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AS VOZES DO SILENCIADO

ESTUDOS NAS FRONTEIRAS DA ANTROPOLOGIA,


FILOSOFIA E PSICOLOGIA

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Marta Helena de Freitas
Ondina Pena Pereira
Organizadoras

AS VOZES DO SILENCIADO
ESTUDOS NAS FRONTEIRAS DA ANTROPOLOGIA,
FILOSOFIA E PSICOLOGIA

Comitê Editorial
Geraldo José de Paiva – USP
Monique Augras – PUC-RIO
Tânia Mara Campos de Almeida – UCB

Brasília/DF
2007

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Universidade Católica de Brasília – UCB

Missão

A Universidade Católica de Brasília tem como missão atuar solidária e efetivamente para o
desenvolvimento integral da pessoa humana e da sociedade, por meio da geração e comunhão
do saber, comprometida com a qualidade e os valores éticos e cristãos, na busca da verdade.

Reitor
José Romualdo Degasperi

Pró-Reitor de Graduação
José Leão da Cunha

Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa


Geraldo Caliman

Pró-Reitor de Extensão
Luiz Síveres

Editora Universa

Editora-chefe
Marta Helena de Freitas

Coordenadora
Angela Clara Dutra Santos
Copyright © 2007 by Marta Helena de Freitas, Ondina Pena Pereira (Orgs.)
Coordenadora Editorial e Revisora Direitos desta edição reservados à
EDITORA UNIVERSA - UCB
Margarida Drumond de Assis Q.S. 7 Lote 1 – Águas Claras – Taguatinga - DF – 71966-700
Email: universa@ucb.br – URL: www.ucb.br
Conselho Editorial Tel.: +55-61-3356-9157 – Fax: +55-61-3356-3010
Armando José China Bezerra
Betânia Ferraz Quirino V977 As vozes do silenciado : estudos nas fronteiras da Antropologia,
Filosofia, e Psicologia / Marta Helena de Freitas, Ondina Pena
Lúcia Henriques Sallorenzo Pereira (organizadoras) – Brasília: Universa, 2007.
Mariza Vieira da Silva
Roberval José Marinho 228 p. ; 21 cm

Sueli Corrêa de Faria ISBN 978-85-60485-10-9

Editoração Eletrônica e Capa


Jeferson Sarmento Ferreira de Lima 1. Linguagem. 2. Antropologia. 3. Filosofia. 4. Psicologia.
I. Freitas, Marta Helena de, org. II. Pereira, Ondina Pena,
org. III. Título.

CDU: 1

Ficha elaborada pela Coordenação de Processamento do Acervo do SIBI

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SUMÁRIO

PREFÁCIO...............................................................................................................7
Norberto Abreu e Silva Neto

INTRODUÇÃO. ..........................................................................................11
Marta Helena de Freitas e Ondina Pena Pereira

O SILÊNCIO É DE OURO - SOBRE O LUGAR DA PALAVRA


NO DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO..................................................17
Anita Leandro

ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ


DO DEMÔNIO E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”. ...........................39
Célia Carvalho de Moraes

A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO


E NA ALVENARIA. ......................................................................................65
Elzira Divina Perpétua

GÊNERO: ESSÊNCIA, APARÊNCIA, TRANSFERÊNCIA,


PERSISTÊNCIA OU VIOLÊNCIA?. ................................................................93
Hilan Bensusan e Ondina Pena Pereira

DE BOCA FECHADA: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O


SIGNIFICADO DO SILÊNCIO DOS ALUNOS EM SALA DE AULA..................109
Ivone Laurentino dos Santos e Ondina Pena Pereira

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DILEMAS CLASSIFICATÓRIOS: FRONTEIRAS ENTRE A
EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E A PSICOPATOLOGIA.......................................129
José Bizerril Neto

LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO


DEL CUERPO HUMANO PROPRIO.............................................................153
Lino Gambacorta

QUANDO O SILÊNCIO TRANSBORDA, CALABOCA JÁ MORREU


RELIGIOSIDADE, CIENTIFICIDADE E FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA ..........187
Marta Helena de Freitas

O “FALATÓRIO” DE STELA: UMA VOZ INSISTENTE.........................................207


Sílvia Maria Roncador Borges

SOBRE OS AUTORES..........................................................................................225

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PREFÁCIO

Uma das primeiras pessoas que atendi em psicoterapia


propiciou-me uma experiência dramática e instrutiva sobre o
fenômeno do silêncio. Era uma estudante de cursinho para o
exame vestibular universitário, então com dezenove anos de
idade. O atendimento durou quase três anos, e a marca das
sessões eram os longos silêncios da paciente. No primeiro ano,
ela mostrava sempre uma aparência depressiva e permanecia
em silêncio durante quase toda a sessão: fazia umas poucas e
breves comunicações no início e, depois, silenciava até quase
o final da hora, quando novamente fazia novas comunicações
e comentários breves. Somente no segundo ano começou a
falar um pouco mais, sem, contudo, deixar de fazer longos
silêncios. Espantoso, para mim, era o fato de que ela melhorava
sensivelmente com o passar do tempo: melhoria nas relações
com a mãe, aprovação no vestibular, aprovação em um concurso
para o Banco do Brasil, melhoria no relacionamento com o
namorado, e, ao final do terceiro ano de atendimento, tinha um
bom emprego, era universitária, estava de casamento marcado;
substituíra a postura depressiva por uma aparência alegre.
Nossos diálogos foram sempre muito breves e o silêncio era
uma presença constante que não nos pesava; nós dois tinhamos
aprendido a conviver com o seu silêncio, durante o qual ela
resolvia seus conflitos e elaborava sua vida interior, enquanto eu
aprendia a escutar a vida que nele pulsava.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Na cosmologia de Minkowski (Vers une cosmologie, Paris:


Payot, 1999), o silêncio é um “fenômeno vital” independentemente
do ato de audição, pois, se dependesse deste, estaria no mundo
exterior, enquanto função de um sujeito, e reduzido a ser nada
diante do audível, do qual seria apenas a negação. Minkowski
nos ensina que o silêncio não pode ser confundido com o nada,
que ele não é a negatividade da audição; ele nos mostra que é a
vida que é própria ao silêncio, e nessa relação se encontra seu
aspecto positivo, seu caráter de objetividade e de real existência.
Expressões de nossa linguagem mostram essa positividade;
assim, falamos de “o silêncio das catedrais”, “o silêncio das
florestas”, de “um silêncio mortal”, de uma “lei do silêncio”, de
“silêncio compreensivo” e de “silêncio ofensivo”, dentre outras
expressões. Para Minkowski, o fenômeno do silêncio se opõe
à vida barulhenta e ruidosa, e, por isso, diz ele, mesquinha,
prosaica, entediante. É por essa oposição ao ruído da vida
que se pode apreciar toda a grandeza, toda a gravidade, toda
a solenidade do silêncio, como quando se faz “um minuto de
silêncio” para honrar os mortos.
O silenciamento é um ato de restrição imposto por uma
gama variada de silenciadores e de dispositivos institucionais,
e, como tal, pertence à esfera das relações de poder. Este livro,
organizado por Marta Helena de Freitas e Ondina Pena Pereira,
nos coloca diante do fenômeno do silêncio, dos atos e dispositivos
de silenciamento. Nele ver-se-ão relatos de pesquisa empírica e
reflexões sobre o silêncio imposto em diversas circunstâncias:
pela violência do Estado; o silenciamento imposto nas
instituições escolares (da escola primária à universidade); a
busca de imposição do silêncio à loucura e à doença mental; o
silenciamento imposto por conceitos científicos à expressão da
experiência religiosa e pela metafísica das essências à expressão
do “gênero”; o silêncio no cinema e, ainda, sobre a estratégia

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PREFÁCIO

de marketing e publicidade como dispositivo de silenciamento


da sociedade do espetáculo em que vivemos. O livro nos leva a
pensar sobre o que representa para nós o fenômeno do silêncio
e aponta caminhos para que possamos dar voz aos silenciados.
Assim, esta obra nos fornece instrumentos para
aprofundamento dos estudos universitários sobre a temática do
silenciamento e da liberação da voz dos muitos silenciados. São
artigos originais elaborados, com rigor, por autores professores
universitários altamente qualificados e distinguidos em suas
especialidades. Por fim, saúdo a publicação deste livro que traz
para debate a urgente questão do valor e do uso do silêncio
em nosso meio – infestado de ruídos de todas as espécies em
altíssimos decibéis – e parabenizo os autores pela sua doação à
causa dos silenciados, as organizadoras e o comitê editorial pela
seleção e edição dos trabalhos.

Norberto Abreu e Silva Neto


Professor Titular do Departamento de Psicologia Clínica
Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília

Brasília, 16 de junho de 2007.

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INTRODUÇÃO

Todas as coisas já foram ditas,


mas, como ninguém escuta,
é preciso sempre recomeçar.
André Gide

A palavra tem sido, ao longo da civilização ocidental, tomada


como fonte de revelação e, portanto, como fonte de poder. Em meio
à multiplicidade e fugacidade dos acontecimentos, busca-se nela
um ponto de contato com algum sentido mais duradouro, algum
ponto fixo que ilumine as experiências. Essa crença em seu poder de
tradução racional e inteligível da realidade vai se tornar, por outro
lado, força criadora de ordens discursivas e estará pronta a enfatizar
determinadas relações humanas, específicas de dado momento
histórico, como canônicas, eternas, obrigatórias. A esse tempo, os
espaços em branco ou os silêncios cada vez mais numerosos que se
instalam na comunicação entre os humanos e na sua compreensão
do mundo tornar-se-ão ameaçadores ao discurso hegemônico e serão
preenchidos com sinais abstratos ou meramente funcionais. Assim,
eis nossa cultura habitada por palavras técnicas, esvaziadas de sua
significação autêntica.
Simultaneamente à exibição da linguagem técnica pela
sociedade industrial, aparece, enfatizado pelos poetas trágicos, a força
do silêncio. Na sociedade pós-industrial, mais extremado ainda, o
espetáculo da comunicação forçada deixa intacto o lugar do absurdo,
da incomunicabilidade, lugar que será ocupado por aqueles que darão
ao silêncio um valor de expressão, espaço por onde irradiam tanto
as ressonâncias intraduzíveis do real, como novos discursos, novos
saberes, até então silenciados pelos códigos vigentes.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Então, sobre o silêncio, muitas vozes se fizeram soar no


contexto das ciências humanas: o silêncio que comunica, o silêncio
que é uma recusa a se comunicar, o silêncio pela escolha, o silêncio
pela repressão, o silêncio derivado da ausência de escuta, o silêncio
que transborda em expressividade, dentre outros.
Este livro, inserindo-se na coleção Margens e Confluências,
da Editora Universa, adotando uma perspectiva interdisciplinar,
apresenta algumas vozes a mais sobre o assunto. Vozes que emergem
das e nas fronteiras de conhecimentos afins, vozes que procuram
expandir tais fronteiras inserindo novas notas em melodias antigas,
vozes que qualificam o dito e o não dito, vozes que buscam - como
tantos outros também já o fizeram - pronunciar-se acerca daquilo que
o discurso da ciência oficial freqüentemente “joga para debaixo do
tapete”, em nome da assepsia da linguagem lógica ou da comunicação
clara e objetiva. Enfim, são vozes que querem falar das experiências
humanas que, com freqüência, têm sido tão silenciadas; no entanto,
de um modo ou de outro, sempre se mostram, às vezes até de modo
gritante.
Os capítulos bem poderiam ser classificados segundo o
clássico critério temático. As vozes de Silvia e Bizerril tratando de
psicopatologia; as vozes de Célia e Marta, abordando o tema da
religião; as vozes de Ondina e Ivone, tratando de educação; as vozes
de Ondina, Hilan e Lino, tratando de política e de gênero; as vozes de
Anita e Elzira, tratando de arte (cinema e literatura). Tal classificação,
entretanto, realçaria mais as margens do que propriamente as
confluências.
Então, a opção das organizadoras foi o de apresentar
individualmente os trabalhos, deixando ao leitor a possibilidade de
agrupá-los ou reagrupá-los conforme o status do silêncio que cada
um lhes pareceu sustentar. Assim, o fio condutor é a forma como o
leitor escuta e dá crédito às diversas vozes que se pronunciam acerca
de um mesmo fenômeno, o silêncio que, como se pode ver, não se diz

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INTRODUÇÃO

– embora se mostre - jamais com o próprio, mas com muitas palavras


e em diferentes perspectivas. Assim, vamos encontrá-lo, algumas
vezes, qualificado como uma pedagogia de resistência ao poder
instituído por determinados códigos, como um modo de romper
com o padrão previamente estabelecido por um sistema autoritário.
Outras vezes, vamos encontrá-lo em uma perspectiva de denúncia ao
silêncio imposto pela repressão ou, ainda, em outras circunstâncias,
vamos encontrá-lo preenchido por vozes que têm sido silenciadas
pelo sistema dominante. E mais: podemos nos deparar também com
a reivindicação do silêncio, o direito ao intervalo, aos desvãos entre as
imagens e entre as palavras, em um mundo submetido à velocidade
contínua, ao contato ininterrupto, à comunicação sem escuta.
A ordem de apresentação que se segue é inspirada em Barthes;
afinal, como “o acaso pode engendrar monstros”, seguimos o alfabeto,
perfeitamente protegido pela convenção.
Com o capítulo O silêncio é de ouro – sobre o lugar da palavra no
documentário contemporâneo, a autora nos coloca diante de escritores
que valorizam a singularidade das pessoas filmadas, isto é, que,
vendo além de categorias sociológicas generalizantes, permitem a
seus entrevistados encontrar no filme um lugar de afirmação de uma
palavra que escapa às estatísticas e aos discursos pré-estabelecidos.
Comparecem, nesta análise, dois grandes cineastas contemporâneos,
o brasileiro Eduardo Coutinho e o francês Denis Gheerbrant, que, de
acordo com a autora, submetem à palavra do outro todo o processo
de criação de um filme.
Em Ana em busca de aceitação ou Ouvindo a voz do
demônio e descobrindo seu encantamento, a autora relata uma
experiência de escuta, a partir de entrevistas fenomenologicamente
conduzidas à protagonista do título e a seu sentimento religioso,
bastante forte e idiossincrático. A escuta e seu respectivo relato
permitem a qualificação de uma experiência que, até então, na história
de Ana, fora permeada de profunda solidão existencial. À medida

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AS VOZES DO SILENCIADO

que esta experiência - designada pela autora como “transcendente”


- pode ser compartilhada numa situação de grupo, aceita, respeitada
e simbolizada, Ana deixa de se ver meramente capturada no limbo
de suas vivências e pode retornar às mesmas”, numa perspectiva de
reelaboração existencial bastante significativa.
Com A voz de Carolina de Jesus – no quarto de despejo
e na alvenaria, a autora coteja Casa de alvenaria, o segundo diário
de Carolina de Jesus, com parte de seu manuscrito, espaço em que a
diarista descreve o processo de elaboração e recepção de Quarto de
despejo, mas, sobretudo, ali expõe sua luta para além da sobrevivência.
A autora percebe, entre a voz de Carolina – no diário publicado e no
manuscrito – e a do texto de apresentação, uma total ausência de
sintonia que instiga a uma nova leitura, por meio da qual pode-se
ouvir o apelo da escritora para que, antes de ser ovacionada como
símbolo do desejo de uma classe, seja aceita como indivíduo.
Gênero: essência, aparência, transferência, persistência
ou violência? é uma pergunta sobre a naturalização e despolitização
das categorias de gênero, presentes em diversas teorias ocidentais,
mesmo naquelas consideradas libertadoras, como certas filosofias e a
psicanálise. Os autores discutem, ainda, a partir das teorias feministas
que pretenderam repolitizar tais categorias, as razões e os limites do
essencialismo de gênero na luta pelo reconhecimento dos direitos das
mulheres.
Em De boca fechada: um estudo etnográfico sobre o
significado do silêncio dos alunos em sala de aula, as autoras
analisam a indisciplina escolar, após pesquisa realizada em escola
do DF. A maior surpresa da pesquisa foi a de perceber o silêncio do
aluno frente às demandas do professor/instituição como uma ação
de resistência ao poder disciplinar, por meio do que ele se recusa a
se instalar na posição submissa e a participar do jogo. O significado
desse silêncio, tomado como discurso e não como passividade do
aluno, é o foco do trabalho.

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INTRODUÇÃO

Em Dilemas classificatórios: fronteiras entre a experiência


religiosa e a psicopatologia, temos uma interessante discussão sobre
a instabilidade do terreno, em contextos multiculturas, no qual se
tomam decisões em relação aos critérios de normalidade. O autor
coloca em xeque as ambigüidades classificatórias dos procedimentos
de psicodiagnóstico do DSM-IV-R e do Cid-10, para indicar que a
redução dos fenômenos religiosos a interpretações psicopatológicas
silencia a experiência de milhões de brasileiros.
Em Los rastros del sufrimiento en el vivido del cuerpo
humano propio, o autor trata do fenômeno da repressão no mundo
contemporâneo, no sentido de que se apresenta como uma estratégia,
uma imposição sistemática do plano de circulação das relações
individuais. Em sua hiperatividade e ductilidade, tal fenômeno exerce
um verdadeiro poder de influência e controle sobre os costumes e
até mesmo sobre os gestos da vida cotidiana de cada um, embora se
apresente disfarçado de “leve” e de “inocente”, inofensivo e neutro.
Em Quando o silêncio transborda, «calaboca já morreu»
– religiosidade, cientificidade e formação em psicologia, a autora
apresenta reflexões elaboradas, a partir da escuta de depoimentos de
estudantes de psicologia, sobre o modo como eles experimentam suas
respectivas crenças, dúvidas ou descrenças religiosas no contexto de
seu curso. Em tais reflexões, o foco principal é a suposta oposição –
cujo papel é silenciador à expressividade - entre os conhecimentos de
psicologia e as crenças de natureza religiosa, bem como as decorrentes
implicações disso para a prática profissional em psicologia. As
formulações sobre o silêncio tansbordante, neste caso, decorrem de
uma leitura fenomenológica sobre os limites e as potencialidades de
ambas: a linguagem expressiva e a linguagem científica.
O falatório de Stela: uma voz insistente enfatiza, segundo
a autora, a óptica mais legítima sobre a loucura, aquela da visão de
internos de hospitais psiquiátricos. O texto estabelece, com essa
intenção, um diálogo entre o testemunho da interna Stela do Patrocínio

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AS VOZES DO SILENCIADO

e autores como Michel Foucault e Franco Basaglia. Stela, por meio de


poemas, denuncia os cruéis processos de aniquilamento do sujeito,
de perda de singularidade e de expressão impostos ao louco. No
diálogo com Foucault e Basaglia, a autora enfatiza a importância dos
testemunhos e da produção local de conhecimento, como forma de
cavar um “clima social” favorável para mudanças significativas na
concepção do que seja a loucura e o seu “tratamento”.
A apresentação desse conjunto de contribuições – vozes que
se pronunciam sobre o silêncio, lançadas ao “microfone público” - só
foi possível graças à ousadia e, sobretudo, à confiança dos autores
que nos encaminharam os seus trabalhos. A cada um deles os nossos
agradecimentos, com a expectativa de que a escuta de cada leitor,
mesmo que se dê no mais concentrado ou recôndito silêncio, possa
contribuir também para a expansão dessas vozes, para a criação de
novas melodias, para o transbordamento de margens, para a ruptura
de tantos “calabocas” ainda tão presentes em nossa cultura ocidental,
por mais falante que esta se apresente.
Agradecemos também aos membros da Comissão Editorial,
constituída especificamente para fins da avaliação dos trabalhos que
nos foram confiados para publicação nesta obra: Geraldo José de
Paiva, Monique Augras e Tânia Mara Campos de Almeida.
Os nossos agradecimentos são também extensivos a todos
aqueles que, de um modo ou de outro, tornaram possível a edição
desta obra, em especial, à equipe da Editora Universa: Angela Clara
Dutra Santos, Margarida Drumond de Assis e Jeferson Sarmento
Ferreira de Lima.

Marta Helena de Freitas


Ondina Pena Pereira

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O SILÊNCIO É DE OURO
SOBRE O LUGAR DA PALAVRA NO
DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO

Anita Leandro

O cinema documentário é uma manifestação da arte da


palavra. Desde os primórdios do cinema, entretanto, essa palavra
que encontra espaço de afirmação no documentário esteve sempre
ameaçada pelo discurso, ou seja, pela fala objetiva e conclusiva. É que
a palavra no cinema se constitui de falas mas também dos silêncios
dessa fala, de um monólogo solitário da palavra consigo mesma,
coisa que o discurso não admite. No cinema, os silêncios da palavra
livre são aqueles momentos fugidios, mas graves, de intervenção de
um gesto, de uma troca de olhares, de uma escuta atenta, de uma
atitude corporal de quem fala e de quem ouve. São momentos de
grande liberdade no uso da palavra, que tendem à abstração e que
dizem respeito à imediaticidade de um plano, ao seu “aqui e agora”, à
delimitação espaço-temporal de um encontro que acontece dentro de
um quadro. No documentário, a palavra pode se afirmar enquanto tal,
sem precisar de um prolongamento narrativo, de uma mais-valia que
a deforma e a transforma em discurso objetivo, em verdade absoluta,
dando-lhe, enfim, instância de poder.
Nesse lapso de tempo, nessas brechas abertas por uma fala que
não quer dizer tudo e que preferiria manter em suspenso o sentido do
que é dito, tudo pode acontecer: desde a liberação de uma palavra pura,
de um grão de real, de uma verdade inesperada que escapa a qualquer
controle, até a incrustação de um discurso verista, capaz de se alojar
na entrevista e de roubar toda a cena. Como o discurso corresponde,
por definição, a essa objetivação obsessiva do mundo filmado, é raro

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AS VOZES DO SILENCIADO

que o não-dito a ele escape e venha, silenciosamente, na sua humilde


insignificância, surpreender o espectador. Constituído a priori e fora
do filme, ou seja, em um tempo e em um espaço totalmente alheios
à palavra filmada, o discurso tem por função prolongar o poder e a
eficácia de histórias e imagens previamente e muito bem construídas
para se deixar surpreender pelo inesperado. De outra feita, a
palavra que o discurso põe em risco pertence ao instante presente
das filmagens e remete à complexidade dos encontros e trocas que
acontecem dentro de um filme, mais precisamente, dentro de um
plano. É de se imaginar que a palavra que resiste à constituição do
discurso objetivo imerge conscientemente em arriscados processos de
fragilização e de vulnerabilidade de sua narrativa. Mas, no cinema,
esse é o preço a pagar para tornar visível ou, pelo menos, sensível, a
“ambigüidade ontológica do real” (BAZIN, 1994).
Ainda à época do cinema mudo, os documentários já
veiculavam, por meio das cartelas, um discurso informativo.
Tomemos o exemplo de Nanook, o esquimó (FLAHERTY, 1920),
exemplo paradoxal, uma vez que se trata de um dos primeiros grandes
documentários de cunho antropológico da história do cinema. Embora
extremamente respeitoso em relação ao povo Inuit com quem Flaherty
compartilha, entre outros, o roteiro de filmagens, o documentário é,
no entanto, entrecortado de cartelas que dizem explicitamente o que
as imagens da família de esquimós se limitariam a sugerir. As cartelas
de Nanook acrescentam ao mundo filmado vários dados sobre o
modo de vida dos Inuit. Essas informações pretendem enriquecer
as imagens mudas, atribuindo-lhes um discurso documentarizante.
Em seu zelo pedagógico, a informação adorna o mundo sensível com
uma narrativa paralela e de teor jornalístico que nos informa sobre
o povo Inuit, os hábitos dos animais polares, o comércio de peles e
sobre a sucessão das estações do ano. Assim, antes mesmo do advento
do cinema sonoro, já se encontra em ação no documentário uma
sobreposição subliminar e progressiva do saber ao ver, do científico

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O SILÊNCIO É DE OURO - SOBRE O LUGAR DA PALAVRA NO
DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO

ao empírico, do pensamento discursivo à intuição sensível, fenômeno


ideológico que vai atravessar toda a história do cinema e encontrar sua
naturalização perfeita na televisão, recurso a partir do qual a palavra
sairá definitivamente de cena para dar lugar ao discurso.

Luz, câmera, silêncio!

Se a palavra filmada, com todas as suas indagações e seus


silêncios, atravessa o século XX e sobrevive ainda hoje, é graças ao
cinema, apesar da televisão. É no cinema que a palavra encontra
abrigo, nos interstícios da fala e nos intervalos dos diálogos, se
aproveitando de todos esses instantes fugazes de descontinuidade
narrativa e discursiva que o documentário admite. A palavra nasce
da hesitação na constituição de uma verdade, do vazio na conversa,
da ausência de questionamentos ou da renúncia a uma resposta.
Dessa forma, a palavra produz situações muitas vezes imperceptíveis
para o espectador desatento e inassimiláveis ao cineasta apressado. A
palavra reside nesses fragmentos de um presente entregue em estado
bruto ao espectador, podendo assim pôr em risco o empreendimento
comercial de um filme. Mas é desses fragmentos do real que depende
toda a qualidade da entrevista no cinema, toda a sua singularidade,
o seu caráter plural ou “infinito” (BLANCHOT, 2003). Ao abrigar o
silêncio, o cinema reserva para o espectador um espaço vazio que
pode ser ocupado por seu imaginário.
Situações dessa natureza constituem a base do cinema de
Eduardo Coutinho (Brasil) e de Denis Gheerbrant (França), dois
documentaristas contemporâneos que têm feito da palavra efêmera
que nasce do instante presente o objeto central de suas obras. Trata-se,
nos dois casos, de um cinema feito com poucos recursos, filmando


O documentarista Eduardo Coutinho conta que sempre se perguntou se a TV
Globo faria um minuto de silêncio quando o patrão Roberto Marinho morresse. Ela
não o fez.

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AS VOZES DO SILENCIADO

sozinho, como Gheerbrant, ou filmando em vídeo e com equipe


reduzida, como Coutinho. Esses cineastas entenderam que a palavra,
conhecedora do imenso poderio do discurso, é desconfiada. A coisa
que mais inibe a palavra é a opulência do discurso. Daí o voto de
pobreza admirável desses dois documentaristas. Uma moral ascética
lhes permite fazer da situação de entrevista um lugar de acolhida
para a palavra pura, num compartilhamento anacrônico da “estética
da fome”, de Glauber Rocha. Uma ascese fora de moda resiste no
método desses documentaristas, e ela é evidente no conteúdo de seus
filmes. Seus entrevistados são, na maioria das vezes, os deserdados,
os sem terra, os sem voz, os obsoletos, mas é, antes de tudo, por
meio da forma que a austeridade do propósito se manifesta. E então
ressaltam-se a montagem em corte seco, os poucos movimentos de
câmera, os planos fechados, nenhuma imagem descritiva, nenhuma
dramatização e a concentração total da mise en scène em torno da
pessoa que fala. Todo o resto se torna supérfluo. Uma força centrípeta,
à maneira de Robert Bresson – o maior dos ascéticos, talvez – atrai
nosso olhar e nosso ouvido, fazendo toda a atenção do espectador
convergir em direção ao âmago da fala. Como vamos ver, a economia
formal praticada por Coutinho e Gheerbrant os coloca à altura da
modéstia da palavra que eles filmam. E é da pobreza de meios que
eles vão extrair toda a riqueza de seus projetos estéticos. No vazio da
forma, o silêncio encontra ressonância e se propaga.
A simples opção pelo documentário como forma de
abordagem do real, em vez da ficção, não assegura, por si só, uma
ruptura com modelos de verdade pré-estabelecidos. O melhor
exemplo desse equívoco é o chamado “modelo sociológico”, como
Jean-Claude Bernardet denominou o documentário engajado que
desponta no início dos anos sessenta, preocupado em expressar uma
problemática social e em transformar a sociedade (BERNARDET,
1985). Embora movido pelas melhores intenções e por temas
nobres, como a pobreza e o operariado, esse modelo acaba deixando

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O SILÊNCIO É DE OURO - SOBRE O LUGAR DA PALAVRA NO
DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO

o real lhe escapar entre os dedos, escondido sob discursos políticos


e categorias sociológicas.
É com Jean Rouch e o chamado “cinema verdade” que veremos
surgir no campo do documentário um gênero minoritário, baseado em
processos de realização compartilhados, que rompem com o modelo
sociológico, então, hegemônico. No documentário realizado com o
sociólogo Edgar Morin, Crônica de um verão (MORIN & ROUCH,
1961), Jean Rouch sistematiza seu método que consiste num retorno
ao campo para discutir o filme com seus personagens, permitindo-
lhes fazer uma autocrítica e opinar sobre a forma de utilização de
suas imagens e de suas falas. Essa antropologia compartilhada coloca
o entrevistado na condição de quem determina o conteúdo do filme,
associando os personagens diretamente ao processo de pesquisa,
como lembra Clarice Peixoto (MONTE-MOR & PARENTE, 1994).
Situações imprevistas acontecem diante da câmera e o filme vai se
construindo à medida que o entrevistado conduz a narrativa. Rouch
submete cada etapa de elaboração de seus filmes à apreciação de
seus personagens, antecipando-se, de certa forma, ao debate sobre
os métodos qualitativos de entrevista não-diretiva, debate que vai
mobilizar a sociologia no início dos anos 70.
De forma bastante original e cada qual a seu modo, Coutinho
e Gheerbrant vão desenvolver em suas obras as potencialidades
do método de Rouch, fazendo do encontro entre o cineasta e seus
entrevistados o próprio tema do filme. O cineasta se torna personagem
de sua própria obra, colocando-se em cena, em condições de
vulnerabilidade, tanto quanto seus entrevistados. Como vemos, aqui
há uma ruptura epistemológica importante do cinema em relação
aos métodos sociológicos de entrevistas. Enquanto a entrevista, em
sociologia, tem por objetivo a “avaliação da relevância da informação
captada”, não podendo incorrer no “risco de captar o vazio da
fala ordinária” (THIOLLENT, 1987), todo o esforço da sociologia
sem sociólogo, de Coutinho e de Gheerbrant, vai se concentrar,

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AS VOZES DO SILENCIADO

precisamente, na busca desse vazio da fala, desses momentos em que


entrevistado e entrevistador se calam para ouvir o eco do encontro
que acontece entre eles no ato das filmagens.

Vertigens do vazio na obra de Coutinho

A palavra entrecortada de silêncios, que ecoa no vazio da


forma ascética, é uma palavra irrelevante, que não interessa às
instâncias discursivas. Talvez, a única relevância da palavra captada
por esse cinema do vazio e do silêncio seja o fato de ela não possuir
relevância nenhuma, por ela ser absoluta e soberanamente irrelevante
na sua singularidade. Nesse paradoxo consiste toda a força do
projeto estético de Coutinho, que o situa num prolongamento
da modernidade cinematográfica, tal como ela foi resumida por
Fabrice Revault d’Allonnes: uma tomada de consciência da
“insignificância da realidade” e da “inevidência do real” (REVAULT
D’ALLONNES, 1994). A partir dos anos quarenta, no pós-guerra, o
cinema não quer mais fazer sentido, ou seja, significar a realidade,
constituir discurso em torno dela. Ele percebe o irremediável
abismo de sentido do mundo e se nega a traduzir a realidade, se
contentando apenas em mostrar o contato com o real, um real
que não é nada evidente, mas opaco, misterioso, ontologicamente
irredutível a qualquer discurso realista.
Eduardo Coutinho costuma dizer que “se esvazia” antes de
começar a filmar e que, ao produzir imagens, prefere o espaço vazio,
mostrando apenas o estritamente necessário, evidenciando apenas o
que a palavra dos entrevistados provoca, apenas o que ela exige que
seja mostrado (COUTINHO, 2000). E não são muitas as exigências
de uma palavra modesta. Em vez de formular questões sobre grandes
temas, como religião, democracia e cidadania, os personagens de
Coutinho falam de seu cotidiano: nasci, casei, pequei, bebi, dentre
outras expressivas ações. E, finalmente, em conseqüência dessa

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O SILÊNCIO É DE OURO - SOBRE O LUGAR DA PALAVRA NO
DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO

conversa trivial, às vezes se chega a uma pergunta mais geral: “E o


Brasil?”, “E a religião?”, “E as condições de vida?”. O tema nasce no
meio da conversa, nos intervalos da história singular de cada um, sem
nunca sobrepor-se a ela.
Em Boca de lixo (COUTINHO, 1992), rodado em um
vazadouro do Rio de Janeiro, Coutinho vai praticar, como sempre
faz, sua escuta respeitosa e acolhedora do mundo. Nesse local onde
trabalham vários catadores, expostos a doenças e a graves acidentes,
a filmagem vai funcionar como um verdadeiro “empreendimento de
saúde”. É assim que Deleuze vai definir o trabalho de certos escritores
e filósofos que estão à margem de um processo e que, como Coutinho
em Boca de lixo, são solidários com o sofrimento do mundo, arriscam
sua própria saúde, furando buracos nos discursos dominantes para
ver o que se esconde por detrás (DELEUZE, 1993). Durante uma
semana, Coutinho se colocou à escuta dos catadores, compartilhando
seu sofrimento e abrindo ao longo desses encontros um espaço para a
propagação de uma palavra singular.
O filme começa com um travelling sobre o lixo, seguido de
uma série de planos fixos e silenciosos, em que vemos vários animais
se alimentando, havendo ao fundo o Cristo Redentor, e ali há garças,
porcos, cães, cavalos e, principalmente, urubus. Num corte brusco,
o silêncio desses planos se choca com uma grande gritaria: são os
catadores disputando o lixo que é despejado por uma caçamba.
Vemos a equipe de filmagens no meio dessa confusão e, só então,
aparece o título do filme, em manuscrito em um papel de embrulho
meio amassado, que também parece ter saído do lixo. É quando se
ouve a música contemporânea de Tim Rescala, composta a partir da
mistura de sons de latas, ferro, madeira e vidros que se entrechocam e
se confundem com o som ambiente do vazadouro. A equipe técnica,
a trilha sonora e as cartelas de abertura aderem, de saída, ao mundo
filmado, compartilhando o espaço dos catadores e reciclando a
matéria do lixo.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Os primeiros contatos com os catadores parecem bastante


difíceis. Hostis à presença da equipe, identificada como sendo “a
televisão”, os catadores se recusam inicialmente a falar, fugindo da
câmera e tapando o rosto com as mãos ou com os panos que utilizam
para se proteger do mau cheiro. Eles alegam que a televisão nunca
os ajudou e que, ao contrário, só os tem humilhado, dizendo ao
público que eles comem lixo. Muitos se sentem acuados e partem
para a agressão verbal. Coutinho argumenta que o lixo é um trabalho
como os outros e que não há problema em mostrá-lo. A valorização
do trabalho é a deixa para um primeiro movimento de adesão ao filme
por parte dos catadores, que só então começam a falar, explicando
que o lixão é melhor do que o salário mínimo ou do que a vida de
doméstica e que ali só há trabalhador, não há ninguém roubando...
Outros, entretanto, discordam e dizem que é por comodismo que as
pessoas vivem do lixo.
A equipe retorna ao vazadouro nos dias seguintes, trazendo
consigo fotocópias de retratos dos catadores que, então, riem muito,
identificando os colegas: “Deda, Nenem, Marquinhos, Mutuca, Pedro
Henrique…” Pouco a pouco vai ficando claro que não se trata de
televisão, mas de outra coisa, que ninguém sabe ainda muito bem o que
é, mas que, pelo seu próprio caráter inusitado, diverte os entrevistados.
“O senhor não tem outra coisa pra fazer, não?”, pergunta o velho
Enock a Coutinho, sorrindo e invertendo os papéis de entrevistador e
entrevistado. Graças a esse momento de total desprendimento da mise
en scène em relação ao tema, ou seja, à sua renúncia a um discurso
sobre o lixão, a hostilidade inicial dá lugar ao riso. A tirada cômica do
velho catador é algo bem próximo dessa “palavra pura” de que nos fala
Heidegger, a “palavra passageira” do discurso vivo, do riso, a “palavra
em liberdade”, que não se deixa aprisionar, em síntese “a palavra e nada
mais” (HEIDEGGER, 1976). Um processo de identificação rudimentar
começa assim a se instalar em torno do acontecimento das fotos e da
identificação de cada entrevistado.

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O SILÊNCIO É DE OURO - SOBRE O LUGAR DA PALAVRA NO
DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO

A partir daí, os cinco personagens principais que vão estruturar


o filme passam a ser identificados por seus nomes, escritos, como o
título do filme, numa folha amassada de papel de embrulho: Nirinha,
Lúcia, Cícera, Enock e Jurema. Esses cinco personagens encontram
no filme um espaço vazio a ser preenchido, livremente, com suas
histórias de vida, suas tristezas e suas réplicas bem humoradas, que
Coutinho nos apresenta em forma de sketchs. Assim, graças a esse
modo de entrevista, mesmo em meio à precariedade extrema que os
rodeia, os catadores vão priorizar o relato de suas relações amorosas,
vão falar de seus filhos, de sua terra natal, de música, de filosofia da
natureza, de religião, de seus projetos e sonhos. E enquanto falam,
constroem um mundo sadio para viver. Cícera, por exemplo, quer
realizar o sonho da filha adolescente: ser cantora de música sertaneja.
Com seu casebre ao fundo e olhando para a câmera, a jovem vai cantar,
na íntegra, a canção Beijos por beijos, de José Augusto. Com esse fundo
musical e imagens da família em suas atividades cotidianas, Coutinho
intercala a fala de Cícera com um clip da jovem cantora. Enquanto sua
filha canta, Cícera se abriga num mundo imaginário que escapa ao
discurso socioeconômico sobre suas condições de vida.
Registre-se que, não só neste filme mas ao longo de toda
a obra de Coutinho, a música vai funcionar como um importante
dispositivo de produção de fissuras na fala dominante, criando
intervalos narrativos que permitem a propagação do frescor da
palavra. Assim, é também por meio do canto que personagens como
Fátima, a Janes Joplin de Babilônia 2000 (COUTINHO, 2000) ou Terci
da Cruz e Souza, a contralto de Fio da memória (COUTINHO, 1991)
escapam a uma rotulação social. Fátima canta no alto do morro da
Babilônia, Zona Sul do Rio, com Copacabana ao fundo. Câmera na
mão, o cinegrafista de Coutinho evolui num travelling de 360 graus
em torno da cantora, procurando se colocar à altura da emoção que
ela expressa nesse show. Fátima sonha ser atriz, oportunidade que o
filme lhe oferece, não propriamente um filme, mas um clip e, ainda

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AS VOZES DO SILENCIADO

por cima, sendo paga pelo seu trabalho, situação bem rara em matéria
de entrevista. No início do filme, Fátima conta a Coutinho que seu
filho mais velho foi assassinado por traficantes e que o segundo
está desaparecido. A tragédia da vida de Fátima, que rapidamente
a incluiria nas tristes estatísticas do tráfico de drogas no Brasil, é
momentaneamente substituída por uma seqüência puramente musical
em que o personagem sonha ser feliz.
O essencial, diz Coutinho, não é a vida que o personagem
leva, mas como ele conta sua vida. Mais do que uma história da
vida privada, o que interessa ao cineasta é uma “estética da vida
privada” (COUTINHO, 2000). Há, nesse desinteresse de Coutinho
pelos temas, algo bem próximo de Brecht, que não parou de
denunciar a “inumanidade dos temas em si”. Os temas são, segundo
o dramaturgo, “intrinsecamente ingênuos”, “meio sem qualidades,
vazios e auto-suficientes”. E só o “gestus social”, como Brecht chamou
a atitude política de uma teatralização direta do corpo, é capaz de
agir sobre o tema abordado e introduzir na arte o elemento humano
(BRECHT, 1972).
Assim, a forma singular de contar suas histórias é o único
e verdadeiro ponto comum entre os diferentes personagens que
compartilham um mesmo filme de Coutinho. Por meio de entrevistas
com descendentes de escravos, O fio da memória mostra a herança da
cultura africana no Brasil. Mas cada personagem é abordado em sua
singularidade, e não como um tipo social. Terci, neta de escravos, tem
orgulho de sua origem africana e, quando fala de sua vida, o faz com
expressões do olhar e entonações da voz que introduzem o mistério
na narração. Sua história lhe pertence e ela não pretende revelá-la
totalmente. Ela nos faz compreender que não disse tudo e que a
melhor parte de suas memórias ela guarda em segredo. O espectador
deve se contentar com o que o personagem quer mostrar, no caso de
Terci, uma música religiosa, que ela canta maravilhosamente bem, no
quintal de sua casa na periferia do Rio.

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O SILÊNCIO É DE OURO - SOBRE O LUGAR DA PALAVRA NO
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Às vezes, ao longo dos encontros do cineasta com seus


personagens, surgem situações de uma escuta quase psicanalítica,
instantes de cura de todo um conjunto de sintomas que, finalmente,
parecem extrapolar o universo dos catadores de lixo ou dos
descendentes de escravos, apontando para um diagnóstico mais amplo
do racismo e da exclusão social no Brasil. Mas como realizar uma tal
proeza sem transformar a fala em discurso geral sobre a sociedade?
Nesse ínterim é que entra o trabalho do espectador em uma
situação de entrevista no cinema. A escuta de Coutinho produz no
entrevistado e no espectador aquela inversão de papéis que Comolli
vai sugerir contra os eternos processos de identificação no cinema: o
fenômeno da identificação, que sempre compreendemos no sentido
pronominal – eu me identifico ao personagem – passa a ser entendido
num sentido ativo: “é o personagem que me identifica como podendo
a ele me identificar” (COMOLLI, 1999). O personagem não é mais
aquele tipo social – o Negro, o Pobre – etiquetas sociologizantes
que tanto agradam a certas abordagens “miserabilistas” do real e que
autorizam o espectador a estabelecer uma diferença asseguradora
entre ele e esse Outro há muito já diluído em estatísticas. Aqui, ao
contrário, é um ser tão singular quanto o próprio espectador que o
interpela, numa relação mais próxima de um “corpo a corpo” à luz do
dia do que de um “face a face” na sala obscura. Ao se apresentar como
uma pessoa qualquer, o entrevistado se afirma como um de nós. É
dessa forma que ele vai, imperativamente, nos colocar no lugar dele,
mesmo contra a nossa vontade.
Analisando o conjunto da obra de Eduardo Coutinho,
Consuelo Lins já vira nos documentários do cineasta uma função
revitalizadora para a sociedade brasileira. De acordo com a autora,
os filmes de Coutinho revelariam “sintomas de saúde e de vida” em
meio à degradação, oferecendo-nos, assim, uma última razão para
continuar gostando de um Brasil, ainda que “submerso em corrupção,
miséria, crueldade, individualismo, indiferença” (LINS, 1996). Há,

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AS VOZES DO SILENCIADO

com efeito, uma atitude solidária neste trabalho de escuta que percorre
toda a obra de Coutinho. Em Edifício Master (COUTINHO, 2002), ele
chega a filmar durante quatro horas uma jovem esquizofrênica, que
insiste em dar as costas para o entrevistador. Ao final, ele consegue
estabelecer com o personagem uma relação de cumplicidade que
lhe permitirá, finalmente, encarar o cineasta de frente. Tal como ele
conduz as entrevistas, Coutinho permite que os próprios personagens
decidam se vão contar alguma coisa, como vão contar e quando.
O compartilhamento do espaço e do tempo do entrevistado,
o risco assumido de captar o vazio da fala ordinária, tudo isso expõe
o cineasta e fragiliza, de certa forma, sua própria saúde. Tal como
o escritor deleuziano, o documentarista que mergulha nos silêncios
da fala vê e ouve coisas fortes demais, irrespiráveis. Ele retorna à
superfície “com os olhos vermelhos e os tímpanos perfurados”. Mas
é graças a essa debilitação de si mesmo, provocada pelo mergulho no
vazio do outro, que ele se torna algo mais que um mero cineasta ou
entrevistador, colocando-se em condições de criar algo novo, a partir
do silêncio.

Olhos nos olhos: a câmera ativa de Gheerbrant

Para alcançar o singular, o minoritário, o cinema documentário


tem que fazer frente à expectativa hegemônica de um discurso geral,
majoritário. O cinema tem que se constituir, ele próprio, em “ato de
palavra”, situação que Gilles Deleuze já percebera no cinema político
de Glauber Rocha, um cinema que funciona como uma “língua
estrangeira”, cravada na “língua dominante”, a fim de exprimir uma
“impossibilidade de viver sob a dominação” (DELEUZE, 1985).
Num prolongamento desse gesto político do cinema moderno, o
documentário contemporâneo tenta combater as instâncias discursivas
colocando a palavra em primeiro plano. É assim que Jean-Louis
Comolli verá na produção atual da palavra filmada “o lugar de uma
guerrilha sem nome”: de um lado, “esse imenso campo da palavra

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O SILÊNCIO É DE OURO - SOBRE O LUGAR DA PALAVRA NO
DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO

destruída, a mídia no seu funcionamento majoritário”; e, de outro,


o campo da “palavra construída a partir das ruínas, que sempre foi
e continua sendo o campo do cinema”, campo hoje ocupado pelo
documentário. Face à espetacularização crescente das sociedades
humanas, o documentário, que é “a arte por excelência da palavra
filmada”, restabelece para o homem ordinário que ele filma e para o
espectador “uma certa dignidade do ser” (COMOLLI, 1995).
Uma estética do vazio, do silêncio, das ruínas, do singular
mesmo, afinal, se consolida como um “ato de palavra” no documentário
contemporâneo. Vejamos a obra de Denis Gheerbrant, documentarista
francês cuja mise en scène tem como característica principal o face
a face do entrevistado com a câmera. O entrevistado é filmado
frontalmente, olhando para a objetiva, como se estivesse se dirigindo
diretamente ao espectador. À primeira vista, poderíamos ter a falsa
impressão de nos encontrarmos diante de uma situação tradicional de
escuta midiática. Na televisão, o entrevistado, em vez de olhar para o
seu entrevistador, olha para a câmera, espreitando, para muito além
dela, um possível espectador para sua pose e sua fala, espectador que,
na verdade, é a própria televisão, instância discursiva de referência
para os dois pólos da entrevista. Diante das câmeras de tevê, todo
entrevistado, a um dado momento, vai entrar voluntariamente no
jogo da objetividade, “falando para a televisão” (e só para ela). Ele
constrói todo o seu discurso em função de uma suposta expectativa
desse destinatário oficial, onipresente na cultura do entrevistado, do
entrevistador e no próprio dispositivo de gravação da entrevista. Mas
nos filmes de Gheerbrant, já nos primeiros minutos, essa impressão
de que o entrevistado se dirige a um espectador longínquo se
dissipa completamente. Uma terceira pessoa, que não pode ser vista,
assinala, no entanto, com sua voz a sua presença fora de campo, mais
precisamente, atrás da câmera. Embora invisível na tela, é ela que, na
verdade, atrai a atenção e o olhar do entrevistado. Descobrimos assim
que o entrevistador é também aquele que filma a entrevista.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Cinegrafista de formação, Denis Gheerbrant filma sozinho,


fazendo ao mesmo tempo a câmera, o som, a entrevista e a direção.
A escolha estética do olhar para a câmera é, assim, determinada pelas
exigências de um método. O cineasta é o único membro da equipe de
filmagens e o entrevistado se dirige à câmera se dirigindo ao mesmo
tempo ao seu interlocutor. Então, não é a um espectador imaginário que
o entrevistado se dirige, como acontece nas entrevistas jornalísticas,
mas ao homem com a câmera, ou seja, o cineasta. Em sua postura ativa
perante o real, esse novo cinegrafista que Gheerbrant coloca em cena
em nada se assemelha àquele ser impessoal, autômato, surdo, mudo,
quase cego e invisível ao qual foi reduzido o cameraman de televisão
e que o olhar do entrevistado atravessaria sem ver. Ao contrário, o
homem por detrás da câmera que o olhar do entrevistado interpela
tem uma densidade material e espiritual. Ele está lá, presente, com
uma voz tão calma e segura quanto seus movimentos de câmera. Seu
silêncio encoraja o entrevistado, oferecendo-lhe todo o tempo de que
necessita para refletir; ao mesmo tempo, a câmera circunscreve o lugar
da palavra, traçando no interior do plano um espaço bem delimitado
para a sua acolhida.
O olhar que é endereçado ao cineasta passa pelo espectador,
numa relação triangular que nos inclui o tempo todo no meio da
entrevista, entre o cineasta e o entrevistado, num corpo a corpo com
a palavra filmada. “A câmera, diz Gheerbrant, é o espectador entre
nós” (GHEERBRANT, 1995). Ao olhar para a câmera, o entrevistado
coloca, literalmente, o cineasta em cena e informa ao mesmo tempo
o espectador sobre a ocupação do espaço. É o direcionamento do seu
olhar que indica para o espectador o lugar exato do cineasta na cena,
fora de campo.
O fato de poder filmar sozinho é de grande utilidade para
Gheerbrant. Ele oferece uma intimidade rara do cineasta com seus
entrevistados e contribui para o estabelecimento de uma sólida relação
de confiança entre eles. Isso é transmitido pelo próprio comportamento

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O SILÊNCIO É DE OURO - SOBRE O LUGAR DA PALAVRA NO
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dos entrevistados diante da câmera; embora enquadrados de muito


perto, eles se mostram inteiramente à vontade e nunca posam. Esse
dispositivo de filmagem também permite a Gheerbrant um trabalho
que se inscreve na duração do acontecimento. Antes de começar a
filmar e a fim de entender melhor o projeto de Grandes como o mundo
(GHEERBRANT, 1998), Denis Gheerbrant vai passar três meses no
Luth, conjunto habitacional de classe baixa, situado em Gennevilliers,
periferia de Paris. Durante um ano, ele vai filmar todos os dias um
colégio do bairro e o quarteirão do Luth. Gheerbrant acompanha
as crianças em suas atividades de estudo e de lazer, fala com vários
estudantes, aproximando-se principalmente de três deles: Rachid, o
mais jovem de todos, garoto inteligente e muito engraçado, de origem
árabe; Joachim, de 11 anos, mas que já pensa como um adulto e toma
conta da irmã pequena; e Oumarou, de origem africana, adolescente
embrutecido por suas condições de vida, extremamente solitário e
revoltado. Logo nas primeiras entrevistas do filme, quando Gheerbrant
discute com um grupo de garotos os sintomas da adolescência, as
crianças riem muito e se dirigem tanto ao cineasta quanto aos colegas
do grupo. A câmera se afirma, desde o início, como um personagem
a mais na conversa, da mesma forma que o colega do lado. A câmera
é um corpo vivo que interfere na situação de entrevista, dialogando
com o entrevistado. Assim, o encontro com o grupo de meninos é
filmado com panorâmicas suficientemente ágeis para que a ligação
entre a fala de um e de outro ganhe uma consistência material. Já
quando entrevista Oumarou, a câmera de Gheerbrant, fixa e frontal,
nos remete à solidão e ao total isolamento desse adolescente que
prevê, ele mesmo, em sua fala, um futuro de delinqüente.
Um questionamento sobre a situação social dessas crianças
nasce diante de nossos olhos, no ato da conversa. E o próprio
cineasta é muitas vezes surpreendido pela maturidade de seus jovens
entrevistados. Quando Gheerbrant pergunta se eles sabem quando
é que se torna adolescente, um deles responde: “é quando a gente

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AS VOZES DO SILENCIADO

começa a montar a guarda na esquina do prédio”. “Por que, para


que não roubem o prédio? – pergunta Gheerbrant. As crianças riem
muito da pergunta simplória do cineasta e sem dizer uma só palavra,
apenas com o riso e a cumplicidade na troca de olhares, fazem-no
compreender que eles se tornam, na verdade, pequenos soldados
do tráfico. Assistimos, aqui, àquela “troca dos bens lingüísticos
e simbólicos” que se instaura na ocasião de uma entrevista e
que Bourdieu chama de “capital cultural” dos entrevistados e
entrevistadores (BOURDIEU, 1993).
À medida que o ano letivo avança e, com ele, o filme, vemos
as crianças avançarem, também elas, em direção a uma reflexão cada
vez mais profunda sobre o momento em que vivem, isolados na
periferia, sem nenhuma possibilidade de participação na vida cultural
parisiense ou francesa. Oumarou, que briga muito à saída do colégio
e que vai acabar sendo expulso, tem um discurso extremamente duro
e fechado sobre a sua situação de marginalidade. Gheerbrant parece
impressionado com a rudeza desse garoto, mas continua a escutá-lo de
forma respeitosa, sem julgá-lo, tentando apenas levá-lo, calmamente e
durante três longas entrevistas, a um questionamento sobre si mesmo
e seu comportamento rebelde.
Das filmagens nasce uma relação amigável entre entrevistador
e entrevistado e o filme se oferece como um espaço de realização
coletiva. Da mesma forma que os personagens de Coutinho, que vêem
no encontro com o cineasta a ocasião de se tornarem atores, cantores,
compositores ou escritores, as crianças de Gheerbrant também se
tornam adolescentes que refletem sobre o seu futuro, a escola, a família
e a sociedade. O filme se constitui num espaço comum no qual as
crianças podem, por meio da palavra, compartilhar entre elas e com
o cineasta as angústias deste momento de passagem. Pela palavra, as
crianças se identificam enquanto adolescentes e enquanto sujeitos. Em
vez de reconstituir um relato psicológico de seus personagens, como
acontece em grande parte dos documentários que se concentram em

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O SILÊNCIO É DE OURO - SOBRE O LUGAR DA PALAVRA NO
DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO

poucos entrevistados, Denis Gheerbrant ouve o que cada criança


tem a dizer, ajudando-a a organizar seu próprio pensamento. “Nós
estamos juntos numa só busca”, diz o cineasta, “num processo de
trabalho dinâmico e valorizador, profundamente humanizante”. É o
fato de “estar junto” que faz da entrevista um ato de palavra. Por
este convívio privilegiado com um adulto, a criança “se constitui em
situação”, como diz Gheerbrant.
O fato de seguir apenas três crianças e de evitar a imagem
generalizada (O colégio de periferia, A criança do conjunto habitacional)
já é uma forma de ir ao encontro do outro na sua singularidade,
pois a palavra que constitui o indivíduo subjetivo o define na sua
relação com os outros, como diz Comolli. Ela “o institui ao mesmo
tempo como sujeito de um grupo e de uma ordem – em suma, ela
o fabrica enquanto sujeito” (COMOLLI, 1995). E o que diz Comolli
sobre o acontecimento da palavra no cinema é válido também para
a sociologia. Numa situação de entrevista, as pessoas questionadas
só poderão dar uma resposta digna desse nome “se elas puderem
se apropriar da questão e se tornar o sujeito desse questionamento”
(BOURDIEU, 1993).
Assim, Gheerbrant começa por questões anódinas, à altura
de qualquer criança: “O que é crescer?” As respostas são igualmente
simples: “Os pêlos, as notas, os professores…” Pouco a pouco a
conversa evolui em direção a questões sociais, formuladas pelas
próprias crianças: Joachim e sua reflexão sobre a “lei da selva… a
lei do mais forte, uma lei que rege todas as outras”; Oumarou e seu
discurso sobre a marginalidade e o risco de se tornar um delinqüente;
Rachid e sua tese sobre a “função pacifista da religião” nos dias atuais,
estabelecendo uma relação entre a religião e a baixa de criminalidade
no bairro. É o próprio desenvolvimento da entrevista, com todos os
silêncios, lacunas e reticências característicos do pensamento de uma
criança de onze anos, que inscreve a palavra na luta de classes. A
criança se constitui realmente em situação, produzindo uma palavra
sobre si mesma.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Em A vida é imensa e cheia de perigos (GHEERBRANT,


1994), outro filme realizado com crianças, Gheerbrant filma a ala
pediátrica do Instituto Curie de Paris, onde estão internadas crianças
com câncer. Da mesma forma que em Grandes como o mundo, aqui
também Gheerbrant fala com vários meninos e meninas, mas apenas
um garoto, Cedric, de oito anos, vai ser seguido mais de perto e se
constituir no próprio tema do filme. Na abertura, em um comentário
na primeira pessoa, dito por Gheerbrant, o cineasta agradece a todos
os participantes e previne o espectador sobre o fato de que não se
trata de uma reportagem sobre o hospital, mas da história de uma
criança: “Cerca de duas mil crianças ficam doentes de câncer a cada
ano, na França. Em torno de dois terços dessas crianças se curam.
Esse filme é a história de uma delas”. Gheerbrant acompanhará
Cedric em toda a sua trajetória, desde a internação até a volta para
casa, registrando sua fala, mesmo nos momentos mais duros de um
tratamento quimioterápico que vai durar oito meses. O filme começa
a ser rodado em 1991, mas, três meses antes de começar a filmar,
Gheerbrant imerge no cotidiano do hospital. Ao todo, serão nove
meses de filmagem sobre esse doloroso momento de passagem na
vida das crianças, bem mais difícil de ser abordado do que a passagem
da infância à adolescência. Trata-se do encontro das crianças com a
doença e, talvez, com a morte. O silêncio será, aqui, onipresente nas
falas e nas imagens que as acompanham.
Gheerbrant começa a entrevistar Cedric uma semana após a
chegada do menino ao hospital. Cinco meses mais tarde, ele se encontra
em quimioterapia e perdeu os cabelos, mas ainda não assimilou o fato
de que está com câncer. Ele parece muito cansado. Cedric sabe que
tem uma doença grave mas não ousa perguntar o nome dela. Ele tenta
explicar a Gheerbrant o efeito psicológico da doença sobre ele, o que
ela lhe permitiu descobrir. É aí que ele formula, então, um pensamento
ao mesmo tempo trágico e poético, dizendo que a doença o ensinou
que “a vida é imensa e cheia de perigos”. A frase, que dá o título ao

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O SILÊNCIO É DE OURO - SOBRE O LUGAR DA PALAVRA NO
DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO

filme, é acompanhada de outro pensamento igualmente abstrato, em


que a criança descreve a vida depois da morte como sendo “um sol
brilhando no escuro”. Compreendemos que, embora não dê nome à
sua doença, a criança está elaborando sua fala em torno dela, algo que
lhe permita afrontar o sofrimento e o medo da morte.
Após essa fala, que deixa o cineasta em silêncio e que é um
dos momentos mais fortes do filme, seguem-se dois longos planos do
interior do hospital, no escuro, com uma luz externa pálida entrando
pela janela. Ouvimos ao longe o choro de uma criança e, na quietude
dos planos que se seguem à fala de Cedric, ecoa o que ele acabou de
dizer. Os planos acolhem e dão ressonância a sua definição do céu,
segundo ele, um lugar para onde seria bom partir depois da morte,
um céu onde “o sol brilha no escuro, junto com a estrelas”. Da mesma
forma que nos filmes de Coutinho, aqui também é a palavra que
provoca a imagem. Sem a fala poética de Cedric, o significado desses
planos não iria além da descrição do espaço hospitalar. “Eu tenho
necessidade de filmar a partir da palavra”, diz Gheerbrant. “Há uma
coisa que se desenvolve a partir da palavra que é única e à qual eu sou
profundamente ligado”. Não podemos deixar de pensar no quintal
vazio que filma Coutinho para abrigar a palavra de sua entrevistada
em Santo forte, rodeada de espíritos que ninguém vê mas que estão
lá, em volta da equipe de filmagens. Há, nos dois cineastas, uma
preocupação em encontrar uma imagem digna dos personagens, da
forma como eles contam.
A imagem que nasce de uma necessidade da palavra é uma
imagem do filme, que pertence ao instante presente das filmagens e
que nada tem de descritivo, de objetivo ou, menos ainda, de natural.
“Filmar não é natural”, diz Gheerbrant. “O que se vê em A vida é
imensa não é minha relação com Cedric, mas aquilo que nossa relação
visava. E isso já é a organização de uma palavra a ser transmitida”.
A discussão “é uma discussão do filme e não uma discussão natural.
Abaixo o naturalismo! A câmera está lá, ela existe (GHEERBRANT,

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AS VOZES DO SILENCIADO

1995). Filmar corresponde, então, a fazer um apelo à palavra, ao


real; é uma história de comparecimento, embora em muitos filmes
a palavra ou o real nunca compareçam. Um cineasta comparece com
sua câmera atendendo a um chamado do real. Uma palavra comparece
em sua imediaticidade, em sua pureza, num filme que se propõe como
abrigo para a fala ordinária. Nisso consiste, na obra de Gheerbrant, o
“trabalho do filme”, da mesma forma em que Freud falou do “trabalho
do sonho”, ou seja, o que trabalha o nosso ser, o que nos transforma.
Curiosamente, Gheerbrant escrevera um texto de preparação
para as filmagens no qual ele usava a figura de um sol negro para
falar da morte de uma criança. Há, então, uma grande sintonia entre
entrevistador e entrevistado, juntos numa mesma viagem ao âmago
do ser humano. Segundo Gheerbrant, a proposta do filme era se
aproximar do essencial, tentando entender a maneira como uma
criança vive as provações de uma doença. É assim que ele concebe
o filme como um trabalho a dois. “O objeto de meu filme e a relação
que eu podia propor a Cedric correspondiam às necessidades que
ele tinha. Eu o ajudava a fazer alguma coisa daquilo que ele estava
vivendo” (GHEERBRANT, 1995).
Percebemos durante os encontros do cineasta com a criança
longos momentos de silêncio, em que Gheerbrant espera pacientemente
que Cedric retome a conversa. Quando a criança persiste no silêncio,
ele às vezes tenta relançar o diálogo, mas sem nunca impor um
desdobramento do assunto: “se você quiser, a gente pode continuar a
falar…” O cineasta leva em conta a interrupção na palavra, filmando-a
enquanto interrupção, enquanto algo que é estritamente necessário e
que espelha o que está sendo vivido naquele momento pela criança.
A interrupção funciona aqui como aquela pausa de que nos fala
Blanchot, a “pausa que permite a troca”, a “espera que mensura a
distância infinita” do outro comigo (BLANCHOT, 2003). Como
poucos documentaristas, Gheerbrant entendeu que a interrupção e
os silêncios da fala são a condição sine quoi non para se obter uma
“palavra plural”.

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O SILÊNCIO É DE OURO - SOBRE O LUGAR DA PALAVRA NO
DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO

Filmar a palavra é um exercício que consiste em ver, ouvir


e entender. Eis aqui, resumidamente, as linhas mestras do trabalho
desses dois grandes documentaristas da palavra que são, nos dias
de hoje, Coutinho e Gheerbrant. O cinema da palavra pura que nos
propõe esses documentaristas transita, assim, no terreno da oralidade,
da voz. O discurso, que é a submissão da palavra oral à palavra escrita,
à lei, ao roteiro, é totalmente estranho a esse cinema que tem apenas
um objetivo: ser digno de seus personagens, do que eles contam,
da forma como eles contam; nem entrar em contradição com eles
nem confirmar suas suposições, mas compreendê-los. A empreitada
parece relativamente simples. Mas quem mais, em meio à balburdia
espetacular da mídia contemporânea, estaria disposto a fazer silêncio
e a direcionar suas câmeras e seus microfones para o vazio da fala
ordinária? Bem poucos, e por uma boa razão: o silêncio tem seu preço.
Ele exige de todos nós, cineastas, entrevistados e espectadores, uma
sujeição à experiência da falta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo:
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BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini. Paris: Gallimard, 2003 (1969).
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Editions du Seuil, 1993.
Brecht, Bertold. Ecrits sur le théâtre. Tomo 1. Paris: L’Arche, 1972,
p. 464.
Comolli, Jean-Louis. No lipping! Images documentaires n°22,
1995, p.19.

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AS VOZES DO SILENCIADO

______. Jouissance et perte du personnage. Episodic n° 7, 1999-2000.


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Coutinho, Eduardo. A palavra que provoca a imagem e o vazio no
quintal. Cinemais, n° 22, mar./abr. 2000, p.31-72.
Deleuze, Gilles. L’Image-temps. Paris: Les Editions de Minuit, 1985,
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GHEERBRANT, Denis, Entretien avec Denis Gheerbrant, par
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Heidegger. Acheminement vers la parole. Paris: Gallimard, 1976
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LINS, Consuelo. Eduardo Coutinho. Imagens em metamorfose.
Cinemais, n° 1, set./out. 1996, p.45-55.
Monte-Mór, Patrícia & Parente, J. I. Org. Cinema e antropologia.
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ROUCH, Jean. Poesia, dislexia e câmera na mão. Cinemais n° 8, p. 7-
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Thiollent, Michel. Crítica metodológica, investigação social e enquete
operária. São Paulo: Editora Polis, 1987.

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU
“OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO E
DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

Célia Carvalho de Moraes

Mas pode acontecer que alguém, por motivos


importantes, se sinta constrangido a procurar o seu
caminho, por seus próprios meios, em direção a
horizontes mais largos, porquanto não encontra em
nenhuma forma, em nenhum molde, em nenhum dos
envoltórios, em nenhum dos meios de vida que lhe
são oferecidos, aquele que lhe convém. E então irá só,
representando sua própria sociedade.
Carl G. Jung (1975, p. 296)

Introdução

Ana, psicóloga e professora, 37 anos, está entre os participantes


de uma pesquisa de doutorado (MORAES, 2002) escolhida para
análise, juntamente com mais quatro, por apresentar um percurso
especialmente rico e uma disponibilidade de participação especialmente
aberta. Numa primeira etapa, a pesquisa foi fundamentada no método
fenomenológico de abordagem da experiência vivida, colhendo
dados por meio de entrevistas com o indivíduo vivenciador e
baseando-se nos relatos obtidos para elucidar seus sentidos,
acolhendo e qualificando o vivido. Teve como objeto as experiências
religiosas, espirituais, de modificação ou ampliação de consciência
relatadas por pessoas que responderam a um chamado amplo
(mídia, cartazes, boca-ouvido) na cidade de Brasília.

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AS VOZES DO SILENCIADO

O estudo dessas experiências resultou, dentre outros


conceitos, no de experiência transcendente, que abarca os dois
lados da experiência espiritual: por um lado, ela tem caráter religioso,
ou seja, acontece a partir e/ou no seio de uma religião organizada – é a
experiência transcendente religiosa; por outro, ocorre fora dela, como
resultado da capacidade de expansão do ser humano no encontro
com o transcendente pessoal e com o outro, seja ele humano ou
transcendente – é a experiência transcendente espiritual.
A segunda etapa da pesquisa utilizou os benefícios do processo
grupal para avaliar a possibilidade de viabilizar experiências relatadas
na bibliografia e pelos vivenciadores como prazerosas e/ou terapêuticas,
além da realização das entrevistas de base fenomenológica em todos
os momentos em que se fez necessária a elucidação do sentido do
vivido, de forma que pudesse trazer esclarecimentos sobre a vivência
e o conceito de transcendência.
Assim, realizaram-se, nesta etapa, entrevistas de base
fenomenológica com 49 pessoas que viveram essas experiências e
concordaram em relatá-las nos maiores detalhes possíveis (entrevista
inicial). Em um segundo momento, foram realizadas, com 26 dos
49 relatantes iniciais, onze vivências em contexto grupal, escolhidas
por seu potencial de ampliação de consciência descrito na bibliografia
especializada (JAMES, 1902; JUNG, 1939; MASLOW, 1962) e pelos
entrevistados em seus relatos, sendo três de compartilhamento
(opcional) das experiências vividas, uma dinâmica de relaxamento e
visualização, uma de contemplação, uma de dança e movimento,
uma de massagem e automassagem, duas de relações interpessoais,
uma caminhada em grupo na natureza e, a última, de avaliação.
Os participantes foram aleatoriamente distribuídos em quatro grupos
conduzidos por uma facilitadora e um co-facilitador, com a presença
de um observador de comportamentos não-verbais, devendo apenas
obedecer regras mínimas de respeito para com as vivências e as
crenças dos demais participantes, o que, por diversas vezes, lhes foi

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO
E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

relembrado. Ao final de cada encontro, os participantes relataram por


escrito as impressões de sua vivência.
Na parte final deste momento de vivências fez-se com cada
participante uma outra entrevista fenomenológica de avaliação,
a entrevista final, sendo os casos discutidos, a seguir, pela equipe.
Também uma síntese fenomenológica do percurso de cada um lhe foi
devolvida para ser aceita ou rejeitada – entrevista de devolução. Os
casos escolhidos para análise foram estudados à luz da bibliografia
sobre religiosidade adequada a cada um, e, posteriormente, enviados
aos participantes para sua crítica final e aceitação ou reformulação.
Ana, ao ler sua história em forma final, afirmou: “Não tenho
nada a acrescentar. Muito a agradecer. Só emoção - novamente.”

“Ana em busca de aceitação”

Histórico

Ana respondeu ao chamado boca-ouvido da pesquisa e, por


intermédio de um dos pesquisadores, afirmou que “passava por um
momento muito confuso em sua religiosidade”. Inicialmente muito
hesitante, quase não nos olhava, e duvidava muito se sua história
“seria de interesse para nós”. Ao ser assegurada de que sua “confusão”
em nada impedia sua adequação na pesquisa, concordou em nos dar
a entrevista.
Durante todo o início de seu percurso na pesquisa, Ana
afirmava categórica e emocionalmente que “odiava Deus”, de
maneira proposital e contundente. Vinha se relacionando com os
religiosos que encontrava, fossem os de sua religião ou não, com uma
postura irônica e agressiva, com a intenção inequívoca de chocar,
vingando-se talvez, dessa maneira, de uma história religiosa
excepcionalmente dolorosa, cuja maior conseqüência até aquele
momento era uma grande solidão e um misto de dor e revolta.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Eu ando muito chateada, muito intolerante com


religiosos de uma maneira geral. Então, de um
tempo para cá, eu costumo dizer que o meu
evangelho chama-se Cabeça Dinossauro (risos)
música 2, volume 1, (risos) “eu não gosto de padre,
eu não gosto de madre, eu não gosto de frei”, e
nessa fase, eu coloco “eu não gosto de Deus”. Não
gosto, não gosto, não gosto. Eu não vou na igreja,
não rezo o terço e não digo Amém, não monto
presépio; quero mais que se foda.

De família paterna católica e materna presbiteriana, ambas


fervorosas e “exemplares” socialmente, Ana relata que se identificou
até os treze anos com a Igreja da mãe, apesar de proibidas pelo pai
de freqüentá-la, pois lá “criança tem uma escola dominical com uma
série de atividades de pintura, de historinha, de roda e ainda faz, no
final, uma apresentação pros pais”, enquanto na Igreja do pai tinha
que “calar a boca, ficar quieta e ajoelhar, e não conseguia decorar
aquela seqüência de senta, levanta, responde...”. Acompanhava a mãe
na percepção de uma profunda hipocrisia nas relações pessoais na
comunidade religiosa presbiteriana – da qual o avô era líder – na
cidade do interior em que nasceu. Ainda quando criança, já era
diferente em termos espirituais. Em certa ocasião, revoltou-se contra
um quadro do Sagrado Coração de Jesus, porque “achava aquele santo
chorando feio”, além de extremamente incômodo:

(...) era um quadro que olhava para onde a pessoa


andava. Eu achava aquilo absolutamente assustador.
E eu peguei uma vez uma vassoura e falei: “Vem,
vem, vem cá, vem cá”, e fui pra arrebentar aquele
Jota Cristo com o coração sangrando, com aquela


Titãs.

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO
E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

cara de sofredor, mas que estava me olhando. (...)


Me seguraram, não deixaram eu quebrar o quadro.
“Fica me olhando, o quê que é?”. Eu devia estar em
alguma fase paranóide, na minha infância, e achei
que o sujeito estava me olhando. Aí eu falei: “Toma
cuidado comigo, viu?”

Em sua adolescência, foi mandada para “a capital” estudar


e, muito solitária, teve uma primeira “experiência espiritual” com
a leitura da Bíblia, sentindo-se confortada e em paz. Voltou depois
do segundo grau para a casa dos pais, que já moravam em Brasília
(onde era chamada “a hóspede”), mas já isolada, desidentificada e
distante deles. Não aceitavam seu ingresso na universidade e o seu
desejo de estudar; queriam que trabalhasse e se casasse. Contudo,
Ana vinha “numa busca pessoal muito grande” e decidiu “ser uma
pessoa religiosa minimamente decente e séria”; mas como não tinha
uma “família decente e séria em casa”, foi procurar essa família na
Igreja. Atribuiu, assim, a imersão total que fez na Igreja presbiteriana
a um “rompimento com a família”. Foi esse sentimento de rejeição
familiar e a busca intencional de aceitação em algum outro lugar que
se instalou como um leit motif de sua vida, e, neste momento, de
forma consciente.

(...) Ah, imagina eu, então, sem uma família que


me aceitasse, uma psicóloga; psicóloga é uma
profissão de puta, e isso era claramente falado,
é falado até hoje, é alguma coisa picareta, uma
coisa inadequada, indevida. Mas isso eu sei que
é a mentalidade deles, racionalmente eu sei, mas
me dói. Isso me dói. (...) E eu decidi me envolver
mesmo, e era meu parâmetro a Igreja presbiteriana,
e prestei um rito que eles chamam de profissão de

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AS VOZES DO SILENCIADO

fé, que eu tinha que estar lá, que eu era de lá, num
sei o quê. Tipo uma crisma. E eu me envolvi tanto
que aí você acaba tendo contato com o underground.
E fui conduzida a uma outra igreja através de um
namorado meu, chamada Igreja Local, Igreja em
Brasília. (...) Olha só a proposta: é uma igreja que
não tem barreiras com nenhuma outra pessoa que
crê em Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu já tinha uma
rotina de leitura bíblica, de orações, de preces e eu
era boa nisso. Acho um lugar que considera todo
mundo “irmão”...! Crê em Deus, tem dentro de si
um espírito, ah, galera, não tive nem dúvida: me
fui pra lá.

Nessa nova Igreja, Ana teve muitas experiências com o


simbolismo da Bíblia. Relatou diversos episódios de leitura, meditação
e compreensão profunda de passagens da Bíblia que lhe trouxeram
consolo e enriquecimento pessoal. Casou-se com um “jovem e promissor
líder” da Igreja. Desejou e se esforçou para pertencer e compartilhar
suas experiências espirituais, mas elas terminavam sempre sendo
experiências individuais. Ana logo reencontrou, tanto na Igreja quanto
com o marido, o que via como “sua inadequação social”.

Foi rápido, foi fácil eu repetir com a Igreja uma


temática familiar. Eu estudo, eu conheço, eu gosto
disso, eu tenho experiência - mas privada. Não
compartilho socialmente, porque socialmente eu sou
um desastre, tanto na Igreja quanto na família. Eu
não “funciono” na minha família e eu não consegui
funcionar na Igreja. (...) E eu repito no casamento a
temática familiar e a temática da Igreja.

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO
E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

Em Manaus, para onde o casal se mudara com o objetivo de


fundar uma Igreja, eles entraram em conflito com os comportamentos
pré-estabelecidos e aceitos, e ela foi acusada por todos de inadequada,
sem juízo, rebelde, “imoral”. Entrou em conflito com o marido, tido
como “modelo” de comportamento espiritual, e ele a acusou de ser
“dura de coração e espírito”, “insensível à voz de Deus” e “tomada pelos
desejos da carne”. Os membros da Igreja, inclusive o marido, criaram
uma barreira intransponível de intolerância e rejeição a qualquer
atitude sua que não uma total submissão à palavra de Deus invocada
em orações grupais, muitas vezes “aos berros”, para resolver questões
práticas do dia-a-dia. Segundo Ana, naquela comunidade, tudo era
resolvido por meio dos princípios religiosos, e deixada para Deus a
tarefa de prover as mais básicas soluções e até mesmo a comunicação
interpessoal.

Então era assim: todos os problemas concretos,


tudo que havia de concreto, esse conjunto de
pessoas tinha a habilidade de sair da terra, ir pro
céu, e deixar que todo mundo se exploda por aqui.
Como eu não conseguia ter esse tipo de defesa eu
era a inadequada ali.

Completamente inserida na vida da Igreja, visto que as próprias


reuniões eram realizadas em sua casa, Ana tentou em desespero, por
vários anos, submeter-se aos membros da mesma, especialmente ao
marido, para não perdê-lo também, como perdera a família. Relata
que ganhava muito mais do que ele, mas lhe entregava todo o seu
salário, para não provocar ainda mais a ira de todos. Para vencer a
intolerância generalizada, trabalhava dia e noite para eles, servia-
lhes refeições e hospedava missionários. Sofria invasões, restrições,
acusações e imposições por parte de todos “em nome de Deus e do
Espírito Santo” - as quais suportava “para conquistar aceitação”.

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AS VOZES DO SILENCIADO

(...) era a minha luta para conquistá-los. Mas era em


vão, assim como minha luta para conquistar meus
pais foi em vão, assim como a luta para conquistar
essa família foi em vão, a família extensa foi em
vão. Conquistar essa Igreja foi em vão, conquistar
esse marido foi em vão. A história se repetiu,
repetiu, repetiu, repetiu. E eu acho que conquistar
esse Deus foi em vão.

Finalmente, ela se viu esgotada e desistiu, expulsando todos


de sua casa, e o fez de uma forma dramática, o que lhe rendeu
“exorcismos do capeta”, até muito recentemente. Rejeitou a Igreja e o
“Deus da infância, esse Deus de céu e de inferno, esse Deus externo que
determina normas e regras”. Rompeu o casamento, decidiu enfrentar a
depressão profunda pós-perdas e iniciou terapia. Jogou-se ao trabalho, à
produção intelectual e social e às vivências com o povo e com a natureza
amazônicos. Passou a admirar a beleza terrena e a arte. Desenvolveu
uma atração pelo conceito do “demônio” e por atividades consideradas
pela Igreja como “demoníacas e infernais”, como freqüentar a rua, o
rio Amazonas, a mídia e a política. Enfim, afastou-se da espiritualidade
como definida pelos parâmetros daquela comunidade, e assumiu uma
postura pragmática, pé-no-chão e agressiva.

(...) e aí eu botei um princípio na minha vida:


todo super espiritual é desumano; porque quanto
mais pro céu ele vai, mais ele se afasta da terra. E
estabeleci alguns princípios: eu não quero Deus,
eu quero o homem; eu não quero o céu, eu quero
a terra; eu não quero a espiritualidade, eu quero
a fraternidade até onde der, até onde fizer bem. E
gosto muito das idéias, por exemplo, demoníacas
(risos). Acho que muitas vezes o diabo... ele é muito

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO
E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

mais honesto, pelo menos ele é mais claro, do que


essas pessoas. Isso foi para a análise, eu fui procurar
uma análise junguiana e falei para o terapeuta: “Eu
quero fazer uma análise em que eu possa mandar
Deus à puta que pariu e ninguém me internar”. (...)
Deus não me quer? Tampouco eu o quero. A Igreja
não me quer? Também se foda.

Nessa fase “pagã”, Ana teve as experiências determinantes


para sua visão de mundo atual. A partir das vivências com o macro e
o micro no Amazonas – rio, floresta, a solidão... – com os diferentes
modos de ver dos povos indígenas e até com a proximidade da morte,
compreendeu todas as experiências como simples partes de um todo
maior: as religiões são parte, as filosofias são parte, até mesmo o
pecado é parte da vida, e Deus e o diabo tornaram-se uma coisa só: a
natureza. Ampliou e re-significou o mundo.

Eu achava que era o volume de vida que eu via ali,


e o volume de diversidade de vida, me fazia pensar
se também não haveria uma diversidade de deuses,
se não haveria uma diversidade de homens, e eu
começava a me sentir apenas parte. E aí o que re-
significou para mim é dizer: eu sou apenas parte. A
religião é apenas uma parte, e cada uma vê apenas
uma parte do fenômeno, e eu sou apenas parte da
humanidade. E tenho apenas uma parte dessa vida.
Eu comecei a diminuir o tamanho das coisas.

No entanto, a nossa protagonista registra que ainda hoje


busca a sua forma de espiritualidade. Lê muito, freqüenta as religiões
e os locais onde a levam, experimentando, mas nunca mais teve “as
experiências que tive lá na adolescência, no período em que fiquei,
até mais ou menos trinta anos de idade, na Igreja.”

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AS VOZES DO SILENCIADO

Experiências transcendentes anteriores à pesquisa

Segundo Ana, as experiências mais marcantes de sua vida, e


das quais sente muita falta, a ponto de “ter saudades” e ter tentado
voltar “por três vezes” para a Igreja que tanto a rejeitou e agrediu,
foram os sentimentos de profunda paz, consolo e conforto que obtinha
da leitura da Bíblia.

Eu acho que eu passei perto de ter uma experiência


íntima e genuína com Deus, acho que passei bem
perto disso. Devo ter tido. Devo ter tido. Porque eu
me lembro que era alguma coisa interior, com um
nível de paz, de afeto, que eu não via do lado de fora,
mas que não era a minha idealização de afeto, era
algo que transcendia o pessoal. Transcendia “ah, eu
quero um pai que me ame...” Aquela experiência com
Deus não era assim: “Ah, Deus é um pai amoroso...”.
Não acho que Deus seja um pai amoroso. Aliás acho
que Deus nem seja pai. Mas era alguma coisa de um
intenso afeto, de uma intensa transcendência, energia,
paz, bem-estar profundo. Mesmo com dores, mesmo
chorando, mesmo alguém te xingando ou mesmo no
meio do Amazonas.

A primeira dessas experiências deu-se quando ainda


adolescente, com uma história infantil bastante conflituosa com as
famílias extensas religiosas – conflito agravado pelo convívio com os
pais “que eram que nem gato e rato, que nem gato e cachorro, e quem
quiser que saia de perto; e foi o que eu fiz”. E relata que, para “sair de
perto”, lutou com unhas e dentes por seu direito de estudar, e acabou
conseguindo ser mandada para a “capital”.

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO
E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

Eu era uma menina do interior, de vestidinho de


chita e renda, e fui pro meio do (...) estudar numa
escola privada, de alta classe. Então a minha solidão
era muito grande e eu peguei a Bíblia e comecei a ler
e encontrei muito conforto ali, naquelas palavras.
Eram palavras muito bonitas, não sei o que... Eu
acho que ali eu tive uma experiência espiritual, de
um conforto interno, para além da situação de vida.
Ali eu tinha uma segurança...

No entanto, as experiências maiores e mais impactantes foram


as emoções profundas e intensas com a natureza e as novas lições
de vida que esta lhe proporcionou. A disparidade, mesmo a total
oposição entre essas experiências e sua história religiosa, motivou a
sensação de “religiosidade confusa”, com a qual passou a designar-se,
servindo como um cartão de visitas em sua apresentação na pesquisa.
Essas vivências ocasionaram uma virada na sua filosofia de vida e no
seu relacionamento com as pessoas e com o mundo.
Para Ana, a natureza não era apenas a floresta, os índios
com sua forma diferente de ver a vida e o rio-oceano, mas também
a sexualidade e o assumir do próprio ódio e da própria revolta e
indignação. Assim, o “tenebroso”, o medo, o prazer, a comoção, o
belo, o “grandioso” e a proximidade da morte incorporaram-se à sua
vida e transformaram o sentido de sua existência.

Eu estava nadando no rio e algo raspou na minha


perna - chuuu. Podia ser uma cobra, um peixe, mas
era alguma coisa grande, como se um submarino
estivesse me atropelando (risos), alguma coisa que
eu tive a impressão que tinha mais de um metro.
Sabe quando uma coisa gorda e grande, num rio
que não tem fundo (...) Você se sente microscópica

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AS VOZES DO SILENCIADO

nessa hora: o rio imenso, alguma coisa imensa


(...) raspa sua perna (ri) e você não tem defesa! Eu
esperei um pouquinho, me acalmei, mijei, chorei e
voltei pra margem. (...) Então eu fico vendo... puxa,
isso pra mim é transcendência: a vida, e como você
faz parte dessa vida, você faz parte desse mundo,
você talvez faça parte de uma maneira especial,
porque você tem consciência de si, você sabe que
se um bicho daquele abre a boca e te engole, (faz
um muxoxo de desprezo), sabe, não é nada.

Ana relata que, dentro do rio Javari, percebeu que “aquele


Deus idiota que fica olhando tudo o que eu faço pra me punir” tinha
todas as chances de não existir. Sua vida era tão insignificante no
meio da natureza que poderia extinguir-se numa fração de segundo.
E se isso acontecesse, “não faria a menor diferença no curso do rio,
da terra, da vida”, pois ela era apenas “parte da vida, e a vida não sai
do meu umbigo, do “meu deus”. E assim iniciou um caminho de
re-significação de Deus, de religiosidade, de humanidade.

Vivências na pesquisa

De uma forma geral, Ana definiu a experiência na pesquisa


como “de longe a melhor experiência que teve em todo o ano”, até
mesmo “na sua vida inteira”. Ana aproveitou cada vivência, cada
troca, cada acontecimento, explorando-as “na vida lá fora”. Foi de
longe a participante que mais relatou, escreveu e comentou, trazendo
contribuições inclusive para a compreensão de vivências de outros
participantes. Inicialmente, ficou em dúvida quanto à propriedade de
participar, visto sentir-se deslocada num ambiente em que assumia serem
todos religiosos. No entanto, ao longo do processo, sua participação lhe
trouxe mais segurança em relação às suas próprias crenças.

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO
E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

Olha, foi importante pra mim, né, foi uma


experiência importante, foi uma experiência que
eu aproveitei, levei as coisas daqui pra fora, (...) o
que eu vivi aqui tinha eco - é importante assinalar...
eu levei isso pra minha terapia, foi importante. Eu
acho que o que eu vivi aqui teve uma base desses
quatro anos de terapia. Eu acho que... ao contrário:
os quatro anos de terapia me prepararam... (...)...
para aquilo que eu vivi aqui. Eu saio daqui mais
clara, com menos medo (Da entrevista final).
E foi de longe a melhor experiência que eu tive
na minha vida inteira. Nem no trabalho, nem na
própria terapia que é a minha vida, dinheiro, tudo,
foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida,
de longe. E eu acho que sintetizou... O grupo me
deu um espaço pra eu coagular (ri) umas coisas
que estavam soltas na minha cabeça, na terapia,
na vida... O grupo teve esse efeito, a participação
ali teve esse efeito. Se antes eu tinha um pouco de
medo de falar de umas coisas, porque não estavam
muito claras pra mim, eu acho que no grupo... o
grupo não mudou o que eu pensava, mas eu estou
com muito mais coragem de falar as coisas (Da
entrevista de devolução).
O grupo foi uma ilha de emoção que deixa marcas
(boas) em mim. Fecho o grupo e fecho o ano
em paz. Não esquecerei do que vivi aqui. “Saio”
melhor do que “entrei”. Tenho os sentimentos de
reparação e de bem-estar e segurança. Estou cada
dia mais convicta de que o humano é o que há de
melhor nesta vida. Esse grupo alargou o horizonte
do humano pra mim. Valeu todas! (Do relato da
sessão de encerramento)

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AS VOZES DO SILENCIADO

Ana chegou ao grupo na segunda sessão de compartilhamento.


Estava bastante desconfiada, retraída, crítica e autocrítica. Trazia uma
história de participação em grupos muito difícil, mesmo hostil. No
entanto “tinha um sentimento de que queria estar na pesquisa até o
fim”, e resolveu “se comportar para poder aproveitar”. E com isso foi
se permitindo abrir e desabrochar.
Sua vivência preponderante na pesquisa foi de um sentimento
que permeou todas as sessões, e que ela definiu como “emoção”: a
capacidade de emocionar-se, “sentir-se parte de algo maior”, como
quando sentia-se diante de Deus, em suas vivências de leitura e
estudo da Bíblia. Pertencer, estar no seu lugar, “em casa”. Na primeira
sessão de compartilhamento e troca de experiências, Ana resolveu
“marcar seu espaço” falando de sua rejeição à religião instituída e da
sua confusão, surpreendendo-se com a atenção e compreensão dos
outros participantes.

Eu me senti escutada, ouvida, acolhida. Totalmente.


Eu não esperava que tivesse o desfecho que teve.
Pra eu falar essas coisas é muito difícil. Eu não
esperava que tivesse. Eu bem que tentei disfarçar.
Aí quando eu consegui disfarçar minhas emoções
com relação às vivências religiosas, aí caiu tudo
(risos). Aí eu não podia também sonegar, como se
eu não estivesse sentindo alguma coisa, sabe. Então
tava tudo aqui assim (indica com a mão o nível do
pescoço). E foi justamente a história do Max, que...
Naquele dia eu tive uma profunda simpatia pelo
Max. Profunda eu não sei, mas eu tive simpatia por
ele. Até eu pensava: “Nossa, eu sei do que esse cara
está falando! De alguma forma eu sei do que ele está
falando”. Então a minha experiência bateu muito
com a do Max, mais do que com a de qualquer
outra pessoa.

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO
E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

A partir dessa primeira experiência de acolhimento e empatia,


Ana viu, sessão após sessão, crescer seu sentimento de pertencimento
e aceitação. Compartilhar seus sentimentos fez amolecer uma
carapaça, uma “pele queimada” e dura, de medo, de prevenção, da
sensação de “amputação” e “fibrosamento” da religiosidade que foi
um dia o seu sentido de vida. No decorrer das vivências do grupo,
ela, que trazia sempre “no default” uma armadura contra abrir-se e
confiar, pôde questionar a “verdade” da experiência pessoal que trazia
como religiosa e como psicóloga, e, pouco a pouco, pôde encontrar
mais profundamente pessoas as quais, finalmente, entendeu que “não
estavam ali para julgar”.
Sua segunda experiência de abertura emocional aconteceu na
primeira dinâmica de visualização da fonte da vida, e essa abertura
foi se intensificando nas demais. Apesar de protegida em sua carapaça,
teve a sensação de que era possível “deixar que tocássemos no seu
‘duro’, brincar ela mesma com ele e permitir que se tornasse mais leve
e mais macio”.

Esse negócio de ir, lá não sei aonde, pegar esse


negócio de fonte da vida, esse negócio funciona
(risos). Não sei o que é isso, mas funciona.
Funciona. A primeira vez que a gente fez o
relaxamento eu tive a sensação de duro, é o duro
do queimado, eu escrevi isso, da pele queimada.
(...) Me fez bem, tanto que quando eu voltei estava
choraaando, assim... sentindo-me incompetente
de não ter desfrutado tanto da fonte por ter tanto
medo, tanta prevenção. Agora, nas outras vezes,
eu ia entregando um pouquinho mais (risos). Aí
já era uma coisa assim... de estar ali... E, gozado,
assim, não tem como dizer... Sabe o que eu acho?


Expressão da informática que designa uma condição inicial, básica, automática.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Eu acho que isso é que foi... foi como se me nutrisse


pra cada... é... foi a coisa mais maluca do mundo,
né. Parece que quanto mais eu fazia, mais eu me
emocionava, mais era fácil me emocionar. Era cada
vez menos perigoso e mais atraente. (...) Já não é
tão perigoso, tão ameaçador a proposta de uma
vivência meditativa.

Sua terceira vivência de abertura emocional – e a mais intensa


na pesquisa – ocorreu na sessão de contemplação de objetos, após
uma hora em que, contemplando um quadro do Monet em cada
detalhe, não viu o tempo passar. Deliciava-se especialmente pelo fato
de “não haver qualquer outra pessoa naquela paisagem da natureza
para ‘regular’ sua contemplação ou para tentar convencê-la de
que ‘Deus’ “o barbado, aquele Deus cristão meio sádico e cheio de
regrinhas” havia “feito aquilo” – teve um novo “embate” com uma
outra participante do grupo, a quem via como tipicamente religiosa,
como alguém que “pensa que tem algo tão bom que deveria ensinar
ao outro, como se dissesse “olha, vocês vivem num plano muito
pequeno, eu sei voar, eu vejo tudo, eu sei mais”.
Novamente, diante de mais uma “representante de Deus”, Ana
se sentiu diminuída, “amputada, portadora de necessidades especiais
no que tange à religiosidade”, e mais uma vez declarou sua situação
de “confusão religiosa”. Imediatamente foram relembradas ao grupo
as principais regras das vivências – não criticar e não doutrinar – e
abriu-se para Ana novamente o seu espaço e o seu direito de ser ela
mesma, de pensar e sentir por ela mesma.

Eu não consigo deixar de pensar que eu não entro


nas crenças por limitação minha. Achei bom e
sincero quando (...) disse que não é limite, é só
diferente. Vou pensar mais nisso. Toda vez que

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO
E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

eu me sentir menor diante de alguém que diz ter


poderes, ver coisas, falar com “deus” ou “ETs” ou
“espíritos”, vou pensar que apenas sou diferente.
(...) Mas vou para o final de semana com uma frase
no coração (ou no útero): “é apenas diferente”.
Desde o início eu não me senti adequada, nem boa
suficiente para participar desta pesquisa. Achei
que foi um erro, um engano a minha escolha. Mas
hoje eu ganhei uma frase: é apenas diferente e fui
alçada à categoria igual aos outros. Não quero me
sentir amputada. Afinal eu sou apenas diferente. E
talvez por isso, por sermos todos diferentes, um
universo, é que sejamos todos iguais, tão iguais,
tão diferentes. (De uma carta complementar ao
relato da sessão de contemplação de objetos).

“Aceitação” tornou-se para Ana o “Abre-te Sésamo” de sua


emoção. A emoção de sentir-se aceita passou a freqüentar os seus
relatos de sessão, apareceu nos depoimentos de final de vivências e
de devolução. O sentimento de aceitação tornou-se tão poderoso e
determinante para ela que, na vivência de automassagem e massagem,
ela “abriu o coração” em compaixão pelo que viu como uma vivência
de sofrimento da colega de grupo que a tinha feito sentir-se “inferior
e portadora de necessidades especiais” e a quem antagonizava como
“porta-voz de Deus”, e sentiu “vontade de embalar a criança que
viu ali e de dizer para ela (...) que hoje ela seria amada e querida e
respeitada”. Além disso, prontificou-se a ler o livro que escrevera para
“ver o que ela tinha a falar”.

Foi assim, como se eu falasse para mim mesma:


“Olha, Ana, você está com essa autoridade toda,
mas é só uma visão! Cê tá com essa visão de... com

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AS VOZES DO SILENCIADO

a sua visão de psicóloga, que é a que você tem, é só


uma visão. Dá espaço aí, deixa ela falar, vamos ver
o que ela tem pra falar, vamos ler”. A parte final do
livro eu achei interessante, que ela fala da revelação
que ela teve a respeito de Jesus Cristo. Essa parte
eu achei interessante, achei muito legal. Mas ela
faz uma mistura de coisas de tudo quanto é lugar,
referência, religião, de tudo o que ela já ouviu falar e
mais alguma coisa... mas será que não é isso mesmo?
Cada religião não é apenas uma parte de um todo
que a gente não conhece? Será que ali também não
pode estar uma parte? Será que ela não pode estar
certa também? (ri). Eu achei que devia ler até o fim,
porque eu sei que a minha visão é limitada.

A aceitação e o sentimento de pertença apareceram plenamente


na última vivência, a caminhada na natureza, que se revelou para ela
como a primeira experiência de um grupo harmônico como ela jamais
havia experimentado.

Então, assim, a minha experiência de estranhamento


na natureza foi o grupo harmônico. O normal
extraordinário, né (ri). “Meu paaai, o que está
acontecendo aqui?” (...) Ah, foi o máximo (risos).
Foi o máximo. Só pela natureza, só pelo grupo. (...)
Isso foi a continuidade e a ampliação do acolhimento
que eu tive aqui, a aceitação. Nossa, isso foi
importante demais. (...) É, depois daquela vivência
eu descobri que estava muito mal acompanhada. E
é mesmo. Com a experiência na natureza, também
descobri que as coisas podem ser mais leves.

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO
E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

Na entrevista de devolução, Ana fez questão de exemplificar,


novamente, a grande transformação que a participação na pesquisa
lhe proporcionou. De uma pessoa fechada e agressiva, ela passou
a perceber-se numa atitude de compreensão pelas pessoas que
a magoaram, e capaz de passar por situações anteriormente
impossíveis.

E, olha, como eu acho que a natureza se organiza...,


eu encontrei algumas pessoas da igreja, né, topei
com essas pessoas. E eu senti carinho por aquelas
pessoas. Eu não tive vontade de chegar e falar
assim: «ah, seus idiotas, olhem como eu estou bem.
Não - eu senti assim: carinho. Não tinha, assim...
É como se não tivesse mais nada... Quer dizer, tem
muita coisa, não é que não tem nada. Mas eu senti
carinho. Eu acho que estou com um diálogo melhor
com essas pessoas... (...) Ui, ai, essa eu tenho que
te contar. Foi a família inteira no cuuulto, cuuulto,
cuuulto, cuuulto de aniversário da minha avó, que
fez noventa anos. Ai, e olha: eu entrei na igreja, fui,
fiz a fila da família, sentei no lugar da família, cantei,
lá, na hora de cantar, com a família, e curti...! (...)
Eu curti pra caramba. (...) Curtição e carinho. Eu
acho que é o que estou fazendo comigo, né, aí agora
eu faço também com eles.

Síntese

Ao ser indagada sobre uma síntese de sua participação na


pesquisa, Ana afirmou que “foi a melhor experiência do ano, talvez
de sua vida inteira”, por permitir-lhe o resgate da capacidade de
emocionar-se. Apontou também um outro resgate: o da própria
segurança, da autovalorização, da auto-estima, da auto-aceitação.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Acolheu e assumiu totalmente a frase-síntese elaborada pela


equipe: ao me sentir acolhida pude acolher minha
própria crença. Explicou que havia “entrado no grupo achando
que era uma coisa menor, inadequada”, mas saído “uma pessoa
melhor”. Ana emocionou-se intensamente também pelo fato de lhe
ser oferecida a opção de escolher seu próprio nome na pesquisa,
exclamando “ãããiin...? Primeiro você me dá um grupo, que eu posso
ser quem eu quiser, e agora eu posso escolher meu nome?”

Discussão

Desde criança, Ana tinha um sentimento religioso incomumente


forte e idiossincrático, percebendo, escolhendo e assumindo para si o
que era prazeroso, criativo, ampliador. Escolheu a religião protestante
(da mãe) ao perceber que lá existia esse espaço de criatividade, e reagiu
contra a demasiada valorização do sofrimento que associava à Igreja
Católica (do pai). Ao mesmo tempo, chamou-lhe cedo a atenção a
hipocrisia das relações sociais entre os membros da Igreja, que mais
tarde seria o estopim de sua crise religiosa.
Na esfera pessoal, Ana vivia uma experiência religiosa
confortadora. A leitura da Bíblia lhe abria as portas de um mundo de
sentimento e simbolismo elevados que a acompanharia e inspiraria suas
buscas por toda a vida. Mais que isso, seria a fonte da esperança e da
energia que lhe possibilitaria a ruptura com o sofrimento em sua vida
pessoal e o recomeço a partir de outras visões da espiritualidade.
Contudo, Ana era familiar, social e culturalmente “um peixe fora
d’água”. A insistência por estudar e encontrar outros que compartilhassem
seus momentos de elevação espiritual encontrava sempre obstáculos,
e quanto mais se esforçava em participar, compartilhar descobertas e
conhecimentos e pertencer, mais dura e intransigente era a reação dos
demais. Amparada pela certeza da possibilidade da vivência religiosa
satisfatória, submeteu-se às leis e regras instituídas da comunidade,

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO
E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

mas à medida que suas buscas resultavam recorrentemente em nada,


o medo da perda e da solidão a imobilizavam. O resultado foi a pecha
de “endemoninhada” e um ressentimento íntimo crescente contra o
pensamento e as leis opressoras.
Ana é um exemplo do que Abraham Maslow (1962, p.
10) chama “pessoa culminante”. O autor afirma, a partir de suas
diferenciadas pesquisas, que o ser humano é naturalmente aberto ao
crescimento (“necessidades-do-ser”) e à culminância, só se limitando
após vivências frustradoras, que o submetem a “necessidades-por-
deficiência”. Experiências culminantes, para Maslow, são

“... estados de Ser temporários, metamotivados,


não-ativos, não-egocêntricos, não-propositais,
autovalidantes, experiências terminais e estados
de perfeição e realização de metas, momentos
cognitivos caracterizados por felicidade e realização
supremas, que podem acontecer em situações
cotidianas – como na experiência parental, na
percepção estética, no momento criador, no insight
terapêutico ou intelectual, na experiência orgástica,
em certas formas atléticas, e outras” (p. 101).

Entre essas experiências estão as diretamente relacionadas com


o religioso – experiências religiosas, filosóficas ou místicas – que o
autor considera, seguindo Laski (1964), como manifestações maiores
ou menores de uma iluminação, revelação solitária e particular
que todos os grandes fundadores de religiões hoje dogmatizadas
experimentaram no seu início, e que passaram a comunicar e ensinar
a seus seguidores:

(...) é muito provável, de fato quase certo, que


estes relatos antigos, expressados em termos de

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AS VOZES DO SILENCIADO

revelação sobrenatural foram, de fato, experiências


culminantes perfeitamente naturais e humanas, do
tipo que pode ser facilmente examinado hoje, as
quais, no entanto, foram descritas nos termos das
estruturas conceituais, culturais e lingüísticas de
que o profeta em particular dispunha em seu tempo
(LASKI, op. cit., p. 20)

Ana, sendo essa pessoa culminante – porque consegue


reencarnar em alguma medida a vivência espiritual dos fundadores
de religiões – teve um embate com não culminantes. Normalmente,
por não terem e, portanto, por não compreenderem a vivência, alguns
não-culminantes se sentem incapazes, inferiores e indignos diante
dos culminantes, tendendo então a não acreditar na vivência deles
(porque não são o fundador da religião) e a inferiorizá-los. Assim,
a oposição e a incompreensão dirigidas ao culminante são mais
acirradas quanto mais valorizada for a vivência religiosa naquela
comunidade, e, quanto maior a oposição, maior a possibilidade de
essa comunidade expelir seus culminantes como loucos, arrogantes
ou “endemoninhados” – que levarão consigo um misto de rejeição,
determinação e esperança.
Strommen (1974, citado em ROSEGRANT, 1976) também
discute essa questão, e a coloca em termos de aceitação e abertura
ao outro e à proximidade afetiva – a tendência à “comunhão” (ou
o “cristianismo orientado pelo evangelho”) – e o seu oposto, a
“separatividade” (ou o “cristianismo orientado pela lei”), que é
característica das comunidades religiosas. Essa separatividade religiosa
leva a comunidade a um nível de ódio intenso e, muitas vezes, a
guerras, ironicamente chamadas “santas”.
Assim, Ana, por ser uma pessoa culminante e tendente
à comunhão, buscava crescer existencialmente, mas procurou por
iguais numa comunidade de separatistas não-culminantes, diante

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO
E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

dos quais, por amor, se acreditava errada. Depois de tentar por todos
os meios conquistar uma proximidade com os membros da Igreja,
terminou por não suportar mais a pressão. Rompeu com a instituição
religiosa, e acreditou estar rompendo com a religião. Rompeu com “o
Deus da infância, das regras e normas” e assumiu a pecha, acreditando
“passar para o lado do demônio”. Odiava a postura da intolerância e
da vigilância, e acreditou odiar Deus.
Ao ver seus valores religiosos tradicionais desmoronarem, Ana
confundiu religião vivencial e instituição religiosa/dogma religioso
(JUNG, 1939; MASLOW, 1964; MOMEM, 1999; STROMMEN, 1974,
CITADO EM ROSEGRANT, 1976). Entrou em sofrimento, ansiedade
e conflito consigo mesma, vivendo anos em angústia, agressividade e
raiva. No entanto, o rompimento drástico, possibilitado novamente
pela sua natural abertura à experiência e sua capacidade de culminância
(MASLOW, 1964), levou-a ao contato com a natureza, com a arte e
com os relacionamentos humanos.
Na verdade, para David Elkins (2000, p. 11-15), muitos
milhões de pessoas no mundo atual estão insatisfeitas com a religião
instituída em qualquer de suas formas. Este autor vê a instituição
religiosa como apenas um dos caminhos que leva o homem à
plenitude e à satisfação espiritual, e organiza as várias dimensões
da experiência humana como caminhos tão válidos e satisfatórios
para alcançar essa espiritualidade quanto a tradição religiosa. Para
essas pessoas insatisfeitas, esses caminhos são mais eficazes do que a
participação na comunidade e a crença no dogma religioso.

(...) há hoje muitas pessoas altamente espiritualizadas


que não são religiosas, assim como muitas pessoas
altamente religiosas não são particularmente
espiritualizadas. Creio que já é tempo de nossa
sociedade reconhecer que espiritualidade e
religiosidade não são a mesma coisa, e que a autêntica

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AS VOZES DO SILENCIADO

espiritualidade merece respeito, esteja ela fora


ou dentro das paredes da religião organizada. Por
isso, para cada homem ou mulher espiritualmente
sequiosa, eu diria: o sagrado está ao seu redor, e
ninguém pode impedi-lo de tocar o transcendente
ou de beber da corrente sagrada. É seu direito inato
como ser humano. Até hoje, não houve organização
religiosa que capturasse Deus ou aprisionasse o
sagrado dentro das paredes de uma igreja. Sendo
assim, se a religião organizada deixou de falar à
sua alma, talvez você esteja sendo chamado para
construir uma vida espiritual fora de suas paredes,
além da religião (DAVID ELKINS, op. cit., p. 16)

Elkins, assim, propõe, como indica o subtítulo de seu livro,


“um programa personalizado para o desenvolvimento de uma vida
espiritualizada fora dos quadros da religião tradicional”, apontando
os caminhos à disposição do homem: o primeiro, o caminho da
anima, ou do feminino; o segundo, o caminho das artes; o terceiro, o
caminho do corpo; o quarto, o caminho da psicoterapia, o quinto, o
caminho da mitologia e do símbolo; o sexto, o caminho da natureza;
o sétimo, o caminho dos relacionamentos humanos; e o oitavo, o
caminho da crise existencial ou da noite escura da alma.
Ana conseguiu discernir outros caminhos em potencial para sua
espiritualidade – o da natureza, o das artes e o dos relacionamentos
humanos, e abriu-se à sua exploração. E é exatamente a natureza o
contexto da absoluta e maior parte das experiências religiosas, inclusive
cristãs, relatadas na literatura. William James (1901), falando sobre a
natureza como veículo de estados místicos, afirma que “a maioria dos
casos notáveis que coligiu ocorreram ao ar livre”. Inúmeros relatos até a
atualidade (TART, 2002; RERC, 2002) situam-se no aberto, e referem-se

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ANA EM BUSCA DE ACEITAÇÃO OU “OUVINDO A VOZ DO DEMÔNIO
E DESCOBRINDO SEU ENCANTAMENTO”

à reação diante de belezas naturais estonteantes, e à inserção do ser


nelas como conseqüência da emergência da emoção estética.
Ana aproximou-se também do humano em todas as suas
instâncias: sociais, políticas, acadêmicas, antropológicas. Novamente,
abriu-se ao novo sob a forma de aceitação de outras formas de ser
e pensar e, ao mesmo tempo, perseverou na busca da religiosidade
vivencial. E foi junto ao humano, “fora dos quadros da religião
tradicional”, embora a princípio magoada e retraída, que decidiu
mais uma vez participar; que se redescobriu “adequada”, “boa o
suficiente”, e “diferente, mas igual aos outros” – no grupo de vivências
da pesquisa.
No grupo, no momento em que falou, se percebeu aceita em
sua identidade única, e resgatou sua capacidade de emocionar-se. A
emoção é para ela o termo que define o sentido de sua existência,
“talvez a própria transcendência” (da entrevista final). Na emoção, Ana
se sente um indivíduo perante o sagrado, a emoção é a medida de seu
sentimento de pertencer. Permitindo-se abrir-se para emocionar-se
novamente, Ana transcendeu seu “duro”, seu medo, sua agressividade
e sua mágoa.
Ana, uma entre vários que se beneficiaram da participação
na pesquisa, e mais do que qualquer outro, exemplifica a função e o
potencial de expansão do ser e crescimento existencial de um contexto
de respeito e aceitação ao ser e à necessidade vital humana de
pertencer. Ana demonstra perfeitamente nosso objetivo de apresentar
a experiência transcendente e o contexto grupal respeitoso como
fatores e situações de transformação, de transcendência, de ampliação
de consciência, enfim, de cura.
Conforme o disse Maslow (1962), uma vez aberto o caminho,
o ser tende à abertura e à auto-realização.


Essa característica da natureza reforça as atuais preocupações ecológicas: a proteção
do maior disparador da experiência transcendente.

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AS VOZES DO SILENCIADO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ELKINS, David N. Além da religião. São Paulo: Cultrix, 2000.


JAMES, William. As variedades da experiência religiosa. São Paulo:
Cultrix, 1991 (Obra original de 1902).
JUNG, Carl. G. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1975. (Obra original de 1961).
______. (1939). Psicologia e religião. Petrópolis: Ed. Vozes, 1978.
LASKI, Marghanita. Ecstasy: A study of some secular & religious
experiences. London: The Cresset Press, 1961.
MASLOW, Abraham. Introdução à psicologia do ser. Rio de Janeiro: Ed.
da Livraria Eldorado, 1968. (Obra original de 1962).
______. Religions, values and peak-experiences. New York: Penguin
Books, 1987. (Obra original de 1964).
MOMEN, Moojan. The phenomenon of religion: a thematic approach.
Oxford: Oneworld, 1999.
MORAES, Celia C. Trabalhando com os fenômenos religiosos e
espirituais: uma proposta metodológica para a avaliação da experiência
de ampliação de consciência no processo grupal. Tese de doutorado.
Brasília: Universidade de Brasília, 2002.
RERC - Religious experience research center. Personal Stories, 2002.
Disponível em: <http://www.alistairhardytrust.org.uk/aht/Personal_
Stories/personal_stories.html>.
ROSEGRANT, John. The impact of set and setting on religious
experience in nature. Journal for the Scientific Study of Religion, vol. 15,
n. 4, p. 301-310, 1976.
TART, Charles T. TASTE - The archives of scientists transcendent
experiences, 2002. Disponível em: <http://issc-taste.org/index.shtml>.

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS,
NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

Elzira Divina Perpétua

Dos diários que Carolina de Jesus publicou, apenas o primeiro,


Quarto de despejo: diário de uma favelada, teve o poder de levantar
discussões a respeito de temáticas suscitadas pela apresentação de uma
realidade que, até 1960, nunca fora exposta “de dentro” de uma favela.
Se as discussões resultaram inócuas para promoverem mudanças
sociais, também o lado pessoal de Carolina – o que constitui, a priori,
a matéria de textos autobiográficos – ficou relegado, durante muito
tempo, a um segundo plano: ora Carolina era lembrada como uma
excentricidade, ora, no lado oposto, como parte de um bloco formado
por seus companheiros de infortúnio. Apenas nos últimos anos, as
palavras de Carolina em Quarto de despejo começam a ser lidas sob
novos enfoques, ao serem objeto de análise na instância acadêmica.
Uma explicação fácil para que Casa de alvenaria: diário de uma
ex-favelada, lançado um ano depois do primeiro livro, tenha passado
quase despercebido do público é de que o segundo diário não oferece
mais o sabor da novidade. Porém, Casa de alvenaria, além de configurar-
se como um documento importante para o acompanhamento de parte
do processo de elaboração e recepção de Quarto de despejo, explicita
a luta de Carolina para ser vista em sua individualidade, à medida

Ver, por exemplo, as teses de doutorado: PERPÉTUA, Elzira D. Traços de Carolina
de Jesus: gênese, tradução e recepção de Quarto de despejo, de Carolina Maria de
Jesus; MAGNABOSCO, Madalena M. Reconstruindo imaginários femininos através
dos testemunhos de Carolina Maria de Jesus; SOUSA, Germana H. Pereira de. Carolina
Maria de Jesus: o estranho diário da escritora vira-lata. E, entre outros, o artigo de
DALCASTAGNÉ, Regina. Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrati-
va contemporânea.

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AS VOZES DO SILENCIADO

que revela seu esforço para firmar-se como sujeito de dois mundos
antagônicos, o do Quarto de despejo e o do mundo da alvenaria.
Entre as diversas reflexões existentes sobre o discurso da
memória, a que interessa aqui é a que trata o texto autobiográfico
como uma manifestação do eu, independentemente das questões
dêiticas que o uso desse pronome instaura. Refletimos, sobretudo,
sobre o fato de que a representação do “eu” ocorre pela manifestação
de uma voz que, a despeito de seus desdobramentos, é suporte da
condição de existência de um sujeito que, ao escrever sobre si, tem a
ilusão de apresentar ao leitor um retrato inteiro.
Nos dois diários de Carolina de Jesus publicados em vida da
autora, essa ilusão torna-se transparente, à medida que o jornalista
Audálio Dantas, responsável pela preparação dos originais, explicita,
nos respectivos prefácios, parte de seu trabalho de editoração, que
vai apresentar-se nas edições publicadas sob as formas de reticências
e de reticências entre parênteses. Há, portanto, nesses dois diários,
a presença de um eu, ilusório, parcial, incompleto, que ouvimos,
ilusoriamente, como se fosse a voz de Carolina de Jesus – que é, afinal,
o que ocorre quando se lê qualquer texto de cunho autobiográfico.
Percebe-se uma ausência de sintonia, no entanto, quando ouvimos
a voz de Carolina, por meio dos manuscritos dos diários, como será
explicitado adiante.
No prefácio da 1ª edição de Quarto de despejo, Audálio Dantas
se refere ao livro como “grito de protesto”, garantindo que este “grito
terminou ferindo ouvidos”. Já em Casa de alvenaria, no prefácio
intitulado “História de uma ascensão social”, o jornalista reafirma o
mesmo vigor da voz de Carolina em Quarto de despejo: “A verdade
que você gritou é muito forte, mais forte do que você imagina.”.
No entanto, a invocação da força provocativa do primeiro diário de
Carolina compõe o argumento para dissuadi-la de querer publicar
“aqueles ‘poemas’, aqueles ‘contos’ e aqueles ‘romances’”, gêneros
textuais que a escritora demonstra preferir.

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

Uma leitura mais cuidadosa do segundo livro de Carolina


de Jesus, que inclui o cotejo de seus manuscritos, possibilita um
entendimento redimensionado das referências metafóricas da escrita
como voz, mas não apenas a que propõe Audálio Dantas. Conhecer
a existência do mundo de Carolina após a publicação de Quarto de
despejo, por intermédio da leitura de Casa de alvenaria, nos leva a
indagar sobre o que ocorreu no intervalo que vai de 8 de maio de
1960, quando, referindo-se ao lançamento do primeiro livro, Carolina
atribui à sua escrita uma recepção atenta à sua voz – “Agora eu falo
e sou ouvida. Não sou mais a negra suja da favela” (CA, p.17) – e o
dia 7 de novembro de 1961, quando, residindo entre a classe média
do Bairro de Santana, desabafa: “Hoje eu estou com frio. Frio interno
e externo. Eu estava sentada ao sol escrevendo e supliquei, oh, meu
Deus! Preciso de voz!”.
Casa de alvenaria constitui-se como um importante adendo à
compreensão do perfil público de Carolina, porque os procedimentos
para a apresentação da escritora ao público, antes e depois do
lançamento de Quarto de despejo, serão mostrados, em parte, neste
segundo diário publicado. Entre vários aspectos pelos quais Casa de
alvenaria pode ser estudado, merece destaque o processo editorial,
que instiga a reflexão a respeito das vozes discursivas presentes nos
dois relatos autobiográficos de Carolina de Jesus.


Os manuscritos de Carolina Maria de Jesus encontram-se atualmente disponíveis
em microfilmes na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O cotejo de que nos
valemos neste texto refere-se à comparação de Casa de alvenaria com apenas um
dos cadernos manuscritos. Também pode-se considerar como manuscrito, por ser
publicação intregral desses, o livro Meu estranho diário, de 1996, organizado por
José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert Levine.

As citações de Casa de alvenaria utilizadas neste texto foram retiradas da edição de
1961 e serão indicadas pelas iniciais CA, seguidas do respectivo número da página.

Cf. Meu estranho diário, p.152.

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AS VOZES DO SILENCIADO

As vozes em Casa de alvenaria

O lançamento de Casa de alvenaria, em 1961, ocorre em um


momento em que o nome de Carolina de Jesus já começa a cair no
esquecimento no Brasil, embora o lançamento, um ano antes, de
Quarto de despejo. Os registros desse segundo livro cobrem o período
de maior notoriedade da autora, promovida por seu primeiro livro:
iniciam-se em 5 de maio de 1960 – data da assinatura do contrato da
autora com a Livraria Francisco Alves para o lançamento de Quarto
de despejo – e terminam em 21 de maio do ano seguinte, quando
Carolina estava no auge da fama.
Conforme explica Audálio Dantas, no prefácio de Casa de
alvenaria, o segundo diário publicado de Carolina receberá o mesmo
tratamento editorial de Quarto de despejo. Como os manuscritos
foram lidos e selecionados por ele, presume-se que o editor buscasse
encontrar formas para que a imagem de Carolina mostrada em Quarto
de despejo, fosse completada de modo coerente com aquela conhecida
do público.
A notoriedade vinda a partir da repercussão trazida pelos
noticiários que antecedem o lançamento de Quarto de despejo
proporcionou uma mudança radical na vida de Carolina. Na escrita
do cotidiano, esboça-se um novo perfil da escritora nos registros
publicados em Casa de alvenaria, que mostram, em vez da miséria
constante, a ascensão social e econômica de Carolina, ao contrário
do que se encontra em Quarto de despejo. Esse é o motivo pelo
qual, três dias após a assinatura do contrato com a Francisco Alves
para a publicação de seu diário, a escritora manifesta, num só
registro – “Agora eu falo e sou ouvida. Não sou mais a negra suja da
favela” – a diferença de tratamento em dois momentos distintos: o do
longo período de silêncio, a que fora relegada antes de sua produção
escrita tornar-se pública, e aquele em que estava se consagrando como
a autora de Quarto de despejo.

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

Carolina manifesta, em Casa de alvenaria, que é ouvida em


seus depoimentos sobre a vida dos favelados. Ressalta que essa
recepção ao livro lhe proporciona também um outro lugar social, um
lugar reservado apenas aos que estão se projetando fora do Quarto de
despejo, rumo à casa de alvenaria, como mostram os registros abaixo,
transcritos do segundo diário, respectivamente de 17 e 18 de maio de
1960, a três meses do lançamento do primeiro diário:

(…) Poder comprar roupas para mim. Tudo em


mim está despertando. Eu estou pensando nuns
brincos, colares e vestidos bonitos e vou visitar um
dentista. (…) Nas ruas o povo dava-me os parabéns.
Quando passo perto de um ônibus, ouço: Olha a
mulher que escreve! (CA, p.22-23)
— O João e o José Carlos vestiram os palitós e
ficaram alegres. Era a primeira vez que êles vestia
palitó. O João disse: – Como é bom ser filho de
poetisa! (CA, p.23)

Na seleção dos registros de Casa de alvenaria, a preocupação


passa a ser a de compor a imagem de uma mulher bem-sucedida
pelo seu próprio esforço. O segundo diário publicado vai mostrar os
registros em que consta o crescimento de sua notoriedade. Diversas
reportagens divulgam a história de Carolina, anunciando o lançamento
de Quarto de despejo. Carolina transcreve os textos veiculados pelos
jornais ou o arranjo para uma entrevista, como mostra este registro de
17 de junho de 1960:

…Na rua São Bento parei para conversar com um


jornaleiro. Ele me disse que eu estava na “Última

Os sinais de reticências e de reticências entre parênteses foram mantidos nas cita-
ções, neste texto, conforme a edição utilizada. Os cortes necessários à adaptação
das citações, por sua vez, são indicados por reticências entre colchetes: […].

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AS VOZES DO SILENCIADO

Hora” e me mostrou o jornal. Comprei dois jornais


e li na primeira página:
‘Carolina vai deixar a favela. Publicará mais
três livros. Humilde mulher de côr da favela do
Canindé, vivendo na miséria com seus três filhos
pequenos, semi-analfabeta, começou a garatujar em
papéis recolhidos no lixo a história de seus anos de
sofrimento. Um jornalista decobriu-a e ainda este
ano sairá o diário de Maria de Jesus [sic]. Depois
virão outros livros e diz ela que o seu sonho é uma
vida decente longe da favela’ (CA, p.26).

Em Casa de alvenaria, também observamos algumas


demonstrações do funcionamento das engrenagens publicitárias
pelas quais a notícia do lançamento de Quarto de despejo chegava
a outras partes do Brasil, por meio da imprensa de outros estados.
Vê-se, também, o comprometimento pessoal de Carolina, quando
os registros de Casa de alvenaria mostram o empenho da escritora, a
partir do dia seguinte ao que teve em mãos o diário já transformado
em livro; também isso se vê quando o livro é divulgado verbalmente,
não apenas entre os vizinhos, na Favela do Canindé, mas também em
diversos pontos da cidade, entre desconhecidos.
A projeção da imagem de uma Carolina bem-sucedida é
mostrada também por meio dos programas de rádio e televisão, de
modo cada vez mais assíduo, nos sucessivos registros. Às vésperas do
lançamento, por exemplo, uma entrevista para a televisão é concedida
no estúdio, com cenário que imita uma favela. O registro de Carolina
em Casa de alvenaria (p.34) mostra que o arranjo cenográfico foi
feito pelo mesmo artista que assinou as xilogravuras que ilustram
as primeiras edições de Quarto de despejo. Esse detalhe, somados a
procedimentos prévios do programa, mostram a importância de Casa
de alvenaria como um texto meta-reflexivo das ações midiáticas que

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

correspondem ao engendramento de um dos recursos publicitários


dos editores de Quarto de despejo.
Assim, a recepção prévia de Quarto de despejo procura
enfatizar o aspecto real da narrativa autobiográfica, consolidando
a preparação iniciada, meses antes, por meio de várias reportagens
em jornais e revistas. Também na decoração da livraria, no dia
seguinte ao programa de televisão, a favela é representada sob forma
metonímica por um punhado de terra. A descrição da encenação final
mostra aos leitores a estratégia publicitária subjacente à decoração,
que também passa a trabalhar no direcionamento da leitura do livro.
O momento apoteótico do sucesso representado pelo primeiro livro
de Carolina será registrado nas páginas de Casa de alvenaria, em 15
de agosto de 1960:

Vou na Livraria levar um pouco de terra para pôr


na vitrina. Estava chovendo, fomos de ônibus e
quando chegamos na livraria vi o meu retrato na
porta. Estou desenhada em ponto grande. E a
favela. O que está escrito no quadro:
Esta favelada, Carolina Maria de Jesus, escreveu
um livro – Quarto de despejo – A Livraria Francisco
Alves oferece ao povo.
[…] (…)Chegaram os pintores. Eu disse-lhes que
o senhor Cyro Del Nero sabe pintar muito bem. O
homem que ageitava o quadro, o pintor Irenio Maia,
disse-me que foi êle que pintou e se estava bom.
– Está ótimo! Eu saí bem.
Que espetáculo deslumbrante! O povo e os carros
paravam para ver o meu retrato galgando. Eu tinha
a impressão que era eu que subia para o céu. […]
Os carros e os onibus paravam. E os pedestres. Hoje
está chovendo e os pingos da chuva salpicavam o
meu quadro. (CA, p.35)

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AS VOZES DO SILENCIADO

Paralelamente aos arranjos oficiais da recepção, ao aproximar-


se o dia do lançamento, Carolina ainda continua a fazer de boca a
propaganda, com o objetivo de vender o livro. Todos esses arranjos
vão confluir para um resultado final favorável ao planejamento dos
editores. Um dia antes do lançamento, Carolina é assunto em diversos
veículos de comunicação. Na transcrição de uma das entrevistas
concedidas às vésperas do lançamento, em 18 de agosto de 1960, ao
jornalista Carlos de Freitas, Casa de alvenaria, p.37-38, vê-se como
as perguntas revelam a eficácia de uma leitura ideológica do texto
de Carolina, induzida por várias instâncias: a divulgação feita pela
mídia, pela seleção do editor, pelo lugar de onde fala Carolina e pelo
teor político do próprio texto. Percebe-se o interesse direcionado e,
conseqüentemente, para o qual se direciona a recepção da matéria
por meio das perguntas que versam sobre a orientação política de
Carolina, como a opinião dela sobre as campanhas eleitorais, sobre o
governo de Fidel Castro e sobre o que faria se fosse governadora.
Graças aos cuidados que cercaram o lançamento do livro,
o evento realizou-se, supostamente, como se esperava. A imprensa,
presente, confirmou a força da publicidade antecipada, noticiando o
sucesso do acontecimento. Nos dias que se seguem, as anotações de
Carolina registradas em Casa de alvenaria limitam-se às reportagens de
jornais e revistas em que seu rosto e sua história se acham estampados.
Registram também o comparecimento exaustivo de Carolina a
programas de rádio e televisão, onde concede entrevistas e participa
de debates com autoridades do governo ligadas à área social. E, ainda,
o atendimento a convites para autografar em outras livrarias.
Assim, grande parte dos registros de Casa de alvenaria
mostra aos leitores a vitória de uma mulher sobre a adversidade,
ou seja, a “história de uma ascensão social”, como consta no título
do prefácio do segundo diário. Uma história que continuará sendo
mostrada sob outros ângulos ao longo dos registros desse segundo
diário. Por exemplo, em 30 de agosto de 1960, a televisão e os jornais

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

documentarão a saída de Carolina da favela do Canindé. Afinal, ela


havia começado a escrever, como dissera tantas vezes, para se ver livre
da miséria, para esquecer que vivia no monturo. E, agora, sua escrita
estava literalmente libertando-a daquele lugar, graças aos lucros
obtidos pela publicação, como ela registra às vésperas da mudança
da favela.
Tudo ocorrera conforme planejado. Ou quase tudo, pois
a coletividade da qual Carolina fora eleita porta-voz rebelava-se
ostensivamente contra sua representante, escolhida à revelia deles
próprios. Carolina, que inicialmente demonstra boa vontade
em cumprir todo o ritual de despedida da favela, ao ver crescer a
animosidade dos vizinhos, e com receio das agressões físicas – que,
afinal, acabaram por ocorrer – recusa-se a cumprir até o fim o papel
arranjado para ela.
A manifestação inamistosa dos moradores da Favela do
Canindé, naquele momento apoteótico de encenação final do sucesso
de Carolina, não chega a modificar o estatuto social do objetivo de
Quarto de despejo – “a chave que abriu a porta aos favelados”, como
se lê no prefácio do primeiro livro e será reafirmado no prefácio do
segundo diário. Mas, ao publicar em Casa de alvenaria os gestos
de agressão dos vizinhos à sua autora, expõe a incompreensão do
Canindé para com o “diário da favelada”. Por outro lado, importava
à encenação final documentar também a chegada de Carolina à nova
casa, longe da favela. A transcrição publicada sobre a mudança reflete
a segurança de Carolina quanto à sua posição de sujeito, como se lê
no registro de 30 de agosto de 1960:

(...) Quando chegamos em Osasco eu paguei ao


senhor Milton Bitencourt 2.000 cruzeiros. Foi o
dinheiro mais sagrado para mim, porque pagava o
seu trabalho de ter retirado-me da favela. A televisão
já estava aguardando Os fotógrafos fotografou-me

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AS VOZES DO SILENCIADO

perto dos meus cacarecos que achei no lixo. Eu


olhava os cacarecos e pensei nos 15 anos que vivi
no lixo. Fiquei triste porque o Audálio não estava
presente. Pensei: será que êle não queria que eu
mudasse da favela?…
Várias pessoas havia dito que o Audálio transformou-
me em rato para os gatos. Mas o rato corre mais do
que o gato. E eu corri para Osasco. [...] Agora estou
na sala de visita. O lugar que eu ambicionei viver.
Vamos ver como é que vai ser a minha vida aqui na
sala de visita (CA, p.47-48).

A vida de Carolina na “sala de visita” continuará sendo divulgada


na imprensa nacional e internacional, tendo em vista o sucesso
crescente do livro nos meses de 1960 e no início do ano seguinte. A
partir de São Paulo, sua fama se espalhará por outras cidades, outros
estados brasileiros, outros países. Carolina, incansável, continuará
a contribuir para a manutenção da própria imagem espelhada na
imprensa e no livro, comparecendo a lançamentos, a coquetéis, a
palestras, em várias cidades. É esse o perfil que se lê, superficialmente,
nas páginas do segundo diário. Porém é possível escutar, também, a
voz de um sujeito que se encontra num lugar desconfortável, que se
ressente da posição que passa a ocupar, que não se encontra mais no
Quarto de despejo nem se sente completamente alojada na casa de
alvenaria, como se lê nos registros publicados em Casa de alvenaria:

(...) Eu ainda não habituei com este povo da sala de


visita – uma sala que estou procurando um lugar
para sentar (CA, 29 out. 1960, p.66).
(...) Depois que o Grande Othelo cumprimentou-
me a curiosidade em torno da minha pessoa
duplicou-se. Alguns iam a minha mesa. (…) As

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

mulheres que estavam na minha mesa falavam em


reforma social.
 Não é justo deixarmos os favelados relegados
no quarto de despejo. Você fez bem em nos
alertar para esse problema. Temos que amparar os
infaustos. Você demonstrou coragem lutando para
sair daquele antro.
Eu pensava: elas são filantrópicas nas palavras. São
falastronas, papagaios noturnos. Quando avistam-
me é que recordam que há favelas no Brasil (CA, 3
dez. 1960, p.96-97)
(...) Comecei a pensar na minha vida. Todos dizem
que fiquei rica. Que eu fiquei feliz. Quem assim o
diz estão enganados. Devido o sucesso do meu livro
eu passei a ser olhada como uma letra de câmbio.
Represento o lucro. Uma mina de ouro, admirada
por uns e criticada por outros. Que Natal confuso
para mim (CA, 25 dez. 1960, p.114)

Ela [Ivete Vargas] falava uns termos políticos que eu


desconheço. Ouvindo eles falar de política tinha impressão que eu
estava num mundo estranho (CA, 26 jan. 1961, p.130).

O Quarto de despejo na Casa de alvenaria

Uma outra face do perfil esboçado em ambos os diários será


mostrada nos manuscritos de Casa de alvenaria. Ativemo-nos aos
registros do manuscrito numerado como caderno 24 (que cobre
de 18 de abril a 17 de maio de 1961), por incluírem os dias que
antecedem a assinatura do contrato (18 de abril a 4 de maio de
1961). Esses registros revelarão, na face oculta do material eliminado
da publicação, elementos inesperados e/ou não desejados na
composição da imagem da escritora.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Ao contrário do que foi publicado em Casa de alvenaria, o


manuscrito mostra que, em abril de 1960, o registro de Carolina a
respeito da situação de penúria crescente junta-se à narrativa sobre
a desesperada e inútil busca de auxílio em meio ao clima propício
das pré-eleições. A quase totalidade do manuscrito de então traz
a descrição amarga de uma situação cada vez mais terrível. Dos
principais itens abordados nos registros de abril de 1960, há vários
assuntos recorrentes: Carolina adoece, sua situação de vida piora, há
mais fome e ela escreve várias vezes sobre o suicídio; discorre sobre
a pena de morte nos Estados Unidos, a propósito da condenação de
Caryl Chessman à cadeira elétrica, acompanhando as notícias pelos
jornais e emitindo sua opinião a respeito do assunto, que está na
ordem do dia; envolve-se com as próximas eleições em São Paulo,
apoiando incondicionalmente Adhemar de Barros.
Esses temas aparecem de forma recorrente até 1.º de maio,
dia em que o contrato com a editora Francisco Alves é apresentado
à escritora, sendo marcada a data da assinatura. Depois dessa data, o
principal item de seus registros gira em torno desse contrato e suas
conseqüências: a expectativa, a propaganda de boca, a cobertura
jornalística, os programas de televisão e de rádio, a preocupação com
a manutenção da fama, enfim. Também destacam-se a descrição da
preparação das ilustrações para o livro que se mescla à expectativa
em torno da recepção pública do diário, além de reportagens que
antecipam o conteúdo do livro. Todo esse movimento em torno de
sua figura leva Carolina a observar, em 4 de maio de 1960 que: “Ele
[Audálio Dantas] disse-me que estas noticias vae sair sempre. Fiquei
confusa igual a gata borralheira transformada em princesa.”
A metáfora do conto de fadas em que Carolina espelha sua vida
prestes a mudar como num passe de mágica encontra sua razão de ser
no registro da véspera da assinatura do contrato, quando, ao mesmo


Em todas as citações do manuscrito, a grafia está mantida como se encontra no
original.

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

tempo em que sonha com a fama, continua catando coisas do lixo e


vendo seus filhos mendigando, alimentando-se de restos, adoecendo,
enfraquecendo. Enfim, em 5 de maio de 1960, data da assinatura do
contrato, Carolina registra uma situação de penúria tamanha que não
tem sequer o almoço dos filhos, nem mesmo como pagar a condução
para o centro da cidade. Vão a pé e com fome. Mesmo assim, durante
a caminhada, demonstra estar feliz e vai chamando a atenção para si,
anunciando publicamente o contrato da edição dos “livros” (no plural
mesmo).
Na livraria, Carolina vence a timidez ao ser recebida com
deferência. Vários jornalistas presenciam a cerimônia da assinatura
do contrato, o que demonstra a eficácia da estratégia da reportagem
que a anunciara. E Carolina cumpre sua parte na estratégia que visa
à vendagem do produto fazendo poses para as fotografias como
escritora: lendo livros, declamando seus poemas, admirando a vitrina,
etc. A apoteose é marcada pela chegada dos repórteres de televisão.
A narrativa de Carolina descreve os detalhes dos bastidores da
encenação planejada pelos promotores do livro. Sua descrição mostra
que, subjacente à importância do acontecimento em si, as poses
servirão para preparar o público para a leitura do livro. Uma parte
desses acontecimentos, narrados nos manuscritos, será selecionado
para publicação em Casa de alvenaria.
De volta à favela, o registro de Carolina sobre a atitude de
surpresa do vizinho ao ver consolidada a assinatura do contrato
comprovará o quanto suas palavras eram desacreditadas até então.
Essa parte, selecionada para a publicação, sintetiza todas as atitudes
de espanto daqueles que duvidavam não só da palavra, como também
da sanidade mental de Carolina:

Era oito horas. quando entrei no empório do


senhor Eduardo Chola paguei-lhe 260 que estava
devendo-o a muito tempo, e comprei um quêijo

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AS VOZES DO SILENCIADO

de 180. Um quilo de açucar Tamôio e café jardim.


Mostrei o contrato para o senhor Eduardo ler e
disse-lhe: amanhã, eu estóu em todos jórnaes
Despedi do senhor Eduardo que estava com os
olhos fitos no meu rosto como se estivesse vendo-
me pela primeira vez.

No dia seguinte à consolidação do acordo, a reação popular
comprovará que as notícias divulgadas pela imprensa terão servido
para restabelecer a credibilidade às palavras de Carolina. Esta, por sua
vez, verbaliza o eco sobre si mesma, descrevendo a recepção popular
às notícias.
A reação da imprensa ao evento continuaria crescendo nos
dias subseqüentes. A presença de Carolina será novamente solicitada
pela televisão, potencializando a possibilidade de que um público
cada vez maior conheça uma amostra do conteúdo do livro com
antecedência e se interesse por ele, previamente. A notícia escrita é,
ainda, a referência para os programas populares de TV, que, já no
nascedouro, colocavam ainda mais em evidência seus convidados, ao
enfatizarem os motivos pelos quais haviam merecido figurar como
notícia. É o que ocorre mais uma vez com Carolina, cuja imagem,
agora projetada na tela, reforça a publicidade do livro.
Cada programa de TV consolida ainda mais a popularidade
de Carolina, iniciada pelas notícias dos jornais. Paulo Dantas,
recentemente, lembrou a importância do “fenômeno televisão”
para a divulgação “daquela escritora negra, mãe de três filhos, uma
pessoa marginal, que vinha da favela para dar um depoimento”. O
fenômeno, isoladamente, não modifica o estatuto de Carolina, mas
diversas outras aparições na TV vão consolidar sua imagem aos olhos
do público, proporcionando uma mudança radical no tratamento que
ela passa a receber.


Cf. LEVINE, Robert M. Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus, p. 158.

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

Rapidamente, o nome de Carolina começa a extrapolar as


fronteiras do Brasil. Vê-se, por seus manuscritos, que o epitexto
relacionado ao livro chegara também ao estrangeiro. As oportunidades
para anunciar o livro multiplicam-se, como se lê no registro de 13
de maio de 1960, em que Carolina descreve sua participação nas
comemorações do Dia da Abolição da Escravatura, no teatro da
Escola de Medicina. Na cena descrita por Carolina, à qual se seguiram
aplausos, vislumbra-se a encenação feita em torno de sua figura,
quando o entrevistador dirige a atenção do público para o livro que
edita, por meio das perguntas que faz a Carolina. Abaixo, a transcrição
exata pela própria Carolina,

O Audalio apresentou-me ao poeta Sólano Trindade


e ao público. O Audalio falou da minha capacidade
para escrever. Disse que eu tenho dôis anos de
grupo Da minha vida humilde e que o meu livro
vae ser o sucesso literario do ano Que todos vão
comprar o livro.
Pidiu-me para eu falar algo.- Eu disse: que quero
escrever para os jovens que eu aprécio os bons
elementos. Não gosto dos jovens trasviadós.
O Audalio perguntou-me porque é que eu escrevo.
- sempre gostei de livros e desde menina eu dizia
para a minha mâe que eu ia escrever muitos livros.
Eu estava com 8 anos, era inciente
- O Audalio perguntou-me se ja comi as cóisas do
lixo?
- Quantas vêzes!
Come-se com excrupulo e com mêdo de mórrer.
Mas, Deus protege. O custo de vida nos escravisa
eu queria ricitar: negros: mas o audálio não
mencionou.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Quando o Audálio falou pretinho que mórreu


porque comeu carne podre. Citei-lhes que o preto
disse que que o pobre, tem que ter estomago de
cimento armado. E mórreu o seu corpo aumentóu-
se demasiadamente.
O Audálio perguntou-me se pretendo escrever
muitos livros.
Respondi que sim. E se eu pudesse escrevia
interruptamente.
O Audalio disse-me que eu sóu a sua gloria literaria.
Que êle tem 10 anos de profissão jórnalistica
Descemos do palco com os aplausos fomós
fotografadós (destacamos).

Observa-se, nessa citação, o direcionamento evidente que se


quer dar para a escrita de Carolina, que, submetida ao jogo publicitário,
conforma-se em não apresentar publicamente seu poema. Nos
manuscritos da diarista, são inúmeras as referências a essa tendência
de Carolina em aproveitar a presença do público para declamar suas
produções líricas. Porém, com o aparecimento do diário sempre em
primeiro plano, nada mais parece ser entrave para o sucesso iminente
do livro, cujos louros serão colhidos em meses de antecedência por
sua autora, segundo enquete realizada pelo programa de televisão, de
J. Silvestre, seguramente graças à sua exposição constante à mídia.Os
programas de televisão, cada vez mais, projetam o livro e a vida de
Carolina, de forma que, na margem do tempo que se estenderia até
o dia do lançamento, o público fosse assimilando uma aproximação
com a escritora de Quarto de despejo e a temática de seu livro.
O que se acrescenta sobre a vida de Carolina na imprensa
nacional e internacional, a partir do lançamento de Quarto de despejo,
em agosto de 1960, ultrapassa a morte da autora, em 1977, e vai girar
em torno de seu primeiro livro. Nas dezenas de cadernos manuscritos,

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

nos quais ela continuará escrevendo fielmente durante muitos anos,


podemos acompanhar dia-a-dia o outro lado do seu texto, o que não se
publicou nos jornais, o que não se editou nos livros, a desmistificação
das poses, os desmentidos das notícias, revelando uma verdade que,
guardada, era só de Carolina. Nesse sentido, uma revisão de seus
escritos, por meio da leitura de seus cadernos, ofereceria dados que
se não completam também não mudam Quarto de despejo – porque,
uma vez vindo a público, o livro é uma realidade concreta. Eles
comporiam um suplemento, mostrando uma outra Carolina, diversa
em vários aspectos daquela que a publicidade da época fez ascender
e da que nos oferece o perfil das edições de seus livros. Uma Carolina
talvez mais humana, pelas contradições próprias que deixa registradas
a propósito da escrita do diário, dos dias de impacto de Quarto de
despejo e dos ecos que compõem seu epitexto ulterior.
Uma leitura cotejada das reportagens e dos manuscritos mostra
que um modo de recepção do livro fora definido, primeiramente,
pelos textos que a imprensa divulgou sobre a vida e o tema do diário
de Carolina. O direcionamento antecipado da leitura ligar-se-ia ao
mesmo objetivo designado por Levine e Meihy como as causas do
sucesso do livro: tratava-se de expor ao público “uma mercadoria que
estava na onda da discussão política, social e diretamente ligada ao
desenvolvimento urbano nacional” – o lado da miséria que compunha
a outra face da chamada era desenvolvimentista.

Os ecos do desejo nos manuscritos de Carolina

A preparação do público pela mídia teria sido decisiva


para a recepção do livro como depoimento real das condições
de miserabilidade dos favelados, ou seja, como um documento-
monumento coletivo. A mesma direção apontada pelos arranjos
publicitários espelham os arranjos editoriais dos manuscritos para a
apresentação do livro ao público. Porém, a leitura dos manuscritos

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AS VOZES DO SILENCIADO

mostra que essa recepção ocorreria de modo diferente caso esses


arranjos tivessem visado, primeiramente, à recepção de outros
aspectos de uma escrita de cunho individual.
Dessa forma, algumas diferenças entre os dois livros no que
diz respeito ao processamento dos elementos editoriais assinalam
alterações dos objetivos na recepção de cada um. Por exemplo,
diferentemente do que ocorreu em Quarto de despejo, o nome de
Audálio Dantas e sua função de editor dos manuscritos encontram-se
em evidência em vários registros de Casa de alvenaria. O fato mereceu
do próprio jornalista uma referência no prefácio ao segundo diário:

Apareço com muita freqüência neste livro, como


personagem. Isto não podia ser evitado, porque de
mistura comigo havia personagens importantes.
Apareço como anjo num parágrafo, noutro apareço
como demônio, de acordo com as mutações
espirituais de Carolina. Há erros de apreciação da
autora em ambos os casos (CA, p.9).

O que o trecho acima indica, na verdade, é que a editoração


de Casa de alvenaria será diferente da de Quarto de despejo, ou seja,
que os objetivos da publicação do segundo diário serão diferentes dos
do primeiro. O que se nota, já a partir do prefácio ao segundo diário, é
que o editor vai centrar grande parte do discurso nele próprio. O fato
é que, em Casa de alvenaria, o projeto de Quarto de despejo já estava
consolidado, tanto que o livro se inicia com o registro da assinatura do
contrato entre Carolina e a editora. Sob esse ponto de vista, o segundo
livro pretende resumir, portanto, a história de uma vencedora, ao lado
da qual seu principal idealizador deve aparecer mais vezes.
No registro de 18 de dezembro de 1958, o nome de Audálio
aparece pela boca da protagonista de Quarto de despejo na resposta de
Carolina a uma vizinha: “Quem vai ler isso é o senhor Audálio Dantas,

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

que vai publicá-lo”. Com isso, evidencia-se a função do jornalista


de destinador da comunicação da qual Carolina é o sujeito. Os
manuscritos vão mostrar que a função de Audálio, como destinador
da produção escrita de Carolina, revelam-no como atribuição da
produção do diário, porque mostra a dimensão do papel dele de
mentor da escrita diária sobre a favela.
Nos registros de Casa de alvenaria, Audálio Dantas vai aparecer
não propriamente como um agente literário, mas em um discurso
laudatório, como agente transformador da vida de Carolina, como se
lê em 3 de junho de 1960:

O castelo é o coração do reporter, este homem


generoso que está tirando-me do lôdo. Eu era
revoltada, não acreditava em ninguem. Odiava os
politicos e os patrões, porque o meu sonho era
escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Depois
que conheci o reporter tudo transformou-se. E eu
enalteço o reporter por gratidão (CA, p.26).

O segundo diário publicado de Carolina vai trazer, também,


impressões inéditas sobre o percurso de sua autora, como, por
exemplo, os registros da fase em que a escritora se rebela contra seu
agente. Audálio passara a acompanhar todos os passos de Carolina,
visando à publicação do diário, e os conselhos dele, igualmente,
têm por finalidade preparar a escritora para uma sociabilidade que
a fama passaria a exigir. Ainda com vistas ao sucesso da publicação,
Audálio incentiva para que ela escreva apenas no diário, embora
aparentemente continue recebendo todos os seus originais, com

A referência deve-se aos conceitos propostos por Greimas para caracterizar as fun-
ções constitutivas do modelo actancial. A partir desse modelo, pode-se atribuir
ao jornalista o papel de representante do destinador, mas, também, na qualidade
do primeiro leitor dos manuscritos, o de destinatário privilegiado da produção de
Carolina. Cf. GREIMAS. Reflexões sobre os modelos atuacionais, p. 225-250.

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AS VOZES DO SILENCIADO

promessa de publicação futura. Inicialmente, Carolina demonstra


aceitar passivamente todas as condições propostas por seu agente, e
uma relação de confiança incondicional percorre todos os caminhos
pelos quais ele a conduz, levando a cabo as encenações implícitas no
acordo de interesse mútuo representado pela publicação. Porém, a um
mês do lançamento de Quarto de despejo, a publicação garantida parece,
enfim, ter-lhe despertado a vontade própria. Carolina manifesta ter
outros sonhos, mas esses não coincidem com os de seu agente, razão
do primeiro conflito entre eles explicitado na publicação. O frustrado
sonho era cantar em uma emissora de rádio, como se lê no registro de
28 de junho de 1960:

(...) O reporter saiu, chegou o reporter Ronaldo.


Ficamos conversando. Eu disse-lhe que ia pedir
emprego no radio para ser dramaturga. O Ronaldo
acha que não. Que eu devo escrever. Eu queria ir para
o radio, pra cantar. Fiquei furiosa com a autoridade
do Audálio, reprovando tudo, anulando os meus
progetos. Dá impressão de que sou sua escrava.
Tem dia que eu adoro o Audálio, tem dia que eu
xingo-o de tudo. Carrasco, dominador, etc. (…)
Xingava o Audálio. Êle não me dá liberdade para
nada. Eu posso cantar! Posso incluir-me no radio
como dramaturga e êle não deixa.[…] Agradeci e
despedi e fui tomar o onibus, pensando nas palavras
do senhor Fernando Soares [diretor de programação
da Rádio Gazeta]. Êle disse para eu não ir cantar no
radio para obedecer o Audálio (CA, p.27).

Confirmada a data de lançamento e consolidada a fama,


Carolina continua registrando o desejo de ser artista de rádio, embora
as resistências a seus projetos prevaleçam, como se lê, entre outros

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registros do dia 27 de julho de 1960: “Eu mostrei os sambas que estou


compondo e queria gravá-los. Mas o repórter disse-me que escritor
não pode cantar. Que as profissões são divididas – cantor é cantor,
escritor é escritor. Eu queria ir para o rádio” (CA, p.31).
Carolina vai demonstrar sua inconformidade ante as imposições
de seu agente, insistindo em fazer prevalecer seu desejo de cantar.
Este, sem contar com a obediência irrestrita de antigamente, procura
convencê-la a desistir por meios mais persuasivos, valorizando seu
trabalho de escritora. É o que se lê, ainda, no registro feito no dia
10 de agosto de 1960: “– Você deve orgulhar-se do que faz.” E ela
acrescenta: “Percebi que êle queria agradar-me – que eu escrevo muito
bem (CA, p.32).”
Uma das inferências que sobressaem da leitura dos
manuscritos dos diários de Carolina é que Quarto de despejo nasceu
como fruto de um acordo verbal que se estabeleceu entre Carolina
e Audálio Dantas. Contudo, infere-se também que o nascimento
do livro ocorre entre dois desejos distintos: para Audálio Dantas,
desde o início, a contribuição dos diários para a causa em que
acredita e que defende naquele contexto; para Carolina, representa
a possibilidade concreta de sobressair-se culturalmente e o caminho
para de fato sair da favela.
Ocorre que o sentido da cultura, para Carolina, origina-se num
lugar diferente, fora da favela, fora também dos valores protagonizados
por Audálio Dantas em relação ao tipo de arte que Carolina valorizava.
Em razão disso, veremos também, no diário, a luta de Carolina pela
prevalência de suas idéias sobre as de seu agente.
As bases desse acordo mostram-se, às vezes, antagônicas;
em outras, dissimuladas com a produção constante de Carolina
– do diário e de outros textos – sendo entregue ao destinador de
sua produção. No entanto, Audálio refere-se raramente à produção
ficcional da escritora, e, no prefácio ao segundo diário, ele desmerece
ostensivamente aquilo em que Carolina mais acreditava. A opinião de

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AS VOZES DO SILENCIADO

Audálio Dantas a respeito da obra ficcional e poética de Carolina, bem


como sobre o segundo diário aparecerá explicitamente no prefácio de
Casa de alvenaria, à guisa de despedida e conselho:

Agora você está na sala de visitas e continua a


contribuir com este novo livro, com o qual você
pode dar por encerrada a sua missão. […] Guarde
aquelas “poesias”, aqueles “contos” e aqueles
“romances” que você escreveu. A verdade que
você gritou é muito forte, mais forte do que você
imagina, Carolina, ex-favelada do Canindé, minha
irmã lá e minha irmã aqui (CA, p.10).

Assim, reiterando a valorização do primeiro diário sobre os


demais textos, o agenciador de Carolina aconselha-a a encerrar a
carreira com a publicação de seu segundo livro, mas dois outros pontos
relativos à produção não autobiográfica de Carolina ainda podem ser
levantados a partir do Prefácio de Casa de alvenaria. Primeiro, deve-se
ao fato de ele referir-se à produção ficcional e poética da escritora
entre aspas, como se vê em “aquelas ‘poesias’, aqueles ‘contos’ e
aqueles ‘romances’”. Por um lado, se tomarmos as aspas como citação
das palavras de Carolina, elas podem ser apontadas como índices de
ironia por parte de Audálio; por outro, no destaque e nas entrelinhas
do discurso direto, o recado para Carolina significa que esses textos,
que ela classifica como contos, romances e poemas, não se inserem
nessas categorias literárias. Seria essa a razão para que Audálio, além
de recusá-los, aconselhasse Carolina a esquecê-los?
O segundo ponto vem da epígrafe do prefácio de Casa de
alvenaria, escolhida de um trecho de Quarto de despejo: “Vi os pobres
sair chorando. As lágrimas dos pobres comove os poetas. Não
comove os poetas de salão. Mas comove os poetas do lixo” (CA, p.5).
Inserida como epígrafe, a frase buscaria enfatizar, na escrita poética

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

de Carolina, uma autodefinição de sua estética. Assim, no texto do


prefácio, a “estética do lixo”, reconhecida e valorizada, opõe-se à
“estética de salão”, em que se inserem os gêneros elevados. Dessa
forma, no texto prefacial de Casa de alvenaria, Audálio reafirma seu
aval sobre a escrita autobiográfica de Carolina, em que se sobressai
uma força poética inusitada, uma força poética não localizada em
outros textos da escritora.
Ao contrário do discurso da epígrafe, porém, o discurso do
manuscrito vai evidenciar, na maior parte em que Carolina discorre
sobre suas pretensões, outra aspiração: a de ser reconhecida por sua
produção poética e ficcional – pela “estética do salão” – preterida por
seu editor, e não pela “estética do lixo”, que subjaz ao diário.
Por sua epígrafe e parágrafo final, o prefácio de Casa de
alvenaria vai caminhar em direção oposta a outros desejos de Carolina,
manifestos quase que apenas em seus manuscritos. No entanto, tanto
o incipit como a saída do discurso prefacial vão além do vaticínio que
o editor faz sobre o texto não autobiográfico de Carolina, porque
o discurso prefacial remonta, como no primeiro diário, à seleção
organizada pela editoração e, no exame desta, ao lugar reservado pelo
editor à produção poética de Carolina de Jesus.
A referência de Carolina ao conteúdo que ela escreve no diário
é uma preocupação constante da diarista, sempre que ela se refere à
possibilidade de publicação de seus cadernos. No decurso temporal,
entre o início do diário de 1958 e o final de 1959, por exemplo, já
vemos como sua preocupação com a recepção do diário publicado
passa a ser cada vez maior, em vista de seu conteúdo, que ela considera
“pornográfico”, no sentido particular que ela atribui ao termo. A
preocupação de Carolina tem sentido. Ela dá ao termo pornografia
um significado abrangente, não só porque sua crônica trata de temas
licenciosos relativos a uma boa parcela dos vizinhos, mas também
porque considera que na favela não há “algo que preste”, como vai
registrar diversas vezes. Contudo, por não se fazer compreender

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AS VOZES DO SILENCIADO

quanto ao emprego de tal termo, a preocupação com a recepção do


livro é recebida, muitas vezes, com ironia.
O juízo de valor sobre a publicação está ligado, evidentemente,
ao que Carolina considera esteticamente apresentável e que não
coincide com a escrita do diário. É compreensível que, uma vez já
encaminhado todo o processo publicitário em torno do livro, Carolina
passe a julgar tão mal o diário por tudo o ele traz de oposto ao que
ela considerava esteticamente valioso e digno de ser publicado. Talvez
seja esse o motivo pelo qual ela não ouse declarar publicamente sua
opinião negativa sobre o diário. Nos seus cadernos, entretanto, ela
vai registrando seus temores. E quanto mais se aproxima a data de
lançamento, mais Carolina exprime-se desfavoravelmente em relação
à publicação, conforme se deduz da passagem abaixo, de 26 de abril
de 1960: “E um livro hororôso! O livro que eu nunca pensei escrever.
É o livro que vae desgraçar a minha vida. E o livro que vae regridir a
minha existência pensei. mas, não disse isto para elas”.
Assim, ao vislumbrar a iminente publicação do diário, Carolina
renega-o, verbalizando o seu temor com a recepção que terá, o que
demonstra, também, que ela permanece sem entender o valor dos
registros sobre a favela. Por isso continua manifestando, por meio de
reflexões metalingüísticas, seu obscurecimento em face do interesse
público por sua escrita do cotidiano. É o que se percebe pelos
comentários de 2 de julho de 1960, sobre as oposições entre a estética
que ela privilegia e a que os jornalistas valorizam: “(...) Conversei com
o senhor Otavio. Disse-lhe que vou mudar da favela neste mês e que
não gosto do diário. Eu não sei o que é que êles acham no meu diário.
Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados” (CA, p.28).

A voz silenciada de Carolina

Com a confirmação da data do lançamento do livro, Carolina


volta a angustiar-se com sua receptividade. Agora, porém, essa

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

preocupação se estende ao público em geral, sobre o qual ela deduz


que estará recebendo um tipo de literatura não canônica, marginal. É
o que se lê em 6 de julho de 1960:

Saí para o quintal e cumprimentei o repórter e o


escritor Paulo Dantas. Êle disse-me que o livro
sai dia 16 de agosto. Que susto que eu levei! Eu
sei que vou angariar inimigos, porque ninguém
está habituado com este tipo de literatura. Seja o
que Deus quiser. Eu escrevi a realidade porque eu
pensava que o reporter não ia publicar (CA, p.30).

Na verdade, Carolina escreveu sobre sua experiência diária,


porém seu desejo de publicação direcionava-se para sua produção
ficcional. Nas poucas referências positivas que fez ao diário, fica
implícito apenas o valor catártico que ela atribui à escrita do cotidiano,
como se lê no registro de 7 de julho de 1960: “Fico pensando o que
será “Quarto de despejo”, umas coisas que eu escrevia há tanto tempo
para desafogar as miserias que enlaçava-me igual o cipó quando enlaça
nas árvores, unindo todas (CA, p.29).
No exame de textos de jornais e revistas da época, bem como no
cotejo entre o livros e os manuscritos, notam-se duas situações, em que
a opção de Carolina pouco coincide com a de Audálio Dantas quanto
à escrita do diário. Em relação a Audálio, a análise dos manuscritos
mostrou que a escrita individual de Carolina foi moldada no livro
com o fim de estabelecer uma imagem ideologicamente coerente com
o modelo configurador de um sujeito a quem era dada uma voz de
protesto contra o modelo econômico brasileiro então vigente. Para
compor essa imagem, o editor dos manuscritos declinou de várias
outras facetas apresentadas por Carolina em seus cadernos. Neles
descobrimos uma Carolina inédita nas páginas do diário, configurada
por uma personagem complexa, atormentada, dividida por suas

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AS VOZES DO SILENCIADO

contradições. Vemos de que modo ela se debruça diariamente sobre


seus cadernos, não apenas para registrar a efervecência da favela, mas
também para refletir sobre a realidade em que vivia e, sobretudo, para
registrar suas interrogações sobre a linguagem poética e extravasar,
na escrita do cotidano, os sonhos de escritora de que se alimentava.
Nos sonhos de ser escritora que Carolina tem está manifesto o
desejo de ser reconhecida não como escritora do diário da favela,
mas como poeta e como escritora de textos ficcionais. Na leitura dos
manuscritos, vamos compondo uma outra imagem de Carolina, a
que ela quer que se conheça, a que é vencida pelo peso daquilo que
ela denomina “pensamento poético”. O que Carolina compreende
por poético é uma exigência que preexiste à literatura como tal, mas
que ela busca conformar à retórica romântica e a uma linguagem
elevada que ela denomina “português clássico”. À valorização dessa
“estética de salão”, contrapõe-se a “estética do lixo”, percebida pela
escritora como “pornografia” no seu diário sobre a favela, que ela não
compreendia como matéria digna de ser apreciada como manifestação
de prazer estético.
Provavelmente, chegamos a concluir, seria essa a razão
para que a escritora confessasse uma amarga frustração, em vez de
comemorar a repercussão crescente de seu primeiro livro:

“Triste glória que não me deixa ter vontade própria.


Quero ser eu. Fizeram-me desviar de tudo que
pretendia quando morava na favela e ansiava deixar
o barraco. O que sou agora? Um boneco explorado
e me recuso a isso”.

É possível entender esse desabafo de Carolina como a


manifestação de uma tomada de consciência de que seu relato sobre

Da reportagem de Ignacio de Loyola (“Estou cansada de tudo”, no jornal Última
Hora, de 20 de março de 1961, p.8), citada por LEVINE & MEIHY em Cinderela
negra, p.27, 51.

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A VOZ DE CAROLINA DE JESUS, NO QUARTO DE DESPEJO E NA ALVENARIA

a favela chegara à glória porque, direcionado ideologicamente e


amparado pelos recursos editoriais e publicitários, transformara-se
em instrumento de denúncia coletiva de uma classe de oprimidos,
em detrimento de tudo o que sonhara para si como artista, poeta
e ficcionista. Isso explicaria o seu apelo pungente para ser ouvida
em sua individualidade: “Oh, meu Deus! Preciso de voz!”, um apelo
que encontra eco, hoje, no reconhecimento de uma voz ouvida por
meio de textos em que a escritora, ao buscar orientar-se em meio a
dificuldades de toda ordem, afirma-se como um sujeito. E é nesta
poética singular que a encontramos, e, nela, a poética do eu, com toda
a força dramática que comporta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DALCASTAGNÉ, Regina. Uma voz ao sol: representação e legitimidade


na narrativa contemporânea. In: Estudos de literatura brasileira
contemporânea. Brasília, n.20, p. 33-87, jul./ago. 2002.
DIDIER, Béatrice. Le journal intime. Paris: PUF, 1976.
GREIMAS, A. J. Reflexões sobre os modelos atuacionais. In: Semântica
estrutural: pesquisa e método. Trad. Haquira Osakabe e Izidoro
Blikstein. São Paulo: Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo,
1976, p.225-250.
JESUS, Carolina M. de. Quarto de despejo. São Paulo: Francisco Alves,
1960.
_____. Casa de alvenaria. São Paulo: Francisco Alves, 1961.
_____. Meu estranho diário. São Paulo: Xamã, 1996. (Organizado por
José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine).
LEVINE, Robert M.; MEIHY, José Carlos S.B. Cinderela negra: a saga
de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.

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AS VOZES DO SILENCIADO

MAGNABOSCO, Madalena M. Reconstruindo imaginários femininos


através dos testemunhos de Carolina Maria de Jesus. Tese de doutorado.
Belo Horizonte: UFMG, 2002.
PERPÉTUA, Elzira D. Traços de Carolina de Jesus: gênese, tradução
e recepção de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Tese de
doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
SOUSA, Germana H. P. de. Carolina Maria de Jesus: o estranho diário
da escritora vira-lata. Tese de doutorado. Universidade de Brasília -
UnB, 2004.

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Gênero: essência, aparência,
transferência, persistência
ou violência?

Hilan Bensusan
Ondina Pena Pereira

Gênero é uma destas categorias que invadem nossa forma de


pensar os outros e a forma de elaborar a nossa identidade. A pergunta
pelo que é masculino e o que é feminino é uma pergunta pelo lastro
desta categoria. De onde vem esta categoria? Tratar-se-ia de uma
essência da natureza humana que, por sorte, descobrimos já desde os
primórdios do patriarcado ou de uma construção inevitável, dadas as
aparências das pessoas, um dado inescapável? Mas outras indagações
ainda surgem: seria alguma necessidade profunda inscrita na nossa
necessidade de pais e mães; um conjunto de performance que
reproduzimos e com isto reforçamos a cada ato de vestir, falar, desejar
e discriminar; ou, ainda, seria uma categoria de opressão sobre a qual
ergueu-se um sistema que põe barreiras às possibilidades de levar
algumas de nossas necessidades e de nossas habilidades a sério?
O essencialismo quanto ao gênero esteve latente na maioria das
formas de pensar as pessoas e seus direitos no ocidente. Estas formas de
pensar tentam apagar qualquer vestígio de uma produção do gênero,
exatamente para dar um ar de universalidade ou de naturalidade
à “categoria”. Em geral, ao feminino associa-se a passividade, a
domesticidade, a incapacidade de ação, uma mentalidade escrava
de uma anatomia onde falta alguma coisa. Assim é, por exemplo, a
psicanálise, que constrói o feminino enquanto concepção negativa,
dentro da estrutura de uma razão sexual que é masculina, segundo

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AS VOZES DO SILENCIADO

o próprio Freud (1905 in IMAGO, 1996), ao dizer que só há uma


sexualidade, só há uma libido, a masculina:

A rigor, se soubéssemos dar aos conceitos de


“masculino” e “feminino” um conteúdo mais
preciso, seria possível defender a alegação de que
a libido é, regular e normativamente, de natureza
masculina, quer ocorra no homem ou na mulher, e
abstraindo seu objeto, seja este homem ou mulher
(FREUD, 1905 in IMAGO, 1996, p. 207).

Vozes masculinas sobre a mulher e o feminino

Hegel (1807, in MONTAIGNE, 1939), ao se dedicar à discussão


da ordem ética, examina a relação homem/mulher no Estado. Nessa
investigação, ele postula a divisão do que chama substância ética em
si mesma, que se manifesta tanto como lei humana (elemento de
universalidade) quanto como lei divina (elemento de singularidade).
A primeira refere-se às leis explícitas da cidade como expressão da
vontade comum dos cidadãos; a segunda, à lei da família, que não se
expõe à luz do dia. O autor sugere, então, que por meio da família
o homem se eleva à lei humana, que é positiva, enquanto a mulher
conserva uma lei divina, sem positividade e sem escritura, sem
referência à obra humana, portanto, inquestionável. Sendo dialético,
entretanto, Hegel expõe a duplicidade da substância ética enquanto
conflito entre a lei humana e a lei divina. Nesse conflito, há, de um lado,
a pressão pela individualização em famílias, que está sob a direção do


Consultar, também, Thomas Laqueur, Making Sex: Body and Gender from the Greeks
to Freud. Damares de Castro (2005), in: Arqueologia do Feminino em Freud (Tese de
Doutorado – UnB) investiga de que maneira a psicanálise atualiza o modelo postu-
lado por Aristóteles no qual a mulher e o corpo feminino são pensados a partir da
inversão do modelo masculino. Aristóteles considera que a mulher é um homem
imperfeito. Castro mostra como Freud ainda é tributário desta idéia.

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Gênero: essência, aparência, transferência, persistência ou violência?

princípio de singularidade, que é o mesmo da feminilidade. De outro,


a universalização na Comunidade. Para Hegel, só aparentemente há
uma vitória dessa última sobre o princípio de feminilidade, pois, ao
entrar em ação,

(...) Esta feminilidade – a eterna ironia da


comunidade – altera pela intriga o objetivo universal
do governo em objetivo privado, transforma sua
atividade universal em uma obra de tal indivíduo
determinado, e perverte a propriedade universal do
Estado em posse e adorno da família” (HEGEL, op.
cit., p. 41-42).

Segundo essa teoria, cabe ao feminino o papel de individualizar,
de privatizar, portanto, de tornar irrisório o espaço público. Assim,
não somente o espaço privado, da família, opõe-se ao espaço público,
conseqüentemente, à jurisdição da lei, como também há uma intriga
do feminino que altera a universalidade da lei, transformando-a em
obra de certo interesse privado. Trata-se, então, de uma suposição
que nega os elementos humanos na mulher, o que já demonstra a
posição do autor: imerso em uma estrutura social patriarcal, vê as
relações de gênero por este filtro, sem condições de estabelecer um
distanciamento em relação aos códigos culturais. Assim, segundo os
códigos patriarcais, há algo de destruidor no feminino, algo que o
infantiliza e o coloca aquém de um suposto devir emancipado do
masculino.
Outros importantes nomes na filosofia ocidental comparecem
para reforçar as restrições ao feminino e à mulher. Ao definir as
características de uma mulher para o seu Emílio, Rousseau (1968)
procura mostrar as diferenças e semelhanças entre homens e mulheres,
atribuindo as semelhanças à marca da espécie; e as diferenças, à do


Ver Collins, et al. 2000.

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AS VOZES DO SILENCIADO

sexo. Homens e mulheres são, pois, diferentes e cada um deles deve


ser perfeito “atendendo aos fins da natureza, segundo sua destinação
particular” (ROUSSEAU, 1968, p. 424). É interessante observar
o que essa suposta natureza destina a um e a outro: “um deve ser
ativo e forte, o outro passivo e fraco: é necessário que um queira e
possa, basta que o outro resista pouco”. “Estabelecido este princípio,
segue-se que a mulher é feita especialmente para agradar ao homem”
(ROUSSEAU, op. cit., p. 424). E para criar um ser cujo destino é
“agradar ao homem”, a “natureza” não poupará esforços para fazer da
mulher o sexo responsável pelo cuidado e educação dos filhos. Se assim
é, conclui o autor, quando a mulher se queixa da desigualdade entre os
sexos, ela está sem razão, pois “essa desigualdade não é uma instituição
humana, ou, pelo menos, obra do preconceito, e sim da razão: cabe a
quem a natureza encarregou do cuidado dos filhos a responsabilidade
disso perante o outro” (ROUSSEAU, op. cit., p. 428).
O respeito a tal princípio desenha o quadro prescritivo
do comportamento das mulheres. Não podem ser infiéis, pois isso
acarretaria a dissolução da família e o rompimento dos laços com a
natureza. Além disso, é necessário que pareçam fiéis, o que coloca a
aparência entre seus deveres: devem ter o “cuidado mais escrupuloso
de sua conduta, de suas maneiras e de sua atitude”, conforme cita
o autor às páginas 428 a 429, com todas as conseqüências que essa
obrigação acarreta para a forma de sua educação. Segundo ele, a mulher
deve se restringir às tarefas do seu sexo e permanecer em “profunda
ignorância quanto ao resto” (ROUSSEAU, op. cit., p. 432).
O mais impressionante no texto de Rousseau é que todas as
características das mulheres, convenientes à ordem patriarcal, tais
como docilidade, ternura, gosto pelo trabalho do lar, entre outros,
vão sendo atribuídas à natureza ou a uma racionalidade naturalizada,
que neutraliza qualquer suspeita quanto ao seu pertencimento a uma
dada ordem discursiva, organizadora não só das relações de gênero,
mas da própria idéia de natureza.

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Gênero: essência, aparência, transferência, persistência ou violência?

Caem nessa armadilha os autores que suspeitam da existência


dessa ordem racional universal. Tal é, por exemplo, Schopenhauer
(1987) que, muito após Rousseau, no seu Ensaio sobre as mulheres,
faz a seu modo repercutir toda a ideologia naturalista, replicando
os códigos culturais patriarcais, aqui fortalecidos com uma explícita
misoginia. Assim, a concepção de uma minoridade da mulher é agora
sustentada por seu pendor ao sofrimento e não à ação. Por isso, ela
tem que padecer das dores do parto, dos cuidados com a criança,
da obediência ao homem. Além disso, “o que torna as mulheres
particularmente aptas a cuidar, a educar durante a primeira infância,
é que elas permanecem elas mesmas pueris, fúteis e limitadas; elas
permanecem toda sua vida adulta uma espécie de intermediário entre
a criança e o homem” (SCHOPENHAUER, 1987, p. 20). Por isso,
são intelectualmente míopes, injustas e têm um “invencível pendor
à mentira” (SCHOPENHAUER, op. cit., p. 24), sendo a dissimulação
“inata entre elas, tanto entre as mais finas, como entre as mais vulgares”
(SCHOPENHAUER, op. cit., p.25).
Semelhantes posições podem ser encontradas em Nietzsche
(2001, p. 239), para quem as lutas democráticas modernas, ao
concederem o respeito do homem à mulher, fazem-na perder o pudor
e desaprender o temor pelo homem. Conseqüência grave: “a mulher
que ‘desaprende o temor’ abandona seus instintos mais femininos”.
Em outras palavras, a emancipação da mulher, isto é, o passo a partir
do qual esta adquire direitos de participação no mundo público,
libertando-se, portanto, da sua reclusão ao mundo privado e, neste, da
submissão ao poder masculino, significa “progressivo enfraquecimento
e embotamento dos instintos mais femininos” (Nietzsche, op. cit.,
p. 239). Tais instintos femininos, expressão exaustivamente repetida
no texto do autor em questão, tornam-na irreversivelmente presa à “sua
primeira e última ocupação, que é gerar filhos robustos” e preservar sua
“autêntica astuciosa agilidade ferina”, sua “ineducabilidade e selvageria
interior” (Nietzsche, op. cit., p. 240), enfim, todas as características

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AS VOZES DO SILENCIADO

que asseguram a constituição de um ser inapropriado para a vida pública,


pois não se interessa pela verdade e tem na mentira sua grande arte
(Nietzsche, op. cit., p. 140).
Levando às últimas conseqüências esse processo de
naturalização dos códigos socioculturais nas relações de gênero,
Kierkegaard (1979), no seu Diário de um Sedutor, fala das relações
de gênero no plano do amor. Nessa obra, onde ele desenvolve seu
argumento da existência estética, o autor associa a mulher à aparência,
tal qual o é a natureza: “A mulher é pois aparência (...) Aliás, partilham
este destino com toda a natureza e, em resumo, com tudo o que é
feminino. Toda a natureza não passa pois de aparência (...) para o
espírito” (KIERKEGAARD, op. cit., p. 94).
Vê-se, então, neste texto, uma variante da eterna ironia
da comunidade, sugerida por Hegel, à qual nos referimos acima.
Lá, o feminino contraria irônica e vingativamente o objetivo da
universalização que o exclui. Aqui, é o sedutor que se volta contra a
lei (universal) que determina à mulher, encarnada no personagem de
Cordélia, a potência natural da sedução, potência que constitui um
desafio ao sedutor de Kierkegaard, cuja estratégia será a de criar uma
potência artificial, com a qual exterminará a potência de Cordélia.
Este sedutor trabalhará, portanto, a partir do mundo do artifício,
contra o que dita a natureza.
Ao serem pensadas no plano das relações sociais, públicas,
as mulheres são excluídas, confinadas ao mundo privado, porque são
incapazes, por natureza, essencialmente, de fazer uso de recursos
próprios ao humano como a inteligência e a razão. Já no plano das
relações pessoais, amorosas, são pensadas como incapazes de amar,
também essencialmente, por natureza, já que são potencialmente
astuciosas e sedutoras, características diabólicas que devem ser
exorcizadas pelos homens. Evidentemente, estas características
naturais se expandem para a percepção que os homens têm das
mulheres em sua vida privada. A imagem das mulheres na cabeça

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Gênero: essência, aparência, transferência, persistência ou violência?

dos homens parece ser crucial para entendermos que coisa pode ser
a nossa categorização de gênero – inclusive o que concebemos como
sendo desvios dos papéis de gênero. Aprendemos a ver os homens
como homens, as mulheres como mulheres. Eis o “esparadrapo na
boca” que a noção de gênero promove: o silêncio, mesmo nas nossas
capacidades de enxergar para além das expectativas de gênero.

Os feminismos e a separação das esferas pública e privada

Os feminismos problematizaram a separação entre a vida


pessoal e as esferas públicas. As mulheres são tratadas privadamente de
acordo com a imagem que elas têm na vida pública e, relevantemente,
na vida ficcional pública (nos filmes, na televisão, nos livros). As
construções de gênero são constantemente renegociadas publicamente
com conseqüências pessoais imediatas (pensem em como as mulheres
puderam encontrar formas de se empoderar pessoalmente em suas
relações com os homens a partir do episódio – público – de Lorena
Bobitt). As relações de poder possuem, todas elas, uma vida pessoal.
A tradição de ocultar a vida privada permitiu que coexistissem duas
formas de governo diferentes e incompatíveis, como diagnostica
Geneviéve Fraise (2000). Fica parecendo que, ao tornar a vida
pessoal incomensurável com a vida pública, jogamos um véu sobre
a pessoalidade das relações de poder e a substituímos por uma
distinção entre dois gêneros: importa apenas quem é homem e quem
é mulher. A negociação em torno do poder começa a partir destas
identidades. O essencialismo, portanto, parece uma base ideológica
do patriarcado e de sua concepção do que seja secreto, doméstico e
restrito em oposição ao que é público.
Os feminismos procuram a politização do debate acerca do
patriarcado; assim, insiste-se em que a esfera privada seja política.
Uma vez que o patriarcado é posto a nu, parece que devemos pôr
em questão as suposições de essencialismo. Mas a questão não é

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AS VOZES DO SILENCIADO

tão simples. De fato, grande parte do pensamento feminista, desde


Simone de Beauvoir, rejeita suposições claramente essencialistas.
Não se trata de promover uma inversão igualmente opressiva,
como descreve Glória Steinem em suas inversões (1983; 1994). O
pensamento sobre o feminino, no entanto, pode ser vítima de uma
suposição essencialista quando invoca a solidariedade feminina.
Uma solidariedade assim, baseada em uma identidade, pode se
tornar tão cega às diferenças quanto o discurso humanista patriarcal
da solidariedade entre as pessoas onde estas eram figuradas como
homens (e, freqüentemente, mas não sempre, brancos, europeus,
heterossexuais). A solidariedade feminina assumiu o risco de ter uma
cara – uma cara branca, de classe média, ocidental – e, muitas vezes,
teve esta cara. Parece que as armadilhas do essencialismo são por
vezes armadilhas bem-disfarçadas. No final dos anos 70, uma onda
de críticas, sobretudo vindas de mulheres negras, tais como as de
Angela Davis, Alice Walker, Bell Hooks e outras puseram em questão
a cara branca do feminismo americano da segunda onda. Temas como
aborto, estupro, o mal sem nome, de Friedan, eram vistos de uma
maneira muito diferente pelas mulheres negras que haviam passado
por esterilização forçada, por linchamentos de seus parceiros negros,


Outras, como Mary Daly e francesas como Cixous, não têm problemas em falar
do que é, por natureza, feminino. Há também um discurso segundo o qual as mu-
lheres são, em essência, superiores - o locus clássico disto é o Scum Manifesto, de
Valerie Solanas. Consultar também Ashley (19XX).

Também Baudrillard (1979) mostra que a inversão dos termos é inútil, pois deixa
intacta a estrutura; deixa intacta a abstração fálica, que é justamente o que deve
ser questionado: a abstração da economia política do sexo, fundada sobre um dos
termos como equivalente geral.

Pense no nacionalismo negro de Malcolm X (cf. DAVIS 1993).

Veja Angela Davis (1983). Davis analisa como os temas do controle da natalidade
e da esterilização forçada estão associados na cabeça das mulheres negras. Esta
conexão não é evidente para os feminismos brancos. Ela conta o caso de Margaret
Sanger que começou uma cruzada pelo controle da natalidade e terminou defen-
dendo a esterilização guiada pela eugenia (1983: 212-214).

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Gênero: essência, aparência, transferência, persistência ou violência?

acusados de estuprar brancas que trabalhavam sempre para se


sustentar. Os feminismos pareciam simplesmente essencialistas
quando colocavam a solidariedade de gênero como programa político
central da luta contra o patriarcado. As reações se distinguem aqui:
Alice Walker prefere se denominar mulherista e não mais feminista.
Já Bell Hooks confia que os feminismos podem ser mais inclusivos.
Mas como pensar em solidariedade feminina sem essencialismo?
Há aqui uma encruzilhada. Podemos pensar que, lá no fundo,
existe uma essência em todas as mulheres. Carol Gilligan (1984), por
exemplo, em um famoso estudo determinou que muitos homens em
nossas sociedades pensam sobre questões éticas de um modo diferente
das mulheres - aqueles pensam em termos de princípios e estas em
termos de cuidado, de proteção. Gilligan então parece generalizar
noções de feminino e masculino como se elas fossem independentes
da situação de oprimidos e opressores. Àquele tempo, uma época
de reação à segunda onda feminista10 o trabalho de Gilligan foi
entendido como abrindo portas para o essencialismo, fornecendo,
portanto, elementos para os argumentos em defesa da naturalização
de estruturas patriarcais. A legitimidade do patriarcado não pode ser
defendida sem algum essencialismo. Uma defesa do essencialismo
pode ser apropriada para defender papéis patriarcais como naturais e
estabelecer limites para a exploração feminista (BENSUSAN, 2004).
Os feminismos podem, buscando uma sociedade em que as regras
não sejam cegas às estruturas de gênero, reforçar a imagem de que
homens e mulheres persistem diferentes e, portanto, são distintos. Na


Veja Ângela Davis (1983a) e sua crítica a estudos feministas sobre o estupro como
o de Susan Brownmiller (1983a:178-179).

As mulheres negras não se identificavam com nenhum capítulo da “Mística
Feminina”, de Friedan (1963).

Verificar a maneira como a solidariedade feminina emerge no seio da questão racial
no seu conto Advancing Luna – and Ida B. Wells (1985). Veja também Bensusan
(2005).
10
Veja Faludi (1991), traduzido em 2001 para o português.

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AS VOZES DO SILENCIADO

ânsia de instituir uma sociedade sem gênero, a solidariedade feminina


pode fazer persistir a divisão de gêneros, ainda que se desculpe falando
que reconhece os gêneros apenas instrumentalmente.
Uma alternativa para se opor ao essencialismo sobre o gênero
é tentar dissolver a categoria de gênero. As recomendações políticas
de Butler (1990) poderiam ser entendidas neste quadro: se não
falamos mais em gênero – nem mesmo como instrumento de luta
ou de promoção de solidariedade feminina – não mais fazemos a
performance associada a este grupo de identidade. O essencialismo
instrumental, além de mistificar a homogeneidade das mulheres que
são convocadas a praticar a sororidade (instrumental), pode ser um
“tiro pela culatra”. Uma proposta assim pode ser entendida como uma
tentativa de espelhar os meios nos fins almejados: uma política que
almeja uma sociedade sem nenhuma estrutura de supremacia centrada
no gênero das pessoas não pode se utilizar de um essencialismo como
uma escada a ser jogada fora depois que fins forem alcançados; deste
modo, não se alcança fim algum. Uma ação mais efetiva é a transgressão
das barreiras de gênero ou colocar dificuldades para que o gênero, pelo
menos localmente, possa facilmente persistir. A transgressão de gênero
é, ao mesmo tempo, uma celebração das diferenças e uma dissolução
dos padrões, por meio dos quais imputamos rapidamente gênero às
pessoas. Ao invés de invocar um bloco de pessoas que denuncia as
estruturas patriarcais e se apresenta como uma oposição a elas, mas
que foi forjado nestas mesmas estruturas, promover a vida que torna
mais invisível as distinções que o patriarcado necessita. A transgressão
é, assim, confundir os olhos que enxergam rosa e azul por toda parte
(e azul sempre mais forte que rosa). Transgredir é também fazer
misturar os espaços públicos e os espaços privados, é desrespeitar
estas distinções instituídas que sustentam as estruturas de gênero.
Trata-se de um projeto que se apóia na capacidade de
performances diferentes ao invés de se apoiar em grupos de oposição.
Projetos políticos que pretendem exorcizar sistematicamente qualquer

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Gênero: essência, aparência, transferência, persistência ou violência?

essencialismo podem parecer elusivos já que nossas práticas políticas


freqüentemente apelam para solidariedades compulsórias. Fazer uma
política da diferença é não se basear em grupos de identidade fixos
para orientar a ação: as mulheres todas têm raça, têm orientação
sexual, têm relações diferentes com seus corpos, têm classes
sociais, têm etnias. Nenhum grupo de identidade orienta toda ação
– todo grupo de identidade apresenta algum ponto cego. Mas sem
solidariedades compulsórias, pelo menos temporárias, parece que as
ações políticas não se vinculam mais a nenhuma narrativa orientadora
que traça um fio condutor – de um esquema geral de opressão, à
direção a um ideal futuro, utópico ou regulatório. Narrativas assim
parecem ser o que distingue uma transgressão que meramente
perturba e uma ação transformadora, isto é, parece que perdemos
a capacidade de distinguir o que seja perturbar de transformar. E
talvez seja mesmo este um primeiro passo em direção a uma política
da diferença: o incremento das perturbações. Sem nenhuma forma de
essencialismo de gênero orientando as ações, a resistência feminista
pode ser entendida como a ampliação dos espaços de liberdade, pode
ser a conquista de espaços para qualquer forma de desejo que não o
localmente sancionado pelas estruturas heteropatriarcais. Não se trata
talvez de ignorar o gênero como categoria, mas, antes, de não pautar
ações com base nele. Alguém poderia dizer que se abandonamos
todo o essencialismo, a solidariedade compulsória pautando nossas
ações, estaremos sem material para algumas estratégias políticas
tradicionais de resistência e que são, em diferentes medidas, eficazes.
Assim, poderemos ficar sem material para ações como a organização
de sindicatos, a convocação de boicotes, a promoção de ações
afirmativas. Deixar obscuras essas estratégias talvez seja o ponto cego
de abandonar a política das identidades gerais, inclusive qualquer
essencialismo, mesmo instrumental. Se for assim, fica parecendo que
categorias como gênero têm que ser deixadas pelo menos em um
canto da cabeça.

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AS VOZES DO SILENCIADO

A categoria de gênero, bem como as formas de essencialismo


associadas a ela promovem alguns silenciamentos sistemáticos. Há
uma hierarquia de gêneros tácita na orientação do comportamento das
pessoas: o heteropatriarcado é uma arquitetura de silenciamentos11.
A questão que sobressai é saber como combater uma arquitetura de
silenciamentos sem promover silenciamentos, sequer estratégicos,
instrumentais, operacionais ou temporários. Os feminismos – ao tentar
retirar o esparadrapo-na-boca de gênero – podem, eventualmente,
promover outros silenciamentos no processo, por dissolver
essencialismo com algum essencialismo. Uma política das diferenças
pode ser, talvez, uma política que se negue sistematicamente a aceitar
qualquer forma de silenciamento, por mais local que ele seja. Se ela
for possível, possível será uma política de vozes ouvidas.
Persistência ou violência? As transgressões de gênero e de
sexo tornam evidentes como estas categorias constroem a ordem,
mostrando também que confundi-la é promover reorganizações
das regras sociais de estabelecimento de identidades, pelo menos
localmente. O gênero – e o sexo a ele supostamente associado – está
presente na interpretação que tendemos a fazer da ação das pessoas.
Em certa medida, a pornografia – explícita ou insinuada – é também
a pedagogia da categoria de gênero. Os homens aprendem a detectar
mulheres e interpretam suas ações, orientados pela teoria da vida sexual
feminina que eles aprendem direta ou indiretamente na pornografia.
As práticas sexuais – e toda a carga de prestígio, poder e dominação
associadas a elas – estão presentes quando os homens detectam gênero
nas demais pessoas e utilizam esta categoria para interpretar crenças
e desejos. Este mecanismo torna possível, por exemplo, a atribuição
de culpa às vítimas em casos de estupro: quem se veste assim... quem
se comporta assim... Estas lições de interpretação do comportamento

11
Uma das formas de silenciamento centrais ao patriarcado é a distribuição de
vergonha. Consultar Bensusan (2004: 142-150) para algumas observações sobre
este processo.

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Gênero: essência, aparência, transferência, persistência ou violência?

humano, aprendida na pornografia, orientam a cabeça de homens e,


também muitas vezes, de mulheres. Além disso, a interpretação se
aplica por vezes a nós mesmos, pois aprendemos a nos compreender
utilizando estas lições para nos auto-atribuir crenças e desejos. Uma
auto-atribuição de desejos regidos pela narrativa pornográfica silencia
e torna invisível desejos diferentes. A norma pornográfica que rege a
categoria de gênero nos ensina o que é desejável e a fazer hipóteses
de interpretação acerca do objeto do desejo das pessoas – inclusive
acerca do nosso próprio desejo. A categorização é fundamental para
a nossa noção normatizada de prática e desejo sexual: a pornografia,
para ensinar e para excitar, precisa estar baseada em alguma categoria
de identidade; talvez ela precise de algum essencialismo uma vez
que sem qualquer essencialismo talvez não possamos fazer nenhuma
generalização acerca de qualquer desejo. Se os desejos são ensinados,
eles se tornam gerais: são normatizados. O essencialismo, assim,
apresenta-se como que ensinado pela pornografia. Sem ela, talvez a
categoria de gênero esvaecesse.
Violência? Talvez devêssemos falar de generalização das
pessoas, em vez de falar de gênero; assim, os homens seriam, em
diferentes medidas e em diferentes formas, masculinizados12. Bastaria
que um gênero fosse implementado para que a categoria passasse a
existir, e ela se fixaria quando associada a critérios para a determinação
dos sexos que são aprendidos nos primeiros anos e reforçados
constantemente. Joss Moody, personagem de Trumpet (KAY, 1998),
corre o risco de ter toda a sua vida reinterpretada, apenas porque em
uma autópsia descobriram seus órgãos genitais. Há o risco de que toda
a verdade dependa de um critério de determinação dos sexos e ele
fique desmascarado como uma pessoa que ousou se autogeneralizar
secretamente, e esta é uma mentira que afetaria cada um dos outros
eventos de sua vida. E ainda há o perigo de o essencialismo de gênero
obrigar que se reinterprete toda a vida e toda a obra de Joss. Jackie Kay,

12
Consultar, por exemplo, Vaugham (1997).

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AS VOZES DO SILENCIADO

por meio do filho Coleman, filho de Joss, consegue contornar estes


perigos. Joss, a pessoa, fica preservada como quis que o vissem. Talvez
este final de romance seja uma receita para exorcizar o essencialismo
de gênero.

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Paris, Galilée, 1979.
BENSUSAN, Hilan. Observações sobre a libido collonizada. Revista de
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BUTLER, Judith. Gender troubles. NY, Routledge, 1990.
CONTANZA, Robert et al. The value of the world’s ecosystem services
and natural capital, in: Nature 387, p. 253-260, 1997.
FREUD, Sigmund (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.
In: Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro, Imago, v. VII, 1996.
GILLIGAN, Carol. In Different voice. Cambridge, Harvard University
Press, 1984.
HEGEL, Georg. (1807) La phénoménologie de l’esprit. Trad. Francesa de
Jean Hyppolite. Paris, Editions Montaigne, tomo II, 1939.
KIERKEGAARD, S. Diário de um sedutor. In: Kierkegaard. São Paulo:
Abril Cultural (Coleção Os pensadores), 1979.
LACAN, Jacques. Mais, ainda. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.
LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco.
Petrópolis: Vozes, 1982.

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Gênero: essência, aparência, transferência, persistência ou violência?

NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do


futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou da educação. São Paulo: Difusão
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STEINEM, Glória. Outrageous acts and everyday rebellions. NY, Plume,
1983.
_____. Moving beyond words. Londres, Bloomsbury, 1994.
SCHOPENHAUER, A. Essai sur les femmes. Paris: Actes Sud, 1987.
VAUGHAM, Gen. For-giving. Austin, TX, Gift-Giving Foudation,
1997.

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DE BOCA FECHADA: UM ESTUDO
ETNOGRÁFICO SOBRE O SIGNIFICADO DO
SILÊNCIO DOS ALUNOS EM SALA DE AULA

Ivone Laurentino dos Santos


Ondina Pena Pereira

Introdução

Os problemas da indisciplina e da dificuldade de


aprendizagem vividos por alunos do ensino básico e fundamental
têm sido em geral tratados por pedagogos e psicólogos (DI SANTO,
2002; VASCONCELOS, 1994; WEISS, 2002) como comportamentos
inadequados e desviantes. Conforme esses estudiosos, tudo se deve
à existência de dificuldades estruturais, tais como falta de uma
base familiar sólida e/ou condições econômicas precárias, assim
como dificuldades psicológicas múltiplas, relacionadas ao contexto
socioeconômico e familiar.
Pretende-se, aqui, sem desconsiderar tais questões estruturais,
enfocar o fenômeno, começando pelo ponto de vista de uma vivência
subjetiva pelos seus atores, considerando-se que, em uma revisão da
literatura sobre o tema, constatou-se a inexistência de estudos que, ao
dar voz aos alunos, procurem captar o sentido que estes atribuem aos
seus comportamentos nas experiências educativas.
Assim, com o intuito de levar em consideração as percepções
dos alunos sobre as situações que vivenciam na escola, realizaram-se
em escola pública do Distrito Federal uma série de observações em

109

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AS VOZES DO SILENCIADO

sala de aula, privilegiando aquelas turmas definidas institucionalmente


como formadas pelos chamados alunos-problema, assim como
entrevistas com alguns alunos. Nessas observações e entrevistas, entre
as situações consideradas problemáticas pela instituição escolar, no
que concerne ao comportamento dos alunos, algumas se apresentaram
como resistência destes à submissão ao objetivo pedagógico da escola,
com o qual demonstravam não concordar. No entanto, saltou aos
olhos uma situação que, mais do que simplesmente resistência ao
objetivo pedagógico, mostrou-se capaz de colocá-lo em xeque, isto é,
de anulá-lo enquanto projeto. Trata-se do silêncio dos alunos frente
às demandas do professor/instituição. É especialmente sobre essas
situações de silêncio que se tratará aqui.

Descrição de algumas situações

Optou-se por observar, na escola em questão, a turma


apontada pelo Conselho de Classe como a mais indisciplinada. Nessa
turma, registraram-se várias cenas cujo significado foi apreendido para
além das aparências, e, estas, conforme teorias desenvolvidas pela
instituição, reduziam-se a comportamentos e a reações dos alunos aos
resultados das avaliações. Para ver além das aparências, foi necessário
um olhar atento aos detalhes, aos gestos e aos códigos estabelecidos
em sala. Com esse olhar, a observação mais evidente foi a de que, ao
serem abordados pelos professores, esses alunos pareciam já conhecer
as suas intenções, reveladas pela disposição de manter a ordem em
sala de aula.
Tratava-se de uma turma da qual os professores muito se
queixavam, por se sentirem impotentes diante do esgotamento dos
recursos pedagógicos dos quais lançar mão. Tal situação se revelou
com bastante clareza em um certo dia, quando um professor, diante da
atitude irrequieta dos alunos, perdeu a paciência, dizendo não suportar
tanta indisciplina e até disposto a estudar uma forma de colocar os

110

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DE BOCA FECHADA: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O SIGNIFICADO
DO SILÊNCIO DOS ALUNOS EM SALA DE AULA

alunos nos seus devidos lugares. Os alunos reagiram com silêncio.


O professor, visivelmente decepcionado, continuou a falar e a incitar
os alunos a qualquer resposta. Comunicou, em seguida, o desejo da
direção de diluir a turma, querendo que eles se manifestassem quanto
à questão. A situação persistiria da mesma forma? Nesse momento,
alguns alunos sinalizaram com a cabeça concordando com a fala do
professor; até mesmo os autoproclamados alunos do fundão – os
mais distantes, mais indiferentes, mais resistentes – pareciam engajar-
se na sustentação da posição do professor, de que, a permanecer
daquela forma, a turma desapareceria enquanto tal. Assim, ocorreu
uma espécie de pacto, no qual a manutenção da turma exigiria
necessariamente sua rendição à disciplina, ao comportamento e ao
engajamento na aprendizagem. Ao final da aula, os alunos saíram
calmamente.
Na aula seguinte, os alunos do fundão, conversando sobre
suas estratégias, comentavam quanto lhes seria inconveniente declarar
guerra aos professores, reconhecendo a importância de saber quando
recuar. Nesta aula, os alunos demonstravam docilidade e atenção à
fala do professor. Mesmo aqueles mais inquietos, quando o professor
os alcançava com o olhar, fingiam realizar a atividade, permanecendo
no mais absoluto silêncio. No entanto, quando o professor ficava de
costas, eles se comunicavam com gestos. A rapidez dos gestos não
permitiu decifrá-los, mas sustentavam a indicação de que seu silêncio
e docilidade, sinais de submissão e arrependimento, eram parte da
estratégia de exibição de um comportamento ideal, escapando, desse
modo, do olhar disciplinador do professor.
A rotina em sala de aula prosseguia. Os professores se
empenhavam em evitar acontecimentos que perturbassem a ordem
ou que atrapalhassem os seus planos e, para tanto, contavam com
os dispositivos tão bem descritos por Foucault, em Vigiar e punir

1
Alunos conhecidos como aqueles que sistematicamente optam por sentar-se em
carteiras posicionadas na parte de trás da sala de aula.

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AS VOZES DO SILENCIADO

(1987) e em Microfísica do poder (2001). De acordo com esses escritos,


permitia-se controlar os corpos dos alunos, fazendo-lhes obedecer e
sentir-se vigiados. Já os alunos pareciam conhecer os interesses do
poder disciplinar, ao qual, no entanto, procuravam resistir, embora
reconhecessem a dificuldade de fazê-lo e o preço que teriam de pagar,
caso não se submetessem.
Observando a turma, foi possível constatar, paralelamente
ao poder disciplinar, o desenvolvimento de formas de resistência a
esse poder – minúsculos contra-poderes que atuavam no sentido
de alterar a ordem estabelecida. Nessa alternância entre resistência
e conformação, tanto professores quanto alunos gastavam tempo e
energia na criação de estratégias de sobrevivência em sala de aula,
com a diferença de que, no caso dos alunos, tais estratégias não
tinham nenhuma legitimidade oficial, devido à hierarquia que os
subordinava.
Os professores dessa turma, de modo geral, tendiam a atribuir
aos alunos a responsabilidade pela monotonia das aulas e pelas
dificuldades de aprendizagem. Era visível o mal-estar dos professores
com esse comportamento ao qual denominavam apatia ou indiferença
dos alunos em sala de aula. Tal situação os deixava desmotivados, pois,
independentemente da atividade proposta, os alunos, de modo geral,
não participavam com entusiasmo, nem mesmo quando a atividade
prometia valer nota, o que sinalizava já não haver saída, além de que o
problema tendia a ser visto como falha dos alunos. Entretanto, nunca
foram levantados como problemas o fato de os conteúdos não terem
nenhuma relação com as vivências dos alunos e nem a forma de se
ministrarem as aulas, na maioria das vezes.
Assim, em uma aula de matemática, a explicação do professor
sobre Progressão Aritmética e Progressão Geométrica foi recebida em
total silêncio. O professor indagou se alguém tinha alguma dúvida,
mas os alunos se entreolharam e permaneceram em silêncio.
Ironicamente, o professor disse: “Que bom que todo mundo

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DE BOCA FECHADA: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O SIGNIFICADO
DO SILÊNCIO DOS ALUNOS EM SALA DE AULA

entendeu! Você, que estava rabiscando! Aposto que também


entendeu tudo! (referindo-se a um aluno do fundão). Aluno
inteligente é assim, não precisa fazer esforço algum!” O aluno nada
respondeu. A esse tempo, o sinal tocou e o professor saiu, enquanto
o aluno, repreendido com aquela ironia, colocou um desenho sobre
a mesa. Tratava-se de uma caricatura do professor, que arrancou
risadas da turma: no desenho, vários números e letras saíam da boca
do professor, e ao redor do seu rosto havia várias interrogações.
Na semana seguinte, foi observada outra aula do mesmo
professor. Logo no início, ele perguntou quem realizara os exercícios
e ninguém respondeu. O professor insistiu, lembrando que a aula
daquele dia era só para correção. Os alunos nada disseram. O professor
mostrou-se irritado, prometendo registrar no diário e comunicar à
direção o ocorrido, saindo logo da sala. Por alguns minutos, os alunos
permaneceram em silêncio e, em seguida, começaram a conversar
sobre diversos assuntos. Assim, entre eles, a comunicação se estabelecia
de forma fluida, embora, no depoimento dos professores, essa turma
demonstrasse problemas de relacionamento. O que se observou, na
verdade, foi que essa falta de entrosamento era intencional, visto que
não havia interesse dos alunos em realizar as atividades propostas
pelo professor/instituição. Quando, no entanto, uma proposta partia
da própria turma, eles demonstravam um relacionamento amigável
e solidário: ao descobrirem que um dos alunos faltava à escola
porque não podia comprar passagem, arrecadaram dinheiro entre
eles, ajudando-o, até que pudesse resolver o problema. Porém, tal
acontecimento passou desapercebido aos professores, revelando certo
desinteresse pelas idéias que partiam dos próprios alunos, o que
acentuava os desencontros em sala de aula.
Pouco depois, retorna à sala o professor de matemática, e o
problema da não realização dos exercícios pelos alunos persistia. Então,
encaminhou três alunos à direção, dizendo aos que permaneciam que
lhes daria mais uma chance para fazerem os exercícios. Os alunos

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AS VOZES DO SILENCIADO

continuaram na mesma postura, não demonstrando nenhuma


empolgação com a fala do professor. O sinal bateu. Era o intervalo,
momento em que, conversando com os alunos, procurou-se escutar
que justificativas haveria para que não fizessem os exercícios. Somente
um aluno se interessou pela conversa, e disse: “O professor não
gosta da turma, mesmo quando a gente faz as tarefas, ele fica de
gozação com a nossa cara, mostra o que a gente errou para todo
mundo; desse jeito é melhor não fazer”. À pergunta pelas razões de
não tentar esclarecer tal situação com o professor, o aluno respondeu:
“Qualquer coisa que a gente diz ele usa contra a gente; melhor
deixá-lo falando sozinho; é menos arriscado e muito divertido”.
Nesse contexto, os problemas de aprendizagem na turma
observada tornavam-se mesmo insolúveis: se os alunos ficavam em
silêncio, eram apáticos; se falavam, viam as suas falas serem rebatidas
pejorativamente. Desse modo, tudo parecia conspirar para que sua
participação se reduzisse à presença física em sala de aula. Eles até
eram conclamados a falar, desde que as suas falas correspondessem
ao que os professores queriam ouvir. Os alunos, sabendo que se
não dissessem o que os professores esperavam certamente seriam
recriminados ou até mesmo ridicularizados, optavam pelo silêncio. Tal
silêncio, entretanto, era revelador, pois era constantemente atravessado
por atitudes de provocação ao professor: alguns mantinham um
meio sorriso nos lábios, outros rabiscavam, outros ficavam passando
bilhetinhos, outros ficavam brincando o jogo da velha.
Em uma certa aula de Geografia, o professor repreendeu
a turma, dizendo serem alienados e de pouca inteligência, pois,
segundo ele, “alunos de inteligência razoável jamais se comportariam
daquele modo”. Em seguida, pediu que abrissem o livro e copiassem
todo o capitulo catorze, quando ocorreu de um dos alunos perguntar
por que copiar se tudo já estava no livro. O professor simplesmente
respondeu que era para copiar e ponto final; além disso, ao terminar
a cópia, deveriam também copiar o exercício do quadro. Em seguida,

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DE BOCA FECHADA: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O SIGNIFICADO
DO SILÊNCIO DOS ALUNOS EM SALA DE AULA

o professor virou as costas para ali escrever. Um aluno, que não


foi possível identificar, soltou um assobio bem forte. O professor
voltou-se e perguntou pela autoria do assobio. Ninguém respondeu.
À ameaça de punição, caso não falassem, a turma permaneceu em
silêncio. Bateu o sinal. O professor, prometendo voltar ao assunto
depois, saiu da sala. Os alunos permaneceram em silêncio, enquanto
arrumavam o material para sair, deixando transparecer triunfo nas
suas expressões.
Com o projeto de levar os alunos ao comportamento exemplar,
instituição e professores pareciam ter o modelo de conduta ideal, para
a qual deveriam converter os discentes. Dessa forma, nem sua fala
nem seu silêncio eram devidamente escutados, já que poderiam vir
a contrariar o saber oficial. Embora pudesse haver alguma eficácia,
em termos gerais, na escola, tal estratégia não funcionava na turma
observada. Nesta, os alunos não chegavam nem mesmo perto do
comportamento esperado. Com isso, transparecia seu contra-poder:
ao escapar da vigilância, obrigavam os professores a se desdobrarem
na tentativa de renovar diariamente as estratégias.
Em um outro dia em sala de aula, os alunos chegaram agitados.
O professor recuou da porta, liberando a passagem e mandou que
todos se sentassem e se acalmassem imediatamente, porque “estava
com a paciência curta”, ocasião em que um aluno comentou: “esse
professor chega sempre muito estressado na aula.”
Durante quase trinta minutos, o professor expôs o conteúdo e,
em seguida, perguntou se alguém tinha dúvida. Ouviu-se, então, um
comentário lá do fundão: “Imagina se alguém é doido de perguntar! Ele
mesmo já disse que está com a paciência curta.” A turma permaneceu
em silêncio. O sinal bateu e os alunos saíram da sala.
Em geral, o que ficava claro entre os alunos era que a maioria
dos desentendimentos e conflitos tinham como origem a falta de
paciência dos professores, que não os viam como protagonistas na
busca do conhecimento.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Na aula seguinte, o professor pediu que os alunos pegassem


os cadernos para realizar alguma tarefa. Percebendo que os alunos do
fundão não haviam dado importância ao pedido feito, dirigiu-se a eles
para repreender aquele comportamento, cuja intenção era somente
a de provocá-lo. Um dos alunos respondeu: “Hoje, quem está sem
paciência sou eu!”, ao que o professor retrucou: “Então, você vai
ficar sem paciência lá na direção”, e o mandou sair da sala. O aluno
saiu. Em seguida, o professor mandou a turma organizar as carteiras
em fileiras, antes de explicar a atividade do dia, mas a turma não se
mexeu. De seu lado, o professor disse que só passaria a atividade
numa sala organizada. A turma, no entanto, permaneceu em silêncio,
e o professor pegou o material, saindo logo da sala. A isso, a turma
celebrou com palmas e gritos. O sinal bateu. Os alunos saíram. Mais
uma vez, sem o uso de palavras, os alunos fizeram chegar sua posição
ao professor, demonstrando discordar do tratamento dispensado ao
aluno encaminhado à direção.
Tratava-se de aluno, segundo depoimento dos colegas,
que expressava sua opinião quanto às aulas monótonas e pedia
alterações no planejamento das aulas. Tais demandas dificilmente
eram consideradas, com a justificativa de que os alunos não teriam
entendimento pedagógico. Pelo lado dos alunos, fica a pergunta sobre
que tipo de conhecimento é possível produzir em um espaço em que
se sente muito freqüentemente desrespeitado e desconsiderado como
sujeito, em um espaço que declaradamente não lhe pertence.
As queixas dos alunos, ainda que desconsideradas, circulavam
na escola: aulas expositivas monótonas e repetitivas, filmes repetidos,
exercícios de cópia de capítulos inteiros dos livros adotados,
transcrição de conteúdos dos livros no quadro, entre outros. A
essas observações, os professores respondiam que tais queixas eram
desculpas dos alunos para não realizarem as atividades. De qualquer
forma, esse embate diário denunciava, sobretudo, a precariedade das

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DE BOCA FECHADA: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O SIGNIFICADO
DO SILÊNCIO DOS ALUNOS EM SALA DE AULA

relações estabelecidas em sala de aula e o prejuízo que isso acarretava


ao processo de aprendizagem.
Assim, em uma outra aula, o professor chegou, cumprimentou
os alunos e, em seguida, encaminhou-se até o quadro para colocar
a matéria do dia. Pediu que os alunos copiassem um exercício do
quadro para verificar se haviam entendido o assunto. Em seguida,
alertou: aqueles que não estivessem com as atividades em dia
podiam sair da sala, pois desse modo não atrapalhariam aqueles que
queriam estudar. A turma ficou totalmente em silêncio por alguns
minutos. O professor pediu que aqueles que não tinham todas as
atividades do bimestre se identificassem. Todos ficaram em silêncio.
O professor pediu então que aqueles que tinham todas as atividades
levantassem o braço. Ninguém se mexeu. O professor perguntou o
que estava acontecendo. Ninguém respondeu. O professor retrucou
que, se a turma não colaborasse, todos perderiam pontos. Ninguém
se manifestou. O professor disse que a turma não perdia por esperar
e voltou a escrever no quadro. Os alunos da frente fizeram sinal de
vitória para os que estavam atrás.
Na aula seguinte, o professor não cumprimentou os alunos.
Apenas escreveu o exercício no quadro, sentou-se e começou a folhear
uma revista. Os alunos ficaram todo o tempo em silêncio, intrigados
com a postura do professor.
Tais cenas indicam a existência de um jogo de forças cujo
resultado é um quadro desfavorável ao ensino-aprendizagem, com
forte repercussão no rendimento dos alunos. Estes, ao desafiarem
a disciplina imposta, confrontavam a autoridade do professor, que
respondia com alguma atitude que pudesse reafirmar sua posição
na estrutura hierárquica. Em geral, tais respostas funcionavam como
estímulo a que os alunos repetissem suas ações contra-disciplinares,
já que só assim se tornavam visíveis ao professor.

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AS VOZES DO SILENCIADO

O significado do silêncio

O interesse em considerar aqui a fala dos alunos sustenta-se


na idéia de que fenômenos como indisciplina, apatia, repetência,
evasão, desinteresse, entre outros comportamentos, sob seu olhar,
podem significar outra coisa que a mera rebeldia ou alienação.
Foi fundamental, para alcançar esse olhar, observar o cotidiano
escolar, a relação entre alunos, professores e instituição, o poder
que atravessa tais relações, tanto no que diz respeito à imposição
institucional da disciplina, como às possibilidades de resistência
levadas a cabo pelos alunos.
Embora esses fenômenos, como indisciplina, desinteresse e
apatia, tenham sido já muitas vezes problematizados, há uma tendência
em julgá-los como problemas a serem corrigidos, antes mesmo de
serem compreendidos. A real compreensão desses fenômenos, no
entanto, exige o exercício de escuta dos sentidos constituídos pelos
alunos ao praticarem ações que não atendem à expectativa da escola.

Em Paulo Freire, temos um pensamento que valoriza tais
sentidos:

Se, na verdade, o sonho que nos anima é
democrático e solidário, não é falando aos outros,
de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos
os donos da verdade a ser transmitida aos demais,
que aprendemos a escutar, mas é escutando que
aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta
paciente e criticamente o outro, fala com ele,
mesmo que, em certas condições, precise falar a ele
(...). O educador que escuta aprende a difícil lição
de transformar o seu discurso, às vezes necessário
ao aluno, em uma fala com ele (1996, p.127-128).

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DE BOCA FECHADA: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O SIGNIFICADO
DO SILÊNCIO DOS ALUNOS EM SALA DE AULA

Nossa pretensão, portanto, ao observar a escola, foi a de


entender a forma pela qual os chamados alunos-problema percebem
a realidade em que vivem, e criam, a partir dessa percepção,
determinadas respostas que revelam toda uma rede de significados
que as envolve, tais como a resistência ao poder, a consciência de
serem parte de um projeto disciplinador.
A escuta da voz do aluno, entendido como sujeito da
aprendizagem, desconstrói sua posição de desprestígio absoluto,
colocando em evidência a forma como pensa e sente. Foi fundamental,
portanto, apostar na sua capacidade de expressar, por si mesmos, a
complexidade de suas ações e dos fenômenos que protagonizam,
assim como os efeitos destes nas diversas relações estabelecidas no
cenário escolar.
Paradoxalmente, o fenômeno mais ameaçador ao projeto
pedagógico da instituição foi exatamente o da irrupção do silêncio
em meio a práticas interativas que envolviam professores e alunos
em sala. A característica mais marcante desses alunos, tal como
relatada anteriormente, era a de que, mesmo quando eram solicitados
a participar, instados a responder perguntas ou a realizar atividades
escolares, persistiam no silêncio, aparentemente indiferentes aos
apelos dos professores.
A opção pelo silêncio em sala de aula incomodava fortemente
os discursos pedagógicos vigentes na escola, obviamente devido ao
valor concedido pelo processo educativo à palavra, o posicionamento
e a auto-afirmação por meio do verbo. Entretanto, as observações em
sala de aula indicaram que o silêncio pode ter significados outros que
o desinteresse, pode ser uma forma de expressão da recusa à situação
que se configura. Lido como um dos reflexos de uma tomada de
posição dos alunos, esse silêncio não se constituía como negatividade
e privação da palavra, mas como condição para participar da produção
de sentido ou como uma recusa a que se perpetuasse o sentido
hegemônico. Não se tratava de ausência de palavras, mas da escolha

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AS VOZES DO SILENCIADO

de uma forma de expressão capaz de instaurar uma ordem diferente


daquela que era proposta pela escola.
Nessa turma, o quadro da interação durante as aulas era
definido pela situação de ensino que envolvia professores e alunos em
uma relação assimétrica, orientada a uma finalidade preestabelecida.
A interação que se estabelecia entre professor e aluno tinha um caráter
complementar: o professor ocupava a posição dominante, e o aluno a
posição subalterna, as quais podem ser também expressas no par de
opostos saber/não saber e poder/não poder.
A posição dominante conferia ao professor a responsabilidade
de iniciar as diferentes etapas da aula, receber os alunos, dizer o que
seria feito, solicitar, perguntar, avaliar, repreender, etc. Por outro
lado, o silêncio, as posturas corporais encolhidas, os olhares muitas
vezes dirigidos para o chão indicavam uma aparente submissão dos
alunos à autoridade e à hierarquia, o que contrastava com sua atitude
quando estavam sozinhos e quando interagiam uns com os outros.
As brincadeiras, os intercâmbios verbais e disputas com os colegas
desmentiam a aparente indiferença e apatia e evidenciavam as mais
diversas estratégias de sobrevivência na sala de aula.
Nesse sentido, alguns alunos, mesmo quando se tratava de
expressar, por meio de formas não verbais, suas idéias, se recusavam
a fazê-lo. A recusa se apresentava como um dos significados mais
evidentes do silêncio da maioria dos alunos. Eles não falavam e não
faziam e, com isso, resistiam também à interpretação pedagógica. Isso
incomodava tanto, a ponto de os professores insistirem sempre nas
suas tentativas de engajá-los nos diálogos e nas atividades escolares.
Era como se, com essa atitude, os alunos devolvessem à ordem escolar
uma contra imagem de si mesma. Assim, os alunos tornavam-se
testemunhas mudas da impotência, da impossibilidade, do limite da
estrutura pedagógica.
Os professores esforçavam-se em convocar os alunos a falar,
utilizando para isso diversas estratégias, mas, na maioria das vezes o

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DE BOCA FECHADA: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O SIGNIFICADO
DO SILÊNCIO DOS ALUNOS EM SALA DE AULA

resultado da convocação era negativo. Quanto mais os alunos eram


chamados a falar, mais o silêncio se instalava. Por que as estratégias
dos professores não eram bem sucedidas? Talvez porque quando os
professores convocavam, não estavam chamando os alunos a ocupar
uma posição de fala ativa, mas simplesmente a se engajar nas atividades
escolares, tal como lhes cabe segundo as regras da disciplina, da
produção bem comportada, da obediência. As estratégias de alguns
professores (a insistência, a repetição, a reformulação), por outro lado,
pareciam reforçar, justamente, o que havia de mais rígido neste tipo de
interação: a assimetria, as relações de subordinação e de autoridade.
Nessa perspectiva, o silêncio pode ser considerado como parte
de uma estrutura comunicativa interacional que extrapola a presença
material dos sujeitos, transcende a idéia de encontro, bem como de
intercâmbio verbal. O silêncio, no caso em questão, desmascarava a
apregoada interação existente no processo de ensino-aprendizagem,
demonstrando que, se a mesma existia, não era nada consensual.
Além disso, levantava suspeita em relação aos sentidos, que pareciam
fixos e cristalizados, das vozes que falavam, principalmente das vozes
professorais.
É evidente que o silêncio faz parte de todo processo
comunicativo. Quando alguém fala, alguém se cala, alguma coisa
é silenciada. Isso quer dizer que onde há linguagem, há também
silêncio que não pode, portanto, ser considerado como ausência
de linguagem, visto que é parte constitutiva do processo de trocas.
Nessa perspectiva, o silêncio pode ser pensado como uma espécie
de oxigenação necessária a qualquer processo de significação, lugar
de recuo fundamental para que se possa significar, para que se possa
fazer realmente sentido.
O silêncio, portanto, pode ser compreendido como um tipo
particular de interação e como veículo de sentidos, visto que significa,
que é significado, que é interpretado. O silêncio não é ausência de
sentido. Há silêncios que falam e há até silêncios que são eloqüentes,
isto é, que dizem mais ou melhor do que palavras.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Na medida em que faz parte da construção do sentido (da


interação, da comunicação), o silêncio é também ato de linguagem, ato
da significação. No caso do silêncio presente na sala de aula observada,
não se tratava de um ato aleatório, mas de uma ação intencional,
proposital. Tratava-se de um silêncio da ordem da resistência, pois
os alunos pareciam decididos a não dirigir a palavra aos professores,
retirando dos mesmos o reconhecimento, base da estrutura de ensino-
aprendizagem.
Claro está que a aparente não-comunicação também fazia
parte da idéia de comunicação; a não-interação também fazia parte
da interação, assim como o silêncio fazia parte da linguagem. O fato
é que, nessa turma, o silêncio se configurava como uma das formas
de autodefesa que os alunos criavam para se proteger dos olhares de
indiferença e desprezo dos professores, que os viam, na maioria das
vezes, como fracos e incompetentes.
Era impressionante o silêncio da turma, principalmente em
momentos que requeriam participação oral. Conforme exemplos
dados acima, raramente os alunos se mostravam dispostos a ter uma
postura participativa e, quando opinavam sobre alguma questão
que surgia, não demonstravam entusiasmo e convicção, deixando
a impressão de que a imagem já formada sobre eles impediria uma
escuta interessada das suas idéias.
Nesse sentido, o silêncio era uma espécie de contra-poder
ou uma espécie de antídoto ao estabelecimento de padrões rígidos
e significados fixos. Fica claro, então, que não se trata simplesmente
de um comportamento apático e desinteressado, como gostavam de
interpretar os professores, mas como uma forma de expressão da sua
recusa ao sistema disciplinar, o que causava impacto sobre as boas
intenções das pedagogias vigentes.
Esse interesse pedagógico de envolver os alunos, de fazê-los
falar, apresentava-se, nessa turma, de modo muito peculiar. No
planejamento dos professores, com freqüência havia um momento

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DE BOCA FECHADA: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O SIGNIFICADO
DO SILÊNCIO DOS ALUNOS EM SALA DE AULA

destinado às correções das atividades que os alunos faziam durante


as aulas. Algumas atividades eram corrigidas, oralmente, ou então
reproduzidas no quadro para, posteriormente, serem corrigidas.
Entretanto, era raro que os professores solicitassem a participação
dos alunos durante a correção, muito menos os do grupo do fundão,
conhecidos pela posição mais radical de recusa à participação.
Os professores, por outro lado, justificavam tal atitude dizendo-
se cansados, visto que há muito insistiam para que os alunos
participassem, sem obter qualquer resultado.
Segundo os professores, o comportamento dos alunos flutuava
entre a passividade e a espontaneidade. Ultimamente, entretanto,
na escola pesquisada, a queixa mais freqüente se dirigia à apatia e
indiferença às suas propostas. Diante disso, o discurso professoral
demonstrava interesse pela participação dos alunos, pois, desse
modo, estes se tornariam mais visíveis e controláveis, facilitando aos
professores a percepção de suas intenções. Em contrapartida, os alunos
pareciam saber que uma possível exposição os deixaria muito mais
suscetíveis ao controle e, conseqüentemente, muito mais vulneráveis
às manobras institucionais.
Mais uma vez se confirma a dissociação entre silêncio e
passividade, compreendida como a não liberação de forças. Seria, ao
contrário, a própria força em ação, atual, única, intensa e, portanto,
decisiva em sala de aula. A força do silêncio discente funcionava
porque, a despeito do que pudessem dizer dela, neutralizava o poder
disciplinar, dificultando a aplicação de suas estratégias e, com isso,
tornando os alunos capazes de resistir às diversas formas de controle
presentes na escola, bem como à disseminação de qualquer sentido
totalizador que pretendesse absorvê-la. Compreende-se, assim, que,
paradoxalmente, por não terem nada a dizer, nada a declarar, os alunos
declaravam tudo: sua indisposição para se mostrarem, a opção por não
compactuarem, por se ausentarem, por não participarem de quaisquer
esquemas de disseminação de sentidos estabelecidos à sua revelia.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Da mesma forma que para Baudrillard (1994, p. 14), quando


as massas silenciam, estão apenas resistindo a qualquer imperativo
da comunicação dita racional, às tentativas de melhor informar,
próprias das instituições (já que, segundo o autor, a informação “seja
lá qual for seu conteúdo, político, pedagógico, cultural, seu propósito
sempre é filtrar sentido” e, portanto, tem um caráter eminentemente
moralizante), os alunos, com seu silêncio, apenas resistem ao modelo
pedagógico, também filtro de sentido, portanto, moralizante.
O paralelo com as massas é que com essa prática pedagógica
evidencia-se o interesse da escola em transformar os alunos todos
em bons alunos, segundo um modelo ideal; para isso, é necessário
informar segundo esse modelo, promover a socialização, segundo
esse modelo, colocar seu nível cultural no plano desse modelo e assim
por diante. Porém, a concretização de suas pretensões exige que se
conheçam os alunos minuciosamente, saber quanto estão informados,
socializados, domesticados, para extrair deles próprios a perpetuação
de sentidos. No entanto, ao perceberem a perspectiva simplificadora
que determina a hegemonia ideal do sentido, os alunos reagiam com
o seu silêncio, por meio do qual se recusavam a alimentar quaisquer
sentidos a eles apresentados.
Era muito evidente a criação de estratégias para dificultar as
ações docentes e, dessa forma, escapar, embora provisoriamente, da
posição subalterna. Com tais feitos, esses alunos eram considerados
maus alunos, pois não se enquadravam no contexto de sala de aula, ou
seja, não se deixavam capturar pelo projeto institucional, operando um
boicote ao contrato pedagógico e uma recusa à vinculação esperada.
Enfim, a atitude de silenciar dos alunos nos momentos em
que a expectativa dos professores era a de que eles falassem não pode
ser compreendida somente como mera apatia ou indiferença. Ao
contrário, na maioria dos casos, o silêncio atendia às necessidades
dos alunos de expressar, embora sem palavras, as suas insatisfações,
e, principalmente de sair da sua posição de objeto, de coisa.

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DE BOCA FECHADA: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O SIGNIFICADO
DO SILÊNCIO DOS ALUNOS EM SALA DE AULA

Assim, o que predominava na escola pesquisada era o


monólogo docente, cujo propósito, nitidamente moralizante, tinha
como estratégia básica a repetição à exaustão da necessidade de
preparar o jovem para o futuro, garantindo seu ingresso na sociedade.
Podia-se observar ali que pela via da pregação ou pela via da persuasão,
o que se parecia buscar era a ordenação das atitudes do aluno em um
sólido corpo disciplinado.
Essas condições geravam o impasse ao projeto pedagógico:
à imposição de uma forma de comportamento enquanto sistema de
exclusão da diferença, os alunos respondiam com comportamentos
inesperados de resistência, por meio dos quais acabavam controlando
a conduta docente. Simulando comportamentos desejáveis ou
apresentando comportamentos indesejáveis, os alunos inauguravam,
paradoxalmente, um movimento de normalização da conduta do
professor, por meio de um olhar avaliador sobre as atitudes dele.
O que é normalmente conhecido como comportamento
desviante, mostrou-se, no estudo em questão, como uma resposta
a um modelo de educação que ainda se serve de castigos, ameaças,
medos, coações, subserviências, para se manter intacto. Dessa forma,
suas ações podem ser entendidas como um manifesto contra uma
estrutura escolar que funciona independentemente das necessidades
dos principais sujeitos do processo educacional, os alunos,
permanecendo, com isso, inalterada por séculos. Para Paulo Freire,

(...) apesar do ensino bancário, o educando a


ele submetido não está fadado a fenecer; em que
pese o ensino bancário, que deforma a necessária
criatividade do educando e do educador, o educando
a ele sujeitado pode, não por causa do conteúdo
cujo conhecimento lhe foi transferido, mas por
causa do processo mesmo de aprender, dar, como
se diz na linguagem popular, a volta por cima e
superar o autoritarismo (...) (FREIRE, 1996, p.27).

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AS VOZES DO SILENCIADO

Ao ouvir os alunos e analisar suas argumentações e seus


comportamentos, pôde-se confirmar a suposição de que era possível
aos mesmos, embora subordinados, darem a volta por cima, desde
que preservassem a curiosidade, a capacidade de correr riscos e de
se aventurar na auto-imunização contra os poderes apassivadores da
educação. Com isso, a escola atual que se compara, lamentavelmente,
à caserna, cujo professor é um superior hierárquico, segundo uma
rígida estratificação dos postos institucionais, passou a não ser mais
aceita passivamente por todos os seus agentes. Alguns deles recusam
essa espécie de militarização difusa que define o cotidiano escolar e
suas relações constitutivas, confirmando, com isso, o pensamento de
Foucault (2001 p. 241), segundo o qual, “(...) a partir do momento
que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência.
Jamais somos aprisionados do poder: podemos sempre modificar sua
dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia
precisa.”
Assim, o caso particular analisado e as circunstâncias históricas
que o circundam, apontam para a compreensão do silêncio como uma
estratégia precisa em um momento devido, uma forma, dentre outras,
de resistência, as quais se articulam, na perspectiva de Foucault,
em rede, nas lutas pela autodeterminação, nas revoltas contra toda
forma de discriminação, exclusão e violência. No caso em questão,
a “troca impossível” entre docentes e discentes sinaliza o impacto do
ingresso de um novo sujeito educacional, com outros valores, hábitos
e demandas numa estrutura anacrônica e imatura para acolhê-lo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas. O fim do social


e o surgimento das massas. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Publicação
original em 1978).

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DE BOCA FECHADA: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O SIGNIFICADO
DO SILÊNCIO DOS ALUNOS EM SALA DE AULA

DI SANTO, Joana Maria Rodrigues. Disciplina na escola: tarefa e


construção desafiadoras. Monografia apresentada ao Lepsi – Universidade
de São Paulo. Trabalho do curso Infância, Psicanálise e Educação,
2002.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 24. ed.
Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987. (Publicação original
em 1975).
_____. Microfísica do poder. 16. ed. Trad. Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 2001. (Publicação original em 1979).
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
SANTOS, Ivone Laurentino dos. Indisciplina e resistência: uma
descrição fenomenológica. Dissertação de Mestrado. UCB, 2004.
SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) O sujeito da educação. Petrópolis:
Vozes, 1994.
VASCONCELOS, Celso dos Santos. Disciplina: construção da
disciplina consciente e interativa em sala de aula e na escola. São
Paulo: Libertad,1994.
WEISS, Maria Lúcia. Psicopedagogia clínica: uma visão diagnóstica dos
problemas de aprendizagem escolar. 9 ed.. Rio de Janeiro: DP & A
editora, 2002.

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DILEMAS CLASSIFICATÓRIOS: FRONTEIRAS
ENTRE A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E A
PSICOPATOLOGIA*

José Bizerril Neto

Tranqüilizar é a tarefa dos outros; a nossa é inquietar.


Geertz (2001, p 65)

Este fragmento de um célebre artigo de Geertz, escrito contra


as posições anti-relativistas, põe em destaque um papel que deu o
tom em momentos importantes da história da antropologia: a crítica
cultural. É deste lugar que farei as considerações a seguir. Embora
não seja um profissional da área de saúde, reflito sobre uma noção
central para o trabalho do psicólogo e do psiquiatra: o conceito
de normalidade. A partir de uma perspectiva multidisciplinar,
combinando antropologia, religião comparada, psicologia, psiquiatria
e filosofia, pretendo discutir exemplos etnográficos pertencentes
ao campo religioso para revisar conceitos utilizados em manuais
diagnósticos como o DSM-IV ou, de certo modo, o CID-10. Isso

*
Duas versões preliminares deste artigo foram apresentadas, respectivamente,
como a palestra Experiência Religiosa e Psicopatologia. In: Experiências religiosas:
normalidade? Patologia?, no I Congresso UniCeub de Ciências da Saúde. Brasília:
UniCeub. Out. 2002 e como Dilemas da classificação na prática do psicólogo:
psicodiagnóstico e cultura. Em: mesa-redonda Terapia comunitária compreensão e ação
comunitária no II Congresso Brasileiro de Terapia Comunitária. Brasília: MISMEC.
Abr./maio, 2004.

Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, produzido pela Associação
Norte-americana de Psiquiatria. Juntamente com a Classificação de Transtornos
Mentais e de Comportamento da CID-10, manual equivalente elaborado pela
Organização Mundial de Saúde (WHO), constituem os principais tratados de
referência para o diagnóstico de doenças mentais utilizados no Brasil.

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AS VOZES DO SILENCIADO

será feito com o intuito de sublinhar alguns dilemas constitutivos da


aplicação do conceito de normalidade, que envolvem as complicadas
relações entre contexto cultural, uso de classificações e significação da
experiência vivida.

Situando o debate

Conforme a descrição de Jackson e Fulford (FULFORD,


2003), em função da similaridade entre experiência espiritual e
psicose, o debate entre psicólogos e psiquiatras sobre o diagnóstico de
esquizofrenia tende a se polarizar. De um lado, estão aqueles autores que
recusam a justaposição entre experiência espiritual e psicose; de outro,
aqueles que as consideram como uma mesma coisa, alternativamente,
reduzindo todos os casos à psicopatologia ou à experiência espiritual,
sem separação. Uma terceira posição, representada pelos autores já
citados, considera a hipótese de que fenômenos psicóticos possam
acontecer em experiências não-patológicas, diferentemente de
sintomas psicóticos que caracterizariam uma patologia. Isso implica
uma revisão dos procedimentos diagnósticos e da prática clínica.
O critério central da distinção proposta pelos autores é o efeito das
experiências sobre seus protagonistas, que depende obrigatoriamente
de suas idéias e crenças, dito mais antropologicamente, de condições
culturais específicas.
Sem entrar propriamente no mérito desta proposta, a
intervenção da antropologia consistiria em enfatizar as implicações
da dimensão cultural nas experiências vividas e em sua elaboração
teórica, em um referencial psicopatológico ou espiritual. Enfatizarei
sobretudo a crítica à redução de todos os fenômenos ao campo
da doença mental. Neste sentido focalizarei o problema de uma
perspectiva explicitamente culturalista, sem entrar na discussão da
separação objetiva entre psicopatologia e experiência religiosa. Mais
especificamente, digamos que as classificações psicopatológicas são

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DILEMAS CLASSIFICATÓRIOS: FRONTEIRAS ENTRE A EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA E A PSICOPATOLOGIA

resultado de um ponto de vista cultural específico: a ciência médica


ocidental. A afirmação de que poderia haver classificações ateóricas
tem como subtexto uma perspectiva positivista um tanto ingênua
(FULFORD, 2002), que pressupõe que as categorias apresentadas
em manuais de diagnóstico sejam supra-históricas, universais e
absolutamente objetivas, um reflexo fiel da natureza. Contudo, se
Lévi-Strauss (1962/1997) estiver correto, o ordenamento da realidade,
com uma finalidade simultaneamente estética e intelectual é uma
necessidade humana universal. Seus resultados dependem do estado
das relações entre natureza e cultura em um dado grupo humano
e em um momento preciso de sua história. Geertz (1989) faz uma
afirmação bastante semelhante: o ser humano depende de uma sistema
simbólico de referência para que seu cérebro - mais precisamente o
neocórtex, relacionado às funções propriamente humanas da cognição
e da linguagem - funcione adequadamente.
Partindo das considerações acima, não há, portanto,
classificação sem teoria, sem um critério ordenador das classes e de
suas inter-relações. Aliás, muitos dos parâmetros de classificação
psicopatológica, além de arbitrários, são claramente valorativos,
conforme análise de Fulford (2002); e mencionados também em
Jackson e Fulford, em Fulford (2003). Consideremos por exemplo,
a idéia de “inadequação”, ou de incapacidade do paciente em
manter uma conduta social “apropriada”, constante no eixo IV
da avaliação multiaxial do DSM, em várias das categorias dos
problemas psicossociais e ambientais. Alterações comportamentais
significativas, com implicações negativas na vida social, também
são assinaladas como sintomáticas, nas diretrizes diagnósticas do
CID-10. Fica claro que a adesão às convenções sociais é um índice
importante de normalidade, o que remete diretamente à interpretação
da psiquiatria (FOUCAULT, 1987, 1994/1999) - e em alguma medida
também da psicologia, como um dispositivo disciplinar, um meio
de controle social.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Um elemento complicador para o debate é o fato de que, no


caso brasileiro, estamos diante de uma sociedade multicultural, isto é,
atravessada por diferenças étnicas, de classe, gênero, de sub-tradições
regionais e, em particular, no caso que pretendo discutir, religiosas.
Essa diversidade coloca em jogo problemas de tradução cultural,
na própria lógica das relações sociais entre diferentes. Refiro-me
especificamente a diferentes modelos do que seria um ser humano.
Neste contexto, vale mencionar Duarte (1998, p. 23-24), que se
refere às sociedades periféricas do Ocidente, como é o caso do Brasil,
caracterizando-as por “uma baixa ou heterogênea institucionalização
da ideologia individualista”. Diga-se, de passagem, é a concepção de
pessoa que subjaz à maioria das teorias psiquiátricas e psicológicas
acadêmicas e, conseqüentemente, a suas definições de normalidade,
ambas na sua maioria oriundas das metrópoles ocidentais.
Diante da complexidade da composição de nossa cultura e
sociedade, simultaneamente produto da experiência colonial e das
migrações recentes, sob impacto do processo desigual e instável de
globalização, e caracterizada por uma “simultaneidade de presenças”
(CARVALHO, 1997) de várias tradições com profundidade histórica
diversificada, é preciso ter em mente que a ciência não é o único
sistema de classificação e nem o principal agente de explicação da
realidade. Ao contrário das metrópoles da sociedade ocidental, que
teriam passado por um processo de “desencantamento do mundo”


Hall (2003) demonstra que os termos interdependentes multicultural e multicul-
turalismo possuem significados heterogêneos, mutáveis e problemáticos, variando
em função de posicionamentos teóricos e políticos. Sendo assim, devem ser utiliza-
dos, “sob rasura”, seguindo a proposta do pensamento de Derrida. Contudo, ainda
que contestados, são os conceitos de que dispomos para as questões suscitadas
pela coexistência de comunidades culturais distintas no interior de uma mesma
sociedade.

Temática com uma série de implicações para a teoria e a pesquisa antropológicas,
especialmente no campo da antropologia psicológica, e que encontrou sua primei-
ra formulação sistemática, no artigo clássico de Mauss sobre a noção de pessoa
(republicado em 1968).

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DILEMAS CLASSIFICATÓRIOS: FRONTEIRAS ENTRE A EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA E A PSICOPATOLOGIA

de secularização e racionalização, boa parte da população das nações


periféricas do ocidente, dentre elas o Brasil, vive em um cosmos
“encantado”, povoado por Deus, pelo Diabo, por anjos, demônios,
deuses e espíritos e outros seres extraordinários (da perspectiva do
cientista laico).
Não importa, no contexto de um debate antropológico,
discutir se estes seres têm existência objetiva ou não, mas entender
que constituem a paisagem para a experiência de vida de milhões
de brasileiros. Do ponto de vista quantitativo, milhões de brasileiros
encontram na cosmologia religiosa um modelo importante de
referência, muito mais satisfatório do que as explicações científicas.
Em suma, estamos diante de um conflito potencial entre ciência laica
e religiosidade popular.
O cientista europeu do séc. XIX, inspirado pelo positivismo,
considerava-se, de modo bastante etnocêntrico, como protagonista
de uma verdadeira cruzada civilizatória contra a ignorância e a
superstição popular. Entretanto, o cientista do mundo multicultural
contemporâneo precisa levar em consideração, nas suas relações
cotidianas, que a explicação materialista, racionalista e científica
não é uma referência universal em sua sociedade. A religião oferece
tanto um modelo explanatório como uma linguagem coerente
para expressar as experiências vividas, para atribuir-lhes valor e
significado. Considerando o que já foi suficientemente discutido, por
exemplo, a partir dos escritos de Michel Foucault (1987 e 1994/1999)
sobre o poder médico, se o profissional de saúde não quer ser um
mero agente de um dispositivo de normatização social a partir dos
padrões burgueses de moralidade e normalidade, se a intervenção
psicoterapêutica deve ser verdadeiramente em benefício do paciente,
então é vital conhecer esta linguagem para poder dialogar com aqueles
a quem se destina o atendimento.

De maneira análoga ao meu argumento, Vasconcellos et al (LEAL org., 1995/2001),
em seu artigo sobre os modelos culturais explanatórios de doença mental afirmam
que nas classes populares a religião constituiria o sistema preponderante.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Aqui apareceria uma primeira contribuição da antropologia


cultural, ao desvendar o caráter construído da normalidade, resultado
de um código em alguma medida compartilhado por um grupo social,
fonte de referências para a ação e interpretação. Em outras palavras, o
que é normal varia em função da cultura. Esta afirmação pode parecer
trivial se não vier acompanhada de uma reflexão sobre o poder que o
etnocentrismo, que a naturalização das representações sociais, exerce
sobre cada um de nós em cada uma de nossas atitudes. Qualquer aluno
de uma disciplina introdutória de antropologia cultural poderia dizer
que há uma tendência no ser humano a considerar naturais e verdadeiros
seus próprios padrões e a depreciar padrões diferentes. Qualquer
estudante poderia dizer também que a antropologia recomenda uma
postura de respeito às diferenças culturais. O difícil é pôr em prática
estas proposições sob a forma de atitudes concretas e coerentes.
Vale lembrar que o procedimento diagnóstico proposto no
DSM-IV-TR, para ser corretamente utilizado, depende idealmente
da atuação conjunta de uma equipe multidisciplinar, combinando o
trabalho de médico, psicólogo, psiquiatra e assistente social. Além
disso, para qualquer diagnóstico é necessário levar em consideração
se a conduta e as crenças do paciente são consideradas normais a
partir de suas próprias referências culturais, etárias e de gênero. Em
outras palavras, o diagnóstico depende, para evitar arbitrariedades
prejudiciais ao paciente, de um profundo conhecimento por parte
do profissional de saúde, das características culturais da comunidade
em que atua. Infelizmente, sabemos que, em geral, o treinamento do
profissional de saúde brasileiro não enfatiza a capacitação para lidar
com a diferença cultural.


Segundo depoimentos recorrentes dos próprios profissionais de saúde, o trabalho
multidisciplinar ainda não é tão freqüente na prática do atendimento de saúde
mental em nosso país.

Esta característica pode ter implicações dramáticas no atendimento de saúde a
comunidades culturalmente diferenciadas, tanto no que diz respeito à relação entre
profissionais de saúde e clientela das classes populares quanto a minorias religiosas
ou étnicas, como é o caso das populações indígenas.

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DILEMAS CLASSIFICATÓRIOS: FRONTEIRAS ENTRE A EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA E A PSICOPATOLOGIA

Usos sociais do diagnóstico

Para tornar a situação ainda mais complicada, gostaria de


discutir o problema das fronteiras tênues entre experiência religiosa e
certos fenômenos psicopatológicos, contemplando alguns problemas
subjacentes ao diagnóstico de esquizofrenia e de transtornos
correlatos. Mais precisamente, pretendo defender a necessidade
de uma diferenciação entre estados de consciência característicos
de fenômenos do campo religioso e condições patológicas, a partir
do reconhecimento da dimensão cultural como principal fator
interpretativo.
Antes de prosseguir, vamos recordar o grupo principal de
sintomas no diagnóstico de esquizofrenia, conforme o DSM-IV-
TR: delírios, alucinações, discurso desorganizado, comportamento
desorganizado. O manual prossegue explicitando que a crise deve durar
seis meses no mínimo, com pelo menos um mês de tais sintomas,
para tipificar esquizofrenia. Basicamente, o conceito de alucinação
refere-se a uma percepção sensorial a que não corresponde um objeto
material. E delírio é definido no DSM-IV-TR da seguinte maneira:

“Os delírios (...) são crenças errôneas, habitualmente


envolvendo a interpretação equivocada de
percepções ou experiências. Seu conteúdo
pode incluir variedades de temas (por exemplo,
persecutórios, referenciais, somáticos, religiosos ou
grandiosos) (p 305).

O CID-10 apresenta critérios diagnósticos semelhantes,


embora um tanto mais complexos. Em suas descrições clínicas e


O CID-10 também determina a presença de pelo menos um dos sintomas prin-
cipais (de a até d) e pelo menos dois dos sintomas secundários (de e até h) pela
duração de um mês, no mínimo.

Exceto se tiver terminado em função da administração de medicação anti-psicótica.

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AS VOZES DO SILENCIADO

diretrizes diagnósticas (CID-10, 1992/1993), a esquizofrenia, como


o mais importante transtorno de sua categoria (F20-F29), apresenta
os seus sintomas, descritos para fins diagnósticos, divididos em nove
grupos – de a até i – nos quais o elemento delirante e o elemento
alucinatório, além das perturbações na linguagem e na conduta social,
são recorrentes e definidores.
O DSM-IV-TR explicita no tópico “Características específicas
de cultura, idade e gênero” (p 311) que, na avaliação, deve-se levar
em consideração as diferenças culturais, já que idéias aparentemente
delirantes podem ser aceitas em certos meios culturais. Salienta que
alucinações podem fazer parte da experiência religiosa normal, bem
como o discurso e o afeto só podem ser analisados tendo por referência
os códigos de expressão do paciente. Do mesmo modo, o CID-10
(1992/1993, p. 86-87) especifica no item (d) dos grupos de sintomas
que os delírios persistentes devam ser “culturalmente inapropriados e
totalmente impossíveis” para serem considerados como tal.
Mas justamente o problema é que o psicodiagnóstico como
classificação não se desvincula de um exercício de poder. Alguém
identificado como um doente mental grave perde em larga medida sua
credibilidade e autonomia individual. Em outras palavras, o paciente
está à mercê da arbitrariedade e eventual preconceito do profissional
de saúde. Eu diria, inclusive, que existe uma predisposição a pressupor
certas características como anormais pela própria conotação da
situação de psicodiagnóstico, quando percebida como baseada em
um saber neutro, atemporal, supra-histórico e transcultural.
Lamentavelmente, existem antecedentes na história da
psiquiatria e da psicologia tanto euro-americanas quanto brasileiras
que apontam significativamente para este tipo de situação. Tomemos
o exemplo das implicações da disjunção entre as crenças da
comunidade científica e de certos segmentos da sociedade, no caso
do uso de saberes psicológicos na legitimação de formas racistas de
interpretação da religiosidade afro-brasileira, na virada do século XIX-
XX, conforme analisadas por Masiero (2002).

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DILEMAS CLASSIFICATÓRIOS: FRONTEIRAS ENTRE A EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA E A PSICOPATOLOGIA

Segundo ele, as teorias raciais foram populares entre as elites


brasileiras, desde o final do século XIX. Explicavam a situação nacional
no idioma racista da “degeneração”, produzida pela miscigenação, e
tiveram aceitação na psicologia. Partindo da premissa da inferioridade
intelectual e moral dos negros e mestiços, suas tradições, especialmente
as religiosas, foram igualmente desvalorizadas. No projeto de uma
psicologia e de uma psiquiatria inspirada por uma lógica eugênica,
a religiosidade afro-brasileira foi considerada um problema
sanitário, uma ameaça à saúde mental coletiva. Ressalte-se ainda
que ela foi combatida com um misto de poder médico10 e aparato
jurídico-policial11, em sintonia com um projeto cristão de hegemonia
religiosa, numa clara manifestação de racismo institucionalizado e
legitimado pela ciência. Neste contexto, os rituais afro-brasileiros
foram interpretados como tendo caráter sintomático de distúrbio e


Sobre a questão da eugenia e das teorias da “degeneração” na psiquiatria brasileira,
ver também Russo (1998).
10
Uma estatística produzida em 1932 pela Assistência Geral do Estado de Pernambu-
co (citada por MASIERO, 2002), indicava a maior quantidade de internações entre
negros e mestiços. Contudo, enquanto os autores desta estatística consideravam
este dado como evidência de uma maior suscetibilidade congênita à doença men-
tal, compartilhando uma idéia difundida entre outros profissionais da saúde e cien-
tistas sociais da época, é possível lê-la a contrapelo por uma ótica foucauldiana.
Deste ponto de vista, a estatística evidencia muito mais o teor racista e etnocêntrico
dos critérios psicopatológicos e práticas da medicina mental da época.
11
Masiero (2002) também menciona, como exemplo, a atuação da Secretaria de Se-
gurança Pública de Pernambuco, em parceria com a Assistência a psicopatas, frente
aos pais-de-santo de Recife, que deveriam passar por uma avaliação psicológica,
tendo suas atividades fiscalizadas, para que seus terreiros funcionassem legalmen-
te. Para demonstrar uma relativa continuidade do problema, menciono também o
artigo 284 do código penal de 1940, ainda em vigor, que manteve basicamente o
mesmo argumento do primeiro código penal republicano, tipificando como crime
a prática de “curandeirismo”: “I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitu-
almente, qualquer substância; II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;
III - fazendo diagnósticos” (...). Essa definição serviu para criminalizar a prática das
terapêuticas religiosas populares.

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AS VOZES DO SILENCIADO

atraso mental, passíveis de contagiar indivíduos sugestionáveis. Em


outras palavras, seriam como uma espécie de doença contagiosa12.
O caso discutido acima exemplifica o que Hall (2003)
chama de “as duas lógicas do racismo”, visto que opera não apenas
sobre características hereditárias supostas, mas também sobre as
especificidades culturais. A idéia de raça legitima a exclusão e a
exploração em termos de distinções biológicas, a diferença do
outro reificada em características corporais visíveis e facilmente
identificáveis. A idéia de etnia define as diferenças em termos religiosos
e culturais, mas o estigma, seja por raça ou por etnia, opera por um
tipo de caracterização estereotipada muito semelhante. Em ambos
os casos, está em questão a fixação de características, conforme Hall
(2003, p. 71).
De acordo com ele, “(...) Portanto, o racismo biológico e a
discriminação cultural não constituem dois sistemas distintos, mas
dois registros do racismo. Na maioria das vezes, os discursos da
diferença biológica e cultural estão em jogo simultaneamente.”
Embora raça não seja uma categoria científica, mas sim
um construto sociopolítico, e apesar de quase um século de crítica
sistemática da antropologia cultural à determinação da diversidade
humana por fatores hereditários, no pensamento de senso comum
e em algumas disciplinas científicas, a idéia de seres humanos
intrinsecamente superiores ou inferiores parece ainda ter lugar.
Além disso, ao contrário do que poderíamos imaginar, o
problema do uso da ciência ou da lei com finalidades discriminatórias
continua sendo um problema atual. Isto tem sido constatado por
agentes do próprio estado brasileiro. O “Relatório do Comitê Nacional

12
Seguindo a análise de Masiero (2002), os movimentos sociais, sobretudo se estru-
turados a partir de um idioma religioso, como no caso de Canudos, foram inter-
pretados como uma forma epidêmica de doença mental. Isso remete à discussão
de Jackson e Fulford (in FREITAS; GHESTI, orgs, 2003) quanto ao reducionismo
implicado em tratar como pacientes psiquiátricos, tanto protagonistas de experiên-
cias religiosas quanto dissidentes políticos.

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DILEMAS CLASSIFICATÓRIOS: FRONTEIRAS ENTRE A EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA E A PSICOPATOLOGIA

para a preparação da participação brasileira na III Conferência Mundial


das Nações Unidas, contra o racismo, discriminação racial, xenofobia
e intolerância correlata”, por exemplo, indica que nos julgamentos
de curandeirismo e charlatanismo (art. 284 e 283 do Código Penal
Brasileiro, respectivamente) houve no sec. XX, “freqüente associação
feita pelo judiciário entre tais delitos e as práticas religiosas de origem
africana, vista como insalubres, bárbaras e primitivas”, conforme
registro do Ministério Público (2001, p 35). Esse processo é análogo
e está articulado às concepções e práticas psicológicas e psiquiátricas
supracitadas, discutidas no trabalho de Masiero (2002) que definiam
negros e mestiços como intelectualmente inferiores e mais propensos
a transtornos mentais.
Obviamente, as tradições afro-brasileiras não são as
únicas religiões passíveis de sofrer interpretações e intervenções
preconceituosas. No caso do meu argumento, não se trata de discutir
especificamente o problema do racismo no país, mas de citá-lo como
exemplo de atitudes da ciência diante dos fenômenos religiosos,
marcadas por um tom discriminatório e autoritário. Existe uma relação
entre o posicionamento etnocêntrico do cientista, sua vinculação
como ator social a determinados segmentos e grupos de interesse
de nossa sociedade, mas também há um problema nos programas
de formação educacional dos profissionais, em geral, ainda pouco
sensíveis à diferença cultural.

A opacidade contextual das classificações

Para recolocar o dilema das classificações de normalidade/


anormalidade em situações multiculturais, enfatizando suas
dificuldades inerentes, optei pela análise de material etnográfico,
como uma maneira de demonstrar em que medida a cultura e o
momento histórico são vitais para a atribuição de significado a um
fenômeno. Partirei de uma descrição sem contexto, de alguns casos,

139

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AS VOZES DO SILENCIADO

justamente para demonstrar como este tipo de abordagem leva a


equívocos grosseiros de significação.
Consideremos o primeiro caso. Um homem adulto, na faixa
dos 40 anos, casado, tem problemas com a esposa, que lhe é infiel.
Vivencia também conflitos com os parentes de sua mãe e com a
vizinhança. O paciente passa por um período de insucesso no trabalho,
começando a manifestar sintomas aparentemente psicossomáticos:
fadiga, dores pelo corpo e palpitação cardíaca. E mais: ele acredita
que está sendo enfeitiçado e que sua moléstia se explica pela presença
de um dente humano no interior de seu corpo, pertencente a um
parente morto.
Se qualquer um consultasse um psiquiatra, queixando-se de
ter dores no corpo por estar sendo mordido pelo dente de um morto,
apresentaria dois sintomas importantes para um possível diagnóstico
de transtorno psicótico: alucinação sinestésica e delírio somático. No
entanto, o caso acima pertence a um dos vários estudos clássicos do
antropólogo Victor Turner (1967), sobre o sistema de cura ritual do
Ndembu, da Zâmbia. De acordo com a cosmologia Ndembu, certas
enfermidades graves provêm do descontentamento dos espíritos
ancestrais com a conduta da comunidade. Existe um certo número
de associações de culto especializadas no tratamento de moléstias
específicas, dependendo do tipo de espírito. O culto Ihamba é
responsável por apaziguar os ancestrais caçadores e remover seus
dentes incisivos superiores do corpo das vítimas, trazendo-lhes
alívio por meio de um complexo sistema ceremonial cujo ponto alto
é a resolução ritualizada dos conflitos da comunidade. Importante
lembrar que os Ndembu acreditam que o espírito agressor apenas
abandonará a vítima quando todos os envolvidos tiverem confessado
seus ressentimentos secretos. Deste modo, o culto representa uma
variedade nativa tradicional de terapia comunitária. A fonte de
interpretação da origem das doenças e dos meios para superar
a crise é a cultura Ndembu, de modo que não se pode identificar
o paciente como delirante. Não se trata de uma crença individual

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DILEMAS CLASSIFICATÓRIOS: FRONTEIRAS ENTRE A EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA E A PSICOPATOLOGIA

errônea, mas de uma representação coletiva, em que crêem os


membros normais da comunidade. Aliás, a análise de Turner indica
que o paciente é curado de seu sofrimento e ao mesmo tempo
vários conflitos intracomunitários são resolvidos mediante a hábil
atuação do terapeuta ritual nativo, que se baseia nas mesmas crenças
compartilhadas para chegar a uma cura.
O caso narrado por Turner pode parecer por demais exótico
e distante para que levemos em consideração suas implicações. Por
isso, passemos, mais uma vez, a algumas considerações com relação
ao universo religioso brasileiro.
O contato com entes espirituais e sua intervenção no cotidiano
é uma crença central para se compreender a experiência religiosa de
milhões de brasileiros. Mais do que uma crença, é uma experiência
recorrente e perfeitamente palpável para seus protagonistas. A despeito
dos diferentes idiomas culturais, por meio dos quais os membros
de comunidades religiosas interpretram este fenômeno, existe um
denominador comum que pode ter conseqüências dramáticas para o
paciente. Há um risco alto que o profissional de saúde, ignorando a
realidade cultural de seu país, atribua um significado psicopatológico
a fenômenos que são da ordem da normalidade.
O fato de uma pessoa mudar de personalidade, postura
corporal, gênero e motivações, agindo como se fosse outra pessoa,
poderia ser diagnosticado como um transtorno dissociativo de
identidade (DSM-IV-TR). Este diagnóstico contudo, não é adequado
no contexto da relação normal entre um iniciado e seu santo-de-
cabeça, descrita nas etnografias sobre o candomblé, por exemplo. O
fenômeno da possessão, elemento central do estilo de espiritualidade
performática (Carvalho, 1994) das religiões afro-brasileiras, tem
por característica a manifestação do orixá, por meio do corpo de
um indivíduo, que mantém com ele uma relação de filiação. Bastide
(1958/2000, p 189) se refere a esta experiência como “um fenômeno
de metamorfose da personalidade”. Em outras palavras, o iniciado
possuído é, temporariamente, o seu orixá. Isto se expressa de

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AS VOZES DO SILENCIADO

um modo altamente ritualizado, de acordo com um código muito


preciso de expressão, compartilhado pelos membros de uma casa
de culto. Cada orixá possui um repertório musical próprio, uma
indumentária específica, uma coreografia, uma postura corporal e
uma personalidade específicos, de modo que é possível reconhecê-
lo observando as características da possessão (a este respeito ver
SEGATO, 1995). O transe, portanto, é um fenômeno cultural cujo
aspecto definidor é a dimensão ritual e não uma crise individual,
idiossincrática em suas manifestações. O transe desordenado
caracteriza os não-iniciados, que ainda não foram instruídos
sob as formas de gerir a experiência (SEGATO, 1995; BASTIDE,
1958/2000). Resumindo uma discussão já bastante longa no campo
dos estudos afro-brasileiros, temos: 1) a possessão depende de um
contexto ritual específico para ocorrer; 2) suas manifestações são
interpretadas a partir de um sistema compartilhado de crenças e
símbolos; 3) os sujeitos que a vivenciam têm uma vida normal
em todos os demais aspectos de seu cotidiano; 4) estabelece uma
linguagem para construção da pessoa13; 5) e também para articular
diversas experiências sociais, dentre as quais, a aflição14.
Os comentários acima sobre a inadequação de uma leitura
psicopatológica da experiência religiosa, no contexto afro-brasileiro,
apresentam desdobramentos em temas análogos que também
ocupam papel preponderante na religiosidade popular. São os
fenômenos mediúnicos no contexto espírita, as aparições de santos
no catolicismo popular ou manifestações de dons do Espírito Santo
no caso pentecostal, entre outros. Importante lembrar que para
legitimar estes fenômenos como sendo da ordem da normalidade não
é necessário referendar seu estatuto divino ou objetivo.
13
Segato (1995) indica que o panteão dos orixás oferece um sistema de descritores
de personalidade, pelo estabelecimento de uma relação de identificação entre os
deuses iorubá e seus filhos.
14
Sobre o tema da aflição e tratamento e suas implicações, ver Rabelo e Duccini
(2002); Rabelo, Mota e Nunes (2002).

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DILEMAS CLASSIFICATÓRIOS: FRONTEIRAS ENTRE A EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA E A PSICOPATOLOGIA

Parto da proposta de um relativismo prático:

(...) a suspensão da investigação quanto à verdade


divina ou objetiva de costumes, crenças ou visões
de mundo particulares, de modo a explorá-las
como modalidades ou momentos de experiência,
para rastrear suas implicações e usos (JACKSON,
1996, p. 10).15

Percebe-se então que o que importa ao antropólogo são


os efeitos e implicações que têm as crenças e representações na
experiência de mundo do ser humano. Importa é que acreditar tem
conseqüências morais, cognitivas e existenciais. Neste sentido, não se
trata de buscar o sentido objetivo dos fenômenos, mas de reconhecer
sua realidade como ato de atribuição de significação a um fenômeno.
Dilthey, segundo Turner (1982), divide a estrutura da
experiência em cinco momentos: 1) núcleo perceptual – o evento
vivenciado; 2) evocação de experiências anteriores; 3) revivência das
emoções a elas associadas; 4) atribuição de sentido pelo estabelecimento
de interconexões entre passado e presente; 5) expressão por meios
verbais ou não-verbais. O vivido é potencialmente inesgotável, mas
adquire um sentido a partir de um sistema de referência, de uma
tradição interpretativa. O significado da experiência pode ser expresso
de diversas maneiras, mas é, até certo ponto, comunicável por seu
significado e modo de expressão remeter a um código cultural.
O problema, portanto, é de um conflito de visões de mundo
que é configurado pela própria proposta de superposição da temática
da experiência religiosa às classificações psicodiagnósticas. Caberia
citar, aqui, o posicionamento de Jenkins (2002), psiquiatra e

15
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Minha tradução. No original: “...the suspension of inquiry onto the divine or ob-
jective truth of particular customs, beliefs, or worldviews in order to explore them
as modalities or moments of experience, to trace out their implications and uses”.

143

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AS VOZES DO SILENCIADO

antropóloga, sobre o tema da esquizofrenia, conforme uma perspectiva


transcultural: se um paciente afirma que está sendo enfeitiçado ou
que viu um espírito, a afirmação por si só não deve ser considerada
como um sintoma para um diagnóstico de esquizofrenia. Deve-se
investigar se na cultura a que o paciente pertence há feiticeiros e se as
pessoas normais, no contexto de suas experiências religiosas, entram
em contato com espíritos.
A questão dos modos de interpretação e expressão de uma
experiência como parte de sua própria estrutura pode ser elucidada
por meio de uma fascinante análise comparativa. Catherine Clément
e Suddhir Kakar (1994) confrontaram a história de vida de dois
personagens do século XIX, uma mulher francesa e um homem
indiano, ela católica, ele hindu. Ambos protagonistas de experiências
de êxtase místico acompanhadas do mesmo tipo de fenômenos
psicossomáticos: “as mesmas contraturas, a mesma catatonia, as
mesmas interrupções da respiração, as mesmas fomes devoradoras,
o mesmo olhar fixo, o mesmo sorriso enorme nos lábios, a mesma
imobilidade” (CLÉMENT & KAKAR, 1994, p 18).
A diferença principal é que enquanto Madeleine, após várias
passagens pela prisão foi entregue aos cuidados de Pierre Janet, no
asilo de Salpetrière, durante cerca de 20 anos, até ser “curada” de seus
êxtases pela razão laica, Ramakrishna supera sua crise iniciática para
tornar-se um grande mestre espiritual e um dos maiores nomes da
mística hindu de seu século.
É um consenso que Ramakrishna seja um místico. O argumento
original da discussão é que Madeleine apresenta características
essenciais dos místicos autênticos. Vários dos fenômenos descritos,
como o aparecimento de estigmas antecedendo aos êxtases, jejuns
prolongados sem perda de peso, a interrupção da respiração durante
o êxtase, o conteúdo de suas visões, as metáforas da sua experiência
pessoal de uma relação direta com Deus, correspondem a material
fartamente documentado nas hagiografias dos santos católicos, por
exemplo.

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DILEMAS CLASSIFICATÓRIOS: FRONTEIRAS ENTRE A EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA E A PSICOPATOLOGIA

A tese central dos autores é de que a experiência individual


tem seu sentido dependente do contexto cultural. O argumento
relembra uma discussão já antiga na antropologia francesa, cujo
pioneiro foi Mauss (1968) e o principal expoente Lévi-Strauss (1975):
um especialista do sagrado depende, no exercício de suas funções, da
legitimidade que provém, em última instância, de uma comunidade
que o reconhece como tal. Trazendo esta idéia para a análise comparada
do caso Madeleine/Ramakrishna, fica claro que ambos apresentam
características de místicos autênticos. O que falta a Madeleine é um
contexto de significação que legitime suas experiências. Não havia
lugar para misticismo na França republicana, laica e positivista do
século XIX, apenas o não-lugar da loucura.
É plausível concluir a partir desta comparação que muitos
fenômenos que são patologizados pela psiquiatria ocidental, seriam
percebidos como religiosos em outro contexto cultural. Inclusive, há
indicadores de que as terapêuticas religiosas tradicionais têm uma
vantagem importante com relação ao tratamento psiquiátrico clássico,
pois não segregam o paciente, nem produzem um estigma social como
resultado de sua classificação como doente (CAROSO et al,1998).
Uma primeira armadilha que se coloca neste contexto é considerar
a classificação psiquiátrica ocidental como mais objetiva, isto é, que
os sujeitos de experiência religiosa seriam, na verdade, loucos, que
por circunstâncias encontraram outro encaminhamento e significação
cultural para sua condição. Isto equivale em larga medida às histórias
positivistas da psiquiatria que afirmam que o louco era, antes do
“advento” da medicina mental, tratado como possesso ou feiticeiro,
já suficientemente criticadas por Foucault (1994/1999). Há aqui uma
confusão entre fenômenos, que nas culturas e épocas de origem, têm
uma leitura específica e um olhar científico laico e universalizante
que pretende superpor à “objetividade” de sua percepção a todas as
épocas, povos e lugares.

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AS VOZES DO SILENCIADO

A respeito dos paralelos inadequados entre místico e louco,


um alerta importante é feito por Eliade (1960/1998), ao indicar que
com relação ao xamanismo, não se pode sustentar que o xamã seja um
doente mental. O primeiro fator a considerar consiste nas próprias
características do ofício de xamã que, por um misto de vocação e
treinamento, exerce uma profissão que demanda capacidades
intelectuais, resistência física e mental e autocontrole acima da
média. Em segundo lugar, por sua significação para os povos que
possuem xamãs, o transe xamânico tem uma estrutura específica
cujo significado se baseia em uma cosmologia mítica. Além disso,
ao contrário de um doente, o xamã tem grande controle sobre os
transes, que só ocorrem em um contexto de ritual, mas, sobretudo,
porque há uma clara distinção nativa entre o xamã profissional, o
paciente doente, e alguns pacientes especiais, cujos sintomas indicam
uma vocação para o xamanismo, a ser amadurecida por instrução e
treinamento. Se em uma sociedade sem sagrado o lugar do êxtase só
pode ser a clínica, isso não significa que o sagrado seja apenas uma
linguagem para falar da loucura.
Em resumo, é preciso diferenciar: 1) experiência mística,
dotada de conteúdo religioso culturalmente reconhecido, estruturada
a partir de uma cosmologia, de uma tradição16; 2) adoecimento, como
experiência de sofrimento, de cisão da pessoa, no contexto de uma
crise de vida, caracterizada por conflitos intra e intersubjetivos não
solucionados.
Sudhir Kakar assinala, ainda, que a psicanálise tem hoje
mais informação sobre o êxtase místico do que na época de Freud
e que o acúmulo de conhecimento a respeito do tema permitiria
postular que: “a associação do estado místico com uma regressão
desvalorizada, senão patológica, comparável a um episódio maníaco
ou esquizofrênico está pronta para uma revisão radical” (CLÉMENT

16
Ainda que por vezes fazendo (re)leituras originais e idiossincráticas dos temas tra-
dicionais (ver o argumento de CARVALHO, 2001)

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DILEMAS CLASSIFICATÓRIOS: FRONTEIRAS ENTRE A EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA E A PSICOPATOLOGIA

& KAKAR, 1994, p 105). Ainda segundo o autor, os místicos


apresentam uma performance bastante impressionante nos principais
critérios de Freud para avaliar a saúde psicológica: têm a capacidade
de estabelecer e conservar vínculos afetivos saudáveis e a capacidade
de criação e produção. Além disso, o êxtase místico contribui para
uma maior integração da consciência, o que também vale para outros
tipos de êxtase religioso.
Embora formulada a partir de uma outra posição epistêmica,
a conclusão de Fulford e Jackson (FULFORD, 2003) vai em uma
direção análoga: se as experiências têm um efeito benigno na vida
dos sujeitos, empoderando-os e oferecendo ganhos em termos de sua
vida social e criatividade pessoal, então não faz sentido considerá-las
sintomáticas, mesmo quando apresentam semelhanças de forma e
conteúdo com os critérios de diagnóstico psiquiátrico clássico.
Parto destas duas referências para concluir, enfatizando a
distinção entre experiência religiosa e psicopatologia, já que a primeira
não apresenta o caráter incapacitante característico dos episódios
psicóticos, indicado pela literatura psicopatológica, como o DSM-IV-
TR e o CID-10; fundamenta-se, ainda que de maneira ambivalente,
em critérios culturais de legitimação.

Limites do consenso cultural como critério legitimador da


experiência

Por fim, percebe-se ainda a necessidade de apontar o risco


de se basear em uma perspectiva comunitarista17 autoritária18

17
Ao contrário da perspectiva clássica da cultura como consenso, um desafio impor-
tante para uma revisão das teorias antropológicas da cultura tem sido o problema
da dissidência, do conflito e da multiplicidade de regras e interpretações divergen-
tes no interior de um mesmo sistema cultural, sem falar na questão, psicológica por
excelência, da elaboração individual dos códigos culturais.
18
Ver a crítica de Hall (2003) ao autoritarismo comunitarista em seu artigo sobre
multiculturalismo.

147

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AS VOZES DO SILENCIADO

ao tentar a elaboração de modelos que permitam discernir entre


casos referentes à espiritualidade ou à psicopatologia. Experiências
religiosas com profundidade acima da média possuem também
um potencial de dissidência, tanto em termos das interpretações
canônicas da cosmovisão religiosa quanto em termos da adesão
às convenções sociais. Conseqüentemente podem ser vistas pela
comunidade cultural com ambigüidade, ao mesmo tempo como
expressões religiosas extraordinárias, e como perigosas e passíveis de
suspeita, em função do elemento de criatividade e inovação que lhes
caracteriza. Em um olhar mais historiográfico, abundam exemplos
do caráter inconvencional dos grandes místicos nas tradições cristã19,
muçulmana20, hindu21, taoísta22, e budista23. Remeto também à
discussão da ambivalência simbólica que caracteriza as situações
liminares, na obra de Victor Turner (1974, 1985, 1994), bem como
ao tema da “blasfêmia” embutida na experiência religiosa individual
(CARVALHO, 2001). Uma revisão da discussão das fronteiras entre
experiência espiritual e psicose, nestas bases, talvez forneça elementos
para rever a ambigüidade classificatória dos estudos de casos analisados
por Fulford e Jackson (FULFORD, 2003).

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19
Como os casos de São Francisco de Assis no catolicismo medieval e do de Santa
Teresa e São João da Cruz, no catolicismo da Contra-Reforma.
20
Como Rumi, místico persa fundador da ordem dos dervixes girantes.
21
Sri Ramakrishna é um excelente exemplo. Também a mística tântrica e bhakta
pode ser bastante elucidativa.
22
Ver, por exemplo, Zhuangzi.
23
Ver por exemplo, as referências aos Mahasiddhas na história do budismo tibetano,
ou as biografias de patriarcas zen como Hui Neng ou Lin-chi, entre outros.

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL
VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO*

Lino Gambacorta

La represión

Desde almenos dos decenios, tomando como referencia


de partida de la presente análisis el inicio de los años 80 del siglo
veinte, se assiste a un fenómeno cultural que seña de manera maciza y
siempre cresciente casi todos los niveles de la comunicación collectiva
(o comunitaria) y, luego, de la interacción social. Un fenómeno
que, poco a poco, se ha hecho siempre mas autoritario; gravoso y
incluso invasivo para todas las formas de expresividad individual
o de grupo, con su colocar como la unica modalidad de goce de
los contenidos culturales circulantes, o como el unico modelo de
aquellos favoritos y − objetivamente − reconocidos como oficiales,
rechazando todos los otros en las nieblas de las periferías y de las
marginalidades de la actual civilización tarda moderna. Pues un
fenómeno, ya estructurado en su extensión, y intensificado por su
propia omnipresencia que sigue ramificandose, ocupando ulteriores
esferas de creatividad, nuevos espacios generacionales, otras franjas
del tejido cognitivo y también emocional de la comunidad social.
Este fenómeno no pone ningún limite a su evidenciar, esaltar, exhibir:
en su ausencia de falta de culquiera mascara para afirmarse como

*
Texto originalmente escrito em italiano e traduzido para o espanhol por Vicente
��������
Hector Santamaría, doutorando em História da Medicina pela l’EHESS (Ecole des
Hautes Etudes en Sciences Sociales) de Paris, sob a direção de Jean-Pierre PETER.

153

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AS VOZES DO SILENCIADO

la realidad – y la tendencia – con más poder de absorción de las


demandas de esta fase de civilización occidental, y entonces con mas
capacidad de satisfacer sus pulsiones generalizadas, y así de producir
los mismos desos multiformes e inagotables. Se trata de un fenómeno,
precisamente del todo visible en donde se halle cualquier ocasión que
revesta un minimo de significado o de valor para la formación de la
identidad colectiva (que se irradia despues a un nivel de consciencia
individual); un fenómeno que tiene un nombre, una definición, poco
vistoso tocante a su desarrollo irresistible, pero ya no tanto difícil de
individuar: el fenomeno de la represión.
La represión hoy día se derrama como nunca ha occurrido,
probablemente ni siquiera vagamente, desde el desarollo de
una historiografía articulada y una proliferación de los medios
de comunicación de masa efectivamente disfrutados a un nivel
generalizado, o sea desde al menos los dos ultimos siglos. Sin adentrar
el tema, ni siquiera su esbozo, la cuestión de las relaciones entre la
transmisión de las raizes culturales y de los eventos decisivos de una
comunidad umana definida, con las varias formas de olvido que
dispersan sus contenidos en la memoria colectiva – cuestión que,
en nuestra opinión, sigue siendo crucial para la comprensión de
cualquiera civilización –, no se puede pasar por alto que a propósito
del actual momento historico-cultural de la civilización occidental el
término olvido se volvió claramente eufemistico. Él asume siempre
más los contornos de una realidad de natura literaria, lírica, acaso
hasta poética como nunca en el pasado, pero del todo insuficiente
para revelar los carácteres i coincidir con la incidencia de la represión.
Este último, en efecto, es muy diferente de un movimiento de la
interioridad umana, en calquier modo se entienda, ni tampoco uno
estado psicológico de una mente incluso demasiada inmergida en las


Represión es una traducción del termino psicoanalítico « rimozione » (original-
mente este texto fuí escrito en italiano); en alemán, « verdrängung » (Nota del
traductor).

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

dinámicas de su esistencia. La represión es más bien una estrategia,


es imposición sistematica del plan de circulación de las relaciones
interindividuales, y arreglo, mas o menos perfeccionado pero
ciertamente lancinante, del sentido y de la jerarquía que se establecen
entre las fases temporales de una historia, que sea comunitaria
o individual. La represión es hiperactivo y dúctil, inagotable en su
frenesia “post-moderna” (pero es profundamente, o radicalmente, que
se tiene que discutir si existe un supuesto “post-moderno”, una fase
que sea YA diferente de la Modernidad, o si no es mas que un enésimo
perfeccionamiento del Moderno tenso como siempre en el reforzar sus
rasgos más funcionales para su propia reproducción). Y es ecléctico,
en el sentido que regularmente se presenta nuevamente con una serie
de formas en adelante “fuertes”, porque es así que asegura su creciente
estabilidad; en total antítesis, esa multiformidad suya, “fuerte” porque
tenedora de un verdadero poder de influencia y control de las
costumbres, y hasta de los gestos, de la vida quotidiana de cada uno,
con el halo en cambio de “ligereza” y de “inocencia” que esa − la cultura
y la estrategia que la practican − quisiera continuadamente confirmar
proponiendose como inofensiva y neutral. Nada tiene que durar, y
nada tiene que mantenerse insubstituable, para la formación de una
consciencia adecuada, de una practica de experiencia compartible y
de una proyectualidad aceptable. Ya no debe haber ninguna realidad
inatacable en su unicidad, o acontecimiento, relación que refuten la
disolución − la disperción de su sentido específico − en la in-diferencia
y en la equivalencia de los significados y de las importancias. Cada
cosa, acontecimiento, relación, proceso, es sometible a la represión,
es decir solamente por el hecho de existir debe ser triturada hasta el
desmenuzamiento por una logica practica (una mecanica?!) que no
admite la densidad singular, y que muy concretamente se fija la meta
de envilecer su posible complejidad y de precisamente desvirtuar la
existencia especifica: rechazando y hasta negando sus raíces.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Y aquí está el punto clave, creemos: la represión como


desnaturalización; la cancelación de las densidades y de las espesuras
específicas de las cosas, de las vidas, de los acontecimientos, de
los momentos, que se mude en aplanamiento de sus percepción,
extraneidad a su variedad y diversidad, negación de su elaboración (y
de la critica relativa), y así − en substancia − olvido de su importancia
en una indiferencia a su valor. O sea, en definitiva, como objetivo
ultimo y decisivo, reducción en primer lugar y luego refutación de la
capacidad de vivir sobretodo gracias a la memoria!
La represión se expresa y se alimenta de muchos modos,
decíamos; todos hoy día completamente difusos y del todo próximos
de la vida de cada uno, dada la ratificación y casi la evidencia de
su valididad. Y esa se revela sobretodo en la instantaneidad de los
consumos, de todo lo que entra en esa categoría casi metafísica
por su generalidad; cada uno de esos asume un relieve y una
consistencia propria − con el colmo de los paradojas − en la velocidad
de su agotamiento y en la “capacidad” en volver a crear el vacío
que recuerda la nueva necesidad (que satisfacer con el “nuevo”
consumo). En donde, por consequencia, el efímero se hace señal de
la creatividad y de la “mobilidad” cultural: permanente frontera nueva
del sentido que compartir al nivel comunitario, factor contínuo − en
su evanescencia − de identidad colectiva, y nunca más pérdida de
una relación consciente con el tejido de experiencias heterogéneas y
contradictorias que distinguen una vida.
Con un ulterior (y solamente aparente) paradoja, lo que
aquí mas que cualquier otra cosa está puesto de relieve es como
la instantaneidad, elevada al rango de “cifra” de la existencia, a su
medida y modelo, y la consequente aceleración de las excitaciones y
de la satisfacción de las stimulaciones, va exactamente en la dirección
opuesta a la de la inmediateza física de la experiencia, es decir al
desarollo (o conservación) por parte de los cuerpos de un contacto
directo − personal − con la fuente de sus emociones y los motivos

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

de sus acciones. Porque el vivido de un cuerpo, de cualquier cuerpo


individual o colectivo, en cualquiera pertenencia suya que sea a
una red de vínculos que constituye el horizonte y el límite de ello,
vive también de esperas y de llamadas, y busca de todos modos
referencias especificas que sostengan sus proyecciones y pulsiones;
pues, un cuerpo, como tal, en su fisicidad, se orienta concretamente
mucho gracias a la memoria que lo llena y lo construye. Entonces, el
paroxismo de la oferta de las oportunidades de consumo, y la misma
obsesionante producción artificial de las ocasiones de satisfacción de
las “necesidades”, desmienten frontalmente estos que siguen siendo los
carácteres/derechos de la corporeidad humana, tensos en el escuchar
− justamente − su fisicalidad con todos sus estremecimientos, sus
precariedades y sus tiempos, y, siendo ajenos a cualquiera ética o
ideología, irreductibles a toda asimilación en una unica, uniformada,
modalidad de existencia.

El sufrimiento vivido

Existe un nivel del vivido humano (y según muchos no


exclusivamente del hombre) que por sí mismo representa la más densa
e inagotable oposición a esta civilización fundada sobre la represión y
el redimensionamiento sistemático de la complejidad del cuerpo − y
de la memoria que es núcleo profundo y vivo de ello −, con el fin de
dirigir la expresividad y canalizar sus posibilidades de experienza: la
dimensión del sufrimiento vivido.
Son varias clases de sufrimiento que un cuerpo puede padecer
en su historia, dentro de un arco así articulado y concreto de variantes
que de todas formas concierne cada existencia individual, sin que
ninguna de esas pueda considerarse de hecho exenta o impermeable
a esta realidad de la vida personal. Hay el sufrimiento físico, ligado
a la enfermedad o a la limitación de las funciones fundamentales;
hay ese relativo a la estructura de la vida quotidiana, a la específica

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AS VOZES DO SILENCIADO

dimensión del trabajo o de las condiciones materiales de la vida; hay


el sufrimiento afectivo, debido al estado de las relaciones humanas
primarias en las quales muy a menudo se actua una desmentida
recíproca, incluso esencial, de las tensiones y pulsiones íntimas por
parte de los individuos implicados en la relación; hay la variante de
esta última forma de sufrimiento, tan difusa y la mayoría de las veces
inevitable, que golpea e invade la vida personal una vez confrontados
a la ausencia definitiva de alguien que, en esa, fuí presencia constante,
o duradera, o importante; hay sufrimiento psicológico, en la pérdida
de las coordenadas esenciales para garantizar una base de equilibrio
entre los componentes de nuestra personalidad y el conjunto de las
solicitaciones del mundo circundante; y hay el sufrimiento cultural,
o “antropológico” en un sentido amplio, con el cual se advierte
así radicalmente l’ausencia de reconocimiento, la percepción de
desarraigo, en atención a un contexto comunitario organisado al cual
uno siente que ya no pertenece más (o aún no). Estos pueden ser
considerados como algunos de los grandes bloques de sufrimiento
posibles, una representación indicativa de las formas mas difundidas
de sufrimiento vivido. Pero hay por otra parte, además de este
panorama, algo mucho más allá de la focalisación de uno o otro modo
de sufrimiento sentido por cada cuerpo humano concreto. O sea, la
realidad de ese momento donde una existencia, un cuerpo individual,
una vida y una historia específicas, pasan a ser en bloque el propio
sufrimiento, viven en una permanente actualidad la herida impresa
en la carne: en el momento en que no solamente una de las grandes
variantes de sufrimiento ha entrado para formar parte incisiva de
la experiencia propia, pero varias de ellas − cuando no son todas
a la vez − se han cruzado hasta formar un nudo bastante araigado y
constante para condicionar cada facultad perceptiva y influenzar toda
lectura de la realidad por parte del cuerpo implicado. Aquello puede
ocurrir por muchos motivos y a través de procesos diferentes. Pero
hay un caso que en esta ocasión importa particularmente determinar

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

y profundizar, un caso, quizas incluso EL caso, más agredido por la


política de la represión y menos dotado de defensas naturales e incluso
de reconocimiento “científico”: ese en el cual una definida situación
histórica hace confluir sobre un cuerpo específico el peso de aquella
red de sufrimientos convergentes y sobrepuestos. O sea el caso en que
un concreto proceso o composto de acontecimientos investe, e implica,
con tanta radicalidad una existencia individual hasta imprimir en su
tejido de experiencias marcas dolorosas indelebles y − precisamente
− que ya no se pueden remover; de dónde, para tantas vidas, la marca
permanece “surco” suyo, porque herida, llaga no cicatrizable del todo.
Así, la imposibilidad de rechazar el vivido, en aquellas existencias, tanto
menos atañe a adesiones ideológicas de ninguna clase o radicalismos
intelectuales, que − directamente y bastante factualmente − esa no
cicatrizabilidad es debida a la importancia de la ofensa recibida por
su cuerpo: es decir, la permanencia de una cicatriz que toca, de varias
maneras, la entera complejidad de su experiencia.
Esa condición, esa realidad de vivido, no es la de cualquiera,
así como no son comunes la densidad y la amplitud del sufrimiento
que el cuerpo, protagonista de ello, le occure revivir incesántemente
(en varios aspectos); y ante todo en ese “bagaje” que se ha formado
en relación con el tiempo y con las interacciones de la vida personal
está la memoria. Ahora, si se procura dar un horizonte a las presentes
consideraciones, y conotarlo de manera concreta, se puede hallarlo a
propósito en la fase historica que se desarolló desde el fin de la ultima
guerra mundial hasta hoy, esta que es mirada como la verdadera
“contemporaneidad” (siempre en movimiento); porque aquí es posible
encontrar sin ninguna exageración toda una serie de testimonios
directos justamente de esta clase particular y extraordinaria de
sufrimiento vivido. Los cuales presentan un doble carácter que hacen
su panorama excepcional de densidad y de calidad de representativo.
El primero, que son presentes en todo el arco temporal − y luego
histórico, en este caso − que enfocamos aquí como el horizonte de

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AS VOZES DO SILENCIADO

nuestra mirada, haciendo así de esta experiencia de la “memoria


del sufrimiento” una realidad del todo no ocasional o circunscrita,
presente en el nuestro tiempo, en los acontecimientos que lo han
formado y en las dinámicas que lo atravesan. El segundo carácter
se refiere al hecho que los testimonios de este género de vivido son
vivos, representaciones por parte de los protagonistas de su historia
de vida respectivas sin pasar por alguna mediación documentaria y
aún menos historiográfica; e incluso el hecho que el abanico de estado
civil presentado por sus protagonistas sea así de extenso, si partimos de
los que vivieron los acontecimientos del conflicto mundial para llegar
a los veinteñales de hoy, refuerza ulteriormente la fuerza del vivido −
en su variedad representativa − de esta memoria del sufrimiento.
El mundo de los supervivientes a la deportación en los lager,
o sea los supervivientes del “universo concentracionario”; los ex-
combatentes della guerra de Liberación, en Italia y en Europa; los
protagonistas comunes y directos de las grandes transformaciones
laborativas italianas de los años ’50 y ’60, o de las contradicciones
y desilusiones a esas ligadas, sobretodo en el contexto agrario del
Mediodía y en el aquel industrial del norte; los emigrados de varias
procedencias culturales y geográficas, que acabaron en un Occidente
que muy a menudo, o casi siempre, no les concedió desprenderse de
una condición de marginalidad civil antes aún que económica, los
titulados “sans-papiers” según la definición de matriz francófona; los
refugiados huyendo guerras infinitas y incontrolables, o persecuciones
tanto ‘fondamentalistas” (de varias naturas) como exhibidas a la vista
ambigua del mundo; los exiliados y los refugiados por motivos políticos,
condenados a un estado permanente de incertidumbre entre la “acogida
humanitaria” y el rechazo “jurídico”, precariedad que solamente es el
prolongamiento de la otra fractura mucho mas radical, aquélla entre
la pertenencia a una tierra en adelante inaccesible y un presente de
extranjería forzada; los torturados y los violentados, los expropriados


Sem-papéis [Nota del traductór].

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

de todos los vínculos fundamentales y originarios de la vida, en los


que su propia fisicalidad hubiera tenido el derecho y la necesidad de
reconocerse, que siguen siendo la base orgánica de cualquier tentativa
de construcción, o de mantenimiento, de su identidad. Todas estas
historias, y vidas, son algunas de la realidad que enseñan – y hacen
comprender – la “civilización de la represión” por lo que es: una
prospectiva de mistificación deformando y enajenando la percepción
de las experiencias vividas, a partir de ésas personales e intimas para
cada individuo, y las mismas relaciones entre ellas; que apunta el
aplanamiento de la spesura de la experiencia, la uniformidad de las
diferencias, el debilitamiento y la programación de las posibilidades
de inserción en la realidad (y a su tasa “biológica” de imprevisibilidad)
de parte de las existencias individuales y específicas: en sustancia, la
domesticación de la complejidad del cuerpo humano, y de su historia
individual, a partir de la negación de la densidad de su relación con
el tiempo vivido.

La historia oral: la antropología historica

La recolección de los testimonios de experiencias vividas,


es decir de los relatos hechos por los sujetos que han sido los
protagonistas de ellas, y en este caso de experiencias globales de
sufrimiento que han dejado su marca sobre la entera relación
con la realidad de los individuos implicados, es un capítulo de la
investigación histórica y antropológica ampliamente practicada
sobretodo en algunos contextos nacionales (por ejemplo, Francia) y a
proposito del cual para decenios se ha desarollado un intenso debate
historiográfico, incluso en Italia. En particular, en lo que se refiere al
campo histórico, i por tanto no estrictamente antropológico cultural
(se admite que las dos dimensiones son así de separables como si
se quisiese prescribir en las ordenaciones disciplinarias oficiales),
la recolección de los testimonios de los protagonistas directos de

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acontecimientos representativos de las dinámicas históricas generales,


protagonistas incluso ordinarios o comunes pero justamente siempre
inmediatamente implicados en los acontecimientos globales que
ritmaron el curso de la historia contemporánea, ofrece una lectura
de la realidad extraordinaria a pesar de su problematicidad.
Seguramente, respecto al campo de la investigación archivística o
documentaria, attenta y sistematicamente concentrada en garantizar
la “imparcialidad” de los análisis producidos justamente gracias a la
“objetividad” de la documentación hallada, el trabajo de recolección
de los testimonios orales se presta a una carencia de “cientificidad”
extremamente superior, y para muchos investigadores insostenible.
El relato de una experiencia individual inmersa en un acontecimiento
histórico global hecho de viva voz por el protagonista conserva
sin duda un alto grado de aproximación analítica, de parcialidad
descriptiva e incluso de precariedad reconstructiva, desde el momento
en que dentro del testimonio permanecen de todos modos vacíos y
lagunas que no permiten una síntesis exhaustiva del acontecimiento
entero, objeto de la investigación. Un testigo oral que habla de una
porción de su vida que lo ha lastimado de manera indeleble, a mayor
abundamiento si el corazón de esa experiencia está impregnado de
sufrimiento, y aunque el contexto más géneral de sus vicisitudes
tenga un alcance histórico general, no puede prescindir − casi nunca
− de una medida consistente de emotividad, de carácter apasionado, y
hasta de humoralidad que acompaña, y a menudo incluso sostiene, el
relato entero. Cada sujeto revive, cada vez que la presenta de nuevo,
su historia personal, con toda la carga de sensaciones, de imagines y
de proyecciones incluso deformantes que su memoria − la memoria de
su cuerpo − no solamente conservó sino que removió más de una vez,
bajo la influencia de solicitaciónes e interaccionando con momentos
diferentes de su existencia. Así, es incontestable este dato según el
cual en estos relatos las imprecisiones son difusas y congénitas, y es
casi inútil tentar filtrarlas con interpretaciones o discriminaciones
artificiales del relato.

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Sin embargo hay algo que vuelve este terreno de investigación


histórica en muchos aspectos excepcional, y ciertamente insostituable.
En este género de relación con la historia y con el vivido, o más bien en
esa relación entre la historia y el vivido − o la Historia y las historias de
vida − hay la memoria del cuerpo que “interpreta” como protagonista
absoluta, por una vez revelandose en su carácter inmediato, aunque
esa pueda ser llena de superposiciones emotivas muy poco lineares o
también de intenciones y preocupaciones contrastantes.
Del resto, el cuerpo individual que arrostra de nuevo
conscientemente, a cada vez que testimonia, acontecimientos
cruciales de su vivido no vive perpetuamente en la percepción de la
marca, o herida, que a través de ellos se ha imprimido en su historia;
en el sentido que este sujeto no efectua cada uno de sus gestos o
no orienta todas sus acciones inevitablemente a partir del subrayado
de la centralidad del sufrimiento experimentado en el curso de
su experiencia. Hombres y mujeres de todas las edades y testigos/
protagonistas de acontecimientos que occurieron en varios momentos
históricos siguen viviendo la existencia personal de una manera más
o menos común, manteniendo su abanico de relaciones y su variedad
de intereses como cualquiera. Incluso en el aspecto mas directamente
emotivo, para los sujetos que han vivido una experiencia de sufrimiento
radical y sobrecogiendo toda la complejidad de su cuerpo, no es en
absoluto cierto que manifiesten, dentro del marco de las dinámicas
normales de la vida quotidiana, más malestar que los otros o menos
senso de la realidad. Por tanto, no se trata de caracterizar el carácter
extraordinario de comportamientos, semipatológico en cierto sentido,
en este campo de historias de vida; aquí no hay nada que indique una
carencia o pérdida de relación con la realidad, cualquiera que sea. En un
cierto sentido, incluso, es el contrario. Esos sujetos, que vieron entrar
en su vida acontecimientos de una amplitud fuera de proporción, al
vivirlos su personalidad entera habiendose reajustado en su relación
con las cosas y con los otros, saben − perciben − que su experiencia

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del sufrimiento no acaba con la realidad, y por tanto que de todas


formas esta última no constituye el horizonte final de algúna relación
y de algún vivido individual y colectivo. Y sin embargo, nonobstante
no absolutizarlo con algún tipo de comportamiento particular, esos
continuan de vivir esta especifica travesía de la realidad como une
clase de “eje” de su existencia: como algo único que sigue siendo
inagotable en el vivido de su cuerpo si bien siendo parcial respecto al
conjunto de las interacciones − y ciertamente también a las tendencias
dominantes − presentes en su contexto cultural y civil.
Esto es el punto verdadero de la entera questión, su
significado efectivo: a pesar de una imprecisión “objetiva” del relato
de la experiencia, del testimonio del sufrimiento vivido, y hasta en
muchos casos del desacuerdo que se crea entre testigos diferentes
en el relacionar acontecimientos generales análogos, o idénticos,
que han hecho en el contexto de su vivido − como la detención en
los lager durante la segunda guerra mundial −, existe una unicidad
en la mirada de parte de cada uno de estos protagonistas directos
de acontecimientos radicales, fundada en la fuerza de la memoria
“encarnada” en su existencia, que hace de ellas todas fuentes
cuya escucha es imprescindible en historia; aquella imperfecta,
contradictoria, incluso lábil pero viva: así es porque vivida, sin filtros,
de manera extrema. Esta es la importancia de las memorias de vida,
de los relatos orales de los nudos cruciales de la historia personal: su
ser desgarrado por un vivido tal vez incoherente pero irreductible a
sistematizaciones formales, y aún menos al rechazo brutal, de todos
modos restringiendo su profundo alcanze existencial; y que mantiene
la fuerza de testimoniar las grandes dinámicas históricas del punto de
vista el menos archivable que sea: el de los cuerpos vividos.

Historia de Lucio, hijo argentino de veinticinco años

Lucio es un miembro del grupo “Hijos – Paris”, o sea la


primera asociación de hijos de desaparecidos − sobre todo argentinos

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− constituida en Europa; la primera de una serie de asociaciones


análogas poco a poco creadas en muchas capitales europeas, y
obrando desde hace un decennio. La finalidad de estas asociaciones
de gente aún muy jovenes y bastante decididas es en el fondo la misma
que la de sus padres: que justicia se haga. En el caso de los Hijos −
que significa precisamente “Filhos” − la justicia consiste (consistiría)
en un triple resultado: desalojar y hacer castigar legalmente − y
proporcionalmente al crimen cometido − los verdugos y los asesinos
de sus padres; localizar sus contemporáneos aún en las manos de las
familias de los asesinos de sus parientes, e ignorantes de su historia
y luego de sus derechos, el primero de todos siendo la reconquista
de la verdadera identidad personal, para aiudarlos en la delicadísima
reconstrucción de sus reales referencias afectivas y familiares; y
devolver dignidad histórica, política e incluso ética a las figuras de
los padres, los desaparecidos, en el entretanto trayendose de nuevo la
memoria de su experiencia y de su fín. Pues, en definitiva las tareas
que se asignan las asociaciones de los Hijos sintetizan las de todas las
otras asociaciones comprometidas en la questión de los desparecidos
− y más generalmente de los derechos humanos fundamentales y
de la denunciación de su violación −, en particular, en el marco que
tratamos, las asociaciones de las Madres (as Mäes) y de las Abuelas (as
Avós) de la Plaza de Mayo.
El que escribe encuentra Lucio precisamente en la sede
parisiense de los Hijos, con motivo de una de las recurrentes campañas
de información y de denunciación de las cuales se carga l’asociación
con gran implicación de todos sus miembros. Lucio es, a la vez, un
hijo con una historia “clásica” pero también atípica. Incluso la suya,
como la de todos sus compañeros de experiencia, es una historia
de de desgarramientos y laceraciones, tan repentinos que radicales.
Laceraciones de los lazos parentescos primarios, de la relación con
los lugares de la infancia, de la continuidad de diálogo e incluso de
contacto con los supervivientes, testigos directos del conjunto de
acontecimientos que lo implicaron así de cerca. Sin embargo, su

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historia personal también es atípica en el sentido que ninguno de sus


padres es un desaparecido en el sentido estricto del término, porque
su madre forma parte de la minoría de las personas que fueron
matadas directamente en su casa, en una emboscada preparada para
su eliminación inmediata, y su padre, aún que haya atravesado todas
la fases típicas de la detención y de la tortura, es uno de los pocos
supervivientes entre los arrestados de esos años. Así pués, Lucio no
sólo sabe quienes son sus verdaderos padres − de hecho, como se
sabe, lo que no está garantizado a todos los hijos − pero también
conoce su destino, y hasta consiguió reunirse con su padre de manera
duradera, incluso si con las muchas dificultades que permanecen en
su vida en común.
El testimonio que entrega Lucio, integralmente referido aquí,
es casi solicitado por el joven argentino una vez verificado el interés
del que escrive por su historia. Y la base inicial del discurso, sobre la
cual articular recuerdos y commentarios, no es otra que la pregunta
“qué cosa te ha hecho acercarte a la asociación Hijos, que es lo que
sigue moviendose dentro de ti como un impulso tractivo? ”

Nací en Argentina en 1976, ya no me recuerdo


muy bien del día, sé que mi madre murió cuando
tenía tres años, se encontraba ya de hecho en la
clandestinidad, y es a esa época que muere en 1978;
mi padre fue arrestado mas o menos en el mismo
periodo, él va a la cárcel... o quizas me equivoco...
mas bien en 1977, algo parecido. Se que fuí reunido
con mi padre en Francia, “mandado” ahí por los
militares, a los casi tres años, le alcanze ahí con mi
hermana, que es un poco mayor que yo. Vivímos
en Fontainebleau creo durante un par de años y
después mi padre encontró otra mujer y fuímos
a vivir con ella, que tenía ya dos hijos y así nos

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volvimos todos hermanos... cuatro, de la misma


edad. Al principio de mi vida viví con mi abuela,
despues con un tío, y despues de hecho no se bien
con quién; digamos que durante los tres primeros
años (de mi vida) cambié muy muy a menudo de
sitio... en Buenos Aires; y un poco también con otra
parte de la familia, con la hermana de mi padre que
vive en una pequeña ciudad cercana de Buenos
Aires, y demoré unos tiempos allá, en una grande
casa de campo.
Para entender la llegada en Europa de mi padre,
a solas, en efecto es una cosa bastante compleja...
Es necesario explicar la relación entre ellos y los
militares... Después del golpe de estado mucha
gente acabó en la cárcel y él fue recluso a la Esma
[la escuela militar de la Marina militar argentina,
afamada por la violencia de las torturas que se
infligían en ella, como resulta de los actos de los
procesos instruidos en los años 90 en algunas
ciudades europeas contra asesinos de ciudadanos
argentinos con doble nacionalidad; ndr.], y allí
el comandante en jefe se le occurre... ya que por
fuera la situación anda bastante mal en realidad, la
imagen que en el estrangero uno ha de Argentina
es muy negativa, entonces se le occurre de crear un
grupo de prisioneros que reinsertar en su “optica”
para enviarlos un poco como “misionarios”... Y no
se sabe porque él más bien que otros (en este grupo
de liberados); la unica cosa es que él hablaba francés
porque había andado a la escuela francesa cuando
era niño y eso le permitía de traducir al interior de
su grupo los periódicos franceses que trataban de

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su situación. Él no ha sufrido la tortura clásica, de


la “picana” como llamán la de la electricidad, pero
más bien verdaderamente una tortura psicológica;
la historia es que estaba en un gran estado de
agotamiento, muy próximo a... y entonces puede
ser que por eso... Él mismo no sabe porque no
ha sido torturado de esa manera. Formaba parte
de los Montoneros... [precisamente, la Juventud
peronista que se constituyó como grupo
guerrillero a partir de 1970, de tendencia a la
vez izquierdista y populista; ndr.] Hoy [2001, al
momento de la recolección del testimonio; ndr]
mi padre tiene cincuentados años... él era ya “grande”
[de cierta edad; ndr], y estaba en la guerrilla. Y
tengo la impresión que, de manera un poco rara,
los militares tenían respeto, para decirlo así, por
los guerrilleros, porque los veían como partisanos
y sobretodo jovenes con ideas muy muy fuertes.
En todos casos estos tipos pensaban ser capacez
de volver del revéz el espíritu de los militantes
haciendolos trabajar para ellos. Y hay personas que
se pusieron de verdad a trabajar con los militares, y
esa era su (de los militares) idea, sabes... Y cuando
son jovenes capacez, en el sentido que sabían
organizar acciones, creo que ahí está el interés de
los militares... En efecto los militares tenían una
doble idea, por un lado demostrar que liberaban
prisioneros, y luego hacer de ellos una especie de
espías... en su concepción, al menos. Pero yo no
sé hasta que punto ellos (los prisioneros) estaban
obligados (a seguir esa intención de los carceleros);
lo cierto es que estaban vigilados (incluso después

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

la liberación). Despues de todo eso él (mi padre)


consiguió recobrar la libertad, más o menos... No
supo nunca hasta que punto fue vigilado, incluso
aquí en Europa; en efecto en Europa ellos (los
militares argentinos) tenían una base en Francia,
una base muy conocida, que está en el decimosexto
distrito [departamiento urbano de París; la
ciudad entera está administrativamente dividida
en veinte distritos; ndr]; hay pequeñas casas que
eran un polo de los militares en París. Y cuando él
llegó en Francia creo que, no sé como, sabían ya
que su mujer, mi madre, había muerto, que ellos
la habían matado... Fue golpeada practicamente en
el mismo período en que él era detenido, incluso
ella era montonera, la misma cosa... Había vuelto a
casa a buscar algo, y los militares la esperaban allí.
Ese destino tan diferente para los dos... La mataron
porque había vuelto a casa... en la casa... es eso...
así. Los vecinos nos lo han dicho todo. Era un poco
más joven que él pero de poco, penso que tenía casi
la misma edad.

Los padres de Lucio son “montoneri”, a saber guerrilleros


peronistas. A la época de los hechos de que se trata, eran los dos
casi treintañales, según la reconstrucción del hijo, y luego en la
parte alta del estado civil de la generación que en gran medida ha
compuesto los grupos militantes más activos de la oposición radical
argentina. Lucio no especificó los motivos por los cuales su padre y
su madre no estuvieron juntos en los momentos cruciales y decisivos
de su experiencia de lucha, por ejemplo al momento de su detención
que parece preceder de algunos meses su ejecución a ella; pero
los dos estaban de modo permanentemente en la clandestinidad,

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AS VOZES DO SILENCIADO

y eso significa que habían pertenecido a las formaciones las más


aguerridas de la izquierda peronista, y que en estos primeros años de
la dictadura se podían ya considerar supervivientes, seguramente en
adelante aislados y privados de cobertura sea política sea militar de
cualquier tipo. Hay dos puntos de esta parte inicial del testimonio −
completamente conducido por Lucio (asimismo para todos los testigos
que encontrémos) siguiendo un camino totalmente voluntario y luego
solo construido sobre la base de sus recuerdos los más nítidos y de
la perspectiva personal del discurso − que vienen muy claramente
observados: su llegada en Francia, a la edad de tres años, en donde
encuentra su padre; y la relación de este último con la detención, y
luego de hecho con la maquinaria militar que lo encarceló. A un cierto
momento de la clandestinidad su padre y su madre se perdieron de
vista, por cierto; pero la madre viene matada en su casa, mientras el
padre viene liberado despues de un período de detención que duró
unos meses. Esa asimetría de destinos parece golpear Lucio en modo
particular, hasta tal punto que la afirmará otras veces; y sobretodo,
sigue siendo uno de los nudos mas complejos y dolorosos de su
relación con su padre, aunque sin ninguna intención crítica y aún
menos de censura con respecto a ellos. Por lo contrario, lo que el hijo
insiste en evidenciar es en realidad el proyecto de instrumentalisación
por parte de los militares de una cuota de prisioneros, para ellos
siguiendo de alguna manera “utilizables” tras la liberación; detenidos,
en cualquier caso torturados de varias maneras, escogidos, imagina
Lucio, a causa de su prestigio reconocido incluso por los mismos
militares. Ciertamente, lo que espera al bebé en la nueva situación
europea no es un simple reencuentro con el padre, mas el inicio de
un largo recorrido de acercamiento y de descubrimiento recíproco al
desenlace incierto, y tal vez imposible de solucionar.

Y así llegué en Francia... pero en toda esta historia


me dí cuenta muy dificilmente de algo; luego mis

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

parientes contaron bastante pronto a mi hermana y a


mí lo que sucedió sobretodo a propósito de nuestra
madre; todo lo demás, la militancia, así como la
tensión, nuestro padre no habla nunca de ello... Él
jamás explicó lo que ha sucedido en aquel entonces.
Creo que reaccionó un poco como si duviesen
detenerlo de nuevo, y luego, varios años después,
se pregunto nuevamente las mismas preguntas
siendo ya más viejo, quizas quince años después,
y fue como si no tuviera nada que decir, algo por
el estilo, y aún despues casi nada ya. Mi hermana
tiene un recorrido un poco diferente porque se fue
a militar en Argentina, para los “hijos” justamente,
y así tuvo con mi padre discusiones, siendo de
más edad, y tuvo problemas con la madastra y se
fue de casa mucho antes que yo; y en resumen
siempre tuvo relaciones mas complicadas con mi
padre, y le preguntó muchas cosas. Se marchó para
Argentina, a solas. Cuando pregunté a mi padre
por mi madre tenía unos diez años, y él repetió la
misma historia sin nunca entrar en detalles. Creo
ser ya consciente, en aquel tiempo, que era una
cosa muy difícil de discutir; a lo mejor a un cierto
momento ya no quedó base de discusión, no había
que volver a plantearlo ya, y en efecto no lo hice
nunca. No sé porqué exactamente, creo que se
quizo acabar de una vez con eso... Claro, siendo
en casa... sentí en efecto que había una especie de
separación entre nosotros dos, mi hermana y yo, y
los dos otros hermanos. Siempre tuvímos la idea de
ser todos hermanos, pero al lado de eso en cambio
teníamos problemas conflictuales con la madastra,

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AS VOZES DO SILENCIADO

que era una señora muy rígida, y fue ella en efecto


que hizo el trabajo de educadora porque mi padre
era un poco... muy muy en sí mismo, así pues no
tenía realmente con nosotros una relación como
esa. Y le tocaba a ella llevar los dos aspectos, el
afectivo y al mismo tiempo ese bastante duro... En
el fondo, en medio de todo esto, aún no planteé
realmente la cuestión de comprender, de conocer,
conscientemente la historia de mi madre, creo que
todavía debo hacerlo, para decir toda la verdad.
Aún no tuve nunca una verdadera confrontación
con mi padre sobre ese asunto, no hablé nunca
de veras de eso, para decir la verdad. Creo que es
porque nuestros carácteres son muy semejantes; él,
me imagino, cree que reabrir esta discusión puede
resultar muy difícil para mí, y yo, con algunas
razones más, temo entrar de nuevo en esta cuestión
tan difícil para él. Aunque quisiera saber más de
ello, ciertamente... Son muchos los amigos que
vivieron como él la militancia, incluso montoneros,
y así hablan de ello, hablan de política, siempre
hay esa sensación..., pero es engañosa porque se
habla siempre de política general pero de la historia
verdadera... no se habla, no. Es cierto que para mí
sería más bien interesante... como ves me hago
preguntas pero las respuestas no las conosco casi
nunca. Conosco lo “general” pero el resto... Y tu
sabes, parece un poco horrible decir esto, pero
no pienso casi nunca en mi madre, para decirte
la verdad. Cuando pienso más en ella es cuando
vuelvo en Argentina, que hablo con los familiares,
las personas son muy diligentes, te preguntan si

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

sientes todavía pena, y por supuesto respondes que


si... Pero a decir verdad uno tiene que imaginarse
que a tres años no se reflexiona mucho, y que mi
madastra, a pesar de las relaciones conflictuales,
es en realidad mi segunda madre. Recuerdo una
vieja fotografía de mi madre que tenía mi hermana
al lado de su mesa de estudio... pero nunca más
pedí de ver una imagén suya. Evidentemente en mi
carácter hay algo frío, pero es muy difícil para mí
reconocerme en una especie de falsa actitud como
aquella de sentir pena par alguien que no se conoció
nunca. La verdad es que no tuve nunca cualquier
relación con ella, de tipo consciente.

Lucio nace en Buenos Aires, con los padres ya al umbral de


la clandestinidad, y crece en Francia a partir de los tres años. Con
el padre y la madre vive pues los primeros años de su vida en una
condición muy instable, hasta que con su detención a él y su asesinato
a ella los contactos estén cortados, perdiendolos definitivamente con
una y restableciendolos a duras penas con el otro al correr de los años.
Aquí se coloca uno de los nudos más radicales e incluso intricados de
su historia, porque es evidente que con ambas figuras de los padres
la relación puede ser reorientada − cualquiera que sea − sólo a partir
de los acontecimientos de aquella primera separación decisiva, de
su comprensión y quitando el velo echado sobre ella. Y el nudo,
precisamente, se confirma muy complejo en desatar incluso en la
prosecución de la convivencia con el padre. Lucio crece en un contexto
familiar sólo parcialmente íntimo del punto de vista afectivo, aunque
no rechazados por él los nuevos componentes representados por la
compañera del padre y los dos otros hermanos adquiridos. Y con un
vacío que permanece intacto, y nunca colmado, en la progresión de
la relación con la unica figura que lo pueda hacer, el padre: un vacío

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AS VOZES DO SILENCIADO

que reclama la necesidad de recoser una historia, de hacer emerger


de nuevo los lazos así como las imágenes que la escandieron y que
conciernen también con tanta proximidad la existencia de Lucio. Y
frente a esta necesidad tiene que rendirse, al menos del lado familiar,
tan esencial en esas implicaciones directas que aquel vivido representa
en la vida de todos los protagonistas de ese acontecimiento; y resignarse
a las reticencias o la repetitividad de su padre que, además, no se
distancia de aquel momento de su historia ya que sigue discutiéndolo
y proponiéndolo otra vez con los viejos compañeros de lucha,
manifestando así a su vez − con su actitud global − la permanencia de
un sufrimiento inagotable. Esa forma de consciencia – “rendición” de
Lucio, frente a la indisponibilidad del padre y al entrar en el asunto
profundo, íntimo, de su experiencia − se convierte en una declaración
de “realismo”, destacada pero poco sólida en sus mismas palabras,
incluso frente a la figura de la madre, hacia la cual nuestro testimonio
continuamente se tiende y se aparta, ignorando en realidad COMO
acercarse de ella. La madre, cuya presencia afectiva anima de hecho
todas las elecciones más importantes de la hermana de Lucio, para él
permanece la representación la más fuerte de los orígines de su vida,
indeleble y vaga a la vez, punto firme y ausencia incomprehensible.

Eso puede engañar, en efecto: el día que llegué, en


que nos vimos por la primera vez, a la reunión de
los hijos [el grupo de París; ndr] fue verdaderamente
la primera vez que me acerqué, que decidí
interesarme... Hay algo loco en todo esto porque
jamás estuve interesado... jamás fuí implicado en
política (desde niño), aparte una atención general a
la política exterior. Pero después hubieron algunas
indagaciones, sabes, la lectura de las revoluciones
de América Latina, algo más avanzado, para
hacerme un dossier, con la idea de andar luego

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

allá y de encontrar las asociaciones, su realidad.


En efecto hubo un cúmulo de circunstancias que
me hizo acercar de los hijos. Mientras tanto en mi
casa, que es importante por que es necesario que
las cosas partán de allí; y para mí hubo una relación
entre muchachos y adultos nunca tensa sobre esas
cosas, siempre fuimos muy libres de discutir, eso
de verdad es particular, de tener sus propias ideas.
Luego el hecho que mi hermana me telefoneaba de
Argentina y me decía “ven, ven”; y entonces creció
el deseo de andar en esta Argentina frente a la cual
me sentía un poco idiota, como un ignorante... así
era este deseo. Y las ganas de ver Cuba, la patria de
Fidel Castro, esta revolución realizada, esto fue el
principio de todo, la excusa par ponerlo todo en
marcha. El anhelo (de acercarme a este mundo...)
siempre fue fuerte, pero fueron las circunstancias,
simplemente, que lo hizieron hacerse real. Y sabes,
lo que más siento frente a este mundo, más que
otra cosa, es una actitud “matemática”... no tengo
en el fondo pulsiones, aparte cuando me encuentro
en alguna discusión con personas que no están de
ninguna manera de acuerdo conmigo... para decir
realmente lo que siento sobre esto, más que todo
la posibilidad de hacer algo. Y la posibilidad de
hacer algo en Francia es más importante para mí
que hacer algo en Argentina, simplemente porque
estoy en Francia. Y hablo del reconocimiento de los
desaparecidos, y no solamente argentinos. Por otra
parte hay la suma que el govierno argentino tuvo que
conceder [a las familias de los desaparecidos? no
lo especifica aquí el testigo; ndr], veinticinco mil

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AS VOZES DO SILENCIADO

francos, que es una suma con la cual puedes hacer


lo que quieres, que ayuda mucho para desplazarse.
No siento rabia, no tengo un espíritu vindicativo,
de ningún modo; siento que hay algo que hacer, un
recorrido posible, es eso que me interesa. Y el punto
central sigue siendo el de los derechos humanos; el
de crear una situación que permita por todas partes
de garantizarlos. Para mí la más nítida visualización
de esta oportunidad ha sido el dinero que me dió el
estado argentino [ahora especificado; ndr.], que me
convenció que se puede lograr algo, simplemente
es necesario luchar... La verdad es que lo que me
perturba más es que nuestra historia argentina se
reprodució exactamente en Argelia, y se reproduce
cada día, y es esto que me hace rabiar y que es muy
insostenible, en efecto. En el fondo, lo siento como
un problema mundial, esa es un poco mi sensación.
Y creo que por todos lados la facilidad de olvido, de
despegarse de las cosas acontecidas, demostra como
una gran resignación; y a continuación, quizas,
una especie de demasía de información que hace
que la personas son desposeídas de la sensibilidad
con respecto a estos problemas. Los jovenes ya
no sienten esa pertenencia a su País, sin embargo
están más abiertos a la situación mundial, y es
evidente que nadie puede reaccionar a todos estos
problemas al mismo tiempo; y de ahí proviene el
hecho que se sienten completamente desposeídos...
de no saber en qué sentido actuar. Nuestro ventaja
podría ser de tener un País de origen así de atento
a lo que succede. Pero, por otra parte, hay un gran


�����
4500 $�� (Nota
���������������������
del traductor).

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

problema que concierne los Países occidentales, y


es que dentro de cada uno de ellos las cosas no van
tan mal pero es su política exterior que es horrible,
que produce guerras y atrocidades. Y así, para todos
los que no se interesan directamente a la cosas es
muy dificil ver exactamente la responsabilidad de
cada País... No pienso que si los argentinos fuesen
una gran nación se sentirían hoy responsables de...
de ninguna manera. Toma justamente la Argentina
de aquellos años... todos la miraban pero los que
la miraban de verdad eran los que estaban así de
implicados en aquella situación. Así, uno puede
imaginar que todos tienen, por el mundo, una
relación muy ambigua con estos problemas de las
dictaturas. Y lo que me se occurre notar hoy es que
en todos los goviernos oficiales, incluso en Francia,
hay la posibilidad de tener una clase de policía
secreta que emplear como conviene; claramente el
problema de Argentina, y no sólo allí, es que todos
acceptan este principio...
Y no encuentro en el fondo la respuesta sobre el
nivel al cual se llegó en Argentina, porque sigue
siendo una cosa demasiada increíble, de hecho algo
ilógico, una entera generación eliminida a la vista
de todos... A lo mejor llegó un momento en el que
ellos (los militares argentinos) sintieron que estaban
sobrepasando el nivel de lo concebible par cada
uno, y en aquello se sintieron protegidos, porque es
una forma de protección el estar por completo en
el imposible del espíritu... Hay en efecto la cuestión
de la tranquilidad casi completa de Argentina, de
su gente, en aquellos momentos; pero uno de los

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AS VOZES DO SILENCIADO

problemas cruciales es la economía, creo. Hay una


relación muy fuerte entre Argentina y su economia.
Toma la reelección de Menen [presidente argentino
a partir de 1989; ndr.], la facilidad de ignorar
del todo su... moral; todos decían, cuando fue la
primera elección de Menem, que era realmente
muy malo, pero la gente ha acceptado de reeligirlo
en masa porque halzo la economia.

Aquí Lucio empieza a hablar incluso en términos más


directamente analíticos, políticos en algún modo, de su experiencia
y de las motivaciones que stimularon sus pasos en dirección de la
implicación en primer lugar y del verdadero y auténtico compromiso
luego. Y el punto doloroso de esta parte del testimonio concierne
lo que él determina como la doble matriz de la negatividad de la
actitud de las opiniones públicas, y en particular de las generaciones
las más jovenes, frente a la amplitud de la violación de los derechos
humanos y a su perpetuación incluso en la historia contemporánea
muy reciente: el olvido, que envilece la conciencia y que priva las
personas de los puntos de referencia capácez de obstaculizar el
resbalamiento en la pura resignación; y el perfeccionarse, sobretodo
en los Estados occidentales o en los que están vinculados con ellos,
de un aparato informativo − de consúmo que aturde y deforma la
capacidad de apreciación de los ciudadanos, en vez de estimularla
iluminando los carácteres efectivos de los momentos históricos de
las realidades nacionales específicas. Con el resultado, nota Lucio
con evidente malestar, que es la ambigüedad que se difunde, y el
particularismo cerrado que no vuelve uno sensible ni siquiera a las
fases dramáticas de la vida de su propio País.

Es necesario en tal caso bien comprender el


problema de todos estos guerrilleros... Estas

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

personas que estaban compromisas (incluso para


asisitir en diversos modos los pobres de la favelas...)
eran todas personas acomodadas; la especificidad
de la guerrilla argentina es que ha sido conducida
en gran parte por la burgesía. Mi padre, él mismo,
venía de una familia de terratenientes, en efecto, y
creo que para la mayor parte de los montoneros fue
lo mismo. Entonces era una separación muy nítida,
pienso, entre el lado popular de los manifestantes,
en las fábricas, y los guerrilleros que eran más bien
analistas de las contradicciones sociales que de
esas personas que podían sentirlas sobre su propia
carne. Y por eso entre ellos había una relación muy
delicada. Es verdad que muchos de ellos trabajaban
en los bidonvilles, pero creo que tenían una idea
demasiada de políticos del conflicto social. El
dilemna es éste: se puede pensar que la implicación
(de los militantes) en respecto a la parte más
popular de la sociedad era una especie de máscara,
para enmascarar una efectiva exigencia política,
pero... Y lo que me hace decir esto es la imagen
de Peron [protagonista absoluto, como vimos, de
la vida política argentina desde 1946, año de su
primera elección a la presidencia de la República,
hasta 1974, año de su muerte; ndr.]; uno debe
comprender su imagen para poder imaginarse la
posibilidad de los montoneros, que eran totalmente
relacionables con ese personage que era muy
particular. No es de ninguna manera Che Guevara,
no tiene nada que ver con él. Y no sé, de verdad,
exactamente, lo que fueron los montoneros, y con


Chabolas (Nota del traductor)

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AS VOZES DO SILENCIADO

mi padre hable siempre muy poco de eso... Pienso


que lo hizo así (conmigo) por sufrimiento moral...
no sé... diría que la tortura desempeño un papel
bastante importante, claramente la muerte de su
mujer... y todo lo demás... Si procuras no pensar
en algo, todos los recuerdos se bloquean, pero del
momento que abres una brecha en esa muntaña de
recuerdos todo vuelve a emerger. Participó varias
vecez en encuentros sobre aquel tiempo, hablando
de su historia, pero siempre cuenta la misma
historia; su especifidad es la de ser uno de los pocos
que consiguieron salir de la ESMA, y eso hace de
él una especie de persona particular. De lo que me
ha dicho, en Francia el único que pueda realmente
contar esa historia es él, y en Argentina tal vez
uno de sus amigos. En Francia, superviviente de
la ESMA solo hay él, creo. Y de verdad son muy
pocos en total; de hecho el grupo del cual formaba
parte es muy reducido. Pero hablar con los hijos
mismos es bastanta más difícil porque tendría que
contar algo de más personal, no puede contar la
misma historia que dice a los periodistas a sus
hijos. Me dijo que a menudo se le ocurre esta idea
de la responsabilidad con relación a la historia... y
en el fondo pienso que su gran problema es que
la división que hay entre la muerte de su mujer
y su entrada a la ESMA (con todo lo demás) es
bastante marcada para trastornar del todo en ese
tema la dimensión afectiva. Pienso que el verdadero
problema está a este nivel... Luego, sabes, su visión
de las cosas es aún más diferente porque él y todos
sus amigos eran personas mayores que el resto de

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

los militantes, hoy van más bien para los cinquenta


años que para los quarenta. Y diez años, a mi
modo de ver, tienen mucha importancia porque
son personas que habían empezado la militancia
muy pronto y tenían todos los papeles importantes
en la estructura del grupo, de la organización. Es
entre ellos que hubo el más de matados, dado que
padecieron la tortura durante más tiempo.

Lucio tiene falta de reanudar los dos hilos de su discurso,


aquél intimo familiar y aquél más político global; y ha enfocado
ese último nivel de experiencia sin ideología ni forzaduras, por lo
contrario del todo conscientemente, como respuesta a una exigencia
de intervención en un cuadro de desequilibrios morales aún antes
que estrictamente políticos, que siente haber también cercado su vida
tan estrechamente. El punto focal de esa recomposición de niveles
de su relato de nuevo es la figura de su padre. Respecto a esa Lucio
mantiene una indulgencia de fondo, pero también sigue viviendola,
al reconsiderar sus elecciones, en toda su problematicidad. Porque al
fin y al cabo es esa la fuente de toda la historia familiar: la decisión
del padre, y en sintonía con esa incluso la de la madre, de tomar una
parte activa a la guerrilla montonera en un contexto − social y político
− con enormes contradicciones que abarcan la colocación de la propia
guerrilla montonera. Sin embargo, lo que revela ser la dimensión
emotivamente más sobrecogedora para Lucio es el sufrimiento de su
padre que es − todo junto − ulterior motivo y reflejo del suyo. En
efecto, lo que emerge del relato de nuestro “hijo” es como una especie
de trastorno en adelante permanente en la manera de situarse del
padre sobretodo con relación a todo lo que roza la fase militante de
su existencia; y, en esa, con la dimensión afectiva que forma parte
integrante de ello y que habría que constituir el terreno de mayor
contacto con su hijo. Pero Lucio sabe en adelante que este terreno ya

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AS VOZES DO SILENCIADO

no es reconstruible, en la imposibilidad de recuperarse de rasgones


radicales y definitivos; y que vivir (con) su padre significa aceptar de
permanecer a los márgenes de su intimidad violada.

Y por otra parte, debo decirte que, esta historia


de los hijos, yo no llego a comprenderla hasta el
fondo; en mi mentalidad de ningún modo cabe.
Porque para mí no hay ningúna razón de hacer
una distincción entre los hijos de desaparecidos,
los desaparecidos, las madres de los desaparecidos
y las abuelas [existen en efecto diversas
asociaciones de parientes de desaparecidos,
como se ha visto: l’Asociación Madres de Plaza
de Mayo, las Madres de Plaza de Mayo – Linea
Fundadora, Las Abuelas (Avós), y, precisamente,
los HIJOS]; me parece que hay una montaña de
personas que tienen exactamente las mismas
ideas pero que se dividen para nada. Mi adesión
a HIJOS es debida sobretodo al hecho que mi
hermana conoce un poco... porque milita allá en
Argentina, donde están muy cercanos los unos de
los otros, y así... Mi idea en efecto es de ver estos
problemas de los muchachos, de los niños... Y te
digo que por cierto siento un gran respecto para
todas aquellas que son las Madres y las Abuelas,
pero también un sensación muy clara que luchan
unos contra otros; creo que cada uno barre para
adentro, Madres, Abuelas e Hijos. Y por cierto hay
un problema de generaciones diferentes. El hecho
de haber destruido una generación crea un vacío
que se ha alargado en esta época. La incomprensión
entre las abuelas y los muchachos así aún es más

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

grande; de modo que hay un problema increíble...


de lenguage, de manera de situarse... Y eso, en
cierto sentido, es justamente lo que querían los
militares, ellos desempeñaron un papel muy claro
en todo eso. Nadie discute cuánto es excepcional
que las Abuelas vayan por las calles a manifestar,
es una hazaña, o hasta que punto su carácter es
fuerte. Pero, por otra parte, si tengo un deseo
es el de reunificar este movimiento. Aunque la
situación sea demasiada compleja, por todas
partes, en Francia, en Argentina. Y en verdad
no se ve la manera de ponerlos todos juntos y si
luchar para eso. Cada uno razona a su manera,
la manera es diferente, y en consecuencia no se
consigue encontrar un acuerdo.
Lo sé, es verdad, que las atrocidades ante los ojos del
mundo son por muchas partes, y esto es “possible”,
sigue en los límites de lo comprensible en algún
modo; pero la cosa que de verdad es específica de
Argentina, que no he sabido de otro país es este,
es este problema con los niños [repetimos, todos
esos, millares, arrancados a los verdaderos
padres, asesinados por los militares, y criados
en las familias de los asesinos como sus propios
hijos, sin ninguna revelación de su verdadera
identidad; ndr.]. Aquí hay algo que de veras plantea
problemas... más que increíble... El día que me lo
contaron, mi padre y todos ellos, fue algo que me
agarró por la garganta... que te hace venir la carne
de gallina, eso es. Y más la gente sigue hablando,
contandote su historia, en aquel momento es algo
de verdad muy fuerte... Como explicarlo... no

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AS VOZES DO SILENCIADO

lo sé... Directamente no conocí a nadie en este


caso (“adoptados” desde muy pequeños, a saber
raptados como “botines de guerra”, por los asesinos
de sus padres), y mi hermana tampoco, creo, en
esta situación. De lo que supe son muchos los que
fueron encontrados (por familiares legitimos), y son
algunos que incluso dijeron querer quedarse con sus
“padres”. Pero de toda formas, ESA es la verdadera
especificidad argentina; y eso es inexplicable, incluso
de un punto de vista militar. Creo que los militares
argentinos, a lo mejor debido a su condición social,
niegan completamente todo lo que puede ser libre,
algo que es del orden de la fobia; se imaginaban
algo monstruoso en la oposición comunista. La idea
era de extirpar la noción misma de socialismo...
el alternativo... Eso va aún más lejos que hacer
desaparecer la gente; se puede comprender las
ganas de un espiritu violento de quebrar el espíritu
de álguien, pero coger un niño desde su nacimiento
significa poder hacerle lo que uno quiere, y luego
era una forma de sadismo del todo excepcional.
Esto es ser un carácter cínico pero cínico de un
manera bastante débil, con una óptica de la vida así
de debíl como para tomarla con niños. Y lo que se
puede hacer para estos niños, ahora muchachos, es
devolverlos la elección, otra cosa... Y el punto difícil
es decir a estos muchachos quiénes son aquellos
que consideran como sus padres. Lo cierto es que
su caso es muy muy difícil, es una especie de salto
obligatorio en lo desconocido. Tienen su historia
pero de una complejidad atroz.

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LOS RASTROS DEL SUFRIMIENTO EN EL VIVIDO DEL CUERPO HUMANO PROPRIO

En la parte final del testimonio Lucio entra sin más vacilaciones


en el tema sea de los objetivos que se propone como militante de los
Hijos, sea de la consideración de la “especificidad” del caso argentino,
della particularidad de las medidas represivas adoptadas en aquel País.
Y para ambas cuestiones expresa une estado de malestar una vez más
muy cerca del sufrimiento, aún cuando por razones diferentes. Lo
que lo confunde y lo desanima, dentro del campo en el cual decidió
entrar con una participación ahora asidua, es incluso lo que menos
llega a entender: la desagregación de las fuerzas, su separación, en un
caso hasta la fragmentación misma (aquél de las dos Asociaciones de
Madres), cuando la puesta en juego − humana, política y moral − es
tan elevada y tan evidente en el significado que asume para todos. La
lógica de la movilización y del compromiso, según Lucio, aún más
en un caso como éste en el que la relación de cada “militante” de la
campaña sobre los desaparecidos con la materia tratada es tan fuerte
y personal, debería verse como un proceso natural el construirse
de una agregación general de todas las fuerzas que comparten una
implicación tan profunda, y de su interacción sistemática ya sea en
la fase de la sensibilización al problema a un nivel social ya sea en las
siguientes de denuncia jurídica de los responsables de crímenes y de
desarollo de una documentación histórica. Y en cambio, justamente,
se mueve incluso en este ámbito de manera dividida, absurdamente
debilitada al fin y al cabo, según Lucio, corriendo el riesgo de hacer
vano el esfuerzo de recomposición de una memoria colectiva que es
fundamental para sostener la verdad de la historia vivida.
El acceso al intero testimonio, en un crescendo de identificación
apasionado que emerge spontaneamente de nuestro “hijo”, a pesar de
su sobriedad y casi su repugnancia, concierne la cuestión de los “niños”,
de sus contemporáneos arrancados pequeñitos a las familias legítimas
− eliminadas por los militares − y que crecieron considerando como
sus padres los criminales miembros de la dictatura. Porque éste es EL
punto en que se sobreponen integralmente las dos tragedias, la de los

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AS VOZES DO SILENCIADO

desaparecidos y esa − justamente − de los hijos. Perder un cónyuge,


un padre, ya es una fractura de la integridad de su storia; pero verse
extirpado absolutamente cualquier vínculo afectivo, verse negado
incluso cualquier lazo biológico, con esos mismos por los cuales
fueron concebidos, y paridos en el caso de los centenares de jovenes
madres capturadas aún embarazadas, es un nivel de embrutecimiento
y de encarnizamiento tan grande que Lucio no consigue hacerlo entrar
en alguna de las variantes incluso tan extendidas de la represión5
conocida. Éste es el terreno del compromiso en que se avanza,
sinceramente buscado por él porque madurado poco a poco y en la
reproposición del sufrimiento vinculado con su vivido personal, y
Lucio sabe muy bien que es un terreno tan difícil como delicado de
recorrer: contribuir a devolver la dignidad de verdad a vidas todavía
jóvenes que vivieron de manera ininterrumpida en la mistificación
y en la violencia de la represión. Extirpar esta vez, y finalmente, el
contacto con un horizonte de violencia incondicionada que estos
hijos aún inconscientes tuvieron que soportar durante su primera
infancia. Y sostener sus contemporaneos, devueltos a su identidad, en
la reconstrucción de una historia, de un recorrido de experiencia, que
se encuentran enfrentados con una clase de sufrimiento para ellos aún
inaudita pero no siendo ya vinculada con un alienación profunda, tal
como la represión que marcó los primeros años de su vida, en cuanto a
una recuperación vital que es aquella de la memoria de la cual forman
parte integrante; que él que testimonia − los otros hijos, las Madres,
las Abuelas, los supervivientes − los aiudará a realizar.

5
La calabra tiene aquí un sentido político (Nota del traductor).

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QUANDO O SILÊNCIO
TRANSBORDA, CALABOCA JÁ MORREU
RELIGIOSIDADE, CIENTIFICIDADE E
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA*

Marta Helena de Freitas

Aqui ninguém manda, nem obedece. (...)


A vida pessoal, a expressão, o conhecimento e a história
avançam obliquamente, que não reto em direção a fins ou conceitos.
Merleau-Ponty (1960/1980, p. 125)

Introdução

Após décadas consecutivas de silêncio e marginalização, o


tema religião tem sido resgatado, sob novas perspectivas, no contexto
da formação do psicólogo. Este resgate, no entanto, ainda tende a
ser visto com muitas suspeitas, desconfianças ou cautela no meio
acadêmico. Os livros técnicos adotados nos cursos de formação em
psicologia oferecidos pelas universidades ainda trazem um imenso

*
Este trabalho é derivado de pesquisa realizada pela autora, junto a estudantes de psicologia
da Universidade Católica de Brasília, ao longo de seu doutorado, com tese defendida
em junho de 2002, no Instituto de Psicologia da UnB (FREITAS, 2002a), sob orientação
do Prof. Dr. Norberto Abreu e Silva Neto. Partes das reflexões aqui desenvolvidas foram
anteriormente apresentadas nos seguintes eventos: IV Seminário de Psicologia e Senso
Religioso, realizado em São Paulo, em setembro de 2002 (FREITAS, 2002b); VI Conferência
Internacional sobre Filosofia, Psiquiatria e Psicologia, realizada em Brasília, em julho de 2003
(FREITAS, 2003); 26º Internationales Wittgenstein Symposium, realizada em Kirchberg –
Áustria, no ano de 2003 (FREITAS, 2003); X Convegno Internazionale “Religione: Cultura,
Mente e Cervello”, realizado em Verona – Itália, em setembro de 2004 (FREITAS, 2004);
e no VI Seminário de Psicologia e Senso Religioso, realizado em São Paulo em agosto
de 2007 (ANPEPP, 2007).

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não dito sobre o assunto, parecendo levar ao pé da letra a assertiva


wittgensteiniana que declarava os limites da linguagem como
equivalentes aos do pensamento: “Daquilo que não se pode falar,
deve se calar” (WITTGENSTEIN, 1921/1968, p. 129). Os professores
de psicologia, de um modo geral, ainda tendem a se sentir bastante
incomodados ou, no mínimo, desconcertados quando o assunto
religião ou religiosidade emerge em sala de aula, e então tornam-se
zelosos para que as vias expressivas não se substituam às vias lógicas.
Há um grande receio de que as primeiras descambem facilmente para
efeitos sintomáticos ao invés de comunicativos, induzindo afetos
e sentimentos e, por conseqüência, seduzindo ou enfeitiçando o
raciocínio e o pensamento, ao invés de aprimorá-los.
Consideramos, entretanto, que os elementos motivadores
dessa atitude, assim como suas implicações, merecem olhares críticos,
já que o fenômeno religioso continua efervescente na experiência
humana e a ordem do não dito não o enfraquece enquanto fenômeno
existencial. Aliás, muito pelo contrário: quando o silêncio é
transbordante, a necessidade de expressão se fortalece e, se barrada
pela linguagem, buscará vias outras para seu jorro. Some-se a isso a
importância de se abordar criticamente, em Psicologia, os fenômenos
marginalizados. Afinal, é saudável lembrar que margem não é apenas
o que está afastado, ou o que está na borda, mas também aquilo que
pode promover a expansão das fronteiras.
Justamente no sentido de analisarmos criticamente as fronteiras
estabelecidas pelo discurso psicológico, ao longo da formação
acadêmica, neste trabalho apresentamos reflexões elaboradas a partir
da experiência de ouvir depoimentos de estudantes sobre o modo
como experimentam suas respectivas crenças, dúvidas, ou descrenças
religiosas no contexto de sua formação em psicologia. Tais depoimentos
foram verbalizados em entrevistas, fenomenologicamente orientadas
(AMATUZZI, 2001; GOMES, 1998) e realizadas em pequenos grupos,
quando eram questionados sobre suas motivações em participar de

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uma pesquisa (FREITAS, 2002) sobre o assunto: suas próprias crenças


ou descrenças religiosas e o impacto da formação científica sobre
as mesmas. Discutimos a suposta oposição entre os conhecimentos
de psicologia e as crenças de natureza religiosa, refletindo sobre as
decorrentes implicações para sua futura prática profissional, a partir
de uma leitura fenomenológica sobre os limites e as potencialidades
de ambas: a linguagem expressiva e a linguagem científica.
Propomos, então, que, em vez de simplesmente reproduzir
o silêncio sobre o tema religioso ao longo da formação profissional,
o estudante de psicologia seja levado a fazer importantes reflexões,
por meio de uma atividade crítica da linguagem, sobre sua própria
subjetividade e vivências relacionadas ao tema e a tirar delas uma
experiência rica para o seu futuro exercício profissional. Para tanto,
queremos evitar cair no reducionismo teórico, assumindo que não cabe
à psicologia pronunciar-se sobre a realidade ontológica de Deus ou de
uma dimensão transcendente, mas cabe-lhe considerar as convicções
das pessoas estudadas ou atendidas em consultórios, respeitando e
compreendendo o sentido que tais convicções adquirem no contexto
de suas próprias vidas. E lembramos que esse sentido não pode ser
lido meramente numa perspectiva patologizante ou psicologizante,
mas ao qual deve-se reconhecer também a sua importante dimensão
saudável e terapêutica.

Religião e psicologia: a suposta rivalidade

Se, de um lado, os livros introdutórios de psicologia


trazem, hoje, um imenso “não dito” acerca do fenômeno religioso
na experiência humana, ou sobre o que se convencionou chamar
de Psicologia da Religião, a história mostra que, desde as suas
origens, na filosofia, até à versão moderna ou contemporânea, esta
mesma psicologia foi construída por homens que se esforçaram por
compreender tal fenômeno. E se, de um lado, seja bem possível que

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boa parte dos psicólogos acadêmicos sentiriam dificuldades em falar


sobre o assunto, é também verdade que grandes vultos, na história
da psicologia, dentre eles Brentano, Wundt, William James, Freud
e Jung, não se esquivaram de fazê-lo; pelo contrário, fizeram-no por
conta própria, refletindo intensamente sobre a questão, desde a sua
própria vida interior.
A psicologia clínica, cujo fundamento é a noção de ajuda, é
o campo de atuação que, ainda hoje, mais atrai os estudantes, e isso
desde sua entrada no curso de psicologia; ela tem, na sua origem,
fundamentos de natureza religiosa. A própria etimologia da palavra
psicologia remete às noções de “sopro de vida”, entre os gregos, e de
alma, na cultura ocidental. Além disso, grandes vultos da humanidade,
que marcaram os primórdios deste campo do conhecimento humano,
como Sócrates, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, debruçaram-se
sobre sua própria vida interior, num exercício introspectivo vinculado
às suas próprias crenças e experiências religiosas. Entretanto, sob uma
égide racionalista e, ainda, numa cultura secularizada, ao buscar o
status científico, o trabalho do psicólogo clínico busca mostrar-se
não apenas independente da religião, como também se faz, de certa
maneira, seu declarado rival (AUGRAS, 1986). O preço a pagar por
isso é uma dicotomia, artificialmente estabelecida, freqüentemente
às expensas do vivido (Erlebnisse), criando um paradoxo: evitar-se
justamente o que deveria ser o objeto fundamental de compreensão
da clínica – o mundo da vida.
O referido paradoxo é acompanhado de um grande mal-estar
que, na expressão dos estudantes de Psicologia, se apresenta de várias
maneiras, como por exemplo, numa tendência a viver como heresia
a referência ou o cultivo das próprias crenças religiosas num contexto
acadêmico. Assim, por ser considerado herético, necessariamente
sinônimo de proselitismo ou perigoso fanatismo, o tema tende a ser
evitado, resultando numa verdadeira escotomização entre a crença
e o conhecimento. Desta forma, quando os temas religiosos são

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tratados numa entrevista, de forma natural e numa relação autêntica e


mobilizadora, as reações iniciais destes mesmos estudantes são, com
freqüência, ou de uma verdadeira catarse - já que o assunto fora até
então reprimido – ou de muita tensão inicial - demonstrada pelos
silêncios prolongados, olhares desconfiados, sorrisos ou meio risos,
um pouco nervosos, e brincadeiras iniciais, como que a ganhar tempo
para uma abordagem na perspectiva do vivido.

O que motivou primeiro, eu achei o tema... religião...


não é um tema fácil de ser tratado, eu acho que é
por aí... e é um tema que as pessoas às vezes deixam
de lado dentro da Universidade. (...) (Estudante do
sexo feminino, 20 anos, 6º semestre).
Eu... O que me chamou a atenção foi o tema da
pesquisa sobre religiosidade que, que... depois que
eu entrei no curso, eu comecei a... como é que eu
falo assim... as minhas bases foram todas... o meu
edifício caiu assim... ficou tudo assim bem confuso
(...) (Estudante do sexo masculino, 20 anos,
3º semestre).
(...) então, como é que fica a relação da crença do
estudante de Psicologia dentro do curso? Eu acho
que praticamente todas as teorias... elas implicam
fatores que... não desconsideram, mas... deixam de
lado a questão da religiosidade, sabe? E, assim, é uma
coisa que acaba chocando... acaba se contrapondo
com nossos valores iniciais, assim (...)... e quando
você entra no Curso de Psicologia, você acaba... ou
modificando, ou pirando, porque... é muito difícil
você conciliar as duas coisas... eu acho. (Estudante
do sexo feminino, 20 anos, 3º semestre).

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Em nome de uma suposta assepsia entre o universo da crença


e o universo do conhecimento, cultiva-se, com freqüência, a crença
de que as variáveis racionais da ciência afetam negativamente a
posição religiosa ou vice-versa: as variáveis supostamente irracionais
da religião afetariam negativamente a ciência. Essa posição asséptica
estabelece uma falsa dicotomia, como se a religião e a ciência estivessem
disputando o mesmo prêmio: o de descrever e explicar corretamente os
fenômenos psíquicos. Freqüentemente os depoimentos dos estudantes
denunciam a postura já assumida por seus professores naquele
contexto acadêmico, segundo a qual o prêmio pertence à ciência.
Cultiva-se, pois, o pensamento de que a crença religiosa é pejorativa,
menor ou inócua, e que deve ser extirpada da personalidade - ou,
pelo menos, da linguagem compartilhada - sob pena de contaminar
negativamente a formação intelectual e impedir a construção de um
conhecimento verdadeiramente científico.

Bom, eu, assim, se eu for misturar as duas coisas... eu


acho que... nem rende nem a minha religião e nem
as minhas matérias... Eu não vejo a relação... Parece
que é o seguinte: a gente entrou aqui, determinada
matéria, você tem que esquecer a sua religião,
assim, aquilo que você acredita, porque se você for
pensar aquilo, aí fala assim: ‘não, mas isso não é
provado, não é científico, não é (...) (Estudante do
sexo feminino, 20 anos, 4º semestre).
(...) a professora estava em sala, e falava-se da
religiosidade na cultura brasileira, espiritismo,
feitiçaria, não sei o quê, e a professora fez aquela
colocação de dizer que aquelas pessoas estavam
no lugar errado porque ‘a visão religiosa e a visão
psicológica são incompatíveis’, como se a pessoa
precisasse ter uma religião onde pudesse encaixar
a psicologia ou como se você precisasse não ter

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religião para fazer psicologia. (Estudante do sexo


masculino, 22 anos, 6º semestre).

No contexto de uma suposta rivalidade entre os conhecimentos


de psicologia e as crenças de natureza religiosa, os impactos subjetivo,
afetivo e cognitivo dos conteúdos estudados ao longo do curso
expressam-se, no mundo da vida dos estudantes, de diferentes
maneiras: no conflito intrapessoal entre crença e conhecimento; no
conflito interpessoal com familiares; no conflito com professores ou
colegas; na insegurança ou dúvida quanto aos critérios de distinção
entre psicopatologia e experiência religiosa; na preocupação de ordem
ética relativa à própria postura profissional perante futuros pacientes
religiosos ou ateus.

Eu passo por um conflito interno muito grande


relacionado a isso porque... eu, normalmente, eu
creio num Deus... Não tenho religião nenhuma,
porque eu acho que ela é cercada de dogmas
pragmáticos... E quando eu penso assim... quando
estou, por exemplo, vendo a natureza de uma
maneira muito bacana, eu penso: ‘Pôxa! Deve existir
algum Deus, não é possível que (...) (Estudante do
sexo masculino, 20 anos, 2º semestre).
Como eu disse no início, eu estou me sentindo
muito desafiado com relação a isso... porque antes
eu tinha assim uma posição muito fechada e você
vem para cá e acaba sendo meio que bombardeado
com relação às suas crenças, com relação àquilo
que você vem seguindo em determinada religião...
E, pra mim, é como estar tendo uma crise, vamos
dizer assim, com relação à própria religião... essa
discordância assim... (Estudante do sexo masculino,
21 anos, 2º semestre).

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(...) ela quase “subiu na parede” (referindo-se à


mãe), e... olha se você for para esse lado científico
e largar a religião, eu vou ficar muito chateada,
porque... Ela chegou a fazer promessa para eu passar
no vestibular e falando assim para eu não me afastar
de junto de Deus... Se eu deixasse de acreditar em
Deus, depois que eu me formasse, eu nunca ia
conseguir ser uma boa profissional... (Estudante do
sexo feminino, 21 anos, 6º semestre).
Freud, por exemplo, que vê a religiosidade e a
religião como uma patologia mesmo, né, como
um neurótico. Então, assim, eu sou uma pessoa
religiosa. Então, eu nunca me vi assim tão neurótica,
assim simplesmente por causa disso... (Estudante
do sexo feminino, 20 anos, 3º semestre)
Pelo menos eu imaginava assim: Eu, como
psicóloga, dentro do meu consultório, eu tenho que
deixar a minha religião do lado de fora, porque eu
não posso, por exemplo, eu acredito numa coisa,
então eu não posso tá passando aquilo pra outra
pessoa, senão eu vou tá induzindo... (Estudante do
sexo feminino, 20 anos, 6º semestre).

Boa parte dos conflitos intra e interpessoais tendem a se


ancorar numa oposição entre o teor de uma crença sustentada pelo
discurso científico e o teor de um discurso religioso. Ora, se ambas
fossem colocadas em planos diferentes, porém complementares (por
exemplo), tais conflitos deixariam de existir. Mas, poucos estudantes
estabelecem essa diferenciação, discriminando a confusão conceitual
ocorrida quando o discurso científico (que tem como critério a força
natural da razão e a verificação lógica ou empírica) tenta abarcar o
plano teológico (que tem como critério uma revelação transcendente
ou numa espécie de fé originária), ou vice-versa.

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(...) Agora, muitas vezes, aqui na Universidade, nós


temos um tratamento... como se nós pegássemos
a religião e colocássemos dentro da Psicologia pra
ser estudada pela Psicologia... Aqui, teve algumas
vezes, por exemplo, dentro da sala de aula, às
vezes a gente consegue separar.. mas, muitos têm,
tipo essa tendência... Como alguns que são, por
exemplo, da Teologia também pegam a Psicologia
e colocam dentro da Teologia para ser analisado,
às vezes a gente tem essa tendência de pegar tudo
e colocar dentro da Psicologia para ser analisado...
(...) Sinto como se houvesse uma... uma confusão...
Vamos dizer assim: querer falar do que não sabe
profundamente. (Estudante do sexo masculino, 18
anos, 2º semestre).
(...)... Como a gente vê assim... é... teóricos
defendendo a mesma coisa, com pontos de vistas
diferentes, é mais ou menos a mesma coisa. A
religião é... vê o mesmo fenômeno, a mesma coisa,
mas dá explicações diferentes. Freud procurou fazer
a mesma coisa... E... (...) eu falo assim, você vai
procurar a Igreja ou a explicação do reforçamento,
disso ou daquilo outro... (Estudante do sexo
feminino, 19 anos, 3º semestre).

Também a insegurança na distinção entre psicopatologia


e experiência religiosa se sustenta sobre uma dicotomia instaurada
pelo discurso psiquiátrico e sua assimilação pela psicologia, ao
estabelecer uma oposição entre o normal e o patológico. Novamente,
aqui ocorre muito mais uma oposição entre o teor de uma crença
de ordem dita científica, que também prescreve valores e estilos de
vida - ao indicar, por exemplo, medicações ou outras alternativas

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de tratamento psiquiátrico - e o teor de uma crença religiosa - que


pode indicar orações, por exemplo. Neste caso, se o teor de uma
crença religiosa tem como parâmetro a idéia do mal, do pecado ou
dos bons e maus frutos, por exemplo, na psiquiatria os critérios têm
variado ao longo das épocas, conforme se trate de um enfoque mais
organicista, empirista, psicodinâmico ou culturalista. Numa atitude de
compreender o que motiva os professores a optarem pelos critérios do
segundo grupo, alguns estudantes interpretam a postura dos mesmos
como louvável zelo pelo aspecto científico e pelo estabelecimento de
uma clara diferenciação em termos do que seja objeto de estudo em
sua disciplina.

(...) (Em resposta a um questionamento do colega)


Sim, mas eu acho que se talvez eles abordassem esse
tema assim dentro de uma aula, em determinada
aula, isso ficaria um pouco contraditório à aula
dele, porque a Psicologia não reconhece a existência
de uma Força Maior, e ele dando uma aula sobre
determinada matéria, se ele comenta, se ele...
mostra o lado pessoal dele, acreditando naquilo,
será que não ficaria um pouco contraditório para
o aluno, não? (Estudante do sexo masculino, 16
anos, 3º semestre).
Eu acho que a Psicologia, hoje em dia, está
tentando dar explicações psicológicas para tudo
o que é relacionado ao homem. E como a religião
é uma coisa relacionada ao homem também,
então cada professor, dentro de sua abordagem,
acha uma explicação relacionada a isso... Então...
não é relevante, para ele, informações do meio
religioso... ele já tem aquilo dentro... já busca
aquilo dentro da teoria dele... uma explicação que

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seria religiosa, ele traz para o âmbito psicológico...


então (...) (Estudante do sexo masculino, 19 anos,
3º semestre).

Com freqüência, a preocupação de ordem ética, por parte do


estudante em formação, sustenta-se sob a exigência de imparcialidade
do terapeuta na condução do trabalho clínico. De um lado, esta suposta
imparcialidade encontra respaldo no mito da neutralidade científica,
buscando o ideal de se abster, assepticamente, de quaisquer crenças
na condução do trabalho psicoterapêutico. Neste sentido, alguns
estudantes chegam a admitir que estão, aos poucos, substituindo
a religião pela psicologia, ou fazendo da psicologia a sua religião.
Ou seja, há uma crença de que a psicologia pode levá-los a atingir
o ideal de ajuda, sustentado pela mística de dedicação ao próximo,
sem incorrer no abuso de poder de tutela que caracterizaria a postura
de uma autoridade religiosa. Desta exigência, entretanto, decorre um
dilema, também de cunho ético: forcluir o tema religioso da clínica
não seria, do mesmo modo, um abuso do poder de tutela, neste caso
sustentado pela autoridade dita científica e assumida pela psicologia?
Nesse sentido, alguns depoimentos, pela espontaneidade com que
foram emitidos, podem levar à perplexidade.

Ah, sei lá.... Acho que a melhor coisa que eu fiz


foi fazer Psicologia... eu acho que a minha religião
é a Psicologia, entendeu? Eu adotei a Psicologia
como uma religião pra mim, independentemente
de... Não que eu não acredite em Deus... Isso é
uma coisa à parte... Eu acho que acreditar em
Deus é uma coisa bem à parte do que você ter uma
religião. (Estudante do sexo feminino, 21 anos,
5º semestre).

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(...) Hoje em dia, eu acho que eu não acredito em


Deus, pelo menos assim da forma como eu via
antes... Eu não sei o que é Deus... Eu acredito assim
numa... sei lá... (...).. Eu acho que eu vou encontrar
na Psicologia assim... trabalhando, né... convivendo
assim com as pessoas... assim, não sei... Eu acho
que eu vou encontrar respostas. (...) O que a gente
procura na religião é isso, é esse apoio... tipo assim,
uma terapia, pra você depositar ali sua angústia,
seus problemas, é... ter, assim, não é ter alguém, né,
mas uma força superior em que você possa acreditar
que vai te auxiliar... E, assim, hoje em dia, eu já vejo
que até na Psicologia, trabalhando, né, ajudando
assim... não é caridade... mas trabalhando numa
coisa que eu gosto e posso até tá tendo um retorno
ali... Então, ah, tá podendo ajudar as pessoas...
Então eu acho... que isso é como se fosse uma...
assim... Eu acho que eu vou me encontrar nisso,
pra poder se encontrar na religião. (Estudante do
sexo feminino, 20 anos, 5º semestre).
(...).. eu acho que pra mim vai ser muito importante
a visão que a Universidade me der em relação às
pessoas, aos comportamentos e, se talvez, eu tiver
que me relacionar com uma outra religião, talvez
eu questione a religião e não me questione como
psicóloga (...) (Estudante do sexo feminino, 25
anos, 1º semestre).
Eu acho interessante que a Psicologia.. (....) muitas
vezes... vai te deixando sem chão. Então, começa a
desacreditar numa coisa e a acreditar na Psicologia,
ou seja, uma coisa parece estar substituindo outra,
sabe? É uma questão, a gente fala, assim de crença

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mesmo. A Psicologia parece que é uma questão


de fé. Substitui uma coisa por outra... a pessoa
passa a acreditar naquilo como se fosse um Deus
também. (Estudante do sexo masculino, 19 anos,
4º semestre).

Por outro lado, as preocupações de ordem ética não se


sustentam apenas sobre um modelo dado pelo mito da neutralidade
científica. Muitos estudantes se mostram bastante sensibilizados e
receptivos à oportunidade de um espaço que lhes permita a elaboração
das próprias crenças religiosas, habilitando-os a melhor lidar também
com as crenças de seus futuros pacientes. Neste caso, a exigência
colocada é a de uma melhor preparação pessoal e profissional
para lidar com o tema, acolhendo o vivido nas suas mais variadas
expressões, inclusive as religiosas.

(...) Quando se rompe o muro do silêncio, pode


acontecer uma própria explosão. Então, a discussão
em torno disso aí pode ser boa, desde que seja uma
discussão saudável, para que se evitem conflitos
no futuro. Porque a religião não é brincadeira, ela
encaminha a humanidade (refere-se aos conflitos
no mundo, em especial na Arábia Saudita) (...).
O silêncio reflete uma censura por parte das próprias
pessoas, por medo ou, então, por respeito ou por
não quererem discutir... Mas, eu acho que é uma
questão necessária para evitar conflitos... É aquele
negócio: é um remédio ruim de tomar, mas você
tem que tomar, pois as pessoas precisam aprender a
falar e a ouvir outras coisas – para que faça com que
as pessoas não se prendam numa só, ou então, tudo
bem, mas aprender a aceitar a opinião dos outros.

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E, assim, tudo bem, evitaríamos vários problemas,


várias guerras (...) (Estudante do sexo masculino,
19 anos, 2º semestre).
(...) Aí, eu acho muito interessante a gente discutir
sobre isso, até para ficar claro pra gente mesmo. Pra
gente poder estar esclarecendo pros outros... porque
a gente em que saber, né, pra poder falar assim ou
não, a gente tem que saber, eu acho muito legal, pra
gente saber o que vai falar (...). A gente vai poder
ter uma visão muito mais ampla, de psicólogo que a
gente vai ser... Aqui todo mundo vai ser. (Estudante
do sexo feminino, 18 anos, 3º semestre).
Eu acho que tem que discutir... Eu não me lembro
de nenhuma vez onde a gente tenha parado para
discutir esse tipo de assunto, entendeu? Assim, a
religião... Como que isso poderia estar interferindo...
Eu acho que poderia ser mais. Porque é uma questão
séria, né, que precisa ser debatida, estudada... e até
por... por assim, pra quem tem preconceito, tem
dificuldade em aceitar essas coisas, estar parando
pra pensar da mesma forma que eu... Então, eu
acho que é o momento mais propício pra gente
estar pensando nisso, não vai esperar chegar lá na
hora de atender, né... ‘Como é que eu vou fazer
com outra pessoa que tem outra religião que não
a minha? Como é que eu vou conseguir me pôr no
lugar dele se eu não acredito na mesma coisa que
ele?’ Então, eu acho que é o momento mais propício,
e eu acho que tem que discutir (...). (Estudante do
sexo feminino, 20 anos, 6º semestre).
(...) o Brasil é um país muito religioso; então esta é
uma coisa que você, como psicóloga, vai lidar no

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seu consultório, com quem você estiver atendendo,


ou à pessoa que você estiver assistindo... Então, é
preciso conhecer, é preciso saber respeitar essa coisa
que a pessoa carrega. Então, acho que é importante
esta coisa de religião.. (....)...Religião, por mais
que seja considerada besteira, mas ela é uma coisa
muito presente na vida da gente... então, acho que
este espaço do diálogo deveria ter. (Estudante do
sexo masculino, 22 anos, 6º semestre).

Ou seja, exigir-se-ia aqui uma psicologia capaz de constituir-


se não apenas como saber técnico e elaborado, mas também de
reconhecer-se como ação expressiva. E isto implica reconhecer a
necessidade de um duplo dinamismo: primeiro, a qualificação da
experiência sentida pelos pacientes, que não pode ser substituída por
um discurso que desconsidere a realidade do sofrimento humano que
freqüentemente a acompanha; e, segundo, o reconhecimento de que
a ciência e o saber se fazem na e pela linguagem, não permitindo a
conclusão ingênua de que existiria uma observação pura e naturalística
cortada da evidência de que todo observador - neste caso específico, o
psicólogo - é ser humano e, portanto, também portador de linguagem,
desejos e, afinal, crenças.

Considerações finais

Apesar dos limites semânticos dados pela linguagem, o


método da entrevista permitiu-nos trazer a fala dos estudantes como
sintoma mais geral da produção científica.Visto dessa maneira,
concluimos pela demanda de maior integração entre os conteúdos
científicos estudados em psicologia e a dimensão teleológica, de
modo a possibilitar ao estudante o aprofundamento de reflexões
epistemológicas e, simultaneamente, derivar alternativas para a
ressignificação das próprias crenças, religiosas ou científicas.

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AS VOZES DO SILENCIADO

A formação do estudante em psicologia, ao priorizar abordagens


teóricas construídas sob uma égide positivista e/ou racionalista, ao
mesmo tempo em que busca desenvolver sua capacidade de revisão
crítica e ética de pressupostos dogmáticos, num sério compromisso
com a formação profissional, carrega consigo também um sentido
ideológico e defensivo, levando muitos estudantes a um verdadeiro
exercício de “extirpação” da crença religiosa de sua própria
experiência subjetiva, vivida com muito sofrimento e angústia. Fica,
então, a seguinte reflexão, por meio de indagações: a destruição de
determinados dogmas precisa se dar, necessariamente, à custa do
desenvolvimento e manutenção de outros, numa perspectiva de
substituição de cosmovisões, como parece ser vivido por alguns
estudantes, ou seria possível uma alternativa mais integradora do
ponto de vista da saúde mental do próprio estudante de psicologia
e, quiçá, dos indivíduos que receberão, mais tarde, seus respectivos
serviços?
Chama-nos a atenção o quanto os estudantes, sujeitos desta
pesquisa, apesar de tão mobilizados com o tema, ainda desconhecem,
quase que integralmente, a literatura mais recentemente produzida, no
Brasil e no mundo, a partir de sérios estudos sobre o fenômeno religioso
e respectivas implicações para a atuação do psicólogo e profissionais
afins. Acreditamos que isso reproduza o mesmo desconhecimento por
parte da maioria de seus professores. De novo, é o caso de se questionar:
a quais interesses se presta tal desconhecimento? O “calaboca” já
morreu, mas as fronteiras do discurso psicológico, ao longo da
formação do psicólogo, parecem resistir à expansão e, a despeito
do silêncio transbordante, a lei da inércia se reproduz, ancorada
em preocupações de ordem mais pragmáticas. Afinal, a precisão da
linguagem é uma das maiores garantias de sua cientificidade. E se
ela, a ciência, quer também sempre mais buscar explicações sobre a
realidade, acaba ela mesma, em nome daquela garantia fundamental,
envidando todos os esforços para restringir-se àqueles fenômenos
passíveis de serem submetidos aos seus métodos. O preço disso? A

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QUANDO O SILÊNCIO TRANSBORDA, CALABOCA JÁ MORREU

exclusão de experiências e vivências humanas que extrapolem os


limites de tal garantia. Tais vivências e experiências tendem a ser
empurradas a um foro estritamente íntimo. E transgressores são
aqueles que não simplesmente se conformam com tais limites. Afinal,
a ampliação do olhar da psicologia, ao qualificar a expressividade
e, com ela, os fenômenos religiosos, exigiria necessariamente a sua
modificação, a revisão crítica de suas próprias bases e o resgate
honesto de suas próprias raízes.
Considerando que não são as variáveis racionais da ciência
que afetam de modo relevante a posição religiosa - já que ambas
podem comportar diferentes tipos de crenças - e sim aquelas de
natureza psicológica - e muitas delas inconscientes, defende-se aqui
um ensino de psicologia que contemple o religioso como objeto de
reflexão. Enquanto o fenômeno da crença não é adequadamente
contemplado, permanece uma confusão conceitual, em que a atitude
científica é simplesmente confundida com ideologia, defensiva ou
não. Sustentada pelo paradigma do controle, tal ideologia não se
mantém apenas com vistas a delimitar o dizível, próprio do terreno
científico. Ela quer substituir-se ao paradigma da entrega, terreno
do inefável, no qual os limites daquele controle ficam em questão e,
portanto, sentidos como ameaçadores. Do ponto de vista ético, essa
substituição é insustentável, pois que o vivido denuncia o tempo todo
que, freqüentemente, o mais importante, ou seja, o que conta mesmo
para a busca e o encontro do sentido existencial, está para além dos
limites de um saber técnico e elaborado. E se o futuro psicólogo não
se der conta disso, ainda ao longo de sua formação, poderá continuar
reproduzindo o modelo da suposta rivalidade entre crença científica
e crença religiosa. Dentre outras sérias implicações, essa confusão
conceitual torná-lo-á, sim, mais apto para brigar pelo mercado de
trabalho - por exemplo, competindo com os religiosos – à revelia de,
efetivamente, ter condições de exercer uma ação clínica efetiva quanto
às questões humanas mais fundamentais.

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AS VOZES DO SILENCIADO

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QUANDO O SILÊNCIO TRANSBORDA, CALABOCA JÁ MORREU

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O “falatório” de Stela:
uma voz insistente

Sílvia Maria Roncador Borges

Stela deu entrada no Hospital Psiquiátrico Pedro II (Engenho


de Dentro) no ano de 1962, quando tinha 21 anos. Chegou com o
diagnóstico de esquizofrenia hebefrênica. Em 1966, foi transferida
para a então Colônia Juliano Moreira – RJ, aí permanecendo por quase
trinta anos. Vítima de hiperglicemia, Stela teve a perna amputada,
falecendo na Colônia.
No intervalo de 1986 a 1988, a artista plástica Neli Gutmacher
e sua estagiária Carla Guagliardi gravaram no ateliê de artes plásticas,
que funcionava no Núcleo Teixeira Brandão, conversas e poemas
de Stela. Além do seu “falatório”, como Neli definiu, Stela também
gostava de escrever em pedaços de papelão. Essas gravações foram
depois transcritas pela estagiária de psicologia, Mônica Ribeiro,
e esse material organizado em livro pela psicóloga Viviane Mosé
(PATROCÍNIO, 2001).
Foi um longo trabalho até aparecer, em 2001, o livro Reino
dos bichos e dos animais é o meu nome, uma importante publicação que
reúne os poemas de Stela do Patrocínio, em 8 partes. O livro surgiu
do empenho de pessoas que perceberam a beleza que tinham em suas
mãos e, uma vez na praça, virou tema de debates e roteiro para peça
de teatro, com grande sucesso de público.
Seus poemas são viscerais. Saem de dentro dela com uma
linguagem primeira, primordial. Enfocam medos, solidão, injustiças,
percepções de mundo e, mais que tudo, uma grande necessidade de
se autonominar.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Stela nos mostra a importância de dizer seu nome, de gritar


sua identidade. Então, mesmo sem ser perguntada, Stela diz:

Eu sou Stela do Patrocínio


Bem patrocinada
Estou sentada numa cadeira
Pegada numa mesa nega preta e crioula
Eu sou uma nega preta e crioula (PATROCÍNIO,
2001, p. 66).
E continua se apresentando, contando sobre sua
vida, sobre seus sentimentos.
Meu nome verdadeiro é caixão enterro
Cemitério defunto cadáver
Esqueleto humano asilo de velhos
Hospital de tudo quanto é doença
Hospício
Mundo dos bichos e dos animais
Os animais: dinossauro camelo onça
Tigre leão dinossauro
Macacos girafas tartarugas
Reino dos bichos e dos animais é o meu nome
(p. 118).

Stela não se misturava às demais internas. Na impressão


da psicóloga Viviane Mosé, “parecia uma rainha, não se portando
como as outras, que se aglomeravam, pedindo sempre. Diferenciava,
em um silêncio agudo, sua forma própria de se colocar no espaço”
(PATROCÍNIO, p. 20).
Era negra, alta e gostava de pintar seu rosto e braços de branco.
Algumas vezes costumava andar enrolada em um pano ou cobertor.
Seus poemas parecem cumprir a mesma função que sua
postura: falar de seu ser, de sua subjetividade, de sua identidade, de

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O “falatório” de Stela: uma voz insistente

seu nome. E mais: ao definir-se como sujeito, como ser singular, Stela
denuncia o processo de padronização das pessoas. Denuncia também
a tentativa do sistema psiquiátrico hospitalar de tirar do sujeito o que
lhe é mais caro, quer seja, sua condição de humano, sua identidade,
seu nome.
Stela não tinha endereço, não tinha parente, mas tinha sua voz.
Uma voz que demarcava sua diferença, que gritava sua insubordinação
ao aniquilamento de seu ser e que ganhou status social, ganhou poder
de denúncia, a partir do momento em que foi constituída em livro.
Sua fala passou a representar uma classe, a de internos de hospital
psiquiátrico.
Stela fala de sua origem com uma metáfora muito bonita: o
espaço vazio, gases, ar:

Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo


Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu da boca, fazer falatório
Fazer músculo, fazer dente
Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro (p.82).

Se este poema fala de sua origem, pode-se dizer que fala


também da condição de esvaziamento pela qual foi submetida e se

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AS VOZES DO SILENCIADO

submeteu. Esvaziamento de personalidade, de traço diferenciado, de


sentimentos e emoções próprios: “Eu não tinha formação, não tinha
formatura”. Diante dessa fala, mostra-se mais majestosa ainda, como
uma vencedora, como alguém que consegue expressar-se, a despeito
das dificuldades encontradas; dificuldades, estas, sociais e individuais,
quando considerado o processo de adoecimento.
Não se quer, aqui, interpretar os poemas de Stela. Esta poderia
ser uma estratégia pouco confiável, se entendermos que suas palavras
não podem ser compreendidas sem uma contextualização necessária.
De seu “falatório”, no entanto, pode-se extrair valiosas conclusões,
algumas sobre Stela, algumas sobre a loucura.
Stela tem paixão. Apresenta uma guerra declarada contra o
confinamento, em favor da vida. É extremamente sensível, essencial.
Fala sem rodeios toda sabedoria que soube extrair de sua vida, vida
esta difícil, desde o início. Era pobre e foi sexualmente violentada. É
forte, com estilo bem marcante, diferente. Cuspia os medicamentos
que lhe davam para usufruir sua “lucidez”.
Seu texto mostra que se sente injustiçada e incompreendida,
quando faz crer que foi internada sem esclarecimentos, sem o seu
consentimento. Daí para frente ficou presa em uma instituição que
não lhe ouviu e nunca lhe deu explicações.
Conhecia muito bem sua realidade. Mais que conhecê-la,
operava nela, fazendo-se sujeito de sua existência. Não era à toa
que rejeitava os medicamentos. Com muita beleza e simplicidade,
nos diz:

A realidade é esta folha


Este banco esta árvore
Esta terra
É este prédio de dois andares
Estas roupas estendidas na muralha (p. 112)

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O “falatório” de Stela: uma voz insistente

Somente quando o sistema psiquiátrico-hospitalar tradicional


começou a ser questionado e pessoas como Nise da Silveira, Viviane
Mosé, as estagiárias citadas, e tantas outras, conquistaram espaço
dentro dessas instituições é que Stela pôde ser ouvida. Passou toda
sua vida adulta internada no mesmo hospital psiquiátrico que Arthur
Bispo do Rosário, outro artista de extremo valor que emprestou sua
vida e coragem para reforçar o movimento da luta antimanicomial.
A partir do encontro com essas pessoas, sua fala passou a ser
percebida como algo diferente de um delírio, como uma forma de se
manter viva.
Stela surge então com um propósito que foge a sua
consciência. De pessoa sem rosto, invisível, sem ser, passa a sujeito
dotado de sentimentos, de vida pessoal, de quereres, de gosto, de
não-gosto. Por virar pessoa, virou também instrumento. E é nessa
passagem que transcendeu a sua condição pessoal. Virou social, virou
representante de um grupo muito grande de pessoas que juntamente
com ela sofrem anonimamente. Seu falatório engrossou o coro que
denuncia esse complexo sistema que vai desde o consentimento
ideológico social, como a naturalização da exclusão social do louco,
até as práticas concretas de crueldade ainda existentes nos hospitais e
clínicas psiquiátricas.
Segundo Mosé (2001), “Stela era capaz de lançar um olhar
sobre a condição asilar e, ao mesmo tempo, dimensionar este olhar
em uma interpretação do que seria a condição humana: uma fala
atravessada por outras falas” (PATROCÍNIO, p. 25). Stela assim o fez
de uma forma muito especial, juntando beleza e inteligência. Falava
de sua vida como que a observá-la, mas de fora, sem, no entanto,
perder-se em frieza e distanciamento. Ao contrário, seus poemas

Este importante movimento popular, antes denominado movimento antipsiquiá-
trico, foi fundamental para a aprovação, em 2001, da Lei de Reforma Psiquiátrica
do Brasil que institui os centros e núcleos de atendimento psicossocial, priorizando
os “trabalhos substitutivos” às tradicionais e desumanas práticas psiquiátricas ain-
da freqüentes em muitas instituições brasileiras.

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AS VOZES DO SILENCIADO

são verdadeiros, falam com muita inteireza de sentimentos vividos;


encerram mais verdades que a sua própria. Falam de verdades de toda
a humanidade, permitindo a tão perigosa e evitada identificação de
uma pessoa dita “normal” com outra “louca”.
É nossa pretensão, ao trazer sua obra, mostrar a importância
da opção pelo testemunho e pelo texto autobiográfico como principal
ponto de partida para suscitar a discussão sobre a loucura, partindo
da premissa de que ambos denunciam uma situação de subjugação
e que contam uma história alternativa, aquela que é contada pelo
sujeito excluído da história oficial.
Os testemunhos e textos autobiográficos aparecem como um
veículo democrático, à medida que possibilitam que essas histórias
sejam contadas, impressas e lidas. Sem sua veiculação, Stela do
Patrocínio jamais poderia ser ouvida. Ao ser lida por outras pessoas, ela
ganha um poder maior de gerar novos pensamentos e sentimentos.
O texto auto-referenciado transcende a pessoa que o fez. Ao
veicular em um grupo social, forma-se

um espaço compartilhado, no qual tenta-se


construir uma nova identidade. Não a identidade
homogeneizadora imposta pelo monólogo do
discurso imperial, mas uma identidade heterogênea,
por diferenciada e plural, mais democrática e
que respeite as outras identidades (ACHUGAR,
1992, p. 53).

Stela destacou-se por utilizar a palavra em sua tentativa de


pular o muro asilar, preferencialmente, a palavra falada. Reino dos
Bichos e dos Animais é o Meu Nome reúne fragmentos de fala transcritos,
entrando para a categoria de testemunho. Segundo Hugo Achugar
(1992), o testemunho nasce de um depoimento, quase sempre oral e,
por meio de um mediador, ganha a forma de texto. Nesse gênero já
existe na origem a intenção da denúncia.

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O “falatório” de Stela: uma voz insistente

Esses textos já chegam com uma força muito grande, pois


trazem um autor vivo, real, que conta uma “verdade”, uma vez que
descreve uma realidade vivida. Por isso mesmo são textos que exigem
um posicionamento do leitor.
O olhar “de dentro” é fundamental. Inverte-se, com essa
postura, todo tipo de relação social, de relação de poder. Abordar
a loucura por meio do texto ou da fala do louco é o caminho mais
legítimo para se chegar ao entendimento desse complexo fenômeno.
É claro que o louco não deve falar sozinho. Não é isso que se defende
aqui, mas, sim, que sua voz se junte a de toda a sociedade e que não
seja mais excluída desse coro.
Mais que uma junção de vozes, prega-se uma junção de ações.
É preciso que a sociedade, para falar da forma mais ampla possível,
encare a loucura de frente, sem atribuir a ela valores morais, sem
subjugá-la. Novamente, Stela nos ajuda. Permite que desassociemos o
louco da imagem de um monstro desfigurado, maligno e ameaçador
para podermos construir com ele condições de uma vida mais justa.
Uma boa experiência no trato com a loucura vem da Itália,
sob a influência de Franco Basaglia. Responsável por uma proposta de
psiquiatria comunitária, este importante psiquiatra italiano, denuncia
a relação de exclusão social por que passa o louco institucionalizado.
Mais que um problema específico da loucura, Basaglia aponta para
uma questão socioeconômica mais ampla, pois “despido o paciente
das superestruturas e das incrustações institucionais, percebe-se que
ele é, ainda, o objeto de uma violência que a sociedade exerceu sobre
ele e que continua a exercer, na medida em que, antes de ser um
doente mental, ele é um homem sem poder social” (2001, p. 113).
Portanto, o ato terapêutico verdadeiro, para Basaglia (2001), é
o que conscientiza o louco de sua situação excluída. É, antes de tudo,
um ato político, que só pode ser concretizado estando o louco em
liberdade. É preciso um novo sistema, amparado em novas relações de
poder, que consigam absorver dialeticamente a contradição inerente

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AS VOZES DO SILENCIADO

às mesmas; é preciso absorver no sentido de aceitar a contradição


como fonte de crescimento e não de abafá-la, como o faz o sistema
vigente.

A comunidade terapêutica é um local em que todos


os componentes (e isso é importante), doentes,
enfermeiros e médicos, estão unidos em um total
comprometimento, onde as contradições da
realidade representam o húmus de onde germina a
ação terapêutica recíproca. É o jogo das contradições
(...) que continua a romper uma situação que, não
fosse isso, poderia facilmente conduzir a uma
cristalização dos papéis (BASAGLIA, 2001, p. 118).

A produção e instalação da loucura têm várias origens. Admite-


se que o problema não é tão simples, nem é filho de uma única mãe.
No entanto, não restam dúvidas de que a forma como a sociedade se
relaciona com a loucura é produto dela mesma. Não se trata de uma
escolha, é claro, mais de um lento e constituidor processo de formação
de conceitos e idéias. Se a percepção é tão fortemente determinada
pela cultura, deve estar em seu meio, também, a possibilidade de
mudança da total desconsideração que acomete os loucos e todos
aqueles que têm um forte sofrimento psíquico.
A loucura incomoda profundamente. Isso é fato. Porém, nem
sempre foi assim, conforme nos mostrou Foucault (1972).
Até meados do século XVII, os loucos estavam inseridos na
sociedade. Participavam, portanto, do sistema social. Sobretudo no
século XVI,

a loucura era sentida sem que sua silhueta


houvesse se destacado claramente como um objeto
exterior. Inseparável da imaginação e do sonho, a

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O “falatório” de Stela: uma voz insistente

sensibilidade à loucura nessa época, dizia respeito


a certa maneira de vivenciar o mundo em sua
totalidade (FRAYZE-PEREIRA, 1985, p. 59).

Após esse período, a loucura se distancia do universo da razão.


Tem-se no renascimento, o início de um processo de dominação e
subjugação da loucura pela razão, conforme Foucault (1972, p. 47):

(...) a loucura foi colocada fora do domínio no qual


o sujeito detém seus direitos à verdade: domínio
este que, para o pensamento clássico, é a própria
razão. Doravante, a loucura será exilada. Se o
homem pode sempre ser louco, o pensamento,
como exercício de soberania de um sujeito que se
atribui o dever de perceber o verdadeiro, não pode
ser insensato.

Extrair a loucura do domínio da razão, entrando para


a categoria de desvio, de erro, foi um decisivo marco para exilar
o louco que agora não mais poderia vagar. Assim, ele deixa sua
peregrinação por perturbar o espaço social. Foram criadas as
instituições que passariam a abrigar o louco, juntamente com os
pobres, os inválidos, os pervertidos, os portadores de doenças
sexualmente transmissíveis, ou seja, toda sorte de pessoas que
ameaçavam de alguma forma a ordem social e econômica. Social
no tocante aos padrões de conduta; econômica, no que se refere à
incapacidade ou recusa dessas pessoas de participarem do sistema
de mercado. Com a ascensão da burguesia e, conseqüentemente, do
livre comércio, o desvio se configurava na ociosidade. Na verdade,
mais que abrigar essas pessoas, essas casas passaram a puni-las,
obrigando-as, inclusive, a executar trabalhos forçados.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Descartes dá uma definitiva contribuição filosófica para


promover o distanciamento entre loucura e razão e para instalar o
racionalismo como forma principal de pensar e de se relacionar com
o mundo e a verdade. Por meio do sujeito que duvida, Descartes
estabelece a própria existência. Se penso, existo, afirma o filósofo. E
afirma também que, se pensa, não pode estar louco. O louco, portanto,
não pode conhecer a verdade (FOUCAULT, 1972).
Esse distanciamento ainda é percebido na atualidade. Essa é
uma idéia tão forte que já virou senso-comum, no sentido de uma
ideologia hegemônica. Mais que um afastamento, é uma soberania: a
da razão pela loucura, que dá suporte ao pensamento de que o louco
não pode falar por si.
A partir de meados do século XVIII existiu uma espécie de
anistia para muitas dessas pessoas excluídas. O confinamento começou
a ser questionado e substituído por um assistencialismo estatal. Essa
anistia, no entanto, não atingiu os loucos. Esses ficaram por ameaçar
a integridade de suas famílias e da sociedade (FOUCAULT, 1972).
Ficam, no entanto, em uma outra condição. O internamento passa a
ser entendido como um espaço de organização da liberdade do louco,
liberdade esta, que, se corretamente assistida e conduzida, o levará à
razão. Passou a ser constantemente vigiado e qualquer comportamento
que se desviava da norma desejada era violentamente punido.
A loucura, então, conforme nos indica Foucault (1972),
transformou-se em objeto de análise e exame, pôde ser estudada e
entrou para o domínio médico. Virou doença mental. Nessa nova
condição asilar, e até possibilitando sua mudança de status, a loucura
passa a ser percebida como sendo de ordem interna ao sujeito, como
uma alienação do sujeito ao mundo externo, podendo, então, entrar
para a esfera da psicologia. Não se diz mais de um louco que ele
“perdeu a verdade, mas, sim, que perdeu a sua verdade” (CRUZ,
2002, p. 81).

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O “falatório” de Stela: uma voz insistente

A apropriação da loucura pela ciência, pela medicina, aperfeiçoa


a cisão cartesiana. A doença mental, com toda a sua abstração, passa
a mediar a relação entre a razão e a loucura.
A loucura perde sua expressão, perde sua linguagem. Cai em
um longo silêncio que se quebra apenas no final do século XIX.
O confinamento e a perda da palavra caracterizaram o medo
que nossa sociedade tem de reconhecer-se no doente. “A verdade da
razão é aquilo que ela quer obstinadamente esconder. O fundamento
da razão é o outro da razão, é a loucura” (PATROCÍNIO, 2001, p. 39).
Para evitar qualquer possibilidade de identificação, o louco
é destituído da condição de humano, passa a não-ser, perde sua
subjetividade, perde seu nome, mas garante, com sua “loucura”, a
razão da sociedade. É o que se vê nos famosos “loucos de Deus”,
aqueles que ainda podem ser encontrados nas portas e escadarias das
igrejas, mesquitas ou sinagogas e que recebem a “negatividade” dos
fiéis. Recebem na medida em que cumprem o papel do desvio, do erro
e, assim, produzem o sentido de correção e ajustamento nas pessoas.
Esses loucos desempenham um importante papel social, fazem parte
de um engrenado jogo de valores, de percepções e, sobretudo, de
auto-percepções.
Stela do Patrocínio (2001), com seu “falatório”, ilustra muito
bem esse aspecto da loucura. Seus poemas abordam muitas facetas
do cruel processo institucionalizado por que passa um louco. Neles,
ela mostra sua dor por ter sido feita invisível, invisibilidade esta que
ela não aceita, que ela insiste em reverter. E, aqui, pode-se ousar,
inclusive, uma interpretação para seu comportamento de pintar os
braços e rosto de branco: tornar-se mais aparente.
O período compreendido entre o final da idade média e o
século XIX, tão bem mapeado por Foucault (1972), foi importante para
gerar qualificações à loucura que perduram até hoje. Inicialmente, ao
ocupar os antigos leprosários, o louco herdou a necessidade de estar
separado, segregado. Ao juntar-se aos mendigos, libertinos de toda

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AS VOZES DO SILENCIADO

ordem e portadores de doenças venéreas, o louco apossou-se de culpas


morais e sociais que estão longe de abandoná-lo e, ao ser excluído do
pensamento racional produtor da verdade, ao ser percebido como um
desvio, como um erro, ficou impossibilitado de falar por si mesmo.
Julgar a loucura, reconhecer que alguém é louco, não é um
ato autônomo. Ele implica o limiar e tolerância da loucura que cada
grupo social tem.

Quando o médico acredita diagnosticar a loucura


como um fenômeno da natureza, é a existência
desse limiar que permite portar o julgamento de
loucura. Cada cultura tem seu limiar particular
e ele evolui com a configuração desta cultura;
a partir dos meados do século XIX, o limiar da
sensibilidade à loucura baixou consideravelmente
na nossa sociedade; a existência da psicanálise é o
testemunho deste abaixamento na medida em que
ela é tanto o efeito quanto a causa do fato (Foucault,
2000, p. 89).

O quadro de percepção da loucura, conforme nos indica


Foucault (2000), começa a mudar no final do século XIX, mas não o
suficiente para alterar o cotidiano do louco institucionalizado. Assim
nos mostra Stela (2001).
O louco ainda é tido como um corpo doente, objeto de
pesquisa em sua pura materialidade. Basaglia (2001, p. 104)
aponta que

as teorias psicodinâmicas que tentaram encontrar


o sentido do sintoma através da investigação do
inconsciente, mantiveram o caráter objetal do
paciente, mesmo que o tenham feito através de

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O “falatório” de Stela: uma voz insistente

um tipo distinto de objetalização: objetalizando-o


não mais enquanto corpo, mas enquanto pessoa.

Com seus poemas, Stela explica o processo de “coisificação”


pelo qual passa o louco. Destituído de subjetividade, de cara, de
sentimentos e de nome, o louco não mais se constitui como uma ameaça.
Existe também o medo de constatar a própria responsabilidade. É por
isso que é preferível, muitas vezes, isolar o louco do convívio social,
pois assim varre-se a “sujeira” para debaixo do tapete.
Stela nos convida a pensar a loucura em alguns sentidos.
Pensá-la enquanto reveladora da concepção de sujeito que nossa
sociedade capitalista ocidental possui; enquanto sinalizadora
das relações superficiais e pouco constituintes do ser; enquanto
denotadora da dificuldade do homem moderno de entrar em contato
com seus medos, seus sentimentos ditos negativos como raiva, ódio,
inveja, ciúme; enquanto produto sócio-histórico, determinando,
inclusive, todo o aparelho concreto que realmente lida com a loucura.
Importante lembrar que aparelho, aqui, é aquele constituído por leis,
política governamental de saúde, indústria farmacêutica, hospitais
psiquiátricos, clínicas de tratamento psicológico, sessões religiosas,
oficinas terapêuticas, médicos, psicólogos, assistentes sociais,
enfermeiros, carcereiros, entre outros.
A percepção “natural” de que o louco deve ficar internado,
isolado, invisível e que deva ser subjugado e considerado menor
foi, portanto, historicamente construída. Mudar esse conceito não
é fácil, além de que é preciso perceber que isso demanda tempo e
um conjunto somatório de ações e ressignificações. É daí que vem a
importância de trazer para essa discussão os testemunhos dos loucos.
Esses relatos autobiográficos certamente ampliam nossas referências,
produzem questionamentos, reflexões que, somadas às de outras
pessoas, criam o contexto social para que as mudanças concretas de
fato ocorram.

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AS VOZES DO SILENCIADO

Stela soma-se, por exemplo, a Maura Lopes Cançado (1979),


também interna de hospital psiquiátrico, na denúncia do sutil, cruel
e anônimo processo social de “enlouquecimento”. Maura grita ao
escrever:

Não continuarei. Não sairei louca gritando. Até


quando haverá pátios? Mulheres nuas, mulheres
vestidas – mulheres. Estando no pátio não faz
diferença. Mas esta mulher, rasgada, muda,
estranha, um dia teria sido beijada. Talvez um bebê
lhe sorrisse e ela o tomasse no colo, por que não?
Não aceito nem compreendo a loucura. Parece-me
que toda a humanidade é responsável pela doença
mental de cada indivíduo. Só a humanidade toda
evitaria a loucura de cada um. Que fazer para
que todos lutem contra isso? Não acho que os
médicos devam conservar ocultos os pátios dos
hospícios. Opto pelo contrário; só assim as pessoas
conheceriam a realidade lutando contra ela.
ENTRADA FRANCA AOS VISITANTES: não terá
você, com seu indiferentismo, egoísmo, colaborado
para isto? Ou você na sua intransigência? Ou na
sua maldade mesmo? Sim, diria alguém se pudesse:
recusaram-me emprego por eu ter estado antes
internado num hospício. Sabe, ilustre visitante, o
que representa para nós uma rejeição? Posso dizer:
representa um ou mais passos para o pátio. – Eu
quis, mas não posso viver junto deles. Que fazer?
Odeio-os então por isto. Trancar-me – voltar para
o pátio, onde não serei recusada. Fugir. Fuga na
loucura.” (p. 161).

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O “falatório” de Stela: uma voz insistente

Esses textos que restituem ao louco sua condição humana são


fundamentais para ampliar a consciência coletiva da humanidade. De
início, uma questão sobre a loucura e logo uma ampliação para o
questionamento sobre o ser humano. Contudo, um questionamento
extremamente eficaz por ter sido provocado por um processo de
identificação.
Mais que relatos, os testemunhos e textos autobiográficos
subvertem pontos importantes, como, por exemplo: destituir do
médico todo o saber sobre a loucura. Aqui, é o louco que julga o médico
e, o que é mais importante, é o louco que julga a si próprio. Subverte
assim a relação sujeito/objeto proposta pelo positivismo racional. O
louco é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de sua observação.
Em pleno século XXI, pode-se ouvir, ainda com um som
tímido e abafado, a voz do louco. Na verdade, fala-se muito dele, mas
só agora o próprio sujeito considerado insano pode começar a falar
por si. Observa-se o aparecimento de alguns livros autobiográficos
e testemunhos de pessoas que foram vítimas do complexo e, quase
sempre, cruel, sistema hospitalar psiquiátrico. Esse movimento de
expressão é muito maior ainda. Pode-se constatar na atualidade o
surgimento de vários testemunhos de pessoas que de alguma forma
foram socialmente subjugadas. Apesar de tímido, é um movimento
crescente. De alguma forma, editoras, ONG’s, jornalistas, enfim,
todo um aparato concreto, está incentivando e apoiando a realização
e divulgação da fala dessas pessoas. São domésticas, presidiários,
moradores de favelas violentas, adolescentes torturados por policiais,
loucos, e muitos outros que vêm conseguindo expressar-se. Alguns
tiveram a coragem e a grandeza de contar sua história, mesmo sendo
uma “pequena” história que ao ser publicada soma-se a tantas outras
e passa de um caso isolado para a fala de toda uma classe.
Essas histórias têm a tendência de migrarem, segundo
nos informa Boaventura Santos (1999, p. 80), comentando sobre
um importante ponto do novo paradigma científico de produção
de conhecimento. Diz ele, “todo conhecimento é local e total”,

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AS VOZES DO SILENCIADO

significando que podem influenciar outras áreas cognitivas diferentes


de seu local de origem, uma vez que o novo paradigma da ciência
expressa-se com uma linguagem assumidamente analógica e tradutora.
Cada vez mais, o conhecimento é entendido como autobiográfico e
auto-referenciado. Stela do Patrocínio legitimamente é produtora
de conhecimento. Fala-nos, ao contar suas histórias, da loucura, da
sociedade, da humanidade.
Calar essas pessoas é continuar perpetuando a violência
institucional da qual tão bem nos fala Basaglia (2001). Silenciá-las é
distanciar a loucura da dimensão humana. Não permitir que os loucos
falem por si é dar suas falas aos médicos, psicólogos, assistentes sociais,
políticos, empresários, todos detentores do “discurso competente”,
um discurso que tenta conter uma avalanche de vida e que, cada
vez mais, vai se enfraquecendo, devido ao trabalho aparentemente
pequeno e inócuo de pessoas como Stela.
Trazer os poemas de Stela é ponto de partida para o diálogo
desejável. Então, deixemo-la falar:

Eu sobrevivi do nada
Eu não existia
Não tinha uma existência
Não tinha uma matéria
Comecei a existir com quinhentos milhões e
quinhentos mil anos
Logo de uma vez, já velha
Eu não nasci criança, nasci já velha
Depois é que eu virei criança
E agora continuei velha
Me transformei novamente numa velha
Voltei ao que eu era, uma velha. (PATROCÍNIO,
2001, p. 80).

Stela, em verso, conta sua vida. Ao contá-la resgata seu nome.


Reino dos bichos e dos animais é o seu nome.

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O “falatório” de Stela: uma voz insistente

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACHUGAR, H. & BEVERLY, J. La voz del otro: testimonio, subalternidad


y verdad narrativa. Lima-Pittsburgh: Latinoamericana, 1992.
BASAGLIA, F. A instituição negada. Rio de Janeiro: Edições Graal,
2001.
CANÇADO, M. L. Hospício é Deus. Rio de Janeiro: Record, 1979.
CRUZ, M. A. S. Loucura, desrazão e doença mental: figuras históricas?
In: CALDERONI, D. (org.), Psicopatologia: vertentes, diálogos,
psicofarmacologia, psiquiatria, psicanálise. São Paulo: Via Lettera,
2002. p. 73-86.
FOUCAULT, M. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1972.
_____. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2000.
FRAYZE-PEREIRA, J. O que é loucura. São Paulo: Abril Cultural:
Brasiliense, 1985.
PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é meu nome. Rio de
Janeiro: Azougue editorial, 2001.
SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez,
2003.

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SOBRE OS AUTORES

Anita Leandro
Foi professora adjunta de cinema e vídeo, pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Atualmente, é Maître de conférences pela Université
de Bordeaux 3 – França. Membro
������������������
da AFECCAV-Association Française
des Enseignants et des Chercheurs en Cinéma et Audiovisuel. Doutora
�����������
em
cinema pela Université de Paris 3 – Sorbonne Nouvelle. Realizou e realiza
documentários, vídeo-instalações e é crítica de cinema.

Celia Carvalho de Moraes


Psicóloga clínica e professora de Gestal-Terapia. Mestre em Psicologia
Clínica e Doutora em Psicologia, pela Universidade de Brasília. Atua
como psicoterapeuta de indivíduos e grupos; é supervisora clínica
na abordagem existencial-humanista, com ênfase nos processos
psicológico-espirituais.

Elzira Divina Perpétua


Professora de literatura na Universidade Federal de Ouro Preto. Em
Belo Horizonte, lecionou na PUC Minas e no Unicentro Newton Paiva.
Em 1993, na PUC Minas, concluiu seu trabalho de mestrado “Solos e
Litorais da Escrita: uma leitura da memória (de) marginais”. Na UFMG,
em 2000, defendeu a tese de doutorado, intitulada “Traços de Carolina
de Jesus: gênese, tradução e recepção de Quarto de Despejo”.

Hilan Bensusan
Graduou-se em Filosofia, pela Universidade de Brasília. Fez mestrado
em Filosofia na Universidade de São Paulo e o doutorado em Filosofia
e Cognição, na Universidade de Sussex – Inglaterra. Trabalhou (pós-

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AS VOZES DO SILENCIADO

doutorado) em um projeto de aprendizagem automática, na Universidade


de Bristol, entre 1999 e 2001. Ensina no Departamento de Filosofia da
Universidade de Brasília. Participou de fóruns e conferências regionais
e internacionais sobre filosofia e educação, e se interessa pela natureza
da reprodução das instituições, por meio da educação.

Ivone Laurentino dos Santos


Mestre em Psicologia e licenciada em Filosofia, pela UCB; Especialista
em Planejamento e Avaliação Educacional e em Antropologia e Mundos
Contemporâneos, pela UCB. Professora na Secretaria de Educação do
Distrito Federal, há dezoito anos, com ampla experiência em gestão
escolar. Professora na Faculdade JK e na Faculdade Projeção.

José Bizerril Neto


Bacharel em História, mestre e doutor em Antropologia Social, pela
Universidade de Brasília - UnB; docente do Curso de Psicologia do Centro
Universitário de Brasília; coordenador do grupo de pesquisa Diálogo.
Desenvolve investigações sobre experiência religiosa, identidades no
mundo contemporâneo, corporalidade e gênero.

Lino Gambacorta
Diplomado em Filosofia, com tese sobre a psicologia fenomenológica de
Merleau-Ponty, pela Universidade de Florença. Especialista em Filosofia,
com tese sobre o relacionismo teórico de Enzo Paci, pela Universidade
de Florença. D.E.A. – diploma de estudos avançados em História e
Civilização, na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, com
trabalho individual de pesquisa sobre Memória Vivida, intitulado “O
impossível esquecimento”.

Marta Helena de Freitas


Psicoterapeuta, Mestre em Psicologia Social e da Personalidade e Doutora
em Psicologia, pela Universidade de Brasília. Atua como professora e
pesquisadora no Curso de Graduação em Psicologia e nos programas

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SOBRE OS AUTORES

de mestrado em Gerontologia e Psicologia da Universidade Católica


de Brasília – UCB, com publicações acadêmico-científicas e trabalhos
apresentados no Brasil e no exterior, relacionados aos temas: morte,
religiosidade e psicodiagnóstico de Rorschach. Atualmente, ocupa o
cargo de Diretora do Mestrado em Psicologia da UCB. É também poeta,
com vários livros de poemas já publicados.

Ondina Pena Pereira


Mestre em Filosofia, pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG;
doutora em Antropologia, pela Universidade de Brasília – UnB.
É professora na Universidade Católica de Brasília – UCB. Dentre
seus vários estudos, pesquisa a área de antropologia e psicanálise,
antropologia da saúde, filosofia contemporânea, relações de poder e
alteridade. Coordena os grupos de pesquisa, registrados no CNPq,
intitulados Pedagogias de Resistência e A incidência do real na realidade
contemporânea. Possui publicações e tem orientado graduandos e pós-
graduandos em Psicologia, dentro desses temas.

Sílvia Maria Roncador Borges


Psicóloga clínica, com atuação em Brasília, e Bacharel em Química, pela
Universidade de Brasília. É mestre em Psicologia, pela Universidade
Católica de Brasília, e professora de química na Secretaria de Educação
do Distrito Federal, desde 1992. Interessa-se pela relação entre a
psicologia e as literaturas “marginais”.

Vicente Hector Santamaria


Pós-Graduação em Estudos Africanos Interdisciplinares e Mestre em
Sociologia, pela Montpellier III University, França. Atualmente, prepara
a sua tese de doutoramento em História da Medicina, na Ecole des Hautes
Etudes en Sciences Sociales - EHESS, Paris.

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