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Bases Materiais do Sistema Sexo/Gênero

Maria Jesús Izquierdo1

Ao nos referirmos as pessoas, utilizamos dois termos: mulher e homem. Estas palavras
evocam e refletem o sexo dos indivíduos e através delas classificamos as pessoas em dois
grandes grupos. O critério é válido quando se aplica aos demais animais com reprodução
sexuada, pois o que diferencia a égua do cavalo, por exemplo, é seu sexo e só isso. No caso
dos seres humanos, mesmo que não sejamos unicamente produtos da natureza, pois somos, na
mesma medida, produtos de uma certa cultura, homem e mulher são palavras que vão muito
além do sexo e servem para atribuir caracteristicas que extrapolam o âmbito da biologia.
Ao dizermos que alguém é uma mulher, estamos supondo um sexo, mas também
supomos muitas outras coisas: dona de casa, passiva, mãe, má motorista, afetiva, etc... Ao
dizermos homem, junto ao sexo, atribuimos qualidades como investigador, profissional,
agressivo, racional, pouco detalhista, etc... Isto se deve ao fato de que, com estes termos,
fazemos referéncia a uma realidade complexa, que se ordena em três níveis:

1. o sexo: macho/ fêmea;


2. o gênero, psicológico e social: feminino e masculino;
3. a identidade psicossexual: heterossexual, bissexual e homossexual.

Estes três níveis se identificam de um modo confuso, sobretudo no caso de pessoas


que não se ajustam ao modelo dominante. É comum que o comportamento feminino em um
macho e o comportamento masculino em uma fêmea seja definido como homossexual. No
entanto, uma fêmea feminina e um macho masculino supõe-se, são heterossexuais, ainda que
seja evidente que nem sempre seja assim. Supõe-se que uma fêmea vestida com uniforme
branco seja enfermeira, mesmo que seja uma média (e o uniforme não seja de enfermeira, e
sim de médica), porque se considera que, em função do sexo não possa estar ocupando um
espaço social masculino. Também se presume que uma pessoa com vestido, saltos altos e
maquiada seja uma fêmea pela vestimenta que usa, quando pode tratar-se de um macho.
Quando se comenta sobre uma briga de rua ou uma partida de futebol, acreditamos que se
trata de machos, já que são atividades consideradas masculinas.

1
Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Autônoma de Barcelona. Texto traduzido pelo
SOF/SP.
Como tentaremos mostrar a seguir, não existe uma relação unívoca entre os três níveis
básicos a que nos referimos e sobre os quais se sustenta a identidade humana. Com o que, não
pretendemos negar que geralmente se combinam de um modo tal que as fêmeas são femininas
e heterossexuais, quer dizer, mulheres, assim como os machos são masculinos e
heterossexuais e, portanto, homens.
O sistema sexo/gênero, que é o referencial sob o qual se organiza a sociedade, as
expectativas que a mesma tem com respeito aos indivíduos, à distribuição desigual de poder,
as aspirações, espaços sociais ocupados e proibições em função do sexo, se fundamenta em
uma base dupla: a biologia e a divisão sexual do trabalho.

Bases Biológicas do sistema sexo/gênero

No lugar de entrar diretamente na análise das diferenças entre os sexos, modo habitual
de estudar machos e fêmeas humanas, é a meu ver muito mais esclarecedor o estudo das
características comuns aos humanos e próprias desta espécie. Nesta perspectiva, estaremos em
condições de valorizar a importância relativa das diferenças entre os sexos e o grau em que as
mesmas são ou não uma determinação biológica ou, pelo contrário, o produto da interação
entre natureza e cultura.
Nós humanos, somos a espécie com a dotação genética mais rica e mais variável de
indivíduo, e deste ponto de vista podemos dizer, categoricamente, que não existe duas pessoas
iguais. Junto a esta variabilidade de origem genética, os caracteres adquiridos em contato com
o meio se apresentam também de forma variável, dado que as condições ambientais são
distintas para cada pessoa, o que nos leva a nos desenvolvermos de formas bem diversas.
Além destas características, que nos permitem afirmar a singularidade do fenômeno
humano, há uma terceira que reforça e completa as anteriores: a complexidade do nosso
sistema nervoso. Este nos permite responder de uma forma ativa e consciente às condições
ambientais e sociais, resposta que nos leva por uma parte a nos adaptarmos ao meio, e por
outra, a transformá-lo, em ambos os casos, de uma forma cultural.
Em definitivo, o que somos e o que somos capazes de fazer é algo que supera
amplamente os aspectos biológicos precisamente porque desde nossa biologia, estamos
configurados de uma forma muito maleável. E mais, assim como qualquer outro ser vivo,
somos seres em contínuo processo de construção, um processo que só termina com a morte. A
diferença com o restante dos seres vivos é que este processo, já em suas primeiras etapas,
realiza-se em contato com o meio, devido ao grau de imaturidade fisiológica e nervosa com
que nascemos. Neste sentido, somos, como nenhum outro animal, dependentes do meio.
É justo reconhecer que, como seres vivos, a reprodução é uma função fundamental que
garante a sobrevivência da espécie, e neste terreno é inevitável fazer alusão às diferenças
sexuais que a explicam. Como humanos, ou seja, como um tipo particular de seres vivos, a
importância dos aspectos reprodutivos e, portanto, sexuais, fica relativizada, já que para que
nossa espécie sobreviva não é preciso manter uma atividade reprodutiva alta, porque a queda
do índice de natalidade pode perfeitamente ser compensada por uma elevação na esperança de
vida. Recordemos que a esperança de vida em condições próximas às naturais, já que estas
últimas não existem para os humanos, é de 25 anos aproximadamente, entretanto, nos países
ocidentais esta cifra é multiplicada por três. Temos a esperança de viver 75 anos, e esta cifra
pode chegar a superar-se em função das condições de vida que construamos.
As expressões das diferenças sexuais em outros âmbitos das atividades distintas do
reprodutivo, não tem caráter sexual e, portanto, biológico, no sentido de estar pré-fixada. A
biologia, por assim dizer, nos determina indeterminados, maleáveis. São grandes as margens
de liberdade em nosso crescimento e desenvolvimento.
Por um tratamento diferencial que recebemos em função do sexo, nossa enorme
variabilidade de indivíduo a individuo se homogeneiza significativamente. O alto grau de
semelhança com que se trata as fêmeas por uma parte, e aos machos, por outra, junto com a
grande distância quanto ao tratamento e expectativas para cada um dos sexos, leva a que
efetivamente, os grupos sexuais tenham um caráter relativamente homogêneo.
As diferenças sexuais entre machos e fêmeas se expressam em uma constelação de
caracteres, sendo uns primários e outros secundários. Os caracteres primários são aqueles que
estão diretamente relacionados com a reprodução. Quando abordamos as diferenças sexuais a
partir desta perspectiva, devemos falar em termos de uma dicotomia: fêmeas e machos com
caracteres sexuais primários constituem variáveis discretas.
Se pelo contrário, tomamos os caracteres secundários, estes são os não vinculados à
reprodução: estatura, peso, distribuição e quantidade de pelo, resistência a enfermidades, força
muscular, timbre de voz etc. Neste caso, não é aplicável a noção dicotômica e é mais correto
falar em termos de polaridade. Falaremos que os caracteres sexuais secundários dão lugar a
um “continuum”. Cada indivíduo, independentemente de qual seja seu sexo, está situado, com
respeito a estes caracteres, em posição determinada entre o polo feminino e o polo masculino.
Se pode ser mais ou menos masculino com respeito ao timbre de voz, a força masculina, a
estatura etc. Além disso, estas características podem ir mudando ao longo do tempo e ao
longo de nossas vidas, em função da alimentação, da atividade física, dos estímulos recebidos
do meio social e do meio natural. Neste aspecto, as diferenças entre machos e fêmeas são
meramente estatísticas.
Se com nossa atividade, transformamos o “em torno”, transformamos, por sua vez,
nossos próprios corpos. Nossos corpos são, em boa medida, o que fazemos deles. De tal modo
que a biologia não marca o que somos e o que fazemos, mas incide de forma limitada,
assinalando aquilo que não podemos ser e aquilo que não podemos fazer.
Como já temos falado, somos caracterizados pelos seguintes aspectos:
1. Somos os mais imaturos ao nascer e acabamos de nos construir em contato com o
meio, meio este que trata desigualmente as fêmeas em relação aos machos.
2. Nosso sistema nervoso é o mais complexo e o mais maleável ao nascer, o que se
traduz em uma grande capacidade para receber e processar informações procedentes do meio
e de nós mesmos. E por sua vez, esta capacidade dependerá em boa medida dos estímulos que
recebemos e de como direcionaremos suas potencialidades.
3. Nosso meio é mais variável porque podemos habitar qualquer lugar do planeta e
podemos construir nosso próprio habitat. Desse meio variável dependerá também nosso
variável desenvolvimento.
De todos estes fatos, deriva-se que a primeira base sobre a qual se assenta o sistema
sexo/gênero –nosso corpo– é tal que possibilita a construção de uma sociedade fundamentada
na divisão de posições de fêmeas e machos na sociedade, mas faz também com que esta
construção não seja inevitável. Se faz possível, sobretudo, por nossa plasticidade, em boa
medida, devida à nossa imaturidade ao nascer. Uma vez detectado o sexo de uma pessoa e
certificado em seu registro de nascimento, pode conseguir-se que a mesma se ajuste a um
certo modelo, tanto por seu aspecto físico como pelos interesses que desenvolve, a forma
como vê o mundo, o tipo de relações que estabelece etc.
Se ao nascer se diz de alguém que é fêmea, independentemente de que cometa ou não
um erro de sinalização do sexo da pessoa – coisa que é possível – e se sua mãe a reconhece
como tal, uma vez que se reconhece a si mesma como pessoa do mesmo sexo e aceita o papel
que a sociedade lhe designa, tal pessoa se identificará com ela e exigirá de seu corpo o que a
sociedade em que nasceu lhe dite e, consequentemente, estará modelando o desenvolvendo
um corpo desigual e com distintas capacidades do corpo de um macho da mesma sociedade,
inclusive, da mesma família.
Graças à nossa particular biologia, o corpo é uma construção social e cultural. Não é
em vão a estatura, o peso, forças médias para as fêmeas em certa cultura, e mais próximas dos
machos da mesma cultura, que as fêmeas em outra cultura bem diferente.
Podemos dizer que, sendo o mundo humano um mundo de diferenças individuais, a
desigualdade com que são tratados os sexos se traduz em uma indiferenciação entre os
indivíduos de um mesmo sexo, ao homogeneizar suas características. Junto a isto, se produz
uma desigualdade entre um sexo e outro de caráter induzido violentada por todo um sistema
de obrigações, proibições e oportunidades distintas entre machos e fêmeas.
Assim, pois, ao aproximarmos o sistema sexo/gênero desde a perspectiva que nos
oferece a biologia, podemos dizer que aspectos dos indivíduos comumente considerados
como estritamente físicos e próprios de sua natureza, não o são. Nosso corpo não é
estritamente um fato natural e, por conseguinte, as diferenças entre um e outro sexo são
também diferenças de gênero, ou seja, culturais. Olho por olho é impossível saber qual é a
fronteira entre a natureza e a cultura. As mulheres têm músculos menos desenvolvidos porque
somos fêmeas, mas também porque somos femininas, nossas formas suaves são fruto do sexo,
mas também do gênero.

Bases sociais do sistema sexo/gênero


Assim como a produção de nossa existência tem bases biológicas que implicam uma
intervenção conjunta dos dois sexos, o macho e a fêmea, a produção social da existência – em
todas as sociedades conhecidas – implica, por sua vez, em uma intervenção conjunta dos
gêneros, o masculino e o feminino. Cada um dos gêneros representa uma particular
contribuição para produzir e reproduzir a existência.
Poderíamos nos referir aos gêneros como obras culturais, modelos de comportamento
mutuamente excludentes cuja aplicação supõem o hiperdesenvolvimento de um número de
potencialidades comuns aos humanos e a atrofia de outras. Modelos que se impõem
ditatorialmente às pessoas em função de seu sexo. Mas esta só seria uma aproximação
superestrutural do fenômeno dos gêneros. Para compreender qual é a base real dos mesmos, é
importante recordar as palavras de Marx:

“Na produção social de sua existência, os homens entram em relações


determinadas, necessárias, independente de sua vontade; estas relações de
produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas
forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção
correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças
produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constituem a
estrutura econômica da sociedade, a base real, sobre a qual se eleva uma
superestrutura jurídica e política e a qual correspondem formas sociais
determinadas de consciência. Não é a consciência dos homens o que
determina a realidade, ao contrário, é a realidade social que determina sua
consciência. ” (Contribuição à crítica da Economia política)
A existência dos gêneros é a manifestação de uma desigual distribuição de
responsabilidades na produção social da existência. O masculino e o feminino diferenciam a
forma pela qual satisfazemos nossas necessidades, o meio de que nos valemos para satisfazê-
las e a forma como nos relacionamos com as pessoas e as coisas para alcançar este fim.
Na sociedade se estabelece uma distribuição de responsabilidades que é alheia à
vontade das pessoas e os critérios sobre os quais se estabelece essa distribuição são sexistas,
classistas e racistas. Do lugar que nos é atribuído socialmente, dependerá a forma como
teremos acesso a nossa própria sobrevivência como sexo, classe, idade, raça etc. esta relação
com a realidade comporta uma visão particular da mesma. Não pensamos de determinado
modo, atuamos de certa maneira, valorizamos certas coisas, de forma espontânea, a não se
mediatizadas pela forma em que conseguimos viver e sobreviver.
O modo masculino que contribui para a produção da existência é diferente do
feminino. Além disso, as atividades masculinas produtoras da existência estão imbricadas nos
espaços distintos das femininas. Este ponto de vista tem como resultado duas esferas:
1. Esfera da sobrevivência: doméstica.
2. Esfera da transcendência: pública.
Cada uma destas esferas constitui o espaço social de um dos gêneros. Sendo a esfera
doméstica o espaço próprio do gênero feminino e a esfera pública o espaço próprio do gênero
masculino. Além disso, ao gênero feminino correspondem as fêmeas de nossa espécie e ao
gênero masculino, os machos. Entretanto, como a relação entre sexo e gênero não tem uma
relação determinista – mesmo que o sexo seja utilizado como referencial para a imposição de
gênero – nem toda a fêmea se ajusta perfeitamente ao modelo de relações e atividades
próprias do gênero feminino, como nem todo macho se ajusta ao modelo masculino.
Na esfera masculina, é onde tem lugar a transcendência do ser humano através da
incidência sobre o controle da natureza. Transformando o mundo, produzindo conhecimentos
científicos, invadindo territórios ou protegendo-os das invasões, ordenando através de
atividades políticas a sociedade em que habita, é como o gênero masculino contribui para a
produção da existência humana.
Na esfera feminina, doméstica, tem lugar a produção e a reprodução da vida humana.
Produção gerando novas vidas, reprodução restaurando as energias vitais consumidas
cotidianamente. Essa produção e reprodução da vida humana que fará possíveis as atividades
transcendentes.
A separação da sobrevivência e da transcendência em duas esferas converte as
atividades que se desenvolvem em cada uma delas em alienadas, porque carece de sentido se
não se refere à outra. A mera sobrevivência não é uma atividade especificamente humana, é
nossa capacidade para transcender, a que nos converte em propriamente humanos. Tampouco
é uma atividade propriamente humana aquela que se esgota na transcendência, pois implica
esquecer nossa condição de seres vivos e as limitações que este fato nos impõe.
Os próprios indivíduos que participam exclusivamente em uma das esferas se
convertem, por sua vez, em seres alienados, incompletos, já que perdem o sentido da
sobrevivência e a transcendência, ao não serem capazes de integrá-los em si mesmos.
A mútua alienação se produz entre os indivíduos que atuam em uma das duas esferas e
os que atuam na outra. Seu mútuo estranhamento se produz porque, como consequência da
forma diferente em que contribuem para a existência, desenvolvem duas cosmovisões que se
chocam, duas ordens de valores, prioridades e significados distintos para as mesmas palavras.
Aquele que participa da esfera da transcendência tem uma visão linear da vida humana, do
tempo e da história. Aquele que, pelo contrário, participa da esfera da sobrevivência, tem uma
visão circular da mesma realidade. Para uns, o fator dominante é o progresso, os avanços
científicos. Para outros, o determinante é a repetição, um ser cresce, se desenvolve e morre, e
a esse ser, segue outro com o mesmo ciclo, diariamente tem que comer, sujam utensílios e
roupas, porque diariamente tem que repetir as mesmas operações.
A questão não é tanto estabelecer valorações a respeito da importância relativa de cada
uma das esferas, mas assinalar que linearidade e circularidade, sobrevivência e
transcendência, doméstico e público, masculinidade e feminilidade, não são outra coisa que as
duas caras de uma mesma realidade única e indivisível.
Como assinalamos nas páginas anteriores, as duas esferas em que se dividem a
existência tem um significado de gênero, a uma masculina e a outra feminina correspondem a
cada uma um dos sexos. A existência dos gêneros é definitivamente uma ditadura, pois por
um lado, impõe a existência de unicamente duas formas de intervir na existência, na
sociedade e, por outro lado, impõe aos indivíduos, ou de forma persuasiva ou coercitiva, em
última instância, em função do sexo. Com isso, produz o paradoxo de que sociedades que se
autodenominam democráticas, supostos reinos de liberdades individuais estão construídos
sobre uma férrea ditadura, na medida em que aspectos essenciais da identidade da pessoa não
expressam suas aspirações, decisões ou capacidades, a não ser a imposição violenta de certos
modelos que consagram a mutilação da pessoa, pois só lhe permite desenvolver-se em uma
direção.
Mais ainda, o sistema sexo/gênero é também um sistema de hierarquias, já que o
masculino não é unicamente diferente do feminino, é também superior. Como todo sistema
hierárquico, dá lugar a relações de poder entre os dois termos antagônicos: as mulheres e os
homens. Se o poder faz possível a ordenação da existência em função do masculino, a
hegemonia se traduz em um consenso generalizado a respeito da importância e da supremacia
da esfera masculina.

INSTINTO (DICIONÁRIO AURÉLIO)


1. Fator inato do comportamento dos animais, variável segundo a espécie e caracterizado, em
dadas condições, por atividades elementares e automáticas; Exemplo: instinto migratório de
certas aves;
2. Impulso espontâneo e alheio à razão; tendência natural;
3. Forças de origem biológica, inerentes ao homem e aos animais superiores e que atuam, em
geral, de modo inconsciente, mas com finalidade precisa e independentemente de qualquer
aprendizado.

INSTINTO E PSICOLOGIA
De acordo com Freud, o instinto tem uma base orgânica que se expressa
psiquicamente:

“Chegamos ao conhecimento deste aparelho psíquico pelo estudo do


desenvolvimento individual dos seres humanos. A mais antiga destas
localidades ou áreas de ação psíquica damos o nome ID. Ele contém tudo
que é herdado, que se acha presente no nascimento, que está assente na
constituição, acima de tudo, portanto, os instintos, que se originam da
organização somática e que aqui [no ID] encontram uma primeira expressão
psíquica, sob formas que nos são desconhecidas. ” (Freud, Os Pensadores, p.
199, Abril Cultural, 1978, São Paulo).
Na trilha da teoria inicial de Freud sobre os instintos, podemos sintetizar o seguinte: os
seres humanos são regidos pelo princípio da procura do prazer e fuga do desprazer, que
encontram sua expressão somática basicamente através do instinto de sobrevivência e do
instinto sexual [Instinto de Eros ou Libido] que, por sua vez, gera uma expressão psíquica
através do ID.
A ação de busca do prazer e fuga do desprazer implica em uma combinação das
pulsões de absorção e destruição. Freud utiliza-se do exemplo do ato de comer: “o ato de
comer é uma destruição do objeto com o objetivo final de incorporá-lo e o ato sexual é um ato
de agressão com o intuito da mais intima união”. (op. Cit. p. 202). O ser humano é o resultado
do equilíbrio dialético das pulsões para sua realização. “Um excesso de agressividade sexual
transformará um amante num criminoso sexual, enquanto que uma nítida diminuição do fator
agressivo torná-lo-á acanhado e impotente”. (idem).
O instinto é uma característica comum a uma espécie, não sendo possível que cada
indivíduo possa o seu instinto. O que pode ocorrer é que as características
orgânicas/hereditárias de um instinto comum à espécie humana manifestem-se de formas
diferenciadas de acordo com as condições objetivas de sua realização social, ou seja, até que
ponto a forma de organização social possibilita um equilíbrio harmônico destas necessidades
instintivas e até que ponto elas as desvirtuem ou inibam, embora não as destruam.

Extraído de “Família e Reprodução Humana”, de Eunice Durham, In Perspectivas


Antropológicas da Mulher 3/1983, Zahar Editores, Rio de Janeiro.

FAMÍLIA

É próprio do senso comum conceber as instituições relativamente estáveis da


sociedade antes como formas “naturais” de organização da vida coletiva que como produtos
mutáveis da atividade social. No caso da família, entretanto, a tendência à “naturalização” é
extremamente reforçada pelo fato de se tratar de uma instituição que diz respeito,
privilegiadamente, à regulamentação social de atividades de base nitidamente biológica: o
sexo e a reprodução. (...)
O processo de naturalização da família não se esgota em sua forma, mas inclui
também a divisão sexual do trabalho, que a organiza internamente. A relação dessa divisão
sexual do trabalho com o papel da mulher no processo reprodutivo permite que se vejam
todos os papeis femininos como derivados de funções biológicas.
O problema inicial do estudo da família é dissolver essa aparência de naturalidade para
percebê-la como criação humana mutável. Assim, partindo do grupo conjugal e dada a
universalidade da instituição do casamento, é sempre possível identificar, em cada sociedade,
maridos, esposas e filhos. Mas o problema é determinar em que medida esse conjunto é
reconhecido como grupo ou subgrupo especifico, constitui uma unidade ou subunidade
doméstica e residencial e forma uma unidade de parentesco. O que a antropologia mostra,
através do estudo comparativo, é que isso nem sempre ocorre e que sociedades diversas
concebem e combinam de forma variável o casamento, o parentesco, a residência e a vida
doméstica, privilegiando arranjos diversos.

DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO


Todas as sociedades humanas conhecidas possuem uma divisão sexual de trabalho,
uma diferenciação entre papeis femininos e masculinos, que encontra na família sua
manifestação privilegiada. É verdade que as formas dessa divisão sexual são extremamente
variadas, assim como variam a extensão e a rigidez da separação entre as tarefas consideradas
próprias aos homens e aquelas atribuídas às mulheres.

EXTRAÍDO DE “CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS NAS ESTRUTURAS


FAMILIARES NO BRASIL”, de Elisabete Bilac, 1990.

Família atual brasileira

(...) Em primeiro lugar, constata-se que, embora as unidades domésticas consideradas


“famílias”2 sejam largamente predominantes nos domicílios brasileiros, seu desenvolvimento
entre 1981/1987 deu-se em ritmo menor do que o crescimento total dos domicílios. Neste
período intensifica-se o crescimento de domicílios unipessoais e de arranjos domiciliares que,
ao que tudo indica, não se baseiam em laços familiares (Castello Branco, 1989). Processos,
aliás, já detectados na comparação entre os anos 1970 e 1980 (Oliveira Berquó, 1989).

Todavia, não apenas diminui o número das unidades familiares no conjunto dos
domicílios, como também sua composição interna apresenta modificações sensíveis. Em
termos quantitativos, a chamada “família nuclear”, ou seja, a unidade doméstica composta por
pai, mãe e filhos, é o arranjo residencial predominante em nosso país, tanto nas áreas urbanas,
quanto nas rurais, ultrapassando ambas o nível de 60%. Contudo, esta forma de organização
da unidade doméstica vem configurando tendência declinante desde os anos 1970,
principalmente nas cidades. Ao contrário do que se poderia imaginar, esta propensão ao
declínio não é compensada por aumento das chamadas “famílias ampliadas” (pais, filhos e
outros parentes), que também apresentam para o mesmo período, sintomas inequívocos de
declínio, principalmente no meio urbano.
2
Como é sabido, o IBGE aproxima a noção de família à de domicílio, entendendo por família, no Censo, não só
as unidades domiciliares, cujos moradores estão relacionados entre si pelo parentesco, como também os
domicílios unipessoais e aqueles de até cinco pessoas sem relação de parentesco.
No campo e na cidade, a progressiva diminuição das unidades domésticas do tipo
família nuclear, claramente associada ao aumento das taxas de divórcio e separação, vem
sendo compensada, basicamente, pelo crescimento das famílias monoparentais,
particularmente aquelas de chefia feminina [de 1970 a 1987 as monoparentais femininas
cresceram de 9,5% para 14,4%]. Além disso, a estas famílias monoparentais se somam ainda,
particularmente nas cidades, os já mencionados domicílios unipessoais e outros arranjos
familiares ou não-familiares de natureza pouco conhecida. (...).

Famílias de grupos de operários e afins


Embora sigam estudos bastantes diversificados, principalmente do ponto de vista do
recorte que se faz do grupo investigado, permitem a realização de sínteses comparativas e
reflexões mais gerais (Durham, 1980; 1983; Woortman, 1981; 1983). Além disso,
possibilitam a constatação da ocorrência de certos processos básicos que implicam uma
caracterização geral, ainda que imprecisa, da estrutura e funções da família nas camadas
populares.
Uma família que é inicial e basicamente nuclear, mas que pode vir a se ampliar –
principalmente em certas fases de seu ciclo de vida – para abrigar parentes ascendentes ou
descendentes. Uma família que se baseia na articulação entre trabalho doméstico e trabalho
remunerado, atribuindo à mulher-mãe o trabalho doméstico e ao homem o trabalho
remunerado, mas que, reiterada embora intermitentemente, termina por recorrer ao trabalho
feminino remunerado e, dada a precariedade deste, ao trabalho das crianças e dos jovens, ao
mesmo tempo em que busca prolongar a escolarização dos filhos.
Nesta família, as uniões legitimadas juridicamente são preferenciais e o casamento
deve durar para sempre. As uniões dificilmente se rompem e quando isto ocorre, deve-se
fundamentalmente ao alcoolismo ou outro “desvio” que impede que o homem cumpra sua
tarefa de pai-provedor. (...)3

Família das camadas médias

3
Ao que tudo indica, as famílias monoparentais de chefia feminina não constituem, sob nenhum aspecto, uma
configuração “típica”, mas parecem ser exatamente, arranjos estratégicos produzidos quando da impossibilidade
objetiva de se manter o padrão nuclear. Geralmente são famílias situadas na linha da miséria. Cf. Wootmann
(1987); Durham e Cardoso (1979); Pastore et al. (1983), entre outros.
(...). Contudo, dados apresentados em alguns trabalhos como os de Salem (1980),
Bilac (1983), Bruschini (1986) e Romanelli (1986) fazem suspeitar que, pelo menos em
alguns dos chamados segmentos médios, ainda predomina uma família nuclear fundada na
divisão social dos papeis. Embora esta família seja assimétrica e pouco igualitária, diferenças
importantes se fazem notar no que diz respeito à família nuclear das classes trabalhadoras,
seja em relação à construção dos papeis femininos (mãe e esposa), seja em relação ao papel
dos filhos, o que implica arranjos práticos de vida cotidiana bastante diferenciados.
Assim, a mãe, embora seja a principal responsável pelo trabalho doméstico, ocupa-se
muito mais com sua gestão e organização, podendo delegar sua realização a uma outra
mulher, geralmente a empregada doméstica. Em contrapartida, está fundamentalmente
envolvida nos cuidados com as crianças que, mesmo no período escolar, demandam dela
assistência permanente. Por outro lado, essas mães ainda são a principal fonte de trabalho
adicional na família, uma vez que os filhos, aos quais se reserva uma escolarização
prolongada até a universidade, são essencialmente consumidores. A noção de “família
nuclear” parece recobrir, portanto, realidades diferentes nas classes trabalhadoras e nos
setores médios.
Figueira considera que nos últimos trinta anos, as famílias dos setores médios vêm
transitando de um modelo “hierárquico”, em que as identidades são posicionais (isto é,
definidas em função de posição, sexo e idade), para um modelo “igualitário”, em que a
identidade seria idiossincrática4, isto é, “homens e mulheres se percebem como diferentes
pessoal e idiossincraticamente, mas como iguais, porque são indivíduos”. (1987, p. 17).

4
Idiossincrasia: Disposição do temperamento do indivíduo, que o faz reagir de maneira muito pessoal à ação dos
agentes externos; maneira de ver, sentir e reagir própria de cada pessoa [Aurélio].

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