

A Encarnação não deixa de ser um momento de suspensão do tempo e da


história, não é ao acaso que a Eucaristia propõe o mesmo. Entretanto, tudo
isso é uma reflexão, em grande parte medieval. Assim, o campo da religião
seria, em última instância, um terreno propício para se utilizar a teoria do
medievalism, grosso modo, notamos que os autores, pelo menos as
referências, nessa discussão desconhecem vários aspectos da “religião
medieval”. Outrossim, a idade média foi a responsável por lidar com uma
série de que chamaríamos de multitemporalidade, inclusive, sobre a própria
suspensão do tempo humano durante a Eucaristia, embora sejamos
obrigados a deixar, pelas limitações deste trabalho, a reflexão sobre a
multitemporalidade para trabalhos futuros. Mas , como conclusão,
sustentamos que, na verdade, as objeções relacionados por Utz acerca da
forma como o religioso relaciona-se com o tempo tem suas origens na
reflexão medieval acerca dele, portanto, em diversos aspectos do campo
religioso, não necessariamente, teríamos a necessidade, de forma explícita,
de se vincular ao medievo, a relação com a multitemporalidade já é per se,
um aspecto que pode e dever ser analisado por intermédio da teoria do
medievalism.
58
Referências
Clinio de Oliveira Amaral é professor associado de história medieval da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil, pesquisador do Linhas
(Núcleos de estudos sobre narrativas e medievalismos, cf. https://linhas-
ufrrj.org/) e coordenador do LABEP (Laboratório de estudos dos
protestantismos).
João Guilherme Lisbôa Rangel é mestre e doutorando pelo PPHR-UFRRJ,
pesquisador do Linhas (Núcleos de estudos sobre narrativas e
medievalismos, cf. https://linhas-ufrrj.org/) e do LABEP (Laboratório de
estudos dos protestantismos). O trabalho foi realizado com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil
(CAPES) – Código de financiamento 001.

AMARAL, Clinio de Oliveira; RANGEL, João Guilherme Lisbôa. A Idade Média


encantada dos Arautos do Evangelho analisada através do medievalism. In:
ANDRÉ BUENO; DULCELI ESTACHESKI; JOSÉ MARIA SOUSA NETO; RENAN
MARQUES BIRRO. (Org.). Aprendendo História: Ensino e Medievo.
1ed.União da Vitória: Edições Especiais Sobre Ontens, 2019, v. 1, p. 11-18.
DIAS, João Clá. Surpreendente e variadas são as vias da Providência. 2020.
Disponível: https://www.arautos.org/secoes/artigos/especiais/santa-joana-
darc-a-virgem-heroica-143592 [internet]
Globo, 2019, disponível em:
[https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/10/27/fundador-do-arautos-
do-evangelho-da-tapas-em-jovens-em-novo-video.ghtml]
Fundador do Arautos do Evangelho dá tapas em jovens em novo vídeo.
Disponível em:
https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/10/27/fundador-do-arautos-
do-evangelho-da-tapas-em-jovens-em-novo-video.ghtml [internet]
HSY, Jonathan. Co-disciplinarity. In: EMERY, Elizabeth and UTZ, Richard.
(eds.). Medievalism key critical terms. Woodbridge: Boydell & Brewer,
2017, p.43-51.
OLIVEIRA, Thais Reis. Castigos, exorcismos e denúncias: quem são os
Arautos do Evangelho. 2019. Disponível:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/castigos-exorcismos-e-
denuncias-quem-sao-os-arautos-do-evangelho/ [internet]
UTZ, Richard. Medievalism studies and the subject of religion. Studies in
Medievalism. Cambridge: D.S. Brewer, n XXIV, 2015, p. 11-19.
A HISTÓRIA PÚBLICA E A REDENÇÃO DO MEDIEVO
Eduardo Leite Lisboa

Na edição passada deste evento tive a oportunidade de discutir sobre como


a mentalidade medieval estava presente na colonização das américas,
designadamente a respeito da apreensão do “outro-monstruoso”. Naquele
breve texto acerca do esforço cognitivo dos expansionistas ibéricos diante 59
das gentes do Novo Mundo, ou melhor, sobre esta faceta do primeiro
colonialismo moderno, advoguei em prol do estudo do imaginário como
rompedor de barreiras temporais a fim de destacar um possível ensino da
Idade Média mais pertinente à realidade brasileira [Lisboa, 2019, p. 55-
62]. Ainda convencido desta leitura, o que aqui proponho para a mesa é
menos uma reflexão conclusiva do que a instituição de um debate. A partir
de um panorama dos estudos medievais no Brasil – feito que não se quer
inédito –, procurarei incidir sobre como a História Pública pode elevar a
razão de ser do medievalismo nos trópicos.

Breves linhas sobre o medievalismo no Brasil


No ano de 2015, a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) suscitou inúmeros debates em torno da História Antiga e Medieval,
pois, com a premissa de um currículo voltado ao nacional, abolia do ensino
escolar esses dois recortes estrangeiros à realidade brasileira. Longe de
querer dar conta deste debate, destaco ao leitor as notas da Associação
Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) e do Núcleo de Estudos
Mediterrânicos (NEMED) da Universidade Federal do Paraná, bem como
recomendo o artigo de Igor Teixeira e Nilton Pereira A Idade Média nos
currículos escolares: as controvérsias nos debates sobre a BNCC [Pereira;
Teixeira, 2016, p. 16-29], uma vez que as duas primeiras foram bastante
acatadas por antiquistas/medievalistas e pelo terceiro muito bem sintetizar
o tema também em 2016.

Mas esta discussão não é nova. Na apresentação da coletânea organizada


por Jaime Pinsky, Modo de Produção Feudal, publicada em 1982, temos
uma previsão de futuro. Sobre ela, e para iniciar a contextualização do
Medievalismo no Brasil, trago a seguinte consideração de Mário Bastos e
Leandro Rust:

“Com o tom grave e compungido de quem atesta uma impossibilidade,


asseverava que as nossas universidades [brasileiras] jamais formariam um
especialista em História Medieval, por tratar-se esse de um passado que
não nos pertencia e que nos era ‘alheio’ por razões diversas. Restar-nos-ia,
apenas, ministrar, conformados, cursos honestos, se é que tal paroxismo é
possível. Pouco mais de vinte anos passados, as expressões do quadro
atingido pelos estudos medievais no Brasil parecem querer nos lembrar
quão incertas costumam ser as posições de arautos e profetas!” [Bastos;
Rust, 2008, p. 164].

Conforme Ronaldo Amaral, “a grande questão sobre os estudos medievais


no Brasil ainda permanece a mesma: por que estudar Idade Média em
nosso país? O Brasil é uma realidade geográfica e sociocultural anacrônica
ao período medieval, pois surgiu após ele” [Amaral, 2011, p. 446].

De meados da década de 1960 até os inícios dos anos 80, a História tinha
que ser “engajada”. Não era bem visto que, em plena ditadura militar, o
historiador ou historiadora estudassem temáticas, tempos e espaços tão
60
exóticos. De que serviria isso para a superação o quadro político nacional?
“No máximo, permitiam-se incursões à Idade Média inspiradas por aquelas
que tinham sido feitas por Marx e Engels” [Coelho, 2006, p. 29]. No
binarismo corrente entre revolucionários e conservadores dentro dos cursos
de História, os medievalistas eram colocados do lado direito do espectro
político. Estudar a longa duração usando chaves interpretativas de ordem
cultural, por exemplo, era totalmente contrário ao materialismo histórico
dialético que postulava uma História que somente avançava por meio de
rupturas. Dessa forma, o Medievo circunscreveu-se ao modo de produção
feudal, como bem ilustra a leitura comunista de um semifeudalismo
brasileiro ainda em vigor na metade do século XX [Mendes, 2013, p. 204].
Soma-se a isso que neste contexto poucos eram os profissionais com
formação na área, ficando a disciplina acadêmica ao encargo dos
professores de História Moderna, Contemporânea e do Brasil, não sendo
estranho, por isso, a caricatura da Idade Média como Feudalismo.

Porém, ao ritmo da abertura política do final da década de 1970 abriram-se


também as portas dos departamentos para novas perspectivas teórico-
metodológicas. Era hora de chegar o estudo das mentalidades e do
imaginário pelos escritos de Georges Duby, Jacques Le Goff, Philippe Ariès,
Emmanuel Ladurie e o esquecido Marc Bloch. Com a História Cultural,
grosso modo, a longa duração voltava a fazer sentido e isso tocava
diretamente as outras disciplinas, haja vista que

“Tal como a palavra ‘mentalidade’, a palavra ‘imaginário’ apresenta-se com


um certo halo de indefinição que lhe confere uma parte do seu valor
epistemológico, já que assim nos permite atravessar fronteiras e escapar às
compartimentações. É um conceito libertador, um instrumento que abre
portas e janelas e nos leva a outras realidades, mascaradas pelos rótulos
convencionais das preguiçosas divisões da história” [Le Goff, 1994, p. 31].

Não obstante, foi apenas nos idos de 1990 que institucionalizou-se o campo
de estudos medievais. A criação da ABREM, em 1996, de grupos de trabalho
dentro da Associação Nacional dos Professores Universitários de História
(ANPUH), a partir de 1998, e de uma série de núcleos de estudos,
independentes ou institucionais, a partir dos 2000. Nesse momento,
importante ter claro que boa parte dos professores especializados no
assunto tiveram alguma formação em universidades europeias, daí a
predominância, por exemplo, de pesquisas sobre a Península Ibérica
(proximidade do idioma, facilidade em se ler as fontes, etc.). Outro aspecto
relevante é a concentração no sul e sudeste dessa primeira geração de
medievalistas brasileiros, sendo São Paulo e Rio de Janeiro os grandes
epicentros. É apenas no decorrer da primeira década do século XXI que
pulveriza-se para o interior do país espaços de pesquisa e programas de
pós-graduação que contemplassem o Medievo.

Maria Coelho fala-nos em um artigo de cerca de dez anos antes da primeira


versão da Base Nacional Curricular que:

“Hoje, o medievalismo brasileiro está cada vez mais consolidado. Em 61


tempos de democracia e de globalização, já não se sustenta mais a
bandeira política dentro dos departamentos de História, que clamava pela
necessidade de fortalecer os estudos da área de História do Brasil, em
detrimento de outras linhas de pesquisa que pareciam inúteis aos olhos dos
que advogavam pela revolução. Mas, ainda assim, a História Medieval é
uma área que precisa de vez em quando justificar a sua existência”
(Coelho, 2006, p. 31).

História Pública e a redenção do Medievo


Como vimo-nos a ter que justificar a existência deste campo de estudo,
penso que a História Pública não somente poderia vir de encontro a isso
como também, junto do ensino de história, possui capacidade de elevar tais
questões. Em outras palavras, não somente legitimar o conhecimento
histórico aqui em exame, mas instituir um debate permanente, abrir uma
antecâmara para que essa discussão sobre a disciplina não se encerre.

Conforme Jerome de Groot falou ao blog Café História, aquilo que motivou-
o a desenvolver trabalhos na área da História Pública foi a percepção

“[...] de que a história estava acontecendo em público e que precisávamos


prestar atenção nisso. Eu percebia que existia um enorme interesse pelo
passado, mas a maioria dos meios de apresentação deste passado às
pessoas não era compreendido pelos historiadores acadêmicos. Eu comecei,
então, a me interessar por versões do passado apresentadas na televisão e
em filmes, e a me preocupar com o fato de que os historiadores
aparentemente não estavam muito envolvidos com o tipo de história que
está acontecendo fora dos meios especializados. Eu comecei então a pensar
nas formas como nós ‘consumimos’ o passado, isto é, como utilizamos o
passado em nossas vidas e os meios que empregamos quando efetivamente
pagamos para usá-lo. Quanto mais eu procurava, mais eu encontrava: de
lojas de souvenirs de museus até propaganda comercial, dos argumentos
políticos aos filmes de Hollywood. História é consumida, lida, interrogada,
usada, pensada e debatida em milhões de lugares”. [Groot, 2019]

Para o professor da Universidade de Manchester e autor de Consuming


History [2009], estamos cercados por versões do passados através do
consumo massivo de história, algo que nos leva a imaginar realidades
outras (de maneira não neutra, enquanto receptores). Agora, quando
pensamos detidamente sobre como a Idade Média é representada não seria
novidade destacar uma visão obscura. Cabe acerca disso uma rápida
recapitulação histórica baseada em Hilário Franco Júnior.
Pelos humanistas do renascimento, a Idade Média era tida como um tempo
de inferioridade da produção humana perante os feitos divinos; protestantes
criticavam o monopólio católico; nos absolutistas havia lamento pelos reis
fracos; os iluministas escrachavam do pensamento ser dominado pela
igreja; entretanto, pelos românticos, era tida como a origem das nações,
um tempo de fé e segurança, onde a cientificidade não causou problemas,
62
tinha-se tranquilidade e merecia ser revivida [Franco Júnior, 2001, p. 11-
18]. Por mais que sejam interpretações datadas, a ideia de um tempo sem
especificidades e de pouco contributo para nossa realidade ainda estão
presentes na concepção de alguns sobre a “Idade das Trevas”,
especialmente em função de gerações passadas que foram formadas por
professores sem uma formação especializada em Medieval, como vimos no
tópico anterior.

Ademais, para não entrar propriamente nas abundantes características


fantásticas veiculadas pela literatura e produção audiovisual, cabe
mencionar que têm sido os louváveis do medievalism em analisar as
apropriações não científicas do período medieval. Mas longe de tentar dar
conta desses assuntos, visto que as produções historiográficas são vastas e
os aspectos a serem analisados mais plurais ainda, continuarei o raciocínio
no âmbito universitário.

Parece-me especialmente interessante a iniciativa do professor de História


Medieval da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Gabriel
Castanho, ao ministrar a disciplina História Pública da Idade Média no
primeiro semestre de 2019, cujo programa felizmente partilhou em seu
perfil da academia.edu. Vejamos a ementa:

“De quem é a História? Enquanto coisa (ou seja, disciplina acadêmica) é de


poucos, os chamados profissionais de ofício. Enquanto prática, ela é pública,
é produto, é mercadoria, é de todos (e de ninguém ao mesmo tempo...).
Nos últimos anos as mídias (séries televisivas, filmes, jogos – digitais ou
não – ,livros, discos etc.) e, mais recentemente, as mídias 2.0 alteraram a
forma comoos seres humanos produzem, circulam e consomem memórias
do passado. Tal alteração levou à ampliação dos objetos, dos temas e das
abordagens trabalhados pelos profissionais acadêmicos. Mais do que nunca
a ideia de que toda História é filha de seu tempo parece imperar dentro e
fora do mundo universitário. Partindo dessas reflexões gerais, o curso
pretende refletir de forma crítica sobre a presença do medievalesco em
nosso mundo contemporâneo. Para tanto, iremos nos perguntar sobre as
formas, os conteúdos e os usos dessa ‘medievalidade’ pela opinião pública
atual. Trata-se, por fim, de uma abordagem que irá se ancorar
empiricamente nas mídias de massa contemporâneas e teoricamente (em
grande parte, mas não exclusivamente) nos ‘espaços de experiência’ e
‘horizontes de expectativas’. Assim, é no embate do presente com o
passado e o futuro que nosso curso pretende se inserir a fim de oferecer
aos alunos uma oportunidade para refletir sobre a recepção do medievo em
nosso mundo contemporâneo”. [Castanho, 2019, p. 1]
Com um programa preocupado em perspectivar a Idade Média e apontar
seus usos, este professor de futuros professores estruturou suas aulas tanto
discutindo teoricamente quanto valendo-se de uma produção
cinematográfica e literária amplamente consumida. Em suma, é um
exemplo de História Pública extremamente pertinente nos pressupostos de
Groot. Com isso, partindo apenas da perspectiva de uma história
experimentada pelo público – um público por certo também escolar! –, a 63
razão de ser do Medievo se apresenta àqueles que eventualmente
propugnam sua extinção na educação básica.

Daí o termo “redenção”, empregado em razão dessa modalidade da História


ser um meio possível de afastarmos a negação do ensino da Idade Média,
este tempo nada anacrônico a nós – antes muito pelo contrário,
extremamente presente.

Considerações nada finais


Como é perceptível, meu texto apresenta-se mais como as considerações
iniciais de alguém estrangeiro ao campo da História Pública do que
propriamente como o de um pesquisador da área capacitado a concluir ou
propor algo. E de fato assim o é. No entanto, creio que esta mesa seja
precisamente o espaço onde podemos afinar as reflexões.

Referências
Eduardo Leite Lisboa, mestrando do Programa de Pós-graduação em
História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5428506342272992.
E-mail: eduardolisboa.his@gmail.com.

AMARAL, Ronaldo. O medievalismo no Brasil. História Unisinos. São


Leopoldo, v. 15, n. 3, p. 446-452, 2011.
BASTOS, Mário Jorge da Motta; RUST, Leandro Duarte. Translatio Studii. A
História medieval no Brasil. Signum, Belo Horizonte, v. 10, p. 163-188,
2008.
CASTANHO, Gabriel. História Pública da Idade Média. Disponível em:
<https://www.academia.edu/38274007/História_Pública_da_Idade_Média_
Graduação_-_UFRJ_2019_1_>. Acesso em: 19/04/2020
COELHO, Maria. Breves reflexões acerca da História medieval no Brasil. In:
SILVA, Leila Rodrigues (Dir.) Atas da VI Semana de Estudos Medievais do
Programa de Estudos Medievais da UFRJ. Rio de Janeiro: PEM, p. 29-33,
2006.
GROOT, Jerome. Consumindo História: genealogia, História Pública e outros
engajamentos com o passado (Entrevista). Entrevista concedida a André de
Lemos Freixo. In: Café História – História feita com cliques. Disponível em:
https://www.cafehistoria.com.br/historia-publica-consumindo-historia/.
Publicado em: 12 ago. 2019. Acesso em: 19/04/2020
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do ocidente. São
Paulo: Editora Brasiliense, 2001, p. 11-18.
FRANCO JÚNIOR, Hilário Franco. Raízes medievais do Brasil. Revista USP,
São Paulo, n. 78, p. 80-104, 2008.
LISBOA, Eduardo Leite. Do interesse pela mentalidade medieval: a face
monstruosa da colonização e outras ponderações. In: BIRRO, Renan
Marques; BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; NETO, José Maria de Sousa.
(Org.). Aprendendo História: Ensino & Medievo. União da Vitória: Edições
Especiais Sobre Ontens, 2019, p. 55-62.
MENDES, Claudinei Magno Magre. A questão do Feudalismo no Brasil: um
64
debate político. In: Notandum, Porto (Portugal), 2013, p. 199-212.
PEREIRA, Nilton; TEIXEIRA, Igor. A Idade Média nos currículos escolares: as
controvérsias nos debates sobre a BNCC. Diálogos, Maringá, v. 20 n. 3, p.
16-29, 2016.
REPRESENTAÇÕES DE EVA E MARIA NA IDADE MÉDIA: A
CONDIÇÃO FEMININA NO PENSAMENTO RELIGIOSO E
IMAGENS MEDIEVAIS
Esteffane Viana Felisberto e Marcos de Araújo Oliveira

Introdução
Entre as inúmeras influências do movimento feminista para a conquista de 65
direitos das mulheres, sabe-se que a reivindicação de uma escrita que
desse maior protagonismo às mulheres nas narrativas oficiais foi
fundamental para o fortalecimento do campo historiográfico da História das
Mulheres, que surge na segunda metade do século XX.

Foi por meio desse processo de se pensar e escrever uma história que
trouxesse representatividade para milhares de mulheres silenciadas ao
longo dos séculos que a Idade Média foi ganhando novos enfoques e as
condições femininas no Medievo desencadearam debates historiográficos
que expandiram ainda mais as pesquisas sobre as realidades dessas
mulheres. Sabe-se que a Idade Média esteve influenciada sob o domínio
religioso da Igreja Católica, que tinha enorme impacto na vida pública e
privada das mulheres, sendo a principal responsável pela criação de
padrões de comportamentos femininos no Medievo.

As imagens constituem-se assim como verdadeiras fontes para a análise


desse imaginário cristão acerca dos papéis femininos e colaboram para a
reflexão acerca das idealizações desse contexto, pois como defende Peter
Burke [2004, p. 17]: “imagens, assim como textos e testemunhos orais,
constituem-se numa forma Importante de evidência histórica. Elas
registram atos de testemunho ocular”.

Aliada aos interesses dos governantes em manter a hierarquia dos sexos, a


Igreja utilizou das figuras femininas da Bíblia, como Eva e Maria, para
difundir quais condutas as mulheres deveriam adotar ou reprimir. Dessa
forma, podemos compreender através dessas fontes imagéticas, que as
representações de Eva e Maria carregavam os ideais religiosos, que
mantiveram sólidos os padrões de “ser e agir” ao público feminino
medieval.

Uma História das Mulheres: novos estudos historiográficos e a


análise de gênero
A historiadora Joan Scott [1992], ao falar da História das Mulheres, explica
que na década de 80 se desenvolveu a ideia de um desvio da história
partidária e socialista para uma história voltada e vinculada à ideia de
“gênero”, proporcionando a esse campo de estudo uma característica
própria; acredita-se ainda que essa análise do gênero se originou com as
construções sociais e literárias de cada autor(a) sobre o tema.

Ainda de acordo com Joan Scott, a autora descreve que: “na gramática, o
gênero é compreendido como uma forma de classificar fenômenos, um
sistema socialmente consensual de distinções e não uma descrição objetiva
de traços inerentes” [Scott, 1995, p.72], ou seja, a ideia de que existe ou
deva existir uma história voltada apenas para homens ou apenas para
mulheres é contrária à ideia que é proposta pela própria gramática, onde os
direitos femininos ou masculinos devem ser voltados a um ser humano de
forma natural e não de forma sexual:

66
“É verdade que não existe nenhuma unanimidade entre aqueles/as que
utilizam o conceito de classe. Alguns/mas pesquisadores/as se servem de
noções weberianas, outros utilizam a classe como um dispositivo heurístico
temporário. Entretanto, quando invocamos a classe, trabalhamos com ou
contra uma série de definições que, no caso do marxismo, implicam uma
ideia de causalidade econômica e uma visão do caminho ao longo do qual a
história avançou dialeticamente. Não existe nenhuma clareza ou coerência
desse tipo para a categoria de raça ou para a de gênero. No caso do
gênero, seu uso implicou uma ampla gama tanto de posições teóricas
quanto de simples referências descritivas às relações entre os sexos”.
[Scott, 1995, p.73].

Porém, durante muito tempo, os objetos de estudos na História eram


direcionados apenas a um personagem social, ou seja, “o homem”,
dificultando o processo de inclusão da figura feminina. Segundo Rachel
Soihet [2011] essa nova construção literária em relação ao feminismo
teoriza e trabalha as diferenças sexuais, vinculando a ideia de que um
estudo não seria compreensível se distinguisse os sexos, trabalhando o
meio de escrita não apenas na construção da nova história feminina, mas
também como uma construção em seu âmbito total, tornando-se igualitária
sem que exista distinção de gêneros ou caracterização de “histórias
masculinas” contrapondo com “histórias femininas”. Segundo Scott [1995,
p.73-74]:

“A proliferação de estudos de caso, na história das mulheres, parece exigir


uma perspectiva sintética que possa explicar as continuidades e
descontinuidades e dar conta das persistentes desigualdades, assim como
de experiências sociais radicalmente diferentes. Em segundo lugar, porque
a discrepância entre a alta qualidade dos trabalhos recentes de história das
mulheres e seu status marginal em relação ao conjunto da disciplina [...]
mostram os limites de abordagens descritivas que não questionam os
conceitos disciplinares dominantes ou, ao menos, que não problematizam
esses conceitos de modo a abalar seu poder e, talvez, a transformá-los.
Para os/as historiadores/as das mulheres, não tem sido suficiente provar
que as mulheres tiveram uma história, ou que as mulheres participaram das
principais revoltas políticas da civilização ocidental”.

Desse modo, é possível determinarmos ideias e análises trabalhando a


imagem feminina que ficou restrita às atividades domésticas durante os
séculos do medievo, pois não era permitido que tivessem um conhecimento
educacional sobre determinados assuntos, fossem eles partidários,
religiosos, administrativos. Pode-se trabalhar também a ideia de liberdade
de expressão feminina, que segundo Scott [1995] é o fundamento básico
para os estudos feministas citados.
Esta nova abordagem possibilitou reformular a ideia da relação com o
campo desvalorizado sobre a vida das personagens femininas nos estudos
da Idade Média, assim como analisar construções sociais, considerando a
mulher como um ser não inferior ao “sexo” masculino.

As mulheres e os cenários de submissão: o contexto feminino na 67


Idade Média
Georges Duby e Michelle Perrot [1992] auxiliam na construção social sobre
a história das mulheres, como um espelho para introduzir novos pontos de
vista e mudanças de algumas perspectivas das realidades femininas no
Medievo, ou seja, não se referem ao surgimento de uma nova história, mas
sim à reavaliação de uma história dita como “tradicional”, e de novas
interpretações de fontes já existentes.

Os autores expõem a perspectiva de que: “o que caracteriza a mulher no


medievo não é o modelo que ela prega na sociedade, mas o olhar que os
homens impõem sobre as personagens” [Duby; Perrot, 1992, p. 07].
Podemos refletir acerca dos desafios enfrentados por essas personagens,
assim como o seu lugar social ocupado em meio a submissão, e muitas
vezes nas transgressões, já que nem sempre a mulher medieval foi um ser
passivo.

No texto de Suzanne Fonay Wemple, “As mulheres do século V ao século X”


[1992] a autora explica que durante este contexto medieval, sabe-se que a
religião cristã tinha influência muito forte na vida dos sujeitos e isso afetava
as mulheres diretamente. Mesmo neste tempo já era possível ver a Igreja
presente em muitos contextos sociais, fossem eles direcionados ao campo
educacional ou político, e até mesmo ao matrimônio. Ainda assim, as
mulheres detinham poderes de educação dos filhos, assim como da
administração do lar.

Wemple [1992] destaca também que as mulheres camponesas se


apresentavam principalmente nas capitulares de Carlos Magno como
importantes nas manutenções das casas reais; esses modelos de mulheres
caracterizadas pelos escritores, são advindos de interpretações novas,
porém com descrições de fontes já conhecidas.

A historiadora apresenta ainda descrições da vida das mulheres nos


mosteiros, locais que, segundo Wemple [1992], serviam de refúgio para
conservar a virgindade ou para permanecerem como “santas” de Deus,
libertando-se das obrigações matrimoniais. Porém, a vida nos mosteiros era
proposta pela Igreja apenas para as mulheres viúvas que desejavam um
estatuto igual ao das mulheres virgens ou como forma de penitência das
mulheres pecadoras.

Seguiam ainda muitas restrições, já que: “O lugar de cada uma no


dormitório obedecia a certos princípios; os lugares das irmãs mais novas
eram dispostos alternadamente com o das mais velhas, para evitar a
leviandade ou a tentação carnal” [Wemple, 1992, p. 250].
A vida para essas mulheres religiosas consistia, além da reclusão, em se
protegerem e evitarem qualquer pecado. Por exemplo, para evitar a
tentação carnal essas mulheres que viviam em mosteiros não podiam ter
contato com o sexo oposto nem mesmo para a simples confissão, podendo
apenas se confessar na presença de outras irmãs:
68
“Além disso, no século X, os clérigos instruíam as mulheres de que deviam
comportar-se humildemente na igreja. Se fossem virgens deviam imitar
Maria, espelho de castidade, inscrição da virgindade, testemunho da
humildade, honra da inocência” [...] As mulheres não podiam aproximar-se
do altar, antes tinham de permanecer nos seus lugares, onde o padre
deveria aceitar as suas oferendas [...] Nem mesmo as mulheres letradas
deveriam ousar ensinar a homens”.[Wemple, 1992, p.252-253].

A historiadora Chiara Frugoni [1992] expõe o domínio da Igreja sobre as


mulheres dividindo a categoria feminina em três estados naturais, sendo
eles, o universo das mulheres casadas, as viúvas e as virgens, que se
caracterizavam como exemplo de purificação, sendo sempre colocadas
como o primeiro lugar social.

Assim, foi difundida pela Igreja no Medievo, a ideia de que Eva por
representar o pecado original, acaba sendo o oposto de Maria, que segundo
a Igreja, é o modelo religioso ideal para toda mulher, colaborando com a
ideia de uma virgindade em busca de valorização carnal. Essa ideia de
pureza e bondade vivida pela “Santa Mãe de Jesus”, é vista pelos cristãos
como modelo de adequação do mundo feminino e eclesiástico no âmbito
medieval.

Entre Eva e Maria: o paradigma cristão sobre as mulheres através


das imagens
Jacques Le Goff [2013] explica que o número de arquivos medievais
documentados sobre mulheres é bem inferior ao dos homens. O historiador
argumenta que na Idade Média, mesmo o cristianismo concedendo à mulher
um lugar de importância, ainda assim lhe infligiu duras imposições: uma era
a responsabilidade de Eva no Pecado Original, a segunda era o fato de que
as mulheres no clericato não poderiam ser promovidas a função sacerdotal.

Porém, o autor destaca que ainda assim houveram mulheres que foram
elevadas a um estado superior ao de todos os outros seres humanos: A
Santidade. De acordo com Le Goff [2013, p. 11]: “Talvez o acontecimento a
manifestar com a maior profundidade uma real promoção da mulher tenha
sido o formidável desenvolvimento, a partir do século XII, do culto a Virgem
Maria”. Portanto, esse maniqueísmo difundido pela Igreja sobre os papéis
de Eva e Maria durante a Idade Média, foi responsável por cristalizar os
modelos de feminilidade a serem seguidos ou repudiados por mulheres:

“Todavia, as representações de Eva enquanto a pecadora que levou à queda


toda a humanidade e a impossibilidade da habitação eterna no Éden são as
representações que mais ganharam força e que mais foram disseminadas
durante o período medieval. Contribuiu para que os espaços destinados aos
sexos e a submissão e obediência das mulheres aos homens fossem aceitos
e incorporados por grande parte da sociedade europeia, o fato de que tais
elementos foram considerados como naturais e de origem divina”. [Pires,
2016, 131].

Podemos apontar então que muito da desigualdade dos gêneros 69


perseverante no Medievo se deu justamente por essa culpabilização de Eva
acerca das origens dos males existentes sobre a humanidade, já que Eva foi
a primeira humana a pecar e fez cair assim o peso do pecado sobre todos
os seus descendentes. Tal imaginário, mantinha a estrutura hierárquica
entre homens e mulheres no medievo, justificada através da narrativa do
Gênesis, na Bíblia Sagrada. Como destaca Gevehr e Souza [2014, p. 114]:

“O Gênesis mostra que Deus teria criado Eva a partir de Adão, o que
justificava, para a Igreja, a submissão da mulher ao homem, e, tendo sido
criada a partir de um osso curvo da costela de Adão, o espírito da mulher
revelava esse desvio, sendo traiçoeiro desde a sua origem. Eva, com seu
desejo abrasador de conhecimento do Bem e do Mal, ao consentir ser
seduzida pelo Diabo, leva Adão consigo, tornando-se responsável pela
perdição moral do homem”.

Sendo assim, tornou-se bastante comum a associação da mulher ao mal,


por isso em muitas representações imagéticas, demônios eram retratados
com traços femininos, como na gravura “Eva e a serpente”, do editor
parisiense Vérard. Nela vemos o episódio bíblico em que Eva foi enganada
pela serpente e comeu o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem
e do mal.

Fig. 1 – “Eva e a serpente”, de Vérard, 1493-1494, Le Mirouer de la


Redemption de l’umain lignage Paris: Vérard, fol. 2v.
É possível notar na gravura que a serpente, forma utilizada pelo diabo para
enganar Eva, manifesta aspectos híbridos. Tais características possuem um
sentido que nos auxilia a entender o processo de inferiorização da mulher,
pois é possível apontar que além dos traços animalescos, por meio de asas
e das orelhas de macaco (animal ligado a ideia da sexualidade exagerada),
70
a serpente possui o rosto feminino, muito similar ao de Eva, reforçando
assim os discursos construídos de que seria a mulher um dos meios para a
tentação e Eva a responsável pela desgraça humana, pois ela também
oferece o fruto a Adão, culminando em suas expulsões do paraíso:

“Defendia-se, então, que as mulheres, todas descendentes de Eva,


possuíam uma tendência natural de se corromper, pela sua fraqueza e
também pela estupidez, por ser mais fácil de enganar [...] Nessa
perspectiva, a mulher seria a porta por onde o diabo conseguiria entrar e
através dela causar todo tipo de malefícios à humanidade”. [Pires, 2016, p.
134].

Gevehr e Souza [2014] explicam que, neste contexto, a mulher, além de


ser um ente negativo, representava uma tentação incessante, devendo os
homens evitá-la, para continuar com seu espírito intacto, livre do pecado e
da danação eterna. “Consequentemente, na sociedade, ela teve,
geralmente, um papel de segunda ordem, subordinada ao homem,
reprimida e em silêncio”. [Gevehr; Souza, 2014, p. 115]

Entretanto esse imaginário negativo não seria vinculado à Virgem Maria.


Segundo Dabat [2002] o culto marial, expresso no fenômeno arquitetônico
de construções de catedrais dedicadas a Maria entre os século XII e XIV,
deve sua importância dada na teologia da época, à vida terrestre de Jesus;
o que naturalmente, deu maior enfoque à mulher que o deu à luz segundo a
mitologia cristã, elevando a sua imagem como senhora boa e honrosa.

É possível apontar que isso se reflete nas gravuras que representam Maria,
sempre mostrando feições serenas e bondosas, mais iluminada e em alguns
casos intercedendo por humanos. Uma dessas gravuras, foi feita por
William de Brailes, artista que viveu na Inglaterra do século XIII, e chama-
nos a atenção por retratar Maria golpeando o diabo com um soco.
71

Fig. 2 - “Virgem Maria atingindo o Diabo,” de autoria de William de Brailles,


“The De Brailes Hours” (c.1240).

A gravura se baseia em uma narrativa cristã que conta como Maria


intercedeu por São Teófilo, antes dele torna-se santo. Teófilo havia vendido
sua alma ao diabo, mas arrependido, pediu o auxílio de Maria, que
vencendo o diabo, recuperou o contrato e restaurou sua liberdade. Brailles
recria na cena, a representação de uma mulher de frente ao diabo, só que
ao invés de ceder as suas manipulações, derrota-o com coragem.

Neste sentido, a figura feminina não ocupa o papel de pecadora e sim de


santa, pois vemos a “mãe pura” de Cristo, enfrentando “o mestre” da
maldade e dos pecados. A tranquilidade no rosto de Maria e suas roupas
claras, contrastam com os tons escuros do demônio, derrotado sem
dificuldades pela figura misericordiosa e casta.

Percebe-se, que a imagem de Maria é evocada como símbolo de resistência


e de esperança diante do mal que tenta o ser humano. A gravura exibe
justificativas da veneração da Igreja à Virgem Maria, que dentro desse
contexto medieval cristão, torna-se modelo a ser seguido pelas mulheres.
72

Fig. 3 – “A Árvore da Vida e da Morte”, de Berthold Furtmeyr, no Missal de


Bernhard von Rohr, Arcebispo de Salzburgo, 1481.

Nesta gravura de Berthold Furtmeyer no século XV, temos a representação


de Eva e Maria ao lado da árvore do conhecimento do bem e do mal, na
qual as duas mulheres recolhem frutos e oferecem a humanidade. Porém,
no lado esquerdo da árvore temos a figura do Cristo na cruz, podendo-se
entender que Maria conduz o povo a Jesus, aquele que se sacrificou para
dar vida e salvação a todos, portanto Maria guia-os ao bem. Já no lado
direito da árvore, o de Eva, temos uma face pálida e mórbida, concluindo-se
assim que Eva leva os indivíduos a desgraça e a condenação pelo pecado,
ou seja, ao mal:

“Os papéis sociais de gênero foram determinados por uma moral edificada
na definição do corpo feminino, de acordo com a ótica da Igreja Católica.
Isso fez surgir, nos discursos da História Medieval, a figura de Eva, a
pecadora, vista como a grande vilã da humanidade;[e] a Virgem-Maria, a
santa, a pura, um exemplo a ser copiado[..] Dessa forma, a representação
da mulher transmitia práticas e virtudes quanto à pureza, sujeição, maneira
de proceder e obediência aos princípios fundamentais da Igreja”. [Gevehr;
Souza, 2014, p. 121].

Nota-se, que essas representações imagéticas revelam os aspectos culturais


que perpetuaram a subordinação feminina no Medievo, fundamentada
através da religião cristã, a construtora dos padrões de comportamento
femininos – comportamentos que poderiam ser execrados, a exemplo de
Eva, ou muito valorizados, na imitação da Virgem Maria.
Considerações Finais
Entre as inúmeras contribuições das novas narrativas elaboradas pelo
campo da História das Mulheres ao dar protagonismo as figuras históricas
femininas silenciadas, o olhar analítico sobre as construções dos papéis de
gênero na sociedade medieval foram fundamentais para a explicação da
subserviência do sexo feminino no Medievo.
73
Desse modo, o uso das fontes imagéticas da iconografia medieval, pode
promover uma compreensão desse universo cultural, social e religioso no
qual estavam imersas essas mulheres, pois a análise das representações de
modelos bíblicos destacam Maria como a virgem pura e correta, ícone que
deveria ser inspiração para todas as mulheres, e em oposto Eva, mãe do
pecado original que amaldiçoou a humanidade e, portanto, renegada.

A reflexão proporcionada pelo universo das imagens, serve assim para


análise das razões históricas acerca da permanência das mulheres abaixo
dos homens na hierarquia social da Idade Média. Condições femininas
influenciadas pelo âmbito religioso, que ao mesmo tempo que poderia vir a
valorizar, também condenava o “segundo sexo”.

Referências
Esteffane Vianna Felisberto é graduada em Licenciatura em História na
Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Petrolina).
Marcos de Araújo Oliveira é graduado em Licenciatura em História na
Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Petrolina).

BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e Imagem. Bauru, São Paulo:


EDUSC, 2004.
DABAT, Christine Rufino. “Mas onde estão as neves de outrora?” Notas
bibliográficas sobre a condição das mulheres no tempo das catedrais.
Gênero e História – Dossiê. v. 1, n. 1. 2002.
DUBY, Georges; PERROT, Michelle. Apresentação. In:_____. História das
mulheres: A Idade Média. Vol. 2. Porto: Afrontamento, 1992.
GEVEHR, Daniel Luciano; SOUZA, Vera Lucia de. As Mulheres e a Igreja na
Idade Média: misoginia, demonização e caça às bruxas. Revista Acadêmica
Licencia & Acturas. Ivoti. v. 2. n. 1. 2014. p. 113-121.
FRUGONI, Chiara. A mulher nas imagens, a mulher imaginada. In: DUBY,
Georges; PERROT, Michelle (org). História das mulheres. A Idade Média.
Vol. 2. Porto: Afrontamento, 1992, p. 462-482.
LE GOFF, Jacques. Homens e Mulheres da Idade Média. São Paulo: Estação
Liberdade, 2013, 448 p.
PIRES, João Davi Avelar. Misoginia medieval: a construção da justificação
da subserviência feminina a partir de Eva e do pecado original. FACES DA
HISTÓRIA. Assis-SP, v.3, nº1, jan-jun., 2016, p. 128-142.
SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In: Ciro Flamarion Cardoso; Ronaldo
Vainfas (Orgs). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio
de Janeiro: Elsevier Editora Ltda., 2011, p. 263-283.
SCOTT, Joan. História das mulheres. In: A escrita da História. Novas
perspectivas. Peter Burke (Org.). São Paulo: Editora Unesp, 1992, p. 63-95.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista
Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, p. 71-99.
WEMPLE, Suzanne Fonay. As mulheres do século V ao século X. In: DUBY,
Georges e PERROT, Michelle (Org). História das mulheres. A Idade Média.
Vol. 2. Porto: Afrontamento, 1992, p. 238-244.

74
A IDADE MÉDIA E O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL À LUZ
DA HISTÓRIA PÚBLICA: O SITE THE PUBLIC MEDIEVALIST
George Araújo

Introdução
Nas últimas décadas têm havido um recrudescimento das discussões sobre
a História Pública em todo o mundo. Polêmico campo de trabalho, os 75
debates envolvendo a História Pública chegaram ao Brasil um tanto quanto
tardiamente, embora tenham rapidamente adquirido grande importância.
Com a difusão cada vez maior da História Pública, nenhum período histórico
ficou imune às pressões advindas tanto daqueles que se dedicam à
produção de História Pública quanto daqueles que consistiriam seu público-
alvo potencial.

Se todos os períodos históricos foram afetados pela ascensão da Histórica


Pública, cabe perguntar-se sobre qual foi o impacto exercido pela História
Pública no fazer historiográfico referente à Idade Média, período sob o qual
pesa um longo histórico de simplificações e noções equivocadas. Assim, o
presente trabalho tem por objetivo refletir sobre o possível papel da História
Pública na construção de uma outra Idade Média, mais próxima do grande
público e menos afeita a distorções. Para tanto, verificaremos como a Idade
Média e o Ensino de História Medieval são abordados no site The Public
Medievalist, um dos baluartes da História Pública dedicado ao Medievo.

História pública: origens, difusão, campos correlatos, públicos,


locais e meios de prática
Antes de entrarmos propriamente no tema, cumpre conceituarmos
brevemente a noção de História Pública, bem como abordarmos de maneira
sucinta suas origens, difusão, campos correlatos, públicos, locais e meios de
prática.

Geralmente, emprega-se o termo para designar uma ampla gama de


atividades, as quais são levadas a cabo por pessoas com algum tipo de
conhecimento, “treinamento” ou know-how da história-disciplina e/ou do
fazer historiográfico, e que geralmente trabalham ou atuam fora dos
ambientes acadêmicos especializados.

Embora a definição do que seja história pública seja algo genérica, alguns
elementos-chave costumam estar presentes tanto em seu discurso quanto
em sua prática, ainda que nominalmente. São eles: o uso de métodos da
história-disciplina; a ênfase na utilidade do conhecimento histórico para
além dos propósitos acadêmicos ou antiquários; a ênfase no treinamento e
prática profissionais; o objetivo de “aprofundar” a conexão do público com o
passado.

A prática da história pública tem forte presença em áreas muito diversas.


Dentre as principais destacam-se: conservação histórica; gestão
patrimonial; arquivística; história oral; história digital / online e curadoria
em museus etc. Como afirma Jill Liddington, cabe pontuar alguns aspectos
no que se refere à prática da História Pública.

“Assim, para manter clara em nossas mentes essa distinção


acadêmico/profissional, podemos considerar a prática da história pública
como sendo a apresentação popular do passado para um leque de
76
audiências – por meio de museus e patrimônios históricos, filme e ficção
histórica. […] [O] estudo de história pública está ligado a como adquirimos
nosso senso de passado – por meio da memória e da paisagem, dos
arquivos e da arqueologia (e por consequência, é claro, do modo como
esses passados são apresentados publicamente)” [Liddington, 2011, p.33-
34]

Há também grande variedade entre os locais e meios mais comuns para a


prática da história pública. Dentre eles encontram-se: museus; sítios de
reconhecido “interesse histórico”; documentários; filmes, séries e afins;
vídeos curtos didático-explicativos; jogos eletrônicos e podcasts etc.

A história pública enquanto prática – atividade de amadores, criação de


espaços de preservação de objetos e locais de memória, criação de museus
etc. – precede em muitos anos a disciplina acadêmica ou a
profissionalização do campo que aparece em fins do século XX, na década
de 1970.

A história pública “institucional” surgiu nos EUA nos anos 1970 na


Universidade da Califórnia estava relacionava a três fatores principais: o
desejo de se atingir maior público; o crescimento do “desejo de memória” e
a alocação de historiadores recém-formados para trabalharem em locais
além das universidades e das escolas. À época foi criado o periódico The
Public Historian (O Historiador Público) e um órgão específico para
coordenar e sistematizar as atividades e a produção, o National Council on
Public History (Conselho Nacional de História Pública). Sendo financiada por
capital privado e envolvendo diversas instituições oficiais do governo dos
EUA, essa história pública foi bastante criticada por alguns historiadores por
se prestar à mistificação museológica do passado e construir narrativas que
terminavam sendo laudatórias ao status quo. O investimento estatal em
história pública não chegou a alterar substancialmente esse quadro, embora
tenha estimulado histórias locais e o surgimento de outras associações
abordou questões referentes à luta de pessoas comuns.

Após ter experimentado sucesso inicial majoritariamente em países


anglófonos, a história pública expandiu-se durante os anos 2000 para várias
partes do mundo. Facilitada pelas novas tecnologias de comunicação, essa
difusão permitiu a conexão global de historiadores que trabalham em
instituições de pesquisa, centros culturais e na “mídia”.

No começo da década de 2010 foi criada a Federação Internacional de


História Pública (IFHP-FIHP), uma organização internacional que visa a
constituição de laços entre historiadores públicos de todo o mundo e
também a formação de novos programas universitários e associações
nacionais de história pública.

Se há sempre uma relação rica de significados entre os historiadores e seus


públicos, há peculiaridades no que diz respeito à História Pública, uma vez
que em seu interior subjaz uma permanente tensão entre os polos “história”
e “público. Essa tensão pode ser resumida em uma gama de indagações: 77

– Em que medida os públicos expostos aos diferentes discursos dos


historiadores públicos reagem criticamente e participam/ressignificam esses
discursos ou apenas os “consomem”, aprovando-os ou negando-os?;
– Qual é o “interesse público” de uma “história privada” (encomendada por
alguma empresa, família ou indivíduo)?;
– Quem seriam os historiadores mais públicos: os financiados publicamente,
os acadêmicos comprometidos com essa difusão ou os “praticantes
comuns”?

“De todo modo, em um momento no qual o diálogo entre teoria da história,


história pública e ensino da história vêm ocupando lugar central nos
debates contemporâneos, seja em função de uma agenda renovada de
investigação, seja ainda por conquistas institucionais como a rede nacional
de Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória), o fato é que o
pensamento daqueles ocupados em produzir conhecimento deve
necessariamente estar atento ao público para quem esse conhecimento é
oferecido. E as consequências disso não residem apenas no âmbito
disciplinar da historiografia, pois incidem também na própria dimensão
política que o conhecimento assume na sociedade” [Nicolazzi, 2019, p.
217].

Por outro lado, é certo que no Brasil a discussão sobre a História Pública
tem sido muito pautada pelo debate em torno da autoridade para falar
sobre história, a qual é reivindicada pelos historiadores acadêmicos como
seu “monopólio”.

“A questão da autoridade remete, primeiramente, no interior do debate


sobre História Pública, ao conceito já quase canônico de ‘shared autorithy’
de Michael Frisch, ao trabalhar na perspectiva da História Oral, a uma ideia
de autoridades de interlocução que sabem a seus modos sobre algo. O item
‘autoridade’ está encarnado no debate sobre História Pública e sua
importância advém de certa recusa da parte de historiadores em aceitar que
a autoridade que uma formação científica concede não possa com alguma
igualdade de condições discutir com outros que não tenham a formação que
não conta com a sanção científica. Egresso da História Oral, Frisch elabora o
conceito de ‘shared autorithy’ (autoridade compartilhada) pensando nesta
possibilidade de diálogo entre quem sabe história a seu modo – sejam
historiadores formados ou qualquer Cidadão. […] Já de dentro do debate
sobre a História Pública, e da formação que nossos cursos de História
oferecem, Jurandir Malerba […] refere-se ao que identifica como
profissionais que, de dentro do ambiente digital para um público que tem na
web o lugar em que procura – e encontra – história, conferem àqueles
profissionais, não importa se especialistas ou não, o papel de emissores da
história de que os públicos precisam, ou desejam – muitas vezes públicos
de colegiais, os quais historiadores percebem que precisam conquistar.
Malerba afirma que […] os não-profissionais estão ‘ganhando esta disputa’
pela autoridade de responder sobre o que é o passado, que poderia ser dos
historiadores também” [Fagundes, 2017, p.3021-3022].
78
De qualquer maneira, é possível apontar alguns elementos importantes
para uma “boa prática” de história pública. Tais elementos,
necessariamente, incluem: considerações sobre a audiência e seu acesso ao
trabalho produzido; colaboração entre os pares; esforçar-se para que seus
trabalhos sejam apropriados de maneira ativa e participativa; não se ater
ao apelo puramente comercial; manter altos padrões de rigor crítico; assim
como conhecer a administração pública para potencializar possíveis meios
de estimular a colaboração entre os historiadores e ampliar o acesso
popular ao trabalho produzido.

Uma “outra Idade Média” com a História Pública?


Recorte temporal-geográfico específico (a Europa e arredores entre os
séculos V-XV, aproximadamente), a Idade Média continua a ser um dos
períodos mais incompreendidos da História. É sabido que desde as
primeiras décadas do século XX tem havido um esforço por parte dos
historiadores medievalistas em desconstruir a arraigada noção da Idade
Média como um “tempo de trevas”, uma “noite de mil anos”, uma época no
qual apenas grassava o “obscurantismo” e a “ignorância” [Franco Júnior,
2011, p.11-18].

Tal esforço foi em grande medida bem-sucedido, o que levou a um novo


entendimento da Idade Média, bem como afetou de maneira positiva a
produção historiográfica sobre o período e o ensino de História Medieval.
Porém, em função de séries, romances históricos, filmes e mesmo
historiadores profissionais, ainda hoje persistem distorções e idealizações
do Medievo, o qual tem sido vítima de séculos de incompreensão histórica.

Contudo, interessa-nos aqui refletir especificamente não exatamente esse


ponto, mas de que maneiras a Idade Média e o Ensino de História Medieval
se viram afetados pela difusão da História Pública. Se uma das pretensões
daqueles que fazem História Pública é a de expandir o conhecimento
histórico para um público mais amplo, é inegável que as novas tecnologias
de comunicação possibilitaram que isso ocorresse de uma maneira antes
inimaginável. Para além das séries, dos documentários e dos filmes
disponíveis em plataformas de streaming, que dão vida a uma Idade Média
antes apenas “lida e imaginada” e que era bastante carente de imagens, há
atualmente uma grande quantidade de sites na internet que se dedicam à
disseminação de conteúdos de História Medieval.

Nesse sentido, um exemplo interessante que gostaríamos de abordar diz


respeito a um dos principais vetores, em língua inglesa, da História Pública
no tocante ao Medievo: o site The Public Medievalist
(https://www.publicmedievalist.com). Definindo-se como uma revista online
dirigida por estudiosos, aferra-se à ideia de uma Idade Média “relevante”
para as pessoas de hoje. De acordo com seu autor e principal colaborador,
o historiador medievalista Paul Sturtevant, o site tem um “objetivo
simples”:

“Apresentar, de maneira gratuita, histórias medievais atraentes,


emocionantes e significativas que mostrem o melhor da erudição 79
contemporânea de uma forma que seja acessível e agradável ao público”
[Sturtevant, 2014].

Desejando trazer o debate sobre a Idade Média para a “esfera pública,” The
Public Medievalist utiliza o sistema de revisão por pares e ressalta não ser
um blog, mas uma publicação “séria”. Embora deixe explícito que não adota
nenhuma posição político-partidária, posiciona-se de forma veementemente
contrária à propagação de discursos de ódio, discriminatórios, sexistas ou
racistas.

É interessante notar como The Public Medievalist utiliza uma linguagem


mais coloquial nos textos que publica, bem como dedica um espaço
considerável para seções como videogames e cultura pop, cinema e TV. É a
partir dessas referências que os editores do site procuram ensinar sobre a
Idade Média: seus textos estão repletos de analogias e menções a assuntos
do quotidiano, contando com relativamente poucas “citações acadêmicas”.

É difícil estabelecer com precisão o alcance de The Public Medievalist e seu


impacto no ensino de História Medieval. Porém, é inegável que iniciativas
como o site em questão tem despertado o interesse de um público cada vez
maior e inclusive atraído historiadores acadêmicos para o campo da História
Pública, seduzidos pelo que classificam ser uma “liberdade maior” para
escrever e ensinar.

Considerações finais
Com este pequeno texto buscamos ilustrar de maneira breve com o
exemplo prático do site The Public Medievalist como a Idade Média e o
Ensino de História Medieval têm sido e podem ser transformados pelas
novas tecnologias disponíveis, assim como pela difusão da História Pública.

Contudo, sintomaticamente, a História da Idade Média continua a ser uma


das disciplinas vistas como “menos importantes” nos cursos de História do
Brasil, com várias universidades relegando-a a uma posição secundária e
desprestigiada, como se o que aconteceu na Europa e adjacências entre os
séculos V-XV não tivesse nenhuma implicação para o mundo atual ou para o
Brasil de inícios do século XXI. Mas se a História Medieval continua a figurar
como uma das disciplinas menos populares no Brasil, talvez o problema que
não esteja na História Medieval em si, mas na postura do professor ao
ensiná-la.

“A disciplina de História Medieval é, acima de tudo, História: este é o seu


lugar; se ela é interessante ou não, se tem alguma utilidade ou não, isto é
um outro problema, provavelmente alinhado com a perspectiva que o
professor olha para a própria História: um professor que se sente mais
medievalista que historiador, provavelmente vai desconectar seu ensino
especializado do todo que é a formação escolar do estudante universitário
que passa pela disciplina de História Medieval porque é etapa obrigatória da
carreira, não porque gosta. Ao contrário, um professor que se sente mais
historiador que medievalista pode, talvez, vir a instigar os estudantes a
80
perceber as conexões entre as muitas instituições, valores, culturas e
narrativas que possuem um passado distante, mas que continuaram a se
desenvolver ao longo de séculos, a ponto de estarem imbricadas, por
negação ou assimilação, à história de hoje” [MIATELLO, 2017, p. 80].

Da mesma forma, a Idade Média e o Ensino de História Medieval sob o viés


daqueles identificados com a História Pública não necessariamente
apresentam temas novos ou que apresentarão um novo apelo que
supostamente atrairia o grande público para o estudo do Medievo. Na
verdade, os principais temas que recebem destaque em The Public
Medievalist, o site que decidimos abordar neste texto, são justamente
aqueles enfatizados pela historiografia acadêmica nos últimos anos:
questões relativas à etnicidade, identidade e gênero.

Afinal, se “toda história é contemporânea” e “[…] um ato de compreensão


induzido pelas exigências da vida prática” [CROCE, 2006, p. 26]; também a
História Pública está sujeita a essa máxima.

Referências
Dr. George Araújo é Professor Colaborador no Departamento de História da
UDESC, lecionando as disciplinas de História Medieval, História Moderna e
História Contemporânea.

CROCE, Benedetto. História como história da liberdade. Rio de Janeiro:


Topbooks, 2006.
FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra. O que é, como e por que história pública?
Algumas considerações sobre indefinições. In: Anais Eletrônicos do VIII
Congresso Internacional de História, XXII Semana de História. Maringá,
2017, p. 3018-3026.
FRANCO JR., Hilário [1986]. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São
Paulo: Brasiliense, 2011.
LIDDINGTON, Jill. O que é história pública?: os públicos e seus passados.
In: DE ALMEIDA, J. R.; ROVAI, M. G. de Oliveira (orgs.). Introdução à
História Pública. Rio de Janeiro: Letra e Voz, 2011.
MIATELLO, André Luis Pereira. A História Medieval na graduação em
História: da pesquisa à docência. Revista Chilena de Estudios Medievales, n.
11, p. 68-90, 2017.
NICOLAZZI, Fernando. Os historiadores e seus públicos: regimes
historiográficos, recepção da história e história pública. Revista História
Hoje, v. 8, n. 15, p. 203-222, 2019.
STURTEVANT, Paul. FAQ., 2014. Disponível em
https://www.publicmedievalist.com/wtfaq/.
ESTUDAR A PESTE NEGRA EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS:
RELAÇÕES ENTRE A IDADE MÉDIA E O TEMPO PRESENTE NO
ENSINO DE HISTÓRIA
Geraldo Neto

Introdução
O ano de 2020 está sendo marcado pelo avanço da pandemia do Covid-19, 81
conhecido popularmente como coronavírus. Surgida na China no final de
2019 essa doença se expandiu e vem infectando milhares de pessoas em
todos os continentes, provocando muitas vítimas, especialmente idosos. No
Brasil, a doença chegou nos primeiros meses de 2020, gerando medo na
população e ações das autoridades como a decretação de quarentena,
suspensão das aulas nas escolas e proibição do funcionamento de comércios
para evitar a aglomeração de pessoas.

Nesse contexto de desafios, qual o papel do ensino de História? Entendemos


que, a partir das nossas inquietações do presente, buscar no passado pistas
de como as sociedades humanas lidaram com desafios como este com o
qual estamos passando, contribuindo para estimular a relação passado e
presente e construir uma História que traga significado aos alunos.

Hilário Franco Júnior identifica o período conhecido como Idade Média como
uma matriz da civilização ocidental cristã. Concordamos com o autor,
quando diz que “Diante da crise atual da civilização, cresce a necessidade
de se voltar às origens, de refazer o caminho, de identificar os problemas.
Enfim, conhecer a Idade Média para conhecer melhor os séculos XX-XXI.”
[Franco Júnior, 2006, p.155]. A crise atual provocada pela pandemia do
coronavírus é uma razão bastante significativa para voltarmos nossos olhos
para a Idade Média para conhecer os nossos próprios desafios.

Assim, voltamos nossa atenção para uma epidemia que marcou as


sociedades da Idade Média na Europa: a peste negra. Nosso objetivo neste
trabalho é investigar algumas questões: como a doença se propagava e os
seus impactos na sociedade europeia ocidental; quem as sociedades
elegeram como “culpados” pela doença; quais as possibilidades de
abordagem da peste negra no ensino de História. Conforme Fleck e Anzai,
“a aplicação da perspectiva histórica para o estudo das doenças pode
auxiliar na compreensão das estruturas de poder e dos comportamentos
humanos de uma determinada época, possibilitando a análise das ações dos
diferentes grupos sociais.” [Fleck; Anzai, 2013, p.2].

Estas questões serão articuladas com a pandemia atual do coronavírus e as


possibilidades de se abordar o tema das doenças, no caso da peste negra,
no ensino de História.

A peste negra na Idade Média


Assim como o coronavírus de hoje, a doença conhecida como peste negra
surgiu na Ásia. Segundo Georges Duby, a peste negra veio da Ásia pela
Rota da Seda. Ela era transmitida essencialmente pelos parasitas,
principalmente as pulgas e os ratos. Era uma doença exótica, contra a qual
os organismos dos europeus não tinham defesas. [Duby, 1999, p.81].

Marcelo Cândido da Silva aponta que a doença era o resultado de uma


infecção causada pelo bacilo Yersinia pestis, que se apresenta de três
formas: a pulmonar, a bubônica e a septicêmica. A peste bubônica foi a
82
mais difundida na Europa Medieval. Segundo o autor:

“Ela se transmite de maneira indireta, por meio da picada de pulgas que


vivem em ratos domésticos. Essa picada inocula o bacilo no organismo
humano, atingindo o sangue e provocando a necrose de células em todo o
corpo, onde se forma uma superfície gangrenada e, por ação de defesa do
sistema imunológico, um inchaço dos gânglios, os quais podem atingir o
tamanho de um ovo.” [Silva, 2019, p.124].

A peste trouxe consequências graves para a Europa. Em termos


demográficos, a população europeia sofreu com muitas mortes a cada
incidência de novos surtos. Silva afirma que a Inglaterra, por exemplo,
perdeu 25% de sua população em 1348; 22,7% em 1360; 13,1% em 1369;
e 12,5% em 1375. Entre os séculos XIV e XV, a Normandia Oriental, a
região parisiense, Provença e Navarra perderam cerca de 70% de sua
população [Silva, 2019, p.126-127]. Já Duby aponta que entre junho e
setembro de 1348, cerca de um terço da população europeia sucumbiu.
[Duby, 1999, p.84]. Franco Júnior afirma que a peste negra “foi a maior
catástrofe populacional da história ocidental: num intervalo de tempo bem
menor, matou, em termos absolutos, mais do que a Primeira Grande Guerra
Mundial.” [Franco Júnior, 2006, p.31].

A situação chegou a tal gravidade que, segundo Duby, não se sabia mais
onde enterrar os mortos e nem havia mais madeira para fazer os caixões.
[Duby, 1999, p.85]. Le Goff e Truong apontam que os cortejos e as
cerimônias tradicionais de luto tiveram de ser proibidos em numerosas
cidades. Os mortos eram empilhados diante das portas das casas, o
enterro, se fosse possível, era sumário, e o ritual reduzido ao mínimo. [Le
Goff; Truong, 2014, p.106].

Daniela Buono Calainho insere a epidemia da peste no contexto da chamada


crise do século XIV na Europa. Dentre as consequências dessa crise está o
abalo das estruturas da nobreza feudal, que tiveram suas fortunas
arruinadas e perdas de terras, a migração dos servos para as cidades, o que
gerou grande tensão social. [Calainho, 2014, p.122-123].

Outra consequência da peste se deu no campo psicológico e cultural.


Calainho afirma que “um misticismo e uma angústia coletiva se apoderaram
desta sociedade, agora assolada pela peste, pela fome, pelas guerras, pela
carestia. O castigo divino estava manifesto, castigo impingido aos homens
por conta de todos os seus pecados.” [Calainho, 2014, p.124]. Georges
Duby observa que “no campo cultural que as repercussões do choque são
mais visíveis. O macabro instala-se na literatura e na arte. Propagam-se
imagens trágicas, o tema do esqueleto, da dança macabra. A morte está em
toda parte.” [Duby, 1999, p.86-87].

Jean Delumeau chama a atenção para a questão dos medos da sociedade


do ocidente, sendo a peste como um dos medos que atravessou séculos na
Europa ocidental. A peste provocou representações mentais que a
associavam a uma praga comparável às que atingiram o Egito no velho 83
testamento bíblico. É ao mesmo tempo identificada como uma “nuvem
devoradora que chega do estrangeiro e se desloca de país em país, da costa
para o interior, de uma extremidade à outra de uma cidade, semeando a
morte à passagem”, além de ser ainda descrita como “um dos cavaleiros do
Apocalipse, como um novo ‘dilúvio’”, e como “um incêndio frequentemente
anunciado no céu pelo rastro de fogo de um cometa.” [Delumeau, 2009,
p.161]. Delumeau acrescenta ainda que as crônicas da época que
descrevem as pestes “constituem como que um museu do horrível”. [2009,
p.168].

Assim como na pandemia do Covid-19 da atualidade, em que os cientistas e


governos pregam o isolamento social como forma de combater a
propagação do vírus, fechando as fronteiras, por exemplo, na Idade Média
as autoridades também tomavam medidas de proteção contra a peste
negra. A mais comum eram “fechar-se atrás dos muros e proibir a entrada
dos estrangeiros.” [Duby, 1999, p.90]. Duby observa que os médicos da
época tinham uma ideia dos mecanismos de contaminação, pois sabiam que
o ar viciado propagava os miasmas, recomendando queimar ervas
aromáticas nas ruas. Contudo, não sabiam que era necessário defender-se
contra as pulgas. Com isso, as categorias sociais mais poupadas foram as
que viviam em melhores condições de higiene, isto é, os ricos. [Duby, 1999,
p.85-86].

Por outro lado, Hilário Franco Júnior diz que a peste era “democrática e
igualitária”, atingindo indiferentemente a todos: “Ricos e pobres,
organismos bem e mal alimentados, eram igualmente suscetíveis à peste.”
Alguns grupos eram mais expostos devido a razões profissionais, como
coveiros, médicos e padres. A única possibilidade de salvação era manter-se
afastado dos locais tocados pela peste. [Franco Júnior, 2006, p.30].

Os “culpados” pela peste negra: os judeus


Na atual pandemia do COVID-19 ocorreram em vários países, inclusive no
Brasil, ações de xenofobia contra os asiáticos. Vários asiáticos foram alvos
de posts negativos nas redes sociais sendo considerados culpados por
estarem trazendo o vírus para o Brasil. Membros e apoiadores do governo
de Jair Bolsonaro, como o ministro da Educação Abraham Weintraub, e o
deputado federal Eduardo Bolsonaro postaram no twitter mensagens que
sugerem a ideia da disseminação do coronavírus pela China como um
suposto plano comunista de dominação econômica mundial.

Na época da epidemia da peste negra na Europa medieval dos séculos XVI e


XV vários foram considerados “bodes expiatórios”, culpados pela
disseminação da doença: os judeus, os leprosos, os estrangeiros, os
feiticeiros, etc. Vamos aqui nos referir ao caso dos judeus. Numa sociedade
profundamente marcada pela mentalidade religiosa a partir do poder da
Igreja Católica, aqueles que não seguiam os dogmas do cristianismo eram
considerados “marginais” e “bodes expiatórios” para os problemas que
ocorrem no mundo terreno, resultados do castigo divino contra esses
sujeitos que se negam a reconhecer a Cristo. Segundo Hanna Zaremska, os
84
judeus formavam uma categoria à parte, nem heréticos, nem ímpios. Os
escritos antijudaicos desde a Alta Idade Média consideravam a dispersão
dos judeus como um castigo divino. Deus fizera assim para pagarem a
crucificação de Cristo. [Zaremska, 2006, p.125-126].

Antes mesmo da disseminação da peste negra, a Igreja medieval já


praticava uma política de segregação dos judeus. Em 1215, o IV Concílio de
Latrão decidiu que em terras cristãs os judeus deveriam se distinguir dos
fiéis por suas roupas a fim de evitar qualquer relação sexual entre os
adeptos das duas religiões. Aos judeus foram atribuídas uma série de
representações negativas relacionadas à sua suposta impureza: eram
portadores de “doenças judaicas”; sofriam de hemorroidas e sangramentos;
exalavam mau cheiro. Esse aspecto de impureza associada aos judeus
guiou algumas outras leis que refletiam o medo da sociedade cristã
medieval em relação a eles, como as que interditavam os judeus e os
cristãos de sentarem-se em torno de uma mesa; frequentar os mesmos
banhos e os mesmos albergues; ou contratar amas-de-leite judias para
amamentar as crianças cristãs. [Zaremska, 2006, p.128-129].

Kellen Jacobsen Follador observa que a crença na culpabilidade dos judeus


foi agravada a partir do ano mil, quando da disseminação de mitos
antijudaicos cujos enredos reforçavam a visão negativa que parte dos
cristãos possuía dos judeus. Acreditava-se que os judeus buscavam
prejudicar os cristãos e atingir os ícones de santidade do cristianismo. Os
mitos antijudaicos eram diversificados e relatavam assassinatos rituais,
profanação de hóstias, profanação de objetos sagrados e um complô –
formado por minorias sociorreligiosas que os cristãos apontavam como
pecadores – que objetivava destruir os cristãos. [Follador, 2016, p.34].

Assim, Delumeau aponta que a peste negra eclodiu “em uma atmosfera já
carregada de antissemitismo”. [Delumeau, 2009, p.205]. Os judeus logo
são considerados culpados pela disseminação da doença e das tragédias
decorrentes dela. Maria Guadalupe Pedrero-Sánchez, em livro que traz
vários documentos sobre a história da Idade Média, apresenta um em que
se comenta um boato muito difundido: o de que a peste negra era resultado
de ações dos judeus que haviam envenenado os poços. Isso gerou grande
perseguições aos judeus, com queima de suas casas e massacres:

“Corria o boato de que certos criminosos, particularmente os judeus,


jogavam venenos nos rios e nas fontes, o que fazia aumentar tanto a peste
acima mencionada. É a razão pela qual tanto cristãos como judeus
inocentes e pessoas irrepreensíveis foram queimadas e assassinadas e
outras vezes maltratadas em suas pessoas, mesmo que tudo isso
procedesse da constelação ou da vingança divina.” [Pedrero-Sánchez, 2000,
p.195].

A peste negra no ensino de História: possibilidades de abordagens


Diante do que foi visto até aqui, cabe perguntar: como podemos abordar o
caso da peste negra na Idade Média no ensino de História? Como
mencionamos anteriormente, podemos fazer uma relação com a atual 85
pandemia do Covid-19, algo nunca vivenciado por nossa geração. Conforme
diz Duby, “para que escrever a história, se não for para ajudar seus
contemporâneos a ter confiança em seu futuro e a abordar com mais
recursos as dificuldades que eles encontram cotidianamente?” [Duby, 1999,
p.9]. Num momento de tanta angústia, de tantas incertezas, podemos nos
voltar para o passado para investigar como as sociedades de outros tempos
enfrentaram questões semelhantes, para nos auxiliar a enfrentar melhor os
nossos medos.

Cabe aqui tomarmos um cuidado: quando fizermos uma associação entre o


coronavírus e a peste negra não devemos contribuir para reforçar um
estereótipo negativo da Idade Média como uma “Idade das trevas”, imagem
criada pelos renascentistas do século XVI e reforçada depois pelos
iluministas [Franco Júnior, 2006, p.11]; imagem esta da Idade Média que
ainda está presente no ensino de História Medieval, conforme Nilton Mullet
Pereira [Pereira, 2012, p.234], e nos livros didáticos de História da
atualidade, conforme Pereira e Giacomoni. [Pereira; Giacomoni, 2008].
Devemos buscar alternativas, como uma abordagem da Idade Média nas
aulas de História por meio do cotidiano, um tema que torna acessível para
os alunos a relação entre o passado e o presente. [Menezes Neto, 2015].
Um debate, por exemplo, sobre os medos do passado e do presente, a
partir das perspectivas apontadas por Duby e Delumeau. [Duby, 1999;
Delumeau, 2009].

Uma possibilidade bastante enriquecedora seria um trabalho de análise de


imagens produzidas tendo como temática a peste negra. Segundo José
Rivair Macedo, “trabalhar hoje com as imagens produzidas na Idade Média
significa entrar em contato com um importante código de comunicação
visual.” [Macedo, 2012, p.120-121]. Os professores do ensino fundamental
já têm recorrido ao uso de imagens nas aulas sobre História Medieval,
conforme demonstra o estudo de Menezes Neto e Maia sobre as práticas
dos professores de História em Belém. [Menezes Neto; Maia, 2017].

As imagens abaixo são alguns exemplos de recursos que os professores


podem utilizar como ponto de partida para discutir a peste negra:
86

Imagem 1: Le Christ lançant les fleches de la peste, 1424


[Duby, 1999, p.78].

A imagem acima é uma pintura em madeira, de autoria anônima, produzida


em 1424. Conforme Duby, “os pintores representavam os surtos da peste
por uma chuva de flechas mortíferas”. Nessa pintura, “Cristo envia do alto
céu as flechas da peste que atingem precisamente os corpos nos locais
onde aparecem os bubões.” [Duby, 1999, p.78]. A imagem reforça a ideia
de que a peste negra era um castigo divino, pelo fato da sociedade, em
particular os judeus, não aceitarem Cristo como o salvador. Segundo
Delumeau, essa imagem de um Deus encolerizado que atira flechas nos
homens vem da Antiguidade, em uma passagem do livro da Ilíada, mas que
“foi a cultura eclesiástica que retomou e popularizou essa comparação.”
[Delumeau, 2009, p.163].

Imagem 2: Le triomphe de la mort, 1431 ou 1450


[Duby, 1999, p.87].

A segunda imagem é de autoria de Giovanni di Paolo, produzida entre 1431


ou 1450, que representa a peste como um “monstro hediondo lançando
flechas”. [Duby, 1999, p.87]. A imagem reforça a ideia de terror que a
peste negra provocou no imaginário coletivo da Idade Média, associada a
um monstro terrível.

87

Imagem 3: A dança macabra, 1486


[Franco Júnior, 2006, p.30].

Esta imagem é uma xilogravura italiana de 1486, que apresenta um bispo e


um homem rico acompanhados da morte, representada por esqueletos
humanos. Segundo Franco Júnior, a morte “tornou-se um tema recorrente
na arte e na literatura, representada como uma força impessoal, com
iniciativa própria, que atinge a todos, poderosos e humildes, clérigos e
leigos, jovens e velhos, virtuosos e pecadores.” [Franco Júnior, 2006, p.30].

Imagem 4: Os judeus como assassinos de Jesus Cristo


[Costa, 2008]
A imagem acima, embora não cite diretamente a peste negra, é importante
recurso didático que o professor pode utilizar porque demonstra a
construção da imagem dos judeus como os assassinos de Jesus Cristo.
Segundo Ricardo da Costa, na imagem, “Cristo, sentado em majestade, é
escarnecido pela turba de judeus.” O iluminista cria uma caracterização
animalesca para os judeus: “um, na frente, à esquerda, Lhe dá a língua (e o
88
toca em Sua região genital), outro (à direita) manda-O calar a boca (gesto
simbolizado pelo dedo indicador da mão esquerda em seus lábios) e tem
feições visivelmente simiescas.” [Costa, 2008[. Segundo Zaremska, a partir
do século XIII a iconografia medieval atribuiu aos judeus “traços distintivos
exprimindo selvageria, como o nariz adunco ou a barba. Tais características
acrescentam-se aos atributos mais evidentes, como a rodela ou o chapéu
pontudo.” [Zaremska, 2006, p.132[.

A partir dessas imagens e da relação com o presente, o professor de


História pode trabalhar com os alunos a partir das seguintes questões
norteadoras: quais as visões da sociedade medieval sobre a peste negra?
Qual a influência da religião cristã na interpretação sobre a difusão da
epidemia? Como a arte visual expressa os impactos psicológicos da peste
negra na sociedade? Quais os fatores que levaram os judeus a serem
considerados culpados pela tragédia da peste negra? Quais as semelhanças
e diferenças que são possíveis de perceber entre a peste negra na Idade
Média e a pandemia do Covid-19 na atualidade?

Essas são algumas possibilidades de abordagens da peste negra no ensino


de História, buscando fazer uma relação com o presente, com a atual
pandemia do coronavírus. Entendemos que a História também tem muito a
contribuir fornecendo elementos que possam auxiliar nos debates para
compreender melhor o contexto histórico do século XXI, dialogando com os
desafios que os homens medievais enfrentaram em seu período. Em um
contexto com a rápida divulgação de muitas fake news e de negacionismo
científico sobre as doenças e as formas de combatê-las, que tem como
objetivos interesses políticos, o professor de História da educação básica
também deve participar das discussões, auxiliando os alunos a ter uma
posição crítica sobre o volume de informações que recebem. O estudo da
Idade Média pode ser um caminho para isso.

Referências
Geraldo Magella de Menezes Neto é Professor de História da Secretaria
Municipal de Educação de Belém (SEMEC) e Professor de História e Estudos
Amazônicos da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC).
Atualmente é doutorando em História Social da Amazônia pela Universidade
Federal do Pará (UFPA).

CALAINHO, Daniela Buono. História medieval do Ocidente. Petrópolis-RJ:


Vozes, 2014.
COSTA, Ricardo da. Então os cruzados começaram a profanar em nome do
pendurado. Maio sangrento: os pogroms perpetrados em 1096 pelo conde
Emich II von Leiningen (†c. 1138) contra os judeus renanos, segundo as
Crônicas Hebraicas e cristãs. 2008. Disponível em:
https://www.ricardocosta.com/artigo/entao-os-cruzados-comecaram-
profanar-em-nome-do-pendurado-maio-sangrento-os-pogroms Acesso em:
18 abr. 2020.
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300-1800. Uma cidade
sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. (Companhia de Bolso) 89
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Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.
FOLLADOR, Kellen Jacobsen. A relação entre a peste negra e os judeus.
Revista Vértices, Departamento de Letras Orientais da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, n. 20,
p.25-46, 2016.
FLECK, Eliane Cristina Deckmann; ANZAI, Leny Caselli. Apresentação do
dossiê “História da saúde e das doenças: protagonistas e instituições”.
Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol. 6, n. 2, p.1-6, jul.-dez. 2013.
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KARNAL, Leandro. (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e
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Mosqueiro (Pará -Brasil). Revista de História da UEG - Anápolis, v.4, n.2,
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ZAREMSKA, Hanna. Marginais. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-
Claude. (orgs.). Dicionário temático do ocidente medieval. vol. II. Bauru-
SP: Edusc, 2006.
A NARRATIVA EM WALTER BENJAMIN E AS TRANSFORMAÇÕES
DA IDENTIDADE CRISTÃ NA PRIMEIRA IDADE MÉDIA
ATRAVÉS DOS SERMÕES SOBRE A QUEDA DE ROMA
Geraldo Rosolen Junior

Esta pesquisa teve por intencionalidade discutir a compreensão de Walter


90 Benjamin acerca das construções das narrativas, tendo como plano de
fundo a discussão dos sermões sobre a queda de Roma por Agostinho de
Hipona para compreender a edificação de novos discursos e transformações
da identidade cristã na Primeira Idade Média sob as migrações dos povos
germânicos no século V.

A narrativa em Walter Benjamin


Para Walter Benjamin, a narrativa é: “a faculdade de intercambiar
experiências” [Benjamin, 1987, p.198] para ele, a narrativa compõe parte
do processo cognoscitivo e intelectual humano de reproduzir o momento
vivido e desenvolver memórias relacionadas às experiências do cotidiano de
um indivíduo que está inserido na mesma temporalidade em que escreve.

Esta perspectiva parece ir de encontro àquilo que Hannah Arendt [2016]


aborda como sendo o conceito de História na Antiguidade Clássica, ao qual,
desenvolve em nota de rodapé uma importante discussão sobre a gênese
da palavra, nomenclatura esta que ela propõe ser uma herança de Cícero:

“o vocábulo istoría deriva de id-, ver, e ístor significa originalmente


“testemunha ocular”, e posteriormente aquele que examina testemunhas e
obtém a verdade através da indagação. Portanto, istoreín possui um duplo
significado: testemunhar e indagar” [Arendt, 2016, p.69].

Esta dualidade da morfologia do termo ‘História’ tem suas relações


inteiramente ligadas à percepção temporal da Antiguidade Clássica, pois, os
verbos “testemunhar” e “indagar” apresentam uma conotação que coloca os
historiadores do período clássico como agentes importantes para os relatos
de grandes feitos a posterioridade, pois o testemunho e a indagação de um
historiador poderiam consagrar e imortalizar pessoas e feitos, além de
atribuir a estes indivíduos uma significativa parcela de glória. Assim, o
historiador surge para conter os infindáveis avanços do tempo, a fragilidade
e a mortalidade da memória, enquanto processo cognoscitivo humano, e
dos feitos dos homens. Deste modo, a tarefa do historiador consistia em
não interferir e não expressar sua intencionalidade ao objeto que se destina
à narrativa, mas apenas relatar as ações dos homens sem uma predileção
dos antagonismos que se inserem nestas histórias, pois inseridos nessa
temporalidade eles entendiam que: “a transformação de eventos e
ocorrências singulares em História era, em essência, a mesma ‘imitação da
ação’ em palavras mais tarde empregada na tragédia grega” [Arendt, 2016,
p.74]. Logo, a escrita da história consistia em uma tentativa de consolidar
qualidades e eventos heróicos.
Poderíamos considerar, portanto, as influências da memória na escrita
narrativa. Benjamin, assim como para Arendt, acredita que as palavras e as
escritas têm como função tornarem-se patrimônio dos eventos ocorridos e
narrados pelo escritor, isto é, para ele a narrativa moderna segue os
exemplos e definições da Antiguidade e Idade Média, a qual deseja
preservar e imortalizar os eventos épicos, a fim de, legitimar ou
deslegitimar os personagens nela inseridas. 91

Quentin Skinner, ao discursar sobre as significações e os impactos da


linguagem, utiliza Paul Ricoeur para delinear que os textos produzidos
contêm uma gênese temporal e simbólica do qual o autor expressa seus
interesses e escolhas, contudo, Skinner evidencia que o processo de leitura
tendo-se estabelecido em outra temporalidade, expressa para si novas
indagações, que permitem as constantes reinterpretações associadas à
justificativa, de que, o tempo passado não permite refutar as constantes
expressões temporais do presente em que se insere as críticas literárias e
narrativas: “Aquilo que um texto tem para nos dizer interessa-nos hoje
muito mais do que aquilo que o autor pretendia dizer.” [Ricoeur apud
Skinner, 2002, p.130]. Com isso, a leitura e as representações, constituem
um processo dialético que se estrutura através da relação de três partes: o
escrito original do autor, as interpretações passadas e as constantes
reinterpretações presentes. Assim, o processo de entendimento e
interpretação é adaptativo, pois, está definido e limitado pelos objetivos do
tempo em que se insere [Skinner, 2002].

Embora Benjamin não caracterize a narrativa enquanto uma escrita


lendária, o paralelo com a percepção histórica de Hannah Arendt é
indissociável, contribuindo para o entendimento que a narrativa também
pode evidenciar traços históricos do momento vivido pelo narrador, pois,
para Benjamin a narrativa contempla a capacidade de expressar as
experiências vivências e coetâneas ao narrador legitimam-se a partir de
dois aspectos, o primeiro a partir de sujeitos detentores de experiências,
conhecimentos de tradições vivenciadas que extrapolam suas origens e
identificações e, a partir de tais compreensões e referências fariam um
julgamento de valor acerca de suas próprias visões de mundo, relendo as
tradições externas que vivência, ou seja, projeta um julgamento às
tradições e moralidade através de seus próprios valores, o segundo sujeito
narrador, teria sido para ele, aqueles que não tomando contato com outros
povos tendem a representar suas próprias tradições e valores, propiciando
as representações acerca de si mesmo e da sociedade em que se insere.
Benjamin busca representar ambos narradores através, de analogias a
camponeses e marinheiros, sem que a narrativa de um anule a de outro,
mas identificando que os impactos para o desenvolvimento da narrativa
estão diretamente ligados às relações com espaço-tempo de seus autores,
por vezes, se interligando aos diversos modos possíveis:

“A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes


esses dois grupos. ‘Quem viaja tem muito a contar’, diz o povo, e com isso
imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também
escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem
sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos
concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos,
podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro
pelo marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida
produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores”
[Benjamin, 1987, p.198-199].
92
Esta relação espaço-temporal, também assume na Antiguidade Tardia papel
fundamental, embora Patrick Geary [2005] evidencie que há um impulso
para expressões cristãs na narrativa histórica que repercutem em uma
constante representação dual entre bem e mal, sagrado e profano, bárbaro
e civilizado, retira o homem do centro da narrativa para impor as vontades
divinas, permitindo que a percepção do tempo na Antiguidade e Idade
Média fossem tidas como cíclica e imutável, isto é, uma história repetitiva
que consistia na reprodução e universalização de todos os eventos até
então narrados, “A história passava a ter um significado e um projeto, mas
perdia o seu caráter secular: a história transformou-se numa teodiceia”
[Carr apud Le Goff, 1990, p.41] pois, em geral as representações da vida
material estavam associadas a moralidade e a luz das leituras e
interpretações bíblicas, cuja narrativa encontra seu comparativo e a base
das legitimações do discurso histórico cristão em construção nesse período.

A narrativa cristã em Agostinho


Santo Agostinho corrobora a ideia de que haveria três arquétipos da
cristandade, dos quais, os homens deveriam se espelhar, sendo eles Noé,
Jó e Daniel: “em Noé estão representados os bons governantes que regem
e conduzem a igreja [...]; em Daniel estão representados todos os santos
que vivem a continência; e em Job, todos os que vivem bem o casamento”
[Agostinho, p.41], contudo, a figura de Daniel colocada em destaque como
símbolo da humildade é justificada por Agostinho em sua crença de que os
ensinamentos do evangelho de Daniel são importantes para compreender
os eventos presentes sob a luz dos ensinamentos bíblicos e, tranquilizar
aqueles que teriam sido afetados diretamente, a fim de não permitir que
duvidassem da justiça divina, pois em apologia, ele acreditava que esta ira
divina manifestava-se em âmbitos universais e não individuais, e que
também poderia colaborar para a remissão dos pecados através da
humildade e da provação da fé: “quem dera que apenas se admirassem e
não blasfemassem também, quando Deus repreende o gênero humano e o
censura com o flagelo do piedoso castigo, fazendo disciplina antes do juízo”
[Agostinho, p.41]. Tais preocupações na formulação destes sermões podem
construir indícios e evidências da vida cristã no século V e representar
através de traços da intelectualidade e da moralidade cristã a materialidade
da vida cotidiana e as apreensões e as inquietações da Igreja Católica deste
período, edificadas a partir da narrativa do bispo de Hipona.

Nesse sentido, é preciso considerar que a memória e a identidade tornam-


se elementos fundamentais às narrativas, pois evidenciam e comparam as
realidades vivenciadas através dos antagonismos identitários que destacam
as múltiplas expressões favoráveis ao sagrado e moderno em detrimento do
profano e arcaico, isto é, como a narrativa se constrói a partir de sujeitos
historicamente determinados através de experiências, tradições e da cultura
de um determinado povo e, a observação e o contato com o outro assimila
e transforma sua experiência de mundo. Contribuindo para evidenciar a
influência hegeliana do processo dialético na construção das identidades do
pensamento de Walter Benjamin.

Quanto à identidade, Friedrich Hegel afirmou que a convivência social está 93


configurada a partir das perspectivas do ‘outro’, pois a percepção própria do
indivíduo por si só nada tem a apresentar, seus valores e sua identidade
não podem ser expressas sem um fator antagônico ou concordante, ao qual
tende a afirmar ou negar as características identitárias do ‘outro’, caso
venha este correspondê-lo favoravelmente ou não, isto é: “O Eu é o
conteúdo da relação e a relação mesma; defronta um Outro e ao mesmo
tempo o ultrapassa; e este Outro, para ele, é apenas ele próprio” [Hegel,
1992, p.119-120]. Assim, a identidade de um indivíduo jamais depende
dele próprio, mas das relações e representações que esta partilha e
apresenta de seus valores com outros indivíduos. Neste último caso, uma
partilha efetiva de valoração pode vir a constituir a identidade de vários
indivíduos sob a relação que detém acerca de uma mesma
representatividade do objeto observado, colaborando na constituição de
uma sociedade que será regulada e transformada a partir dos contatos que
tiverem com outras sociedades. A estranheza, portanto, causa os desafetos
e a compreensão negativa da representação individual, colaborando para
que tais indivíduos estejam na constante busca por seus pares. Deste
modo, o ‘outro’ exerce a função primária na constituição das identidades,
pois como propõe Hegel o ‘outro’ no mais das vezes, é apenas o próprio
indivíduo, isto é, buscam-se sempre aquelas qualidades que a ele próprio
são perceptíveis, e esta busca pelo ‘outro’ recorre do intenso desejo de
encontrar a si próprio:

A percepção, ao contrário, toma como universal o que para ela é o essente.


Como a universalidade é seu princípio em geral, assim também são
universais seus momentos, que nela se distinguem imediatamente: o Eu é
um universal, e o objeto é um universal. [...] No emergir do princípio, ao
mesmo tempo vieram-a-ser os dois momentos que em sua aparição
[fenomenal] apenas ocorriam fora, a saber - um, o movimento do indicar;
outro, o mesmo movimento, mas como algo simples: o primeiro, o
perceber, o segundo o objeto. O objeto, conforme a essência, é o mesmo
que o movimento: este é o desdobramento e a diferenciação dos
momentos, enquanto o objeto é seu Ser-reunido-num-só. Para nós - ou em
si -, o universal como princípio é a essência da percepção, e frente a essa
abstração os dois momentos diferenciados - o percebente e o percebido -
são o inessencial [Hegel, 1992, p.83].

Assim, o sentido da percepção torna aquilo que é observável em essência


dos indivíduos analisados, contudo, a definição de uma categorização não é
imutável, pois como Hegel pontua acima, o universal que constitui-se a
partir dos discernimentos e das relações a que os indivíduos desenvolvem, é
apenas uma categorização fenomenal que constitui-se a partir das
experiências e, necessariamente está sujeita a novas ressignificações.
Ao referir-se a estas transformações identitárias deve-se considerar os
impulsos ordenados pelas variações da memória e tradição. Embora Pierre
Nora esteja na contramão dos eventos aqui propostos, por abordar as
sociedades de memória apenas para decretar seu fim sob a independência
dos países colonizados após o século XVIII, é possível propor uma discussão
94
a partir de seu entendimento daquilo que representa uma sociedade de
memória que, para ele constitui-se a partir da “conservação e a transmissão
de valores, igreja ou escola, família ou Estado” [Nora, 1993, p.8]. Logo, a
estruturação das sociedades anteriores a esse período, são para ele,
aquelas que buscavam a transmissão de suas tradições através de núcleos
ideológicos que representam os interesses das classes dominantes. A
tradição germanista refere-se a esta metodologia como Tradionskern, em
poucas palavras, isto denota o entendimento de que tais sociedades se
relacionam e interagiam a partir das expressividades das tradições
promulgadas por uma nobreza que compõe uma elite social. Contudo,
Walter Goffart [2002] acredita que esta metodologia pode acarretar
problemas de entendimento acerca das dinâmicas sociais na Primeira Idade
Média, pois coloca em debate que a memória é uma construção social que
não se mantém com a mesma perspectiva sobre um determinado evento
por longos períodos sem recorrer a métodos artificiais de preservação, e em
suas palavras, “A memória raramente é transmitida por mais de três
gerações, a menos que seja renovada por escritos ou santuários e rituais.”
[Goffart, 2002, p.22]. Deixando claro que a memória, embora, precise de
um referencial que a torne convincente, é também necessário atualizá-la
constantemente, pois, sua expressividade e alcance detêm pouca
amplitude. Baseando-se na mesma perspectiva de Goffart, Walter Benjamin
acredita que a narrativa através da memória assume uma materialidade da
tradição. Deste modo, a memória é um consenso ou tentativa de tornar-se
consenso das transmissões de valores e moralidades das sociedades por
meio da escrita e da narrativa de modo a torná-la imemorável.

Patrick Geary [2005] afirma ter ocorrido uma aderência das identificações
cristãs e romanas na Primeira Idade Média em decorrência da maleabilidade
de suas identidades, visto que, para ele, os cristãos compartilhavam um
mesmo princípio de constitucionalidade, tal como os romanos; isto é, “Em
poucas palavras [...] os constitucionais, [estavam] baseados em leis e na
lealdade e criados por um processo histórico” [Geary, 2005, p.59]
Evidenciando assim a existência de diretrizes identitárias entre cristãos e
romanos, que se comportavam de modo similar, pois ambos atuavam sob
um código de leis que permite a assimilação de qualquer indivíduo para seu
meio, sem distinções étnicas, como nas palavras do apóstolo Paulo: “Nisto
não há judeus nem grego: não há servo nem livre: não há macho nem
fêmea; portanto todos vós sois um em Cristo Jesus [Gl 3,28]. O povo de
Deus, portanto, une-se sem distinções.” [Geary, 2005, p.71, grifo nosso].
Ao afirmar que não haveriam distinções entre os povos unidos pela doutrina
cristã, o apóstolo foi profundamente utilizado pela Igreja para apoiar a
cidadania romana, negligência todo aparato ideológico, cultural e identitário
étnico na tentativa de apresentar que os valores cristãos poderiam e
deveriam ser universalizados. Portanto, ao relacionar isto as instituições
imperiais, estas promoviam o ideário de que, o respeito a cidadania e a
constitucionalidade estaria acima de qualquer expressão e desejo particular,
local ou regional. Deste modo, a Igreja Católica utiliza das premissas
apresentadas acima, para integrar parte da identidade romana e, que torna
tão compreensível a aflição de tantos clérigos pela ‘destruição de um mundo
cristão e civilizado’
95
Agostinho de Hipona teve imprescindível autoridade como reformulador das
identidades assumidas pela cristandade e pela Igreja após o século V, pois
as transformações ocasionadas pelas migrações dos povos bárbaros
contribuíram para a desagregação identitária entre cristãos e romanos,
buscando delimitá-los como incompatíveis e não mais como equivalentes.
Evidenciando uma narrativa que impõe uma constante perspectiva de
dualidade opositora, entre bárbaros e cristãos, entre santos e pecadores,
entre sagrado e profano, entre o mundo e o reino dos céus:

Admiras-te porque o mundo se arruína? Admiras-te antes porque o mundo


envelheceu. Também o homem nasce, cresce e envelhece. Muitos são os
males na velhice: a tosse, a lentidão, a falta de vista, o mal-estar, o
cansaço. Envelhece o homem e fica cheio de doenças, envelhece o mundo e
fica cheio de sofrimentos [Agostinho, 2013, p.78].

Agostinho permite o apreço de uma representação de mundo dissociado do


reino celeste e, portanto, perecível, assim manter-se em associação a
defesa da identidade romana, poderia ser examinada como orgulho e
soberba do homem perante as vontades divinas. Pois, ao passo que ocorre
uma sistemática queda dos padrões de vida no Ocidente [Mendes, 1996],
indicaria também àquilo que ele representa ser a ‘velhice’ de seu mundo,
isto é, para o referido autor, sua época era a de um mundo pré-apocaliptico
que aguardava o momento de redenção para os justos e a condenação para
os infiéis, sendo os seguidores de Deus provados pelas agruras do tempo e
da vida humana, assim como Jô teria sido submetido a suportar chagas e
maldições:

Quando ouvimos no livro do santo Jó que, tendo perdido os seus bens, seus
filhos e que mesmo o seu corpo, a única coisa que lhe restava, pôde salvar,
posto que foi atingido por uma chaga terrível da cabeça aos pés,
permanecia na imundície, apodrecendo em ferida, a escorrer pus, coberto
de vermes, torturado pelo terrível suplício das dores; se nos dissessem que
a cidade inteira estava assim, sem nada de são, numa chaga horrenda, e
que os seus homens eram consumidos pelos vermes em vida, como se
estivessem mortos, não era isto pior que aquela guerra? Penso que é mais
fácil sofrer no corpo o golpe da espada do que os vermes, mais suportável
escorrer o sangue das feridas do que o pus da putrefação [Agostinho, 2016,
p.45].

Assim, as tentações de seu presente em comparatividade com as privações


de Jó poderiam ser consideradas mínimas e representavam dois pontos
fundamentais de seu discurso, o primeiro que evidencia a piedade do
Criador e em paralelo a isto, corroborava com o imaginário de que as
manifestações da ira divina mantinham-se na pluralidade, sem considerar
distinções entre os homens, portanto, os sofrimentos infligidos pelas
migrações germânicas não seriam vergonha alguma para aqueles que
sofreram diretamente os impactos decorrentes delas, mas sim poderia
compor um repertório de explicações e argumentos que considerava a
morte como livramento das penúrias sofridas pela carne e que aproximava
96
o homem de Deus.

Neste âmbito, observado um processo histórico que privilegia rupturas e


descontinuidades como o período da Primeira Idade Média, é possível
caracterizar as implicações das narrativas e seus efeitos na materialidade e
no cotidiano das identidades, grupos e comunidades inseridas nesse
processo, tal como Walter Benjamin propõe.

Referências bibliográficas
Geraldo Rosolen Junior é mestrando em História pela Universidade Federal
de São Paulo com bolsa da CAPES; é pesquisador do Laboratório de Estudos
Medievais (LEME/UNIFESP) e também do Núcleo de Estudos Bizantinos
(NEB/UNIFESP).

AGOSTINHO, Santo. O "De excídio Vrbis" e outros sermões sobre a queda


de Roma. Trad. Carlota Miranda Urbano. 3ed. Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2013.
ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. Trad.Mauro W. Barbosa. 8ed.
São Paulo: Perspectiva, 2016.
BENJAMIN, Walter. “O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov” In: Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e
história cultura. 3ed. Trad.: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
1987, vol.1.
GEARY, Patrick. O mito das nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2005.
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Germans?". In: GILLET, Andrew (ed.). On Barbarian Identity: Critical
Approaches to Ethnicity in the Early Middle Ages. Turnhout: Brepolis
Publishers, 2002.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito: Parte 1. 2ed.
Trad. Paulo Menezes. Petrópolis: Vozes, 1992.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp,
1990.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto
História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.07-28.
MENDES, Norma Musco. Imperadores e Senadores no Baixo Império.
Phoinix, vol.2, 1996, p.259-274.
SKINNER, Quentin. Visões da política: Sobre os métodos históricos. Algués:
DIFEL, 2002.
OS USOS DA ESCRITA DA HISTÓRIA CAROLÍNGIA
EM SEU TEMPO
Guilherme Tavares Lopes Balau

Quando se fala sobre a consciência histórica em uma dada experiência do


tempo, um conjunto de fatores entra em contato com o ato de escrever a
história face à memória do passado e à recepção dos sujeitos históricos. A 97
consciência histórica é um ponto de partida significativo à concepção das
pessoas sobre os fenômenos da realidade, e a escrita da história representa
uma resposta aos interesses da atualidade em relação às expectativas do
passado. “Trata-se do interesse que os homens têm – de modo a poder
viver – de orientar-se no fluxo do tempo, de assenhorear-se do passado,
pelo conhecimento, no presente” [Rüsen, 2001, p. 30]. Através disso o
estudo da escrita da história pode analisar a valorização de conceitos e
atribuição de valores nas ideias do período estudado.

A contação de histórias, a memória sobre a própria história, serve de


diversas maneiras aos indivíduos envolvidos em sociedade. A título de
exemplo, a identidade histórica de um povo baseia-se na sua narrativa
sobre o próprio passado, legitimando e colocando em continuidade o feito
de antepassados até a constituição do presente, pesando sobre a
contemporaneidade a permanência de valores tradicionais, em um
fenômeno que cria o conceito de si perante outros, a ipseidade, “Wir-
Gefühl” [Innes, 2004], de um povo. Há de se deduzir, portanto, a
importância do conteúdo da história sobre si, as relações de poder
envolvidas na seleção e enquadramento da memória, em que terá presença
a legitimidade das reivindicações sobre o poder político no tempo presente.
Nesse sentido, a escrita da história possui boa parte de sua raison d’être
ancorada nos interesses que surgem de sujeitos que vivem sua experiência
do tempo. Ainda assim, não se deve encarar a escrita da história como
unicamente um espaço de luta de poderes monodimensional. Em qualquer
período histórico, os sujeitos buscam formas de entretenimento, leituras da
realidade que compreendam sua visão de mundo e interpretações de
fenômenos do mundo. Segundo Jörn Rüsen, a narração histórica é uma
maneira de atribuir sentido à experiência do tempo, onde o produto é a
história:

“A narração é um processo de poiesis, de fazer ou produzir um tecido de


experiência temporal entrelaçado de acordo com a necessidade de orientar
a si mesmo no percurso do tempo. O produto deste processo de narração, o
tecido capaz de orientar de tal maneira, é ‘uma história’. A respeito da
ameaça da morte, a narração transcende os limites da mortalidade em
direção a um horizonte mais amplo de ocorrências temporais significativas.
Essa é uma das verdades essenciais nos contos de Mil e Uma Noites.
Scheherazade sabe que narrar é superar a morte; a narração é um ato de
de-mortificação da vida humana” [Rüsen, 1987, p. 88, tradução livre].
Dessa maneira, a ação de lidar com a experiência do tempo pelo discurso
histórico, como fator antropológico, faz parte da transcendência em relação
à mera sobrevivência no tempo. Posto como aspecto importante da
consciência humana, a possibilidade de moldar a memória do passado com
expectativas do presente é fato basilar para se compreender a escrita da
história especialmente quando se trata de uma história de cunho “oficial”.
Sua possibilidade estende-se à legitimação do poder e monumentalização
da identidade histórica. Pensando na historiografia Carolíngia, o principal
aspecto a ser abordado é a manutenção da memória de Carlos Magno [742-
98
814], primeiro imperador do ocidente desde a deposição de Rômulo
Augusto. O governante franco é representado como um ideal de príncipe e
portador dos valores da cristandade, modelo a ser aspirado por seus
descendentes.

O primeiro biógrafo do governante foi Einhard, cortesão carolíngio que


acompanhou presencialmente boa parte da história que escreveu em sua
obra ‘Vida de Carlos Magno’ [Vita Caroli Magni]. Em sua obra, escrita na
segunda metade da década de 820, pouco tempo após a morte do
imperador [Collins, 1998], o biógrafo traça aspectos da vida do governante
desde a deposição do último rei merovíngio através de um golpe de estado
feito por seu pai, Pepino III, passando por suas conquistas militares nas
regiões da Aquitânia, Lombardia, Bretanha, Espanha e Saxônia. Também
seus grandes feitos políticos são descritos, como a Admoestação Geral de
789, que promoveu a padronização de ritos litúrgicos. As características
mais pessoais de sua vida, como uma descrição de sua aparência
[pouquíssimo confiável, pois a estrutura de sua obra é baseada na obra
Vida dos Doze Césares, de Suetônio, e sua descrição imita as descrições dos
imperadores romanos] e o testamento que legou sua herança aos
descendentes figuram ao final da obra do biógrafo.

Também Notker, monge da abadia de São Galo, escreveu a obra ‘Feitos de


Carlos’ [Gesta Karoli], já quase um século após sua morte, por volta de 887
[Ganz, 2008]. Neste caso, Notker escreveu a história de um Carlos Magno
diferente face à obra de Einhard, exaltando suas virtudes divinas, o
apresentando como uma legítima figura mítica, onde suas decisões ressoam
em trovoadas e a história do reino ao império se entrelaça com a história
bíblica e em continuidade direta com o Império de Roma. A estrutura de sua
escrita é baseada em trechos anedóticos de fácil memorização. David Ganz,
tradutor e organizador da obra de Notker para a língua inglesa, aponta que
provavelmente foi escrita pensando no complemento à obra de Einhard, que
ao final do século IX já havia se difundido e tornada instrumento
padronizado de ensino da história Carolíngia em escolas monásticas [Ganz,
2008].

Além do escopo deste trabalho, obras paralelas foram escritas nos


conventos regionais em formato de anais cronológicos, contribuindo à
monumentalização da memória sobre o passado franco. O período de
ascensão do Império Carolíngio contribuiu ao florescimento da cultura das
letras e do humanismo romano, ancorado em figuras como Alcuíno de York
e Smaragdus de São Mihiel, que contaram com o apoio do imperador para
difusão do ensino nos monastérios e elaboração de textos de cunho político,
teológico e educacional de maneira geral. Em 789, a capitularia da
Exortação Geral [Admonitio generalis] emitida por Carlos Magno padronizou
o canto litúrgico de acordo com os cânones da Igreja Católica pelo reino
franco, fortaleceu o combate às heresias religiosas [como a adocionista]
pela intensificação do trabalho administrativo letrado, o que por sua vez
necessitou da difusão dos métodos de educação da tradição latina: “E que
haja escolas para as crianças aprenderem a ler. Que, em cada bispado, em
cada mosteiro, se ensinem os salmos, as notas, o canto, o cômputo, a
gramática, e que haja livros cuidadosamente corrigidos” [citado em Wolff, 99
1973, p. 28]. Com isso, o fenômeno que ficou conhecido como
‘Renascimento Carolíngio’ abriu portas para o favor de grande parte do
corpo eclesiástico da realeza franca. A partir disso, é possível compreender
a tendência de exaltação por parte dos escritores das biografias de Carlos
Magno. A monumentalização da história carolíngia no período é marcada
pela vitória das virtudes cristãs sobre seus tirânicos inimigos seculares.

A disparidade entre a primeira biografia, escrita por Einhard, e a biografia


escrita por Notker denota um aspecto primordial para se compreender o
papel da historiografia no período. Diferenciando-se da pesquisa
empreendida por historiadores através de métodos da ciência histórica na
contemporaneidade, a historiografia medieval foi marcada por uma
tendência mais direcionada à busca e compilação de fatos da tradição
literária para inserção no corpus da obra intentada do que pela pesquisa em
fontes disponíveis aos autores. Assim, a introdução de uma história
primordial, ancorada na tradição letrada, para levar a um assunto mais
contemporâneo servia aos propósitos do autor para justificar reivindicações
de legitimidade. O que não quer dizer, no entanto, que havia uma
‘acriticidade’ na escrita da história política medieval – os autores baseavam-
se em evidências factuais diversas para construir sua narrativa, tradição
datável das Etimologias de Isidoro de Sevilha [Goetz, 2012], mas que os
propósitos justificavam os vieses na seleção do conteúdo. “Os autores não
somente “escreviam” a história, mas a usavam (e “abusavam”) com certos
propósitos e objetivos, não apenas para explicar, mas também para
justificar o presente”. [Goetz, 2012, p. 124, tradução livre]. Assim, Carlos
Magno, coroado imperador pelo pontífice de Roma em 25 de dezembro de
800, fora colocado como sucessor, por intervenção divina, do ofício dos
imperadores romanos, em uma demonstração do conceito de ‘transferência
de poder’ [translatio imperii], nas primeiras linhas da obra de Notker:

“O todo-poderoso [que opera] sobre todas as coisas e dirigente de reinos e


das eras, quando destruiu aquela maravilhosa estátua com pés de ferro ou
de barro dentre os romanos, colocou a cabeça de ouro de outra estátua não
menos memorável dentre os francos através do ilustre Carlos Magno”
[Notker, I, citado em Ganz, 2008, p. 55, tradução livre].

A inserção dos feitos carolíngios na leitura da providência divina em direção


ao fim da história centraliza o papel de seus agentes políticos, e denota sua
legítima posse do poder frente ao meio social, religioso, político e militar.
Sua obra fora escrita em homenagem a Carlos, o Gordo, que visitara o
convento de São Galo em 883 e fora elevado a imperador, o último herdeiro
vivo da dinastia, em 885. A obra de Notker deve ser interpretada à luz da
tradição de escrita dos espelhos de príncipes, em que a obra apresenta
ideais de governança, verdadeiros ‘livros didáticos de bons governantes’
[Fałkowski, 2008]. Carlos, o Gordo, como último governante carolíngio,
deveria fazer valer face à tradição de sua dinastia. Dessa maneira, não à
toa que Notker lhe dedica a obra – o passado figurava uma presença
constante como parâmetro de referência e possuía um caráter moral
semelhante à lei para os autores medievais. Além disso, como tradição na
100
história medieval, grandes crônicas edificadoras do passado costumam
acompanhar grandes crises – tanto religiosas como políticas. Sua intenção é
justamente buscar no passado não tão remoto as fontes do poder legítimo
carolíngio, em vista da necessidade de ação do governante.

E é nesse aspecto que reside algo que interessa abordar. A escrita da


história por um autor deve levar em consideração dois aspectos, conforme
apresentado por Hans-Werner Goetz: “é inevitavelmente baseada em um
determinado conceito de história (Geschichtsbild) e uma determinada
consciência histórica (Geschichtsbewusstsein)” [Goetz, 2012, p. 112]. A
respeito do conceito de história, trata-se de uma noção que articula a
informação do passado em uma representação mais palpável, aquilo que se
imagina ocorrido de determinada maneira em um determinado espaço. Em
relação à consciência histórica, figura-se o ponto chave para abordar a obra
comentada enquanto artificio de representação da mentalidade do período.
Para Goetz, a consciência histórica parte de uma consciência sobre a
sensação de historicidade e de mudança histórica, indicando a noção de
processo histórico e convicções ideológicas na construção do passado.
Assim, a interpretação da legitimidade do poder carolíngio assenta-se na
materialização da obra historiográfica como atestado dessa identidade
histórica carolíngia, franca, cristã.

Na mesma medida encontra-se nas passagens da biografia escrita por


Einhard a legitimação das identidades virtuosas do governante. A
representação de Carlos Magno face às intempéries militares contra os
Saxões, por exemplo, enaltece a cristandade face aos pagãos tiranos e
barbarizados. Também na época de sua escrita, na segunda metade da
década de 820, a moral carolíngia sofreu abalo a partir da reação
eclesiástica e da nobreza franca às propostas centralizadoras e autocráticas
de Luís, o Pio, levado a fazer penitência para restauração da ordem para
com os condes e duques aliados do império [Heers, 1974]. Essencialmente,
Carlos Magno foi colocado como parâmetro de referência ideal para Luís, e
da mesma maneira que Notker colocaria meio século depois, a obra possuía
um caráter de referência das virtuosidades de um governante.

Esse caráter da história medieval vai percorrer os séculos na forma de uma


constante edificação do passado. A interpretação da palavra latina historia
alude a diferentes conotações de sentido na atualidade, o que leva a ser
necessária a consideração do significado que possuía no tempo de sua
escrita. A história conforme atestada pelos autores do período leva em
consideração a inserção das interpretações da realidade dentro do escopo
de expectativas de sua vida cotidiana. O batismo do merovíngio Clóvis para
a religião cristã, abandonando suas origens pagãs, o auxílio dos mordomos
carolíngios à Igreja de Roma a partir de Carlos Martel, a suposta unção de
Pepino III quando da deposição do último rei merovíngio, as reformas em
prol da legitimidade da igreja sobre a cristandade ocidental e a própria
unção, enquanto rei, e posterior coroação de Carlos Magno como imperador
pelo pontífice de Roma e os subsequentes louvores desses atos nos cânones
da historiografia posterior não são apenas atos simbólicos. A religião cristã
possuiu caráter de detentora e difusora do conhecimento do período, em
figuras como Orósio, Gregório de Tours, Isidoro de Sevilha, Paulo, o 101
Diácono e demais. O corpus da intelectualidade medieval como um objeto
de aproximação da ‘verdade’ a ser decifrada, em direção à interpretação da
revelação divina e da providência é fruto dessa concepção
fundamentalmente teológica que produziu a cultura letrada durante séculos
após a difusão da cristandade. Por isso, pensar em história medieval não é
apenas pensar em uma representação dos acontecimentos do passado, mas
pensar no peso que carregava uma visão com esse filtro de atribuições
simbólicas sobre a experiência e expectativas dos contemporâneos.
Historia, portanto, poderia significar a narração dos eventos [res gestae],
distintos da narração de ficções e a interpretação da literalidade da bíblia,
em que a história é sua afirmação e continuação, apresentando os desígnios
e vontades de Deus na providência divina, em direção à eternidade e ao fim
da história [Goetz, 2012].

Considerações finais
Pensar a consciência histórica e seus múltiplos usos durante o tempo traz
uma perspectiva multiforme em relação às possibilidades que o discurso
opera sobre a concepção do Homem em meio à experiência da realidade. A
análise dos historiadores sobre as concepções criadas na representação do
passado demonstra grande fruto de análise para entendimento das
realidades materiais e imateriais sobre o passado. Ao analisar as
significações e como seriam concebidas em seu próprio tempo [o peso que
as palavras possuem em seu contexto de utilização] possibilita um aparato
intelectual de sensibilidade histórica que permite a crítica e a avaliação de
valores impostos no discurso na experiência e sensação do tempo e do
passado. Pensar a historiografia medieval, neste sentido, possui o peso de
se pensar a ação humana e suas consequências multiformes sobre a
vivência perante a imposição do poder na história, e isso é muito mais do
que pensar a história como um acúmulo de fatos aglomerados pela
permanência da cultura material através dos séculos. É dialogar, com
auxílio da pesquisa daquilo que foi selecionado e legado pelo passado, às
expressões humana em contato com sua experiência de viver e sofrer na
história.

Referências
Guilherme Tavares Lopes Balau é graduando em História pela Universidade
Estadual de Londrina e é orientado em sua pesquisa de TCC pelo professor
Drº Lukas Gabriel Grzybowski.

COLLINS, Roger. “Charlemagne”. Londres: MacMillan, 1998.


FAŁKOWSKI, Wojciech. “The carolingian Speculum Principis – The birth of a
genre”. Tradução de Agnieszka Kreczmar. Acta Poloniae Historica, n.98,
2008, p.5-27.
GANZ, David [ed.]. “Einhard and Notker the Stammerer: Two Lives of
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GOETZ, Hans-Werner. “Historical Writing, Historical Thinking and Historical
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2012, p.110-28.
102
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HEN, Yitzhak. INNES, Matthew [eds.]. “The Uses of the Past in the Early
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Theory, v.26, n.4, Dez, 1987, p.87-97.
______. “Razão Histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência
histórica”. Tradução de Estevão de Rezende Martins. Universidade de
Brasília, 2001.
WOLFF, Philippe. “O Despertar da Europa”. Tradução de António Gonçalves
Mattoso. Lisboa: Ulisseia, 1973.
MEDIEVO NA REDE: ELABORAÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS
PARA O ENSINO DE HISTÓRIA
Jefson Bezerra de Azevedo Filho e Vanessa Spinosa

As tecnologias, cada vez mais presentes em nossas vidas, trazem


transformações e desafios para a Educação contemporânea. Com isso, faz-
se necessário que haja profundas mudanças nos modelos educacionais a fim 103
de conscientizar os alunos para o uso dessas tecnologias e do espaço
virtual, surgindo a partir disso, novas abordagens e metodologias de ensino.
Muitas dessas inovações, como nos lembra Gomes [2015], exigem o
deslocamento do protagonismo do professor para o discente, tornando-os
sujeitos que participam ativamente no processo educativo, são as
chamadas metodologias ativas.

Para se chegar a esse nível, segundo Moran [2015], é necessário que o


professor adote metodologias para que os alunos se envolvam em
atividades cada vez mais complexas, que tenham que tomar decisões e
avaliar os resultados com apoio de materiais relevantes, constituindo assim,
o ponto de partida para avançar para processos mais complexos de
educação. É necessário também que esses desafios sejam bem planejados,
contribuindo para desenvolver as competências desejadas, como as
intelectuais, emocionais, pessoais e comunicacionais, exigindo pesquisar,
avaliar situações a partir de pontos de vista diferentes, fazer escolhas,
assumir alguns riscos, aprender pela descoberta, caminhar do simples para
o complexo, sempre com a ajuda do professor.

Além disso, as metodologias ativas podem ser combinadas com o uso de


tecnologias, transformando se em Ensino Híbrido ou blended learning.
Moran [2015] pressupõe que dentro dessa perspectiva, os processos que
são mais planejados, organizados e formais, se mesclem com outros mais
abertos ou informais, como por exemplo os que acontecem nas redes
sociais, com uma espontaneidade maior, e também, uma maior fluência de
imagens e vídeos.

Apesar das tecnologias estarem ao nosso dispor, ainda temos um longo


caminho a percorrer para que elas sejam utilizadas de forma a promover a
melhoria dos processos de ensino e aprendizagem. Se usadas de modo
correto, as tecnologias podem representar uma nova forma de partilhar
ideias, estratégias e reflexão em sala, vislumbrando, assim, um papel
importante para as novas tecnologias e proporcionando métodos que
transgridem o ensino tradicional.

O Ensino de História Medieval aliado às tecnologias


A História Medieval é um dos períodos históricos mais complexos a ser
estudado, pois entende-se que “A Idade Média é o buraco negro da cultura
europeia” [Libera, 2015; Franco Júnior, 1994; Macedo, 2003; Pernoud,
1994], devido ser um período longo e impregnado de estereótipos e
conceitos deturpados.
Diferente do que se costuma lecionar na Educação Básica, a Idade Média
não foi uma época de estagnação e de trevas. Junior & Zabarto [2017]
discutem que o período “vai muito além do que apenas pessoas morrendo
de fome, de epidemias, de ignorância perante a Igreja, de guerras santas e
tempos de castelos, além da visão romantizada do cavaleiro e a dama”
[Júnior; Zabarto, 2017. p. 232], pelo contrário, foi em que mais floresceu o
104
campo da mentalidade humana, desenvolvimento de doutrinas filosóficas,
transições de artes, renascimento das cidades, e vários outros avanços.
Isso sem mencionar as Universidades, que foi uma das grandes criações da
Idade Média e que resistem até os dias atuais, como mostra Verger [2002].
No entanto, é um desafio falar de um período tão remoto usando novas
tecnologias, porém, não impossível. Segundo Viana:

“A revolução historiográfica e as novas possibilidades de utilização de


objetos na pesquisa histórica favoreceram a modificação e ampliação do
pensamento sobre a pesquisa em História Medieval, influenciando,
consequentemente, as reflexões sobre o ensino deste período. Um dos
problemas que ainda encontramos no Ensino de História Medieval é a
utilização de conceitos de forma errônea, os quais podem dificultar o
aprendizado caso não sejam abordados corretamente pelos professores e
também a não preocupação de demonstrar a fluidez contextual ao se
utilizarem barreiras (didáticas) temporais para a análise de um período
histórico”. [2017, p.28].

Ao tratar dessas barreiras didáticas, é possível incentivar os alunos a


usarem a tecnologia digital a seu favor, mostrando maneiras mais
responsáveis de fazerem pesquisas na internet, navegar mais conscientes e
seguros para não cair em sites que usam informações fakes ou não usam
referenciais teóricos para embasar os argumentos sobre o período
estudado. Pois assim como nos lembra Alves [2018]:

“O Ensino de História tem por objetivo, portanto, contribuir para que


educador e educando (re)conheçam o papel social de sua ciência de estudo
para interpretar o cotidiano vivido com autonomia de pensamento e
constante autorreflexão acerca de suas práticas”. [Alves, 2018, p. 23].

Neste ínterim, segundo Lucchesi e Costa [2016], novas práticas escolares


que ajudem os alunos a lidarem com a multiplicidade e imprevisibilidade
dos produtos culturais digitais são necessárias. Trabalhando dessa forma, o
professor pode-se abordar novas perspectivas sobre os temas históricos e
contribuir para que o aluno adote uma posição crítica, sempre
fundamentando sua análise.

Construção da autonomia discente a partir do Projeto Produto


Virtual (PPV)
Trazendo essa realidade para o ensino de História, podemos refletir sobre
como os alunos se apropriam das ferramentas e linguagens existentes na
rede, relacionando estudos e pesquisa, para mostrar seus aprendizados em
diferentes suportes e ambientes, ao construir um Produto Virtual/Digital ou
material didático, pensado para alunos e professores da rede básica de
ensino. Nesse sentido, ações que relacionam História e Ambientes Digitais,
como demonstra Spinosa [2019], podem fazer os alunos e professores
saírem da zona de conforto e gerar um ambiente, dentro de uma plataforma
conhecida por eles, para produções sobre História.

A iniciativa partiu do projeto de monitoria “Letramento Digital no Ensino de


História: metodologias ativas e TDICs como construção da autonomia 105
discente” no ano de 2019, realizado na Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, campus Caicó e desenvolvido ao longo do desenvolvimento dos
componentes curriculares de História Medieval I e História Medieval II, em
sala de aula. O projeto foi dividido em duas etapas, onde sob a supervisão
da docente responsável pelas disciplinas, e com o apoio de monitores, a
turma da manhã elaborou produções virtuais sobre os conteúdos estudados
em redes sociais de sua escolha, e a turma da noite, construiu materiais
didáticos, digitais ou não, também sobre o que foi visto em sala.

Inicialmente, a partir da metodologia empregada, os discentes da turma


matutina, divididos em equipes, confeccionam produtos digitais como
resultado do seu aprendizado em História Medieval, tendo como público-
alvo principalmente os alunos da rede básica de ensino. De acordo com o
planejamento, durante a unidade I, os alunos deveriam construir um
projeto o tema que gostariam de pesquisar dentro da disciplina que cursam,
elegem qual a plataforma digital desejam utilizar, qual o público alvo
(ensino básico, superior, público em geral) a que se destina seu produto e
quantas postagens desejam fazer. Após esta fase, durante a unidade II e
III, acompanhados de orientações da docente e dos monitores dentro e fora
de sala de aula, eles deveriam associar as leituras acadêmicas debatidas em
sala, com os conteúdos pesquisados por eles em diversas mídias. Ao fim
das disciplinas, foram produzidos ao todo pela turma matutina 13 produtos
virtuais sobre temáticas diversas de História Medieval, que estão disponíveis
em ambientes digitais como instagram, wattpad, kindler, blogger e
facebook. Dos projetos construídos, seguem dois exemplos para análise:

Figura 01 - Faces Medievais. Fonte: Acervo pessoal


106

Figura 02 - Os contos de Mira. Fonte: Acervo pessoal

Na figura 01, a equipe escolheu a plataforma Instagram para expressar


suas ideias. Segundo o projeto, seu objetivo principal era “apresentar
personagens, que corriqueiramente não tem visibilidade na educação básica
(monges, mulheres, artistas). Dessa forma, nosso público poderá conhecer
melhor o outro lado” da Idade Média” [Projeto Produtivo Virtual, Faces
Medievais, 2019, p. 02]. Pensado como público-alvo os alunos do ensino
médio, a produção traz uma série temas sobre o período. As postagens
trataram sobre pobres, feiticeiras, judeus, prostitutas e homossexuais e
foram formuladas a partir das discussões em sala de aula. Ao todo, o
projeto Faces Medievais produziu 22 postagens obtendo o alcance de 40
usuários mensais.

Os Contos de Mira, produto exposto na figura 02, diferente da maioria dos


grupos que escolheram redes sociais mais populares, como instagram e
facebook, foi publicado no Wattpad, que é um site de compartilhamento de
histórias, artigos, relatos, poemas ou fanfics com outras pessoas. O
discente responsável pelo produto, pretendia fazer um conjunto de contos
que formaria um livro de histórias medievais, com o objetivo de
“exemplificar o período medieval aos olhos de um personagem que vive
esse tempo: Mira, uma jovem mulher – ambientada no século IX – que
decidiu relatar as narrativas que escutava durante sua infância e juventude
de seus parentes” [Projeto Produtivo Virtual, Os Contos de Mira, 2019, p.
02]. Escrito para jovens, o livro conta com 8 capítulos escritos em formato
de contos, que tratam sobre temas como os povos germânicos, isla,
práticas mágicas e mulheres. Os contos, até a finalização do componente
curricular, teve 194 leituras.

Produção de materiais didáticos


Diferente da turma do período matutino, a turma dos discentes turno
vespertino poderiam escolher entre fazer um PPV ou produzir um material
didático. Essa diferença se deu pelo fato de os discentes da noite não terem
tanto tempo disponível, seja por questões pessoais ou relacionadas ao
trabalho, afetando assim, seu tempo para realizar as produções.
Assim como o PPV da turma matutina, divididos em equipes, os alunos
deveriam confeccionar produtos, digitais ou não, como resultado do seu
aprendizado em História Medieval, tendo como público-alvo também os
alunos e professores da rede Básica de ensino. No entanto, os materiais
didáticos devem estar alinhados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
pois acreditamos que quando as produções estão voltadas para o
desenvolvimento de competências e habilidades nos alunos, o aprendizado 107
transcende a simples memorização e a passividade frente ao conteúdo
estudado. O planejamento do curso seguiu semelhante ao anterior, onde na
unidade I os alunos fariam o planejamento do seu produto, e na unidade II
e III teriam que executar o que foi projetado. Com isso, a turma noturna
produziu 11 materiais didáticos, sendo que 4 desse total são virtuais, e 7
em formato físico. Para analise sera mostrado também 2 materiais
didáticos, no entanto, são em formato físico:

Figura 03 - Brincando Com o Medievo. Fonte: Acervo Pessoal

Figura 04 - Super Medievo. Fonte: Acervo

Acima, na figura 03, vemos o produto Brincando com o Medievo, um jogo


de tabuleiro movido por perguntas e respostas referente ao Império
Bizantino, Ocidente Carolíngio e a Expansão do Islã, pensado para alunos
do ensino fundamental. Seu objetivo “é trabalhar habilidades durante as
partidas, como concentração e boa memória, além dos conhecimentos dos
alunos, formados em sala de aula através das aulas passadas dadas em
sala, tendo o livro didático como base, juntamente com bibliografias e
recursos áudio visuais auxiliares [Projeto Material Didático, 2019. p, 01].
Apesar dos grupos serem incentivados a buscar na BNCC conteúdos para
nortear seu produto, esse grupo em particular não conseguiu encontrar
108
competências e habilidades que se ajustassem ao jogo. No entanto, ao
observar o documento encontramos no 6 ano, a unidade temática “Lógicas
de organização política”, que traz o objetivo de conhecimento “A
fragmentação do poder político na Idade Média”, relacionada as habilidades
“(EF06HI14) Identificar e analisar diferentes formas de contato, adaptação
ou exclusão entre populações em diferentes tempos e espaços”, e
“(EF06HI15) Descrever as dinâmicas de circulação de pessoas, produtos e
culturas no Mediterrâneo e seu significado” [Brasil, 2018, p. 423].

Por fim, na figura 04, podemos observar o Super Medievo, um jogo de


baralho inspirado no jogo clássico Super Trunfo que traz personalidades do
Império Carolíngio, Império Bizantino, e Islã Medieval, sendo criado para os
alunos do Ensino Fundamental, sobretudo, do 7º ano. O objetivo didático-
pedagógico do jogo é “a aproximação entre os discentes e estes
personagens inspirados em figuras históricas. O docente pode e deve
utilizar o jogo como instrumento para apresentar estas figuras, além de
problematizar a história dos grandes homens” [Projeto Material Didático,
2019. p, 02]. As competências e habilidades da BNCC que o jogo busca
desenvolver é “(EF06HI18) Analisar o papel da religião cristã na cultura e
nos modos de organização social no período medieval” e “(EF06HI19)
Descrever e analisar os diferentes papéis sociais das mulheres no mundo
antigo e nas sociedades medievais” [Brasil, 2019, p. 425].

Nesse sentido, os resultados apontam que é possível promover a melhoria


do processo de ensino-aprendizagem em História Medieval a partir do uso
das TDICs, e como é importante se ter letramento no universo digital para
a construção do conhecimento científico e cidadão. Ao analisar a
metodologia empregada, nota-se que, ao construir materiais didáticos e
postagens para seus ambientes digitais, os discentes podem desenvolver
competências e habilidades, como pesquisar e criar conteúdos para Historia
que estarão vinculadas a sua formação acadêmica. Além do mais, em suas
pesquisas, os discentes têm autonomia para buscar e consumir as
informações, construindo assim o seu próprio aprendizado, deslocando da
figura do professor o papel de detentor do saber, e transformando-o em
mediador do conhecimento, ajudando a formar cidadãos críticos e
autônomos. Observa-se que foram produzidos 13 produtos virtuais no
primeiro semestre, e outros 13 no segundo semestre pela turma da manhã,
enquanto que a turma noturna construiu 12 materiais didáticos no primeiro
semestre e 11 materiais no segundo semestre.

Outro ponto que merece ser relatado, diz respeito á experiência vivenciada
pela monitoria, que ao colocar em prática no ensino superior os
ensinamentos adquiridos a partir da metodologia empregada pela
professora responsável pela disciplina, propiciou aos monitores um
crescimento tanto profissional, quanto pessoal na medida em que eram
exigidas competências como concentração, responsabilidade, argumentação
e domínio dos conteúdos, para fazer intervenções em sala, criando assim,
novas práticas pedagógicas.

Conclusões
É evidente que as práticas de ensino passam por ressignificações. Nesse 109
processo, as tecnologias podem servir como ferramentas para incentivar as
pessoas a desenvolverem o seu potencial criativo. Podem funcionar,
segundo Gomes [2015], como amplificadores da curiosidade, pois permitem
a produção de mídias com muita plasticidade e facilidade, e além disso,
podem ainda funcionar como um elemento que nos permite compartilhar,
aprender mais rápido, no nosso próprio passo, ritmo e estilo de
aprendizagem.

Como professores de História, não precisamos ajudar nossos alunos a


memorizar datas ou fatos. Seremos melhores educadores quando formos
capazes de colaborar com nossos alunos no seu processo de construir seu
conhecimento de maneira autônoma, a partir do contexto em que vivem,
pois como nos lembra Freire [2003] “Ensinar não é transmitir
conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a
sua construção” [Freire, 2003, p. 47]. Neste ponto, as tecnologias podem
nos oferecer modelos educacionais que transgride os métodos tradicionais
de ensino.

Referências
Jefson Bezerra de Azevedo Filho é Graduando em História pela UFRN;
Vanessa Spinosa é professora de História na UFRN, e professora no
Mestrado Profissional de Ensino de História (PROFHistória).

ALVES, R C. Ensino de História e História Pública: conhecimento histórico e


seu papel social. Diálogos, v.22, n.3, (2018) 20-31.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio.
Acesso em 27/03/2020.
FRANCO JR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários. São Paulo:
Paz e Terra, v. 27, 2003.
GOMES, Alex Sandro (et al). Cultura digital na escola. Recife, Pipa
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JUNIOR, José Walter Cracco; ZARBATO, Jaqueline Aparecida Martins. O
ensino de História medieval no Ensino Fundamental: entre jogos e novas
experiências a partir do Pibid. Ensino & Pesquisa, v. 15, n. 1, 2017.
LIBERA, Alain de. Pensar a Idade Média. São Paulo: Editora 34, 1999.
LUCCHESI, Anita; COSTA, Marcella Albaine Da. Historiografia escolar digital:
dúvidas, possibilidades e experimentação. História, Sociedade, Pensamento
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MACEDO, José Rivair. Repensando a Idade Média no ensino de História.
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PERNOUD, Régine. Idade Média: o que não nos ensinaram. Rio de Janeiro:
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SPINOSA, Vanessa. Experiência Interdisciplinar com TDIC’s no Ensino
110
Superior: O Projeto de Ensino no mbito da História. Educação e
Tecnologias: Experiências, Desafios e Perspectivas 3. 1ed.: Atena Editora,
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VIANNA, Luciano José. Do presente para o passado: uma reflexão sobre o
Ensino de História Medieval na contemporaneidade From present to past: a
reflection on the teaching of medieval history in the contemporary times.
TEL Tempo, Espaço e Linguagem, v. 8, n. 2, p. 16-31, 2018.
OS DITOS CRUZADOS DO SÉCULO XXI: O BRASIL E A
IDEALIZAÇÃO CONSERVADORA ACERCA DA PRIMEIRA
CRUZADA
Juan Stephanié Leal Araújo

“Esta cruzada... esta guerra ao terrorismo demorará um pouco. E o povo 111


americano deve ser paciente. Eu serei paciente.” [Bush, 2001], foi o que
proferiu o presidente George W. Bush, de forma resoluta, numa entrevista
memorável diante o verdor do Gramado Sul da Casa Branca, em
Washington D.C. no dia dezesseis de setembro do ano de dois mil e um,
cinco dias após os atentados responsáveis pelas mortes de quase três mil
cidadãos norte-americanos em solo estadunidense. A resposta foi imediata,
apesar de sua retórica questionável ter sido pouco debatida frente ao
impacto carregado por aquelas mesmas palavras. As distintas reações
correram o mundo de maneira tão significativa, que tempos mais tardes o
próprio Bush se desculparia pela irresponsável alusão ao movimento bélico-
religioso. Sua desculpa, no entanto, ocorreu tardiamente.

Em sua colocação, o presidente Bush evocava o sangrento conflito ocorrido


durante Idade Média entre a cristandade e os adeptos do islã. Esse
conhecido momento histórico ganhou força a partir do apelo feito pelo papa
Urbano II no Concílio de Clermont em 1095:

“Depois de ter descrito os sofrimentos por que passavam os cristãos do


Oriente, o papa [Urbano II] exortou os cristãos do Ocidente a que
cessassem suas guerras fratricidas, esquecessem seus ódios e se unissem
para combater os pagãos e libertar seus irmãos do Oriente. Sem esconder
os desconfortos que encontrariam os peregrinos em sua estrada, o papa
apelou para a renúncia e o sacrifício, empregando as palavras do evangelho
segundo São Mateus (16:24): ‘Quem quiser vir após mim, negue-se a si
mesmo, tome a sua cruz e siga-me’. Perante tal apelo, a multidão
entusiasmada [...] decidiu-se, na mesma hora, de acordo com o bispo de
Puy-en-Velay, Adhémar de Monteil, nomeado legado papal e chefe da
expedição, a ‘tomar sua cruz’ e fazer o voto de partir para Jerusalém. Como
símbolo do voto que haviam feito, os primeiros voluntários mandaram
costurar nas costas de suas vestes uma cruz de pano, o que fez com que
fossem denominados os cruce signati.”[Morrison, 1984]

Coincidência ou não, a fala do Chefe do Estado estadunidense marcaria


apenas um primeiro movimento estrategicamente bem tomado pelo seu
lado da mesa. Estabelecido o inimigo externo na mentalidade
estadunidense, o país não tardou em lançar-se em uma longa e violenta
campanha militar contra o que os ianques compreendiam ser o grande mal
do novo século: a tirania de um Oriente Médio anti-liberdade; e, quase
como consequência, da própria religião que os moldava àquela forma: o
Islã. Assim a questão foi posta diante do Mundo Ocidental, uma distorção
perigosa, uma visão preconceituosa acerca de uma cultura que a nós era
geograficamente distante e culturalmente pouco conhecida. A nova leva de
preconceitos islamofóbicos nascidos daí seriam enraizados no senso comum
de um povo tomado pelo medo e pelo ódio. Nota-se o campo perfeito para
um futuro inundado de violência. Rapidamente, um cenário capaz de
transformar Samuel P. Huntington em um novo Nostradamus foi
forçadamente definido. Ainda no dia dezesseis de setembro de dois mil e
um, Bush afirmou assertivamente: “É hora de vencermos a primeira guerra
112
do século XXI de forma decisiva, para que nossos filhos e netos possam
viver pacificamente [...]” [Bush, 2001]. Ironicamente, os passos seguintes
dados pela maior potência do mundo Ocidental culminariam em resultados
contrários àqueles prometidos pelas palavras problemáticas do senhor
Presidente. A guerra instigada por Bush reverberaria por um longo tempo,
sendo ela responsável por fortalecer células terroristas em território inimigo
e, acima de tudo, de incutir na mente islâmica um forte sentimento
antiamericano [O’Connor, 2004].

Deus Vult no Brasil: a expressão como símbolo da idealização


histórica
Pouco além de uma década seguinte à entrevista do ex-líder norte-
americano, os ecos de suas palavras ainda ressoariam por todo sistema
global de redes de computadores: a internet ainda encontra-se atulhada de
conservadores travestidos de inofensivos criadores de conteúdos
humorísticos; ávidos por alçarem uma bandeira cujo lema atribuído às
Cruzadas, “Deus Vult” (isto é, “Deus [o] Quer”), continua hasteado num
sinal quase sempre velado de uma nada cômica ameaça.

É no mínimo paradoxal perceber como estas narrativas aparentemente


supérfluas difundiram-se por tanto tempo mesmo em mundos cujas
realidades imigratórias possuem grande dessemelhança com aquela sobre a
qual ainda vivem os Estados Unidos da América e seus antigos aliados das
guerras travadas no Oriente Médio. Um fenômeno que observamos não só
surgir e sobreviver, mas também encontrar solo fértil em terras tupiniquins
[Delcourt, 2013]. No Brasil, país que atravessa uma séria crise identitária,
econômica e política desde o início da atual década, as respostas velozes e
imprudentemente práticas do conservadorismo verde-e-amarelo serviram
muito bem como respostas simples e prontas às indagações de uma massa
desnorteada em busca de um direcionamento que a guiasse diretamente ao
sucesso na resolução dos muitos impasses nacionais. Esta foi uma das
razões pela qual o ex-deputado federal Jair Messias Bolsonaro conseguiu ser
eleito ao cargo mais importante do país, mesmo submerso em declarações
polêmicas contra grupos constantemente marginalizados.

Sua eleição devolveu-nos um antigo conhecido: “Está decretada a nova


cruzada! Deus vult!” [Martins, 2018], como publicou Filipe Garcia Martins
Pereira, um influente bolsonarista, em seu twitter pessoal 22 de Outubro de
2018, diante da vitória nas urnas do atual Presidente do Brasil. Seu
comentário serviu quase como um vitral ilustrativo (ou um espelho
distorcido) de uma realidade já vivida ao redor de todo o globo: a
apropriação de uma grave interpretação maniqueísta e superficial acerca
das Cruzadas por uma direita conservadora.
Ora, no mundo em que a cultura pop vende aos montes produtos de teor
pseudomedievalistas, não é de se espantar a fervorosa afinidade da massa
para com a Idade Média. O Senhor dos Anéis, Vikings, Game of Thrones e
até mesmo a saga Harry Potter usam e abusam de representações que se
distanciam, pela licença poética que carregam como obras ficcionais, pelo
desconhecimento ou pela simples liberdade, da realidade histórica. As
idealizações ultrarromânticas/neoromânticas carregadas nestas inverdades, 113
no entanto, descambam para um relevante problema público quando se há
um déficit claro no que diz respeito à compreensão nacional (e
internacional) acerca da Idade Média. Sobre isso, Richard Utz recobrou com
pesar que:

“Talvez nós temos que começar admitindo que, ao gozar de um esplêndido


isolamento –que nos permitiu aprender muito sobre a cultura medieval –
,falhamos ao compartilhar tal conhecimento com o público. Como resultado,
um filme de 178 minutos, Coração Valente (Braveheart) foi capaz de apagar
aquilo que 150 anos de erudição tinha estabelecido quanto à Primeira Noite
do Senhor (um rumor de direito feudal do senhor para tomar a virgindade
das filhas recém-casadas de seus servos).” [Utz, 2015]

O retrato desta carência se faz presente não somente nos centros


universitários, mas transpassam mesmo a grossa muralha situada entre a
pomposa técnica academicista e a distante realidade educacional do Ensino
Fundamental e Médio do país. Uma parcela considerável das pesquisas
brasileiras mais criteriosas (no sentido da profundidade em seu conteúdo
analisado) sobre a Idade Média mostram-se incapazes de resvalarem no
ensino escolar há muito engessado [Pachá, 2019]. Assim sendo, estas
mesmas escolas continuam a reprisar uma historiografia medieval
embolorada e que, por diversas razões, apresenta os já conhecidos cenários
unilaterais, simplistas e acríticos.

O chamado pela cruzada: o breve período de tentativa de


desmarginalização das minorias
Quando a ignorância é utilizada como ferramenta de manutenção de poder,
espera-se certa facilidade de manipulação massiva. Durante a última
década, numerosos grupos socialmente marginalizados assistiram, no Brasil
e no mundo, a passagem fugaz do lampejo de esperança ante os seus
olhos. Com direitos conquistados ao redor do globo através de históricos de
longas e árduas lutas, pretos, mulheres, indígenas e LGBTQIAP+ puderam
fazer uso, em larga escala, de suas vozes roucas de clamarem por
igualdade e respeito. As políticas de inclusão tornaram-se, rapidamente,
elementos fundamentais para a vivência dignamente humana daqueles
inseridos no contexto das chamadas “minorias”. Assim, estes, que
continuadamente eram lançados à margem, puderam respirar aliviados por
um breve momento [Andrighetto; Olsson, 2014].

A dita maioria relutou, no entanto, para compreender a importância desta


onda de inclusão social no país. Não demorou até que os conservadores
tomassem a dianteira, pois, da estimulação de uma desavença que seria
transformada, no futuro, em espetáculo político. Logo uma lógica execrável
foi traçada e difundida: “se vejo mais marginalizado na rua hoje, isso ocorre
porque a esquerda promove a sua existência!”. Inflados de preconceitos, os
cristãos mais fervorosos logo iniciariam um período conflituoso com a gente
que havia, finalmente, adquirido o devido protagonismo. O ápice deste
conflito, conclui-se, deu-se durante a eleição presidencial de 2018.

114
Vivenciando um período do que, para a extrema-direita nacional, é a
demonstração clara da promiscuidade e da devassidão humana, o
conservadorismo brasileiro entende um risco (irreal) corrido pela moral e os
bons costumes cristãos. Assim, não é de se espantar que as Cruzadas
tenham servido como um dos modelos norteadores de referência.

Entre a cruz e a espada: uma busca identitária


Concomitantemente do anseio conservador-cristão, correu a busca por uma
identidade perdida através de um amontoado de retalhos da História. Mais:
esta busca não se deu às escuras, para encontrar algo em meio ao
desconhecido, mas de conhecer a si mesmo, sua pátria e sua gente, sem
receios das peças que a própria História poderia pregar. Não. Quando a
empresa de produção cinematográfica encabeçada por liberais, intitulada
Brasil Paralelo, publicou gratuitamente uma série de seis vídeos que propõe
difundir a verdade acerca da identidade brasileira, cujo conteúdo cabal do
primeiro episódio é um vasto panorama reducionista de uma “Europa
medieval” somada à intensa campanha em prol ao movimento cruzadista,
sua intenção foi clara: não promover a demonstração da verdade identitária
– algo que buscam com avidez –, mas a pretensão de ligá-la, de alguma
forma, ao evento concluído por eles próprios como a faceta bondosa de
pretensas lutas maniqueístas na Idade Média; ao agir assim, fizeram uso do
condenável artifício de negacionismo histórico.

Deste modo, a idealização da Primeira Cruzada, tradicionalmente encerrada


com a conquista cristã de Jerusalém em 1099, respondeu à necessidade
atual de estabelecer um modelo a ser seguido. Este modelo está ligado à
exclusão social do negro, do pardo e do mulçumano, o apreço à virilidade
masculina ante a fragilidade de características atribuídas ao que é feminino
e aos padrões nobres da justiça, da ética e da moral cristã, fundamentos
que dialogam assustadoramente bem com as exigências de um
conservadorismo atuante. Assim, proclamar “Deus vult” hoje é fazer parte
de um processo de readequação da História, sem se importar em de fato
compreendê-la em suas múltiplas interpretações (mas sem promover
falseamentos).

Não obstante, não é a primeira vez que estas readequações são feitas no
sentido de estabelecimento de um imaginário próprio acerca das cruzadas.
Durante o período de forjadura das identidades nacionais na Europa, a
partir do final do século XVIII, algo semelhante ganhou forma e força. É
exatamente devido a isso, pois, que a historiografia europeia menos recente
é tão marcada pela valorização dos homens que travaram contra os adeptos
do islamismo uma sangrenta guerra santa.
Confrontando um conflito: a primeira cruzada
Mais de uma vez, o entendimento das Cruzadas – e aqui vale um adendo: o
termo “Cruzada”, tal como utilizado em nossa contemporaneidade, tem seu
uso datado a partir de uma historiografia posterior a Idade Média. Durante
o período medieval, as expedições militares/religiosas eram muitas vezes
referidas como “o caminho do Santo Sepulcro” ou “a viagem de Jerusalém”
[Morrison, 1984] – isto é, a ideia de uma simples resposta defensiva da 115
Cristandade diante da expansão violenta do islamismo foi refutada. Desde
os estudos do historiador inglês Jonathan Riley-Smith (1938-2016), cuja
vida foi dedicada à busca pela compreensão mais crítica acerca evento, até
uma visitação aos escritos mais tradicionais deste lado do Atlântico a cabo
do Jean Flori (1936-2018), é possível traçar uma lógica que nos leve a
perceber o fenômeno em suas múltiplas realidades.

Assim, podemos afirmar que Concílio de Clermont (1095), responsável por


dar início à campanha em direção à Jerusalém, estava longe de ser apenas
um movimento de teor protetivo a uma cultura religiosa ameaçada, como
pregam os negacionistas que a nós são contemporâneos. O próprio Papa
Urbano II tinha interesses inegáveis nos benefícios que um evento daquele
porte poderia trazer, visto a perda recente dos domínios da Igreja com a
cisma da instituição quase meio século antes [Falbel, 2001].

De fato, um receio pairava pelo território que hoje é compreendido como a


Europa. As tradições escatológicas em voga naquele período de austeridade
advindas por inúmeras guerras produziam um ambiente de supersticiosas e
constantes incertezas em torno do ano mil [Duby, 1967]. A intepretação
literal de trechos do livro bíblico do Apocalipse fazia o homem medieval
repensar seus momentos de depravação e conceber, de fato, partir numa
luta em nome de Deus. Assim, afinal, ele poderia ser agraciado pela
redenção de sua alma concebida pela autoridade divina do Papa. Além
disso, a Conquista mulçumana da Península Ibérica quase quatrocentos
anos antes do chamado de Urbano II havia criado um histórico no qual eles
poderiam se fiar e, assim, buscar proteção.

Estes meros fatos, no entanto, não foram suficientes razões para


movimentar as tropas de Balduíno, Boemundo, Eustácio III de Bolonha,
Godofredo de Bulhão, Raimundo IV de Toulouse e Roberto II da Normandia.
Havia concomitantemente um desejo pela possibilidade de novas riquezas e
domínios. Esses anseios mostram-se claros nas ocorrências de saques ao
redor de Constantinopla por parte da força militar popular da Cristandade,
liderada por Pedro de Amiens, dada à longa espera pelo auxílio logístico do
Império Bizantino [Morrison, 1984]. Está exposto também na retomada,
pelas forças de Boemundo, de uma importante cidade bizantina: Antioquia
(conquistada por forças mulçumanas no 1085). Ora, este não tardou em
proclamar-se Boemundo I, príncipe de Antioquia, algo que desagradou
profundamente o Imperador.

Além das pilhagens, a exagerada violência física também era uma realidade
vivenciada por aqueles que eram postos na posição de alvos da
Cristandade. O que pode se tirar como resquício da nobreza cristã de
alguém como, por exemplo, Emico de Flonhein? O líder cruzado, que tinha
sob sua custódia um poderoso exército, massacrou a população judaica das
cidades de Spira, Mogúncia, Colônia, Trier e Worms, mesmo quando seus
senhores demostravam resistência [Falbel, 2001]. Existia, também, um
esforço considerável da Igreja na tentativa de impedir a proliferação de atos
como estes, mas nem mesmo as ameaças de excomunhão surtiram efeito,
116
como mostra, por exemplo, outro assassinato em massa de judeus em
Praga por ordens do padre Volkmar.

Diante disso, fui levado a crer que em época foi preciso produzir um inimigo
externo que materializasse a batalha entre as hostes celestiais e os
verdugos do inferno. Entrementes, devemos compreender que não havia
razões para que o papa endossasse genocídios apenas em nome da fé, da
virilidade ou de riquezas. Para não avançar em questões de cunho
teológico, é possível avançar na ideia que as Cruzadas não ilustravam uma
batalha entre bons e maus, como têm se apressado a colocarem os
revisionistas conservadores. O presente trabalho, desta forma, não tem a
intenção de subverter ou inverter concepções heróicas ou vilanescas, mas
demonstrar que esses parâmetros foram muitas vezes idealizados e
instrumentalizados em prol de certos fins. O que havia, sem qualquer
dúvida, era um evento complexo que envolvia não somente questões de fé,
mas também tópicos culturais e, acima de tudo, políticos.

Considerações finais
A Idade Média, mesmo em um cenário de retomada romântica e idealizada,
apresenta, em seu sentido mais historiográfico, um forte estigma ligado ao
princípio de distanciamento da realidade contemporânea. Este problema,
amplificado devido aos questionamentos de uma massa leiga acerca das
razões práticas do estudo e ensino da História, concede ao período uma
imensa possibilidade de ser moldado às necessidades de um tempo
presente, sem que suas falácias sejam amplamente denunciadas.

Resta-nos, posto isto, expandir a compreensão geral com relação ao


período para que, assim, possamos demonstrar como seus elementos
implicam constante e diretamente nas múltiplas vivências que nos rodeiam.

Vivemos talvez o momento ideal para que a Idade Média, em sua percepção
diversificada, ganhe espaço na compreensão pública: a popularidade,
mesmo que de imaginários e representações ficcionais, somadas a uma
ampla nova historiografia que abrange diálogos múltiplos, garante-nos
inúmeras ferramentas para que possamos demonstrar o período em seus
aspectos mais complexamente reais, além das possibilidades de diálogo
com outros campos e problemas.

Referências
Juan Stephanié Leal Araújo é graduando em Licenciatura Plena em História
Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Mata Norte).
ANDRIGHETTO, Aline; OLSSON, Gustavo André. Igualdade e proteção aos
direitos das minorias no Brasil. Espaço Jurídico - Journal of Law [IJJL] 15
(2), p. 443-460, jul./dez. 2014.
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1999.
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mundial. Outubro Revista, São Paulo 6, p.31-46, 2002. 117
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em:
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CAPÍTULO 1 – A Cruz e a Espada | Brasil – A Última Cruzada. Brasil
Paralelo. Youtube. 22 set. 2018. 51min45s. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=TkOlAKE7xqY&list=PL3yv1E7IiXySpilep
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DELCOURT, Laurent. Um TeaParty tropical: a ascensão de uma ‘nova
direita’ no Brasil. Revista do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais
20 (36), p.126-139, mai. 2019.
DUBY, Georges. O Ano Mil. Lisboa: Edições 70, 2002.
FALBEL, Nachman. Kidush Hashem: Crônicas Hebraicas sobre as Cruzadas.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001;
FILIPE, Martins G. Está decretada a nova cruzada. Deus vult! Twitter:
@filgmartin. 18 out. 2018. Disponível em
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2020.
MACEDO, J.R. & MONGELLI, Lênia Márcia (Orgs.). A Idade Média no
Cinema. Cotia: Ateliê Editorial, 2009.
MORRISON, Cecile. Cruzadas. Porto Alegre: LPM, 2009.
O’CONNOR, Brendon. A brief history of Anti-Americanism: from cultural
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with-the-crusades. Acesso 8 abr. 2020.
SOARES, Patrícia. Islamofobia sufoca e aterroriza muçulmanos em todo o
mundo, 2019. Carta Capital. Disponível em
www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/islamofobia-sufoca-e-
aterroriza-muculmanos-em-todo-o-mundo/. Acesso em 11 abr. 2020.
LITERATURA ESCANDINAVA NO ENSINO DE HISTÓRIA
MEDIEVAL
Lucas Pinto Soares

Sagas Islandesas como fontes literárias


Uma questão que deve ser abordada neste texto logo a priori, sendo um
118 debate de diversos historiadores e acadêmicos na área de literatura, é a
problematização do uso das sagas como fonte histórica, justamente por
estar fortemente ligada a uma narrativa que foi passada oralmente pela
sociedade escandinava medieval, além do seu caráter muitas vezes
fantasioso, tendo cristãos como compiladores e autores.

André Araújo de Oliveira mencionando Jane Smiley, afirma que mesmo as


sagas islandesas possuindo uma quantidade grande de autores anônimos,
elas continuam sendo consideradas enormes riquezas literárias da
humanidade. Walter Ong explicita que o heróico e maravilhoso serve para
organizar o conhecimento em um mundo oral - por isso estão tão presentes
nas sagas – e argumenta que nessas sociedades, como a islandesa pré-
cristã, o conhecimento precisava ser repetido inúmeras vezes ou se
perderia. [Ong, 1998, p. 33-84]. Conclui-se que as sagas “são
exemplificadas por meio de uma ausência da necessidade de um discurso
original, partindo da ideia de um discurso formado socialmente como uma
válvula de escape para a situação histórica a qual viviam” [Oliveira, 2015,
p. 29].

Vale ressaltar que representações e inovações de objetos que a Nova


História Cultural vem trazendo desde a década de 1950 [Burke, 1997] nos
permite fazer uma abordagem diferenciada sobre as fontes e sagas
medievais da Islândia. As sagas já são fontes para os estudiosos há muito
tempo, elas são capazes de demonstrar com uma personalidade de
narrativa única a história de uma sociedade com um sistema social e
religioso bem complexos, sendo os heróis e fantasias claramente meios de
tentar esconder ou sobrepassar pontos de vistas - nas sagas apresentadas
– das crenças pré-cristãs por padres e bispos que sabiam o quão a
religiosidade estava inerente a cultura dos povos nórdicos.

Provar que as sagas e contos islandeses seguem à risca os fatos da história


medieval em questão não é a perspectiva, afinal, esse não é o papel do
historiador, mas sim apontar o poder que essas narrativas têm de
apresentarem a visão de uma cultura a respeito do mundo, um
posicionamento sobre tempo e espaço de uma realidade. [Fernandes, 2016,
p.24]. Utilizar das sagas para entendermos a sociedade escandinava
medieval implica em utilizar da interdisciplinaridade de estudos históricos
com literatura. Tiago Quintana, acadêmico de literatura, tem o foco no
estudo das sagas e contos islandeses para obter uma perspectiva histórico-
literária das características socioculturais presentes nessas narrativas. Em
um de seus textos encontramos uma provocação a respeito do uso das
sagas e contos como fontes primárias para entendermos a cultura da
sociedade em questão, onde afirma que nem sempre devemos tomar a
literatura como base única e sólida para se estudar História, porém, no caso
islandês, devemos considerar que a literatura tem suas próprias
necessidades, pois independe da veracidade factual da narrativa. Podemos
sim afirmar que textos literários têm sido usados para encobrir a História ou
tentar modificá-la, mas a “evolução” do estudo da História influencia
diretamente na percepção do estudo da literatura, afinal, a mesma, mesmo
que possuindo distorções perceptíveis, continua sendo reflexo da sociedade 119
que a produz. [Quintana, 2010, p.50]

O uso destas sagas como fonte primária ganha adeptos pelo impacto que
elas certamente causavam no povo e marcou na história da cultura. Desta
maneira, também vale a afirmação de que uma obra que beira a ficção –
contos nórdicos – pode ser usada como prática discursiva para se apoiar ou
confrontar hegemonias de ideologias existentes, e esta observação deve
sempre caminhar com os limites dos estudos históricos e literários.
[Quintana, 2013, p.178]

Utilização das sagas na construção do imaginário medieval cristão-


escandinavo
Através das sagas islandesas podemos concernir como os escandinavos –
neste momento bispos cristãos escrevendo “a história” - liam suas
realidades, por meio da compreensão do imaginário. A arte, e por sua vez a
literatura, garantem um visão sem limites e pura da realidade, o objetivo de
grande parte dessas escrituras em forma de sagas e contos não possuem o
objetivo de nos mostrar minuciosamente o que estavam vivendo, e mesmo
as que possuíam essa função acabam demonstrando o desígnio apontado
nesse texto.

Historiadores professores interessados na utilização de fontes literárias em


seus textos e aulas de história medieval devem construir as orientações de
leituras para as interpretações do imaginário ali presente. A partir de
análises das sagas, observamos os bispos autores e compiladores
influenciando no imaginário dos que ainda não tinham aceitado a fé cristã,
de maneira que naturalizavam a nova crença na história dos escandinavos
ao sobrepujar o deus cristão e seus milagres, os feitos dos bispos aos
deuses do panteão nórdico e os feitos de seus heróis.
“O rei disse: Por que você veio aqui até nós? Gest respondeu: Isso veio à
minha mente. Eu vim aqui esperando que alguma coisa boa acontecesse a
mim, já que você foi muito elogiado por homens bons e sábios. O rei disse:
Você fará o santo batismo agora? Gest respondeu: Eu farei o que você
aconselhar. Isso foi feito, e o rei o levou ao seu afeto e o tornou um dos
seus retentores. Gest era leal ao rei e seguia bem os costumes dele. O
120
velho homem era amado por todos.” [Thordson; Thorhalson, 1921]. A
imagem acima mostra a representação da morte de Nornagest por Gunnar
Vidar. Historiadores e artistas no século XIX leram as sagas e se inspiraram
para realizarem suas obras. Norn é um personagem fictício presente no
conto islandês intitulado Norna-Gests Tháttr datado do ano de 1300 ou
início do século XIV. Este conto e muitos outros estão em um códice
compilado conhecido como Flateyjarbók com a autoria dos bispos Jon
Thordson e Magnus Thorhlson. Norn, um velho homem, um certo dia
chegou no castelo do rei Olaf Tryggvason em Trandheim (apesar da história
possuir acontecimentos fictícios, Olaf I foi realmente o rei da Noruega entre
os anos 995 – 1000 e é responsável de levar o cristianismo ao país e para a
Islândia), onde foi recebido e acolhido, ele contou suas histórias e vivências
com grandes heróis e guerreiros vikings como Ragnar Lodbrok e Sigurd
Sigmundarson, mas que também era amaldiçoado. Sua maldição era viver
eternamente, e já possuía mais de 200 anos de idade. O rei comovido
oferece a quebra da maldição e o descanso eterno que Norn sonhava em
ter, mas para isso o homem centenário precisaria aceitar ser batizado. Ao
aceitar, o homem que vivera bastante coisa ao lado de grandes figuras
escandinavas, falece e pode desfrutar do sono eterno oferecido pelo deus
cristão.

O conto de Norna, brevemente apresentado, contém um caráter forte para


a compreensão do conceito de imaginário medieval que procuramos
evidenciar nesse texto. Devemos compreender aqui que o velho homem da
história é uma representação da antiga cultura nórdica, que era conhecida e
vivida pelos ancestrais noruegueses e islandeses, além de tudo, a história
fantástica por trás de Norna era o sobrenatural admirado pelos povos do
norte. Portanto, a colocação de inferioridade na figura do homem esboçada
pelos padres, junto a um nítido ar de “desmotivação” do mesmo em
continuar a viver mesmo passando por coisas invejáveis para qualquer
escandinavo, muda a concepção do imaginário dos leitores perante a antiga
crença.

Estariam mesmo os deuses Odin, Freya, Frigga e Thor não “satisfazendo”


mais os desejos de seus adoradores? Essa noção em si já faz parte de um
pensamento cristão. Algo que faz parte desse debate a respeito do
imaginário das fontes literárias escandinavas no conto de Norna-Gests e
provavelmente em todas as sagas compiladas por padres e bispos
islandeses é a forma como estes colocaram o cristianismo como “remédio”
para todo o “mal” presentes na fé nórdica, pois é necessário que se
convertam a sua religião para a dominação dos outros e é necessária a
dominação para melhor controlar um povo e evitar conflitos. A nova fé é
utilizada como princípio moral e as escrituras das sagas e contos como
ferramentas. Esse era um pensamento dos cristãos do medievo, tanto dos
novos convertidos quanto dos que depois vieram.

O rei norueguês Olaf Tryggvason (995 – 1000) aparece em diversos contos


e sagas e é famoso por ser o primeiro a criar caravanas de missionários
para levar o cristianismo para a Islândia e Noruega, o que torna sua
generosidade parcial na ajuda a Gest, além disso, o imaginário cristão da 121
história da Islândia medieval é construído a partir do momento que o rei
cristão possui o poder de desfazer a maldição através do batismo. O feitiço
do velho homem é inserido no conto como maldição, ou seja, uma
concepção cristã da imortalidade de Norna. Provavelmente, a imortalidade e
a chance de viver e lutar ao lado de heróis e reis lendários não seria
encarado como uma maldição por vikings dos séculos VIII, IX e X.

Vimos, portanto, que contos e sagas podem possuir um discurso ideológico


que apoie a hegemonia religiosa cristã pelo fato delas terem sido escritas
por representantes cristãos, que observavam as crenças pagãs como mitos
[Barreiro, 2016, p.98]. Dessa maneira, em uma breve análise e observação
crítica do conto de Norna-Gests, que introduz o rei Olaf Tryggvason ao
imaginário islandês do século XIV como símbolo da cristianização nórdica,
observamos que clérigos com a missão de escrever a memória da
Escandinávia apropriavam-se de histórias dos ancestrais para escrever
ficções a fim de uma construção e transformação do imaginário da
sociedade [Quintana, 2013, p.194–195]. Marc Bloch afirma que milagres
presentes nas sagas atribuídos a reis cristãos - como curas realizadas por
Olavo, O Santo, no final do século X - são representações explícitas dessas
tentativas de alteração do imaginário escandinavo através de produções
literárias. [Bloch, 1999, p. 72].

“A historiografia islandesa dos séculos XII e XIII não estava preocupada


com a dicotomia entre a história secular e sagrada. A história retratada nas
sagas islandesas desenvolveu-se inteiramente na terra e é feita por homens
ativos perseguindo seus próprios interesses e objetivos humanos.”
[Gurevich, 1992, p. 115]. As sagas como narrativas de histórias e cultura
do povo nórdico, por influência de quem as conta em períodos posteriores,
transformam-se em instrumento de consolidação da religião cristã, fixando
no imaginário escandinavo uma alteração de elementos acontecidos durante
o contato com os pagãos, ao mesmo tempo que apresenta outros
elementos, alterando histórias contadas pelos ancestrais a fim de
implementar um sentimento de pertencimento do cristianismo em sua
própria História [Fernandes; Oliveira, 2016, p. 78 – 79]. Nessa perspectiva,
a leitura das sagas foi aceita e suas produções estimuladas, implicando, ao
mesmo tempo, no fortalecimento de uma cultura escrita na Escandinávia.

Fontes literárias e o Ensino de História medieval.


A pesquisa brasileira sobre os povos escandinavos e os vikings vêm
ganhando cada vez mais estudiosos, dessa maneira, materiais em diversos
temas estão sendo produzidos na língua portuguesa. É evidente que, a
cultura nórdica está em ascensão em quase todos os nichos da mídia, como
livros, jogos eletrônicos, animes, filmes e séries, além da academia.
Portanto, o diálogo aqui proposto entre a compreensão do imaginário
medieval e as sagas islandesas para o ensino de história deve levar em
consideração essas obras contemporâneas. O professor, por exemplo, pode
comparar e debater o imaginário da cosmologia e mitologia presentes na
obra do historiador, poeta e político Snorri Sturluson “The Prose Edda” do
século XIII com o livro “The Lord of The Rings” (que inspirou a trilogia de
122
filmes “O Senhor dos Anéis”) do escritor J. R. R. Tolkien da primeira
metade do século XX ou com o “Mitologia Nórdica” do escritor Neil Gaiman
de 2017, até mesmo discutir a representação de Odin no livro "Deuses
americanos" de 2001 também de Gaiman. Todos textos que permitem o
estudo das perspectivas do imaginário escandinavo e sua influência
atualmente.

Estes textos, como alguns outros, possuem tradução para o português,


facilitando a utilização, porém, a grande maioria dos contos e sagas que
enriqueceriam o debate a respeito do medievo e o imaginário se encontram
traduzidos apenas do nórdico antigo para o inglês (como O Conto de Norna-
Gests), cabendo ao professor, com os diversos meios e sites de traduções,
pegar trechos avaliados como importantes para as aulas e traduzir para o
português.

Conhecemos as dificuldades de trabalhar fontes do medievo, pois além de


serem escassas, boa parte não está nem em inglês, mas vale ressaltar que
a tecnologia hoje está a nosso favor. Podemos obter livros, códices e
documentos que estão do outro lado do mundo com apenas alguns cliques e
minutos de pesquisa. Logo, o problema de tradução para a língua
portuguesa é facilmente superado pelo valor de conhecimento que esses
escritos nos proporcionam. Por isso a importância da valorização dos
pesquisadores brasileiros nessas áreas, os estudiosos escandinavos estão
enriquecendo os objetos sobre as sagas, o que provavelmente irá resultar
em traduções desses registros, e um ótimo exemplo disso é o projeto de
tradução para o português da Brennu-Njáls Saga, do século XIII de Théo
Moosburger, que se tornou sua tese de doutorado concluída no ano de
2014.

Por fim, este breve texto tem como objetivo salientar a importância dos
escritos literários na construção do conhecimento medieval e no ensino de
história. Como dito anteriormente, há um tempo vem ocorrendo a
ampliação de objetos de estudos para pesquisas, problematizações,
conteúdos e fontes históricas, especialmente quando tratamos de temas
medievais e de história antiga.

A relevância do cruzamento da multidisciplinaridade entre Literatura e


Ensino de História nos leva a subjetivação positiva de seres críticos,
conscientes e inseridos no objeto que estão pesquisando, pois, a literatura
produzida em todo espaço/ tempo permite uma melhor leitura da realidade
e do imaginário de inúmeros povos e sociedades durante a História, assim,
nos permitindo a capacidade de interpretar contextos e situações
diversas[Correia, 2012, p. 181]. O Ensino de História, tanto em graus
superiores quanto no ensino fundamental, responde questões
interpretativas sociais, políticas e culturais contemporâneas, modernas,
medievais e antigas, através dos discursos presentes em diversos textos
literários e suas linguagens. [Rachadel; Felisberto; Venera, 2010].

Quando estudamos história medieval – principalmente de civilizações


consideradas derrotadas, como o caso dos escandinavos perante o
cristianismo – não podemos levar em consideração somente aspectos 123
políticos de um determinado objeto, pois devemos compreender que
somente “o lado vencedor” detém o poder de retratar, com sua visão
imparcial, estas perspectivas na História, mas, é necessário levarmos em
conta outras implicações, como econômicas, sociais e culturais. Tendo em
vista que as sagas e contos aqui explicitados relatando acontecimentos da
História dos escandinavos foram compilados e descritos por bispos, é
importante o professor historiador utilizar de sua capacitação para
problematizar os acontecimentos narrados nesses escritos, identificando
interesses e perspectivas particulares dos autores. Os textos literários como
fontes dos historiadores permitem o alcance do imaginário, entender nas
entrelinhas dos “fatos verdadeiros” as concepções do tema estudado. “A
força literária modela o imaginário” [Fernandes, 2016, p. 9]. Portanto, nós,
alunos e professores, somos instigados ao prazer de investigar, interpretar
e compreender estes registros medievais como se estivéssemos vivendo o
presente em séculos atrás.

Referências
Lucas Pinto Soares é Graduado em História Bacharel e Licenciatura pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e mestrando em História Política
e Cultural no Programa de Pós-Graduação – UERJ.

BARREIRO, Santiago. Pagãos fictícios, feiticeiros imaginários, alteridades


literárias: As sagas islandesas como fonte historiográfica e sua
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BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras,
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Fonte
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Tradução para o inglês por Nora Kershaw. Germanic Mythology. 1921.
Disponível em:
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ershaw.html Acesso em 10/04/2020.
HELOÍSA: O CONHECIMENTO POR TRÁS DAS EPÍSTOLAS
Luciana Alves Maciel

Heloísa [c.1100-1164] de Pedro Abelardo [1079-1142]. É assim que ela


vem ao longo de décadas sendo identificada pela historiografia. No entanto,
quando jovem, Heloísa já era reconhecida por sua beleza e reverenciada por
sua inteligência em toda a França. Abelardo por sua vez era um filósofo, 125
mestre da retórica e da dialética que irá se aproximar de Heloísa sem ter
“[...]o amor por desculpa: foi friamente, de propósito deliberado, por
passatempo, que Abelardo enganou a confiança de Fulbert” [Michelet,
2014] para se achegar à Heloísa.

Argenteuil
Fundado no século VII, o monastério de Santa Maria D’Argenteuil sofreu
com as invasões normandas entre os séculos IX e X. No século XI, foi
restaurado por interferência de Adelaide de Aquitânia [c. 945-1004], a
então esposa de Hugo Capeto [c.940-996], e se tornou um monastério
feminino. Foi neste monastério que Heloísa teve seus primeiros
ensinamentos. Ela sai de Argenteuil por volta dos 16 anos e vai viver com
seu tio Fulbert, já reconhecida por sua inteligência Heloísa falava latim de
maneira fluente e fora treinada nos clássicos com conhecimento de letras e
retórica, além do hebraico e do grego.

Antes de conhecer Abelardo, Heloísa pensava somente nos estudos, sem se


preocupar com os prazeres oferecidos pelo mundo a ponto de “ultrapassar
quase todos os homens” [Duby, 2013, p. 53]. Ainda segundo Georges
Duby, ao tomar o hábito ela “colocou-se, em completa submissão, a serviço
de Cristo, tornando-se assim uma ‘mulher filosófica’.” Tais conhecimentos
foram reconhecidos por Abelardo e ditos como dela, ao sugerir que as
monjas, reclusas no Monastério do Paraclito fizessem uso de seu
conhecimento nas três línguas bíblicas:

“[...] vocês têm um líder e professor em sua mãe [Heloísa], que pode
responder a qualquer necessidade, tanto como um exemplo de virtude
como professor de letras. Pois ela não é apenas aprendida na literatura
latina, bem como em hebraico e grego, mas, aparentemente sozinha nesta
era, ela goza de um comando das três línguas [...]”. [Pedro Abelardo,
Epístola, 1133-1137]

Foram estes atributos que fizeram com que Abelardo induzisse Fulbert a
contratá-lo como mestre de Heloísa. Como tal, era esperado que ele
aprimorasse sua leitura, assim como seu modo de se expressar e recitar as
escrituras. Mas os dois acabam por se apaixonar e viver um romance que
durou aproximadamente dois anos. Uma vez descoberto o relacionamento,
Heloísa foge grávida para Bretanha onde deu à luz a Astrolábio. Após o
nascimento, voltou a Paris para se casar com Abelardo em segredo, à
época, um filósofo não poderia se dedicar ao mesmo tempo à filosofia e a
mulher. Casados ele a envia para viver novamente em Argenteuil.
Afastado de Heloísa, Abelardo se instalou na abadia de Saint-Denys, onde
recebeu o hábito monástico. Heloísa permaneceu em Argenteuil, fez seus
votos e por eleição, tornou-se priora. Em 1129 ela e as monjas são
expulsas do convento e acolhidas no monastério do Paracleto, com o
assentimento do Papa Inocêncio II († c.1143). Foi no monastério que
Heloísa teve contato com a Historia Calamitatum – redigida por Abelardo.
126
Na tentativa de alentar seu esposo e irmão em Cristo, Heloísa redige a
Consolation. A carta de consolo é a primeira das duas mais analisadas ao
longo de décadas como lamento de amor. Sem desacreditar do sentimento
por trás das palavras, mas levando em consideração: o conhecimento
adquirido, as condições necessárias para que ela ocupasse a posição de
abadessa e sua capacidade de corresponder com autoridades sobre
assuntos do claustro – ao mesmo tempo em que corresponde com Abelardo
– é que analiso suas epístolas.

Paris
É em Paris nos arredores da Ilha-de-Cité e do cloître de Notre Dame,
próximo à catedral, onde as “escolas de mestres” – de dialética soberana –
se desenvolveram com mais efervescência que encontramos Heloísa. É
neste ponto de convergência que os cônegos construíam suas moradias,
estimulando o desenvolvimento das escolas sob o controle de
estabelecimentos religiosos como: mosteiros, a própria catedral ou
colegiado, enfim, todos dependentes dos moldes instituídos pela Igreja.
Nesse espaço reconhecido por Jacques Le Goff como sendo “o espaço da
palavra”:

[...] a importância dos domínios do capítulo de Notre-Dame de Paris na


região parisiense – espaço onde se difundem, a princípio e sobretudo, os
modelos atuais elaborados pela cidade, a arquitetura da igreja paroquial, a
voz dos pregadores dos conventos mendicantes urbanos que estabeleceram
seu próprio território muitas vezes ainda mais vasto que o da cidade e que
eles chamaram de praedicatio, espaço da palavra [...] [Le Goff, 1992, p.
62].

Nesse contexto o mestre urbano era considerado um homem culto, erudito


e religioso. O gramático que ensinava a ler, falar e recitar as escrituras
também era responsável pela disciplina de seus discípulos. Em sua maioria,
professores e alunos eram clérigos, “[...] um termo ambíguo que designa
tanto o homem religioso como o erudito” [Friaça, 1999, p. 26]. Os
professores vão surgir nas Escolas Catedrais, onde se formará o centro da
vida intelectual com um mestre eloquente que também faz uso da filosofia e
da teologia, e através da Igreja se tornará o detentor da cultura formal e
saber intelectual do século. Saber que é também um produto do acúmulo
cultural, da memória e da lembrança do que se viveu nas relações
construídas. Na memória de mestre e discípulo, segundo nos propõe C.
Stephen Jaeger, “[...] de maior proveito que a palavra escrita ser-te-iam a
voz viva e a vida em comum de pupilo e mestre (convictus) [...] pois longo
é o caminho dos preceitos, e breve e eficaz o dos exemplos.” [Jaeger, 2019,
p. 98].
Com saber apurado, Abelardo era um representante de condição elevada
entre os intelectuais do século. Com habilidade refutou o próprio mestre
Guillaume de Champeaux [1070-1121]. E essa sua capacidade foi o que lhe
proporcionou o sucesso como mestre e o fez se sobressair entre os demais.
Nesse período no qual o mestre se destacava com sua audácia e coragem, a
imitação do professor – provavelmente a mais antiga forma de pedagogia,
se difunde nas cidades. C. Stephen Jaeger nos indica essa possibilidade 127
como uma das funções do mestre para o século, segundo ele “[...] o pupilo
como que à sombra do mestre que, ao educa-lo, fez dele o que ele é, ou,
por outra, fê-lo à sua imagem e semelhança” [Jaeger, 2019, p. 58-59]. O
que, como provocação nos faz questionar: ele teria passado a Heloísa essa
capacidade de provocar? Heloísa pela proximidade pode ter se tornado a
imagem e semelhança de seu mestre, Abelardo?

Os métodos então usados para ensinar eram basicamente pautados por


duas condições: ler e extrair sentido da leitura. A medida em que os textos
eram lidos, aconteciam pausas para comentar a leitura e entender o sentido
do que foi lido. Tendo feito isso, o próximo passo era extrair o que estava
oculto por trás do que se acabara de ser lido, fechando assim o ciclo da
compreensão. Esse modelo de educação das artes liberais tinha como base
o trivium e o quadrivium, que podia atrair sentidos diferentes para a leitura
das Escrituras. O trivium se dedicava à fala, à leitura e à escrita em função
da forma de interpretar e se expressar [gramática, dialética e retórica]
através das escrituras. Por sua vez, o quadrivium se preocupava com a
aritmética, a geometria, a música e a astronomia, todos orientados pelo
ensino da filosofia.

Nesse período, o desenvolvimento das escolas deu-se concomitantemente


com o surgimento e crescimento econômico das cidades, proporcionando
assim o aperfeiçoamento de Heloísa nas artes liberais. Pela gramática, o
professor melhorava o conhecimento de seu pupilo na fala, leitura e escrita
e ainda na explicação de autores clássicos. Com a retórica, ele aprendia as
formas de discursar, expressando-se com explicações através de palavras e
gestos e a matemática dará medidas para esse conhecimento, o
ensinamento nada mais é que um “instrumento para a compreensão da
palavra de Deus”. Heloísa mostrou-se como detentora desse conhecimento
clássico, “[...] e a extensão da sua cultura tornava-a uma mulher
excepcional” [Historia Calamitatum, McLaughlin; Wheeler, 2009, p. 23].
Poucas mulheres naquela época possuíam tanto conhecimento em retórica
quanto Heloísa. E foi da retórica que surgiu o topos narrativo do qual ela fez
tanto uso, sobretudo político, que acreditamos nos permitirá enxergar uma
Heloísa mais pragmática, capaz de negociar com diferentes pessoas a partir
de suas memórias pessoais, algo que também nos permite enxergar essa
personagem para além da jovem rebelde e apaixonada cristalizada pela
historiografia.

Todas essas transformações fomentaram as discussões sobre as escrituras


e autores deste e de outros séculos como: Aristóteles, Donato, Prisciano e
Cícero e poetas como Virgílio e Ovídio. As formas do saber não se
compreendem nesse período, sem passar pelo aprendizado da leitura e pela
maneira de expressar o entendimento da mesma. Com o objetivo de
“direcionar o olhar para o Além, [já que] é para esta direção que os
medievais se voltavam quando refletiam, escreviam e falavam. Na raiz
desse modelo está o desejo de diminuir a violência e alcançar e embutir no
conhecimento atitudes como a sobriedade e humildade e paradoxalmente, a
procura pelo amor fraterno através da educação passava pela punição
128
corporal dos estudantes, sobretudo os jovens e indisciplinados.” [Lanzieri
Júnior, 2009]. E esse foi o modelo de educação imposto a Heloísa – ainda
que contestado por ela.

Nesse ambiente de crescimento, é que irão surgir as possibilidades de


florescimento material, intelectual e espiritual do indivíduo já que “[...] as
condições de vida criadas pelas cidades, a aproximação de tantos homens
de origem diversa oferecia possibilidades inauditas de enriquecimento não
somente material, mas intelectual e espiritual” [Verger, 1990, p. 26-27]. De
toda transformação possível, a que nos interessa dentro da análise em
questão são as transformações psicológicas que ocorrem a partir desse
novo universo de relações de poder. As trocas de informações as quais
Heloísa acessou durante sua estada em Paris, com Abelardo e como as
utilizou em outros contextos.

Missivas para Abelardo


Antes mesmo de conhecer Abelardo, Heloísa já era reconhecida em toda
França por sua beleza, mas não só por isso, como nos possibilita
compreender a fala de Pedro, o Venerável [1092-1156]: “Eu mal acabava
de transpor os limites da adolescência, e não era nem mesmo jovem,
quando tomei conhecimento da reputação, não ainda da tua vida religiosa,
mais de teus nobres e louváveis estudos. Ouvia-se falar então desta
extraordinária raridade: uma mulher ainda envolvida nos laços do século e
que se entregava, entretanto, completamente ao estudo das Letras e da
Sabedoria sem que nada, nem os desejos do mundo, nem suas vaidades,
nem seus prazeres, pudesse desviá-la do louvável desígnio de aprender as
Artes Liberais” [Gilson, 2007, p. 148].

O conhecimento a que se referiu Pedro, o Venerável, é proveniente de sua


juventude. Heloísa fez uso de seu conhecimento para imprimir verdade em
suas missivas e questionar ou até mesmo opor-se às ideias de Abelardo.
Artifício retórico para dar substância à sua fala e assim tornar seu discurso
resistente e convincente. Para tanto, ela fez uso de fragmentos dos textos
de Sêneca, um importante escritor e filósofo da época do Império Romano;
Sócrates, um dos principais pensadores da Grécia antiga; Jerônimo, um dos
nomes da patrística; o poeta Ovídio, o papa São Gregório, São Bento
fundador da ordem dos Beneditinos; João Crisóstomo, teólogo e fundador
da Escola de Antioquia; Santo Agostinho, teólogo e bispo e Macróbio
Teodócio, escritor, filósofo e filólogo romano. Ela ainda se mostrou
conhecedora da literatura proibida quando citou Aspásia de Mileto (ca. 470
a.C – ca. 400 a. C), Oradora, literata y dissoluta, através de uma fala
Ésquilo (ca. 525 a. C? – 460 a. C), poeta e militar grego, considerado o pai
da tragédia grega. Esses dados recolhidos das duas epístolas enviadas a
Abelardo corroboram para demonstrar seu conhecimento, o que nos leva de
volta à afirmação de que ela fora educada nos moldes refinados da
aristocracia secular. Sua mãe Hersend estava ligada ao vidama de Chartres
– vidama era um título dado ao cavaleiro que ficava responsável por cuidar
dos interesses de uma abadia ou um bispado. Representante do seu senhor,
o vidama também era responsável por organizar o exército e recolher os
direitos feudais de seu senhor – é também descendente por parte de pai
dos Montmorency e dos condes de Beaumont, o que nos permite situa-la na 129
alta aristocracia da Ilê-de-France.

Nos dois anos que passa ao lado de Abelardo, em Paris, Heloísa gravitou em
uma das regiões mais urbanizadas da cristandade. Ela é o que chamo de
“campo de observação privilegiado” para analisar o processo acumulador de
conhecimento de um período às voltas com suas transformações. O que
está em análise não é tão somente a Heloisa esposa, mas uma jovem de
conhecimento, uma adulta apaixonada por seu sábio mestre e uma
abadessa – senhora de sua existência.

Heloísa enquanto abadessa do Paraclito se corresponde com Inocêncio II


[1131 e 1136] em datas que se aproximam de quando ela teve contato com
a História Calamitatum e redigiu sua primeira epístola para Abelardo, a
Consolation. Esse contato me apresentou uma Heloísa muito diferente
daquela desvendada pela historiografia. Enquanto abadessa, além de
Inocêncio ela se corresponde com: Alexandre III [1163], Eugênio III
[1147], Lucius II [1142], Anastasius IV [1153] e Hadrian IV [1154 – 1159],
e ela também recebe duas correspondências de Hugh Metel, um cânone
agostiniano. Ora, constatei então, que Heloísa é impulsiva e intempestiva
justamente quando pertence a uma rede de interdependência maior e mais
poderosa do que a de sua vida em Paris.

À luz dessa descoberta, minha hipótese é a seguinte: ainda que


involuntariamente, Heloísa recorreu aquele uso das emoções conforme
certas regras da retórica – que “combinada com o estilo da lógica e da
dialética [capacita] o discípulo a influenciar os ouvintes e, dado o caso,
também ‘tornar mais forte a causa mais fraca” [Curtius, 2013, p. 119], com
a qual ela teve afinidade desde o princípio de sua educação. Através de
suas missivas, Heloísa tentou manipular as estruturas. E, se, como diz
Curtius, no antigo sistema da retórica, tópica é o celeiro de provisões,
Heloísa em suas cartas fez uso desse celeiro ainda que não tivesse
conhecimento disso. Portanto, tento compreender com isso se os
componentes de emoção – ressaltados ao longo de décadas pela
historiografia – não seriam os recursos estratégicos fornecidos pela tópica
retórica.

São incansáveis os trabalhos para compreensão da personalidade e


comportamento da aristocracia no século XII, mas nenhum deles parte do
pressuposto de que seria possível a reestruturação, em um indivíduo
inserido socialmente e aparentemente dentro dos padrões esperados. E o
objeto de estudo de que trato, uma abadessa de grande importância – já
que devemos a ela a criação das regras para os mosteiros femininos – tem
seu reconhecimento historiográfico limitado a condição de esposa de
Abelardo. Ele a “mais alta expressão do meio parisiense” não podia se ligar
a ninguém menos importante que ele. Heloísa então, se encaixa
perfeitamente nesse modelo e surge no auge de sua carreira, ela é para
Abelardo como Le Goff define: “uma conquista a acrescentar as conquistas
da inteligência [...] é a gloria!”, que também segundo ele vai ser
“interrompida bruscamente em 1118 pela aventura com Heloísa” [Le Goff,
130
2006, p. 59-74]. O sofrimento colocou Heloísa fora dos padrões, distante
das regras, e é através de um relato “trágico” e do “fracasso” que foi o seu
casamento que ela entrou para história, mas uma história que precisa ser
buscada para além deste momento específico de sua vida. Ainda que as
epístolas sejam bastante exploradas, o que proponho compreender é o
acumulo de conhecimento do indivíduo que está por trás delas e como estes
foram usados em outros contextos, diante de outras situações.

A tópica retórica, assim como a gramática, fez parte da educação no século


XII. Foi ela que deu o tom na escrita dos mestres, religiosos e alunos desse
período: “A educação retórica, combinada com o estilo da lógica e da
dialética devia capacitar o discípulo a influenciar os ouvintes e, dado o caso,
também “tornar mais forte a causa mais fraca". A tópica retórica consiste
em dar o tom no discurso, de modo que o mesmo possa influenciar o
ouvinte - no nosso caso Abelardo - de maneira que o mesmo se incline e
reconheça a veracidade dos fatos apresentados. É a arte da argumentação.
Na introdução e na conclusão já devem ser inseridas a fórmulas para
expressar a modéstia, ou o que Curtius chamou de falsa modéstia: “na
introdução o orador deve conquistar a benevolência, a atenção e a
docilidade de seus ouvintes. Além disso, o orador deve usar o Discurso de
Consolação e o apelo da caridade. Argumentos os quais recheiam as
missivas de Heloísa:

“Meu bem-amado, o acaso fez-me passar entre as mãos, a carta de consolo


que escreveste a um amigo. Reconheci imediatamente, pela assinatura, que
ela provinha de ti. Lancei-me sobre ela e devorei-a com todo ardor de
minha ternura: já que havia perdido a presença corporal daquele que a
havia escrito, ao menos as palavras reanimariam um pouco para mim a sua
imagem”. [Zumthor, 2002, p. 89].

No fragmento citado, Heloísa chama de “acaso” a influência que levou a


carta as suas mãos, imprimindo modéstia nas suas redes, assim como
imprime também benevolência, consolo e caridade ao manifestar “ternura”
por ele. São sinais de que ela faz uso do que aprendeu até mesmo com o
preceptor Abelardo. O que demostra a estrutura da personalidade de
Heloísa por trás das cartas. Todo esse escrever romântico de Heloísa, deriva
da poesia e da retórica, que ela tinha acesso e chegou a elogiar em
Abelardo, sendo assim, para ela a tópica retórica é quase que uma extensão
de si, é uma expressão involuntária do seu conhecimento literário.
Resultado de uma trajetória de vida dedicada a aprimorar seus
conhecimentos sem deixar de amar. Assim, reforço a ambição de
reconstruir a trajetória dessa aristocrata, aluna, amiga, amante, esposa,
mãe, freira forçada, prioresa por eleição, abadessa por vocação e fundadora
de uma ordem religiosa e dar a ela uma nova posição na historiografia.
Referências
Luciana Alves Maciel, licenciada em História/UFMT e mestranda do PPGHis –
Programa de Pós-Graduação em História da UFMT. Bolsista da CAPES.

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MEDIEVALISMO E O ENSINO DE HISTÓRIA: SOBRE BRUXOS,
CASTELO E MAGIA HARRY POTTER (2001-2011)
Jônatas José da Silva e José Natal Souto Maior Neto

Este paper busca trazer reflexões sobre o ensino de história e de como o


cinema vem impactando a compreensão histórica. Sob esta pretensão,
trabalharemos a recepção da Idade Média através das mídias fílmicas que 133
compõem o universo de Harry Potter [produzido por David Heyman, 2001-
2011] a partir do escopo teórico do medievalismo [Utz, 2004; Gentry &
Müller, 1991; Workman, 1987]. Considerando as dimensões do material,
que exigiriam um grande esforço para conceber uma análise completa e
sistêmica, focaremos em três elementos principais, a saber, os bruxos, o
castelo e a magia, que são amplamente retratados nesse conjunto de filmes
e fazem parte do imaginário sobre a Idade Média. Neste sentido,
aplicaremos o enquadramento de modelos de recepção do medievo na
contemporaneidade propostos por Gentry & Müller [1991]. Com isto,
buscamos evocar perspectivas históricas sobre alguns elementos centrais
desta narrativa fílmica, no intuito de tornar concebível uma expansão nas
películas utilizadas para o ensino da História Medieval, visto que, é possível
uma utilização de obras que mesmo não se passando em um período da
Idade Média, possua características da mesma.

Cinema, Medievalismo e o Ensino de História


Desde sua origem as representações midiáticas influenciam as pessoas
criando práticas, costumes e engendrando concepções sobre o mundo.
Inserido neste contexto, características da Idade Média impregnam o
cotidiano de modo que: “o sucesso de alguns livros, filmes, séries
televisivas e jogos eletrônicos relacionados à temática, induzem o sistema a
perceber um próspero mercado consumidor. ” [Porto Junior, 2018].

Esta realidade tem sido bem aproveitada especialmente pela indústria


cinematográfica, a qual, através do cinema: “ desde sua tenra origem,
propunha-se, declaradamente, a ser o contador de histórias para as
massas” [Wyke, 1997 apud Souza Neto, 2019]. Neste propósito, utilizando
de sua liberdade criativa e de seu não compromisso com a verdade, o
cinema através de suas obras busca incessantemente recriar, rememorar e
ressignificar elementos e narrativas da História Medieval que além de
enriquecer suas metáforas visuais, fascinam o grande público e passam a
efetivamente compor a consciência histórica acerca deste período.

Dito isto, devemos destacar que o impacto destas narrativas é imenso,


especialmente nos dias atuais onde o acesso a: “o infinito banco de
imagens” [Souza Neto, 2019] que a rede mundial de computadores possui,
é indubitavelmente fácil. Películas são extremamente acessíveis, seja pela
gama de serviços streaming como Netflix, Video Prime, etc., ou mesmo por
torrents e sites que disponibilizam um acervo gratuito, de filmes e séries,
que cresce exponencialmente.
Diante deste contexto o profissional do ensino deve reconhecer que os
filmes: penetram no cotidiano dos alunos pelos audiovisuais [Bittencourt,
2011] e, sobretudo, possuem o potencial de: afetar a maneira como vemos
o passado [Rosenstone, 2010]. Sob este entendimento, obras como: The
Name of the Rose [Jean-Jacques Annaud, 1986], Brave Heart [Mel Gibson,
1995], Joanna D'Arc [Luc Besson, 1999], A Knight’s Tale [Brian Helgeland,
134
2001], The Lord of the Rings: The Return of the King [Peter Jackson, 2003],
até produções mais recentes — e de estrondoso sucesso — como: Game of
Thrones [David Benioff, 2011-2019], The Last of Kingdom [Chrissy Skinns,
2015-2018] e Vikings [Michael Hirst, 2013-2020], fazem parte do acervo de
películas ambientados na Idade Média que, para o bem ou para o mal,
compõe algumas das referenciais sobre este período histórico. Dito isto, se
acreditarmos que: “O historiador público deve poder fazer mediação com as
formas públicas de conhecimento do passado” [Noiret, 2015], a busca por
ferramentas que deem possibilidades para o trabalho com a narrativa
fílmica em sala de aula, pode e deve estar entre as pretensões do
profissional do ensino, afinal, o filme enquanto narrativa da história
[Rosenstone, 2010], está entre estas formas públicas de conhecimento do
passado que impregnam o imaginário social.

Pensando nisso, propomos utilizar o escopo do medievalismo proposto por


Richard Utz, segundo o qual: o medievalismo se encontra no centro de uma
gama de discussões sobre uma mudança de paradigma maior na
investigação da cultura medieval em tempos pós-medievais [2004].
Sobretudo, devemos destacar que o termo (ou conceito) “medievalismo” é
extremamente amplo e, portanto, o estudo acerca deste possui diversas
vertentes.

Dito isto, interessante é, pois, evocar um entendimento — ainda que breve


— acerca deste conceito. Segundo Workman citado por Utz: “[O
Medievalismo] é o estudo da Idade Média, a aplicação dos modelos
medievais para as necessidades contemporâneas e a inspiração da Idade
Média em todas as formas de arte e pensamento” [Workman, 1987. p. 1
apud Utz, 2004]. Desta forma, podemos elencar que parte destes interesses
contemporâneos vem da atração que o público em geral possui por este
período, a qual pode ser percebida deste a “aplicação dos modelos
medievais” em obras construídas pelo cinema, como as já mencionadas,
como também através do que Gentry & Müller atribui o nome de “recepção
reprodutiva das Idades Médias”, a qual pode ser identificada quando: a
forma original dos trabalhos medievais é reconstruída de uma maneira vista
como “autêntica‟, como em produções musicais ou renovações (por
exemplo, de pinturas e monumentos) [Gentry; Müller, 1991 apud Utz,
2004].

Conforme esta compreensão, podemos observar que no conjunto de obras


que integram o universo de Harry Potter, aspectos fortemente ligados à
Idade Média podem ser efetivamente identificados; no entanto devido à
grande quantidade de componentes medievais presentes na trama
produzida pela Warner Bros adaptada dos livros escritos de J.K Rowling, se
fez necessário uma seleção dos temas que seriam trabalhados nesse
estudo. Doravante iremos trabalhar uma análise de três elementos desta
narrativa: os bruxos, o castelo e a magia, evocando perspectivas históricas
sobre estes e buscando fornecer possibilidades de análises que possam ser
utilizadas no trabalho com o ensino de História Medieval e sua recepção na
contemporaneidade.

A Idade Média retratada no cinema ajuda mais a compreender a história 135


contemporânea do que a história medieval, propriamente dita [Macedo,
2006]. Através desse pensamento se faz possível uma conexão com a tese
de Marc Ferro [1992], onde o mesmo aborda a “linguagem do cinema” e
destaca que a obra cinematográfica deve ser analisada por uma perspectiva
crítica não só do filme em si, mas também da sociedade em que o mesmo é
produzido, ou a que público ele foi destinado e qual contexto tal público ou
sociedade está inserido. No entanto, antes de partimos para essa análise
comparativa dos elementos, se faz importante salientar que as obras
cinematográficas não tem nenhuma obrigação com a fidedignidade dos
fatos, podendo utilizá-los da maneira que melhor se encaixem com a
proposta do enredo, esse pensamento é reforçado no trabalho de Oliveira &
Freitas Filho: “[...] nem todos os acontecimentos e relatos apresentados
nestas obras cinematográficas correspondem a uma abordagem histórica
sobre o período apresentado, mas sim às referências do imaginário criado
em torno do que nos habituamos a classificar como medieval” [Oliveira &
Freitas Filho, 2017].

Sobre Bruxos
Ao analisar os bruxos nos filmes de Harry Potter, procuramos observar
como estes eram vistos por aqueles que não detinham a possibilidade de
fazer magia (“trouxas”). Durante a série de filmes é possível observar em
diversas cenas a ideia dos bruxos como alguém fora do padrão, considerado
esquisito e anormal, no entanto não necessariamente ligado às trevas,
podemos ver com bastante clareza essa imagem através do convívio de
Harry Potter com sua família, já que durante o período que estava afastado
da escola ele era impedido de ter qualquer comunicação com o mundo
mágico e até mesmo de pronunciar o nome da escola, sem ser censurado
por seu Tio Valter, para não mencionar sua “anormalidade” sobre o teto dos
Dursleys. Escolhemos uma cena que ilustra de forma bem clara essa ideia
de anormalidade e estranheza.

Imagem 1- Harry Potter e a pedra filosofal. Warner Bros. 2001


Nesta cena retirada do primeiro filme da saga: Harry Potter and the
Philosopher’s Stone [2001], tia Petúnia compara Harry a sua mãe,
chamando Lilian de esquisita e anormal tal qual o pai de Harry, em seguida
fala que ele também possuiria essa anormalidade por ser filho de pessoas
com essas características.

136
Ao tratarmos da imagem de bruxas e bruxos construída no imaginário
popular da sociedade na Idade Média, é necessário que entendamos o
processo de construção, que teve início na própria Era Medieval, mas teve
sua consolidação no início da Era Moderna, essa fortificação desse
imaginário se deu através da publicação do livro Malleus Maleficarum
publicado originalmente em 1487 e escrito pelos inquisidores Kramer e
Sprenger. Viana, que escreveu um ensaio sobre a imagem das bruxas nesta
obra, mencionou que a demonização da prática é evidente, como podemos
observar na citação a seguir:

“Para os inquisidores do século XV, todas as bruxas faziam um pacto com o


Diabo, por meio do qual renunciavam à fé católica. Elas se uniam aos
demônios em sabats, orgias e rituais de violação dos símbolos da fé cristã.
Seres demoníacos eram invocados em orações que misturavam frases
cristãs com palavras e gestos profanos ” [Viana, 2013].

Podemos observar que a principal diferença entre a visão apresentada no


filme e que é exposta na obra de Kramer e Sprenger é a ligação com o
demônio, na produção cinematográfica por mais que os bruxos sejam
diferentes de pessoas que não detém a magia, essas não os enxergam
como alguém naturalmente ligado ao mal, apenas alguém diferente daquilo
que estão habituados e por esse motivo existe o receio na aproximação.

Se faz de extrema importância que haja essa comparação entre a imagem


que é passada no filme e a imagem que a sociedade medieval e moderna
possuía desses povos, através da utilização do medievalismo é possível
apontar as mudanças ocorridas no pensamento sobre diversos aspectos,
nesse caso em especial os bruxos.

Sobre Castelos em Harry Potter


O elemento medieval Castelo é abordado nos filmes de Harry Potter como
um local de proteção e de realização do inexplicável, ao longo da trama é
possível observar em diversos momentos a ideia de proteção envolta no
castelo. Por exemplo, em cena no filme Harry Potter and the Chamber of
Secrets [2002], o personagem Dumbledore é afastado da escola, mas diz a
Harry Potter que não se preocupe porque Hogwarts sempre ajudará a quem
a ela recorrer. Não obstante, o castelo ajuda o protagonista quando ele
enfrenta o “Basílisco” na “Câmara secreta”.

O castelo é descrito como não localizável, possui inúmeras proteções tanto


físicas quanto mágicas já que, na obra, é um local no qual os bruxos podem
praticar suas magias. Além disso, ele também concentra em si o
inexplicável. Durante os eventos do “Torneio Tribruxo”, que se passam
durante o filme Harry Potter and the Goblet of Fire [2005], em pleno “baile
dos campeões” Dumbledore conta da existência de um banheiro que
apareceu assim que sentiu a necessidade de usá-lo, mas que logo após sair
do local não conseguiu encontrá-lo novamente. Esse banheiro é descoberto
ser uma sala do castelo que se transforma naquilo que a pessoa deseja, em
determinado momento esse ambiente é utilizado pelo personagem Harry
como quartel general para a “Armada de Dumbledore”, durante os
acontecimentos de Harry Potter and the Order of the Phoenix [2007]. 137

Imagem 2- Harry Potter e a pedra filosofal. Warner Bros, 2001.

Nesta imagem podemos observar a imponência do castelo, desde os


primeiros momentos do filme é perceptível a intenção de exibir Hogwarts
como um lugar fantástico, o qual expõe uma beleza quase que
incontestável, mas que também é uma imensa fortaleza. Durante os filmes,
são destacados elementos do castelo que podem ser efetivamente
observados, tais como a defesa, a imponência e o inexplicável.

Este monumento característico da Idade Média detinha um papel de


extrema importância, sobretudo, no que se refere à relação de poder
exercida pela aristocracia. Conforme o historiador medievalista francês
Jérôme Baschet: “os castelos são os pontos de ancoragem em torno dos
quais se define o poder aristocrático” [2006], desta forma essa construção
representa no campo subjetivo o poder que esta classe dominante possuía,
na medida que, quão mais fortificado fosse esta construção, mais o senhor
que a possuísse estaria a exibir sua capacidade de defender seus vassalos,
camponeses e a população em geral que lhe pagasse impostos. Sobretudo,
destaquemos que: “O castelo domina, assim, o território, como o senhor
domina seus habitantes. Símbolo de pedra ou de madeira, ele manifesta a
hegemonia da aristocracia, sua posição dominante e separada no seio da
sociedade” [Baschet, 2006].

À vista disto, podemos compreender que os filmes que compõem o universo


de Harry Potter, reutilizam este símbolo de poder, proteção e habitação que
o castelo exercia. Neste sentido, observamos um tipo de interação com a
Idade Média e recepção de um elemento da cultura medieval em um
período pós-medieval, o que se encaixa no: “processo contínuo de criação
da Idade Média” [Wokman, 1997 apud Porto Junior, 2018]. Neste processo,
através de exames das películas em questão, podemos observar metáforas
visuais sendo formadas a partir de um elemento característico de
determinado período histórico, com o acréscimo do “fantástico” e do
“inexplicável” a produção cinematográfica atribui novas significações, as
quais podem ser identificadas a partir de análise e identificação.

138
Portanto, é válido dizer que com o conhecimento histórico serve como base
contextual do elemento a ser analisado, com ele o profissional do ensino
pode entender melhor as pretensões, bem como as representações que
determinada película carrega, afinal: o filme enquanto releitura do passado,
pode ser analisado pelo historiador, entendido em seus propósitos e
questionado em suas metáforas [Souza Neto, 2019].

Sobre Magia em Harry Potter


Esse foi sem dúvida o aspecto mais difícil de ser analisado, visto que não
existe uma definição do que é magia ou feitiçaria na obra de Harry Potter,
no entanto através daquilo que nos é mostrado durante os filmes, podemos
observar que a magia é demonstrada como um facilitador, tendo inúmeras
funções para aqueles que a controlam, desde as mais banais situações
como acender uma lâmpada até o reparo de objetos que foram destruídos.
Existem também regras com relação a magia, feitiços comuns não podem
reparar danos causados por magia das trevas, os detentores da magia não
são automaticamente maus, na verdade esses são minorias, e seguem esse
caminho não por possuir magia, mas sim por escolher para si o
aprofundamento nessa ramificação, são extremamente recriminados dentro
da própria comunidade bruxa desenvolvida na obra.

A seguir traremos uma cena, na qual a magia é utilizada para a execução


de algo que demandaria certo esforço para ser executado sem o auxílio
desse diferencial.

Imagem 3: Harry Potter e o Enigma do Príncipe, 2009.

Na cena acima, que se passa em Harry Potter e o Enigma do Príncipe


[2009], Dumbledore se desloca com Harry de uma estação de metrô para
uma cidade que está a inúmeros quilômetros de distância em pouquíssimos
segundos, através de uma habilidade nomeada “aparatação”, demonstrando
a imensa facilidade que a magia proporciona aquelas que a dominam.
Já ao tratarmos do imaginário popular da sociedade medieval a respeito do
que eles enxergavam como magia, nós utilizaremos principalmente da visão
de Cardini, originalmente intitulada: Magia y brujaria en la media edad y en
el renacimiento, segundo sua obra, durante o século XIII a ideia de magia
se dividia entre natural ou cerimonial. A visão de magia como algo negativo
que perdura até hoje, está diretamente ligada a obras produzidas por Santo
Agostinho [Cardini, 1996]. 139

No entanto, a construção da igreja como opositora à magia e aos cultos


pagãos, demorou a se formar, se deu apenas entre o século nove e o século
onze. Na obra de Carlo Ginzburg por título “Os Andarilhos do Bem” —
verdadeiramente um clássico sobre o assunto—, onde ele discorre acerca da
feitiçaria e dos cultos agrários nos séculos XVI e XVII, podemos observar
um pouco desta aversão da igreja à essas práticas:

“Nas suas instruções aos bispos, Reginone de Prüm (morto em 915)


condena, juntamente com várias crenças supersticiosas, as das mulheres
que, iludidas pelo diabo, acreditam cavalgar à noite com Diana, deusa dos
pagãos, e o seu cortejo de mulheres, em direção a lugares remotos”
[Ginzburg, 1988].

Na verdade, a caça da igreja aos praticantes de magia e bruxaria, só teve


início após uma grande pressão popular, que fez inúmeras denúncias aos
inquisidores, os quais foram obrigados a afastar a ideia de superstição que
era propagada. A partir desse momento a imagem das pessoas praticantes
de magia ou bruxaria foi automaticamente associada ao diabo e tudo que
ele representava.

Como podemos observar, a ideia que se tinha como magia estava


majoritariamente ligada ao estudo de eventos naturais e a práticas
cerimoniais do que à possibilidade de executar a magia como observamos
nos filmes; outra diferença evidente é que a magia no imaginário medieval
era obtida através de estudos ou de alianças com forças da natureza, seja
ela maligna ou benéfica.

Através disto podemos trabalhar principalmente a ideia de como grande


parte da sociedade contemporânea passou a enxergar esse aspecto como
algo totalmente irreal, sendo levado completamente para a esfera do
fantástico e imaginário, perdendo todo o seu caráter de estudo e cerimonial,
tais atos hoje em dia são descritos em sua maioria como seitas ou grupos
religiosos e dificilmente relacionados a magia como eram na Idade Média.

Por fim, através do conjunto de significados e imagens produzidos pelo


cinema, podemos trabalhar a análise e mediação das diversas camadas
discursivas que a narrativa fílmica manifesta e que, vale destacar, podem
ser amplamente abordadas através de um conjunto de múltiplas
possibilidades, tanto dentro como fora da sala de aula.
Referências
Jônatas José da Silva é discente do curso de Licenciatura em História da
Universidade de Pernambuco (UPE), campus Mata Norte.
José Natal Souto Maior Neto é discente do curso de Licenciatura em História
da Universidade de Pernambuco (UPE), campus Mata Norte.

140
BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano Mil à Colonização da
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em:
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UTZ, Richard. Medievalismo – Mittelalter – Rezeption – Medievismo –
Medievalidade. Online. Tradução: Renan M. Birro. 2004
VIANA, Geysa. As bruxas no Malleus Maleficarum: caracteres, práticas e
poderes demoníacos. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB),
2013.
ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL, ESQUEMATISMO E
TELEOLOGIA
Manoel Adir Kischener e Everton Marcos Batistela

Introdução
Ao buscar tratar de perspectiva que adote e valorize a complexidade da 141
sociedade medieval, mesmo nas salas de aula de História da Educação
Básica, se valoriza o aluno. Também é valorizar a si próprio enquanto
professor, se sempre aberto a aspectos outros e a formação constante e
inacabada.

A História Medieval junto a área Antiga é, provavelmente, aquela que o


professor de Educação Básica precisa de mais leitura, até pela dificuldade
de apreensão, pelo tempo passado mais distante, e por ser conhecimento
que por esta natureza está mais associado ao nome de especialistas.

Estes estudiosos são chamados medievalistas.

Apesar de o existirem também no Brasil, como Macedo [2000], são mais


raros do que os estudiosos dos períodos mais recentes, como do Brasil
republicano, ou da Ditadura civil-militar [Reis Filho, 2014].

Normalmente o período medieval é visto de forma estanque, como de forma


teleológica e simplificada, sintetizada que é em três categorias que
compõem esta sociedade e, cheio de mitos (Pernoud, 1989), em muitas
aulas ainda. No senso comum como sinônimo de atraso, como na
propaganda de internet que trava, “Essa internet medieval de vocês” [Vivo
fibra, 2019].

A própria organização curricular, da disposição dos conteúdos, se o


professor os seguir à risca, expõe problemas a compreensão do aluno que,
em pleno 6º ano tem de se defrontar com a complexidade dos primeiros
hominídeos e da própria “formação” do homem. Já no ano seguinte, se
defrontará com o Feudalismo.

Sem saber direito a respeito da Idade Média, muito em débito ao professor


que, despreparado e até desprevenido em sala, desconhece a complexidade
daquela realidade.

Sabendo que no Brasil a periodização, aquela em quatro partes e criticada


por Le Goff [2015] não serve ao nosso país, a confusão na cabeça do aluno
se estabelece.

Como resolvê-la?

A adoção da síntese, induzida que é, reprodutiva para cada sociedade e


períodos históricos, não escapa ao Medieval.
Grosso modo, são três as categorias e, destas, com alguma diferença para
ter graça, se vale, de sociedade em sociedade, entendimento este, errôneo,
pelo menos desde a ideia político-partidária de perceber a riqueza de cada
sociedade em apenas três partes, aqueles que estão no poder, a “classe
média” que até almeja chegar lá e, a base disso, ou aqueles que estão por
baixo, os pobres, os excluídos, a ralé, a plebe ou quaisquer nomes que se
142
dê.

Fica a critério da perícia ou imperícia do professor de História, do seu tempo


de aula. Do seu preparo. Do respeito que oferece a profissão e aqueles que
são os seus alunos, naquele tempo, naquele ano letivo.

Depende também da perspectiva à abertura como exposto no primeiro


parágrafo, por exemplo, tendo ciência do que afirma Heers [1995], a
respeito da invenção da Idade Média.

Diante deste cenário, objetiva-se trazer questões e apontamentos a


respeito do ensino de História que trata da História medieval, notadamente
a partir da percepção do primeiro autor enquanto professor na Educação
Básica e da revisão de literatura.

O ensino entre o esquematismo e a teleologia


De modo sumário – e aqui vale-se do que o primeiro autor vivenciou em
sua adentrada na docência em História no início dos anos 2000 ainda como
estagiário – percebe-se e se ensina que no período medieval existiam
apenas três ordens, três estamentos ou três classes sociais, dependendo da
“orientação teórica” a que se adote em sala, na busca de alguma autonomia
ou no mero ato de ser “piloto de livro didático” na Educação Básica.

Quem são elas neste entendimento? Os nobres, o clero e os camponeses.

O que segue, a partir de alguns autores, expõe o entendimento que ressalta


a prevalência da perspectiva teleológica que provavelmente têm contribuído
à manutenção do entendimento redutor a respeito da Idade Média.

Se por um lado, muitos autores demonstraram a complexidade da


sociedade medieval, como os renomados medievalistas Bloch [1982], Duby
[1994] ou Le Goff [2005] para ficar naqueles considerados “clássicos” na
área temática.

Por outro, existiu um outro debate (e pasmem, ainda alguns o postergam!)


sobre a existência ou não do Feudalismo além de partes da Europa, aquela
considerada Ocidental.

Mesmo que essa disputa tenha sido vista como finalizada, os seguidores de
Guimarães [1963], que no Brasil se notabilizou por esta linha de
pensamento, só aumentam entre os integrantes dos movimentos sociais no
país, como o MST.
Mais recentemente, um outro debate, e com não menor espanto, a respeito
da existência de campesinato além do espaço geográfico e tempo histórico
europeu, sugerem para a atualidade brasileira a permanência de tal
categoria em sua agricultura que é altamente tecnificada na maior parte das
regiões.

Compreende-se seu uso apenas enquanto potencialidade política na voz dos 143
movimentos sociais, mas provavelmente, é de difícil apreensão analítica na
realidade social por parte de cientistas sociais.

Nesse sentido, talvez a máxima “A história de todas as sociedades até hoje


existentes é a história das lutas de classes” [Marx; Engels, 2005, p. 40],
tenha contribuído sobremaneira a essa questão, em especial a partir dos
usos teleológicos que se faz destes.

Estes autores assim caracterizaram a sociedade medieval:

“[...] na Idade Média, senhores, vassalos, mestres das corporações,


aprendizes, companheiros, servos; e, em cada uma destas classes, outras
gradações particulares” [Marx; Engels, p. 40].

Nesta mesma linha, Ponce [2010] afirma que “[...] o feudalismo conhecia
três ‘variedades’ sociais: os bellatores, ou guerreiros, os oradores, ou
religiosos, e os laboratores, ou trabalhadores” (Ponce, 2010, p. 86, ênfase
no original).

Por outro lado, mesmo acrescendo em detalhes e linhas de interpretação a


respeito do período medieval, mas sem sair do esquema explicativo, Saes e
Saes [2013] afirmam que “[...] alguns historiadores concentram sua
atenção nas relações entre os nobres; e outros têm seu foco na relação
entre os nobres e os camponeses” [Saes; Saes, 2013, p. 43].

No esquema os autores entendem as “[...] características indicadas como


definidoras do sistema: a relação suserano-vassalo, a fragmentação do
poder e o estabelecimento da servidão como relação social fundamental no
campo” [Saes; Saes, 2013, p. 48].

Sob outra perspectiva, Burbank e Cooper (2019) afirmam que “Os reinos
não se mantinham unidos por laços de semelhança, mas por conexões
verticais entre desiguais”; para os autores estas se davam entre “[...] reis e
senhores, senhores e vassalos, vassalos e camponeses” [Burbank; Cooper,
2019, p. 116].

Entre as inúmeras perspectivas muito próximas e que ao cabo se sintetizam


no esquema das três categorias e, que ao fundo o é teleológica, um
exemplo se amplifica ainda mais pelo estilo de escrita e o alcance de
vendas, é o caso do entendimento de Harari [2015].

Para este autor, “Na Europa medieval, os aristocratas gastavam o dinheiro


despreocupadamente em luxos extravagantes, ao passo que os camponeses
levavam uma vida frugal, cuidando de cada centavo” [Harari, 2015, p.
359].

Ou ainda: “Na Idade Média as pessoas acreditavam em divisões de classe,


então nenhum jovem da nobreza usaria um traje de camponês. Na época,
ser chamado de ‘senhor’ ou ‘senhora’ era um privilégio raro reservado para
144
a nobreza e muitas vezes adquirido com sangue” [Harari, 2015, p. 121].

É esse entendimento empobrecido que contribui para que muitos


professores de História o amplifiquem em sua sala de aula na Educação
Básica. E o fazem de forma estanque, em uma hora-aula, ao transpor
realidades complexas e singulares de sociedades diversas, de uma a outra,
como se fossem idênticas.

Nesse entendimento, é como se o vitimismo se estabelecesse na narrativa


da História, e a opressão imperasse, apenas ela, sem existir a possibilidade
de resistência a partir de mecanismos diversos e, transformações nas
relações entre dominados e dominadores não fossem possíveis, apesar das
permanências.

Ao se adotar essa postura, “[...] em que pesem os reiterados


esclarecimentos de historiadores especializados na pesquisa sobre a Idade
Média a respeito dos estereótipos que envolvem aquele período, [pela ação
de professores] muitos preconceitos ainda persistem” [Macedo, 2007, p.
109-110].

Mas o que se pode fazer?

Possibilidades
Para se iniciar, uma questão que já foi feita ao primeiro autor e,
provavelmente também a outros professores, é idêntica ao exposto por
Macedo [2007]:

“[...] ao falarmos de Europa Medieval tratamos quase sempre de França,


Inglaterra, Alemanha e Itália. Outra seria a Europa do Leste Europeu, a
Europa Nórdica e, segundo nos interessaria mais saber, a Europa Ibérica.
Descolonizar o ensino de História” [Macedo, 2007, p. 115].

Frente a isso é premente a necessidade de fazer a discussão a respeito do


estudo do período medieval e esclarecimento aos alunos a respeito da
relação do Brasil com este, mesmo que não o tenha vivido de forma direta,
como posto no canto “Céus de Castilla y León”, de Vasconcellos e César
[2017]:

“[...] Reinos lendários da Ibéria


Fronteiras da cristandade
Se eu não vivi neste tempo
Como é que eu sinto saudade? [...]”.
Por outro lado, Guaracy [2015] afirma que o Brasil português foi organizado
a partir de métodos de administração da Idade Média.

Pode-se, então, buscar mais sentido com a relação com a Península Ibérica,
como será revelado mais adiante no texto. Mas, antes talvez se deva
valorizar o exposto por Caimi [2006], que é outro dilema, que também é
próprio dos professores da Educação Básica, pois 145

“[...] é paradoxal verificar como persiste, nos meios acadêmicos, a


concepção de que, para ensinar História, basta a apropriação, nos cursos de
formação, pelo futuro professor, dos conhecimentos históricos produzidos e
sistematizados pela historiografia e pela pesquisa histórica, negligenciando-
se a preocupação com estudos sobre a aprendizagem, ou seja, com a
construção das noções e dos conceitos no pensamento da criança ou do
jovem” [Caimi, 2006, p. 21].

Como a concordar com a estratégia teleológica e com a busca e o privilégio


do esquematismo a respeito do período medieval em sala, o professor que
não manifestar preocupação com a afirmação de Caimi [2006], estará,
entrega-se, alheio ao que a historiografia nacional tem se proposto em se
tratando do período.

Nesse sentido, a respeito da Idade Média, de acordo com Oliveira [2010, p.


107], “[...] há muito tempo tem despertado o interesse dos brasileiros, mas
só recentemente é que esse campo tem alçado uma maior atenção no que
diz respeito à realização de estudos”.

Por outro lado, conforme Vieira [2013, p. 28] “[...] ainda existe em nossa
sociedade um grande preconceito em relação à Idade Média”.

Em concordância a existência, talvez caberia ao professor de História


refletir, ponderar a respeito do que afirma o medievalista consagrado, “[...]
como quase todas as épocas, a Idade Média foi uma mistura de êxitos e de
derrotas, de felicidades e de dramas” [Le Goff, 2008, p. 53].

E quando este professor passar a considerar que “Negligenciando a


formação do sentido histórico, esquecendo que a história é a memória dos
povos, o ensino forma amnésicos” [Pernoud, 1989, p. 158], talvez a
sugestão de Macedo [2007] quanto ao trato da obra de Rucquoi [1995] ao
se pensar sobre a origem do Brasil, tenha mais sentido.

No entender desta autora, são as conexões estabelecidas pelos portugueses


antes da “descoberta” com muçulmanos e judeus, dentre outros aspectos
que podem levar a produção de sentido para o estudo de Idade Média a
estudantes brasileiros, pois a “[...] diversidade é a principal característica
da história da Península Ibérica” [Rucquoi, 1995, p. 11].

Nesse sentido, afirma que “Longe de constituir uma ‘margem’ da


cristandade do Mediterrâneo, a Península Ibérica situa-se então no próprio
coração do mundo medieval na medida em que é a herdeira do Império
Romano” [Rucquoi, 1995, p. 15].

Por outro lado, a autora reconhece que “A história medieval da Península


Ibérica e, efectivamente, mal conhecida” [Rucquoi, 1995, p. 312].

146
Se assim corroborar o professor de História e, de tal modo se valer deste
uso equivocado e esquemático, este acabará por praticar o exposto por
Almeida e Silva [2011] quanto ao período medieval. Afirmam os autores
que,

“No campo do saber histórico tem cabido à Idade Média o papel não
confessado de tabula rasa sobre a qual conteúdos vários podem ser
adaptados. Torna-se, assim, de forma mais marcada que outros períodos
históricos, terreno livre para a apropriação ou a transposição oportunista de
sentido histórico, porque excluído da zona de continuidade histórica. [...]
como uma zona de sombras aparece em sua negação como Idade das
Trevas, mas igualmente em sua hiperidealização como ‘lenda dourada’”
[Almeida; Silva, 2011, p. 13, ênfase no original]

Para além da perspectiva extremista, o professor deverá lembrar ou ler


mais a respeito se ainda não o saiba, e se com interesse em passar adiante
uma ideia diversa do que se têm feito a respeito do período, expor que

“O período medieval é marcado em Portugal por dois períodos de


urbanização distintos: a ocupação muçulmana dos séculos VIII a XIII, e o
período cristão a partir de meados do século XIII, após a conquista
definitiva do Algarve” [Teixeira, 2005, p. 129].

Apenas dentro desta linha interpretativa, se o professor se atentar, abrem-


se possibilidades de interdisciplinaridade com o ensino de Artes e Literatura,
áreas que ajudam a dar sentido visual e cognitivo, se aproveitadas, ao
ensino de História.

Se forem pensar neste trabalho conjunto, talvez estes professores devam


ter em ideia que, “Quando uma cidade era conquistada pelos cristãos, a sua
função defensiva mantinha-se e as cidades não modificavam a sua
estrutura, nem a sua arquitectura. [...] A mesquita maior era habitualmente
convertida em igreja matriz” [Teixeira, 2005, p. 135].

E talvez possam considerar a escrita de Toro Vial [2015]. Este autor expõe
que “Ao longo de toda a Idade Média constatamos a existência de um tipo
particular de crônicas. [...] são relatos que pretendem abarcar toda a
história da humanidade, desde a criação do mundo até a época do seu
autor” [Toro Vial, 2015, p. 158].

Mas que também, para além das proximidades possíveis, das possibilidades
que o intercâmbio entre as áreas sugere, deve-se considerar que
“As sociedades portuguesa moderna e a brasileira colonial [...] não
formavam um corpo orgânico e único, mas debaixo das aparências que
precisavam ser mantidas afloravam clandestinamente expressões de
descontentamento, revolta, incompreensão, medo e dúvidas. Não
formavam uma unidade religiosa, como se pregou. Havia manifestações
adaptadas do Judaísmo, de Protestantismo e de Islamismo, como do próprio
ceticismo” [Ribeiro, 2015, p. 48]. 147

A autora acresce, neste sentido, que

“O Brasil não foi de fato uma terra de ninguém que pouco interesse
despertou nos europeus. Ao contrário, para alguns portugueses de origem
judaica, era a própria ‘terra prometida’, vista, como um lugar de maiores
possibilidades de ascensão social” [Ribeiro, 2015, p. 61].

Vieram para cá porque perseguidos por lá. Muitos outros não o eram e
vieram também, e dela não queriam voltar, tal como exposto na canção
“Notícias da Terra Brasilis” de Vasconcellos e César [2017]:

“Trago notícias de uma terra muito boa


[...]
Termino assim de lhe contar as novidades
E, por favor, me mande mais alguns cabrais
É por El Rey que iniciarei a mestiçagem
E me perdoe, majestade,
mas eu não volto nunca mais!”.

E se assim foi, a respeito da centralização precoce da política em Portugal,


processo que pode ter ajudado a desencadear, “[...] a Península Ibérica
surge como uma espécie de vanguarda política na Idade Média” [Coelho,
2014, p. 41].

Comparato [2018] compreende que esta centralização precoce se deu com


o aumento do poder do rei e a consequente diminuição de poderes de
nobres e clérigos.

Para o autor, o confisco de terras dos nobres, que antes as haviam recebido
do monarca como recompensa pelos feitos militares, desde a Lei Mental de
D. Duarte, os tornou como clientes do rei “[...] beneficiando-se de
empregos e rendas públicas” e, com a instituição do padroado desde o
século XIII, “[...] formou-se uma sociedade cujo equilíbrio orgânico pendia
inteiramente da cúpula, em vez de se fundar na base” (Comparato, 2018, p.
37-38)].

De outro ponto de vista, apesar da centralização triunfalista exposta a partir


do entendimento do autor anterior, Coelho [2014] entende que este

“[...] monarca não dispunha de instrumentos de repressão e de punição


realmente eficazes para impor a sua lei. [...] embora a recorrente
impunidade enfraquecesse o poder régio, por outro lado, chama a atenção a
frequência com que as pessoas recorrem às instâncias da justiça do rei para
solucionar seus conflitos” [Coelho, 2014, p. 47].

Quanto a estas interpretações, dentre outras, que abrem brechas nas ideias
monolíticas a respeito do período medieval que vêm sendo criticadas, a
busca de sentido no ensino a respeito da Idade Média em Portugal, do que
148
pode se valer o professor de História em seu contraponto aos
esquematismos que o induzem ao reducionismo e relacionar ao Brasil, este
talvez possa beneficiar-se, além de Rucquoi [1995], dos textos de uma
mesma coletânea: Mattoso [2000], Coelho [2000] e Moreno [2000].

A respeito da renovação dos estudos medievalísticos, Tengarrinha [1999]


afirma que foi “[...] na década de 80 que os trabalhos sobre a história rural
da Idade Média começam a ter maior desenvolvimento” (Tengarrinha, 1999,
p. 117].

Na mesma obra, quanto aos estudos no Brasil, Arruda [1999, p. 81] afirma
que estes têm se originado especialmente a partir da temática “[...] das
relações entre a Metrópole e a Colônia”.

Considerações finais
O intento foi mostrar, a partir de algumas obras que há, que talvez tenham
contribuído sobremaneira aos professores da Educação Básica, para o uso
de esquematismo e teleologia no ensino de História sobre a Idade Média.

Por outro lado, enquanto alternativa a este costume, buscou-se mostrar que
há renovação, constante e significativa na temática. Que a historiografia
tem adentrado mais na relação entre Brasil e Portugal, da metrópole e a
colônia, o que traz possibilidades de significar e aproximar mais o ensino
aos alunos.

Ao entrar a esse imaginário, sugere-se o trato completo da obra “Doze


cantos ibéricos e uma canção brasileira” de Vasconcellos e César [2017].
Poderá ser uma forma de possibilitar aproximações, em busca do sentido do
ensino de História Medieval na Educação Básica, a partir da audição e dos
caminhos que se abrem para serem trilhados com outros colegas
professores.

Se antes era lema “navegar é preciso” como disse o general romano


Pompeu [UC.PT, s./d.], agora experimentar novas formas, reinventar, é
necessário, ainda mais no ensino de História Medieval!

Referências
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Desenvolvimento Regional e Doutorando em História pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM).
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Acesso em 19/03/2020.
O FENÔMENO “BOLENA”: PROTAGONISMO FEMININO E NOVAS
REPRESENTAÇÕES DE ANA BOLENA (1501-1536), A “RAINHA
DE MAIO”
Marcos de Araújo Oliveira

Introdução
É possível apontar que com o protagonismo feminino cada vez mais 151
presentes nos discursos históricos, mulheres emblemáticas ganham
destaques nas mais diversas narrativas historiográficas. Tendo em vista
esses fatores, nota-se uma forte ressignificação da imagem da rainha
inglesa Ana Bolena (1501-1536). A mesma marcou a história da Inglaterra
por ter sido grande influência para o surgimento do Anglicanismo na corte
do rei Henrique VIII (1491-1547), já que era adepta de ideias reformadores
e influenciou o rei a aderir a Reforma.

Para ficar com Ana Bolena, Henrique buscou desquitar-se de sua esposa
Catarina de Aragão (1485-1533), o que o levou a romper sua aliança com a
Igreja Católica e a casar-se secretamente com Ana em 1533. Em 1534
através do Ato de Supremacia, ele foi proclamado Chefe da Igreja da
Inglaterra. Porém Ana só conseguiu dar uma filha ao rei, Elizabeth, e após
reinar por cerca de mil dias, foi condenada à morte em maio de 1536.
Chamada de “rainha de maio”, pois no mesmo mês de sua execução, três
anos antes foi o da sua coroação, ela foi acusada de conspirar contra o rei,
adultério e incesto, porém historiadores como Tapioca Neto [2013] apontam
que sua morte não passou de um plano do rei para livrar-se de Ana, casar-
se com outra e obter um herdeiro homem para o trono.

Todavia, a história da segunda esposa do rei Henrique VIII marca


produções literárias e audiovisuais na contemporaneidade, e até mesmo
mídias digitais com a dedicação de páginas, blogs e fóruns onlines dispostos
a enaltecer a figura da corajosa rainha e propor debates virtuais sobre sua
contribuição histórica. Estas novas formas de interpretar a história de Ana
e expandir outras visões sobre esta mulher, fica caracterizado como o
“Fenômeno Bolena”, possibilitando que novas narrativas e releituras sobre
Ana ganhem destaque na Indústria Cultural, e contribuem para novas
perspectivas acerca da memória desta rainha.

Uma História que rompe silêncios: O Feminismo e a História das


Mulheres
O “fenômeno Bolena”, apesar de se manter muito forte na
contemporaneidade, surge como uma consequência da própria reabilitação
da memória de importantes figuras femininas para a história, fruto das
conquistas feministas que reivindicaram a escrita de uma história com mais
representatividade para o gênero feminino. Vale salientar, a importante
expansão do campo da “História das Mulheres”, que ganhou força entre os
anos 60 e 70 possibilitando uma análise maior das contribuições femininas
na história e o estudo das relações de gênero. Pois como destaca Michelle
Perrot [2007, p. 15]:
“O desenvolvimento da história das mulheres acompanha em surdina o
"movimento" das mulheres em direção à emancipação e à liberação. Trata-
se da tradução e do efeito de uma tomada de consciência ainda mais vasta:
a da dimensão sexuada da sociedade e da história. Em trinta anos várias
gerações intelectuais se sucederam, as quais produziram com as teses, os
livros, uma acumulação que já não é mais ‘primitiva’”.
152
Perrot [2007] expõe ainda que escrever uma História das mulheres é sair
do silêncio em que elas estavam confinadas. Este pensamento evidencia o
quanto mulheres durante muito tempo estiveram ofuscadas pelas figuras
masculinas – as dominantes ao longo de toda a história, e esta mudança
nos discursos justifica as novas construções de narrativas para Ana Bolena,
que tiveram início principalmente em seu território natal, a Inglaterra.

Sabe-se que, no século XX, com o advento das grandes guerras, as


condições femininas começam a passar por intensas transformações,
principalmente na Inglaterra. A Segunda Guerra Mundial (1937-1945) fez
com que na ausência dos homens, várias mulheres, ou por necessidades
financeiras e até por um estímulo do Estado, assumissem trabalhos e
funções antes masculinas, sendo a ocupação destes postos necessária.

Conforme explica Tapioca Neto [2013] após a guerra muitas mulheres se


recusaram a voltar para as suas casas e retomar a situação de submissão, o
que fez eclodir assim, mais debates sobre a igualdade de gêneros a favor
das mulheres. Além disso muitas mulheres passaram a sofrer com a
desigualdade de salários: “Na Inglaterra a situação não era diferente, as
mulheres ganhavam em média 52% do salário dos homens, com o objetivo
de que elas preferissem ser mães ao trabalho fora de casa” [Oliveira, 2007,
p. 126]. Porém, os anseios femininos continuaram em evidência,
principalmente pela voz de Simone de Beauvoir:

“No ano de 1949, a escritora Simone de Beauvoir lança o seu polêmico livro
intitulado O Segundo Sexo, que discutia as desigualdades sexuais sob uma
perspectiva voltada para o existencialismo e materialismo-histórico. Fora
nessa obra em que a referida autora lançara as primeiras bases para a
posterior definição do conceito de “gênero”, ao escrever que “ninguém
nasce mulher, torna-se mulher” (ibidem)”. [Tapioca Neto, 2013, p. 53]

Nota-se, no contexto pós Segunda Mundial, que apesar das inúmeras


tentativas de condicionar as mulheres ao ambiente doméstico, as lutas
femininas não seriam silenciadas. Entretanto, este movimento só voltaria
com mais força entre os anos 50 e 60, inaugurando a “Segunda Onda do
Feminismo”. Cabe destacar que entre as contribuições da entrada da
mulher no mercado de trabalho deste período pós-guerra, está claramente
as novas ressignificações do papel da mulher, não mais presa ao lar:

“Com efeito, a mulher casada, que antes era concebida como uma espécie
de apêndice do marido começou a desejar maior liberdade e autonomia em
suas decisões. Desse modo, surgira na sociedade ocidental um novo tipo de
família, na qual elas desempenhavam o papel de chefe da casa. Em muitos
casos, a presença masculina era deixada de lado, e a mulher passa a
assumir tanto as funções de pai, quanto a de mãe”. [Tapioca Neto, 2013, p.
53]

O movimento Feminista, como destaca Oliveira [2007] continuou bem


engajado na sua “Segunda Onda” que se estenderia da década de 60 até os
anos 90, e entre suas principais pautas se destacou: a pretensão pela 153
igualdade de sexos, denunciando o peso da discriminação produzida pela lei
e pela economia; assim como também o combate ao sistema patriarcal,
havendo um forte apelo pela igualdade de direitos. Além disso houve “A
Terceira Onda do Feminismo”, que parte da década de 90 e se estende até
os dias atuais, abordando temáticas necessárias como assédio e estupro,
sexualidade e empoderamento feminino.

Foi a partir das conquistas do movimento feminista entre as décadas de 60


e 70 que houve a emergência dos estudos do campo da História das
Mulheres. proporcionando uma nova abordagem sobre as figuras femininas
no Medievo, sendo possível visualizar uma expansão nas pesquisas
acadêmicas acerca do papel de Ana Bolena nas várias esferas que ela
ocupou seja na corte, religião e até política, transgredindo padrões impostos
ao seu gênero:

“Ana era diferente também na maneira de ser, como Fraser realça:


impulsiva, de resposta pronta e “língua afiada”, características pouco
apreciadas na mulher e que Henrique terá admirado [...] Havia algo de
corajoso (e imprudente) na forma como Ana construía também a sua
imagem, na forma como reagia. [...] Onde estavam a passividade e a
conformidade que a sociedade exigia à mulher?” [Almeida, 2009, p. 26]

Essa figura histórica, antes tão vilanizada no imaginário inglês do século XVI
e apontada como a manipuladora concubina de Henrique VIII em narrativas
oficias da historiografia, vem destacando-se no Brasil através das pesquisas
de autores como Flávia Adriana Andrade [2013] e Renato Drummond
Tapioca Neto [2013], que em suas produções tentam amenizar esse olhar
negativa sobre Ana Bolena, apresentando aspectos que quebram esses
estereótipos depreciativos, mas permitem uma maior alteridade com esta
mulher, que ousava transformar a sua realidade, condicionada pela
opressão ao seu gênero.

Percebendo-se assim, as grandes contribuições inglesas ao longo de toda a


história do Feminismo – movimento este que se divide em vários nichos,
com visões diferentes, - podemos refletir acerca das transformações que
aconteceram na Inglaterra na primeira metade do século XX e no período
pós Segunda Guerra Mundial, como uma maneira de compreender as
influências sociais, políticas e culturais que possibilitaram a evocação de
grandes figuras históricas femininas, a exemplo de Ana Bolena, tema
comum nos estudos da História das Mulheres.
Novos Olhares, Novos Discursos: Ana Bolena e o protagonismo
histórico literário
A historiografia também passou por intensas mudanças durante essa
primeira metade do século XX, pois as inovações trazidas pela escola dos
Annales ao campo historiográfico passaram a se refletir também na
literatura. Vale salientar que a escola dos Annales é uma corrente
154
historiográfica francesa surgida no século XX, em torno do periódico
acadêmico francês Annales d'histoire économique et sociale, por isso o
nome Escola dos Annales ou Escola dos Anais. O movimento fundado por
Lucien Febvre e Marc Bloch em 1929, destacou-se pela concepção de uma
Nova História (Nouvelle Histoire). Essa escola historiográfica propôs uma
nova abordagem da história, através da interdisciplinaridade e adoção de
novas fontes.

Logo, essa transformação no campo historiográfico acabou fazendo com que


o romance histórico também passasse por grandes revoluções. Geysa Silva
[2000] explica que com as influências das concepções da “Nova História”
sobre a narrativa de fatos históricos, o romance histórico passou a explorar
a interdisplinaridade entre história e literatura, e abriu um caminho de
estudos em realidades diferentes, fora dos discursos dos livros didáticos e
de documentos oficiais.

Essa “Nova História” proposta pela Escola dos Annales impulsionou também
um maior diálogo com os romances históricos, reconhecendo suas
potencialidades e abrindo novas possibilidades de pesquisa com este
gênero. A figura de Ana Bolena que já obtinha sucesso após a Segunda
Mundial, foi assim consagrada no gênero literário, este que após sofrer
influências das próprias lutas feministas, buscou assim fazer com o
ressurgir de Ana, um maior protagonismo a sua figura:

“Ana Bolena, depois do período das Guerras Mundiais, retornara para o


mundo da ficção com mais força e independência que antes. Nesse sentido,
a própria luta das mulheres pela sua emancipação constituíra-se num fator
decisivo para que romancistas [...] repensassem o papel da rainha Ana na
sociedade inglesa quinhentista”. [Tapioca Neto, 2013, p. 54]
É através também do trabalho de romancistas que a memória de Ana
Bolena é reabilitada, processo que vem desde o contexto pós-guerra
através de romancistas, como Jean Plaidy que em 1949 publicou o livro
“Assassinato Real”, apresentando Ana como protagonista da narrativa. Essa
obra se destaca por ser escrita em um período crucial para as mulheres,
que estavam alcançando sua emancipação e que se reflete na Ana Bolena
de Plaidy, uma personagem não coadjuvante, mas uma grande protagonista
perspicaz, corajosa e inteligente.

O “Fenômeno Bolena” na literatura continua na atualidade, com escritoras


como Philipha Gregory, romancista histórica autora de “A Irmã de Ana
Bolena” [2001] e “A Herança de Ana Bolena” [2006] e com a brasileira
Bruna Chíxaro que publicou “Ana Bolena” [2017], livro destinado ao público
juvenil. Todas essas obras compõem novos modelos narrativos para a
história de Ana Bolena, pois buscam revelar uma Ana mais humana e
menos “demonizada”, causando identificação no público que consome esses
livros atraídos por essa protagonista:

“Até o século XIX, Ana Bolena havia sido representada como uma
concubina, amante do rei e causadora dos males da Inglaterra. Contudo, a
partir do século XX nota-se um reparo em sua imagem, e a literatura
assumiu um grande papel nessa questão. Romancistas como Jean Plaidy em 155
Muder Most Royal [1949], Norah Lofts em The Concubine [1963] e mesmo
Robin Maxwell em The Secret Diary of Anne Boleyn [1997] optaram por
mostrar ao público uma Ana diferente daquela registrada pela crônica do
século XVI, denotando na mesma características que a tornavam simpática
aos olhos modernos, especialmente para as mulheres, que se tornariam
uma das principais defensoras desta personagem”.[Tapioca Neto, 2013,
p.57]

Há de se concordar também que nos recentes discursos historiográficos


formulados sob o prisma do campo da História das Mulheres, Ana Bolena
vem ganhando novos enfoques, que proporcionam a desconstrução do seu
imaginário negativo, pois como aponta Fraser [2014] Ana não estava
apenas na condição de amante e sensual mulher que estremecera o coração
de Henrique VIII, mas de uma instigante e inteligente mulher que não se
intimidava diante do rei e sabia conversar com o mesmo mantendo-se firme
e “afiada”.

Essa personalidade cativante da famosa “Rainha dos Mil dias” acaba


servindo de fonte de inspiração para as mais diversas publicações de
mulheres pesquisadoras. Segundo Tapioca Neto [2013] a maioria dos
pesquisadores que se propõe a ressignificar a história da “Rainha de Maio” é
composta pelo público feminino, como é o caso de romancistas e de
historiadoras, a exemplo de Antonia Fraser e Alison Weir, autoras de
biografias de sucesso sobre Ana Bolena.

Luz, Câmera e... Representação: Ana Bolena e sua apropriação pelo


meio audiovisual
No meio audiovisual, Ana Bolena também ganhou importante destaque
através de obras cinematográficas; uma das suas primeiras representações
no cinema foi no filme “Os Amores de Henrique VIII” de 1933, sendo
interpretada pela atriz Merle Oberon. Em 1969, o papel de Ana Bolena no
filme “Ana dos Mil Dias” premiou a atriz Geneviève Bujold com o Globo de
Ouro de melhor atriz, além de uma indicação ao Oscar.

Ana Bolena também já foi interpretada por Helena Boham Carter no filme
de 2003, Henry VIII, e na série da BBC “The Tudors” [2007-2010] coube a
Natalia Dorner dá vida a personagem. A atriz Natalie Portman também
interpretou a filha de Thomas Bolena, no polêmico filme “A outra” de 2008,
que divide opiniões por uma representação de uma Ana mais vilanizada.

Sobre a relação entre obras audiovisuais e história, a historiadora Stella


Titotto Castanharo [2011] aponta que o diálogo entre historiadores com as
mídias audiovisuais se tornou mais próximo a partir das décadas de 1980 e
1990, em que os acadêmicos começaram a problematizar a ideia de que
filmes, e atualmente as mídias televisivas e a internet, são produtores de
História:

“Os audiovisuais nunca conseguiram transpor as histórias dos livros e nem


o contrário. Ambos são construções distintas e com características
156
diferentes que podem abordar a mesma temática sob diferentes pontos de
vista. Dessa forma, assim como a História que é formada por vários
gêneros, os audiovisuais também o são e ambos constroem suas narrativas
por meio de discursos que visam fazer com que o passado seja
compreensível para o presente. Seja na História ou na mídia sempre
ocorrem opções por aquilo que será apresentado e de que forma ele deverá
ser apresentado ao público. O audiovisual segue o mesmo modelo da
História ao se propor a responder as perguntas do espectador sobre aquilo
que este desconhece”. [Castanharo, 2011, p. 35]

É possível apontar então que as obras audiovisuais se apropriam da figura


de Ana Bolena para a realização de um resgate e reabilitação da sua
memória, antes tão silenciada ou vilanizada em narrativas oficias de
historiadores. Esse procedimento de resgate é realizado quando os meios
audiovisuais se apropriam de informações e aspectos de Ana nunca
evidenciados: como sua paixão por livros de reformadores, ou sua facilidade
para persuadir e conversar com homens como uma igual, o que faz com
que cinema e TV acabem descontruindo sua demonização.

A representação desta figura histórica ao transpor o campo historiográfico e


partir para outros veículos, compreende-se como um processo de
apropriação da imagem dessa figura/personalidade ausente, possibilitando
assim a sua presença, através da reconstituição de sua memória. A
representação, segundo Rogér Chartiér [1990] vale-se dessa substituição
da “ausência pela presença” constituindo uma nova imagem, de acordo com
os objetivos que são convenientes para o processo da elaboração de um
sentido para este objeto/símbolo representado. Isto é muito comum em
discursos que buscam essa reabilitação da memória através da narrativa
ficcional.

Este tipo de ressignificações de simbolismos da Idade Média em produções


culturais caracteriza-se, segundo Macedo [2009] como o fenômeno da
medievalidade que ao utilizar o Medievo como referencial para a elaboração
de produtos da Indústria Cultural como jogos, filmes, livros, etc expande
assim as perspectivas de visões sobre a Idade Média e cria novas formas de
interpretá-la e reimaginá-la.

A reinterpretação da história de Ana Bolena e de suas contribuições


políticas, culturais e religiosas mostra que as representações de figuras
históricas em outras narrativas podem vir a dialogar com discursos
históricos, pois à medida em que novas fontes para a escrita da história vão
sendo analisadas, podemos ter um leque de possibilidades ao ofício do
historiador. Desse modo, Ana Bolena, enquanto personagem histórica e
fictícia, ganha protagonismo proporcionando uma reflexão sobre a sua
trajetória e quebrando velhos estereótipos difundidos em discursos de
demonização e envilecimento contra a “Rainha de Maio”.

Considerações Finais
Andrade [2013] em sua análise sobre o protagonismo que Ana Bolena vem
ganhando na contemporaneidade, explica que as percepções sobre Ana
dependem do contexto no qual está inserida sua representação, seja no 157
século XVI, XX ou até na contemporaneidade. A autora também aponta que
essas representações possuem também as implicações ideológicas e a
alteridade do seu autor. Sendo assim, uma imagem de Ana é formulada
enquanto uma personagem que atenda os anseios desse autor e funcione
dentro de sua obra.

É possível destacar que através do “Fenômeno Bolena”, com a imagem de


Ana ganhando diversas representações nos variados meios culturais, novos
debates se abrem ao falarmos das condições femininas no Medievo, e novas
reflexões podem ser feitas acerca desta figura histórica.

Além disso, observamos que as possibilidades para o estudo das


representações de Ana Bolena na Indústria Cultural, sejam na literatura,
obras audiovisuais ou internet, resultam em um resgate da memória,
muitas vezes depreciada, dessa importante personagem, expandindo,
portanto, a interdisciplinaridade da história com outras áreas e outras
fontes. Isso auxilia de maneira positiva o campo da História das Mulheres e
propõe novas visões sobre os papéis femininos nas diversas esferas de
poder ao longo da história.

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Marcos de Araújo Oliveira é graduado em Licenciatura em História na
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158
TAPIOCA NETO, R. D. A condição da mulher na Inglaterra do século XVI: O
discurso feminista em The Secret Diary of Anne Boleyn (1997). Monografia
de conclusão de curso (História) – Universidade Estadual de Santa Cruz.
Ilhéus, 2013. 62 p.
A IMPORTÂNCIA DE MARTINHO LUTERO NO ENSINO DE
HISTÓRIA MEDIEVAL
Marcos Vinícius da Silva Ramos

Introdução
Um dos grandes problemas dos livros didáticos de História é a insistência
em periodizações, pois estabelece rupturas bruscas, dividindo a história em 159
grandes épocas como antiguidade, idade média, moderna e contemporânea.
Assim, é proposta uma “explicação” que ignora as permanências e
continuidades contidas nos diversos processos históricos. Não cabe a nós
criticar o livro didático em si, mas como alguns deles apresentam aos
alunos a dicotomia entre idade média x idade moderna, dando a entender
que os dois períodos são exclusivamente antagônicos. Além disso, existem
problemas relacionados à pré-conceitos que se perpetuam e partem dos
pressupostos pejorativos, como trevas e atraso. Como nos traz Sônia
Siquelli e Álvaro Ribeiro, “essas características representam alguns dos
elementos que são reproduzidos em sala de aula e que levam o aluno a
construir uma visão negativa do período medieval”. [Ribeiro; Siquelli, 2017]

Um dos aspectos característicos do medievo é a religiosidade.


Religiosidades, para sermos justos. Entretanto, o foco da discussão não é a
pluralidade e a complexidade das religiosidades presentes no medievo que
produziram embates, mas uma doutrina específica: a divisão do mundo
entre dois polos opostos. Tal noção é derivada da concepção agostiniana de
luta entre bem o mal, por meio da qual Deus e o Satã, representados pelas
luzes e trevas, respectivamente, guerreiam pelo mundo [Amaral, 2019].

Nessa concepção, que é tida como um dos pilares religiosos do período


medieval, a ecclesia representava Deus nessa empreitada que é própria de
uma racionalidade presente no medievo. Entretanto, a partir do
renascimento e, sobretudo com a reforma protestante e o iluminismo, as
lógicas medievais foram postas no campo do “encantado” e “ficcional”,
sendo amplamente rejeitados pela “modernidade” e seus postulados. Não é
de se surpreender que os prosélitos do campo protestante arroguem em
torno de si a imagem de modernos que romperam definitivamente com
todas as “amarras medievais” produzidas por longos séculos que, em tese,
definharam a cultura clássica e puseram o cristianismo em posição torpe e
decadente. Ou seja, a Reforma Protestante seria o ponto de ruptura entre
essas lógicas e inauguraria o pensamento moderno/racional. Seria
minimamente incoerente não levar em consideração, nesse processo, a
figura de Martinho Lutero, alguém cuja agência teria contribuído para o
início de tal processo.

O reformador alemão, numa lógica prosélita, significa o marco desta


ruptura, pois “o pensamento de Lutero representa um rompimento de uma
lógica do medievo, inaugurando assim o que se considera hoje o
pensamento moderno” [Santos, 2017, p.29]. Não há dúvidas de que o
alemão rompeu com a Igreja Católica em muitas questões, mas
enfatizamos que o mesmo continuou compartilhando doutrinas e lógicas
com a mesma tradição que o formou. Lutero, nesse caso, não deve ser visto
como um agente responsável por uma ruptura total, mas como um
personagem que mesmo rompendo com algumas ideias mantém
determinada continuidade em outras, mostrando-nos a complexidade de
qualquer processo histórico que não pode ser visto sobre a lógica pura e
simples de bruscas rupturas. A crença de Lutero no diabo e seu poder,
160
ideias “propriamente medievais” mostra-nos um pouco disso que a
“modernidade” e o proselitismo tentam negar. Tal proselitismo,
infelizmente, acaba influenciando certos materiais didáticos.

Diabo: uma história


O diabo, como qualquer outra figura, é uma construção histórica. Nesse
sentido, recorremos a Robert Muchembled. Em uma de suas obras o autor
busca historicizar tal figura entre os séculos XII e XX, levando em
consideração desde o imaginário popular e religioso às produções culturais
em geral. Muchembled desacredita, por exemplo, no suposto
desencantamento do mundo ocidental que, teoricamente, fora trazido pelo
Iluminismo e como legado transformou as sociedades ocidentais em grupos
racionalistas que negariam qualquer tipo de ligação ao sobrenatural. Para o
historiador, o diabo nunca saiu de cena, mas, passou por mutações e
transformações, tornando sua presença em diferentes campos do
pensamento e da arte inegáveis. [Muchembled, 2001, p. 8].

Para Robert Muchembled, o diabo “nasce” na Idade Média e ganha várias


formas. Ora simboliza o mal genericamente, ora é representado como um
animal feroz. A ideia e o nascimento do diabo não podem ser desvinculados
do pensamento agostiniano, sobretudo, da divisão do mundo em forças
malignas e forças divinas, em que o Diabo e Deus disputam o mundo. Para
Jacques Le Goff:

“[...] essa Longa Idade Média é dominada pela luta, no homem ou em volta
do homem, das duas grandes potências, por pouco não iguais – se bem que
uma delas esteja teoricamente subordinada à outra, que são Satanás e
Deus. A longa Idade Média feudal é a luta do diabo com o senhor Deus.
Satanás nasce e morre nos dois extremos deste período”. [Le Goff, 1994,
p.39].

O diabo, durante o medievo, assumiu inúmeras faces. Em específicas


culturas, assumia aspecto de bode pela associação aos deuses Pã e Thor. Já
no concílio de Toledo, em 477, era descrito como um ser “grande e negro,
com garras, orelhas de asno, olhos faiscantes e dentes rangentes, dotado
de um falo enorme e espalhando odor de enxofre”. Já na arte gótica do
século XIII, o diabo não é posto em local medíocre, sempre está nos
centros – sendo esmagado por Jesus – e ganha aspecto pitoresco,
impotente. A partir disso vemos a complexidade dessa figura que ganhou
formas e contornos específicos em cada período do medievo. Como dito,
acreditar que tais pensamentos formulados e reformulados por séculos de
tradição fosse se encerrar na Reforma Protestante seria, no mínimo,
ingênuo, para não dizer pueril. Entretanto, como mencionado, parece que
tal realidade cessou com a adesão da famigerada modernidade, que, para
se manter epistemologicamente, nega, necessariamente, os pressupostos
“irracionais” e “encantados”, “tipicamente medievais”.

Lutero em alguns livros didáticos


A figura de Lutero, normalmente, encontra-se atrelada à Reforma
Protestante ou às Reformas Religiosas em geral. Além disso, a figura do
reformador, comumente, está amplamente associada à modernidade, ao 161
novo, ao rompimento com o passado. Para a análise em questão três
exemplares diferentes foram escolhidos: “História”, do ensino médio do
Governo Estadual do Paraná, “Jornadas”, da editora Saraiva e “História
mosaico”, da editora Scipione.

No primeiro livro, Lutero e sua reforma são apresentados assim:

“Lutero denunciou, através de 95 teses, o que considerava irregular na


Igreja Católica. Em 1519, afasta-se definitivamente do catolicismo. Suas
propostas provocaram um intenso movimento de transformação ideológica
e espiritual, que ficou conhecida como Reforma Protestante. Por meio dessa
iniciativa, a Igreja Católica rompeu com Lutero”. [Bonini et al., 2007,
p.333].

Em seguida, é enfatizado que os motivos que levaram à Reforma não foram


meramente religiosos, mas impulsionados, também, por questões
econômicas:

“Embora os motivos religiosos tenham sido os mais evidentes para que


Lutero formulasse novos conceitos espirituais, os econômicos também
estavam ligados a essa nova prática religiosa. A Igreja Católica, através de
seus ensinamentos, condenava o lucro, apesar de cobrar dízimos e vender
indulgências que enriqueciam esta instituição. Essas atitudes da Igreja
Católica não eram favoráveis às aspirações burguesas pelos lucros com o
comércio e com as finanças”. [Bonini et al., 2007, p.333].

Posteriormente, o livro traz uma concepção redutora do medievo que se


remete à dicotomia feudalismo x opressão,

“Depois da burguesia, restava a maioria da população alemã, composta


pelas classes camponesas, explorada ao máximo. Esse grupo via a Igreja
Católica como o sustentáculo da formação social que os oprimia: o
feudalismo. Isto porque ela representava mais um senhor feudal, a quem
deviam muitos impostos, tais como o dízimo” [Bonini et al., 2007, p.333].

A mensagem do reformador é vista como um ponto de conversão entre um


sistema opressor e um novo modo de pensar por intermédio de aspectos
religiosos e econômicos.

No segundo livro, ao falar sobre Lutero e suas doutrinas, vemos tal


informação:
“Por sua atitude, Lutero foi considerado inimigo da Igreja católica e, em
1520, foi excomungado pelo papa Leão X. Fundou uma nova religião
também baseada nos ensinamentos de Cristo e na crença de que ele era o
filho de Deus e o salvador dos homens”. [Vaz; Panazzo, 2016, p.179].
Posteriormente, ao se referir à celeridade da nova religião, lemos o
seguinte:
162
“A religião luterana espalhou-se com rapidez pelo Sacro Império Romano-
Germânico, atraindo grande parte da população. As diversas camadas da
sociedade tinham razões para estar descontentes com a Igreja católica: os
camponeses porque, desde a Idade Média, eram explorados como servos;
os nobres porque tinham suas terras apropriadas pelo clero; os burgueses
porque o comércio era uma atividade malvista pelo catolicismo”. [Vaz;
Panazzo, 2016, p.179].

Por fim, no terceiro livro, sobre a rápida difusão dos ideais do reformador
alemão, lemos:

“As ideias de Lutero, porém, espalharam-se rapidamente por toda a


Alemanha, pois havia um clima de descontentamento com as atitudes da
Igreja. Nobres e camponeses apoiaram Lutero: os senhores ambicionavam
apoderar-se das terras da Igreja e ampliar seus poderes, abalados com a
decadência feudal; os livradores desejavam escapar das obrigações feudais
(entre elas, o pagamento do dízimo À Igreja)”. [Vaz; Panazzo, 2016,
p.179].

Posteriormente, vemos um pouco mais sobre a doutrina luterana:

Apenas as práticas instituídas por Cristo e por ele transmitidas no Novo


Testamento deveriam ser conservadas. Dessa maneira, dos sete
sacramentos defendidos pela Igreja católica, apenas dois tiveram sua
existência reconhecida pelos luteranos: o batismo e a eucaristia. Repudiou-
se o culto à Virgem e aos santos e foi negada a existência do purgatório”.
[Vaz; Panazzo, 2016, p.169].

Tal perspectiva apresentada nesse livro não diverge muito das outras. Há,
entretanto, uma preocupação em reafirmar não só o caráter inovador de
Lutero, mas também a peculiaridade iconoclasta que caracterizou a Reforma
Protestante. Essa “natureza iconoclasta” associada à Reforma é
amplamente arrogada pelos estudos confessionais e, infelizmente,
influenciam materiais didáticos, como vimos. Felizmente, tal caráter vem
sendo revisado e criticado. Um estudo recente defende um tipo de
“hagiografia protestante” baseada em “O Livro dos Mártires” de Jean
Crespin, publicado inicialmente em Genebra, 1554, e reeditado até 1619.
De acordo com João Rangel:

“Esta obra foi consagrada aos protestantes julgados e condenados à morte


por heresia. Trata-se, portanto, de uma obra que narra os casos de martírio
protestante e que será lida durante os cultos a fim de relembrar e fortalecer
na fé os que estão sendo perseguidos. Ou seja, durante a Reforma, pode-se
encontrar obras que tal como hagiografias medievais apresentavam um
projeto exemplar mediante a vida (e a morte) dos seus <<santos>>”.
[Rangel, 2019, p.11].

Além disso, a ênfase em uma concepção totalmente inovadora ignora o fato


de Martinho Lutero ter continuado a compactar com algumas doutrinas
católicas. O conceito de escatologia, por exemplo, não foi em momento 163
algum contestado por Lutero. A ideia católica da segunda vinda, da
ressurreição dos mortos e do juízo final fora compartilhada pelo mesmo
Lutero e por outros reformadores [Riddlebarger, 2017]. Ora, mesmo não
fazendo parte dos solas que ajudaram a caracterizar a Reforma Protestante
de Lutero, seria imprudente se referir à escatologia como um conceito
qualquer; pelo contrário, é algo essencial no pensamento cristão, afinal, é o
fim do mundo terreno e o início da vida celestial. É, em suma, o evento pelo
qual todo cristão, teoricamente, anseia. Este era, inclusive, algo pelo qual o
próprio reformador esperava (aqui fica explícita sua concepção de História)
e fazia prognósticos. Era com bastante frequência que o reformador alemão
dizia que o fim estava próximo e devia ser esperado para o próximo ano ou
mesmo para o ano vigente; inclusive, por amor aos seus, Deus abreviaria o
tempo e traria, o mais cedo possível, o juízo para os justos e os injustos
[Koselleck, 2006, p.25]. É inegável que o reformador tenha ajudado a
trazer ao mundo ocidental uma nova maneira de enxergar muitos aspectos
do cristianismo, inclusive, foi rotulado de herege por isso. Mas vê-lo como
um homem totalmente inovador/revolucionário, descolado de sua época,
cultura e tradição (católica/agostiniana) é um grande equívoco. Seria
desonesto, diriam outros.

Lutero e o diabo: fim do pensamento medieval (irracional) e início


do moderno (racional)?
“Martinho Lutero acreditava no diabo”, assim Robert Muchembled começa
um de seus capítulos sobre o diabo na Alemanha Protestante [Muchembled,
2001, p.147]. O historiador mostra que Lutero compartilhou das crenças
clássicas de sua época em relação ao diabo. Segundo Muchembled, o
religioso alemão defendia que Satã não era apenas causador das más
situações, mas um agente ativo na vida cotidiana, podendo agir de diversas
formas: habitando o corpo de hereges, prostitutas e feiticeiras, ou se
fazendo de anjo e tentando se passar por Deus; poderia, também, assumir
a forma de leão, porco, cão e dragão (o exemplo do dragão mostra-nos a
racionalidade presente no medievo que não é compreendida: no fundo, não
importava a real existência ou não do dragão, mas existiam forças que
eram poderosas o suficiente para fazê-lo existir). Estes exemplos mostram-
nos que a figura do diabo era mais que presente na vida de Lutero, ganhava
forma e poder.

Em “Uma Breve Instrução sobre Como Devemos Confessar-nos” [Lutero,


1987, p.233], Lutero diz que é importante confessar os pecados do coração,
que são ocultos e conhecidos unicamente por Deus, pois é impossível evitar
pecados diários, porque, além da natureza corrompida, o diabo não
descansa. Ou seja, este é um agente que está ali sempre introduzindo
pensamentos pecaminosos e desejos enganosos no coração das pessoas.
Ter uma vida asceta e ligada a Deus é importante, mas é preciso estar em
constante vigilância, pois, como dito, o diabo está sempre “procurando
brechas” para agir.

Ao dedicar um escrito a Frederico, duque da Saxônia, Lutero diz que a única


coisa que importa é agradar a Cristo. O fato, inclusive, “de ser odiado pelo
164
diabo e seus asseclas” o alegra demasiadamente e isto é motivo para
render graças a Deus. As perseguições, tentações e problemas que o diabo
cria para ele são motivo de orgulho, já que, grosso modo, o diabo não
precisa se preocupar com os seus, mas com os militantes dos reinos
celestes. O diabo o odeia porque seu trabalho estava ajudando a salvar
almas e a desvendar pessoas da “cegueira religiosa causada pela Igreja”
[Lutero, 1988, p.13].

Em outra carta, em resposta a Cristóvão Blank, Lutero critica a arrogância


dos teólogos de Lovaina e Colônia, por estes arrogaram para si o título de
portadores da verdadeira teologia, rotulando de hereges os que não
concordavam com suas afirmações. Para Lutero, o maior problema era que
as pessoas punham suas elaborações teológicas acima da Palavra de Deus,
isto, inclusive, simbolizava o anticristo. Segundo o Teólogo em questão:

“Nenhum herege jamais teve a presunção de tal loucura e, quando, até


hoje, nem mesmo o diabo ousou empreender algo na Igreja sem a palavra
de Deus, coisa que hoje tanto os pontífices quanto nossos mestres usurpam
para si com tão grande tirania (mas sob o nome de santa Igreja, ora da
romana, ora da católica, ora da representativa, ora da doutrinal), de sorte
que, se alguém negar que eles tenham agido corretamente, sim, por ordem
divina, condenam-no imediatamente com mil acusações de heresia e o
devotam a ambos os fogos, ao temporal e ao eterno”. [Lutero, 1988, p.78]

Lutero, ao atacar a forma que seus adversários lidam com a autoridade


bíblica, sugere que “até o diabo respeita a palavra”. O diabo, por mais
astuto que seja jamais procurou empreender algo na Igreja sem uma
fundamentação teológica. Ou seja, havia um respeito por parte do inimigo.
Entretanto, tal respeito não se dá por parte do papa e de mestres da Igreja.
Estes desprezam a autoridade da palavra e impõem coisas que, para o
reformador, não possuem fundamentação bíblica. Vemos como a concepção
agostiniana continua fortemente presente no pensamento de Lutero,
entretanto, a Igreja Católica agora personificaria o mal e ele o bem.

Conclusão
Como tratado em todo texto, acreditamos que Martinho Lutero não é um
“desbravador da modernidade”. O reformador alemão não é, muito menos,
alguém que rompe com a lógica do medievo e inaugura, em alguma
medida, o dito pensamento moderno. Por mais que o agostiniano tenha
trazido novas concepções e formas de enxergar o cristianismo, sobretudo,
com sua específica hermenêutica, vê-lo deslocado de sua cultura e tradição
é um equívoco, pois isso faz com que a linha tênue entre o caráter
fenomenológico da reforma e o desprezo intencional, prosélito e desonesto
pelo medievo rompa. Infelizmente, tais ideias acabam influenciando
materiais didáticos e faz com que pessoas aprendam e reproduzam os
períodos Históricos como bruscas rupturas sem considerar a continuidades
das mentalidades. Sem perceber, isso gera uma bola de neve que acaba
perpetuando estigmas e pré-conceitos epistemológicos sobre nossa
disciplina e aqui não me refiro somente à história medieval, mas à História.
Fizemos uma análise do caráter puramente religioso, deixando de lado
questões do interesse econômico, apesar de criticá-los. É certo que não 165
proponho aqui que os livros didáticos sobre história medieval foquem no
aspecto estritamente religioso e ignore os outros. Se com a frágil
epistemologia de nossa disciplina tais análises mostram-se árduas, picotar o
período medieval em caixas como “cultura”, “religião” e “economia”
empobreceria demasiadamente qualquer análise séria. Mas, como
mostrado, alguns temas religiosos ainda têm sido tratados de maneira
relaxada. E isso não é falta de produção acadêmica séria, com toda certeza.
Não incentivo, também, obviamente, que tema provavelmente sensíveis a
estudantes (como a figura do diabo e a representação do mal, por exemplo)
sejam tocados de forma empedernida, mas com todo o rigor metodológico
que nos cabe.

Por fim, com todas as limitações epistemológicas – e intelectuais, confesso


– propus como a figura do reformador alemão Martinho Lutero pode ser
usada para explicar a Idade Média e suas concepções que são
demasiadamente complexas. Por mais que Lutero tenha rompido com a
Igreja em muitas doutrinas ficou provado que ele não conseguiu ignorar
totalmente sua tradição e formação propriamente medieval. É óbvio que
falar de “propriamente medieval” pode se tornar algo problemático e
genérico, mas, nesse caso, falo de toda uma tradição e cultura baseada
numa racionalidade própria que dificilmente foi compreendida - quando
tentaram compreendê-la, vale ressaltar.

Martinho Lutero pode ser pensado por meio da “longa idade média” graças
à contribuição de Jacques Le Goff, pois exemplifica que os processos
históricos são complexos e labirínticos. Neles, achamos rupturas, mas
também continuidades, sem que necessariamente um se sobreponha ao
outro. Por mais que tentemos decifrar os códigos, palavras e conceitos,
podemos perceber que, no fundo, existem questões que a documentação
não responderá. Descobrimos, também, que a História é feita das próprias
divisões que nós mesmos criamos e naturalizamos.

Referências
Marcos Vinícius da Silva Ramos
Graduando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, bolsista
de Iniciação Científica com o prof. Dr. Clinio de Oliveira Amaral, e integrante
do LABEP (Laboratório de Estudo dos Protestantismos) e Linhas (núcleo de
estudos sobre narrativas e medievalismos).

AMARAL, Clinio de Oliveira. Neopentecostal santification understood through


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LE GOFF, Jacques. Por uma longa Idade Média. Lisboa: Estampa, 1994.
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166
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Escritos de 1517 a 1519. São Leopoldo: Editora Sinodal; Porto Alegre:
Concórdia Editora, 1987.
LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 2 – O Programa da
Reforma – Escritos de 1520. São Leopoldo: Editora Sinodal; Porto Alegre:
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VAZ, Maria Luísa; PANAZZO, Silvia. Jornadas.hist: história, 7º ano: ensino
fundamental. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
VICENTINO, Cláudio; VICENTINO, José Bruno. História mosaico. 2. ed. São
Paulo: Scipione, 2016.
A HISTÓRIA DAS ENFERMIDADES: DA POSSÍVEL CAUSA DA
PESTE NEGRA AO SURGIMENTO DO MÉDICO DA PESTE [SÉC.
XIII-XIV]
Mauricio Ribeiro Damaceno

A proposta deste trabalho é trazer uma nova perspectiva para a análise da


Peste Negra, relacionando a perseguição aos hereges e a emissão de 167
decretos pelo papa e pela Santa Inquisição. Um destes documentos, fez
nascer a crendice do gato preto como animal usado nos rituais heréticos. A
caça a estes felinos fez diminuir o seu número em toda Europa, propiciando
a proliferação de ratos e o aumento de hospedeiros transmissores da Peste
Negra. Neste cenário de caos e mortandade elevada, surgiu a figura do
médico da peste. Este personagem foi envolto em uma áurea de simbolismo
e crenças que precisam ser estudadas e analisadas. Enfermidades como a
Peste, certamente alteraram os rumos da sociedade medieval, sendo papel
do historiador fazer tais análises e ponderações.

Esta doença matou 1/3 da população europeia a partir do século XIV, sendo
com absoluta certeza a maior e mais funesta epidemia registrada pela
história. As manchas escuras que apareciam na pele dos infectados deram
origem ao nome desta doença. Ela teve suas origens na Ásia Central,
espalhando-se por terra e pelo mar. No ano de 1334 foram registradas
cinco milhões de mortes na região do norte da China e na Mongólia. A peste
seguiu matando em lugares como a Mesopotâmia e Síria, onde suas
estradas ficaram cobertas de cadáveres daqueles que tentavam fugir das
cidades. Em Alexandria os mortos permaneciam insepultos e na cidade do
Cairo eram atirados em valas comuns. Só no Oriente, o número de mortos
chegou a 24 milhões.

Nos anos seguintes, ainda no século XIV, a epidemia seguiu deixando seu
rastro de morte pela Criméia [1347] e no ano de 1348 chegou a Marselha
na França, graças ao ancoro de embarcações genovesas. A doença dizimou
a maioria da população de Marselha em apenas um ano. Em 1349 a peste
alcançou a região central e norte da Itália e dali se desdobrou por toda a
Europa. Enquanto avançava, a Peste espalhava desolação e morte tanto nos
campos, quanto nas cidades, a ponto de povoados inteiros virarem
cemitérios [Lopes, 1969, p.172].

Assim, cientes do poder destrutivo e das mudanças provocadas por esta


enfermidade, cabe à historiografia contemporânea se perguntar qual a
relação do surgimento e propagação desta doença com as ações do Papa e
da Santa Inquisição? Qual o papel e a concepção simbólica que envolveram
os profissionais da saúde que ficaram conhecidos como médicos da peste?

A perseguição aos gatos pretos: uma crença mortal


Os estudos parecem se desviar de um dos motivos que possivelmente
ocasionou a morte de milhares de pessoas em todo Oriente e Ocidente
durante a Baixa Idade Média. As causas para o elevado número de mortos
parece ter recebido uma grande colaboração de ações mal pensadas pelos
membros da Igreja e por consequência, da Santa Inquisição. Para discorrer
sobre isto, é preciso analisar dois importantes documentos emitidos por
esta instituição: as bulas Licet ad capiendos e Vox in Rama.

A primeira bula foi um importante documento emitido pelo papa Gregório IX


[1145-1241] em 20 de abril de 1233 e se destinava aos dominicanos, que
168
passaram a conduzir o trabalho de investigação, julgamento,
condenação/absolvição daqueles que houvessem cometido algum ato de
heresia. Este documento fundou oficialmente a Inquisição como é conhecida
atualmente. O decreto destaca que:

“Onde quer que lhes [hereges] ocorra pregar, estais facultados, se os


pecadores persistirem em defender a heresia apesar das advertências, a
privá-los para sempre dos seus benefícios espirituais e a proceder contra
eles e todos os outros, sem apelação, solicitando em caso necessário a
ajuda das autoridades seculares e vencendo sua oposição, se isto for
necessário, por meio de censuras eclesiásticas inapeláveis” [Gregório IX,
1233].

No trecho acima fica evidente que, para o Papa, o ato de heresia, ou seja,
de seguir em desacordo com as leis da Igreja Católica e com os
mandamentos de Deus, deveriam ser censurados e “cortados pela raiz”.
Aquele pego em desacordo com os ensinamentos passaria por um tribunal
responsável por julgar seus atos e lhes aplicar punições, se necessário. Isto
certamente permitiu que no decorrer de seis séculos, a Inquisição
trabalhasse de maneira impiedosa, atingindo as camadas políticas,
econômicas, sociais e culturais da sociedade medieval e moderna. O
suspeito da prática de heresia muitas vezes era investigado por pessoas
nomeadas pelo Santo Ofício antes de ser julgado por três inquisidores no
tribunal, onde um deles era o inquisidor-mor, responsável pela sentença
final.

No entanto, os decretos de Gregório IX não pararam por aí. No dia 13 de


junho de 1233, o Papa promulgou outro documento que abria precedentes
para a caça aos felinos, em especial aos gatos pretos. A bula não condenou
este animal, mas ao ligá-lo à prática de seitas demoníacas, o envolveu no
ato e assim o colocou em condição desfavorável perante a sociedade
medieval. Tal decreto foi encaminhado a Henrique [1211-1242], Rei da
Alemanha e filho do Imperador Frederico II [1194-1250], tendo início com
um prólogo que, envolto com imagens bíblicas, fez a descrição de
infortúnios que se abatiam sobre a Igreja, tais como rumores de práticas de
bruxaria no norte da Alemanha. A carta não foi tímida em seus detalhes e
muito menos em expressar a angústia do Papa. Ela descreve que:

“Quando um noviço deve ser iniciado, é levado perante a assembléia dos


ímpios pela primeira vez, uma espécie de sapo lhe aparece; um sapo de
acordo com alguns. Alguns dão um beijo sujo nas suas partes traseiras,
outros na sua boca, a chupar a língua do animal [...]. O novato se
apresenta e fica diante de um homem de palidez temerosa. Os seus olhos
são negros e o seu corpo tão fino e macilento que parece não ter carne e
ser apenas pele e osso. O novato beija-o [...]. Depois de beijar ele deixa
cada resquício de fé na Igreja Católica que permanecia no coração de
noviço. Então todos se sentam para um banquete e quando se levantam
depois de terminado, um gato preto emerge de uma espécie de estátua que
normalmente fica no local [...]. É tão grande como uma estátua de tamanho
parecido com um cão, e vira para trás com a cauda ereta. Primeiro o noviço
beija as suas partes traseiras, depois os Mestres de cerimônias continuam a 169
fazer o mesmo e finalmente todos os outros por sua vez; ou melhor, todos
aqueles que merecem a honra. O resto, que são aqueles que não são
considerados dignos deste favor, beijam o Mestre de Cerimônias” [Gregório
IX, Junho/1233].

E mais adiante completou:

“[...] Todos os anos, na Páscoa, quando recebem o corpo de Cristo do


sacerdote, guardam-no na sua boca e atiram-no para a terra como um
ultraje contra o seu Salvador. Além disso, estes mais miseráveis [...] na sua
loucura dizem que o Senhor fez o mal ao condenar Lúcifer para o poço sem
fundo” [Gregório IX, Junho/1233].

As duas passagens mostram uma preocupação do papa com os rituais de


bruxaria e de adoração ao demônio, mas também revelam um
acontecimento marcante tanto para a Peste Negra, quando para o
surgimento de superstições que até hoje existem. É verdade que ela não diz
que o gato era considerado um ser satânico ou algo desta natureza, mas o
simples relato de sua presença nos rituais se encarregou disto. Outrossim, é
importante ressaltar que não era qualquer felino: o documento relata a
presença de gatos pretos.

A Vox in Rama apresentou os rituais depravados do culto com riqueza em


detalhes, representando o diabo idolatrado pelas bruxas como um meio
gato sombrio [preto] e meio homem. Seu efeito a longo prazo, no entanto,
foi criar uma nova visão do gato na sociedade europeia em geral,
convertendo-o de um animal sagrado pagão a um agente do inferno. Essa
demonização possivelmente levou à perseguição generalizada e violenta de
gatos pretos. Essa perseguição teria sido tão brutal que acredita-se que, por
volta de 1300, o contingente de gatos na Europa estava suficientemente
esgotado ou drasticamente reduzido para impedir a proliferação de ratos e
camundongos.
170

Figura 1- Perseguição aos gatos


Fonte: Ilustração de um manuscrito produzido na Bretanha, datado de 1430
– 1440

Na miniatura acima, criada na metade do século XV, mostra no centro, um


gato em cima de uma árvore, acuado por cães e homens que
certamente o seguiram. A cena revela uma prática de caçada, pois um dos
homens toca uma trompa [instrumento símbolo da prática], enquanto os
demais seguram arcos e flechas, disparando contra o animal que já se
encontra ferido e ensanguentado em função de um ferimento causado por
uma seta ainda cravada em seu corpo. Esta imagem comprova a tese de
que estes animais foram perseguidos após a promulgação da bula de junho
de 1233.

A Igreja parece ter dado “um tiro no próprio pé”, já que com o massacre de
gatos devido a crenças religiosas infundadas, houve um enorme aumento
da população de ratos em toda a Europa, e como estes roedores eram
ótimos hospedeiros para as pulgas, não é leviano pensar que as bactérias
Yersinia pestis [ainda não conhecidas no medievo], tenham encontrado,
sem esforços, transmissores em larga escala da mais devastadora
pandemia da história da humanidade, que matou aproximadamente 200
milhões de pessoas na Idade Média. Os Inquisidores acabaram então,
cavando a própria cova.

Agentes da cura: a representação dos Médicos da Peste


Até aqui abordou-se o possível motivo para o surgimento e a propagação da
Peste por toda Europa. No entanto um personagem importante neste
período e que em raras ocasiões aparece nas narrativas historiográficas da
Peste, foi o indivíduo que ficou conhecido como Médico da Peste. Estes
profissionais faziam parte de uma categoria especial que tratava aqueles
que foram contaminados pela peste. Esses físicos foram contratados para
atuarem nas cidades que tiveram muitas vítimas em tempos de epidemias.
O tratamento publico, ou seja, para a população rica e pobre dependia do
pagamento de seus salários pela cidade. No entanto, certamente não seria
incomum os tratamentos particulares a pacientes e seus familiares. Eles
tratavam os pacientes segundo seus acordos e eram também conhecidos
como médicos municipais ou comunitários. Além disto, tinham a
responsabilidade de gravar em registros públicos as mortes em decorrência
da praga [Cipolla, 1977, p. 65-68; Rosenhek, 2011; Byrne, 2006, p. 170].

Normalmente, não eram físicos treinados ou cirurgiões com ampla


experiência, e muitas vezes eram médicos que ainda não haviam
conseguido estabelecer-se na profissão ou jovens que estavam tentando
conseguir o seu lugar de destaque. Em lugares como a França e nos Países 171
Baixos não era incomum encontrar aqueles que não possuíam nenhuma
formação médica e eram referidos como "empíricos".

Por outro lado, esses médicos comunitários foram de grande valia e


receberam privilégios exclusivos, tais como autorizações para realizar
autópsias, que foram proibidas ou limitadas para outros médicos de
categorias diferentes na Europa Medieval. Em algumas situações, estes
profissionais eram tão estimados que cidades como Orvieto chegou a
contratar homens como Matteo fu Angelo [?] em 1348 por 4 vezes a taxa
normal de um médico que era de 50 florins por ano. Autoridades
eclesiásticas também deram grande importância a esta função: o Papa
Clemente VI chegou a contratar vários médicos extras durante o surto da
doença, para atender os enfermos de Avinhão. No entanto, em cidades
como Veneza, dos dezoito médicos que ali trabalhavam, apenas um
permaneceu na cidade em 1348, pois cinco teriam morrido da peste e doze
estavam desaparecidos ou fugiram [Cipolla, 1977, p. 65-68; Ellis, 2004, p.
202; Byrne, 2006, p. 168-169; Simon, 2005, p. 3].

Outra particularidade destes profissionais eram suas vestimentas. Alguns


médicos de peste usavam um traje especial, apesar das fontes gráficas
mostrarem uma variedade de peças de vestuário. O traje de proteção
incluía um sobretudo de tecido pesado, que era encerado, uma máscara
com aberturas de olhos de vidro e um nariz em forma de cone [como um
bico] com interior composto por ervas aromáticas e palha. As vestimentas
também incluíam na maioria das vezes um chapéu de aba, tipicamente
utilizado para identificar sua posição como médico [Boeckl, 2000, p. 15-27;
Byrne, 2008, p. 505].

Dentre as substâncias presentes nas máscaras estavam o âmbar, folhas de


hortelã, erva-cidreira, cânfora, cravo, láudano, mirra, pétalas de rosa e
estoraque. O aroma perfumado servia para proteger o médico do ar
contaminado. A palha servia como um filtro para o "mau ar". Já o bastão
ponteiro de madeira na mão do físico, foi usado para ajudar a examinar o
paciente sem a necessidade de tocá-lo e, quando solicitado, como um meio
de se arrepender dos pecados através de golpes com este instrumento, pois
muitos acreditavam que a praga era um castigo divino [Byrne, 2006, p.
170; Loudon, 2001, p. 189; Pommerville, 2010, p. 9; O’Donnell, 1936, p.
14].

O médico da peste com maior prestígio teria sido Guy de Chauliac [1300-
1368]. Ele estudou Medicina em Toulouse antes de ir para Montpellier, de
onde seguiu para Paris, onde viveu entre 1315 e 1320 e em 1325 tornou-se
mestre de Medicina e Cirurgia. Com a conclusão de seus estudos no reino
da França, foi para Bolonha estudar a anatomia onde recebeu os
ensinamentos de Nicolau Bertuccio [?-1347], com quem possivelmente
aprendeu técnicas cirúrgicas. Com o crescimento de sua fama, foi convidado
para a corte papal em Avinhão, para servir como médico pessoal do Papa
Clemente VI [1291-1352]. Mais tarde, tornou-se médico pessoal do Papa
Inocêncio VI [1282-1362], e do Papa Urbano V [1310-1370] [Thevenet,
172
1993, p. 208].

Com a chegada da Peste Negra a Avinhão em 1348, os médicos fugiram da


cidade, mas Chauliac ficou, tratando de doentes de peste e registrando os
sintomas. Ele chegou a alegar ter sido contaminado, mas se curou graças
às suas técnicas. Em sua obra intitulada Cirurgia Magna relata a chegada
doença e suas categorias. No relato ele disse que:

“[...] apareceu em Avinhão, no ano de nosso Senhor de 1348, no sexto ano


do pontificado de Clemente VI, ao serviço do qual eu era então, por sua
graça, o servidor indigno. [...] A dita mortalidade começou para nós no mês
de Janeiro e durou pelo espaço de sete meses. Ela foi de duas espécies: a
primeira durou dois meses, com febre continua e expectoração de sangue;
e morria-se disso em três dias. A segunda ocupou todo o tempo restante,
também com febre contínua, abcessos e carbúnculos nas partes externas,
principalmente nas axilas e nas virilhas: e morria-se dela em cinco dias. E
era de tal modo contagiosa [...] que as pessoas morriam sem ajuda e eram
sepultadas sem padre. O pai não visitava o seu filho, nem o filho os seus
pais. A caridade estava morta e a esperança abatida [...]” [Chauliac, 1363,
p. 167].

No trecho acima é possível contatar o ano em que a doença chega ao reino


da França [1348], tendo um período de auge nos sete meses que se
seguiram após sua primeira aparição. Outro ponto importante é a
classificação feita da doença em duas formas: a conhecida como peste
negra [peste bubônica] com ocorrência de febres e aparição de abcessos; e
aquela que ficaria conhecida mais tarde como peste pneumônica [peste
pulmonar] com sintomas de febre e infecção pulmonar com escarros de
sangue. Por fim, cabe ressaltar o medo que se espalhou por toda sociedade
medieval a ponto de os filhos abandonarem seus pais ou igualmente ao
contrário. Não havia mais o princípio cristão da caridade, restando apenas a
desesperança.

Nas linhas seguintes a este trecho, Guy afirma que o mundo nunca havia
visto uma doença tão poderosa como esta: nem a que surgiu região da
Trácia, ou a relatada por Hipócrates em sua obra Epidemias, ou a que
aconteceu no tempo de Galiano abordada no livro De euchimia, ou ainda,
aquela da cidade de Roma no tempo de Gregório. As razões para sua
aparição, segundo Chauliac, seria de natureza universal (posição de
Saturno, Júpiter e Marte, em 24 de março de 1345, no 14º grau de Aquário,
indicando grandes mortandades) e particular (disposição dos corpos, o
enfraquecimento e o fechamento dos poros, levando à morte a populaça, os
laboriosos e os que viviam mal) [Chauliac, 1363, p. 167-170].
Em relação aos tratamentos, os físicos da peste praticavam sangria e
prescreviam diversos tipos de medicamentos e técnicas, como colocar rãs
ou sanguessugas nas ínguas para reequilibrar os humores. A interação com
o paciente era limitada já que havia a possibilidade de propagação da
doença, estando eles também sujeitos a quarentena (Byfield, 2010, p. 37;
Gottfried, 1983, p. 126]. Segundo Chauliac, os métodos preventivos
incluíam: 173

“[...] fugir da região antes de ser infectado; purgar-se com pílulas aloéticas,
diminuir o sangue por flebotomias, purificar o ar pelo fogo, confortar o
coração com teriaga, com frutos, com coisas de bom cheiro, confortar os
humores com bolo armênio e resistir à putrefação com coisas ácidas [...]”
[Chauliac, 1363, p. 170].

Em suma, a peste foi absolutamente uma das doenças mais mortais de toda
história da humanidade e por isto, desperta bastante interesse dos
trabalhos acadêmicos. No entanto, fatores importantes são deixados de
lado, como é o caso das bulas emitidas durante a Inquisição e sua possível
relação com peste. Percebe-se, que apesar de não condenar explicitamente
os gatos, o documento emitido por Gregório IX em Junho de 1233 com
absoluta certeza serviu de pretexto para a caça deste animal. Sua morte em
larga escala, provocou em médio e longo prazo o aumento do número de
ratos e possibilitou a proliferação da peste. Esta doença mudou os rumos da
sociedade medieval e abriu caminho para outra profissão: os médicos da
peste. Nomes como Guy de Chauliac conseguiram destaque e deixaram um
importante registro para as futuras gerações de físicos e cirurgiões que
ainda teriam um longo e mortífero período até o controle de tal pestilência.

Referências
Mauricio Ribeiro Damaceno é professor efetivo de História pela SEDUC-MT,
graduado em História pela Universidade Estadual de Goiás, Mestrando em
História pela Universidade Federal de Goiás, e Especialista em Ensino de
História pela Faculdade Única de Ipatinga-MG.

Fontes:
CHAULIAC, Guy. “Cirurgia Magna de Gui de Chauliac.1363”. Tradução de: E.
Nicaise. Paris: Bibliothèque Nationale de France. 1890.
GREGÓRIO IX. “Licet ad capiendos”. 1233. In: RIPOLL, Thomás; BRÉMOND,
Antonin Bullarium Ordinis Fratrum Praedicatorum. Roma, 1729, I, 47.
GREGÓRIO IX. “Vox in Rama”. Junho/1233. In: CITÉ DU VATICAN, Archivio
segreto Vaticano, Registra Vaticana 17, fol. 53-55, c. 177.
BOECKL, Christine M. Images of plague and pestilence: iconography and
iconology. Truman: State University Press, 2000.
BYFIELD, Ted. Renaissance: God in Man, A.D. 1300 to 1500: But Amid Its
Splendors, Night Falls on Medieval Christianity. Dallas: Christian History
Project, 2010.
BYRNE, Joseph Patrick. Daily Life during the Black Death. Westport:
Greenwood Publishing Group, 2006.
BYRNE, Joseph Patrick. Encyclopedia of Pestilence, Pandemics, and Plagues.
Califórnia: ABC-Clio, 2008.
CIPOLLA, Carlo M. “A Plague Doctor”. In: MISKIMIN et al. [eds], The
Medieval City. Yale University Press, 1977, p. 65–72.
ELLIS, Oliver C. A History of Fire and Flame 1932. Montana: Kessinger
Publishing, 2004.
GOTTFRIED, Robert S. The Black Death: natural and human disaster in
medieval Europe. Nova Iorque: Simon & Schuster, 1983.
174
LOPES, O. C. A Medicina no Tempo. São Paulo: Edusp/Melhoramentos,
1969.
LOUDON, Irvine. Western Medicine: An Illustrated History. Oxford: Oxford
University Press, 2001.
O'DONNELL, Terence. History of Life Insurance in its Formative Years.
Chicago: American Conservation Company, 1936.
POMMERVILLE, Jeffrey. Alcamo's Fundamentals of Microbiology. Burlington:
Jones & Bartlett Learning, 2010.
ROSENHEK, Jackie. Doctors of the Black Death: The infamous plague
doctors of the Middle Ages were a fearsome sight, 2011. Disponível em:
http://www.doctorsreview.com/history/doctors-black-death/.
SIMON, Matthew. Emergent Computation: emphasizing bioinformatics. Nova
Iorque: Springer, 2005.
THEVENET, Andre: "Guy de Chauliac [1300–1370]: The Father of Surgery".
In: Annals of Vascular Surgery. vol. 7, n. 2, p. 208-212.
ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL, EUROCENTRISMO E BNCC
(2015-2018): UM DEBATE RECENTE?
Renan Marques Birro

Esta comunicação tem como objetivos: 1) propor uma reflexão transversal


sobre a institucionalização dos estudos históricos no Brasil do ponto de vista
acadêmico; 2) a manutenção da disciplina “História Medieval” nas grades 175
curriculares universitárias e, por último; 3) a discussão em torno do
eurocentrismo, que extrapola as universidades até alcançar as escolas. Esta
questão foi retomada com particular vigor nos últimos anos diante da
institucionalização da Base Nacional Comum Curricular [Lima, 2019;
Miatello, 2016; Teixeira & Pereira, 2016].

Como eu tentarei demonstrar no transcorrer do texto, a discussão me


parece fora do lugar. Em primeiro lugar, pela forma de ensino que ainda
remonta a modelos europeus; em segundo lugar, pelos riscos nem sempre
discutidos da imposição de um novo paradigma em termos temáticos e
espaço-temporais; terceiro, pela adoção de premissas conceituais e
historiográficas nitidamente conectadas ao mundo intelectual europeu,
sobretudo da esfera francesa.

Da institucionalização dos Estudos Históricos universitários até a


BNCC: um breve panorama
No início do século XXI, Patrick Geary [2002] apresentou como vários
países europeus empregaram o passado medieval para legitimar suas
pretensões territoriais, populacionais e ideológicas. O texto rememora
posições clássicas e consolidadas por nomes como Eric Hobsbawm [2002] e
Miroslav Hroch [1985], e pode ser sumarizado nos seguintes parâmetros: a
necessidade de formação de um grupo de intelectuais engajado em uma
empresa nacional; a adoção de uma forma de língua oficial e de um
conjunto cultural comum (folclore, literatura e tradições); a ampliação
desses parâmetros sobre um determinado território; a evocação de um
passado comum (não raro medieval e “inventado”) que conectava
comunidades culturais e linguísticas; a transmissão dessas ideias em
massa, sobretudo na esfera escolar (e de preferência pública). Ademais, os
três historiadores citados manifestaram que este modelo teve início no
contexto prussiano; outrossim, que a intelectualidade europeia teria
atribuído a vitória germânica na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871)
como uma consequência da adoção desses parâmetros político-ideológicos,
que teriam encorajado os soldados, produzindo uma ideia de unidade e de
defesa da mãe-pátria. Não por acaso, muitas nações logo adotaram
medidas similares que promoviam o discurso nacionalista, a identidade
nacional e parâmetros históricos e linguísticos com validade para todo o
país.

As obras dos dois primeiros autores alcançaram certo destaque entre os


historiadores do Brasil. Porém, chama atenção como outra produção de
Geary [1996] recebeu pouquíssima importância e que será basilar neste
trabalho. Ela versa sobre o impacto dessa tradição intelectual germânica no
ambiente universitário estadunidense do final do século XIX e início do XX.
Em época, as universidades dos EUA adotaram o “modelo de seminário
germânico” (com reflexos generalizados em praticamente todo o mundo e
em voga até hoje). Entrementes, pesquisadores estadunidenses foram
estudar em instituições germânicas, enquanto professores germânicos
lecionaram nos EUA. Consequentemente, os arquétipos explicativos da
176
história europeia germânica foram adaptados para consolidar as bases da
historiografia nacional estadunidense [1996] – incluindo, notadamente, um
discurso de superioridade racial e a noção de destino manifesto - ambos
com ampla repercussão social, política e religiosa [Birro, 2016a; Birro,
2016b].

Diante desse cenário, é preciso pensar se o mesmo fenômeno ocorreu no


Brasil e sob quais bases. Logo, fica perceptível a influência principal
francesa, que foi apoiada por políticos e pensadores brasileiros. Para tratar
do assunto de modo célere, recobro o cenário de instituição das
universidades brasileiras a partir do breve retrato do cenário paulistano
(com ênfase na Universidade de São Paulo), mas que pode ser também
notado no cenário fluminense, ainda que de forma mais tímida
(principalmente da Universidade do Rio de Janeiro/Universidade do Brasil)
na primeira metade do século XX. Desde o século XIX, havia uma nítida
intenção da intelectualidade tupiniquim de estreitar as conexões do passado
nacional com o europeu [Ferreira, 1999], seja a partir de construções
fantasiosas (vinda de sociedades européias da Antiguidade ou do Medievo
para o país), seja a partir dos europeus colonizadores [cf. Malheiro Dias,
1921-1926]. Esta pretensão foi apoiada pelos franceses, visto que outras
nações europeias aparentemente pretendiam fazê-lo, como os alemães e
italianos [Ferreira, 1999].

Ato contínuo, ressalto a contribuição de Eurípedes Simões de Paula e de seu


orientando e posterior colega na Universidade de São Paulo, Eduardo de
Oliveira França – respectivamente, o catedrático de Civilização Antiga e
Medieval e de Civilização Moderna da referida instituição. Sob influência da
“missão francesa”, fomentada por grandes nomes como Fernand Braudel e
Jean Gagé, esses autores perpetuaram, de modo consciente ou não, a
empresa francesa em solo brasileiro. Alguns sinais parecem claros nesse
sentido: a preferência e adoção do termo “civilização” nas cátedras
uspianas, termo provindo da esfera intelectual francófona [Cardoso, 1997];
além disso, cito a adoção do “modelo quadripartite francês” (períodos
Antigo, Medieval, Moderno e Contemporâneo), com as devidas adaptações,
a saber, considerando a inclusão das cátedras/recortes como “Civilização
Brasileira”, “Civilização Ibérica” e “Civilização Americana” [Ferreira, 2012].

Em caráter sintético, Paula, Oliveira França e outros docentes uspianos


mantiveram intensa correspondência com colegas franceses, visitaram a
França sempre que possível, utilizaram eminentemente textos em francês e
aprenderam francês. Notadamente, a Universidade de São Paulo contou
com a colaboração de intelectuais franceses, que moldaram em grande
parte seu modelo "espiritual" e funcional; o contato dos estudantes com a
França era iniciado precocemente e provinha do Ensino Secundário, visto
que o aprendizado da Língua Francesa era obrigatório [D'Alessio, 1998].

Como último argumento neste sentido, é preciso mencionar a forte


influência de Eurípedes Simões de Paula nos rumos do curso de História da
Universidade de São Paulo: ele foi um importante ator na indicação de
Sérgio Buarque de Holanda para a cátedra de “Civilização Brasileira” em 177
1956 [Furtado, 2015], além de ter participado ativamente na formação de
muitos de seus pares (um bom exemplo é o já mencionado Oliveira França)
[Theodoro, 2009].

Como é possível perceber, havia uma reprodução curricular Brasil daquilo


que se praticava e como se praticava nos EUA e na França principalmente,
mas com um razoável atraso - mudanças ocorreram nos EUA e na Bélgica
pouco antes ou depois da Primeira Guerra Mundial como reação aos
alemães no conflito [cf. Geary, 1996; Wood, 2013], mas permaneceram no
Brasil até ao menos o fim da Segunda Grande Guerra. A tônica discursiva
entre docentes e discentes de História notadamente mudou na transição
das décadas de 1950 e 1960, graças às intervenções nacionalistas da União
Nacional dos Estudantes (UNE) e por ocasião da criação da Associação
Nacional de Professores Universitários de História (ANPUH): em suma,
essas instituições e seus membros criticavam a perspectiva colonialista do
Ensino de História universitário, que impunha impactos diretos na Educação
Básica do país [Ferreira, 2012].

Apesar do descontentamento, as críticas não impactaram diretamente na


produção e aplicação ampla do Parecer nr. 377/1962 do Conselho Federal
de Educação (Precursor do Conselho Nacional de Educação ou CNE), sob o
título de Introdução aos Estudos Históricos. Este documento determinava as
disciplinas dos cursos de História a serem aplicadas no país, divisão dos
acontecimentos históricos em quatro períodos, a saber, Antigo, Medieval,
Moderno e Contemporâneo – o famoso e já mencionado “modelo
quadripartite francês” [Lima, 2019] – com as devidas adaptações nos
moldes uspianos, como exposto previamente.

Com a ditadura, o debate curricular aparentemente permaneceu inalterado


até meados da década de 1980 [Ferreira, 2012]. Dali em diante, as grandes
mudanças estruturais nos cursos de História no Brasil envolveram quase
exclusivamente as exigências da esfera pedagógica e/ou a inclusão de
disciplinas específicas de História da África, História Afrobrasileira, História
Indígena, Educação étnico-racial etc. Porém, em termos rigorosos, o
“modelo quatripartite francês” manteve-se incólume (para verificar sua
estabilidade, basta comparar as grades curriculares dos cursos país afora),
tal como a influência da historiografia francesa em nosso ofício cotidiano e
nos conteúdos ensinados nas escolas. O debate alimentado nos últimos
cinco anos, portanto, remonta a meados do século passado, ou seja, nada
tem de novo. Deste modo, seria pertinente e um verdadeiro ato
historiográfico retomar as razões que levaram os nossos precursores a
preservar tal ossatura curricular por tanto tempo.
Recortes espaço-temporais e alguns problemas de uma produção
histórica paroquial
Após a reflexão da francofilia e francofonia entre historiadores nacionais,
parece paradoxal empregar um francês para afirmar que a adoção de
recortes espaço-temporais não abarca o terreno da neutralidade. Seja como
for, conforme Jacques Le Goff [2014], esse exercício demanda esforços
178
artificiais, didáticos e parciais empregados pelos historiadores e eivados de
uma panóplia de razões (culturais, ideológicas, intelectuais, políticas etc.).
Portanto, enquanto construções, os recortes espaço-temporais são opções e
podem e devem ser relativizados. Diante disso, não se deve demonizar a
tentativa de mudança em prol de um saber menos eurocêntrico, como
pretendia a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular [2015],
visto que se trata de algo constante no exercício da História; doutra feita, é
preciso verificar até que ponto este esforço é possível, legítimo e não
carrega consigo lampejos de ingenuidade.

Portanto, as perguntas que ficam são: o que se ganha e se perde com a


adoção de um novo paradigma? Quais riscos estão envolvidos? Até que
ponto é legítimo estudar e ensinar História Medieval no Brasil? Por fim, até
que ponto estudar um objeto/tema/recorte espaço-temporal/abordagem
constitui algo mais legítimo do que outro(a), seja ele(a) qual for? A meu
ver, Carlo Ginzburg ofereceu uma boa resposta que ajuda a elucidar os
problemas em voga:

“A história pode nos despertar para a percepção de culturas


diferentes, para a ideia de que as pessoas podem ser diferentes e,
com isso, contribuir para a ampliação das fronteiras de nossa imaginação.
Disso decorreria uma atitude menos provinciana em relação ao
passado e ao presente” [GINZBURG, 2002. O grifo é meu].

Assim, a meu ver, caso as (felizmente fracassadas) tentativas de impor


uma exclusividade quanto ao objeto, tema, recorte espaço-temporal ou
abordagem na história fossem bem sucedidas, produziríamos no mínimo
profissionais míopes e incapazes de avançar até mesmo na premissa
comparativa da prática histórica mais básica [Veyne, 2008]. Além disso,
este exercício é fundamental para reconhecer de modo claro os duradouros
impactos da historiografia francesa em nossa base teórica, nos arquétipos
da historiografia brasileira, em nossos currículos universitários e escolares e
na formatação da nossa cultura histórica escolar [Schmidt, 2012; Rüsen,
1994].

Consequentemente, qualquer movimento em prol deste controle produziria


uma História endógena, estagnada, pouco inovadora e desprovida de
criatividade, tal como desconectada da realidade vivida. Por conta disso,
retomo o supramencionado historiador italiano sobre a necessidade de
justificar por que estudar isso ou aquilo (e qual História deve ser
produzida):

“O que hoje deve ser enfatizado é que as pesquisas que tratam de tópicos
cuja relevância é dada a priori não são nem piores nem melhores do que as
que tratam de tópicos cuja relevância é dada a posteriori. O que é melhor
é simplesmente pesquisar melhor” [Ginzburg, 2002. O grifo é meu].

Para que aprender e ensinar a História Medieval? Crítica e conclusão


Acredito que um exercício intelectual talvez ajude a esclarecer minhas
colocações e apontar os dois argumentos que expus anteriormente, a saber,
do impacto dos arquétipos historiográficos franceses na historiografia 179
brasileira (que seriam ignorados caso fosse adotado um pensamento
paroquial) e os problemas de nada saber sobre a Idade Média e sobre sua
recepção na contemporaneidade.

De modo geral, a cultura histórica escolar brasileira [Schmidt, 2012], os


livros didáticos e impressões do senso comum (sem mencionar aquelas
manifestas por alguns colegas de ofício) fazem alusão ao período medieval
como uma “era das trevas”, que gozou de pouco destaque em termos
culturais, econômicos, intelectuais, políticos e sociais, enfatizando a
mudança intelectual e tecnológica no contexto das grandes navegações e do
ciclo português. Consequentemente, além de ignorar que esses avanços
foram consolidados em grande medida no período medieval, trata-se
indubitavelmente de um processo de colonização do passado medieval para
beneficiar uma errônea compreensão dos Estados Modernos – muito mais
ambíguos e eivados de contradições do que a historiografia tradicional nos
fez crer [Mello e Souza, 2008].

Creio que uma forma de superar essas dificuldades envolve o medievalismo


– ou seja, uma abordagem preocupada com recepção do período medieval
na contemporaneidade (uma vez que há um grande interesse popular no
período) e com a historiografia sobre o período medieval [Utz, 2015; Pugh
& Weisl, 2013; Müller, 2010]. Contudo, as discussões e preocupações
acadêmicas muitas das vezes passam ao largo desses interesses e esforços,
produzindo não só um isolamento, mas uma reflexão acadêmica que pouco
dialoga com a realidade vivida [Birro, 2019]. Obras literárias, games, filmes
e séries manifestam ideias e representações [Chartier, 1988] que aludem
ao período medieval e são amplamente consumidas de diversas maneiras
podem propiciar subsídios para a retomada de argumentos de pureza
religiosa/moral, dos nacionalismos, de projetos político-ideológicos de
superioridade racial, sejam por plena ingenuidade ou intencionalmente de
modo descuidado/inacurado [Eco, 1984]. Tal esforço parece ainda mais
trabalhoso ao considerar a esfera da História Pública: o profissional do
campo da História enfrenta recorrentemente uma concorrência desleal em
termos de veículo, linguagem, acesso, flexibilidade e compreensão daquilo
que a sociedade deseja consumir naquele momento, tal como uma limitação
formativa e metodológica de como comunicar com a sociedade [Meneses,
2018; Lucchesi & Carvalho, 2016; Almeida & Rovai, 2011].

Para ilustrar ainda melhor ambas as questões, Richard Utz atestou certa vez
que:

“Como resultado, um filme de 178 minutos, Coração Valente (Braveheart),


foi capaz de apagar aquilo que 150 anos de erudição tinha estabelecido
quanto à Primeira Noite do Senhor (um rumor de direito feudal do senhor
para tomar a virgindade das filhas recém-casadas de seus servos). O
estudo meticuloso das fontes desde o Iluminismo sobre os horríveis crimes
cometidos durante as Cruzadas medievais não impediu que os acadêmicos
chamassem seus ‘times’ de cruzados. E dezenas de milhares de livros e
artigos eruditos sobre a cavalaria medieval não tiveram influência diante da
180
apropriação dos supremacistas brancos das alegadas virtudes cavaleirescas”
[Utz, 2015].

De modo concomitante, é preciso considerar as interpretações históricas


que alimentam as premissas das “raízes medievais da sociedade brasileira”
ou mesmo discussões em termos abordados nos estudos medievais (feudo,
feudalismo, servidão, milenarismo medieval, bárbaros e civilizados etc.),
presentes em clássicos da historiografia nacional como Carlos Malheiro Dias
[1921-1926], Sérgio Buarque de Holanda [1936], Gilberto Freyre e [1933],
Caio Prado Júnior [1942] e Nelson Werneck Sodré [1962]. Chamo atenção
que todos esses autores e suas obras ainda ecoam em nosso próprio
tempo: basta verificar os últimos trabalhos do célebre medievalista
brasileiro Hilário Franco Júnior [2008] ou o impacto do manual de Jérôme
Baschet [2006] nos cursos de graduação no país para perceber como
elementos refinados dessas manifestações medievais no Brasil ainda se
fazem presentes em nossa academia.

Parece límpido que os malefícios da manutenção dessa longeva tradição de


modo ingênuo e/ou sem um exercício de "reflexividade obsessiva"
[Bourdieu, 1999] são consideráveis: de acordo com Nadia Altschul [2015],
que analisou um dos textos formadores da identidade nacional (Os Sertões
de Euclides da Cunha), percebe-se que a utilização dessas “raízes medievais
no Brasil” serviu para afirmar uma pretensa superioridade dos habitantes do
centro-sul frente ao sertanejo (um termo deliberadamente amplo que
absorvia tanto o nordestino quanto o nortista), que vivia sob um “regime
feudal” e afogado pelo milenarismo religioso; além disso, o sertanejo seria
um quasi equivalente do bárbaro medieval, isto é, um bruto ignorante, o
que explicaria o atraso da região Nordeste quando comparada às plagas do
Sudeste e Sul do país. Portanto, de maneira resumida, era preciso extirpar
os elementos característicos da cultura nordestina para que o quinhão
Setentrional pudesse enfim lograr o desenvolvimento.

Diante desse esforço intelectual de síntese e argumentação, parece-me que


a tentativa de exclusão da História Medieval do Ensino Escolar Básico por
compor um “conteúdo eurocêntrico” cai por terra ante os elementos
presentes em autores e pesquisas basilares da Historiografia Brasileira.
Consequentemente, uma base sólida sobre o período medieval e a
historiografia medieval mostram-se, por sua vez, menos irracionais e no
mínimo salutares na reflexão acerca do passado e do presente brasileiro, tal
como da produção historiográfica nacional.

Referências
Renan Marques Birro é professor de História Medieval e Ensino de História
Medieval da Licenciatura em História (presencial e EAD) da Universidade de
Pernambuco/Campus Mata Norte (UPE/MN), além de professor permanente
do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da UPE/MN.
renan.birro@upe.br. Aproveito o espaço para agradecer ao Prof. Dr. Carlile
Lanzieri Júnior (UFMT) pela indicação do texto de Carlo Ginzburg.

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AS COMUNIDADES CRISTÃS PRÉVIAS À CONSOLIDAÇÃO DO
CORPO ECLESIÁSTICO NA ESCANDINÁVIA MEDIEVAL
Rodrigo Kmiecik

Introdução
A cristianização da Escandinávia é tema recorrente nas produções
184 acadêmicas realizadas no Brasil, especialmente nos últimos anos. As
abordagens vão desde os primeiros bispos missionários à conversão dos
reis, processo que atravessa mais de dois séculos. O tema a ser discutido
neste trabalho é a presença de cristãos na Escandinávia medieval antes do
corpo eclesiástico católico lá haver se consolidado, portanto, comunidades
cristãs sem igreja. Para tais fins, foram escolhidas duas fontes textuais, a
Vita Anskarii de Rimbert e a Gesta Hammaburgensis de Adam de Bremen,
que possibilitassem a análise do tema sob prismas, autores e contextos
temporais diferentes. Objetiva-se compreender como esses autores
perceberam e significaram esses cristãos prévios à consolidação da
cristianização em seus textos.

Base metodológica
O que difere as fontes escolhidas são sua tipologia, a Vita Anskarii sendo
uma hagiografia e a Gesta Hammaburgensis, uma obra de historiografia.
Quanto a isso, é necessário analisar algumas especificidades da abordagem
de um texto hagiográfico, por motivos metodológicos que se alinham à
metodologia principal, a Vorstellungsgeschichte. As obras hagiográficas do
medievo oferecem rica fonte de análise quando as entendemos em sua
completude documental, como defendeu Néri de Barros Almeida. Segundo a
autora,

“Na abordagem documental do testemunho, a parte “confiável” ou


“verdadeira” não pode ser discernida da parte “não confiável” ou “fabulosa”.
Desse ponto de vista o testemunho enquanto realidade formal e seu
conteúdo são submetidos a perguntas de cujas respostas se depreendem as
razões de sua própria especificidade. Nesse caso, a historicidade do
documento reside não apenas nos dados que comunica, mas em sua
totalidade enquanto fato cultural. Assim, os textos de história escritos na
Idade Média, não mentem, não estão enganados, nem traem a tradição de
escrita histórica, mas se situam nela de maneira específica.” [Almeida,
2014, p. 95]

Portanto, o uso dos documentos vai além da sua função de fonte, como
chama Almeida, em informar o factual – datas e eventos –, abrangendo
também o que a autora chama de documental, compreendendo o
documento, assim, em sua totalidade. Ainda, guiado pelas orientações de
Marc Bloch [2001], direciono meus esforços ao que as fontes podem
responder quando interrogadas, “sobre as maneiras de viver ou de pensar
particulares às épocas em que foram escritas, todas as coisas que o
hagiógrafo não tinha o menor desejo de nos expor” [Bloch, 2001, p. 78].
Tais definições buscam trazer luz sobre a mão do autor e suas percepções,
visões de mundo, opiniões, cargas institucionais e tudo que vem junto de
sua pena.

Alguns apontamentos de Hans-Werner Goetz são centrais para o


entendimento das fontes selecionadas para essa pesquisa. O autor entende
que “os autores não escreveram o que realmente aconteceu, mas o que
eles pensavam ou acreditavam (ou queriam) que havia acontecido.” [Goetz, 185
2006, p. 17]. Portanto, o factual muitas vezes está além do alcance do
historiador pois, mesmo no tempo em que os registros foram concebidos,
estes foram “construídos” por quem os registrou. Ainda segundo Goetz,

“Lidando com a historiografia como tal, contudo, o nosso interesse


deslocou-se dos fatos para sua percepção (ou, como argumentei, para as
concepções do autor), da 'realidade' para a sua 'construção', e das
evidências dadas nas 'fontes' aos seus autores como testemunhas
contemporâneas de seu tempo.” [Goetz, 2006, p. 19]

Portanto, os fatos do passado devem ser interpretados como percepções


dos autores sobre sua realidade e, cabendo a nós entender, como isso é
construído na fonte. Assim, intenções pessoais do autor e suas impressões
sempre vão impregnar o registro textual, muitas vezes determinado por
tradições linguísticas ou literárias, ou pela estrutura e função de um gênero.
Essa base metodológica de análise das fontes nos permite ler e interpretar
tanto a Vita Anskarii de Rimbert quanto as Gesta Hammaburgensis de Adam
de Bremen, buscando compreender o sentido que esses autores dão ao
falar dos cristãos vivendo na Escandinávia antes de lá existir igreja, nos
inícios da cristianização.

Evangelização, periodização e problemas com as fontes


Muito se discute a respeito da periodização do processo de evangelização da
Escandinávia medieval. Esse trabalho segue a periodização proposta por
Anders Winroth, na qual o autor estabeleceu uma divisão do processo de
evangelização em duas fases: conversão e cristianização.

“Através da arqueologia, podemos estudar essa lenta infiltração na adoção


de práticas cristãs de sepultamento e na adoção de símbolos cristãos. Por
outro lado, houve a conversão institucional da região. Durante esse
processo, os reis escandinavos destruíram templos pagãos, construíram
igrejas, estabeleceram dioceses e introduziram a realeza cristã. Esse
processo começou mais tarde e se desenvolveu mais rapidamente.”
[Winroth, 2012, p. 103].

Winroth descreveu a cristianização como um lento processo de assimilação


das crenças e das práticas na Escandinávia desde seu contato com o mundo
cristão. Define tal processo como lento e inconstante. Partindo dessa
periodização, o recorte temático se encaixa no que o autor chamou de
cristianização, uma vez que o objeto de análise nas fontes, as comunidades
cristãs, são prévias à institucionalização da igreja na Escandinávia, ainda
que registradas por autores que marcam o início da fase conversora.
Ainda de acordo com Winroth, “o material arqueológico nos fala sobre o
processo de cristianização, enquanto as fontes escritas focam na conversão
institucional, no batismo de chefes e reis, na construção de igrejas e
instalações de bispos” [Winroth, 2012, p. 104]. Tal afirmação traz uma
carga um tanto problemática, uma vez que o autor aponta numa direção
definidora de que as fontes arqueológicas oferecem possibilidades de
186
abordagem mais competentes ao historiador do que as fontes escritas, no
que se refere ao período de cristianização.

Para Winroth, por exemplo, Adam de Bremen relata apenas o que sabia e o
que via a respeito da cristianização dos escandinavos, o que é verdade, mas
tomada pelo medievalista como um problema de insuficiência documental.
Winroth se propôs a contrariar a perspectiva do cônego bremense a partir
das fontes arqueológicas. Eis um problema, dado que o papel do historiador
não é preencher as lacunas do passado com fontes de outra matriz, mas
entendê-las em suas diferentes especificidades temporais e espaciais. O que
interessa aqui é saber o que pensavam Adam e Rimbert a respeito da
cristianização da Escandinávia, uma vez que esse trabalho não se lança aos
“aspectos tangíveis do passado, mas centra-se nas ideias que os indivíduos
do passado tinham de seu meio, suas visões de mundo.” [Grzybowski,
2012, p. 156].

Ainda nesse problema, “uma segunda camada de distorção vem de como a


conversão foi entendida pelos escritores medievais” [Winroth, 2012, p.
120]. Ora, as impressões dos autores medievais não se caracterizam como
distorções dos fatos, que devem ser restituídas pela arqueologia, como
propôs Winroth. Ao contrário, as “distorções” são intrínsecas às percepções
dos autores, pois, como apontou Hans-Werner Goetz, “ao analisarmos essa
‘distorção’ ou, mais adequadamente, a ‘construção’ específica de uma
crônica ou relato, adquirimos valiosos insights sobre o autor e sua obra.”
[Goetz, 2006, p. 20]. Logo, o documento deve ser compreendido em sua
totalidade, na qual tudo é verdade e carrega significado.

Em diversos trabalhos foi discutida a presença de cristãos além das


fronteiras da cristandade. Segundo Edward Arthur Thompson, “no mundo
escandinavo, por exemplo, as missões tinham de ser baseadas nos
comerciantes e nos postos comerciais, caso contrário seria impossível
realizá-las”. [Thompson, 1957, p. 6], como observamos na viagem de
Ansgar à Suécia.

Amparando sua análise em termos gerais, Thompson afirma que “se uma
comunidade cristã fosse encontrada além da fronteira [da cristandade], a
igreja consagraria um bispo para administrá-la.” [Thompson, 1957, p. 9].
Tanto havia resistências entre os pagãos, quanto havia cristãos vivendo e
praticando sua fé antes da institucionalização da igreja na Escandinávia, e
as fontes escolhidas importam-se em abordar esse motivo em sua
construção narrativa.

É importante ressaltar que tanto a Vita Anskarii quanto as Gesta


Hammaburgensis surgem, apesar de separadas por quase duzentos anos,
num contexto semelhante de esforços direcionados à evangelização da
Escandinávia – um inicial, com os primeiros bispos missionários; e outro
mais tardio, sublinhando os êxitos e as incompletudes dessas empreitadas.

A Vita Anskarii
A Vita Anskarii foi composta por Rimbert poucos anos depois da morte de
seu mestre, Ansgar, que faleceu em 865. O texto hagiográfico foi composto 187
em Latim, tendo como objetivo principal santificar a pessoa de Ansgar.
Narra a vida de Ansgar, sua relação com o bispado de Bremen e o rei Luís,
o Piedoso, e suas incursões à Escandinávia, onde evangelizou na
Dinamarca, em Hedeby e Ribe, e na Suécia, em Birka.

Como apontou James T. Palmer, o texto de Rimbert fora “endereçado ao


monastério de Corbie, em Flanders” [Palmer, 2004, p. 236], próximo a
Amiens, na Picardia. O fato de conhecermos o destino da hagiografia pode
suscitar algumas interpretações a respeito de sua função. Seria lida por
eclesiásticos do mosteiro onde o próprio Ansgar havia se educado desde
tenra idade, em Corbie. Diferentes de Ansgar que se tornou engajado nas
missões à Escandinávia após ser transferido para Corvey e aproximar-se de
Hamburgo-Bremen, os monges de Corbie seguiam a ordem beneditina e
assim eram afastados das atividades missionárias. Na conclusão de Palmer,
o autor entende que Rimbert busca apoio franco às missões de Hamburgo-
Bremen.

Palmer destaca que “conforme desenvolveu-se, a hagiografia não


permaneceu como um gênero único, mas adotou uma multiplicidade de
formas interligadas, sendo escrita para uma série de fins espirituais e
políticos.” [PALMER, 2004, p. 239]. Faz-se necessária tal ideia, nessa
pesquisa, buscando entender a função e o sentido de Rimbert mencionar os
escravos cristãos vivendo na Escandinávia. O hagiógrafo assim escreveu no
capítulo XI da Vita Anskarii:

“Havia muitas [pessoas] dispostas a cumprir sua missão e que ouviam de


bom grado os ensinamentos do Senhor. Havia, também, muitos cristãos
escravos (captives) entre eles, que regozijaram por finalmente poderem
participar dos mistérios divinos (divine mysteries)”. [Rimbert, 1921, p. 18].

O episódio ocorre durante a primeira viagem de Ansgar à cidade de Birka,


junto de seu companheiro de missão, Witmar, em 830. De acordo com o
texto hagiográfico, muitos se converteram ao cristianismo e aceitaram a
graça do batismo, inclusive o prefeito da cidade, um homem chamado
Herigar, que “pouco tempo depois construiu uma igreja em sua propriedade
e serviu a Deus com devoção máxima” [Rimbert, 1921, p. 18]. No que diz
respeito aos escravos mencionados, nosso foco de reflexão, podemos
levantar algumas hipóteses. Rimbert destaca que eles “regozijaram por
finalmente poderem participar dos mistérios divinos” [Rimbert, 1921, p.
18]. É compreensível que o autor percebia esses cristãos como incompletos
em sua prática religiosa, por não possuírem igreja, não possuírem padres
ou bispos para guiarem qualquer culto, e não comungavam dos “mistérios
divinos”. O cristianismo era, sobretudo, uma religião de comunhão,
estritamente coletiva, e pode ser que os “mistérios divinos” ditos por
Rimbert só pudessem ser alcançados sob a comunhão e orientação de um
corpo eclesiástico.

Além do fato desses cristãos serem escravos (captives) e estarem


submetidos a algum senhor – pagão ou não –, são limitados, ainda, por seu
188
tipo de fé, individual, distante da igreja que ainda não existe lá. Mas quando
a igreja chega, com Ansgar e Witmar e sua evangelização, esses cristãos
finalmente podem compartilhar da Palavra, podem juntar-se ao corpo
religioso, são, em suma, reintroduzidos, quase como se fossem convertidos.
Assim como Rimbert percebia e significava os pagãos em Birka como um
“outro religioso”, parecia ver os cristãos de semelhante modo. A
reintegração desses cristãos soa quase em pé de igualdade com a
importância de converter e batizar os pagãos.

A menção desses cristãos caminha em concordância com o que Thompson


argumentou em seu artigo aqui já citado. Havia comunidades cristãs além
das fronteiras da cristandade, que precisavam ser administradas e
florescidas pela igreja; o julgamento e a construção de Rimbert parece
reforçar essa ideia. Além disso, como dito, a Vita Anskarii fora escrita para
ser lida pelos eclesiásticos do monastério de Corbie. Como apontou Palmer,
ao falar sobre os últimos capítulos da hagiografia, “em vez de afirmar que
Ansgar tinha convertido o Norte, a história foi deixada em aberto, com
Ansgar ansioso para que outros continuassem seu trabalho.” [Palmer, 2004,
p. 245]. Assim, o documento vai tanto no sentido de exaltar as ações
daqueles que rumaram ao norte para evangelizar, como um apelo aos
novos monges para prosseguirem a empreitada iniciada por Ansgar, um
“modelo missionário” a ser seguido.

Ainda há o fator político. Scott A. Mellor defendeu a ideia de que a Vita


Anskarii não foi apenas uma hagiografia com função de santificar Ansgar,
mas também um texto de historia ecclesiastica. Segundo esse autor,
“Rimbert não se concentrou apenas na vida de Ansgar, mas também no que
diz respeito à fundação de uma arquidiocese em Hamburgo e da
importância dessa nova instituição nas missões na Dinamarca e na Suécia.”
[Mellor, 2008, p. 44].

Quanto aos cristãos prévios, Mellor trouxe em seu texto uma das
interpretações possíveis, pensada por Carl F. Hallencreutz, que teorizou que
tanto a igreja quanto os francos eram contra a escravidão, naquele
momento, e isso é um dos motivos narrativos presentes na hagiografia.
Segundo Hallencreutz, na leitura de Mellor, “embora a igreja possa ter
condenado a escravidão, foi a mudança do império franco da escravidão
para a servidão que moldou a economia e a política regionais" [Mellor,
2008, p. 47]. Tanto Mellor quanto Hallencreutz enxergam um caráter
político na Vita Anskarii de Rimbert; seja a menção aos cristãos de cunho
político ou não, elas têm como primeiro objetivo incentivar a junção desses
cristãos à cristandade.
A Gesta Hammaburgensis
O texto historiográfico, escrito pelo cônego Adam de Bremen nos fins do
século XI, tem como base diversas obras que estavam disponíveis ao autor
naquele tempo, a partir de sua pesquisa, além de inúmeros relatos orais, de
modo que Adam nomeia várias de suas fontes e faz releituras de algumas
delas ao incrementá-las ao seu texto. Quanto ao trecho aqui abordado,
trata-se de uma releitura da Vita Rimberti, hagiografia anônima de Rimbert. 189

“Assim, São Rimbert, como Moisés, foi um homem de extrema brandura,


como diz o Apóstolo, aquele que tinha compaixão com as enfermidades de
todos; mas ele era especialmente preocupado em socorrer os pobres e os
mantidos em cativeiro. Então um dia, quando ele adentrou a Dinamarca,
onde ele havia construído uma igreja para a jovem cristandade em um
lugar chamado Schleswig, ele viu uma multidão de cristãos arrastada em
cativeiro por correntes. Por que dizer mais? Lá ele realizou um milagre
duplo: quebrou as correntes com sua oração e pagou o resgate dos cativos
com seu cavalo.” [Adam de Bremen, 1959, p. 40].

Segundo Lukas Grzybowski, a escolha dessa passagem resgatada do


material hagiográfico por Adam de Bremen reforça a imagem que queria se
construir de Rimbert, o “espírito de um homem piedoso e um líder religioso
preocupado não somente com os grandes círculos, mas com o bem-estar de
todos os cristãos sob seu cuidado.” [Grzybowski, 2016, p. 155]. Nada
retoricamente mais poderoso que um milagre para reforçar uma ideia
eclesiástica, uma vez que, ainda segundo Grzybowski, "para Adam de
Bremen, a marca do verdadeiro santo é o seu trabalho missionário”
[Grzybowski, 2016, p. 156]. De acordo com Ian N. Wood, “o cristianismo
deveria ser uma religião missionária” [Wood, 2004, p. 3], tendo assim sido
postulado pelo texto bíblico: “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se
tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo” [Mt 28:19]. Neste trecho da Gesta, o trabalho missionário é elevado
a um milagre, tal o evento escolhido por Adam a ser recontado ao falar das
ações de Rimbert. Novamente é mostrado que os escravos são libertos e
reintegrados, enfim salvos. Em Rimbert, eles finalmente podem comungar
dos “mistérios divinos”. Em Adam, eles são libertos através da oração e
resgatados. Entende-se que são reintegrados à cristandade.

Considerações finais
Essas menções e a percepção dos autores a respeito das comunidades
cristãs prévias à institucionalização do corpo eclesiástico na Escandinávia
são um argumento em favor da existência desse corpo eclesiástico. A
retórica desses autores gira em torno de fundamentar as bases da
conversão de almas e da consolidação da igreja católica na Escandinávia
medieval, além de funcionar como legitimadora das ações da arquidiocese
de Hamburgo-Bremen. Quando Rimbert fala dos escravos cristãos em Birka,
na Suécia, pretende reforçar o argumento de que as ações missionárias
precisavam existir em função da reintegração desses cristãos “perdidos”.
Quando Adam de Bremen fala dos escravos cristãos em Schleswig, na
Dinamarca, reitera a ação milagrosa de Rimbert em função de elevar o
papel da ação missionária.
Desde os primeiros esforços conversores no início do século IX à fase
institucional com a conversão dos reis escandinavos no século XI, a
presença de não-conversos é sempre registrada, o que justifica a
manutenção de tais argumentos nos documentos estudados. Como outros
exemplos, há o relato do diplomata árabe Ibrahim ibn Yakub al-Turtushi,
190
que visitou a cidade de Hedeby, na Dinamarca, no século X, e contou que
ela era “habitada tanto por pagãos quanto por cristãos” [WINROTH, 2012,
p. 89]. Ainda depois da conversão dos reis, persiste material hagiográfico
que reverbera a necessidade conversora numa tradição literária, como a
Passio et Miracula beati Olavi, hagiografia do rei Olavo II da Noruega,
escrita no século XI, na qual em dado momento o rei, após converso, desce
de seus estrados para pregar. “Não contente com a sua própria salvação,
ele [Santo Olavo] se esforçou em incansável urgência para converter as
pessoas a quem ele fora nomeado pela providência divina para governar.”
[Eysteinn Erlendsson, 2001, p. 27].

É bastante perceptível que tal motivo narrativo é recorrente ao longo dos


séculos que duram a conversão. No caso das fontes estudadas, ainda que
separadas por duzentos anos, os escravos cristãos na Escandinávia desse
longo período são mais um motivo para que ação evangelizadora aconteça,
e aí reside a importância de mencioná-los em tantos âmbitos, pois
reintegrar esses cristãos fazia parte, portanto, do trabalho missionário. Ora,
a cristianização da Escandinávia é um processo lento e inconstante, que
atravessa séculos, de modo que as fontes ressaltam, por motivos e
narrativas semelhantes, as ações missionárias empreendidas por
Hamburgo-Bremen, instituição a qual Rimbert e Adam de Bremen legitimam
em seus trabalhos.

Referências bibliográficas
Rodrigo Kmiecik é graduando em História pela Universidade Estadual de
Londrina (UEL), orientado pelo professor Dr. Lukas Gabriel Grzybowksi.

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O CONTO DO GRAAL E SUA DESCRIÇÃO SOBRE A CAVALARIA
FRANCESA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XII
Wesley Bruno Andretta

O presente texto tem como objetivo apresentar um objeto de estudo sobre


a Cavalaria francesa da segunda metade do século XII. O intuito é
192 compreender as considerações sobre a função política desse grupo militar
segundo um grande romancista, poeta e novelista do século XII, Chrétien
de Troyes. É a partir das concepções acerca da Cavalaria por parte das
obras A sociedade cavaleiresca [1977] de George Duby, A Cavalaria: A
origem dos nobres guerreiros da Idade Média (1998) escrita por Jean Flori e
A Cavalaria: Da Germânia Antiga à França do século XII [2007] de
Dominique Barthélemy, que buscaremos compreender qual a relação
estabelecida entre o ideário cavaleiresco segundo as interpretações dos
autores citados, aquele direcionado a Cavalaria Francesa e Flamenga do
mesmo período, e o ideário proposto por Chrétien em Perceval ou o Conto
do Graal. Essa discussão é atrelada à influência que Chrétien sofre,
principalmente, no momento da mudança entre a corte de Maria de
Champanhe (1145-1198) e a de Felipe de Flandres (1143-1191) no ano de
1181. Tais mudanças são entendidas como um conjunto de processos
históricos que culminaram na criação de um novo ideário e da inserção nas
novelas de cavalaria de um objeto místico, o Santo Graal, interpretado
pelos continuadores como um dos mais sagrados símbolos do cristianismo
latino.

Introdução
A Cavalaria, além de ser título de diversas obras literárias, é um conceito
amplamente debatido na historiografia. Nomes como Georges Duby, Jean
Flori e Dominique Barthélemy se sobressaem. Todos eles utilizam de
diversas fontes, entre elas os textos literários, para a análise e a construção
do seu entendimento sobre os guerreiros a cavalo que existiram na França
no decorrer da Idade Média. Segundo a concepção sobre a Cavalaria de
Barthélemy:

“A Cavalaria clássica, com seus torneios e suas festas, com sua literatura, é
– mais do que a “pré-Cavalaria” da alta Idade Média – da ordem da ficção e
do artifício. Ela é frequentemente a poeira nos olhos que esconde as
decepções inéditas da classe dos Cavaleiros ou os esforços sub-reptícios os
para torná-los militares no sentido estrito, a serviço do Estado (a partir de
João de Salisbury). No entanto, ela terá por muito tempo uma função social
real, pois representa um estilo que fascina famílias de novos-ricos, e eles
perenizam tendendo em direção a ela todos os seus esforços. Ela
representa também um autêntico comportamento guerreiro que impregnará
por muito tempo (pela metade, imperfeitamente) as guerras, inclusive
cristãs e nacionais. ” (Barthelémy, 2010, p. 588]

Esse conceito, construído pela análise de diversas fontes e comparado com


a historiografia existente sobre o tema, diz respeito a um grupo social,
cultural e militar heterogêneo. Realizar uma análise dos poemas, canções,
contos e novelas que fazem alusão a Cavalaria com outras fontes do mesmo
período possibilitam maior entendimento sobre a mesma. Para Flori, a
literatura é uma fonte que não deve ser desprezada, mesmo que possam
conter influências de um “imaginário medieval”, o historiador deve se ater
as informações documentais e sua relação com as fontes diplomáticas,
jurídicas e as litúrgicas e não ao seu valor poético. “Ora, acontece que a
história da cavalaria em seu conjunto e da investidura em particular exige o 193
recurso a essas três áreas. Sua exploração e a síntese resultante são mais
difíceis, mais vastas e mais lentas. ” [Flori, 2005, p.31].

Deste modo buscaremos compreender qual o entendimento de Cavalaria


para um dos maiores nomes da literatura cortesã do século XII, Chrétien de
Troyes. Obviamente, um poeta com tamanho renome detém inúmeras
menções em trabalhos acadêmicos. O próprio Dominique Barthélemy em
seu livro A Cavalaria: Da Germânia Antiga à França do século XII, traz
várias considerações sobre as obras do poeta e o utiliza para explicar
diversos assuntos existentes na cultura literária do século XII, como o amor
cortês [Barthélemy, 2010, p. 523]. Conquanto, para além das investigações
propostas por Barthélemy e por muitos outros historiadores, aqueles que
por exemplo buscaram a formação do cavaleiro, a cristianização da
Cavalaria e a introdução do Graal na literatura, pretendemos apresentar,
como mencionado, quais as possíveis concepções de Chrétien sobre as
funções políticas da Cavalaria.

A Obra Perceval ou o Conto do Graal


Para isso, será utilizado a obra intitulada Perceval ou O Conto do Graal,
escrita provavelmente entre 1181 a 1191 [Abílio, 2002, p. 250]. Esse conto
narra a busca de Perceval, um jovem Galês, para se tornar um cavaleiro.
Dentre as aventuras por ele vividas, desde que sai da casa da mãe, entre o
momento que ganha suas armas e observa o Graal em um dos castelos no
qual participa de um banquete, é possível encontrar várias informações
sobre a formação do cavaleiro e qual o modelo moral que o mesmo deve
seguir.

A obra foi escolhida, entre as demais obras de Chrétien, por fazer parte de
um novo momento na vida do autor, a partir de um evento que alterou
consideravelmente o conteúdo de seus poemas. Entre os anos de 1170 a
1181 Chrétien de Troyes desenvolve seus poemas longe dos assuntos
políticos. Ele se debruça sobre problemas dos seus cavaleiros em relação ao
amor cortês, uma vez que reside na corte de Maria de Champanhe e tem os
seus poemas, e sua temática, encomendados pela condessa. O Conto do
Graal é o primeiro e único poema escrito por Chrétien quando o mesmo
estava a serviço do Conde de Flandres, esse que acabara de regressar da
chamada Segunda Cruzada, onde esteve em peregrinação. O novo patrono
certamente foi, conscientemente ou não, responsável pela alteração do
conteúdo moral e político da escrita de Chrétien de Troyes [Abílio, 2002, p.
250]. Com a nova perspectiva adotada por Chrétien, suas obras ganham
mais elementos cristãos, como o próprio Graal, e ocorre a exposição de
outros problemas da Cavalaria, como por exemplo, sobre a relação entre o
cavaleiro com o senhor e com a Igreja.
Para o desenvolvimento desta análise, é utilizado uma tradução feita por
Rosemary Costhek Abílio, publicada pela Martins Fontes no ano de 2002, já
em sua segunda edição. Tal tradução foi feita sobre a versão escrita por
William Roach, que a transcreveu segundo o manuscrito número 12576 da
Biblioteca Nacional da França, sendo publicado pela primeira vez em 1959.
194
O poema original foi escrito em francês antigo, seguindo o formato de
epopeia, com a métrica octossilábica. Ele é estruturado em capítulos e
divido em versos, ao todo são 18 capítulos e 9.234 versos. [Megale, 2001,
p.48].

Vale ressaltar que o livro traduzido não é dividido em capítulos, e não


apresenta uma narrativa em forma de poema, mas em formato de prosa.
Essa transformação do poema em prosa do francês antigo para o português
contemporâneo não interfere diretamente nos objetivos da pesquisa, uma
vez que não se trata de uma análise filológica do Conto do Graal, mas para
compreender o que é a Cavalaria para seu autor.

Para além das informações que estão dispostas nas fontes, as disposições
políticas que buscaremos podem ser compreendidas na mudança entre as
obras que foram feitas em cada uma das duas cortes que o poeta esteve e
quais as implicações que elas causaram em seus poemas.

Discussão historiográfica
Para que seja possível analisar o conceito de Cavalaria de Chrétien de
Troyes, serão utilizados textos de autores que discorrem sobre as funções
das cavalarias, suas atribuições e as características que as diferenciam.

A obra A Sociedade Cavaleiresca, escrita por Georges Duby, publicada em


1977, é um conjunto de estudos realizados pelo autor referentes à sua
origem e sua distinção ou aproximação com a nobreza. Mais precisamente,
no primeiro capítulo, intitulado Nobreza e Cavalaria, ele discorre sobre as
questões jurídicas e as distinções entre a nobreza e a Cavalaria, presentes
em vários espaços, com ênfase na França. Duby mostra que as Cavalarias
da França no século XI se encontravam em um espaço privilegiado dentre
as relações de poder e como um grupo que está dentro da perspectiva da
Igreja com relação a manutenção da ordem social. Deste modo, as
concepções do autor serão utilizadas para pensar a consolidação da
Cavalaria como um grupo social heterogêneo de poder na França.

Outra obra relevante para este estudo é A Cavalaria: a origem dos nobres
guerreiros da Idade Média escrita por Jean Flori. O autor destaca os
caracteres básicos dos guerreiros a cavalo, como o seu armamento, a sua
armadura e, obviamente, sobre a montaria. Discorre sobre as funções
atribuídas a este grupo por parte dos costumes e da Igreja, os códigos de
cavalarias e como esta instituição religiosa consegue infringir tanta
influência sobre da elite guerreira, a chamada cristianização da Cavalaria,
percebido em vários documentos, como por exemplo, nos romances
arturianos.
Uma das obras mais amplas sobre o tema da Cavalaria pertence a
Dominique Barthélemy, intitulada A Cavalaria: Da Germânia Antiga à França
do século XII. Ela apresenta uma perspectiva diferenciada sobre as
possíveis origens da Cavalaria. Barthélemy utiliza vários tipos de fontes
históricas, entre elas estão os contos literários. Ele relaciona a literatura
cortês com registros documentais propriamente da aristocracia guerreira,
provenientes da produção burocrática, militar e política. O autor 195
desenvolve, pelo menos, quatro capítulos direcionados a Chrétien de
Troyes. São eles: A aventura literária de Chrétien de Troyes, o Itinerário de
Perceval, A moral de Estevão de Fougéres e a de Chrétien de Troyes e Em
busca do Graal. Barthélemy não descreve quem foi Chrétien, dado a falta de
informações sobre o mesmo, sequer busca descrever qual a concepção de
Cavalaria para o poeta. Nos capítulos mencionados ele apresenta as
principais obras do poeta e as utiliza para compreender os problemas
atrelados ao ideário cavaleiresco expresso nas obras, como o amor cortês.
Tais informações são muito pertinentes para pensar qual a concepção de
Cavalaria para Chrétien, uma vez que possibilita analisar as informações na
obra O conto do Graal segundo as definições de Cavalaria proposta por
Barthélemy na França do século XII, espaço e período em que a obra foi
escrita.

Em relação à produção da obra com os processos históricos da literatura


medieval será trabalhado o texto Da canção de gesta ao Quixote:
metamorfoses da narrativa medieval de Demétrio Alves Paz, presente no
livro Reflexões sobre o medievo II: práticas e saberes no ocidente medieval,
com a organização de Carlinda Maria Fischer Mattos, Edison Bisso Cruxen e
Igor Salomão Teixeira. O artigo constrói, de forma sucinta, uma narrativa
sobre as características das diferentes produções artísticas do medievo e
quais suas relações com a conjectura histórica do momento de produção de
cada obra. A partir dela é possível compreender as características da obra O
Conto do Graal em meio às demais obras do período, bem como, com as
epopeias gregas e as canções de gesta.

Em A demanda do Santo Graal: das Origens ao Códice Português escrito por


Heitor Megale tem uma narrativa direcionada ao estudo filológico e a
demanda do Santo Graal, propriamente relacionada ao códice português. O
autor realiza uma busca sobre a origem do cálice sagrado, sendo assim, ele
faz diversas referências às obras de Chrétien. Por conseguinte, a obra se faz
pertinente para a percepção da influência dos textos de Chrétien de Troyes
sobre a cultura literária de outros espaços, bem como na região de
Portugal. Megale elenca que o início da demanda do Santo Graal é dado no
momento da publicação do Conto do Graal.

A produção da obra referente a conjectura literária no século XII


Primeiramente, como a obra de Chrétien de Troyes faz parte do gênero
literário, a metodologia pressupõe certo entendimento sobre o trato com
documentos literários por parte da História. Segundo Pesavento, em O
mundo como texto: leituras da História e da Literatura [2003], a literatura:

“Não precisa comprovar ou chegar a uma veracidade, mas obter uma


coerência de sentido e um efeito de verossimilhança. A rigor, História e
Literatura obtêm o mesmo efeito: a verossimilhança, com a diferença de
que o historiador tem uma pretensão de veracidade. [Pesavento, 2003,
p.37]

É a partir do conceito de verossimilhança que é possível analisar as obras


196
literárias em relação a realidade expressa em cada conto, condizente com
os processos históricos por trás da sua produção.

Para pensar como a produção literária já existente que influência o Conto do


Graal, precisamos recorrer a Segismundo Spina, onde afirma que “Nos
séculos XII e XIII, a fusão dos dois ideais primitivos determinou o
aparecimento de gêneros diferentes. Da comunhão do Herói com o Amante
nasce novela cortês; do Herói com o Santo surge o ciclo novelesco do Graal
[Spina, 2007, p. 45]”. Ademais, a obra de Segismundo Spina, A Cultura
Literária Medieval, que faz um apanhado geral sobre o tema, com início na
Alta Idade Média até o fortalecimento de “novas perspectivas” artísticas-
filosóficas, como o humanismo e respectivamente o Renascimento, traz
várias concepções sobre o aspecto artístico do Conto do Graal. Essa obra é
descrita como a principal representante do Ciclo Arturiano e responsável
pelo início da demanda do Santo Graal [Spina, 2007, p.24]. Spina deixa
claro que a literatura pode ser uma forma de interpretação da realidade ou
de suas possibilidades, uma vez que, “A idealização da vida cavaleiresca no
“romance cortês”, se nem sempre corresponde à realidade social da classe,
era, entretanto, uma forma de compensar ou encobrir o sensível
desprestígio do grupo aristocrático” [Spina, 2007, p. 33-34]. É através
dessa concepção que buscaremos entender a percepção de Chrétien de
Troyes perante a Cavalaria.

Deste modo, se torna necessário buscar qual sua relação com os diferentes
espaços de produção das obras, que correspondem às cortes que o poeta
frequenta no momento de produção de cada obra. O primeiro conjunto de
obras de Chrétien, que compreende Erec, Cligès, Le Chevalier à la charrete,
foi escrito entre os anos de 1160 e 1181 na corte de Maria de Champanhe
[Spina, 2007, p. 24]. A partir do ano de 1181, Chrétien de Troyes se
estabelece na corte de Felipe de Flandres e desenvolve uma única obra
Perceval ou O Conto do Graal. É nessa primeira etapa que buscaremos
estabelecer qual influência teórica e literária é visível no trabalho de
Chrétien de Troyes. Sabe-se que é provável que pelo menos duas obras
chegaram ao poeta: Policrático de João de Salisbury [Barthélemy, 2010,
p.568] e Historia Regum Britanniae de Geoffrey de Monmouth [Abílio, 2002,
p. 250]. É através dessas informações sobre a conjectura literária do século
XII que buscaremos entender a percepção de Chrétien de Troyes perante a
Cavalaria.

Considerações (in) conclusivas sobre a produção de Perceval O


Conto do Graal
A partir da discussão acerca da influência das cortes e da Igreja sobre
Chrétien de Troyes, percebida em sua produção literária, e do estudo de
Perceval ou O Conto do Graal acreditamos que seja possível compreender a
posição do autor perante o debate historiográfico atual sobre a função da
Cavalaria.

Uma das hipóteses é que a mudança sofrida por Chrétien de Troyes no


momento em que se estabelece em outro espaço, no Contado de Flandres,
lugar que recebe influência francesa, mas que está em guerra com a
França, foi o principal motivo que alterou a sua concepção de ideário 197
cavaleiresco. Essa influência, exercida pela corte flamenga e,
principalmente, pelo seu novo senhor, Felipe de Alsácia, que acabara de
regressar da Segunda Cruzada, faz com que o autor aproxime os cavaleiros
da Igreja, através de um novo ideário cavaleiresco.

A segunda hipótese, atrelada à primeira, diz respeito a atribuição de


elementos latino cristãos ao ideário cavaleiresco e, consequentemente, a
Cavalaria como uma das políticas de cristianização da Igreja, realizada
indiretamente pela pena de Chrétien de Troyes. Um exemplo é a busca do
cavaleiro para a remissão dos seus pecados, o que só ocorreria a partir do
momento em que o mesmo se tornasse digno de encontrar o Graal.

Conclusão
A partir das discussões sobre o conceito de Cavalaria e suas distintas
representações na literatura faz se necessário a reflexão sobre cada uma
em partilhar. Aqui apresentamos a proposta de análise do O Conto do Graal
como uma das formas de compreender a diferença e as semelhanças com
outras obras e textos do período através dos debates historiográficos. A
concepção de que a Cavalaria não é única e que atua de formas distintas
em cada território deve ser elucidada cada vez que é tratado tal assunto,
principalmente, em sala de aula. Isso é dado pelo compromisso que o
historiador tem com a veracidade dos fatos. Além de que, como o conceito
de ideário cavaleiresco, proposto pela historiografia, foi criado a partir da
análise da literatura, de documentos litúrgicos e de obras que buscavam
moralizar a Cavalaria – como o texto de Ramon Llull O livro da Ordem da
Cavalaria [Zierer; Bragança Júnior, 2017 p.152] – se faz necessário a
reflexão de como ele se altera em cada obra segundo a moral de cada
autor, tempo e espaço. Em outras palavras é imprescindível deixar claro
que não existiu um modelo único a ser seguido.

Portanto, o entendimento de que a Cavalaria não é homogênea, não é


limitada a uma função militar e que se altera em cada período de tempo em
quanto ela existe, pode vir a facilitar a compreensão sobre outras mudanças
que ocorreram na Idade Média.

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Wesley Bruno Andretta é graduando do Curso de História da Universidade
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