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Entre o amor de si temática independente.

Isso faz dele uma diver-


sificada e interessante fonte de consulta para fu-
e a alteridade: um turos pesquisadores.
Com a apresentação de um caso clínico,
conflito interminável “A escolha de Sofia”, o autor inicia o capítulo ,
detendo-se na articulação metapsicológica entre
luto, melancolia e narcisismo. Uma escuta deli-
Maria Laurinda Ribeiro de Souza cada e atenta daquilo que poderia ressoar como
insuportável vai acompanhando os dilemas e
Resenha de Oscar M. Miguelez, conflitos de uma mãe – Sofia – frente à doença
Narcisismos, São Paulo, Escuta, incurável de sua filha.
2007, 153 p.
A morte de um filho, diz Miguelez, talvez
seja um dos lutos mais difíceis de processar, mas
é também o que torna mais visível o lugar ocupa-
do pelo narcisismo. E prossegue: quando Freud

LEITURAS
comparou o luto à melancolia, encontrou no
narcisismo a forma de operar a diferença entre
ambos. No texto de , “Introdução ao narci-
“Em princípio, todo analista ‘sabe’ o que é o nar- sismo”, ao denominar a criança como “sua majes- 143
cisismo e consegue ‘entender’ o que o outro está tade o bebê”, colocou em relevo o deslocamento
querendo dizer”. Com essa afirmação, Oscar do narcisismo dos pais para o investimento ide-
Miguelez introduz o campo de ambigüidades alizado dos filhos; uma renúncia do próprio nar-
e de supostas certezas a respeito do tema de cisismo que se extravasa para o objeto. Sua perda
sua pesquisa. A polissemia conceitual, o lugar põe em evidência a outra face dessa idealização:
ocupado em cada teoria e a abrangência de seu o desamparo. Trama-se, assim, no momento do
emprego não só na psicanálise, mas também luto, uma articulação entre narcisismo, falo e
na linguagem coloquial e nas análises da cul- castração. Na melancolia, por outro lado, a per-
tura, justifica, a seu ver, o emprego do termo da é evitada, sendo substituída pela identificação
no plural. “Parece-me fecundo, diz ele, pensar narcisista com o objeto. Surge, então, uma per-
o narcisismo como algo que tem muitas faces, gunta: “O narcisismo que se faz presente como
múltiplos semblantes” (p. ). ‘opção pela vida’ no luto é da mesma natureza
Ao longo do livro identificam-se três ver- que aquele presente na melancolia?” (p.). Essa
tentes de construção: a abordagem clínica, a me- pergunta estará como pano de fundo para todas
tapsicologia e as ramificações na cultura. Uma as manifestações clínicas e metapsicológicas des-
preocupação historicizante e discriminadora critas ao longo do livro; o emprego do conceito
da diversidade e complexidade dos conceitos no plural denotará uma insistência na singulari-
está visivelmente presente em todos os capítu- dade de cada fenômeno analisado.
los. Outra característica que chama a atenção Depois de um tempo, Sofia resolve inter-
é a forma de apresentação dos textos: embora romper sua análise e deixa para o analista um
haja um fio que encadeia os temas trabalhados, presente que o inquieta: “a impressão de que
cada capítulo pode ser lido como uma pesquisa se tratava de uma urna funerária fez com que
Maria Laurinda Ribeiro de Souza é psicanalista, membro do Departa-
eu nunca soubesse o que fazer com ela” (p. ).
mento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do Essa forma impactante de finalizar sua expo-
curso Psicanálise, do mesmo Departamento. É autora de Mais além sição cria, no leitor, uma suspensão e o remete
do sonhar (com aquarelas de Ada Morgenstern) (Marco Zero, ) e
de Violência (Casa do Psicólogo, ), entre outras publicações. imediatamente ao traumático desse processo de

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luto – o risco de esfacelamento narcísico do eu, contrário, é que o pensamento se desorganize e
uma ausência de referências, uma dor à qual é perca sua função antecipatória.
difícil dar um destino. Repete-se o impacto do Implicada com as questões sobre a violên-
início desse relato quando Sofia diz ao analista cia, Arendt não menciona em suas referências
que “esperou que sua filha morresse para então teóricas nenhum texto freudiano. No entanto, é
iniciar sua análise.” possível encontrar em suas contribuições pon-
Quando Oscar Miguelez chama a atenção tos de aproximação e complementação. Uma
para o fato de que a presença do narcisismo no conclusão partilhada por ambos é a de que tan-
imaginário social tem aumentado muito, ele, as- to a idéia do mal quanto a de justiça – que traz,
sertivamente, esclarece que isso ocorreu não por- muitas vezes, em sua execução, a presença da-
que o narcisismo esteja “aumentando”, mas porque quilo que tenta combater – não são passíveis de
as suas formas de deslocamento e transforma- definições absolutas. Derrida (), que con-
ção têm diminuído. Na cultura dita narcísica de vocou a psicanálise a se envolver com o estudo
nossos dias, o dilema crucial com que nos con- da “soberana crueldade”, reafirmou essa impossi-
frontamos continuamente é o da ultrapassagem bilidade apontando para a referência necessária
do narcisismo para o reconhecimento necessá- à alteridade infinita do outro: “não existe justiça
rio da alteridade. Sem essa possibilidade, é a so- sem interrupção, sem divórcio, sem referência
brevivência do humano que se coloca em xeque, deslocada para a alteridade infinita do outro,
144 expondo-nos, a todos, aos efeitos malignos des- sem experiência manifesta daquilo que perma-
se risco. “O amor a si mesmo e o amor ao outro nece para sempre out of joint” (p. ).
: dezembro de 2008

entram em uma dialética de conflito infindável Essa discussão continua no capítulo ,


no qual a crueldade desempenha um papel, por “Narcisismo, religião e cultura”, com o questio-
vezes, de protagonista” (p. ). namento da idéia, bastante difundida, de que a
A questão do mal, da crueldade, será de- Religião pudesse se constituir numa forma efi-
senvolvida por ele, no capítulo , através de um ciente de abolir o mal e facilitar a convivência
recorte original em que se apresenta uma ten- entre os homens, e, com a retomada dos textos
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tativa de aproximação e enfrentamento do pen- freudianos que apontam para o mal-estar ine-
samento de Freud com o de Hannah Arendt. vitável, decorrente de sua entrada no mundo da
Como foi possível, perguntou-se Freud, logo cultura. Aqui, a proposição do “narcisismo das
após a desilusão provocada pela primeira guer- pequenas diferenças” torna-se uma resposta po-
ra, que uma cultura tão desenvolvida fosse capaz tente para explicitar o horror ao “estrangeiro mais
de atos tão cruéis? E Hannah Arendt, assistindo familiar” e as guerras fratricidas que pretendem
ao julgamento de Eichmann, tentará responder, reassegurar um precário lugar de mais-valia.
propondo o que ficou conhecido como “banali- Narciso recusa tudo que não é espelho.
zação do mal”, e que se refere a uma capacidade Deforma-se para poder encontrar uma imagem
de destruição que poderia ser encontrada em que o aprove ou estilhaça o espelho tentando
qualquer homem comum. Bastava como condi- abolir o que não o engrandece. É nesse mo-
ção que ele fosse incapaz de pensar e se limitas- vimento que sua vertente odiosa tende a exa-
se a reproduzir as ordens de seus líderes; que cerbar-se e manifestar-se em atos de violência
ele se tornasse apenas um funcionário – um au- contra o outro – “diferente de mim, excludente,
tômato. Para ela, “a incapacidade de pensar está perseguidor”. Louis Dumont, que analisa a con-
intimamente ligada à idéia do mal” (p. ). Mas, temporaneidade colocando em relevo o conflito
contesta o autor, a capacidade de pensar não é permanente entre os valores modernos – “nós”
um dado objetivo que ultrapasse sem distorções
a crueldade da realidade; o mais freqüente, pelo 1 J. Derrida e E. Roudinesco, De que amanhã, Rio de Janeiro, Zahar.

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e pré-modernos –“eles” –, e Christopher Lasch, ma, a etiologia sexual, o auto-erotismo… Cita,
que lançou a idéia do “mínimo eu” como estra- por exemplo, a carta de  de dezembro de ,
tégia necessária de sobrevivência numa cultura que se inicia como uma questão:
narcísica, serão, neste momento do texto, os in-
terlocutores privilegiados. Quando é que uma pessoa se torna histérica em
“Por que eles não são como nós?”. Com esta vez de paranóica? Uma primeira tentativa rudimentar
pergunta, Miguelez encerra o capítulo, e aponta […] deu-me a impressão de que essa escolha dependia
para os vários planos presentes nessa discussão da idade em que ocorreram os traumas sexuais […]
que ainda estão à espera de aprofundamentos Abandonei há muito tempo esse ponto de vista […]. A
futuros: os preconceitos, os fundamentalismos, a histeria é alo-erótica: sua via principal é a identificação
dificuldade insistente em positivar a alteridade. […] Assim, cheguei a considerar a paranóia como uma
Essa mesma questão reaparece no campo irrupção da corrente auto-erótica (p. ).
psicanalítico: “eles – os não-analistas e nós – os
verdadeiros seguidores de Freud” são formas Será, no entanto, a partir do confronto com
segregacionistas de reafirmações narcísicas e Jung, que Freud aprofundará o estudo do fe-

LEITURAS
de demarcações de territórios. As transferên- nômeno psicótico, centrando-se no desenvol-
cias institucionais ou com os grandes mestres vimento do conceito de Narcisismo. Assim, o
podem ser palco de múltiplas atuações. Mas a texto de , “Introdução ao Narcisismo”, pode
transferência, como conceito central na psicaná- ser lido não só como um momento de explicita- 145
lise, tem, também, potência de deslocamento e ção do conceito, que já fora introduzido quando
transformação do narcisismo: “A interpretação da discussão do “caso Schreber” e em “Totem e
encarnada do analista tem valor de alteridade Tabu”, mas também como uma “confrontação,
e a transferência, valor de experiência mutati- refutação, oposição a Jung” (p. ). O autor pas-
va” (p. ). Retomando o texto sobre o amor de sa, então, a discutir os pontos principais desse
transferência, o autor discorre sobre suas mani- texto e as idéias polêmicas que ele suscita.
festações na histeria, e privilegia duas vertentes A proposição de um conflito centrado não
de análise: o manejo da transferência e a rea- mais entre pulsões sexuais e de autoconserva-
lidade da transferência. Discute, também, as ção, mas entre libido do eu e libido do objeto,
novas patologias que se apresentam no cenário colocará em questão o modelo do dualismo pul-
da cura analítica, demandando formas criativas sional, tão caro a Freud. Outro ponto polêmico
de manejo e interpretação. é a concepção de um tipo de escolha de obje-
Os capítulos  e  tratam das origens e da in- to que seria narcísica – a das mulheres privile-
trodução formal do narcisismo na teoria psicana- giadamente, e um outro tipo de escolha – por
lítica. Embora se pense a histeria (e sua variante, apoio (anaclítica) – mais própria dos homens.
a neurose obsessiva) como matriz clínica para o Essa distinção, diz Miguelez, não convence, já
desenvolvimento da teoria psicanalítica freudia- que encontramos nos dois tipos de escolha a
na, há todo um percurso de construção, desde os presença do narcisismo; “é fácil identificar o tipo
primeiros textos, em que Freud se ocupa daquilo narcisista, o difícil é encontrar o seu contrário”
que pode delimitar o campo das neuroses e o das (p. ). A própria idéia central do texto pode
psicoses. Oscar Miguelez retoma esses textos e ser questionada: Freud insistiu na proposição
as correspondências – com Fliess, com Jung – e do Narcisismo para sustentar suas formulações
faz um recorte de como se manifesta essa preo- sobre a psicose, explicando dessa forma a mega-
cupação e de quais variáveis Freud tenta precisar lomania e o afastamento do mundo. No entan-
para demarcar esses territórios – os mecanismos to, a tendência contemporânea, ressalta o autor,
de defesa específicos, a temporalidade do trau- é da retomada do auto-erotismo como forma

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mais adequada de se entender, por exemplo, a portar a alteridade, será a do narcisismo das pe-
fragmentação e a falta de unidade própria da es- quenas diferenças. Outra, não tão explícita, é a
quizofrenia. aproximação entre identificação e narcisismo. A
No capítulo , Oscar Miguelez faz uma relação entre auto-erotismo e narcisismo, assim
minuciosa leitura dos textos da metapsicologia, como a de narcisismo primário e secundário,
sublinhando o lugar articulador do narcisismo, será marcada por ambigüidades, chegando-se,
como eixo potencial de desdobramentos que se em alguns momentos, a confundir os conceitos.
fazem pressentir desde a “Monografia sobre as O impasse colocado na formulação de uma li-
afasias” (). Conceitos tais como representa- bido do eu e uma libido do objeto fez com que a
ção-coisa, representação-palavra, identidade de inquietação de Freud o levasse, em , a uma
percepção, identidade de pensamento, oposição modificação teórica significativa que lhe permi-
eu-objeto, prazer-desprazer, destinos da pul- tiu sustentar, com consistência, a premissa fun-
são anteriores ao recalcamento, amor-ódio são damental do dualismo pulsional e voltar-se mais
tomados numa construção inter e intratextual, detidamente para o estudo da destrutividade –
e analisados a partir de suas manifestações nos questão crucial na contemporaneidade.
sonhos, na melancolia e na esquizofrenia, apon- Ao pluralizar-desvendar o conceito em
tados por Freud como manifestações de regres- suas diferentes concepções metapsicológicas,
sões narcisistas. Oscar Miguelez, paradoxalmente, coloca em
146 E a pergunta inicial retorna: O narcisismo evidência a potência teórico-clínica daquilo
do luto é o mesmo que o da melancolia? Acredito que Freud apontou, no singular, como uma
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que não, responde o autor. etapa necessária na evolução da libido e do eu e


que ganhou, na análise dos autores contempo-
Podemos usar a mesma palavra, mas os processos râneos da cultura, estatuto de analisador pri-
são diferentes. Continuo a considerar necessário utilizar vilegiado.
o plural: narcisismos. Há um narcisismo do luto, da perda Se o termo se banalizou e faz parte do jar-
e um outro das psicoses. No luto há um eu que suporta gão pejorativo cotidiano sendo reconhecido em
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a perda do objeto […] Nas chamadas psicoses maníaco- sua face negativa, é porque ele pode, também,
depressivas […] o sujeito é pura perda e, portanto, não ser entendido como revelador daquilo que se
há perda possível, não há espaço psíquico para elaborar coloca como marca dos tempos modernos: a
(p. ). ausência de investimentos significativos que
sustentem a condição humana. Nesse sentido,
O último capítulo é dedicado a um apa- falar de narcisismos convoca-nos a pensar que
nhado geral sobre os “Avanços e recuos do nar- são necessários muitos. Muitos, para que as
cisismo após a metapsicologia”, ou seja, sobre os fragilidades e a castração não se cristalizem em
efeitos, no campo teórico freudiano, eliciados auto-suficiências imaginárias, sustentadas pela
pelas enunciações feitas no texto de . Uma violência, mas, antes, se abram para a possibi-
das idéias que insistirá, a partir de , e que se lidade de que, pela amizade, se possa viver “uns
revelará com potência na compreensão das lutas com os outros”, como propunha La Boetie, no
fratricidas e na dificuldade em reconhecer e su- início da modernidade.

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