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O RAP COMO PRODUÇÃO DE RESISTÊNCIA E SUBJETIVIDADE PERIFÉRICA NA OBRA DOS RACIONAIS MC’S A PARTIR DA NOÇÃO DE

FUNÇÃO FRATERNA
Ariel Ambrósio; Diego Sousa de Carvalho; Marcus Vinícius Santos; Carolina Cardoso Tiussi
Universidade Anhembi Morumbi – Graduação em Psicologia marcus_depaulasantos@hotmail.com

Introdução Resultados e Discussão

O rap é um estilo musical muito presente nas periferias brasileiras. Esse estilo possui uma Favela-Família
sonoridade marcada pela presença de falas intercaladas às batidas musicais. O estilo é Observamos entre as canções selecionadas do grupo Racionais MCs a tendência em
uma das vertentes do movimento hip hop, gênero artístico desenvolvido inicialmente nos estabelecer descrições dos territórios periféricos. São comuns as referências diretas aos
Estados Unidos, criado pelo conjunto de produções artísticas, políticas e culturais de nomes de bairros, regiões ou pontos conhecidos nos territórios. Acreditamos que este tipo de
comunidades negras e latinas vivendo em cidades norte-americanas, também fortemente construção tenha por objetivo uma aproximação aos interlocutores, produzir “familiaridade”
associadas às regiões pobres e excluídas das metrópoles locais. Como força de expressão, com as cenas e com os cenários periféricos, trazendo para uma mesma realidade cultural, a
as letras desse movimento musical frequentemente colocam em pauta questões sociais e da favela.
políticas, dispondo de maneira importante enquanto potencial de expressão e subjetivação. Assim, em conformidade com a autora, o compartilhamento dessas “experiências cotidianas”
A questão da vida na periferia com relação à vida na metrópole é bastante relevante nos compõe uma relação fraterna potente no campo produtor de identificações, marcado por
contextos do rap e hip hop. Pensando uma definição para o conceito de periferia, inter-relações horizontais, e pela aproximação por meio dos semelhantes. Os interlocutores
entendemos que essa produção artística e política ensaia importantes noções, que podem dos Racionais MCs se tornam também seus semelhantes, participantes de cenas e cenários
se articular ao que tratam autores sobre esta temática. destes cotidianos periféricos.
D'Andrea (2013) fala da formação de uma “nova subjetividade”, a partir da qual, moradores Mano se torna a maneira de se dirigir a seus ouvintes, uma estratégia de horizontalizar suas
de bairros e regiões populares podem revisar seu posicionamento e formulações sobre si relações, trazendo-os às relações cotidianas, mais do que isso, uma noção de irmandade,
mesmos. Esta nova subjetividade, dá ênfase a aspectos positivos e à potencialidade da uma fratria com objetivo de estabelecer laços de cumplicidade (KEHL, 2000, p. 41).
condição periférica. Desse modo, o sujeito periférico emerge da subjetividade, e atua Aspectos psicossociais de pobreza, violência e das drogas
politicamente (D'ANDREA, 2013, P. 15). São consequências diretas das desigualdades sociais, da pobreza, da falta de recursos
A partir daí, D'Andrea (2013) compreende a importância da produção musical do grupo institucionais, as drogas também surgem nos relatos, enquanto possibilidades em meio a
Racionais MC's na produção de visibilidade dessas subjetividades periféricas, se esse cenário distópico. “Os manos decola na farinha, na pedra, usando droga de monte”, diz
posicionando e mobilizando os contextos sociais e políticos específicos da vida na periferia a canção “Periferia é periferia”. Ainda nesta canção, os Racionais fazem um apelo para que
de São Paulo. os “drogados” passem a seu lado, ouçam sua mensagem, e se tornem “aliados” na luta em
Mano Brown, nome artístico de Pedro Paulo Soares Pereira, foi um dos líderes do grupo de comum da periferia, que reivindica, entre outras questões, o reconhecimento, a cidadania.
rap / hip hop, falando sobre sua obra, afirma que o rap é uma “guerra e nessa guerra eu Kehl (1999) ressalta que na periferia os fenômenos sociais se extremizam, o real se torna
tenho que conviver com as minhas dores sabendo que tem mais gente que sofre no mundo extremo. A violência se apresenta e se banaliza nas narrações sobre a periferia. A morte se
e que pelo menos através do rap pode se aliviar. O rap vai diretamente até os que mais “realiza” de tal maneira que exclui da condição humana qualquer um de seus moradores.
sofrem” (SILVA, 2012, p. 100). Fatalidade e Destino
O tema do fazer guerra ou revolução é também apresentado pela psicanalista Maria Rita As narrativas dos Racionais parecem apresentar um pesado destino inexorável que
Kehl (1999), em sua análise da obra dos Racionais MCs, para a autora, essa revolução persegue os sujeitos periféricos, em histórias familiares que se repetem, como o abandono
requer “consciência” e “atitude”, “orgulho da raça negra e lealdade para com os irmãos”, parental, as possibilidades de futuro se precarizam, se tornam escassas, passam em muitas
que se identificam nas letras como “manos”, um dos conceitos que esta autora sublinha. das histórias pelo uso abusivo de drogas, pela violência, e pela execução, seja pela polícia,
Kehl (1999) introduz o tema da função fraterna, como ferramenta de análise da obra dos seja por vingança, ou de maneira trágica e inexplicável, sem motivo.
Racionais MC’s. A autora destaca que “o tratamento de mano não é gratuito”, Romper com ciclo de fatalidade: a função fraterna
intencionalmente convoca identificações horizontais, em oposição a modelos de O rap dos Racionais, com suas mensagens duras, apresenta também uma proposta, por
identificação verticais, como dão-se as relações de opressão ou que implicam relações de meio de uma mensagem à primeira vista desalentadora, o grupo argumentava pelo
desnível de poder. “As letras são apelos dramáticos ao semelhante, ao irmão: junte-se a “igualitarismo periférico, a autoestima do negro e a capacidade do morador da periferia de
nós, aumente nossa força. Fique esperto, fique consciente” (KEHL, 1999, p. 96). superar seus dilemas” (D’ANDREA, 2013, p. 135).
“Eu sou irmão dos meus truta de batalha, eu era a carne agora sou a própria navalha”, na
canção “Negro Drama”, a irmandade inspirada entre os sujeitos periféricos, homens negros e
mulheres negras, tem por objetivo produzir um novo paradigma referencial, “exemplo de
Objetivos vitórias, trajetos e glórias”.
A função fraterna se apresenta, na obra dos Racionais MCs, enquanto estratégia de
Objetivo geral sobrevivência, “falo pro mano que não morra e também não mate”. “Inacreditável, mas seu
Analisar as críticas sociais em composições do grupo Racionais MC's, a partir do conceito filho me imita”, cantam os Racionais, e avisam que estão convocando, tomando, todos os
articulador de “função fraterna”, descrito pela psicanalista Maria Rita Kehl (1999, 2000 e 2012). filhos negros das favelas “entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu”, os excluídos de acesso
agora encontram uma voz fluida e permeável, que invade as casas, podendo levar os filhos
Objetivo específico por seus rádios, e até mesmo os filhos dos brancos passam a querer ser como os negros, ao
Apresentar e analisar as representações da periferia nas obras do grupo Racionais MC’s, som dos Racionais. Assim, pelo chamado à uma multidão de “manos” aliados, os Racionais
pensadas por meio do conceito de função fraterna. estão propondo uma estratégia de solidariedade, união dos excluídos, uma grande
fraternidade dos “manos”.

Método Considerações Finais

Esta pesquisa exploratória se deu no formato de levantamento bibliográfico, a partir das A partir das categorias apresentadas, podemos pensar algumas questões narradas nas
obras do autor Mano Brown e dos Racionais MC's, pensadas por meio do conceito de canções do grupo Racionais MC's, analisadas a partir do referencial teórico levantado (KEHL,
“função fraterna”, conforme descrito pela psicanalista Maria Rita Kehl (1999, 2000 e 2012). 1999).
Foram selecionadas 04 (quatro) canções do grupo Racionais MC’s, tendo se estabelecido As músicas apresentam uma divisão estabelecida entre modelos de famílias e uma família
uma análise de suas letras, pensando o agrupamento de categorias que fornecessem marcada pela função fraterna. A favela cumpre uma função de “família de origem”, as
material para análise e discussão à luz das teorias (BARDIN, 2010; GIL, 2011; URQUIZA e frequentes descrições de cenas e cenários periféricos produzem a “familiaridade” aos
MARQUES, 2016). contextos periféricos, possibilitando às letras o estabelecimento de uma relação de
As canções selecionadas foram: “Expresso da meia noite”, “Periferia é periferia”, “Negro horizontalidade com seus interlocutores, chamados de “manos”, ou seja, irmãos de uma
Drama” e “Tá na chuva”. Os critérios para sua escolha foram sua proximidade de relação mesma realidade de mazelas e sofrimentos, vulnerabilidades territoriais e psicossociais.
com o conceito estudado, “função fraterna”, desenvolvido por Kehl (1999). Dessa forma, entendemos que o Estado e as instituições se apresentam para narrar uma
Por fim, a partir desta análise pretendeu-se levantar e discutir os temas principais que ausência de função, de modo que a “função paterna” se anuncia pela ausência. Os irmãos,
confrontam a narrativa dos sujeitos periféricos enquanto expressão artística da função “manos” fazem suplência à ausência paterna, e as relações pautadas nessa “fratria” operam
fraterna. como numa missão de resgatar, cumprindo romper com destino-fatalidade anunciado aos
sujeitos periféricos. Relações de solidariedade mobilizam sentidos, de modo a descrever um
“caminho diferente do crime”.
Novas possibilidades de trajetórias são anunciadas nas reivindicações da fratria, entre elas, o
anúncio da dignidade dos sujeitos periféricos, e mais especificamente, de homens negros e
mulheres negras em situações de vulnerabilidades.
Essa fraternidade do “rap” surge para revolucionar os sentidos, se posicionar de forma a
destacar que aquilo que há de produtivo e potente é originário da favela, o rap, produto
periférico, não está subordinado em sua relação com o Centro urbano e capital.

Referências
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições70, 2010. o signo de uma abordagem teórico-empírica. Entretextos, Londrina, v. 16, n. 1, p. 115-144, 2016.
D'ANDREA, Tiarajú P. A formação dos sujeitos periféricos: Cultura e política na periferia de São Paulo (Tese de Doutorado). São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2013. Músicas:
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 2011. Racionais MC's. Expresso da meia noite. Álbum: Nada como um Dia após o Outro Dia, 2002.
KEHL, Maria Rita. A fratria órfã: conversas sobre a juventude. São Paulo: Olho D'Água, 2012. Racionais MC's. Periferia é periferia. Álbum: Sobrevivendo no Inferno, 1997.
KEHL, Maria Rita (org.). Função Fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. Racionais MC's. Negro Drama. Álbum: Nada como um Dia após o Outro Dia, 2002.
KEHL, Maria R. Radicais, Raciais, Racionais a grande fratria do rap na periferia de São Paulo. São Paulo em Perspectiva, 13(3), p. Racionais MC's. Tá na chuva. Álbum: Tá Na Chuva, 2009.
95-106, 1999.
SCISLESKI, Andrea Cristina Coelho; MARASCHIN, Cleci; TITTONI, Jaqueline. A psicologia social e o trabalho em comunidades: Sites:
limites e possibilidades. Interam. j. psychol., Porto Alegre , v. 40, n. 1, p. 47-54, abr. 2006. Site oficial Racionais MC’s: <http://www.racionaisoficial.com.br/timeline/?p=602> Acesso em 01.11.2019.
SILVA, Rogério S. A periferia pede passagem: trajetória social e intelectual de Mano Brown (Tese de Doutorado). Campinas:
Universidade Estadual de São Paulo, 2012.
URQUIZA, Marconi de A.; MARQUES, Denilson B. Análise de conteúdo em termos de Bardin aplicada à comunicação corporativa sob

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