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Editora Atualizar
Belo Horizonte – 2009
1
Saulo de Oliveira Pinto Coelho
Coordenação Editorial
Emerson Bruno Oliveira Freitas
Conselho Editorial
Alvair Bueno dos Reis
Emerson Bruno Oliveira Freitas
Heloísa Monteiro de Moura Esteves
Márcio Luis de Oliveira
Diagramação / Capa
Celso Eustáquio Valentim
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2
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
Cecícila Meireles
O Romanceiro da Inconfidência.
3
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
SUMÁRIO
Agradecimentos ......................................................................................... 7
Considerações Iniciais ............................................................................. 15
I - O Romanismo na Formação da Cultura Jurídica Ocidental.... 27
1. O Direito Romano como marco divisor da história do
Ocidente ....................................................................................................... 27
2. Direito Romano na formação do Direito Moderno .................... 30
2.1. Sobrevivência do Direito Romano na Alta Idade Média ................ 32
2.1.1. Fragmentação da Europa e consequente rarefação do Direito Romano ..... 33
2.1.2. Sobrevivências Locais do Direito Romano: Direito Romano Vulgar ........ 34
2.1.3. Costumes germânicos e sobrevivência implícita do Direito Romano ........... 35
2.1.4 Sobrevivência do Direito Romano nas estruturas institucionais
unificadoras da Europa Medieval: a Igreja e os Impérios..................................... 37
2.1.4.1 Tentativas seculares de restauração do Império: Carlos Magno e o
Sacro-Império..................................................................................................... 39
2.1.4.2 A Igreja Católica enquanto sucessora da tradição romana....................... 41
2.2. Vivência do Direito Romano: breve panorama da sua recepção
erudita no Estado Constitucional................................................................ 43
2.2.1 A recepção do Direito Romano Justinianeu .............................................. 43
2.2.1.1 Glosadores e Comentadores ................................................................... 45
2.2.1.2 Humanistas; Usus Modernus e Bartolistas ........................................... 49
2.2.2 O Direito Romano: do Jusracionalismo ao Direito Revolucionário ............ 52
2.2.2.1 A presença do Direito Romano na Escola do Direito Natural e das
Gentes ............................................................................................................... 56
2.2.2.2 O Movimento Iluminista e o Direito Romano......................................... 60
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Saulo de Oliveira Pinto Coelho
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Uma história do pensamento jurídico brasileiro
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Saulo de Oliveira Pinto Coelho
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Uma história do pensamento jurídico brasileiro
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Hegel 1
No Brasil, isso ocorre de modo mais grave. “O político (em sua dimensão
ética) o jurídico e o social entram em choque com o técnico de dimensão eco-
nômica divorciada da dimensão ética do social”5; e em meio à profunda
16 Se, por vezes, a Ciência do Direito no Brasil se viu trilhando caminhos equivocados
e prejudiciais à construção de um Direito Justo, foi porque abandonou as lições
compatriotas dos grandes jusfilósos romanos para se apoiar em construções por
vezes alijadas de uma preocupação propriamente voltada para o universo jurídico.
20
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
A Filosofia, como saber de terceiro grau que é, opera sempre uma reflexão,
um pensar sobre o pensado26. Por isso, o saber Filosófico pressupõe a constru-
ção científica e volta-se para ela com rigor metodológico na busca de seus
pressupostos e possibilidades – operando sua crítica, bem como a crítica de
suas verdades científicas – sua superação. Na Filosofia do Direito, não é di-
ferente, o saber jusfilosófico pressupõe o saber jurisprudencial (ou dogmá-
tico, em termos contemporâneos). É necessário ao filósofo do Direito um
conhecimento da Filosofia (método) e também do Direito (objeto da Filosofia
do Direito)27. O jusfilósofo deve antes de tudo ser um jurista, e deve, como
pressuposto, ser um conhecedor da história da cultura jurídica romanística.
Por isso, nosso itinerário inicia-se com uma exposição do papel do Direito
Romano na formação da Cultura Jurídica Ocidental. Percorreremos de
modo reflexivo a trajetória europeia da formação do Direito desde a queda
de Roma até sua chegada no marco inicial do Período Contemporâneo:
o Constitucionalismo Moderno. Nesse iter (que é o caminho que vai do
Direito Romano aos Direitos Romanísticos em suas várias fases), procu-
raremos demonstrar as diversas ambiências e os vários modos por meio
dos quais o tradição romanística sobreviveu e permaneceu como o alicer-
passa a ser, cada vez mais aproximado com a jurisprudência francesa e, pos-
teriormente, germânica. Nesse momento, o transitará da presença marcante
de diversificadas concepções jusnaturalistas, na primeira metade do século,
para uma visão positivista, tanto advinda do formalismo jurídico, quanto do
sociologismo comtiano. Nossa tarefa foi expor esses movimentos dessa fase
da história jurídica nacional e ao final dela, evidenciar o pensamento do polê-
mico Tobias Barreto, como aquele que primeiro promoveu em nossas ter-
ras uma tentativa de negação e superação tanto do jusnaturalismo, quanto do
positivismo meramente abstrativo. Por isso, Tobias representa a cumeada do
período imperial e o anúncio dos desenvolvimentos vindouros, consistindo,
por isso, num novo vôo da crisálida coruja de Minerva na cultura jurídica pá-
tria e merecento, assim, nossa atenção destacada. Em todo esse movimento
do Brasil Império, o romanismo, debatico, discutido, atacado, exaltado, mas
sempre presente, possui papel central que nos caberá explicar.
I
O Romanismo na Formação
da Cultura Jurídica Ocidental
“Três universais Roma legou à humanidade: um
Estado universal, uma religião universal e um direito universal”.
IHERING31
Para Caenegem37, é neste período (de 476 d.C até 1789 d.C) que se dá a
formação histórica do Direito Romano-Germânico. O autor segue em sua
exposição desta formação, dividindo esse lapso temporal em dois momen-
tos distintos: um primeiro, que vai da Queda do império até 1.100 d.C.,
que representa o período de sobrevivência (recepção) vulgar do Direito
Romano; e um segundo, de 1.100 d.C, da descoberta do Corpus Iuris, até
as codificações decorrentes da Revolução Francesa, que representaria o
período da recepção erudita desse Direito.
locais. Tal processo (que dá unidade à cultura jurídica europeia) teria sido
possível, sobretudo, em razão de um fundamento histórico comum na
base da diversificada vida jurídica europeia: o Direito Romano. Segundo o
historiador português: “a memória do Direito Romano foi, porventura, o
principal fator de unificação dos direitos europeus”.39
39 HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Jurídica Europeia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fun-
dação Boiteux, 2005, p. 123.
40 Cf. GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 4 ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2003. p. 167-171.
32
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
por meio de um estudo direto em uma fonte textual farta como o Digesto
Justinianeu. Fazer essa ressalva é importante para não corrermos o risco de
não percebermos a riqueza e a pluralidade dos caminhos históricos então
percorridos pelo Direito Romano até sua redescoberta justinianeia, chamemos
assim.
dessa cultura, ele estava presente como parte formadora dela; não de
forma teorizada, mas pelo menos como elemento histórico determina-
dor da consciência ética subjacente às instituições medievais. É com a
preocupação de entender os modos vulgares – nesse sentido, não teori-
zados – de sua permanência, bem como a medida de sua influência no
Direito desse período, que vamos agora expor muito sucintamente os
principais caminhos pelos quais embrenhou o caudaloso substrato jurí-
dico romano.
Não é muito esforço perceber que a vulgarização desse direito, que gerou
43 Ibidem, p. 124-5.
44 Ibidem, p. 126.
34
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
59 Ibidem, p. 154-5.
60 Sobre o Sacro Império, indicamos também a interessante passagem da seguinte
monografia de conclusão de curso orientada por José Luiz Borges Horta:
Cf. PEREIRA, Bruno Mendonça. Cujus Regio, Ejus Religio?. Belo Horizonte:
Universidade Federal de Minas Gerais, 2005 [Monografia de Bacharelado em
Direito] p. 2-6. Ver também o capítulo denominado “O Sacro Império e o
Sistema das Fontes do Dirieto”[tradução nossa], na obra Medio Evo del Diritto;
Cf. CALASSO, Francesco. Medio Evo del Diritto. Vol.I. Milano: Giuffrè – Editore,
1954, p.139-60.
40
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
A partir do ano 1100 d.C., a descoberta dos textos das compiliações orde-
nadas por Justiniano, produziu um movimento de erudição e sofisticação
do Direito que, num crescendo, vai desaguar na construção do Estado
Constitucional burguês. Esse fenômeno, que pode ser chamado em sen-
tido amplo de Recepção, se deu – o que foi comum a todos os grandes
eventos desse período da história europeia – em momentos diferentes e de
formas diferentes em cada região do Velho Continente, anota Caenegem,
no que é acompanhado por Hespanha67.
ius commune. O Direito Romano era a base sobre a qual seria possível dar a mí-
nima unidade necessária a esses direitos. Essa foi a tarefa dos Comentadores,
que acabaram por ser o grande fio condutor do Direito rumo à modernidade.73
O fundador da Escola foi Cino de Pistóia, mas seu representante mais
influente foi, sem dúvida, seu discípulo Bártolo [1314-1357]. Na síntese
de Hespanha:
O Direito Romano, feito ius commune pela obra integradora dos Comenta-
dores, possibilitou o desenvolvimento do pensamento jurídico erudito para
além de suas fronteiras. Por meio dele, os juristas de cada região que iam es-
tudar nos centros de ensino jurídico retornavam intelectualmente aptos a de-
senvolver o ius proprium de seu povo. O movimento de valorização do direito
próprio decorre, portanto, do estudo do Direito Romano e da capacitação
que este possibilitou. No que tange à presença do Direito Romano como
parte do Direito Euporeu nesse período de formação via recepção erudita:
Ressalta Hespanha, porém, que o Direito Romano nem por isso deixou de
ser fundamental para a formação dos direitos nacionais durante todo esse
longo processo, mesmo nas duas últimas fases citadas. Isso porque:
76 Ibidem, p. 245.
48
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
Por meio desse novo fazer jurídico, o Direito Romano deixaria de ser a ratio
scripta do Direito, dando lugar às vindouras declarações de Direitos Huma-
nos, primeiramente, e depois, aos Códigos Nacionais, como a manifesta-
ção mais alta da racionalidade jurídica.86
Porém, acrescenta o autor que Grócio (assim como os demais de sua ge-
ração e seguinte, como Leibniz) não poderia ser considerado um jusracio-
nalista puro no sentido acima descrito, “pois ainda estava sob a influência
de fontes como a Bíblia e de vários textos antigos (como humanista, tinha
um excelente conhecimento da literatura latina), inclusive os textos de Di-
reito Romano”.97
98 Ibidem, p.122.
99 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Coimbra; Armênio
Amado, 1979, p. 123.
100 CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 123.
58
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
Para Ronaldo Poletti, por exemplo, a ideia romana de povo está na base
da teoria rosseauneana:
64
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
II
O Romanismo na Formação
da Cultura Jurídica Brasileira
*****
115 CUNHA, Paulo Ferreira da. Prefácio. In: VILLEY, Miguel. Direito Romano. Trad.
Fernando Couto. Porto: Res Jurídica,1991, p. 24 e 25.
116 Cf. VITA, Álvaro. Sociologia da Sociedade Brasileira. São Paulo: Ática, 1989.
117 KOZIMA, José Vanderley. Instituições, Retórica e o Bacharelismo no Brasil. In:
WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte,
Del Rey: 1996, p. 230.
65
Saulo de Oliveira Pinto Coelho
118 Vale ressaltar, com René David, que as colônias “espanholas, portuguesas,
francesas e holandesas na América, estabelecidas em países praticamente
desabitados ou cuja civilização estava voltada ao desaparecimento”, implantaram
“de modo natural as concepções jurídicas características da família romano-
germânica.” Mesmo que inicialmente precário, “à medida que a América foi se
desenvolvendo, o Direito Prático começou a se aproximar do Erudito: de início
o doutrinal ensinado nas universidades da América ou da metrópole, depois,
direito incorporado nos códigos redigidos à imagem e semelhança dos códigos
europeus”. Cf. DAVID, René. Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo. Trad.
Hermínio A. Carvalho. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 77.
119 Algumas leituras de crítica emancipadora de nossa cultura, em sua maioria
constituída por visão marxista das relações de poder, buscam definir uma
autonomia cultural brasileira e latino-americana por meio da identificação
de sistemas de vida pré-lusitanos presentes em nossa base civilizacional. Se é
razoável esse enfoque para algumas nações (talvez Peru, Bolívia e, um pouco
menos, México sejam bons exemplos), não o é para a peculiaridade marginal da
formação nacional brasileira. Nosso posicionamento é de que precisamos admitir
que ocupamos o território de um povo que pouco tem a ver (do ponto de vista
civilizacional) conosco e o substituímos enquanto nação existente nesse território.
E mais, que a busca por nossa emancipação da situação de economia periférica
de modo nenhum passa por esse resgate quimérico. Para uma interessante leitura
acerca deste tema que, porém, nem sempre se dá no sentido do posicionamento
que aqui adotamos, sugerimos a obra organizada por Antônio Carlos Wolkmer:
Cf. WOLKMER, Antônio Carlos (Org.). Humanismo e Cultura Jurídica no Brasil.
Florianópolis: Fundação José A. Boiteaux, 2003.
66
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
Sabe-se, porém, que essa imposição monolítica não se deu sem um esfor-
ço acomodador, mais em virtude do modus operandi da colonização do que
de eventuais adaptações culturais. É o que ressalta Irineu Strenger:
139 MACHADO NETO, Sociologia Jurídica, cit., p. 310. Com Cláudio Valentin
Cristiani, asseveramos que, quanto aos negros, “a condição de escravos, ao
serem arrancados de suas nações na África e jogados em senzalas, fez com que
houvesse uma grande desintegração de suas raízes”. Cf. CRISTIANI, Direito
no Brasil Colônia, op. cit., p. 214. Isto posto, ainda que alguns traços ritualísticos
da cultura negra se fazem presentes em nossa religiosidade, quanto às estrutu-
ras culturais de ordenação da sociedade imperou para eles a sua condição de
coisa; portanto, impossível foi serem sujeitos formadores de nosso direito.
140 MACHADO NETO, Sociologia Jurídica, cit., p. 307. Para esse autor, tanto a
condição mais evoluída das práticas civilizacionais lusitanas, quanto a condição
desses primeiros serem os dominadores, não deixou margem para nenhuma
influência indígena ou africana. “Somente quando uma cultura militarmente
vitoriosa encontra como vencido um povo de muito superior evolução cultural
é que se pode conhecer a possibilidade de influência jurídica e cultural dos
vencidos. Foi o que se deu com as invasões bárbaras sobre as antigas províncias romanas”.
141 Ibidem, p. 308.
73
Saulo de Oliveira Pinto Coelho
142 Explica Martins Júnior: “as cartas de foral constituíam uma consequência e um
complemento das de doação; mas estas estabeleciam apenas a legitimidade da
posse e os direitos e privilégios dos donatários, ao passo que aquelas eram um
contrato enfitêutico em virtude do qual se constituíam perpétuos tributários da
coroa e dos capitães-mores, os solarengos que recebessem terras de Sesmarias”.
MARTINS JÚNIOR. História do Direito Nacional. Apud. NASCIMENTO,
Walter Vieira do. Lições de História do Direito. Op. cit., p. 201. Em cuidadoso
estudo sobre a natureza jurídica desses institutos, Walter do Nascimento,
após afirmar que “aos donatários era apenas concedido o benefício, o usufruto
das terras das capitanias, e não a propriedade territorial”, que “não podemos,
evidentemente aceitar o termo usufruto”, pois “o direito do beneficiário não
se extinguia com sua morte, isto é, o seu direito se transmitia por sucessão”,
que “pelo regime adotado, as capitanias eram inalienáveis” e que “o donatário
se afigurava como mandatário ou intermediário da coroa”, conclui que “já é de
ver que o sistema de capitania hereditária, examinado como um todo, conduz
a uma indefinição jurídica. Entretanto, analisado sob dois ângulos, esse sistema
constitui juridicamente, de um lado, contrato de coação, de outro, contrato de
enfiteuse.” Cf. NASCIMENTO, Lições de História do Direito, cit., p. 202.
143 WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p. 48.
74
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
149 Com o crescimento do interesse da Coroa pela área, a partir de 1550, “o ouvidor-
geral, na qualidade de funcionário de confiança, a cada passo assumiu novas
funções” e “acabou transformando-se num dos cargos mais importantes na
segunda fase da colonização”. Ademais, cabendo-lhe as questões de justiça,
“detinha um poder quase sem limites, sujeito ao seu próprio arbítrio pessoal; de
suas decisões, na maioria das vezes não cabia apelação nem agravo”. Ibidem, p. 59.
150 A organização judiciária brasileira passou a contar com uma primeira instância,
formada por juízes nas categorias de ouvidores, juízes ordinários e juízes especiais
(de vintena, de fora, de órfãos, de sesmarias, etc) Somente a partir de 1765, a
primeira instância pôde contar também com as Juntas de Justiça (composta pelo
ouvidor e por dois letrados adjuntos). Uma segunda instância era representada
pelos Tribunais de Relação e seus desembargadores e uma terceira instância era
representada pela Casa de Suplicação, com sede na Metrópole. Teríamos ainda,
para precisar a estrutura jurisdicional brasileira dos séc.XVI e XVII, que destacar
o Desembargo do Paço, o supremo conselho e esfera mais elevada da jurisdição.
Não tinha função precípua de julgamento, mas sim de assessoria para todos os
assuntos de justiça e de elaboração e correção da legislação. Ibidem, p. 60 e 62.
151 Cf. Ibidem, p. 63 e 65. Ademais, eram requisitos o exercício da profissão por
dois anos e a aprovação em seleção para o ingresso na carreira, promovido pelo
Desembargo do Paço.
76
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
Podemos, então, concluir com Antônio C. Wolkmer, mais uma vez, que:
152 Para leitura acerca do tema: Cf. SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição Portuguesa e a
Sociedade Colonial. São Paulo: Ática, 1978.
153 WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p. 71.
154 Sobre a primazia das influências francesa e germânica em nosso direito, em
detrimento das influências norte-americana e inglesa, falaremos mais adiante.
77
Saulo de Oliveira Pinto Coelho
Mesmo como nação, desde 1140, pouco realizou Portugal em matéria le-
gislativa até 1210. Até então se observa um “complexo de normas e atos
dispersos, sem o menor vestígio de sistematização nacional, enquanto di-
reito unitário do Reino”. É que, ao “término do séc. XIII, ainda não se
conhecia em Portugal o ensino do direito, estando a justiça de cada locali-
dade a cargo de juízes despreparados”160.
José Gomes Câmara afirma ser certo que “desde D. Dinis há vestígios de
que, pouco a pouco, o Direito Romano vinha penetrando nos usos, nas
praxes, do que seria possível chamar-se de foro lusitano”165.
165 CÂMARA, José Gomes. Subsídios para a História do Direito Pátrio. Apud. NASCI-
MENTO, Walter Vieira do. Lições de História do Direito. Cit., p, 187.
166 NASCIMENTO, Lições de História do Direito, cit., p, 190.
167 CÂMARA, Subsídios para a História do Direito Pátrio, cit., p. 52.
81
Saulo de Oliveira Pinto Coelho
das regras jurídicas que depois deram origem a essa primeira versão das
Ordenações168.
Outro movimento importante, pertinente ao reinado do D. Duarte (1433-
1438), foi a forte reação ao feudalismo em Portugal que havia adquirido
muita força com as doações recebidas da Coroa. A administração central
passou a baixar normas e atos a fim de limitar o campo de influência da
ordem feudal nos assuntos jurídicos. Com a Lei Mental de 1434, foi possí-
vel impor um cerceamento indiscriminado aos privilégios da aristocracia,
impedindo-se, assim, que o feudalismo tivesse em Portugal o mesmo de-
senvolvimento alcançado em vários países da Europa.
Em 1521, foram as Ordenações Afonsinas substituídas pelas Manuelinas, e
estas pelas Filipinas, em 1603, estando Portugal já sob domínio espanhol.
É certo que a partir das Ordenações Afonsinas o Direito Romano trans-
formou-se em norma subsidiária, mas Walter do Nascimento registra a
patente presença do Direito Romano nas Ordenações, por via não só da
linguagem jurídica romanística empregada por João das Letras e seus suces-
sores, mas também pela presença compilada nelas da Lei das Sete Partidas e
do Direito Canônico169. Ademais, a aplicação de tais Ordenações era sempre
feita segundo os parâmetros hermenêuticos inferidos dos conceitos e regras
jurídicas romanas. Issso, sem esquecer que, nesse período, a interpretação e
doutrina produzida sobre tais leis no reino lusitano eram elaboradas pelos
doutores formados das escolas romanísticas (os intérpretes cultos), que impri-
miam aos textos e as costumes uma forma acentuadamente romanista.
Sobre as Ordenações Manuelinas, sucessoras das Afonsinas, anota An-
tônio Celso Mendes que: “O propósito de D. Manuel era consolidar a
preeminência regalista, o que fê-lo aproximar-se mais e mais do Direito Romano
Justinianeu”170.
168 Pontes de Miranda afirma que, quanto a essas primeiras ordenações, temos
que avaliá-las segundo as situações da época da sua elaboração e que “a mistura
de disposições do sistema feudal, que decaía, com os princípios do Direito
Romano e Canônico, deixou nelas contradições (...). Porém, se nas Ordenações
posteriores alguma filosofia se pode descobrir, é aos compiladores das Afonsinas
que ela se deve”. PONTES DE MIRANDA. Fontes e Evolução do Direito Civil
Brasileiro. Apud. NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lições de História do Direito.
Cit., p, 190.
169 Cf. NASCIMENTO, Lições de História do Direito, cit., p, 193-4.
170 MENDES, Antônio Celso. Filosofia Jurídica no Brasil. São Paulo: IBRASA, 1992,
p. 16.
82
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
Ora, fica claro então que as reformas (das regras de aplicação e do ensi-
no), não visavam reduzir ou acabar com o estudo do Direito Romano173.
Pelo contrário, visavam recuperar seu estudo erudito, pautado nas mais
sólidas e atuais doutrinas europeias. Nada mais adequado ao espírito do
Direito Romano; um Direito Erudito somente funciona e cumpre sua
função e finalidade se pautado no saber densificado e preciso de suas ca-
tegorias fundamentais. É, inclusive, este o sentimento dos cultores iniciais
da Escola Histórica e da Pandectística, Savigny e Jhering (1818-1892).
Para eles, o conjunto das regras de Direito somente podem promover
seu fim último, a promoção plena da justiça, se for vivificado pela atu-
ação constante e atualizadora da Jurisprudência (Doutrina), e essa lição
constitui fruto da mais pura essência do Direito Romano Clássico, em
que beberam os referidos mestres (em oposição, inclusive, à decadência
do Direito Romano do período pós-clássico; que se deu não por deca-
dência das regras, mas por decadência da Ciência do Direito)174.
modificações de Pombal, mesmo que agora filtrada pela boa razão, “o Direito
Romano era mantido como base do ordenamento”. ROBERTO, Giordano
Bruno Soares. Introdução à História do Direito Privado e da Codificação: uma análise
do Novo Código Civil. Belo Horizonte, Del Rey, 2003, p. 55.
174 Cf. IHERING, Rudolf Von. O Espírito do Direito Romano: nas diversas fases de
seu desenvolvimento. Trad. Rafael Benaion. Rio de Janeiro : Alba, 1943. Bem
como: SAVIGNY, Frederich Carl von. De la Vocacion de Nuestro Siglo para la
Legislación y la Ciencia del Derecho. Buenos Aires: Atalaya, 1946.
175 Veremos que passamos, a partir do Império, a sofrer uma influência ainda mais
direta (também no plano jurídico) da cultura francesa e inglesa, posteriormente,
(segunda metade do século XIX e XX, a partir da Escola do Recife) germânica
e já na República, também norte-americana. Mas, veremos que nossos traços
jurídicos básicos nunca deixaram de ser continentais-europeus, posto que a
partir da Independência observa-se com muito mais intensidade a assimilação
de influências francesas e germânicas a somarem-se ao legado luso, do que as
inglesas e norte-americanas.
84
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
176 Roberto apontaria ainda o desafio da desigualdade social. Preferimos não indicá-
lo porque entendemos ser esse um desafio no plano amplo de nossa estrutura
sócio-política, não apenas jurídica, cf. ROBERTO, Introdução à História do Direito
Privado e da Codificação..., cit., p. 56.
177 WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p. 73-9. O liberalismo se traduziria,
na perspectiva político-jurídica, em princípios básicos como “consentimento
individual, representação política, divisão de poderes, descentralização
administrativa, soberania popular, direitos e garantias individuais, supremacia
constitucional e Estado de Direito”. Daí a contradição que representa a
escravidão nesse contexto.
85
Saulo de Oliveira Pinto Coelho
nalizada em dois sentidos: um, voltado para grandes mudanças, que seria
superado no processo ou excluído; outro, conservador, traduzido nas fac-
ções da restauração e da conciliação. A partir de D. Pedro II, são esses
últimos, os moderados (já de tendência conservadora), que irão conduzir
nosso liberalismo, cindindo-se (sem, contudo, gerar uma grande polari-
zação) nos partidos conservador e liberal e, mais adiante, no período de
transição para a República, em monarquistas e republicanos178.
No que tange aos desafios apontados no item anterior, é no plano das re-
gras e instituições jurídicas que eles começariam a ser resolvidos, por meio
do desencadeamento do processo de elaboração de legislação própria no
Direito Público e Privado.
178 Cf. VALLADÃO, História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 115 et. seq.
179 Sobre o Constitucionalismo Clássico ou liberal e a sua interimplicação com
os âmbitos tanto sociológicos quanto filosóficos, com reflexões sobre a
peculiaridade brasileira, ver: HORTA, José Luiz. Horizontes Jusfilosóficos do Estado
de Direito: uma investigação tridimensional do Estado social, do Estado liberal e
do Estado democrático, na pesperctiva dos direitos fundamentais. Universidade
Federal de Minas Gerais, 2002 (Tese, Doutorado em Filosofia do Direito).
86
Uma história do pensamento jurídico brasileiro
Quanto ao Direito Público, este teria como seu grande documento nor-
mativo a Constituição de 1824183, marcadamente liberal, que foi acompa-
nhada da implementação de nova legislação penal, desencadeando o pro-
cesso de codificação das leis ordinárias184, com o Código Criminal de 1830,
seguido do Código de Processo Criminal de 1832. Tais documentos legais
desencadearam não só a gradativa substituição da legislação portuguesa,
mas também toda uma série de mudanças na estrutura jurisdicional que
acabaria por extinguir a estrutura lusitana simbolizada pelos ouvidores e
juízes de fora185.
189 Sobre o projeto de Clóvis Beviláqua, anota Antônio C. Wolkmer que “o primeiro
e tão esperado ordenamento civil, substituindo as ordenações portuguesas, deixa
transparecer o espírito que norteava seu redator, Clóvis Beviláqua, integrante
da Escola do Recife e (por isso) com pendores naturais para a recepção do
Direito Alemão”, além do que reconhece seus “méritos de rigor metodológico,
rigor técnico-formal e avanços sobre a legislação portuguesa obsoleta”. Cf.
WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p. 89. Para uma leitura detalhada
da questão da influência romanística na codificação brasileira: Cf. SILVA, Almiro
de Couto. Romanismo e Germanismo no Código Civil Brasileiro. In: Revista da
Faculdade de Direito da UFRS, v. 13, Porto Alegre: 1997 p. 7-27.
190 Para leitura acerca da escravatura e sua abolição, ver capítulo específico em:
VALLADÃO, História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 160-9.
191 Haroldo Valladão destaca que o pensamento político mineiro possuiu papel de
destaque na construção da República, ativo durante toda a segunda metade do séc.
XIX. Cf. VALLADÃO, História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 171-2.
192 VALLADÃO, História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 173.
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Saulo de Oliveira Pinto Coelho
sembleia que não debate, uma comissão redatora que não chega
a produzir um texto, um revisor que na verdade introduz linhas
mestras), a Constituição afinal consagrada pela pressa dos rebel-
des de 1891 jamais esteve à altura de suas grandes tarefas. [...]