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RESUMO
ABSTRACT
In this paper are presented different versions of the myth of Narcisus, everyone
of which with variations in details, what leads us to different possibilities of
psychoanalytic interpretations. This polymorphism in the various forms of
reports and of its multiple comprehensions seems to reflect the
indifferentiation of the initial stages of mind development and the complexity
its study offers to. The question remains overt and so we wish it does, in order
to make progressing the study of this so basic and controversial concept in
the psychoanalytic theory.
Key words: mythology; versions of Narcisus myth; narcissism; myth and
psychoanalysis.
(1)
Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – Endeereço para correspondência:
R: Engenheiro Carlos Stevenson, 508 – Nova Campinas – Campinas/SP Cep: 13092-310 – E-mail: peteu01@terra.com.br
(2)
Doutor e Professor Titular pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, Analista didata da SBP/SP.
(3)
Servimo-nos da tradução para o português (de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves) da versão para o inglês
do texto latino, por Louise Vinge, in Scwartz-Salant (1982),p.97-101, e de outros textos mais concisos (Urtubey, Canevacci
e da Internet, referidos na bibliografia).
Eco, de fato, só podia repetir a fala alheia, Continuando a desprezar moças e rapazes,
devido a um castigo que lhe aplicou Juno (Hera), desdenhou as ninfas das ondas e das montanhas,
porque, em tempos idos, ela ficava a tagarelar, até que uma das jovens desdenhadas bradou
desviando a atenção da deusa, que assim não aos céus: “Pois que possa ele amar a si mesmo
conseguia surpreender seu esposo Júpiter (Zeus) e não obter aquilo que ama!”.
em companhia das ninfas nas encostas das A deusa Nêmesis ouviu sua justa prédica.
montanhas.
Havia uma clara fonte de águas límpidas e
Enamorada, Eco desejava transmitir ao prateadas, à qual nenhum pastor ou animal havia
seu amado tudo o que sentia, mas não podia jamais chegado, cuja superfície perfeita nunca
fazê-lo, por força do castigo sofrido. fora maculada por ave, besta, sequer um galho
Quando Narciso, percebendo sua caído. Atraído pela paisagem e pela fonte, Narciso
presença, indagou: “Há alguém aqui?”, apenas ali se debruça e enamora-se perdidamente da
ecoou: “Aqui!” E o que se seguiu, foi o único bela forma que vê e, num estado de deslumbra-
diálogo possível: mento, ali permanece imobilizado, como uma
- “Aproxima-te!” – exclama o jovem estátua de mármore ou tenta alcançar aquele
que vê.
- “Aproxima-te!” – repete o eco.
“Ó, jovem, apaixonadamente tolo, porque
Olhando para trás de si e em torno,
buscas, debalde, abraçar uma imagem flui-
surpreso, sem ver ninguém se aproximando,
da?” – diz uma voz desconhecida, não se sabe
indaga:
de onde vinda.
- “Porque foges de mim?”.
À margem do lago, Narciso definha, sem
- “..foges de mim” – ressoa Eco.
comer, sem dormir, sem descanso, tolamente
- “Aqui nos encontraremos!” iludido com a correspondência do amor da ima-
- “...nos encontraremos!” – reverbera, gem e, sem reconhecê-la como o próprio reflexo,
entusiasmada e, crendo ser desejada, sai da pensa que estende os braços em direção a um
vegetação e corre a enlaçar-se no pescoço do ser e não a uma sombra, e que aproxima os
mancebo. Este, porém, foge dela, dizendo: lábios aos dela, sempre que se inclina para
- “Retira as mãos de mim, não me abraces! beijar a bela figura suposta, que o arrebata. Ao
Que eu morra antes de conceder-te poder sobre chorar por não poder capturar o amado em seus
mim” braços, suas lágrimas turvam o lago e fazem
desaparecer a imagem na água perturbada.
- “Conceder-te poder sobre mim” - reitera e
Desespera-se ante a ameaça de perder seu
se cala.
amor, golpeia-se, vai-se consumindo até a
Rejeitada, recolhe-se entristecida à floresta,
morte.
passa a viver nas cavernas vazias, não come,
nem dorme, definha, enruga-se e descarna-se, Suas irmãs náiades o vêm buscar com o
até que todo o viço do seu corpo se desfaz no ar, ataúde e as tochas nas mãos para conduzi-lo à
só lhe restando a voz e os ossos, e depois nem pira funerária, mas, em lugar de seu corpo,
esses mais, pois dizem que se transformaram encontram uma flor, cujo centro amarelo estava
em pedra . E agora “esconde-se nas florestas e cercado de pétalas brancas.
já não é vista nas encostas das montanhas; Ainda quando sua sombra atravessa o
mas todos a podem ouvir, pois a voz, e somente Estige, debruça-se sobre o barco para avistar-se
a voz, ainda vivem nela”. nas águas.
(4)
Schwartz-Salant (nota 107,p.235); Canevacci (p.94, onde se grafa Conon,narr.24).
(5)
Schwatrz-Salant (p.191/2); Urtubey (p.150); Canevacci (p.94).
-na versão andrógina, alter é igual a ego, a explicação de Freud sobre a importância do
mas de outro sexo narcisismo na gênese do homossexualismo é
-na versão homossexual, alter é diferente mais complexa, envolvendo um processo de
de ego, mas do mesmo sexo identificação do menino com a mãe, justamente
chamado identificação narcísica, que o faz amar
-na versão heterossexual, alter é diferente
a outros rapazes como foi amado pela mãe; isso
de ego e de outro sexo.
deixou assente em sua análise de Leonardo da
Detalharemos em seguida alguns elemen- Vinci (E.S.B., XI).
tos integrantes do mito, para proceder a um
A relação dual de aproximação requer um
estudo analítico.
elucidamento mais detalhado. Na relação de
Relações interpessoais - nas diferentes Narciso com sua irmã gêmea, idêntica a ele, de
versões apresentadas caracterizamos dois tipos tal forma que mal se distingue um do outro,
de relações: unitária e dual. estamos diante de um tipo de relação fusional,
a) na relação unitária, só aparece um mais parecida com uma forma unitária do que
personagem, Narciso, que se relaciona consigo propriamente diádica.Também podemos espe-
mesmo., na versão denominada auto-erótica. O cular que a irmã de Narciso, dadas as suas
investimento total em si mesmo, com retraimento características, representa a parte feminina dele
dos demais e de todo interesse pelo mundo mesmo, uma maneira de o mito representar a
externo define o autismo, tanto entendido como bissexualidade constitucional do ser humano,
uma patologia, que se engloba nas formas de segundo Freud. Portanto, só aparentemente
psicoses infantis, quanto como um dos sintomas seria dual, mas no fundo, teríamos uma espécie
fundamentais da esquizofrenia, um aspecto de relação unitária.
que foi estabelecido por Bleuler. Freud iria Ainda vale notar que, nesta relação dual
considerar que a fase auto-erótica era o ponto de em tela, é Narciso quem ama sua irmã, ao
fixação da esquizofrenia, que nisto se diferenciaria contrário das anteriores, em que ele é amado e
da paranóia, cujo ponto de fixação estaria na recusa o amor a ele dirigido, seja pela ninfa, seja
fase do narcisismo (ESB, Vol.XII, 102). pelo rapaz. Contudo, se, como vimos, a relação
Na lição 26 de suas Conferências é fusional ou, de fato, não passa de uma espécie
Introdutórias, Freud deixa claro que “o auto-ero- de unidade escamoteada, o que temos, afinal, é
tismo é a atividade sexual do estado narcisístico um enamoramento de si mesmo disfarçado.
da libido” (E.S.B.,XVI: 486), deixando de demarcar Finalmente, o fato de existir uma irmã
uma fronteira entre duas fases diversas, como gêmea idêntica coloca a questão do duplo,
fizera em Sobre o Narcisismo (E.S.B.,XIV:93), abordada por Freud em “O Estranho”, em que
em que o narcisismo seguia o auto-erotismo. são discutidos aspectos do sujeito colocados
noutras pessoas. Esse tema liga-se à
b) nas formulações duais do mito, observam- especularidade, fenômeno pelo qual o indivíduo
se dois tipos de movimentos em relação ao indiferenciado sente-se espelhado no outro. A
objeto amoroso, de afastamento ou de propósito, Kohut descreve um tipo de transferência
aproximação. O afastamento se dá na fuga de narcisística, precisamente chamada gemelar,
Eco e na recusa ao amor de Ameínias, nas em que o analista é visto como se fosse uma
versões heterossexual e homossexual. A recusa alma gêmea do paciente.
de Narciso ao amor homoerótico de um jovem A qualificação de andrógina, dada por
apaixonado parece pôr em xeque a formulação Canevacci para a segunda narrativa de
do homossexualismo a partir do narcisismo, Pausânias, não nos parece justificável, pois
pois Narciso desconhece outro amor que não androginia refere-se mais a uma aparência feminil
seja direcionado à sua própria pessoa. No entanto, de um rapaz ou uma discreta masculinização de
uma moça, sem chegar à rusticidade de uma especial de fusão, indistinção inicial entre o
virago e não implica necessariamente outras sujeito e seu objeto de amor e de apoio, que
conseqüências, tais como a prática do homos- caracteriza o narcisismo primário.
sexualismo ou sequer um enamoramento Faremos aqui uma breve digressão teórica,
platônico. Como parece referir-se a um aspecto pois o conceito de narcisismo primário sofre
feminino inerente às pessoas, melhor caberia o transformações em Freud, ao longo de sua obra,
qualificativo bissexual para caracterizá-la, o o que nos obriga a tecer algumas considerações
que parece mais condizente com a idéia de elucidativas.
Freud da bissexualidade constitucional do ser
O narcisismo primário implica admitir um
humano.
estágio do desenvolvimento em que o ego é
A concepção do homem constituído de investido e Freud, em “Sobre o Narcisismo”,
um lado feminino e outro masculino encontra situa-o em seguida ao auto-erotismo, argumen-
apoio no mito de Hermafrodito, o filho bissexual tando que o ego não existe originalmente como
do deus mensageiro Hermes e da deusa do uma unidade, sendo necessária “uma nova ação
amor Afrodite. A ninfa Salmacis, de Halicar- psíquica” para provocar o narcisismo. Freud não
nasso, vendo-se não correspondida por esse explicita em que consiste essa nova ação
belo jovem, pediu aos deuses que a unissem psíquica, mas fica claro que o ego tem de ser
eternamente a ele. Do atendimento ao seu constituído e isto se faz nesta fase, o que
pedido resultou um rapaz feminino, mas que favorece a visão de Lacan (1949) em considerar
conservou seus genitais, donde deriva o termo o narcisismo estruturante na constituição do
hermafrodita. No hermafroditismo estão presentes sujeito.
as duas genitálias, ainda que uma possa estar
Em Conferências Introdutórias, na que trata
atrofiada.
da teoria da libido e o narcisismo, este aparece
Próximo desta linha, Schwartz-Salant como estado original, a partir do qual o amor
sugere que Perséfone, cujo mito articula com o objetal se desenvolve “sem que o narcisismo
de Narciso, representa um lado feminino oculto desapareça necessariamente” (E.S.B.,XVI: 485).
e dividido do caráter narcisista. Talvez, pensamos
Em “ Psicologia das massas e análise do
nós, corresponda a certos tipos de personalidades
ego” (1921), Freud radicaliza a teoria do
ou a certo aspecto delicado e suscetível de uma
narcisismo primário: “Ao nascer, dá-se o primeiro
pessoa, que pode ser aproximado, se atinge
passo desde um narcisismo absolutamente
grau de extrema suscetibilidade e vulnerabilidade,
ao narcisista de pele fina, de que nos fala Herbert auto-suficiente à percepção de um mundo externo
Rosenfeld, em contraste com o de pele grossa, cambiante e ao início do descobrimento dos
comparável ao narciso venenoso6. objetos”. (ESB,XVIII:164).
(6)
ver adiante o tópico “A flor”.
(7)
www.grupo (Internet).
(8)
Menelaos Stephanides.
(9)
Schwartz-Salant,101.
ciação, pois o vir a conhecer-se, que, no vaticínio Podemos entender o dogmatismo religioso,
revelado a Liríope, provocaria a morte de Narciso, político e científico a partir de um espelhamento
implica o reconhecimento da diferença do outro, narcisista recíproco entre os vários membros de
o que já nos introduz no terreno de Édipo, pela uma coletividade, criando uma espécie de
superação do narcisismo, faz-se a transição do narcisismo fundamentalista, avesso ao surgi-
espelho da ilusão para o mundo da realidade. mento do novo e do diverso.
O mundo de Narciso é o da indiferenciação Outrossim, lembramo-nos do famoso “sinal
pré-edípica. do espelho” das aulas de semiologia psiquiátrica,
A profecia feita por Tirésias comporta duas citado pelos professores de psicopatologia como
variantes. Na primeira, Narciso viverá muito sem um sinal característico da esquizofrenia e dado
jamais se conhecer; noutra, perecerá se vier a como fato universalmente conhecido, dispensan-
mirar-se.Uma enfatiza os perigos do autoconhe- do referência específica a qualquer autor, e que
cimento, outra a visão apaixonada de si, o aparece em vários filmes de cinema, em que o
desprezo pelo amor de outrem. psicótico é posto a se olhar demoradamente
diante de um espelho, às vezes fitando fixamente
O espelho - Narciso mira-se no espelho
a própria imagem, às vezes vendo-a distorcida
das águas, estabelecendo o aspecto visual do de forma monstruosa e assustadora, noutras
mito, que nos remete à relação exibicionis- ocasiões levando o doente a espatifar a superfície
mo-voyeurismo com uma manifestação erótica refletora de sua auto-imagem com um murro,
particular, ligada à esfera do narcisismo. A luz, numa reação de fúria persecutória.
referida no mito de Narciso, transparece como
Metaforicamente, fala-se no espelhamen-
elemento de compreensão tanto da cegueira, to do olhar materno, de admiração desta por seu
que o encerramento em si mesmo traz, quanto bebê e de extasiamento deste por ela, num tipo
do esclarecimento que se segue, ao ser vencido de vínculo fusional, que muitas vezes não se
um preconceito científico. supera e trará conseqüências tardias no desenvol-
A luz do autoconhecimento se produz no vimento amoroso do novo ser ou contribuirá para
a manutenção de vínculos patológicos, dada a
“insight” psicanalítico, visão interna, que liberta
sua inadequação à intensidade e à extempora-
e exige o abandono de cegueiras narcísicas
neidade.
obstrutoras.
Kohut, um pesquisador especializado no
Bion (2000), especialmente, desenvolveu
tema do narcisismo, com contribuições originais,
as implicações epistemológicas que se podem descreve, entre as formas de transferências
aduzir do mito, estudando a obstrução da onipo- narcisísticas, as especulares, que ficam subdivi-
tência do pensamento ao pleno conhecimento, didas em dois subtipos, conforme o modo como
impedindo a iluminação, obstaculizada pela pacientes muito regredidos se ligam ao analista:
aderência ao senso comum. O advento de novas o fusional, em que o analisando vê o analista
idéias torna-se capaz de trazer clareza de como mera extensão sua, capaz de lhe adivinhar
compreensão, quando o progresso do pensa- os pensamentos, comungar os mesmos valores
mento encontra obscuridades tamanhas, que e ideais; e o especular, propriamente dito, que
exigem a derrocada do sistema ideológico vigente corresponde à demanda do paciente para que o
e o estabelecimento de uma nova ordem de analista reconheça e espelhe o seu self
grandioso.10
conceitos e ações. Isso se dá no campo da
política, da ciência e da religião, como nos A flor – que nasce onde Narciso mor-
atesta a história. reu - é um símbolo de ressurreição, mas ao
(10)
Kohut, IN: Zimerman, Voc.Cont.de Psicanálise, p. 414.
mesmo tempo pode ser entendida como uma Num texto de botânica, informa-se que
forma de reparação mágica ou, como dirá Melanie este é um gênero em que se apresentam muitas
Klein, maníaca, com base em mecanismos de dificuldades na identificação e taxonomia das
onipotência e culpa paranóide. diferentes espécies, pois é cultivado há longos
Narkissos, nome da flor e do mancebo, anos e existe hibridação e seleção em larga
vem de narké, entorpecimento, raiz etimológica escala, havendo uma subseqüente fuga de
de narcótico. Num estado de obnubilação dos plantas e conseqüente naturalização. Nele, se
sentidos, Liríope deixa-se envolver nas águas incluem flores solitárias ou em umbelas de 2-15
volutas do rio Cefiso, estado de mente alterado flores, amarelas, brancas ou bicolores (raramente
que é reforçado na narração em que Eros a
verdes), algumas vezes perfumadas14 . No hino
flecha nas margens do rio, tornando-a intensa-
homérico dedicado a Demeter, é descrito um
mente enamorada, como se estivesse sob
influência de alguma poção mágica. Aliás, Liríope narciso de aparência mágica:
deriva de leyrion, a flor lírio, de que algumas “Era ele objeto de admiração para todos,
espécies têm poder psicomimético, como bem para os deuses imortais, como para os
o sabem os cultores de algumas seitas que homens mortais. E de suas raízes nas-
utilizam o chá de lírio com finalidades rituais. ceram mil cabeças, que exalavam um olor
A reparação maníaca (Hinshelwood,1992), tão suave que todo o amplo céu acima,
enquanto manifestação do pensamento mágico toda a terra e todas as salgadas ondas do
e do sentimento de onipotência, tem bases mar sorriam.” 15
frágeis e tenderá a falhar, como dá conta o Crime e castigo - de que vício ou crime
castigo eterno imposto a Narciso, numa das fala este mito, que justifique o castigo e que tipo
variações do mito, prolongando-se seu sofrimento de reação moral se produz?
no Hades. Podemos ver aqui representada a
Quando Liríope assusta-se diante da
atuação de um superego cruel, contrapartida à
formosura incomparável de seu filho, aparece
reparação maníaca, mostrando que, quanto mais
primitiva a defesa, mais primitiva a reação contra em cena o grande vício da hybris, ultrapassagem
ela. No universo mitológico tudo é intenso: os do métron, a transgressão da harmonia e da
desafios e as façanhas que dão conta deles, as medida, tão exaltadas pelos gregos. E a ação
estupendas estratégias para vencer armadilhas viciosa prossegue na vaidade e no orgulho de
e decifrar enigmas, as punições severas impostas Narciso, no desmedido amor a si mesmo.
aos heróis pela cólera dos deuses. O castigo não é a morte, propriamente,
A descrição da flor que surge no local onde mas a condenação ao amor impossível pela sua
morreu Narciso varia entre os autores: ora tem própria imagem inalcançável, que prossegue
um centro amarelo, cercado de pétalas bran- depois da morte, fazendo-o contemplar-se no
cas11 , ora é roxa, rodeada de folhas brancas12, Estige, rio da morte. Esta pena se perpetua pelo
ora é um narciso branco de corola vermelha, do tempo afora, como se depreende de o jovem
qual se extrai um bálsamo com efeitos narcó- Orfeu, muito mais tarde, tê-lo encontrado pran-
ticos13. teando o silêncio de seu amado.
(11)
Ovídio, apud Schwartz-Salant.
(12)
geocities.yahoo (Internet).
(13)
www.grupo (Internet).
(14)
www.uevora.pt (Internet).
(15)
Schwartz-Salant, p.193.
“Nem mesmo a poesia divina de Orfeu pleno direito de defesa ao réu, como se deu no
acalentaria a dor de Narciso”16 . Areópago, sob a direção de Atena. Assim se
A emotividade predomina nos domínios de compreende a severidade de seu castigo, de
Narciso e o pensamento é mágico, caracterís- forma inapelável. Mesmo as variações que
ticas de um universo primitivo, comparável aos atribuem a Eros ou Afrodite o papel de deus
primórdios da humanidade e do desenvolvimento vingador e justiceiro não retiram, antes reforçam,
infantil. Com razão, Melanie Klein (1946) o situa o primitivismo dessa forma de justiça.
na fenomenologia da posição esquizoparanóide, O suicídio de Narciso acarreta um problema
pois não há em Narciso a dimensão da culpa e teórico importante e até uma aparente contradição
do remorso pela dor causada a outrem, só lógica. De fato, se, por definição, em Freud, o
atingíveis na posição depressiva. narcisismo é o complemento libidinal do egoísmo
Mesmo na versão de Cânon, o suicídio de do instinto de conservação, não estaria garantida
Narciso parece mais um desespero diante da ao narcisista uma espécie de imunidade contra
impossibilidade de alcançar a figura amada o suicídio, uma vez que ele se ama acima de
espelhada na água do que um justo arrepen- tudo? Por outro lado, ainda, não é a morte por
dimento diante da morte suicida de Ameínias suicídio uma ação flagrantemente contrária ao
pela espada que a ele ofertara. Sua consciência instinto de autopreservação? Ou, em suma,
não passou da presunção de que estava sofrendo como o auto-amor pode levar à autodestruição?
um castigo dos deuses, sem atingir um nível Cassorla(1991), em seu estudo sobre o
genuinamente ético, de autoconsciência moral. suicídio, pode vir em nosso auxílio, quando
Se há traço de culpa, é da natureza da culpa observa:
persecutória (Grinberg,1978), que melhor se “Isto nos leva a um aspecto básico: o
chamaria temor ao castigo. suicida não quer morrer – na verdade, ele
Fiel ao espírito primitivo, o castigo é não sabe o que é a morte. Aliás, ninguém
implacável, seguindo a lei de talião: se desprezou sabe. O que ele deseja é fugir do
os amantes, será desprezado pelo amado; se sofrimento” (p.22).
provocou o suicídio, morrerá também pelas Quer dizer, o motivo do suicídio é funda-
próprias mãos. A sentença, como se ditada por mentalmente egoísta, buscando o alívio dos
um superego arcaico cruel, é cumprida mesmo
tormentos, o fim de uma dor constante ou
após a morte, como condenação perpétua no
insuportável, algo, portanto, ligado a uma fantasia
reino de Hades.
de libertação, profundamente radicada na
Quem aplica a pena é Nêmesis, a deusa libidinização do egoísmo17 ou na erotização de
da vingança, forma primitiva de justiça, ao estilo Tanatos18 .
das Fúrias ou Erínias, que dominaram as aplica-
ções das penas, de forma cruel e inclemente, Se, na origem de todo desenvolvimento
nas tragédias gregas anteriores ao julgamento psíquico, contrapusermos ao narcisismo primário
de Orestes pela morte de sua mãe Clitemnestra, o masoquismo primário - contradição que se
responsável, em acumpliciamento com Egisto, prolonga por toda a vida do indivíduo, em fusões
pela morte de seu pai Agamenom. Narciso é e defusões pulsionais, como nos oferece a visão
anterior a este período de evolução da cultura da última teoria das pulsões de Freud -, diríamos
grega, em que pela primeira vez se estabelecia que, no suicídio narcisista, o triunfo é do
um tribunal de júri para um julgamento, com narcisismo sobre o masoquismo. Enquanto este
(16)
http://www.grupo.org.br/logos/prof/fabio/narciso.htm.
(17)
Freud, Sobre o narcisismo.
(18)
Freud, Além do princípio do prazer.