ENTENDENDO O PATRIARCADO
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Pesquisadora do Institute of African Studies/Nigéria, doutoranda do curso de Antropologia Social, Mestre
em Relações Étnico-Raciais, fundadora da Sociedade Matriarcado Afreekana, coordenadora do Centro de
Altos Estudos e Pesquisa Afro-Pindorâmica (CEPA) da UKAY/Instituto Hoju.
inferiores e frágeis, especialmente às mulheres, dando-lhes o direito de dominar estes
“fracos” e manter o domínio através de várias formas de violência e terrorismo
psicológico. Quando nasci, meu irmão mais velho tinha um ano de idade, e o patriarcado
determinou exatamente como cada um de nós deveria ser tratado por nossos pais. Eles
acreditavam no patriarcado; eles haviam aprendido o pensamento patriarcal por meio da
religião.
Na igreja, eles aprenderam que deus2 criou o homem para governar o mundo e
tudo que nele havia. E era atribuição das mulheres auxiliá-lo na realização dessas tarefas,
assumindo o lugar de subordinação em relação ao homem, e obedecendo ao todo-
poderoso. Eles foram instruídos a acreditar que deus era homem. Esses ensinamentos
foram reforçados em todas as instituições que tivemos contato – escolas, tribunais,
clubes, arenas esportivas e igrejas. Absorvendo o pensamento patriarcal – como todo
mundo ao nosso redor – eles o repassaram a nós, seus filhos, porque, para eles, era a
forma "natural" de organização da vida.
Como filha deles, fui ensinada que era meu papel servir, ser frágil, estar livre do
fardo do pensamento, cuidar e nutrir os outros, sem receber os mesmos cuidados. Ao
meu irmão foi ensinado que seu papel era de ser servido; prover; ser forte; pensar, criar
estratégias e planejar; e se recusar a cuidar ou nutrir outras pessoas. Eu fui ensinada que
não era apropriado que uma mulher fosse violenta, era algo "antinatural". Meu irmão
aprendeu que seu valor era determinado por sua coragem e violência (embora em
contextos apropriados). Ele foi ensinado que para um garoto gostar de violência era algo
bom (em contextos apropriados), e que um menino não deve expressar seus sentimentos.
Mas, para mim, o aprendizado foi que as meninas podem e devem expressar seus
sentimentos, ou pelo menos alguns deles. Quando eu reagi com raiva ao negar um
brinquedo, fui advertida sobre a raiva não ser um sentimento feminino. Em uma família
patriarcal, a raiva não deveria ser expressa por mulheres, devendo ser totalmente
erradicada. Na vez do meu irmão, quando reagiu com raiva por ter sido negado um
brinquedo, ele foi ensinado, na mesma família patriarcal, que sua capacidade de
expressar a raiva era oportuna, mas que ele deveria aprender o contexto mais adequado
para desencadear sua hostilidade. Não era bom para ele usar a sua raiva para se opuser
aos desejos de seus pais. Mas, quando ele cresceu, aprendeu que a raiva era facultada e
permitir que a raiva provocasse a violência, o ajudaria a se tornar protetor do lar e da
nação.
Morávamos no campo, isolados de outras pessoas. Nossa distinção de papéis de
gênero foi repassada por nossos pais, e pela maneira como os vimos comportarem-
se. Meu irmão e eu lembrávamos da nossa confusão sobre gênero. Na realidade, eu era
mais forte e mais violenta do que meu irmão, o que aprendemos rapidamente que era
errado. E ele era um garoto gentil e pacífico, o que aprendemos que era realmente muito
ruim. Embora muitas vezes ficássemos confusos, certamente tínhamos ciência sobre um
fato: nós não poderíamos ser e agir da maneira que gostaríamos, agindo pelos nossos
sentimentos. Isso ficou bem definido para nós: nosso comportamento deveria seguir um
roteiro predeterminado pelo gênero. Nós dois aprendemos a palavra "patriarcado" em
nossa vida adulta, quando aprendemos que o script que determinou o que deveríamos
ser, as identidades que teríamos, baseava-se em valores e crenças patriarcais sobre
gênero.
Eu sempre estava mais interessada em desafiar o patriarcado do que meu irmão,
talvez fosse porque era o sistema que sempre me deixava de fora das coisas que eu
gostaria de fazer parte. Na vida familiar dos anos 1950, as bolas de gude eram jogos de
meninos. Meu irmão herdara suas bolinhas de gude dos homens da família; ele tinha uma
caixa de lata para guardá-las. De todos os tamanhos e formas, incrivelmente coloridas,
eram para os meus olhos os objetos mais lindos que eles podiam ver. Nós jogávamos
juntos, muitas vezes comigo agarrando-se violentamente às bolas de gude, recusando-
me a compartilhá-las. Quando papai estava no trabalho, nossa mãe, que quase sempre
estava em casa, ficava muito satisfeita em nos ver jogando bolinhas de gude juntos. No
entanto, papai, olhando para a cena por uma perspectiva patriarcal, ficou perturbado com
o que viu. Sua filha, agressiva e competitiva, era uma jogadora muito melhor que o seu
filho. O filho era passivo; realmente não parecia se importar com quem ganhara, e estaria
disposto a me dar suas bolas de gude a cada vitória. Então, papai decidiu que aquela
brincadeira tinha que terminar, e que eu e meu irmão precisávamos aprender uma lição
sobre papéis apropriados a cada sexo.
Numa noite, meu irmão recebeu permissão de nosso pai para pegar a lata de
bolinhas de gude. Anunciei meu desejo de jogar e fui informada, por meu irmão, que “as
meninas não brincavam com bolinhas de gude”, que era um jogo de meninos. Aquilo
não fez sentido na minha mente de quatro ou cinco anos, e eu insisti no meu direito de
jogar. Peguei as bolas de gude e atirei nele. Papai mandou que eu parasse. Eu não
escutei. Sua voz ficou cada vez mais alta. Então, de repente, ele me pegou, quebrou uma
tábua da nossa porta de tela e começou a me bater com ela, me dizendo: “Você é apenas
uma garotinha. Quando eu digo para você fazer alguma coisa, você deve fazer o que eu
disser”. Ele me bateu e bateu, para que eu reconhecesse o que havia feito. Sua violência
chamou a atenção de todos. Nossa família ficou assustada diante da pornografia da
violência patriarcal. Depois dessa surra eu fui forçosamente banida à solidão e ao escuro.
Mamãe entrou no quarto para aliviar a dor, me dizendo suavemente, com seu sotaque
sulista: “Tentei avisar a você. Você precisa aceitar que você é apenas uma garotinha, e
garotas não podem fazer o que os garotos fazem”. A serviço do patriarcado, sua tarefa
era validar que papai fizera a coisa certa, e colocar-me no meu lugar, restaurando a
“ordem social natural”.
Lembro-me tão bem desse evento traumático, porque era uma história contada e
recontada dentro de nossa família. Ninguém se importava se a recorrente exposição
daquele episódio pudesse desencadear estresse pós-traumático; para reforçar a
mensagem e o sentimento de absoluta impotência, era necessário repetir a história muitas
e muitas vezes. A lembrança daquele chicoteamento brutal de uma criança pequena por
um grande e forte homem serviu muito mais do que apenas um apontamento do meu
lugar de gênero. Foi uma nota para todos que estavam assistindo, demonstrando para
todos os meus irmãos, homens e mulheres, e para nossa mãe, que nosso pai patriarcal
era o governante em nossa casa. A mensagem era: se não obedecêssemos às suas regras,
certamente seríamos punidos, punidos até a morte. E assim fomos experimentalmente
educados na arte do patriarcado.
Não há nada único ou mesmo excepcional nessa experiência. Basta ouvir os
depoimentos de lembranças de feridas de crianças já crescidas, criadas em lares
patriarcais, que ouvirá versões diferentes, mas com o mesmo tema subjacente, o uso da
violência para reforçar a doutrinação e a aceitação do patriarcado.
Em How Can I Get Though to You?,3 o terapeuta familiar Terrence Real conta
como seus filhos foram iniciados no pensamento patriarcal, enquanto seus pais
trabalhavam para criar um lar amoroso, onde os valores antipatriarcais
prevalecessem. Ele conta como seu filho mais novo, Alexander, gostava de se vestir como
uma Barbie, até que, brincando com seu irmão mais velho, ao testemunhar sua
personalidade Barbie, chocado, demonstrou, pelo olhar e pelo silêncio, total desaprovação
de seu comportamento inaceitável:
Sem um pingo de maldade, aquele olhar transmitiu para o meu filho a seguinte
mensagem: você não deve fazer isso. E a forma como a mensagem foi
transmitida, propiciou um potente sentimento: a vergonha. Aos três anos,
Alexander estava aprendendo as regras. Sem uso da linguagem verbal, apenas dez
segundos foram suficientemente poderosos para dissuadir meu filho. E ele,
daquele instante em diante, deixou de lado sua atividade favorita. Eu chamo esses
momentos de indução de "traumatização normal" de meninos.
Faludi nunca interroga a noção de controle. Ela nunca considera que a noção de que os
homens estavam de alguma forma no controle, no poder e satisfeitos com suas vidas antes
do movimento feminista contemporâneo pode ser falsa. O patriarcado, como sistema,
negou aos homens acesso total ao bem-estar emocional, o que não é o mesmo que se
sentir recompensado com o sucesso, ou poderoso por causa da capacidade de alguém
afirmar o controle sobre outros. Para abordar realmente a dor e a crise masculina, como
nação, devemos estar dispostos a expor a dura realidade sobre os danos causados aos
homens pelo patriarcado no passado e a continuidade dos prejuízos no presente. Se o
patriarcado realmente recompensasse os homens, a rotina de violência na vida familiar
tão difundida não existiria. Essa violência não foi criada pelo feminismo. Se o patriarcado
fosse recompensador, a insatisfação avassaladora que muitos homens sentem em suas
vidas profissionais – uma insatisfação amplamente documentada no trabalho Studs
Terkel, que ecoou no tratado de Faludi – não existiria. De muitas maneiras, Stiffed foi
mais uma traição aos homens americanos. Porque Faludi gasta tanto tempo tentando não
desafiar o patriarcado que ela falha em não destacar a necessidade de extinguir o
patriarcado, se nossa intenção for libertar os homens. Em vez disso, ela escreve:
Em vez de se perguntar por que os homens resistem à luta das mulheres por
liberdade e uma vida saudável, comecei a me perguntar por que os homens se
abstêm de se envolver em luta própria. Por que, apesar de um crescimento de
implicâncias aleatórias, eles não oferecem resposta metódica e fundamentada a
essa situação: Dada a natureza insustentável e insultante das exigências impostas
aos homens para prover em nossa cultura, por que os homens não se revoltam?…
Por que os homens não responderam à série de traições em suas próprias vidas –
aos fracassos de seus pais ao não cumprirem suas promessas – com algo similar
ao feminismo?
Note que Faludi não se atreve a arriscar-se à ira das mulheres feministas,
sugerindo que os homens podem encontrar salvação no movimento feminista ou a
rejeição dos potenciais leitores masculinos solidamente antifeministas, propondo que
todos têm algo a ganhar ao se envolver com o feminismo.
Até agora, em nosso país, o movimento feminista visionário é a única luta por
justiça que enfatiza a necessidade de acabar com o patriarcado. Nenhum movimento de
massa de mulheres desafiou o patriarcado e nenhum grupo de homens veio junto para
liderar a luta. A crise que os homens enfrentam não é a crise de masculinidade, é a crise
da masculinidade patriarcal. Até fazermos uma distinção aberta entre essas diferenças, os
homens continuarão a temer qualquer crítica ao patriarcado, acreditando representar uma
ameaça. Ao distinguir a política do patriarcado, e com compromisso de acabar com o
machismo, o terapeuta Terrence Real deixa evidente que o patriarcado que prejudica a
todos nós está incorporado em nossa psiquê:
A psicologia do patriarcado é a dinâmica entre as qualidades consideradas
"masculino" e "feminino", das quais metade de nossos traços humanos é exaltada
enquanto a outra metade é desvalorizada. Homens e mulheres participam desse
sistema de valores deturpado. A psicologia do patriarcado é uma "dança do
desprezo", uma forma perversa de conexão que substitui a verdadeira intimidade
por complexas camadas secretas de domínio e submissão, conluio e
manipulação. Isto é o paradigma dos relacionamentos, não reconhecido, que tem
impregnado a civilização ocidental geração após geração, deformando ambos os
sexos e destruindo o vínculo de amor entre eles.