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Conselho Editorial

Maity Siqueira - UFRGS Carlos Alberto Veit - UNIRITTER


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Enrico Silveira Nora - PUCRS Miriam Grossi - UFSC
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Carlos P. Thompson Flores - PUCRS Theobaldo Thomaz - UFCSPA
Denise Hausen - CEP de PA
Coordenação Editorial
Rosana Nora e Claudia Perrone
Revisão Final:
Emanuel Souza de Quadros

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO

D919p Dunker, Christian lngo Lenz


Psicanálise e saúde mental / Christian lngo Lenz Dunker; Fuad
Kyrillos Neto. - Porto Alegre: Criação Humana, 2015. 240 p. -
(Doces Bárbaros, 1)

ISBN 978-85-88022-11-9

1. Psicanálise. 2. Saúde Mental. 3. Psicologia. 4. História da


Psicanálise - Brasil. 5. Doenças mentais - Classificação - História.
1. Kyrillos Neto, Fuad. li. Titulo. Ili. Série.

CDU: 159.964.2

Elaborado pela bibliotecária Karin Lorien Menoncin -CRB 10/2147

Reservados todos os direitos de publicação,


total ou parcial, pela Editora Criação Humana Lida.

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Produção Gráfica e Impressão


Evangraf - (51) 3336.2466

IMPRESSO NO BRASIL/ PRINTED IN BRAZIL


Psicanálise e
Saúde Mental
Christian Inga Lenz Dunker
Fuad Kyrlllas Neta
Intra
....
ªª
E
ste livro compreende quinze anos de pesquisa
continuada sobre saúde mental e psicanálise,
empreendida por seus autores.
Durante este tempo, muitas outras experiências
foram se impondo, no cenário nacional, como
modelos para a escuta de pacientes graves acolhidos em
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outros serviços
substitutivos em saúde mental. Entre 1999 e 2014, mudou
a paisagem de problemas e de soluções. Acreditamos que
se trata de um ciclo que se encerra, fechando consigo os
grandes avanços trazidos pela reforma sanitária brasileira
dos anos 1980, que gerou a consolidação do Sistema Único
de Saúde e da reforma psiquiátrica dos anos 1990, que levou
a cabo os propósitos da luta antimanicomial.
O nosso primeiro objetivo neste livro foi delimitar as con­
dições históricas pelas quais a psicanálise se implantou e
adquiriu feições próprias em um país no qual, a princípio,
nada a predispunha. Ao contrário da França, onde a chega­
da da psicanálise foi tardia e teve que se haver com a forte
tradição psicológica e alienista, ou de países anglo-saxô­
nicos que deram a ela uma medida relativa de integração
com as psicologias ascendentes, no Brasil podemos dizer
que a psicanálise foi precoce. Ela participou ativamente das
primeiras discussões formativas em torno da brasilidade, e
ocupou um lugar de vanguarda na produção de nosso com -
plexo asilar, e posteriormente, na implantação do sistema
de saúde mental no Brasil. Esta característica peculiar ainda

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não foi propriamente incorporada nem pelos psicanalistas
tradicionais, nem pelas novas tradições que reformaram e
renovaram este campo a partir dos anos 1980.
Foi pensando na arqueologia desta questão que recorre�
mos à ideia de que, para_�ntender as relações históricas
entre psicanálise e as práticas em saúde mental, devíamos
apresentar também alguma gramática sobre suas varie­
dades e sua distribuição em termos de modos de sub­
jetivação. PE}i.ar a saúde mental é pensar o processo de
institucionalização do sofrimento, bem como as políticas
que elevaram o bem-estar a um fator chave na regulação
de nossas formas de vida. Por isso, utilizamos as noções
desenvolvidas por Luis Cláudio Figueiredo, em alguns de
seus textos seminais, para interpretar as variedades de ar­
ticulação da psicanálise com a saúde mental. Chegamos
assim a três configurações.
A- No primeiro caso, a psicanáJise participa de um dispositi­
y()_ disciplinar, contribuindo com uma teoria da etiologia
s_eJCual, capaz de prover uma diagnóstica de fundo para
uma psiquiatria indefesa diante das teorias hereditaristas.
Ela é uma promessa moderna de tratar a subjetividade
institucionalizada ao modo do indivíduo colhido em seus
dispositivos weberianos de racionalização, em suas práti­
cas civilizatórias, em seus empreendimentos de desenvol­
vimento, qual etapas extraídas dos G& Ens(3,/.1J.$ para, urna
.Teoria da.Sexualidade.
.2. Na segunda circunstância, �p_sicanálise se apresenta como_
uma teoria antropológica, n_os fornecendo uma espécie de
matriz de simbolização e de equiparação de diferenças
que serve a uma determinada antropologia modernista.
Ela contém uma aspiração de universalidade, delimitada
em um sujeito do desejo, por meio da qual os conflitos
e.�E�féricos, as variedades etnográficas, os tipos de conflito
são gradualmente tomados em um plano de convergência
dialética ou estrutural. Aqui é a l:nterpretação dos Sonhos
que funciona como chav� _ele cónversãd- perpétua entre o

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patológico e o normal, entre o familiar e o estrangeiro, en­
tre o primitivo e o civilizado.

; Finalmente, a terceira grande entrad�_ª_J!_�jç-ª,nálise na�


pJátic��A-e... �ª!Íd.e. mental a entende como uma e.�J?écie de
antropologia adequada para os trópicos. De Totem e Tabu,
extraem-se um modelo e um antimodelo entre a criança,
o primitivo e a doença mental que encontrarão na antro­
pofagia sua cena fundamental. Aqui é o, -�arcisismo e a
identificação que fornecerão a chave para pensar a varie­
dade e a diferença das modalidades de mal-estar, ligada à
dimensão da pessoa, do compromisso pessoal e dos laços
ampliados ou reduzidos de familiaridade.
Nossos modos de subjetivação baseados no indivíduo, na
pessoa e no sujeito combinam-se com os complexos dis­
cursivos que Ian Parker:encontrou ao examinar as raízes
da psicanálise na experiência moderna. Para este autor,
a psiqmálise entranha-se no projeto moderno graças a
complexos discursivos como intelectualização, transfe­
rência e trauma. Tentamos mostrar como tais complexos
organizam, historicamente, os principais discursos nacio­
nais mobilizados para interpretar nossos impasses de de­
senvolvimento, nossas formas de sofrimento social, nossas
aspirações de institucionalização, nas quais se forma, ain­
da que tardiamente, o projeto de um sistema de saúde uni­
ficado e universal. Estes complexos discursivos correspon­
dem a uma espécie de interpretação cultural, extraclínica,
dos significantes, das teorias e das práticas instituídas que
associamos à psicanálise. Ou seja, a interpretação prática
de conflitos, obstáculos ou dificuldades no funcionamento
de grupos ou instituições, na nomeação do mal-estar, nas
configurações metadiagnósticas e paradiagnósticas pode
ser exercida por pessoas sem nenhuma formação formal
em psicanálise. Isso ocorre porque, ainda que seu criador
tenha advogado explicitamente em contrário, a psicanáli­
se tornou-se parte da visão de mundo ocidental, elemento
interno do modo como interpretamos o caráter repetitivo

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e intrinsecamente patológico de certas relações e escolhas
(transferência), gramática preponderante de como cria­
mos determinantes para maus encontros de uma história
biográfica (trauma), ou narrativa hegemônica para produ­
zir sentido a partir do sofrimento, seja pela intrusão de um
objeto patológico, pela violação de pactos simbólicos, pela
alienação da alma ou, ainda, pela dissolução da unidade
do corpo político, moral ou familiar (intelectualização).
Roudinesco postula que duas condições devem ser pre­
enchidas para que a psicanálise se estabeleça em uma cul­
tura: uma organização social na qual seja possível a "livre
associação'' (no sentido de liberdade de empreendimento
e expressão) e uma cultura na qual o saber sobre a loucura
tenha se autonomizado em relação às práticas mágico-re­
ligiosas. Quando se considera o Brasil diante destas duas
condições, percebe-se como elas descrevem irregular­
mente nossa própria realidade.
A tese de que encontramos no Brasil a consolidação do
programa liberal, com o sujeito capaz de livre escolha, em
condições de livre concorrência, com justa oferta iguali­
tária de meios, é historicamente defletida pelo chamado
"colapso crônico do individualismo liberal brasileiro''. Ou
seja, nosso desenvolvimentismo dependencial da primei­
ra metade do século passado, foi substituído pela discipli­
na militar, dirigista e cartelizada, dos anos 1960 em diante.
Como resultado, passamos de um estado de liberalismo
mitigado para um neoliberalismo próprio do capitalismo
"precarizado'' à brasileira.
A tese de que o saber psiquiátrico teria encontrado um es­
tado de completa laicização também merece reparo. Des­
de sua origem, faltou ao Brasil um capítulo propriamente
alienista na constituição de nosso parque asilar. Com isso,
nos referimos a esta combinação entre aspirações de ci­
dadania, humanização e liberdade que vemos no famoso
mito de Pinel libertando os acorrentados da Salpêtriere,
de Tuke trazendo os alienados para a britânica disciplina

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puritana do trabalho, de Benjamin Rush, alienista e sig­
natário da Constituição dos Estados Unidos da América,
com suas técnicas de cura da loucura baseadas na submis­
são à autoridade do médico.
Nosso único alienista, Machado de Assis, era um literato.
Enquanto Pinel e Hegel inventavam a dialética entre se­
nhores e escravos, como gramática moral das revoluções e
modelo para o impasse ético do novo cidadão, ltaguaí ain­
da vivia em estado de escravidão real, com escravos reais
e senhores reais. Para que se consiga entender a passagem,
algo positivista, das crenças mágico-religiosas para o esta­
do de ciência psiquiátrica, é preciso interpolar, entre ricos
e pobres, a experiência da cidadania.
Examinando os prontuários do asilo nacional de Barba­
cena, da Minas Gerais dos anos 1960, não se encontrará
as formas típicas do diagnóstico psiquiátrico, tais como
a paranoia, a esquizofrenia, a psicose maníaco-depressiva
ou as demências. Em vez disso, um único dado chama a
atenção: o número de dentes do interno. E, pelo número
de dentes, muito se podia deduzir da posição de classe e da
expectativa de tratamento. Há, portanto, um dado a mais
nesta conta. Um anacronismo entre aspirações discursivas
de progresso e as práticas disciplinares, exercidas em ins­
tituições que não eram nem laicas, nem mágico-religiosas,
mas movidas pelo tradicional espírito de pessoalidade,
compromisso e favorecimento. Baseadas na distribuição
opressiva de favores e simpatias, nossas cidadelas psiquiá­
tricas não eram apenas lugares de maus-tratos, eram tam­
bém pequenas cidades de interior, com seus caudilhos,
suas virtudes privadas e seus vícios públicos, com sua
"vida próprià' e suas próprias regras.
Finalmente, além do colapso do individualismo liberal,
constantemente tomado como renovação ideologica­
mente necessária para manter a economia disciplinar
de cartéis, favores e pequenas autoridades locais, de­
vemos examinar o tantas vezes afirmado traço sincré-

15
tico da cultura brasileira. As formas religiosas ou pa­
rarreligiosas, tendencialmente humanistas, holistas ou
caritativas, formaram o espaço, muitas vezes único,
de consolo, de acolhimento, de alívio do sofrimento,
em uma cultura psiquiátrica que passava da barbárie
errática para a incivilidade administrada. São poucas
as experiências propriamente clínicas que o Brasil viu
florescer, sempre de forma excepcional, não sem algum
sincretismo teórico. No mais das vezes, o que encontra­
mos são projetos administrativos associando técnicas
de controle e contenção, de socialização e medicação,
sem que a mais elementar escuta da loucura, ou qual­
quer forma de clínica da palavra, tenha algum lugar.
De certa maneira, nosso sincretismo cultural estabele­
ce uma gramática instável de relações entre público e
privado, entre contrato terapêutico e obediência moral,
entre transferência e identificação.
Este livro parte desta espécie de falência da clínica, de
dissociação intencionada entre formas de tratamentos e
políticas de cura, no espaço que reúne psicanálise e saú­
de mental no Brasil. Por isso, ele discute criticamente a
bem-vinda reforma psiquiátrica dos anos 1990 e seus
efeitos sob a clínica das psicoses. As políticas substitu­
tivas em saúde mental acabaram indiretamente, e quiçá
despropositadamente, se transformando em políticas
contrárias à clínica, seja ela psicológica, psiquiátrica ou
psicanalítica. Daí que hoje vigore este estado de anomia
terapêutica sem diagnóstico, de tratamento "se neces­
sário" (S/N), definido pelo corpo clínico disponível,
que legitima, ainda que indiretamente, a desatenção e o
descuidado continuado quanto ao curso dos sintomas.
O levantamento feito por Athié, Fortes et alli (20 13)
mostra que a taxa média de deficit de tratamento, no
Brasil, encontra patamares como 32,2% para esquizo­
frenia, 56,3% para depressão, 56,0% para distimia, 50,2
para transtorno bipolar, 55,9 para transtorno de Pânico,
57,5% para ansiedade generalizada, 57,3% para trans-

16
torno obsessivo compulsivo e 78,l % para dependência
de álcool.
O sofrimento social trazido pela loucura, no mais das ve­
zes, é uma mistura entre estes sintomas e o estado de misé­
ria, abandono e desamparo. O mal-estar na saúde mental
não se resolverá por um retorno à clínica, mas, sem ele,
nenhuma política em saúde mental passará de uma edu­
cação generalizada ou militante de sujeitos, indivíduos e
pessoas, ainda assim recusados em sua experiência e de­
manda de reconhecimento.
Essa tentativa de localizar superfícies transversais que ar­
ticulam psicanálise e saúde mental no Brasil nos parece
importante para entender por que a reforma psiquiátri­
ca, a luta antimanicomial e a renovação dos costumes em
saúde mental, alinhava duramente psicanálise e psiquia­
tria. No centro de nossa hipótese de leitura, encontra­
va-se um diagnóstico preliminar: a reforma havia subs­
tituído a clínica, que, de certa forma, nunca chegou a se
estabelecer como um dispositivo pleno de atenção geral
à população, por algo que se poderia chamar de política
de gestão do mal-estar. A reforma, ao baratear as práticas
de saúde mental, pela progressiva desinternação, inves­
tiu fortemente em uma clínica reduzida à distribuição de
medicação e uma terapêutica reduzida a intervenções de
socialização. Com isso, a escuta, o acompanhamento cir­
cunstanciado do sofrimento, biograficamente delimitado,
em contexto de fala em primeira pessoa, via-se substituída
por outra coisa.
Uma pesquisa sobre níveis de medicalização psicotrópica
na região de Campinas (CUNHA, 2005) verificou níveis,
para cada 10.000 habitantes, que chegavam a 8,88% de
consumidores de inibidores de recaptação de serotonina
(antidepressivo), 7,4 para consumo de benzodiazepínicos,
7,59% para consumo de antidepressivos tricíclicos, 1,32
para consumo de butirofenonas e 1,2 1% para fenotiazinas.
Quando falamos em níveis próximos a 10% da população,

17
apesar da tendência ao hiperdiagnóstico de alguns qua­
dros, fica óbvio que o Sistema de Saúde Mental não dis­
põe de recursos para enfrentar o problema sem grandes
limitações.
Passado o momento em que a psicanálise via-se em di­
ficuldades para justificar seus critérios de científicidade,
pelos quais sua eficácia comparativa poderia ser avaliada
no quadro de métricas de resultados, ficou claro que não
havia nada de incerto ou inseguro em sua credibilidade
científica ou tecnológica. Não é por isso, ou melhor, talvez
seja exatamente por isso que a nova onda de objeções ao
emprego da psicanálise em saúde pública perdeu a ver­
gonha quanto aos argumentos, apelando apenas para a
dimensão bruta do custo e da quantidade de "pacientes­
fichas" contabilizadas. Argumento risível diante do direito
universal dos usuários de escolherem suas próprias for­
mas de tratamento e da importância comprovada da com­
binação de estratégias terapêuticas.
Em certa medida, este livro tenta desfazer certos equívo­
cos de interpretação acerca da psicanálise, a começar pela
unicidade de sua política de subjetivação. Antes disso, é
preciso entender como a psicanálise cria a subjetividade
que pretende tratar e como ela é sintoma, mas também
resistência, do tipo de alienação que sobredetermina o
mal-estar no capitalismo. Portanto, a pergunta de fundo é:
qual psicanálise para qual saúde mental? Contra a transfor­
mação da saúde mental em um sistema integrado de ges­
tão de condomínios, será preciso retomar a importância
da clínica em tempos de diagnósticos feitos às pressas e da
disseminação de práticas paraclínicas de acompanhamen­
to e atenção em saúde mental. Tentamos mostrar como é
possível uma escuta do delírio, e do sujeito que a partir
dele tenta reconstruir seu mundo, trazendo fragmentos
de um caso clínico no qual discursos institucionais, ideo­
gramas políticos e procedimentos clínicos se articulam a
partir da demanda de ser atendida por "um psicanalistà'.

18
Tomemos o exemplo dos CAPS de São Paulo em 2014.
Imaginar que um paciente, mesmo em crise ou em grave
situação de vulnerabilidade, possa ter um acompanha­
mento razoável com apenas três consultas mensais, dis­
tribuídas de forma concorrencial por todos os recursos
disponíveis, em psiquiatria, fonoaudiologia, terapia ocu­
pacional, psicoterapia, e assim por diante, é um exemplo
de iniquidade cínica. E o cinismo está no fato de que não
há proibição de que a atenção se estenda, envolvendo mais
e melhores recursos, mas o sistema de cooperativa ou
de terceirização admite e limita o uso de recursos pagos
desta maneira. Desde que a Medicina Baseada em Evidên­
cias incluiu o cálculo de custos para definir protocolos e
procedimentos preferenciais, a saúde viu-se envolvida em
uma disseminação generalizada da racionalidade baseada
em condomínios de saúde mental e seus síndicos gesto­
res. E isso se desdobra para os trabalhadores, chegando
aos próprios "usuários': É certo que o pertencimento a um
sistema simbólico, que seja ao modo mimético de uma
empresa, possui efeitos de estabilização e de identificação.
Contudo, esta derrota da clínica para esta nova forma de
biopolítica não deixa de representar o empuxo e o retorno
a novas e antigas modalidades de sofrimento.
Segundo dados de diversos estudos, 50% dos usuários
que buscam atendimento na Atenção Básica possuem al­
gum sofrimento psíquico, sendo que 10% são portadores
de transtorno mental leve e moderado e 3% apresentam
transtorno mental severo. Ainda, a Organização Mundial
da Saúde e o Ministério da Saúde estimam que quase 80%
dos usuários encaminhados aos profissionais de saúde
mental não têm uma demanda específica para o atendi­
mento especializado. Há uma expectativa de aumento de
15% (entre 1990 e 2020) de doenças mentais no mundo, e
de 12% a 15% de incapacitação para o trabalho: "Não há
saúde sem saúde mentaI" (OMS). Um quadro como este
sugere que qualquer forma de intervenção que alcance o
atendimento de massas se justifica por si mesmo.

19
Pacientes hipermedicados e funcionais. Seria isso tudo
o que temos a esperar depois de Basaglia e Foucault, de
Oury e Laing, de Cooper e Szaz? Para repensar o discurso
da inclusão, que simultaneamente tomou conta do univer­
so escolar e dos processos de reinvenção da cidadania em
pacientes antes chamados de "doentes mentais': e agora,
de "usuários': é decisivo empregar aportes não demasia­
damente ingênuos sobre a linguagem. Foi nesta direção
que tentamos combinar a teoria dos quatro discursos,
amplamente empregada pela psicanálise de extração laca­
niana para pensar a circulação do saber em contexto de
saúde mental, com aportes da Análise do Discurso (A.D.)
e da análise retórica da produção de sentido. Partindo da
complexidade da noção de foraclusão, entendida como
um sistema intrincado de exclusões e inclusões do signifi­
cante, propomos uma leitura crítica da moral inclusivista.
Capaz de atrair para si alto grau de consenso, a "inclusão':
como qualquer significante, pode servir para a manuten­
ção deste casamento regressivo entre o discurso do mestre
e o discurso universitário. Esta colusão entre educação e
ideologia mostra-se, assim, tão ou mais apta a praticar a
exclusão quanto qualquer outra montagem de discurso
que não altera a estrutura de seus elementos nos lugares
de que se constitui.
Este livro é composto por uma espécie de diálogo
continuado que mantiveram seus dois autores durante os
últimos quinze anos acerca das relações entre psicanálise e
saúde mental. Ele foi se formando em torno da problemá­
tica envolvendo clínica e política, desde a dissertação de
mestrado de Fuad Kyrillos Neto, sobre a generalização de
um procedimento clínico conhecido como Medicação S/N
("Medicação se Necessário"). Tal conduta significava, na
prática do sistema de Atenção e Cuidado da Zona Noroes­
te da cidade de Santos, uma transferência de responsabili­
dade, decisão e administração medicamentosa não apenas
para psicólogos, enfermeiros e terapeutas ocupacionais,
mas depois de algum tempo, para os próprios pacientes.

20
No centro desta gradual substituição de modalidades re­
pressivas, baseadas na proibição ou prescrição, por hipó­
teses depressivas, que operam no espectro da potência à
impotência, situamos a relação entre Michel Foucault e
Jacques Lacan. Relação ambígua, crítica e elogiosa, ela é o
ponto de partida para uma renovação tanto da psicanálise
quanto dos aportes críticos em saúde mental. Mais além
da admoestação "por atacado" e do espírito de denúncia
dos novos guardiões da ordem, é preciso circunstanciar a
arqueologia foucaultiana em um tipo de análise das for­
mas de constituição de sujeitos, das arqueologias de sa­
beres, das alianças discursivas, de tal modo a incluir os
princípios do poder na temática do inconsciente. Ao fi­
nal e ao cabo, teríamos que perguntar qual a contribuição
desta genealogia foucaultina para a desmontagem de um
dispositivo neuróticocêntrico que faz convergir para si o
familiarismo, a paranoia e os regimes de territorialização,
criticados por Deleuze e Guattari.
O tema não é apenas de interesse universitário. As imbri­
cações entre sintomas e as chamadas patologias do social
colocam em primeiro plano decisões políticas, ao modo
de estratégias sem estrategistas, por meio das quais reco­
nhecemos certas expressões de sofrimento em detrimen­
to de outras e constrangemos o mal-estar a certas regras
de nomeação, evitando outras. A crítica foucaultiana da
loucura nos convida à retomada do problema fundamen­
tal da alienação, da reificação e da anomia, mais além das
psicopatologias normativas. Contudo, neste mesmo mo­
vimento, podemos sancionar uma forma de vida neuroti­
cocêntrica, excluindo assim a existência da psicose como
estrutura existencial. É neste momento que delírio e ideo­
logia tornam-se parceiros potenciais para estabilizações,
suplências ou identificações dos mais diversos tipos. O
fenômeno vem sendo abordado, inclusive, pela pesquisa
histórica, que retoma a crítica do delírio, agora em asso­
ciação com o delírio da crítica.

21
Já há algum tempo, tanto a psicanálise quanto os apor­
tes críticos em saúde mental abandonaram o terreno da
psicopatologia em seu acasalamento com a farmacotera­
pia. Reduzidos a "meros instrumentos residuais", toda a
discussão sobre a direção da cura, sobre as modalidades
de intervenção "socializante': sobre a interconexão com a
saúde básica, como se espera, por exemplo, das práticas de
matriciamento 1 , aceita tacitamente instrumentos de clas­
sificação epidemiológica como o Manual de Diagnóstico
Estatístico (DSM), agora em sua quinta versão, produzida
pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), ou a Clas­
sificação Internacional de Doenças (CID), atualmente em
sua décima versão, produzida pela Organização Mundial
de Saúde (OMS). Doravante toda liberdade prática será
possível se respeitamos o funcionamento em estrutura
de gestão, o diagnóstico em formato DSM e a terapêutica
fundada em medicação.
Foi este "operacionalismo': ascendente na saúde mental
brasileira, que durante algum tempo justificou a bela ex­
pressão: "vastas confusões e atendimentos imperfeitos",
cunhada por Ana Cristina Figueiredo. No entanto, agora
ele tornou-se um sistema de autojustificação de proce­
dimentos, que Nilton Ota chamou de "formalismo nor­
mativo': Daí que a crítica das categorias e da consistência
clínica do DSM seja um movimento central em nossa
proposta. A crítica do DSM permite refazer as modali­
dades de sofrimento que se encontram privadas de uma
narrativa na qual se possa reconhecer sua estrutura de
mito individual. A atomização dos sintomas, a suspensão
de sua causa comum, a redução de seu ordenamento, a
produção de classes artificiais, com menor fidedignida­
de e confiabilidade hoje do que se esperava do DSM-III
em 1980, contêm uma história de modalidades de sofri-

1 "Matriciamento ou apoio matricial é um novo modo de produzir saúde


em que duas ou mais equipes, num processo de construção compartilhada,
criam uma proposta de intervenção pedagógico-terapêuticà' (Ministério da
Saúde, 20 1 1 , p. 13).

22
mento e uma política de nomeação do mal-estar. Nela
a psicanálise exerceu um papel não menos importante,
que precisa ser reconstituído para entendermos como,
ainda hoje, o DSM é, ao mesmo tempo, excessivamen­
te psicanalítico e demasiadamente pouco psicanalítico.
Por isso, tentamos mostrar o processo de expurgo das
categorias psicanalíticas, a partir do DSM-III, que não
obstante sobrevivem no que elas têm de pior, a saber, seu
essencialismo naturalista, ao lado do processo de des­
montagem das condições para uma hermenêutica ne­
cessária a todo e qualquer enfrentamento do sofrimen­
to psíquico. Imaginar que o sofrimento envolvido nas
"disorders" (transtornos) mentais seja independente de
qualquer subjetivação, de qualquer narrativa em primei­
ra pessoa, de qualquer nomeação de mal-estar, exceto a
descrição objetivada de quem deles padece é uma mera
"operacionalização" do sofrimento mental. É confirmada
por um procedimento em forma de código a característi­
ca maior de sua etiologia, a saber, seu isolamento e sepa­
ração diante dos conflitos e contradições que lhe deram
causa. Para além da mera expressão patoplástica, o sinto­
ma contém um fragmento de verdade e um traço de real.
Partindo do exemplo histórico representado pelo sofri­
mento de gênero e da patologização do homoerotismo,
concluímos nossa jornada com um estudo de caso sobre
o "uso prático" dos sistemas de diagnóstico aparelhado ao
formalismo normativo. Este é apenas um capítulo da reto­
mada do corpo como categoria central para as novas mo­
dalidades de sofrimento, e dos discursos como poderosa
fonte de inflexão do tratamento na saúde mental.
Uma clínica dos discursos, no sentido dos quatro discur­
sos lacanianos, mostra-se essencial para que as conside­
rações sobre o manejo da transferência, que caracteriza a
psicanálise como método, possam se tornar úteis para a
articulação da psicanálise em intensão com a psicanálise
em extensão. Hoje, o sofrimento dos trabalhadores em

23
saúde mental liga-se muito mais à toxidade da vida insti­
tucional e à redução da relação clínica com pacientes do
que ao confronto trágico com a experiência da psicose ou
da drogadição. Postos como uma espécie de último reduto
antes da barbárie, que não é a loucura, mas a miséria, a
pobreza, a indigência discursiva e real, tais trabalhadores
vivem de forma "turbinadà' o processo de precarização
que caracteriza o capitalismo à brasileira.
Este livro se encerra com uma proposta de revisão crítica
da psicopatologia hoje prevalente na saúde mental. Esta
proposta recorre basicamente às noções de sintoma, so­
frimento e mal-estar, para repensar as patologias do social
como experiência de deficit de experiências produtivas
de indeterminação e de excesso de experiências impro­
dutivas de determinação. Partindo de autores que inter­
pretaram a modernidade a partir da maneira como esta
constrói suas formas de sofrimento, que ora se reificam
em sintomas, ora se dispersam em espectros de insatis­
fação, pretendemos mostrar como que outra maneira de
entender e lidar com o patológico é possível. Sem recorrer
a solução normativista ou convencionalista, nem a uma
naturalização do sofrimento mental, esperamos contri­
buir, desta maneira, para uma psicopatologia que traduza
os ganhos e perdas realizados no Brasil sobre esta matéria
nos últimos quinze anos.
Este último capítulo conclui nosso trajeto articulando
a pesquisa realizada no interior do Laboratório de Teo­
ria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São
Paulo (Latesfip-USP), coordenado por Christian Dunker,
Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr. A proposta de uma
psicopatologia não-toda, ou seja, de uma psicopatologia
que não opere pela totalização das formas de sofrer, mi­
metizando adoecimentos nos quais não se reconhecem
mais as contradições que lhes deram origem, retoma, de
certa maneira, a teoria do reconhecimento, desenvolvida
inicialmente como apoio nos estudos sobre os modos de

24
subjetivação no Brasil, proposta por Luis Cláudio Figuei­
redo, e a teoria dos complexos discursos de Ian Parker.
A colaboração entre nós, iniciada em 1999, por ocasião do
mestrado que orientei sobre "Clínica Ampliada e Reforma
Psiquiátrica: um Estudo Crítico sobre o uso da Medicação
S/N (se necessário) no NAPS da Zona Noroeste da Cida­
de de Santos': progrediu até o pós-doutorado encerrado
em 2014, no qual pude supervisionar Fuad Kyrillos Neto,
hoje professor universitário e pesquisador, no escopo do
Latesfip.

25
Psicanális e e
Saúde Mental
na B rasil 2
li
•I

A trajetória da Psicanálise no
Brasil começa nos anos 20 em
meio a múltiplas formas de
!Í modernização do país:
.!
tura brasileira é uma cultura que devora outras culturas,
produzindo sua própria forma de humano, agora trans­
mutada por uma incorporação canibalesca.
Lembremos que, para os franceses, o peso da constituição
mórbida era decisivo, daí a preponderância do tema da
transmissão familiar da loucura e das famílias patológi­
cas. Para estes, o desencadeamento da doença mental era
apenas o afloramento de uma disposição paranoica, histé­
rica ou delirante. Já para os alemães, tratava-se de mostrar
que a doença mental era de fato uma doença, ou seja, com
início definido, curso regular e desenlace previsível. O de­
sencadeamento exprimia assim a intrusão de um processo
mórbido relativamente alheio à personalidade, que reagia
de forma típica ao processo que lhe era a princípio inde­
pendente.
Franceses e alemães definiam, assim, duas formas de an­
tropologia concorrentes no Brasil da aurora republicana
e no início da República Velha, momento de montagem
de nosso complexo asilar. Ao contrário da Europa, onde
os primeiros manicômios herdaram a estrutura arquitetô­
nica e disciplinar dos antigos leprosários, administrados
por ordens religiosas, no Brasil, os parques asilares foram
majoritariamente planejados no espírito de higienização e
autocolonização próprio de nossa modernidade.
A assimilação da psicanálise depende do fato de que esta
forneceria uma forma universal da subjetividade humana,
não centrada na raça, nos aspectos visíveis e públicos do
ser, mas em processos internos, invisíveis, mas universais.
Isto fica parcialmente atestado se examinamos as primei­
ras produções em psicanálise no Brasil. A ênfase está na
teoria geral do simbolismo ou em aplicações ao campo da
estética, virtualmente distantes do ponto de vista clínico,
como no trabalho de Durval Marcondes.
Portanto, além de certo alinhamento progressista, a psi­
canálise contribui para o próprio deslocamento do pro-

30
blema do âmbito antropológico para o psicológico. Isso se
mostra convergente com o processo de individualização
que atravessa a sociedade brasileira da época.
Por outro lado, entre os precursores da psicanálise no Bra­
sil encontramos médicos que trabalharam ativamente na
construção de nosso sistema psiquiátrico asilar: Juliano
Moreira, e Franco da Rocha, por exemplo. Eles erguiam
um dos maiores parques manicomiais da América Latina.
Ainda hoje temos cidades inteiras construídas no senti­
do foucaultiano da "grande internação" do século de XVII
europeu. Uma combinação de criminalidade, miséria e
loucura conjugadas no mesmo lugar. Neste cenário, a psi­
canálise aparece como um substrato ideológico no contex­
to da autonomização da psiquiatria brasileira.
Em agosto de 1900, segundo uma compilação de docu­
mentos oficiais do Estado de Minas Gerais acerca da as­
sistência psiquiátrica, feita por Moretzsohn (1989), é san­
cionada a Lei nº 290, que aborda a "creação da assistência
de alienados" e a "instalação de hospícios". Em seu artigo
terceiro, a lei especifica como devem ser as instalações do
hospício: "No prédio que for destinado ao hospício haverá,
além das accommodações precisas, um pavilhão para ob­
servação dos indivíduos suspeitos, um gabinete electro-the­
rapico e officinas, quando necessárias e a juízo do governo".
A observação dos indivíduos suspeitos, presente nesse arti­
go, revela uma aproximação da loucura com a periculosi­
dade e a consequente necessidade de controle. Ao designar
a sociedade contemporânea como "sociedade disciplinar",
Foucault (2005) apresenta as formas de práticas penais
que a caracterizam. Nesse contexto, o indivíduo suspeito é
definido, em uma perspectiva disciplinar, como dano so­
ciaP. Assim, o louco é aquele que perturba a sociedade e,
portanto, deve ser controlado. Tais recursos apontam para

3 Foucault encontra tais definições de crime em Beccaria, Bentham, Brissot,


assim como em Rousseau . Conferência IV ln: A verdade e as formas jl4rídicas.
Rio de Janeiro: NAU editora, 2005.

31
a formação de modos de subjetivação, os quais Foucault
{ 1984) desenvolve no estudo das formas e das transforma­
ções da moral.
Para esse autor, moral é o comportamento real dos indi­
víduos em relação às regras e aos valores propostos pelos
códigos morais de determinada sociedade. É importante
ressaltar que códigos morais são definidos como o con­
junto de valores e regras de ação proposta por indiví­
duos ou grupos via aparelhos prescritivos (FOUCAULT,
1984).
A possibilidade de constituição de um sujeito moral se
dá quando for possível que ele se conduza a partir de um
código de ação. Será o grau de conformidade ou de diver­
gência em relação a esse código que irá determinar as di­
ferentes maneiras de o sujeito se conduzir. Nessa perspec­
tiva, os valores e as regras são explicitamente formulados
(doutrinas, ensinamentos) ou transmitidos de maneira
difusa, permitindo que o indivíduo aja conforme as regras
ou tente escapar delas. O comportamento real do sujeito,
ou seja, o grau de concordância ou de discordância desse
sujeito em relação ao código é que irá determinar o sujeito
moral.
Há, portanto, dois aspectos que, segundo Foucault (1984),
toda moral comporta: o dos códigos de comportamento
e o das formas de subjetivação ou práticas de si, ou seja,
quando o sujeito desenvolve um trabalho sobre si mes­
mo. Ambos os aspectos se desenvolvem com autonomia
parcial, já que não podem estar inteiramente dissociados,
porque é a partir do grau de concordância ou de discor­
dância dos códigos ou regras que se estabelecem as formas
de subjetivação.
No entanto, entendemos que a criação do parque mani­
comial em Minas Gerais possui dispositivos de controle
associados a um campo da moral em que a importância
é dada aos códigos. Esse campo se caracteriza pela capa-

32
cidade de ajustar-se a todos os casos e de cobrir todos os
campos de comportamento. Lembra Foucault (1979):
[ ... ] nessas condições, a subjetivação se efetua no
essencial, de uma forma quase jurídica, em que o
sujeito moral se refere a uma lei ou a um conjunto
de leis às quais ele deve se submeter sob pena de in­
correr em faltas que o expõem a um castigo. (FOU­
CAULT, 1 979, p. 29) .
Isso porque os locais em que predomina esse aspecto da
moral frequentemente são instâncias de autoridade que
fazem valer os códigos para garantir o controle e a disci­
plina, assim como o Hospício de Barbacena. São, portan­
to, os dispositivos de controle institucional que garantem
a ordem e a disciplina dos asilados, não restando a possi­
bilidade de um saber sobre si mesmos.
Desta maneira, podemos opor uma assimilação discipli­
nar da psicanálise, de extração francesa, atestada pela sua
associação posterior ao "movimento higienistà: a uma
assimilação liberal, de extração anglo-saxônica, associada
com as vanguardas intelectuais e artísticas, como o mo­
dernismo de Oswald e Mario de Andrade. O caráter bífi­
do da entrada da psicanálise na formação do discurso da
saúde mental no Brasil já é notado no prólogo da primeira
tese universitária sobre psicanálise no Brasil, escrita por
Genserico Aragão de Souza Pinto, em 19 14:
"Das grandes nações intelectuais foi a França a úl­
tima a manifestar sua curiosidade neste sentido.
Enquanto Viena, Londres, Leipzig, Munique, Var­
sóvia, etc. eram agitadas por constantes discussões
psicanalíticas, Paris permanecia, ao contrário, quase
completamente indiferente à revolução científica de
Freud:' (Aragão, 1914:VII)
Esta dupla filiação estende-se até a década de 50. Por um
lado, a serviço do projeto desenvolvimentista, a psicaná­
lise era um útil instrumento ideológico para subsidiar a
política de distribuição de saúde mental, educação e pro-

33
gresso, assim como servia para os que viam com distan­
ciamento e crítica os efeitos assistencialistas e patriarcalis­
tas de tal proposta.
Mas, até meados da década de cinquenta, um fato inte­
ressante torna enigmática a disseminação da psicanálise.
Havia uma aliança com práticas e discursos educacionais
e psiquiátricos, uma presença relativa na cultura, mas, pa­
radoxalmente, não havia psicanalistas no país, o que re­
presenta um atraso significativo frente a outros países.
Este retrato começa lentamente a mudar nos anos ses­
senta. Os primeiros analistas vieram para o Brasil, espe­
cialmente para São Paulo e Rio de Janeiro, no pós-guerra.
Começa o processo de implantação de instituições psica­
nalíticas com a aceitação da Sociedade Brasileira de Psi­
canálise de São Paulo, em 1951, no XVII Congresso da
IPA em Amsterdam. A presença na universidade cresce. É
importante notar que quando a psicologia é estabelecida
como uma profissão regulamentada, em 1962, com seus
próprios departamentos e faculdades, iniciados em 1958,
a psicanálise constitui uma das forças mais importantes
neste processo. Isso representa uma diferença significativa
diante de outros centros europeus e mesmo latino-ameri­
canos, onde, sabidamente, o sistema universitário desen­
volveu-se antes da psicanálise e a ela reagiu.
Neste momento, a implantação social da psicanálise muda
substancialmente. De sua associação inicial com um pen­
samento de vanguarda, crítico e subversivo, ela passa ao
caráter de uma atividade aristocrática, ligada a nomes de
famílias tradicionais, herdeiros da aristocracia rural ur­
banizada. A perspectiva de ascensão social que ela parece
prometer começa a nutrir o imaginário elitista que paira
sobre sua prática.
Paralelamente a psicanálise passa ser incorporada por ou­
tro grupo social importante: os filhos da imigração. Neste
período, as grandes ondas de italianos, espanhóis, alemães
e japoneses se interromperam. No espírito de assimilação

34
e mistura da cultura brasileira, esta segunda e terceira ge­
ração de imigrantes está às voltas com a reconstrução de
sua história e a sedimentação de sua identidade. Tarefa
para a qual a psicanálise, tanto como dispositivo terapêu­
tico quanto como projeto profissional, parecia ser um dis­
curso atrativo.
O corporativismo psiquiátrico e o elitismo provinciano
redundam na consolidação de um rígido sistema de for­
mação nas mãos dos analistas didatas. Aqui a psicanálise
é claramente admitida no círculo de ideologia compatível
com nossa forma tradicional de organizar o poder. Em
outras palavras: debilidade de dispositivos públicos de re­
gulamentação, hegemonia das alianças familiares, admi­
nistração patriarcal, direta e de fidelidade bilateral.
A forma clássica do individualismo, com uma distinção
clara entre o espaço público e o espaço privado, não se
aplica à subjetividade brasileira sem algumas ressalvas.
Em outras palavras, nós sentimos uma desconfiança clara
e sistemática frente a tudo que nos apareça como um ideal
coletivo, público e independente de interesses pessoais ou
privados. As mudanças na política, justiça, polícia ou edu -
cação, são interpretadas ambiguamente: como um sinal
de prosperidade e como indicativo de uma nova máscara
para a forma tradicional de opressão.
Neste contexto, a psicanálise soa compatível em muitos
sentidos. Seu sistema de legitimidade é baseado na genea­
logia. Um analista necessariamente fez sua própria análise
com outro analista, e assim por diante, até Freud, o pai e
fundador. Seu dispositivo técnico, baseado na transferên­
cia, pode, infelizmente, ser usado como meio de perpetuar
submissão e dependência. Sua teoria pode ser lida como
abordando conflitos que, nascidos no espaço familiar, ex-
plicariam e reduziriam as contradições da arena pública.
A psicanálise, além de tudo, traz consigo uma parte de um
"estilo de vida europeu". Este é um sinal de modernidade e
proximidade com o poder central, em um país que se sen-

35
te na periferia do mundo. Esta associação da psicanálise
a um estilo de vida nos ajuda a compreender sua imensa
popularização no discurso do senso comum. Como diver­
sos autores já apontaram, a psicanálise incorporou-se à
cultura brasileira de forma muito mais forte e penetrante
do que em centros onde ela é historicamente muito mais
antiga, como Inglaterra ou Alemanha.
Por outro lado, isso nos faz entender por que, em que pese
tal disseminação, o Brasil não tenha produzido, até bem
pouco tempo, sua própria tradição de debate teórico no
campo da psicanálise. Nós importamos ideias e as usamos
"fora do lugar': como apontou Schwartz (1 989).
O episódio nos dá um retrato de como um discurso li­
beral, baseado na subjetividade individualizada, como a
psicanálise britânica original, podia ser incorporada como
um movimento disciplinar, quando se estabelece em uma
cultura com uma tradição liberal incipiente. Os percalços
profissionais de Franco da Rocha são exemplos das difi­
culdades e resistências que encontravam os interessados
em psicanálise no meio médico paulista. Ao publicar o
livro O Pan-sexualismo na obra de Freud, em 19 19, gerou
apreensão na Congregação da Faculdade de Medicina,
que chegou a questionar sua sanidade mental (MOKRE­
JS, 1993). Marcondes, discípulo de Franco da Rocha, se vê
diante da impossibilidade de demonstrar e difundir entre
os médicos os resultados positivos da psicanálise. Franco
da Rocha estava aposentado e, em seu lugar, no Juqueri,
assumira Pacheco e Silva, um forte opositor da psicanáli­
se. Para granjear apoio ao seu projeto de criação de uma
instituição psicanalítica, Marcondes se aproxima dos mo­
dernistas, pensadores e educadores. É com eles que, em
1927, Durval Marcondes tomou a iniciativa de fundar a
Sociedade Brasileira de Psicanálise, primeira instituição
psicanalítica criada na América Latina.
A Sociedade Brasileira de Psicanálise era frequentada pela
sociedade local e reconhecida pela IPA (International Psy-

36
choanalytic Association). Oliveira (2005) nos apresenta
um extrato do discurso de fundação da Sociedade Bra­
sileira de Psicanálise, pronunciado por Franco da Rocha,
que enfatiza seu objetivo de divulgação e reconhecimento
da psicanálise pela sociedade:
fazer uma propaganda mais intensa dos princípios
psychanalyticos nas suas múltiplas aplicações, de­
vendo-se procurar interessar, sobretudo a classe dos
professores. (Rocha, citado por Oliveira, 2005, p. 96)
A SBP não ficou limitada a São Paulo. Articulou-se com os
profissionais do Rio de Janeiro, e o resultado foi a divisão
da sociedade em dois núcleos, um em São Paulo e outro
no Rio de Janeiro. Durval Marcondes visita Juliano Morei­
ra, que aceita sua proposta com entusiasmo. Fica estabe­
lecido que Franco da Rocha continuaria como presidente
geral e Juliano Moreira seria o presidente da seção do Rio
(FACCHINET T I; PONT E, 2003).
A década de 30 trouxe importantes transformações sociais
no Brasil, que afetaram a psicanálise. Após o conflito ar­
mado que colocou fim à alternância de poder das oligar­
quias paulista e mineira (política do café com leite), temos
ascensão de Vargas ao poder, e as classes que apareciam
logo abaixo dos barões do café, como militares, classe
média e operários, são alçadas à ponta da pirâmide social
brasileira.
Nesse ínterim, a absorção da psicanálise em sua versão
mais cientificista e médica, já fora colocada em curso
nas reuniões da SBP, promovendo um descontentamen­
to dos partidários do pensamento modernista, uma vez
que a apologia estética do primado do inconsciente (de­
fendido pelos modernistas) opunha-se frontalmente ao
ideário da Liga Brasileira de Higiene Mental. 4 Neste con­
texto, Marcondes adota uma posição que o afastará ainda

4 A esse resp eito verificar: COSTA, J.F. Hist6ria da Psiquiatria no Brasil: um


corte ideológico. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.

37
mais do movimento psicanalítico ligado às artes: dissolve
a Sociedade Brasileira de Psicanálise. Apresentou como
argumento a "impossibilidade de atender os quesitos da
formação de analistas" (MOKREJS, 1993, p. 54)
Nesse mesmo ano, houve um acontecimento decisivo para
desativar essa Sociedade. Marcondes recebe de Max Eitin­
gon, presidente da IPA e um dos fundadores do Instituto
de Psicanálise de Berlim, uma publicação comemorativa
dos dez anos de existência desse instituto contendo infor­
mações do sistema de formação psicanalítica (SAGAWA,
1994). Marcondes se convenceu de que deveria criar con­
dições para implantar um sistema de formação de analis­
tas no Brasil. A busca da institucionalização aproximou a
psicanálise do projeto de higiene mental e da pedagogia,
e autorizou uma leitura mais próxima da medicina e da
ideologia dominante. A visão de mundo contida nessa
apropriação justifica o afastamento de muitos intelectuais
e artistas.
Utilizaremos como exemplo deste rompimento o escritor
Mário de Andrade, cuja obra é marcada pela psicanálise.
A primeira menção a Freud surge na obra Paulicéia des­
vairada, escrita em 1920 e publicada em 1922. No que diz
respeito à teoria psicanalítica, a obra faz referências ao ter­
mo censura e ao conceito de recalcamento. Oliveira (2003)
ressalta que Mário de Andrade:
( ... ) precisa que o inconsciente é próximo do pri­
mitivo, do arcaico, do obscuro e que desconhece a
linguagem. Ele é fonte de inspiração do poeta e co­
manda a criação. (OLIVEIRA, 2003, p. 7 1 )
Após a publicação de Paulicéia desvairada e em diversos
trabalhos da década de 1920, Mário de Andrade se expres­
sa ou faz diversas alusões a Freud. Então, como explicar as
afirmações contidas numa carta escrita em julho de 1942?
Ultimamente, dei para achar paupérrima a psica­
nálise. Não acho errada, não, acho paupérrima.

38
Esse mundo imenso do ser humano ficou reduzido
a meia dúzia de noções gerais e genéricas que não
esclarecem nada, são mesquinhas, tipos das gene­
ralizações conformistas e acomodáticas da pequena
burguesia. (ANDRADE, 1983, p. 66)
Oliveira (2003) atribui o afastamento de Mário de Andra­
de da temática freudiana a sua amizade com o psiquiatra
Antônio Carlos Pacheco e Silva, ardoroso opositor da psi­
canálise. De nossa parte, conjecturamos que as palavras
do autor reverberam uma crítica à situação da psicanáli­
se frente a sua institucionalização pelas sociedades ditas
oficiais, com sua "pedagogia da submissão" (COIMBRA,
1995). Estaríamos diante de uma cisão criada pela institu­
cionalização da psicanálise?
Marcondes segue em seu objetivo de trazer um didata para
São Paulo. Após os insucessos de 1932 e 1934, em 1936,
no congresso psicanalítico de Marienbad, Ernest Jones, na
condição de presidente da IPA, obteve a informação de que
Adelheid Koch pretendia migrar da Europa. Jones contata
Marcondes e, em seguida, Adelheid Koch recebe autori­
zação para formar novos psicanalistas no Brasil. Formada
na Universidade de Berlim em 1924, Adelheid Lucy Koch
ingressou na Sociedade Psicanalítica em Berlim no ano
de 1929. Analisou-se com Otto Fenichel por quatro anos
e meio. Na condição de analista judia, foi perseguida pelo
nazismo alemão tendo que emigrar. Koch é descrita como
uma mulher com grande senso de organização e obediên­
cia, nunca tendo questionado as regras da IPA (FACCHI­
NET T I; PONTE, 2003). Desembarca no Brasil em outu­
bro de 1936 e em julho de 1937, após procurar Marcondes,
inicia seu trabalho pioneiro em São Paulo. Cumpre des­
tacar que, entre os primeiros candidatos a analista aceitos
por Koch, está Virgínia Bicudo, que formou-se professora
normalista em 1930, educadora sanitária pelo Instituto de
Higiene da Universidade de São Paulo, em 1932, e Bacharel
em Ciências Sociais pela Escola de Sociologia em Política

39
em 1945. Frisamos sua formação, pois Virgínia foi a primei­
ra candidata não médica, e colaborou para imprimir uma
característica peculiar ao grupo psicanalítico de São Paulo:
a de aceitar candidatos não médicos com áreas de forma­
ção relacionadas à medicina (SAGAWA, 1994). Os esforços
de Marcondes para possibilitar a inserção de Koch entre os
médicos e higienistas brasileiros obteve êxito. O fato de pro­
teger uma mulher judia e alemã em solo brasileiro naquele
tempo de simpatias ao nazismo era uma missão arriscada.
Porém, prevaleceu o fato de Koch ser uma psicanalista com
reconhecimento da IPA, e não temos registro de qualquer
comentário acerca de suas origens judaicas.
Em 1945, o Grupo de Psicanálise de São Paulo consegue
seu reconhecimento provisório junto à IPA. Em 195 1, é
feita a afiliação definitiva com o nome de Sociedade Bra­
sileira de Psicanálise de São Paulo. Para nosso intento de
pesquisar as cisões e a busca de reconhecimento na insti­
tucionalização da psicanálise no Brasil, cumpre sublinhar­
mos dois fatos.
No ano de reconhecimento do Grupo de Psicanálise de São
Paulo, houve um congresso em Buenos Aires do qual parti­
ciparam psiquiatras paulistas. Por causa de desentendimen­
tos entre argentinos e paulistas, os psicanalistas argentinos
levaram a Fenichel informações de que sua ex-analisanda,
Koch, poderia não estar desempenhando satisfatoriamente
a função de formação de novos analistas. Tal informação foi
constestada de forma peremptória por Koch e Marcondes
(SAGAWA citado por FACCHINET T I; PONTE, 2003).
Tratar-se-ia de um episódio de disputa fratricida (entre psi­
canalistas latinos) por um reconhecimento junto a um pai
idealizado como autoridade legítima?
Em 1950, chega ao Brasil, na condição de didata, Theon
Spanudis. Veio de Viena para São Paulo, tendo feito sua
formação na Sociedade de Psicanálise de Viena. Em 195 1,
começa a trabalhar com dois candidatos e a oferecer cur­
sos que influenciaram positivamente o comitê na conces-

40
são da afiliação definitiva da Sociedade. Porém, em 1956,
Spanudis decide abandonar a psicanálise. Alguns historia­
dores afirmam que ele resolveu se dedicar exclusivamente
à arte, já que havia cursado medicina por sugestão do pai
(SAGAWA, 1994). Porém, paira um silêncio sobre a saída
de Spanoudis e seus motivos, pois sua assumida homos­
sexualidade não era aceita pela direção da IPA (FACCHI­
NET T I; PONTE, 2003). Teria Spanudis ameaçado a "pro­
dução da obediêncià' na formação de novos analistas?
Parece-nos que Spanudis não se adequa ao "perfil do psi­
copatológico" exigido pela IPA para seus futuros analistas.
Jovens médicos, bem sucedidos profissionalmente,
que buscavam a análise como uma especialização a
mais em seu currículo. Eram excessivamente "nor­
mais" sendo considerados normais e pouco criati­
vos (KUPERMANN, 1995, p. 26)
A difusão cultural da psicanálise passaria pela formação de
um poderoso superego articulado a uma Weltanschauung
psicanalítica, com o objetivo de fazê-la respeitável e nor­
mal (KUPERMANN, 1995). Analistas que fogem a esse
perfil estabelecido ameaçariam a produção da obediência,
gerando uma intolerância contra eles e acirrando o olhar
superegoico da instituição sobre si.
No Rio de Janeiro, o meio psiquiátrico encontrava-se for­
temente estruturado, fato que gerava dificuldades para a
psicanálise se apresentar como alternativa em si mesma.
Pelo contrário, o meio médico, com seu prestígio, seus
adornos, suas academias e associações, tornava pouco
atraente o vínculo a qualquer outra instituição (RUSSO,
2002). As primeiras tentativas de criar um grupo em con­
sonância com as regras da IPA ocorreram em 1940 e en­
volveram, a princípio, dois grupos distintos: o primeiro
constituiu o Centro de Estudos Juliano Moreira, e o segun­
do, o Instituto Brasileiro de Psicanálise (FACCHINETT I;
PONT E, 2003). O Centro de Estudos Juliano Moreira ten­
tou obter junto à Associação Psicanalítica Argentina um

41
didata interessado em migrar para o Rio de Janeiro e dar
início a formação nos moldes adotados pela IPA. Diante
das dificuldades encontradas para dar seguimento ao pro­
jeto, vários membros desse grupo rumaram para a Argen­
tina para dar início a sua formação.
No cenário do pós-guerra, o Brasil torna-se um país atra­
ente para os psicanalistas. Nesse contexto, Arruda Câma­
ra, que liderava um grupo de interessados na psicanáli­
se, faz contato com Jones solicitando um analista didata
experiente e com envergadura para conduzir a formação
de analistas no Rio de Janeiro. Jones lhe apresenta Mark
Burke. Diante de tal perspectiva, o grupo capitaneado por
Arruda Câmara fundou o Instituto Brasileiro de Psicaná­
lise (IBP), concebido a partir dos padrões da IPA, com o
objetivo de receber analistas desejosos de migrar para o
Brasil e validar as intenções de seus membros de serem
reconhecidos pela IPA.
Arruda Câmara, que estava em Londres fazendo sua aná­
lise pessoal, convence Burke a migrar para o Brasil. Mark
Burke chegou ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1948 e
logo começou a trabalhar. De fato, a chegada de um didata
fez avançar o processo de institucionalização da psicaná­
lise no Rio de Janeiro. Burke buscou estabelecer relações
com as sociedades vizinhas, tendo ido à Argentina e sendo
recebido por Marcondes e Koch em São Paulo. Porém a
demanda pela psicanálise crescia, e o contexto pós-guerra
era favorável ao Brasil. O IBP decidiu pedir a Jones outro
didata, e Werner Kemper foi indicado. Kemper era um mé­
dico alemão que foi analisado por Müller-Braunschweig.
Ele foi admitido como membro da sociedade psicanalítica
alemã em 1932 e rapidamente atingiu importantes postos
de trabalho nesta instituição (FACCHINET TI; PONT E,
2003). Em 1935, com sua ajuda e a de Jones, a sociedade
alemã foi arianizada com o suposto fim de preservá-la e
evitar seu fechamento. Kemper permaneceu à frente dessa
instituição durante o processo que foi denominado de pu-

42
rificação. Em seguida, foi para o Instituto Gõring em 1942,
para substituir seu ex-diretor, preso dias antes por ser
contrário ao regime nazista. Figura controversa, alguns o
consideram simpatizante das teses nacional-socialistas. 5
Com o apoio de Jones, Kemper chega ao Rio de Janeiro
em 1948, acompanhado de sua mulher Anna Katrin Kem­
per. Em 1949, também voltam ao Brasil os psicanalistas
que tinham ido para Argentina fazer sua formação oficial,
constituindo um terceiro grupo, conhecido como grupo
dos argentinos.
Em 1951, acontece uma crise de grandes proporções den­
tro do IBP. Devido à importância deste fato para nossa
discussão, transcreveremos na íntegra o resumo do episó­
dio relatado por Mário Pacheco de Almeida Prado, citado
por Perestrello ( 1987):
Em abril de 1951 houve uma grande crise no Ins­
tituto Brasileiro de Psicanálise, quando seu diretor
descobriu que o doutor Kemper havia transformado
sua mulher em analista didata, mandando para ela
pacientes e candidatos à formação psicanalítica. Foi
lhe exigido estancar o trabalho da senhora Kemper,
e como Kemper não aceitasse essa exigência foi eli­
minado do Instituto. Kemper não se defendeu com
dados realistas e sim acusou o doutor Burker de ser
louco e estar dominando com sua loucura seus ana­
lisandos. Episódio muito doloroso para todos. (p.
42)
A não resolução interna do conflito levou Kemper a sair
do grupo e fundar o Centro de Estudos Psicanalíticos. O
grupo passou a fazer supervisão com Werner Kemper, Ka­
trin e também com os analistas de São Paulo, Koch, Spa­
nudis, Darcy Uchoa e Virgínia Bicudo. Alguns membros
do grupo de Kemper procuraram Burke para assistir seus

5 Sobre o assunto ver FÜCHTNER, Hans. O caso Werner Kemper:


psicanalista, seguidor do nazismo, nazista, homem da Gestapo, militante
marxista! ? P11/sional São Paulo, outubro de 2000.

43
seminários clínicos. Desta forma, em 1951, o Rio de Janei­
ro sediava três diferentes grupos, todos em busca de re­
conhecimento da IPA. (FACCHINET T I; PONT E, 2003).
A aproximação do grupo de Kemper com São Paulo fa­
cilitou seu reconhecimento pela IPA. Assim, em 1953 o
grupo de Kemper é reconhecido no XVIII Congresso Psi­
canalítico Internacional, realizado em Londres (PERES­
TRELLO, 1 987). Este grupo passará a ser conhecido como
Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, em 1955.
No final de 1953, conforme relata Perestrello (1987), o
doutor Burke volta para Inglaterra sem completar a for­
mação de seu grupo. Porém, as divergências deste grupo
com Kemper se exacerbaram. Em 1955, o grupo de ana­
lisandos de Burke e o grupo argentino unem-se com os
integrantes do grupo do próprio Kemper insatisfeitos com
a prática de Kattrin Kemper como psicanalista, e o denun­
ciam pelo trabalho ilegal como médico.
Kemper ficou preso por algumas horas. Conforme nos
lembram Facchinetti e Ponte (2003), foi articulada, por
psicanalistas ligados a Kemper, uma reação de pressão ao
poder público para resolução dos entraves atinentes à le­
gislação. O êxito dessa ação se materializou num aviso mi­
nisterial que facultava aos leigos o exercício da psicanálise
sob determinadas condições.
Em 1959, quando do reconhecimento da Sociedade Bra­
sileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) no XXI
Congresso Psicanalítico Internacional em Copenhague, o
Brasil permitia psicanalistas não médicos, desde que tal
prática fosse cercada de supervisão psiquiátrica. Essa as­
sociação é oriunda do grupo de Burke que ficara no IBP,
do grupo argentino e de outros analistas brasileiros che­
gados ao Rio de Janeiro com formação feita em Londres
(COIMBRA, 1995).
Frisamos que tais cisões continuaram a acontecer nas ins­
tituições psicanalíticas. Em 1 969, dois anos após a volta de

44
Werner Kemper para Alemanha, formou-se um grupo de
analistas dirigido por Anna Kattrin Kemper. Apesar de ser
membro fundador da SPRJ e ocupar a função de analista
didata, Anna Kattrin Kemper deixou a instituição devido
à falta de apoio diante dos conflitos com a linha ortodoxa
da sociedade. Kattrin Kemper era recriminada pela forma
que intervinha no setting. Acompanhada de seu grupo de
supervisão, ela fundou o Instituto Brasileiro de Psicanálise,
com o apoio de Igor Caruso, do Círculo de Psicanálise de
Viena, que estava de passagem pelo Brasil.
Dunker (2002) lembra que, nesse momento, a psicanáli­
se transforma essencialmente sua inserção social. De sua
proximidade com o pensamento de vanguarda, crítico e
subversivo, ela passa a assumir características de uma ati­
vidade aristocrática, ligada a nomes de famílias tradicio­
nais, herdeiros da aristocracia rural urbanizada. Conjec­
turamos que tais qualidades distintivas se tornaram fun-
<lamentais para certa perspectiva de ascensão social que a
psicanálise parece prometer, e que começou a nutrir um
imaginário elitista que, até hoje, paira sobre sua prática.
Após esse breve percurso, caracterizado por conflitos e
cisões, nos parece que a causa das rupturas e dissidên-
cias não reside em significativas divergências teóricas en -
tre grupos. Como nos lembra Russo (2002), apesar de a
maioria das rupturas serem justificadas por divergências
teóricas ou divergências quanto à prática, seu número e
magnitude sugerem outro caminho de análise.
Sabemos que a psicanálise não é uma profissão regulamen­
tada; portanto, os psicanalistas não possuem um conselho
profissional, nem estão submetidos ao controle do Estado.
Dessa forma, para seu exercício, a psicanálise depende de
certa iniciação, já que sua formação não é realizada pelas
vias do ensino formalizado pelo Estado. O futuro analista
deve fazer sua análise pessoal com um analista experien-
te. Ou seja, ele deve formalizar sua experiência de análise
teoricamente para ser capaz de conduzir uma análise.

45
Sobre esse aspecto, lembramos que Freud (1912/1996) nos
ensina que o analista deve usar todo o seu conhecimen­
to para garantir que seu inconsciente esteja funcionan­
do como um órgão receptor, na direção do inconsciente
transmissor do paciente. Assim, sua autoanálise deve ser
utilizada para impedir que suas próprias resistências in­
terfiram no material trazido pelo paciente, sem ser criva­
do por sua crítica ou seleção consciente. Todos aqueles
que queiram ser analistas devem se submeter à autoaná­
lise, pois, nas palavras de Freud, "obter-se-ão, em relação
a si próprio, impressões e convicções que em vão seriam
buscadas no estudo de livro e na assistência a palestras':
(FREUD 1912/1996, p. 131)
Isso nos remete ao fato que, em psicanálise, temos uma
diferença entre ensinar e transmitir. Podemos aprender
psicanálise com a leitura de livros e assistindo aulas ou
cursos. Porém, a transmissão da psicanálise está associada
à articulação da teoria psicanalítica com a experiência do
analisando. Isso certamente se encadeia com o manejo da
transferência na clínica e nas instituições psicanalíticas.
Assim, nas instituições psicanalíticas, estamos expostos a
um risco de uma formação baseada num personalismo,
que pode se manifestar de diversas formas: desde a apro­
priação da instituição por um analista que pretende regu­
lar seu funcionamento até aquele analista que se arvora de
detentor e guardião da pureza da teoria.
O paradigma hegeliano de desejo nos ajuda a tecer algu­
mas considerações sobre a posição de alguns analistas pe­
rante suas instituições. Hegel, no capítulo IV da Fenome­
nologia do Espírito, se interessa pelos conflitos aos quais os
homens estão expostos. Tais conflitos são impulsionados
pelo desejo de reconhecimento. Para Hegel (2008), o dese­
jo, para se tornar desejo humano, implica reconhecimen­
to, que leva a uma ação. Garcia-Roza (1991) nos lembra
que é da ação com o objetivo de reconhecimento que se
originará a autoconsciência, ou seja, a autoconsciência,

46
para ser reconhecida, precisa do outro; daí a luta que vai
caracterizar a dialética do senhor e do escravo. O reconhe­
cimento inclui necessariamente um ato de confrontação
de duas consciências que se pretendem humanas. Elas se
reconhecem, para si mesmas e para a outra, ao converte­
rem em verdade objetiva o que era uma certeza subjetiva.
Porém, temos um paradoxo:
Só há Eu verdadeiramente humano na relação com
o outro, mas também esse Eu só se constitui na su­
pressão do outro Eu. (GARCIA-ROZA, 1991, p. 143)
Porém, nessa luta não pode haver morte, porque o senhor
precisa do escravo para reconhecê-lo. O senhor não só ga­
nha a luta, mas subjuga o escravo, tira sua autonomia. A
posição do senhor é de quem domina e exige reconheci­
mento. Não é possível, para o senhor, matar o escravo. Ele
deve poupar-lhe a vida e destruir sua autonomia, o dei­
xando subjugado. É a posição do gozo, já que ele exige o
reconhecimento pela dominação. No entanto, é o escravo
que está no avesso do gozo, ou seja, na angústia. Angústia
gerada pela ameaça da sua total eliminação pelo senhor.
Dominado, o escravo mediatiza a coisa (em nosso caso, o
saber psicanalítico) e a alça à condição de objeto de desejo.
Assim, o fundamento da dominação é, antes de tudo, um
desejo. É este que funda o movimento de reconhecimento.
Lembramos que a concepção psicanalítica de desejo segue
o modelo hegeliano.
Lacan vai alçar o desejo a uma posição central em psica­
nálise. Na vertente lacaniana, o desejo é uma falta e não
alguma coisa que concederá contentamento. Em seu se­
minário intitulado O avesso da psicanálise, designa como
Discurso do Mestre:

senhor escravo
sujeito barrado gozo

47
Lacan, ao dialogar com Hegel, coloca S 1 (o significante
mestre) como o "senhor" e mostra a suposta identidade
entre o sujeito e o S 1 • O mestre tenta sustentar-se no mito
ultrarreduzido de ser igual a seu próprio significante. S2 ( o
saber) aparece como o "escravo': O que se produz, nessa
relação, é gozo. É disso que Lacan fala: "o gozo é fácil para
o escravo [ .. .] ': A verdade do mestre é que ele é castrado.

$
O escravo tem algum saber sobre a castração do senhor,
pois o no lugar da verdade mostra que não existe essa
identidade ôntica, que o sujeito não é unívoco, mas, sim,
dividido.
O discurso do mestre é o avesso do discurso do analista,
que opera pela transferência e cujo pivô é o sujeito su­
posto saber. O discurso do analista se opõe à sugestão,
que opera por meio do saber e oblitera a transferência.
Segundo Coutinho Jorge (2002, p. 30), "operando pelo
saber, a sugestão impede a transferência do saber incons­
ciente". Ao impedir a produção de saber, o discurso do
mestre incorpora a função alienadora do significante, à
qual o sujeito está assujeitado. O mestre não se preocupa
com o saber, contanto que tudo funcione e seu poder seja
mantido.
Podemos entender que o mal-estar na instituição é susten­
tado pelo discurso do mestre, justamente o discurso que
repousa sobre a ilusão do saber completo e da explicação
definitiva.
Se pensarmos que a característica do sintoma é fazer da
contingência um atributo existencial, podemos inferir que
os psicanalistas, ao adotarem uma posição personalista,
não querem saber da castração. Assim, é possível presu-
mir que, nas manifestações egocêntricas, a psicanálise é
tomada como sintoma do analista. Ou seja, temos o ana­
lista ocupando o lugar de mestria.
Freud, no texto O estranho, nos fornece elementos
para desenvolvermos essa ideia. Nesta obra, ele diz

48
que o semelhante (em nosso caso, as sociedades psi­
canalíticas) é o outro da relação especular. Freud situa
o núcleo central da estranheza no complexo de castra­
ção, na medida em que qualquer afeto que seja de um
impulso recalcado transforma-se em ansiedade. Algo
que indique seu retorno poderia, então, ser vivido
como o assustador angustiante, acrescido da peculia­
ridade do estranho.
Freud nos ensina, ainda, que o estranho aparece a partir
do retorno de um conteúdo recalcado, qualquer que fosse
seu afeto original. A estranheza se deveria ao retorno em
si e à secreta familiaridade do fenômeno, indicando, por­
tanto, não ser ele novo ou alheio à mente, mas apenas ter
sido afastado pelo recalque.
O conceito de estranho é associado ao fenômeno do du­
plo. A ideia do duplo nos remete À projeção, ou seja, expe­
lir para fora de si aspectos que considerados intoleráveis,
e que poderão revestir outra pessoa, atribuindo-lhe aspec­
tos malfazejos.
Nesse fenômeno, persistem os efeitos da agressividade.
Assim, o semelhante é segregador porque a imagem que
vejo nele perpassa a minha. É segregador porque odeia
ou não se quer ver. Porém, o retorno do recalcado pode
se manifestar na compulsão à repetição inconsciente e
involuntária, levando à reprodução de ações e circuns­
tâncias, ao retorno da mesma coisa, a coincidências. Isso
porque a compulsão à repetição fornece a impressão de
estranheza ao evidenciar, especialmente, seu caráter de
destino inescapável, prevalente até mesmo sobre o prin­
cípio do prazer. Assim, o estranho estaria inscrito em sua
mensagem compulsiva e repetitiva. Esse modo de operar
desperta a impressão, mais que a própria situação repe­
tida. O breve percurso histórico das associações psica­
nalíticas, anteriormente assinalado, nos aponta para este
fato.

49
Sob esse aspecto, lembramos que a fratria entre analistas
traz consigo o ônus de estarem todos empenhados em
seguir a miragem do líder, do ideal. Essa via de direcio­
namento dos excessos nos apresenta uma compensação,
característica da ambivalência dos laços sociais em ques­
tão: ou se volta contra o sujeito, sob a forma terrificante do
supereu, ou se volta como ódio ao pai que é direcionado
ao outro, instituindo a segregação.
A fratria entre psicanalistas cobra um alto custo,
disseminando a intolerância contra os de posição
divergente, de um lado, ou acirrando o olhar supe­
regóico das instituições sobre o candidato em for­
mação, de outro. (MARTINS; POLI, 2012)
Inferimos que a segregação pode se manifestar a par­
tir do não reconhecimento pelos pares psicanalistas.
Trata-se de um reconhecimento recusado pelo outro,
suposto detentor do saber psicanalítico, que se coloca
em posição privilegiada devido a sua ascendência na
árvore genealógica da psicanálise. Essa forma de reco­
nhecimento recusada vem acompanhada do adjetivo
impuro, ou, em alguns casos, com a negação de que o
outro seja psicanalista.
Isso nos traz para um fato curioso. Apesar da herança
francesa de nosso sistema universitário, da influência
americana em nosso contexto econômico e do perfil
germânico de nossos pioneiros psicanalistas, a primei­
ra psicanálise a prosperar no Brasil foi a britânica. Klein
e Bion, que fez conferências no Brasil nos anos setenta,
são nomes de peso na história da psicanálise no Brasil.
Diversos temas, enfatizados por estes autores, são con­
gruentes com uma perspectiva liberal, melhor adaptada
às transformações sociais verificadas na segunda metade
do século XX (ROUDINESCO, 2000). A valorização do
papel materno, da subjetividade da criança, e o cenário
de confusão, angústia e ambiguidade destrutiva, que ca­
racterizariam a cena primitiva da subjetividade, permi-

50
tem articular o essencialismo do passado, característico
da esfera da pessoa, e a sua resolução pela instauração
de uma mediação e separação adequada, entre a esfera
pública e a esfera privada. O infantil, ou pré-edipiano,
surge assim em associação ao traumático, ao indiscrimi­
nado e à pura intensidade sem mediação. Daí a primazia,
no plano da técnica, de noções como as de contrato, set­
ting e neutralidade analítica, todas elas suportes para a
atividade crucial de discriminação, separação e simboli­
zação. A abordagem da interpretação e da transferência,
centradas em um processo tradutivo, e o horizonte de
integração entre os maus e bons objetos (posição depres­
siva), nos informam ainda sobre a confiança depositada
na proporcionalidade e reconciliação possível entre o
mundo interno e o mundo externo.
Mas se a psicanálise inglesa mostra-se sensível aos pro­
blemas derivados da crise da dimensão da pessoa, sua
absorção em uma sociedade com uma frágil e incipiente
tradição liberal, como a do Brasil dos anos 60, não deixou
de representar um problema. Desde o período republica­
no até o desenvolvimentismo dos anos 70, passando pelo
populismo da era Vargas, o país acostumou-se a aliar o
discurso liberal a uma prática disciplinar. Neste sentido,
o declínio do poder simbólico e imaginário do pai, se fez
sentir de modo mais lento, e preservando antigos disposi­
tivos, no Brasil. A fraca coesão de movimentos baseados
em minorias organizadas: mulheres, afrodescendentes
ou homossexuais, por exemplo, e a fragilidade da coe­
são ideológica na formação e ação dos partidos políticos,
atestam a tardia consolidação da sociedade civil brasileira
e o estatuto instável de suas instituições. Fonseca (1994)
mostrou como, historicamente, as ideias econômicas de
extração liberal acabaram traduzindo-se, no Brasil, na
construção e sedimentação de um sistema que alimenta
vícios públicos em prol de benefícios privados. Da cor­
rupção endêmica ao clientelismo e à cartelização, há uma
desconfiança quanto ao caráter realmente público da es-

51
fera pública. Um traço característico da incorporação de
projetos liberais no Brasil.
Ora, não nos parece ter sido outro o caminho tomado na
entrada no pensamento psicanalítico liberal de extração
inglesa. Caminho que leva à reação lacaniana ocorrida
no final dos anos 70, mas que já se indicara na saída da
psicanálise oficial dos dispositivos universitários, geran­
do como subproduto a "psicoterapia de base psicanalíti­
cà'. Como uma mercadoria preciosa, era necessário res­
tringir-lhe o acesso para manter seu valor. Restringir sua
transmissão, ao acentuar o valor da experiência pessoali­
zada. Bloquear seus meios de contestação e transforma­
ção pública, pelo enfraquecimento do papel ocupado pela
teoria. Estabelecer minuciosos dispositivos burocráticos
para garantir a legitimidade da prática e da filiação insti­
tucional. Enfim, um processo que reproduz a servidão que
procura por outro lado, criticar.
Mas a influência inglesa veio também indiretamente
da Argentina. A psicanálise argentina traz uma consci­
ência mais clara sobre colonização, e é historicamente
associada a uma influência crítica. Aberastury, Pichon
Riviere, Bleger e seus discípulos emigrados nos mos­
tram como a tradição britânica pode ser usada também
como uma resistência a situações culturais opressivas.
Sua influência, decisiva para a reentrada da psicanálise
nas instituições de saúde mental, deve muito ao caráter
de contestação política que motivou vários psicanalis­
tas argentinos a saírem do seu país de origem, domina­
do pela Ditadura Militar. Ainda nos anos setenta, um
problema similar foi enfrentado na psicanálise argenti­
na. O acirramento de tais contradições levou vários psi­
canalistas à composição do grupo Plataforma. Este não
foi o único movimento de crítica organizada à discipli­
narização da psicanálise nos anos 70, mas certamente
nos interessa mais de perto, pela presença direta de al­
guns remanescentes, ou das ideias por eles inspiradas,

52
no cenário brasileiro. A defesa do pluralismo teórico,
a aproximação com o trabalho em instituições e a crí­
tica do corporativismo marcam a disseminação de tais
ideias. Trata-se aqui da valorização de outro aspecto
da subjetivação liberal, mais advertida dos impasses e
fracassos que sua promessa carrega; mais próximo, por
exemplo, de Tocqueville do que de Weber.
Mas a tradição britânica, de maneira geral, significa, no
Brasil, uma perspectiva muito rígida e conservadora.
Leva, inicialmente, a face da "sociedade" no duplo sen-
tido. Sociedade significa a forma institucional, jurídica e
cultural que organiza uma comunidade, mas "sociedade"
significa, em um particular sentido metonímico, o peque­
no grupo, descendente da burguesia rural ou urbana, que
parece fazer as regras do país.

53
Moda s de
Subj etivação e
Complexo s
Dis cursivas
Esta situação produz uma
incorporação particular do
que Parker (1 997) chamou
de complexos discursivos da
modernidade em psicanálise.
Pretendemos sustentar que uma parte da discrepância e
deriva teórica, que se verifica no uso destes três concei­
tos, dentro de tradições psicanalíticas, depende do modo
como eles são interpretados diante de diferentes conjuntu­
ras que caracterizam os modos de subjetivação.
Tais conjunturas, que constituem o espaço psicológico
da modernidade, especialmente a partir do século XIX,
se distribuem a partir de três projetos fundamentais, re­
tomando aqui a tese de Figueiredo (1994). Brevemente,
podemos nomear tais projetos da seguinte maneira: li­
beralismo, romantismo e regime disciplinar. Eles podem
fazer alianças ou produzir antagonismos, apresentando-se
normalmente em combinação. Mas, cada um deles, se fa­
zemos uma separação artificial, contém sua própria tecno­
logia para configurar e gerir subjetividades.
O liberalismo produz sujeitos, o romantismo produz pes­
soas, e o regime disciplinar produz indivíduos. Faço aqui
uma associação entre estas três tradições, formadoras da
sociedade ocidental moderna, com modos específicos de
subjetivação no Brasil, descritos por Figueiredo ( 1994).
Gostaria de introduzir estas tecnologias, dando um feitio
e algumas exemplificações que se diferenciam um pouco
das propostas por Figueiredo, uma vez que pretendo fa­
zê-las convergir especificamente para a interpretação da
inscrição cultural da psicanálise no Brasil.
(1) Na esfera da "pessoà: traduz-se a dimensão de subje­
tivação própria ao mundo do compromisso familiar, das
relações diretas, das fidelidades e proteções que Freyre
(2003) isolou tão bem ao falar do patriarcalismo nacional.
Na esfera da pessoa, nós encontramos a centralidade dos
laços relativos ao universo familiar. Os temas românticos
do retorno às origens, da natureza, da família, da sociedade
orgânica e da experiência autêntica, acabam por se amparar
na revalorização da dimensão da pessoa. A pessoa impli­
ca, assim, um sistema de identidades posicionais, de lenta
modificação, mas, ao mesmo tempo, a garantia de recipro-

58
cidade e clientelismo que verificamos em diferentes estratos
de nossa sociedade. O malandro é a figura-tipo desse estilo
de subjetivação. É nessa linha que Cândido (1970) apontou
Memórias de um sargento de milícias como romance funda­
mental na formação de nossa literatura e da relação desta
com a dialética nacional. Pessoa é um termo do teatro, mas
também do direito. Talvez seja nessa linha que a dimen-
são privilegiada aqui seja a da relação com a lei, entendida
como pacto convencional simbolicamente constituído. Lei
cujo caráter híbrido em sua implantação nacional revela
compromisso entre vícios privados e benefícios públicos.
Lei que, em todas as fases de seu processo, apresentaria
contradições gritantes, quando analisada de um ponto de
vista liberal ou mesmo crítico. Lei, portanto, suspeita, pela
presença dos interesses que subvertem os contratos que ela
torna possível. Aqui os atores reais do contrato sustentam
a lei. Esta depende de uma relação não simétrica, em que
a confiança é exposta às mudanças contingenciais do inte­
resse dos atores. A narrativa típica associada com a pessoa
é aquela que se organiza em torno do poder da experiência.
Biografias, relatos pessoais, documentários e outras forma­
ções discursivas que tentam tornar concêntricos a enun-
dação e o enunciado. Para a pessoa, a esfera pública deve
refletir e se submeter ao espaço privado, e não o oposto.
Aqui nós podemos ver a condição, em termos dos modos
de subjetivação, para a disseminação da transferência como
um complexo discursivo da psicanálise. A repetição do mo­
delo familiar, em autêntica confusão do espaço público com
o espaço privado, seria a cena original da subjetividade.
(2) Na esfera do "sujeitô: Figueiredo ( 1995) identifica a ver­
tente de subjetivação eventualmente ligada ao ideário libe­
ral e moderno de autofundação, transparência e universali­
dade formal. Sujeito é uma expressão originária da filosofia
e, mais precisamente, da epistemologia, isto é, aquilo que
conhece e que, para tanto, precisa passar por um processo
de purificação (o método), de ordenação (a técnica) e de
auto-organização (a ordem). Somente após este trajeto po-

59
demos encontrar os atributos que, de saída, lhe são supos­
tos: universalidade, identidade, transcendência e potência
linguística de comunicação total. A identidade psicológica,
em face do sujeito, é, assim, uma identidade funcional, ex­
purgada do que se poderia chamar de subjetividade, mas
carregada de autonomia. O sujeito, na cultura nacional, se
expressa bem através do que Holanda (1995) chamou de
"o homem cordial" (p. 139). É aquele que segue regras por­
que se reconhece na sua confecção e que administra com
sobriedade as tensões entre sua esfera privada e sua esfera
pública, ou entre a casa e a rua, o que, em geral, a dimensão
da pessoa confunde ou sobrepõe. O sujeito, neste sentido,
é sempre paratópico, isto é, sobrevoa à distância, adminis­
trando suas ações e se autocontrolando para isso. Parató­
pico, porque está insistentemente em outro lugar, fora da
cena. Como assinala Maingueneau (1992), a paratopia é
um recurso literário que oferece uma posição distanciada
de enunciação que permite à narrativa olhar a realidade
com outros olhos. O errante solitário, o louco, o náufrago,
o estrangeiro são exemplos típicos de personagens parató­
picos. Neste sentido, a melhor expressão literária do sujeito,
na cultura brasileira, se mostra em Memórias póstumas de
Brás Cubas, em que, literalmente, o narrador (sujeito) fala
da posição de morto ao nos revelar os meandros de suas
desventuras como pessoa. A incidência da lei para o sujeito
não se faz pela via do contrato pessoalizado, mas pela supo­
sição de que esta possui algum fundamento transcendente
ou puramente formal. Assim, a lei tornada paratópica pos­
sui características que são coextensivas ao próprio sujeito.
Como podemos ver, a intelectualização é um complexo dis­
cursivo estritamente ligado à dimensão do sujeito. A pers­
pectiva de produzir uma metanarrativa privilegiada sobre
si mesmo, sob forma de autoconhecimento, torna-se então
um projeto amparado por uma semântica segura e por uma
gramática universal.
(3) Finalmente, a dimensão do "indivíduo': ou do mero in­
divíduo, como diz Figueiredo (1995), se organiza em torno

60
e em contraponto à noção de massa. O termo indivíduo
remonta à química e à noção de elemento irredutível e de
ocorrência regular e constante. Indivíduo é uma condição
de razoável indiferenciação e, consequentemente, de igual­
dade ou uniformização. No indivíduo vigora uma identida­
de representacional, isto é, ele é o que ele representa em suas
ações e atos. Sem nenhum privilégio ou distanciamento, ele
se entende como mais um que pode ser substituído, troca­
do ou valorizado, como qualquer outro que desempenhe o
mesmo papel. Se a pessoa é sempre autor, e o sujeito é o su­
posto diretor da peça, o indivíduo é melhor retratado pela
posição de mero ator. Ele representa, mas não torna idios­
sincrático seu roteiro. Ele representa e faz o público saber
que ele está representando. O indivíduo é anônimo e des­
fruta das vantagens do anonimato. Nelson Rodrigues, espe­
cialmente nas tragédias cariocas e nos contos suburbanos,
retratou com agudez o momento de sedimentação da cultu­
ra do indivíduo no Brasil da década de 60. A lei, na esfera do
indivíduo, adquire a conotação de norma. Disciplina à qual
todos devem se submeter, ela é impessoal, mas não formal,
pois se expressa em regras e regulamentos indissociáveis de
dispositivos materiais e práticas de sustentação. Na forma
de narrativa tipicamente associada ao regime disciplinar e
ao indivíduo, predomina a estratégia de dissolver a enun­
ciação no enunciado, tornando-o paradoxal, absurdo ou
ilocalizável. A experiência crítica que psicanálise introduz
para lidar com esta face de modernidade é o trauma. Apesar
das transformações que este conceito tem na teoria freudia­
na, a atração social que esta noção ainda tem no senso co­
mum está ligada a sua capacidade de isolar uma experiência
crucial como fundando os desvios da subjetividade.
Pessoa, sujeito e indivíduo engendram formas de sofrimen­
to subjetivo muito diferentes e, por isso, demandam tipos
de tratamento igualmente diversos. Cada qual resolve a
contradição engendrada por seus meios de subjetivação a
partir de dispositivos diferentes. A pessoa procura o con­
selheiro, o amigo ou, na mais pura tradição da elaboração

61
coletiva, lida com este sofrimento através do que Benjamin
( 1996) chamou de Erfahrung, isto é, integrando sua expe­
riência a uma narrativa coletiva, oral e mítica. O sujeito,
ao contrário, demanda processos mais ou menos formais
de regulação e estabilização de si mesmo. A história à qual
ele integra seu sofrimento é basicamente individual; ele de­
manda autoconhecimento para legitimar sua autonomia. O
indivíduo, por sua vez, procura solução para seu sofrimento
na vivência, a Erlebnis de Benjamin (1996), ou, ainda, na
técnica, que poderia ser aplicada indiferentemente. Sua de­
manda não é de autodomínio, mas de autenticidade; não é
de saber, mas de bem-estar. Do ponto de vista da resposta
cultural a este sofrimento, podemos supor que a farmacolo­
gia da felicidade se ajusta ao indivíduo, assim como os ma­
nuais de autoajuda parecem dirigidos ao sujeito. As práticas
religiosas e pararreligiosas orientadas para a cura, por sua
vez, atingem mais diretamente a esfera da pessoa.

Transferência e pers analisma romântica

Como apontamos acima, a cultura brasileira é marcada,


historicamente, por um forte personalismo. A principal
consequência disso é a extensão do estilo de vida familiar
para a esfera pública. Como nos lembra um dito popular:
"Para os amigos tudo, para os inimigos a lei':
Família não quer dizer apenas os laços de sangue e sub­
missão natural, mas também suas extensões para o uni­
verso inteiro de pessoas protegidas, aliadas e agregadas.
As origens deste sistema foram largamente estudadas pelo
pensamento sociológico brasileiro clássico.
Este sistema remonta às formas de relação desenvolvidas
durante o período colonial, marcado pela escravidão. Nos­
sos chefes rurais estabeleceram a prática do abuso sexual
das mulheres escravas. Mas, apesar da violência opressiva,
representada por tal prática institucionalizada, os filhos
destas relações foram inicialmente tolerados e gradualmen-

62
te integrados na família. Isso fez com que alguns autores,
como Gilberto Freyre (2003), aludissem ao Brasil como
uma "democracia racial" e alimentassem o imaginário do
Brasil como uma cultura sexualmente exótica e permissiva.
Esta situação sugere um caminho particular para lidar
com o passado. Este acaba sendo organizado por uma
conveniência aliada ao esquecimento. Por outro lado,
tudo passa a depender da confiança que temos em nossas
relações pessoais no presente.
A transferência, neste contexto, será facilmente aceita
como um complexo discursivo, especialmente se a in­
terpretamos no aqui e agora da situação analítica. Neste
modo discursivo, a realidade da relação, e a verdade que
dela se depreende, pode facilmente ser suposta como
construída arbitrariamente. A dimensão da pessoa inclui
um modo peculiar de transferência do poder. Encontrar
por trás desta relação de poder, e do analista que as en­
carna, as figuras do universo familiar, torna-se assim uma
experiência deveras persuasiva.
Aqui podemos dar um exemplo. Durante o Regime Mili­
tar, entre 1964 e 1978, podemos ver uma imensa difusão
da psicanálise no Brasil, especialmente entre as camadas
médias. Em alguns períodos, fazer uma psicanálise era
parte do estilo de vida da classe média alta. Como Figueira
( 1981) afirma, em um estudo comparativo entre a Ingla­
terra e o Brasil, nos tornamos consumidores pesados de
psicanálise. Para um país pobre, é um fato curioso.
Mas nós temos que considerar certos aspectos. Durante
este período, o Regime Militar fecha ou reduz o incentivo
para "artefatos intelectuais" perigosos como a Filosofia,
a Sociologia e a Ciência Política. Por outro lado, aparece
diretamente, na política educacional do país, apoio para
uma disciplina aparentemente mais prática e necessária:
a Psicologia.
Psicologia e Psicanálise fornecem a resposta ideológica
para a interpretação de certas "anomalias" sociais que pa-

63
reciam tomar conta do país. Nos anos 1970, a hegemonia
do modo de subjetivação centrado na pessoa começa a
ruir. As mulheres ingressam no universo do trabalho assa­
lariado, a opressão sexual é posta em questão, o país entra
em uma crise econômica e social.
A retórica mobilizada para sustentar a resposta psicológi­
ca para esta mudança social pode ser localizada na teoria
psicológica de desenvolvimento. Isto é particularmente
convergente com o discurso da economia oficial daquele
tempo. O país precisa de desenvolvimento (para superar o
subdesenvolvimento). Todos os esforços e sacrifícios se au­
torizam em nome disto. Esta aproximação foi indicada por
Burman (1999), que, por intermédio de uma fina análise
comparativa entre as duas formas discursivas sobre o de­
senvolvimento, acusou a cumplicidade retórica, semântica
e imagística entre ambos. A estratégia da retórica desenvol­
vimentista consiste em naturalizar a história no âmbito da
pessoa e torná-la isomórfica à história social. Esta segunda
natureza pode então ser comparada a um modelo de desen­
volvimento. Aquele que o analista menos avisado pode ter
em mente durante a transferência. Isso produz um código
de interpretação. Os ângulos deste código, no caso da trans­
ferência como complexo discursivo, são formados pelas fi­
guras familiares: o pai, a mãe e os irmãos, em especial.
Um estudo paradigmático, desenvolvido pelo exército,
durante o Regime Militar, pode nos ajudar a compreen­
der como a transferência e o desenvolvimento tomaram
um lugar privilegiado. Trata-se de um estudo psicológico
(COIMBRA, 1995), para responder por que uma pessoa
entra em um estilo de vida subversivo. O que causa este
"problemà: considerado na esfera do "desajustamento psi­
cológico"? A resposta: tais indivíduos provêm de "famílias
desestruturadas': Pais separados, em associação com uma
infância anormal, produzem, assim, uma rebeldia... deslo­
cada. A cura: psicanálise, onde eles poderiam restabelecer
a velha boa ordem.

64
O contexto é bem parecido com o que podemos notar no
caso Dora (FREUD, 1905/1989). "Ponha-a nos eixos e
deixe-me continuar em meu estilo de vidà: diria o pai da
Dora. A compreensão posterior de Freud sobre o fracasso
do tratamento indica a complexidade da questão; ele não
prestara a devida atenção à transferência.

Trauma e individualismo disciplinar

Mas os anos setenta no Brasil são marcados por outras mo­


dificações sociais. O movimento migratório para as grandes
cidades aumenta. A industrialização dos anos cinquenta
começa a se desdobrar. Uma classe média baixa está con­
solidada e crescente no país. Sob os auspícios do desenvol­
vimento, da modernidade e da nova urbanização, o país
entra definitivamente na esfera da cultura de massa. A an­
tiga configuração familiar sofre algumas mudanças. Como
vimos anteriormente, há um grupo crescente de indivíduos
anônimos, que perdem parcialmente sua identidade cul­
tural, pela migração e pela entrada em um universo fabril
massificante. Trata-se de "pessoas': que repentinamente são
tomadas sob uma cultura disciplinar e individualizante.
Deste modo, pessoas serão identificadas com sua função no
sistema, não mais com suas raízes familiares.
Esta perda de referência simbólica é assimilada no quadro
do complexo discursivo dominado pela noção de trauma.
A noção de trauma fornece um modelo em que se trata
de encontrar algo no passado, não no presente, que torna
esta perda de referência compreensível. Por outro lado, o
trauma individualiza a história. Isso constitui uma respos­
ta para aqueles que não se reconhecem na complexidade
de uma cultura altamente psicologizada.
Mas este poder de singularização, que aparece no comple­
xo discursivo representado pelo trauma, prescreve o modo
através do qual ele pode ser dissolvido: outra experiência
crucial. Formam-se, assim, as condições para o controle
desta experiência crucial por meio de uma "pura técnicà'.

65
Esta aparece muito bem representada na forma rígida e
disciplinar que toma conta das associações psicanalíticas e
inspira indiretamente a formação de novos analistas. Outra
face deste processo se mostra na concentração de estudos
teóricos centrados na técnica psicanalítica, que caracteri­
zam a produção psicanalítica brasileira deste período.
Um exemplo da capacidade de combinação entre trauma
e individualismo tecnificante aparece no conhecido caso
Amílcar "Lobo" (KUPERMANN, 1995). Tratava-se de um
aspirante a psicanalista, médico; ao mesmo tempo em que
realizava sua formação em psicanálise, trabalhava no apa-
rato militar de repressão. Sua função precisa era susten­
tar as "pessoas torturadas acordadas, durante as sessões
de torturà'. Elas, assim como no tratamento psicanalítico,
deviam "continuar falando': A situação não é vivida sem
conflito. O candidato pede ajuda para seu analista e para
alguns companheiros da instituição. Não recebe uma res­
posta direta, mas há uma indicação difusa de que podia se
tratar de um problema analítico, um problema pessoal, a
ser resolvido no contexto de transferência.
Seu próprio ponto de vista, nesta situação, é muito inte­
ressante. Ele argumenta, que se ele está a se comprome­
ter com tal prática no presente, isso pode ser atribuído a
algum trauma escondido, no passado e em seu interior.
O argumento é bastante congruente com uma formação
discursiva típica do individualismo, a saber, o raciocínio
burocrático. Trata-se de um modo de responder a ques­
tões que interrogam diretamente o sujeito, remetendo-as
a outro. "Não é minha responsabilidade, siga para o pró­
ximo balcão, que 'alguém' se ocupará disto". O fato de este
"outro-alguém'' ser o próprio sujeito não parece represen­
tar uma diferença significativa. O simples fato que se está
relatando o ocorrido a seu "superior imediato': em trans­
ferência, é bastante para eximir a implicação subjetiva.
Mas o caso tem raízes mais fundas. O analista de Amílcar
Lobo fez sua própria análise com um dos dois analistas pio­
neiros no Brasil: Werner Kemper. Este está credenciado por

66
sua formação no Instituto Psicanalítico de Berlim. Imigra
para o Brasil depois da guerra. Após o incidente com Amíl­
car Lobo, a opinião pública é informada que Kemper traba­
lhara em um centro conhecido pela sua colaboração com o
nazismo, durante a Segunda Guerra. Assim, podemos loca­
lizar uma linha de continuidade, da obediência e submissão
sustentada pelo conhecimento do trauma à obediência cul­
tivada em certas formações analíticas.
Segundo Kupermann (1995), o incidente ilustra como a
transferência e a formação psicanalítica podem ser susten­
tadas como uma reprodução de certas relações do poder,
que configuram seu lugar social. Isto nos ajuda a enten­
der por que, neste período, pacientes de psicanálise são
predominantemente mulheres. O complexo discursivo do
trauma tem como subproduto identificar o paciente indi­
cado para a psicanálise com a fragilidade, a fraqueza de
espírito e a falta de vontade para superar as próprias limi­
tações. O indivíduo insatisfeito com sua própria condição
de indivíduo. A identificação ideológica da mulher com
este lugar parece um agente favorecedor para sua captura
neste complexo discursivo.

Intelectualização e sujeito liberal

Este último exemplo, do psicanalista-torturador, expres­


sa, ainda, um modo particular de lidar com o trauma. Sua
operação depende da possibilidade de intelectualizar a pró­
pria subjetividade, de representá-la como um objeto para
a consciência, objeto repleto de conteúdos e positividade.
No fim dos anos setenta, podemos observar três formas
de resistência crescentes dentro da cultura psicológica
brasileira. O lacanismo, as práticas corporais de extração
reichiana bioenergética ou psicodramática e a psicolo­
gia analítica junguiana tornam-se alternativas imediatas
ao fechamento individualista e disciplinar da psicanálise
oficial, doravante associada à ortodoxia. O corpo contra

67
a palavra ... contra o espírito; assim se rearticula a reação
liberal e romântica contra o individualismo.
Alguns fatores podem ajudar a compreender a penetra­
ção do pensamento de Lacan no Brasil. O aspecto liberal,
como este tende a considerar que a questão da formação
de analistas se combina com as objeções críticas contra
a psicanálise do eu, de extração americana e fortemente
centrada no individualismo. Tais objeções soam como
uma perspectiva racional para desconstruir, internamen-
te, a base de sustentação teórica da psicanálise disciplinar,
apontando indiretamente seus compromissos ideológicos.
O curioso é que as críticas de Lacan são dirigidas frontal­
mente à psicanálise do eu, uma tradição historicamente
muito fraca na psicanálise brasileira. No entanto, tais críti­
cas são realocadas de modo a incluir a psicanálise inglesa.
Outro traço da captação liberal do discurso lacaniano re­
side em sua defesa de um programa científico para a psi­
canálise. Programa expresso, no entanto, em uma forma
poética combinada a uma retórica erudita.
Ciência em estreita vinculação como uma ética, não como
uma tradição epistêmica objetivista; tal plataforma se coa­
dunou muito bem com os anseios de liberdade e rigor
próprios ao espaço liberal. Neste sentido, Freud define-se,
a si próprio, como um liberal, na medida em que confia
na "ciêncià' como capaz de oferecer uma visão de mundo
Weltanschauung compatível com a psicanálise.
A linguagem, conceito central na teoria de Lacan, configu­
ra um campo para a psicanálise onde a dicotomia entre o
interno e o externo é superada. A oposição simples entre o
mundo interno e o mundo externo (realidade), que pare­
cia traduzir claramente a oposição e incomensurabilidade
entre o espaço privado e o espaço público, no pensamento
de Klein e Bion, fica assim subvertida em prol da distinção
entre imaginário, simbólico e real.
No Brasil, existe uma declaração popular para expressar o
aspecto ilusivo do mundo público: "Para inglês ver': Tra-

68
ta-se de um modo caricato ou sabidamente falso de apre­
sentar-se ou aludir a alguma ação pública. A expressão não
quer dizer apenas enganar ou enganar o outro representan­
do um papel. Ela contém ainda uma autoironia acerca do
reconhecimento da artificialidade da situação. Tal expres­
são, assim como a particular forma de cordialidade do ho­
mem brasileiro, indica o caráter complexo e dialético das
relações entre o público e o privado no Brasil. A posição
de Lacan, de fato, parece mais congruente para tematizar
esta complexidade. Poderíamos, ainda, interpretar a recente
expansão do pensamento de Winnicott segundo premissa
semelhante. A valorização da categoria de sujeito, no pri­
meiro caso, e de self(mais próximo da pessoa), no segundo
caso, ilustram respectivamente a aparição de formas modi­
ficadas do liberalismo e do romantismo clássico.
O sujeito, considerado por Lacan, distancia-se do experien­
cialismo ligado ao complexo discursivo do trauma e do de­
senvolvimentismo de extração romântica. A subjetividade
dividida, exilada de qualquer síntese possível, alia-se assim
a uma ética que incorpora o fracasso do projeto liberal clás­
sico, uma ética trágica. Por outro lado, as objeções que se
lhe costumam levantar constituem argumentos clássicos
contra o liberalismo: intelectualização, perda da experiên­
cia e estereotipia na forma de apresentação pública.
Mas, se a recepção inicial do discurso de inspiração laca­
niana possui um veio crítico, sua implantação não deixou
de reproduzir o mal que visava combater. Sua crônica di­
ficuldade em integrar-se à sociedade civil, pela fragilidade
de suas instituições, o caráter, por vezes sectário, de apre­
sentação de sua doutrina e a crescente disciplinarização,
no plano da formação, têm mostrado como, a par de sua
entrada nas universidades, a intelectualização liberal em
que se apoia ainda não foi submetida a um movimento de
crítica interna e sistemática. Tal movimento seria crucial
para avaliar até que ponto ela resiste à sua incorporação
por ideologias da pós-modernidade.

69
Reforma
Psiquiátrica:
medicalizaçãa e
sacializaçãa s
O processo da reforma da
psiquiatria brasileira entrou
em vigor na década de noventa,
por uma iniciativa articulada
entre os governos municipais,
estaduais e o governo federal.
saglia, o governo de esquerda tentou uma mudança radi­
cal. O projeto pretende negar que a loucura seja uma con­
dição patológica individualizada que necessite de abor­
dagens terapêuticas ou clínicas. Ao contrário, a questão
fundamental da loucura é a exclusão social. A terapia deve
ser substituída por vínculos familiares e comunitários. Os
hospitais devem ser substituídos por centros de encon­
tro que estimulem os agora chamados usuários a circular
como cidadãos reais.
Esse serviço funciona vinte e quatro horas ininterruptas,
sete dias por semana. Possui seis leitos para internações
de curta duração. Com aproximadamente quarenta técni­
cos envolvidos, cada NAPS tenta atender mais de 5.000
usuários. Aqui começamos a ver a outra face da institu­
cionalização, que não justifica, em caso algum, o retorno
das práticas tradicionais. A desinstitucionalização poderia
ser facilmente colocada em prática simplesmente porque
é mais barata, e, como veremos, sustenta o poder do dis­
curso progressistas liberal.
O projeto de saúde mental que guia as principais ações
do NAPS é orientado a mudar as relações sujeito-institui­
ção-comunidade. Quebrando os muros das tradicionais
práticas disciplinares, o projeto tenta enriquecer a vida
dos usuários. Isso significa acesso a cultura, arte, lazer, e,
fundamentalmente, acesso ao trabalho. O ponto principal
do projeto é o livre acesso à cidadania através de um novo
tipo de socialização.
A equipe do NAPS é composta por enfermeiras, terapeu­
tas ocupacionais, psicólogos, psiquiatras, assistentes so­
ciais, diretores administrativos, auxiliares de enfermagem,
etc. Mas apesar de instrução formal, não há projeto tera­
pêutico. Aqui nós temos uma ação bem eficiente: a maio­
ria dos colaboradores está conectada a esse movimento de
mudança política.
Uma das práticas que se tornou usual no cotidiano da ins­
tituição é a chamado "medicação S/N" (medicação se ne-

74
cessário). Trata-se uma estratégia adotada pelos psiquia­
tras que consiste em deixar uma dose extra de medicação
prescrita, para que, em caso de agitação ou recaída, possa
ser administrado ao paciente. Mas quem toma a decisão?
Apesar da relevância social da proposta da Psiquiatria De­
mocrática Italiana, os relatos da família e dos pacientes in­
dicam que o uso "se necessário" de medicação aumenta em
altos níveis. Quem, em nossos tempos, pode realmente es­
tabelecer quando uma medicação é, de fato, não necessária?
A negação dos procedimentos terapêuticos traz à tona a
negação da prática. Apesar dessa ordem, a situação induz
a uma questão interessante: os procedimentos clínicos
poderiam ser aceitos mais democraticamente? Nós real­
mente precisamos identificar procedimento clínico com
procedimento técnico?
O psiquiatra trabalha com uma rotina diferente, em com­
paração com os outros membros da unidade. Eles reali­
zam uma jornada reduzida de trabalho, mantendo uma
distância regular dos outros membros da equipe. Muitos
profissionais evitam participar de discussões de casos.
Procedimentos médicos e técnicos não têm nada a ver
com engajamento político. Como eles vêm os pacientes
em regime aberto e não participam de atividades como
receber os pacientes, ouvir as condições sociais e pers­
pectivas dos usuários, eles apenas executam seu trabalho,
dando a medicação correta, de acordo com o objetivo da
condição descrita no DSM. No entanto, nenhum trabalha­
dor da instituição questiona o desempenho desses profis­
sionais; ao contrário, eles normalmente reclamam sobre a
falta de médicos na equipe. Por outro lado, os psiquiatras
defendem esse desempenho, alegando que eles estão tra­
balhando de uma maneira otimizada. Orientando-se pu­
ramente pela técnica, eles conseguem lidar com a imensa
demanda.
Os usuários normalmente chegam ao NAPS de modos
diferentes. Eles podem ir espontaneamente, levados pela

75
família, removidos de policlínicas ou hospitais emergen­
ciais, ou até mesmo serem levados por policiais ou ambu­
lâncias em serviço. Nas operações diárias da instituição,
uma equipe de profissionais técnicos é responsável pela
recepção e primeira assistência dos novos pacientes, o
antigo diagnóstico. Atualmente isso é feito por um técni­
co responsável, que solicita algumas informações: nome,
endereço, contato com outras instituições, internações
psiquiátricas prévias, religião, condições de moradia, cír­
culo social e educacional, pessoas com quem mora, entre
outras. Praticamente não há mais espaço para uma inves­
tigação detalhada sobre os sintomas. Isso é muito coerente
com a desconstrução do projeto de identidades psicopato­
lógicas. Na prática, isso significa que o paciente em sofri­
mento não é realmente escutado. O objetivo é ser funcio­
nal e eficiente nas habilidades sociais. Integrado à família,
trabalhando e politicamente engajado, essa é a imagem
requisitada à inscrição social. Esse é um bom exemplo do
que Lacan chama de o discurso do mestre: " Trabalhe! Seja
funcional! O desejo vem depois''.
Com base nas habilidades sociais, a pessoa responsável
por receber o usuário decide se ele deve ser inserido em
algum serviço. Geralmente o paciente é aceito quando o
médico prescreve medicação. Todas as práticas clínicas no
NAPS começam a ser organizadas em torno da medica­
ção. Esse fato é coerente com a presença da medicação "se
necessário" na coordenação do dia a dia do serviço. A ava­
liação psiquiátrica é solicitada para suprimir os sintomas
não ouvidos: alucinações, delírios, agitação, ansiedade e
ideias suicidas.
O paciente inscrito que faz uso constante de medicamento
é mediado pelo técnico responsável pelo caso. Essa pessoa
estabelece um contrato terapêutico com o usuário. Nesse
contrato é incluído o acesso ao medicamento, geralmen­
te com poder de barganha, com outras atividades que o
usuário deve fazer ao aceitar o contrato. O usuário pode

76
tomar a medicação diariamente no NAPS (medicação as­
sistida) ou pode levá-la para casa por alguns dias (medi­
cação dispensada). Os auxiliares de enfermagem ficam na
farmácia ou no posto distribuindo a medicação. Muitas
vezes, quando um técnico não consegue localizar um pa­
ciente, ele deixa uma observação em sua prescrição médi­
ca. Muitas vezes, usuários entram no NAPS quebrando as
coisas e pedindo medicação extra. No fim, o uso e controle
da medicação se tornam um novo instrumento poderoso
de regulamentação: "se necessário" significa "sempre ne­
cessário': .. Por que não?
Com esse pequeno corte no cotidiano do NAPS, quere­
mos exemplificar uma questão importante para a reforma
psiquiátrica no Brasil, bem como apontar alguns questio­
namentos a serem compartilhados com outras situações
de mudança na saúde mental. A abordagem clínica pare­
ce não ser inerentemente oposta ao engajamento politi­
co-social: nós vemos no NAPS como eles podem ter uma
combinação ruim. Por outro lado, abordagem clínica não
necessariamente significa um procedimento técnico, anô­
nimo e ético. Nos últimos anos, a intensidade do modelo
de saúde mental tem mudado, e a pressão para se criar,
em serviços substitutivos não foi acompanhada por pes­
quisa clínica. A pesquisa clínica não foi acompanhada
pelas implicações éticas e políticas ao se lidar com o so­
frimento mental. No lugar dessa falha dupla, nós temos
um crescente poder da relação em torno da medicação, o
que preserva muitos aspectos da psiquiatria tradicional. O
resultado desse paradoxo é uma prática baseada em doses
massivas de medicação para se obter a inserção de pacien­
tes na adaptação social. Será necessário?

77
Reforma
Psiquiátrica:
a clínica das
p sic o s e s 1
Os serviços substitutivos de
saúde mental surgem na década
de 80, num contexto de crítica e
prevalência da internação asilar
e da privatização da assistência
na forma de hospitais e clínicas
ditos ''conveniados".
maioria dos serviços substitutivos brasileiros foi ins­
A pirada na experiência italiana de desinstitucionali­
zação em Psiquiatria.
A experiência basagliana revela a impossibilidade, histori­
camente construída, de trato com a diferença e os diferen­
tes. No campo das igualdades, o louco ganha identidades
redutoras da complexidade de suas existências. Amarante
(1995) considera que o mérito da Psiquiatria Democrá­
tica Italiana foi possibilitar a denúncia civil das práticas
simbólicas e concretas de violência institucional e não
restringir tais denúncias a um problema dos técnicos de
saúde mental.
Basaglia ( 1 985) considera que o psiquiatra social, o assis­
tente social, o psicólogo da indústria e o sociólogo da em­
presa são os novos administradores da violência no poder,
pois atenuam os atritos, dobram resistências, resolvem
conflitos. Com sua ação técnica, limitam-se a consentir
que se perpetue a violência global. Para Basaglia ( 1985, p.
102), o único ato possível para o psiquiatra será "evitar so­
luções fictícias através da tomada de consciência da situ­
ação global na qual vivemos, ao mesmo tempo excluídos
e excludentes''.
Com tal inspiração, o termo "reforma psiquiátrica", no
Brasil, adota uma significativa mudança de direção: a
crítica ao asilo deixa de pleitear seu aperfeiçoamento ou
humanização, passando a questionar os objetivos da Psi-
quiatria, na condenação de seus efeitos de normalização
e controle. A Reforma Brasileira passa a ter como meta a
cidadania do louco.
Amarante, ao coordenar uma pesquisa da Escola Nacional
de Saúde Pública, define reforma psiquiátrica como:
um processo histórico de formulação crítica e prática
que tem como objetivos e estratégias o questionamento
e a elaboração de propostas de transformação do mo­
delo clássico e do paradigma da psiquiatria. No Brasil,
a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais
concreta e principalmente a partir da conjuntura da
redemocratização, em fins da década de 1 970, fanda­
do não apenas numa crítica conjuntural ao subsistema
nacional de saúde mental, mas também e principal­
mente, na crítica estrutural ao saber e às instituições
psiquiátricas clássicas, no bojo de toda movimentação
político-social que caracteriza esta mesma conjuntura
de redemocratização (Amarante, 1 995, p. 91).
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) surgem como
resposta às aspirações da Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Tal serviço possui cinco características fundamentais no
que diz respeito a sua "prática terapêuticâ': garantia de
direito a asilo (o que não significa isolamento ou exclu­
são); agilidade de respostas às situações de crise; inserção
no território; inversão no investimento (significando dar
ênfase à reprodução social dos usuários, ou seja, sem uma
preocupação com estruturas clínicas ou quadros psicopa­
tológicos) e, por fim, processo de valorização, entendido
como a participação das instituições no processo de inter­
câmbio social (NICÁCIO, 1994).
Tais características dos CAPS são aplicações institucionais
do modelo basagliano. São princípios que regem o fun­
cionamento cotidiano dos serviços abertos de saúde men­
tal. Ao abordarmos esses aspectos, estamos adentrando o
campo das políticas públicas de saúde mental preconiza­
das pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica.

82
Partimos do pressuposto de que para garantirmos o avan -
ço da Reforma Psiquiátrica Brasileira, para além da criação
de novos serviços, precisamos de profissionais imbuídos de
um arcabouço teórico profundamente distinto do modelo
anterior (manicomial). Consideramos que as novas moda­
lidades de atenção em saúde mental não devam ser resu-
midas a novas técnicas de tratamento, mas constituir outra
política, que atente para a ética da inclusão.
Furtado e Campos (2005, p. 113) colocam uma questão
crucial para a reforma psiquiátrica: "como instaurar uma
nova postura, uma nova ética de cuidados, uma nova for­
ma de lidar com o doente mental entre os milhares de tra­
balhadores de saúde mental do país?''.
Ressaltamos que, nos serviços abertos de saúde mental,
temos um significativo número de trabalhadores que não
vivenciaram o modelo manicomial. Acreditamos que tal
vivência, ou a transmissão crítica de tal experiência, seria
importante para o entendimento dos avanços representa­
dos pelos serviços substitutivos. Além disso, cumpre frisar
que as instituições de formação assimilaram muito pouco
das discussões trazidas pela reforma, seja em seus currí­
culos, seja em atividades extensionistas. Elas vêm ofere­
cendo tímidas contribuições, em termos de avaliação e
propostas, para seu desenvolvimento.
Nas características descritas anteriormente, consideradas
essenciais para o funcionamento dos serviços substitutivos
de saúde mental, percebemos uma ausência da dimensão
clínica. A "inversão do investimento" propõe que a Psi­
quiatria não enfatize a patologia, e contemple a existência
complexa dos pacientes e sua inserção no corpo social.
Um dos maiores riscos da reforma psiquiátrica em cur­
so no Brasil é o fato de privilegiar a adaptação do doente
ao meio - ainda que isso venha a custar o próprio apaga­
mento do sujeito. Nos moldes propostos pela Psiquiatria
Democrática Italiana, a inclusão social do paciente seria

83
obtida por meio da negação da lógica manicomial (trans­
formação institucional), de uma política compensatória
de concessão de benefícios, da participação em movimen­
tos sociais e do retorno ao universo de trabalho. Vigano
(2005), em artigo intitulado Basaglia com Lacan, nos lem­
bra que:
A quem puder extrair da experiência basagliana um
ensinamento, proponho fixá-lo num aforismo que
parafraseia aquilo com o que Lacan ligou a obra de
Freud com a de Saussure: se Basaglia tivesse lido La­
can, haveria dito que o fechamento dos manicômios
é uma troca de discurso e que o discurso do analista
pode motivar 'a posteriori" essa passagem. (p. 1 6).
Vigano (2005) aponta, ainda, que a falta de uma operação
denominada "torção interna da linguagem': que permita o
ato de falar da loucura sem acercar o louco, leva Basaglia
a confiar exclusivamente na prática. Essa é a operação que
Lacan faz a partir do inconsciente freudiano no discurso
do analista. Esse discurso tem como característica funda-
mental ser o único que considera o outro como sujeito.
Justificamos a afirmação anterior com o deslocamento
do sujeito da experiência da loucura, realizado pela Psi­
quiatria Democrática Italiana, para a posição de usuário
dos serviços de saúde mental. Dessa forma, a demanda de
cura dos sujeitos é revertida para a demanda de inclusão.
Sua patologia é definida pela exclusão social concreta. A
localização de sua demanda não emerge do sofrimento
psíquico individualizado, mas do sofrimento atinente à
posição de classe. Como tal, sua demanda se objetiva em
posições no universo do consumo e do trabalho, de onde
a expressão "usuário" afinal deriva.
O sujeito em Psicanálise integra o corpus teórico da Psica­
nálise, constituindo-se em categoria essencial dessa teoria.
O termo sujeito foi introduzido por Lacan na Psicanálise,
e permite que operemos com a hipótese do inconsciente,
sem aniquilar sua dimensão essencial de não sabido. Fink

84
(1998) nos lembra que a ciência lida com o sujeito, mas
apenas com o sujeito cartesiano, consciente, senhor de
seus próprios pensamentos, que são correlativos ao ser. As
ciências certamente ignoram o sujeito dividido por afir­
mações como "Eu sou onde não penso" e "Eu penso onde
não sou':
Em Psicanálise, operamos sobre um sujeito que é o mesmo
da ciência que não opera sobre ele. A subversão própria
à Psicanálise, em relação ao sujeito colocado pela ciência
moderna, é o fato de ter criado condições para operar com
esse sujeito.
O sujeito do cogito é o sujeito do pensamento. É só por­
que ele pensa que se assegura de si. Ele é um sujeito do
pensamento e, ao mesmo tempo, um sujeito da certeza.
Soller (1997) nos lembra que o sujeito do pensamento, ou
sujeito da certeza, não é o sujeito da verdade. A certeza
é completamente independente da verdade. O cogito sus­
pende qualquer consideração da verdade. A partir dessas
considerações acerca do cogito, observamos que o sujeito
que procura um serviço de saúde mental é muito diferente
do sujeito do cogito. O sujeito que procura um serviço de
saúde mental é alguém que sofre. Com Soller, podemos
afirmar que o cogito desse sujeito poderia ser: "sofro, logo
sou". Portanto, quem busca acolhimento em serviço de
saúde mental não é o sujeito da verdade, mas o sujeito do
afeto.
Operar com a noção de sujeito é fundamental para o tra­
balho analítico, pois, dessa forma, abre-se espaço para as
manifestações do inconsciente (atos falhas, sintomas, lap­
sos, chistes). Assim, nos aproximamos da dimensão fun­
damental do não sabido, da excentricidade do sujeito de
si para si mesmo. Com a extração de S 1 (um significante
mestre) de um saber em posição de verdade, uma verdade
não toda, uma proposição subjetiva em relação ao gozo, o
discurso do analista, ao tomar o outro como sujeito falan­
te, leva o sujeito à bem-dizer o próprio sintoma e a atra-

85
vessar sua fantasia. Como sabemos, Lacan (1969-70/1992)
elabora a teoria dos quatro discursos a partir do discurso
do mestre, cuja matriz é a relação necessária entre S 1 e S2 •
A essa matriz Lacan chama estrutura. Esse autor, ao ex­
trair da experiência psicanalítica o discurso do analista,
coloca em evidência e recupera o fracasso, que no discur­
so do mestre aparece como resto, perda de gozo.
Nesse ponto, cabe uma diferenciação entre clínica e saúde
mental. A clínica diz respeito ao caso tomado em sua sin­
gularidade, enquanto a saúde mental preocupa-se com as
ações políticas e eticamente orientadas para as peculiarida­
des de certo grupo (FURTADO; CAMPOS, 2005). Pode­
mos afirmar que a prática clínica está em conexão com o
discurso do analista. Nossa posição é a de que clínica e saú­
de mental sejam indissociáveis na prática dos trabalhadores
de saúde mental. Considerar sujeito do direito e sujeito do
inconsciente é nosso desafio. Aliás, Lacan ( 1969-70/ 1992)
insiste no caráter essencialmente social desse discurso que
tem por objeto o analista em sua prática, que toma na posi­
ção de "dominante': de agente, o "mais-gozar': e na posição
de produção, o significante mestre.
Em sua obra, Quinet (2006) nos apresenta o discurso como
laço social que compõe o campo do gozo. O autor defende a
ideia de que não existe tratamento efetuado fora do campo
do discurso e que, dessa forma, todo tratamento se insere
num laço social. A relação médico-paciente se estabelece a
partir dessas modalidades de laço social. Lembramos que
Basaglia não interrogou a experiência subjetiva da estrutura
psicótica. A partir desse aspecto, a sua crítica histórica acer­
ca do tecnicismo psicológico ocupará um nível puramente
estratégico. Criticamos o laço social produzido pelo saber
da Psiquiatria Democrática Italiana, demonstrando que o
discurso do mestre é hegemônico nos serviços de saúde
mental de inspiração basagliana, pois os técnicos prescre­
vem as condutas que os usuários devem seguir para alcan­
çar a almejada "inclusão social':

86
Lacan aponta que todo laço social se sustenta nos quatro
discursos. Consideramos esse legado lacaniano funda­
mental para todo aquele que deseja intervir na institui­
ção como psicanalista. Tais discursos apresentam quatro
posições que definem quatro discursos radicais. Segundo
Fink (1998), cada discurso específico facilita ou dificulta
determinadas questões, ou permite, ou impede que elas
sejam vistas. Lacan (1969-70/ 1992) nos lembra que a ma­
nipulação do significante está nos dados da Psicanálise. O
inconsciente permite situar o desejo. Esse desejo pode ser
decifrado quando consideramos a repetição. Há busca de
gozo na repetição; logo, esta se inscreve na dialética do
gozo. A partir dessa constatação, Freud elabora o instinto
de morte. Diz Lacan (1969-70/1992, p. 46):
Quando o significante se introduz como aparelho de
gozo, não temos que ficar surpresos ao ver aparecer
uma coisa que tem relação com a entropia1, posto que
se definiu precisamente a entropia quando começou­
-se a sobrepor esse aparelho de significantes à sonda
física.
O significante pode trazer a marca da fantasia na qual o
sujeito se identifica como objeto de gozo. Gozo do Outro.
Essa é uma das vias de entrada do Outro no mundo do ser
falante.
Quinet (2006) nos sugere algo que não podemos negligen­
ciar ao pensarmos na postura ética de cuidados aos porta­
dores de sofrimento mental: reconsiderar a proposta, feita
por Freud, de interconexão entre a Psiquiatria e a Psicaná­
lise. Tal proposta diverge da postura atual da Psiquiatria,
que a reduz a um modelo médico expresso no Diagnostic
and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) e na
Classificação Internacional de Doenças (CID). Conside­
ramos que a proposta atual da Psiquiatria está ancorada
na circulação do discurso do mestre, que tem, no lugar
da verdade, o sujeito despótico (o psiquiatra); no lugar
de agente, o significante mestre (diagnóstico); na posi-

87
ção do outro, o saber que está adstrito, como produto, o
mais-gozar (condição de portador do diagnóstico). Tam­
bém existe a possibilidade de o modelo médico circular
na modalidade do discurso universitário, no qual o saber
S2 (diagnóstico) ocupa o lugar da ordem e do comando e
reduz o outro à condição do objeto moldado à semelhança
do saber que o produziu.
Restituir a função diagnóstica em Psicanálise, no trata­
mento psiquiátrico, é função ética que a Psicanálise propõe
à Psiquiatria, assim como propõe ir contra a dissolução
da clínica, substituída pelo binômio norma versus trans­
torno, para privilegiar o sintoma como manifestação do
sujeito. Consideramos que esse fato seja uma forma de sair
do discurso do capitalista, que condiciona desde o diag­
nóstico até o tratamento, para restituir à medicação seu
justo valor paliativo e não resolutivo do sofrimento men­
tal. Frisamos que a Psicanálise não se opõe à Psiquiatria,
mas sim a todo discurso que suprime a função do sujeito.
Porém, ao aceitarmos o desafio freudiano, estamos abrin­
do uma via para a construção do caso clínico a partir de
um saber sobre a subjetividade de cada paciente. Assim,
surge um diagnóstico como conclusão de um processo in­
vestigatório: não atacar o sintoma, mas abordá-lo como
manifestação subjetiva significa acolhê-lo para que possa
ser desdobrado. Daí surge um sujeito, seja na melancolia,
no delírio paranoico ou no despedaçamento do esquizo­
frênico.
Consideramos que a construção do caso clínico é relevan­
te, pois, com a reforma psiquiátrica, temos a passagem da
consideração da loucura como doença para a da loucura
como saúde mental. A construção do caso clínico é fun-
damental para que tal passagem não traga a marca de uma
nova cronicidade. Vigano (1999) propõe a construção do
caso clínico como forma de evitar a cronificação no inte­
rior dos serviços abertos de saúde mental.

88
Ao falarmos de construção de caso clínico e processo in-
vestigatório, não podemos deixar de mencionar a fecundi­
dade do discurso da histérica, essencial ao trabalho clíni­
co. A histeria é um fator que emperra as pesquisas clínicas,
pois se, de um lado, aceita ser descrita pelos mestres da
ciência, acaba desafiando seu saber ao se recusar ser clas­
sificada. De que jeito? Inventando novas formas e não res­
pondendo aos tratamentos. Ela, no entanto, faz, com seus
desafios, avançar o método clínico, que, por vezes, tenta
enquadrá-la e medicá-la para subjugar as manifestações
do sujeito do desejo. Com suas paixões e seu desejo, o dis­
curso da histérica interroga os significantes mestres para
produzir saber, inclusive os significantes mestres da Psica­
nálise, em um permanente movimento de reinvenção. No
caso da psiquiatria, a aproximação com o discurso da his­
térica significa que o avanço da ciência deve ser motivado
pelo sujeito patológico, sofredor, sujeito dividido, sujeito
da esquize, que se manifesta na clínica.
Um aspecto que nos interessa nesta discussão é a neces­
sidade de um giro discursivo que possibilite aos técnicos
ocupar o lugar de objeto-causa de desejo em transferência.
Estamos falando do discurso do analista, imprescindível
para o trabalho de construção do caso clínico. Para tanto,
é necessário que o técnico mantenha um relativo distan­
ciamento das prescrições institucionais, por intermédio
de uma postura crítica do saber institucional. Tal crítica
permite enunciar ou, no mínimo, não obliterar os antago­
nismos institucionais. A Psicanálise Lacaniana nos ensina
que, quando se indaga de que saber faz a lei, o saber cai
na categoria de sintoma e, com ele, vem a verdade. Esse
questionamento tem importância política para o trabalho
dos psicanalistas nas instituições.
Nesse sentido, ressaltamos que uma nova ética do cuidar,
a ser implementada nos serviços substitutivos, deve apre­
ciar o funcionamento da estrutura psicótica e, principal­
mente, as formas de discurso que considerem o sujeito e
levem o profissional a questionar a condução do caso clí­
nico. Assim, o cuidado nos serviços deve ser pautado pela
atenção na construção do laço social do psicótico, na me­
dida em que ele se encontra tanto no campo da linguagem
quanto no campo do gozo.
Propomos uma psicopatologia que permita a significação
psicanalítica de quadros psiquiátricos como elemento da
atenção psicossocial. Tenório e Rocha consideram que tal
premissa permite que os serviços substitutivos avancem
para além das soluções no campo da realidade, como, por
exemplo, a busca de adequação do paciente na convivên­
cia social. Para pensarmos a lógica própria da psicose,
que, na maioria das vezes, não está em consonância com
as soluções no campo da realidade, temos que considerar
o sujeito fixado em sua psicose. Sobre esse aspecto, Tenó­
rio e Rocha fazem importante ponderação: "Não é que ele
não tenha um pé na realidade, mas não é aí que ele encon­
tra seu lugar de sujeito" (T ENÓRIO; ROCHA, 2006, p. 59-
60). Tal ponderação deve ser considerada para evitarmos
que a equipe atue em um registro, enquanto o paciente
atua em outro, com sua forma singular de se vincular ao
significante.
Outra questão que deve ser analisada é o funcionamen­
to da equipe. Para abordamos essa questão, precisamos
fazer uma breve digressão acerca da utilização da noso­
grafia psiquiátrica nos cotidiano dos serviços. A ocupação
de um plano secundário da Psicopatologia faz com que,
nos serviços substitutivos, não tenhamos clareza acerca
de qual nosografia operar. Alguns profissionais utilizam,
de forma pouco elaborada, a nomenclatura de Kraepelin
(PMD, esquizofrenia e paranoia) e oscilam entre a psico­
patologia psicanalítica e a nosografia médica pulverizada
da CID- 10, utilizada pela psiquiatria contemporânea.
Com relação à CID- 10, cumpre assinalarmos que tal clas­
sificação alçou a esquizofrenia à categoria paradigmática
da psiquiatria. Tenório e Rocha (2006) apontam que ela se

90
tornou o modelo para as psicoses, e junto com ela, ganha­
ram relevância as noções de surto, crise e estabilização.
Com essa centralização na esquizofrenia, ignorou-se a no­
ção de estrutura e continuidade. Passamos a diagnosticar
a psicose como a perda de nexos (afetivos, cognitivos, vo­
litivos) e a tomar como parâmetro do tratamento a supres­
são dos sintomas "produtivos" (alucinações e delírios).
Retomamos o funcionamento da equipe: conforme assi­
nalam Tenório e Rocha (2006, p.63), temos, assim, "uma
cisão entre tratar e cuidar': O psiquiatra, por intermédio
do uso de fármacos, trata, pois reduz o surto. Os demais
profissionais cuidam da reabilitação psicossocial. Ou en­
tão temos a versão de que tratar é sinônimo de cuidar da
reabilitação psicossocial. Nela, fica patente o desdém pela
psicopatologia e pela psiquiatria.
Não se trata de ignorar a crise, mas de relativizar o lugar
que tem ocupado. Além de se constituir em um tempo
de quebra, se isolarmos os elementos em antecipação ao
surto, perceberemos uma concatenação entre eles e não,
unicamente, uma ruptura. Como clínicos, podemos per­
ceber a crise como um momento de desamarração, o que
nos possibilita investigar como era efetuada a amarração
até então.
Ao nos afastarmos do aspecto deficitário da esquizofrenia,
podemos resgatar a dimensão estrutural da psicose. Isso
nos possibilita pensar numa clínica para a saúde mental
e para a reforma psiquiátrica que possa superar tanto a
redução da clínica ao biológico-farmacológico quanto a
redução do sujeito ao bom funcionamento psicossocial.
Quinet (2006) afirma que o fora-do-discurso da psico­
se aponta para uma impossibilidade estrutural e lógica
de fazer o psicótico entrar completamente nos jogos dos
discursos, ou seja, circular pelos laços sociais e participar,
alternadamente, de um ou de outro discurso. Há também,
na psicose, um avesso dos discursos como um todo, re-

91
presentado pelo avesso ao laço social estabelecido. O psi­
cótico é o fora e o mestre dos discursos. Sua posição nos
remete ao fato de que nós estamos amarrados aos discur­
sos. Assim, ele é livre dos discursos estabelecidos e de seus
avessos. A posição de Quinet é congruente com a nossa,
pois consideramos que o psicótico possui uma rede de sig­
nificantes composta por uma lógica circulatória peculiar;
por não ser falocêntrico, o mundo do psicótico, muitas
vezes, espera por intervenções externas que decidam sua
configuração; daí o risco da oferta de discursos ideológi­
cos por instituições que acolham esses sujeitos.
Consideramos pertinente conjecturarmos acerca de como
o psicótico responde diante do discurso do mestre. Calli­
garis (1989), num capítulo com o sugestivo título de A
transferência psicótica, afirma que, quando o psicótico não
encontra um mínimo de escuta que possibilite a constitui­
ção de uma metáfora delirante, ou quando encontra re­
cusa de seu trabalho de elaboração, seu trabalho psíquico
torna-se empobrecido.
Ainda, segundo Calligaris, corremos o risco de buscar a
conformidade do psicótico com os ideais fálicos elemen-
tares. Nas palavras do autor: "Isso acontece quando o tera­
peuta explicita a sua paixão normalizante até o ponto que
a conformidade com ela apareça ao sujeito como o preço
necessário para negociar uma filiação ao terapeuta do qual
espera uma significação''. (Calligaris, 1989, p. 70).
Temos aqui o despotismo do mestre, com seu saber ex­
plícito acerca da conformidade. Frente a essa tirania, o
psicótico fica "coisificado" pelo significante mestre (SJ
Qualquer S 1 previamente ofertado pelo técnico como sa­
ber sobre o sujeito produz o efeito de "fechamento" da
cadeia significante, com a fixação de certos significantes
em detrimento de outros. O discurso do mestre oblitera
a transferência do saber inconsciente. Inferimos, ainda, a
possibilidade de o psicótico se colocar na posição de gozo
de um Outro, representado pelo S 1 emitido pelo mestre.

92
Quinet (1997) explica a certeza e o sacrifício do psicótico
pelo S 1 lembrando a foraclusão do Nome-do-Pai e o re­
torno de um gozo da Coisa no real, na estrutura psicótica.
O psicótico, ao contrário do neurótico, não se encontra
dividido. Ele tem certeza do significante oferecido pelo
mestre. É importante salientar que a noção de foraclusão
não corresponde à abolição do simbólico, não equivale a
deficit, mas implica sempre o retorno do real daquilo que
foi foracluído no simbólico. Dessa forma, o retorno do fo­
racluído constitui um Outro original do psicótico, desde
que seja o retorno daquilo que é a outra cena, o incons­
ciente, caso haja a possibilidade de uma escuta analítica
no acolhimento do psicótico.
Pensamos o trabalho com o psicótico na direção daquilo
que não se efetuou para ele e que ele mesmo se esforça
para realizar. Por isso, não enfatizamos a eliminação dos
sintomas, o que não significa que recusamos o acesso à
medicação para apaziguar o gozo destrutivo, mortífero.
O tratamento será pautado no estímulo à "historiciza­
ção" dos fenômenos ao considerarmos que são repletos de
sentido, conforme preconiza uma clínica que considere o
sujeito. Outro passo que, assim como o anterior, conside­
ramos fundamental na construção de um novo discurso,
e consequentemente em uma nova postura de lidar com o
sofrimento dos usuários dos serviços de saúde mental, é
considerar todos os fenômenos do paciente como tenta­
tivas de estabelecimento de algum vínculo com o outro e,
portanto, como tentativas de fazer laço social.
Escuta da
Delírio:
fragmentos de
um casa clínica ª
Neste capítulo examinamos
fragmentos de sessões de uma
paciente realizadas em um
NAPS (Núcleo de Atenção
Psicossocial), abordando a
especificidade da escuta no
tratamento da psicose.
s NAPS, corno já assinalamos, são serviços substitu­
O tivos de saúde mental que, em seu funcionamento,
privilegiam o acesso à cidadania por intermédio da res­
socialização.
Estamos em um momento de transformação da assistên­
cia à saúde mental em nosso país. Recentemente foi apro­
vado no Congresso Nacional um projeto de lei que proíbe
a abertura de novos leitos psiquiátricos e a construção de
hospitais psiquiátricos no país. Dessa forma, adquire rele­
vância pensarmos a efetividade da escuta em uma clínica
que valorize a expressão e o tratamento da subjetividade
de pacientes psicóticos.
Sônia iniciou o tratamento no NAPS em dezembro de
1993. Atualmente está com 38 anos e, em sua ficha de
primeiro atendimento, constam como motivo da busca
do tratamento sintomas como insônia, risos imotivados
e agressividade. Sofreu três internações psiquiátricas na
extinta "Casa de Saúde Anchieta". Na primeira crise, em
1985, quebrou vários objetos em casa e teve alta após 30
dias de internação. Em 1 99 1 , após destruir objetos e agre­
dir familiares, a paciente foi levada ao hospital psiquiátri­
co pela polícia. Permaneceu internada por uma semana e
ficou morando na rua, pois a família, segundo consta no
prontuário, "não suportava sua agressividade".
Sônia começa a ser atendida por um psicanalista em de­
zembro de 1 998, e mantinha sua demanda de forma in-
transigente e inegociável. Sua antiga técnica de referência
solicita que ele assuma o caso alegando cansaço e esgota­
mento para lidar com a paciente. Ressalta que Sônia não
usa medicação, ou seja, leva a medicação para casa, mas
não a consome segundo a prescrição médica, utilizando
o medicamento da forma que julga melhor. A paciente se
recusa a participar de um grupo que cultivava uma horta
próxima ao serviço. Também havia uma série de queixas
da administração do terminal rodoviário do município,
dizendo que a paciente permanecia naquele local durante
dias, importunando funcionários e usuários.
Estamos relatando um caso considerado "difícil", segundo
expressão utilizada por Figueiredo e Coelho Júnior (2000).
Os "casos difíceis" são aqueles que ameaçam nossas reser­
vas, nos chamando para um aqui e agora alarmante, em
que nossa implicação nos faz correr o risco de recorrer
às regras disciplinares. Uma paciente em situação social
precária, sem residência fixa, que por vezes se torna agres­
siva, chega ao NAPS acompanhada por uma irmã. Após
ser atendida por uma técnica e medicada pela psiquiatra,
é inserida no serviço. Sua técnica de referência, sensibili­
zada com a condição social adversa da paciente, propôs
um contrato no qual Sônia passaria os dias na instituição,
onde faria as refeições e participaria das atividades na hor­
ta. Porém, Sônia, apesar das boas intenções da técnica de
referência, se recusava a participar das atividades e usar
medicação. Preferia ficar no terminal rodoviário obser­
vando a movimentação do embarque e desembarque de
passageiros, gerando uma sensação de desânimo e impo­
tência em sua técnica.
Ressaltamos que o caso em tela possui significativas nu­
ances de questões que surgem no cotidiano do serviço. A
paciente não cumpria o contrato, e sua técnica se queixava
que suas melhoras eram tímidas e que Sônia sempre rela­
tava as mesmas queixas. Como possibilitar o surgimento
de algo que escutamos e reconhecemos como novo? Para
que tal fato aconteça, é necessário que tenhamos mudado
de lugar, a partir do que escutamos dos nossos pacientes,
tentando manter distância tomando, como referência uma
conceitualização da experiência vivida e dos erros e obstá­
culos surgidos na própria experiência clínica.
Freud constrói e desenvolve sua teoria no período em
que a clínica alcança seu ápice, na esfera da psiquiatria
e neurologia. O ponto central da clínica clássica é um
olhar purificado, regulado e administrado sobre os sinto­
mas, apontando para uma ética disciplinar. A psicanálise
subverte a clínica clássica dando sentidos novos a seus
procedimentos. A escuta torna-se o principal pilar desse
novo projeto clínico. A escuta deve ser metódica, atenta
ao detalhe, à pequena incongruência, deslize ou ruptura
do discurso. Flutuante e aberta às interrupções, insistên­
cias e silêncios da fala, tal escuta trará para o centro da
cena aquilo que o olhar médico colocava na sombra. A
psicanálise é um método de escuta e não uma forma de
olhar.
Ainda na perspectiva de descentramento radical do olhar,
Dunker (1999) nos lembra que a subversão freudiana da
clínica clássica, ao abordar a semiologia, se interessará jus­
tamente pelo caráter singular e instável da ligação entre o
significante e o significado e pelo aspecto multifacetado e
temporal da produção da significação.
Com relação ao diagnóstico, a psicanálise reintroduz a ho­
mogeneidade entre o tratamento e o diagnóstico, perdida
pela clínica clássica. Lacan (1915/1987), ao discutir um
caso de paranoia de autopunição, nos lembra que: ''A na­
tureza da cura demonstra, quer nos parecer, a natureza da
doençà'. A linguagem, além de ser considerada enquanto
estrutura, também se constitui como mediação funda­
mental na dialética com o outro. É a linguagem, como
campo simbólico, que submete o sujeito, que o constran­
ge e onde ele não é mais senhor em sua própria morada.
Lacan fala de "sentido do delírio': "enigma que um delírio
colocà: buscando um discernimento da forma singular
como a analisanda lida com o que lhe parece alheio.
É importante ressaltar que o diagnóstico em psicanálise é
articulado com a terapêutica e com a concepção etiológica
que o subsidia.
A psicanálise se apresenta como uma cura pela fala na qual
a posição e o lugar ocupados pelo analista são condições
da eficácia de suas intervenções. Lacan (1915/1987), em
sua tese de doutorado, acompanha e escuta Aimée durante
um ano e meio, recolhendo sua produção escrita, e propõe
um diagnóstico de paranoia de autopunição. O quadro de
paranoia é justificado apontando para as interpretações
delirantes múltiplas e diversas, primitivas e predominan-
tes, a imbricação dos temas de grandeza e perseguição e a
extensão progressiva do delírio.
O caso em apresentação possui sintomas semelhantes. Sô­
nia se considera uma descendente dos Kennedy, tradicio­
nal família de políticos americanos, julga-se perseguida
por suas irmãs promíscuas e sente-se atraída sexualmente
por uma atriz brasileira de telenovelas. Constrói um delí­
rio com temas grandiosos acentuando sua origem nobre e
famosa, como se verá a seguir. Na relação com o saber, a
paciente sente-se totalmente presa nas malhas do Outro,
um objeto. O Outro sabe a seu respeito, e isso para ela é
coisa certa. Os Kennedy tramam sua exclusão da família
e a fazem sofrer. Isso constitui uma certeza que Sônia co­
munica ao analista. Desta forma, seu analista propõe um
diagnóstico de psicose paranoica com delírios erotoma­
níacos.
Lacan (1955-56/1988) propõe a expressão "secretários do
alienado" para assinalar a posição do analista frente ao psi­
cótico. O autor rechaça a ideia de impotência do analista,
nos aconselhando a "tomar ao pé da letrà' o que o paciente
nos conta. Em uma crítica à tentativa dos psiquiatras de
determinar os tipos de alucinação, ou seja, de utilizar a

100
fala como fundo para uma mera classificação psiquiátrica,
o autor propõe a escuta do sujeito, enfatizando que a ex­
periência delirante "se situa ao nível do fenômeno signifi­
cante - significado'' (p. 236).
Discutindo as memórias de Schreber, Lacan (1955-
56/1988) nos ensina que "o delírio das psicoses alucina­
tórias crônicas manifesta uma relação muito específica do
sujeito em relação ao conjunto do sistema da linguagem
em suas diferentes ordens. Só o doente pode testemunhar
isso, e ele o testemunha com a maior energià' (p. 237).
Escutando o psicótico, percebemos uma mudança do su­
jeito na relação com a linguagem, que o autor nomeia de
erotização ou apassivação. A maneira como o sujeito sofre
em conjunto com o fenômeno do discurso nos mostra sua
dimensão constitutiva.
Partimos do princípio de que a fala-escuta é o centro de
referência do tratamento da psicose. O analista, para per­
manecer no lugar de acolhimento e testemunha do psi­
cótico, deve renunciar a aparecer como aquele que sabe
mais sobre o outro que ele mesmo. Este lugar do analis­
ta mostra-se incompatível com um discurso que prevê a
ontologia social da psicose, apostando na cura através do
"resgate" da dignidade do usuário-cidadão, o que nos pa­
rece ingênuo e insuficiente.
A palavra "resgate" nos remete às ideias de exílio e refém.
No dicionário Sacconi (1996), encontramos uma curiosa
definição para o verbete: "salvar pagando com sacrifício
pessoal':
No caso apresentado, não há equívocos e sim certezas
por parte da técnica de referência: a usuária, seguindo os
cânones da Psiquiatria Democrática Italiana, deve traba­
lhar, usar a medicação prescrita e permanecer na unidade
até sua família ser convencida a aceitá-la novamente em
casa. Desta forma, o tratamento da psicose prescrito pelo
NAPS, ao propor um reencontro do usuário com sua ci-

10 1
dadania, intermediado pelo técnico de referência, coloca
este profissional em uma posição de salvador. Salvar um
usuário do exílio de sua cidadania, muitas vezes, exige um
sacrifício pessoal do técnico de referência, que no seio da
luta antimanicomial é visto como dedicação à causa.
Sônia se recusa a aceitar os benefícios ofertados pelo
NAPS e cumprir um contrato que, segundo a visão ins­
titucional, lhe restituiria a cidadania. A profissional, ao se
deparar com uma paciente que escapa da esfera subjetiva
de mero indivíduo, no momento em que ingressa na insti­
tuição, sente-se cansada e desestimulada.
O discurso institucional que opera aliado ao sacrifício de
cada técnico dedicado à causa antimanicomial mostra-se
insuficiente. Os profissionais do serviço, frente a essa si­
tuação, situam-se em uma esfera subjetiva de pessoa, jul­
gando a usuária, apontando sua ingratidão e maldade. É
importante notar que uma escuta do sujeito balizada pela
psicanálise não se localiza na ética disciplinar, pois não é
anônima, nem é coercitiva, pois não assujeita o paciente
ao gozo do analista.
Mas, para começar a falar, ninguém precisa estar num
divã, no consultório de um psicanalista. Podemos prati­
car a psicanálise escutando o desejo presente no discurso,
onde quer que este se faça ouvir, estando atento às conse­
quências lógicas e éticas desse ato.
E Sônia falou. Após um primeiro encontro com seu analis­
ta, foi proposto atendimento semanal, sem abordar assun­
tos relacionados à sua situação social. Na semana seguin­
te, ela comparece ao atendimento, trazendo uma revista
Veja antiga com Jacqueline Kennedy estampada na capa.
Pede que leia a matéria com atenção, ressaltando que sua
vida está ali. Pediu cuidado com o exemplar e avisou que
voltaria na semana seguinte para buscá-lo. A reportagem
foi lida com atenção; abordava o casamento de Jacqueline
Kennedy com o milionário Aristóteles Onassis e trazia fa-

102
tos de vários integrantes da família americana. O que um
casamento de personalidades notáveis teria a ver com a
história dessa paciente?
Privilegiando a escuta, o analista parte do princípio de que
o paciente tem razão sobre o que o faz sofrer, buscando as­
sim, não mais relações causais, mas de significação e sen-
tido na história construída do sujeito. Assim, a psicanálise
não se interessa pelo sujeito da verdade, mas pela verdade
do sujeito, indagando o sujeito do desejo.
Na sessão seguinte, Sônia indaga se o analista leu a revista.
Ao ser informada que sim, a paciente entrega-lhe um escri­
to com uma árvore genealógica. Explica que é uma descen­
dente da família Kennedy. É filha de Jacqueline Kennedy
com seu pai biológico (um migrante nordestino). Insere seu
nome entre os filhos de Jacqueline e comunica que existe
uma trama para mantê-la em Santos. Não explicita os mo­
tivos de sua exclusão, mas acusa as "irmãs" de serem vaga­
bundas e promíscuas. Sua fala é marcada pela mágoa e vem
repleta de palavras de baixo calão. A intervenção do analista
nesse atendimento se resumiu a indagar por que justamente
ela havia permanecido em Santos.
Nas sessões posteriores, foram incluídos outros persona­
gens em sua árvore genealógica, como, por exemplo, uma
princesa espanhola. Também surgiu uma súbita paixão por
uma atriz de televisão, que nos exigiu algumas intervenções
mais diretivas. Essa atriz é loira, branca e promíscua como
suas irmãs da família Kennedy. Sônia se diz apaixonada e
revela o desejo de praticar sexo anal com ela. Começa a fre­
quentar cinemas que exibem filmes pornográficos no cen­
tro da cidade, escolhendo filmes que tenham essa temática.
Gasta todo seu dinheiro comprando revistas, posters e pu­
blicações relativas às novelas de que a atriz participou.
Existe uma intensa fantasia relacionada com a prática de
sexo anal. Sônia faz comparações entre o ânus das atrizes
dos filmes assistidos com o da atriz desejada, ressaltando

103
sua aparência após o ato sexual. Dessa forma, constrói uma
oposição entre loiras e morenas, associando o significante
"loirà' a promiscuidade, e o significante "morenà' à virtu­
de. As promíscuas fazem sexo anal e ficam "arrombadas" e
"arregaçadas': Sônia é consumida, tragada pelas ideias de
depravação e prostituição. Deseja intensamente mulheres
loiras que considera nessa situação. Por esse viés, associa o
nome da atriz com a família Kennedy.
Durante as sessões, Sônia enfatiza que não se considera
"vagabundà' como as irmãs. É morena, filha de migrante
e rejeitada pela família. A intervenção do analista se dá
no sentido de limitar o gozo da paciente, a partir do mo­
vimento do delírio. A partir da fala de Sônia a respeito da
precariedade de sua condição social, pois é discriminada
pelos Kennedy, o analista marca a contradição da paciente
frequentar cinemas pornográficos, comprar revistas com a
atriz, gastando seu escasso dinheiro.
Ocupamos inicialmente o lugar de testemunha que reco­
nhece e legitima um drama que o paciente tem necessi­
dade de partilhar com alguém, que possa escutá-lo. Onde
seu desejo clama por encontrar uma palavra.
Insistimos que a verdade do sujeito não é da ordem da
objetividade, mas da intersubjetividade e da transubjeti­
vidade, o que pressupõe uma relação, uma identificação
com outros semelhantes e significativos para o sujeito em
questão.
Sônia continua comparecendo regularmente nos atendi­
mentos por mais de dois anos. Traz papéis com escritos
sobre suas origens, nos quais frequentemente inclui prin­
cesas e rainhas. Inicia uma busca por trabalho. Arranjou
um aliado para seu confronto com as irmãs. Bob Kenne­
dy, tio de Sônia, virá a Santos buscá-la. Ele conhece toda
a história e providenciará sua inclusão na família. Sônia
produz um sentido para os longos períodos que permane­
ce no terminal rodoviário.

104
Figueiredo ( 1994) nos diz sobre a produção de sentidos:
Há, portanto, dois momentos em cada aconteci­
mento: um de quebra de sentido - com a conver­
são do homem em signo vazio de sentido, como na
expressão de Hõlderlin tão trabalhada por Heide­
gger - e a reemergência de sentido que, em segui­
da - com intervalos mais ou menos longos -, (re)
constitui passado e descortina um novo futuro; é a
temporalidade do acontecimento que faz, verdadei­
ramente, história, é dela que provém a luz retros­
pectiva e prospectiva que realiza passado, presente
e futuro; nesta medida, cada acontecimento é em si
mesmo um só depois de outros acontecimentos que,
por ele, são ressignificados; pela mesma razão, cada
acontecimento servirá de apoio para acontecimen­
tos futuros que lhe 'descobrirão' sentidos (p. 1 55).
Esta citação nos auxilia a refletir a respeito da trajetória de
Sônia. Após construir uma significação de suas origens e
montar uma explicação de sua permanência na rodoviá­
ria, Sônia consegue um trabalho como doméstica em uma
residência na orla da praia. A construção da chegada de
Bob Kennedy preencheu um vazio de sentido, tranquili­
zando a paciente. Esse significado construído a posteriori,
esta descoberta de um novo sentido, permitiu a saída da
paciente da rodoviária, abrindo possibilidades para a con-
quista do trabalho. Neste percurso, os atendimentos servi­
ram de apoio na construção de uma precária "ancoragem''
que lhe possibilitasse a construção de algumas respostas
sobre sua vivência.
Sônia começa a trabalhar e solicita que nossos atendimen-
tos aconteçam quinzenalmente. Consegue desempenhar
suas tarefas com competência, e a dona da casa onde Sônia
trabalha, está informada de que ela utiliza uma unidade
de saúde quinzenalmente para apanhar medicamentos.
No começo dos atendimentos com o analista, além de
medicação injetável, a paciente consumia medicação neu-

105
roléptica. No decorrer dos atendimentos, Sônia começa a
utilizar cada vez menos medicação. Sua medicação tende
ao mínimo, e Sônia exerce suas atividades de trabalho sa-
tisfatoriamente. Sônia diz que agora só fala esses assuntos
com seu analista.
Nesse movimento, notamos que Sônia coloca tanto Bob
Kennedy quanto o analista na posição de aliados, como
supostos protetores que entendem o que se passa com ela.
Durante o tratamento, o analista acompanhou o sujeito na
construção de um procedimento de suplência da metáfo­
ra paterna, possibilitando que se produzisse laço social.
Acolhendo o delírio de Sônia, em uma posição de teste­
munha, intervindo no foco de gozo da paciente a partir
da movimentação do delírio, exercemos uma função pa­
terna ocupando um lugar de pai imaginário. A metáfora
paterna, instaura uma lei simbólica que regula a economia
subjetiva. Lacan (1955-56/1988) nos lembra que
[ ... ] porém curiosamente, no delírio, é função real
do pai na geração que vemos surgir sob uma forma
imaginária, se ao menos admitimos a identificação
que fazem os analistas entre os homenzinhos e os
espermatozóides. Há aí um movimento girando en­
tre as três funções que definem a problemática da
função paterna (p. 243).
Sônia continua trazendo escritos sobre a família Kennedy.
Porém, a intensidade e o interesse pelo assunto vêm de­
crescendo. As vezes, acha graça de sua curiosidade sobre
tal assunto e diz que só fala essas coisas quando não está
bem.
O analista, ao se afastar do discurso prescrito pela insti­
tuição nos atendimentos com Sônia e oferecer um espaço
de escuta e tratamento da subjetividade, abriu a possibi­
lidade para o surgimento da fala acontecimental. Sônia
permanece na rodoviária e incomoda a administração do
terminal. O NAPS é comunicado do caso e recebe a pa­
ciente, que não se interessa pelas propostas de tratamento

106
oferecidas na instituição. Ao ter sua fala acolhida por um
analista, a paciente produz uma explicação sobre suas ori­
gens, descobre aliados, nomeando o enigma de seu dese­
jo de permanecer na rodoviária. Esta fala surgiu quando
abrimos o lugar para o imprevisto, para a possibilidade de
uma relação intersubjetiva. Figueiredo (1994) nos ensina
que: "Esta é a fala que acontece ao falante e o coloca à es­
cuta, a que nomeia o enigma e o coloca a justa distância, à
distância justa, para ver algo" (p. 165).
Consideramos a presença de Sônia na rodoviária um acon­
tecimento inacabado. É interessante notar que, ao atri­
buir sentido para suas longas permanências na rodoviária
(aguardar a chegada do tio Bob Kennedy que iria buscá-la),
Sônia não fica mais horas no terminal rodoviário. Já que
foi construído um saber sobre sua presença na rodoviária,
não foi mais necessária sua permanência naquele local. A
relação da paciente com o NAPS também muda. Sônia vem
ao NAPS com mais frequência, sempre solicitando atendi­
mento, e torna-se assídua nas consultas psiquiátricas.
Consideramos a permanência de Sônia no terminal rodo­
viário um acontecimento inconcluso, pois não se consuma,
não transita, e sua temporalidade intrínseca está compro­
metida. É um acontecimento que se caracteriza por não
acabar de acontecer, não constituir história, eternizando
e bloqueando a possibilidade de novos acontecimentos.
Sônia queria ficar na rodoviária, não queria permanecer
no NAPS, tomar medicação ou trabalhar em uma horta.
Estava sem um solo de ancoragem para assentar sua exis­
tência. Sua fala foi proferida na tentação de seus enigmas
e na demanda de conclusão. Esta fala brotou de um an­
gustiante acontecimento inacabado. Nesse caso, a escuta
permitiu uma conclusão provisória do acontecimento
através da simbolização e da elaboração representativa.
É interessante notar que essa fala faz história e libertou
Sônia para outras possibilidades através da construção de
uma história.

107
Estes atendimentos ocorreram no NAPS e foram possíveis
quando o analista se afastou das prescrições e condutas
institucionais e escutou a paciente. Sua escuta propiciou a
expressão do desejo em uma produção significante orga­
nizada pela regulação do gozo da paciente. Nesses termos,
o analista ocupa o lugar de pai imaginário. Freud ensinou
que não se pode pedir ao paciente aquilo que ele não pode
dar. É uma exigência ética da psicanálise nutrir ambições
terapêuticas limitadas, longe da posse do saber absoluto e
onipotente sobre a vida, a morte e os outros.
Fascinados pela desconstrução de saberes e pelo mode­
lo de cidadania proposto pela Psiquiatria Democrática
Italiana, desfazemo-nos da demanda de escuta dirigida a
nós, reduzindo-a a uma concessão de benefícios, visando
à compensação de uma condição social precária. Lacan,
ao tratar da epistemologia da falta, diferencia necessida­
de, demanda e desejo. O autor considera como mítica a
referência a uma primeira satisfação e aponta a perda do
biológico no desejo. O desejo se define de fato epistemo­
logicamente em sua relação com a ordem biológica das
necessidades e com a ordem linguajeira da demanda de
amor. O homem deseja porque a satisfação de suas neces­
sidades vitais passa por um apelo dirigido a Outro, o que,
de imediato, altera a satisfação transformada em demanda
de amor. Em razão desse ultrapassamento da ordem bioló­
gica que não basta a si mesma, o amor como relação com
o outro em que o sujeito se aliena, permanece marcado
por uma exigência do absoluto que é, equivalente ao que
se perde com essa transposição. O amor é aqui, ao mesmo
tempo, apelo ao outro tendo em vista uma satisfação que,
seja como for, não se dará no modo como é demandada,
e o terreno estruturado pela relação do sujeito com a lin­
guagem. Temos, assim, que ao tomar as solicitações dos
pacientes em sua concretude (condição social precária),
os técnicos do serviço ignoram a inesgotável demanda de
amor.

108
A psicanálise nos ensina que a experiência psicótica é
carregada de sofrimento. Visando alcançarmos um tra­
tamento adequado para os portadores desse sofrimento,
devemos estimular discussões com os trabalhadores dos
serviços de saúde mental, para refletirmos sobre a eficácia
clínica de nossas intervenções. Diversas vezes, aprende­
mos à custa de fracassos, e nunca se aprende melhor do
que quando se pode fracassar, porque abre-se a possibili­
dade para identificar o erro e o mal-estar. O fracasso reve­
la espaços até então não reconhecidos pelo psicanalista e
seu paciente, à espera de uma palavra iluminadora.

1 09
Retórica
da Inclusãa g
Como vimos, no Brasil uma
expressiva reforma psiquiátrica
tomou vigor, a partir da década
de noventa, pela iniciativa
articulada dos três níveis
gestores do Sistema Único de
Saúde - SUS.

T ai processo redundou na modificação de algumas


formas jurídicas e da ênfase de políticas públicas so­
bre a questão. O Projeto de Lei n º 3.657, de 1 989, conheci­
do como Lei Paulo Delgado, proíbe a construção ou con­
tratação de novos leitos psiquiátricos pelo poder público
e prevê o redirecionamento dos recursos públicos para
a criação de "recursos não manicomiais". Tal projeto foi
aprovado em março de 2001 após doze anos de tramitação
no Congresso Nacional. Nesse período de tramitação da
lei federal, oito leis estaduais entram em vigência.
Concomitantemente, podemos assinalar o fechamento de
um conjunto significativo de hospitais psiquiátricos que
não atendiam minimamente critérios básicos de assistên -
eia. Foram implantados serviços substitutivos ao mode­
lo tradicional, como os leitos psiquiátricos em hospitais
gerais e os chamados serviços de atenção diária, de base
comunitária, que são cerca de 250 em todo o país.
Na publicação oficial do Ministério da Saúde, fica marca­
do de forma clara e inequívoca o objetivo de: " [ ... ] alcan­
çar em um futuro próximo, uma atenção em saúde mental
que garanta os direitos e promova a cidadania dos porta­
dores de transtornos mentais no Brasil, favorecendo sua
inclusão social" (BRASIL, 2000, p. 5, grifo nosso).
A expressão "inclusão social", presente na forma da lei,
pode ser considerada como um enunciado, na acepção
foucaultiana do termo. Um enunciado, neste sentido,
é unidade elementar de uma formação discursiva que,
como tal, se define por um domínio específico de objetos,
de modalidades enunciativas, de conceitos e de estratégias
(FOUCAULT, 1987). A questão que nos interessa é saber,
a partir de uma descrição histórica desta formação discur­
siva, como a "inclusão social" foi apropriada, no quadro
de certa estratégia retórica e política, de forma a se co­
locar em relação de antagonismo com o projeto de uma
clínica da escuta dos transtornos mentais. Ou seja, tra­
ta-se de analisar uma série de deslocamentos discursivos
que constituem, localizam e individualizam a loucura no
espaço da exclusão social e, a partir disso, sustentam um
conjunto de práticas que visam sua reinserção, inclusão
ou reentrada no campo social. Um conjunto de práticas
que, discursivamente, recusam inscrever-se sobre a noção
de clínica e, muitas vezes, colocam-se em oposição a esta.
Nossas considerações apoiam-se no material discursivo
produzido no contexto da reforma psiquiátrica brasileira,
entre os anos 1980-2000, e mais especificamente no estu­
do sagital realizado em um Núcleo de Atenção Psicosocial
(KYRILLOS NET O, 2001).
Retórica, na acepção que empregamos, não significa ma­
nipulação de opinião e forçamento do interlocutor para
uma posição para a qual este não confluiria pelo uso livre
da razão, mas um método de análise da linguagem em ter­
mos simultâneos de produção de subjetividade e formas de
poder. Chamamos, portanto, de "retórica da exclusãó' este
aspecto de uma formação discursiva que apreende e locali­
za os transtornos mentais em uma superfície formada pela
antinomia entre inclusão e exclusão. Como todo aspecto
retórico do discurso, tal estratégia constitui destinatários
e auditórios específicos, bem como formas de legitimação,
autoridade e apropriação que se baseiam em um fazer per­
suasivo (BRET ON, 1997). Em que pese o fato desta retórica
visar à inclusão, o ponto de onde ela parte e o consenso que
ela presume é o de que o sujeito dos transtornos mentais,
especialmente aquele que passa pela experiência da inter-

114
nação, está em condição e em processo de exclusão. Obser­
ve-se que isso contrapõe, supostamente, uma condição his­
toricamente construída e bem definida (a exclusão) a outra
condição ideal e indefinida (a inclusão).
É preciso lembrar que este enunciado resume e sinteti­
za um ensejo de mudança surgido na metade da década
70, no contexto da reformulação institucional e política
do país. Naquele momento, aparecem críticas renitentes
à ineficiência da assistência pública em saúde adotada
pela administração federal, através do Ministério da Saú­
de. Também surgem denúncias de fraudes no sistema de
financiamento dos serviços e, o que é mais significativo
para o movimento da reforma, denúncias de abandono e
maus tratos a que eram submetidos os pacientes interna­
dos em diversos hospícios do país.
Nesse contexto, surge o Movimento dos Trabalhadores
de Saúde Mental (MT SM), que, em 1979, promoveu um
evento bastante significativo no qual estiveram presentes
Franco Basaglia e Robert Castel. As denúncias da violên­
cia nos hospitais, alguns visitados por Basaglia, e o desres­
peito aos direitos humanos provocaram grande impacto.
Nesse evento, a reforma psiquiátrica italiana começa a sur­
gir como paradigma para o movimento antimanicomial
brasileiro. O MT SM, ao adotar um discurso voltado para
a humanização do tratamento e em defesa dos pacientes
internados, alcançou grande repercussão. Isso fez avançar
a luta até seu caráter definitivamente antimanicomial. No­
te-se que a repercussão pública da condição a que estavam
submetidos os "internos", ou seja, os que estão incluídos
em um espaço interior - "dentro': portanto, de um dispo­
sitivo de tratamento, às vezes permanentemente - pode ser
compreendida como uma espécie de metonímia da exclu­
são praticada pelo próprio sistema que deveria habilitá-los
como sujeitos. Metonímia, pois funciona como um caso
representativo de uma estratégia de opressão maior, ope­
rada pelo Estado em relação aos próprios sujeitos que nele

115
deveriam se incluir. Estratégia que passa a ser explicitada
e questionada, particularmente a partir do final dos anos
70, para a própria opinião pública, no contexto da revela­
ção das práticas de exclusão, controle e tortura realizadas
pelo Estado durante o regime militar.
O avanço da luta antimanicomial trouxe ganhos significa­
tivos na assistência aos portadores de transtornos mentais.
No plano institucional, apontamos como vantagens a des­
construção do modelo manicomial e a criação de uma rede
de serviços com dispositivos diferenciados (urgências, lei­
tos de retaguarda, oficinas terapêuticas, visitas domiciliares,
etc.) em território definido, proporcionando maior qualida­
de ao atendimento do "usuário''. Aqui assinalamos dois des­
locamentos significantes. O "interno" passa a ser chamado
de "usuário'; não mais de "paciente''. O antigo "hospital psi­
quiátrico" converte-se em "equipamento de saúde mental''.
Os centros de "tratamento" tornam-se centros de "atenção''.
Há, pois, toda uma redescrição do discurso asilar no qual
o enunciado da inclusão social é articulado. O usuário é
aquele que se utiliza de um serviço, o paciente é aquele que
é objeto de um tratamento.
Após o reconhecimento da força histórica que impelia a
loucura para a condição de exclusão social, política e dis­
cursiva, esta redescrição se realiza em torno do que a teo­
ria da retórica chama de antimodelo. A eficácia retórica de
um antimodelo se define pela inversão e negação irrestrita
dos atributos que ele toma em conta. Ou seja, o antimode­
lo é tão mais eficaz na medida em que em nenhum ponto
do modelo sugerido encontre paridade com o antimodelo
(PERELMAN; OLBRECHT S-T YT ECA, 1996). Surge as­
sim uma estratégia retórica inversa, baseada na inclusão,
na cidadania e no retorno da palavra ao paciente, definida
a partir da negação de um antimodelo sobre o qual se es­
tabeleceu um consenso negativo.
Neste contexto, o MT SM introduz um novo destinatário
para seu discurso. Não se trata de enfrentar o discurso tec-

116
nocientífico da psiquiatria, no quadro de seus fundamen­
tos epistemológicos ou clínicos, nem apenas o discurso
burocrático estatal, no quadro da transformação normati­
va. Ambos reproduzem aquilo que o MTSM localiza como
problemático: o fechamento, a clausura e a circularidade
que mantém a rede de autoridade sobre a experiência, so­
bre as trocas simbólicas e dispositivos técnicos do trata­
mento. Neste sentido, a retórica antimanicomial inspirada
em Basaglia segue uma tática diferente da adotada, por
exemplo, pela antipsiquiatria, que questiona o tratamen­
to dispensado à loucura no seu próprio solo de constitui­
ção histórica e adotando como destinatário privilegiado
o campo da psiquiatria. Contra esta retórica da exclusão,
se apresenta, portanto, um novo participante produzido e
reconhecido por uma nova destinação: a opinião pública.
A preocupação com a função interpretativa da opinião pú­
blica, colocada na posição de observadora, faz produzir uma
enunciação baseada na denúncia e no desmascaramento.
Para tanto, a estratégia discursiva ampara-se no uso calcu­
lado de uma dupla cena: o desmascaramento da opressão
política em paralelo ao desocultamento das práticas de sub­
missão aplicadas ao tratamento dos transtornos mentais.
Forma-se, assim, uma equação crítica em que controlar e
oprimir se solidariza paradoxalmente com cuidar e amparar.
O antimodelo afirma, na verdade, que em nome do cuidado,
se realiza a opressão. Em nome da cura e da saúde, verifica-se
a produção de posições objetivantes, silenciosas e dóceis, na
quais se identifica a condição social do doente mental.
Deduz-se daí que a transformação desejável no estatuto
da doença mental é de natureza política, antes que clíni­
ca. Está formada uma cena enunciativa em que "clínicà' e
"políticà' tornam-se significantes em oposição. Uma cena
enunciativa envolve um contrato ou a assunção de certas
regras discursivas entre interlocutores que assumem um
destinatário comum, um mesmo olhar para o qual a cena
se constitui (MAINGUENEAU, 1997).

117
Clínica e
Política
Landowski (1 992) nos adverte
que a opinião pública é
política. Sua vocação consiste
em fazer a classe política agir
segundo uma competência
persuasiva.
é necessariamente não especializada; sua persuasão deve
calcular, por exemplo, o uso de termos técnicos ou concei­
tuais, produzindo, com isso, uma corrosão da base discur­
siva hegemônica encarregada da administração da doença
mental no antimodelo asilar.
O principal documento norteador das políticas adotadas
nessa área pelo governo brasileiro tem sido a Declaração
de Caracas. Este documento estabeleceu a diretriz de re­
estruturação em saúde mental centrando-a na comuni­
dade e dentro de sua rede social. Os recursos, cuidados e
tratamentos devem salvaguardar, invariavelmente, a dig­
nidade pessoal e os direitos humanos e civis, propician­
do a permanência do doente em seu meio comunitário.
Diagnosticava-se como principal efeito nocivo do sistema
asilar o isolamento, a desintegração social e a exclusão.
Encontramos aqui um segundo patamar discursivo. Não
mais a ampla opinião pública, definida como agente de
um saber anônimo, mas um saber localizado, cujo agente
é a comunidade e a família. Neste patamar, o saber pú­
blico não atua apenas como uma espécie de juiz ou ob­
servador, mas, como mostrou Laclau (1996), articulando
demandas. Para este autor, a formação de demandas que
orientam movimentos sociais apoia-se sempre em signi­
ficantes flutuantes. Ou seja, significantes suficientemente
ambíguos e polissêmicos, capazes de atrair para si uma di­
versidade de significados, reduzindo a diferença e conso­
lidando a identificação necessária para a ação. Ora, parece
ser exatamente este o caso na expressão "inclusão social".
Assim, a viabilização dessa diretriz liga-se à organização dos
novos serviços substitutivos, que assumem a tarefa de res­
ponder e representar a demanda de pacientes e familiares. Os
Núcleos de Atenção Psicossocial - NAPS e Centros de Aten­
ção Psicossocial - CAPS, certamente, constituem a resposta
mais avançada e criativa para alcançar esses objetivos.
Desta forma, o sujeito da experiência da loucura, ao ser
deslocado para a posição de "usuário" dos serviços de

122
saúde mental, tem sua demanda revertida de demanda de
cura para demanda de inclusão. Sua patologia é definida
pela exclusão social concreta, e não por uma nosologia
neutra e transcendente. A localização de sua demanda
não emerge do sofrimento psíquico individualizado, mas
do sofrimento atinente à sua posição de classe. Como tal,
sua demanda se objetiva em posições no universo do con­
sumo e do trabalho, de onde a expressão "usuário" afinal
deriva.
É no quadro deste deslocamento discursivo que se torna
compreensível a oposição entre uma estratégia política e
uma retórica clínica. A clínica psiquiátrica, psicanalítica
ou psicológica torna-se identificada a um aspecto do an­
timodelo manicomial, porque ela supõe, em tese, outra
forma de articulação da demanda: individual, subjetiva,
idiossincrática. Articulação que deve ser posta em opo­
sição à articulação política, cujos atributos teriam sinais
contrários. Nesta operação a clínica torna-se excluída da
política. O saber neutro, tecnocrático, apolítico e científi­
co, pelo qual, historicamente, a ordem médica apropriou-
se da loucura (FOUCAULT, 1988), é tomado, retorica­
mente, por seu valor de face, como se de fato ele devesse
ser tratado pelo modo como se representa e não como um
projeto de política de subjetivação criticável. Mas um efei­
to desta exclusão, presente nesta estratégia de constituir
um novo discurso hegemônico em saúde mental, é tam­
bém o de tornar homogêneo e criticável todo projeto que
possa ser reconhecido como clínico.
Parker ( 1999), em um extenso estudo sobre as formas
de resistência crítica, que se verificam nos diversos mo­
vimentos contemporâneos de transformação da saúde
mental, mostrou que a renúncia ao campo de categorias
da clínica tem, muitas vezes, contribuído para manter
suas práticas mais conservadoras. Por outro lado, estraté­
gias que procuram desconstruir a formação de identida­
des patológicas, mostrando internamente a inconsistência

123
da representação essencialista da loucura e redescreven­
do politicamente as categorias e procedimentos da clíni­
ca, têm alcançado resultados. Destacam-se, neste último
caso, a estratégia adotada por grupos como Lechesis, na
Alemanha, e Hearing Voices e Mind, na Grã Bretanha. Esse
estudo nos ajuda a mostrar que a estratégia de oposição
retórica entre clínica e política não é uma estratégia ne­
cessária no quadro dos movimentos em saúde mental de
inspiração crítica.
Nos moldes propostos pela Psiquiatria Democrática
Italiana, a inclusão social do paciente psiquiátrico seria
obtida através da negação da lógica manicomial (trans­
formação institucional), de uma política compensatória
de concessão de benefícios e da participação em movi­
mentos sociais. Tais práticas necessariamente ocupam
um lugar suplementar ou substitutivo às antigas práticas
clínicas.
Basaglia (1985), mentor da Psiquiatria Democrática Ita­
liana, nos lembra que a violência e a exclusão social estão
na base de uma sociedade "organizada a partir da divisão
radical entre os que têm (os donos no sentido real) e os
que não têm [ ... ]" (p. 101).
Este autor propõe como cura para a doença mental a rein­
serção social do paciente nos meios produtivos: "Não se
cura o doente com subjetividade, mas se cura na volta ao
círculo produtivo, o que coloca em discussão uma ciência,
e no caso a psicanálise, mas também outras ciências" (BA­
SAGLIA, 1979, p. 93).
Em suma o retorno ao social aproxima-se substancial­
mente do reingresso no universo do trabalho. Trabalho
e subjetividade acabam por se opor, desdobrando a opo­
sição inicial entre clínica e política. Em que pesem os
fatos de o universo do trabalho representar um sistema
simbólico primaz em nossa cultura e de a inclusão impli­
car, em última instância, a possibilidade de participação

124
e circulação em universos simbólicos, resta ainda a ques­
tão da alienação que redunda desta inclusão. O que está
em questão aqui é o plano da política das identidades.
Alienar-se ao significante "trabalhador" é politicamen­
te preferível a alienar-se ao significante "doente mental':
Mas a alternativa retórica, assim colocada, mantém-se
pela preservação da diferença entre estes dois significan­
tes identitários.
Laclau (1996) nos lembra que as identidades diferenciais
são formas identitárias que se fundam pela negação, pela
exclusão ou afastamento total do que está fora delas. O au­
tor nos lembra que a noção de negatividade, implícita no
conceito dialético de contradição, é capaz de levar-nos mais
além da lógica da pura diferença: "Um conteúdo negativo
que participa na determinação de um positivo é parte inte­
grante desse último'' (LACLAU, 1996, p. 58).
Parece-nos que ao negar totalmente os saberes acumula­
dos pelo campo da clínica, na tentativa de marcar uma di­
ferença radical, a proposta basagliana acaba por produzir
uma retórica em que a inclusão social acaba por inverter
os sinais característicos da exclusão, eliminando assim a
contradição que deveria ultrapassar.
Assim, para a Psiquiatria Democrática Italiana, as condu­
tas consideradas "inclusivas" encontrariam legitimidade
independente de qualquer consideração clínica. Aqui cabe
considerar outro deslocamento significante. As antigas ca­
tegorias profissionais, tais como "psiquiatrà' ou "psicólo­
go", são gradualmente substituídas por uma categoria mais
vasta e menos estratificada: o "trabalhador em saúde men-
tal". Mas nem sempre uma substituição significante altera
a posição dos agentes na cena enunciativa. Aliás, muitas
vezes, tal substituição é realizada justamente para manter
as posições de poder em um substrato discursivo que as
torna menos perceptível. Portanto, trata-se de verificar
qual é a natureza da relação discursiva entre o "trabalha-

1 25
dor em saúde mental" e o "usuário" produzida no contexto
da reforma psiquiátrica brasileira.
Em capítulo anterior, mostramos como a noção de in­
clusão pode ser usada na posição do que Lacan chamou
de significante mestre (LACAN, 1969-70/1996). O sig­
nificante mestre (Sl) é o ponto do discurso que sustenta
sua significação, sendo ele mesmo assemântico, ou, como
observou Zizek ( 1 997), é o ponto onde se realiza o bastea­
mento ideológico de um discurso: a palavra de ordem, o
momento de corte histórico e de constituição de uma nova
ordenação simbólica do discurso. Quando o significante
mestre ocupa a posição de agente de um discurso, ou seja,
quando ele se apresenta como razão e origem, em nome
da qual tudo se justifica, estamos no que Lacan chamou de
discurso de mestre (LACAN, 1969-70/1996).
A questão é saber então se há uma transformação na es­
trutura do discurso de mestre, que caracteriza a clássica
relação médico-paciente, quando passamos à relação tra­
balhador em saúde mental-usuário. Ora, pelo capítulo an­
tes citado, pode-se verificar que o responsável pela defini­
ção do que é ou não inclusivo para determinado usuário
continua a depender sumamente do trabalhador em saúde
mental. Além disso, a inclusão, em suas mais diversas es­
tratégias, não é considerada como uma possibilidade, nem
como uma contingência, mas como uma necessidade. Isso
se revela, no plano discursivo, pela presença da inclusão
como um imperativo.
O imperativo de recusar a exclusão transforma-se, assim,
no imperativo da inclusão, mantendo, portanto, sua estru­
tura em discurso de mestre. Isso se verifica, por exemplo,
no retorno do discurso das "prescrições médicas': mas
agora na forma de "prescrições sociais': Em outras pala­
vras, afirma-se na enunciação aquilo que se quer negar no
enunciado.

126
Delírio e
Ideologia
O discurso basagliano
construiu uma prática que
valoriza a conscientização
do paciente acerca de sua
condição social precária.

P ropõe, coerentemente, a participação social efetiva e


engajada capaz de transformar a realidade na qual o
sujeito se aliena. Mas como libertar o outro se ele é objeto
de um discurso de liberdade? Como fazê-lo reconhecer-se
em um discurso do qual ele não é, em primeira instância,
o produtor, mas o reprodutor?
Nesses termos, a questão ideológica surge agudamente na
relação técnico-usuário. O discurso baseado na "interpe­
lação de inclusão" pode traduzir-se em efetiva prescrição
de atitudes que procuram deslocar a posição do sujeito
que sofre para a posição de um sujeito que traduz seu so­
frimento em demanda social. Por exemplo: o "usuário" é
estimulado a ter uma atividade remunerada, permanecer
junto à família e à comunidade, de maneira a evitar futu­
ras internações psiquiátricas. Paralelamente é preciso ins­
talar uma narrativa que desloque a subjetivação baseada
no discurso psicopatológico para uma subjetivação basea­
da em uma ontologia social responsável pela condição de
exclusão. Qual será, neste contexto, o impacto deste dis­
curso sobre os usuários, uma vez se tratando de usuários
psicóticos?
Diversos autores (GADET ; HALK, 1997; ORLANDI,
1 999; GREIMAS; LANDOWSKI, 1986) consideram que
a interação semiótico-discursiva não implica, necessaria­
mente, congruência entre a mensagem do emissor e a in­
terpretação do receptor. Parece-nos que a "incongruência"

13 1
antes apontada entre enunciado e enunciação, entre forma
imperativa e modo libertário, ou, ainda, entre inclusão e
interpelação, reforça nossa posição de considerar que as
falas emitidas por agentes da instituição estão sujeitas a
interpretação não congruente dos receptores. Especial­
mente no caso da psicose, o paradoxo pragmático, que
verificamos nos diferentes níveis acima apontados, parece
replicar a forma discursiva encontrada em diversas formas
de delírio (FREUD, 191 1 ; LACAN, 1 958/ 1998).
Como explicar, no sistema conceituai da Psiquiatria De­
mocrática Italiana, que um paciente recuse os benefícios
sociais e o acolhimento oferecidos pelo serviço, preferin­
do permanecer na loucura e na errância? Lembramos que
tal fato é relativamente comum nos serviços que frequen­
tamos.
Alguns pacientes estão empenhados em uma produção
delirante refratária à narrativa da inclusão ou à prática do
trabalho. Outros, ao contrário, parecem integrar tal narra­
tiva muito facilmente, ajustando suas reinvindicações ao
significante mestre proposto.
O produto do discurso do mestre é a constituição de um
objeto. A segregação ou exclusão social do paciente psi­
quiátrico, sua localização como objeto de uma consciência
crítica, parece ser o exemplo mais conspícuo de tal tese.
Mas, no lugar do outro, o que o discurso de mestre en­
gendra é o que Lacan (1969-70/1996) chamou de saber. A
produção delirante pode ser considerada, nesta medida,
a produção de um saber. Saber que parece não encontrar
ponto de amarração ou detenção, ou seja, saber que não
se articula com um significante mestre. A tese de que, na
psicose, o laço social, pelo qual se define o discurso, en­
contra-se irrealizado (LACAN, 1969-70/1996), e de que
este laço social se tornaria possível a partir da instalação
de uma substituição artificial desta articulação entre saber
e significante mestre (a metáfora delirante ou a suplência),
nos ajuda a entender os efeitos de estabilização verificados

132
nos pacientes que se engajam na retórica da exclusão, as­
sumindo-a como parte de sua própria subjetivação.
Mas, curiosamente, nestes mesmos pacientes, acompa­
nhamos o surgimento de outro fenômeno: a adesão a
práticas farmacológicas. Tudo se passa como se ao acei­
tar a narrativa da inclusão, ao conformar seus paradoxos
aos próprios paradoxos da formação delirante, o usuário
aceitasse também, e agora mais docilmente, o consumo de
substâncias "antipsicóticas': Se antes ele resistia a tal prá­
tica, agora ele a encara como um direito e uma demanda.
Seu saber não se articula apenas ao significante mestre,
oferecido pelo dispositivo de saúde mental e desdobrado
no cenário social da comunidade e da família, mas tam­
bém se aprofunda como um saber sobre este objeto: a me­
dicação.
A intervenção da psiquiatria tecnopolítica se estende pelo
campo social através da oferta de vagas em trabalhos ofe­
recidos pelo poder público, alimentação gratuita, passa­
gens de ônibus, moradia, etc. Os técnicos do serviço se
tornam confiáveis para os usuários na medida em que
cumprem sua palavra, fazendo chegar até estes os bene­
fícios ofertados. Como em qualquer serviço, sua confiabi­
lidade depende da relação eficaz entre oferta e demanda.
Dessa forma, a relação intersubjetiva fica marcada pela
promessa, que põe em relação os dois sujeitos mediados
por um contrato.
Porém, nem sempre a promessa formulada corresponde
a um pedido prévio do usuário. Por vezes, o técnico "pro­
metente" antecipa o pedido explícito e se empenha em an­
tecipar o suposto programa de seu parceiro. A oferta gera
a demanda e cria a necessidade. Neste processo, já se en­
contra o princípio discursivo sob o qual se inicia a inclu­
são. Ou seja, na própria operação de criação de demandas,
a ideologia se infiltra na forma social assumida pela troca.
Prado (2001) define ideologia como o "conjunto de efeitos
produzidos pela constituição e circulação dos discursos,

133
que abrem campos de significação onde certos modos de
compreensão e socialização são permitidos e incentivados
em detrimento de outros" (p.100).
Por exemplo, nas pré-conferências do Dispositivo Mu­
nicipal de Saúde Mental, realizadas na cidade de Santos,
um dos espaços inclusivos do projeto, os profissionais
dos serviços conversam extensamente com os usuários,
ressaltando a importância da participação social. Alguns
usuários atendem este "chamado" com extrema veemên­
cia. Estes usuários elaboram diversas propostas de cunho
assistencial tais como: colocação de um carro à disposição
das unidades; aumento do número de vales-transporte
para custear a frequência ao hospital-dia e às atividades
e compromissos dos usuários; fornecimento de carteiras
de ônibus para transporte gratuito dos usuários; criação
de uma linha telefônica 0800 para atendimento de pacien­
tes dos NAPS. Outras propostas abordam a melhoria do
cardápio e a garantia do uso do telefone da unidade pelos
usuários.
As justificativas para tais propostas têm uma acentuada
tonalidade político-ideológica: acesso universal e de qua­
lidade aos serviços vinculados ao SUS, não discriminação
aos portadores de sofrimento mental e garantia de liber­
dade de expressão.
No entanto, apesar dessas justificativas, as reivindicações
dos "cidadãos-usuários" se concentram especificamente
no campo dos benefícios. Sua fala concentra-se na pro­
dução de demandas. Demandas surgidas, compreensivel­
mente, em relação a uma alteridade que as incita. Outros
tópicos abordados na Conferência, tais como prevenção
em saúde mental, recursos humanos para a saúde mental,
permanecem em segundo plano.
Ora, a formação de demandas é um passo decisivo para
a inclusão e também para a articulação do movimento
social representado pela luta antimanicomial. Ao se ins-

134
crever como agente de uma demanda o sujeito se instala
em um determinado laço social ao mesmo tempo em que
reconhece a instância à qual esta demanda se dirige.
Na estrutura psicótica, com suas peculiaridades quanto à
relação e uso da linguagem, nota-se um efeito secundário
do oferecimento e circulação do discurso político-ideoló­
gico centrado na formação de demandas. O fechamento
discursivo provocado pela fixação de certos significantes,
tais como "exclusão social", "pobrezâ', e "cidadania" e pela
elisão de outros, notadamente os que se precipitam das
formações delirantes singulares, leva o sujeito a uma nova
forma de alienação; deslocamento que não pode ser des­
prezado, mas que mantém o problema básico da fixação
de identidades. Prado (2001) nos aponta que a "ideologia
é esse efeito de ocultamento do trabalho da linguagem, das
contradições que fendem o falante, que permanece fixado
em certos significantes e em certas imagens produzidas nas
formações discursivas [ ... ]" (p. 100, grifo nosso).
Pode-se notar que muitos casos de psicose encontram cer­
ta estabilidade clínica em certa assimilação de sistemas
simbólicos. Sistemas simbólicos que funcionam ao modo
de universos fechados de significação. Tais universos dis­
cursivos podem ser de extração religiosa, ética, étnica e até
mesmo midiática. Por que não pensar que certas formas de
ideologia política poderiam desempenhar o mesmo papel?
Tais sistemas simbólicos têm por característica anexar todo
saber a formas pré-constituídas de discurso. Isso pode ser
feito por intermédio de estratégias discursivas que parecem
possuir um funcionamento autônomo e anônimo, o que se
verifica típico na ideologia. O problema aqui é delimitar,
afinal, qual a diferença entre saber e ideologia.
Chauí (2001) considera que a eficácia da ideologia reside
no movimento de recusa do não saber, que habita neces­
sariamente a experiência. A ideologia, diferentemente do
saber, projeta uma posição que permite neutralizar a his­
tória, abolir diferenças, ocultar contradições e desarmar

135
toda tentativa de interrogação. Em suma, a ideologia é um
saber que oculta o trabalho de sua própria constituição.
O saber pressupõe um trabalho. Nessa condição, é uma
"negação reflexionante'' que, por sua força interna, trans­
forma algo que lhe é externo, resistente e opaco. O saber
é o trabalho para elevar a experiência à dimensão do con-
ceito. A situação de não saber impulsiona o trabalho de
deciframento. Daí a afinidade entre o trabalho do saber e
o processo de subjetivação. Trabalho de subjetivação e não
subjetivação pelo trabalho.
Portanto, só há saber quando a reflexão se depara com a
possibilidade de indeterminação, quando aceita o risco de
não contar com garantias prévias e exteriores à própria ex­
periência e ao próprio pensamento que a trabalha. Pode-se,
então, distinguir uma inclusão ideológica, que se traduz pela
imersão em um sistema simbólico pré-constituído marcado
pela circulação instrumental de demandas, de uma inclusão
pelo saber, que se traduz pela articulação do trabalho do
delírio como deslocamento contínuo de um não-saber.
Partindo desta distinção, a inserção social preconizada
pela legislação é uma oportunidade ambígua de produção
de instabilização subjetiva através do contato com alteri­
dades, mas também de ocupação desta instabilidade por
formas ideológicas pré-constituídas. Se a interpelação
ideológica é hegemônica, a produção significante torna­
se comprometida e a subjetivação transforma-se em rei­
ficação. A forma ideal e o modelo ideológico discursivo
de inserção social acabam sendo a conversão à prática da
militância.
Dessa forma, podemos dizer que o discurso competente e
instituído acaba por produzir sistemas simbólicos imunes à
reflexão. A linguagem sofre uma restrição, pois não é qual­
quer um que pode dizer a qualquer outro, qualquer coisa
e em qualquer circunstância. Esse discurso é idêntico, do
ponto de vista formal, à linguagem institucionalmente au-

136
torizada, na qual os interlocutores já foram previamente re­
conhecidos como tendo direito de ouvir e falar em lugares
e circunstâncias predeterminadas. Assim, o discurso sobre
si vem impregnado de militância política. Em alguns casos,
notamos esse discurso militante circulando em associação
criativa com o sintoma. Um exemplo auxilia nossa compre­
ensão: alguns usuários associam a participação em assem­
bleias e o poder de envolvimento dos colegas, através do
uso da fala, à potência sexual. Assim, a conversão de novos
adeptos para a narrativa mestre da inclusão torna-se um su­
cedâneo da sedução, ocupando o novo militante um lugar
passivo na transmissão sexual deste saber.
É possível manter um lugar que nos permite guardar uma
distância em relação à ideologia, reconhecendo seu poten-
cial benefício clínico. Porém, esse lugar, no qual é possível
captar a ideologia como sistema simbólico fechado, não
deve ser ocupado por nenhuma realidade positivamente
determinada (ZIZEK, 1999). Caso o crítico ceda à tenta­
ção, o que se produz é um sistema simbólico utilizado de
modo francamente imaginário. Quando o usuário traduz
a retórica da exclusão nos termos singulares de sua pró­
pria narrativa este é um ato de interesse simultaneamente
clínico e político. Como observou Jameson (1992), o ato
que inaugura uma nova narrativa possui uma relevância
transformadora maior do que a própria narrativa que daí
se desenvolve. Portanto, não basta a imersão em um sis­
tema simbólico, da qual a retórica da exclusão seria uma
das estratégias, e a oferta de significante mestre, um efeito,
mas é preciso considerar, ainda, o ato contingente de apro­
priação singular realizado pelo sujeito.
É nesta operação que a escuta clínica parece ser insubs­
tituível. Não consideramos que o lugar do clínico é uma
espécie de mirante de onde se tem uma ampla, neutra e
geral visão do panorama ideológico do social. · A clínica é
apenas mais uma forma de apontar o antagonismo social
e, no melhor dos casos, não tamponá-lo.

137
Lacan com
Faucault
Há duas maneiras
tradicionais de analisar as
relações de poder:

modelo baseado no direito, no qual se privilegiam as


O leis, as proibiçôes e as instituiçôes, e o modelo base­
ado na guerra, no qual se privilegiam os temas da força,
da estratégia e da segurança (Foucault, 1 986:24 1 ). Se o
nascimento da clínica está intimamente ligado à primeira
forma, a invenção da psicoterapia partilha da segunda. O
poder psiquiátrico se exerce, portanto, nestas duas moda­
lidades.
É certo que haveria ainda uma terceira forma de poder,
aquela pensada ironicamente a partir de Hobbes:
(... ) em vez de pensarmos no poder como cons­
tituído mediante um acordo entre nós, como do­
nos da liberdade, devemos pensar na liberdade,
em termos do processo através do qual nos cons­
tituímos como sujeitos do tipo de atividades pelas
quais podemos ser governados e governar a nós
mesmos. (Rajchman, 1994: 137)
Seria tentador situar a psicanálise como uma espécie de
combinação entre ambas e, ainda, avaliar a psicanálise
frente a esta terceira forma-poder. Os diferentes tipos de
individualismo que a psicanálise carrega em seu interior
encontrariam, assim, uma redistribuição e um compro­
misso jamais suficientemente esclarecido com a psiquia­
tria. Este é um primeiro ponto a ressaltar nas relaçôes
entre a crítica foucaultiana do poder psiquiátrico e sua
extensão à psicanálise; a saber, não estamos falando de ca-

141
tegorias que delimitam o discurso terapêutico do ponto
de vista da própria psicanálise, mas da inscrição da psi­
canálise nas práticas de subjetivação da modernidade, em
particular no dispositivo psiquiátrico. Esta confusão já se
estende por tempo demais; confusão, aliás, extremamente
contrária ao próprio pensamento foucaultiano, a saber:
(a) Inclusão da psicanálise nos dispositivos nor­
mativos, individualizantes e patologizantes da psi­
quiatria, e consequente exclusão e silenciamento da
psicanálise e de toda e qualquer forma de projeto
clínico para as psicoses. Portanto estamos a salvo da
psicanálise por uma espécie de equívoco realista que
encontrará nos arquivos, nas práticas, nas institui­
ções o germe impuro da psicanálise.
(b) Resposta equívoca dos psicanalistas, cada qual
ao seu modo, argumentando que o que Foucault
chama de psicanálise está muito distante do que
cada um destes reconhece em si como psicanálise.
Quando não se recorre ao argumento da atopia, pela
qual ninguém está em posição de criticar a psica­
nálise "de fora da psicanálise''. Portanto, estamos ao
abrigo da crítica foucaultiana por uma espécie de
equívoco nominalista.
Como já se pode ver na conclusão de Doença Mental e
Psicologia:
Esta relação [ do homem consigo mesmo] vista sob
o ângulo mais agudo, é esta psicologia na qual ele
colocou um pouco de seu espanto, muito de seu or­
gulho e o essencial de seus poderes de esquecimento
( ... ) encarregado de deter a verdade interior, descar­
nada, irônica e positiva de qualquer consciência de
si. (Foucault, 1954:98)
Ou seja, o primeiro dos poderes desta conjuração psiquiá­
trico-psicanalítica é o poder do esquecimento. Esqueci­
mento da história de sua prática, dos compromissos que
lhe são constitutivos e das estratégias das quais participa.

142
É nesta via que a psicanálise pode ser perfilada como su­
cessora das diferentes ordens discursivas que se ocuparam
da loucura desde o século XVII. Em História da Loucura,
a série é assim apresentada: discurso moral, discurso ju­
rídico, discurso médico, discurso psicanalítico (Foucault,
1962). Mas é também a história de um silenciamento, a
história de um esquecimento que se realiza neste livro.
Ora, devemos lembrar que Foucault se insere no quadro
da epistemologia historicista francesa, que nasce com Ba­
chelard e passa por Canguilhem. Ou seja, uma historio­
grafia que é, antes de tudo, informada pela psicanálise, que
se debate com o problema do esquecimento mais além da
hipótese consciencialista.
Ou seja, psicanálise participa deste problema como dispo­
sitivo de saber e tratamento (como parte da psiquiatria),
mas também na forma como pensamos sobre nós mes­
mos, nos instrumentos discursivos de uma tecnologia de
si e em suas formas coextensivas de poder (como parte da
psicologia).
Aqui podemos indicar as três superfícies da crítica fou­
caultiana:
(a) O poder como uso da violência, da coerção e da
microfísica dos corpos (normas e instituições), em
complemento com o poder como resistência, estra­
tégia que prevê seu próprio desequilíbrio (guerra).
Aqui está o espaço da instituição e da contrainstitui­
ção. Neste caso, a psicanálise seria herdeira da lógica
da histeria e seu mestre.
(b) O saber e a verdade, por meio da qual se es­
tabelece um "regime de verdade" ou um discurso
sobre a loucura, por meio do qual uma autoridade
se constrói sobre a experiência da loucura. Saber
e verdade são lugares na superfície de um discur­
so. É neste discurso que a experiência trágica da
loucura torna-se objeto de uma consciência críti­
ca. Nesta linha, a psicanálise seria herdeira da ope-

143
ração cartesiana e, mais especificamente, de uma
série de metamorfoses sociais no século XIX: ( 1 )
o imperativo de uma nova relação pais-filhos, (2)
uma nova economia das relações intrafamiliares,
(3) a intensificação das relações mães-filhos, (4) a
inversão do sistema de obrigação familiar de (fi­
lhos para pais), para (pais para filhos) (5) um prin­
cípio de saúde como lei maior da família, (6) vín­
culo corporal entre pais e filhos, ligando de forma
complexa desejo e poder, e (7) controle, vigilância
e arbitragem externa, pelo médico, das relações fa­
miliares (Foucault, 1 975).
(c) A subjetivação, pela qual práticas como a confis­
são, a anamnese, o interrogatório clínico e a auto­
-observação levam à individualização das formas da
loucura e à interiorização das normas de produção
de uma certa forma de autoridade. Nesta acepção, a
psicanálise seria um desenvolvimento mais apurado
e taticamente mais eficaz da psicopatologia psiquiá­
trica e suas operações: diagnósticas, semiológicas,
terapêuticas e etiológicas.
Apresentemos, então, nosso argumento. Toda forma de
poder exercido na cura deriva da injunção entre a posição
do sujeito, o lugar que este ocupa num discurso e o espaço
que o condiciona e limita.
O poder funciona pela unificação, simetrização e homo­
geneização entre espaço, lugar e posição, que levamos a
cabo em uma investigação posterior (Dunker, 20 1 2):
( ... ) uma ordem particular se unifica num conhe­
cimento mais universal, em que a ética desemboca
numa política e, mais além, numa imitação da or­
dem cósmica. (Lacan, 1 959:33)
Pelo fato de que esta montagem é heterogênea, pode-se
pensar que, em qualquer forma de poder, há uma zona de
resistência que lhe é coextensiva. É a tentativa de incorpo­
rar a exceção ao universal. Há resistências que se realizam

144
como uma espécie de efeito estrutural da heterogeneidade
entre o espaço que é pressuposto em cada forma-poder e os
lugares e, subsidiariamente, entre os lugares e as posições.
Penso que são esses efeitos de resistência e incorporação
que Foucault estudou ao analisar as práticas de individu­
alização nas formas disciplinares da modernidade. Esta
heterogeneidade aparece em categorias como: enunciado,
dispositivo e discurso (Foucault, 1987). Ela admite desdo­
bramentos em sua chave linguística (fala, discurso e língua)
e em sua chave política (tática, estratégia e política).
O real cuja referência política é o território se tensiona
com o real cuja referência ética é a morada. O espaço per­
manece, todavia, contínuo. Esta é uma das premissas mais
constantes da ontoteologia e da metafísica ocidental.
A questão fundamental que envolve esse tipo de li­
berdade política é ser um constructo espacial. Aque­
le que deixa a sua pólis, ou dela é banido, perde não
apenas sua terra natal ou pátria: perde também o
único espaço onde pode ser livre - e a companhia
dos seus iguais. (Arendt, 2008: 173)
Nessa replicação do espaço político no lugar se expressa
simetricamente uma tendência a considerar que o lugar
inclui e contém, necessariamente, o conjunto exaustivo
das posições, assim como o gênero contém a totalidade
das espécies. Por intermédio de uma gramática da inclu­
são e da exclusão, fomos levados a supor que toda posição
se inclui num lugar, ambos reunidos num espaço assim
tornado invisível e homogêneo.
Brevemente podemos notar que, para cada objeção críti­
ca e incorporativa da psicanálise ao dispositivo de poder­
saber-sujeição, formado pela psiquiatria, há uma espécie
de contra-afirmação. Minha hipótese é de que, longe de
"salvar" a psicanálise, Foucault está interessado justamen­
te em um tipo de história que não herde a territorialização
de disciplinas e que, sobretudo, escape a uma topologia do
"encaixotamento" entre saber, poder e desejar.

145
( 1 ) A primeira forma de resistência ao poder está na
relação de si a si, segundo o modelo do cuidado de
si, em relativa oposição ao modelo do governo de
si. Ora, a tradição que Foucault chama de espiritu­
alidade, na qual esta forma primeira de resistência
e de reflexão sobre o poder sobre si se inscreve, é
também a tradição na qual ele localiza a psicanálise.
(2) A relação de verdade, na qual apenas Lacan e
Heidegger haveriam de ter seriamente colocado
no século XX, sugere a ideia de uma truth-telling,
de uma transformação que se opera no sujeito, no
interior de um espaço cernido pela parrhesia. É
também, do ponto de vista do saber, uma heran­
ça modificada, uma herança mutante, filtrada por
uma operação comum localizada em Freud, Marx e
Nietzsche. Ou seja, uma operação de desligamento
semiológico, de abertura para uma deriva das in­
terpretações, que não versam mais sobre os objetos
(anátomo-patológicos, etnográficos ou jurídicos),
mas sobre outras interpretações (Foucault, 1 975).
(3) Com relação à dimensão de assujeitamento, alie­
nação e objetificação, devemos lembrar o último ca­
pítulo de As Palavras e as Coisas, no qual Foucault
afirma:
Em relação às "ciências humanas", a psicanálise
e a etnologia são antes "contra-ciências': o que
não quer dizer que sejam menos racionais, ou
objetivas, mas que elas as assumem no contra­
fluxo, reduzem-nas a seu suporte epistemológi­
co e não cessam de "desfazer" esse homem que,
nas ciências humanas, faz e refaz sua positivida­
de. (Foucault, 1 966)
Pretendo contribuir para a desconstrução desta ideia, a
partir da premissa de que nem sempre o espaço conside­
rado para pensar o lugar precisa ser contínuo ao espaço
considerado para pensar a posição (Dunker, 2003). Esta

146
determinação é política e lógica, sem que ambas se con­
fundam no mesmo movimento.
Napoleão afirmou, primeiro, que a geografia é o destino
e, depois, que a forma moderna do destino é a política. A
felicidade tornou-se um fator político por meio dessa ope­
ração. Um efeito dessa espécie de fechamento do espaço
político propriamente dito é sua inteira distribuição pela
ética, pela economia (esta ciência da infelicidade), pelas
formas jurídicas e pelas tecnologias de si.
Foucault percebeu esse movimento, e suas tematizações
críticas em relação à psicanálise têm regularmente esse
endereço. Resumidamente:
( 1) A psicanálise participa do dispositivo de sexualidade
ao fixar a verdade do sujeito na enunciação contínua e re­
pressiva de seu próprio desejo sexual (Foucault, 1985:73-
109). A criança masturbadora, a mulher histérica, o
perverso e o parricida são as figuras fundamentais desta
soldagem. A teoria da perversão e da sexualidade são os
índices conceituais desse movimento de posicionamento
do sujeito.
(2) A psicanálise participa de um discurso que fixa o dis­
positivo de sexualidade ao dispositivo de aliança, permi­
tindo uma sólida combinação entre o poder público re­
presentado pelas disciplinas sociais e a forma-poder ve­
rificada no interior da família (Foucault, 1986:229-242).
A teoria do complexo de Édipo é o melhor exemplo con­
ceituai desta operação de ligação entre lugar e posição. A
incitação do desejo pelos pais é correlativa ao dispositivo
de medicalização da família - logo, longe de ser intolerá­
vel, a ideia do incesto está na origem mesma da pastoral da
carne (Foucault, 1975:341).
(3) A psicanálise faz parte de uma estratégia repressiva que
se verifica, em sua prática, na forma de uma variante do
dispositivo jurídico-moral de confissão (Foucault, 1977).
Vemos aqui como a psicanálise, menos do que inventar

147
uma técnica de liberação do desejo, participa da hipótese
repressiva, pela qual a repressão se efetua pelas vias da in-
citação a dizer, da compulsão a falar e assim produzir a se­
xualidade. A transferência e a rememoração são os rastros
nocionais dessa tática de articulação entre posição e lugar.
(4) A psicanálise faz parte de um longo processo de si­
lenciamento da loucura e expropriação de sua verdade,
contribuindo e inovando no processo de patologização
e individualização de sua experiência (Foucault, 1962).
Aqui é a psicopatologia psicanalítica e a estrutura mesma
do tratamento que marcariam a integração positiva dos
lugares que compõem o patológico ao espaço genérico de
uma política discursiva.
(5) A psicanálise é uma forma de despsiquiatrização, um
modo de suprimir os "efeitos paradoxais do sobrepoder
psiquiátrico; mas reconstituição do poder médico, produ­
tor de verdade num espaço organizado para que essa pro­
dução seja sempre adequada a este poder': A transferência
é uma maneira conceituai de abordar esta adequação (o
pagamento sendo sua contrapartida). Ou seja, a psica­
nálise é um recuo da psiquiatria, mas não uma alteração
de sua política fundamental. Ela retoma os elementos do
dispositivo asilar em outro estado de biopolítica: o libera­
lismo.
As objeções de Foucault são todas pertinentes. Em que pe­
sem o fato de que nenhum psicanalista reconheceria em
sua prática tais traços e as objeções à generalização que
esse autor faz da psicanálise, é irrefutável que a implan­
tação social da psicanálise deve muito à sua composição
com estas operações de unificação entre espaço, lugar e
posição. Recusar isso é recusar que a psicanálise tem uma
história e que sua constituição não é hagiográfica, nem
orientada pela divina providência do corte. Ocorre que
nenhuma forma de discurso constituído pode garantir
um lugar de resistência desconstrutiva ou crítica, pois sua
constituição já é, em si, uma articulação ideológica, uma

148
captura num espaço que a antecede. A crítica depende da
experiência, e é nela que se pode tensionar as relações en­
tre espaço, lugar e posição. A narrativa não é o discurso, o
discurso não é a língua, a linguagem não é o espaço.
Em termos lacanianos, podemos dizer que a política do
tratamento decorre basicamente de como se concebe o
lugar do Outro e como se entende a posição do sujeito
na fantasia. Lugar do Outro e posição do sujeito são duas
noções que remetem ao espaço ético-discursivo no qual se
desenrola uma análise, que, no melhor dos casos, produz a
experiência de um objeto irredutível ao espaço que o ator­
nou possível. Supõe-se, assim, que uma análise tem uma
tripla tarefa do ponto de vista de sua política:
( 1 ) permitir ao sujeito verificar a contingência de
sua posição fantasmática;
(2) realizar a experiência de tornar o lugar do Outro
um lugar não inteiramente consistente;
(3) introduzir um objeto resistente à sua integração
no espaço uniforme entre o sujeito e o Outro.
A questão assim resumida pode ser enunciada da seguinte
maneira. Seria possível levar a cabo este programa clínico
quando de uma política à altura de Foucault, ou seja, à
altura de uma forma de contrapoder psiquiátrico? Se é que
este pode ser condensado na figura de uma heterogenei­
dade entre espaço, lugar e posição.

149
A Psicopatologia
entre
Psicanálise e
Psiquiatria10
Consideramos neste capítulo
que a psicopatologia define­
-se como experiência clínica e
discurso de pathos, constituída
como tal em fins do século XIX,
principalmente na França e
Alemanha,
stabelecendo-se como disciplina híbrida, partilhando
e
sistemas semiológicos e diagnósticos entre a psicologia,
psiquiatria e psicanálise. Ela tomou descrições provenientes
da medicina e da antropologia como objeto, a fenomenologia
e as práticas terapêuticas como função de método e, ainda,
como referência axiológica em dispositivos educativos e mo­
rais, políticos e sociológicos (BERCHERIE, 1989; IONESCU,
1983). Em função dessa natureza híbrida entre saber, experi­
ência e disciplina, entendemos por que a psicopatologia his­
toricamente recorreu à filosofia em torno de duas exigências
epistemológicas fundamentais: ( 1) transformar pathos, como
diferença particular e transitória, em experiência de aspira­
ção universal e (2) transformar pathos, como experiência de
sofrimento, das paixões e dos sintomas, em discurso e prática
clínica singular (BERLINK, 2000).
No primeiro caso, trata-se da "determinação antropológica''
da psicopatologia, presente, por exemplo, na importância de
Kant para a formação da psiquiatria clássica alemã (Krae­
pelin) ou do associacionismo inglês para a psiquiatria de
Griesinger. No segundo caso, reconhecemos o problema da
"determinação histórica'' que se exemplifica na influência
que Pinel exerceu sobre o pensamento hegeliano, no papel
do positivismo comteano para a psiquiatria clássica fran-
cesa (Esquirol, Morel) ou na presença de Husserl na psi­
quiatria de Karl Jaspers (BERRIOS, 1996). Pelo número de
disciplinas, disparidade de métodos e diversidade de posi­
ções, vê-se que a psicopatologia exige e implica a tomada de
posição, visando organizar de modo coerente e homogêneo
práticas terapêuticas e diagnósticas, bem como discursos
semiológicos e etiológicos (DUNKER, 2010). Isso implica a
articulação entre experiências regulares de aspecto univer­
sal, pelas quais pathos aparece como determinação excessi­
va ou deficitária, e experiências contingentes ou singulares,
pelas quais pathos aparece como indeterminação produtiva
ou improdutiva (HONNETH, 2007). Não se trata de opo­
sição simples entre quantidades e qualidades, entre singu­
laridade e universalidade, mas da lógica de constituição da
experiência, ou seja, do real e do regime de verdade em cur­
so na psicopatologia.
Até a Segunda Guerra Mundial, o sistema de trocas entre
psicanálise e psiquiatria, terreno no qual a psicopatologia
prosperou, envolveu importações conceituais (a Spaltung
para Bleuler, a dinâmica para Ey), zonas de confluência
metodológica (as teorias sobre grupos na psiquiatria in­
glesa), mutualismos diagnósticos (quadros como parafre­
nia, neurose de angústia, borderline), derivas semiológicas
(neurose, perversão, psicopatia), além de hipóteses etio­
lógicas (organização pulsional, regressão, fixação, defesa)
(QUINET, 2001). Por outro lado, o exame histórico das
relações entre psicanálise e psiquiatria tende a revelar uma
psicanálise muito mais comprometida com a psiquiatria do
que ela hoje gostaria de admitir, e uma psiquiatria muito
mais dependente da psicanálise do que ela está disposta a
reconhecer (ELLENBERGER, 1970; PARKER et al, 1999;
FOUCAULT, 2003). Porém, se o limiar entre psicanálise e
psiquiatria é o terreno no qual a psicopatologia se desen­
volveu, e se o recurso à filosofia é necessário para tratar sua
dupla exigência epistemológica, seria possível reencontrar o
diálogo interrompido nos instrumentos conceituais e meto­
dológicos que vieram a substituir o apelo à psicopatologia?
Um instrumento particularmente relevante para entender
a transformação desse duplo sistema de correspondências
psicanalítico-psiquiátrico e psicopatológico-filosófico é o
sistema consubstanciado no Diagnostic and Statistic Manual
of Mental Disorders (DSM), editado pela Associação Ame-

154
ricana de Psiquiatria (APA). Sua primeira versão, em 1952,
reconheceu claramente a síntese de esforços anteriores,
em que o papel da psicanálise era proeminente. Devemos
lembrar que o esforço de conciliação com a classificação
emanada da Organização Mundial de Saúde, Classificação
Internacional de Doenças (CID-6), revelou, pela primeira
vez, como as ideias psicanalíticas e psicopatológicas subja­
centes poderiam conter particularidades não tão facilmente
aceitas no resto do mundo. Há vários trabalhos que descre­
vem, particularmente a partir do DSM-III (1980- 1987), o
processo gradual de retirada de categorias e signos clínicos
de extração psicanalítica e sua substituição por entidades
"propriamente psiquiátricas" (BAYER et al, 1985; ST EIN,
1991; ROBERT SON; PARIS, 2005; BURGY, 2008).
O objetivo deste capítulo é verificar em que medida essa
transformação no regime de correspondências psiquiá­
trico-psicanalíticas, expresso pelas duas exigências epis­
temológicas apresentadas anteriormente, ainda constitui
o sistema DSM como expressão de uma psicopatologia
capaz de apresentar-se como solo comum de referência
clínica, semiológica e diagnóstica tanto para psicanáli­
se quanto para psiquiatria. Basearemo-nos, para isso, no
exame de dois aspectos que nos parecem relevantes para
entender o sistema DSM: (1) sua aspiração a colocar-se
para o campo da psicopatologia como uma forma de "clas­
sificação" consensual, convencional e tendencialmente de­
sambiguadora (ao modo de um código de linguagem) e
(2) sua aspiração a constituir-se em um "ordenamento" de
natureza regular, exaustivo e universalizável (ao modo de
um código jurídico) das modalidades do psicopatológico.
Recuemos para que o argumento fique mais claro. É plau­
sível que as soluções representadas através do apelo a uma
"antropologia filosóficà' possam ser substituídas pela ado­
ção de uma estratégia baseada na convencionalidade do sig­
nificado patológico dos signos, ao modo de uma nosografia,
estratégia teórica que depende do conceito de "classe': que
inclui as antigas noções de "tipo': "quadro'' e "grupo� Inver­
samente, as soluções historicamente ligadas à importação

155
de conceitos da "filosofia da histórià' gravitam em torno do
conceito fundamental de "ordem': que reúne noções clássi­
cas como "evolução': "transformação'' e "progresso':
O problema da universalidade das formas do patológico de­
manda explicação para a existência de regularidades clíni­
cas que permanecem semelhantes em termos morfológicos
e fenomenológicos, no tempo e no espaço, apesar de altera­
ções e modulações expressivas e funcionais. É importante
insistir no caráter primitivo dos conceitos de "ordem'' e de
"classe': pois, uma vez reconhecida sua anterioridade lógica
diante de outros conceitos igualmente importantes - como
causa ou gênese, estrutura ou função -, podemos perceber
melhor como as relações entre psiquiatria e psicanálise es­
tão mal focadas. Por exemplo, o argumento de que sintomas
ou transtornos (disorders) são "causados" por perturbações
biológicas análogas à etiologia genética, endócrina, neuro­
química ou anatômica verificável em outras enfermidades
(KAPLAN et al, 1997) requer a admissão de que passagens
entre eventos de ordens distintas, do gene ao comporta­
mento, possam ser expressas em classes lógicas homogêne­
as, da química ao discurso social. Esses ordenamentos se­
riam casos particulares de uma determinação universal? De
forma similar, o argumento de que as apresentações clínicas
do patológico são combinações homólogas de contradições
derivadas do que há de universal nas culturas, como estru­
turas familiares, funções de personalidade, formas simbó­
licas (T ISSOT, 1984), nos força a admitir que classes origi­
nadas em um sistema de oposições possam originar figuras
clínicas que aspiram identidade denotativa. Essas classes
seriam formas particulares de tipos universais?
Alguns autores (BANZATO, 2005; PEREIRA; DANTAS,
2009) procuram mitigar essa dificuldade, distinguindo
"diagnóstico': como atividade de discriminação, de enti­
dades clínicas de "classificação': implicando a distribuição
de tais entidades em grupos ou categorias. Com base em
relações compartilhadas ou diferenciais entre conjuntos,
o diagnóstico nosológico não exprime a complexidade da
condição do paciente, mas apenas designa o que esse pa-

156
ciente tem em comum com os demais indivíduos incluídos
no mesmo conjunto. A semiologia funcionaria mais como
um dicionário que especifica o que está e o que não está no
código da língua do que como um conjunto total de nar­
rativas. O diagnóstico seguiria o princípio lógico de uma
enciclopédia na qual se encontram regras de ação ou cami­
nhos preferenciais de continuidade. O valor patológico dos
signos poderia ser pesado pela sua força de determinação
ou de indeterminação no conjunto que define um quadro.
Seguindo esse raciocínio, o diagnóstico psiquiátrico não
pode prescindir de elementos descritivos fenomenológicos
e comportamentais revelados na situação clínica, na qual a
relação intersubjetiva e a interpretação conservam um pa­
pel decisivo. Podemos inferir que, se a classificação cons­
trange em demasia o processo diagnóstico, ela prejudica a
prática clínica, mas, por outro lado, toda distinção presume
classes, categorias, oposições ou conjuntos.
Berrios (2007) define psiquiatria como o conjunto das nar­
rativas desenvolvidas, sobretudo, nas sociedades ocidentais
para explicar e tratar os fenômenos comportamentais que,
com base em critérios sociais, mais do que neurobiológicos,
foram definidos como desvios. Para Berrios (2008), as clas­
sificações psiquiátricas são produtos culturais, e não apenas
epifenômenos comportamentais envolvidos ou redutíveis
a alterações moleculares, mas o fato de a genética sozinha
não explicar toda a patologia mental não deve compelir os
psiquiatras à pesquisa de invariantes sociais. As explicações
etiológicas ou diagnósticas entre psiquiatria e psicanálise
não se somam, ao modo de fatores em uma operação ma­
temática, porque as relações de classe e ordem nem sem­
pre são do mesmo tipo, e não porque a psiquiatria advoga
homogeneamente uma ontologia materialista e monista e
a psicanálise o seu correlato idealista e dualista. A crença
de que as doenças mentais dependem de construtos sociais
não é ameaçadora à psiquiatria por questionar a existência
profissional de psiquiatras; ela é ameaçadora por não ofere­
cer a estabilidade requerida para criar um sistema preditivo
(relação de ordem) entre fenômenos, que é uma expecta-

157
tiva inerente a toda forma de medicina. A crença de que
estruturas clínicas dependem do funcionamento do sistema
nervoso não é ameaçadora à psicanálise por questionar a
existência do inconsciente ou da pulsão; ela é ameaçadora
por descrever o sofrimento e os sintomas em uma semiolo­
gia (relações de classe) refratária à intervenção pela palavra,
sob transferência.
Podemos agora sintetizar o tipo de mutualismo teórico­
-clínico existente entre psicanálise e psiquiatria à altura da
formulação do DSM-1 em 1952. A psicanálise preocupou­
-se pouco com a consistência de seu sistema de classificação
dos grupos psicopatológicos. Ao longo da obra de Freud,
encontramos regularmente uma atitude avessa ao ideal de
classificação exaustiva e de regularidade semiológica cons­
tante, comparável ao agrupamento das espécies proposto
por Lineu ou a tabela periódica proposta por Mendeleiev.
Ao contrário, Freud, e isso parece ter se mantido como uma
tônica entre quase todas as tradições psicanalíticas, acentu­
ava, em termos diagnósticos, a dimensão de "ordenamento''
dos signos em detrimento da sua função "classificatórià'.
Contudo, a psicanálise conta com um conjunto de concei­
tos e de hipóteses de natureza metapsicológica que fazem a
função dessa classificação no interior de uma psicopatolo­
gia. A saber, a função antropológica de organizar diferenças
sob a égide da universalidade. Trata-se das teorias comple­
mentares sobre o inconsciente, a pulsão e a defesa. Isso per­
mitiu que a força expositiva de casos clínicos adquirisse um
valor de generalização poucas vezes alcançado antes, e até
hoje questionável em termos da formulação de evidências.
Casos clínicos não funcionam, como na relação de classe
em psiquiatria, por acumulação e pelo recurso central às
operações de distinção, indução e inclusão em famílias, or­
dens, gêneros ou classes, distribuindo de forma homogênea
em oposições verticais (Gênero � Espécie) e oposições ho­
rizontais (Tipo A ou Tipo B). Um caso é principalmente a
articulação de uma história ou de um conjunto de histórias

158
que se ordenam de modos distintos e móveis (história dos
sintomas, do tratamento, narrada, lembrada, esquecida).
Uma passagem representativa da presença dessa atitude
em Freud: "Sei que há - ao menos nesta cidade - muitos
médicos que (coisa bastante repugnante) vão querer ler um
caso clínico desta índole como uma novela destinada a sua
diversão e não como uma contribuição a psicopatologia das
neuroses" (FREUD, 1905/1996, p. 8).
O termo em alemão para "novelà: neste trecho, é Schlüssel­
roman, ou seja, literalmente "romance-chave" e não apenas
"novelà' (como a tradução espanhola) ou "romance" (como
na tradução brasileira). O recurso à psicopatologia, em psi­
canálise, baseia-se na apresentação de casos que funcionam
como modelos ou paradigmas que permitem definir as
relações de ordenamento entre os signos patológicos. Des­
sas relações se podem inferir, secundariamente, potenciais
classificações. Estas devem se ajustar e se submeter à força
do ordenamento cujo núcleo é a noção de causalidade (an­
tropologia filosófica) ou de determinação (filosofia da his­
tória). Em Lacan, por exemplo, as estruturas ontológicas,
baseadas em relações de "ordem" (real, simbólico e imagi­
nário), tensionam ao longo de toda obra com as estruturas
antropológicas que privilegiam as relações de "classe" (me­
táfora paterna, teoria dos discursos, teoria da sexuação),
sendo o ponto constante (o Schlüsselroman de Freud) de
seu ensino as articulações entre ambas.
Dessa maneira, podemos entender por que a divisão de
tarefas entre psiquiatria e psicanálise poderia comportar
a formulação de um sistema diagnóstico como o DSM. O
lugar reservado para a consistência e exaustividade classi­
ficatória havia sido deixado vago por Freud. Ele reconhe­
cera a importância de outros métodos na realização dessa
tarefa e, ressaltemos, não via uma antinomia entre a psico­
patologia assim constituída e a psicanálise.

159
Pequena
História da
DSM
O sistema DSM é um imenso
empreendimento coletivo, do qual
participam diferentes grupos de
trabalho, comportando milhares
de pesquisadores divididos em
seções que expressam orientações
teóricas e clínicas distintas.
Observamos que, na classificação de 1918, todos os qua­
dros, excetuando-se as condições médicas correlatas (exó­
genas), contêm sobreposições diretas ou parciais com ca­
tegorias encontradas também na psicopatologia psicana­
lítica. Na classificação de 1952 do DSM-1, essa tendência
permanece com duas ressalvas, inclui-se massivamente a
ideia de "reação': como que a enfatizar a natureza transitó­
ria de tais estados, e introduz-se uma divisão dos quadros
de típico interesse psicanalítico entre as psiconeuroses,
qualificadas como desordens (disorders). Surge um novo
conjunto de categorias agrupado em torno da noção de
personalidade, com dez subtipos: inadequada, esquizoide,
ciclotímica, paranoide, estável-emocional, agressivo-pas­
siva, sadopática, antissocial, dissocial e com desvio sexu­
al. A classe da paranoia desloca-se da condição de grande
grupo dentro das psicoses (como considera a psicanálise)
para um tipo de personalidade e uma forma de delírio.
Opondo-se tanto à noção de "processo", extensamente
presente na grande síntese psiquiátrica alemã (baseada
nas divisões propostas por Kraepelin), quanto à noção de
"constituição': disseminada nas teorias da personalidade
de extração francesa, Meyer centrou sua racionalidade
diagnóstica em "tipos de reação'' (relações de classe) e no
pressuposto sintético da "história de vidà' e das moções
determinantes das doenças mentais (relações de ordem).
O primeiro grupo é referido em torno do espectro que vai
da ansiedade à depressão, com relativa preservação da li­
gação com a realidade. O segundo (desordens psicóticas)
caracteriza-se pela presença de alucinações e delírios com
perda substantiva da realidade (WILSON, 1993).
Comparemos a presença e sobreposição das categorias
psicopatológicas nos primeiros trabalhos de classificação
das doenças mentais realizados pela APA e a sua evolução
nas versões subsequentes.

164
Quadro 2: Alterações das categorias psicopatológicas nas
versões do DSM

Data Versão Número de Reformulação psicopatológica Fato relevante para a


Ou adros osicanálise
1 952 DSM I 106 Racionalidade diagnóstica Predomínio de categorias de
centrada em tipos de reação e no extração psicodinãmica,
pressuposto sintético da história ressaltando-se a oposição
de vida e das moções entre neurose e psicose
detenninantes das doenças
mentais
1 968 DSM-II 182 Abandono da noção dC "reação". Manutenção da noção de
Oposição entre neuroses (fobia, "neurose" exprime
obsessivo-compulsiva, predominância da
depressiva, neurastênica, psicodinâmica psiquiátrica
hipocondria, despersonalização)
e desordens de personalidade
(paranoide, ciclotímica,
esquizóide, explosiva, obsessiva
compulsiva, histérica, astênica,
antissocial, passivo-agressiva,
inade<1uada)
1 980 DSM-111 265 Surge o sistem a de diagnóstico O sistem a classificatório se
multiaxial. Adm ite pela últim a considera teórico e
vez o tenno neurose como operacional das grandes
categoria clínica. síndromes psiquiátricas.
Retirada da categoria Introdução do transtorno
··homossexualidade". ••cada de personalidade narcisista
desordem mental é conceituada
como comportamento
clinicamente significativo ou
sindrome nsicolóe:ica"
1 987 DSM- 292 Elimina o conceito de Diagnósticos são
Ill-R homossexualidade egodist&nica. considerados sistemas
Exclusão de quadros como convencionais, confiáveis
desordem dis fórlca pré- sem qualquer referência
menstrual e distúrbio da ontológica
nersonalidade masoauista
1 994 DSM-IV 297 Inclusão de um critério de DSM exclui os
significância clínica para quase psicodinamismos da
metade de todas as categorias etiologia conversiva e os
que possuíam sintomas e substitui pelo enfoque neo-
causavam sofrimento -organicista
clinicamente significativo ou
prejuízo no funcionamento
social e ocupacional.
A histeria é desmembrada em
síndromes: dissociação,
dismorfismo corporal,
ansiedade, depressão,
fibromialgia

2000 DSM- 297+2 1 Atualização das revisões Valorização de comorbidades


IV-TR (presentes bibliográficas que e cruzamentos entre eixos
no fundamentaram o DSM-IV. diagnósticos
apêndice Supressão do critério de
B- "significativo sofrimento ou
Propostas comprometimento" para o
para diagnóstico de transtorno de
estudos tique. Por volta de 50% dos
adicionais) quadros exigeni ..c/inically
signiflcant distress or
impainnent in social,
occupational, or other important
areas offunctioning" como
critério diamóstico
Fontes: APA, 1 987; 1 968; 1 952; Associação Pstqutátrica Amencana, 2009, gnfo nosso.

165
Em 1968, houve uma revisão da seção de transtorno men­
tal da CID-8, promovida pela Organização Mundial de
Saúde (APA, 1968). A rápida integração da psiquiatria
com o restante da medicina ajudou a criar a necessida­
de de uma nomenclatura psiquiátrica e de classificações
proximamente integradas com outras práticas médicas.
O principal fato a se destacar na revisão promovida pelo
DSM-II é que o termo "reação" foi abandonado, mas o ter­
mo "neurose" foi mantido. Isso refletia a predominância
da psicodinâmica psiquiátrica e o fortalecimento da psi­
copatologia comum entre psicanálise e psiquiatria, em­
bora as perspectivas biológicas e os conceitos do sistema
de Kraepelin de classificação começassem a ser incluídos
(T OMM, 1990). Os sintomas não eram especificados com
detalhes em distúrbios específicos. Muitos eram vistos
como reflexos de grandes conflitos subjacentes ou reações
inadequadas aos problemas da vida, enraizados em três
oposições fundamentais: neurose ou psicose; ansiedade
ou depressão e alucinações ou delírios. Esses três grupos
eram atravessados por um dualismo maior: quadros larga­
mente "em contato com a realidade" e quadros denotan­
do "significativa perda de realidade''. Podemos perceber
tal dualismo na criação do grupo de patologias de código
301-304 intitulado Personality disorders and certain other
non-psychotic mental disorders (APA, 1968). As três oposi­
ções eram contrabalançadas pela assimilação de teses bio­
lógicas e sociológicas que ainda não enfatizavam um claro
limite entre normalidade e anormalidade (T OMM, 1990).
No prefácio da versão II, o comitê justifica sua escolha:
Ao selecionar termos diagnósticos adequados a
cada categoria, o Comitê escolheu aqueles que fa­
cilitassem ao máximo a comunicação entre os pro­
fissionais e reduzissem a confusão e a ambiguidade
ao mínimo. Os racionalistas talvez estivessem pro­
pensos a acreditar no velho ditado: "uma rosa com
outro nome teria o mesmo doce perfume': mas os
psiquiatras sabem muito bem que fatos irracionais

166
desmentem sua validade e a nomenclatura deles
próprios condiciona nossa percepção. O Comitê
aceitou o fato de que diferentes nomes para a mes­
ma coisa implicam diferentes atitudes e conceitos.
Ele tem, entretanto, tentado evitar termos que car­
reguem consigo implicações sobre a natureza de um
distúrbio ou suas causas e tem sido claro sobre pres­
supostos causais quando eles são partes integrantes
de um conceito de diagnóstico (APA, 1968, p.VIII,
tradução nossa) 1 1 •
O modo psicanalítico de compreender a perturbação
mental tornou-se ainda mais evidente. As perturbações
mentais eram expressões visíveis de uma realidade psico­
lógica a ser interpretada no curso do tratamento. Psicana­
listas como Moses M. Frohlich, Jacob S. Kasanin, Edward
Adam Strecker compuseram o comitê redator dessa ver­
são. Nolan Lewis, um dos primeiros americanos a prati­
car a psicanálise, que partilhava interesses em psicanálise,
bioquímica, fisiologia e genética, fazia parte do grupo.
Outra figura importante no comitê foi Franz Alexander,
um dos responsáveis pelo notável impulso da psicanálise
nos Estados Unidos durante a década de 1930, fundador
do Instituto de Psicanálise de Chicago e um dos precurso­
res da aplicação do pensamento psicanalítico a processos
patofisiológicos. Em meio à Guerra Fria e ao papel cres­
centemente político da psiquiatria, a aproximação entre
psiquiatria e psicanálise ganhava força, conferindo cien­
tificidade a ambas sob a égide de um universalismo e um

1 1 "ln selecting suitable diagnostic terms for each rubric, the Committee has
chosen terms which it thought would facilitate maximum communication
within the profession and reduce confusion and ambiguity to a minimum.
Rationalists may be prone to believe the old saying that "a rose by any
other name would smell as sweet"; but psychiatrists know full well that
irrational factors belie its validity and that labels of themselves condition our
perceptions. Toe Committee accepted the fact that different names for the
sarne thing imply different attitudes and concepts. lt has, however, tried to
avoid terms which carry with them implications regarding either the nature
of a disorder or its causes and has been explicit about causal assumptions
when they are integral to a diagnostic concept."

167
nominalismo dos quadros psicopatológicos. Para alguns,
isso significava um tipo novo de colonização, representa­
da pela exportação e codificação das formas de sofrimento
(WAT T ERS, 2010).
Porém, entre 1952 e 1973, o DSM-11 atrai a ira dos crí­
ticos que nele reconhecem uma síntese do compromisso
entre a psiquiatria mais normativa e a psicanálise mais
retrógrada. Szasz ( 1977) afirma que o impacto da psica­
nálise na psiquiatria americana produziu uma difundida
ideologia pseudomédica que ele atribuiu ao alto status
social e econômico da profissão médica, à ambivalência
da psiquiatria com relação à psicanálise e a uma cultu­
ra carente de padrões éticos estáveis, que procura valo­
res científicos, seculares e de classe média. A associação
entre histeria e feminilidade (301.50 - Histrionic Perso­
nality Disorder) e a ligação entre homossexualidade e
perversão (302 - Sexual deviations and disorders/302.0 -
Homosexuality) são exemplos de que o manual represen­
taria a realização institucional referendada pelo Estado e
articulada aos seus dispositivos educacionais, jurídicos e
de pesquisa com viés político. A individualização e a pa­
tologização de contradições sociais, a segregação de mi­
norias e o controle e neutralização de resistências encon­
trariam, assim, um referendo psiquiátrico-psicanalítico.
Roudinesco (2000) nos lembra que a sociedade moderna
buscaria banir a realidade do infortúnio, da morte e da
violência, procurando integrar as diferenças e as resis­
tências num único sistema.
A sequência de polêmicas e protestos de críticos e ativistas
em conferências anuais da APA e o surgimento de novos
dados de pesquisadores como Kinsey e Hooker fizeram o
DSM-11 finalmente questionar a homossexualidade como
uma categoria de "desordem': Devido aos esforços do psi­
quiatra Robert Spitzer, o diagnóstico foi substituído pela
classe "distúrbio de orientação sexual", atualmente dividi­
do entre Transtorno de Identidade de Gênero (T IG). A re-

168
visão do DSM- II ganhou impulso a partir do debate sobre
manter ou não a homossexualidade como categoria diag­
nóstica específica (PEREIRA, 2000). Em 1970, ativistas
gays invadiram o congresso da APA e protestaram contra
a ideia do comportamento homossexual como intrinse­
camente patológico (PEREIRA, 1996). Em 1973, a APA
aceita retirar a homossexualidade da condição patológica.
No DSM-III-R encontramos o seguinte comentário acerca
da homossexualidade egodistônica:
Esta categoria foi eliminada por várias razões. Ela
sugeriu a alguns que homossexualidade era consi­
derada uma doença. Nos Estados Unidos, quase
todas as pessoas que são homossexuais primeiro
passam por uma fase em que a homossexualidade
delas é egodistônica. Além disso, o diagnóstico de
homossexualidade egodistônico raramente tem sido
utilizado clinicamente, e houve apenas alguns arti­
gos na literatura científica que usam o conceito. Fi­
nalmente, os programas de tratamento que tentam
ajudar homens bissexuais a se tornarem heterosse­
xuais não têm usado esse diagnóstico. No DSM-II-
1-R, um exemplo de afecções sexuais são casos que
no DSM-III preencheram os critérios de homosse­
xualidade egodistônica (APA, 1987, p. 426, grifo e
tradução nossa). 1 2
A nova revisão do DSM manteve Spitzer como presiden­
te da força-tarefa em 1974. Três objetivos se destacam:
melhorar a uniformidade e a validade do diagnóstico,

12 "This category has been eliminated for severa! reasons. It suggested to


some that homosexuality itself was considered a disorder. ln the United
States almost all people who are homosexual first go through a phase in
which their homosexuality is ego-dystonic. Furthermore, the diagnosis
of Ego-dystonic Homosexuality has rarely been used clinically and there
have been only a few articles in the scientific literature that use the concept.
Finally, the treatment programs that attempt to help bisexual men become
heterosexual have not used this diagnosis. ln DSM-111-R, an example of
Sexual Disorder NOS are cases that in DSM-III would have met the criteria
for Ego-dystonic Homosexuality:'

169
padronizar as práticas de diagnóstico nos Estados Uni­
dos e outros países e facilitar o processo de regulamen­
tação farmacêutica. Os pontos de vista psicodinâmicos e
fisiológicos deram lugar a um modelo regulamentar ou
legislativo (KUT CHINS; KIRK, 1997), tornando o pro­
blema teórico da classe e ordenamento solúvel, por meio
de um sistema articulado e autorregulado de "consensos
operacionais''.
A controvérsia concentrou-se na supressão do conceito de
"neurose", uma das classes fundamentais da psicopatolo­
gia psicanalítica e o quadro que justificaria a eficácia dessa
forma de psicoterapia. Para os reformadores do DSM-III,
essa noção tornara-se vaga e não científica, e a nova versão
passou por sério perigo de não ser aprovada pelo Conse­
lho de Administração da APA. Um compromisso político
de reutilização do termo foi assumido e inserido entre pa­
rênteses, em alguns casos, depois da palavra "desordem"
(disorder). O DSM-III pode ser considerado o ponto de
virada nas relações entre psicanálise e psiquiatria. Segun -
do Mayes e Horwitz, a psiquiatria passa a definir-se, pela
primeira vez, em oposição à psicoterapia e "os psicotera­
peutas são acusados de criar demandas e serviços para
aqueles que realmente não estavam doentes, mas apenas
discontentes (discontents)" (MAYES; HORWIT Z, 2005, p.
25 1). Segundo esses autores, encontrava-se, assim, na psi­
coterapia (de extração predominantemente psicanalítica)
o fator responsável pela superpopulação de internos em
instituições psiquiátricas pelo sexismo e pelo uso político
(não científico) da psiquiatria.
Publicado em 1980, o DSM-III representou uma profunda
transformação da psiquiatria. Ao se posicionar como um
sistema classificatório ateórico e operacional das grandes
síndromes psiquiátricas, esse manual modificou a concep­
ção de pesquisa e da prática psiquiátrica, pois a psiquia­
tria teria disponível um sistema de diagnóstico preciso, do
ponto de vista descritivo-terminológico, e passível de ser-

170
vir de apoio para a pesquisa empírico-experimental. Em
1987, o DSM-III-R foi publicado como uma revisão do
DSM-III, sob a direção de Spitzer, em nome da "confiabi­
lidade do diagnóstico" (KUTCHINS; KIRK, 1997, p. 27).
Segundo Pereira (2000), a partir do DSM-III, os diag­
nósticos seriam considerados instrumentos conven­
cionais, dispensando qualquer referência ontológica. A
única exigência seria a concordância no plano descritivo.
O DSM-III admite, pela última vez, o emprego da "neu­
rose" como categoria clínica. Os contextos e variantes
sociais são reduzidos a "síndromes culturais específicas"
ou distribuídos por um entendimento bastante limitado
do campo social na determinação, expressão e caracteri­
zação dos transtornos mentais. 1 3 A nova versão do DSM
podia ser apresentada aos críticos como sucedânea de
uma exclusão dos termos psicanalíticos. Em contrapeso,
uma série de "problemas" pode ser evacuada por meio
dessa "des-associação" com a psicanálise: exigência de
uma teoria explicativa unificada, pretensão etiológica,
ambiguidade descritiva, sem falar na concorrência entre
observações clínicas diversas.
Russo e Venâncio (2006) ressaltam o contexto ideológico
das divergências entre a psicanálise e os idealizadores da
terceira versão do DSM. Os psicanalistas se posiciona­
ram de um lado contra os psiquiatras partidários de uma
visão fisicalista do transtorno mental. Mas a transforma­
ção levada a cabo pelo DSM-III é fruto de uma aliança
entre psiquiatras de orientação fisicalista ligados à pes­
quisa experimental - para quem a psicanálise era um en­
trave à neutralidade científica e ao rigor da observação
empírica - e os psiquiatras progressistas - que acusavam
a psicanálise de psicologizar problemas de ordem social.

1 3 Segundo Mayes e Horwitz (2005), o manual é uma referência internacional


aceita na maior parte dos países do ocidente, utilizado massivamente
pelos sistemas de saúde pública, convênios médicos e centros de pesquisa
psiquiátrica e farmacêutica.

171
Nos dois casos, a ortodoxia psicanalítica era o inimigo a
ser vencido.
Othmer (1992), numa obra prefaciada por Spitzer, afirma
que a mudança nos conceitos de enfermidade psiquiátrica
no DSM-III obriga a uma mudança nos estilos de entre­
vistar usados por profissionais da saúde mental nos dias de
hoje. "De um estilo orientado pelo insight (psicodinâmico)
para um orientado pelo sintoma (descritivo)" (OTHMER,
1992, p. 3). Ainda, segundo Othmer, a entrevista orienta­
da pelo sintoma origina-se na hipótese de que os distúrbios
psiquiátricos se manifestam através de um conjunto carac­
terístico de sinais e sintomas, um curso previsível, uma res­
posta a um tratamento um tanto específico e, muitas vezes,
uma ocorrência familiar. A meta da entrevista orientada
pelo sintoma é classificar as queixas e disfunções do pacien­
te de acordo com as categorias definidas pela classificação
DSM. Tal diagnóstico prediz o curso futuro e ajuda a se­
lecionar empiricamente o tratamento mais eficaz, mas não
permite conclusões sobre suas causas.
O método de tal entrevista consiste em observar o com­
portamento do paciente e motivá-lo a descrever seus pro­
blemas em detalhe. O entrevistador traduz sua percepção
em sintomas e sinais para um diagnóstico descritivo. Tal
diagnóstico inclui avaliação do ajustamento das capacida­
des de enfrentamento do paciente, seu modo de lidar com
seu distúrbio e uma avaliação das condições clínicas do
paciente, das circunstâncias sociais e dos estressores am­
bientais.
O DSM-IV apresenta uma grande mudança na inclusão
de um critério de significância clínica para quase meta­
de de todas as categorias que possuíam sintomas e cau­
savam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo
no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas
importantes. Masoti (2009), ao fazer uma breve retrospec­
tiva da extinção do termo "neurose" na classificação DSM,
ressalta o menosprezo desse sistema classificatório com a

172
atividade psíquica nas gêneses dos transtornos somáticos.
Por exemplo, na primeira edição do DSM, a terminologia
"reação de conversão" se referia ao componente reativo,
ideacional ou simbólico do sintoma de conversão (con­
version reaction) (APA, 1952, p. 6). A segunda edição do
DSM aproximou-se ainda mais da terminologia de Freud
(psiconeurose histérica de conversão), com a finalidade de
assinalar a proeminência dos sintomas psíquicos sobre os
somáticos.
O DSM-III retrocede na defesa da etiologia psíquica na
formação dos sintomas somáticos. Essa edição do manual
orienta os médicos para o fato de que a introdução dos
psicodinamismos na etiologia dos sintomas conversivos
responde a uma condição subjetiva do próprio juízo do
profissional médico que os inclui. Ou seja, o fato de a teo­
ria psicanalítica versar sobre fatos de significação, sub­
jetivamente variáveis, torna esta teoria ela mesma uma
manifestação de adesão subjetiva de quem a emprega.
Finalmente, em sua quarta versão, o DSM exclui os psico­
dinamismos da etiologia conversiva e os substitui pelo en­
foque neo-organicista atual, em contraposição ao organi­
cismo anterior. A histeria é desmembrada em síndromes:
dissociação, dismorfismo corporal, ansiedade, depressão,
fibromialgia.
Ramos {2008) aponta as grandes modificações tanto nas
representações da histeria quanto nos próprios quadros
que se apresentam para os clínicos no decorrer do sécu­
lo XX. O autor ressalta duas perspectivas entre os autores
contemporâneos acerca das modificações na apresentação
da histeria. Ou a histeria modificou-se e aparece hoje na
forma de transtornos alimentares, algesias, etc., ou a his­
teria está desaparecendo, dando lugar para quadros mais
graves como os quadros borderlines. Na mesma linha de
raciocínio, Henriques (2009), ao pesquisar a evolução do
conceito de psicopatia de Cleckley no DSM-IV-T R, cons­
tata que a classificação DSM procedeu à radical operado-

173
nalização dos critérios diagnósticos propostos para a psi­
copatia, enfatizando características comportamentais re­
duzidas a condutas antissociais, objetiváveis e evidenciá­
veis. Nas palavras do autor: "o critério de psicopatia degra­
da-se ao nível do levantamento protocolar dependendo
dos testemunhos de terceiros para confirmar as condutas
antissociais do provável psicopatà' (HENRIQUES, 2009,
p. 296). Tende-se, dessa forma, a substituir a escuta clínica
do sujeito pela pesquisa de anomalias comportamentais
que a referência ao conformismo social transforma em si­
nais de patologia.
Há, portanto, uma tendência ao desmembramento dos
quadros clássicos, nos quais a presença da psicanálise é
mais bem percebida em grupos descritivos e operacionais
menores. O que esta tendência revela não é o fim da no­
ção de classe, mas a segmentação de categorias, sem elu­
cidação de suas regras de formação e, portanto, perda da
conexão intrínseca entre ordem e classe, que caracteriza­
va o campo da psicopatologia, seja ela psicanaliticamente
inspirada ou não.
Nos 20 anos que separam o DSM-III do IV, rompeu-se a
tradição, em vigor desde Pinel, em que a caracterização
das formas de sofrimento, alienação ou patologia mental
faziam-se acompanhar da fundamentação ou da crítica fi­
losófica. Ao mesmo tempo, rompeu-se a aproximação en­
tre psicanálise e psiquiatria, celebrada sob os auspícios de
figuras de compromisso como a psiquiatria psicodinâmica
e a psicopatologia. A associação entre a crítica epistemoló­
gica de extração filosófica, baseada na antropologia e seus
sistemas classificatórios ou na história e seus processos
ordenadores, não foi derrogada, mas apenas neutralizada
por meio de um sistema que reúne oposições sem reco­
nhecê-las, e ao mesmo tempo, soma fatores heterogêneos.
O método multiaxial pode ser considerado um resíduo
dessa articulação: desordem clínica, personalidade, con­
dição médica, fatores psicossociais e funcionamento glo-

174
bal não são apenas palavras-chaves, representativas dos
cinco eixos desse sistema diagnóstico. Elas exprimem, em
cada caso, articulações entre relações de ordem e de classe
que são logicamente distintas entre si, quer se acentue a
"gênese" ou a "estrutura': a "causà' ou o "funcionamento':
o "sintoma particular" ou a "síndrome global". Ou seja, em
vez de progredir pela ambiguação de línguas concorren­
tes, tal como a psicopatologia clássica, recorreu-se à uni­
dade desambiguadora da norma operacional. 14 Trata-se de
uma mutação da própria razão diagnóstica e não de um
de seus movimentos de contradição interna. Afirmar que
a ruptura entre psiquiatria e psicanálise se dá em função
de critérios de científicidade mais ou menos positivistas é
jogar pelas regras de um jogo ultrapassado. Argumentar
em torno da oposição entre técnica e ética, criticar o des­
locamento do método de investigação para a tecnologia de
pesquisa (ERIKSEN; KRESS, 2004), no fundo, confirma
humanismo datado que atravessa a psicanálise, e a confina
a defender uma posição que não é de fato posta em seus
próprios termos. O importante é entender como as regras
daquilo que estamos dispostos a contar como racional,
no dispositivo social que é o diagnóstico, foram alteradas,
muito recentemente, dispensando a concorrência de para­
digmas e forçando falsas oposições.
Afirmamos anteriormente (DUNKER, 2010) que existe
uma desarticulação entre história e estrutura na raciona­
lidade diagnóstica atual. Na psiquiatria baseada no DSM­
-IV, permanece uma grande oposição entre transtornos
clínicos (eixo I) e de personalidade (eixo II). O eixo I bus­
ca descrever os sintomas da pessoa, enquanto o eixo II al­
meja descrever sua personalidade. A psiquiatria em curso
14 A grande oposição não se dá entre fundamentação biológica ou
psicológica. Basta lembrarmos das figuras teóricas como a neuropsicanálise
ou como a etnopsiquiatria, que invertem facilmente essa oposição, ou, ainda,
figuras atitudinais de linhagem biopsicossocial, para verificar que o que está
em questão, no fundo, é a própria inanidade das atitudes fundacionistas em
relação aos procedimentos práticos e de autonomização jurídica das regras
de gestão da saúde mental.

175
no DSM não pretende se constituir como uma psicopato­
logia estrutural, pois as classes não são definidas por re­
gras de formação estáveis (princípio da convencionalida­
de operacional), e as ordens não se conectam com lógicas
causais (princípio da exclusão etiológica). Daí as crônicas
dificuldades classificatórias, de elevadas consequências
clínicas. Há um crescimento desmesurado do número de
categorias diagnósticas, que responde a uma demanda não
apenas de medicamento e alívio, mas de sentido. Caberia
assim à psiquiatria, ao mesmo tempo, tratar e produzir
excesso de experiências improdutivas de determinação, a
saber, a inflação nominalista da saúde mental sobre o so­
frimento de pathos. Por outro lado, caberia à psicanálise,
ao mesmo tempo, tratar e produzir uma espécie de deficit
de experiências produtivas de indeterminação, a saber, a
deflação da demanda de significação e ordem que acom­
panha o sofrimento de pathos.
Avaliamos que seja na crítica da cultura ou no diálogo
com as classificações diagnósticas que a psicanálise tem
uma contribuição específica a dar, na medida em que per­
mite uma abordagem racional do subjetivo, do singular
e dos aspectos irredutíveis a grandes leis gerais sobre o
sofrimento humano. Mas, para isso, terá que atravessar
tanto a pertinência das objeções políticas quanto o rigor
das críticas epistemológicas que se expressam na formu­
lação do DSM-III, sem recuar para a posição anterior de
compromisso semiológico diagnóstico. Por outro lado, a
psiquiatria, ao se afastar da psicopatologia, reconhecen­
do nela um território demasiadamente ambíguo do sofri­
mento, do mal-estar e da significação, com sua polifonia
de vozes e narrativas, aproxima-se perigosamente de uma
prática mecânica de medicalização de massas. Dessa for­
ma, a sua aspiração à universalidade decai em "totalidade
operacional", bem como sua capacidade para intervir na
singularidade da clínica degrada-se em "generalidade par­
ticular':

176
Formalismo
Normativo 15
Em julho de 2009, a imprensa
brasileira deu destaque ao caso
de uma psicóloga punida pelo
Conselho Federal de Psicologia
por oferecer aos seus pacientes
um tratamento que supostamente
curava a homossexualidade. 16
o discurso no interior do qual ela se apresenta como defesa
possível. O discurso no qual o argumento se apoia implica,
tacitamente, que aquilo que é descrito como anomalia (e o
DSM seria um catálogo sobre isso) justifica, automaticamen­
te, a necessidade de sua erradicação, inversão ou cura. Nota­
mos aqui ecos do discurso jurídico, no qual não há crime que
não esteja especificado como artigo do Código Penal. Con­
sequentemente, tudo o que está no Código Penal constitui
crime e deve ser evitado, banido ou coibido. Mas assim como
o direito pode ser exercido sem justiça, a saúde mental pode
ser praticada de forma insalubre. Entendemos que a chave
para entender esse discurso encontra-se na ideia de operacio­
nalização nominal do sofrimento e do mal-estar ao modo do
que Ota (2010) chamou de formalismo normativo.
Adotamos, assim, uma perspectiva metodológica análoga
à de Berrios (2008), que, ao estudar as classificações psi­
quiátricas a partir de uma episteme exterior à psiquiatria,
considera as classificações psiquiátricas como produtos
culturais, não obstante a materialidade e a empiricidade
dos fenômenos a que se referem. Esse autor relativiza a
concepção de que as doenças mentais seriam epifenôme­
nos comportamentais envolvidos em alterações molecu­
lares e neuroquímicas. Para ele, a genética, sozinha, não
explica toda a patologia mental e não deveria compelir os
psiquiatras à pesquisa de uma invariante social. A crença
de que todas as doenças mentais sejam meramente cons­
trutos sociais não é ameaçadora à psiquiatria porque ques­
tiona a existência profissional de psiquiatras; ela é ameaça­
dora por não oferecer a estabilidade requerida para criar
um sistema preditivo, que é uma expectativa inerente à
medicina. Ou seja, o primeiro fato a considerar no deline­
amento dessa racionalidade diagnóstica é justamente seu
nominalismo. Os fatos clínicos são tomados apenas como
convenções operacionais ou descrições simples de aconte­
cimentos e signos em ordenamento patológico.
Abordaremos a punição imposta à psicóloga a partir de
duas perspectivas. A primeira pretende refletir sobre as

182
peculiaridades do campo da saúde mental no Brasil, em
comparação com alguns aspectos do funcionamento do sis­
tema de saúde mental norte-americano, no qual emerge o
DSM, notadamente quanto ao uso e a função de categorias
clínicas. Essa perspectiva considera que a saúde mental é
um microcosmo do Brasil; nela se representam as diferen­
ças sociais abissais presentes em nosso país, as motivações
de distintos grupos políticos, as combinações entre vícios
públicos e benefícios privados na economia e na ideologia.
Encontramos no campo da saúde mental uma arena de
conflito de interesses diversos, na qual a segregação, as re­
presentações de gênero e o preconceito possuem uma histó­
ria diversa do caso americano. Portanto temos que conside­
rar a absorção das categorias e da racionalidade diagnóstica
contida no DSM como um caso de importação de ideias e
práticas. Estariam elas fora do lugar?
A segunda perspectiva presente neste capítulo enfatiza o
lugar do DSM no vasto campo da psicopatologia, mais es­
pecificamente sua penetração entre psicólogos e psicanalis­
tas em questões atinentes à sexualidade e ao gênero. Aqui
nosso argumento se esboça da seguinte forma: se é verdade
que uma determinada forma de psicanálise teria inspirado
diretamente a formação do sistema DSM (pelo menos até
sua segunda edição) e se é verdade que a psicanálise teria,
assim, transmitido um modelo androcêntrico, heterossexu­
al e neuróticocêntrico ao DSM, que culminou na associação
entre homossexualidade e perversão, teria de fato a solução
nominalista representada pela "homossexualidade egodistô­
nicà' resolvido o problema? Ou a presença dessa categoria
representa justamente um sintoma dessa razão diagnóstica?
Estudando o amplo espectro de reformas institucionais ex­
presso pelo desenvolvimento de um novo sistema de assis­
tência social, no quadro de um novo pacto entre Estado e
o emergente terceiro setor brasileiro, Ota (2010) mostrou
como esse processo, que se inicia com a abertura política
dos anos 1980 e parece apresentar sinais claros de exaus­
tão, baseia-se em dois movimentos articulados. De um

183
lado, trata-se de uma mutação da economia interna e na
funcionalidade externa das teorias de referência para a for­
mação de políticas públicas. Essa mutação implica que os
quadros conceituais de determinado sistema teórico, seja
ele pós-estruturalista, pós-crítico, psicanalítico ou liberal,
sofrem uma espécie de tradução normativa. Por meio dela,
incorporam-se a regulamentos, normas, marcos regulató­
rios e demais estatutos institucionais, adquirindo assim um
segundo sentido. Tal sentido serve para o reconhecimento
intersubjetivo e político dos atores do sistema socioassisten­
cial, bem como para a criação de fronteiras e facilitações
no interior de processos institucionais. Nesse sentido, pro­
cessos administrativos, deliberações sobre distribuição de
recursos ou alocação de funcionários podem depender es­
tritamente desse formalismo normativo. É justo supor que
esse fenômeno encontre seu correlato no interior da saúde
mental e que uma formulação tão equívoca quanto a tese de
curar a "homossexualidade egodistônicà' aspire à eficácia
pragmática, não pelo seu conteúdo, mas pela inclusão que
pretende em um determinado discurso, o da psicopatologia
prática, no qual o DSM se vê incorporado.
Discurso que se inclui em uma determinada razão diag­
nóstica que ultrapassa os procedimentos psiquiátri­
cos e estende-se ao campo do que estamos chamando
de "psicopatologia práticà: cada vez mais influente na
cultura brasileira. A psicopatologia prática não corres­
ponde a uma orientação teórica ou técnica, de tipo ge­
ral ou fundamental, mas apenas ao uso, à combinação e
ao compromisso entre conceitos, noções, regras de ação
e consensos normativos, de tal modo que a psicopato­
logia inclua-se em um discurso que, ao mesmo tempo,
faculte escolhas e confrontações teóricas em psicoterapia
(por exemplo, cognitivismo, psicanálise, interacionismo,
psicodrama etc.), discrimine campos disciplinares (por
exemplo, psicologia, psiquiatria, terapia ocupacional
etc.), articule disposições jurídicas (leis sobres serviços
substitutivos, composições e distribuição de recursos),

184
organize hierarquias institucionais (de chefia e subordi­
nação), oriente estratégias de atenção, cuidado e trata­
mento (psicoterapias grupais individuais, iniciativas de
interação e inclusão) e caracterize orientações políticas
e de cidadania. Fica claro que tais funções estão muito
distantes do que convencionalmente se espera de uma
psicopatologia, como articulação clínica entre diagnósti­
cos, formas de intervenção e investigações etiológicas ou
semiológicas. Contudo, essa é a ideia mesma de prática
discursiva (FOUCAU LT, 1988): tornar homogêneos e
proporcionais superfícies discursivas e enunciados cuja
origem está distante do objeto e da forma de poder que
essa prática discursiva exerce. Dessa maneira, podemos
dizer que uma mesma "razão diagnósticà' contém inú­
meras modalidades de "psicopatologia práticà: confor­
me o discurso e, no caso específico de nosso interesse, "o
discurso do formalismo normativo".
Pretendemos contribuir, dessa forma, para o entendimento
de um vasto conjunto de fenômenos relacionados à expan­
são desordenada do discurso formal-normativo em saúde
mental, fenômeno que não será objeto de nossa consideração
aqui, mas no qual podemos incluir a hipermedicalização por
especialistas, a automedicalização, a medicalização por não
especialistas, os compromissos entre estratégias de medica­
ção (alopáticas, homeopáticas, fitoterápicas etc.), a psicopa­
tologização das formas de vida (infância, terceira idade, ado­
lescência, primeira infância), a psicopatologização dos laços
sociais (escolarização, trabalho, vida amorosa) e dos compor­
tamentos, das disposições morais e discursivas.
Acreditamos que a polêmica criada em torno da ideia
de cura da homossexualidade é paradigmática da forma
como a absorção dos grupos clínicos presentes no DSM
influencia as práticas psicoterápicas, contribuindo para a
adaptação social de pacientes. Ao fundo desse fenômeno,
encontramos um efeito aparentemente securitário gerado
pela inclusão nominal de uma forma de sofrimento ou de
mal-estar ao modo de um nome. O nome inclui. Essa é uma
descoberta notável do formalismo normativo brasileiro.

185
Diagnóstica e
Teoria de Gênero:
um exempla
comparativa
Lembremos que a polêmica em
torno da cura da orientação
homossexual possui, no Brasil,
intensa afinidade com a
ascensão do discurso religioso
conservador

e com a crescente pragmática de resultados e eficácia de


curas que tal discurso veio a produzir no país nos anos
1980-2000. Não só a psiquiatria tornou-se baseada em
evidências; as curas mágicas e as asceses religiosas tam­
bém. Isso deve ser pesado contra a origem desse formato
discursivo assumido pelo DSM, que teve início em 1970,
nos Estados Unidos, com o lançamento do DSM-11, que
fazia associação entre perversão e homossexualidade. Ati­
vistas denunciaram a individualização, a patologização de
contradições sociais e a segregação de minorias. O contro­
le e a neutralização de resistências encontrariam, assim,
um referendo psiquiátrico-psicanalítico.
A partir da década de noventa, o Brasil realiza, de forma
expressiva, uma reforma psiquiátrica por meio de uma
iniciativa articulada dos três níveis gestores do Sistema
Único de Saúde (SUS). Tal processo resultou na modifi­
cação de algumas formas jurídicas e na ênfase das políti­
cas públicas sobre a questão. O Projeto de Lei nº 3.657, de
1989, conhecido como Lei Paulo Delgado, proibia a cons­
trução ou a contratação de novos leitos psiquiátricos pelo
poder público e previa o redirecionamento dos recursos
públicos para a criação de "recursos não manicomiais" e
"práticas substitutivas" em saúde mental. Tal projeto foi
aprovado em março de 2001, após doze anos de trami­
tação no Congresso Nacional. Na publicação oficial do
Ministério da Saúde, fica estabelecido o objetivo de: " [ ... ]
alcançar, em um futuro próximo, uma atenção em saúde
mental que garanta os direitos e promova a cidadania dos
portadores de transtornos mentais no Brasil, favorecendo
sua inclusão social" (BRASIL, 2000, p. 5).
Tal mudança discursiva reconfigura juridicamente o so­
frimento mental como uma questão de política pública.
A par das inúmeras transformações e ganhos decorrentes
dessa mudança de perspectiva, duas peças sólidas rema-
nescem intocadas: o sistema diagnóstico baseado no DSM
e a medicalização extensiva. Diversos autores (FIGUEI ­
REDO; T ENÓRIO, 2002; FERREIRA, 2005) criticam a
origem primária neuroquímica dos transtornos mentais,
não porque ela seja materialmente inconsistente, mas por­
que a descrição de alterações não deveria, por si só, jus­
tificar nem a etiologia, nem o tratamento. Ao final e ao
cabo, não é a redução ou a ausência de eficácia o que justi­
ficaria a exclusão de práticas psicanalíticas; pelo contrário,
as "psicoterapias psicodinâmicas de longo termo" mostra­
ram-se muito mais eficazes do que qualquer outra forma
de tratamento psicológico (LEICHSENRING; RABUNG,
2008). Ocorre que a grande transformação gerada pela re­
forma psiquiátrica no Brasil herda uma prática, já consti­
tuída, baseada no binômio DSM-medicalização. Isso con­
trasta vivamente com o cenário norte-americano, no qual
o DSM é reconstruído em meio ao reposicionamento da
APA (American Psychiatric Association) em novas práticas
institucionais de tratamento. O paradoxo é que um ins­
trumento formado para reinstitucionalizar massivamente
a saúde mental americana seja empregado como prática
nuclear da desinstitucionalização asilar brasileira.
Enquanto, no Brasil, a inclusão como princípio maior da
prática em saúde mental abarca principalmente uma re­
forma institucional de cunho universalista, nos Estados
Unidos, as reformulações do DSM, notadamente a partir
dos anos 1970, abarcam uma reforma clínica que dá ex­
pressão a uma sociedade crescentemente multicultural. O
ativismo americano, que questionava a patologização da

190
homossexualidade, discutia principalmente a diferença
entre sexualidade e gênero, enquanto o ativismo brasileiro
centrava seus questionamentos na barreira que restringia
a cidadania, representada pelo acesso a sistemas e disposi­
tivos estatais de bem-estar e assistência. A relativa anomia
que vigorava na exclusão de acesso a qualquer tratamento
real em saúde mental por uma parte da população bra­
sileira, já então excluída de bens e serviços semelhantes
em termos de justiça, saúde e educação, não pode ser
comparada com a alta organização das minorias norte­
-americanas que levaram a luta pelos direitos civis (civil
rights) como exigência de reconhecimento e expressão de
demandas particulares.
Temos assim, no contexto norte-americano, um proces­
so de "desinstitucionalização'' da interferência do Estado
nas questões de gênero, que pede por uma transformação
discursiva e por políticas diretas de contrassegregação. Na
situação brasileira, ao contrário, há um processo de "desins­
titucionalização'' geral da saúde mental, seguida por uma
"reinstitucionalização discursivà: baseada na construção de
práticas substitutivas em saúde mental. Daí que a inclusão
brasileira seja, antes de tudo, genérica, isto é, centrada em
"usuários quaisquer" que aspiram à condição de cidadãos,
e que a inclusão norte-americana seja uma inclusão espe­
cífica, ou seja, que aspira à inscrição das diferentes inter­
seccionalidades, a saber, de gênero, de classe, de etnia, de
cultura, nas práticas institucionais e discursivas em saúde
mental. Ao contrário do Brasil, nos Estados Unidos, a re­
visão de práticas em saúde mental nos anos 1980-1990 não
questionou a fundo o contexto institucional, o fundamento
médico e a conexão jurídica que organizam a saúde mental
naquele país. Isso não se fez necessário, uma vez que, nos
Estados Unidos, um análogo da reforma psiquiátrica já ha­
via acontecido. Em outros moldes e com outras finalidades,
verificou-se nos Estados Unidos da década de 1960 uma
profunda modificação do discurso asilar.

191
O relatório Action for mental health, de 1961, recomenda­
va que fossem criadas bases de assistência comunitária e
ampliação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais. Esse
relatório representa a primeira política nacional norte-a­
mericana de cuidados comunitários para a saúde mental,
e também ambicionava uma reforma psiquiátrica hospi­
talar, buscando a humanização e o desenvolvimento de
programas de reabilitação, visando reinserir o paciente na
comunidade.
Os grandes hospitais psiquiátricos deveriam ter seus leitos
reduzidos, e outros não poderiam ser criados. O espaço de
ação da psiquiatria deveria ser expandido e incorporado à
comunidade como campo de atuação. Dois mil centros de
saúde mental comunitária seriam introduzidos em todo
o país e, dois anos depois (1965), já se poderia dizer que
os programas estariam implantados. Há, ainda, relatos de
brusco esvaziamento de hospitais psiquiátricos, especial­
mente na Califórnia, sem que a rede comunitária de aten­
dimento estivesse funcionando.
Caplan (1967), teórico que interferiu no processo norte-a­
mericano, influenciou notavelmente os programas comu­
nitários da América Latina, incluindo o Brasil. Esse autor
importa conceitos de história natural da doença e níveis de
prevenção, transpondo-os para a área de saúde mental, por
meio de seu conceito básico de "crise''. Tal fato permite uma
nova articulação, fundamental para os países em desenvol­
vimento, em nível conceituai com a saúde pública, uma das
recomendações básicas e comuns a todos os programas de
saúde mental exportados para a América Latina.
Em busca de constituir uma nova disciplina, Caplan (1968)
define a psiquiatria preventiva como um ramo da psiquia­
tria que é parte do esforço comunitário mais amplo. A psi­
quiatria preventiva ocupa-se de todos os tipos de transtor­
nos mentais em pessoas de todas as idades e classes, num
enfoque do problema total da comunidade e não somente
do problema dos indivíduos e grupos particulares.

192
Em nossa opinião, as premissas de Caplan antecipam o
que seria a tônica atual da psiquiatria norte-americana na
vertente da classificação DSM. Ele inferiu que as doenças
mentais obedeceriam ao modelo da história natural das
doenças, devendo haver uma pré-patogênese a ser iden­
tificada e imediatamente atuada, com vistas a prevenir o
surgimento da enfermidade.
Pitta-Hoisel (1984) nos lembra que Caplan estabeleceu
em sua teoria correlações entre miséria/loucura, velhice/
crise, adolescência/crise, propondo trabalhos profiláticos
para erradicar o sofrimento. Ele buscava uma intervenção
técnica que, por intermédio do controle social, regularia e
administraria todas as possíveis fontes de inquietação na
comunidade. Podemos aproximar os objetivos de Caplan
com o compromisso pragmático do DSM. Esse compro­
misso obrigou os pesquisadores a abandonarem os con­
ceitos de seus campos específicos, e mostrou-se particu­
larmente conveniente para disciplinas que operam com
uma metodologia empírico-experimental em suas abor­
dagens do sofrimento psíquico.
A partir de 1990, ocorreram mudanças em relação às po­
líticas de saúde mental brasileiras, caracterizadas pela re­
estruturação da assistência psiquiátrica, melhor aplicação
dos recursos financeiros e desenvolvimento de serviços
integrados à atenção básica. A ênfase era o desenvolvi­
mento de dispositivos comunitários visando ao tratamen­
to precoce, contínuo e eficiente na reabilitação e reinser­
ção do usuário da saúde mental.
O clima sociopolítico influenciava nas questões da saúde,
não só nas políticas para a área, mas também no agir em
saúde. Nesse contexto reformista, algumas áreas tiveram
destaque, em especial as relacionadas ao uso de substân­
cias psicoativas, suicídio, violência e transtornos compor­
tamentais. Para os progressistas, esse pensamento poderia
ser perigoso e ferir a individualidade e a liberdade de es­
colha dos cidadãos; já os conservadores acreditavam que o

193
controle social fortalecia o Estado e defendiam que a mu-
dança deveria ser realizada paulatinamente.
Tais considerações são relevantes para o problema que
queremos tratar, uma vez que sugerem um contexto ex­
plicativo para entender por que o avanço das práticas em
saúde mental no Brasil não se fez acompanhar de uma
inscrição teórica e discursiva dos problemas de gênero na
"psicopatologia práticâ' de nossos servidores. Chamamos
de "psicopatologia práticâ' a tradução e a recriação, nos
contextos culturais específicos de tratamento, das catego­
rias, narrativas, diagnósticos e etiologias fixados ou aderi­
dos a contextos teóricos, disciplinares ou jurídicos especí­
ficos. Por exemplo, o amplo emprego de categorias ligadas
à dissociação e ao dismorfismo corporal na psiquiatria
africana liga-se à necessidade de sincronizar o discurso
técnico diagnóstico do DSM (pelo qual a distribuição de
recursos, a epidemiologia e as políticas públicas se orien­
tam) com a interpretação mágico-religiosa dos transtor­
nos mentais, ainda muito presente em vários lugares da­
quele continente.
Podemos dizer que a "psicopatologia práticâ' funciona
ao modo de um dispositivo ideológico que combina exi­
gências díspares (clínicas, sociais, assistenciais, jurídicas)
em um discurso que funciona como coordenação interna
dos agentes de saúde mental, sustentação clínica de um
programa de cuidado, tratamento e atenção, e justificação
moral para práticas de segregação ou de compromisso
com outros discursos (políticos, religiosos). Em outras pa­
lavras, a "psicopatologia práticâ' é um complexo discursi­
vo no qual as regras de funcionamento de instituições se
articulam com práticas efetivas de tratamento e com os
recursos sociosimbólicos que uma comunidade tem para
lidar com o sofrimento.
Apesar da pretensa universalidade, a "psicopatologia prá­
ticâ' inspirada pelo DSM deve, em cada caso, formar um
compromisso cultural com as práticas e os dispositivos

194
disponíveis. Nunca se trata de aplicar cada caso à sua re­
gra, como se o tratamento se desenvolvesse por meio de
sucessivas inclusões categoriais, ao modo dos eixos diag­
nósticos do DSM. Contudo, há um contexto no qual essa
inclusão é especialmente problemática: a medicação. Aqui
reencontramos o contraste com a segmentação dos direi­
tos civis. Podemos, genericamente, reivindicar a inclusão
segundo a retórica universalista da inscrição de diferenças
articuladas politicamente em minorias; daí que o acesso
ao trabalho, à circulação e aos bens simbólicos sejam as
condições elementares de qualquer tratamento possível.
Contudo, não podemos reivindicar o mesmo universalis­
mo em termos de medicação. O argumento espontâneo,
nesse caso, é que disposições morais, orientações de con­
duta e formações de identidade não podem e não devem
ser tratadas como doenças que nos impõem heteronomia.
Portanto, o erro da psicóloga teria sido um erro meramen-
te "técnico''.
Jaspers, em sua Psicopatologia Geral, de 1913, já chama­
va atenção para as ambiguidades inerentes à pesquisa em
psicopatologia:
Tanto na psicologia quanto na psicopatologia tal­
vez não se possa afirmar nada ou quase nada que
não seja, de alguma maneira, contestado. Por isso
se alguém pretende estabelecer a razão de suas afir­
mações e descobertas e elevá-las acima da onda
de intuições psicológicas diárias, terá também de
empreender reflexões metodológicas (JASPERS,
1 9 1 3/1987, p. 16).
Advertidos por Jaspers acerca da importância do método
para o estabelecimento de conceitos em psicopatologia,
lembramos que o DSM foi constituído a partir de uma
perspectiva ateórica e operacional. O DSM tem como
objetivo constituir-se num sistema de classificação sobre
dados diretamente observáveis, sem recorrer a sistemas
teóricos. Recorremos a David Goldberg, um dos integran-

195
tes da comissão responsável pelas novas edições do DSM.
Recentemente, em entrevista ao jornal Folha de São Pau­
lo, Goldberg foi indagado sobre quais mudanças pretende
promover na classificação de doenças mentais. Ele relata
sintomas que possuem "variações pequenas que distin­
guem um do outro'', tais como as depressões unipolares
simples, os estados de ansiedade, os transtornos de medo
e os de ordem somática. Frente às dificuldades diagnós­
ticas devido às "variações pequenas': Goldberg propõe:
"Você só pode fazer diagnósticos ignorando alguns sinto­
mas, então seria melhor se os médicos apenas descreves­
sem os sintomas gerais que as pessoas têm nesse grupo de
transtornos [emocionais]" (GOLDBERG, 2009).
A descrição minuciosa, fina e precisa dos sinais e sintomas
dos transtornos mentais constitui a base semiológica de
um processo investigativo em busca da etiologia. Pereira
(1998) nos adverte que a ideia de que as alterações mentais
teriam um estatuto de patologia se formou gradativamen-
te em psiquiatria, não estando totalmente clara nas hipó­
teses de seus precursores.
Kraepelin foi o grande sistematizador da psicopatologia
descritiva. Esse autor consolida, de forma definitiva, a voca­
ção nosológica da psicopatologia. Bercherie (1989) lembra
que, em 30 anos, o Manual de Psiquiatria de Emil Kraepelin
conheceu oito edições, e não houve uma só edição sem mo­
dificações nosológicas. Do ponto de vista kraepeliano, tra­
ta-se de discernir, sob as bases clínicas, as diversas formas
do adoecimento mental, as quais teriam o mesmo estatuto
das doenças físicas tratadas pela medicina.
Pereira (1998) nos lembra que, diante do impasse consti­
tuinte da própria psicopatologia, o projeto empírico-prag­
mático do DSM reclama-se o qualificativo de neo-kraepe­
liniano, no sentido da delimitação precisa das entidades
clínicas psiquiátricas. Diante das considerações anteriores
acerca da semiologia e do trabalho de Kraepelin, parece­
nos que a declaração de Goldberg explicita uma prática

196
clínica que prescinde da descrição fina da entidade mór­
bida e, consequentemente, abdica da busca pela etiologia
das patologias.
Diante do que Pereira (1998) denomina "confusão de lín­
guas': presente nas disciplinas que compõem o campo da
psicopatologia, esse sistema de classificação esforçou-se
por criar um sistema fidedigno, pragmático e objetivo de
classificação dos chamados "transtornos mentais". O ter­
mo "transtorno" já expressa a tentativa de se afastar da lin­
guagem nosográfica, em busca de um sistema idealmente
ateórico, imune aos pressupostos das disciplinas que bus­
cam a hegemonia no campo da psicopatologia.
Porém, existem diferenças marcantes entre a proposta
do DSM e o projeto kraepeliniano. Enquanto Kraepelin
pensava as entidades psicopatológicas como equivalentes
às doenças orgânicas, a perspectiva do DSM, inspirada
num pragmatismo radical, abandona a noção de "doença
mental" para fundamentar seus processos. O termo do­
ença desaparece das categorias do DSM, substituído por
disorder (transtorno), que nos remete à ideia de algo que
está em desacordo com uma ordem operacionalmente es­
tabelecida. Fica-nos a questão: que ordem é essa? Quais os
critérios para a elaboração dessa ordem? 17
A superação da "confusão de línguas" seria obtida por in­
termédio de uma fidedignidade à categoria diagnóstica;
ou seja, perante uma mesma configuração sintomatoló­
gica, clínicos e pesquisadores provenientes de diferentes
orientações teóricas e de ambientes culturais distintos
devem chegar ao mesmo diagnóstico. Para se alcançar
esse objetivo, um sistema ideal de classificação deveria

1 7 Roudinesco (2000) disserta exaustivamente sobre o assunto na obra


Por que a psicanálise? Ele aponta que, num mundo de valores utilitaristas e
urgentes, passa a ser mais apropriada a crença numa fórmula química do que
no manejo das relações regidas pela linguagem. A autora ainda considera que
estamos numa sociedade obcecada pela padronização de comportamentos e
de crenças voltadas para a normalização de atitudes diante dos pretensos
padrões de normalidade.

197
fornecer critérios explícitos, operacionalmente observá­
veis e que reduzissem ao mínimo o uso de interferências
teóricas não diretamente observáveis para a definição de
cada quadro mental. Temos, assim, a opção pelo pragma­
tismo como solução para os impasses teóricos existentes
no campo da psicopatologia.
O DSM explicitamente não possui a pretensão de ser uma
psicopatologia. Ele procura se constituir num sistema
classificatório fidedigno dos padecimentos psíquicos. Sua
racionalidade está organizada em torno da busca de cate­
gorias confiáveis, provisórias e operacionais que permitam
a superação de mal-entendidos terminológicos no terreno
da psicopatologia. Seu critério de objetivo está alicerçado
na descrição formal do plano empírico dos fatos clínicos.
Porém, Pereira (1996) aponta críticas ao caráter falsamen­
te ateórico do DSM e de adesão implícita às teses empi­
ristas. Esse "compromisso prático'' do DSM obriga pes­
quisadores a abandonar os conceitos teóricos próprios de
seus campos específicos de saber, com uma consequência
direta: a incapacidade do progresso das disciplinas cientí­
ficas que compõem o campo da psicopatologia, devido à
inaptidão de essas mesmas disciplinas constituírem teóri­
ca e formalmente seu objeto e métodos próprios. Os com­
promissos com o pragmatismo, nesse plano, certamente
resultam em um enfraquecimento de cada ciência. Assi­
nalamos o risco desse enfraquecimento no contexto em
que diferentes disciplinas encontram no campo da psico­
patologia um mesmo objeto operacionalmente definido,
quer dizer, um objeto comum apenas do ponto de vista
descritivo, plano exclusivo aos procedimentos empíricos.
O argumento a favor do uso do DSM no campo das polí­
ticas públicas de saúde mental é baseado no fato de que,
para organizar de forma eficiente os investimentos em
saúde pública (incluindo-se obviamente o campo da saúde
mental), o gestor deve saber quais são as entidades clíni­
cas mais frequentes e prevalentes em certa comunidade

198
e conhecer a real eficácia das diferentes modalidades te­
rapêuticas disponíveis. Temos aqui uma perspectiva que
considera a medicina uma forma de intervenção concreta
na ordem da vida e das instituições sociais. O sofrimento
mental passa a ser encarado como questão de saúde pú­
blica solicitando a intervenção do Estado. 18 Roudinesco
(2000) nos lembra da influência do DSM nas escolas de
psicoterapia que propõem ao sujeito uma relação terapêu­
tica focada na adaptação social.
Em recente entrevista a uma revista de grande circulação
nacional, a psicóloga de que tratamos no capítulo anterior,
ao ser indagada se acredita que os homossexuais sofram
de distúrbio psicológico, afirma:
O Conselho Federal de Psicologia não quer que eu
fale sobre isso. Estou amordaçada, não posso me
pronunciar. O que posso dizer é que eu acho o mes­
mo que a Organização Mundial de Saúde. Ela fala
que existe a orientação sexual egodistônica, que é
aquela em que a preferência sexual da pessoa não
está em sintonia com o eu dela. Essa pessoa queria
que fosse diferente, e a OMS diz que ela pode procu­
rar tratamento para alterar sua preferência. A OMS
diz que a homossexualidade pode ser um transtor­
no, e eu acredito nisso. 19
Lembramos ainda de uma situação que envolveu Spitzer,
que tem sido referido como um grande arquiteto da clas­
sificação moderna dos distúrbios mentais e foi presidente
da força-tarefa da terceira edição do Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-111) da Asso-

18 Lembramos que Foucault (2008), ao abordar as formas de governabilidade


liberal, considera o liberalismo como a moldura da biopolítica. A análise
foucaultiana evidencia o papel paradoxal desempenhado pela sociedade em
relação ao governo: princípio em razão do qual este tende a se autolimitar, mas
também alvo de uma intervenção governamental permanente, para produzir,
garantir e multiplicar as liberdades necessárias ao liberalismo econômico.
19 JUSTINO, R. A. Homossexuais podem mudar. Veja, São Paulo, edição
2125, 12 de ago. de 2009.

199
dação Americana de Psiquiatria, lançado em 1980. Em
2001, Spitzer criou uma divergência na reunião anual da
APA argumentando que indivíduos altamente motivados,
poderiam mudar, com êxisto, sua orientação sexual de
homossexual para heterossexual. A APA emitiu imediata­
mente um desmentido oficial do documento, observando
que ele não havia sido revisado; e afirmou que "não há evi­
dências científicas que possam apoiar a eficácia da terapia
reparativa como um tratamento para mudar de orientação
sexual':
Dois anos mais tarde, o documento foi revisto e publicado
no Archives of Sexual Behavior. A decisão de publicá-lo cau­
sou controvérsia, e um membro contribuinte renunciou em
protesto. Esse material tem sido criticado por não-amostra­
gem e critérios pobres de demonstração de sucesso.
Como vimos na história do DSM, a questão das discussões
acerca da presença da homossexualidade como categoria
diagnóstica é bastante polêmica. Pereira (2000) considera
que esses episódios históricos são ilustrativos do vigor e da
fragilidade do jeito estritamente pragmático de se abordar
os fenômenos relacionados ao sofrimento psíquico.
Acerca dos reflexos do pragmatismo na prática clínica,
utilizaremos um caso presente no DSM-IV-T R, volume
dois, que consta na parte intitulada Transtornos sexuais e
da identidade de gênero. É o caso de um menino que entre
os 18 e os 24 meses de idade começa a vestir saias e a ficar
fascinado por personagens femininos idealizados como
Branca de Neve e Ariel (de ''A Pequena Sereià'). Após
entrevista com os pais e aplicação de uma "entrevista de
identidade de gênero estruturadà: Brian foi diagnosticado
com "transtorno de identidade de gênero� O tratamento
recomendado se constituiu em sessões semanais de lu­
doterapia, para explorar suas representações internas de
gênero e lidar com sua ansiedade generalizada. O acon­
selhamento dos pais foi pautado em recomendações para
manter Brian mais exposto a crianças do mesmo sexo em

200
seu ambiente naturalístico e estabelecer limites muito cla­
ros para a identificação com o sexo oposto.
É interessante notar que o terapeuta responsável pela con­
dução do caso faz duas ressalvas. Na primeira ele se situa
abertamente contra o "paradigma concorrente que afirma
que variação de gênero não é um transtorno mental e que
crianças como Brian devem ser aceitas como são e que te­
rapeutas como eu devem ser evitados:' (SPITZER et al.,
2008, p. 313). Na segunda ressalva, o terapeuta relata que
os pais de Brian se sentiram à vontade com as recomenda­
ções de como tratá-lo; logo, ele julgou desnecessário um
tratamento mais direto e intensivo para os genitores. E,
ainda, como o pai de Brian já fazia psicanálise, o terapeu­
ta não achou adequado, profissionalmente, passar muito
tempo explorando seus problemas.
Após 2 1 meses de tratamento, o terapeuta considerou
que Brian "consolidou uma identidade mais confortável
de menino". Exemplificou seu êxito com os presentes de
aniversário da criança, que incluíram personagens de
Star Wars, quadrinhos do Powers Ranger se um bone­
co realístico do Obi Wan Kenobi. O pai disse que o filho
parecia, mais que nunca, um menino. Já a mãe de Brian,
na entrevista com o terapeuta, formulou não saber os
motivos que a fizeram comprar itens femininos para o
filho. Lembrou-se de que comprara a Casa dos Sonhos
da Barbie quando Brian completou três anos e que de­
via estar completamente louca. É interessante o silêncio
do terapeuta sobre as falas dos pais. A felicidade do pai
sobre o "jeito masculino do filho" apenas reforça o êxito
do tratamento, e as questões da mãe são relatadas sem
reflexões teóricas mais aprofundadas.
Em psicanálise, pensaríamos essa criança na posição de
refém do desejo dos pais. O pai quer um menino, e a mãe
sonha com uma Barbie. Para Lacan (1969/2003), o sinto­
ma da criança está na posição de responder ao que exis­
ta de sintomático na estrutura familiar. Nesse sentido, o

201
sintoma, dado fundamental da experiência analítica, pode
representar a verdade do casal familiar. Mas, para o trata-
mento adotado, o foco era o tipo de brinquedo que Brian
usava, ou seja, bonecos de identidade masculina ou femi­
nina funcionam como um índice da construção da identi­
dade sexual de Brian.
Conforme dissemos anteriormente, o DSM deixa cla­
ro que não existem instâncias transcendentes às quais se
pode recorrer no que diz respeito aos fenômenos ligados
ao sofrimento dos sujeitos. Por outro lado, as classifica­
ções supostamente científicas mostram grande fragilidade
no que tange a questões de poder, de interesses econômi­
cos, de formação de grupos de pressão por determinados
interesses e da mídia em geral.
As considerações anteriores se fazem presentes de forma
peremptória no caso do processo sofrido pela psicóloga
carioca. Frente aos argumentos pragmáticos e descritivos
apresentados pela profissional, o Conselho Federal de Psi­
cologia responde com argumentos políticos e sociais de
uma resolução que regulamenta o exercício profissional.
Eis a resolução que embasou a penalidade de censura pú­
blica à psicóloga:
Resolução CFP nº 01, de 1999, art. 2° - "Os psicólogos de­
verão contribuir, com seu conhecimento, para uma refle­
xão sobre o preconceito e o desaparecimento de discrimi­
nações e estigmatizações contra aqueles que apresentam
comportamentos ou práticas homoeróticas" (CONSE­
LHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 1999).
Contudo, consideramos prudente uma cautela metodo­
lógica para fazermos uma análise crítica do DSM, sob o
risco de incorrermos em descaminhos que anulem a vali­
dade de nosso exame. Não podemos mascarar a dimensão
política de nossa análise acerca do uso do DSM. Certa­
mente, nossa crítica é inseparável de uma concepção ide­
ológica e sociocultural de onde se origina.

202
Em contrapartida, outro risco é alimentarmos o debate
em um plano exclusivamente político, abandonando os
aspectos teóricos inerentes ao campo psi que o acompa­
nham. Tal reducionismo pode simplificar a crítica, mas
retira sua consistência. Do ponto de vista psicanalítico, te­
mos que evitar certa retórica maniqueísta acerca do DSM,
bem como uma crítica que é repetida inúmeras vezes, de
formas diferentes: o DSM tem uma lógica objetivante que
exclui o sujeito da implicação com o próprio sofrimento.
Tal argumento parece-nos parcial, pois exige do DSM o
que ele não se propõe a ser. O DSM se fundamenta na ra­
cionalidade biomédica, e sua consistência e relativo êxito
repousam exatamente nesse fato, com a objetividade dos
dados produzidos, relegando a interpretação psicopatoló­
gica e do uso clínico de seus ocasionais achados para os
cientistas e a sociedade.
Carecemos de um debate minimamente estruturado so­
bre as consequências subjetivas em longo prazo da ação
de alterarmos de forma biológica um estado psicopatoló­
gico. Referimo-nos a um debate que fuja das petições de
princípio e avalie de forma criteriosa as situações que se
apresentam efetivamente na clínica contemporânea.

203
Da Crítica da
Psicopatologia a
uma Psicopatologia
Crítica
Hamlet (1599), Don Quixote
(1605), Don Juan (1620),
Robinson Crusoe (1 719) e Fausto
(1808) são referências narrativas
cruciais quando se pensa
no tipo de subjetividade que
caracterizou a modernidade.

e ada um desses heróis, em cada caso de maneira dis­


tinta, expressa uma mesma forma de monomania.
Eles estão exclusiva e egoisticamente interessados em seus
empreendimentos pessoais, definindo-se e se fazendo defi­
nir por aquilo que decidiram autonomamente fazer ou ser.
Note-se como eles são definidos pelo tipo de divisão sub­
jetiva que os caracteriza. Fausto, o professor errante, vive a
alienação de satisfazer-se através de uma alma que já não
lhe pertence mais. Don Quixote enlouquece porque leu
livros de cavalaria em excesso, e está dividido por habitar
um tempo que não lhe é mais contemporâneo. Robinson
Crusoe experiencia a tragédia da liberdade, como solidão
e desamparo, depois de visitar sua fazenda de escravos no
Brasil. Hamlet hesita diante do ato de vingança demandado
pelo fantasma de seu pai. Adia, reflete e pondera, uma vez
que a autoridade paterna não lhe garante mais o sentido le­
gítimo de sua ação. Don Juan padece da efemeridade do de­
sejo e do abismo infinito e infinitesimal que cerca a escolha
amorosa. Como narrativa de construção de autonomia, elas
demandam uma forma específica de reconhecimento para
o que não pode ser reconhecido por uma rede de determi­
nações (Dunker, 2012).
Nossos heróis, todos eles de nobre estirpe, apresentam-se in­
defesos diante da própria divisão subjetiva. Não lhes falta as­
túcia ou engenho, coragem ou dedicação, e todas as virtudes
clássicas são insuficientes para representá-los. O que se

207
senta aqui é a construção de um paradigma mórbido, que
caracteriza a subjetividade moderna como um inventário de
perdas e sua elaboração melancólica (Matos, 1989). São he­
róis e senhores de seus destinos que efetivam, por meio de
sua autodeterminação, uma operação de luto. Neste sentido,
há uma espécie de pré-diagnóstico geral da modernidade
que a entende como perda do universo pré-moderno, rein­
terpretado como um tempo de segurança e determinação, de
ligações orgânicas e de experiências autênticas. Assim como
na melancolia, este universo perdido é também o ponto de
identificação do eu. Nossos heróis não conseguiram trans­
formar em realidade aquilo que almejaram (Watt, 1997). Eles
sobrevivem apenas em uma espécie de existência póstuma,
desprovida de acontecimentos, como é o caso de nosso Brás
Cubas, ou desprovida de essencialidade, como é o caso do
homem sem qualidades descrito por Mussil.
São narrativas que admitem uma leitura moral conserva­
dora cuja enunciação poderia ser: veja o que acontece com
aqueles que viram as costas para a solidariedade cósmica da
vida, para a comunidade de origem e para o sentido coletivo
da convencionalidade de significados. A loucura alucinató­
ria de Dom Quixote, a erotomania de Dom Juan, a obses­
são de Kant, a paranoia de Kafka, a melancolia de Fausto
e Baudelaire, a histeria de Hamlet, Montaigne e Hegel e a
megalomania de Crusoe.
Esta breve alusão literária permite introduzir a ideia de
que a modernidade caracteriza-se por um entendimento
da própria subjetividade como, de alguma maneira, pato­
lógica. Este campo pré-psiquiátrico do patológico não é
redutível à esfera jurídico-moral ou político-administrati­
va. Esta nos parece ter sido a lição maior da dialética entre
o senhor e o escravo, presente na Fenomenologia do Espí­
rito e trazida por Lacan para a psicanálise, como modelo
primeiro da teoria do reconhecimento. Falamos de uma
espécie de autodiagnóstico maior da modernidade, que
pensa a si mesma e engendra suas práticas terapêuticas a
partir de duas grandes estratégias.

208
Há, na modernidade, excesso de experiências improdutivas
de determinação. Ou seja, há hipertrofia dos sistemas e
dispositivos disciplinares (Foucault, 2008) que determi­
nam as formas de vida e as gramáticas de reconhecimento
intersubjetivo. Daí que o campo do sofrimento seja indis­
sociável da experiência de alienação, tanto em sua verten­
te de exteriorização (Entiiusserung) do sujeito, quanto em
sua vertente de estranhamento (Entfremdung) do desejo.
Há uma demasiada racionalização da vida (Weber, 1946), da
linguagem e do trabalho, que redunda em perda do caráter
orgânico e autêntico da experiência (Erfahrung) (Benjamin,
1994). Há uma colonização do mundo da vida (Lebenswelt)
pela razão instrumental (Habermas, 1990) e pelo pensamen­
to da identidade (Adorno, 1994), o que causa reificação ge­
neralizada da consciência (Lukáks, 1988). Ao final, as estraté­
gias de determinação e de discriminação, próprias ao mundo
da técnica (Gestellt) (Heidegger, 1953), acabam gerando vi­
vências (Erlebnis) improdutivas incapazes de produzir reco­
nhecimento social simbólico (Jameson, 1992), o que acarreta
mais ambivalência (Bauman, 1999), indiscriminação e per­
cepção de risco (Beck, 1997). Nesta linhagem paranoide, en­
contram-se inicialmente Don Quixote, Hamlet e Don Juan:
mais tarde, a eles se agregam os personagens de Henry James
(Zizek, 2008), Kafka (Sanctner, 1996) e, é claro, Flaubert e
Madame Bovary (Kehl, 2008).
Em seu livro Mal-Estar na Civilização (1929), Freud introduz
uma nova figura do patológico, pouco tematizada como tal:
o mal-estar (Unbehagen). Freud teria imaginado primeira­
mente chamar o texto de Infelicidade (Unglücklich) na Cul­
tura (Kultur), mas as dificuldades apontadas por Joan Riviere
para traduzir o termo ao inglês (unhappy), teriam levado à
mudança de título. Mal-estar é um expressão, todavia, feliz
(Glücklich). Não indica algo transitório ou crônico e tratável
como um sintoma, nem uma precariedade moral de circuns­
tâncias como o sofrimento, mas uma condição, uma maneira
de estar no mundo. Aliás, este é o tema inicial do trabalho:

209
"o sentimento de ligação indissolúvel, de co-pertencimento com
o mundo exterior" este mundo do qual "não podemos sair"
(Freud, 1929:66). A diferença entre o sofrimento, cujo trata­
mento implica o progresso das relações de reconhecimento
e o sintoma, cuja solução implica a subjetivação dos desejos
recalcados, o mal-estar nos remete ao que há de incurável na
experiência humana. Diante disso, as soluções freudianas são
bastante paliativas: as poderosas distrações, que nos fazem
esquecer nossa miséria; as satisfações substitutivas, que redu-
zem nossa miséria, e as substâncias embriagadoras, que nos
tornam insensíveis à miséria (Freud, 1939:75). A vida como
ela é imposta nos traz dores, desenganos e tarefas insolúveis.
Se as dores são tipicamente uma metáfora para os sintomas
e os desenganos refletem nossos ideais, em função da qual se
medem nossos sofrimentos, o mal-estar está bem representa­
do pelas tarefas insolúveis. Freud menciona três delas, gover­
nar, educar e analisar. Todas elas referem-se ao tratamento do
mal-estar, ou seja, a tentativa de aparelhar o que é impossível
pela natureza mesma, indeterminada daquilo sob o qual se
detém. Ora, se Freud atribui esta indeterminação à pulsão de
morte, Lacan tem outro nome para isso, que não se integra
a uma lógica da identidade e, portanto, resiste à gramática
social do reconhecimento; trata-se do gozo.
No início de seu seminário sobre a Ética da Psicanálise,
Lacan (1959) elenca três ideais com relação aos quais o
psicanalista deveria estar advertido em sua prática: o ideal
do amor humano concluído, o ideal da autenticidade e o
ideal da não dependência. Ou seja, formações traiçoeiras,
pois longe de representarem o horizonte da cura psicana­
lítica compõem a substância patológica da modernidade.
A corrupção da identidade em animalidade, a degradação
da autonomia em heteronomia, bem como o deslocamen -
to da autenticidade para a impessoalidade, deslocamentos
tratados por Safatle, exprimem bem as consequências e o
espaço do patológico delineado pela diagnóstica da moder­
nidade. Mas este espaço não é simplesmente firmado como
negativo antropológico, como desvio normativo ou como
deflação de ideais. A crítica do amor concluído nos envia

210
ao caráter ideológico da identidade, inclusive a gerada pe­
los tipos clínicos. A crítica da autenticidade nos envia ao
sofrimento de determinação, mas também a seus sintomas
paranoides de tipo restitutivos ou dissolutivos. Finalmente,
a crítica dos ideais de não dependência nos envia ao sofri­
mento de indeterminação, e a tentativas de invenção de ex­
periências contradeterminativas de tipo esquizóide.
É verdade que a análise deve favorecer no analisante a possi­
bilidade de amar e trabalhar, de construir sua autonomia nos
limites de sua economia de gozo e de apropriar-se autentica­
mente de seu desejo. Contudo, o tratamento psicanalítico das
neuroses é apenas uma entre outras tantas "técnicas da arte
de viver" ou "métodos pelos quais os homens se empenham em
obter felicidade e manter o sofrimento alheio" (Freud, 1929:81)
enumeradas por Freud, a saber: ( 1) evitação das situações de
desprazer por meio da construção de uma vida tranquila e
protegida, (2) a conquista da natureza, no escopo da qual se
reforçam laços de comunidade, (3) intoxicação anestésica ou
excitativa capazes de criar uma barreira "corporal" contra o
desprazer e facilitar a satisfação, por meio de um refúgio em
um mundo próprio, (4) substituição das metas pulsionais por
tarefas socialmente reconhecidas, também chamada de subli­
mação, (5) o consolo proporcionado pelas ilusões, nas quais se
destaca o papel das religiões e dos discursos e práticas que re­
baixam o "valor da vidà' (Freud, 1929:84), (6) o retraimento ou
introversão da libido a si mesmo, seja por meio da ascese do eu,
seja por meio do delírio, (7) o principal método concorrente
do tratamento psicanalítico, ou seja, a experiência do amor en­
tendido como circulação de sua gramática própria de reconhe­
cimento: amar-ser amado; amar-indiferença e amar-odiar, (8)
a estetização da existência, ou seja, encontrar prazer no gozo do
belo, inibindo a meta sexual da pulsão, favorecendo, mas não
necessariamente induzindo sublimação.
"Como última técnica de vida, que promete ao me­
nos satisfações substitutivas, se oferece o refúgio na
neurose, refúgio que na maioria dos casos se consu­
ma já na juventude:' (Freud, 1939:84)

211
Vê-se pela enumeração freudiana que o sintoma propria­
mente dito é o caso mais específico dos nove menciona­
dos. Os casos (5) consolo por ilusões, (6) retraimento da
libido e (7) da experiência amorosa equivalem a soluções
pelo reconhecimento do eu e suas transformações narcí­
sicas. Os casos ( 1) construção de uma realidade evitativa
(não equitativa), (2) conquista da natureza pelo trabalho
e reforço de laços de comunidade e (4) sublimação envol­
vem o domínio do impossível (governar e educar). Os ca­
sos (3) intoxicação e (8) estetização podem ser agrupados
em uma zona de transição, entre as transformações do
narcisismo e as transformações da pulsão.
Muito se tem falado sobre os impasses do conceito de pul­
são de morte em Freud. Há, de fato, inúmeras consequên­
cias metapsicológicas, epistemológicas e éticas deste con­
ceito, mas a novidade clínica crucial trazida por esta ideia
é que ela define o campo do mal-estar como dependente
da indeterminação. A melhor figura para a pulsão de mor­
te, e lembremos que Lacan insistia que há uma só pulsão
na psicanálise, e esta é a pulsão de morte, é a figura da
indeterminação. Ela compreende a noção de mortalidade
como finitude indeterminada, ela inclui a noção de im-
previsibilidade como metáfora para o destino e condição
humana, mas ela também serve de suporte para a intro­
dução da noção de liberdade. Ademais, o novo desenho
etiológico introduzido pela segunda tópica faz da fusão e
desfusão das pulsões o ponto-chave para a introdução de
que existem certas experiências de indeterminação que
são produtivas, ou seja, que não são apenas fracassos na
constituição da experiência ou do sujeito, mas são experi­
ências no sentido forte do termo. A experiência amorosa,
bem como a experiência da sublimação, e ainda certos ca­
sos de intoxicação ou estetização, são interessantes porque
introduzem experiências produtivas de indeterminação.
Há uma promessa psicanalítica de se apresentar como
um tratamento possível para a perda da experiência de

212
si (identidade e melancolia). Mas também há a pretensão
de criticar as experiências de determinação e, ainda, criar
experiências produtivas de indeterminação. Ao final e ao
cabo, tratar-se-ia de favorecer, em cada um de nossos pa­
cientes, a invenção de um herói moderno, para além da
culpa e do ressentimento.
Há também, na modernidade, um deficit de experiências
produtivas de indeterminação. Ou seja, as experiências de
indeterminação, necessárias para que a liberdade se expri­
ma em ato (e não apenas no reconhecimento e submissão
ao sistema que representa ele mesmo a liberdade), vêem­
se capturadas no interior de sistemas ou metafísicas que
bloqueiam seu potencial transformador.
Mas o declínio da autoridade localizável mostra-se insufi­
cientes para criar novas formas de exercício da liberdade.
Há, portanto, um mal-estar causado pela percepção da in­
suficiência das experiências de indeterminação (Honneth,
2007) em gerar efeitos de liberdade. A esta percepção, as­
socia-se a moral do ressentimento (Nietzsche, 1997). Com
a institucionalização da experiência e a dependência sen­
tida com relação às instâncias de representação (Taylor,
1997) (inclusive representação de si), a indeterminação
torna-se desconfiança. A colonização da esfera pública
pela gramática privada do reconhecimento intersubjeti­
vo (Sennett, 1973), o encurtamento da narrativa amorosa
(Giddens, 1992), ao lado da ascensão da moral da segu­
rança, colaboram para que a experiência real e produtiva
de indeterminação - o amor, o desejo e o gozo são aqui os
três maiores paradigmas - encontre cada vez menos es­
paço de inscrição simbólica e discursiva. Nesta linhagem
esquizoide, encontram-se inicialmente Crusoe e Fausto;
depois, pode-se incluir Baudelaire.
Para Axel Honneth, este leitor de Hegel e Freud, o sofri­
mento de indeterminação decorre do desentrelaçamento
entre três esferas: autorrealização, reconhecimento e a da
formação. A autorrealização depende da experiência de

213
que o outro é alguém insubstituível. Esta experiência é
geralmente associada à família e aos laços de amor intrín­
seco e primário. Experiência que apresenta, como contra­
partida, a supressão de aspirações de liberdade. Vê-se aqui
por que a autonomia não se confunde com a independên­
cia. A aspiração de autorrealização equivale à negação da
dependência e desamparo primários, dos quais nos afas­
tamos à medida que se expandem os laços de socialização
primária.
O reconhecimento, por sua vez, está intimamente ligado
à contradição entre família e sociedade civil e depende da
coletivização do desejo na realização expansiva da "perso­
nalidade': Encontramos aqui a antiga ideia hegeliana, que
reaparece em Lacan, de que a realização da personalidade
implica separação da família.
Honneth descreve três dialéticas internas ao espaço do
reconhecimento: (1) a do amor-amizade; (2) a do direito
jurídico-justiça moral e (3) a da solidariedade social-res­
peito social.
A formação é, por sua vez, é a experiência da cultura, ca­
paz de conciliar a vivência de vacuidade (decorrente da
hipertrofia das aspirações de reconhecimento) com o sen­
timento de solidão (decorrente da hipertrofia da autorre­
alização). No fundo, o que Honneth quer manter aqui é
a ideia de cultura como contradição e a importância de
avaliar movimentos sociais de forma a diagnosticar o que
ele chama de patologias do social. A cultura deveria ser o
espaço da contradição, reconhecida e realizada, entre as
aspirações de universalidade jurídico formal e as aspira­
ções de particularidades ético-pessoais. O pensamento de
Honneth pode ser contraposto ao de Rawls como teórico
da justiça social (Werle, 2009).
Grosso modo, para Rawls, o sofrimento social deriva da
separação entre equidade e justiça; sendo o melhor tra­
tamento possível para esta separação o reforço do caráter
distributivo da justiça (que visa mitigar o conflito social)

214
e as práticas em torno da tolerância (que visam mitigar
o conflito cultural). A crítica de Honneth argumenta que
Rawls, como um kantiano construtivista, não oferece um
diagnóstico consistente do problema. Rawls consegue ape­
nas localizar o sofrimento social derivado da problemática
da determinação, de uma concepção de liberdade como
autodeterminação e de instituições como meios para este
fim. O que Rawls deixa de lado é a importância crucial das
experiências de indeterminação. Não basta limitar a liber­
dade a tudo aquilo que não é proibido e neste sentido levar
as bordas da cultura para os limites da lei. É preciso ainda
reconhecer que a liberdade deve implicar indeterminação,
e que esta indeterminação possui valor cultural e social
produtivo. O sofrimento de indeterminação é uma:
"( ... ) patologia de uma fixação na liberdade jurídica;
a saber, que aquele que articula todas as suas carên­
cias e intenções nas categorias do direito formal [ e
não na eticidade] tornar-se-ia incapaz de participar
da vida social:' (Honneth, 2007)
De fato, a melhor expressão do sofrimento de indetermi­
nação é a chamada cultura da insegurança ou cultura da
administração de riscos. Em outro lugar (Dunker, 2014),
denominei este modo de subjetivação como lógica do con­
domínio, ou seja, a estratégia baseada em privatização do
espaço, seguida da hipernormatização de seu funciona­
mento e do incremento de políticas de identidade basea­
das na conformação de gozo. Na medida em que a cultura
torna-se anódina no que diz respeito à sua eticidade, e a
eticidade, torna-se expressão de uma política de identida­
de o resultado estrutural é a hipótese permanente de que
outras formas de vida {inacessíveis dada a segmentação
cultural) detêm um fragmento de gozo (ilegítimo, inau­
têntico e excessivo) que organiza uma demanda. Nas pa­
lavras de Safatle:
"( ... ) a regulação da anomia e da indeterminação
por estruturas institucionais seja para ele [Hegel]

215
um problema maior por não poder ser resolvido
através de uma dinâmica de retorno aos "tempos
carregados de sentido. ( ... ) podemos compreender o
cinismo como disposição de conduta e de valoração
capaz de estabilizar e interagir em situações de ano­
mia. Como se o cinismo fosse capaz de transformar
o "sofrimento de indeterminação" normativa em
motivo de gozo:' (Safatle, 2008: 1 7)
O sofrimento de indeterminação aparece, assim, como
efeito sintomático do que Lacan chamou de segregação,
por ele atribuída ao avanço dos mercados comuns, e que
adapto à sua expressão nacional sob a rubrica da lógica do
condomínio:
O disfuncionamento social aqui não diz respeito
apenas a um prejuízo contra os princípios de justi­
ça. Trata-se, na verdade, de criticar as perturbações
que partilha com as doenças psíquicas a caracterís­
tica de restringir ou alterar a as possibilidades de
vidas supostamente 'normais' ou 'sãos: (Honneth,
2006:89)
O que não significa nenhum grande salto, já que as cate­
gorias nosográficas psicanalíticas (como neurose, histeria,
perversão, psicose} não são descrições de disfunciona­
mentos quantitativos em órgãos e funções psíquicas iso­
ladas, mas modificações globais de conduta advindas de
posições subjetivas possíveis frente ao desejo.
Essa espécie bífida de metadiagnóstico da moder­
nidade, que resumimos aqui, é ao mesmo tempo,
condição para o surgimento da psicanálise e sinal
de sua confiança na razão melancólica. Podemos
falar, portanto, inicialmente, de uma modernidade
melancólica a partir da qual se desdobram uma mo­
dernidade paranoica (Kant, Hegel) e uma moderni­
dade esquizoide (Schopenhauer, Nietzsche).
O patológico, como campo formado por esta dupla e con­
traditória exigência, mostra-se assim o correlato necessá-

216
rio das narrativas que apresentam a trajetória da divisão
subjetiva que caracteriza nossos heróis modernos.
Se é pertinente falar em um diagnóstico filosófico da mo­
dernidade, e se é pertinente avançar e extrapolar a noção
de diagnóstico de forma a encontrar tipos clínicos nas va­
riedades de sua apresentação, é preciso ainda reverter a
operação de tal forma a verificar, brevemente, como este
diagnóstico gerou formas de ocupação positiva do espaço
do patológico. Nos chama a atenção que no período de
50 anos que se sucedem à Segunda Guerra Mundial, dois
movimentos complementares verificam-se na abordagem
do espaço do patológico.
Desta forma, o declínio da autoridade paterna (Lacan,
1938), é o maior epítome lacaniano do sofrimento de in­
determinação e, ao mesmo tempo, descrição das formas de
recomposição e surgimento da autoridade paterna. É pre­
cisamente neste lugar e com esta função que aparecem os
sintomas dos grandes casos clínicos de Freud: a paralisia
de Elisabeth Von R. ou de Ana O. aparecem quando estas
se vêem libertas dos cuidados dispensados ao pai; a afonia
de Dora testemunha que o pai, apesar de impotente, ainda
pode alguma coisa com a Sra K.; o Homem dos Ratos só
pode decidir casar-se e concluir seus estudos se antes quitar
a dívida legada por seu pai; o Homem dos Lobos está possu­
ído pela fantasia do Lobo paterno copulando com sua mãe;
Schreber copula com Deus-Pai para dar origem a uma nova
raça. Ou seja, o sintoma é uma determinação paterna, mas
nem tudo é sintoma ou sofrimento nos casos freudianos.
Aqui seria preciso tomar um caminho um pouco diferente
do que Adorno levou a cabo em A Personalidade Autori­
tária. Para ele, os sintomas possuiriam uma gênese inde­
pendente das relações sociais, obedecendo uma lógica da
natureza. Faltava a Adorno um pouco mais de crítica da
psiquiatria, capaz de mostrar como a antropologia psica­
nalítica pode ser compatível com uma filosofia social da
constituição do sujeito.

217
Primeiro, rompeu-se a longa tradição, em vigor desde Pinel,
na qual a caracterização das formas de sofrimento, alienação
ou patologia mental fazia-se acompanhar da fundamenta­
ção ou da crítica filosófica. Isso se mostra na influência que
Pinel sofrera do pensamento hegeliano, na importância de
Kant para a formação da psiquiatria clássica alemã (Krae­
pelin), do associacionismo inglês na psiquiatria de Griesin­
ger, ou do positivismo comteano para a psiquiatria clássica
francesa (Esquirol, Morel); ou, ainda, na presença de Hus­
serl na psiquiatria de Karl Jaspers (Berrios, 1996). A partir
de meados do século XX, este sistema de correspondências
psiquiátrico-filosófico se deslocou de tal maneira a incluir
a psicanálise; isso se mostra, inicialmente, no modelo pro­
posto por Eugen Bleuler (esquizofrenia) e, depois, na figura
de compromisso, um tanto ambígua quanto a sua definição
exata, conhecida como psiquiatria psicodinâmica.
Seria possível reconverter a diagnóstica social para o in­
terior da racionalidade clínica? Neste caso, seria preciso
acolher e tomar em consideração, clinicamente, as críticas
que se dirigem à própria psicanálise. Nosso intuito não é
promover um novo modelo, baseado afinal em uma es­
tratégia antiga de mutualismo clínico-filosófico, mas, por
meio deste experimento, tornar legíveis os impasses de
racionalização que esta primeira estratégia esconde, con­
tribuindo assim tanto para o campo da diagnóstica social
como da diagnóstica psicanalítica.
Ainda no período em questão, assistiu-se a uma renova­
ção na forma como a psicanálise configurou o campo clí­
nico do patológico. Destacamos aqui o trabalho de Lacan
e de seus continuadores, que assinala uma nova ruptura
com relação aos fundamentos da diagnóstica psiquiátrica.
Tanto em sua teoria das estruturas clínicas (Lacan, 1955)
quanto em sua concepção sobre a constituição do sujeito
(Lacan, 1957), e ainda em sua concepção dos discursos
como formas de laço social (Lacan, 1969) ou nas teses
sobre a sexuação (Lacan, 1973), Lacan afasta os funda-

218
mentos biológicos do campo da psicopatologia. Este mo­
vimento recoloca o problema do diagnóstico em termos
da relação intersubjetiva (transferência), da relação com
a linguagem (estrutura da fala e do discurso) e da relação
com as estruturas antropológicas (função paterna).
Não é certo que os desenvolvimentos verificados nas ciên­
cias humanas, que se serviram de categorias diagnósticas
psicanalíticas, tenham retornado à psicanálise de modo a
que esta incorporasse suas críticas e consequências. Tam­
bém não é certo que as objeções levantadas por psicana­
listas ao modelo psiquiátrico hegemônico estejam adver­
tidas de seus próprios fundamentos e implicações quanto
ao modo de pensar as patologias sociais.
Contudo, um horizonte que nos parece necessário, tanto
no que diz respeito ao trabalho interpretativo sobre a obra
lacaniana quanto para as modalidades clínicas que disso
derivam, diz respeito ao tratamento "não integrativo" dos
diferentes movimentos que encontramos neste autor e que
refletem ou dão continuidade à separação entre a dimen­
são do sintoma, a do sofrimento e a do mal-estar em psi­
canálise. Neste sentido, a teoria dos quatro discursos é cla­
ramente uma teoria útil para entender as modalidades de
sofrimento e de recusa do sofrimento no interior de uma
determinada realidade social. Por outro lado, a teoria da
sexuação é uma concepção muito útil para dar forma ao
campo do mal-estar, seja ele entendido como negativida­
de, como diferença ou como repetição. Estas duas esferas
da razão diagnóstica lacaniana não devem, contudo, ser
reunidas na tentação unificante de que elas sejam partes
de um mesmo todo, ao modo de uma teoria do sinthoma
ou dos sintomas que denegue o espírito disjuntivo do tra­
balho de Lacan, em prol de uma hierarquização entre es­
truturas antropológicas (como o pai, significante, o falo, e
mesmo o objeto a) e estruturas ontológicas (como o Real,
o simbólico e o imaginário). A fertilidade da teoria laca­
niana está na tensão não resolvida entre estes dois tipos
de estrutura. Chamamos isso de psicopatologia não-toda.

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