O documento discute como as concepções platônicas influenciaram o pensamento e comportamento europeu, valorizando a cognição "científica" em detrimento de outros modos de pensamento. Isso levou a uma visão limitada do ser humano na Europa, precipitando isolamento e alienação ou agressividade. A teoria da humanidade de Platão criou uma ilusão do "eu isolado" que se tornou normativa na sociedade européia.
Descrição original:
Título original
Yurugu Uma crítica afrocentrada do pensamento e comportamento cultural europeu
O documento discute como as concepções platônicas influenciaram o pensamento e comportamento europeu, valorizando a cognição "científica" em detrimento de outros modos de pensamento. Isso levou a uma visão limitada do ser humano na Europa, precipitando isolamento e alienação ou agressividade. A teoria da humanidade de Platão criou uma ilusão do "eu isolado" que se tornou normativa na sociedade européia.
O documento discute como as concepções platônicas influenciaram o pensamento e comportamento europeu, valorizando a cognição "científica" em detrimento de outros modos de pensamento. Isso levou a uma visão limitada do ser humano na Europa, precipitando isolamento e alienação ou agressividade. A teoria da humanidade de Platão criou uma ilusão do "eu isolado" que se tornou normativa na sociedade européia.
Yurugu Uma crítica afro-centrada do pensamento e comportamento culturais
europeu
Por Marimba Ani
Extraído do glossário Asili
A razão de uma cultura, dentro da qual seus vários aspectos são coerentes. É o embrião/semente que desenvolve uma cultura. É a essência cultural, o núcleo ideológico, a matriz de uma entidade que deve ser identificada a fim de dar sentido às criações coletivas de seus membros. Utamawazo
Pensamento cultural estruturado. È a forma pela qual o conhecimento é determinado por uma Asili cultural. É o modo no qual o pensamento dos membros de uma cultura deve ser modelado se a Asili está para ser realizada. Utamaroho
A força vital de uma cultura, posta em movimento pela Asili. É a fé ou a fonte de energia de uma cultura; aquela que dá tom emocional e motiva o comportamento coletivo de seus membros. Ambas a Utamawazo e a Utamaroho nascem da Asili, mas como suas manifestações.
Um excerto do Capítulo 1
“Utamawazo: A estruturação cultural do pensamento” Teoria da humanidade
Uma teoria do ser humano já foi incluída em nossa discussão sobre as concepções platônicas. Nós, como humanos, não somos seres completos, mas sim feitos de partes que estão em constante conflito entre si. Somos compostos pela “razão”, “inteligência” e nossa “natureza boa” que está constantemente buscando controlar nossos desejos, ânsias, emoções e adequar nossos “sentidos” ao melhor uso. A melhor parte deve controlar a “pior”. De acordo com Eric Havelock, Platão ”descobriu” a “psique” que veio a se referir ao “pensamento isolado do eu”. O eu não era mais concebido como um ser universal, que é, um ser que se fez experiente conforme envolvido intimamente com outros seres no cosmos. Um “eu universal” sugere que a realidade do eu é fenomenalmente parte de outras realidades apresentadas como resultado de uma coexistência sensível, consciente e espiritual no universo. Cosmos propriamente dito se refere ao universo como um todo unificado, inter-relacionado (orgânico). Havelock está dizendo que a Grécia “pré- platônica” compreendia o eu desta maneira. Isto tem um sentido histórico visto que a Grécia relacionou suas associações culturais e intelectuais com tradições africanas primitivas. As visões de mundo africana e nativo-americana têm conceitos universais semelhantes. Suas tradições intelectuais e sistemas de pensamento apoiam-se em uma base de relações comuns tanto quanto sobre uma relação simpática com a natureza. Como tal conceito sobre o ser humano interferiria nos regulamentos básicos da epistemologia de Platão? Por que era essencial que ele lançasse dúvida sobre a validade de tais conceitos? Um ser universal deve ser um todo. Em tal ser, razão e emoção não podem ser experimentadas como um disparate, desconexo e antagônico. Um ser universal não deve objetivar o universo. Quanto mais “inteligente” um eu como este se torna, mais ele enxerga as línguas como meras metáforas. A idéia é comum aos sistemas de pensamento mencionados. As maiores e mais profundas verdades não podem ser verbalizadas até que um ser penetre a dimensão entre a palavra profana onde o significado dos símbolos fica claro. No entanto para Platão o “eu universal” é incapaz de saber; ele pode apenas perceber, sentir, intuir e ter “opiniões”. (A ascensão do assim chamado “lado esquerdo do cérebro”). Platão estabelece ao contrário o “pensamento autônomo do eu”. De acordo com Havelock, este “eu” ou “psique” é uma coisa ou entidade capaz não apenas da cognição científica, mas da decisão moral. [36] Platão não apenas torna manifesta a idéia do “eu pensante” – uma idéia que deve tê-lo antecedido – mas ele simultaneamente suprimiu outros aspectos de nosso ser “humano” como inválido ou inconveniente (irreal) e declarou esta função além conceitual – esta atividade totalmente cerebral – como a essência da humanidade. Nesse ponto encontram-se sua singularidade, estranheza e significância simultaneamente. Ele tinha oferecido uma nova teoria de humanidade (homem/mulher). Bem mais tarde, apanhado nas dores da teoria revolucionária, ela se tornou muito importante no pensamento europeu para enfatizar as características usadas para separar e distinguir “humanos” de animais. “Inteligência”, obviamente, era a chave; a essência do homem/mulher. (Para Michael Bradley está é a “descoberta do tempo”)[37]. Usando as concepções de Platão e elaborando-as, inteligência adquiriu uma definição própria. Cientistas têm falado por algum tempo sobre duas partes ou “hemisférios” do cérebro. Acredita-se que o lado esquerdo controle certos tipos de processos do pensamento. [38] As implicações envolvidas são importantes para esta discussão e serão discutidas mais tarde. Um ponto relevante a ser feito aqui é que enquanto todas as culturas e todas as pessoas envolvem os dois “modos hemisféricos”, assim falando, em funções “normais”, culturas e consequentemente seus membros podem valorizar uma forma de cognição a outra. Nestes casos, uma será enfatizada e encorajada enquanto a outra não. Uma pessoa será recompensada por pensar conforme o modo valorizado e tais hábitos de pensamento serão reforçados nos processos formalizados de aprendizado e socialização. A mesma pessoa será “punida” por pensar segundo o modo “desvalorizado” e “fracassará por fazer isso”. No século XIX a Europa, na qual uma teoria revolucionária não linear reinava, cientistas europeus disseram que o hemisfério esquerdo era “mais importante” porque ele era associado com “pensamento” e “razão”, o que diferenciava humanos de animais. O hemisfério direito era classificado “menos importante” e menos avançado ou evoluído. Ele tinha uma capacidade “menor”, lidava com a “emoção” e tinha que ser direcionado pelo hemisfério esquerdo. Esta era claramente uma versão do século XIX da concepção platônica, que dividiu o homem/mulher em tendências racionais e emocionais, faculdades superiores e inferiores e ordenou o domínio e controle do emocional como um estado normativo do ser. E então, “ordem” e “justiça” foram atingidas. Platão determinou o caso para este tipo de ordem na pessoa e, por extensão, no estado. Evolucionistas do século XIX estavam dando suporte “científico” para o mesmo tipo de “ordem” imposta entre as culturas do mundo controlando as mais “emotivas” (menores ou menos avançadas). O ponto crítico para esta análise do pensamento e comportamento europeu é a teoria platônica e a epistemologia e seu subsequente desenvolvimento, aculturação e reformulação que forneceram os mais eficazes suportes ideológicos para os políticos e culturalmente agressivos padrões de comportamento do povo europeu precisamente porque o argumento estava declarado em termos acadêmicos “intelectuais” e “científicos”. Platão não apenas ajudou a estabelecer uma teoria sobre o ser humano que valorizaria a cognição “científica” e excluiria os outros modos cognitivos, mas também estabeleceu a academia científica. Desde então esta se tornou uma característica da cultura européia que a associação com a academia representasse uma associação com a verdade, com a capacidade racional superior e imparcialidade ou “objetividade” – isto também significa uma falta de comprometimento com qualquer outra coisa que não a “verdade abstrata”. O que as concepções platônicas também incluíram, consequentemente, foi que os atos mais politicamente motivados (por exemplo, guerras de agressão, escravidão baseada nas raças) poderiam ser justificados no que se passava por uma política, em termos “científicos”; os termos de uma suposta “verdade universal”, a eterna “idéia” imutável. Este não era necessariamente o objetivo de Platão, mas este é o uso em que este conceito foi colocado dentro limites da cultura européia, modelados pelas necessidades da utamaroho européia. A asili – poder exigente – fez uso apropriado da idéia da “verdade universal”. O objetivo aqui é apresentar os fundamentos para uma análise compreensiva do pensamento e comportamento europeu examinando aspectos relacionados da teoria platônica com relação a seu significado ideológico no subsequente desenvolvimento europeu. Esta análise termina e começa sintetizando o que é a asili demonstrando a consistência e coesão, o caráter monolítico, da tradição sob escrutínio. A teoria de humanidade de Platão é um aspecto crucial de toda sua teoria. Ele cria com sucesso uma ilusão do eu isolado e então, na sociedade européia (Euro- americana) do século XX, este eu é de fato experimentado como a psique. Esta concepção do pensamento autônomo do eu prendeu o europeu a uma visão reduzida e limitada do homem. Isso precipitou um tipo de retardamento espiritual no qual doloroso isolamento e alienação ambos incapacitaram os participantes da cultura ou os fizeram competidores extremamente eficientes, agressores e tecnocratas (peritos). No Theatetus, Sócrates usa o termo “alma” como sinônimo de “mente”. Dada à concepção platônica de faculdades mentais significantes, isso significa que a alma tornou-se identificada com o pensamento cognitivo, com o cálculo “frio”, com a falta de emoção e uma negação do sentimento e da sensação. Que teoria do ser humano isto implica? E que tipo de utamaroho e comportamento são desenvolvidos em uma cultura que aceita tal teoria? Se eu estiver certa em sugerir que estas concepções platônicas de fato se tornaram normativa e espantosamente poderosa como modelos cognitivos e se pudermos aceitar a relação entre a utamawazo (personalidade cognitiva cultural) e utamaroho (características afetivas) como sendo íntimas e co-produtivas, então um modelo começa a emergir claramente do pensamento e comportamento padronizados reforçando um ao outro conforme eles se desenvolvem. No Theaetetus, Sócrates fala sobre a alma percebendo-se sob seu próprio “poder”. Ele faz a distinção entre o corpo e a alma ou mente. Através dos órgãos do corpo percebemos “solidez”, “frio”, “o vermelho” etc., mas com a mente (alma) nós “refletimos”, fazemos julgamentos e “pensamos” sobre “semelhanças”, “diferenças” – coisas que requerem conhecimento das “formas” ou do ”ser”. A alma reflete com seu próprio “poder” e os objetos que ela percebe são universais. A universalidade emerge como superioridade e valor. Nos capítulos seguintes, o atributo da universalidade será traçado ao longo do caminho da ideologia européia conforme esta de desenvolve e se fortalece na estrutura da cultura. O que é isso que a alma, mente ou psique tem que o corpo e os sentidos não têm? Isso é claramente controle e com o controle vem o poder como “habilidade de dominar”. O desejo (necessidade) pelo controle e pelo poder são os fatores mais importantes para a compreensão da asili européia. Veremos que a sensação de controlar os outros e consequentemente ter o poder sobre eles é estética, psicológica e emocionalmente a experiência mais satisfatória que esta cultura pode oferecer. Isto, por conseguinte, satisfaz a utamaroho. É a busca por estes sentimentos e este estado do ser que motiva seus membros. A sensação de controle e poder são atingidos de diversas maneiras na cultura européia, mas o que é importante aqui é que nos seus primeiros e constituintes estágios, Platão assentou as bases para que isto fosse atingido através de uma epistemologia que rejeitava a participação poética, ganhando por meio disso “independência” (Havelock) do envolvimento poético para “criar” e compreender o objeto próprio do conhecimento. O “objeto” era nesse sentido controlado pela mente que o contemplava. Com esse conhecimento veio o poder porque o mundo podia começar a ser entendido como sendo composto por muitos objetos que poderiam ser manipulados pelo conhecedor, o conhecedor que estava ciente de si mesmo (mulheres não contavam) enquanto conhecedor e estando completamente no controle. O homem pré-platônico, sob esse ponto de vista, era fraco, não tinha controle próprio e era, além disso, manipulado por uma miríade de emoções que lhe faziam sentir as imagens a seu redor. Tal é a imagem que nos é dada. Não podemos exagerar na importância de Platão precisamente porque encontramos teóricos e estudiosos europeus trazendo o mesmo argumento, pintando o mesmo quadro no século XX. Henri e H.A. Frankfort se preocupam aqui com a distinção entre o antigo, “homem primitivo”, e o pensamento “mito poético” de um lado e o moderno, homem “científico” e o “pensamento científico” de outro. O pensamento mito poético desconhece pontos mortos e confronta um mundo animado de extremo a extremo Ele não está apto a deixar a extensão do concreto e render seus próprios conceitos como realidades que existem por si. [p. 14] ... o modo da mente mito poética expressar um fenômeno de imagens multiplicadas correspondentes a avenidas não conectas de abordagem claramente conduz antes ao distanciamento que à aproximação, nosso postulado de casualidade que busca descobrir causas idênticas para efeitos idênticos em todo o mundo sensível. [p.20] ... o pensamento mitopoético deve ter não menos êxito que o pensamento moderno em estabelecer um sistema espacial coordenado, no entanto, o sistema não é determinado por medidas objetivas, mas por um reconhecimento emocional dos valores.[39] Não apenas a epistemologia de Platão traz o controle acompanhado de poder, mas também sua consequente teoria de que o homem (ser humano) produz a concepção européia do ser autenticamente moral. Para Platão, com a racionalidade vem o poder de tomar as decisões morais e apenas este novo “pensamento autônomo do eu” (Havelock) pode ser à base da decisão moral. Esta posição, no entanto, representa uma confusão entre o espiritual e o científico/racional. Tendo equiparado o potencial humano com uma faculdade racional separada, Platão nos tira de um contexto social humanamente definido como a base ou determinante do nosso ser. Ele então nos coloca de volta em um contexto artificialmente construído, que é agora um reflexo de seu conceito abstrato do “bom” e do “verdadeiro”; uma negação da realidade vivida e experimentada. De fato, nossos conceitos de moralidade devem refletir nossas ideias tanto quanto nosso sentimento sobre o devido inter- relacionamento humano. A pessoa “racional” não é necessariamente a pessoa com “moral”. Pode ser “racional” (eficiente) se pensar em termos de uma geração seletiva, clonagem e extermínio para produzir a “raça superior”. Fazer isto não é espiritual ou moralmente interessante. Platão parece estar dando pistas de que o método científico gera a ação “certa”. No entanto, a guerra no século XX é simultaneamente racional e irracional. Filmes europeus nos quais cientistas loucos fazem coisas loucas são expressões dessa aparente contradição. Ainda sim, aquela personalidade é uma extensão “lógica” da equação platônica do moral e do racional. Este argumento tem sido expandido, refinado e camuflado nos termos da “moderna” filosofia crítica européia. Jurgen Habermas parece argumentar sobre um tipo de linguagem universal de ”racionalidade comunicativa” na quais seres sociais/culturais confiam em seu próprio exame intelectual das discussões como a base para julgamento, como se opostos a confiar em suas tradições culturais como fonte para validação de escolhas/ações.[40] Isto para Habermas seria parte do processo de “racionalização” e pode levar a um comportamento moral autêntico ou pelo menos a um critério para determinar tal comportamento. Sua linguagem é a usada no discurso filosófico europeu dos anos 80; o modelo platônico relacionado à perfeição intelectual. É a “racionalidade” em sua chamada mais comovente por um racionalismo universal como base para “orientações racionais para a ação”[41] e ordem social racionalizada. Habermas usa a teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget com relação ao valorizado processo de “descentralização”, no caso a priori. Nesta teoria sobre o homem (ser humano) e o Estado, Platão obtém êxito ao exorcizar a realidade humana e social de sua problemática e caráter ambíguo. Ele consegue isso criando sua própria realidade na qual a abstração matemática reina. A verdade “real”, ele diz, é o que não experimentamos. È o ser imutável. Nossa experiência não é real, mas está mudando constantemente, se transformando. O que isso de fato permite que ele faça é criar uma realidade “irreal” na qual ambiguidade, imaginação criativa e incerteza da verdade humana são superficialmente eliminadas. Claro, não há nada como a realidade “irreal”, então na verdade a problemática ainda existe. A República de Platão é uma estrutura teorética. Sua teoria sobre o humano não é realística. Ela deixa de fora alguns princípios da humanidade e então como um modelo a ser imitada ela tem a tendência de criar “homens unidimensionais” de Marcuse. Cada um de nós é ajustado para uma tarefa ou modo de participação no Estado. O Filósofo-rei e Guardiões determinarão nosso lugar correto e, assim, nosso destino, muito claro, muito simples. A república é modelada segundo o “bem”, uma realidade abstrata, não ambígua, imutável e monolítica. Para que isto funcione, as pessoas que estão dentro dela teriam que ser convencidas sobre a teoria do ser humano sobre a qual ela repousa. Stanley Diamond explica porque o artista era visto como uma ameaça ao Estado; O artista não acredita em sistemas abstratos; ele lida com ideais emocionais sentidos e ordenados e acredita que a ordem é obtida através de contradições, das tensas uniões da experiência do dia-a-dia. Desta maneira, o artista pode ser instável, uma criança defeituosa e isto é um ameaça para qualquer estabelecimento..[42] Por outro lado, um matemático se aclararia muito melhor como a visão de Platão do homem ideal para o Estado ideal. Ele enfatiza a matemática no currículo para os guardiões. Para ele, “matemática” tem o formato da verdade e pode fornecer a solução para todos os problemas. Aqui é novamente sugerido um conceito particular da natureza humana. E se as pessoas de fato não era dessa maneira, assim ele as faria. Ele modelaria suas mentes para pensar da maneira que deveriam pensar para fazer sua equação matemática. Porque “números nos arrasta ao Verdadeiro Ser). [43] Em outras palavras, havia mudanças que ele teria que fazer nos hábitos cognitivos (utamawazo) dos participantes da cultura se ele estava prestes a ter êxito na criação de uma nova ordem.
O novo modo de dominação
O nascimento da arcaica utamawazo “européia” foi acompanhada e suportada pela introdução do modo culto como dominante e como um modo de expressão valorizado na cultura. A forma escrita preservou a comunicação em uma forma precisa e constantemente crescente no que estava para se tornar “Europa”. A escrita vinha sendo usada muito, muito antes em outras culturas, mas como no Kemetic MDW NTR (antigos “Hieróglifos egípcios”), ela envolvia formas que simbolizavam muito mais que sons e objetos. O MDW NTR contém um simbolismo transformador que agrega concepções africanas de verdades cósmicas e universais. [44] Esta é uma indicação da natureza da visão de mundo européia e, claro, um exemplo da intensidade do nacionalismo cultural europeu com o quais estudiosos europeus caracterizam tão consistentemente o MDW NTR de Kemet como sendo meramente “concreto”. [45] Esta forma de “reducionismo” é uma forma de super-simplificar a antiga escrita africana, a primeira forma de escrita. É uma tentativa de fazer o MDW NTR parecer conceptualmente limitado e algumas vezes contraditório. Na verdade, o MDW NTR era muito complexo para os objetivos de Platão. Ele precisava de uma modalidade que roubasse os símbolos dos “simbólicos” deles, do conteúdo esotérico deles. Eles tinham que ser desembaraçados do cosmos. É importante entender o processo pelo qual o modo culto se tornou dominante na cultura e entender exatamente o que se depreende do “modo culto” neste contexto. Ainda que para vários séculos futuros ele fosse inacessível para a maioria da população, ele ainda tinha um lugar valorizado na nascente, arcaica e feudalista sociedade européia e afetava muito a configuração da cultura. Estamos descrevendo um processo de desenvolvimento e porque o desenvolvimento tinha uma “direção” não significa que outras características não eram identificáveis. O poético, ou como Henri e H. A. Frankfort o chamam, “mitopoético”, continuava a existir entre a vasta maioria da população, mas ele era relegado a uma posição desvalorizada, sugerindo inferioridade de capacidade intelectual. Eis o porquê de “o primitivo”, eurocentricamente definido, é sempre associado com a ausência da escrita e é considerada “pré-literata”. Na Europa nascente o modo culto tinha força ideológica. Lembrando que de acordo com a epistemologia platônica devemos atingir objetividade para conhecer e que em seus termos isto é atingido quando fazemos nossa razão dominar nossas emoções, o que em troca nos dá controle. Ganhamos controle acima daquilo que queremos conhecer, criando então um “objeto” de conhecimento. O modo de comunicação preservado (que havia caracterizado a maioria das culturas e o qual prevaleceria por séculos na Grécia depois de Platão) era o poético, o oral e a alguma extensão o modo simbólico, apesar de a cultura grega não ser tão desenvolvida neste campo, tomando emprestado de outras culturas seus conceitos sagrados e religiosos. Este modo repousava sobre a identificação do conhecedor com o conhecido. Com relação à memorização e familiaridade do ouvinte/participante com o assunto em uso, os modos simbólicos das civilizações mais antigas e desenvolvidas também requeriam apreensão das abstrações, mas estas não eram as abstrações racionalistas que viriam a dominar no pensamento europeu. Na análise dos teoristas europeus foi esta memória, esta identificação emocional e “envolvimento”, causada pelo modo poético, “oral” e “homérico”, que havia limitado o homem “pré-platônico”. Esta caracterização nos leva ainda a outra “divisão”, outra dicotomia de odiosa comparação. E com este outro aspecto da suposta “superioridade” dos europeus suas mentes se constroem. O homem “pré-platônico” (termo usado por Havelock), a quem as epopeias de Homero representavam e a quem eram direcionadas, estava em dificuldades de acordo com Havelock. Ele é descrito como “não culto”, o que claro tem muito mais força ideológica do que apenas dizer que ele preferia a forma poética. Isto vem à tona como uma fraqueza e inabilidade de conceituar, como uma característica negativa. Isto o desvaloriza como pessoa. Esta pessoa “não-literata”, “pré-platônica” também pega inúmeras características que, sob a visão de mundo européia, são sem valor ou absolutamente negativas. Havelock descreve o “homem homérico” como estando em estado “dormente”, como se estivesse drogado. Sua mente é governada por uma “aceitação não crítica”, “rendição a si mesmo”, “automatismo”, “passividade de condições mentais”, “superabundância no emprego das emoções”, “transe hipnótico”, “complacência”. Ele usa “linguagem de sonhos” e é vítima da “ilusão”. Ele está no “longo sono do homem” e é até “preguiçoso”.[46] Porque Havelock é tão duro com aqueles que ele coloca em oposição intelectual a Platão? É como se este estágio na história do desenvolvimento grego ou europeu devesse ser destruído; sem dúvidas, completamente repudiado. Veremos nos capítulos seguintes deste estudo porque estes são precisamente os termos que os europeus usam para descrever e humilhar outras culturas, culturas que são caracterizadas como “primitivas”. E estes são os termos que eles usam para caracterizar as habilidades das crianças de origem africana e de outros grupos que são vistas como deficientes em valores culturais e raciais entre as sociedades que os europeus dominam. De fato, as academias européias “criam” tais estereótipos. [47] Em cada um destes exemplos, incluindo a crítica de Havelock aos hábitos mentais dos seres humanos “antes” de Platão, as afirmações feitas têm significado ideológico. Elas estão sustentando um modo de vida escolhido, um conjunto de crenças. O objetivo é estabelecer o “modo de vida” como superior a tudo que o precedeu ou que é diferente dele. É a natureza ideológica da epistemologia platônica que torna isso possível: uma epistemologia ditada pela asilieuropéia, carregada nos genes culturais. Para Platão, o poeta não atende ao “princípio” adequado buscado ou à parte adequada da alma dele ou dela. E assim o poeta não seria capaz de ajudar na função de nos tirar da escuridão da caverna e corrigir nossa ignorância em direção a “luz” da verdade. O poeta obstrui o funcionamento adequado da razão e não nos ajuda a ganhar controle sobre nossas emoções. O poeta imitativo... não é feito pela natureza, nem a sua arte pretende alugar ou afetar o princípio racional na alma, mas ele preferirá o temperamento apaixonado e vacilante, que é facilmente imitado... suas criações têm uma classe inferior de verdade... e ele está preocupado com uma parte inferior da alma; e, consequentemente, nós devemos estar certos em recusar admiti-lo em um estado bem-ordenado, porque ele desperta, nutre e fortalece os sentimentos e enfraquece a razão. Como em uma cidade em que o mal tem permissão para ter autoridade e o bem é colocado fora do caminho, assim é na alma do homem, conforme o mantemos; o imitativo implanta uma constituição má para ele tolerar a natureza irracional que não tem discernimento do superior e do inferior, mas pensa a mesma coisa grande em um momento e pequena em outro; ele é o produtor de imagens e é afastado para longe da verdade.[48]
O argumento de Platão com os poetas é que eles não adotam a visão do estado e do “bem” da qual ele quer convencer as pessoas; da qual elas devem ser convencidos para que cumpram seus papéis bem. A República é perfeita porque ela é absoluta. Mas e se as realidades humanas não forem absolutas? Suponha-se que haja ambiguidades endêmicas à existência humana? Platão resolve este problema simplesmente “eliminando” a natureza ambígua de nossa realidade existencial, fingindo que ela não está lá. Quem, afinal de contas, está criando “ilusão” e quem está lidando com “realidade”? A filosofia fundamentando a República diz que os seres humanos se ajustam a categorias distintas, que cada um deles é adaptado a tarefas específicas pela natureza e serão mais felizes fazendo aquilo para o que eles estão mais bem designados e que isto é melhor para a ordem do todo. Isto não é conveniente? Platão não precisa dos poetas “estragando” esta imagem – eles não o ajudarão a vender seu mito. Se os poetas e o poético em nós são maus e retrogrado, certamente o outro lado da moeda é que o que é bom em nós, essências mais racionais trazidas para fora pelo modo culto, à substituição do objeto pelo símbolo. Quando o modo culto dominar, nós nutriremos um ponto de vista novo e diferente. Isto é o importante. Esta é a significação do trabalho de Platão. Contraste a caracterização de Havelock deste “novo” homem com aquela do “antigo”. O novo homem é governado pela “inteligência crítica consciente de si”, “convicções individuais e únicas”, uma “psique crítica”, “estabilidade íntima”, “moralidade íntima” e “reflexão calculada”. Ele é “senhor de si”, “emancipado”, “reflexivo”, “pensante”, “organizado”, “calculista”, “racional”, “criado por si só”, “desperto”, “estimulado”, “abstrativamente pensante” e “autônomo”. Na retórica dos valores europeus as cartas estão todas arranjadas. Esta “nova” pessoa é ativa! O que vemos é a base epistemológica da convicção de que a capacidade de ler e escrever se reproduz progressivamente e que quando o modo culto se torna valorizado e finalmente dominante nós temos uma forma mais “elevada” de cultura em termos de civilizações européias, uma vez que é onde o ser humano aprendeu a ser “crítico”, “começou a pensar de fato”. No entanto, o europeu certamente não é muito “crítico” se isto significa criticar o ponto de vista europeu conforme Platão inspirou sua configuração. O mundo da capacidade de ler e escrever acredita-se, é um mundo de objetividade, um mundo de verdade “imparcial”. O meio de comunicação oral é “subjetivo”. Em sua personalidade ele é fundido com a tradição. Como mudamos isso? “Os sinais fundamentais possibilitaram ao leitor dispensar de identificação emocional...”[49] Platão desejava uma mudança do “envolvimento emocional”, de “preceitos não questionados” e da “imitação”. (Hoje, Habernas deseja que nos afastemos do clamor da validade pré-decisiva baseada na tradição cultural.[50]) Platão supostamente introduziu aprendizado “técnico” “ao nível mais alto da consciência”[51]. Assim, enquanto Platão busca produzir mentes capazes das formas “mais elevadas” do pensamento, o “homem não culto” emerge como mal sendo capaz “pensar”. De fato não podemos nos certificar que ele é sequer “consciente”. Além disto, esta epistemologia ainda é vista como tendo implicações morais. O participante culto do estado ideal é mais moral porque sua ética é tema para questionamento, crítica e análise, enquanto a ética grega primitiva não era. (Certamente, uma vez que o “questionamento” se encontra na dialética socrática, muito “questionamento” não é necessário). Dentro da lógica do nacionalismo europeu estas ideias repercutiriam com a teoria evolucionista do século XIX onde a cultura vitoriana era considerada a forma “mais elevada”, representando mais objetivamente um estado moral válido, a pretensão era de que os valores europeus haviam chegado a “críticos” e “racionais” e eram universalmente válidos. Esta herança formou o então chamado “Iluminismo”. Platão havia montado o palco para importantes ingredientes da autoimagem européia. Ele vê a si mesmo como um ser crítico, racional e no controle absoluto. Sua missão é controlar e racionalizar o mundo e ele atinge isto através da ilusão da objetividade. Platão deve ter sido algo parecido com isto. Stanley Diamond esboça o retrato: Ele era ao que parece, um homem de um tipo certo, incapaz de tolerar ambiguidade, intuitivo em sua convicção de um objetivo, o bom super-homem.. Ele acreditava na lógica com paixão fria de um matemático e ele acreditava, pelo menos abstratamente, que a cidade perfeitamente adequada poderia ser estabelecida através de meios perfeitamente racionais e perfeitamente autocráticos.[52] O modo não sacralizado da escrita permitia que o objeto fosse “congelado”, concretizado em um único significado; Kemetic MDW NTR não é dessa natureza: A consideração medíocre do símbolo egípcio o reduz a um significado primário, arbitrário, utilitário e singular, enquanto na realidade ele é uma síntese que requer grande erudição para sua análise e uma cultura especial para o conhecimento esotérico que ele encerra.[53] R.A. Schwaller De Lubicz caracteriza a MDW NTR da seguinte maneira, distinguindo-as do mero modo literal: “simbolismo”, que é a aplicação de um “estado de espírito” ou, novamente, uma “mentalidade”. “Simbolismo é técnica; o simbólico é a forma de escrita de uma filosofia vital.”[54] O símbolo é um sinal de que alguém deve aprender a ler e o simbólico é uma forma de escrita cujas leis alguém deve saber; elas não têm nada em comum com a construção gramatical de nossas línguas. Aqui está uma questão, não do que pode ser chamado de “língua hieroglífica”, mas do simbólico, que não é uma forma ordinária de escrita. De Lubicz preocupa-se em descrever “os princípios que governam o símbolo e o simbólico na expressão de uma filosofia vital, não de uma filosofia racionalista”. Ele diz que “não existe uma língua hieroglífica, mas apenas escrita hieroglífica, que usa o símbolo para nos fazer alcançar o simbólico”. [55] A significância desta passagem está em ela afirmar minha crença de que a MDW NTR do Kemet não representa uma forma “primitiva” de escrita secular ou profana e consequentemente não é “pré-européia”. Ao contrário, ela representa uma visão um pouco diferente da realidade – um ponto de vista que busca entender o universo como cosmos, sendo então cuidadosa para não tentar a separação de espírito e matéria. Desta maneira, quando falamos sobre o modo culto defendido por Platão, pretendemos enfatizar uma definição e uso únicos daquele modo: uma falta do “simbólico” segundo a visão de De Lubicz. Faltava algo nesta forma de escrita. Ela era capaz de lidar apenas com “realidades unidimensionais”, e como diz Diamond: Ela reduziu as complexidades da experiência para a palavra escrita... quando os adventos dos símbolos da escrita se tornaram explícitos, eles perderam certa riqueza. A palavra do homem não era mais uma infindável exploração da realidade, mas um signo que poderia ser usado contra ele... a escrita separa a consciência em dois caminhos – ela se torna mais autoritária do que a fala consequentemente degradando o significado do discurso e desgastando a tradição oral e ela torna possível que se use textos para a manipulação política e o controle dos outros.[56]
Não quer dizer o este modo culto representasse ou levasse a verdades maiores, mas o clamor era feito como se ele o fizesse e ele criava a ilusão de ter conseguido isso, tornando este meio útil. Ele funcionava! Ele ajudava a controlar mentes, valores e comportamentos, da mesma maneira que qualquer veículo midiático faz, mas de uma nova e, para alguns, “desejável” maneira. A língua escrita era mais impressionante do que a fala. A epistemologia platônica atingiu isto uma vez que esta era valorizada. Em seguida o discurso passou a imitar esta escrita, que já não era mais “mágica”, mais sagrada e verdadeiramente simbólica. A permanência da palavra escrita lhe deu força ideológica. Diálogos escritos, leis escritas e de modo singular, preces escritas – o sagrado reduzido a “escrituras” profanas; tudo isso se tornou, para os europeus, evidências da superioridade de sua cultura.
Hipocrisia como um modo de vida
Dentro da natureza da cultura européia existe uma afirmação de valor ou de
comportamento “moral” que não tem significado para os membros daquela cultura. Eu chamo isso de “ética retórica”; ela é de grande importância para a compreensão da dinâmica da cultura. Os conceitos da tradicional antropologia européia são inadequados para explicar o fenômeno ao qual estou me referindo aqui, uma vez que eles não têm correlativos nos tipos de cultura aos quais os antropólogos geralmente direcionavam sua atenção no passado. No entanto, com o conceito da asili, que facilita uma abordagem ideológica ao estudo da cultura, a ética retórica se torna visível; até mesmo atrativa. Ela se ajusta à lógica da asili européia, auxiliando a cultura no alcance e manutenção do poder. Sem essa interpretação certas manifestações dentro da iconografia verbal da cultura parecem ser inconsistentes com sua verdade ideológica encoberta. E aquilo simplesmente não faria sentido. Vejamos como o mecanismo da ética retórica funciona. A distinção tradicionalmente usada na antropologia é declarada em termos de “cultura ideal” e do “comportamento correto” e é considerada característica em todas as culturas, ajudando dessa maneira a confundir a questão da supremacia e natureza problemática da cultura européia. A distinção convencional é ilustrada da seguinte maneira pelos autores de um livro de antropologia recentemente publicado. Por exemplo, uma crença idealizada, há muito apreciada na América, é que todos os médicos são abnegados, pessoas benevolentes que escolhem a medicina como sua profissão porque se sentem “chamados” para servir a humanidade e que têm pouco interesse em dinheiro e no prestígio de suas posições. Naturalmente, muitos médicos não estão à altura deste ideal. Entretanto, o sucesso contínuo de programas de televisão que retratam o médico americano comum como um modelo de virtude indica quão profundamente enraizado está o ideal do médico nobre em nossa psique coletiva. Essa é uma concepção errônea que tem levado a uma visão equivocada e a um entendimento superficial da natureza da sociedade européia (euro-americana). Referir-se às imagens dadas acima como “ideais” é um abuso ou pelo menos um uso enganoso do termo “ideal”. A projeção e sucesso da imagem do médico compromissado, altruísta, não indicam que esse é um ideal “profundamente enraizado” na psique americana. Ela é mais uma indicação da maneira como os americanos querem aparecer para os outros, na maior parte das vezes para povos não europeus – seus “objetos”. Neste caso, é a maneira como o médico quer aparecer para seus pacientes, ou “objetos”, porque esta aparência trabalha a seu favor. Por outro lado, uma imagem que o projeta como um explorador em potencial pode levar a possibilidade de um processo por tratamento inadequado e à institucionalização da medicina socializada – nenhuma das duas sendo lucrativa para ele. Um “ideal” deveria ser entendido como algo que funcione normativamente e algo que é competido; para que haja um sentido para aqueles que a dividem. É a experiência européia que estimula a confusão de significado e compromisso com a mera expressão verbal. (Foi dentro da incipiente experiência européia que “retórica” veio a ser considerada como arte.) Na cultura africana as palavras têm poder. A mente européia é um político e por esta razão está constantemente atenta ao efeito político das palavras e imagens conforme elas são usadas com objetivos de manipulação. Ao dizer “político” eu pretendo indicar um ego que constantemente experimenta pessoas como outros; como representantes de interesses definidos diferentemente e, por isso, como em conflito com esse “ego”. O individuo está preocupado, por conseguinte, com maneira que sua expressão verbal e a imagem que ele projeta podem influenciar o comportamento daqueles com os quais ele se relaciona, seja os pacientes (ou poderia ser consumidores), sujeitos neocoloniais, um candidato da oposição para o gabinete ou um africano auto- determinado/nacionalista. Isto é o que está “profundamente enraizado” na mente americana – a psicologia das “relações públicas”, “habilidades de vendedor” e estratégia política. É na língua materna euro-americano que a palavra “imagem” é usada tão frequentemente. Estar preocupado com a imagem de um oposto ao eu de outro é uma característica européia. Estar ciente da vantagem estratégica de parecer ser altruísta quando alguém está agindo fora de seu interesse próprio não quer dizer que o altruísmo é um “ideal” significante em termos do sistema de valores de alguém. É, ao contrário, uma consequência da propaganda que os europeus têm alimentado contra os “não europeus” desde sua primeira tentativa de conquistá-los. Por terem exportado (vendido) esta imagem altruísta com êxito, eles tiveram que se projetar aderindo a este “ideal”; semelhantemente, a projeção deles mesmos ou de seus motivos neste sentido têm sido essenciais para uma imposição com sucesso de sua “ética” sobre os outros. O princípio básico a ser tido em mente para entender esta dinâmica da cultura européia é que o fator de maior contribuição para o sucesso do nacionalismo europeu tem sido sua projeção como nacionalismo desinteressado. O uso do termo “ideal” na passagem acima citada é um conceito simplesmente inadequado para a análise etnológica da cultura européia. Hoebel, em um texto anterior, oferece sua versão, que é similarmente inadequada: “A cultura ideal consiste nos padrões e comportamento verbalmente expressados de uma pessoa”. Os exemplos que esses antropólogos oferecem de outras culturas para explicar a distinção entre “ideal” e “real” de maneira alguma representam o fenômeno na cultura ocidental, presentemente em estudo. Hoebel descreve “postulados normativos ou valores” como “hipóteses profundas sobre se coisas ou atos são bons e devem ser almejados, ou se são maus e devem ser rejeitados”. Isso é precisamente o que a “ética retórica” não é. A definição feita por Hoebel pode ser usada para chegar ao oposto do fenômeno que eu desejo descrever. Uma “ética retórica” não é uma “hipótese profunda”. É uma expressão verbal superficial que não deve ser assimilada pelos membros da cultura que a produziu. A “ética retórica”, um fenômeno europeu, tem sido omitida na teoria etnológica convencional, a qual tem constantemente oferecido conceitos destituídos de significado político. Antropólogos falam sobre uma lacuna presente em todas as culturas entre o pensamento e a obra, entre ideias e ações. A lacuna a qual estou me referindo, no entanto, é entre a expressão verbal e crença ou compromisso; entre o que as pessoas falam e o que elas fazem. Em nenhum outro lugar senão na cultura européia as palavras significam tão pouco enquanto índices de crença. É esta característica que está em discussão aqui e é a característica para a qual os conceitos da antropologia tradicional são inadequados para explicar. No entanto, ela tem sido descrita enquanto traço cultural por outros, particularmente aqueles que têm sido feito vítimas da astúcia européia. Abaixo um indígena americano descreve o comportamento europeu. Eles nos fariam escravos se pudessem; mas como não podem, eles nos matam. Não há fé que possa ser colocada em suas palavras. Eles dirão para um índio “Meu amigo, meu irmão!”. Eles o pegarão pela mão e ao mesmo tempo o destruirão... Lembre-se deste dia em que os preveni de amigos como estes. Eu conheço os Facas Longas. Eles não são confiáveis. É uma característica própria da cultura que ela prepare seus membros para agirem como amigos junto àqueles que eles consideram inimigos, para que possam convencê-los de que vieram para ajudar, quando de fato eles vieram para destruí-los e a sua cultura. O fato de que alguns possam “acreditar” que eles estão realmente fazendo o bem só o torna mais perigosos, já que talvez eles já tenham feito de sua própria retórica uma conveniente desilusão de si. O comportamento hipócrita é aprovado e gratificado na cultura européia. A ética retórica ajuda a sancioná-lo. A cultura européia não pode ser compreendida sozinha segundo os termos das dinâmicas de outras culturas. É uma cultura que cria hipocrisia, na qual a hipocrisia é um tema sustentador, um comportamento padrão. Sua natureza hipócrita está ligada a abstração platônica, a objetivação, a compartimentalização da pessoa e a negação do seu emocional. Abaixo, Havelock analisa o caso caracteristicamente: Outro aspecto notável sobre eles (gregos pré-platônicos) neste período é sua capacidade para a ação direta e sincera e para a expressão direta e sincera da razão e do desejo. Eles careciam quase inteiramente daquelas pequenas hipocrisias sem as quais nossa civilização parece não funcionar. A distinção e as definições que podem levar a um maior entendimento dos europeus e de sua cultura podem vir apenas de uma perspectiva que não seja a do calvinismo europeu; para isso aí está o método do calvinismo europeu ou nacionalismo cultural para ocultar os interesses europeus. Conforme eu usei, “valor” é apenas valor significativo; é ele que motiva o comportamento e é a origem do compromisso humano. O valor determina o que é imitado e preservado, o que é selecionado e encorajado. “Valores reconhecidos”, por outro lado, que são meramente professados, que encontram apenas expressão verbal, que não são indicativos de comportamento, pertencem ao que eu tenho chamado de “ética retórica”. A ética retórica européia é precisamente aquilo – puramente retórica – e, como tal, tem suas próprias origens como uma criação para exportação, isto é, para a atividade política e intercultural do europeu. Ela tem a intenção de criar uma imagem que evitará que os outros antecipem o comportamento europeu com êxito e seu objetivo é encorajar o comportamento político não estratégico (isto é, ingênuo, ao invés de bem sucedido). Ela é planejada para vender, enganar, promover os objetivos nacionalistas europeus. Ela “embala” o imperialismo cultural europeu em uma embalagem que o faz parecer mais atrativo, menos prejudicial. Nenhum desses aspectos representa o que pode culturalmente ser referido como um “ideal” em qualquer sentido. A ética retórica não é, por conseguinte, disfuncional na cultura européia. Isso não gera ou reflete qualquer conflito na ideologia ou sistema de crenças, mas é, antes, necessária para a manutenção e projeção da utamaroho e desempenha uma função vital no sustento o nacionalismo cultural europeu na busca por seus objetivos internacionais. A ética retórica apenas é possível dado o fato de a hipocrisia enquanto modo de comportamento ser um ponto valorizado na vida européia; o mesmo comportamento hipócrita que sua presença autoriza. Novamente, “valor” refere-se àquilo que é encorajado e aprovado em uma cultura. A cultura européia é construída de tal maneira que a sobrevivência próspera dentro dela desencoraja a honestidade e a retidão e encoraja a desonestidade e a enganação – a habilidade de parecer ser algo que não é esconder o verdadeiro “eu”, motivos e intenções de alguém. Pessoas que são enganadas por outras e se relacionam com uma imagem projetada são consideradas tolas ou “caipiras”. Neste sentido, hipocrisia se torna não um traço negativo da personalidade, nem imoral ou um comportamento anormal, mas é assim esperada e cultivada. É considerada como sendo um ingrediente crucial da “sofisticação”, uma meta européia. O comportamento europeu intracultural e político baseiam-se na hipocrisia, assim como são as relações de negócio, a propaganda midiática e a maior parte de outras áreas da interação pública e social. Não passa de uma manifestação deste tema quando os americanos afirmam que os políticos são basicamente honestos. A afirmação em si é hipócrita e o público espera que ela seja. Todo sabe que o objetivo da propaganda comercial é nos convencer de comprar produtos para que assim os produtores possam conseguir lucros maiores, mas os slogans tentam nos persuadir de que o produto é benéfico para nosso bem estar, como se o produtor no fundo quisesse nosso bem estar. Essa hipocrisia afeta a vida de cada membro da cultura nas suas relações com os outros e origina ainda uma parte na natureza de suas relações interculturais. È uma parte do mecanismo de expansionismo europeu. Todos esses fatores fazer parte da compreensão da ética retórica e não uma distinção demasiadamente simplista entre a cultura “ideal” e a “real”; talvez uma distinção relevante com relação a outras culturas que criam e são criadas por “personalidades culturais” muito diferentes. Olhemos mais de perto esta “ética” e vejamos como ela tem funcionado historicamente. A função Retórica da “Ética Cristã”.
Marimba Ani, PH.D., é pesquisadora veterana, ativista e cientista cultural treinada.
Sócia há muito tempo do legendário e mundialmente conhecido egiptólogo e estudioso africano Dr. John Henrik Clarke. È professora na The City University of New York’s Hunter College e é autora de Let the Circle be Unbroken (Deixe o círculo ser inteiro).
Martín-Baró, Ignacio. (2013) - Psicologia Política Latino-Americana Ignacio Martín-Baró Tradução: Fernando Lacerda - Universidade Federal de Goiás - Brasil