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Yurugu Uma crítica afro-centrada do pensamento e comportamento culturais

europeu

Por Marimba Ani


 
 
 
Extraído do glossário
Asili
 
A razão de uma cultura, dentro da qual seus vários aspectos são coerentes. É o
embrião/semente que desenvolve uma cultura. É a essência cultural, o núcleo
ideológico, a matriz de uma entidade que deve ser identificada a fim de dar sentido
às criações coletivas de seus membros.
Utamawazo
 
Pensamento cultural estruturado. È a forma pela qual o conhecimento é determinado
por uma Asili cultural. É o modo no qual o pensamento dos membros de uma cultura
deve ser modelado se a Asili está para ser realizada.
Utamaroho
 
A força vital de uma cultura, posta em movimento pela Asili. É a fé ou a fonte de
energia de uma cultura; aquela que dá tom emocional e motiva o comportamento
coletivo de seus membros. Ambas a Utamawazo e a Utamaroho nascem da Asili,
mas como suas manifestações.
 
Um excerto do Capítulo 1
 
“Utamawazo: A estruturação cultural do pensamento”
Teoria da humanidade
 
Uma teoria do ser humano já foi incluída em nossa discussão sobre as concepções
platônicas. Nós, como humanos, não somos seres completos, mas sim feitos de
partes que estão em constante conflito entre si. Somos compostos pela “razão”,
“inteligência” e nossa “natureza boa” que está constantemente buscando controlar
nossos desejos, ânsias, emoções e adequar nossos “sentidos” ao melhor uso. A
melhor parte deve controlar a “pior”. De acordo com Eric Havelock, Platão
”descobriu” a “psique” que veio a se referir ao “pensamento isolado do eu”. O eu não
era mais concebido como um ser universal, que é, um ser que se fez experiente
conforme envolvido intimamente com outros seres no cosmos. Um “eu universal”
sugere que a realidade do eu é fenomenalmente parte de outras realidades
apresentadas como resultado de uma coexistência sensível, consciente e espiritual
no universo. Cosmos propriamente dito se refere ao universo como um todo
unificado, inter-relacionado (orgânico). Havelock está dizendo que a Grécia “pré-
platônica” compreendia o eu desta maneira. Isto tem um sentido histórico visto que a
Grécia relacionou suas associações culturais e intelectuais com tradições africanas
primitivas.
As visões de mundo africana e nativo-americana têm conceitos universais
semelhantes. Suas tradições intelectuais e sistemas de pensamento apoiam-se em
uma base de relações comuns tanto quanto sobre uma relação simpática com a
natureza. Como tal conceito sobre o ser humano interferiria nos regulamentos
básicos da epistemologia de Platão? Por que era essencial que ele lançasse dúvida
sobre a validade de tais conceitos? Um ser universal deve ser um todo. Em tal ser,
razão e emoção não podem ser experimentadas como um disparate, desconexo e
antagônico. Um ser universal não deve objetivar o universo. Quanto mais
“inteligente” um eu como este se torna, mais ele enxerga as línguas como meras
metáforas. A idéia é comum aos sistemas de pensamento mencionados. As maiores
e mais profundas verdades não podem ser verbalizadas até que um ser penetre a
dimensão entre a palavra profana onde o significado dos símbolos fica claro. No
entanto para Platão o “eu universal” é incapaz de saber; ele pode apenas perceber,
sentir, intuir e ter “opiniões”. (A ascensão do assim chamado “lado esquerdo do
cérebro”).
Platão estabelece ao contrário o “pensamento autônomo do eu”. De acordo com
Havelock, este “eu” ou “psique” é uma coisa ou entidade capaz não apenas da
cognição científica, mas da decisão moral. [36] Platão não apenas torna manifesta a
idéia do “eu pensante” – uma idéia que deve tê-lo antecedido – mas ele
simultaneamente suprimiu outros aspectos de nosso ser “humano” como inválido ou
inconveniente (irreal) e declarou esta função além conceitual – esta atividade
totalmente cerebral – como a essência da humanidade. Nesse ponto encontram-se
sua singularidade, estranheza e significância simultaneamente. Ele tinha oferecido
uma nova teoria de humanidade (homem/mulher). Bem mais tarde, apanhado nas
dores da teoria revolucionária, ela se tornou muito importante no pensamento
europeu para enfatizar as características usadas para separar e distinguir “humanos”
de animais. “Inteligência”, obviamente, era a chave; a essência do homem/mulher.
(Para Michael Bradley está é a “descoberta do tempo”)[37]. Usando as concepções
de Platão e elaborando-as, inteligência adquiriu uma definição própria.
Cientistas têm falado por algum tempo sobre duas partes ou “hemisférios” do
cérebro. Acredita-se que o lado esquerdo controle certos tipos de processos do
pensamento. [38] As implicações envolvidas são importantes para esta discussão e
serão discutidas mais tarde. Um ponto relevante a ser feito aqui é que enquanto
todas as culturas e todas as pessoas envolvem os dois “modos hemisféricos”, assim
falando, em funções “normais”, culturas e consequentemente seus membros podem
valorizar uma forma de cognição a outra. Nestes casos, uma será enfatizada e
encorajada enquanto a outra não. Uma pessoa será recompensada por pensar
conforme o modo valorizado e tais hábitos de pensamento serão reforçados nos
processos formalizados de aprendizado e socialização. A mesma pessoa será
“punida” por pensar segundo o modo “desvalorizado” e “fracassará por fazer isso”.
No século XIX a Europa, na qual uma teoria revolucionária não linear reinava,
cientistas europeus disseram que o hemisfério esquerdo era “mais importante”
porque ele era associado com “pensamento” e “razão”, o que diferenciava humanos
de animais. O hemisfério direito era classificado “menos importante” e menos
avançado ou evoluído. Ele tinha uma capacidade “menor”, lidava com a “emoção” e
tinha que ser direcionado pelo hemisfério esquerdo. Esta era claramente uma versão
do século XIX da concepção platônica, que dividiu o homem/mulher em tendências
racionais e emocionais, faculdades superiores e inferiores e ordenou o domínio e
controle do emocional como um estado normativo do ser. E então, “ordem” e
“justiça” foram atingidas. Platão determinou o caso para este tipo de ordem na
pessoa e, por extensão, no estado. Evolucionistas do século XIX estavam dando
suporte “científico” para o mesmo tipo de “ordem” imposta entre as culturas do
mundo controlando as mais “emotivas” (menores ou menos avançadas).
O ponto crítico para esta análise do pensamento e comportamento europeu é a
teoria platônica e a epistemologia e seu subsequente desenvolvimento, aculturação
e reformulação que forneceram os mais eficazes suportes ideológicos para os
políticos e culturalmente agressivos padrões de comportamento do povo europeu
precisamente porque o argumento estava declarado em termos acadêmicos
“intelectuais” e “científicos”. Platão não apenas ajudou a estabelecer uma teoria
sobre o ser humano que valorizaria a cognição “científica” e excluiria os outros
modos cognitivos, mas também estabeleceu a academia científica. Desde então
esta se tornou uma característica da cultura européia que a associação com a
academia representasse uma associação com a verdade, com a capacidade
racional superior e imparcialidade ou “objetividade” – isto também significa uma falta
de comprometimento com qualquer outra coisa que não a “verdade abstrata”. O que
as concepções platônicas também incluíram, consequentemente, foi que os atos
mais politicamente motivados (por exemplo, guerras de agressão, escravidão
baseada nas raças) poderiam ser justificados no que se passava por uma política,
em termos “científicos”; os termos de uma suposta “verdade universal”, a eterna
“idéia” imutável. Este não era necessariamente o objetivo de Platão, mas este é o
uso em que este conceito foi colocado dentro limites da cultura européia, modelados
pelas necessidades da utamaroho européia. A asili – poder exigente – fez uso
apropriado da idéia da “verdade universal”.
O objetivo aqui é apresentar os fundamentos para uma análise compreensiva do
pensamento e comportamento europeu examinando aspectos relacionados da teoria
platônica com relação a seu significado ideológico no subsequente desenvolvimento
europeu. Esta análise termina e começa sintetizando o que é a asili demonstrando a
consistência e coesão, o caráter monolítico, da tradição sob escrutínio.
A teoria de humanidade de Platão é um aspecto crucial de toda sua teoria. Ele cria
com sucesso uma ilusão do eu isolado e então, na sociedade européia (Euro-
americana) do século XX, este eu é de fato experimentado como a psique. Esta
concepção do pensamento autônomo do eu prendeu o europeu a uma visão
reduzida e limitada do homem. Isso precipitou um tipo de retardamento espiritual no
qual doloroso isolamento e alienação ambos incapacitaram os participantes da
cultura ou os fizeram competidores extremamente eficientes, agressores e
tecnocratas (peritos). No Theatetus, Sócrates usa o termo “alma” como sinônimo de
“mente”. Dada à concepção platônica de faculdades mentais significantes, isso
significa que a alma tornou-se identificada com o pensamento cognitivo, com o
cálculo “frio”, com a falta de emoção e uma negação do sentimento e da sensação.
Que teoria do ser humano isto implica? E que tipo de utamaroho e comportamento
são desenvolvidos em uma cultura que aceita tal teoria? Se eu estiver certa em
sugerir que estas concepções platônicas de fato se tornaram normativa e
espantosamente poderosa como modelos cognitivos e se pudermos aceitar a
relação entre a utamawazo (personalidade cognitiva cultural) e utamaroho
(características afetivas) como sendo íntimas e co-produtivas, então um modelo
começa a emergir claramente do pensamento e comportamento padronizados
reforçando um ao outro conforme eles se desenvolvem.
No Theaetetus, Sócrates fala sobre a alma percebendo-se sob seu próprio “poder”.
Ele faz a distinção entre o corpo e a alma ou mente. Através dos órgãos do corpo
percebemos “solidez”, “frio”, “o vermelho” etc., mas com a mente (alma) nós
“refletimos”, fazemos julgamentos e “pensamos” sobre “semelhanças”, “diferenças” –
coisas que requerem conhecimento das “formas” ou do ”ser”. A alma reflete com seu
próprio “poder” e os objetos que ela percebe são universais. A universalidade
emerge como superioridade e valor. Nos capítulos seguintes, o atributo da
universalidade será traçado ao longo do caminho da ideologia européia conforme
esta de desenvolve e se fortalece na estrutura da cultura.
O que é isso que a alma, mente ou psique tem que o corpo e os sentidos não têm?
Isso é claramente controle e com o controle vem o poder como “habilidade de
dominar”. O desejo (necessidade) pelo controle e pelo poder são os fatores mais
importantes para a compreensão da asili européia. Veremos que a sensação de
controlar os outros e consequentemente ter o poder sobre eles é estética,
psicológica e emocionalmente a experiência mais satisfatória que esta cultura pode
oferecer. Isto, por conseguinte, satisfaz a utamaroho. É a busca por estes
sentimentos e este estado do ser que motiva seus membros. A sensação de controle
e poder são atingidos de diversas maneiras na cultura européia, mas o que é
importante aqui é que nos seus primeiros e constituintes estágios, Platão assentou
as bases para que isto fosse atingido através de uma epistemologia que rejeitava a
participação poética, ganhando por meio disso “independência” (Havelock) do
envolvimento poético para “criar” e compreender o objeto próprio do conhecimento.
O “objeto” era nesse sentido controlado pela mente que o contemplava. Com esse
conhecimento veio o poder porque o mundo podia começar a ser entendido como
sendo composto por muitos objetos que poderiam ser manipulados pelo conhecedor,
o conhecedor que estava ciente de si mesmo (mulheres não contavam) enquanto
conhecedor e estando completamente no controle. O homem pré-platônico, sob
esse ponto de vista, era fraco, não tinha controle próprio e era, além disso,
manipulado por uma miríade de emoções que lhe faziam sentir as imagens a seu
redor. Tal é a imagem que nos é dada.
Não podemos exagerar na importância de Platão precisamente porque encontramos
teóricos e estudiosos europeus trazendo o mesmo argumento, pintando o mesmo
quadro no século XX. Henri e H.A. Frankfort se preocupam aqui com a distinção
entre o antigo, “homem primitivo”, e o pensamento “mito poético” de um lado e o
moderno, homem “científico” e o “pensamento científico” de outro.
O pensamento mito poético desconhece pontos mortos e confronta um mundo
animado de extremo a extremo Ele não está apto a deixar a extensão do concreto e
render seus próprios conceitos como realidades que existem por si. [p. 14]
... o modo da mente mito poética expressar um fenômeno de imagens multiplicadas
correspondentes a avenidas não conectas de abordagem claramente conduz antes
ao distanciamento que à aproximação, nosso postulado de casualidade que busca
descobrir causas idênticas para efeitos idênticos em todo o mundo sensível. [p.20]
... o pensamento mitopoético deve ter não menos êxito que o pensamento moderno
em estabelecer um sistema espacial coordenado, no entanto, o sistema não é
determinado por medidas objetivas, mas por um reconhecimento emocional dos
valores.[39]
Não apenas a epistemologia de Platão traz o controle acompanhado de poder, mas
também sua consequente teoria de que o homem (ser humano) produz a concepção
européia do ser autenticamente moral. Para Platão, com a racionalidade vem o
poder de tomar as decisões morais e apenas este novo “pensamento autônomo do
eu” (Havelock) pode ser à base da decisão moral. Esta posição, no entanto,
representa uma confusão entre o espiritual e o científico/racional. Tendo equiparado
o potencial humano com uma faculdade racional separada, Platão nos tira de um
contexto social humanamente definido como a base ou determinante do nosso ser.
Ele então nos coloca de volta em um contexto artificialmente construído, que é agora
um reflexo de seu conceito abstrato do “bom” e do “verdadeiro”; uma negação da
realidade vivida e experimentada. De fato, nossos conceitos de moralidade devem
refletir nossas ideias tanto quanto nosso sentimento sobre o devido inter-
relacionamento humano. A pessoa “racional” não é necessariamente a pessoa com
“moral”. Pode ser “racional” (eficiente) se pensar em termos de uma geração
seletiva, clonagem e extermínio para produzir a “raça superior”. Fazer isto não é
espiritual ou moralmente interessante. Platão parece estar dando pistas de que o
método científico gera a ação “certa”. No entanto, a guerra no século XX é
simultaneamente racional e irracional. Filmes europeus nos quais cientistas loucos
fazem coisas loucas são expressões dessa aparente contradição. Ainda sim, aquela
personalidade é uma extensão “lógica” da equação platônica do moral e do racional.
Este argumento tem sido expandido, refinado e camuflado nos termos da “moderna”
filosofia crítica européia. Jurgen Habermas parece argumentar sobre um tipo de
linguagem universal de ”racionalidade comunicativa” na quais seres sociais/culturais
confiam em seu próprio exame intelectual das discussões como a base para
julgamento, como se opostos a confiar em suas tradições culturais como fonte para
validação de escolhas/ações.[40] Isto para Habermas seria parte do processo de
“racionalização” e pode levar a um comportamento moral autêntico ou pelo menos a
um critério para determinar tal comportamento. Sua linguagem é a usada no
discurso filosófico europeu dos anos 80; o modelo platônico relacionado à perfeição
intelectual. É a “racionalidade” em sua chamada mais comovente por um
racionalismo universal como base para “orientações racionais para a ação”[41] e
ordem social racionalizada. Habermas usa a teoria do desenvolvimento cognitivo de
Piaget com relação ao valorizado processo de “descentralização”, no caso a priori.
Nesta teoria sobre o homem (ser humano) e o Estado, Platão obtém êxito ao
exorcizar a realidade humana e social de sua problemática e caráter ambíguo. Ele
consegue isso criando sua própria realidade na qual a abstração matemática reina.
A verdade “real”, ele diz, é o que não experimentamos. È o ser imutável. Nossa
experiência não é real, mas está mudando constantemente, se transformando. O
que isso de fato permite que ele faça é criar uma realidade “irreal” na qual
ambiguidade, imaginação criativa e incerteza da verdade humana são
superficialmente eliminadas. Claro, não há nada como a realidade “irreal”, então na
verdade a problemática ainda existe. A República de Platão é uma estrutura
teorética. Sua teoria sobre o humano não é realística. Ela deixa de fora alguns
princípios da humanidade e então como um modelo a ser imitada ela tem a
tendência de criar “homens unidimensionais” de Marcuse. Cada um de nós é
ajustado para uma tarefa ou modo de participação no Estado. O Filósofo-rei e
Guardiões determinarão nosso lugar correto e, assim, nosso destino, muito claro,
muito simples. A república é modelada segundo o “bem”, uma realidade abstrata,
não ambígua, imutável e monolítica. Para que isto funcione, as pessoas que estão
dentro dela teriam que ser convencidas sobre a teoria do ser humano sobre a qual
ela repousa. Stanley Diamond explica porque o artista era visto como uma ameaça
ao Estado;
O artista não acredita em sistemas abstratos; ele lida com ideais emocionais
sentidos e ordenados e acredita que a ordem é obtida através de contradições, das
tensas uniões da experiência do dia-a-dia. Desta maneira, o artista pode ser
instável, uma criança defeituosa e isto é um ameaça para qualquer
estabelecimento..[42]
Por outro lado, um matemático se aclararia muito melhor como a visão de Platão do
homem ideal para o Estado ideal. Ele enfatiza a matemática no currículo para os
guardiões. Para ele, “matemática” tem o formato da verdade e pode fornecer a
solução para todos os problemas. Aqui é novamente sugerido um conceito particular
da natureza humana. E se as pessoas de fato não era dessa maneira, assim ele as
faria. Ele modelaria suas mentes para pensar da maneira que deveriam pensar para
fazer sua equação matemática. Porque “números nos arrasta ao Verdadeiro Ser).
[43] Em outras palavras, havia mudanças que ele teria que fazer nos hábitos
cognitivos (utamawazo) dos participantes da cultura se ele estava prestes a ter êxito
na criação de uma nova ordem.
 
O novo modo de dominação
 
O nascimento da arcaica utamawazo “européia” foi acompanhada e suportada pela
introdução do modo culto como dominante e como um modo de expressão
valorizado na cultura. A forma escrita preservou a comunicação em uma forma
precisa e constantemente crescente no que estava para se tornar “Europa”. A escrita
vinha sendo usada muito, muito antes em outras culturas, mas como no Kemetic
MDW NTR (antigos “Hieróglifos egípcios”), ela envolvia formas que simbolizavam
muito mais que sons e objetos. O MDW NTR contém um simbolismo transformador
que agrega concepções africanas de verdades cósmicas e universais. [44] Esta é
uma indicação da natureza da visão de mundo européia e, claro, um exemplo da
intensidade do nacionalismo cultural europeu com o quais estudiosos europeus
caracterizam tão consistentemente o MDW NTR de Kemet como sendo meramente
“concreto”. [45] Esta forma de “reducionismo” é uma forma de super-simplificar a
antiga escrita africana, a primeira forma de escrita. É uma tentativa de fazer o MDW
NTR parecer conceptualmente limitado e algumas vezes contraditório. Na verdade, o
MDW NTR era muito complexo para os objetivos de Platão. Ele precisava de uma
modalidade que roubasse os símbolos dos “simbólicos” deles, do conteúdo esotérico
deles. Eles tinham que ser desembaraçados do cosmos.
É importante entender o processo pelo qual o modo culto se tornou dominante na
cultura e entender exatamente o que se depreende do “modo culto” neste contexto.
Ainda que para vários séculos futuros ele fosse inacessível para a maioria da
população, ele ainda tinha um lugar valorizado na nascente, arcaica e feudalista
sociedade européia e afetava muito a configuração da cultura. Estamos
descrevendo um processo de desenvolvimento e porque o desenvolvimento tinha
uma “direção” não significa que outras características não eram identificáveis. O
poético, ou como Henri e H. A. Frankfort o chamam, “mitopoético”, continuava a
existir entre a vasta maioria da população, mas ele era relegado a uma posição
desvalorizada, sugerindo inferioridade de capacidade intelectual. Eis o porquê de “o
primitivo”, eurocentricamente definido, é sempre associado com a ausência da
escrita e é considerada “pré-literata”.
Na Europa nascente o modo culto tinha força ideológica. Lembrando que de acordo
com a epistemologia platônica devemos atingir objetividade para conhecer e que em
seus termos isto é atingido quando fazemos nossa razão dominar nossas emoções,
o que em troca nos dá controle. Ganhamos controle acima daquilo que queremos
conhecer, criando então um “objeto” de conhecimento. O modo de comunicação
preservado (que havia caracterizado a maioria das culturas e o qual prevaleceria por
séculos na Grécia depois de Platão) era o poético, o oral e a alguma extensão o
modo simbólico, apesar de a cultura grega não ser tão desenvolvida neste campo,
tomando emprestado de outras culturas seus conceitos sagrados e religiosos. Este
modo repousava sobre a identificação do conhecedor com o conhecido. Com
relação à memorização e familiaridade do ouvinte/participante com o assunto em
uso, os modos simbólicos das civilizações mais antigas e desenvolvidas também
requeriam apreensão das abstrações, mas estas não eram as abstrações
racionalistas que viriam a dominar no pensamento europeu.
Na análise dos teoristas europeus foi esta memória, esta identificação emocional e
“envolvimento”, causada pelo modo poético, “oral” e “homérico”, que havia limitado o
homem “pré-platônico”. Esta caracterização nos leva ainda a outra “divisão”, outra
dicotomia de odiosa comparação. E com este outro aspecto da suposta
“superioridade” dos europeus suas mentes se constroem. O homem “pré-platônico”
(termo usado por Havelock), a quem as epopeias de Homero representavam e a
quem eram direcionadas, estava em dificuldades de acordo com Havelock. Ele é
descrito como “não culto”, o que claro tem muito mais força ideológica do que
apenas dizer que ele preferia a forma poética. Isto vem à tona como uma fraqueza e
inabilidade de conceituar, como uma característica negativa. Isto o desvaloriza como
pessoa. Esta pessoa “não-literata”, “pré-platônica” também pega inúmeras
características que, sob a visão de mundo européia, são sem valor ou
absolutamente negativas.  Havelock descreve o “homem homérico” como estando
em estado “dormente”, como se estivesse drogado. Sua mente é governada por uma
“aceitação não crítica”, “rendição a si mesmo”, “automatismo”, “passividade de
condições mentais”, “superabundância no emprego das emoções”, “transe
hipnótico”, “complacência”. Ele usa “linguagem de sonhos” e é vítima da “ilusão”. Ele
está no “longo sono do homem” e é até “preguiçoso”.[46] Porque Havelock é tão
duro com aqueles que ele coloca em oposição intelectual a Platão? É como se este
estágio na história do desenvolvimento grego ou europeu devesse ser destruído;
sem dúvidas, completamente repudiado. Veremos nos capítulos seguintes deste
estudo porque estes são precisamente os termos que os europeus usam para
descrever e humilhar outras culturas, culturas que são caracterizadas como
“primitivas”. E estes são os termos que eles usam para caracterizar as habilidades
das crianças de origem africana e de outros grupos que são vistas como deficientes
em valores culturais e raciais entre as sociedades que os europeus dominam. De
fato, as academias européias “criam” tais estereótipos. [47] Em cada um destes
exemplos, incluindo a crítica de Havelock aos hábitos mentais dos seres humanos
“antes” de Platão, as afirmações feitas têm significado ideológico. Elas estão
sustentando um modo de vida escolhido, um conjunto de crenças. O objetivo é
estabelecer o “modo de vida” como superior a tudo que o precedeu ou que é
diferente dele. É a natureza ideológica da epistemologia platônica que torna isso
possível: uma epistemologia ditada pela asilieuropéia, carregada nos genes
culturais.
Para Platão, o poeta não atende ao “princípio” adequado buscado ou à parte
adequada da alma dele ou dela. E assim o poeta não seria capaz de ajudar na
função de nos tirar da escuridão da caverna e corrigir nossa ignorância em direção a
“luz” da verdade. O poeta obstrui o funcionamento adequado da razão e não nos
ajuda a ganhar controle sobre nossas emoções.
O poeta imitativo... não é feito pela natureza, nem a sua arte pretende alugar ou
afetar o princípio racional na alma, mas ele preferirá o temperamento apaixonado e
vacilante, que é facilmente imitado... suas criações têm uma classe inferior de
verdade... e ele está preocupado com uma parte inferior da alma; e,
consequentemente, nós devemos estar certos em recusar admiti-lo em um estado
bem-ordenado, porque ele desperta, nutre e fortalece os sentimentos e enfraquece
a razão. Como em uma cidade em que o mal tem permissão para ter autoridade e o
bem é colocado fora do caminho, assim é na alma do homem, conforme o
mantemos; o imitativo implanta uma constituição má para ele tolerar a natureza
irracional que não tem discernimento do superior e do inferior, mas pensa a mesma
coisa grande em um momento e pequena em outro; ele é o produtor de imagens e é
afastado para longe da verdade.[48]
 
O argumento de Platão com os poetas é que eles não adotam a visão do estado e
do “bem” da qual ele quer convencer as pessoas; da qual elas devem ser
convencidos para que cumpram seus papéis bem. A República é perfeita porque ela
é absoluta. Mas e se as realidades humanas não forem absolutas? Suponha-se que
haja ambiguidades endêmicas à existência humana? Platão resolve este problema
simplesmente “eliminando” a natureza ambígua de nossa realidade existencial,
fingindo que ela não está lá. Quem, afinal de contas, está criando “ilusão” e quem
está lidando com “realidade”? A filosofia fundamentando a República diz que os
seres humanos se ajustam a categorias distintas, que cada um deles é adaptado a
tarefas específicas pela natureza e serão mais felizes fazendo aquilo para o que eles
estão mais bem designados e que isto é melhor para a ordem do todo. Isto não é
conveniente? Platão não precisa dos poetas “estragando” esta imagem – eles não o
ajudarão a vender seu mito.
Se os poetas e o poético em nós são maus e retrogrado, certamente o outro lado da
moeda é que o que é bom em nós, essências mais racionais trazidas para fora pelo
modo culto, à substituição do objeto pelo símbolo. Quando o modo culto dominar,
nós nutriremos um ponto de vista novo e diferente. Isto é o importante. Esta é a
significação do trabalho de Platão. Contraste a caracterização de Havelock deste
“novo” homem com aquela do “antigo”. O novo homem é governado pela
“inteligência crítica consciente de si”, “convicções individuais e únicas”, uma “psique
crítica”, “estabilidade íntima”, “moralidade íntima” e “reflexão calculada”. Ele é
“senhor de si”, “emancipado”, “reflexivo”, “pensante”, “organizado”, “calculista”,
“racional”, “criado por si só”, “desperto”, “estimulado”, “abstrativamente pensante” e
“autônomo”. Na retórica dos valores europeus as cartas estão todas arranjadas. Esta
“nova” pessoa é ativa! O que vemos é a base epistemológica da convicção de que a
capacidade de ler e escrever se reproduz progressivamente e que quando o modo
culto se torna valorizado e finalmente dominante nós temos uma forma mais
“elevada” de cultura em termos de civilizações européias, uma vez que é onde o ser
humano aprendeu a ser “crítico”, “começou a pensar de fato”.
No entanto, o europeu certamente não é muito “crítico” se isto significa criticar o
ponto de vista europeu conforme Platão inspirou sua configuração. O mundo da
capacidade de ler e escrever acredita-se, é um mundo de objetividade, um mundo
de verdade “imparcial”. O meio de comunicação oral é “subjetivo”. Em sua
personalidade ele é fundido com a tradição. Como mudamos isso? “Os sinais
fundamentais possibilitaram ao leitor dispensar de identificação emocional...”[49]
Platão desejava uma mudança do “envolvimento emocional”, de “preceitos não
questionados” e da “imitação”. (Hoje, Habernas deseja que nos afastemos do clamor
da validade pré-decisiva baseada na tradição cultural.[50]) Platão supostamente
introduziu aprendizado “técnico” “ao nível mais alto da consciência”[51]. Assim,
enquanto Platão busca produzir mentes capazes das formas “mais elevadas” do
pensamento, o “homem não culto” emerge como mal sendo capaz “pensar”. De fato
não podemos nos certificar que ele é sequer “consciente”. Além disto, esta
epistemologia ainda é vista como tendo implicações morais. O participante culto do
estado ideal é mais moral porque sua ética é tema para questionamento, crítica e
análise, enquanto a ética grega primitiva não era. (Certamente, uma vez que o
“questionamento” se encontra na dialética socrática, muito “questionamento” não é
necessário). Dentro da lógica do nacionalismo europeu estas ideias repercutiriam
com a teoria evolucionista do século XIX onde a cultura vitoriana era considerada a
forma “mais elevada”, representando mais objetivamente um estado moral válido, a
pretensão era de que os valores europeus haviam chegado a “críticos” e “racionais”
e eram universalmente válidos. Esta herança formou o então chamado “Iluminismo”.
Platão havia montado o palco para importantes ingredientes da autoimagem
européia. Ele vê a si mesmo como um ser crítico, racional e no controle absoluto.
Sua missão é controlar e racionalizar o mundo e ele atinge isto através da ilusão da
objetividade. Platão deve ter sido algo parecido com isto. Stanley Diamond esboça o
retrato:
Ele era ao que parece, um homem de um tipo certo, incapaz de tolerar ambiguidade,
intuitivo em sua convicção de um objetivo, o bom super-homem.. Ele acreditava na
lógica com paixão fria de um matemático e ele acreditava, pelo menos
abstratamente, que a cidade perfeitamente adequada poderia ser estabelecida
através de meios perfeitamente racionais e perfeitamente autocráticos.[52]
O modo não sacralizado da escrita permitia que o objeto fosse “congelado”,
concretizado em um único significado; Kemetic MDW NTR não é dessa natureza:
A consideração medíocre do símbolo egípcio o reduz a um significado primário,
arbitrário, utilitário e singular, enquanto na realidade ele é uma síntese que requer
grande erudição para sua análise e uma cultura especial para o conhecimento
esotérico que ele encerra.[53]
            R.A. Schwaller De Lubicz caracteriza a MDW NTR da seguinte maneira,
distinguindo-as do mero modo literal: “simbolismo”,  que é a aplicação de um “estado
de espírito” ou, novamente, uma “mentalidade”. “Simbolismo é técnica; o simbólico é
a forma de escrita de uma filosofia vital.”[54] O símbolo é um sinal de que alguém
deve aprender a ler e o simbólico é uma forma de escrita cujas leis alguém deve
saber; elas não têm nada em comum com a construção gramatical de nossas
línguas. Aqui está uma questão, não do que pode ser chamado de “língua
hieroglífica”, mas do simbólico, que não é uma forma ordinária de escrita. De Lubicz
preocupa-se em descrever “os princípios que governam o símbolo e o simbólico na
expressão de uma filosofia vital, não de uma filosofia racionalista”. Ele diz que “não
existe uma língua hieroglífica, mas apenas escrita hieroglífica, que usa o símbolo
para nos fazer alcançar o simbólico”. [55] A significância desta passagem está em
ela afirmar minha crença de que a MDW NTR do Kemet não representa uma forma
“primitiva” de escrita secular ou profana e consequentemente não é “pré-européia”.
Ao contrário, ela representa uma visão um pouco diferente da realidade – um ponto
de vista que busca entender o universo como cosmos, sendo então cuidadosa para
não tentar a separação de espírito e matéria. Desta maneira, quando falamos sobre
o modo culto defendido por Platão, pretendemos enfatizar uma definição e uso
únicos daquele modo: uma  falta do “simbólico” segundo a visão de De Lubicz.
Faltava algo nesta forma de escrita. Ela era capaz de lidar apenas com “realidades
unidimensionais”, e como diz Diamond:
Ela reduziu as complexidades da experiência para a palavra escrita... quando os
adventos dos símbolos da escrita se tornaram explícitos, eles perderam certa
riqueza. A palavra do homem não era mais uma infindável exploração da realidade,
mas um signo que poderia ser usado contra ele... a escrita separa a consciência em
dois caminhos – ela se torna mais autoritária do que a fala consequentemente
degradando o significado do discurso e desgastando a tradição oral e ela torna
possível que se use textos para a manipulação política e o controle dos outros.[56]
 
            Não quer dizer o este modo culto representasse ou levasse a verdades
maiores, mas o clamor era feito como se ele o fizesse e ele criava a ilusão de ter
conseguido isso, tornando este meio útil. Ele funcionava! Ele ajudava a controlar
mentes, valores e comportamentos, da mesma maneira que qualquer veículo
midiático faz, mas de uma nova e, para alguns, “desejável” maneira. A língua escrita
era mais impressionante do que a fala. A epistemologia platônica atingiu isto uma
vez que esta era valorizada. Em seguida o discurso passou a imitar esta escrita, que
já não era mais “mágica”, mais sagrada e verdadeiramente simbólica. A
permanência da palavra escrita lhe deu força ideológica. Diálogos escritos, leis
escritas e de modo singular, preces escritas – o sagrado reduzido a “escrituras”
profanas; tudo isso se tornou, para os europeus, evidências da superioridade de sua
cultura.
 
       
Hipocrisia como um modo de vida

Dentro da natureza da cultura européia existe uma afirmação de valor ou de


comportamento “moral” que não tem significado para os membros daquela cultura.
Eu chamo isso de “ética retórica”; ela é de grande importância para a compreensão
da dinâmica da cultura. Os conceitos da tradicional antropologia européia são
inadequados para explicar o fenômeno ao qual estou me referindo aqui, uma vez
que eles não têm correlativos nos tipos de cultura aos quais os antropólogos
geralmente direcionavam sua atenção no passado. No entanto, com o conceito
da asili, que facilita uma abordagem ideológica ao estudo da cultura, a ética retórica
se torna visível; até mesmo atrativa. Ela se ajusta à lógica da asili européia,
auxiliando a cultura no alcance e manutenção do poder. Sem essa interpretação
certas manifestações dentro da iconografia verbal da cultura parecem ser
inconsistentes com sua verdade ideológica encoberta. E aquilo simplesmente não
faria sentido. Vejamos como o mecanismo da ética retórica funciona.
A distinção tradicionalmente usada na antropologia é declarada em termos de
“cultura ideal” e do “comportamento correto” e é considerada característica em todas
as culturas, ajudando dessa maneira a confundir a questão da supremacia e
natureza problemática da cultura européia. A distinção convencional é ilustrada da
seguinte maneira pelos autores de um livro de antropologia recentemente publicado.
Por exemplo, uma crença idealizada, há muito apreciada na América, é que todos os
médicos são abnegados, pessoas benevolentes que escolhem a medicina como sua
profissão porque se sentem “chamados” para servir a humanidade e que têm pouco
interesse em dinheiro e no prestígio de suas posições. Naturalmente, muitos
médicos não estão à altura deste ideal. Entretanto, o sucesso contínuo de
programas de televisão que retratam o médico americano comum como um modelo
de virtude indica quão profundamente enraizado está o ideal do médico nobre em
nossa psique coletiva.
Essa é uma concepção errônea que tem levado a uma visão equivocada e a um
entendimento superficial da natureza da sociedade européia (euro-americana).
Referir-se às imagens dadas acima como “ideais” é um abuso ou pelo menos um
uso enganoso do termo “ideal”. A projeção e sucesso da imagem do médico
compromissado, altruísta, não indicam que esse é um ideal “profundamente
enraizado” na psique americana.
Ela é mais uma indicação da maneira como os americanos querem aparecer para os
outros, na maior parte das vezes para povos não europeus – seus “objetos”. Neste
caso, é a maneira como o médico quer aparecer para seus pacientes, ou “objetos”,
porque esta aparência trabalha a seu favor. Por outro lado, uma imagem que o
projeta como um explorador em potencial pode levar a possibilidade de um processo
por tratamento inadequado e à institucionalização da medicina socializada –
nenhuma das duas sendo lucrativa para ele.
Um “ideal” deveria ser entendido como algo que funcione normativamente e algo
que é competido; para que haja um sentido para aqueles que a dividem. É a
experiência européia que estimula a confusão de significado e compromisso com a
mera expressão verbal. (Foi dentro da incipiente experiência européia que “retórica”
veio a ser considerada como arte.) Na cultura africana as palavras têm poder. A
mente européia é um político e por esta razão está constantemente atenta ao efeito
político das palavras e imagens conforme elas são usadas com objetivos de
manipulação. Ao dizer “político” eu pretendo indicar um ego que constantemente
experimenta pessoas como outros; como representantes de interesses definidos
diferentemente e, por isso, como em conflito com esse “ego”. O individuo está
preocupado, por conseguinte, com maneira que sua expressão verbal e a imagem
que ele projeta podem influenciar o comportamento daqueles com os quais ele se
relaciona, seja os pacientes (ou poderia ser consumidores), sujeitos neocoloniais,
um candidato da oposição para o gabinete ou um africano auto-
determinado/nacionalista. Isto é o que está “profundamente enraizado” na mente
americana – a psicologia das “relações públicas”, “habilidades de vendedor” e
estratégia política. É na língua materna euro-americano que a palavra “imagem” é
usada tão frequentemente. Estar preocupado com a imagem de um oposto ao eu de
outro é uma característica européia.
Estar ciente da vantagem estratégica de parecer ser altruísta quando alguém está
agindo fora de seu interesse próprio não quer dizer que o altruísmo é um “ideal”
significante em termos do sistema de valores de alguém. É, ao contrário, uma
consequência da propaganda que os europeus têm alimentado contra os “não
europeus” desde sua primeira tentativa de conquistá-los. Por terem exportado
(vendido) esta imagem altruísta com êxito, eles tiveram que se projetar aderindo a
este “ideal”; semelhantemente, a projeção deles mesmos ou de seus motivos neste
sentido têm sido essenciais para uma imposição com sucesso de sua “ética” sobre
os outros.
O princípio básico a ser tido em mente para entender esta dinâmica da cultura
européia é que o fator de maior contribuição para o sucesso do nacionalismo
europeu tem sido sua projeção como nacionalismo desinteressado.
O uso do termo “ideal” na passagem acima citada é um conceito simplesmente
inadequado para a análise etnológica da cultura européia. Hoebel, em um texto
anterior, oferece sua versão, que é similarmente inadequada: “A cultura ideal
consiste nos padrões e comportamento verbalmente expressados de uma pessoa”.
Os exemplos que esses antropólogos oferecem de outras culturas para explicar a
distinção entre “ideal” e “real” de maneira alguma representam o fenômeno na
cultura ocidental, presentemente em estudo.
Hoebel descreve “postulados normativos ou valores” como “hipóteses profundas
sobre se coisas ou atos são bons e devem ser almejados, ou se são maus e devem
ser rejeitados”. Isso é precisamente o que a “ética retórica” não é. A definição feita
por Hoebel pode ser usada para chegar ao oposto do fenômeno que eu desejo
descrever. Uma “ética retórica” não é uma “hipótese profunda”. É uma expressão
verbal superficial que não deve ser assimilada pelos membros da cultura que a
produziu. A “ética retórica”, um fenômeno europeu, tem sido omitida na teoria
etnológica convencional, a qual tem constantemente oferecido conceitos destituídos
de significado político.
Antropólogos falam sobre uma lacuna presente em todas as culturas entre o
pensamento e a obra, entre ideias e ações. A lacuna a qual estou me referindo, no
entanto, é entre a expressão verbal e crença ou compromisso; entre o que as
pessoas falam e o que elas fazem. Em nenhum outro lugar senão na cultura
européia as palavras significam tão pouco enquanto índices de crença. É esta
característica que está em discussão aqui e é a característica para a qual os
conceitos da antropologia tradicional são inadequados para explicar.
No entanto, ela tem sido descrita enquanto traço cultural por outros, particularmente
aqueles que têm sido feito vítimas da astúcia européia. Abaixo um indígena
americano descreve o comportamento europeu.
Eles nos fariam escravos se pudessem; mas como não podem, eles nos matam.
Não há fé que possa ser colocada em suas palavras.
Eles dirão para um índio “Meu amigo, meu irmão!”. Eles o pegarão pela mão e ao
mesmo tempo o destruirão... Lembre-se deste dia em que os preveni de amigos
como estes. Eu conheço os Facas Longas. Eles não são confiáveis.
É uma característica própria da cultura que ela prepare seus membros para agirem
como amigos junto àqueles que eles consideram inimigos, para que possam
convencê-los de que vieram para ajudar, quando de fato eles vieram para destruí-los
e a sua cultura. O fato de que alguns possam “acreditar” que eles estão realmente
fazendo o bem só o torna mais perigosos, já que talvez eles já tenham feito de sua
própria retórica uma conveniente desilusão de si. O comportamento hipócrita é
aprovado e gratificado na cultura européia. A ética retórica ajuda a sancioná-lo. A
cultura européia não pode ser compreendida sozinha segundo os termos das
dinâmicas de outras culturas. É uma cultura que cria hipocrisia, na qual a hipocrisia
é um tema sustentador, um comportamento padrão. Sua natureza hipócrita está
ligada a abstração platônica, a objetivação, a compartimentalização da pessoa e a
negação do seu emocional. Abaixo, Havelock analisa o caso caracteristicamente:
Outro aspecto notável sobre eles (gregos pré-platônicos) neste período é sua
capacidade para a ação direta e sincera e para a expressão direta e sincera da
razão e do desejo. Eles careciam quase inteiramente daquelas pequenas hipocrisias
sem as quais nossa civilização parece não funcionar.
A distinção e as definições que podem levar a um maior entendimento dos europeus
e de sua cultura podem vir apenas de uma perspectiva que não seja a do calvinismo
europeu; para isso aí está o método do calvinismo europeu ou nacionalismo cultural
para ocultar os interesses europeus. Conforme eu usei, “valor” é apenas valor
significativo; é ele que motiva o comportamento e é a origem do compromisso
humano. O valor determina o que é imitado e preservado, o que é selecionado e
encorajado. “Valores reconhecidos”, por outro lado, que são meramente
professados, que encontram apenas expressão verbal, que não são indicativos de
comportamento, pertencem ao que eu tenho chamado de “ética retórica”.
A ética retórica européia é precisamente aquilo – puramente retórica – e, como tal,
tem suas próprias origens como uma criação para exportação, isto é, para a
atividade política e intercultural do europeu. Ela tem a intenção de criar uma imagem
que evitará que os outros antecipem o comportamento europeu com êxito e seu
objetivo é encorajar o comportamento político não estratégico (isto é, ingênuo, ao
invés de bem sucedido). Ela é planejada para vender, enganar, promover os
objetivos nacionalistas europeus. Ela “embala” o imperialismo cultural europeu em
uma embalagem que o faz parecer mais atrativo, menos prejudicial. Nenhum desses
aspectos representa o que pode culturalmente ser referido como um “ideal” em
qualquer sentido. A ética retórica não é, por conseguinte, disfuncional na cultura
européia.
Isso não gera ou reflete qualquer conflito na ideologia ou sistema de crenças, mas é,
antes, necessária para a manutenção e projeção da utamaroho e desempenha uma
função vital no sustento o nacionalismo cultural europeu na busca por seus objetivos
internacionais.
A ética retórica apenas é possível dado o fato de a hipocrisia enquanto modo de
comportamento ser um ponto valorizado na vida européia; o mesmo comportamento
hipócrita que sua presença autoriza. Novamente, “valor” refere-se àquilo que é
encorajado e aprovado em uma cultura.  A cultura européia é construída de tal
maneira que a sobrevivência próspera dentro dela desencoraja a honestidade e a
retidão e encoraja a desonestidade e a enganação – a habilidade de parecer ser
algo que não é esconder o verdadeiro “eu”, motivos e intenções de alguém.
Pessoas que são enganadas por outras e se relacionam com uma imagem projetada
são consideradas tolas ou “caipiras”. Neste sentido, hipocrisia se torna não um traço
negativo da personalidade, nem imoral ou um comportamento anormal, mas é assim
esperada e cultivada. É considerada como sendo um ingrediente crucial da
“sofisticação”, uma meta européia. O comportamento europeu intracultural e político
baseiam-se na hipocrisia, assim como são as relações de negócio, a propaganda
midiática e a maior parte de outras áreas da interação pública e social. Não passa
de uma manifestação deste tema quando os americanos afirmam que os políticos
são basicamente honestos. A afirmação em si é hipócrita e o público espera que ela
seja. Todo sabe que o objetivo da propaganda comercial é nos convencer de
comprar produtos para que assim os produtores possam conseguir lucros maiores,
mas os slogans tentam nos persuadir de que o produto é benéfico para nosso bem
estar, como se o produtor no fundo quisesse nosso bem estar.
Essa hipocrisia afeta a vida de cada membro da cultura nas suas relações com os
outros e origina ainda uma parte na natureza de suas relações interculturais. È uma
parte do mecanismo de expansionismo europeu. Todos esses fatores fazer parte da
compreensão da ética retórica e não uma distinção demasiadamente simplista entre
a cultura “ideal” e a “real”; talvez uma distinção relevante com relação a outras
culturas que criam e são criadas por “personalidades culturais” muito diferentes.
Olhemos mais de perto esta “ética” e vejamos como ela tem funcionado
historicamente.  A função Retórica da “Ética Cristã”.

Marimba Ani, PH.D., é pesquisadora veterana, ativista e cientista cultural treinada.


Sócia há muito tempo do legendário e mundialmente conhecido egiptólogo e
estudioso africano Dr. John Henrik Clarke. È professora na The City University of
New York’s Hunter College e é autora de Let the Circle be Unbroken (Deixe o círculo
ser inteiro).

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