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CENTRO DE FORMAÇÃO E ASSISTÊNCIA À SAÚDE– CEFAS

FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE: TEORIA E TÉCNICA

JOSÉ LIMA DE JESUS

PSICANÁLISE E CRISTIANISMO:
UMA REFLEXÃO SOBRE A CULPA NA CLÍNICA
PSICANALÍTICA E NO ACONSELHAMENTO CRISTÃO

CAMPINAS
2020
JOSÉ LIMA DE JESUS

PSICANÁLISE E CRISTIANISMO:
UMA REFLEXÃO SOBRE A CULPA NA CLÍNICA
PSICANALÍTICA E NO ACONSELHAMENTO CRISTÃO

Trabalho de Conclusão de Curso no Centro de


Formação e Assistência à Saúde – CEFAS, realizado
como parte da exigência para obtenção do título de
Formação em Psicanálise: Teoria e Técnica.
Orientador: Prof. Dr. Antônio Terzis

CAMPINAS
2020
RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre o sentimento de culpa no âmbito da
Psicanálise e do Cristianismo. Ao longo da história, Psicanálise e Cristianismo têm sido
entendidos como antitéticos, contudo, o sentimento de culpa é um fenômeno ontológico
em ambas as narrativas. Psicanálise e Cristianismo, em seus mitos originais, têm o
assassinato do pai como a gênese do sentimento de culpa–o pai como personagem
central. Foi possível durante os estudos compreender como as diferenças no conceito do
tempo psíquico se refletiram nas práticas em como lidar com a culpa. Tal percepção
ficou evidente na análise comparativa com o estudo de caso como material para
comparar as abordagens entre o aconselhamento cristão e a clínica psicanalítica. Assim,
considera-se que, ao lidar com um paciente cristão, o psicanalista precisa conhecer as
principais doutrinas cristãs. Da mesma forma, por meio da Psicanálise, o conselheiro
cristão poderá compreender melhor a atuação do inconsciente na relação com a culpa.

Palavras-chave: Psicanálise. Cristianismo. Culpa. Clínica. Aconselhamento.

ABSTRACT

This work aims to reflect on the feeling of guilt in Psychoanalysis and Christianity.
Throughout history Psychoanalysis and Christianity have been understood as
antithetical, however the feeling of guilt is an ontological phenomenon in both
narratives. Psychoanalysis and Christianity in their original myths have the murder of
the father as the genesis of the guilt feelings– the father as the central character. Along
the studies, it was possible to understand how differences in the concept of psychic time
reflected in the practices on how to deal with guilt. This perception was evident in the
comparative analysis with the case study as a material to compare the approaches
between Christian counseling and the psychoanalytic clinic. Thus, it is considered that
in dealing with a Christian patientthe psychoanalystshould know the main Christian
doctrines, exactly as the Christian counselor can understand better the role of the
unconscious in relation to guiltthrough Psychoanalysis.

Keywords: Psychoanalysis. Christianity. Fault. Clinic. Counseling.


DEDICATÓRIA

Aos meus pais, João Lima de Jesus (em memória) e Maria José de Jesus, pelos
fundamentos sólidos da educação que deles recebi, o maior legado que poderiam me
deixar.

A minha esposa Cleireane Aparecida de Jesus e ao meu filho Abner Augusto de Jesus
pelo apoio e presença constante em todos os momentos.
AGRADECIMENTOS

Ao Professor Dr. Antonio Terzis, meu orientador, que, com sua experiência,
contribuiu para esta realização.

Aos Professores do CEFAS, pelos ensinos e experiências compartilhadas ao


longo de todo o curso.

Aos colegas de classe com quem tive o privilégio de conviver durante o curso e
que fizeram parte de todo o processo de aprendizagem.

Ao meu amigo Jadirson Tadeu, Coordenador do Sindicato dos Trabalhadores do


Serviço Público Municipal de Campinas (STMC), pelo incentivo nesta etapa nova da
minha vida.

A todos os amigos e amigas de trabalho do Sindicato, pela experiência de


convivermos no ambiente de trabalho.
SUMÁRIO

RESUMO
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 7

1.1 PSICANÁLISE E CRISTIANISMO: UM DIÁLOGO....................................... 8


1.2 A CULPA NA PSICANÁLISE E NO CRISTIANISMO ................................... 9
1.2.1 A CULPA NA PSICANÁLISE ............................................................... 10
1.2.2 A CULPA NO CRISTIANISMO ............................................................ 12
1.3 A CULPA E O TEMPO LINEAR NO CRISTIANISMO ................................ 14
1.4 A CULPA E O TEMPO PSÍQUICO NA PSICANÁLISE ............................... 16
1.5 A CULPA E O PERDÃO COMO IDENTIFICAÇÃO..................................... 17
1.5.1 A CULPA E A CASTRAÇÃO ............................................................... 20
1.6 A CULPA E A FORMAÇÃO REATIVA ........................................................ 22
2. OBJETIVOS ............................................................................................................. 24
3. MÉTODO .................................................................................................................. 24
3.1 SUJEITO ........................................................................................................... 24
3.2 INSTRUMENTOS ............................................................................................ 24
3.3 ENQUADRE ..................................................................................................... 25
3.4 ANÁLISE DO MATERIAL ............................................................................. 25
4. RESULTADO ........................................................................................................... 26
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 26
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 28
7

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo mostrar como a Psicanálise e o


Cristianismo abordam a culpa em suas respectivas clínicas para lidar com o sofrimento
humano. A relação entre Cristianismo e Psicanálise ao longo da história tem sido
interpretada como excludentes. A razão para esse antagonismo é certamente
influenciado pela interpretação reducionista sobre o pensamento freudiano de que a
religião é a neurose obsessiva da humanidade e uma ilusão e inimiga da ciência. Essa
afirmação de Freud, que não pode ser retirada do seu contexto, suscita duas perguntas:
seu pensamento, no todo, não seria mais extenso e amplo, aberto a outras
interpretações? Freud teria sido influenciado pela sua experiência com a religião?
O autor procura mostrar pensadores que fazem uma leitura de Freud e mostra
que o antagonismo Freud versus religião se dá pelo reducionismo hermenêutico que
limita uma maior dialética entre Psicanálise e Cristianismo– o que é uma perda para
ambos, visto que o conhecimento psicanalítico pode ser usado para melhor compreender
o psiquismo e, ao mesmo tempo, os psicanalistas podem compreender melhor os
fenômenos religiosos a partir da experiência cristã.
Para o autor, embora a Psicanálise e o Cristianismo apresentem abordagens
diferentes, ambas procuram lidar com o fenômeno da culpa no psiquismo. Assim, busca
mostrar que há uma aproximação em sua epistemologia nas narrativas sobre a origem da
consciência moral em Totem e Tabu e no Cristianismo. Ambas mostram que a culpa é
um fenômeno ontológico. As narrativas apresentam similaridades e diferenças, mas têm
em comum o pai como personagem central.
As diferenças epistemológicas determinam a prática em ambas as teorias.
Enquanto no Cristianismo a razão comanda os processos cognitivos, emocionais e
comportamentais, a Psicanálise toma um caminho inverso: não é a racionalidade, mas,
sim, o inconsciente, que se constitui de forma histórica, corporal e psicossocial. Esse
conceito reflete a concepção do tempo, que, no Cristianismo, é linear (passado, presente
e futuro) e, na Psicanálise, é circular, atemporal e sempre presente. Essa compreensão se
refletirá na metodologia psicanalítica e cristã em relação à culpa no psiquismo.
O autor se utiliza de um estudo de caso: quando era professor de Teologia,
atendeu uma jovem paciente, a srta. A, que trazia em seu histórico um aborto. Terminou
com o rapaz, pai de seu filho, e se formou em Direito. Após esses acontecimentos,
8

converteu-se à fé cristã em uma igreja evangélica. Matriculou-se, então, no Curso de


Bacharel em Teologia e, aos 23 anos, estava cursando o segundo ano. Cinco anos
depois, agendou um aconselhamento apresentando a seguinte queixa: “Como pude me
deixar enganar? Não acredito que não percebi!”. Estava angustiada, sentindo-se
“lesada em seu tempo”. A srta. A, no decorrer de seus estudos, foi perdendo a
segurança nas doutrinas ensinadas pelos pastores/professores e agora estava em crise.
Procurou-se, então, construir um diálogo a partir da experiência de um
atendimento pastoral sobre as possibilidades da prática psicanalítica numa dialética com
o aconselhamento cristão em relação à culpa.

1.1 PSICANÁLISE E CRISTIANISMO: UM DIÁLOGO

A leitura dos escritos de Freud, ao longo da história, foi feita por muitos,
partindo da premissa de que seus textos são fechados, acabados, sem dialética. Segundo
Lacan

o pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão. É um erro


reduzi-lo a palavras gastas. Nele, cada noção possui vida própria. É o que se
chama precisamente de dialética. O que está em questão é a subjetividade do
sujeito nos seus desejos, na sua relação com seu meio, com os outros, com a
própria vida (LACAN, 1953-1954, p.9).

Jones (1989, p. 346) escreve sobre Freud: “ele conhecia bem a Bíblia e estava
sempre pronto a fazer citações de ambos os Testamentos. No todo, (...) Freud possuía
um conhecimento inusitadamente abrangente de várias crenças religiosas”. Sobre a
relação do saber da Psicanálise com a religião, Freud escreveu:

a psicanálise em si não é nem religiosa nem antirreligiosa, mas um


instrumento apartidário do qual tanto o religioso como o laico poderão servir-
se, desde que aconteça tão somente a serviço da libertação dos sofredores.
FREUD, E. & MENG, H. Org. (1998, p.25)

Para Ricoeur (apud Kung, 1977, p.1933), “a Psicanálise abre a uma dupla
possibilidade: a da fé e a da não fé, mas não lhe compete a decisão entre essas duas
possibilidades”. A Psicanálise não tem como objetivo a destruição de nenhuma
ideologia, seja religiosa, política, econômica ou qualquer outra, como afirma o próprio
Freud (1907/1982, p.80): “todo tratamento psicanalítico é uma tentativa para libertar o
amor recalcado, que encontrou no sintoma a incômoda solução de um compromisso”.
9

Freud (1933) explica que a Psicanálise não precisa ter uma visão de mundo,
própria de mundo, mesmo porque seria desnecessário, por aderir à visão da ciência,
contudo, reconhece o poder da religião,

dos três poderes que podem contestar a base da ciência, só a religião constitui
um adversário sério. Nem a arte nem a filosofia e sim a religião é o ingente
poder que dispõe sobre as mais fortes emoções do homem e que criou uma
visão de mundo de incomparável coerência e perfeição, que mesmo abalada
ainda subsiste até hoje (FREUD apud KUNG, 2006, p. 46).

Kung (2006, p.46) ressalta que Freud nunca havia falado com tanta clareza da
grandiosa essência da religião, que se propõe a prestar aos homens realizando, num só
tempo, três funções: 1) esclarecer sobre a procedência e aparecimento do mundo; 2)
garantir amparo e felicidade nas inconstâncias da vida; e 3) nortear seus princípios e
atos por meio de regras defendidas com toda sua autoridade.
A experiência religiosa pode estruturar as dimensões subjetivas e intersubjetivas
na dinâmica da vida psíquica. Nessa tentativa de “libertação”, a Psicanálise não é
antitética à religião, mas companheira de jornada. De acordo com Ricoeur (apud
KUNG, 2006, p.77), “Freud já reforçou a fé dos descrentes, porém na verdade mal
começou a purificar a fé dos crentes”.

1.2 A CULPA NA PSICANÁLISE E NO CRISTIANISMO

A Psicanálise e o Cristianismo procuram explicar a culpa. No Cristianismo, ela


surge após a desobediência do filho, que se rebela contra o pai e toma posse do fruto do
conhecimento do bem e do mal. Após esse ato, tenta se esconder. Nesse momento surge
a consciência moral.
Na Psicanálise, em Totem e Tabu (FREUD, 1913),o pai da horda tinha sob poder
o objeto de desejo do filho, as mulheres. Para se apossarem desse objeto, os filhos
mataram o pai. Caminho livre, mas, dali em diante, precisavam lidar com a culpa – daí a
origem do banquete totêmico. Freud (1913) fala sobre o retorno do recalcado na morte
de Moisés e como o apóstolo Paulo se torna o criador do Cristianismo ao universalizar a
culpa a partir do Judaísmo na doutrina da encarnação de Cristo. Freud se utiliza do
conhecimento religioso para criar uma teoria sobre a ontogênese e a filogênese da culpa
na humanidade.
10

1.2.1 A CULPA NA PSICANÁLISE

Na narrativa do parricídio, Freud (1913) sugere que a culpa faz parte da estrutura
do psiquismo humano. Na busca de uma fundamentação histórica sobre esse sentimento
de culpa, ele se utiliza da história dos judeus, do episódio da tentativa de assassinato de
Moisés, como um retorno do recalcado. Para isso, cita a narrativa bíblica, “a
comunidade toda falou em apedrejá-los. Então a glória do Senhor apareceu a todos os
israelitas na Tenda do Encontro” 1. O ato foi concretizado no desejo, quando o tentaram
matar. Esse acontecimento é interpretado como a repetição do parricídio totêmico.
Derrida (1995/2001, p. 85) oferece a seguinte interpretação:

assassinato não foi perpetrado, se permaneceu virtual, se somente não teve


lugar, a intenção de matar foi efetiva, real e, na verdade, realizada. Houve
passagem ao ato, as pedras foram de fato lançadas, uma vez que só a
intervenção divina as interceptaria. Em nenhum momento o crime foi
interrompido pelos próprios israelitas que teriam ficado com a sua intenção
suspensa ou teriam renunciado diante do pecado.

Na psicogênese, a culpa é historicizada no complexo de Édipo. Em o Eu e o Id,


Freud (1923) a consciência moral surge no homem como instância de censura para
punir o Eu. O sentimento de culpa tem sua origem sempre que o Eu se desvia do seu
ideal. Assim, o Supereu surge com o Complexo de Édipo para tirar a força da
agressividade que foi introjetada. Então, a culpa no psiquismo surge através do medo do
desamparo, a perda do amor. Isso porque, nos anos iniciais (entre 3 e 5 anos), a criança
tem desejos amorosos e hostis em relação aos seus pais no auge da fase fálica. Em sua
forma positiva, no Complexo de Édipo o rival é o genitor do mesmo sexo. A criança
deseja uma união com o genitor do sexo oposto. De acordo com Freud (1927/1931,
p.121),

nesse momento, desaparece a angústia frente à possibilidade de ser


descoberto, e também, por completo, a distinção entre fazer o mal e desejar
fazê-lo; com efeito, diante do Superego nada pode se ocultar, nem sequer os
pensamentos.

O mito originário da culpa tem origem na morte do pai da horda, que se reflete
no inconsciente racial – cria, assim, o contínuo sentimento de culpa. Esse fenômeno
inconsciente é repetido na história. Freud usa como exemplo a história dos israelitas no
assassinato de Moisés, que seria a repetição da morte do pai da horda primitiva.
Segundo Freud (apud Rosa, 1979, p.62), “esta morte fez o grande crime real para os

1
Números 14.10.
11

israelitas, se bem que, permanecendo profundamente sepultado no inconsciente racial,


aumentou o sentimento de culpa, que continuou a perseguir os filhos de Israel”.
Na concepção de Freud, o fundador da religião cristã é o judeu Saulo2, por
universalizar o sentimento de culpa fazendo uma síntese entre Judaísmo e Cristianismo
através da doutrina do “pecado original”. Nessa construção teológica, em Adão, todos
os homens pecaram e morreram. A culpa se estendeu a toda a humanidade como
herança. Da mesma forma, em Cristo ocorre o mesmo: a salvação se estende a toda
humanidade, “assim como uma só transgressão resultou na condenação de todos os
homens, assim também um só ato de justiça resultou na justificação que traz vida a
todos os homens”3, os que aceitam seu sacrifício são alcançados pela graça por meio da
fé.
Freud usa a construção teológica do apóstolo Paulo para correlacionar com o
assassinato do pai da horda logo depois de também ser deificado. Paulo como Judeu
admite o assassinato do pai: “Deus foi manifestado em corpo (...)”4.O Deus (pai)
encarnado no filho (Cristo)“estava reconciliando consigo o mundo, não lançando em
conta os pecados dos homens”5. Sobre a religião como fundada na ambivalência do
complexo paterno, há uma diferença entre o Judaísmo e o Cristianismo:

segundo Freud, o conhecimento de que somos infelizes porque matamos o


pai-Deus. Só pelo fato de Jesus Cristo, como filho, haver dado sua vida, é
que nós somos remidos dessa culpa. O filho chega mesmo a ocupar o lugar
de Deus: Nascido de uma religião do pai, o Cristianismo tornou-se uma
religião do filho. Mas não escapou à maldição de ter tido que afastar o pai.
O medo do pai primitivo manteve-se no Cristianismo sob as mais diversas
formas. (KUNG, 2006, p. 37).

Paulo reconhece o problema da culpa e apresenta solução. Em Adão, a culpa foi


universalizada para toda a humanidade. Em Cristo, essa culpa pode ser cancelada por
meio do sacrifício do “segundo Adão” (Cristo). Na encarnação, o pai (Deus) foi
assassinado pelos seus filhos. A culpa pela morte e a redenção pela identificação com
Cristo, em sua morte, são dois temas interligados entre Psicanálise e Cristianismo. À

2
Posteriormente veio a ser chamado de Paulo, por ocasião da experiência mística que teve quando ia
Damasco perseguir os seguidores de Cristo (Atos 9). No judaísmo o nome Saulo significa “grande” e
Paulo “pequeno”, um trocadilho comum na cultura judaica que mostra uma mudança radical sobre seu
oficio, da arrogância em defesa do judaísmo para a humildade em defesa da fé cristã.
3
Romanos 5.18.
4
1Timóteo 3.16.
5
2 Coríntios 5.19.
12

semelhança do banquete totêmico narrado por Freud, Paulo registra a refeição de Cristo
com os discípulos antes de sua morte:

“o Senhor Jesus na noite em que foi traído, tomou o pão e, tendo dado
graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo, que é dado em favor de vocês,
sempre que comerem deste pão e beberem deste cálice, vocês anunciam a
morte do Senhor até que ele venha’”6.

A religião cristã oferece suporte psíquico para um problema ontológico da


humanidade: a finitude da vida, o sentido de existir, a esperança para o maior desejo do
ser humano: viver. A fé cristã oferece uma proposta de vida para além da morte: uma
vida sem fim.

1.2.2 A CULPA NO CRISTIANISMO

No Cristianismo, a origem da culpa está registrada no livro do Gênesis. Na


narrativa da desobediência do filho (homem), a ordem dada pelo pai (Deus) era de que
não comesse do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, pois, no dia em que
comesse, certamente morreria7. A “morte” do filho ocorre através da separação do seu
criador (pai). A morte ocorreu como efeito da desobediência, por apoderar-se de algo
que pertencia ao pai. Ao comer o fruto, o homem (filho) passaria a possuir o que Deus
(pai) tinha em sua posse: “se vos abrirão os olhos em como Deus, sereis conhecedores
do bem e do mal”8. O conhecimento do bem e do mal é o início da consciência moral.
A culpa na narrativa bíblica, a “morte” do filho (Adão), é a perda da comunhão.
A palavra morte na narrativa bíblica também significa separação, ruptura da comunhão
com o pai. Então, o Cristianismo e a teoria freudiana do totemismo expressam em
comum um mesmo ato: o de o filho tomar para si o objeto de desejo que está em poder
do Pai. No totemismo, a mulher é o objeto de desejo do filho que está sob o poder do
pai. No Cristianismo, o objeto desejado é o conhecimento sobre o bem e o mal. Essa é a
gênese da moral no Cristianismo. Na encarnação, o filho assume a função do pai e sofre
o parricídio, essa afirmação tem como base o contexto geral da fé cristã, onde Jesus é
chamado de “unigênito do Pai”9, o próprio Jesus disse ser uma unidade com o Pai,

6
1 Coríntios 11.23-25.
7
Gênesis 2.16-17.
8
Gênesis 3.1-6.
9
João 1.14; 3.16
13

“Não crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo
não as digo de mim mesmo, mas o Pai, que está em mim, é quem faz as obras”10.
A morte instaura a culpa na humanidade, assim como na narrativa do pai da
horda. O desejo e a morte são comuns nas duas narrações: a “morte” foi o único meio
pelo qual o filho obteve o seu objeto de desejo. Qual será então a proposta para que o
homem se livre dessa culpa? Na psicogênese da religião, segundo a psicanálise, o estado
de culpa que o homem vive é o que produz a necessidade da religião. O
amadurecimento seria o transporte para homem sair da infância para a fase adulta. A
maturidade extinguiria a religião, por se fazer necessária devido à infantilidade do
homem, tanto individual, quanto coletiva. Em se tratando da humanidade, os conflitos
infantis encontram dupla significação:

conflitos infantis têm duplo sentido: da infância do indivíduo humano e da


infância da espécie humana; conflitos, portanto, já dos primeiros tempos da
humanidade, pois a infância do indivíduo é na verdade uma imagem da
infância da humanidade, a ontogênese do indivíduo humano é uma
reprodução da filogênese da espécie humana! Em ambos os casos a raiz das
necessidades religiosas é o desejo pelo pai, em ambos os casos o papel
central é representado pelo complexo de Édipo. (KUNG, 2006, p. 41).

A teoria psicanalítica e o cristianismo partilham a mesma premissa: o pai


interdita o objeto de desejo do filho. Na narrativa bíblica, a ação foi motivada pelo
desejo de se tornar independente do pai11 (Deus): “no dia em que dele comerdes se vos
abrirão os olhos e, com Deus, sereis conhecedores do bem e do mal”12. No inconsciente
do filho está o ideal do ego–ser “igual ao pai” – contudo, a motivação do homem em
buscar satisfazer seus desejos através do princípio do prazer encontra, na realidade, a
sua oposição. Isso ocorre em ambas as narrativas, tanto horda primitiva quanto no livro
de Gênesis. Sobre esse conflito, Freud (1927/1931, p.50) escreve: “ficamos inclinados a
dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da
Criação”.
A teoria da origem da culpa na Psicanálise como sendo a desobediência do filho
e a sua afeição pelo pai até a conspiração para a sua morte, traz nas entrelinhas a
hipótese de que a infelicidade do homem veio pela culpa da morte do pai. Fazendo um
paralelo com a religião cristã, a doutrina do pecado original se tornou chave na igreja
primitiva, devido ao simbolismo do nível inconsciente, o assassinato do pai da horda

10
(João 14.10-11).
11
Gênesis 3.1-6
12
Gênesis 3.5
14

primitiva. Assim, a salvação do pecado original só pode ser alcançada por meio de uma
morte expiatória:

a doutrina principal é a reconciliação com Deus Pai, a expiação do crime


contra ele; mas o outro lado da relação se manifesta no Filho que tomou
sobre si a culpa, tornando-se Deus ao lado do Pai, o Cristianismo torna-se
uma religião do filho. Não pôde escapar ao fato de destruir o Pai de suas
funções (FREUD apud ROSA, 1979, p.62).

No contexto em que a psicanálise foi elaborada, havia uma perspectiva positiva


quanto a essa maturidade como uma fórmula para que o homem ficasse livre de suas
neuroses. No entanto, a religiosidade no homem é um fenômeno universal, atemporal e
presente na pós-modernidade, que permanece com essa “infantilidade”. A religião cristã
parte do pressuposto de que o homem é um ser espiritual e como criatura tem a Imago
Dei (Imagem de Deus) e somente com uma religação entre Ela e o criador dará a
liberdade de lidar com a neurose.

1.3 A CULPA E O TEMPO LINEAR NO CRISTIANISMO

A srta. A converteu-se à fé cristã de tradição evangélica aos 23 anos, segundo


seu relato. Sua vida ganhou novos horizontes. Sentiu seus pecados perdoados. Em suas
palavras, uma “nova vida”. No entanto, tudo mudou. Agora ela está profundamente
decepcionada e sentindo-se culpada por ter “se deixada enganar”. Durante o tempo em
que estava na igreja, o ex-namorado a procurou para reatar o relacionamento, mas não
aceitou, pois acreditava que “Deus” tinha o melhor para ela e tinha recebido essa
“promessa” por meio de profecias”13. O que agravou ainda mais a frustração da srta. A
foi chegar à conclusão de que perdera tempo, fora enganada e se deixara enganar. Se,
por um lado, a proposta da religião é atrativa ao oferecer uma vida a qual chamam de
“plena”, paradoxalmente, produz pessoas neuróticas.

13
Nos escritos do Antigo Testamento, as profecias eram oficio dos profetas e profetizar é falar no lugar
de Deus de forma sobrenatural, como se outra personalidade tomasse a pessoa, de forma que muitas vezes
o profeta não tinha consciência da mensagem que anunciava. Normalmente advertiam a nação de Israel
sobre os efeitos do seu desvio da lei. No Novo Testamento, profecia é interpretada como um enunciado
por alguém que possui um dom, uma revelação, e não mais está restrito a uma classe, aos profetas. Na
tradição pentecostal, “profecias” são revelações que a pessoa obtém de forma mística, transcendental,
sobre eventos futuros, escatológicos, que ainda poderão acontecer. Entende-se que a pessoa que traz a
revelação de alguma forma esteve em outra dimensão. Uma revelação pode se referir a um grupo ou a
uma pessoa individualmente.
15

Numa pesquisa publicada no artigo: “Religião e transtornos mentais em


pacientes internados em um hospital geral universitário”, com o objetivo de determinar
a prevalência de transtornos mentais, revelou os seguintes dados:

em uma amostra de pacientes de um hospital geral e sua relação com a denominação


religiosa e religiosidade foram investigados 253 pacientes internados no Hospital
das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas por intermédio de um
questionário sócio-demográfico e um instrumento para diagnóstico psiquiátrico
(MINI-Plus). A maioria dos pacientes era católica (63,2%; n = 177); seguidos dos
evangélicos pentecostais (20,4%; n = 57). (SOEIRO, E.R; COLOMBO, S.E;
FERREIRA, F. H. M. S/N (Et.al.)

Essa pesquisa mostra que há nos centros de tratamento um grande de pessoas


com problemas de esquizofrenia e psicose.
Depois de cinco anos, a srta. A marca um aconselhamento e, durante a primeira
sessão, sequer consegue falar, chorando copiosamente. Na segunda sessão, consegue
falar apenas nos últimos 15 minutos e, mesmo assim, interrompe o pouco tempo que usa
para falar e sua fala principal é: “Como pude me deixar enganar? Não acredito que não
percebi...”. Durante as sessões seguintes, começou a relatar o que a estava angustiando;
sentia-se “lesada em seu tempo”, ou seja, no decorrer de seus estudos, ela foi perdendo a
segurança nas doutrinas ensinadas pelo pastor.
No Cristianismo, normalmente há uma entrega total do novo convertido. O
sistema emocional, carente com diversos tipos de problemas, encontra conforto na
doutrina do perdão, pois seus erros e tudo o que o aflige é lançado sobre outra pessoa,
Cristo. Os escritos proféticos do Antigo Testamento têm seu cumprimento na pessoa de
Cristo, destarte, uma das principais doutrinas centrais da fé cristã é a “expiação”: Cristo
sofreu no lugar do pecador, logo, todo o sofrimento agora, depois da conversão, é
creditado à pessoa de Cristo.

tomou sobre si as nossas enfermidades e sobre si levou as nossas doenças (...)


ele foi transpassado por causa das nossas transgressões, foi esmagado por
causa de nossas iniquidades; o castigo que nos trouxe paz estava sobre ele, e
pelas suas feridas fomos curados.14

O fiel é convidado a confiar que Cristo cuidará de todas as suas necessidades:


“lancem sobre ele toda a sua ansiedade, porque ele tem cuidado de vocês”15.
Há dois textos escritos pelo apóstolo Paulo, muito usados nos aconselhamentos
pelos pastores para incentivar a pessoa lidar com os problemas do passado para que não

14
Isaías 53.4-5.
15
1 Pedro 5.7.
16

venham a atrapalhá-la nessa nova etapa da vida pós-conversão: (1) “esquecendo-me das
coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim” e; (2) “se
alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se
fez novo”16. Essas duas afirmações sustentam todas as demais relações do fiel. É a partir
dessas convicções que ele vai se relacionar com o passado e com o presente. Uma nova
cosmovisão, uma nova forma de interpretar o mundo e viver.
O aconselhamento cristão, por ser normalmente um atendimento rápido, trata o
problema a partir do “problema”, contudo, “problema” é apenas a “queixa”, apenas uma
ponta do iceberg. Às vezes é preciso retroceder, buscar o que é apresentado e está
apenas na superfície. Apenas é efeito de acontecimentos que estão ocultos. O método do
aconselhamento cristão é denominado “noutético”17.O objetivo nessa abordagem é
direcionar, ensinar, exortar e confrontar o aconselhando com os princípios bíblicos.
O apóstolo Paulo orienta a comunidade cristã sobre a forma como se deveria
viver:

renunciai à vida passada, despojai-vos do homem velho, corrompido pelas


concupiscências enganadoras. Renovai sem cessar o sentimento da vossa
alma, e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira
justiça e santidade18.

Partindo do pressuposto de que as ações são conscientes, uma vez detectado o


sintoma, que é a culpa pela transgressão da lei, tudo é uma questão de volição, de querer
efetuar a mudança. Nessa abordagem, não há vestígios na crença de um inconsciente,
pois todo o comportamento humano está dentro da esfera do consciente, da razão.

1.4 A CULPA E O TEMPO PSÍQUICO NA PSICANÁLISE

A concepção de tempo na religião cristã parte do pressuposto racional “penso,


logo existo”. Assim, a antropologia criacionista em sua epistemologia entende o homem
como uma unidade governada pela racionalidade. A psicanálise entende que os traumas,
perdas, histerias, neuroses e obsessões trazem não só um modo de sofrimento,

mas um conteúdo de verdade. As formas de sofrimento não podem ser


completamente curadas, porque trazem a nossa inadequação, insatisfação
com as possibilidades inscritas no interior da vida social. Através do corpo

16
Filipenses 3.13; 2 Coríntios 5.17.
17
Do grego nous, “mente” e tithemi “pôr”, significa “pôr em mente”. Assemelha-se muito à Psicologia
Cognitiva/Comportamental.
18
Efésios 4.22-24.
17

das histéricas, da obsessão do neurótico, é que algo fala no sujeito, insistindo


que há uma vida que não se realizou que talvez não consiga se realizar no
interior das expectativas sociais tais como elas se configuraram.
(SAFATLE, 2018).

Freud diz que as pulsões estão imbuídas de uma dimensão experiencial histórica
que não se dão de forma voluntária, que pode ser recuperada voluntariamente, “mas na
dimensão do involuntário em nós, e do que nunca poderia ser completamente
voluntário, o que nunca poderia ser completamente objeto de uma representação da
consciência, por isso é inconsciente” (SAFATLE 2018).
Freud (1915) mostrou que o inconsciente é atemporal, não linear, e atua de forma
diferente: “os processos inconscientes dispensam pouca atenção à realidade. Estão
sujeitos ao princípio dos prazeres atemporais, isto é, não são ordenados temporalmente,
não se alteram com a passagem do tempo; não têm qualquer referência ao tempo”
(FREUD, 1915, p. 214).
Na clínica psicanalítica é possível pensar onde não existe e existir onde não se
pensa (Lacan). O homem não está sob os domínios da razão. Há razões que o homem
desconhece. O método de aconselhamento cristão ignora o fato de que há ações que têm
suas origens em causas inconscientes e que o consciente não revela os traumas mais
profundos, pois ficam em uma esfera em que a pessoa não pode acessar. É preciso mais
tempo, construir uma relação de confiança entre analista e paciente (transferência) para
que os conteúdos bloqueados possam emergir.

1.5 A CULPA E O PERDÃO COMO IDENTIFICAÇÃO

A doutrina do perdão na fé cristã está associada a uma firme resolução de


aceitação pela fé. O perdão é “substituição” do sofrimento do fiel pelo sofrimento que
Cristo vivenciou. Neste caso, é um processo de identificação. O fiel crê e passa a viver
como se seu passado não fizesse parte da sua vida, com base na promessa feita pelo
“Pai” no Antigo Testamento – “sou eu, eu mesmo, aquele que apaga suas
transgressões, por amor de mim, e que não se lembra mais de seus pecados”19 – e tem
seu cumprimento na pessoa de Cristo, segundo a interpretação do Cristianismo:“porei
as minhas leis em seus corações e as escreverei em suas mentes. (...) Dos seus pecados
e iniquidades não me lembrarei mais”20. Ao se identificar com Cristo em seu sacrifício

19
Isaías 43.25.
20
Hebreus 10.16-17.
18

e morte, a pessoa ganha o direito de viver uma nova vida e, na ressurreição, a vida
eterna:
“Portanto, já que vocês ressuscitaram com Cristo, procurem as coisas que
são do alto (...). Pois vocês morreram, e agora a sua vida está escondida
com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a sua vida, for manifestado, então
vocês também serão manifestados com ele em glória”21.

“Morrer” é negar as pulsões, rejeitar o objeto do desejo. O apóstolo Paulo usa o


termo “carne” em oposição a “espírito”, segundo o qual “a carne deseja o que é
contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um
com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam”22.
Essa decisão de “morrer” seria um processo volitivo, não uma questão de sentir,
mas aceitar pela fé, uma dicotomia entre “sentir” e “crer”. Nessa epistemologia, o crer
tem primazia sobre o sentir. Foi nesse axioma que Santo Agostinho afirmou: “Creio,
logo, sei”. A fé antecede o saber. A srta. A se converteu à fé cristã e acreditou que tudo,
de fato, havia passado, que suas experiências haviam sido perdoadas por Deus e que
agora não precisaria sentir culpa, afinal, se tornara uma nova criatura. Contudo, na
desconstrução da sua fé, na experiência de vida, começou a perceber que havia conflitos
entre o que lhe era ensinado como dogma e o que a realidade lhe proporcionava.
Os pressupostos teológicos que a sustentavam começaram a ruir e a srta. A
passou então a se desiludir. Aquela culpa que havia acreditado ter sido “esquecida”
“deixada no passado” voltara, mas, agora, com um alto teor de ressentimento, raiva e
culpa.
A srta. A, ao se converter, aceitou a doutrina incondicional do perdão. Agora tem
uma nova vida, deixando todas as angústias produzidas pela culpa no passado. Isso
porque a concepção fragmentada do tempo como passado, presente e futuro não leva em
conta que o psiquismo não atua nessa lógica. Dessa forma, o que realmente aconteceu
foi entrar um estado de neurose paranóica. De acordo com Freud (1911, p. 230), “toda
neurose tem como resultado e como propósito arrancar o sujeito da vida real, aliená-lo
da realidade.
Os neuróticos afastam-se da realidade por acharem-na insuportável – seja no
todo ou em parte. O ativismo na igreja manifesto em ritos e ajuda ao próximo (obras
assistenciais, ofertas para missões evangélicas, voluntariado para ajudar moradores de

21
Colossenses 1.1-4.
22
Gálatas 5.17.
19

rua etc.), na verdade era uma forma de camuflar angústias insuportáveis.Essa repressão
excluiu as ideias que eram produtoras de desprazer. A srta. A vivia essa ambivalência:

a satisfação do instinto submetido à repressão seria possível, e também


prazerosa em si mesma, mas que seria inconciliável com outras exigências e
intenções, geraria prazer num lugar e desprazer em outro. Então se torna
condição para a repressão que o motivo do desprazer adquira um poder maior
que o prazer da satisfação. (FREUD, 1914-1916, p.63).

Essa dedicação da srta. A poderia ser mais uma forma de se “autopunir” e, ao


mesmo tempo, uma tentativa de “reparar” a culpa pelas suas decisões do passado. Essa
experiência traumática exige muito esforço psíquico para impedir o retorno do
recalcado:

quanto mais se emprega uma, mais empobrece a outra. A mais elevada fase
de desenvolvimento a que chega esta última aparece como estado de
enamoramento; ele se nos apresenta como um abandono da própria
personalidade em favor do investimento de objeto. (FREUD 1914-1916,
p.12).

Um evento traumático reprimido vai para o inconsciente, mas a energia pulsional


não é eliminada. Embora a Srta A acreditasse no perdão, na realidade a sua culpa foi
internalizada e, quando a sua sustentação foi gradativamente desconstruída, o trauma
saiu do inconsciente e veio para o consciente, se manifestando na culpa. Agora, ela
precisava lidar com essa angústia que reprimira.

O Eu retira o investimento (...) do representante do instinto a ser reprimido e


o aplica na liberação de desprazer (...) a energia de investimento do impulso
reprimido é transformada automaticamente em angústia. (FREUD, 1926-
1929 2014, p.22).

A srta. A suprimiu a culpa. Usou a negação como mecanismo de defesa, fez a


realocação para os rituais da igreja como uma forma de substituição. Era muito
presente, assídua, e passou a ter traços de neurose obsessiva – o sintoma que se
manifesta na necessidade repetitiva de praticar os rituais. Essa era uma ambivalência,
daí o fracasso na repressão, que voltou em forma de angústia:

o conflito é exacerbado em duas direções: aquilo que exerce a defesa se torna


mais intolerante, aquilo que deve sofrê-la se torna mais insuportável; ambas
as coisas por influência do mesmo fator, a regressão libidinal (FREUD, 1926-
1929, 2014, p.53).

Houve um deslocamento de fuga. Ela não suportou quando o objeto da sua fé


entrou em processo de desconstrução. A angústia se manifestou na culpa que sentia
20

quando repetia freqüentemente frase “como pude me deixar enganar?”. As barreiras do


recalque foram sendo rompidas:

a repressão, que foi de início bem sucedida, não se firma; no decorrer dos
acontecimentos, seu fracasso se torna cada vez mais acentuado. A
ambivalência que permitiu que a repressão ocorresse através da formação de
reação constitui também o ponto em que o reprimido consegue retornar. A
emoção desaparecida retorna, em sua forma transformada, como ansiedade
social, ansiedade moral e autocensura ilimitadas (FREUD,1915-1916],
p.161).

No caso da srta. A, ao trazer luz às lembranças dos fatos que haviam ocorrido
(aborto, perda do namorado), despertaram nela os afetos que estavam ligados aos
acontecimentos. Isso ficou evidente pela forma como ela se expressava, com extrema
angústia e culpa. Nesse caso, percebe-se também um traço de histeria, de acordo com
Freud (1926/1929, p.29) que se revela como “compromissos entre a necessidade de
satisfação e a necessidade de castigo”.
Nesse caso, percebemos um dos principais sintomas que são as reminiscências,
manifestas na srta. A por meio do choro, cólera contra os pastores “responsáveis” pelo
seu engano. Culpava-se por “se deixar enganar”, mesmo ressaltando que sempre fora
uma pessoa reconhecida como inteligente. A srta. Anão queria assumir a parte que lhe
cabia em sua queixa.

1.5.1 A CULPA E A CASTRAÇÃO

No curso de Teologia que a srta. A cursava, estudou a disciplina Cristologia.


Essa matéria trata da Doutrina de Cristo e um dos temas é a encarnação:, Deus, o Pai, se
tornou Filho no nascimento de Cristo-homem. O Pai se tornou filho e, ao se tornar
humano, submeteu suas pulsões à obediência ao Pai: “se vocês obedecerem aos meus
mandamentos, permanecerão no meu amor, assim como tenho obedecido aos
mandamentos de meu Pai e em seu amor permaneço”23.
Os discípulos de Jesus, ontem e hoje, devem se submeter a ele. Essa experiência
produz sentimentos ambivalentes, como no complexo de Édipo. Deus, o pai, torna-se
uma representação castradora. Os cristãos (filhos) desejam a perfeição do pai, uma
dissolução do complexo em que o filho vive o dilema entre eliminar o pai e ocupar seu
lugar (renegar a fé) ou se identificar com o pai e organizar o superego com o que
acredita ser as características exigentes do Pai, para os filhos se tornarem iguais em sua

23
João 16.10.
21

perfeição e ter os mesmos poderes que ele. Paulo, o apóstolo, se coloca em um nível
moral tão elevado que, em carta à comunidade de Corinto, exorta: “tornem-se meus
imitadores, como eu o sou de Cristo”24.
Freud diz que há uma diferença entre a formação do ideal do Eu e a sublimação
do instinto. Foi o que aconteceu com a srta. A, que pode ter “trocado seu narcisismo
pela veneração de um elevado ideal do eu; isso não implica ter alcançado a sublimação
de seus instintos libidinais” (FREUD, 1914-1916, p.41), explica que “o ideal do Eu
requer tal sublimação, mas não pode forçá-la; a sublimação continua sendo um processo
particular, cuja iniciação pode ser instigada pelo ideal, cuja execução permanece
independente da instigação”.
A srta. A não conseguiu sublimar suas pulsões, mas, sim, aumentar as exigências
do Eu por meio da idealização, o que favoreceu a repressão. Isso porque “a sublimação
representa a saída para cumprir a exigência sem ocasionar a repressão” (FREUD, 1914-
1916, p.41).
Não sabemos como era a relação da srta. A com seu pai, como se deu a sua
castração,mas como teria sido a sua relação com o Deus da Bíblia? Quais
representações trouxeram a experiência da srta. A? Com qual das duas figuras ela se
identificou? O pai é vingativo e castrador como o do Antigo Testamento ou é amoroso,
perdoa e apoia, como o Pai que se revela no Novo Testamento na encarnação? Estes
dois “pais” estão presentes no superego em dosagens diferentes, dependendo da
experiência e da subjetividade de cada cristão. De acordo com Freud (1933-1932, p.68),
“o superego assume o lugar da instância parental e observa, dirige e ameaça o ego,
exatamente da mesma forma como anteriormente os pais faziam com a criança”.
A srta. A estava com muita mágoa dos pastores/professores que lhe deram
segurança nos ensinos e que, depois, em sua experiência, constataram-se falhas. Teria
havido uma regressão da srta. A para estágios anteriores? Seria essa a razão do seu
desamparo?
Percebeu-se na srta. A um conflito instalado de “amor e ódio”. Ressentimento
por não conseguir atingir o ideal de Cristo e viver na dimensão do amor, e, ao mesmo
tempo, mágoa por não conseguir alcançar o ideal do Pai (superego = Deus).Na
construção do psiquismo, esse é um sentimento primário que retorna, da ordem do

24
1 Coríntios 11.1.
22

primitivo, repleto de grande intensidade de ódio e indignação, o qual não se traduzir em


palavras, mas, sim, em intenso ódio e indignação.
De onde viria esta energia pulsional?
Justamente do período narcísico, quando a pessoa se sente contrariada em sua
vontade imperiosa a demandar satisfação, dirige sua raiva e ódio contra aquele que
acredita estar impedindo a sua satisfação. Em geral, as figuras parentais. Portanto,
estamos falando de uma regressão a estádios anteriores do processo psíquico em que a
possibilidade de descarga é principalmente motora e com a intenção de eliminar,
destruir o objeto da sua frustração, e, no momento da transferência, o inimigo
certamente será o seu conselheiro25.
O caso da srta. A, na explicação teológica cristã, é narrada pelo apóstolo Paulo
quando percebe que a racionalidade não consegue dominar sua vontade, quando vive o
conflito entre o “querer” racionalmente e o “fazer” contra sua racionalidade. Segundo
ele, havia duas leis em conflito: “a lei de Deus, que é boa, e a lei do pecado, que o
impulsiona a agir contra a sua consciência”26. Nesse paradoxo entre o eu e o supereu,
exclama “miserável homem que sou”27. Percebeu que seu eu (consciente) não dava
conta das demandas da lei de Deus (superego). A repressão não era suficiente para lidar
com suas pulsões.

1.6 A CULPA E A FORMAÇÃO REATIVA

Freud (1915), no texto As pulsões e suas vicissitudes, diz que uma pulsão pode
passar por uma sequência de transformações, dentre elas a reversão ao seu oposto. A
formação reativa, segundo Freud (1926/1929), é um mecanismo de defesa, que ocorre
quando alguém experimenta um desejo instintivo ou inconsciente que rejeita
conscientemente. Isso o leva a desenvolver um impulso oposto ao que rejeita. Nesse
processo de formação reativa, “o supereu torna-se particularmente rigoroso e
inclemente, o Eu desenvolve, em obediência ao Supereu, elevadas formações reativas:
conscienciosidade, compaixão, asseio com severidade implacável” (FREUD, 1926-
1929, p.51).

25
Durante todo o aconselhamento senti o fenômeno transferencial, contudo, não tinha conhecimento na
época em que realizei esse atendimento, somente durante o curso é que pude entender melhor muitos dos
fenômenos que experimentei no aconselhamento pastoral que não sabia nominar.
26
Romanos 7.19-23.
27
Romanos 7.25.
23

A srta. A, em seu ativismo religioso, investiu tempo em ajudar a comunidade, em


fazer viagens missionárias como forma de ocultar a mágoa que sentia. Não conseguia se
perdoar nem tampouco perdoar os que, segundo ela, eram responsáveis pelas decisões
que havia tomado após sua conversão à fé cristã. Tinha um forte sentimento de raiva.
Sua experiência de vida mudou sua forma de crer, mas sua fé não foi inteiramente
extinta. Nesse caso, mesmo sentindo alívio por verbalizar suas angústias, precisava
suprimir a energia pulsional de raiva.
Essa ambivalência produz a formação de sintomas que obtêm um triunfo quando,
segundo Freud (1926-1929, p.48), “consegue mesclar a proibição e a satisfação, de
forma que o mandamento ou a proibição originalmente defensivo adquire também o
significado de uma satisfação”. Em sua confissão de fé, a srta. Anão poderia fazer ou
sequer pensar desejar retribuir o mal que sofrera. O objeto da sua frustração eram os
pastores e professores. Como seu conselheiro e também pastor/professor, eu fazia parte
dos atingidos pelos sentimentos de raiva e mágoa transferidos.
Uma das bases da fé cristã é ter os pecados (ofensas) perdoados. Contudo, uma
condição é sine qua non: se não perdoar, também não será perdoado28. Assim, a srta. A
vivia a ambivalência perdoar os que haviam “roubado” o seu tempo e suas
oportunidades, quando ela mesma não se perdoava. Ela poderia estar num processo de
regressão. A melancolia, nesse caso, poderia ser o resultado da perda de apoio. A
realocação das energias pulsionais para os ritos deixaram de fazer sentido devido ao
esvaziamento da fé que lhe dava toda a sustentação do ego. Essa era uma relação
ambivalente com os objetos perdidos, “o bebê (que havia abortado), o namorado e o
tempo”.
A srta. A sofreu decepção com seus dogmas e líderes, mas não deixou de crer
totalmente. Sua mágoa era concluir, depois de ter estudado, que deveria ter tomado
decisões que, segundo ela, dariam outro rumo à sua história – como ter voltado com seu
ex-namorado, pai do bebê que ela havia abortado. Perto do fim do aconselhamento,
começou a perceber ter fugido das responsabilidades, se colocado como vítima.
Entendeu que sua racionalização na forma passiva da sua queixa “como me deixei
enganar” era fugaz, uma forma de se eximir da sua parte no próprio sofrimento.

28
Mateus 6.14.
24

2. OBJETIVOS

Buscar um diálogo entre a Psicanálise e o Cristianismo em relação aos


sofrimentos psíquicos.

Encontrar semelhanças e diferenças sobre a culpa na Psicanálise e no


Cristianismo.

Entrelaçar os conceitos sobre o tempo linear no aconselhamento cristão e o


tempo circular do inconsciente na clínica psicanalítica em relação à culpa.

Analisar os efeitos no psiquismo da “doutrina do perdão” como identificação no


sacrifício de Cristo na religião cristã.

Demonstrar como a formação reativa se relaciona com a culpa no Cristianismo.

3. MÉTODO

Foram realizadas cinco sessões de aconselhamento, uma sessão por semana, com
duração de uma hora. A metodologia do aconselhamento foi cognitivo-comportamental,
usando a Bíblia como referência para a orientação de forma diretiva. Na teologia
bíblica, esse método é chamado de “noutético”, uma forma de confrontar, exortar e
ensinar o paciente que ele é responsável pela sua queixa e a forma é agir de acordo com
os preceitos do Evangelho.

3.1 SUJEITO

A srta. A é uma jovem de 28 anos, formada em Direito, fazendo o segundo ano


do Bacharelado em Teologia. Seus pais são divorciados: a mãe é microempresária
autônoma e o pai não participa de sua vida cotidiana. Srta. A engravidou, fez aborto e
terminou o relacionamento com o namorado, pai da criança. Converteu-se à fé cristã de
tradição evangélica aos 23 anos. Cinco anos depois procurou aconselhamento com a
queixa de que havia se deixado enganar.

3.2 INSTRUMENTOS

A metodologia aqui empregada parte do pressuposto de que o paciente pode


entender que, tendo consciência de seus atos por meio do arrependimento, poderá
esquecer o evento traumático e começar uma nova vida na fé cristã. Foi utilizada a
25

Bíblia cristã e uma bibliografia com autores de confissão de fé católica para construir
uma fundamentação teórica e uma análise comparada utilizando o aconselhamento
realizado em 2012 com a jovem a quem apliquei o pseudônimo de srta. A. Foi utilizada
uma bibliografia com escritos de Freud e de autores cristãos.

3.3 ENQUADRE

O aconselhamento foi realizado em uma sala da escola onde eu lecionava. Duas


cadeiras foram postas frente a frente e a paciente verbalizou sua queixa, sem ser
interrompida até que conseguisse se acalmar para então prosseguir. Não houve
honorários envolvidos, pois o atendimento no aconselhamento pastoral normalmente
não é cobrado. Não foi estipulado quantas sessões ocorreriam. O aconselhamento durou
cinco sessões e foi a paciente quem determinou o tempo que achou suficiente para
melhor lidar com a situação que estava vivendo.

3.4 ANÁLISE DO MATERIAL

Este material é fruto de aconselhamento realizado para uma paciente no ano de


2012. No primeiro semestre do Curso Psicanálise – Teoria e Técnica no CEFAS, em
2018, apresentei uma reflexão com o tema Psicanálise e Aconselhamento Pastoral: Uma
reflexão sobre o caso “Maria”, reflexão esta sobre as formas de abordagem na clínica
psicanalítica e no aconselhamento cristão. No segundo semestre de 2019, esse caso foi
levado para o grupo de Supervisão no CEFAS. Discutiu-se esse caso com o Professor
Antônio Tersis juntamente com os alunos da disciplina Supervisão e Atividades
Práticas.
Por fim, decidi ampliar um pouco mais o conteúdo e utilizar as reflexões e
apontamentos da professora Carmem Fabrini da matéria Freud I e as observações feitas
em sala de aula com os alunos da supervisão, para então fazer o Trabalho de Conclusão
de Curso com uma análise comparativa sobre as formas de se lidar com a culpa no
Cristianismo e na teoria psicanalítica.
26

4. RESULTADO

A srta. A apresentou mudanças durante o período do aconselhamento. Chorou


muito na primeira sessão; na segunda conseguiu falar entre crises de choro; e, nas
últimas três sessões (todo o aconselhamento durou cinco sessões), conseguiu falar com
serenidade, colocando a força atuante da representação que não havia ainda sido ab-
reagida e permitindo que seus afetos estrangulados encontrassem uma saída por meio da
fala.
Tenho plena consciência de que a srta. A precisaria de mais tempo para trazer
para o consciente muita coisa para melhor elaborar suas queixas. O aconselhamento
funcionou no momento como os primeiros socorros.
Minha expectativa é a deque futuramente a srta. A tenha a oportunidade de fazer
uma psicoterapia, uma vez que acredito que o trauma do aborto tem afetado muito a sua
estrutura psíquica.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento do presente estudo possibilitou apontar de que modo a


Psicanálise e o Cristianismo, embora partam de epistemologias diferentes, têm a culpa
como um sentimento ontológico no sofrimento humano. Além disso, permitiu entender
que, embora diferentes em seus métodos, não são excludentes.
Ao analisar autores como o psicanalista Jacques Lacan, o filósofo Paul Ricoeur,
Rubem Alves e o teólogo católico Hans Kung, foi possível perceber que os escritos de
Freud não são fechados, dogmáticos, mas, sim, abertos a uma reflexão dialética. A
concepção freudiana sobre a religião como “neurose obsessiva da humanidade e uma
ilusão e inimiga da ciência” não pode ser interpretada fora do contexto da sua
experiência religiosa e do momento histórico em que viveu.
Em virtude do que foi apresentado, pode-se perceber que a Psicanálise e o
Cristianismo procuram lidar com o fenômeno da culpa no psiquismo. Há uma
aproximação acerca da origem da consciência moral em Totem e Tabu e no
Cristianismo. Ambas as narrativas apresentam aproximações e diferenças, mas têm em
comum o pai como personagem central.
Dessa forma, enquanto no Cristianismo a antropologia tem a razão como centro
de comando nos processos cognitivos, emocionais e comportamentais, a Psicanálise vai
27

na contramão: não é a racionalidade, mas o inconsciente, outra instância, onde o sujeito


se constituiu de forma histórica, corporal e psicossocial.
Em vista dos argumentos apresentados, percebe-se que, como efeito da oposição
entre consciente e inconsciente, há uma diferença sobre o conceito de tempo no
Cristianismo e na Psicanálise.
No Cristianismo o tempo é interpretado como linear, passado, presente e futuro;
são aspectos contínuos e, assim, podem ser fragmentados, divididos, e estar sob os
domínios da razão. Eliminara culpa é uma questão de desejar, querer, uma decisão da
vontade.
Na Psicanálise o tempo é circular, atemporal, sempre presente e, assim, não há
como fazer um corte na linha do tempo, esquecer, deixar o passado para trás ou lembrar
um evento traumático que se vivenciou. Essas ações não estão na esfera racional, não se
submetem aos desejos do sujeito, pelo contrário. O próprio sujeito oferece resistência
para trazer a lembrança para o presente.
Por todos esses aspectos, faz-se necessário entender a importância da doutrina do
perdão como identificação no Cristianismo em que, por meio da fé, o cristão transfere
sua culpa para Cristo. O fiel crê e passa a viver como se seu passado não fizesse parte
da sua vida, “ficou para trás”, embora, como vimos no caso da srta. A eventos
traumáticos não “esquecidos” foram, sim, recalcados, lançados para o inconsciente.
Embora a srta. A acreditasse no perdão, quando a sua sustentação teórica foi
gradativamente desconstruída por meio do conflito com a realidade, deu-se o retorno do
recalcado. A culpa se manifestou na formação reativa, na reversão a seu oposto, o
ativismo religioso fora até então uma forma de defesa do ego para suportar a realidade.
Por isso tudo, conclui-se que o Cristianismo e a Psicanálise podem contribuir
para alcançar seus objetivos comuns, resumidos nas palavras do Pai da Psicanálise,
Sigmund Freud: “A Psicanálise é, em essência, uma cura pelo amor”.
28

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, R. O suspiro dos oprimidos. São Paulo: Paulus, 1993.


DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana (1995-2001). Rio de Janeiro:
Relume -Dumará.
FREUD, E., & MENG, H. (Org.). (1998). Cartas entre Freud e Pfister: Um diálogo entre
a psicanálise e a fé cristã. Viçosa, MG: Ultimato.
FREUD, S. (1911-1913). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia
relatado em autobiografia (“O caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos.
Obras completas volume 10.
_________.(1913-1916). Totem e Tabu. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
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XXI (1927-1931). Imago. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio
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_________.Inibição, Sintoma e Angústia. O Futuro de uma Ilusão e Outros Textos
(1926-1929). In: Obras Completas, Vol XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
_________. Conferência XXXI: A dissecção da personalidade psíquica (1933-1932). In:
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2008000400009
Acesso em 03/02/2020
29

APÊNDICE

No aconselhamento, algumas informações importantes poderiam ajudar a


entender melhor as origens das experiências da srta. A, tais como:

(1) Qual sua relação com o pai e a mãe? Ela praticamente não tocou nesse
assunto. Mencionou o pai somente uma vez e apenas disse que o pai era separado da
mãe. Não quis falar mais sobre o assunto e percebia-se claramente seu incômodo. Na
supervisão, esse fator despertou muito o interesse dos analistas e uma das perguntas
mais importantes foi: “Qual a relação da srta. A com seu pai? Como se deu o seu
processo de castração? Uma hipótese interessante foi qual teria sido o sentimento que a
levou a optar pelo aborto.Seria o sentimento de desamparo que ela viveu na família que
produziu uma representação de que não queria que o seu bebê passasse o que ela
passara? Essas questões seriam de grande importância se abordadas à luz da clínica
psicanalítica, o que certamente exigiria mais tempo do que apenas cinco sessões com
duração de uma hora.

(2) Há quanto tempo os pais haviam se separado? Essa questão foi mais um
importante aspecto não abordado com mais investigação. Ela não falou quando se deu a
separação, com que idade ela vivenciou esse importante momento em sua vida e quais
os sentimentos que ficaram marcados em sua psique.

(3) Se ela tinha irmãos e irmãs, qual a idade deles e qual sua relação com eles?A
srta. A tinha sua preocupação concentrada na sua queixa e não mencionou se tinha mais
irmãos; provavelmente não tinha. Devia ser filha única. Percebe-se que ela teve
condições de estudar e de se formar. Sua mãe, uma microempresária, teve condições
financeiras de pagar seus estudos. Esses indícios podem indicar como ela conseguiu se
formar em Direito pagando uma escola particular.

(4) Quais os acontecimentos que a levaram a questionar os conteúdos da sua


fé?Essa pergunta ficou bem clara. Com sua experiência de vida confrontou doutrinas
que são absolutas. Nesse conflito entre o que acontece com o fiel e o que deveria
acontecer, há um choque. Muitos podem optar por elaborar uma razão, como, por
exemplo, “a vontade de Deus”. Outros, porém, quando percebem que fizeram o que foi
ensinado para conseguir seus objetivos, mas não obtiveram êxito, começam a rever seus
conceitos e chegam à conclusão de que as verdades que aprendem não são absolutas,
não oferecem segurança a todas as contingências da vida.
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(5) O que a levou a optar pelo aborto e a não assumir a responsabilidade de ter o
filho? Essa é outra pergunta que, numa análise mais extensa, poderia ser útil. A srta. A
tinha condições financeiras para assumir a gravidez e ter o bebê, no entanto, optou por
abortar. Essa decisão teria alguma relação com seu histórico de seu pai ter a
abandonado? Será que tinha medo de fazer o filho sofrer o que ela sofreu? Quais
vivências que a srta. A teve que influenciaram na sua decisão? Essas questões poderiam
ajudar a elucidar aspectos que não foram possíveis no tempo do aconselhamento.

(6) Como era a sua relação com a religião antes da conversão? A srta. A não
mencionou sua relação com a religião antes da sua conversão à fé cristã. O que se
percebe é que, de alguma forma, sua formação era cristã, haja vista a culpa que sentia e
como tentou fazer reparação nas atividades religiosas. Ou será que a procura pela
religião cristã foi justamente uma maneira de buscar um alívio psíquico? O pai ausente
na sua experiência de vida agora era o pai presente, atuante e amoroso na religião.
Estaria a srta. A procurando uma aproximação com o pai no seu psiquismo? Essa é mais
uma questão importante dentro do contexto da clínica psicanalítica.

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