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Uma história do pensamento jurídico brasileiro

SAULO DE OLIVEIRA PINTO COELHO

Uma História do Pensamento


Jurídico Brasileiro
A formação romanística da cultura jurídica nacional

Editora Atualizar
Belo Horizonte – 2009

1
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

Coordenação Editorial
Emerson Bruno Oliveira Freitas

Conselho Editorial
Alvair Bueno dos Reis
Emerson Bruno Oliveira Freitas
Heloísa Monteiro de Moura Esteves
Márcio Luis de Oliveira

Diagramação / Capa
Celso Eustáquio Valentim

Coelho, Saulo de Oliveira Pinto


Uma história do pensamento jurídico brasileiro / Saulo de
Oliveira Pinto Coelho. – Belo Horizonte: Editora Atualizar,
2009.
256 p.
Bibliografia
ISBN: 978-85-62068-32-4

1. Direito Romano 2. Filosofia do Direito Romano


3. História do Pensamento Jurídico Brasileiro. I. Título
CDD – 344
CDU – 347

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Atualizar Empreendimentos e Publicações Jurídicas Ltda
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IMPRESSO NO BRASIL - PRINTED IN BRAZIL

2
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Na mesma cova as palavras,


o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentira e verdade estão.

Cecícila Meireles
O Romanceiro da Inconfidência.
3
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

À minha querida avó, Dona Dina,


fonte de perseverança.

À minha mãe, Isabel,


refúgio de amor incondicional.
5
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

SUMÁRIO

Agradecimentos ......................................................................................... 7
Considerações Iniciais ............................................................................. 15
I - O Romanismo na Formação da Cultura Jurídica Ocidental.... 27
1. O Direito Romano como marco divisor da história do
Ocidente ....................................................................................................... 27
2. Direito Romano na formação do Direito Moderno .................... 30
2.1. Sobrevivência do Direito Romano na Alta Idade Média ................ 32
2.1.1. Fragmentação da Europa e consequente rarefação do Direito Romano ..... 33
2.1.2. Sobrevivências Locais do Direito Romano: Direito Romano Vulgar ........ 34
2.1.3. Costumes germânicos e sobrevivência implícita do Direito Romano ........... 35
2.1.4 Sobrevivência do Direito Romano nas estruturas institucionais
unificadoras da Europa Medieval: a Igreja e os Impérios..................................... 37
2.1.4.1 Tentativas seculares de restauração do Império: Carlos Magno e o
Sacro-Império..................................................................................................... 39
2.1.4.2 A Igreja Católica enquanto sucessora da tradição romana....................... 41
2.2. Vivência do Direito Romano: breve panorama da sua recepção
erudita no Estado Constitucional................................................................ 43
2.2.1 A recepção do Direito Romano Justinianeu .............................................. 43
2.2.1.1 Glosadores e Comentadores ................................................................... 45
2.2.1.2 Humanistas; Usus Modernus e Bartolistas ........................................... 49
2.2.2 O Direito Romano: do Jusracionalismo ao Direito Revolucionário ............ 52
2.2.2.1 A presença do Direito Romano na Escola do Direito Natural e das
Gentes ............................................................................................................... 56
2.2.2.2 O Movimento Iluminista e o Direito Romano......................................... 60

II – O Romanismo na Formação da Cultura


Jurídica Brasileira ...................................................................................... 65
1. A Exportação da cultura jurídica europeia na formação
do Brasil Colônia . ...................................................................................... 65
1.1. Primórdios da estrutura civilizacional brasileira................................ 68
1.2. Ordem jurídica e organização da justiça no período colonial ........ 71
2. A ‘Romanidade’ do Direito Português............................................. 78
3. Papel do Romanismo na construção do Direito Nacional:
Império e República Velha . .................................................................... 84
3.1. Realidade social e contexto jurídico..................................................... 85

11
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

3.2. Ordem jurídica e organização da justiça no período do Império


e da República Velha .................................................................................... 86
III – O Direito Romano na Formação do Pensamento Jurídico
Brasileiro ...................................................................................................... 91
1. Primórdios das ideias jurídicas no Brasil: os jesuítas e o
jusnaturalismo iluminista de Tomás Antônio Gonzaga . ............... 91
1.1. O legado dos jesuítas ............................................................................ 91
1.2. O Romanismo na obra de Tomás Antônio Gonzaga . .................... 93
2. A nacionalização do ensino jurídico: São Paulo e Recife
como centros pensantes do Império e a premência do
ecletismo jusnaturalista ........................................................................... 98
2.1. Implementação e delineamento metodológico das primeiras
Escolas de pensamento jurídico no Brasil ................................................ 98
2.2. Período Jusnaturalista ........................................................................... 102
3. As faculdades livres e a jusfilosofia no alvorecer da república .... 105
3.1. As novas faculdades no cenário do pensamento jurídico
nacional .......................................................................................................... 105
3.2. Período positivista ................................................................................. 106
4. A Escola do Recife: precursora reação ao jusnaturalismo
e ao positivismo .......................................................................................... 109
4.1. A escola, suas fases, seus representantes e suas
tendências . ..................................................................................................... 109
4.2. O Romanismo na obra de Tobias Barreto ........................................ 112
5. O papel do Direito Romano ............................................................... 118
6. Jurisdicismo: a verdade do bacharelismo brasileiro ...................... 127
IV – Da Suprassunção do romanismo na jusfilosofia brasileira
contemporânea ........................................................................................... 137
1. Resquícios do Positivismo .................................................................... 137
1.1. O positivismo na cultura jurídica brasileira durante o séc. XX ...... 137
1.2. O romanismo na obra de Pontes de Miranda . ................................. 141
1.3. Tendências difusas do pensamento pós-positivista no Brasil . ....... 150
2. Contextualização da jusfilosofia contemporânea e do
Direito Romano como seu elemento ................................................... 153
2.1. Caracteres gerais da jusfilosofia Contemporânea ............................. 153
2.2. Direito Romano como seu momento suprassumido . ..................... 161
2.3. Suposta crise do Direito Romano: das objeções da teoria
crítica .............................................................................................................. 165

12
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

3. O Culturalismo como locus do Direito Romano na jusfilosofia


contemporânea ........................................................................................... 171
3.1. O Culturalismo no cenário da jusfilosofia contemporânea ............ 171
3.2. O romanismo no culturalismo jurídico de Miguel Reale,
Nelson Saldanha e Djacir Menezes . .......................................................... 179

V – Direito Romano e Teoria da Justiça: contribuição da


jusfilosofia mineira à compreensão da ideia de justiça no
Mundo Contemporâneo . ......................................................................... 191
1. Raízes culturalistas da jusfilosofia mineira . .................................. 191
1.1 Uma preliminar de admissibilidade ..................................................... 191
1.2 Principais culturalistas mineiros ........................................................... 193
2. O Direito Romano na Teoria da Justiça de Joaquim Carlos
Salgado .......................................................................................................... 197
2.1 Movimento da consciência jurídica na processualidade da
razão jurídica e o sujeito de Direito como núcleo fundamental
da idealidade da Justiça: a experiência jurídica romana ........................... 204
2.2 A Justiça Formal na elaboração e na aplicação do Direito: a iuris
dictito romana . ........................................................................................................ 212
2.3 A Justiça Material: a prudentia romana na elaboração e aplicação
do direito ........................................................................................................ 220
2.4 A planetarização do Direito Ocidental: o desafio da justiça
universal concreta na processualidade histórica da ideia de
Justiça no Mundo Contemporâneo............................................................. 233
2.5 Conclusões de Joaquim Carlos Salgado: o Direito como maximum
ético . ............................................................................................................... 235

Considerações Finais ................................................................................ 237

Bibliografia .................................................................................................. 243

13
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

14
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

“Quando queremos ver um carvalho na robustez de seu tronco,


na expansão de seus ramos, na massa de sua folhagem,
não nos damos por satisfeitos se em seu lugar
nos mostram uma semente”.

Hegel 1

Se a língua portuguesa é cultuada como a última flor do Lácio, é nossa ta-


refa revelar os caminhos pelos quais o pensamento jusfilosófico lusófono,
sobretudo o brasileiro, deve afirmar-se como pujante retomada crítico-
reflexiva das tradições romanísticas. O Direito é o resultado da processu-
alidade história da cultura ocidental2 e deve ser, portanto, compreendido
em sua historicidade, para que a interpretação e aplicação hodierna das
normas jurídicas possa se dar de modo contextualizado, envolvendo um
debate tanto do direito posto, quanto do direito pressuposto3; Tanto o
texto, quanto o contexto do Direito e, sobretudo, o seu contexto histórico,
importam para a efetivação de uma sociedade justa, pois que compreen-
der o devir histórico da cultura jurídica é fundamental à compreensão do
pensamento jurídico atual.

O Ocidente, em tempos de graves ameaças ao Estado de Direito, rediscute


as bases da convivência jurídico-social. O agir ético, ameaçado pelos impe-
rativos de ordem econômica, longe de atender aos ditames da razão, sofre
as rupturas decorrentes da implantação da perspectiva técnica do Estado
Poiético — o Estado da burotecnocracia e dos superávits da balança co-
mercial4.

No Brasil, isso ocorre de modo mais grave. “O político (em sua dimensão
ética) o jurídico e o social entram em choque com o técnico de dimensão eco-
nômica divorciada da dimensão ética do social”5; e em meio à profunda

1 HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Parte I. Trad. Paulo Menezes. Petrópolis:


Vozes, 1992, p. 27.
2 Visão esta embasada na perspectiva culturalista.
3 Parafraseando Eros Roberto Grau em sua obra Direito Posto e Direito Pressuposto.
4 SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. In: Revista do
Tribunal de Contas, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 37-68, abr.-jun. 1998.
5 Ibidem, p. 59.
15
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

retematização do universo jurídico, a ciência apressa-se, muitas vezes cons-


truindo análises pouco fundamentadas, e conclusões imprudentes.

Não há, fora da tradição jurídica ocidental, de matriz romanística evidente,


respostas suficientes para a plena compreensão dos impasses e das pers-
pectivas para o Direito brasileiro, sobretudo, nos últimos anos, com a re-
constitucionalização do país e sua decisiva escolha pelo Estado de Direito,
e com a globalização econômica, ainda dissociada de uma globalização
jurídica.6

Assim como o Brasil, o ensino jurídico nacional também se encontra em


um processo de profunda mudança estrutural, necessária à sua adaptação
ao momento histórico. Esta mudança justifica-se, principalmente, pelo pa-
pel fundamental que possui o operador jurídico na engrenagem estatal e
social das civilizações ocidentais contemporâneas e diz respeito funda-
mentalmente à Filosofia e à Teoria do Direito7.

Com a nova axiologia jurídico-constitucional, cujo epicentro pretende ser


a promoção e a realização da pessoa humana, com a garantia dos direitos
fundamentais e as novas exigências correlatas a tais fatores, da sociedade
e da comunidade científica, toda a cultura jurídica necessitou (e necessita,
ainda) de se adaptar a esta nova ótica. O extremado tecnicismo, de viés
lógico-dogmático, preponderante até meados do século XX, aos poucos
está sendo substituído por um Direito e um ensino jurídico reflexivo, dog-
mático-axiológico. O ensino formal cede lugar à compreensão zetética do
mundo8; a interpretação formalista do Direito, cede à uma hermenêutica
jurídica eticizante9, fundada na Filosofia do Direito.

6 Cf. SALGADO, Joaquim Carlos. A Ideia de Justiça no Mundo Contemporâneo: fun-


damentação e aplicação do direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del
Rey, 2007.
7 E, no seio destas ambiências ancilares, a História do Direito e a Hermenêutica
Jurídica.
8 Empregamos o termo zetética no sentido proposto por Tércio Sampaio Ferraz
Júnior, não somente de busca incessante do conhecimento, mas no “questio-
namento dos objetos em todas as direções”, a partir da investigação reflexi-
va, crítica e questionadora dos fenômenos jurídicos. Cf. FERRAZ JR, Tércio
Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São
Paulo: Atlas, 1996, p. 44.
9 É o que podemos perceber quando falamos de “princípios hermenêuticos dos
direitos fundamentais”: uma afirmação da dimensão ética do direito por meio
16
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Nesta nova perspectiva, as matrizes jusfilosóficas do pensamento ociden-


tal, enquanto bases teóricas da realidade jurídica, estão sendo reinterpre-
tadas e, nelas, resgatadas as preocupações conexas a este novo momento.
Abandonar o passado sem olhar para traz é sempre um risco dos momen-
tos de grande mudança. Um erro que já aprendemos enquanto civilização
a não cometer, mas que impõe sem dúvida um permanente exercício de
memória, visando não abandonar pelo caminho dos processos histórico-
sociais as conquistas das etapas civilizacionais passadas, nem esquecer, por
certo, os erros e mazelas cometidas no percurso.

Em momentos como esse, uma consciência histórica é justamente aquilo


que pode, na mudança, garantir que o espírito de aprimoramento e melho-
ria não deságue em retrocesso.

Compreender a história do Direito brasileiro, do pensamento jurídico na-


cional e de seus fundamentos constitui requisito indispensável à tarefa de
implimentar de forma profícua um Estado de Direito verdadeiramente
Democrático, pautado na Justiça social.

O Direito Romano, primeiro sistema jurídico propriamente dito e origem


de grande parte dos ordenamentos jurídicos hodiernos10, destaca-se como
tema de investigação de grande relevo na atualidade. Destaca-se, igualmen-
te, a necessidade da compreensão da história desse arcabouço jurisprudên-
cia na formação da cultura jurídica ocidental, bem como a necessidade de
compreensão histórica da formação de nossa cultura jurídica pátria, em
forte diálogo com a tradição romanística.

da atividade hermenêutica. Cf. SALGADO, Joaquim Carlos. Princípios herme-


nêuticos dos Direito Fundamentais. In: Revista da Faculdade de Direito da UFMG.
Nova fase, n. 34, Belo Horizonte, p. 245-266, 2001. Afirmação confirmada
pela professora Mariá Brochado em sua tese de Doutorado, recentemente
publicada: BROCHADO, Mariá. Direito e Ética: a eticidade do fenômeno jurí-
dico. São Paulo: Landy, 2006.
10 Cf. SALDANHA, Nelson Nogueira. Vivência e sobrevivência do Direito Ro-
mano: para uma perspectiva brasileira. In: Seminários de Direito Romano. Brasília:
UnB, 1994, p. 114: “De qualquer sorte, pode se dizer que foi na antiga Roma
que a extensão do plano político das instituições ao seu plano jurídico foi con-
ceitualmente registrada”. Ver também: ARAÚJO, Aloízio Gonzaga de Andra-
de. Direito e Estado como Estruturas e Sistemas: um contributo à Teoria Geral do
Direito e do Estado, Belo Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de
Direito da UFMG, 2005. Tese em que tal ponto de vista é apresentado com os
mais irrefutáveis argumentos.
17
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

É fundamental ao jurista e ao estudante de Direito, inseridos nesta nova


ordem constitucional, o conhecimento a respeito da tradição romanística,
fortemente presente no Direito. Sobremaneira, no que tange à Teoria da
Justiça e à repercussão desta na Dogmática Jurídica, a tradição romana da
interpretatio11 e da aequitas, quando depuradas de certo entulho exegético do
formalismo jurídico novecentista, revela a base de uma visão ética da apli-
cação do direito, que pressupõe a exigência de um tratamento racional dos
processos de elaboração e concreção das normas, enquanto instrumento
possibilitador da Ideia de Justiça12. É que, no Direito Romano, principal-
mente durante o seu período clássico, “os valores éticos, as exigências da
aequitas, estão imanentes no processo de positividade jurídica”13.

A história do pensamento jurídico brasileiro bebe nessa tradição e matura,


a partir dela, ideias e perspectivas jusfilosóficas que acabaram ganhado foro
de autêntica contribuição ao pensamento jurídico ocidental. Desde o perío-
do colonial, passando pelo Brasil Império e pelas experiências da República
Velha dos desdobramentos republicanos (por vezes ditatoriais) do séc. XX,
até à eclosão da Ordem Constitucional (que se quer democrática) de 1988,
o drama complexo, conflituoso e dialético da formação da cultura jurídica
nacional interage, tanto no plano normativo, quanto no doutrinário, quanto
no jusfilosófico, com a tradição romanística complexamente legada a nós
durante as diferentes fases iniciais da formação de nossa identidade pátria.

Interessanos, nessa obra, sobremaneira o estudo do processo histórico


que formou ao pensamento jurídico brasileito, sobretudo quanto à cumea-
da do processo de uma cultura jurídica, que é evidentemente a jusfilosofia.

11 Se o Direito Romano constitui a gênese e o pilar sustentador dos atuais or-


denamentos jurídicos ocidentais – como o Direito italiano, o germânico, o
francês e os ordenamentos jurídicos ibero-americanos –, a Interpretatio repre-
senta a matriz histórica da Lógica jurídica entendida como lógica da aplicação/
interpretação do direito e, por conseguinte, é a Interpretatio matriz interpretativa
do Direito Ocidental, lugar onde a lógica formal ensaiada pelos gregos travou
contato com o labor prático e valorativo dos romanos.
12 Como veremos com a exposição do pensamento de Joaquim Carlos Salgado
a esse respeito.
13 REALE, Miguel. Horizontes do Direito e da História: estudos de Filosofia do Di-
reito e da Cultura. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 79. Em Salgado, essa questão
é explicitada e sistematiza a apresentação dos movimentos de elaboração e
aplicação do direito, tal como racionalizados a partir de Roma, Cf. SALGADO.
Joaquim Carlos. A Ideia de Justiça no Mundo Contemporâneo..., cit.
18
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Cuidamos, porém, de expô-la no devir da História do Direito Brasileiro,


sem perder de vista sua inter-implicação com a história da formação da
legislação e das instituições jurídicas nacional, bem como da doutrina a
elas correlata, em movimento histórico que exige cuidadosa apresentação
e cujo resultado é justamente a História das Ideias Jurídicas no Brasil.

Nossa preocupação foi, ainda, a de revelar a forte presença de elementos


da jurística romana (cujo processo de assimilação junto à cultura juríca
ocidental mereceu também nossa atenção, posto que complexo e dialéti-
co) nos autores que representam a cumeada dos diferentes momentos do
pensamento jurídico brasileiro.

Por Direito Romano, entende-se geralmente o complexo de normas vigen-


tes em Roma e nos países regidos pelos romanos, desde a sua fundação
(VIII a.C.) até a definitiva Codificação Justinianeia (VI d.C.), ou, mais sin-
teticamente, “o conjunto de normas de caráter jurídico por que se regeu a
vida da sociedade romana”14. Tal cultura jurídica milenar, legada pela nação
que realizou o grande sonho de Alexandre da Macedônia (unir o mundo
conhecido em um só império), chegou até nós graças, principalmente, ao
esforço do Imperador Romano do Oriente, Flavius Petrus Sabbatius Jus-
tinianus, que determinou aos sábios de seu tempo a consolidação, sob a
forma de codificação, do legado clássico romano15. Contudo, sabemos que,
em Roma, o momento da Lei não se dá de modo isolado e nem se efetiva
na realidade imediatamente. Por isso, em verdade, o Direito Romano é mais
que um conjunto de regras jurídicas, é, sobretudo, um conjunto de estru-
turas conceituais, categorias e princípios jurídico-intelectivos, que formam
o arcabouço inicial do Direito, entendido como momento de máxima ra-
cionalização da justiça. A cultura jurídica brasileira parte desse longíncuo
legado e passa por diferentes e importantes pocessos históricos de constru-
ção que se confundem, em muitos momentos com a formação da própria
cultura jurídica europeia. Cabe-nos estudar esse caminhar histórico.

14 MONCADA, Luis Cabral de. Elementos de História do Direito Romano. Coimbra:


Coimbra Editora, 1923, p. 8.
15 Na verdade, “aquilo que se chama Direito Romano corresponde historiografi-
camente a uma síntese de vários elementos entre os quais se incluem tanto o ius
romanus mais antigo, com seus procedimentos formais e suas leges actiones, como
o ius civile amaduderido do período clássico e ainda as variações que abrangem o
ius gentium e o ius honorarium, tudo isso ligado a um conjunto de conceitos e prin-
cípios tornados modelares pelo trato secular”. SALDANHA, Nelson Nogueira.
Teoria do Direito e Crítica Histórica. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1987, p. 49.
19
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

No no seio da sociedade romana, o conhecimento jurídico evoluiu junto


com a história de Roma, enquanto um importante elemento da unidade
e da prosperidade desse povo, condensando-se num aparelho teórico-his-
tórico. É a investigação da presença e atualidade desse conjunto jurispru-
dencial essencial, na formação da cultura jurídica brasileira que a presente
investigação pretende enfocar devotar, na tentativa de demonstrar sua im-
prescindibilidade na construção do pensamento jusfilosófico contempo-
râneo, não sem, entretanto, demonstrar os processos de modificação que
foram sendo implementados no conhecimento jurídico ocidental durante
as dezenas de séculos de formação da cultura jurídica romanística, desde a
queda do Império Romano do Ocidente.

Não há melhor ponto de partida para o jusfilósofo do que refletir sobre o


Direito Romano (e o processo formador da cultura jurídica romanística),
pois sua construção milenar se embasa no legado de um exemplo vivo de
um Direito positivo em conexão com a Ideia de Justiça. Nada melhor que a
compreensão histórica do caminho percorrido desde o Direito Romano até
os momentos atuais do nosso Direito para aguçar no pensamento jurídico a
interação entre o direito-bem, o direito-norma, o direito-ciência e o direito-
valor, na Filosofia do Direito e na Dogmática Jurídica. Pretendemos nos vol-
tar para essa presença da tradição romanística na construção da cultura jurídica
contemporânea, com enfoque na jusfilosofia brasileira, haja vista que, por outro lado,
não podemos negar que constitui requisito essencial à formação de um bom
jurista a consciência aprofundada dos fundamentos históricos do Direito vi-
gente, posto que ele é, já dissemos, resultado da processualidade histórica da cultura.

Tal voto de confiança na capacidade de contribuição que ainda possui a


compreensão da Jurística Romana pretende se justificar pela demonstra-
ção, da essencialidade de certos elementos do da tradição romanística na
construção dos principais sistemas jusfilosóficos a inspirar os rumos de
uma sólida e responsável da Ciência do Direito, na trajetória histórica da
cultura jurídica de nosso país16. Deve-se compreender o processo pelo
qual passou a cultura romanística na formação do ocidente, e, no seio des-
se pocesso, evidenciar as bases históricas de nossa juridicidade, reveladas
em diversos momentos da formação da cultura jurídica ocidental.

16 Se, por vezes, a Ciência do Direito no Brasil se viu trilhando caminhos equivocados
e prejudiciais à construção de um Direito Justo, foi porque abandonou as lições
compatriotas dos grandes jusfilósos romanos para se apoiar em construções por
vezes alijadas de uma preocupação propriamente voltada para o universo jurídico.
20
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Durante algum tempo, no período mais recente de nossa história, o estudo


dos textos romanos, através da mera análise dos institutos jurídicos, prestou-
se apenas a legitimar a atividade exegética do Direito Civil. Os valorosos en-
sinamentos romanos da relação entre Direito e Justiça achavam-se diluídos
em meio ao puro formalismo dogmático. Já é tempo de resgatar o Direito
Romano como admirável instrumento de educação jurídica17 e lugar privilegiado de ela-
boração concreta de um conceito de justiça jurídicamente estruturado18; e isso somente é
possível se entendermos que o lugar primordial de sua contribuição ao Direito
Contemporâneo se dá nas ambiências da Teoria e Filosofia do Direito. Ou seja,
o Direito Romano precisa ser pensado na contemporaneidade não apenas
como uma base histórica para a compreensão do Direito Privado, mas como
um elemento componente da racionalidade jurídica contemporânea, assumi-
do e atualizado na dialética histórica da formação do Direito Ocidental.

Percorrendo-se os movimentos de experiência da consciência jurídica em


Roma19, percebe-se que a racionalidade do Direito já se encontra forma-
tada, em suas linhas iniciais, na jurística romana. Em outras palavras, em
Roma encontramos a matriz racional do Direito, enquanto ciência da justi-
ça concreta20. Evidentemente, um sistema lógico-interpretativo consistente
acompanhou a formação desta racionalidade jurídica21 e fomentou o que

17 MOREIRA ALVES, José Carlos. Curso de Direito Romano. V. I. 5. ed. Rio de


Janeiro: Forense, 1983.
18 Cf. SALGADO, Joaquim Carlos. A Ideia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p
4-18.
19 Cf. SALGADO, Joaquim Carlos. A experiência da Consciência jurídica em Roma, cit.,
p. 23-35.
20 Tal noção de Direito em Roma, tomado na dimensão de uma ciência da justiça
concreta, encontra-se em Miguel Reale, em seu ensaio intitulado Concreção de
Fato, Valor e Norma na Cultura Jurídica Romana do Período Clássico, compilado no
livro Horizontes do Direito e da História. V. REALE, Horizontes do Direito e da His-
toria, cit., p. 47 et. seq.
21 O romanista Pietro Bonfante nos revela, em sua História do Direito Romano,
como se deu a evolução progressiva da atividade interpretativa dos Romanos
até a consolidação de uma estrutura racionalmente concebida de pensar o Di-
reito e a Justiça: “O jurista clássico não é o oráculo, vocábulo que em seu
sentido elevado expressa um método primitivo, ele é o fundador da dialética
jurídica, inspirada em um sentido peculiar do justo e no resultado útil que
deve sempre guiar ao verdadeiro jurista e o distingue da massa dos intérpretes
formalistas, que são precisamente os não juristas”. Cf. BONFANTE. Historia
Del Derecho Romano. Trad. Jose Santa Cruz Tejeiro. Madri: Editorial revista de
Derecho Privado, 1944, p. 473.
21
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

podemos chamar a categorização do Direito. Este direito categorizado se re-


vela na Justiça Formal e na Justiça Material; nesta, a aplicação do direito
atribui, à atividade jurisprudencial22, uma função ancilar na busca pela efe-
tivação do justo. Durante o pocesso de formação do Direito Ocidental a
essa experiência se somou dialéticamente outras que os povos europeus
vivenciaram, cabendo ao estudioso do Direito percorrer essas etapas, sob
pena de prejuízo em sua formação.

O movimento de aquisição da consciência jurídica em Roma, somente pos-


sível em virtude da presença no gênio romano do mesmo logos percebido
nos gregos, revela a natureza universalizante do Direito; primeiro na uni-
versalidade da Lei, depois na universalidade da aplicação, racionalmente
construída por meio da actio23, traduzindo-se na universalidade do próprio
sujeito de direito. Da universalização do justo na Lei (Ius) à efetivação deste
na decisão (Iurisdictio), o gênio romano vai progressivamente categorizando
o saber do Direito e desenvolvendo, de forma conjunta, uma “arte” de in-
terpretar, de conhecer para aplicar, que produziu toda a literatura jurídica
romana24 e a que damos o nome Jurística ou Prudência Romana25.

22 Aqui entendida a juspisprudência no sentido germinal atribuído pelos roma-


nos: algo que se aproxima da noção moderna de ciência do direito ou de dou-
trina, sendo talvez mais responsável atribuir à expressão o sentido de saber
dos juristas.
23 “Roma e os povos do sul da Itália traziam consigo o modelo grego de cultura
voltado para o universal. A busca do universal, caracterizado na unidade e perma-
nência, que se desenvolveu entre os gregos no plano teórico, e prático no campo
da Ética, contribuiu na civilização romana de modo expressivo na formação do
Direito.[...] O justo deve assim observar dois princípios: a) que se possa ser como
tal reconhecido (sabido e aceito) por todos, ou seja, segundo a fórmula de Kant,
ou a que todos possam dar seu assentimento; b) que alcance a todos igualmente.
Não é suficiente o reconhecimento empírico, mas exige-se a ponderação da razão
sobre o conteúdo axiológico, portanto, de racionalidade do que é reconhecido.”
SALGADO, Experiência da Consciênca em Roma, cit., p.22 e 23.
24 Esse caráter instrumental da literatura jurídica romana, que é, inclusive, sua
origem, é muito bem apresentado por Michel Villey, em VILLEY, Michel.
Direito Romano. Trad. Fernando Couto. Porto: Res Jurídica, 1991. p, 71 et. seq.
25 “Desse modo, o direito é visto pelo romano não apenas como formalização
pela vontade da autoridade que o põe na existência, mas pelo momento do en-
contro do conteúdo justo, do equilíbrio, feito pela ratio, tanto no momento da
elaboração como no da aplicação. Daí, a prudência romana expressa em densa
síntese por um porta-voz do tribunal dos mortos: conhecer a lei é captar sua
força e potestade, sua ratio (Celso).” Ibidem, p. 23.
22
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

A Filosofia, como saber de terceiro grau que é, opera sempre uma reflexão,
um pensar sobre o pensado26. Por isso, o saber Filosófico pressupõe a constru-
ção científica e volta-se para ela com rigor metodológico na busca de seus
pressupostos e possibilidades – operando sua crítica, bem como a crítica de
suas verdades científicas – sua superação. Na Filosofia do Direito, não é di-
ferente, o saber jusfilosófico pressupõe o saber jurisprudencial (ou dogmá-
tico, em termos contemporâneos). É necessário ao filósofo do Direito um
conhecimento da Filosofia (método) e também do Direito (objeto da Filosofia
do Direito)27. O jusfilósofo deve antes de tudo ser um jurista, e deve, como
pressuposto, ser um conhecedor da história da cultura jurídica romanística.

É justamente para fundamentar uma função formativa, que deve possuir a


Jurística Romana, acrescido do seu caráter fundante, que ressaltamos es-
tar nela contidos os princípios básicos da teoria jurídica, os prima elementa,
no dizer de Justiniano28. Mais que isto (e o que é primordial), trata-se da
fundamentação de uma teoria e vivência jurídica que não está alheia aos
valores essenciais da Ética29: de um direito que se identifica com o justo
por que racionalmente voltado para a sua realização concreta.

A capacidade de contribuição da Jurística Romana se justifica na observação


do singular caráter instrumental atribuído ao Direito pelos romanos. Em
Roma, o Direito é instrumento e fim, ou seja, é método, no sentido mais
elementar e original dessa palavra: caminho para a Justiça, lugar privilegiado
de seu acontecer. Esta vinculação da essência do Direito a uma complexa
ideia de justo, aliada a uma preocupação com a segurança, previsibilidade e
certeza do Direito como pressuposto básico dessa vinculação, faz com que
possamos observar uma estrutura extremamente rica de criação-cognição-
aplicação do Direito. Este é o caráter ético da experiência jurídica romana,

26 Esta questão da pressuposição do conhecimento realizado pela ciência, dada


a natureza reflexiva da Filosofia, é meditada por Joaquim Carlos Salgado, cf.
SALGADO, Joaquim Carlos. A Necessidade da Filosofia do Direito. In: Revista
da Faculdade de Direito da UFMG, n. 30-1. Belo Horizonte, 1987-8.
27 Evidentemente, a própria Filosofia é objeto de estudo do jusfilósofo. Não po-
deria deixar de ser, dado que é por meio dela que se opera uma reaproximação
do Direito, com vistas à reflexão sobre o pensado acerca da juridicidade.
28 Cf. JUSTINIANUS, Flavius Petrus Sabbatius. Institutas do Imperador Justiniano.
Trad. José Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Editora Revista dos Tribu-
nais, 2000, p. 16 (Proêmio).
29 Para uma leitura de vanguarda acerca da eticidade imanente ao Direito cf. BRO-
CHADO, Direito e Ética, cit.
23
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

verdadeira fonte de inspiração na hodierna construção de um Direito justo.

Mas a retomada do papel fundamental do Direito Romano na formação


do jurista – que somente tem lugar na Filosofia do Direito, dado que so-
mente aí é possível dar-se conta e operar-se o teor valorativo impregnado
na jurisprudência romana – pressupõe a tomada de consciência, dentro da
própria ambiência jusfilosófica, da sua imprescindibilidade para a constru-
ção de um sólido esquema reflexivo sobre o Justo e o Direito, este como
lugar onde se pode dar a máxima concreção da justiça. Esta é a tarefa desta
pesquisa e sua justificativa: demonstrar a importância dos componentes de
Direito Romano da Filosofia do Direito no Brasil durante a sua formação
histórica significa contribuir30 para abrir caminho para uma, esperamos,
vigorosa retomada de seus estudos em nosso país.

Por isso, nosso itinerário inicia-se com uma exposição do papel do Direito
Romano na formação da Cultura Jurídica Ocidental. Percorreremos de
modo reflexivo a trajetória europeia da formação do Direito desde a queda
de Roma até sua chegada no marco inicial do Período Contemporâneo:
o Constitucionalismo Moderno. Nesse iter (que é o caminho que vai do
Direito Romano aos Direitos Romanísticos em suas várias fases), procu-
raremos demonstrar as diversas ambiências e os vários modos por meio
dos quais o tradição romanística sobreviveu e permaneceu como o alicer-

30 Dizemos “contribuir” porque, em verdade, essa pesquisa tem um caráter com-


plementar em relação à tarefa recém-concluída por Joaquim Carlos Salgado,
orientador desta investigação, que nos apresentou, em obra publicada não faz
muito tempo, uma notável explicitação da suprassunção do Direito Romano na
cultura jurídica contemporânea. O trabalho de Salgado consiste numa siste-
matização do resultado do percorrer histórico da ideia ocidental de Justiça e do
direito como seu maximum ético. Nesse resultado (hegelianamente concebido),
a prudência romana aparece como momento fundamental, verdadeira síntese
das categorias, conceitos e princípios basilares da Justiça enquanto racionalida-
de imanente ao Direito. Nosso objetivo é, em certo sentido, complementar e
propedêutico ao de Salgado. Se a sua busca era por expor sistematicamente o
resultado dessa suprassunção da jurisprudência romana no mundo contempo-
râneo, a nossa é percorrer o devir histórico desse movimento de suprassunção
do Direito Romano na formação da Cultura Jurídica, desde a formação da
cultura jurídica ocidental, após a queda de Roma, até a chegada desse processo,
na cultura jusfilosófica brasileira contemporânea, cuja formação deve ter sua
explicação intimamente relacionada que a presença da tradição romanística em
nossas plagas
24
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

ce fundamental sobre o qual o Direito ocidental moderno foi construído,


tanto do ponto de vista da sua vivência normativa quanto, e sobretudo, do
ponto de vista da sua reflexão intelectiva: o pensamento jurídico.

Em seguida, adentraremos no estudo da formação da cultura jurídica bra-


sileira, enquanto cultura jurídica de base romanística. Nosso intento será
demonstrar, por meio de um estudo sobre o Direito Português e sobre a
sua transposição para o território brasileiro, que o nosso Direito é de base
indiscutivelmente romanística e que a posterior aquisição de nossa inde-
pendência de modo algum significou um afastamento dessa tradição.

A partir de então, voltaremos nossas atenções para o pensamento jurídico


brasileiro e a sua formação; procurando traçar suas fases, identificando em
cada uma delas a presença e o papel do Direito Romano. Como nosso en-
foque é na contribuição da tradição romanísica à jusfilosofia, iremos iden-
tificar, ao final de cada fase, um autor que a possa representar como o que
de melhor se produziu naquele momento da reflexão jurídica brasileira, e,
no estudo de seu pensamento, procuraremos demonstrar a presença fun-
damental do romanismo. Para tanto, iremos nos valer de importante ins-
trumento da filosofia histórica, política e jurídica de Hegel, ao buscarmos
a interação entre fases ou momentos sócio-políticos (o Espírito Objetivo) e
a reflexão desses momentos na Filosofia.

Apresentaremos o período colonial brasileiro e suas vicissitudes, nele res-


saltando a marcada presença da cultura romanística (em processo de con-
cretização na Europa) na transplantação da ordem burocrática lusitana
para nossas terras. Nesse período, cabe investigar as principais caracterís-
ticas do Direito Português, ponderando sobre sua história. Nela se revela
a força e influência do romanismo e a sua valia na ordenação do Brasil Co-
lônia. Essa exposição culminará na apresentação do pensamento daquele
que representa hegelianamente o ponto de chegada desse momento de
nossa cultura jurídica, o jusfilósfofo lusitano Tomás Antônio Gonzaga,
verdadeira “ave de minerva” do período colonial brasileiro, primeiro jus-
racionalista a habitar em nossas terras e a aqui pregar suas ideias.

Em seguida, será apresentado o período imperial brasileiro, momento de


formação da nossa identidade nacional e, no seio dela, da cultura jurídica pá-
tria, livre das amarras lusitanas. No processo de implementação dos estudos
jurídico no Brasil, desdobram-se as preocupações entre a elaboração de um
Ordenamento Jurídico próprio e a formação de quadros para a vida jurídico-
política do país idependente. O dialógo deixa de ser pautado com Portugal e
25
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

passa a ser, cada vez mais aproximado com a jurisprudência francesa e, pos-
teriormente, germânica. Nesse momento, o transitará da presença marcante
de diversificadas concepções jusnaturalistas, na primeira metade do século,
para uma visão positivista, tanto advinda do formalismo jurídico, quanto do
sociologismo comtiano. Nossa tarefa foi expor esses movimentos dessa fase
da história jurídica nacional e ao final dela, evidenciar o pensamento do polê-
mico Tobias Barreto, como aquele que primeiro promoveu em nossas ter-
ras uma tentativa de negação e superação tanto do jusnaturalismo, quanto do
positivismo meramente abstrativo. Por isso, Tobias representa a cumeada do
período imperial e o anúncio dos desenvolvimentos vindouros, consistindo,
por isso, num novo vôo da crisálida coruja de Minerva na cultura jurídica pá-
tria e merecento, assim, nossa atenção destacada. Em todo esse movimento
do Brasil Império, o romanismo, debatico, discutido, atacado, exaltado, mas
sempre presente, possui papel central que nos caberá explicar.

Inaugurado o período Republicano, o trânsito da República Velha ao Es-


tado Novo representa a conturbada passagem do Estado Liberal (vivido
tímidamente em nosso país, como veremos) e o Estado Social (também
mal nascido na sociedade brasileira, e logo corrompido pela tendência di-
tatorial manifestada em nossa política republicana), Não obstante, a mar-
cha da cultura jurídica nacional prosseguia, com a urbanização do país, na
implementação de um Ordenamento Jurídico denso, pautado nas codifica-
ções republicanas, e no desdobramento dos resquícios de positivismo que
se demoram no Brasil. A cumeada do pensamento nacional desse período,
no plano jusfilosófico não poderia deixar de ser representada na obra de
Pontes de Miranda, maior jurista brasileiro do séc. XX, que nos caberá
também analisar e nela destacar a presença da tradição romanística.

Atravessadas as portas da segunda metade do século XX, continuaremos


nesse mesmo propósito, apresentando as tendência difusas do pensamen-
to jurídico nacional desse momento, até desembocarmos no culturalismo,
carro-chefe da jusfilosofia brasileira contemporânea, no qual se destacará
uma presença esclarecida e amadurecida do romanismo na obra do maior
jusfilósofo brasileito do séc. XX, Miguel Reale. E, na sequencia, embar-
caremos na obra de Joaquim Carlos Salgado, expressão máxima da refle-
xão atual da jusfilosofia nacional, de modo a demonstrar de que forma e
em que sentido podemos afirmar que o resultado do devir histórico da Éti-
ca Ocidental debita a Roma suas bases fundamentais e como foi possível
sua permanência como elemento atual da Ideia de Justiça contemporânea
num Estado Brasileiro que se quer efetivamente de Direito, Democrático e
Justo e que nesse momento enfrenta os desafios desse projeto.
26
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

I
O Romanismo na Formação
da Cultura Jurídica Ocidental
“Três universais Roma legou à humanidade: um
Estado universal, uma religião universal e um direito universal”.

IHERING31

1. A tradição jurídica romana como marco divisor da história do


Ocidente

A história da cultura jurídica ocidental desenvolveu-se num diálogo íntimo


com o Direito Romano. Após a queda do Império Romano (476 d.C.), seja
qual for a divisão que se estabeleça para o devir formador do pensamento
jurídico no ocidente europeu, o Direito Romano aparece sempre como
um critério importante de demarcação de suas fases.

Com a necessária ressalva referente às inúmeras e diferentes possibilida-


des de formas e divisões que se apresentam nas exposições desse devir pe-
los juristas, bem como alentando-se para as limitações inerentes a toda e
qualquer divisão da história, se quisermos elaborar a mais sintética divisão
histórica do Direito ocidental, teríamos três grandes períodos intimamen-
te relacionados com a própria modificação do papel do Direito Romano
nessa cultura.

Um primeiro período seria o da experiência jurídica romana32 (o Direito

31 IHERING, Rudolf Von. Apud. SALGADO, Joaquim Carlos. Homenagem ao


Centenário do Professor e Desembargador Afonso Teixeira Lages. Belo Hori-
zonte: Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, out. 2000, p. 15-24.
32 Experiência jurídica é a articulação entre a idealidade e a realidade do direito, feita
no processo de atribuição de sentido da cultura, como interação entre a subje-
tividade e do todo cultural. Experiência jurídica é aquela feita na “realidade histó-
rico-cultural e ético normativa” de um povo, que tem como valor fundante da
convivência social o justo. [Cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo:
Saraiva, 2002. p. 205]. Para Salgado, como veremos no último cápítulo desta
dissertação, a experiência jurídica romana traz uma contribuição essencial para a
27
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

Romano vivido e construído pelos romanos em treze séculos de existência


de sua sociedade política33), período esse em que os elementos fundamen-
tais da juridicidade foram construídos, centrados, sobretudo, na figura do
sujeito de direito. Em seguida, teríamos o período das recepções do Direito
Romano, tanto a vulgar, quanto a erudita, pela cultura europeia então em
formação, no medievo e no pós-medievo (que em leitura um pouco mais
detalhada abrangeria os períodos da Alta e Baixa Idade Média, do Re-
nascimento, do Barroco, do Humanismo, do Classicismo até o Iluminis-
mo), período esse em que o Direito, pensado sempre com apoio direto no
modelo deixado pelos romanos (mesmo quando recorrendo-se a fontes
vulgares), é dialeticamente confrontado com as diversas problemáticas de
cada um desses diferentes momentos da história. Elemento formador do
próprio ocidente, a tradição romanística sobrevive a esse confrontamen-
to, permanecendo como a ratio scripta do fenômeno jurídico, que por ele
é depurado de modo a possibilitar, no final desse devir, o aparecimento
de um novo modelo jurídico de organização racional do agir humano: o

formação e para a compreensão da Justiça como idealidade histórica do direito.


A experiência jurídica é o lugar próprio do aparecer da razão jurídica, momento de
ultrapassagem do momento meramente subjetivo da consciência jurídica e do mo-
mento objetivo da realidade jurídica. Cf. SALGADO, Joaquim Carlos. A Ideia de
Justiça no Mundo Contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 14-24. Sobre
o conceito de experiência jurídica, ver também as seguintes obras de Miguel
Reale: Cf. REALE, Miguel. (coord.) Experiências do Direito. Coordenação: Mi-
guel Reale. Miguel Reale Campinas, SP: Millennium, 2004. Cf. REALE, Miguel.
Experiência e Cultura. Campinas: Bookseller, 1999.
33 Nossa dissertação não tratará de apresentar esse período, posto não ser este o
objetivo do trabalho. Em sede de monografia de conclusão de curso, porém, na
ocasião de refletirmos sobre A Interpretação do Direito em Roma, pudemos fazer
longa exposição desse devir, num panorama histórico da formação jurispruden-
cial romana. Cf. PINTO COELHO, Saulo de Oliveira. A Interpretação do Direito
em Roma. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2004, (Mono-
grafia, Bacharelado em Direito). Para um estudo dessa formação, estudamos e
recomendamos, notadamente, as seguintes obras: VILLEY, Direito Romano, cit.;
BONFANTE, Historia Del Derecho Romano, cit.; PETIT, Eugene. Tratado Elemen-
tal de Derecho Romano. Trad. Jose Fernandez Gonzales. Buenos Aires: Albatroz,
1951; PEIXOTO, José Carlos de Matos. Curso de Direito Romano. Tomo I. 4. ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2000; ALVES, Direito Romano, cit.; IHERING, Rudolf
von. El Espiritu del Derecho Romano. Trad. Enrique Principe y Satrenes. 5. ed.
Madri: Casa Editorial Bailly-Bailliere, 1957; GUARINO, Antônio. Storia del Di-
ritto Romano. 4 ed. Napoli: Eugenio Jovene, 1969; e MONCADA, Elementos de
História do Direito Romano..., cit.
28
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Estado Constitucional. Surgiria então o terceiro período da vivência ju-


rídica europeia, o da superação dialética do direito romanístico da
Europa pré-constitucional, pela Declaração Constitucional de Direitos
Fundamentais, que passa a ser a ratio scripta imediata do Direito, ou seja, o
período do Direito Contemporâneo (ou Moderno, para alguns), que teria
início com a construção do Estado de Direito Revolucionário e perduraria
até os nossos dias34.

Mesmo quanto a esse último período, a história da cultura jurídica ociden-


tal não deixa de dialogar intimamente com o Direito Romano. Isto por-
que, quando afirmamos que a partir da Revolução há sua superação, é no
sentido dialético (Aufhebung) da expressão que devemos compreender esse
movimento do pensamento jurídico. Ou seja, trata-se de entender que o
Direito Romano foi suprassumido nesse novo momento do Espírito ociden-
tal, e não superado no sentido de não ser mais útil, ser dispensável, ter-se
tornado obsoleto, ultrapassado, como puderam pensar alguns juristas.

A este terceiro momento, associa-se normalmente uma alardeada e preo-


cupante crise pela qual passaria o Direito Romano, que teria justamente
como sua razão mais imediata o fato de este deixar de ser direito vigente,
ou mesmo subsidiário, e, com isso, a paulatina perda de um sentido prático
para seu estudo35.

O a tradição romanística permaneceu e permanece, apropriada que foi por


essa nova forma do Direito, bem como pelo pensamento jurídico que com
ela interage para entendê-la, como um seu indispensável fundamento. De-
monstrar e entender essa permanência das bases romanísticas do Direito

34 Nossa Dissertação abordará esses dois últimos períodos históricos (recepção


do Direito Romano e superação dialética do Direito Romano), direcionando o
estudo, paulatinamente, para a questão da presença deste tesouro jurispruden-
cial na formação da cultura jurídica de nosso país, dando ênfase à sua impor-
tância nas construções jusfilosóficas pátrias.
35 Sobre a questão da crise do ensino do Direito Romano, veja-se o detalhado
artigo de Moreira Alves acerca do papel deste na formação dos juristas: MO-
REIRA ALVES, José Carlos. O Direito Romano e a Formação dos Juristas:
perspectivas para o novo milênio. In: Noticia de Direito Brasileiro, n. 8, nova série.
Brasília: Revista da Faculdade de Direito da UnB, p. 19-32, 2001. Importante
também a reflexão de Cabral de Moncada a esse respeito, cf. MONCADA,
Luis Cabral de. A Atual Crise do Romanismo na Europa. In: Estudos de História
do Direito. V. II. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis, p. 217-48, 1949.
29
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

como elemento suprassumido no pensamento jurídico contemporâneo é


nosso objetivo já declarado. Mas, para tal, imprescindível se faz percorrer,
mesmo que muito sucintamente, o longo caminho que separa seu mo-
mento histórico original do Direito Contemporâneo. Em outras palavras,
mister se faz entender as diferentes vivências históricas pelas quais se deu
a sobrevivência do Direito Romano na cultura jurídica e que possibilitou
sua tradição para o Direito de nossos tempos como uma tradição jurídica,
se não vigente, viva36.

2. A formação romanística do Direito Moderno Europeu

Interessanos, nesse estudo, sobremaneira o estudo da interação da tradição


jurídica romanística com as experiências históricas da realidade jurídica eu-
ropeia que culminaram na construção do Direito Ocidental Moderno. O
Direito Brasileiro é nitidamente situado no sistema jurídico continental-
europeu, ou romano-germânico. Logo, a compreensão histórica de nossa
realidade jurídica passa pela compreensão da Formação da Cultura Jurí-
dica Euporeia. O conhecimento dessa cultura implica na compreensão
dos momentos da legislação, da cognição e sistematização das normas e

36 Cf. CORREIA, Alexandre Augusto de Castro. O Direto Romano Vivo. In:


Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. n.49. São Paulo: USP,
p.297-308, 1954,. A esse respeito, interessantes são, também, as considerações
de Ronaldo Polleti: “A ideia de uma direito romano vivo lastreia-se em um
pressuposto consistente na possibilidade de uma adaptação histórica do Direi-
to Romano aos novos tempos, ou a tempos diferentes, posteriores à sua exis-
tência na Roma primitiva, republicana, imperial. O direito romano não morreu.
Ainda é, todavia, um direito histórico, não no sentido da crônica histórica, mas
na história propriamente dita, isto é, naquela em que o valor reside nos efeitos
dos fatos, não no seu relato. O direito romano tem um tempo diferente do
Krónos, identificando-se com o Kairós, ou seja, uma crise dentro de uma expe-
riência temporal em que o homem interpelado se obriga a uma decisão real-
mente histórica. O Krónos é o tempo formal, meramente quantitativo, medido
pelo cronômetro. O Kairós é o tempo significativo das decisões fundamentais
na história do homem. Em termos de filosofia da história, é toda reviravolta
decisiva da história. Esse Direito Romano, que vive ainda em nossos institu-
tos jurídicos, não é uma repetição, porém uma adaptação a um tempo novo,
estando presente na dialética dos sistemas jurídicos. Dentro desse quadro, a
influência do Direito Romano revela-se uma permanência, um elemento de
nossa civilização”, cf. POLETTI, Ronaldo Rebello de Abreu. O Direito Públi-
co Romano no Brasil. In: Noticia do Direito Brasileiro, n. 8, nova série. Brasília:
Revista da Faculdade de Direito da UnB, p. 74-75, 2001.
30
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

institutos, da vivência cotidiana do direito e dos processos de aplicação


jurídica, todos imbricados na histórica da experiência jurídica ocidental.
No movimentar do Direito, o diálogo com a tradição romana foi paulati-
namente cunhando as bases do pensamento jurídico ocidental moderno.
Este, por sua vez, tendo como chefe, ao final desse processo histórico, o
conceito de Estado Constitucional de Direitos Fundamentais, passou a
influenciar, paulatinamente, cada vez mais, as demais culturas sócio-nor-
mativas do globo.

Trata-se, portanto, de estudar as variadas formas de recepção do Direito


Romano na Europa, da Queda do Império Ocidental até a Revolução;
estudar os processos históricos pelos quais esse Direito permaneceu vivo
na cultura jurídica europeia, como um fator determinante de seu desenvol-
vimento. Mais que isso, trata-se também de entender o próprio desenvol-
vimento e a transfiguração do próprio Direito Romano, na apropriação dele
feita em diferentes momentos e segmentos dessa cultura.

Para Caenegem37, é neste período (de 476 d.C até 1789 d.C) que se dá a
formação histórica do Direito Romano-Germânico. O autor segue em sua
exposição desta formação, dividindo esse lapso temporal em dois momen-
tos distintos: um primeiro, que vai da Queda do império até 1.100 d.C.,
que representa o período de sobrevivência (recepção) vulgar do Direito
Romano; e um segundo, de 1.100 d.C, da descoberta do Corpus Iuris, até
as codificações decorrentes da Revolução Francesa, que representaria o
período da recepção erudita desse Direito.

Caenegem é enfático ao afirmar que, quanto ao transcorrer desse segundo


período, não se pode querer perceber alterações suficientemente drásticas
no mundo jurídico de modo a se indicar um aparecimento de fase da his-
tória jurídica correspondente ao Período Moderno da história geral (1500-
1789). Com ele, pode-se perceber que antes e depois do ano 1500 a histó-
ria das ideias jurídicas continua uma e a mesma: um diálogo de recepção,
desenvolvimento e adaptação do Direito Romano à nova Europa.38

Já para Antônio Manuel Hespanha, tal período entre o Império Roma-


no e o Estado Constitucional é marcado pela construção do ius comune
europeu e pelo diálogo deste com a variedade dos fenômenos jurídicos

37 Cf. CAENEGEM, R. C. van. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. Trad.


Carlos Eduardo Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
38 Ibidem, p. 34-5.
31
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

locais. Tal processo (que dá unidade à cultura jurídica europeia) teria sido
possível, sobretudo, em razão de um fundamento histórico comum na
base da diversificada vida jurídica europeia: o Direito Romano. Segundo o
historiador português: “a memória do Direito Romano foi, porventura, o
principal fator de unificação dos direitos europeus”.39

2.1 Sobrevivência do Direito Romano na Alta Idade Média

Somos inicialmente relutantes em denominar esta parte inicial da expo-


sição, que pretendemos fazer neste capítulo de “sobrevivência vulgar do
Direito Romano”, como sugeriria a leitura não só de Caenegem, como
também de Gilisen40. Isso porque esse período da Alta Idade Média, geral-
mente simplificado e resumido de modo anódino nos estudos de história
jurídica – o que se justifica sobretudo pela dificuldade de acesso a fontes
historiográficas –, revela variadas formas de permanência do Direito Ro-
mano, o que nos obriga a fazer duas objeções ao uso do termo sobrevivência
vulgar para denominá-lo. Primeiro, ele poderia levar a entender que, nesse
período, o Direito Romano sobreviveu apenas por meio do que chamamos
estritamente Direito Romano Vulgar (presente sobretudo nas regiões itálicas
e outras de duradouro domínio romano), desconsiderando-se outras rea-
lidades jurídicas da Alta Idade Média em que também encontramos forte
influência do mesmo (p. ex. sua influência no Direito Bárbaro, como o Di-
reito Visigótico, sua influência na Doutrina Eclesiástica da Igreja Católica
e nas Instituições Políticas de restauração imperial, sobretudo no Império
Carolíngio e no Sacro Império). Segundo, que essa expressão refere-se a
uma sobrevivência do Direito Romano independentemente do seu estudo
via codificação justinianeia, o que representa um marco importante, mas
pode produzir o inconveniente de dar a entender que não ocorreu nesse
período nenhuma elaboração jurídica de relevância erudita, o que é teme-
rário, principalmente se tendo em vista o papel da Igreja na preservação de
relevantes aspectos da cultura jurídico-política romana.

Feitas essas observações, podemos trabalhar com a ideia de uma sobre-


vivência vulgar do Direito Romano nesse período, mas apenas para que
possamos entender que nesse momento a influência do Direito Romano
se deu por e em mecanismos e práticas costumeiras ou institucionais, não

39 HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Jurídica Europeia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fun-
dação Boiteux, 2005, p. 123.
40 Cf. GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 4 ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2003. p. 167-171.
32
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

por meio de um estudo direto em uma fonte textual farta como o Digesto
Justinianeu. Fazer essa ressalva é importante para não corrermos o risco de
não percebermos a riqueza e a pluralidade dos caminhos históricos então
percorridos pelo Direito Romano até sua redescoberta justinianeia, chamemos
assim.

2.1.1. Fragmentação da Europa e consequente rarefação do Direito


Romano

Outra observação relevante deve ser feita, agora acerca da afirmação de


um progressivo desaparecimento do Direito Romano na Europa, até sua
redescoberta pelas universidades italianas, por meio do desvendamento
dos textos justinianeus. Hespanha oferece um importante substrato para
o correto entendimento desse processo ao enfatizar em sua obra Cultura
Jurídica Europeia a formação, desde esse período, de um diálogo entre as
experiências particulares e fragmentárias de cada “lugar” e um já evidente Direito
Comum Europeu, em potencial, ainda vulgar, não eruditizado pelo saber uni-
versitário e escolástico, mas já marcado por alguns aspectos que lhe ga-
rantiriam certa unidade41. Entre esses aspectos, destacar-se-ia sobretudo
a influência do passado romano na Europa medieval, fragmentária, mas
capaz de paulatina identidade, traduzida pela designação ‘Ocidente’, mui-
to em razão da identificação jurídica possibilitada pelo legado do Direito
Romano na práxis dos diferentes agrupamentos medievais da Europa.

Chamar a cultura jurídica do medievo de Direito Feudal é, a nosso ver, um


equívoco, posto que essa manifestação representa apenas um dos vários
momentos de ordenação normativa no pluralismo jurídico da Idade Média
– o Direito Feudal é uma das variadas manifestações de normatividade,
convivendo com o Direito Canônico, o Direito Germânico (Visigótico, p.
ex.) e as leis dos reinos (as capitulares, p. ex.). Neste pluralismo que faz do
Direito Feudal apenas um dos meios de expressão normativa, “a memó-
ria de Roma foi, porventura, o principal fator de unificação dos direitos
europeus”.42

Daí podermos concluir ser um contrassenso afirmar que o Direito Ro-


mano desapareceu da cultura jurídica no final da Alta Idade Média. Isso
porque, por mais que não existisse seu conhecimento direto por parte

41 Cf. HESPANHA, Cultura Jurídica Europeia, cit., p. 121-3.


42 Ibidem, p. 123.
33
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

dessa cultura, ele estava presente como parte formadora dela; não de
forma teorizada, mas pelo menos como elemento histórico determina-
dor da consciência ética subjacente às instituições medievais. É com a
preocupação de entender os modos vulgares – nesse sentido, não teori-
zados – de sua permanência, bem como a medida de sua influência no
Direito desse período, que vamos agora expor muito sucintamente os
principais caminhos pelos quais embrenhou o caudaloso substrato jurí-
dico romano.

2.1.2. Sobrevivências Locais do Direito Romano: Direito Romano


Vulgar

O Direito Romano formou-se numa longa jornada de vários séculos de


depuração e desenvolvimento daquela estrutura originária da então cidade
romana: o ius civile, aprimoramento e sofisticação que se deu, sobretudo,
pelo saber jurídico produzido em virtude do ius praetorium ou honorarium e
continuado pelo ius prudentium. Mas a crise do Império Romano, a partir
do séc. III d.C., e a ulterior derrocada do Império do Ocidente em 476,
põe em xeque esse saber jurídico, cujo rigor exigia uma grande formação
linguística e cultural e que era, pelo seu casuísmo, inicialmente avesso a um
tratamento massivo do Direito.43

Segundo Hespanha: “num Império vasto, mal equipado em técnicos de


Direito e longe dos pretores urbanos de Roma, o que progressivamen-
te foi ganhando mais importância foram as leis imperiais”, nesse direito
“administratizado”, o saber jurídico formado numa longa tradição passou
à uma técnica mais ou menos mecânica de execução de ordens políticas.
Decadente, o Direito Romano ganha em generalidade e atomismo, o que
perde em apuramento intelectual. Assim, o direito torna-se uma atividade
simplificada, “acessível mesmo aos leigos”. Então,

“O saber jurídico perde o rigor e a profundidade de análise. O direito vul-


gariza-se. Essa vulgarização é mais pronunciada nas províncias, em virtude
das corruptelas provocadas pelos direitos locais. Aí, forma-se um Direito
Romano vulgar (Vulgarrecht), que está para o Direito Romano Clássico
como as línguas novilatinas ou românicas estão para o latim”.44

Não é muito esforço perceber que a vulgarização desse direito, que gerou

43 Ibidem, p. 124-5.
44 Ibidem, p. 126.
34
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

certa desvinculação institucional e acadêmica, possibilitou sua perpetuação


nas práticas das culturas que restaram após a queda do Império. Em certas
tribos germânicas, isso se dá de modo um pouco mais organizado. É o que
veremos. Antes disso, cabe colacionar a síntese de Caenegem, que, ao falar
das mudanças na cultura jurídica com a queda do Império, afirma:

“A velha ordem jurídica romana não desaparecera inteiramen-


te, mas, com o declínio das instituições da antiguidade, perdera
sua posição de supremacia. Nesse período, o Direito Romano
tornou-se cada vez mais distante de seu modelo clássico, devido ao
desaparecimento dos principais componentes da antiga cultura ju-
rídica, ou seja: a tradição das grandes escolas de Direito, o saber
dos juristas, a legislação imperial e a jurisprudência. [...] A essas
circunstâncias devemos acrescentar o empobrecimento intelectual
do mundo Ocidental. O Direito Romano estava reduzido a um
direito consuetudinário provinciano, o ‘Direito Romano vulgar’,
que prevalecia na Itália e no sul da França”.45

2.1.3. Costumes Germânicos e sobrevivência implícita do Direito


Romano.

Importa ressaltar que, ao lado do Direito Romano Vulgar – presente em regi-


ões onde o Direito do Império foi mais fortemente aplicado e que representa
uma simplificação da forma sofisticada do Direito Romano, com manutenção
de vários aspectos de conteúdo normativo –, assinala-se a presença de um Di-
reito Germânico, também ele, por vezes, romanizado. A influência do Direito
Romano na vivência jurídica dos povos germânicos se deu com intensidades
e de modos diferentes em cada lugar e contexto.

Nas regiões em que o Direito do Lácio fora aplicado de modo menos


aglutinador, em razão do princípio da personalidade46, sobretudo junto aos
povos bárbaros dominados pelos romanos, à medida que perdurava essa
presença, o Direito Romano ia sendo assimilado muito mais no seu aspecto
de forma do que no conteúdo. Ou seja, aos costumes e conteúdos norma-
tivos dos bárbaros iam sendo dadas formas novas, assimiladas da estrutura

45 CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 18.


46 “Os reinos germânicos do continente – francos, ostrogodos, visigodos e lombardos
– uniam povos de origem romana e germânica. Os romani permaneceram sujeitos
ao Direito Romano Vulgar, os germanos às leis de suas próprias tribus. Este é o
princípio da personalidade”. Ibidem, p. 20.
35
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

jurisprudencial romana. Os bárbaros, que em razão do próprio modus ope-


randi do Império permaneciam sujeitos às suas próprias leis nas relações
entre si47, passavam a adotar também um fazer jurídico romanizado quanto
à forma – sobretudo no que tange à relação entre eles e os romanos – pau-
tada no ius gentium e na atuação do pretor peregrino e daqueles magistrados
que o sucederam no desenvolvimento da jurisdição romana48. Mesmo que
de forma moderada, aos poucos, os diferentes povos germânicos foram,
cada um ao seu modo, assimilando algo da forma jurídica romana.

Em povos mais romanizados, como os Visigodos, essa assimilação formal


do Direito Imperial (mesmo que seja a forma decadente do Dominato49)
produziu um verdadeiro repositório de vivências romanistas, nesse caso,
traduzidas na Lex Romana Wisigothorum (506 d.C.)50. Exemplos mais rústi-
cos desse fenômeno são a Lex Salica (507-511 d. C.), dos francos, ou mes-
mo a compilação dos lombardos materializada no Edito do Rei Rothari (643
d.C), realizada em território italiano invadido por essa tribo51.

47 HESPANHA, Cultura Jurídica Europeia, cit., p. 140.


48 Sobre o papel do Pretor Peregrino na evolução do ius gentium e na relação
comparativista entre o Direito Romano e o ‘direito’ dos povos dominados, tivemos a
oportunidade de desenvolver monografia em sede de mestrado, texto este intitulado
O Comparativismo nas origens do Direito: uma investigação com base na experiência jurídica
romana. Para a elaboração de tal estudo, utilizamos, notadamente, as obras de João
Batista Silva e de Francesco Martino. Cf. SILVA, João Batista. Processo Romano:
instrumento de eficácia jurisdicional. Belo Horizonte: Líder, 2004; MARTINO,
Francesco. La Giurisdizione nel Diritto Romano. Padova: CEDAM, 1937.
49 Sobre esse período, sua decadência, e a relação dele com as práticas costumeiras
dos povos dominados, recomendamos o acurado artigo de Márcio Augusto
Diniz. Cf. DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Interpretação no Direito
Romano. Disponível em: <http://www.pgm.fortaleza.ce.gov.br/revistaPGM/
vol06/11DireitoRomano.htm>; acesso em: fev. 2004.
50 Voltaremos a este ponto quando da abordagem da presença do Direito Romano
na cultura lusitana, importante reflexão para a consecução dos objetivos deste
estudo. Por ora, cabe destacar o comentário de Moreira Alves a respeito dessa
legislação dos visigodos: “O Código Visigótico – em sua forma conhecida como
vulgata –, era, na legislação bárbara, o que mais influência recebera do Direito
Romano, mas influência românica pré-justinianeia, por ser oriunda do Direito
Romano pós-clássico anterior a Justiniano”. MOREIRA ALVES, José Carlos.
Tradição Metodológica no Ensino do Direito Romano no Brasil. In: Fragmenta –
Revista da Faculdade de Direito Tiradentes. Edição Especial. V. 3. Aracajú, p. 29, 1987.
51 CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 20.
36
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

2.1.4 Sobrevivência do Direito Romano nas estruturas institucionais


unificadoras da Europa Medieval: a Igreja e os Impérios

As culturas política, moral e jurídica romana possuíram, na Europa da Alta


Idade Média, uma herdeira direta: a Igreja Católica Romana. É que, para
Cabral de Moncada:

“O império cai em 476, e o único poder que fica de pé no meio do


caos e da confusão gerais é a Igreja então já transformada numa
poderosa organização política, social e religiosa que se dá como a
herdeira e continuadora da ideia da unidade romana”.52

Para o jusfilósofo lusitano, ao lado da Igreja, outra instituição política, a


ela afeta, logo assumiu a tarefa de preencher o espaço unificador deixado
pela queda de Roma:

“Com Carlos Magno, a Igreja e o Estado abraçam-se no


sonho comum de uma dominação universal. Os dois poderes co-
laborantes, ao serviço um do outro, parecem alcançar enfim a
realização do ideal augustineano na Civitas Dei, unidos dentro
do mesmo corpus mysticum da cristandade. A união do elemento
germânico e do elemento cristão, ambos ao serviço da ideia univer-
sal romana, parecia, com efeito, prestes a realizar-se nos começos
do século IX. A nova República universal cristã seria governada
no Céu por Deus e na Terra pelos seus representantes carismá-
ticos: o Papa e o Imperador. Não é outro o sentido da coroação
do imperador franco, ao receber das mãos do Pontífice Leão II
a coroa imperial no ano 800 da nossa era”.53

Há, segundo Hespanha, uma constelação de fatores que produziram uma


“tendência para a unidade dos vários direitos europeus” nos séculos XIV-
XVII. Todas elas têm em sua base, de um modo ou de outro, a influência
e a contribuição do Direito Romano. Mas, muito antes desse momento de
consolidação do ius comune, dá-se, na Alta Idade Média, uma sobrevivência
do romanismo em instituições que, pelo seu caráter de universalidade, re-
presentam importantes fatores de tradição das estruturas jurídicas roma-
nas à Europa moderna. Segundo Hespanha:

52 MONCADA, Filosofia do Direito e do Estado, cit., p. 70.


53 Ibidem, p. 71.
37
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

“Um deles é a reconstituição do Império (primeiro, do Império


de Carlos Magno, século IX, dando origem à classificação
de Carlos Magno como senhor universal, ‘regnator in orbe’;
depois, do Sacro-Império Romano Germânico, século X), unida-
de política inspirada, quer pela memória do ‘império universal’
que era o Império Romano, de que os novos imperadores francos
e germânicos seriam os sucessores, quer pela existência, no plano
religioso, de uma Igreja ecumênica que reunia toda a cristandade,
quer o Império, quer a Igreja, possuíam ordenamentos jurídicos
unificados, embora existissem paralelamente. Daí que a tríade,
‘uma religião, um império, um direito’ (una religio, unum im-
perium, unum ius) parecesse apontar para algo de natural na
organização política do gênero humano, uma certa comunidade
de governo (republica christiana) e uma certa unidade do direito
(ius comune)”.54

A observação de Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz a esse respeito


é também contundente e vai à raiz da questão, na passagem do Império
Romano para o Medievo. Vejamos:

“Na época em que Gelásio assumiu o Sumo Pontificiado


(462), o Império Romano do Ocidente havia tombado nas mãos
de Odoacro. No entanto, as instituições eclesiásticas assumindo
a forma das instituições imperiais romanas, com elas conviviam
lado a lado e assumiram a responsabilidade de, no Ocidente,
ordenar a conduta da sociedade secular, especialmente as áreas
em que os reis pagãos não alcançavam. Nessas circunstâncias
parece óbvia a conclusão de que Gelásio, então líder de facto do
Ocidente, convidava Atanásio, imperador de iure, para um sis-
tema de colaboração: se o imperador oriental tivesse a pretensão
de exercer a sua autoridade política no Ocidente, deveria aceitar
a auctoritas pontifícia. Enunciava o Sumo Pontífice, utilizando-
se de termos herdados do direito público romano clássico, a pre-
tensão papal de independência jurisdicional para com o sistema
cesaropapista, sem afastar, ao mesmo tempo, a necessidade de
colaboração”.55

54 HESPANHA, Cultura Jurídica Europeia, cit., p. 121-122.


55 DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. O Princípio do Poder no Direito Público
Romano e sua efetivação no Direito Público Moderno. Belo Hozizonte: Universidade
Federal de Minas Gerais: 2004. [Tese de Doutorado], p, 149.
38
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

2.1.4.1 Tentativas seculares de restauração do Império: Carlos Mag-


no e o Sacro-Império

Para Caenegem, o esforço de Carlos Magno na busca por unificação


da Europa somente pode ser mensurado a partir dos “esforços legisla-
tivos no séc. VIII e especialmente no séc. IX. A restauração do Impé-
rio Romano do Ocidente tornou possível a legislação (capitulares)”56.
Ressalta o autor que as capitulares tem seu momento máximo durante a
dinastia carolíngia, sobretudo no reinado de Carlos Magno, e constitu-
íam um fator de unificação jurídica, somente possível por sua remissão
a uma tradição romana, muitas vezes advinda da relação do poder impe-
rial com a Igreja.57

Sobre essa aproximação da Igreja – marcadamente romanística em sua


vivência normativa e política – e do poder temporal, Vasconcelos Diniz
ressalta ter sido uma estratégia da própria instituição papal, legatária das
práticas imperiais romanas. Tratando o Sumo Pontífice Gregório Mag-
no, ele assinala que:

“Gregório Magno (590-604) fortaleceu, no ocidente, a Igreja


Católica, mediante um processo de aproximação com os reis ger-
mânicos e incremento da missão evangelizadora. [...] Gregório
Magno era um cidadão tipicamente romano. Respeita a insti-
tuição imperial. Nem por isso deixa de seguir, em primeiro lugar,
os princípios da Igreja Católica e da doutrina cristã”.58

Sobre o império Carolígio, Vasconcelos Diniz sublinha que:

“A aliança entre o papado e a nobreza carolíngia à época do


império cristão, independente e autônomo frente aos gregos e, à
diferença do que se passou em Bizâncio, a criação – e respectiva
nomeação – do novo imperador romano será diretamente con-
sentida e formalizada pelo Sumo Pontífice. [...] o simbolismo
da coroação na noite de Natal transmitiu ao mundo cristão a
mensagem de que o seu governo deveria ser inspirado por Roma
e executado pelo Imperador, que o tinha como consequência o re-

56 CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 22.


57 Ibidem, p. 23-4.
58 DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. O Princípio do Poder no Direito Público
Romano e sua efetivação no Direito Público Moderno, cit., p, 151.
39
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

conhecimento do primado a Apostolica Sedes. O domínio militar


do recém-nomeado imperador, secundado pela doutrina eclesiásti-
ca, daria origem a um império no qual se pretendeu reviver o mito
da Roma domina mundi. [...] O conceito de ‘Europa’ assumirá
um novo sentido a partir do Império Carolíngio, o qual expressa
e materializa, ao mesmo tempo, a consciência da continuidade
temporal e espiritual do Império Romano na novidade que repre-
sentava o primeiro Império Cristão”.59

Vasconcelos Diniz continua sua exposição chamando atenção para o fato


de que, assim como o Império Carolíngio, o sacro Império Romano-Ger-
mânico também representa um esforço restaurador da mesma natureza.60

Tais instituições políticas representaram, dessa forma, um importante


elemento na posterior assimilação e impulsionamento do próprio direito
justinianeu, posto que guardaram a memória do Direito Romano como
instrumento racional de realização da justiça no Império. Vejamos as con-
siderações de Hespanha a respeito:

“Com a restauração do Império do Ocidente (Carlos Magno,


800 d.C.,[Império Carolíngio]; Otão I, 962 d. C. [sacro im-
pério romano-germânico]). Surge a ideia de que o antigo Império
Romano revivera, sendo os seus atributos políticos, nomeada-
mente a universalidade do seu poder político, transferidos para
os novos imperadores (trasnlatio imperii). Para mais, o Império
aparecia como uma criação providencial (‘qui est a Deo’, que
deriva de Deus, dirá o jurista Baldo de Ubaldis), destinada
a ser o suporte político (o gládio temporal) da Igreja, correspon-
dendo a universalidade do Império à catolicidade da Igreja. Os
resíduos do Direito Romano então conhecidos e, posteriormente,
os seus principais livros redescobertos no norte de Itália no sé-

59 Ibidem, p. 154-5.
60 Sobre o Sacro Império, indicamos também a interessante passagem da seguinte
monografia de conclusão de curso orientada por José Luiz Borges Horta:
Cf. PEREIRA, Bruno Mendonça. Cujus Regio, Ejus Religio?. Belo Horizonte:
Universidade Federal de Minas Gerais, 2005 [Monografia de Bacharelado em
Direito] p. 2-6. Ver também o capítulo denominado “O Sacro Império e o
Sistema das Fontes do Dirieto”[tradução nossa], na obra Medio Evo del Diritto;
Cf. CALASSO, Francesco. Medio Evo del Diritto. Vol.I. Milano: Giuffrè – Editore,
1954, p.139-60.
40
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

culo XII, são então tidos como direito do Império, de vocação


universal”.61

2.1.4.2 A Igreja Católica enquanto sucessora da tradição romana

O Direito Eclesiástico e o Direito Canônico62 representam o ponto central


de preservação da tradição política romana até a recepção erudita possibi-
litada pelo corpus iuris. Comentando o fato de a Igreja Católica ter ocupado
o lugar do império Romano no que tange ao domínio cultural e institucio-
nal, ressalta Hespanha que:

“Na verdade, o Direito Canônico representava não apenas o di-


reito da Igreja e das coisas sagradas, mas ainda um direito mais
recente do que o Direito Romano, uma espécie de Direito Roma-
no reformado”.63

O Direito Canônico pode ser considerado o principal elemento de con-


tinuidade entre os períodos pré e pós-recepção erudita do Direito Justi-
nianeu. Certo é que ele foi incrementado de modo consistente pela redes-
coberta dos textos justinianeus, porém seu desenvolvimento já se dava
antes desse fato e foi importante para manter viva a memória do Direito
Romano como o grande monumento de saber jurídico do Ocidente. Em
sua dissertação de mestrado, Marcelo Maciel Ramos, com o apoio de
Franz Wieacker, faz a seguinte observação:

“Wieacker chama atenção para o fato de que a canonística,


com sua ordenação sistemática das fontes religiosas e seu método

61 HESPANHA, Cultura Jurídica Europeia, cit., p. 141.


62 Para uma leitura acerca das manifestações normativas da Igreja até o séc XII, ver
o capítulo “A Igreja como Fonte de Normas Jurídicas” [tradução nossa] da obra
de Calasso, Medio Evo del Diritto. Cf. CALASSO, Francesco. Medio Evo del Diritto.
Vol. I.; Milano: Giuffrè – Editore, 1954, p. 161-80.
63 HESPANHA, Cultura Jurídica Europeia, cit., p. 152. Em outra obra, o autor
apresenta a seguinte reflexão: “Nesse processo de vulgarização da tradição
jurídica letrada, também não se pode desconhecer a importância do papel da
Igreja, cuja disciplina era largamente baseada num direito que pertencia a essa
tradição. E, como acontecia com a própria tradição teológica, quer a liturgia, quer
a parenética, divulgavam o conteúdo do direito, modelando o nível da transmissão
às características do auditório”. Cf. HESPANHA, Antônio Manuel. O Direito dos
Letrados no Império Português. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 126-7.
41
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

de derivar, a partir delas, princípios jurídicos gerais, exerceu uma


forte influência sobre o trabalho dos glosadores. Apesar das duas
escolas terem se distinguido em função de seus diferentes objetos,
ius civile e ius canonicum, seus desenvolvimentos metodológicos
implicaram-se mutuamente. Segundo o autor, esse intercâmbio
favoreceu um mútuo princípio da subsidiaridade, ‘os juízos ecle-
siásticos aplicavam, de forma subsidiária, o Direito Romano’,
enquanto ‘a jurisdição profana aplicava, do mesmo modo, os
princípios gerais de Direito Canônico’”.64

Tal leitura é atestada por Caenegem. Vejamos:

“Há vários aspectos na influência do Direito Romano sobre


a legislação canonística. O exemplo do Direito Romano per-
mitiu ao Direito Canônico estabelecer-se como uma disciplina
independente, distinta, ainda que não separada da teologia e
da ética. Esse ponto merece ser ressaltado, já que outras reli-
giões não distinguem entre regras de conduta e tabus religiosos,
de um lado, e regras de conduta de direito, de outro lado. O
estudo do Direito Romano em Bolonha contribuiu para um
estudo canonístico independente, que logo se distinguiu com
suas próprias faculdades, escolas, obras clássicas e comentários
autorizados”.65

Por outro lado,

“A influência do Direito Canônico sobre o Direito Secular foi


considerável; de fato a história do direito na Europa é incon-
cebível sem a contribuição do Direito Canônico. A estrutura
institucional da Igreja pós-gregoriana, como sua hierarquia,
sua centralização e sua burocracia, serviu de modelo para as
instituições dos reinos e principados da Idade Média tardia em
diante”.66

64 RAMOS, Marcelo Maciel. Ética Grega e Cristianismo na Cultura Jurídica do Ocidente.


Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Ge-
rais, 2007, p. 98 (Dissertação, Mestrado em Direito).
65 CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 67.
66 Ibidem, p. 68-9.
42
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

2.2 Vivência do Direito Romano: breve panorama, da sua recepção


erudita ao Estado Constitucional

2.2.1 A recepção do Direito Romano Justinianeu

A partir do ano 1100 d.C., a descoberta dos textos das compiliações orde-
nadas por Justiniano, produziu um movimento de erudição e sofisticação
do Direito que, num crescendo, vai desaguar na construção do Estado
Constitucional burguês. Esse fenômeno, que pode ser chamado em sen-
tido amplo de Recepção, se deu – o que foi comum a todos os grandes
eventos desse período da história europeia – em momentos diferentes e de
formas diferentes em cada região do Velho Continente, anota Caenegem,
no que é acompanhado por Hespanha67.

67 As obras desses dois autores, já amplamente citadas, constituem a base da


exposição deste capítulo. Um dos motivos dessa escolha é justamente a densidade
e diversidade com que abordam a questão da recepção do Direito Romano,
respeitando as singularidades dos diferentes ‘lugares’ históricos (no jargão
de Hespanha) onde ocorreram o fenômeno da recepção. Neste aspecto, ver:
CAENEGEM, Uma História do Direito Privado, cit., passim, pincipalmente p. 70-3;
bem como: HESPANHA, Cultura Jurídica Europeia, cit., passim, principalmente
p. 141-8. Em resumo: Na Itália e no sul da França, já no séc.XIII, observamos
a adoção do Direito Erudito Romano (que penetrou mais facilmente devido
à presença do Direito Romano Vulgar) e os direito locais como variantes de
exceção a este, o que se deu pela influência da doutrina, sem intervenção oficial.
Na Espanha, observa-se uma tradição mais arraigada dos fueros locais, porém
estes amplamente influenciados na sua composição pelo Direito Visigótico (de
forte influência romana) e pelo ius commune de base romanista. Em Portugal, essa
característica ibérica foi levada às últimas consequências com as ordenações,
que não só eram inspiradas na tradição romana, como também usavam tanto
o Direito Romano como o Canônico como fonte subsidiária e interpretativa.
Já no norte da França, temos a preservação do Direito Consuetudinário (não
escrito), mas que vai sofrendo um longo e contínuo processo de formalização
e erutidização até a Revolução. Tal como no norte da França, também no sul dos
Países Baixos, os costumes foram sendo compilados e o ius commune funcionava,
cada vez mais, como elemento suplementar desse direito. Na Alemanha e na
Escócia (e em outras regiões do Norte) o Direito Romano foi recepcionado e
oficialmente e adotado como direito nacional por ato de vontade de Estado, por
volta de 1500 d. C.,. No norte dos Países Baixos, vigorava o Direito Romano-
Holandês, que era uma síntese doutrinária do Direito Romano e dos costumes
locais, prevalecendo o primeiro. Já na Inglaterra, apesar da relativa independência
da commom law, o Direito Romano era aplicado em outras cortes e tribunais, que
43
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

A grande nota unificadora desses processos pode ser identificada com o


diálogo que se formou entre o Direito Erudito (ou ius comune), formado
pelo Direito Romano re-estudado e reorganizado pelas universidades de
leis europeias (podemos também chamá-lo de Direito Romano Medieval), e o
Direito Germânico, ou Direito Consuetudinário, ou, ainda, ius propium, de
cada subcultura existente na Europa. Esse diálogo se deu de modo dife-
rente para o povo da Europa. O equilíbrio entre Direito Romano e Direto
Germânico se deu em intensidades diferentes. Desde a assimilação radical
do Direito Romano, como se deu na Alemanha, até a priorização quase
excludente dos costumes germânicos locais, no exemplo da Inglaterra68.
Porém, essa relação constante com o Direito Romano não deixou de acon-
tecer em cada um dos povos europeus e foi fundamental para o desenvol-
vimento e sofisticação da cultura jurídica europeia.

Se em cada região da Europa a presença do Direito Romano para fazer


evoluir o direito consuetudinário antigo se deu de modo diferente, este
processo possui uma importante chave de compreensão. Ela consiste no
entendimento acerca da relação dialética entre o saber jurídico em geral
e o próprio estudo dos textos romanos. No campo do Direito, a relação
do desenvolvimento intelectual dos juristas com o Direito Romano era de
dupla implicação: graças à descoberta dos textos romanos, o saber jurídico

não os da commom law, como, e.g., na Corte de Equidade, jurisprudência geralmente


legada a um bispo, que naturalmente aplicava o processo romano-canônico, nas
Court of Admiralty, onde os juízes aplicavam o puro ius commune, e nos tribunais
eclesiásticos, que aplicavam o processo canônico, mesmo depois da ruptura
com Roma.
68 Com relação à presença de elementos de Direito Romano na cultura jurídica
inglesa, somos partidários do grupo daqueles estudiosos que veem, no Direito
Inglês, considerável influência do Direito Romano. Existem interessantes e
consistentes estudos a esse respeito. Para uma leitura acerca dessa questão,
recomendamos os seguintes textos: TAVARES, Ana Lúcia de Lyra. Paralelismo
na Construção do Direito Romano Clássico e do Direito Inglês. In: Revista
Brasileira de Direito Comparado. n.16, 1. sem. Rio de Janeiro: Instituto de
Direito comparado Luso-brasileiro, p.66-87, 1999; bem como: AGOSTINI,
Eric. As Migrações de Sistemas Jurídicos. In:Direito Comparado. Trad.
Fernando Couto. Porto: Res Jurídica, [s.d.]. A esse respeito também opinam
favoravelmente Hespanha e Caenegem, inclusive dando relevo ao trabalho do
jurista medieval Bracton [1268] e do doutor de Oxford, W. Blackstone, já
no séc. XVIII, cf. HESPANHA, Cultura Jurídica Europeia, cit., p. 262-9; e
CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 70-3.
44
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

foi fomentado e entrou em contato com os desenvolvimentos filosóficos


da época; graças ao desenvolvimento intelectual, os textos romanos pu-
deram ser melhor conhecidos; ao mesmo tempo, serviram como mola
propulsora do desenvolvimento do próprio direito consuetudinário e este,
como instrumento de redefinição do papel do Direito Romano, até culmi-
nar no processo de codificação do Direito.

2.2.1.1 Glosadores e Comentadores

A descoberta da Littera Boniensis e da Littera Pisana – assim chamadas as ver-


sões do texto promulgado por Justiniano, encontradas em Bolonha e Pisa,
respectivamente69 - possibilitou um acesso mais seguro aos textos romanos,
principalmente no que tange ao Digesto. A tradição romanista, mantida na
região itálica por meio de seu Direito Romano Vulgar, possibilitou o apare-
cer do interesse por seu estudo erudito, fazendo desabrochar no séc. XI a
Escola dos Glosadores. Nesse sentido, cabe ressaltar, com Caenegem, que:

“o Codex de Justiniano não desaparecera completamente da


Itália na Alta Idade Média, mas era conhecido apenas numa
versão impiedosamente condensada. Tal como aconteceu com o
Digesto, os textos integrais somente reapareceram no século XI.
Já o texto integral dos Institutes, não se perdera na Alta Ida-
de Média, pelo menos na Itália. Além do mais, os glosadores
conseguiram estudar as Novelas na compilação conhecida como
Authenticum”.70

Assinala Caenegem que os glosadores tiveram que, daí, criar métodos e


princípios para compreender e assimilar o Corpus Iuris – nomenclatura
dada por essa Escola ao conjunto à compilações de Justiniano – e fize-
ram da elucidação dos textos romanos seu principal objetivo. Apreender
o significado exato do texto de Justiniano: era esse o objetivo perseguido,
palavra por palavra, ou seja, glosa por glosa.

O empreendimento iniciado por Irineu dispersou-se pela Itália e depois


pela França, ganhando paulatino reforço da escolástica, culminando na
Magna Glosa, de Arcúsio, que reuniu a elaboração doutrinal da Escola.
Para Hespanha, as características marcantes do método bolonhês são a
fidelidade ao texto (advinda de uma origem quase sagrada que os mesmos

69 Cf. CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 51.


70 Loc. cit.
45
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

atribuíam aos textos justinianeus, sendo o mesmo, no campo do Direito,


considerado a ratio scripta) e o consequente caráter analítico.71

Cabe aos glosadores o mérito de terem recriado, na Europa, uma linguagem


técnica sobre o Direito. Para Franz Wieacker, isto foi possível justamente
porque a intenção dos trabalhos dos glosadores não era prática. A principal
intenção era teórico-dogmática, ou seja, demonstrar a racionalidade dos ve-
neráveis textos romanos, e não de torná-los diretamente aplicáveis na vida
quotidiana. Os glosadores não discutiam a situação jurídica de seu tempo,
discutiam a interpretação de conceitos.72
Mesmo assim a ordenação dada aos textos romanos e à fortaleza inte-
lectual construída ao seu redor, foram suficientes para produzir larga
influência dessa escola na vida jurídica de seu tempo, e a autoridade do
Corpus Iuris possibilitou a sua aplicação direta ou mesmo indireta (quan-
do este era usado como base, tanto para a organização dos costumes de
um lugar, como para a elaboração de ordenações régias). E é nesse con-
texto que se dá o despertar da cultura jurídica Europeia para a utilidade
prática do Direito Romano Justinianeu, surgindo, então, a Escola dos
Comentadores ou Conciliadores.
Em certo sentido, continuando a obra dos Glosadores, os Comentadores, vi-
sando possibilitar a aplicabilidade do Corpus Iuris, promoveram a interação
deste com os costumes e as ordenações, numa tentativa de sistematizar tais
ambiências normativas, sempre adotando o Direito Romano como critério
maior de definição dos conteúdos jurídicos. A sofisticação das glosas romanas
possibilitou um desenvolvimento dos direitos locais e da vida jurídico-econô-
mica à sua volta. O maior intercâmbio que então se observa na Europa (séc.
XIV), faz surgir a necessidade de integração dos iura propria de cada cidade ao

71 “A glosa – explicação breve de um passo do Corpus Iuris obscuro ou que


suscitasse dificuldades – era, portanto, o modelo básico do trabalho desta escola.
No entanto, ela cultivou uma gama muito variada de tipos literários: desde a
simples glosa interpretativa ou remissiva, até o curto tratado sintetizando um
título ou um instituto (summa), passando pela formulação de regras doutrinais
(brocarda, regulae), pela discussão de questões jurídicas controversas (dissansiones,
doctorum ou distutate), pela listagem dos argumentos utilizáveis nas discussões
jurídicas (argumenta), pela análise de casos práticos (casus). Em alguns desses
tipos literários, as preocupações de síntese e de sistematização já são sensíveis”.
Cf. HESPANHA, Cultura Jurídica Europeia, cit., p. 199.
72 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Lisboa: Almeidina,
1980, p. 64-7.
46
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

ius commune. O Direito Romano era a base sobre a qual seria possível dar a mí-
nima unidade necessária a esses direitos. Essa foi a tarefa dos Comentadores,
que acabaram por ser o grande fio condutor do Direito rumo à modernidade.73
O fundador da Escola foi Cino de Pistóia, mas seu representante mais
influente foi, sem dúvida, seu discípulo Bártolo [1314-1357]. Na síntese
de Hespanha:

“São estes juristas que, debruçando-se pela primeira vez sobre


todo o corpo do Direito (Direito Romano, Direito Canônico,
Direito Feudal, estatutos das cidades) e orientados por finalida-
des marcadamente práticas, vão procurar unificá-lo e adaptá-lo
às necessidades normativas dos fins da Idade Média. Na raiz da
nova atitude intelectual dos Comentadores, nesta equiparação de
direito vivido ao direito contido nas fontes da tradição, está uma
nova atitude perante a tensão entre verdade e realidade, que po-
demos relacionar com o advento da escolástica tomista”.74

Mais a frente, acrescenta o autor:

“Para os Comentadores, como para os Glosadores, a ordem legal


justinianeia representava um dado quase indiscutível, cujo valor
autoritário era o reflexo da autoridade jurídica atribuída ao Cor-
pus Iuris Civilis na sua totalidade. Portanto, toda a tarefa de
actualização e sistematização do direito terá de ser realizada no
interior de uma ordem prefixada autoritariamente, aparecendo
formalmente como uma tarefa de mera interpretação. É ao servi-
ço dessa interpretação que será colocada a nova lógica da escolás-
tica. A argumentação dos juristas, o modo de estes organizarem
o seu discurso, adquire agora um tom muito particular. Surgem
conceitos, modelos de raciocínio, temas intelectuais, que só por eles
são usados. Em suma, é um novo domínio do saber que se cons-
titui – a doutrina ou dogmática jurídica, cujos cabouqueiros são
estes juristas dos séculos XIII e XIV”.75

Com os Comentadores se dá o assentamento de uma nova classe que pas-


sou a ser responsável pela resolução das disputas sociais e pela ordenação

73 Cf. HESPANHA, Cultura Jurídica Europeia, cit., p.209 et. seq.


74 Ibidem, p.211.
75 Ibidem, p.227-8
47
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

normativa da sociedade, os juristas. É a partir dessa escola que poderemos


observar o posterior renascimento da Filosofia do Direito, enquanto pen-
sar sobre a racionalidade da justiça elaborada por juristas.

O Direito Romano, feito ius commune pela obra integradora dos Comenta-
dores, possibilitou o desenvolvimento do pensamento jurídico erudito para
além de suas fronteiras. Por meio dele, os juristas de cada região que iam es-
tudar nos centros de ensino jurídico retornavam intelectualmente aptos a de-
senvolver o ius proprium de seu povo. O movimento de valorização do direito
próprio decorre, portanto, do estudo do Direito Romano e da capacitação
que este possibilitou. No que tange à presença do Direito Romano como
parte do Direito Euporeu nesse período de formação via recepção erudita:

“Recapitulando, lembremos que podem se individualizar três fa-


ses no desenvolvimento do regime das fontes de Direito na Euro-
pa medieval e moderna. A primeira corresponde aos séculos XII
e XIII e é caracterizada pelo predomínio do Direito Romano (e
Canônico) sobre todas as outras fontes concorrentes cuja validade
só é admitida desde que não estejam em contraste com a norma
de Direito Comum. A segunda fase estende-se do século XIV
até ao fim do século XVII, nela se notando a afirmação dos iura
propria como fonte primária dos ordenamentos particulares, cujo
valor se equilibra com o direito comum. A terceira, por fim, mar-
ca a independência completa do direito dos reinos que se torna a
única fonte do direito e relega o Direito Comum para a posição
de Direito Subsidiário”.76

Ressalta Hespanha, porém, que o Direito Romano nem por isso deixou de
ser fundamental para a formação dos direitos nacionais durante todo esse
longo processo, mesmo nas duas últimas fases citadas. Isso porque:

“Note-se, desde já, que o Direito Comum é um fenômeno mais de


natureza doutrinal que legislativa. Isto é notório quando, a partir
da Baixa Idade Média (séculos XIII e ss.) se cria uma espécie de
costume doutrinal (opinio iuris doctorum) que passa a ser decisivo.
Por exemplo, apesar de as Ordenações conferirem ao Direito Ro-
mano um lugar apenas subsidiário (Ord. Fil, III, 64) na prática
ele era o Direito Principal, sendo mesmo aplicado contra o preceito
expresso do Direito Local. Como o Direito Romano constituía

76 Ibidem, p. 245.
48
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

a base da formação dos juristas e juízes de então e era o Direito


Veiculado pela doutrina vigente e aceite nos tribunais, forma-se
um costume doutrinal e judicial contra legem, mas dotado de ver-
dadeira opinio iuris (i.e. sentido como obrigatório)”.77

Essa submissão relativa dos princípios da doutrina romano-civilística nes-


ses domínios particulares é fruto de um movimento mais amplo: o de sua
adequação aos novos direitos nacionais (e à nacionalização em si), cujo pro-
cesso de construção e codificação inicia a sua marcha a partir do séc. XV.

2.2.1.2 Humanistas; Usus Modernus e Bartolistas

Essas mudanças na realidade normativa europeia – elaboração formal do


ius proprium – certamente influenciaram o modo de interação com Direito
Romano. Novas posturas e escolas aparecem:

“O que se compreende. Tendo ordenado toda a sua tarefa nos qua-


dros de uma interpretação dos textos romanísticos, considerados
insubstituíveis, o edifício do saber jurídico dos comentadores não po-
dia deixar de ruir no momento em que os alicerces romano-justinia-
neus sobre os quais foram construído fossem abalados. Todo aquele
esforço de sutil interpretação dos textos necessários à modernização
do Direito Romano deixava de ter sentido em relação às disposi-
ções, elas mesmas já modernas, dos novos direitos próprios”.78

Para Hespanha, observa-se uma tríplice orientação da doutrina frente a

77 Ibidem, p. 123. Em sua obra sobre o Direito Erudito na Portugal Imperial, o


mesmo autor se expressa assim a esse respeito: “Outra característica da tradição
jurídica europeia é o seu caráter autorreferencial. Assim, as razões de decidir
(rationes decidendi) ou são os textos da tradição (textos do Corpus iuris civilis, textos
do Corpus iuris canonici, glosas ou comentários sobre eles, outras obras doutrinais
neles baseados) ou uma sensibilidade jurídica deles induzida (aequitas, ratio iuris,
natura rerum). O próprio direito dos reinos ou das cidades (iura propria) apenas é
recebido nos termos estabelecidos pela tradição. Desde logo, o fundamento da
sua recepção é um texto do Digesto (D., I, 1,9); e, depois, todo o seu processamento
está sujeito à ratio do Direito Comum. Uma norma de Direito Próprio contrária
aos princípios do Direito Comum (contra tenorem iuris rationis) pode ser admitida,
mas será sempre considerada como excepcional e odiosa e, no momento de ser
interpretada e aplicada, será objeto de uma contínua usura que tenderá a tirar-
lhe progressivamente toda a eficácia”, cf. ibidem, p. 120.
78 Ibidem, p. 249.
49
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

esse novo momento. Uma delas encara o Direito Romano Justinianeu


com um interesse histórico-filológico, negando o seu caráter de direito vi-
gente e, concomitantemente, tentando libertá-lo das adaptações interpre-
tativas pelas quais passou em virtude da tarefa dos comentadores; tal foi
a diretriz seguida pelos Humanistas (ou Escola Culta), que pode ser sinteti-
zada na busca pela pureza clássica do Direito Romano79. A outra corren-
te, representada pela denominação Usus Modernus Pancectotum, promoveu,
nos países em que a tradição normativa era bastante peculiar e de certo
modo independente do direito comum, uma inserção dos seus conteú-
dos jurídicos no edifício construído pelos comentadores, utilizando os
seus quadros conceituais na medida do possível (em virtude da análise
de sua recepção real, na prática do Direito) e inserindo novos institutos
nesses quadros, ou seja, completando-os com as realidades normativas
locais e atuais80. Os humanistas predominaram principalmente na França
e Holanda, já o Usus Modernus, na Alemanha. A terceira via, própria das
Penínsulas Itálica e Ibérica e do sul da França, foi mardada pela tendên-
cia a uma ‘nacionalização’ do Direito Romano, principalmente no campo
da civilística, por meio da sua transposição – adaptada pelo trabalho dos
Comentadores – para o corpo legislativo pátrio, legando-se desde já à ju-
risprudência romanística a fonte subsidiária integradora do Direito, com
base nos mesmos métodos empregados pelos Comentadores, daí a de-
nominação dessa corrente como bartolismo tardio (uma referência ao mais
renomado dos comentadores), ou praxística.81

79 Destaca-se, para Hespanha, também a aproximação dessa escola com o


racionalismo, por meio do neoplatonismo renascentista, a sua procura pela depuração
filológica dos textos romanos, uma tentativa de reconstrução sistemática do
Direito, inspirada filosoficamente no idealismo platônico e uma consequente
aproximação a uma noção de Direito Natural de cunho racional, cf. ibidem, p. 255-8.
80 Destaca Hespanha que nas regiões da Europa em que o Direito Nacional não
era ainda suficientemente organizado, impossível era a penetração massiva do
humanismo. Porém, essa corrente contribuiu para abalar a vigência indiscutida
do Direito Romano, fazendo surgir o usus modernus pandectarum, pautado na
substituição da noção de recepção teórica pela noção de recepção prática do
Direito Romano, baseada nos seguintes princípios: recepção do Direito Romano,
norma por norma; comprovação histórica de sua recepção; possibilidade de
derrogação de princípios romanísticos por costumes nacionais; recepção do
direito nacional dentro do universo dogmático do Direito Romano; maior
adequação do ensino jurídico às realidades do Direito Nacional. Cf. ibidem, p.
259-60.
81 Ibidem, p. 250.
50
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

É importante frisar o papel do próprio Direito Romano nessas mudan-


ças, enquanto elemento de desenvolvimento da própria lógica interna do
sistema discursivo do Direito. A recepção possibilitou uma organização
técnica do saber jurídico, que sistematizado logicamente no seio dos con-
ceitos e institutos gerais, tornou viável que a dogmática do Ancien Régime
caminhasse por suas próprias pernas, a partir do apoio dado pela jurispru-
dência romana.
Caenegem chama atenção para uma infeliz consequência da atividade dos
humanistas: a tendência a considerar o Direito Romano uma relíquia aca-
dêmica82. Tal raciocínio se repetiu quando da codificação pós-revolucio-
nária e, depois, quando da substituição do Direito Professoral romanístico
alemão, pelo BGB, na inauguração do séc. XX, ressaltam outros autores.83
Apesar dessa problemática consequência, a verdade do movimento da Es-
cola Humanista, ou seja, aquilo que ele representa no todo do processo
histórico do desenvolvimento do Direito, consiste em ter ela sido a pri-
meira corrente de pensamento jurídico a tomar consciência do processo
de recepção do Direito Romano, dito de modo mais explícito, de ter sido a
primeira a distinguir historicamente o Direito Romano na sua vivência pe-
los próprios romanos e no uso que dele fizeram os juristas da Idade Média.
Os cultores do usus modernus pandectorum, mais tarde, perceberam a impor-
tância dessa diferenciação e deram origem ao movimento que culminou na
Escola Histórica e, em seguida, na Escola da Pandectística (ou Jurisprudência
dos Conceitos), alçando voos nunca realizados na seara da Ciência do Direito.
O principal expoente da Escola Humanista foi Jacques Cujas [1590]. Ele
foi o grande romanista da Europa até Mommsem, na opinião de Cae-
negem, que após destacar que essa escola deu sua contribuição sem
precedentes para a ampliação e aprofundamento do conhecimento do
direito antigo, ressalta que:
“Mesmo no séc. XIX, Mommsem podia partir das obras hu-
manistas publicadas três séculos antes. No entanto, em toda a
Europa os praticantes continuavam a aplicar o Direito Roma-
no na tradição bartolista, uma vez que os comentários, tratados
e consilia bartolistas forneciam soluções para problemas reais e
presentes. Mas, não se deve exagerar a oposição entre o mos galli-
cus [humanistas] e o mos italicus [comentadores, bartolistas].

82 CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 59.


83 Cf. MONCADA, A Atual Crise do Romanismo na Europa, op. cit.
51
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

Muitos juristas – juízes, advogados e professores – eram inspi-


rados pelas duas escolas. Ainda se baseavam na obra prática da
escola medieval italiana, mas tinham adquirido dos humanistas
uma concepção mais ampla do Direito, uma abordagem mais
filosófica e o gosto pelo desenvolvimento elegante de suas ideias e
argumentos. [...] É correto falar, portanto, em ‘Escola Elegante’
para indicar os juristas que integraram o estilo e a qualidade
humanista a seu trabalho prático”.84
Essas três tendências aqui expostas se amalgamavam e acabaram por defi-
nir um mote fundamental para a relação da cultura jurídica da época (final
do séc. XVI a meados dos séc. XVIII) com o Direito Romano: as re-
gras, conceitos e princípios romanos deveriam ser compreendidos na sua
dimensão histórica e somente seriam recepcionadas, seja por qual meio
fosse, na medida da adequação de cada um às situações e valores atuais.

2.2.2 O Direito Romano: do Jusracionalismo ao Direito Revolucionário

Para renomados historiadores do Direito, como Antônio Carlos Wolk-


mer, dentre outros tantos, a concepção jusracionalista iniciada pela escola
do Direito Natural e das Gentes, desembocando no pensamento ilumi-
nista, representa o momento de ruptura que o Direito Ocidental faz das
amarras do Direito Romano, nas palavras desse autor, apoiadas na similar
leitura de Jesus de La Torre Rangel:

“A doutrina laicizada do Direito Natural Clássico, cultivada


nas universidades, rompe com o silêncio da tradição jurídica ro-
manística e põe em discussão a noção dos direitos naturais sub-
jetivos, que alcança seu ápice com a ascensão da burguesia na
eclosão da Revolução Francesa”85

Por meio desse novo fazer jurídico, o Direito Romano deixaria de ser a ratio
scripta do Direito, dando lugar às vindouras declarações de Direitos Huma-
nos, primeiramente, e depois, aos Códigos Nacionais, como a manifesta-
ção mais alta da racionalidade jurídica.86

84 CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 60-1.


85 WOLKMER, Antônio Carlos. A História do Direito no Brasil. 2. ed. Rio: Forense,
2000, p. 26.
86 Essa sucessão dos Códigos aos Direitos Humanos como ratio scripta do Direito,
representa o ponto de contradição máxima do racionalismo jurídico do período
52
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

O autor prossegue em sua crítica ao modelo jurídico abstrato, inaugurado pelo


jusracionalismo, indicando, novamente com o auxilio de De La Torre Ran-
gel, os três fatores causais que modelariam o Direito Liberal-Individualista:

“a) igualdade formal de todos ao consagrar os direitos subjetivos


desconhecidos para o Direito Romano; b) a codificação do Direi-
to em normas gerais, abstratas e impessoais, ditadas pelo legisla-
dor, que identificará o Direito com a lei, esvaziando o Direito de
toda a ideia de justiça; c) a criação do Direito Público, paralelo
ao Direito Privado, como forma de garantir os direitos subjetivos
e a igualdade formal, proclamados pelo Direito Natural”.87

Essa é uma leitura corrente acerca da relação de suposto afastamento que


o Direito Natural racionalista (e a posterior e consequente formação do
Direito Revolucionário) possuem com relação ao Direito Romano. Rela-
ção que seria marcada pelo repúdio, pela eliminação desse e por sua subs-
tituição por um Direito com os elementos totalmente novos do Direito
Subjetivo, da ordem codificada e do Direito Público.

Chama-nos a atenção o primeiro elemento caracterizador desse afasta-


mento: a ideia de direitos subjetivos que seria desconhecida dos romanos.
Essa leitura parece-nos um tanto precipitada, sobretudo quando ela vem
acompanhada da afirmação de que se tratam de conceitos (Direito Subjetivo
e sujeito de direitos, codificação e direito público) alheios à realidade dos romanos.

Para demonstrar a influência e o diálogo profícuo que a Escola Juracio-


nalista teve com o Direito Romano – apesar das abertas críticas e mani-
festações de repúdio que aquela fazia a este – necessário se faz relativizar
as afirmações acima citadas, pelo menos no que tange à condição de estas
servirem de demonstração da anulação que o Direito Natural imporia ao
Direito Romano como modelo da estrutura jurídica Ocidental.

Quanto à primeira afirmação acerca da inovação desconhecida pelos ro-


manos, que seria o conceito de Direito Subjetivo e a consequente noção

moderno, levada ao extremo pela Escola de Exegese. Tal contradição somente


será superada com a retomada da Filosofia dos Direitos Fundamentais, agora
historicamente fundamentados, durante o impulso constitucionalista dos
Estados Social e Democrático de Direito.
87 DE LA TORRE RANGEL, Jesus Antonio. , Apud: WOLKMER, A História do
Direito no Brasil, cit., p, 27.
53
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

de sujeito de direitos, a questão é posta nos seguintes termos pelos histo-


riadores adeptos de tal posicionamento:

“Como se sabe, foi a partir do século XVIII que a doutrina clás-


sica do Direito Natural reconheceu e fortaleceu a condição dos
direitos subjetivos, encarados como a possibilidade de fazer ou pre-
tender fazer algo, de forma garantida, nos limites atributivos da
regra do Direito”88

Essa, porém, representa uma definição evidentemente condizente com


a definição romana de facultas agendi. O curioso é que, para pensadores
como Hegel e Kant é justamente essa liberdade subjetiva individual (He-
gel), marcada pela ideia de justo como condição de exigir o seu (Kant),
que marcaria o papel de Roma na formação histórica do Direito. Para
Salgado, a experiência da consciência jurídica em Roma é justamente o
momento da passagem, no plano da consciência, do sujeito moral para o
sujeito de direitos, posto que somente pelos elementos caracterizadores da
juridicidade, só identificados a partir de Roma (bilateralidade, exigibilidade
e procedimentalidade), o homem passa a comportar-se no plano de um
agir (actio) voltado para a exigência de seus direitos (ius suum), por meio de
uma estrutura de exigibilidade (potestas) racionalizada juridicamente pelo
processo (iurisdictio)89. Ora, aí está a manifestação para o espírito do Oci-
dente do aparecer jurídico do conceito de pessoa enquanto sujeito de di-
reitos, portanto portadora de direitos subjetivos.90 O que se poderia dizer,
no máximo, é que o jusracionalismo tratou de impulsionar o processo de
explicitação da noção de sujeito de direito que teria seu ponto de chegada
na Declaração de Direitos do Homem, com a Revolução, ou que os direi-
tos subjetivos deixaram de ser direitos privados para ingressarem também
na esfera do Direito Público91.

88 BESSA, Paulo. Uma Nova Introdução ao Direito. Apud: WOLKMER, A História do


Direito no Brasil, cit., p. 30.
89 Cf. SALGADO, Joaquim Carlos. A Experiência da Consciência Jurídica em Roma,
cit., passim. Veremos com detalhamentos essa questão no último capítulo da
dissertação.
90 Essa ideia será mais adiante retomada, quando da exposição da leitura
salgadiana acerca do papel do Direito Romano na construção da Ideia de Justiça
Contemporânea.
91 Como indicaria Hegel. Tal leitura foi aclarada por Salgado em sua tese de cátedra, no
capítulo sobre a Revolução. Cf. SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de Justiça em
Hegel. São Paulo: Loyola, p. 302-20.
54
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Já a segunda característica definidora desse momento inaugurado pelo Di-


reito Natural, que seria a produção de um direito codificado, produzido
pelo legislador a partir das características essenciais e das necessidades
inerentes a todo homem, merece os seguintes reparos. Devemos dizer que
a noção de codificação, enquanto organização racional de um conjunto
de normas tendo em vista dotá-las de maior objetividade e segurança, faz
parte da cultura jurídica dos romanos desde suas origens, com as XII Tá-
buas, estando presente no seu momento mais profícuo, o Clássico, com o
Edctum Perpetuum (codificação do ius honorarium) e possibilitando mesmo
sua perpetuação no espírito do Ocidente, por meio do Digesto e demais co-
dificações justinianeias, o que permitiu a Bonfante afirmar que o Direito
Romano passou por três grandes períodos codificadores, todos voltados
para possibilitar a organização necessária ao desenvolvimento de novas
estruturas jurisprudenciais em substituição às já saturadas.92

Ademais, a experiência codificadora dos romanos alimentou todas as simi-


lares obras jurídicas do Ocidente, desde a sua reorganização no séc. XII,
com o Corpus Iuris Civilis, às Legislações e Ordenações Imperiais, como as
Capitulares e as Ordenações do Reino, em Portugal e Espanha. O que se pode-
ria reconhecer (e se reconhece) nesse novo período codificador que foi o
pós-revolucionário é a sua sistematicidade marcada pelo caráter apriorísti-
co dos seus axiomas fundamentais e pela consequente inferência das suas
demais regras, deduzidas daí. Mas, mesmo nisso há de ser questionada a
pretensão de se afirmar não haver nenhuma influência do Direito Roma-
no, sobretudo no que diz respeito ao conteúdo jurídico dos axiomas que
serviram de fundamento à posterior construção desse Direito Codificado.
Trata-se de se perguntar sobre a natureza e conteúdo dos direitos naturais
do homem (direitos subjetivos) elencados pelos jusracionalistas. Daí po-
deremos perceber a importância que o conhecimento do Direito Romano
teve para a construção dos sistemas de Direito Natural como os de Gró-
cio, Puffendorf, Leibniz, bem como para a definição das características
gerais das democracias de iluministas como Montesquieu e Rousseau.

Por fim, podemos nos perguntar pela criação do Direito Público, em


paralelo ao Direito Privado, com o intuito de impor ao poder soberano
o respeito aos direitos subjetivos. Aqui sim nos parece que há o início de
um avanço significativo na experiência jurídica romanística, que culmina
na declaração e garantia dos Direitos Fundamentais. Porém, é preciso

92 BONFANTE, Historia del Derecho Romano, cit., p. 467.


55
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

reconhecer que o modelo jurídico construído pelo jusracionalismo não


pode prescindir do Direito Privado, marcadamente romano, para em-
prestar os conceitos fundamentais que dariam sustentação ao Direito
Público. Isso sem falar no equívoco em que recaíram os legatários do
jusracionalismo no pós-revolução, ao impor um paralelismo sectário a
essas duas ambiências da totalidade jurídica. Ademais, passando ao largo
dos debates sobre a utilidade dessa distinção jurídica entre Direito Público
e Direito Privado, devemos reconhecer que o ius publicum Romano vem
sendo amplamente resgatado e nele se tem antevisto vários dos institutos
e conceitos adotados no Direito Público moderno. Sua importância é
atestada em detalhado estudo de Ronaldo Poletti sobre a importância
do Direito Público Romano na estruturação do Direito Público moder-
no, enfatizando a questão no Brasil.93

2.2.2.1 A presença do Direito Romano na Escola do Direito Natural


e das Gentes.

Ora, se é a partir do jusracionalismo que se tem, por um lado, na Europa,


paulatinamente, a definitiva substituição, no plano das fontes, do Direito
Romano pelos direitos pátrios, cabe aqui, por outro, fazer justiça à larga
influência que o saber jurisprudencial romano teve na construção teórica
dos principais autores da Escola do Direito Natural e das Gentes.

O breve período jusracionalista é marcado pela crítica do Direito tradicional


e pela pregação por sua substituição pelo Direito Natural Racionalista. Da
exposição feita por Caenegem dos argumentos e elementos centrais da crí-
tica do jusracionalismo94, podemos concluir que, apesar de atingir o Direito
Romano, ela era muito mais uma crítica ao Ancien Régime do que àquele.

93 POLETTI, O Direito Público Romano no Brasil, op. cit., p. 73-108.


94 Em seguida à exposição que faz, o autor exara a seguinte reflexão: “o velho
mundo passou por uma renovação radical, guiada pelos princípios da razão
humana e pelo objetivo de alcançar a felicidade do homem. A realização desse
objetivo parecia requerer agora que o fardo dos séculos precedentes fosse
rejeitado. Aplicado ao Direto, esse programa significava que a proliferação de
normas jurídicas deveria ser drasticamente reduzida, que o desenvolvimento
gradual do Direito deveria ser substituído por um plano de reforma e por uma
abordagem sistemática, e, por fim, que não se deveria emprestar autoridade
absoluta nem aos valores tradicionais, como o Direito Romano, nem aos juristas
e juízes eruditos, que se proclamavam ‘oráculos do Direito’”, cf. CAENEGEM,
Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 118-9.
56
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Se pensarmos num dos grandes fundadores do jusracionalismo, Hugo


Grócio, poderemos ver claramente essa estreita ligação entre as diretri-
zes fundantes de sua exposição dos Direitos Naturais e os princípios ge-
rais do Direito Romano. Para ilustrar essa afirmação, cabe ressaltar que
Grócio pertencia à uma região cujo, ressalta Caenegem, Direito Romano
havia sido recepcionado de modo estritamente doutrinário, sem nenhu-
ma imposição de autoridade – como inicialmente se deu na Alemanha –,
formando-se entre esse e o Direito Consuetudinário local (este em segun-
do plano) uma singular síntese, denominada Direito Romano-Holandês. E o
jurista holandês que realizou a exposição teórico-normativa dessa síntese
romanística do Direito Batavo foi justamente Grócio, em Inleidinge tot de
Hollandsche Rechts-geleertheyd, publicado em 1631.95

Acerca de Grócio, observa Caenegem que ele:

“Tentou encontrar um fundamento para o Direito das Nações que


deveria ser universalmente reconhecido. Descobriu-o na noção in-
dispensável de Direito Natural: certas normas básicas deveriam
ser necessariamente aceitas por todos os homens e Estados civiliza-
dos, pois elas correspondiam aos princípios de natureza humana
e constituíam, portanto, a base comum partilhada por todos os
homens. Essas regras existiam independentemente dos ius divi-
num, pois eram válidas até mesmo se fosse admitido que Deus
não existia [...] também eram independentes do Direito Romano,
pois o Corpus Iuris reconhecia apenas a autoridade universal do
imperador”.96

Porém, acrescenta o autor que Grócio (assim como os demais de sua ge-
ração e seguinte, como Leibniz) não poderia ser considerado um jusracio-
nalista puro no sentido acima descrito, “pois ainda estava sob a influência
de fontes como a Bíblia e de vários textos antigos (como humanista, tinha
um excelente conhecimento da literatura latina), inclusive os textos de Di-
reito Romano”.97

Também na obra de Pufendorf podemos aurir a íntima relação entre Di-


reito Natural racionalista e Direito Romano. Apesar de ser ele um crítico
mais contundente que seus antecessores do saber tradicional, “ele desen-

95 Cf. ibidem, p.48.


96 Ibidem, p.120.
97 Ibidem, p.121.
57
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

volveu suas teorias, sobretudo em relação ao contrato e à propriedade,


frequentemente tomando empréstimos e construindo a partir da obra de
Grócio”.98

Leibniz [1716] desenvolveu paralelamente uma teoria do conhecimento e


um sistema de Direito Natural. Assevera Del Vecchio que, contra a afir-
mação, própria de um Locke, de que “nada há no intelecto que não haja
nos sentidos”, opunha-se: “exceto o próprio intelecto”, de onde sairiam
certas ideias, verdades necessárias, que não derivariam da experiência.
Também ele, porém, ao tratar de seu sistema de filosofia jurídica, assume
os elementos do Direito Romano para revelar essas verdades universais
no campo do Direito. Del Vecchio assinala que Leibniz, ao tratar das
ambiências éticas:

“distingue três espécies de bens, consoante cada uma delas se refere a


Deus, à Humanidade ou ao Estado. A primeira delas é constituí-
da pela probitas ou pietas; a segunda, pela aequitas; a terceira, pelo
ius ou ius strictum. Socorrendo-se de conceitos aristotélicos, Leibniz
designa as três repartições do mundo ético por iustitia universalis,
iustitia distributiva e iustitia commutativa. A elas deveriam ainda
corresponder os três preceitos capitais da jurisprudência romana:
honeste vivere, suum cuique tribuere e neminem laedere”.99

Originariamente germânico, o jusracionalismo ganhou força também na


França. O mais importante membro francês da Escola de Direito Natural
foi Jean Domat [1696]. Mais uma vez recorremos a Caenegem para reve-
lar que:

“Sua obra era uma tentativa ambiciosa de estruturar o Direito


de acordo tanto com os princípios cristãos quanto com critérios
racionais, para chegar assim a um sistema válido para todas as
épocas e povos. De fato, sua obra Les lois civiles dans leur ordre
naturel era original na forma (uma nova organização e um novo
sistema), mas não na substância, pois a substância que permane-
cia era a do Direito Romano”.100

98 Ibidem, p.122.
99 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Coimbra; Armênio
Amado, 1979, p. 123.
100 CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 123.
58
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Caenegem, então, conclui:

“De maneira geral, os autores da Escola de Direito Natural


tomavam emprestado os princípios do Direito Romano quando
precisavam formular normas concretas de lei para questões espe-
cíficas. Sua intenção não era rejeitar as normas tradicionais do
Direito como um todo, o que não teria sido nada realista; que-
riam modernizar o método jurídico e libertar a jurisprudência da
restrição imposta pela autoridade antiga”.101

Era necessário romper com a ordem estabelecida, logo:

“O Direito Natural era um elemento essencial do triunfo sobre o


antigo Direito Consuetudinário e sobre o ainda prestigioso Di-
reito Romano. Só um direito ainda mais universal, ou um direito
verdadeiramente universal, estava em condições de desafiar a au-
toridade quase universal do Direito Romano. Se o Curpus Iuris
era o Direito do Império Romano e do mundo ocidental, o Direi-
to Natural era o de toda a humanidade; o Direito Romano era
a obra do maior povo de juristas da história, o Direito Natural
era a própria expressão da razão”.102

No mesmo sentido, caminha Moreira Alves:

“O Direito Romano, portanto, em grande parte permaneceu subja-


cente no final do século XVIII e no início do seguinte, por ter sido ele
o elemento material de que se serviram os jusnaturalistas – assim,
entre outros, Grócio, Puffendorf e Wolff – para expurgá-
lo dos princípios que não se compatibilizavam com os preceitos da
razão que formavam o Direito Natural, o que implicou, de certa
forma, que ambos os direitos sofreram influências recíprocas”.103

Em outro artigo, o autor reafirma sua leitura acerca da questão:

“Para a elaboração das construções racionalistas com que os ju-


ristas do jusnaturalismo dão início à dogmática moderna, foi o

101 Loc. cit.


102 Ibidem, p. 142.
103 MOREIRA ALVES, O Direito Romano e a Formação dos Juristas: perspectivas para o
novo milênio, op. cit., p. 19-20.
59
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

Direito Romano – e não poderia deixar de sê-lo, pela formação


romanística de seus corifeus – elemento de capital importância
pelo método por eles utilizado: o de chegar aos princípios do direi-
to da natureza com o emprego do material que os textos romanos
lhes forneciam, para, em seguida, expurgar o Direito Moderno
dos princípios deste que não se ajustassem àquele, ainda quando
os mantivesse apenas na forma, mas com diverso conteúdo”.104

2.2.2.2 O movimento Iluminista e o Direito Romano

O Iluminismo, voltado para a ação esclarecedora, e, posteriormente, re-


volucionária, também sofreu larga influência do Direito Romano. A com-
preensível necessidade dos iluministas (sobretudo dos revolucionários e
pós-revolucionários) em negar o Direito Romano em prol de sua subs-
tituição capital por um Direito Nacional, positivado por leis aprovadas
nas assembleias sob a égide de uma Carta de Direitos Fundamentais, não
afasta o papel fundamental que o Direito Romano novamente teve nesse
processo.

Aqui novamente observamos um ataque à erudição romana, porém, pode-


mos bem compreender que se trata de um enfrentamento direto que, no
entanto, se dá por intenções indiretas. Mais uma vez é o Ancien Régime que
se quer atacar, não o Direito Romano. Este é atacado por ser entendido
como estrutura de sustentação daquele.

Podemos, todavia, identificar nos mais ilustres pensadores do Iluminis-


mo a contribuição da cultura jurídica romana. Vejamos, sucintamente, os
exemplos de Rousseau, Montesquieu e Kant.

Para Ronaldo Poletti, por exemplo, a ideia romana de povo está na base
da teoria rosseauneana:

“Rousseau, ao fazer a crítica da representação do tipo liberal,


constrói o elogio do Direito Público Romano, como facilmente se
percebe em Do Contrato Social, no livro IV, tão pouco divulgado
ou lido, sobretudo em cotejo com as outras parte daquela notá-
vel obra. [...] Naquele livro, Rousseau cuida, segundo os pró-
prios capítulos: ‘De como a vontade geral é indestrutível’, ‘Dos

104 MOREIRA ALVES, Tradição Metodológica no Ensino do Direito Romano no


Brasil, op. cit., p. 42.
60
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

sufrágios’, Das eleições’, ‘Dos comícios romanos’, ‘Do tribuna-


to’, ‘Da ditadura’, ‘Da censura’, ‘Da religião civil’. [...] Essa
ideia romana de povo foi retomada por Rousseau. Os cidadãos
são soberanos de uma lado e súditos de outro. O pensamento de
Rousseau depende da concepção romana romana de populus e
summa potestas populi”.105

Quanto a Montesquieu, basta, para atender ao propósito dessa ex-


posição, fazer menção à sua valiosíssima obra sobre a história políti-
ca de Roma. Apenas uma leitura desta já é suficiente para evidenciar
o papel que o Direito Romano possui na construção de seu pensa-
mento.106

As máximas romanas do honeste vivere, suum cuique tribuere e neminem laedere,


consubstanciadas em verdadeira síntese dos princípios axiológicos do Di-
reito, também são por Kant tratadas como a chave para a compreensão da
doutrina do Direito e da Moral.107

O Iluminismo culmina na Revolução Francesa e na consequente necessidade


de estabelecimento de uma nova ordem, resultando na constituição do Esta-
do Liberal de Direito, que tem no Code Civil sua maior expressão. Já acentu-
amos que, para vários autores que analisam a suposta crise atual do Direito
Romano, a codificação revolucionária representa o grande móvel dos ques-
tionamentos acerca da utilidade do ensino desse arcabouço, repercutindo,
um século depois, na crise – superada – desse ensino na Alemanha quando
da vigência do BGB, às portas do séc. XX.

Notemos, porém, que o próprio processo de construção do ‘novo’ Direito


Francês, codificado, é permeado pelo auxílio da jurisprudência romana.
Em 1800, a administração napoleônica determinou que uma comissão de

105 POLETTI, O Direito Público Romano no Brasil, op. cit., p. 76-8.


106 Cf. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de. Considerações sobre as
causas da grandeza dos romanos e da sua decadência. Trad. Pedro Vieira Mota. São
Paulo: Saraiva, 1997.
107 Cf. KANT. La Metafísica de los Costumbres. Madri: Tecnos, 1994, p. 47 et. seq. Ao
menos é o que tentamos, dentre outras questões, humildemente demonstrar em
nosso artigo denominado Apontamentos para uma Principiologia Jurídica Romana, v.
PINTO COELHO, Saulo de Oliveira. Apontamentos para uma Principiologia
Jurídica Romana. In: Estudos Jusfilosóficos: em homenagem a Joaquim Carlos
Salgado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008, [no prelo].
61
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

quatro juristas se incumbisse da tarefa de elaboração do Código Civil. Seus


autores (Trouchet, Portalis, Bigot, e Maleville) eram advogados expe-
rientes, profissionais de carreira na magistratura e na advocacia. Para Ca-
enegem, o mais brilhante e determinante para a codificação era Portalis,
o célebre romanista do Sul, que além de profundo conhecedor do Direito
Romano, era versado em Filosofia e concebia o Direito, para além de mera
técnica, como um elemento de desenvolvimento civilizacional108. Sobre o
resultado de sua influência na elaboração codificadora, acrescenta:

“Os compiladores do código civil fizeram esforços conscientes para


tratar o Direito Romano e o Direito Consuetudinário em pé de
igualdade e deram sistematicamente preferência às formulações
que estavam de acordo com a ‘razão natural’”.109

Cabe ainda ressaltar o respeito de Portalis à tradição romanística, expres-


so em algumas passagens de suas obras jurídicas. Para ele,

“o Code Civil não era uma coleção de normas inteiramente novas,


mas sim o resultado da experiência do passado, o espírito dos
séculos. Os códigos se fazem com o tempo; rigorosamente falando,
ninguém os faz”.110

Se entre os autores do Código destaca-se o citado romanista do sul fran-


cês, entre os doutrinadores que aqueles consultaram, o destaque fica para
Pothier, também ele exímio romanista, não só autor de obras sobre Di-
reito Romano, mas de tratados sobre partes específicas do Direito Civil –
destacando-se as obrigações – ricamente instruídos com a jurisprudência
romana.111 E conclui Caenegem que:

“Os partidários do Direito Natural tinham inevitavelmente de re-


correr em boa parte ao Direito Romano para poderem estabelecer
as normas requeridas pela prática em termos mais precisos e concre-
tos. É significativo também que os códigos de Direito Intermediá-

108 CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 5.


109 Ibidem, p. 6
110 PORTALIS, Discours Preliminaire. Apud. CAENEGEM. Uma Introdução Histórica
ao Direito Privado, cit., p. 8.
111 CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, cit., p. 7. O autor
ressalta que: “a autoridade de Pothier pode ser vista nos próprios textos, já
que os autores do Code extraíram trechos inteiros de sua obra”.
62
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

rios, inspirados pelo Direito Natural, fracassaram e tiveram de ser


substituídos pela codificação napoleônica, cujos autores recorreram
amplamente ao Direito Antigo. Savigny e a Escola Histórica ti-
veram uma experiência semelhante. Embora tenham declarado que
o Volksgeist e as tradições de uma nação eram a fonte do direito
por excelência, logo ficou claro (em particular na própria obra de
Savigny) que suas formulações das normas práticas, concretas, de-
rivavam em grande parte do Corpus Iuris. O resultado paradoxal
está em que Savigny foi o cabeça da Escola Histórica e, ao mesmo
tempo, precursor do estudo germânico dos Pandectos (Pandektistik),
uma doutrina do séc. XIX, inteiramente baseada no Direito Ro-
mano e sem nenhuma relação com o Volksgeist alemão”.112

Notória foi a ampla tentativa de blindar o Code Civil de interpretações,


sobretudo romanizantes, da doutrina. Mas no começo do séc. XIX, os ju-
ristas em condição de lecionar e aplicar o Código eram todos formados
na tradição romanista e continuavam, para dar sentido ao mesmo, a utili-
zar desse conhecimento. Anota Caenegem que Philippe Antoine [1838],
um dos mais eruditos juristas de sua época, tendo atuado inclusive como
conselheiro pessoal de Napoleão, elaborou obras que representam uma
verdadeira enciclopédia do Direito daquela época, “cujo objetivo era ex-
plicar a nova legislação, com o auxílio do antigo direito”. O jurista alemão
Zachariae [1842], professor em Heidelberg, representa uma caso singular.
Natural da Renânia, na época sob domínio francês, publicou em 1808 seu
primeiro comentário sobre o Code Civil. Em 1812, publicou um tratado
sobre o Código, “que segue a ordem e o método do gemeines Recht (isto é,
o Direito Romano tal como era aplicado na Alemanha)”. A obra exerceu
grande influência na França, tendo sido modelo para o famoso e respei-
tado comentário sobre o Código dos autores Aubry [1883] e Rau [1877],
doutrinadores que, ao lado de Duranton [1866], Troplong [1869] e De-
molombe [1887], “ocupam lugar especial na Escola Francesa da Exegese”
e tinham “familiaridade com a jurisprudência sistemática alemã e com a
obra de Zachariae em particular”113. Sabemos bem que a influência ger-
mânica da Escola Histórica significa influência romanística.

112 Ibidem, p. 145-6.


113 Ibidem, p. 152-4. Cabe anotar que o respeito de Aubry e Rau pela obra do
pandectista alemão era tão grande, que nas primeiras edições de seus comentários
ao Code Civil, publicaram-nas como uma adaptação da obra de Zachariae com
o título Cours de droit civil français traduit de l’állemande de C. S. Zachariae, revu er
augmenté.
63
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

O último código a atestar a substituição definitiva do Direito Romano


como fonte formal imediata do direito foi o BGB alemão, amplamen-
te inspirado na pandectística de Savigny, Ihering e, sobretudo, Winds-
cheid. Decidida a codificação do Direito Alemão, a questão, à época, era
definir suas fontes. A influência da Escola Histórica conduziu à elimina-
ção o Direito Natural e o Direito Erudito, professoral, fruto do longo
trabalho dos juristas sobre o Direito Romano, fora a base sólida na qual
foi ele edificado. No séc. XIX, temos o auge da ciência jurídica alemã,
bem como de sua influência na grande maioria dos países, dentre eles,
já na metade final do século, o Brasil. “A qualidade técnica e o alcance
do ensino alemão foram admirados: os avanços realizados pelos roma-
nistas no séc. XIX [...] levaram o Gemeines Recht a um grau inigualado de
sistematização”114.

Nossas considerações acerca do papel do Direito Romano no pensamento


jusfilosófico presente na formação da cultura jurídica europeia, cessam por
aqui, posto que se faz necessário proceder a um recorte dessa análise de
modo a atender ao objeto da pesquisa: uma compreensão da formação da
cultura jurídica brasileira, notadamente abordando-se a presença supras-
sumida do Direito Romano na formação histórica da mesma (com ênfase
na jusfilosofia), até o momento contemporâneo. Buscaremos identificar
os traços influenciadores do Direito Romano na jusfilosofia brasileira e,
para tanto, deveremos buscar uma exposição de seu papel na formação de
nossa cultura jurídica. É o que faremos a seguir.

114 Ibidem, p. 162.

64
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

II
O Romanismo na Formação
da Cultura Jurídica Brasileira

“Fresco como a Princesa Aurora, o Direito Romano se levanta, depois de vencidos os


espinhos de florestas malévolas. (...) de cada vez. Todas as vezes. O Direito Romano,
tal como o Direito Natural (em que se baseia, ou antes, que comporta como elemento
as mais das vezes pressuposto, mas onipresente e sempre atuante), é bem o cisne de
Goethe. Por vezes mergulhado (parcial ou totalmente, se diria), no grande lago para
se alimentar (para beber). Ou como que para hibernar. Porém, surgindo logo recortado
na sua elegância e sereno flutuar, por sobre as águas como um espelho de sua graça.
De cada vez que o cisne Direito Romano retorna, assume aqui e ali feições diferentes. E pode
dizer-se sem um grande risco que cada corrente de apoiantes do Direito Romano é como
uma camada geológica, ou um testemunho de uma das épocas e esplendor do mesmo”.

Paulo Ferreira da Cunha115

*****

1. A “Exportação” da cultura jurídica europeia na formação do Bra-


sil-Colônia

A colonização lusitana do território brasileiro, evento que, para Álvaro


Vita, determinou as características de nossa nação, se deu por processo
lento e contínuo de ocupação do solo, exploração das riquezas territoriais
e consolidação do marco cultural europeu116. Esse processo significou
paralelamente a gestação não só de um Estado, mas também de uma Na-
ção dentro desse Estado, de traços civilizacionais nitidamente ocidentais.
Wanderley Kozima afirma ser “a experiência colonial, período que se
presta a fornecer os primeiros elementos, possivelmente os elementos-
chave, para a compreensão do ethos brasileiro”.117

115 CUNHA, Paulo Ferreira da. Prefácio. In: VILLEY, Miguel. Direito Romano. Trad.
Fernando Couto. Porto: Res Jurídica,1991, p. 24 e 25.
116 Cf. VITA, Álvaro. Sociologia da Sociedade Brasileira. São Paulo: Ática, 1989.
117 KOZIMA, José Vanderley. Instituições, Retórica e o Bacharelismo no Brasil. In:
WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte,
Del Rey: 1996, p. 230.
65
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

Nossa Nação é Ocidental e definida pela mundivisão europeia. Não há que se


falar, sobretudo no plano do Direito, de uma interpenetração de característi-
cas do sistema jurídico romanístico, com os supostos Direitos Indígenas ou com
os Direitos Africanos. E isso, não porque impõe-se artificialmente esse direito a
um povo que com ele não se identifica, mas porque se impôs um povo, uma
cultura – a europeia –, da qual esse direito é legatário, em um novo território.
Se um Estado é formado por povo organizado em um território tendo
em vista um poder soberano (na clássica visão dos teóricos do Estado),
antes da colonização portuguesa, tínhamos dos componentes do Estado
Brasileiro apenas o território118. Faltava o povo e a sua organização políti-
ca. Não se trata de impor uma visão conservadora ou precária da história
(que por isso ignoraria as nações indígenas já existentes no Brasil), mas
de encarar com maturidade a realidade de nossa formação e não se deixar
levar por visão ingênua de uma natividade presente e definidora de nossa
identidade para além da matriz eurocêntrica119.

118 Vale ressaltar, com René David, que as colônias “espanholas, portuguesas,
francesas e holandesas na América, estabelecidas em países praticamente
desabitados ou cuja civilização estava voltada ao desaparecimento”, implantaram
“de modo natural as concepções jurídicas características da família romano-
germânica.” Mesmo que inicialmente precário, “à medida que a América foi se
desenvolvendo, o Direito Prático começou a se aproximar do Erudito: de início
o doutrinal ensinado nas universidades da América ou da metrópole, depois,
direito incorporado nos códigos redigidos à imagem e semelhança dos códigos
europeus”. Cf. DAVID, René. Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo. Trad.
Hermínio A. Carvalho. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 77.
119 Algumas leituras de crítica emancipadora de nossa cultura, em sua maioria
constituída por visão marxista das relações de poder, buscam definir uma
autonomia cultural brasileira e latino-americana por meio da identificação
de sistemas de vida pré-lusitanos presentes em nossa base civilizacional. Se é
razoável esse enfoque para algumas nações (talvez Peru, Bolívia e, um pouco
menos, México sejam bons exemplos), não o é para a peculiaridade marginal da
formação nacional brasileira. Nosso posicionamento é de que precisamos admitir
que ocupamos o território de um povo que pouco tem a ver (do ponto de vista
civilizacional) conosco e o substituímos enquanto nação existente nesse território.
E mais, que a busca por nossa emancipação da situação de economia periférica
de modo nenhum passa por esse resgate quimérico. Para uma interessante leitura
acerca deste tema que, porém, nem sempre se dá no sentido do posicionamento
que aqui adotamos, sugerimos a obra organizada por Antônio Carlos Wolkmer:
Cf. WOLKMER, Antônio Carlos (Org.). Humanismo e Cultura Jurídica no Brasil.
Florianópolis: Fundação José A. Boiteaux, 2003.
66
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Irineu Strenger, fazendo uso das reflexões de Waldemar Ferreira a


esse respeito, pondera que, quanto à formação nacional do Direito Brasi-
leiro, ela “é muito mais antiga do que a História do Brasil”:
“Se a História do Brasil começa, vista pelo prisma do descobri-
mento, no séc. XVI, ou seja, em 1500, a história do Direito
brasileiro confunde-se, nos seus primórdios, como em grande parte
de seu desenvolvimento, com o Direito Português”120.
Partindo dos estudos de Direito Comparado, a questão da formação do
Direito Brasileiro poderia enquadrar-se no tema que o comparativista
francês Eric Agostini denominou “migrações de sistemas jurídicos”121.
Esse tema se traduz no estudo das normatividades jurídicas como elas se
apresentam na contemporaneidade, o que impõe, ao se estudar sistemas
como o africano e o japonês, inserirem-nos no estudo da importação e da
exportação dos sistemas europeus (continental ou insular). Porém, quanto
à questão do transplante dos sistemas ocidentais para a América Ibérica
(e mesmo para a anglo-saxã), a mesma não é tratada no contexto de in-
vestigação acima descrito, enquanto simples exportação ou importação,
no quadro da denominada “recepção parcial ou recepção global” ope-
rada na chamada “modernização”122 imperialista. Trata-se, antes, de uma
‘transplantação’ de cultura jurídica, como veremos.
O comparativista inicia o estudo da questão das “migrações” citando
Montesquieu: “Elas (as leis) devem ser de tal modo próprias para o povo
a quem são destinadas, que é um grande acaso se as de uma nação podem
convir a um outro (povo)”.123
Daí devemos refletir que o que se deu com a realidade jurídica brasileira
não foi o que se pode chamar de exportação (ou migração) de direitos, mas
a migração de um povo (o luso-europeu), com toda sua cultura, e somente
a partir daí a lenta e gradual construção, por variados mecanismos, de um
novo povo (o brasileiro). Este, porém, já tendo assimilado na sua consti-
tuição (e fazendo parte dela) toda a base da cultura jurídica Ocidental.

120 STRENGER, Irineu. Da Dogmática Jurídica: contribuição do Conselheiro Ribas


à Dogmática do Direito Civil Brasileiro. 2. ed. São Paulo: LTr, 1999, p. 40-1.
121 Cf. AGOSTINI, Eric. As Migrações de Direitos. In: Direito Comparado. Trad.
Fernando Couto. Porto: Res Jurídica, [n.d.], p. 251-334.
122 AGOSTINI, Eric. Direito Comparado. Trad. Fernando Couto. Porto: Res Jurídica,
[n.d.], p. 252.
123 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Apud. AGOSTINI, Eric. Op. cit., p. 254.
67
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

Não houve no Brasil um fenômeno de recepção global de um Direito,


porque recepção pressupõe um povo que o recebe. Os indígenas não
receberam nada. Houve sim o “transplante”124 de uma cultura, a lusitana,
que há muito já havia se formado no seio da tradição romana (por dife-
rentes modos de assimilação), desde a conquista da península pelos ro-
manos em 201 a.C.125. Por isso, podemos afirmar, com José Luiz Borges
Horta, que “somos essencialmente europeus e, no que tange ao Direito,
romanos”.126

1.1 – Primórdios da estrutura civilizacional brasileira

O que se deu na colonização brasileira não foi uma implantação – ao


molde das colonizações imperialistas como na África e no Oriente – de
um sistema jurídico de controle para um povo já existente, consolidado
e mantido como povo explorado. Aqui, o que se observou foi, primeiro,
o transplante (mesmo que de início precário) de toda uma civilização, às
custas, temos que reconhecer, da supressão completa127 de uma outra ci-
vilização incipiente que habitava previamente a Terra e, segundo, a lenta
formação de um novo povo, com suas peculiaridades (como todo povo),
mas claramente definido dentro dos padrões civilizacionais europeus.

124 Para o professor Haroldo Valladão, o estudo do Direito Brasileiro deve se


ligar à linha direta de herança dos colonizadores da América, “o que o programa
[da disciplina História do Direito] denomina de ‘transplante do Direito Ibérico
para o Continente Americano’”. Note-se que, com propriedade, refere-se ao
transplante para o Continente e não para as populações pré-americanas. Cf.
VALLADÃO, Haroldo. História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro. 4. ed.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980, p. 67.
125 Data apresentada por Walter Vieira do Nascimento. Cf. NASCIMENTO,
Walter Vieira do. Lições de História do Direito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2001, p. 183. E note-se que, “em 212 d.C., o édito de Caracala tinha conferido
a cidadania romana à imensa maioria dos habitantes (livres) do Império”.
AGOSTINI, Eric. Direito Comparado. Trad. Fernando Couto. Porto: Res Jurídica,
[n.d.], p. 254.
126 HORTA, José Luiz Borges. Notas de aula da Disciplina História do Direito. Belo
Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG, 1° semestre de
2004.
127 �������������������������������������������������������������������������
Supressão completa porque estamos falando em termos de povo, de civiliza-
ção. Da cultura e do povo indígena sobraram apenas pequenas amostras, sem
nenhuma condição de representar, contemporaneamente e em termos civiliza-
cionais, um fator de formação ou transformação da cultura europeia implanta-
da, muito menos do Direito.
68
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Nos primeiros séculos após o descobrimento, o Brasil refletiu os inte-


resses do mercantilismo da metrópole portuguesa e em função deles foi
sendo organizado128.
Com o auxílio das observações de Wolkmer, podemos asseverar que: a)
no aspecto econômico, o país se edificou como uma sociedade agrá-
rio-latifundiária, “existindo sobretudo em função da metrópole, como
economia complementar, em que o monopólio exercido era fundamen-
tal para a economia lusitana”; b) no aspecto social, a formação social
colonial foi marcada pela polarização entre os imensos latifúndios e a
massa de mão-de-obra escrava129. O “sistema aglutinava certas práticas
de base feudal com uma incipiente economia de exportação centrada
na produção escravista”; c) no aspecto da estrutura política, percebe-
se a formação de uma instância de poder que, além de incorporar o
aparato burocrático e profissional da administração lusitana, surgiu sem
nenhuma preocupação, identificação ou mesmo diálogo com as estrutu-
ras organizacionais negras ou indígenas e evoluiu para a montagem de
uma burocracia patrimonial legitimada pelos donatários de terras, de-
senvolvendo-se um cenário contraditório de dominação política entre a
“pulverização de poder na mão dos donos das terras” e o “esforço cen-
tralizador que a Coroa impunha através dos governadores-gerais e da ad-
ministração legalista” que logo se fez aparecer.130 Isso permitiu construir

128 Antônio Carlos Wokmer, amparado nos estudos de Ladislau Dowbor em A


Formação do Capitalismo Independente do Brasil, observa que, na história do Brasil, o
período colonial recebeu interpretações diversas acerca de sua estrutura sóciopolítica,
desde a tese do feudalismo (que “encontra sólidos argumentos empíricos, mas tem
dificuldades de explicar os aspectos escravistas e capitalistas do sistema colonial
luso), passando pelas teses do modo de produção escravista (mesmo que não se possa
confundir o modo de produção da antiguidade com o caso do Brasil), pela tese
capitalista (que tem “dificuldades de dirigir uma série de elementos estranhos ao
capitalismo) e pela definição de modo próprio de produção, o escravista-colonial. Cf.
WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p. 37-8.
129 “Para a exploração mais lucrativa dos latifúndios, a alternativa escrava era a que melhor
serviria ao sistema porque, se fossem importados homens livres, estes poderiam
tornar-se donos de um pedaço das terras devolutas que existiam em abundância;
além disso, aos traficantes era lucrativo trocar negros por produtos tropicais”, o que
justificou a pouca insistência e o fracasso nas tentativas de se escravizar os índios.
WOLKMER, Antônio Carlos. A História do Direito no Brasil. Cit., p. 39.
130 Para Alfredo Bosi, em Dialética da Colonização, a estrutura política incorpora o
intento dos “senhores rurais sobre uma administração local que se exerce pelas
câmaras dos homens bons do povo, isto é, proprietários. Mas, o seu raio de poder é
69
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

um modelo de Estado marcado pela incorporação e adaptação de insti-


tuições políticas de diretrizes “patrimonialistas e burocráticas inerentes
ao modelo conservador de organização administrativa portuguesa”; d)
no aspecto ideológico, não há de se registrar nos dois primeiros séculos
de colonização, o aparecimento de um centro de pensamento e concep-
ção de ideias justificadoras do mundo que fosse brasileira. Vigoravam,
sem enfrentamentos no plano das ideias, os valores e pensamentos do
colonizador, que emergiram numa mentalidade calcada na racionalidade
escolástico-tomista. “Herda-se desta feita uma estrutura feudal-mercan-
til, embasada em raízes senhoriais que reproduziam toda uma ideologia
da Contra-Reforma”, associada em uma ética inspirada “nas cruzadas,
na honra cavalheiresca dos antepassados, na subserviência espiritual aos
ditames da Igreja”. Essa mentalidade não iria favorecer o surgimento de
uma classe burguesa enriquecida, empurrando Portugal para uma posi-
ção secundária no rol do desenvolvimento europeu131. Isso caracterizaria
o tipo de cultura pregada pela metrópole no Brasil, de traço “senhorial,
escolástico, jesuístico, católico, absolutista, autoritária, obscurantista e
acrítica”. Os principais pólos irradiadores da formação cultural foram a
catequese e o ensino do humanismo escolástico, “transplantados predo-
minantemente pela Companhia de Jesus”.132

curto, é o rei que nomeia os governados” exercendo seu poder administrativo


e militar “com critérios estabelecidos pela Coroa e expressos em regimentos,
em cartas e em ordens régias. [...] De 1696 em diante, até as câmaras municipais
sofreram interferência da metrópole, que passou a nomear os juízes de fora,
sobrepondo-se à instituição dos juízes eleitos nas suas vilas. Os historiadores
têm salientado a estreita margem de ação das câmaras sob a “onipresença
das Ordenações e Leis do Reino de Portugual”. BOSI, Alfredo. Dialética da
Colonização. Apud. WOLKMER, Antônio Carlos. Op. cit., p. 40.
131 Vale reproduzir a observação de Paulo Mercadante colacionada por Wolkmer:
“nos países de maior desenvolvimento capitalista, onde predominavam as
ideias de Lutero e Calvino, nenhuma medida repressiva conteria a revolução
científica, iniciada por Galileu e Copérnico. Na península Ibérica, recolhe-se
a elite numa escolástica decadente, barrando qualquer ideia nova que viesse
dos países adiantados. Temendo a expansão protestante, urgia a reafirmação
da integridade da fé aos dogmas, [...] teria início o processo de censura
inquisitorial, que aniquilaria o alvorecer do humanismo luso. Neste contexto,
a Companhia de Jesus e a Inquisição vieram configurar os contornos da
sociedade”. MERCADENTE, Paulo. Militares e Civis: a ética e o compromisso.
Apud. WOLKMER, Antônio Carlos. Op. cit., p. 43.
132 Cf. WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p. 35- 43.
70
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Assim, assevera Wolkmer que a cultura portuguesa conservar-se-ia im-


permeável às transformações processadas na Europa até sua reconciliação
com a vida sócio-política europeia. Isso se daria a partir dos ensinamentos
do iluminista Luis Antonio Verney, expoente teórico da modernidade
lusa, e com a implementação das reformas capitais do Marquês de Pom-
bal, que influenciariam ideologicamente a Colônia brasileira e fornece-
riam as bases para a modificação do Estado133. A monarquia continuaria
em vigor, só que agora uma monarquia esclarecida, num espectro cultural
mais aberto. As reformas pombalinas (segunda metade do séc. XVIII) li-
mitam largamente o poder do clero, “restringem os benefícios da nobreza,
incrementam o poder econômico da burguesia e impulsionam a reformu-
lação do ensino e do modelo universitário (alcançando a Universidade de
Coimbra, principal centro formador da mentalidade filosófica, política e
jurídica brasileira)”. O Iluminismo Pombalino influenciaria o pensamento
brasileiro a partir do final do séc. XVIII e durante o séc. XIX.134

1.2 – Ordem Jurídica e Organização da Justiça no Período Colonial

Ainda segundo WOLKMER, o processo colonizador comandado pela


Metrópole instalou e consolidou, numa região inicialmente habitada por
populações indígenas, “toda uma tradição cultural alienígena e todo um
sistema de legalidade ‘avançada’ sob o ponto de vista do controle e da efe-
tividade formal”. Para esse autor, o empreendimento colonizador lusitano
trazia consigo uma cultura considerada “mais evoluída, herdeira de uma
tradição jurídica milenária proveniente do Direito Romano”. Durante o
período do Brasil colônia, o Direito Português constituiu “a base quase
que exclusiva do Direito pátrio” . Também para CLÁUDIO VALENTIN
CRISTIANI, “o direito dos colonizadores brancos imperara de forma
centralizadora e totalizante”, posto ter sido uma “vontade monolítica im-
posta que formou as bases culturais e jurídicas do Brasil”.

Sabe-se, porém, que essa imposição monolítica não se deu sem um esfor-
ço acomodador, mais em virtude do modus operandi da colonização do que
de eventuais adaptações culturais. É o que ressalta Irineu Strenger:

“Toda história do Direto Brasileiro no fundo é um esforço de


acomodação da norma ao novo ambiente social, acomodação essa

133 Sobre Verney e Pombal falaremos mais adiante.


134 Ibidem, p. 44-5.
71
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

que nem sempre é tranquila, mas, ao contrário, com frequência se


tornou impositiva de renúncias e adequações por parte do legisla-
dor português”135.

Acerca da impermeabilidade da matriz jurídica portuguesa em relação


às práticas normativas das populações indígenas do território onde hoje é o
Brasil, (populações fragmentárias, mas que poderiam ser reduzidas aos
dois grandes grupos étnicos dos Tupis e dos Tapuias), assinala Haroldo
Valladão que, apesar de termos conservado delas algumas influências
lexicais e alguns poucos e incontinentes usos não jurídicos:

“Todavia, costumes propriamente jurídicos dos indígenas não dei-


xaram quase vestígios em nossa legislação. O Direito Português
dominou soberano, varrendo todas as legislações aborígines, não
se deixando influenciar por elas, nem lhes aproveitando qualquer
conteúdo de modo relevante. A diferença de estágios culturais,
além da natureza inicialmente predatória da colonização por-
tuguesa, talvez explique essa imunidade do Direito Português a
qualquer influência duradoura de instituições indígenas”136.

Para o sociólogo e historiador do Direito, Machado Neto, das três forma-


ções étnicas que constituíram nossa nacionalidade (europeu-lusitana, africa-
na e indígena), somente a portuguesa trouxe influência sólida e definitiva à
formação jurídica brasileira137.

Quanto à cultura indígena, afirma que:

“Em outros aspectos da cultura, especialmente no folclore, na


alimentação e em certos hábitos do homem brasileiro, particu-
larmente o nordestino e o homem da grande bacia amazônica, a
contribuição do índio para a formação de nossa cultura, embora
modesta – derrubada que foi a sua elementar civilização por
outra muito mais evoluída – é ainda bastante palpável. Nos
grandes produtos da cultura espiritual é óbvio, porém, que sua
contribuição seria nenhuma ou quase insignificante. Tal foi o
que aconteceu no plano do Direito”138.

135 STRENGER, Dogmática Jurídica..., cit., p. 50.


136 VALLADÃO, História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 69.
137 Cf. MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia Jurídica. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 1979, p. 309-10.
138 Ibidem, p. 310.
72
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Também em relação à cultura africana, sustenta que:

“trazido na condição de escravo, se sua presença é mais visível e


assimilável no contexto cultural brasileiro, a sua própria condi-
ção servil e a desintegração social a que lhe impelia a imigração
não lhes permitiu também pudessem competir com o luso na for-
mação do Direito Brasileiro”139.

O autor então conclui com a seguinte assertiva,

“Tanto em matéria de Direito, quanto de qualquer outro setor cul-


tural, impôs, a uma região ocupada por povos primitivos de cultura
neolítica, toda uma tradição jurídica alienígena, todo um sistema
jurídico já em adiantado estágio de evolução cultural. Um direito,
uma língua, uma religião, um sistema político, um conjunto de há-
bitos e costumes sociais, toda uma herança social, toda uma cultura
em estágio atual de desenvolvimento, eis o conjunto de dons cultu-
rais que o fato colonizador instalou de improviso numa região”140.

Acrescente-se apenas que não podemos pensar nunca em termos de as-


similação pelo nativo de uma cultura alienígena, nem mesmo em termos
de imposição forçada e irresponsável do Direito Metropolitano (como
querem alguns partidários da historiografia crítica). Trata-se, antes, de ocu-
pação das terras colonizadas, ou ainda, de “fazer o Brasil”.141

139 MACHADO NETO, Sociologia Jurídica, cit., p. 310. Com Cláudio Valentin
Cristiani, asseveramos que, quanto aos negros, “a condição de escravos, ao
serem arrancados de suas nações na África e jogados em senzalas, fez com que
houvesse uma grande desintegração de suas raízes”. Cf. CRISTIANI, Direito
no Brasil Colônia, op. cit., p. 214. Isto posto, ainda que alguns traços ritualísticos
da cultura negra se fazem presentes em nossa religiosidade, quanto às estrutu-
ras culturais de ordenação da sociedade imperou para eles a sua condição de
coisa; portanto, impossível foi serem sujeitos formadores de nosso direito.
140 MACHADO NETO, Sociologia Jurídica, cit., p. 307. Para esse autor, tanto a
condição mais evoluída das práticas civilizacionais lusitanas, quanto a condição
desses primeiros serem os dominadores, não deixou margem para nenhuma
influência indígena ou africana. “Somente quando uma cultura militarmente
vitoriosa encontra como vencido um povo de muito superior evolução cultural
é que se pode conhecer a possibilidade de influência jurídica e cultural dos
vencidos. Foi o que se deu com as invasões bárbaras sobre as antigas províncias romanas”.
141 Ibidem, p. 308.
73
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

Em decorrência da expansão ultramarina, a Metrópole percebeu a neces-


sidade de criar um Direito especial para a direção e organização de sua
própria atividade colonial, que implicava como consequência na constru-
ção de regras de aplicação do Direito Lusitano nas terras colonizadas. Daí
decorre o processo de formação normativa de nosso Direito, que convém
apresentar em suas linhas gerais.

O primeiro momento da colonização brasileira, que vai de 1520 a 1549, foi


marcado pela prática político-administrativa de traço feudal das Capitanias
Hereditárias, baseadas juridicamente na Legislação Eclesiástica, nas Cartas
de Doação e nos Forais142.

Fracassada a experiência, tratou a Metrópole de dar à Colônia outra orien-


tação designada como sistema de governadores-gerais. Foi aí que, na pena
de Wolkmer:

“Surgiu, assim, a utilização de um certo número de prescrições


decretadas em Portugal, reunindo cartas de Doação e Forais das
capitanias até Cartas-Régias, Alvarás, Regimentos dos gover-
nadores gerais, leis e, finalmente, as Ordenações Reais. [...] que
englobavam as Ordenações Afonsinas (1446), as Ordenações
Manuelinas (1521) e as Ordenações Filipinas (1603).”143

142 Explica Martins Júnior: “as cartas de foral constituíam uma consequência e um
complemento das de doação; mas estas estabeleciam apenas a legitimidade da
posse e os direitos e privilégios dos donatários, ao passo que aquelas eram um
contrato enfitêutico em virtude do qual se constituíam perpétuos tributários da
coroa e dos capitães-mores, os solarengos que recebessem terras de Sesmarias”.
MARTINS JÚNIOR. História do Direito Nacional. Apud. NASCIMENTO,
Walter Vieira do. Lições de História do Direito. Op. cit., p. 201. Em cuidadoso
estudo sobre a natureza jurídica desses institutos, Walter do Nascimento,
após afirmar que “aos donatários era apenas concedido o benefício, o usufruto
das terras das capitanias, e não a propriedade territorial”, que “não podemos,
evidentemente aceitar o termo usufruto”, pois “o direito do beneficiário não
se extinguia com sua morte, isto é, o seu direito se transmitia por sucessão”,
que “pelo regime adotado, as capitanias eram inalienáveis” e que “o donatário
se afigurava como mandatário ou intermediário da coroa”, conclui que “já é de
ver que o sistema de capitania hereditária, examinado como um todo, conduz
a uma indefinição jurídica. Entretanto, analisado sob dois ângulos, esse sistema
constitui juridicamente, de um lado, contrato de coação, de outro, contrato de
enfiteuse.” Cf. NASCIMENTO, Lições de História do Direito, cit., p. 202.
143 WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p. 48.
74
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Sucintamente, o que se deu foi a transposição, por meio de normas espe-


ciais, sobretudo administrativas e judiciárias, do Direito Português para o
território brasileiro. E em pouco tempo (a partir de 1600, diríamos), o di-
reito aplicado no Brasil seria basicamente o mesmo aplicado na Metrópo-
le144. Já nos setecentos, a história normativa do Direito Colonial Brasileiro
encontraria sua fase última com as reformas de Pombal. A grande mudan-
ça em matéria legislativa seria a Lei da Boa Razão (1769), que definiria uma
centralização e uniformização da interpretação e aplicação das leis nos
caso de omissão, imprecisão ou lacuna145.

Apesar da constatação que, segundo Robert Shirley, “Portugal não ten-


cionava trazer justiça ao povo ou mesmo prestar os serviços mais elemen-
tares à sua colônia”146, sendo sua intenção garantir seu poder, a ordem
na produção e na cobrança dos impostos, fica patente que na formação
do Brasil está imbricado, desde o início, o Direito Europeu, pautado na
mais sólida e presente construção romanística das categorias e institutos
de Direito. Esse lento processo de formação da ordem jurídica nacional
vai então passar pela experiência do Império e da República, quando se
dá a consolidação das bases romanísticas em nosso ordenamento. Fator
que conviveu com a sedimentação de um direito formalista e dogmático,
calcado “doutrinariamente, num primeiro momento, no idealismo jusna-
turalista; posteriormente, na exegese positivista”147.

Quanto aos, assim chamados, operadores jurídicos e à administração da


justiça no período colonial, cabe destacar que a dinâmica dessa no período
das Capitanias Hereditárias estava entregue aos senhores donatários que
exerciam as funções de administradores, chefes militares e juízes, dirimin-
do os conflitos de interesses entre os habitantes da capitania. Os donatá-
rios delegavam funções judiciárias aos respectivos ouvidores148.

144 Cf. CRISTIANI, O Direito no Brasil Colônia, cit., p. 116-20.


145 Sobre a Lei da Boa Razão, faremos maiores considerações no tópico seguinte.
146 SHIRLEY, Robert. Antropologia Jurídica. Apud: WOLKMER, A História do Direito
no Brasil, cit., p. 49.
147 WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p.50.
148 “Por orientação das Cartas de Doação, a primeira autoridade da Justiça Colonial
foi o cargo particular de ouvidor, designado e subordinado aos donatários das
capitanias por um prazo de três anos. Tratava-se, numa primeira fase, de meros
representantes judiciais dos donatários com competência sobre ações cíveis e
criminais”. WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p. 58.
75
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

Com o advento dos governadores-gerais, desenvolveu-se a criação de


uma justiça colonial e, no aspecto administrativo, uma pequena burocracia
composta por um grupo de agentes profissionais. Os primitivos ouvidores
passaram a ser ouvidores-gerais com maiores poderes e com mais inde-
pendência em relação à administração política149.

O crescimento das cidades e da população aumentou os conflitos, deter-


minando o alargamento do quadro de autoridades da justiça e a reprodu-
ção, na Colônia, da estrutura jurisdicional da metrópole150. Cabe destacar
que esse processo culmina com a transferência, em 1808, do mais alto
órgão judiciário lusitano, o Desembargo do Paço, para o Brasil.

Assinalamos com Wolkmer, baseando-se nos estudos de José Murilo


de Carvalho, que a magistratura portuguesa, “de cujo núcleo nasceu a
brasileira, ainda que tenha emergido de estrutura burocrática, adquirira
condições de organização moderna e profissional”, o que, em nosso en-
tender, só foi possível (sobretudo um país vasto, isolado, e em incipiente
organização como era o Brasil) pela formação romanística que recebiam
aqueles que nela ingressavam. Ressalte-se que, para ingressar na carreira,
“era condição indispensável ser graduado na Universidade de Coimbra, de
preferência em Direito Civil ou Canônico”151.

149 Com o crescimento do interesse da Coroa pela área, a partir de 1550, “o ouvidor-
geral, na qualidade de funcionário de confiança, a cada passo assumiu novas
funções” e “acabou transformando-se num dos cargos mais importantes na
segunda fase da colonização”. Ademais, cabendo-lhe as questões de justiça,
“detinha um poder quase sem limites, sujeito ao seu próprio arbítrio pessoal; de
suas decisões, na maioria das vezes não cabia apelação nem agravo”. Ibidem, p. 59.
150 A organização judiciária brasileira passou a contar com uma primeira instância,
formada por juízes nas categorias de ouvidores, juízes ordinários e juízes especiais
(de vintena, de fora, de órfãos, de sesmarias, etc) Somente a partir de 1765, a
primeira instância pôde contar também com as Juntas de Justiça (composta pelo
ouvidor e por dois letrados adjuntos). Uma segunda instância era representada
pelos Tribunais de Relação e seus desembargadores e uma terceira instância era
representada pela Casa de Suplicação, com sede na Metrópole. Teríamos ainda,
para precisar a estrutura jurisdicional brasileira dos séc.XVI e XVII, que destacar
o Desembargo do Paço, o supremo conselho e esfera mais elevada da jurisdição.
Não tinha função precípua de julgamento, mas sim de assessoria para todos os
assuntos de justiça e de elaboração e correção da legislação. Ibidem, p. 60 e 62.
151 Cf. Ibidem, p. 63 e 65. Ademais, eram requisitos o exercício da profissão por
dois anos e a aprovação em seleção para o ingresso na carreira, promovido pelo
Desembargo do Paço.
76
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Além das formas tradicionais de justiça, cabe aludir, na determinante in-


fluência da Igreja Católica à época, a presença da Justiça Eclesiástica, o que
incluía a Inquisição152.

Podemos, então, concluir com Antônio C. Wolkmer, mais uma vez, que:

“Em síntese, o delineamento dos parâmetros constitutivos da le-


galidade colonial brasileira, que negou e excluiu radicalmente o
pluralismo jurídico nativo, reproduziria um arcabouço normati-
vo, legitimado pela elite dirigente e por operadores jurisdicionais
a serviço dos interesses da Metrópole e que moldou toda uma
existência institucional em cima de institutos, ideias e princípios
de tradição centralizadora e formalista”153. [grifos nossos]

Ou seja, de matriz solidamente pautada nas categorias jurídicas romanas.


Impõe-se, então, perceber, na etapa seguinte de nossa história jurídica,
como essa base romanística adquiriu relativa autonomia e nacionalidade,
mormente no que tange à produção de normatividades – via Império –
e de formação jurídica própria – via faculdades de Direito –, e também
como, neste processo, moldou-se tendo em vista seu encontro com o libe-
ralismo iluminista, o nosso pensamento jurídico.

Comprovada a supremacia do Direito Português na constituição origi-


nal de nossa normatividade jurídica, devemos, antes de continuarmos
no na exposição do desenvolvimento do Direito Nacional, confirmar
a forte base romanística desse Direito lusinano, por meio de um breve
estudo de sua longa formação, especificando-o no quadro da forma-
ção do Direito Europeu (esse, já estudado). Somente então – enten-
didos os modos pelos quais se deu a influência do Direito Romano
nessa cultura jurídica que moldou a juridicidade brasileira, mormente
durante os três primeiros séculos de nossa ‘existência’ –, é que pode-
remos passar ao estudo do enlace romanístico na cultura jurídica do
Brasil durante o Império e a República, quando então se dão princi-
palmente as influências francesas e germânicas154 em nosso Direito, o
que apenas virá a confirmar a nossa essencialidade romana.

152 Para leitura acerca do tema: Cf. SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição Portuguesa e a
Sociedade Colonial. São Paulo: Ática, 1978.
153 WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p. 71.
154 Sobre a primazia das influências francesa e germânica em nosso direito, em
detrimento das influências norte-americana e inglesa, falaremos mais adiante.
77
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

2 – A ‘Romanidade’ do Direito Português

Vale iniciar essa abordagem panorâmica das condições de formação do


Direito Luso, a partir da matriz romana, pela seguinte reflexão de Walter
Vieira do Nascimento:

“Consideremos a formação do Direito Português a partir do do-


mínio romano (201 a.C.) e do domínio visigótico (456 d.C.) na
Península Ibérica. Daí se infere que nessa formação encontra-se
dois de seus elementos básicos nos direitos desses povos domina-
dores, ou seja, o Direito Romano e o Direito Germânico. Um
terceiro elemento é representado pelo Direito Canônico, princi-
palmente depois do ano 589, com a conversão do rei [visigótico]
Recáredo ao Cristianismo”155.

A ela vale acrescentar que os visigóticos eram tribos germânicas extre-


mamente romanizadas156 e, ainda, que o Direito Canônico é, na visão de
historiadores do Direito como Marcelo Caetano, o baluarte da sobrevi-
vência da tradição político-institucional romana no Ocidente157.

Naquela época inicial, a formação do Direito Luso confundia-se com a


formação de todo o Direito Ibérico.

Na síntese de Machado Neto, quanto ao primeiro período:

“No período romano, a Lusitânia é – após a longa resistência


dos povos daquela região ao conquistador –, com Augusto, re-
duzida à condição de província do Império. Sob Constantino,
passa a integrar a Prefeitura das Gálias. O Direito então vigente
era a especial formulae provinciae, Direito Romano especial sob
a forma apropriada daquela repartição do Império, e mais os
éditos dos magistrados provinciais”.

Vespasiano estende a latinidade até aquelas regiões, e, com o

155 NASCIMENTO, Lições de História do Direito, cit., p, 183.


156 Cf. MEREA, Manuel Paulo. Estudos de Direito Visigótico. [Coimbra]: Atlântida,
1948.
157 Sobre o desenvolvimento do Direito Canônico: CAETANO, Marcelo. “As
grandes compilações do Direito Canônico: o Corpus Iuris Canonici”. In: História
do Direito Português. 2. ed. Lisboa: Verbo, 1985, p. 333-345.
78
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

édito de Caracala, a cidadania abrange também aquela pro-


víncia. O jus civile passa a ser o direito imperante em todo o orbe
romano”158.

Já quanto ao período visigodo:

“dá-se a transfusão dos costumes pessoais germânicos sobre o Di-


reito Romano da antiga Ibéria. Assim que a miscigenação das
raças tornou impraticável a aplicação pessoal da lei, os reis visigo-
dos veem-se na imanência de legislar. [...] Com Rescenvinto,
também rei visigodo, põe-se em termo final à pessoalidade das leis,
através do Forum Judicorum que foi composto de uma mescla de
costumes germânicos, Direito Romano Pré-Justinianeu e Direito
Canônico. Traduzido ao espanhol sob título de Fuero Juzgo [...].

Se a essas compilações, predominantemente germânicas, ajuntamos


o Breviarium Alariciarum, compilação do Direito Romano pré-
justinianeu realizada pelo rei bárbaro que lhe empresta o nome,
destinada à regulamentação da vida de seus súditos romanos ou ro-
manizados, teremos completado o quadro esquemático da influência
germânica sobre a formação do Direito Ibérico, que caracterizou o
chamado período godo da evolução jurídica de Portugal”159.

Mesmo como nação, desde 1140, pouco realizou Portugal em matéria le-
gislativa até 1210. Até então se observa um “complexo de normas e atos
dispersos, sem o menor vestígio de sistematização nacional, enquanto di-
reito unitário do Reino”. É que, ao “término do séc. XIII, ainda não se
conhecia em Portugal o ensino do direito, estando a justiça de cada locali-
dade a cargo de juízes despreparados”160.

Não nos esqueçamos, porém, que essa desorganização, reflexo do pluralis-


mo jurídico desagregador da Idade Média, não impediu um longo e paula-
tino processo de enraizamento das matrizes romanas na consciência jurídica
desse povo, similar ao que se deu na Europa como um todo; acontecendo,
porém, em cada sub-cultura europeia sob formas, circunstâncias e desafios
diferentes. No caso português, o desafio foi a presença relativamente lon-
ga da população árabe no território ibérico. Isso, porém, segundo juristas

158 MACHADO NETO, Sociologia do Direito, cit., p. 311.


159 Ibidem, p. 312.
160 Cf. NASCIMENTO, Lições de História do Direito, cit., p, 184.
79
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

como Pontes de Miranda e o historiador do Direito Português Guilher-


me Braga da Cruz, não afetou, nem matizou o traço genuinamente roma-
nístico da juridicidade lusa161.

No séc. XIII, o desenvolvimento de um municipalismo autônomo fez sur-


gir os conselhos formados pelos ‘homens bons do lugar’ e as câmaras por
eles eleitas, em cuja composição entrava um juiz, um representante do
conselho e dois vereadores, competindo-lhes o exercício do que se poderia
identificar como do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Produziam
as Leis locais, chamadas posturas.

Dessa falta de unidade, advém como reação os forais, “miniaturas de cons-


tituições políticas outorgadas aos conselhos municipais durante a Idade
Média”, cartas expedidas pelos soberanos portugueses concedendo fran-
quias e privilégios aos municípios e determinando modalidades de leis “de
caráter supletório, destinadas a suprir a ausência de costumes”162.

A partir de então, o localismo municipal vai sofrendo processo de paulatina


atenuação que se inicia com a decretação, já no Reinado de Afonso I (1210
em diante), das leis gerais para todo o território; evolução de um sistema que
iria manifestar-se por um cunho de administração centralizada. Nessa mesma
fase, instalam-se as cortes em Portugal, embora sob controle direto do poder
central, constituindo-se em órgão antes consultivo que deliberativo163.

Inicia-se, paralelamente ao processo de centralização, um processo de den-


sificação das estruturas do Direito (no plano da legislação, das instituições
e das ideias), com D. Dinis (1279- 1325), o Rei Trovador. Ele incentivou o
desenvolvimento das ciências jurídicas e o fez recorrendo, direta e indire-
tamente, à tradição romana. Despontam-se como seus dois grandes feitos
impulsionadores do Direito, primeiro, a “tradução e aplicação em territó-
rio português da Lei das Sete Partidas, como já dito, em vigor na Espanha
a partir de 1348, essa lei estava baseada no Direito Romano e no Direito
Canônico”; segundo, a “fundação da Universidade de Coimbra, em cujo
currículo constava o ensino dos dois citados direitos”164.

161 Ibidem, p, 183.


162 CÂMARA, José Gomes. Subsídios para a História do Direito Pátrio. Apud. NASCI-
MENTO, Walter Vieira do. Lições de História do Direito, cit., p, 185.
163 Cf. NASCIMENTO, Lições de História do Direito, cit., p, 186.
164 Ibidem, p. 187.
80
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

José Gomes Câmara afirma ser certo que “desde D. Dinis há vestígios de
que, pouco a pouco, o Direito Romano vinha penetrando nos usos, nas
praxes, do que seria possível chamar-se de foro lusitano”165.

No período subsequente, que compreende os reinados de D. Afonso (1325-


1357), D. Pedro I (1357-1367) e D. Fernando (1367-1385), notam-se algu-
mas transformações, um pouco mais lentas, traduzindo-se na paulatina su-
perposição, no âmbito das jurisdições, do direito régio frente aos costumes
e aos forais. Ademais, observa-se a limitação das jurisdições senhoriais, em
razão da imposição de sanções à prática da justiça privada.

Após esse período, assinala Walter do Nascimento que:

“É já no reinado de D. João I (1385-1433) que se acelera o movi-


mento iniciado por D. Dinis e do qual resultaria também em Por-
tugal o fenômeno da ‘recepção do Direito Romano na Idade Média’.

Nessa fase coube papel saliente ao célebre João Fernandes


de Aregas ou João das Regras, como ficou conhecido, con-
siderado o maior jurista lusitano do seu tempo. A ele foi dada
a grande e difícil incumbência de elaborar a codificação das leis
portuguesas, já existentes em elevado número [...]

Morto em 1404, não chegou João das Regras a levar a termo


sua vasta e dificultosa tarefa. Continuada por João Mendes,
que igualmente não a concluiu, coube a Rui Fernandes lhe
dar o arremate definitivo em 1446, portanto já no reinado de
Afonso V (1146-1481)”166.

Surgiram, assim, as Ordenações Afonsinas, primeira codificação da Eu-


ropa Moderna. O Direito Romano, do Corpus Iuris Justinianeu, ressalte-
se, há de ser considerado introduzido em Portugal por João das Re-
gras. Muito embora, segundo José Gomes Câmara, não passe de lenda
a tradução do Código de Justiniano a ele atribuída167, era um grande
estudioso do Direito Romano e foi com base nesse que procedeu a
primeira compilação de formalização, segundo as categorias romanas,

165 CÂMARA, José Gomes. Subsídios para a História do Direito Pátrio. Apud. NASCI-
MENTO, Walter Vieira do. Lições de História do Direito. Cit., p, 187.
166 NASCIMENTO, Lições de História do Direito, cit., p, 190.
167 CÂMARA, Subsídios para a História do Direito Pátrio, cit., p. 52.
81
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

das regras jurídicas que depois deram origem a essa primeira versão das
Ordenações168.
Outro movimento importante, pertinente ao reinado do D. Duarte (1433-
1438), foi a forte reação ao feudalismo em Portugal que havia adquirido
muita força com as doações recebidas da Coroa. A administração central
passou a baixar normas e atos a fim de limitar o campo de influência da
ordem feudal nos assuntos jurídicos. Com a Lei Mental de 1434, foi possí-
vel impor um cerceamento indiscriminado aos privilégios da aristocracia,
impedindo-se, assim, que o feudalismo tivesse em Portugal o mesmo de-
senvolvimento alcançado em vários países da Europa.
Em 1521, foram as Ordenações Afonsinas substituídas pelas Manuelinas, e
estas pelas Filipinas, em 1603, estando Portugal já sob domínio espanhol.
É certo que a partir das Ordenações Afonsinas o Direito Romano trans-
formou-se em norma subsidiária, mas Walter do Nascimento registra a
patente presença do Direito Romano nas Ordenações, por via não só da
linguagem jurídica romanística empregada por João das Letras e seus suces-
sores, mas também pela presença compilada nelas da Lei das Sete Partidas e
do Direito Canônico169. Ademais, a aplicação de tais Ordenações era sempre
feita segundo os parâmetros hermenêuticos inferidos dos conceitos e regras
jurídicas romanas. Issso, sem esquecer que, nesse período, a interpretação e
doutrina produzida sobre tais leis no reino lusitano eram elaboradas pelos
doutores formados das escolas romanísticas (os intérpretes cultos), que impri-
miam aos textos e as costumes uma forma acentuadamente romanista.
Sobre as Ordenações Manuelinas, sucessoras das Afonsinas, anota An-
tônio Celso Mendes que: “O propósito de D. Manuel era consolidar a
preeminência regalista, o que fê-lo aproximar-se mais e mais do Direito Romano
Justinianeu”170.

168 Pontes de Miranda afirma que, quanto a essas primeiras ordenações, temos
que avaliá-las segundo as situações da época da sua elaboração e que “a mistura
de disposições do sistema feudal, que decaía, com os princípios do Direito
Romano e Canônico, deixou nelas contradições (...). Porém, se nas Ordenações
posteriores alguma filosofia se pode descobrir, é aos compiladores das Afonsinas
que ela se deve”. PONTES DE MIRANDA. Fontes e Evolução do Direito Civil
Brasileiro. Apud. NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lições de História do Direito.
Cit., p, 190.
169 Cf. NASCIMENTO, Lições de História do Direito, cit., p, 193-4.
170 MENDES, Antônio Celso. Filosofia Jurídica no Brasil. São Paulo: IBRASA, 1992,
p. 16.
82
Uma história do pensamento jurídico brasileiro

Na vigência das ordenações Filipinas, temos o desenvolvimento final da


construção do moderno Direito Português, tendo em vista a destacada atu-
ação na área jurídica de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de
Pombal, verdadeiro chefe de governo no reinado do D. José I (1750-1777).
Quanto à sua contribuição na área jurídica, destaca-se a Lei da Boa Razão
(1769), que constituiu um marco na evolução do Direito Luso-Brasileiro.

Com a Lei da Boa Razão, fixaram-se e elucidaram-se as regras de aplica-


ção subsidiária do Direito Romano em Portugal, que, além de “somente
valer quando fundado na ‘boa razão’ não mais poderia ser invocado
senão na sua forma pura, ou seja, escoimado das glosas de Acúrcio e
Bártolo, então abusivamente em voga”171. A aplicação feita em confor-
midade com essa lei dava-se em consonância com o seguinte princípio:
“São conformes à boa razão as leis romanas aceitas pelo uso moderno”.

Ao contrário do que alguns juristas concebem, trata-se a Lei da Boa


Razão muito mais de imposição de uma releitura do Direito Romano e
de sua função no novo modelo jurídico, que se apresentava com o Ilu-
minismo, do que de repúdio ao mesmo.

Pombal encampou também a reforma dos Estatutos da Universidade de


Coimbra (no bojo da reforma de todo o ensino) em 1772. Declara José
Gomes Câmara que tal reformulação “constitui em uma das mais sober-
bas realizações do ministro Del-Rey”172. Foram introduzidas no currículo
da Faculdade de Direito novas disciplinas como Direito Natural, História
do Direito e Direito Pátrio. Ao mesmo tempo, o estudo do Direito Roma-
no passava a ser orientado no sentido do usus modernus pandectarum.

Ora, fica claro então que as reformas (das regras de aplicação e do ensi-
no), não visavam reduzir ou acabar com o estudo do Direito Romano173.

171 NASCIMENTO, Lições de História do Direito, cit., p. 195: “Segundo Clóvis


Beviláqua: ‘Esta indicação, se teve a vantagem de obrigar o jurista português, ou
brasileiro, a estudar o direito estrangeiro, pelo qual tinha de aferir a boa razão
das leis romanas, abrindo, assim, como já o fizera a citada lei de 1769, uma
larga porta às correntes jurídicas, dando franqueza e elasticidade às instituições
do Direito Nacional, impôs aos aplicadores do Direito um duro labor e deu
ensanchas às incertezas da doutrina”.
172 CÂMARA, José Gomes. Subsídios para a História do Direito Pátrio. Apud.
NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lições de História do Direito. Cit., p, 195.
173 Também no julgamento do promissor docente Giordano Bruno, com as
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Saulo de Oliveira Pinto Coelho

Pelo contrário, visavam recuperar seu estudo erudito, pautado nas mais
sólidas e atuais doutrinas europeias. Nada mais adequado ao espírito do
Direito Romano; um Direito Erudito somente funciona e cumpre sua
função e finalidade se pautado no saber densificado e preciso de suas ca-
tegorias fundamentais. É, inclusive, este o sentimento dos cultores iniciais
da Escola Histórica e da Pandectística, Savigny e Jhering (1818-1892).
Para eles, o conjunto das regras de Direito somente podem promover
seu fim último, a promoção plena da justiça, se for vivificado pela atu-
ação constante e atualizadora da Jurisprudência (Doutrina), e essa lição
constitui fruto da mais pura essência do Direito Romano Clássico, em
que beberam os referidos mestres (em oposição, inclusive, à decadência
do Direito Romano do período pós-clássico; que se deu não por deca-
dência das regras, mas por decadência da Ciência do Direito)174.

3 – Papel do Romanismo na construção do Direito Nacional: Impé-


rio e República Velha

Com a Independência, os ordenamentos jurídicos de Brasil e Portugal co-


meçariam a seguir caminhos próprios, apesar de tangenciais, e inicia-se um
longo processo de construção de uma identidade nacional, que passaria
pela identidade jurídica, no plano das regras, das instituições e das ideias.
Essa, porém, seria sempre uma cultura inserida no bojo da matriz Ociden-
tal europeia175.

modificações de Pombal, mesmo que agora filtrada pela boa razão, “o Direito
Romano era mantido como base do ordenamento”. ROBERTO, Giordano
Bruno Soares. Introdução à História do Direito Privado e da Codificação: uma análise
do Novo Código Civil. Belo Horizonte, Del Rey, 2003, p. 55.
174 Cf. IHERING, Rudolf Von. O Espírito do Direito Romano: nas diversas fases de
seu desenvolvimento. Trad. Rafael Benaion. Rio de Janeiro : Alba, 1943. Bem
como: SAVIGNY, Frederich Carl von. De la Vocacion de Nuestro Siglo para la
Legislación y la Ciencia del Derecho. Buenos Aires: Atalaya, 1946.
175 Veremos que passamos, a partir do Império, a sofrer uma influência ainda mais
direta (também no plano jurídico) da cultura francesa e inglesa, posteriormente,
(segunda metade do século XIX e XX, a partir da Escola do Recife) germânica
e já na República, também norte-americana. Mas, veremos que nossos traços
jurídicos básicos nunca deixaram de ser continentais-europeus, posto que a
partir da Independência observa-se com muito mais intensidade a assimilação
de influências francesas e germânicas a somarem-se ao legado luso, do que as
inglesas e norte-americanas.
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Uma história do pensamento jurídico brasileiro

3.1 – Realidade social e contexto jurídico

O processo acima mencionado traduz-se, no âmbito jurídico, nos seguin-


tes desafios: modernização, no sentido de adequação do Direito à nova vida
social; organização, tendo em vista a grande confusão que era gerada pela
infinidade de leis e regulamentos editados para completar ou modificar
as Ordenações Filipinas; e independência, posto que não só o país, mas seu
Direito também, teria de tomar rumo próprio, o que se traduziria na ne-
cessidade de uma cultura jurídica nacionalmente estabelecida176.

Esse último desafio, traduzido para o plano do pensamento jurídico, é perce-


bido por Wolkmer como uma questão de apreciar como o liberalismo aca-
bou se tornando nosso mais importante traço doutrinário no contexto impe-
rial, repercutindo e sendo repercutido pelo saber irradiado da fundação das
primeiras Escolas de Direito, na criação de uma elite jurídica própria, bem
como de um arcabouço legal positivo a consolidar-se no início da Repúbli-
ca. O que imporia, também, compreender as ambiguidades do liberalismo
brasileiro, que desde o início de sua adaptação teria que conviver com uma
estrutura político-administrativa patrimonialista e conservadora, e com uma
dominação econômica escravista. Isso porque a falta de uma Revolução no
Brasil teria impedido a ideologia liberal de desenvolver-se em sua plenitude
nos moldes do que ocorreu em países como Inglaterra e França, nossas maio-
res influências (econômica e jurídica, respectivamente) no período imperial177.

No contexto da paradoxal conciliação entre liberalismo e escravidão, ten-


deriam a abstrações as buscas por formas representativas de governo, so-
berania popular, igualdade e liberdade como direitos inalienáveis do ho-
mem. Nascido o Estado Liberal brasileiro da elite política dominante, já
no poder, e não de uma Revolução, e superada a luta pela emancipação e
a organização da ordem pós-independência, a ideologia liberal seria ca-

176 Roberto apontaria ainda o desafio da desigualdade social. Preferimos não indicá-
lo porque entendemos ser esse um desafio no plano amplo de nossa estrutura
sócio-política, não apenas jurídica, cf. ROBERTO, Introdução à História do Direito
Privado e da Codificação..., cit., p. 56.
177 WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p. 73-9. O liberalismo se traduziria,
na perspectiva político-jurídica, em princípios básicos como “consentimento
individual, representação política, divisão de poderes, descentralização
administrativa, soberania popular, direitos e garantias individuais, supremacia
constitucional e Estado de Direito”. Daí a contradição que representa a
escravidão nesse contexto.
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Saulo de Oliveira Pinto Coelho

nalizada em dois sentidos: um, voltado para grandes mudanças, que seria
superado no processo ou excluído; outro, conservador, traduzido nas fac-
ções da restauração e da conciliação. A partir de D. Pedro II, são esses
últimos, os moderados (já de tendência conservadora), que irão conduzir
nosso liberalismo, cindindo-se (sem, contudo, gerar uma grande polari-
zação) nos partidos conservador e liberal e, mais adiante, no período de
transição para a República, em monarquistas e republicanos178.

A Guerra do Paraguai desencadearia um sentimento de crescente descon-


tentamento com o status quo do segundo Império, haja vista a estagnação
do país. Esse sentimento, movido pela assimilação do Positivismo filosó-
fico (que vem se somar com o racionalismo liberal assimilado à época de
constituição do Império), estrutura-se politicamente e, após cair de po-
dre a escravidão, chega a vez do regime monárquico, que é passivamente
substituído pela República presidencialista e federalista de Deodoro e Rui
Barbosa. Em que pesem as mudanças e correções das incongruências do
período imperial que impossibilitavam a verdadeira assimilação da lógica
liberal (já em pleno vigor na Europa), a República Velha representará,
também ela, um continuísmo sem muitas modificações capitais, tanto no
plano socioeconômico, quanto político, marcada que esteve, pela mesma
lógica de monocultura latifundiária, (agora, cafeeira) e pelo mesmo Cons-
titucionalismo Clássico, que marcou a vida política do Império179.

3.2 – Ordem Jurídica e Organização da Justiça no Período do Impé-


rio e da Velha República

No que tange aos desafios apontados no item anterior, é no plano das re-
gras e instituições jurídicas que eles começariam a ser resolvidos, por meio
do desencadeamento do processo de elaboração de legislação própria no
Direito Público e Privado.

Surgia a necessidade de elaboração de um sistema jurídico autônomo. Sen-


do impossível elaborá-lo imediatamente, bem como temendo-se, segun-

178 Cf. VALLADÃO, História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 115 et. seq.
179 Sobre o Constitucionalismo Clássico ou liberal e a sua interimplicação com
os âmbitos tanto sociológicos quanto filosóficos, com reflexões sobre a
peculiaridade brasileira, ver: HORTA, José Luiz. Horizontes Jusfilosóficos do Estado
de Direito: uma investigação tridimensional do Estado social, do Estado liberal e
do Estado democrático, na pesperctiva dos direitos fundamentais. Universidade
Federal de Minas Gerais, 2002 (Tese, Doutorado em Filosofia do Direito).
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Uma história do pensamento jurídico brasileiro

do Machado Neto, a “ab-rogação maciça do Direito Português sem que


ele tivesse sido substituído”, a Assembleia Constituinte decreta a perma-
nência da vigência das Ordenações. Esse fato representa, para esse autor,
a “ratificação, em bloco, de toda a transplantação jurídica realizada pela
colônia”, acrescentando que “outro caminho não haveria, a menos que
fosse utópico”180. Isso, dada a naturalidade de nossa identificação com a
matriz luso-europeia e o fato de que, nos dizeres de Haroldo Valladão
(ao refletir sobre essa mesma questão): “uma nova ordem genérica jamais
elimina totalmente a anterior, (apenas) sobrepõe-se-lhe com revogações
específicas”181.

A revalidação da legislação portuguesa não poderia passar de providên-


cia transitória, que seria gradativamente revogada num lento processo de
emancipação que se inicia com a Constituição de 1824 e somente se con-
clui com a promulgação do Código Civil em 1916182.

Quanto ao Direito Público, este teria como seu grande documento nor-
mativo a Constituição de 1824183, marcadamente liberal, que foi acompa-
nhada da implementação de nova legislação penal, desencadeando o pro-
cesso de codificação das leis ordinárias184, com o Código Criminal de 1830,
seguido do Código de Processo Criminal de 1832. Tais documentos legais
desencadearam não só a gradativa substituição da legislação portuguesa,
mas também toda uma série de mudanças na estrutura jurisdicional que
acabaria por extinguir a estrutura lusitana simbolizada pelos ouvidores e
juízes de fora185.

180 MACHADO NETO, Sociologia Jurídica, cit., p. 315-6.


181 VALLADÃO, História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 112.
182 MACHADO NETO, Sociologia Jurídica, cit., p. 326.
183 Apesar do vexame representado pelo instituto do poder moderador e do comentário
de Paulo Bonavides no sentido de que, no que tange à proteção de Direitos
Fundamentais do Homem, a Constituição de 1891 era como “A árvore que não
dava sombra nem encosto, portanto, a Constituição que não dava liberdades
nem limitava poderes” Apud. HORTA, José Luiz Borges. Direito Constitucional
da Educação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 41.
184 Para leitura detalhada da formação da legislação brasileira no período do Império,
indicamos o capítulo especificamente dedicado à questão em: VALLADÃO,
História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 131-40.
185 Para estudo acerca das mudanças na estrutura jurisdicional brasileira à época
do Império, ver o capítulo “Magistrados e Judiciário no tempo do Império”,
na obra de Wolkmer, cf. WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p. 90-
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No plano do Direito Privado, a construção normativa começa com o Có-


digo Comercial de 1850186, seguindo-se do regulamento 737 que discipli-
nava o processo comercial, sendo estendido às causas cíveis, com isso
apresentando-se novas modificações na esfera jurisdicional. Quanto ao
Direito Civil, não foi ele, inicialmente, cuidado por meio de um novo Có-
digo. Esse teve seu primeiro projeto apresentado em 1865 e, após alguns
outros, promulgado, por razões que não cabe aqui neste estudo expor
exaustivamente187, somente em 1916. A legislação civil foi, primeiramente,
sistematizada por uma consolidação que, segundo a lei que a autorizou
deveria reunir organicamente “toda a legislação civil pátria, mostrando o
último estádio da legislação, contendo em disposições claras e sucintas as
disposições em vigor, (citando-se) em notas a lei autorizadora e o costume
estabelecido contra ou além do texto”. Incumbiu-se a Teixeira de Freitas
tal tarefa, concluída em 1857188. Seguiu a Consolidação em vigor, enquanto
malogravam os projetos de Código. O primeiro, de Teixeira de Freitas,
publicado entre 1860 e 1865, foi seguido pelos de Nabuco de Araújo

8. Ver, ainda: CARVALHO, José Murilo. A Construção da Ordem: a elite política


Imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980.
186 Quanto a esse diploma normativo, Wolkmer assevera que: “Mais do que ter suas
fontes de inspiração nos textos romanos, na doutrina italiana e na exegese civil
napoleônica, reproduzia a conveniência de relações mercantis e os interesses
contratuais e obrigacionais da elite local”, cf. WOLKMER, A História do Direito
no Brasil, cit., p. 88.
187 Machado Neto indica como razões da demora o fato da sociedade brasileira
da época, sobretudo em razão da estrutura latifundiário-escravista, interessava
mais a regulamentação da vida comercial que da civil. Vale ainda registrar que,
segundo esse autor, o Brasil, na contramão da história, dada a demora do
aparecimento da legislação privada pátria, correu atrás desse atraso de forma
tão acelerada que, malgrado as várias reformas de nossa legislação privada (e
aqui incluímos, por nossa conta, o ‘Novo’ Código Civil de 2003), “ainda não
logramos a plena adaptação de nossa instituições civis aos exigentes imperativos
da sociedade e da economia contemporâneas. A ‘revolta dos fatos contra os
códigos’, já vitimou diversos institutos de nossa legislação civil”. cf. MACHADO
NETO, Sociologia Jurídica, cit., p. 327-8.
188 Cf. VALLADÃO, História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 143-5.
Segundo esse autor: “Era obra hercúlea, acima das forças de qualquer mortal;
por ordem naquele caos representado pelas Ordenações Filipinas, dos princípios
do séc. XVII, alteradas por uma confusíssima legislação portuguesa extravagante,
de dois séculos, até 1822, suplementada com o Direito Romano e o Direito
Canônico, com estilos e costumes, e as leis das nações cultas, e pelos praxistas que
as invadiram, além dos preceitos da Carta de 1824 e das novas leis brasileiras”.
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Uma história do pensamento jurídico brasileiro

(1872) e Felício dos Santos (1881) e, já rompendo a República, os de Co-


elho Rodrigues (1890) e Clóvis Beviláqua (1899), este último feito lei
após quase duas décadas189.

Retornando ao plano do Direito Público, a inevitável abolição da escra-


vatura190 desencadeou o processo de reforma político-administrativa da
Proclamação da República191 (1889), que culminou com a aprovação por
assembleia da Constituição de 1891. Segundo Haroldo Valladão:

“O Brasil abandonava o regime monárquico e voltava-se para


os ideais da Inconfidência, [...] da República federalista e presi-
dencialista, [...] mantidos, porém, vários preceitos, em especial da
declaração de direitos, vindos da Carta do Império” 192

É dura a crítica de José Luiz Borges Horta à primeira Constituição repu-


blicana. Citando Pinto Ferreira, assevera que:

“A Constituição de 1891, para Pinto Ferreira esculturada


‘segundo o estilo da Constituição norte-americana, com as ideias
diretoras do presidencialismo, do federalismo, do liberalismo po-
lítico, e da democracia burguesa’, [...] representou a consolidação
do Estado, e bem assim da Educação, laicos no Brasil.

Após um processo constituinte recheado de formalismos (uma as-

189 Sobre o projeto de Clóvis Beviláqua, anota Antônio C. Wolkmer que “o primeiro
e tão esperado ordenamento civil, substituindo as ordenações portuguesas, deixa
transparecer o espírito que norteava seu redator, Clóvis Beviláqua, integrante
da Escola do Recife e (por isso) com pendores naturais para a recepção do
Direito Alemão”, além do que reconhece seus “méritos de rigor metodológico,
rigor técnico-formal e avanços sobre a legislação portuguesa obsoleta”. Cf.
WOLKMER, A História do Direito no Brasil, cit., p. 89. Para uma leitura detalhada
da questão da influência romanística na codificação brasileira: Cf. SILVA, Almiro
de Couto. Romanismo e Germanismo no Código Civil Brasileiro. In: Revista da
Faculdade de Direito da UFRS, v. 13, Porto Alegre: 1997 p. 7-27.
190 Para leitura acerca da escravatura e sua abolição, ver capítulo específico em:
VALLADÃO, História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 160-9.
191 Haroldo Valladão destaca que o pensamento político mineiro possuiu papel de
destaque na construção da República, ativo durante toda a segunda metade do séc.
XIX. Cf. VALLADÃO, História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 171-2.
192 VALLADÃO, História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 173.
89
Saulo de Oliveira Pinto Coelho

sembleia que não debate, uma comissão redatora que não chega
a produzir um texto, um revisor que na verdade introduz linhas
mestras), a Constituição afinal consagrada pela pressa dos rebel-
des de 1891 jamais esteve à altura de suas grandes tarefas. [...]

Sob o pálio do Texto republicano, as oligarquias estaduais atin-


giram o apogeu; se o Império as sufocara, ante uma Constituição
permissiva estruturaram no país um jogo de poder – a célebre
‘política dos governadores’ – e de torpeza no uso da máquina
pública que até aqui não pôde ser sepultado”193.

Para Celso Mendes, “era previsto que os preceitos contidos na Carta de


1891 não seriam suficientes para corresponder às expectativas práticas de
modernizar as estruturas arcaicas do país”194. O decorrente coronelismo e
a corrupção eleitoral estavam a demonstrar sua inoperância histórica.

Mas, apesar de todos os seus defeitos, para Haroldo Valladão, o grande


princípio decorrente da Constituição de 1891 seria o judiciarismo, enquanto
mandamento de caber sempre à Justiça, em especial ao Supremo Tribunal
Federal, a última palavra na interpretação constitucional. Para tal fim deve-
ria dispor o indivíduo de dispositivo sumaríssimo, o Habbeas Corpus, para
a garantia que vai, inicialmente, da liberdade de locomoção, até, após ad-
mirável construção doutrinal e jurisprudencial195, à “proteção da liberdade
de locomoção, meio ou condição para o exercício de qualquer Direito, desde que
certo, líquido e incontestável”196.

É a doutrina brasileira do Habbeas Corpus. Tem-se, daí, a origem do insti-


tuto do Mandado de Segurança (construído na vigência da Constituição de
1891 e inserido no texto da Constituição de 1934), inovação em todo o
constitucionalismo mundial e prova incontestável do amadurecimento e
autonomia que a cultura jurídica brasileira então alcançava. Esse aconte-
cimento representará simbolicamente a entrada do Brasil, pelo menos no
plano das regras e instituições jurídicas, no século XX.

193 Cf. HORTA, Direito Constitucional da Educação, cit., p. 44-9.


194 MENDES, Filsosofia Jurídica no Brasil, cit., p. 79.
195 Construção essa, desenvolvida por Pedro Lessa, de quem falaremos mais
adiante.
196 Cf. VALLADÃO, História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro, cit., p. 174-6.
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