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Noção de Pessoa
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dos Saberes Psicológicos
no Brasil
Na 8, 1997
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Instituto de Psiquiatria
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ISSN 1414-0166
Cadernos
IPUB
Noção de Pessoa
e Institucionalização
dos Saberes Psicológicos
no Brasil
N2 8, 1997
Instituto de Psiquiatria
U F R • J
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Reitor: Paulo Alcântara Gomes
Decana do Centro de Ciências da Saúde-. Vera Lúcia C. R. Halfoun
Diretor do Instituto de Psiquiatria: João Ferreira da Silva Filho
Vice-Diretor: João Romildo Bueno
Periodicidade irregular
Cada número tem título distinto - n*i° 8: Noção de Pessoa e Institucionalização
dos Saberes Psicológicos no Brasil
ISSN 1414-0160
CDD 616.89
CDU 616.89
520008858
rwSTITUTO DE PSIQUIATRIA - IPUB
CADERNOS DO IPUB
Número 8,1997
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Cadernos do IPUB n°8, 1997
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Introdução
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Introdução
mais ou menos favoráveis a algumas das versões dos saberes eruditos) (cf. Castel,
1978a; Moscovici, 1978; Duarte, 1986a; Herzlich, 1969).
Uma tradição acadêmica bastante especial se desenvolveu no Rio de Janeiro, a
partir do início dos anos 70, em torno sobretudo de uma interlocução entre a
Antropologia Social e a Psicanálise (mas envolvendo também a Psiquiatria influenciada
pela Psicanálise). Esse espaço suscitou uma grande produção intelectual, com referência
cruzada; incluindo trabalhos de pós-graduação no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional/ UFRJ, no Instituto de Medicina
Social da UERJ, no Instituto de Psiquiatria da UFRJ e na Pós-Graduação em Psicologia
Clínica da PUC/RJ (V. Duarte, 1989b, in fine).
Foi sobretudo a existência dessa tradição ativa que sugeriu a formulação de um
projeto abrangente de pesquisa a partir do levantamento de dados históricos e
etnográficos sobre a institucionalização dos saberes da Psicologia, Psiquiatria e
Psicanálise na área cultural do Rio de Janeiro, visando a produção de um corpus
documental e analítico de referência para o desenvolvimento de pesquisas concatenadas
sobre o desenvolvimento das formas psicologizadas da Pessoa ocidental moderna. Seus
coordenadores são pesquisadores treinados naquele espaço de interlocução, para o qual
contribuiram com publicações originais, orientação de teses e outras iniciativas de
organização do campo. Seu trabalho conjugado já se havia institucionalizado inclusive
desde 1992 na animação do Grupo de Documentação e Pesquisa Social em Psiquiatria
(GRUPEPSI) da UFRJ. Muitos dos demais pesquisadores participantes também já
tinham feito contribuições significativas a questões relacionadas ao projeto (V. as
referências bibliográficas de Duarte; Duarte, Ropa et al.; Duarte & Giumbelli; Russo;
Russo & Santos; Russo & Silva Fo.; Carrara; Venancio; Delgado & Venancio; Teixeira
e Rohden).
O projeto engloba no momento uma proposta central de organização crítica de um
centro de referências (ou guia de fontes) e um feixe de projetos específicos articulados
em tomo do tema central, que lhe imprimiram desde o início um dinamismo intelectual
diversificado. Sua intenção mais permanente - e a longo prazo - é a de formalizar o
núcleo de uma rede institucional que permita manter viva a tradição mencionada de
pesquisas, pela constituição de arquivos e sistemas de referência centralizados e
universalizados, seja sob a forma de publicações, seja sob a forma de registros
informatizados. Isso não impediría a permanente atividade autônoma de pesquisadores
interessados na área, mas permitiría a consolidação de uma arena de interreferência mais
cerrada.
Um banco de dados dedicado a Bibliografia, Biografias, Instituições e Legislação
no que toca à área da pesquisa está sendo montado, tendo-se concentrado o trabalho
neste primeiro ano sobretudo no item Bibliografia (sobretudo brasileira). Já dispõe de
cerca de três mil títulos, com informações complexas, que logo estarão à disposição de
quaisquer pesquisadores interessados.
Os textos que compõem o presente volume representam a outra dimensão da
pesquisa - a dos projetos específicos articulados em tomo do projeto central. Os
trabalhos de Russo, Serpa Jr., Teixeira, Venancio e Marçal-Ribeiro dedicam-se mais
especificamente à Psiquiatria; o de Nicacio, à Psicanálise, e os de Mancebo e Jacó-
Vilela à Psicologia. Três áreas limítrofes complementares são cobertas pelos outros três
artigos: o de Ramos-da-Silva se ocupa dos "cuidados com a infância"; o de Carrara, da
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BIBLIOGRAFIA
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Introdução
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Introdução
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OS TRES SUJEITOS DA PSIQUIATRIA
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Jane A. Russo
* Doutora em Antropologia Social; Professora do Instituto de Psiquiatria da UFRJ e do Instituto de Medicina Social
da UERJ; Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental do Instituto de
Psiquiatria/UFRJ.
1 Participei da Mesa Redonda “O Estado e o Cidadão”, apresentado o trabalho “O Sujeito Cidadão”, que constitui o
núcleo central deste texto.
2 Em sua maioria também psiquiatras.
3 A influência do ideário da reforma italiana sobre as experiências de reforma do aparelho psiquiátrico brasileiras não
é uniforme. A experiência levada a cabo no município de Santos, a mais paradigmática de todas, se inspirou
nitidamente na reforma italiana. Em outras, como na de Angra dos Reis ou de Porto Alegre, a influência italiana se
mescla seja à “psicoterapia institucional” francesa, seja a um ideário sanitarista propriamente brasileiro. As
experiências mais localizadas do Rio de Janeiro e de São Paulo têm enfoques diferenciados e peculiares. Sobre as
diferentes vertentes da reforma psiquiátrica ver, entre outros, Teixeira (1993) e Venâncio (1993); sobre as
experiências brasileiras ver Leal (1994), Amarantes (1995) e artigos no Cadernos do IPUB n.4.
Cadernos do IPUB n° 8; 19S
O SUJEITO CIDADÃO
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Os Três sujeitos da Psiquiatria
O SUJEITO BIOLÓGICO
4Sobre o vínculo entre a autonomização da esfera política e a concepção modema de indivíduo ver Dumont (1983) e
Viveiros de Castro e Araújo (1977).
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Os Três sujeitos da Psiquiatria
O SUJEITO DA SINGULARIDADE
Essa relação entre lei e norma, entre aparato jurídico e aparato médico-psiquiátrico
não implica, porém, apenas uma separação entre os que são donos de livre arbítrio,
senhores de si, daqueles que o perderam ou nunca o possuiram. Não se trata somente de
uma partilha entre indivíduos diferentes. Trata-se também, e isso é muito importante, de
uma partilha no interior do próprio indivíduo.
Falei antes da mulher e do “primitivo”. Todos “diferentes” e por isso, passíveis de
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no interior do campo. Como também afirmamos, as fronteiras entre os grupos não são
rígidas e há negociações e passagens entre eles. É visível, por exemplo, a maior
possibilidade de comunicação e o efetivo intercâmbio entre a psiquiatria “militante’ e a
‘clínica da psicose” psicanalítica, ambas unidas em uma acirrada crítica à “psiquiatria
biológica”. Ao mesmo tempo, a ascensão desta última como força hegemônica no
campo é inegável. Isso aponta para rearranjos no que tange à concepção moderna de
pessoa e das polaridades que a constituem: diferença/igualdade; livre-arbítrio
(liberdade)/ determinismo.
Essa espécie de aliança entre a psiquiatria “militante” e a “clínica da psicose”—
apesar de sujeita a rupturas, disputas e rearranjos que refletem tanto discordancias
ideológicas irredutíveis quanto necessidades políticas ocasionais — não é uma novidade
no campo. A hegemonia da psicanálise na psiquiatria anglo-saxã do pós-guerra coincide
com as primeiras críticas ao modelo asilar tradicional e com o surgimento de novas
propostas - mais liberalizantes e humanizadoras - no tratamento do louco. Do mesmo
modo Robert Castel nos mostra que, na França, a reforma psiquiátrica dos anos 60
conviveu de forma pacífica (e muitas vezes francamente amigável) com a psicanálise
que se difundia no campo assistencial psiquiátrico. Estudos sobre a reforma psiquiátrica
brasileira mostram a impossibilidade de se discutir esse movimento sem levar em conta
a difusão da psicanálise no meio psiquiátrico - em grande parte dos casos foram os
próprios psicanalistas os responsáveis pela introdução de reformas liberalizantes no seio
da instituição psiquiátrica.12 Por um lado, pode-se falar em uma afinidade no próprio
modo de conceber o sujeito, pois, como falamos mais acima, “o eu como enigma nada
mais é que a contrapartida do sujeito-cidadão”. A luta política propriamente dita pode
perfeitamente se articular a uma luta política “interior”, por uma maior liberdade de
existência, de comportamento, de escolhas etc. Uma interpretação libertária da
psicanálise coadunava-se à perfeição com o movimento libertário do pós-guerra. Com o
passar do tempo assistiu-se a uma interpenetração entre as duas esferas que mais acima
indiquei como separadas: as que delimitam as polaridades indivíduo/sociedade,
público/privado, objetivo/subjetivo. A idéia de que uma mudança interna ao próprio
indivíduo deve preceder qualquer pretensão de mudança social mais profunda tomou-se
a base de todo o movimento da contracultura - é necessária uma mudança interna que
passa pela rejeição de valores, paradigmas e comportamentos burgueses ou tradicionais.
A liberdade sexual, a negação do modelo tradicional de família, o hedonismo em
oposição à ética do trabalho, o culto às drogas que “expandiam a consciência”, são
aspectos da “revolução interior” propugnada pela contracultura.13 A crítica generalizada
a qualquer tipo de opressão toma o manicômio e as práticas psiquiátricas repressivas
como alvos privilegiados.14 “Revolução interior” e reforma psiquiátrica se encontram,
tendo a psicanálise, senão como fio condutor, pelo menos como possibilidade de
costura.
Os tempos mudaram, e com eles a psiquiatria. A psicanálise deixou de ser
hegemônica no campo. A partir dos anos 80, e sobretudo nos anos 90, assiste-se a uma
inegável ascensão da psiquiatria chamada biológica enquanto modelo hegemônico. Este
não é um fato isolado. Faz parte, na verdade, de uma espécie de “re-biologização” de
temas e discussões antes circunscritos ao campo do embate político. Referido-nos, por
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BIBLIOGRAFIA
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DEGENERESCÊNCIA: QUEDA, PROGRESSO E
EVOLUCIONISMO*
Uma parte
enviado do seuantes
um pouco Ensaio 1844
paradeAsa - naumverdade,
Gray, umamericano.
botanista esboço da "Origem
" d esPécies - e uma cana que ele havia
Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo
espécies, mas sempre de acordo com um plano unitário de criação, teleológico, uma
"escala dos seres". E fmalmente a posição, que será a do darwinismo, que enfatiza a
diversidade, dispersão e descontinuidade dos seres vivos, ao mesmo tempo que a
transformação das espécies em função de variações contingentes, selecionadas
posteriormente pelo meio. Proponho que examinemos com mais detalhes como se
deram estes remanejamentos, para finalmente podermos situar, em relação a eles, a
constituição da teoria da degenerescência.
Para que a posição flxista e criacionista, tão fortemente arraigada e sustentada pela
influência da religião católica, fosse abalada, a conjugação de toda uma série de fatores
foi necessária. Alguns de ordem mais geral, referentes aos movimentos históricos mais
amplos, tais como a Reforma, as grandes navegações, a redescoberta do pensamento dos
clássicos, o desenvolvimento das filosofias de Bacon, Leibniz e Descartes, a
constituição das ciências físicas, com Galileu e Copémico, etc. Mas, como eu disse,
tudo isso é muito amplo, muito abrangente e se dá num intervalo de tempo alargado, de
mais ou menos duzentos anos, se tomarmos como limite final do intervalo a virada do
século XVIII para o século XIX. Neste ambiente cultural já aparecem trabalhos como o
de Fontenelle, no final do século XVII, sobre a "pluralidade dos mundos", onde ele
propõe uma tese sobre a origem do mundo e sobre a existência de seres vivos em outros
planetas. Décadas depois, já no século XVIII, Benoit de Maillet, apoiando-se em
estudos geológicos, propõe que o ambiente físico da Terra mudou no decorrer de sua
história, em função de avanços e recuos do mar, e que, consequentemente, também
mudaram os seres vivos que nela habitam, os seres terrestres sendo considerados como
antigos seres aquáticos transformados. Ao mesmo tempo, as ciências físicas, de
Copémico e Galileu até Newton e Laplace, elaboram leis gerais, como por exemplo as
leis de Newton, que governam todos os fenômenos físicos, terrenos e celestes. Assim, se
os planetas movem-se em suas órbitas de uma forma que é previsível por estas leis,
toma-se pensável a idéia de que o Criador não precisa intervir a todo momento para
assegurar o bom andamento do universo. O Criador é a causa primeira mas a partir do
momento inicial e fundamental da criação do mundo, este é regido por "causas
secundárias", as leis da física.
Mais próximo do momento histórico em que o fixismo começa efetivamente a ser
abalado, e numa relação mais estreita com este fato, nós temos, já no século XVIII, as
mudanças que a geologia experimenta, no conhecimento acerca das transformações
pelas quais passou a Terra, bem como acerca da idade da Terra. Concebe-se, desde
então, que a maior parte dos estratos geológicos são depósitos sedimentares, cujas
espessuras pode variar de 3000 a 30000 metros, que se formam pouco a pouco e que
para atingirem estas dimensões exigiríam um período de tempo muito maior do que os
4000 anos de idade que a narrativa bíblica atribui à Terra.2 Por outro lado, em função
das viagens ao Novo Mundo, os limites da biogeografia se alargaram enormemente.
Novas espécies animais e vegetais, que não existiam na Europa, são descritas. Por que,
então, a fauna do mundo não é uniforme, se todos os animais, salvos do dilúvio por
Noé, espalharam-se a partir de sua arca? A questão da extinção e da transformação de
espécies de seres vivos também é levantada pela descoberta de fósseis. Na verdade, a
2 Relata Bowler (1989) que no século XVII o Arcebispo James Usher tentou calcular a data da criação, retrocedendo
dos patriarcas até Adão e fixou como o marco da criação o ano de 4004 A.C. . John Lightfoot, vice-reitor da
Universidade de Cambridge, em busca de maior precisão, determinou, na mesma época, que o dia e hora exatos da
criação do homem eram nove horas da manhã do Domingo, 23 de outubro de 4004 A.C..
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existência destes já era conhecida de longa data mas eles eram, até o século XVIII,
explicados como tendo crescido a partir das rochas, como um cristal ou mineral, fosse
como o resultado de uma vis plastica da natureza, capaz de gerar qualquer tipo de forma
nas rochas, fosse como resultado de uma "geração espontânea", que teve lugar numa
rocha. Na medida em que se admitiu que os fósseis seriam de organismos que teriam
vivido anteriormente mas cuja espécie não existia mais sobre a Terra, a primeira
tentativa de conservar a versão bíblica, fixista e criacionista, foi a de interpretar os
fósseis como sendo vestígios de espécies que pereceram no dilúvio. No entanto, estes
fósseis não só não correspondiam aos animais existentes naquele momento, como
também eles se distribuíam através de camadas geológicas. Ou seja, a cada estrato
correspondiam uma fauna e uma flora, fósseis, peculiares, o que parecia indicar que não
só a superfície do planeta como as características de seus habitantes teriam passado por
importantes transformações no decorrer do tempo.
Assim, é ao século XVIII que é habitualmente creditada a emergência do
pensamento transformista, oposto ao fixismo tão bem encarnado na mesma época por
Linneu. Como representantes da corrente transformista são relacionados desde o já
mencionado Benoit de Maillet, que publicou o seu "Taliamed" em 1748, passando por
Robinet, Charles Bonnet e Diderot, até chegar a Maupertuis e Buffon. De qualquer
forma, Jacob (1970) procura diferenciar o que se passa neste momento daquilo que ele
considera como o verdadeiro transformismo. Na sua opinião, o que começava a se
pensar então era na possibilidade de transformação, que ele distingue do transformismo,
entendido este último como "...um impulso vindo dos próprios seres e que os conduz
pouco a pouco do simples ao complexo através das vicissitudes da Terra (...) o
transformismo constitui uma teoria causai da aparição das espécies, da sua variedade, do
seu parentesco" (pp.149-150).
Neste processo ao longo do qual a concepção fixista vai sendo abalada e pouco a
pouco deslocada da posição de hegemonia pela concepção transformista, alguns nomes
costumam ser mais lembrados, tais como Buffon, Lamarck, Cuvier, Geoffroy Saint-
Hilaire, Lyell, culminando com Darwin. Pretendo apresentar, então, de forma super
sintética, os principais pontos das proposições destes autores, para que possamos dispor
de um panorama geral deste debate, o que permitirá uma maior clareza acerca da
posição da teoria da degenerescência neste contexto. Mas antes de passar aos autores,
gostaria de fazer uma pequena ressalva sobre a questão da "atribuição" de autoria.
Assim, com Foucault (1994, T.II), quero ressaltar que o que está em jogo, por trás dos
nomes citados, quaisquer que sejam eles, não é a pretensão de apresentar a totalidade da
obra ou do pensamento de um autor. Procedemos sempre a uma escolha. Privilegiamos
um texto, ou uma passagem de texto, ou no caso, um comentário, e deixamos outros de
lado. O que procuro aqui, não é o exame autoral de uma obra precisamente delimitada
mas antes identificar as transformações pelas quais passa o conhecimento em uma dada
época histórica e que podem ser salientadas de uma maneira fecunda em determinados
textos de determinados autores.
Grosso modo, pode-se dizer que o naturalismo no século XVIII foi dominado por
Linneu e por Buffon. Carl Linneu, sueco de nascimento e falecido em 1778, legou aos
botânicos e zoólogos a nomenclatura latina das espécies vivas, ainda em uso. Esta
nomenclatura era aplicada na sistemática classificatória que ele concebeu, de maneira
lógica e um tanto artificial, abarcando todos os seres vivos. Apesar de sua opção
reconhecidamente fixista, Mayr (1989) considera que Linneu lançou as bases de uma
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Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo
3Ao contrário da degenerescência de Morei, que era entendida como um "desvio doentio de um tipo primitivo" da
espécie humana, transmissível hereditariamente à descendência e com agravamento progressivo no decorrer das
gerações, a degeneração de Buffon é entendida, por Morei, como um "desvio natural do tipo primitivo", devido às
condições climáticas e de nutrição, podendo retomar, sob outras condições, ao tipo originário.
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4 P «te segundo mecanismo que faz com que a série não seja completamente linear, como seria de se esoerar
ca enas de uma complexificação crescente. As respostas ao ambiente e a c^----- * que osK
nÇa. de cdevem
es^sempre em completa harmonia com o ambiente faz com que a série de Lamarck
" -~c'; apresente "ramificações”
localizadas.
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Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo
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pluralidade de séries.5
Enquanto isso, do outro lado da Mancha, estes problemas eram considerados,
sobretudo, sob o prisma da Teologia Natural: a natureza é o produto, acabado e pouco
suscetível de ser melhorado, da sabedoria divina. A natureza é pura harmonia e
manifesta o desígnio de Deus. Não existe, portanto, maior homenagem ao Criador do
que dedicar-se ao estudo de suas obras. Além disso, uma outra característica das
ciências naturais na Grã-Bretanha era o predomínio da geologia sobre a história natural.
E neste campo travou-se um importante debate entre catastrofismo e uniformitarismo.
A concepção do catastrofismo corresponde ao ponto de vista de Cuvier para
explicar a extinção de espécies, tal como podia ser deduzida da presença dos fósseis.
Submetendo-se este ponto de vista à visada da teologia natural, chegou-se a uma
posição que contava com a existência de sucessivas catástrofes, a cada catástrofe
seguia-se uma nova criação, e cada nova criação representava um progresso em relação
a criação anterior, como se a sucessão de faunas representasse uma espécie de
"amadurecimento" do plano da Criação. Temos aí então uma versão do catastrofismo
que foi chamada progressismo, que associa ao catastrofismo uma reformulação
criacionista da scala naturae. Em contraposição ao catastrofismo, qualquer que seja a
sua versão, temos o uniformitarismo, cujo representante mais ilustre foi Charles Lyell.
De acordo com Mayr (op.cit.), a posição uniformitarista engloba um conjunto complexo
de teorias, dos quais tentarei destacar os principais pontos. Partindo de uma convicção
criacionista, o uniformitarismo, no entanto, no lugar de catástrofes, postulava que as
mesmas causas agiram - e agem ainda - através dos tempos geológicos e que a
intensidade das forças geológicas também sempre foi a mesma. O que podería acontecer
eram "constelações" variadas destas causas e forças em diferentes momentos da história
da Terra. O uniformitarismo coloca o fator tempo numa posição absolutamente
relevante e propõe que as mudanças que aconteceram - e acontecem - na superfície da
Terra se dão de forma lenta e gradual. Finalmente, este mundo submetido a "um regime
constante", não apresentava uma progressão rumo a um fim ou a uma forma definida.
Mayr (op.cit.) considera discutível a importância da influência de Lyell sobre
Darwin.6 Quanto a esta questão em particular, Bowler (1989) considera que Darwin
reteve, de Lyell, sobretudo a idéia de uma transformação contínua e gradual, embora o
uniformitarismo de Lyell não possa ser facilmente associado as idéias de transformação
e evolução. Isto porque o uniformitarismo trabalhava, na verdade, com a idéia de uma
Terra estável, na qual as diferentes transformações geológicas pelas quais a Terra
passava eram mutuamente compensatórias. Neste sentido, portanto, a visão catastrofista
era muito mais próxima de uma concepção da Terra como instável, sujeita a
transformações. De qualquer maneira, é inegável que Lyell introduz alguns pontos
importantes, que serão desenvolvidos, de uma maneira própria, dentro da teoria
darwiniana. A uma transformação do mundo e das espécies obedecendo a uma
teleologia do tipo scala naturae ou provocada por catástrofes eventuais, ele opunha um
mundo submetido a forças constantes, regulares, e transformando-se gradual e
contingentemente, no qual a extinção ou o aparecimento de novas espécies deve ser
esclarecido pela interrogação das relações destas espécies com as mudanças que estas
mesmas forças, que agem no presente, infligem ao ambiente.
debate e suas principais consequências epistemológicas, ver Foucault, 1987b e 1994, T.II.
5 Sobre este-----
6 Cf. Mayr, op.cit., pp.503-51o.
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Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo
Pode-se dizer, então, que a esta altura dos acontecimentos, todas as peças que vão
ser reunidas por Darwin para montar a sua teoria, já haviam aparecido, de maneira
esparsa, isolada, figurando nos trabalhos de Lamarck, Cuvier, Lyell: transformação das
espécies, diversidade e pluralidade do plano de criação, contingência das variações,
relação da extinção e aparecimento das espécies com as transformações graduais pelas
quais passa o ambiente, etc. Com efeito, a teoria da darwiniana é muito menos o
resultado de uma revolução devida ao caráter individual de um gênio, do que a
culminância de um processo mais amplo de transformação cultural.
7 Bowler (op.cit.) e Gould (1977) indicam que, na verdade, o termo evolução aparece pela primeira vez, nas
discussões pertinentes às ciências da vida, no século XVIII, no contexto da posição pré-formacionista no debate
acerca da geração dos seres vivos. O pré-formacionismo postulava que o futuro ser vivo, objeto do processo de
geração, já está todo formado - no óvulo ou no espermatozóide, de acordo com o ovismo ou o animalculismo - mas é
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
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Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo
como uma teleologia, um objetivo a ser atingido pela espécie humana, quanto no sentido
das transformações sociais, políticas e econômicas pelas quais já passa a sociedade
contemporânea ao aparecimento da teoria da degenerescência.
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
no século XIX, o caráter de uma convicção bastante arraigada. Como testemuho, pode-
se transcrever trechos do verbete "Progresso" do "Larousse Universel", de 1866, citados
por Martin (op.cit.):
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Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo
10 Para uma apresentação resumida do pensamento de Buchez, ver Pick, D. - Faces of Degeneration: A European
Disorder, C.1848-C.1918, 1989, sobretudo parte I, Capítulo 2.
11 Esta força é constantemente citada por Morei. Ela postula que "os fenômenos se sucedem de tal sorte que parecem
se comandar e se gerar uns aos outros."
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
"...esta definição que quer que o homem seja uma função, em outros termos,
que ele seja um espírito criado para agir como força livre e inteligente, e ao
qual Deus consagrou um organismo, a fim de que ele cooperasse livremente
com a obra da criação. (...) não é no estudo exclusivo da ação destes agentes
fisicos sobre o organismo que nós encontraremos a solução do problema que
nos ocupa, e nós devemos, necessariamente, enfatizar a parte da influência
exercida sobre os fenômenos da vida orgânica pelo objetivo intelectual e moral
que o homem se propõe a atingir. (Morei, op.cit., p.325, grifos do autor, para
marcar as citações de Buchez)
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Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo
Esta passagem indica com toda a clareza que, para Buchez e para Morei, o criador
dotou o ser humano da função de continuar, na Terra, o trabalho da criação,
aperfeiçoando-o no sentido do seu progresso. O progresso aqui aparece
inequivocamente como o resultado de uma teleologia divina que emprega o homem
como o seu mais bem acabado instrumento terreno. Esta posição demonstra claramente
que só se pode falar em evolucionismo, no contexto da degenerescência de Morei,
entendendo-o como relacionado à ideologia do progresso e ao lugar proeminente do
Homem no plano da criação. O que é contrário a posição darwiniana, para a qual as
transformações por que passa a natureza resultam de variações aleatórias julgadas a
posteriori por um ambiente cambiante, processo que não prevê nenhum lugar especial
para o ser humano, este também resultado dos acasos do tempo e da história da vida na
Terra. Além disso, por sua ênfase no aspecto moral da função humana, a passagem
acima citada ilustra todo o poder da idéia de degenerescência como um transdutor de
significados físicos e morais.
Com relação a esta função do Homem sobre a Terra, o processo de
degenerescência aparece como o seu mais consistente obstáculo. "...A degenerescência é
o desvio doentio de um tipo normal primitivo’, ora, o progresso, que é o objetivo e a vida
da humanidade, é incompatível com uma tal situação” (Morei, op.cit., p.361, grifo do
autor). Assim, se o progresso é pensado como um objetivo inelutável, divinamente
fixado, a ser atingido pela humanidade, aqueles dentre os homens que demonstram não
serem capazes de colaborar com esta missão, só podem ser pensados como vítimas de
uma segunda Queda, como elementos que se distanciam do tipo primitivo normal da
humanidade. O degenerado o é porque tomou-se incapaz de exercer a função do homem
sobre a Terra, ou seja, ele é pensado com referência a um progresso que deveria se
produzir. Por outro lado, este progresso, indicado por Deus como o destino do homem
neste mundo, se ele não acontece plenamente ou parece ser seguidamente desmentido ou
ameaçado pelos fatos, isto se deve à degenerescência na espécie humana. Destaca-se
assim, portanto, o quanto estas duas noções, tão caras ao século XIX, e aparentemente
tão antagônicas, estão extremamente intrincadas. O exame desta relação íntima das duas
noções, degenerescência e progresso, ocupa uma grande parte da apresentação que
Buchez faz do livro de Morei à "S.M.P.", indicando o quanto ela não era fortuita, mas
antes, necessária.
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
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Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo
origem às funções mais complexas. De qualquer forma, de acordo com Martin (op.cit.),
será a posterior difusão do darwinismo que condicionará a aceitação favorável das teses
de Spencer, que tiveram uma recepção reservada quando do seu surgimento em 1855.
As idéias de Spencer serão introduzidas na França por Taine e, sobretudo, por Ribot. No
que concerne psicopatologia, suas idéias serão para ela transportadas através de Jackson
que concebe a estruturação e funcionamento do sistema nervoso, através da filogênese e
da ontogênese, de maneira evolutiva, as doenças mentais sendo entendidas como
desestruturação, ou, em outras palavras, como o caminho inverso do processo evolutivo.
Outra transformação importante neste período refere-se a teoria de Weismann,
publicada em 1883, que prevê que as células germinativas, portadoras dos caracteres
hereditários, pertencem a uma linhagem totalmente independente da linhagem das
células somáticas. Esta concepção representa um duro golpe na concepção quase
dogmática da herança dos caracteres adquiridos. Como era de se esperar, o papel da
hereditariedade mórbida, em geral, e na degenerescência, em particular, tende a ser
questionado, embora ainda em escala reduzida. Para Ribot e Féré, o papel da
hereditariedade, sobretudo sob a forma da hereditariedade dessemelhante, na patologia
mental e nervosa, segue sendo fundamental.
Além disso, os resultados obtidos pela embriologia e teratologia experimentais,
deslocando o interesse da transmisão de caracteres hereditários para o processo de
geração intra-uterina, e a influência sobre esta das ações do meio, resumidas na idéia de
nutrição, contribuirão para gerar discussões acerca da identidade hereditário/degenerado.
De acordo com Genil-Perrin (1913), a primeira vez que Magnan abordou a
questão da degenerescência foi em 1882, quando ele publicou as suas "Leçons sur la
Dipsomanie". Mas na verdade, a concepção de Magnan sobre a degenerescência, ou
melhor, sobre o degenerado13, começa a se sistematizar nas "Recherches sur les
centres nerveux", cuja a segunda parte da segunda série é consagrada aos "hereditários
degenerados", e nas "Leçons Cliniques sur les maladies mentales" (1887), que contém
uma série de conferências sobre os "hereditários degenerados". Mas é no livro escrito
em co-autoria com o seu antigo aluno Legrain, "Les dégénérés" (1895) que os pontos
de vista de Magnan são apresentados na sua forma mais sistemática e definitiva.
Recusando a "definição antropológica do degenerado" que é dada por Morei14,
Magnan se propõe a ir adiante.15 E define a degenerescência da seguinte maneira :
13 É interessante notar que em Magnan a ênfase desloca-se da "degenerescência", como um processo abrangente,
insidioso, cósmico, verdadeiro espectro do mal, para a figura concreta do degenerado, com as suas características
físicas e mentais peculiares, que o distinguem dos outros seres humanos.
14 Se Magnan recusa a definição moreliana, nem por isso ele faz menos questão de demonstrar seu reconhecimento a
Morei, procurando ressaltar que este introduziu o conceito de degenerescência, a dimensão etiológica na classificação
das doenças mentais e pôde destacar o papel da hereditariedade na série causai da degenerescência e das diferentes
formas de loucura: "É de Morei, na verdade, o mérito de ter assinalado a transformação das espécies pela
hereditariedade, fenômeno patológico em virtude do qual os descendentes não apresentam mais, ao cabo de um certo
número de gerações, os mesmos atributos que os ascendentes mas novos atributos físicos e intelectuais fixos,
imutáveis, que os diferenciam do tipo comum da espécie e que dele fazem novos sêres que ele qualifica de
degenerados^...). Esta concepção tomou uma forma tão luminosa no espírito de Morei que ele logo descreveu no seu
tratado das doenças mentais (1860) um novo grupo de loucura sob o nome de alienações hereditárias, grupo muito
vasto, o mais vasto de sua classificação" (Magnan & Legrain, op.cit., pp.12-13, grifos dos autores).
15 "Nós mostraremos (...) os pontos fracos da doutrina de Morei, sempre conservando o seu princípio, ao qual nos
alinhamos; nós a completaremos e a modificaremos nos detalhes" (Magnan & Legrain, op.cit., p. 17).
37
*
16 Na concepção de Magnan, o desequilíbrio destaca-se como um condição definidora do degenerado Ele refere
destruição hipotética do equilíbrio entre todas as funções cerebrais.Este traço essencial seguirá seu a
curso na
38
I i ’
f Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo
I
posição de Magnan sai triunfante, mesnjo se éle tem fazer algumas concessões aos
seus críticos. * • (
Sintetizando, pode-se dizer que encontramos em Magnan uma apropriação do
vocabulário e dos temas do darwinismo, reinterpretados em função da persistente
ideologia do progresso. Basta reportar-se a própria definição que Magnan dá para a
degenerescência para que este procedimento intelectual tome-se evidente. Além disso,
procurando ater-se a uma perspectiva naturalista iluminada pelo positivismo, Magnan
rompe todos os laços com qualquer perspectiva metafísica, o que era um traço marcante
da concepção de Morei. Assim, Magnan procura ancorar o seu discurso não só no
evolucionismo mas neste na medida em que é transposto para o entendimento do
sistema nervoso central. Daí a sua definição do degenerado como um desequilibrado.
Tal desequilíbrio é explicitado no seu modelo anátomo-íuncional, desenvolvido para
estudar a função sexual. O desequilíbrio entre os centros do eixo "cérebro-espinhal"
responsáveis pelas funções intelectuais, afetivas, sensitivas e instintivas é o responsável,
portanto, pelas diferentes formas clínicas dos "hereditários degenerados".
Finalmente, é preciso ressaltar que a partir da identidade que é estabelecida entre
degenerado e desequilibrado começa a delinear-se o destino da degenerescência,
especialmente na psiquiatria francesa, na medida em que logo - início do século XX - os
termos desequilíbrio mental e desequilibrado vão herdar aproximadamente as mesmas
funções nosológicas que possuíram na segunda metade do século XIX os termos
degenerescência e degenerado. Este deslizamento terminológico e semântico é o de um
processo entendido, pelo menos inicialmente, de uma forma abrangente e de limites
imprecisos - a degenerescência - para um mecanismo patológico que se pretende
ancorado numa neurologia localizacionista e evolutiva e numa psicologia atomista.
BIBLIOGRAFIA
psiquiatria francesa mesmo depois de os temas da degenerescência e do degenerado terem sido relativamente
esvaziados.
39
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♦
4
NASCIMENTO DA PSIQUIATRIA NO BRASIL >
INTRODUÇÃO
“ (...) a psiquiatria brasileira fóra dominada pelas idéias francesas, das quais o
expoente era o grande Magnan. Os nomes das várias seções do Hospício são
disso prova: Pinei, Esquirol, Morei, Calmeil, Bourneville. O prof. Teixeira
Brandão, homem de inteligência invulgar, pertencia à cultura francesa ”5.
5 Calmon, Pedro - O Palácio da Praia Vermelha - Rio de Janeiro: Ed. Univ. do Brasil, 1952. Pg. 66.
6 Para aprofundamento, vide Carrilho, Heitor - Professor Juliano Moreira - in Arquivos do Manicômio Judiciário do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 1/2, pgs. 1-20 (1933).
7 Citado por Medeiros, Tácito - Formação do Modelo Assistencial Psiquiátrico no Brasil - op. cit. pg. 81.
8 Citado por Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência a Psicopatas no Distrito Federal - Arquivos Brasileiros
de Neuriatria e Psiquiatria - 39(2); 79-118. Pg. 93.
9 Idem, pg. 115.
10 Medeiros, Tácito - Uma História da Psiquiatria no Brasil - in Duzentos Anos de Psiquiatria - Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1993. Pgs. 76-77.
11 Machado, Roberto et allis - Danação da Norma - op. cit. pgs. 428-429.
43
I ;
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
EUROPA E BRASIL
14 Foucault, Michel - História da Loucura na Idade Clássica - São Paulo: Perspectiva, 197R p„ a -
is Serpa jr, Octávio Domont - op. cit. pg. 100. • rSs- 43-78.
44
I
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
Em busca deste fim, Pinei recomenda uma metodologia aos jovens alienistas:
Um novo campo instalado é instalado com este procedimento. Pinei elabora uma
classificação das formas de loucura, inspirada nos métodos da História Natural, no
método empírico-indutivo de Francis Bacon20, exposto no livro Novum Organum
(1620) e nos conceitos filosóficos de duas obras de destaque no panorama cultural
16 Vide Postei, Jacques & Quetel, Claude - Nouvelle Histoire de la Psychiatrie - op cit. pgs. 152-161.
17 Para aprofundamento, vide Pessoti, Isaías - O Século dos Manicômios - São Paulo: Ed. 34, 1996. Pgs. 29-46.
18 Philippe Pinei - in Nosographie Philosophique -citado por Beauchesne, Hervé - História da Psicopatologia - op.
cit p£ 24.
19 Philippe Pinei - Nosographie Philosophique - citado por Beauchesne, Hervé - op. cit. pg. 24.
20 Para aprofundamento, vide Teixeira, Manoel - O Método Empírico-Indutivo e sua Relações com a Psiquiatria - in
Jom. Bras. Psiq., 44(12); 605-615, 1995.
45
Cadernos do IPUB n°8, 1997
francês da época, dentro do que ficou conhecido como a “filosofia das luzes . O y
de Locke (1690) e o Traité des Sensations de Condillac (1754) .
Nesta reorganização do conhecimento vários conceitos operatórios tomam s
disponíveis: (1) uma semiologia psiquiátrica, a partir do olhar do alienista que convive,
observa e descreve minuciosamente o comportamento dos doentes; (2) uma nosogra ia,
com a conhecida divisão pineliana em quatro grandes classes, a saber, a mania, a
melancolia, a demência e o idiotismo23; (3) uma abordagem clínica, que parte dos
sintomas para chegar aos quadros clínicos; e (4) uma terapêutica específica da loucura,
voltada para o tratamento das causas corporais e, principalmente, das chamadas causas
morais, isto é, das paixões descontroladas, ardentes ou pervertidas que estariam na base
da insanidade24. Pinei definia as paixões de forma ambígua, como um tipo de alteração
da sensibilidade físico-moral do indivíduo:
21 Para aprofundamento, vide Pessoti, Isaías - O Século dos Manicômios - op. cit pgs 25-28.
22 Na acepção adotada por Georges Lantéri-Laura - vide Prefácio in Os Fundamentos da Clínica: história p
do saber psiquiátrico - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. Pgs. 13-19. strutura
23 Vide Bercherie, Paul - Os Fundamentos da Clínica: história e estrutura do saber psiquiátrico - Rio de Jane-
Zahar, 1987. Pg. 36. orge
24 Informações contidas in Beauchesne, Hervé - História da Psicopatologia - op. cit pgs. 23-28- in Te' • *
Olavo Loureiro - O Método Empírico-Indutivo e suas Relações com a Psiquiatria - in Jornal Brasileiro
44(12): 605-615, 1995. ae Ps>quiatria
25 Pinei, Phillipe - Traité Médico-Philosophique sur L’Aliénation Mentale - Paris: Brosson, 1809 Pgs 25 28
46
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
26 Informação contida em Machado, Roberto et allis - Danação da Norma: Medicina Social e Constituição da
Psiquiatria no Brasil - Rio de Janeiro: Graal, 1978. Pg. 430.
27 Esquirol, Jean-Etienne - Des Maladies Mentales Consideres sous les Rapports Medicai, Hygiénique et Médico-
Legal - Paris:Bailliére, 1838. Pg. 421 (trad. nossa).
28 Vide Pessoti, Isaías - O Século dos Manicômios - São Paulo: Ed. 34, 1996. Cap. II e III.
47
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
/
OS LOUCOS DURANTE O PERÍODO COLONIAL
29 Machado, Roberto et allis - Danaçào da Norma - op. cit.; Medeiros, Tácito - Formação do Modelo AssisterJ i
Psiquiátrico no Brasil - op. cit.; Postei, Jacques et Quetel, Claude - Nouvelle Histoire de la Psychiatrie Pn
Dunod 1994; Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - cm Tratado de Clínica Psiquiátrica - São Pi
ssxxf r D““Fea"’ - -
30 Informação contida em Postei, Jacques et Quetel, Claude - Nouvelle Histoire de la Psychiatrie - Paris- n
1994. Pg. 497. ' Unod’
48
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
49
Cadernos do IPUB n°8, 1997
A questão principal para Sigaud era a dos loucos miseráveis. A eles deveria
voltar-se a vigilância do poder público.
38 Citado por Postei, Jacques & Quetel, Claude - Nouvelle Histoire de la Psychiatrie - op. cit. pg. 498.
39 Citado por Arruda, Elso - Resumo Histórico da Psiquiatria Brasileira - op. cit. pg. 20.
40 Citado por Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg. 5.
41 Idem, pg. 6.
42 Ibidem, pg. 5. . .
43 Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg. 7.
44 Idem, pg. 7.
45 Ibidem, ibidem.
50
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
“Esta deve se estender, pelo contrário, aqueles que circulam livremente pelas
ruas e, embuçados com grotescos andrajos, excitam as risadas dos viandantes,
(...) ou a torrente de grosseiras injúrias e ridículos epítetos com que são
amofinados (...) .Por que medidas a Camara Municipal pode prevenir a
presença dos doidos nas ruas? Por que meios coercitivos pode impedir que eles
sirvam de divertimento aos que transitam? Só existe um: é a fundação de um
hospício de doidos, ou o estabelecimento de uma casa de saude, primeiramente
em ponto pequeno, e que gradualmente se vá aumentando ”46.
José Martins da Cruz Jobim, mais tarde primeiro professor de Medicina Legal da
Faculdade de Medicina (1832) e primeiro médico chefe do Hospício Pedro II, redige,
em 1830, um relatório em nome da recém-fundada Comissão de Salubridade Geral da
Sociedade de Medicina sobre as condições de tratamento dos doentes mentais no Rio48.
Nele afirma:
”Uma coisa não podemos passar em silêncio, e vem ser a maneira porque os
doidos são ali tratados (no Hospital da Santa Casa de Misericórdia); custa a
crer-se que no Rio de Janeiro se encontre o cumulo de barbaridade em uma
casa destinada ao alívio de desgraças a que todo o homem está sujeito, e que
não tenha havido até o presente um coração benfazejo que se lembre daqueles
miseráveis, que lhes procure um local conveniente onde eles possam
restabelecer-se por um tratamento physico e moral bem dirigido, e não aonde
eles não se tornem ainda mais loucos; pois qual será o alienado, que
recuperando a razão nos seus intervalos lúcidos, não quisera antes viver
sempre privado delia, do que considerar-se ligado a um tronco, deitado no
chão e cercado de outros, que q cada passo o podem acommeter, e maltratar
horrivelmente ? Estamos persuadidos de que so tem falta de um coração
benfazejo, e com bastante influência para fazer sentir a necessidade de um
asilo de alienados nas vizinhanças da cidade, onde eles gozem de todas as
comodidades que exige o seu estado e tratamento ”49.
46 Ibidem, ibidem.
47 Ibidem, pgs. 7-8.
48 Citado por Postei, Jacques et Quetel, Claude - op. cit. pg. 498 (trad. nossa).
49 Citado por Paim, Isaías - op. cit pgs. 6-7 (grifo nosso)
50 Paim, Isaías - O Hospital Psiquiátrico: as origens, as transformações e seu destino - In Jornal Brasileiro de
51
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
De-Simoni cita e defende Pinei e Esquirol, e afirma estranhar que num “país
livre, em uma casa de caridade”, “os alienados sejam tratados pior do que se trataria ao
maior dos criminosos, e com o mesmo rigor e aspereza com que um senhor castiga o seu
escravo, prendendo-o no tronco”. Aqui, a marca contraditória da sociedade escravista:
De-Simoni constrange-se com o fato dos insanos serem tratados de forma pior que os
criminosos e igual a um escravo. O curioso é que De-Simoni era, ele próprio, o
responsável pela assistência médica dos loucos internados na Santa Casa, e havia sido
diretamente criticado por Silva Peixoto, em sua tese de 1837, quanto à desumanidade
dos métodos por ele ali empregados:
“Não podemos concordar com o meio de repressão adoptado pelo Dr. De-
Simoni em fazer meter os doudos no tronco. Além de importar isso a exasperal-
os mais, tem ainda o inconveniente de fazel-os perder o estímulo. Não se diga
que eles não estão em estado de poder avaliar os actos de degradação que com
eles se pratica, porque, apesar do desarranjo de suas faculdades intellectuaes,
eles têm a consciência de si e do que o cerca”52.
52 Cdadopor Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg. 10.
53 Ibidem, pg- 8.
52
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
"... honra seja dada ao nosso século, porque nos trabalhos ultimamente
publicados sobre a alienação mental, os fatos são ditados pelo espírito de
observação: a sua autoridade não poderá definhar, senão quando a natureza
deixar de ser constante em suas leis; no entanto, que esses outros dos séculos
remotos, tristes frutos do espírito do sistema, e contando todas as loucuras de
que era então susceptível o espírito humano, não poderiam ser hoje repetidos
sem provocar o riso e um justo desprezo ”55.
“ (...) que não há, talvez, circunstamcias da vida, que não se possam tornar
causas de alienação mental. Certamente, não haverá quem negue, que muitas
vezes a mais simples impressão é capaz de produzir a alienação mental, e muy
principalmente em um indivíduo a quem afecta uma indisposição physica, o que
bem prova quanta influência tem o physico sobre o moral, verdade esta
exuberantemente demonstrada por Cabanis"57.
54 Ibidem, idem.
55 Ibidem, pgs. 8-9 (grifo nosso)
56 Ibidem, pg. 9.
57 Cabanis é o filósofo mais citado por Silva Peixoto, sobretudo seu livro "Rapports du Physique et du Moral”. A
deferência de Peixoto em relação ao médico e membro do Grupo dos Ideólogos é evidente. Vale lembrar que Cabanis
foi o autor do célebre relatório sobre “Les Conditions des Insénsés detenus à la Salpetrière'. Ibidem, pgs. 9-10.
53
Cademos do IPUB n° 8, 1997
A CONSTRUÇÃO DO HOSPÍCIO
Esta biografia mostra que os médicos brasileiros não podiam ter encontrado
aliado com maior influência. Este era, sem dúvida, o coração benfazejo do qual Cruz
Jobim falara. Em seu relatório anual de 1839, Clemente Pereira proclama a urgência de
serem atendidas as reclamações que os homens da ciência vinham fazendo sobre as
condições dos alienados.
58 Informações contidas em Calmon Pedro - O Palácio da Praia Vermelha - Rio de Janeiro: Ed. Univ Do Brasil
1952. Pgs. 10-15.
59 Calmon, Pedro - idem, pg. 12.
54
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
hydropticas ”60.
60 Transcrito por Paim, Isaías - O Hospital Psiquiátrico ... - op. cit pg. 149.
61 A Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e o Hospício de Pedro II - Rio de Janeiro: Villeneuve, 1882. Pg.
17. .
62 Informação contida em Lopes, José Leme - A Psiquiatria e o Velho Hospício - In Jomal Brasileiro de Psiquiatria -
14(1-2) Rio de Janeiro, 1965, pg. 119.
63 Machado, Roberto et allis - op. cit. pg. 427.
64 Citado por Arruda, Elso - Resumo Histórico da Psiquiatria Brasileira - op. cit. pg. 21.
65 Informação contida em Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência a Psicopatas no Distrito Federal - In Arch.
Bras. de Neuriatr. e Psiquiatria - 39(2); pg. 82.
55
Cadernos do IPUB n°8, 1997
alienados”66.
“o referido à soberana presença de Sua Majestade Imperial para que haja por
bem ordenar o que for mais do seu imperial agrado e fará um ato que
eternizará o fausto dia da sagração e coroação do mesmo Augusto Senhor, a
fundação de um hospital de alienados, que bem poderia tomar o nome de
Hospício de Pedro II”68.
66 Citado por Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência... - op. cit pg. 82.
67 Idem, pgs. 82-83.
68 Machado, Roberto et allis - op. cit. pg. 427-428.
69 Transcrito por Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pgs. 12-13.
70 Informações contidas em Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg 13
56
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
57
Cadernos do IPUB n°8, 1997
classes, a primeira classe, que dispõe de quarto individual; a segunda, com um quarto
para dois alienados; e a terceira, que congrega os indigentes e escravos, com enfermarias
para quinze pessoas (a profunda divisão social do Brasil, entre a elite e a massa de
escravos e miseráveis, não foi esquecida na arquitetura de seu primeiro Hospício). Cada
ala tem dois andares: a andar inferior era ocupado pelos doentes agitados, o andar
superior, pelos doentes calmos. Havia dois grandes refeitórios, um para pensionistas,
outro para indigentes. No andar superior do corpo central, ficava a Capela. Abaixo dela,
a farmácia. Havia ainda salões, bibliotecas e banhos. Cunha Lopes assim descreve a
cerimônia de inauguração do Hospício Pedro II:
“A Pedro Segundo
Honra e Defesa do Brasil
E deste Hospício
Protegido pela gloriosa sombra de seu nome
Fundador;
Este testemunho de um ânimo agradecido
Os Irmãos do Hospital da Misericórdia
Levantaram
No ano do Senhor de 1852
Em 15 de Dezembro” .
76 Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência a Psicopatas no Distrito Federal - op. cit. pg. 89
77 Transcrito por Moreira de Azevedo - O Rio^de^Janeiro: Sua História, Monumentos, Homens Notávei:
is, Usos e
58
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
78 Citado por Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência... - op. cit. pg. 93.
79 Lopes, Leme - A psiquiatria e o Velho Hospício - op. cit. pg. 124.
80 A Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e o Hospício de Pedro II - Rio de Janeiro: Villeneuve, 1882. Pg.
21.
81 Citado por Lopes, Leme - idem, pg. 125.
82 Machado de Assis - in Obras Completas, volume III, pg. 637, crônica 149 transcrito por Machado, Roberto -
Danação da Norma.. - op. cit. pg. 485.
59
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
83 Infomnação contida em A Santa Casa de Misericórdia e o Hospício de Pedro II - op. cit. pg. 21.
84 Idem, idem.
85 Transcrito por Machado, Roberto - Danação da Norma ... - op. cit. pg. 474 - capítulo X, “Da admissão e saída dos
alienados”.
86 Os Alienados no Brasil, op. cit. pg. 43.
87 Segundo Nuno de Andrade - A Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e o Hospício de Pedro II - Ri0 de
Janeiro: Villeneuve, 1882. Pg. 6.
88 Machado, Roberto - Danação da Norma... - op. cit. pg. 475.
89 Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg. 18.
90 Idem, pg. 18.
60
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
convenientemente tratada; de outro, pelo fato de haver no Rio de Janeiro loucos não
recolhidos ao hospício, convivendo com criminosos e mendigos. A onda de ataques
atinge principalmente a administração da Santa Casa de Misericórdia. João Carlos
Teixeira Brandão é uma voz eloqüente a se levantar:
“Não obstante o excessivo numero de médicos para tão poucos doentes que
possam aproveitar-lhes os cuidados, o serviço clinico deixa muito a desejar. Os
facultativos clínicos limitam-se a visitas diarias, ás 8 da manhã, e a prescrever
os medicamentos indicados pelo estado do doente que examinam. Os médicos
internos permanecem e dormem no hospício, mas não veem os loucos senão
quando algum accidente grave no curso de qualquer moléstia intercurrente faz
recear pela vida desses infelizes, ou quando houve alteração notável na ordem
e disciplina do estabelecimento. Fóra desses casos, os doentes ficam entregues
ao pessoal do serviço economico e aos enfermeiros, que não tem habilidade
para notar as mudanças da symptomatologia mórbida, registrar os factos
dignos de observação, os phenomenos que poderíam esclarecer o juizo
diagnostico e mais particularidades assignalaveis. Motivos são esses que
justificam não ter ainda o Hospício, apesar de 40 annos de existência, dado
91 Transcrito por Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pgs. 17-18.
92 Informações contidas em Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência a Psicopatas no Distrito Federal - op.
cit. pg. 93..
93 Teixeira Brandão - Os Alienados no Brasil - Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Pg. 82.
61
Cadernos do IPUB n°8, 1997
62
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
da violência pela autoridade médica. Assim é que João Paulo Vieira da Silva, em sua
tese à faculdade de medicina “Tratamento das moléstias mentais” admite o uso
com fins terapêuticos: 1) do cautério, pelo temor que produz; 2) do isolamento na cela;
3) da camisola de força; 4) da privação de visitas e passeios; 5) da diminuição de
alimentos; e 6) dos banhos de emborcação, que consistiam em mergulhos sucessivos da
cabeça do doente em um tanque de água, com duração de dez segundos cada um, em
séries de no máximo seis banhos100.
A rigor, os doentes permaneciam entregues aos cuidados dos enfermeiros e das
freiras e padres da Ordem de São Vicente de Paulo, que priorizavam uma visão
caritativa e religiosa da abordagem da loucura. Um mal estar adicional provinha da
origem portuguesa dos religiosos desta ordem. Em 1855, por exemplo, encarregavam-se
do asilo treze irmãs, doze enfermeiros e um único médico: o diretor Manoel José
Barbosa. As irmãs detinham o poder real e determinavam as regras de funcionamento
asilar. E este conflito entre a ordem médica, portadora de um discurso médico-
científico, e o poder religioso conferido às freiras, irá marcar o funcionamento do
Hospício durante quase quarenta e cinco anos.
Poucos dias após a inauguração do Hospício, um grupo inicial de seis irmãs de
caridade foi transferido do Hospital da Santa Casa para supervisionar a administração da
nova instituição.101 Mais tarde, chegam ao Brasil as irmãs portuguesas, trazidas por
Clemente Pereira. As representantes clericais da Santa Casa, de modo gradual,
absorvem toda a administração. E as baterias do poder médico alijado voltam-se contra
estas.
João Carlos Teixeira Brandão (1854-1921), renomado alienista que não tinha
pudores em se auto-proclamar o “Pinei brasileiro”, nasceu em 28 de dezembro de 1854
em São Marcos, estado do Rio de Janeiro, filho de Felício Viriato Brandão e Maria
Flora Teixeira Brandão . Formado em medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro,
começou clinicando em Barra Mansa, de 1878 a 1880. Suas primeiras publicações
mostram um Teixeira Brandão voltado para a cirurgia: (tOperações reclamadas pelos
estreitamentos de urethra”; “Das quinas"; “Do melhor tratamento das feridas
accidentaes e cirúrgicas”; e a tese “Lesões orgânicas do Coração” com a qual
obtém o grau de doutor em medicina .
Gradativamente, Teixeira Brandão passa a interessar-se pelo tema da alienação
mental. Em seguida, por “sugestão de grande mestre e amigo, o Prof. Torres Homem”,
faz uma viagem à Europa, onde aperfeiçoa-se por conta própria nessa matéria, na
França, Alemanha e Itália104. O nascente campo do alienismo aparece como chance de
ascenção social e reconhecimento público para o cirurgião de Barra Mansa. Em 1883,
retoma à França e apresenta, em 26 de novembro, uma breve comunicação à Société
100 Citado por Arruda, Elso - Resumo Histórico da Psiquiatria Brasileira - op. cit. pg 24.
101 Citado por Paim, Isaias - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg. 15.
102 Citado por Blake, Augusto Victorino - in Diccionario Bibliographico Brazileiro - Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1895. Pg. 393.
103 Idem, idem.
104 Informação contida em “Dados Biográficos do Patrono da Cadeira n. 36 da Academia Fluminense de Medicina”.
63
Cadernos do IPUB n°8, 1997
baía“Odehospício de de
Botafogo, Pedro é admiravelmente
ondeII domina uma vasta situado:
paisagemdistante do centro
e é cercado uma populoso
por mais ele h
grande extenso ♦ ao suI da
pertence, reunindo perfeitamente as condições necessárias para um completo isolamento ( e.terreno <lue lhe
visitam o estabelecimento surpreendem-se com a ordem, o grande asseio, bem como com ' 1 °d°S aqueles clue
pelos alienados. Não é preciso dizer que o arquiteto que contruiu o hospício teve como °S .Cl!riosos trabalhos feitos
análogos da Europa; somente foram feitas adaptações ao clima, contruindo-se quartos ma’0»6 ° °S estabelecimentos
elevados e, sem economia nas despesas necessárias,à sua conslruçâo, fez-se uma edific£mais
admiração. (...) O serviço médico é fiscalizado pelo diretor que é responsável por tudo ou d Suntuoso e digno de
O pessoal médico é considerável: além de dois médicos internos que moram no asilo h' d FeSpe,to aos doentes,
um encarregado do serviço feminino e outro do masculino (..) A camisa de força ’e r a*™* d°ÍS °Utr0S médicos:
sendo utilizada apenas em casos excepcionais (...) Os meios físicos e morais são simult pratlcamente abandonada,
primeiros são indicados segundo a natureza da doença, constituição e temperamento do d ancamente empregados. Os
da prática e da experiência de todos os alienistas que nos precederam “ Brand- ?°entc; os segundos resultam
établissements daliénés au BrésiP - in Annales Médico-Psychologiques - Park AH n d CarIos Teixeira - "Des
106 Citado por Machado, Roberto - Danação da Norma ... - op. cit. pg. 480 ’ ‘ PêS' 277"283 (trad. nossa)
64
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
107 Teixeira Brandão, in Os Alienados no Brasil - Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Pg. 78.
108 G. B. de Moura Câmara - Relatório do médico diretor do Hospício de Pedro II, op. cit. pg. 10 (grifo nosso).
109 A Santa Casa de Misericorida do Rio de Janeiro e o Hospicio de Pedro II - op. cit. pg. 7.
65
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
de caridade serião de auxiliares dos facultativos clínicos (...) Seis annos após
veio à luz o regimento interno do hospício, quando as irmãs de caridade já se
havião domiciliado no paiz; e ainda hoje me sorprendo de que a administração
da Santa Casa (...) entregasse, com manifesta postergação do decreto de 18 de
julho de 1852, o governo discricionário do hospício ás irmãs de caridade e aos
padres de S. Vicente de Paulo”110.
Sua carta aponta para problemas como roubo e prevaricação de padres e freiras:
66
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
67
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
provisoriamente em 18 82120. Ali também será sucedido por Souza Lima, que assume a
cátedra por um curto período121.
Souza Lima foi sucedido, em 1883, pelo jovem médico de 29 anos, o Dr. João
Carlos Teixeira Brandão, alienista, polemista da imprensa e membro associado da
Sociedade Médico-Psicológica de Paris, que se torna o primeiro titular aprovado por
concurso público122, conforme determinava a lei n. 3141 de 1882. Souza Lima saúda o
aparecimento de “uma escola prática de um dos ramos do conhecimento médico que, em
nossos dias, figura entre os de mais alto interesse”123. O alienismo finalmente obtinha o
status de tema médico de ensino especial, trinta anos após a inauguração do hospício.
Até então, os temas da medicina mental eram tratados dentro da Clínica Geral, embora
já existisse a cadeira de Medicina Legal124, cuja titularidade era exercida por José
Martins da Cruz Jobim.
E prossegue:
121 Citado por Arruda, Elso - Resumo Histórico da Psiquiatria Brasileira - op. cit. pg. 34.
122 Citado por Medeiros, Tácito - Formação do Modelo Assistencial Psiquiátrico no Brasil - op. cit. pg. 81..
123 Transcrito por Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg 20.
124 Criada pela reforma do ensino de 1832.
125 Teixeira Brandão in Questões relativas à assistência médico-legal a alienados e aos alienados - Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1897 - pg. 96.
126 Idem, pgs. 78-79.
68
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
que termina, sob sua influência, sendo nomeado diretor do Hospício de Pedro II em
1887. O relatório de Teixeira Brandão consegue o efeito que Nuno de Andrade não
obteve. E assim, mais um radical ascende à direção do asilo, desta vez para empreender
a ofensiva final por sua medicalização e transformação numa instituição laica, no
contexto de um regime monárquico enfraquecido e de um crescente movimento
republicano.
A primeira medida adotada por Teixeira Brandão revela um populismo que quer
explicitar as vantagens da ascensão do humanitarismo médico ao poder administrativo
total:
Teixeira Brandão prega que as mentalidades deviam ser reformadas, não apenas
o prédio do Hospício:
132 Teixeira Brandão - Questões relativas a assistência... op. cit. pg. 90.
133 Idem, pg. 78.
134 Teixeira Brandão - Os Alienados no Brasil - op. cit. pg. 99.
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Nascimento da Psiquiatria no Brasil
4. ter a habilidade para distribuir ternura ou para punir com severidade, quando
necessário; o alienista deve estar atento ao caminho da justiça;
5. saber ocupar sua função como um exemplo de retidão moral e honradez, que
inspirasse a todos no interior do asilo.
Para Teixeira Brandão, esta era a única reforma que poderia implantar o
tratamento moral entre os alienados e controlar a conduta dos funcionários. A
onipresença do alienista diretor seria reguladora dos desvios passionais de loucos e
funcionários. Neste ponto, revela-se o discípulo fiel de Pinei e Esquirol:
“Com algum sacrifício pecuniário, a administração poderia adquirir
todos os instrumentos indispensáveis ao tratamento das affecções mentaes
(...), mas nem por isso terá destruído o vicio radical que se oppõe ao seu
adiantamento scientifico. O diretor de um asylo de alienados deve ter directa
interferencia em todas as determinações que disserem respeito á occupação,
emprego e distribuição dos doentes. Sua influencia deve-se exercer
constantemente sobre todo o serviço e o pessoal incumbido da guarda ou
vigilância dos alienados. De todas as circumstancias que occorrem no
ambiente a que está o doente submettido póde o director do asylo tirar
partido, como meio de tratamento moral, e, portanto, só aproveitando-se de
todas ellas, ser-lhe-á possível oppôr a variedade dos meios á diversidade das
affeccões e dos caracteres dos doentes. Os empregados do serviço devem
agir segundo as indicações do director, porque só este conhece tudo o que é
relativo aos alienados e qual o concurso que cada empregado póde prestar
para a obtenção de um fim almejado. Na direcção impressa aos diversos
empregados, reside o meio mais geral do tratamento moral, que actúa tanto
mais efficazmente quanto mais constante é sua acção” .
A mesma crença no poder de discernimento do alienista e da ciência é exposta
por Brandão neste trecho de “Os Alienados no Brasil”(1886):
“Seria muito para desejar que o Exm. Sr. provedor ampliasse mais a acção dos
médicos, de modo que elles não se limitassem, como até aqui, á prescrição dos
agentes therapeuticos. Os exercícios methodicos, as distracções e o trabalho,
que constituem a base do tratamento moral, deveriam ser ordenados e
presididos pelos médicos. As indicações do tratamento moral dependem da
forma de loucura, das moléstias orgânicas que, sendo as mesmas, podem trazer
delírios diferentes, da posição social, do caráter, enfim das particularidades
moraes do doente; não é possível, portanto, subordinal-as a regras communs e
só a experiencia esclarecida do médico pode ser guia seguro na escolha e
direção dos meios hygiênicos que mais convém aos doentes”136.
71
Cadernos do IPUB n°8, 1997
médico que pode romper as regras estabelecidas pelo conhecimento médico, a partir de
justificativas que sejam igualmente médicas. O que equivale a dizer que o discurso
teórico da medicina mental é aquele que detém a verdadeira competência em relação à
verdade dos fatos clínicos. Nada mais natural, por conseguinte, que detenha o
gerenciamento das instituições às quais os loucos estão recolhidos.
De todo modo, o pensamento de Teixeira Brandão é um produto de seu tempo.
Brandão faz uma exaltação tardia da cruzada do conhecimento científico contra as
concepções religiosas e os preconceitos do passado, no melhor estilo do ideário
iluminista do século XVIII. Para Brandão, a marcha da ciência traria a regeneração
moral da humanidade:
72
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
139 Citado por Lopes, Leme - A Psiquiatria e o Velho Hospício - op. cit. pg. 126.
140 Citado por Paim, Isaías - O Hospital Psiquiátrico ... - op. cit. pg. 150.
141 Citado por Medeiros, Tácito - Formação do Modelo Assistencial... - op. cit. pg. 111.
142 Artigo 2 do decreto 206-A - trancrito por Paim, Isaías - O Hospital Psiquiátrico ... - op. cit. pgs. 150-151.
143 Citado por Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência... - op. cit. pg. 95.
144 Citado em “Dados Biográficos do Patrono da Cadeira n. 36 da Academia Fluminense de Medicina”.
145 Citado por Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg. 21.
146 Citado por Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência... - op. cit. pg. 94.
73
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
1. Privação do recreio.
2. Reclusão em uma cellula;
3. Collete de força.
8. Quando regressarem do recreio, serão revistados pelos primeiros
enfermeiros ou inspectoras, antes de entrarem para suas sub-secções.
9. Aos que for prescripto o tratamento pela eletricidade, serão conduzidos à
presença do chefe do gabinete electrotherapico, com guia do medico que o
enviar.
Art. 7 . Sem ordem do medico respectivo não se applicará ducha a doente
j „149
algum
w Citado por Medeiros, Tácito - Formação do Modelo Assistencial... - op. cit. pgs. 81-82.
148 Segundo Paim, Isaías - O Hospital Psiquiátrico ... - op. cit. pg. 153.
149 Instrucções para o Serviço Interno do Hospício Nacional dos Alienados - Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1892. Pg. 7, (grifos nossos).
150 Brandão, Teixeira - Questões relativas a Assistência Médico-legal a alienado e dos alienados - Rio de Janeiro-
Imprensa Nacional, 1897. Pg. 107.
151 Idem, pg. 113 - transcrito por Teixeira Brandão.
74
f
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
75
Cadernos do IPUB n° 8, 1997 t
BIBLIOGRAFIA
Fontes primárias
A rigor, foi a primeira publicação científica regular sobre psiquiatria surgida no Brasil. - informações contidas em
Arruda, Elso - idem, pgs. 34 e 44.
160 Citado em “Dados Biográficos do Patrono da Cadeira n. 36 da Academia Fluminense de Medicina”.
76
Nascimento da Psiquiatria no Brasil
Fontes secundárias
77
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
78
LOUCURA, SANIDADE E TERAPÊUTICAS: O CASO DA
ESQUIZOFRENIA*
INTRODUÇÃO
Não poderemos analisar aqui, no espaço deste trabalho, a rica trajetória da idéia de
um "eu dividido" no processo de organização dos saberes "psi”. Quero somente
destacar que alguns temas caros à organização "científica"1 desses saberes (ao menos
desde a 2a metade do século XVIII) ajudaram à própria construção da representação de
um "eu dividido”: o tema da influência, o do magnetismo ou mesmerismo, o da
sugestão, o do sonambulismo, o da hipnose e o do desdobramento da personalidade ou
personalidade múltipla.
O surgimento desses temas nessa ordenação, por sua vez, implicou menos a idéia
de superação de um tema por outro2, e mais na construção crescentemente radical de
uma representação "científica” de Pessoa interiorizada, acompanhada pari passu por
especificações cada vez maiores a respeito da existência de uma cisão interna do sujeito.
Verificamos assim que da influência ao desdobramento da personalidade a
questão fundamental da relação do homem com "o mundo" se manteve mas,
. Este texto foi originalmente apresentado pela autora na mesa redonda "Loucura, Sanidade, Terapêuticas" do I
Congresso de Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro, novembro de 1996.
” Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ.
1 O conhecimento especial izante, a experimentação e as provas.
2. Testemunha a favor dessa afirmativa, por exemplo, o fato do tema remoto da influência ser objeto de livro recente
- Roustang (1990) - mas sob a condição de tema pertinente aos desenvolvimentos atuais do conhecimento
psicanalítico (numa retomada do desafio originário do "hipnotismo").
Cadernos do IPUB n°8, 1997
3. A obra de Condillac de 1754 - Traité des Sensations é citada por Roustang (1990) como paradigmática da crítica à
crença na ação dos astros sobre os homens e da mudança de perspectiva para as sensações propriamente humanas.
\ Para uma compreensão mais aprofundada da teoria mesmérica ver Mesmer (1779).
s. A análise de Duarte (1986) sobre a configuração do nervoso certamente é muito mais complexa e detalhada do que
os poucos pontos aqui ressaltados. No entanto, nesse momento cumpre destacar apenas a preeminência do aspecto
totalizante da concepção de pessoa que se forjava e o caminho percorrido, então, em direção à interiorização
individual.
6 Conforme Barberis, (1992), já em 1785, o marquês de Puységur, discípulo de Mesmer, levou ao conhecimento
deste último uma sua experiência modificada do mesmerismo. O paciente por ele magnetizado, ao invés de cair nas
crises e convulsões usuais provocadas pelo magnetismo animal, passara a um estado de sono. Mesmer, por sua vez,
interpretaria o sonambulismo como uma das formas possíveis de crise mesmérica e Puységur, gradativamente se
afastaria da idéia de seu mentor sobre a presença do fluido magnético. Para Puységur o verdadeiro agente de cura
seria a vontade do magnetizador. As possibilidades de comunicação da vontade entre os indivíduos considerando çp
mesmo a não "consciência" de uma das partes, passaram a ser um ponto central.
7 Como exemplo Roustang (1990) cita o trabalho apresentado por Maine de Biran na Sociedade Médica de Rero
em 1807, intitulado Mémoires sur les perceptions obscures ou sur les impressions générales affectivesetfes
80
Loucura, Sanidade e Terapêutica
sympathies en particulier. Interessante reencontrar aqui a categoria da simpatia; uma das noções que, juntamente com
os humores, os temperamentos e a melancolia conformou o que Duarte (1986) chamou de configuração da
melancolia, por contraste à configuração do nervoso e à configuração do psicológico.
8.Segundo Barberis (1992), em 1803 Reil relacionaria alguns estados de sono à dissociação da personalidade. Para
ele o fenômeno da dissociação da personalidade seria similar ao que se verificava em sonhos normais em que o
sonhador representava apenas um dos papéis, apesar de todos os atores serem criações de sua fantasia.
9. Segundo Barberis (1992) a palavra polipsiquismo parece ter sido criada por Durand de Gros, que afirmava que o
organismo humano era formado por segmentos anatômicos diferenciados a que correspondiam diferentes "eus"
psíquicos. Cada "eu" teria sua própria consciência, a faculdade de percepção, de memória e de realizar complexas
operações psíquicas. Entretanto, esses "eus" encontrar-se-iam subordinados a um "eu" geral, ou consciência normal;
a soma de todos os "eus" constituindo a vida inconsciente do indivíduo. Na experiência da hipnose, o eu totalizador
era colocado de lado, emergindo à consciência um certo número diferenciado de "eus".
10.Em 1841, ao se impressionar com uma demonstração feita pelo aluno de Puységur e magnetizador francês
Lafontaine, o médico James Braid escreveu, dois anos depois, Neurohypnology or the Rationale of Nervous Sleep
Considered in Relation -vvith Animal Magnetism. (Neurohipnologia ou a Análise Racional do Sono Nervoso
Considerado em Relação ao Magnetismo Animal). Braid criava, então, a palavra hipnose. Modificando algumas
práticas já utilizadas, fazia os pacientes fixarem seu olhar num objeto luminoso, ocasionando assim a hipnose. Sob a
égide dos conhecimentos da fisiologia nervosa e cerebral (ao invés da teoria do fluido magnético), Braid mesclava
suas concepções teóricas com a prática mesmérica das sugestões.
81
I
Cadernos do IPUB n° 8, 1997 i
1 .1
O "EU DIVIDIDO” PELA PSIQUIATRIA
""Na loucura, diz Hegel, ’o sujeito se acha na contradição entre sua totalidade sistematizada no interior de sua
consciência e, de outro lado, a determinação particular que, nessa totalidade, não é nem fluida, nem ordenada on
subordinada’" .(Hegel, 1817:375 apud Swain, 1977: 183 ).
,2. Em Venancio (1990) já havia considerado o aliemsmo enquanto alicerce tanto do conhecimento psiquiátrico
"moral" a respeito da "loucura" quanto da afirmação da possibilidade terapêutica desta última.
82
Loucura, Sanidade e Terapêutica
categoria nosológica, como entidade psiquiátrica clínica. Ela aparece pela primeira vez
na 6a edição de seu Compêndio de Psiquiatria (1899)13: seu trabalho resumo do que se
tentou em termos nosográficos durante todo o século XIX. Tal súmula se tomava
mesmo possível, com a instauração, por parte desse psiquiatra alemão, de critérios
exclusiva e marcadamente pertencentes à "clínica1': o "quadro clínico" da doença e sua
"evolução", isto é, a história progressiva da enfermidade - estes dois elementos
analíticos fundando a categoria nosológica. Kraepelin considerou assim que um
determinado quadro clínico poderia evoluir - por exemplo - para uma demência, não.
sendo, entretanto, a demência em si, o foco a priori fundamental. Além disso, a
determinação evolutiva para a demência não estava sempre presente. O sentido de
"precoce" estava remetido tão somente ao fato de que, quando a demencia aparecia, isto
se dava geralmente fora do período biológico a ela correspondente - a velhice; não
sendo nunca identificada com a chamada demência senil e podendo aparecer apenas até
os 40 anos de idade.
Kraepelin destacaria ainda que o principal problema que existia na demência
precoce (assim como na catatonia e na hebefrenia) era uma afecção da vontade. A
categoria vontade, que caracteriza uma das faculdades da alma desde a filosofia clássica
aparecia, então, com função explícita de diagnóstico.14 Com Kraepelin essa categoria
tomou assento na Psiquiatria de modo sistemático, permitindo que se passasse a afirmar
que a determinação e preponderância de uma afecção da vontade caracterizava um
quadro clínico particular - o de demência precoce, (cf. Bercherie, 1989: 172).
A noção de demência precoce, entretanto, seria "substituída" pela de
esquizofrenia. Através dessa categoria Bleuler imporia à concepção kraepeliana uma
descrição mais "dinâmica". A própria criação do termo esquizofrenia (p grupo das
esquizofrenias') relacionava-se estreitamente com o surgimento na Psiquiatria da
chamada "corrente psicodinâmica", emergente na Alemanha na década de 1900. Tal
corrente opunha-se à vertente psiquiátrica kraepeliana que teria estabelecido correlações
estáticas entre os sintomas e as lesões, a exemplo da medicina anátomo-clínica do
século passado. Caracterizava-se ainda por ser a primeira a dialogar com as idéias de
Freud, introduzindo-as no conhecimento psiquiátrico. (Cf. Bercherie, 1989 e Alexander
& Selesnick, 1968). As formulações freudianas a respeito de um "eu dividido",
alicerçadas na importância dada ao inconsciente, já integravam o cenário "científico" da
época, quando do trabalho de Bleuler (1911) sobre a esquizofrenia em 1906. 15
Vários são os testemunhos da aproximação e interlocução de Bleuler com Freud e
Jung, este último tendo sido aluno de Bleuler e por ele introduzido às teorias freudianas.
Segundo Gay (1988), no final de 1900 Jung entrou para o sanatório de Burghõlzli, que
funcionava como clínica psiquiátrica da Universidade de Zurique. O referido sanatório
encontrava-se desde 1898 sob a direção de Bleuler. Nessa instituição de renome
83
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
16.Segundo Freud (1985), já em 1896 Bleuler fez uma revisão de seu Estudo sobre Histeria no Münchener
medizinisch Wochenschrift. Também a revisão de Bleuler sobre Die psychischen Zwangsercheinungen de 1
Lõenfild em Münchener 'medizinisch Wochenschrift, 51 e a sua discussão de Emil Raimann - Die hysterischen
Geistesstõrungen - ambas de 1904, citam elogiosamente o caminho teórico fundado por Freud. Nessa última
publicação, Bleuler termina com a seguinte frase:
■' -É verdade que esse revisor não acredita no significado exclusivo da sexualidade, que ele tem compreensão
insuficiente do conceito de conversão, etc; entretanto, ele considera o método de Freud indispensável para uma
compreensão aprofundada da psique, tanto saudável quanto doentia.’ Essas são provavelmente as primeiras
avaliações positivas do trabalho de Freud por um líder da psiquiatria acadêmica." (Freud, 1985: 462, nota 3)
84
Loucura, Sanidade e Terapêutica
,7. Nos detivemos mais na apresentação e análise das teorias morais a respeito do "eu dividido", alicerçadas e
desenvolvidas a partir da noção de vontade. Entretanto, para um estudo detalhado do dualismo físico-moral que
perpassa as representações modernas sobre a Pessoa e suas "perturbações", caberia observarmos ainda o
conhecimento construído na direção oposta àquele em tomo da vontade, isto é, as teorias naturalistas e fisiológicas
que fundamentaram concepções fisicalistas as mais variadas sobre a interioridade individual. Para tanto seria
necessário proceder a uma sistematização dos reducionismos fisicalistas presentes no conhecimento científico a
partir do começo do século XIX, em especial os que influenciaram a produção do saber psiquiátrico.
85
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
mantendo-se assim sua pertinência no interior dos ordenamentos que tais classificações
estabelecem entre o conjunto de sinais observáveis sobre as perturbações físico-morais
dos sujeitos e o estoque de categorias disponíveis.
Entretanto, parece haver, ao menos nas últimas duas décadas, uma proliferação de
if
outras" e novas categorias no interior das classificações psiquiátricas oficiais. Doença
do pânico, agorafobia são algumas das novas designações psiquiátricas para
"perturbações" vistas também como possíveis e pertinentes à Pessoa moderna.
Sabemos que as teorias psiquiátricas a respeito do valor e expressão daquilo que é
"interior" ao indivíduo tem oscilado entre o privilegiamento da observação ora da esfera
física, engendrada por diferentes "biodeterminismos", ora da esfera moral individual,
veiculada por variadas expressões da Psicanálise.18
Do ponto de vista "físico-orgânico" observamos atualmente tanto a criação das
"novas" categorias diagnosticas citadas quanto a reformulação de teorias e terapêuticas
para antigas categorias, como a de esquizofrenia. Sob um olhar alicerçado na
objetificação, o conhecimento psiquiátrico físico-orgânico remete a causalidade última
das "perturbações" a uma origem química e/ou genética: a interioridade do indivíduo
sendo observada, portanto, como um conjunto de substâncias químicas que, em
interações específicas umas com as outras, reforçadas ou não por determinações
genéticas particulares, podem levar a algum tipo de "perturbação" medicalizável.
Constrói-se assim o que podemos chamar de uma "psiquiatria de resultados",
fundamentada numa abordagem individualizada, mas somente a respeito do tempo
"presente", descartando-se qualquer referência a uma "historicidade" individual.19
Nesse contexto, as "terapêuticas" pelas "novas" substâncias químicas encarnam o papel
de representantes de uma visão a respeito do indivíduo que pode ser considerada mais
imediatista, no sentido de privilegiar a produção instantânea de um "bem estar",
qualquer conflito interno ao indivíduo que possa conduzir a uma investigação de si
sendo destituído de valor.
Do ponto de vista "moral-psicológico", as discussões sobre o estatuto do espaço
de interioridade levam à questão da capacidade volitiva e de livre-arbítrio do indivíduo
na produção, condução e manutenção de sua própria vida "saudável". Privilegia-se,
portanto, o desenvolvimento de uma "autonomia" do sujeito, auxiliado por psicoterapias
as mais variadas - individuais e grupais - e pela atenção a algumas das esferas sociais
vistas como essenciais à vida do indivíduo, não só o trabalho mas também o lazer. É
notável neste sentido a tentativa de considerar ao mesmo tempo as esferas individual e
coletiva do sujeito, como expressa tão bem a categoria "psicossocial".
Ao produzir concepções diferentes a respeito do indivíduo moderno e sua
interioridade, os pontos de vista "físico-orgânico" e "moral-psicológico" desenvolvem
assim representações muitas vezes inconciliáveis e estanques sobre a sanidade, a loucura
e suas terapêuticas. Neste sentido fica faltando compreendermos como esses dois pontos
de vistas tem sido combinados pelo atual conhecimento psiquiátrico para lidar com essa
"loucura" específica do "eu dividido" chamada esquizofrenia.
18 Para a caracterização da psiquiatria enquanto um saber que tem sido construído sobre a tensão entre a adoção de
abordagens ora mais fisicalistas, ora mais morais, a respeito das ”perturbações” individuais, ver Venancio (1993)
19 Em Venancio (1992) encontra-se uma descrição mais detalhada dessa vertente psiquiátrica e seu "lugar" no camoo
terapêutico psiquiátrico no Brasil, a partir de etnografia desenvolvida sobre o Instituto de Psiquiatria da UFRJ P
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Loucura, Sanidade e Terapêutica
BIBLIOGRAFIA
87
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88
NOTAS DE UM ESTUDO ACERCA DA HISTÓRIA DA
PSIQUIATRIA INFANTIL*
**
Paulo Reunes Marçal Ribeiro
APRESENTAÇÃO
’ Este artigo é um resumo da pesquisa desenvolvida no Curso de Pós-Doutorado realizado pelo autor no Instituto de
Psiquiatria da UFRJ e intitulada História da Saúde Mental Infantil no Brasil: Um Estudo Multidisciplinar.
Doutor em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Professor da UNESP, em
Araraquara, SP.
1 MARÇAL RIBEIRO, P. R. Saúde Mental na Rede Pública: Estudo Analítico Descritivo do Discurso de um Grupo
de Profissionais de um Ambulatório da Rede Estadual de Saúde. Tese de Doutorado em Saúde Mental. Campinas:
Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, 1995.
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
“na sociedade medieval (...) o sentimento da infância não existia - o que não
quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou
desprezadas. O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas
crianças: corresponde à consciência da particularidade que distingue
essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não
existia. Por essa razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a
solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade
dos adultos e não se distinguia mais destes. ”3
Até o século XVIII, este modo de pensar se manteve inalterado, portanto toda
iniciativa no sentido de mudar esta percepção da infância e explicitar sua
particularidade é precursora da efetiva consolidação de um enfoque - primeiro na
psicologia e na pedagogia, e depois na psiquiatria - onde a criança seria considerada um
indivíduo próprio, com características próprias e distintas do adulto, merecendo, então,
um método também próprio de estudo e tratamento.
Neste contexto, Pestalozzi e Frõbel, dentre outros que serão mencionados adiante,
surgiram como empreendedores dos primeiros ensaios no atendimento infantil
institucionalizado.
Johann Heinrich Pestalozzi era suíço, nascido em Zurique, e fundou na cidade de
Yverdon, uma escola para educação de crianças pobres baseada na experiência e no
contato com a natureza. Friederich Frõbel era alemão, seguidor das idéias de Pestalozzi,
e, fundou, em 1873, o primeiro jardim-de-infância. A importância de Frõbel está que,
embora fosse um educador de crianças, ele, como explica MÃRZ 4, “não se fixa na
pedagogia das crianças pequenas e do jardim-de-infância. Ele se preocupa com a
educação do homem. Seu plano se estende desde a infância na família, passando pelo
jardim-de-infância, a escola elementar, a escola de aprendizagem ou de conceitos, até a
escola profissional e da vida. Ao mesmo tempo, foi um dos primeiros a buscar um
método para a educação da criança pequena. Nos seus Cantos maternos e de carinho.
mostrou formas insuperáveis de temo tratamento da criança. (...) Entre os maiores
2 ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 186.
3 ARIÈS, P., op. cit., p. 156.
4 MÀRZ, F. Grandes Educadores. São Paulo: E. P. U., 1987, pp. 109-110.
90
Notas de um estudo acerca da História da Psiquiatria
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Cadernos do IPUB n°8, 1997
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Notas de um estudo acerca da História da Psiquiatria
14 GRÜNSPUN, H. Distúrbios Psiquiátricos da Criança. Rio de Janeiro: Livraria Atheneu, 1987, p. 39.
15 GRÜNSPUN, H., op. cit., p. 41.
16 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Child Mental Health and Psychosocial Development. Geneva: 1977.
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
A história da Saúde Mental no Brasil, além de mais recente que a da Europa pelas
próprias características do país - colônia desde 1500 até o início do século XIX -, não
teve nada estruturado ou sistematizado até o século XIX, quando surgiram as primeiras
teses em psicologia e psiquiatria, e quando foi criado o primeiro hospital psiquiátrico
brasileiro - o Hospício D. Pedro II, em 1852 - seguido de vários outros ao longo do
território nacional.
Sobre a infância, os primeiros escritos voltaram-se para a deficiência mental, ou
idiotia, como na monografia de Carlos Eiras, Tratamento dos Idiotas, de 1900,
apresentada no IV Congresso de Medicina e Cirurgia, no Rio de Janeiro. Em 1903,
Juliano Moreira e Fernandes Figueira inauguraram um pavilhão anexo ao Hospital
Psiquiátrico da Praia Vermelha, destinado às crianças portadoras de enfermidades
mentais e que, até então, compartilhavam o mesmo espaço dos adultos. Em São Paulo, o
primeiro pavilhão infantil foi criado em 1921, por Franco da Rocha, no Hospital do
Juqueri, e dirigido por Vicente Batista. Em Minas Gerais, a psicóloga russa Helena
Antipoff implanta o Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento
Pedagógico, em 1929, onde realiza pesquisas sobre testes de inteligência e
desenvolvimento mental de crianças. Posteriormente criou a Sociedade Pestalozzi e o
Instituto Pestalozzi, voltados para os cuidados de crianças deficientes mentais. Em
Pernambuco, o trabalho pioneiro de Ulysses Pernambucano no atendimento dos doentes
mentais, criando vários serviços até então inéditos e responsável por várias reformas
assistenciais, estendeu-se aos cuidados da criança. Criou, em 1925, o Instituto de
Psicologia, de onde saíram numerosas pesquisas sobre testes de inteligência, o grafismo
e o Roscharch. Foi o autor do primeiro trabalho brasileiro sobre deficiência mental, em
1913: Classificação das crianças anormais: a parada do desenvolvimento intelectual e
suas formas. A instabilidade e a astenia mental.
Várias obras publicadas nas primeiras décadas do século XX demonstram os
variados graus de interesse pelas questões da infância. Basílide de Magalhães publicou
em 1913 o Tratamento e educação das crianças anormais de inteligência: contribuição
para o estudo desse complexo problema científico e social, cuja solução urgentemente
reclamam - a bem da infância de agora e das gerações porvindouras - os mais elevados
interesses materiais, intelectuais e morais da pátria brasileira; e, em 1917, A educação
da infância anormal e das crianças mentalmente atrasadas na América Latina:
apreciação sumária dos modernos sistemas pedagógicos europeus e modificações
indispensáveis que devam sofrer no ambiente físico social do novo mundo. Também em
1917, Vieira de Mello publicou Débeis mentais na escola pública. Sílvio Rabello
publicou, em 1935, um livro sobre o grafismo - Psicologia do desenho infantil - e, em
193 85 A representação do tempo na criança.
Já percebemos, desde essa época, a estreita relação entre a psiquiatria infantil a
deficiência mental, a psicologia e a pedagogia, representada pela associação de
trabalhos, pesquisas e profissionais que vêem a importância de uma atuação integrada e
multiprofissional.
tt 17
Segundo o estudo de JANUZZI , com a criação do Pavilhão Boumeville em
17 JANUZZI, G. A Luta pela Educação do Deficiente Mental no Brasil. Sào Paulo: Editora Autores
Associados, 1992, pp. 34-35.
94
Notas de um estudo acerca da História da Psiquiatria
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
das ciências e categorias profissionais que se agregam à Saúde mental, histórias estas
isoladas num determinado período, mas que acabam por se fundir num contexto único
que podemos chamar de História da Saúde Mental, ao se considerar que a Saúde Mental,
enquanto campo de atuação, estudos e pesquisa contém (ou utiliza) a psiquiatria, a
psicologia, a enfermagem, o serviço social, a fonoaudiologia, a terapia ocupacional e a
psico-pedagogia.
Há um processo histórico brasileiro de pouco mais de cem anos que culminou no
surgimento, evolução e organização do campo da Saúde Mental Infantil no Brasil. Tal
processo se vincula à história do próprio homem brasileiro, da sociedade, da cultura, do
pensamento e da medicina. Mostrar a inter-relação entre a Saúde Mental Infantil e estes
elementos formadores de sua história e identidade nos diversos períodos em que
caminharam juntos é, a meu ver, extremamente relevante num universo onde pesquisas
sobre a história da infância brasileira são bastante reduzidas. Neste ponto, vale a pena
lembrar MASSIMI que escreve que “o esquecimento da própria história impede um
povo de reconhecer seus traços originais e elaborar, a partir destes, um projeto
autônomo de vida social e cultural.” Ou, que é a partir da experiência e exemplo dos
foij adores do passado que se chega às necessidades do presente .
Os dados sobre a história são encontrados dispersos, o que exige que o
pesquisador seja paciente, determinado e incansável numa busca que irá perfazer um
caminho importante para se chegar até os desafios que a Saúde Mental Infantil nos
propõe nos dias de hoje.
Por se tratar de uma pesquisa histórica, as técnicas utilizadas foram específicas
para este tipo de pesquisa. Fundamentei o presente trabalho em RICHARDSON e
cols.24, GIL25 e LAKATOS e MARCONI 26 . O tema do projeto, obviamente, não
pôde ser desenvolvido por outro tipo de pesquisa, o que me levou a utilizar as técnicas
de pesquisa bibliográfica e da pesquisa documental. Os procedimentos utilizados foram:
a) busca de publicações e documentos em bibliotecas e outros locais; b) leitura
exploratória; c) leitura seletiva; d) leitura analítica; e) leitura interpretativa; f) tomada
de apontamentos; g) redação do trabalho.
BIBLIOGRAFIA
23 MASSIMI, M. História da Psicologia Brasileira: da Época Colonial até 1934. São Paulo: E. P. U„ 1990
p. 2.
24 RICHARDSON, R. J-e cols. Pesquisa Social: Métodos e Técnicas. São Paulo: Editora Atlas, 1985,
pp. 199-212.
25 GIL, A. C. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. São Paulo: Editora Atlas, 1988, pp. 63-85.
26 LAIOVrOS, E. M. e MARCONI, M. de A. Fundamentos de Metodologia Científica. São Paulo: Editora Atlas
1986, pp. 190-201.
96
Notas de um estudo acerca da História da Psiquiatria
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Cadernos do IPUB n°8, 1997
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A CREANÇA BRAZILEIRA, FUTURO DA NAÇÃO:
INFÂNCIA, EDUCAÇÃO E HIGIENE MENTAL NA
PRIMEIRA REPÚBLICA
INTRODUÇÃO
100
A Creança Brazileira, futuro da nação
101
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
autores anteriores. O Brasil, junto com os outros povos ibéricos, caracterizava-se pela
sociabilidade, pela predominância dos aspectos morais, afetivos, integrativos,
colaborativos. Os povos de tradição protestante eram egoístas, voltados para aspectos
materiais, para a ciência, para a competição.
Essas contínuas confirmações da diferença entre o povo brasileiro e a tradição
anglo-saxã, traz a tona uma sensação de que talvez tivéssemos chegado a um impasse na
trajetória da constituição desta identidade brasileira. O Brasil poderia afirmar sua
diferença ?
Utizaremos Sílvio Romero como uma espécie de guia para melhor discernimento
dos elementos da mistura do tal “caldeirão” citado anteriormente. Romero ( 1851-1914
), bacharel pela Faculdade de Direito de Recife, é um dos mais expressivos intelectuais
desse período, exercendo influência sobre várias gerações de pensadores brasileiros.
Articulando autores como Taine, Gobineau, Comte, Spencer e Darwin, irá realizar uma
elaborada costura entre idéias de cunho liberal e as teses da antropologia filosófica
evolucionista. PATTO (1990), assim descreve o seu diagnóstico :
102
A Creança Brazileira, futuro da nação
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
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A Creança Brazileira, futuro da nação
moral e cívico. Essas obras pretendiam fornecer à criança e ao jovem brasileiro uma
imagem do país influenciada pela via sentimental.
Segundo RIZZTNI :
105
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
“A criança que tem fome deve ser alimentada; a criança doente deve ser
tratada; a criança retardada deve ser assistida; a criança delinquente deve ser
corrigida; ao órfão e ao desamparado devem ser dados abrigo e
acorro "(Convenção de Genebral924).
106
A Creança Brazileira, futuro da nação
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
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A Creança Brazileira, fiituro da nação
Este educador considerava a instrução pura e simples como uma “arma perigosa”
que podería se colocar nas mãos da população. A educação deveria ser integral,
educação do sentimento, dos gestos, do corpo e da mente. As principais iniciativas da
ABE, como suas reuniões e conferências eram marcadas como eventos cívicos. Sua
atuação na cidade do Rio de Janeiro, orientou-se principalmente como resistência
moralizadora ao processo degenerativo inerente ao processo de urbanização vigente.
Neste sentido, organizavam-se pregações, festas pedagógicas, constituição de Círculos
de Pais destinados a ampliar a influência da escola, medidas de proteção à infância.
Valores e personagens eram celebrados como o Lar, a Escola, o Mestre, o Dever, a
Saúde, o Trabalho, o Esporte, a Fraternidade.
A década de 20 também verá nascer um potencial “redentor da nação” no seio da
psiquiatria brasileira. Segundo CUNHA (1986), o psiquiatra Gustavo Riedel, ao retomar
do Congresso Latino-Americano de Higiene Mental realizado em Havana em 1923,
organiza no Rio de Janeiro, a Liga Brasileira de Higiene Mental (L.B.H.M.), com o
objetivo inicial de melhorar a assistência aos doentes mentais através da renovação dos
quadros profissionais e dos estabelecimentos psiquiátricos. E declarada de utilidade
pública no ano seguinte e já em 1925, recebe doações orçamentárias do governo federal
e do município do Rio de Janeiro, além de verbas particulares. Entre outros figuram na
sua corporação, Félix Pacheco, Miguel Couto, Afrânio Peixoto, Lemos de brito,
Roquete Pinto, General Rondon, Evaristo de Moraes, ao lado de psiquiatras eminentes
como Juliano Moreira, Franco da Rocha,Gustavo Riedel,Pacheco e Silva.
Em 1926, os. integrantes da L.B.H.M. começam a elaborar projetos de cunho
preventivista que formariam um amplo programa de higiene mental e de eugenética.
Definia-se a higiene mental como a “moral universal do amanhã”, sendo
fundamental o papel da pedagogia. Impunha-se incentivar o desenvolvimento da
eugenia e da educação que teriam missões complementares. Para construir uma
educação dos sentidos era proposta a organização de um sistema de higiene infantil, que
incluiría a padronização dos métodos obstétricos, estabelecimento de serviços pré-natais
109
Cadernos do IPUB n°8, 1997
e assistência ao escolar. Era apregoado a atuação dos médicos e psiquiatras nas escolas
através de serviços de higiene escolar.
Henrique Roxo colocava que a inspeção médico-escolar podería constatar
possíveis distúrbios degenerativos além de classificar as crianças conforme seu
desenvolvimento intelectual, o que facilitaria a formação de classes diferenciadas a
partir de critérios psicológicos.
NUNES (1988), refere que a Liga mantinha estreitas relações com a A.B.E.
Tendo em vista a difusão do saber psicanalítico pelo discurso médico-psiquiátrico
nos anos 20, a autora frisa que a teoria da sexualidade é um dos pontos-chave para a
incorporação da psicanálise pela psiquiatria, abrindo um novo flanco para a perspectiva
pedagógica vigente neste período. A maioria dos artigos sobre psicanálise valorizavam a
sua possibilidade de utilização no campo educacional, visando o melhoramento das
crianças e de sua família. Através dela, podería se corrigir as predisposições mórbidas
da infância e evitar futuros desvios. A educação infantil baseada na psicanálise é
enfatizada como pedra fundamental do programa de regeneração social.
Acompanhemos a trajetória de Júlio Pires Porto-Carrero(l 887-1937), médico da
Marinha ,catedrático de Medicina Legal, Membro Honorário da Academia Nacional de
Medicina, um dos mais importantes precursores da psicanálise no Rio de Janeiro.
Em maio de 1926, cria a clínica psicanalítica da Liga Brasileira de Higiene
Mental, sendo que em junho do mesmo ano, faz uma conferência sobre Educação e
Psicanálise, irradiada pela Rádio Clube do Rio de Janeiro. No ano seguinte, apresenta
um trabalho na I Conferência Nacional de Educação realizada em Curitiba, intitulado “
O caráter do escolar segundo a Psicanálise”, escrevendo no mesmo período um prefácio
para o livro “A Psicanálise da Educação” de Deodato de Moraes, integrante do
Conselho Diretor da A.B.E.
O ano de 1928, marca a estreita ligação de Porto-Carrero com a ABE, onde realiza
palestras sobre as “Bases da Educação Moral do Brasileiro” e da “Aplicação
Psicanalítica à Formação Moral da Criança”, além de proferir a aula inaugural do Curso
de Psicanálise aplicado à Educação.
Desta maneira, pudemos observar a clara confluência em relação ao cuidado
infantil entre as práticas pedagógicas e a perspectiva preventiva da psiquiatria
alimentada por uma determinada incorporação da psicanálise e de medidas eugênicas,
sendo esta última intensificada na década de 30.
O estudo da Infância Brasileira revela-se um rico campo para explorações
temáticas em tomo da vinculação entre o problema da identidade nacional, as práticas
assistenciais e o campo pedagógico .
BIBLIOGRAFIA
110
A Creança Brazileira, fiituro da nação
111
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
RAMOS, Jair de Souza - Dos Males que Vêm com o Sangue: as Representações Raciais
e a Categoria do Imigrante Indesejável nas Concepções sobre Imigração da
Década de 20, em MAIO, M.C. e SANTOS, R.V.(orgs), Raça, Ciência e
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RIBEIRO, Maria Luisa Santos - História da Educação Brasileira. A Organização
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RIZZINI, Irma - Assistência à Infância no Brasil. Uma Análise de sua Construção} Rio
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ROCHA, José Martinho da - Introdução à História da Puericultura e Pediatria no Brasil,
em AGUIAR e MARTINS(orgs), História da Pediatria Brasileira. Coletânea de
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SCHECHTMAN, Alfredo - Psiquiatria e Infância: Um Estudo Histórico sobre o
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Instituto de Medicina Social da UERJ; 1981.
SILVA, Alexandre Schreiner Ramos da - Infância, Doença Mental e Sociedade: uma
Abordagem Histórica sobre a Noção de Cuidado Moral na Pedagogia e na
Psiquiatria} Projeto de Dissertação de Mestrado; Instituto de Psiquiatria da
UFRJ; 1994.
112
SEXUALIDADE E SEXOLOGIA NO RIO DE JANEIRO DE
ENTRE-GUERRAS (NOTAS PRELIMINARES DE PESQUISA)
Sérgio Carrara
INTRODUÇÃO
Por que a sexologia? Antes de mais nada, essa disciplina científica despertou
minha atenção por tima série de razões que poderíam ser aqui chamadas de “empíricas”,
pois se prendem diretamente ao contato que, em pesquisa anterior,7 pude fazer com
material produzido por alguns auto-denominados sexologistas ou sexólogos brasileiros.
Comecemos então por elas...
4 Coordenado pelos profs. Jane Russo e Luiz Fernando Dias Duarte, o projeto conta com o apoio do CNPq e envolve
inúmeros profissionais da UFRJ e da UERJ. Em seu primeiro ano de execução, o subprojeto por mim coordenado
conta com a participação de dois bolsistas de iniciação científica: Messias do Espírito Santo e Fabiano Vilaça dos
Santos.
5 Inicialmcnte, pensei em restringir a investigação às décadas de 1920 e 1930, mas o levantamento bibliográfico
realizado até o presente momento já aponta claramente para a necessidade de incluir também os anos 1940, momento
em que as publicações sobre o assunto realmente tomam vulto no país.
6 Penso especialmente nas reflexões levadas a cabo na passagem do século por Durkheim (DURKHEIM •1969'1 e
discípulo Fauconnet (FAUCONNET:1920). ' > seu
7 Trata-se da pesquisa que empreendí para confecção de minha tese de doutoramento defendida junto ao Programa d
Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e recentemente publicada sob o título* Tribut *
Venus: a luta contra a sifilis no Brasil da passagem do século aos anos 40 (CARRARA, 1996). O levantam//
inicial de dados contou com a participação de Santuza Cambraia Naves e Bárbara Musumcci Soares e fni T
financeiramente pela Fundação Ford do Brasil. f01 aP°^do
114
Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras
Durante os últimos anos, estive investigando o modo pelo qual, no Brasil, foram
pensadas e executadas intervenções sociais (estatais ou não) visando combater os “males
venéreos”, especialmente a sífilis, geralmente considerada o mais grave entre eles.
Como era de se esperar, a discussão em torno do assunto podia ser tudo, menos
tranqüila ou desapaixonada. Visccralmente relacionada ao comportamento sexual, à
moralidade, à família, à prostituição etc., as medidas aconselhadas ou colocadas em
prática para abordar as atualmente chamadas “doenças sexualmente transmissíveis”
tiveram o poder de levantar terríveis polêmicas, dentro e fora do meio médico. Em finais
do século passado, muitos - principalmente os representantes da Igreja Católica ou os
adeptos mais fervorosos de suas doutrinas - achavam que tais doenças não deviam
sequer ser objeto de políticas propriamente “públicas”. Problemas adstritos à esfera
privada, sua resolução devia restringir-se ao indevassável diálogo entre o doente e seu
médico, protegidos ambos pela ética do segredo profissional. Como se vê, já de início,
não foi fácil transformar as “doenças venéreas” em problema de saúde pública. Para
tanto, foi necessário um gigantesco esforço conjunto de um extenso grupo de
profissionais (médicos sobretudo), espalhados por diferentes países do mundo ocidental.
Mas, mesmo depois de as “doenças venéreas” começarem a ser reconhecidas
como graves doenças endêmicas, merecedoras como outras da atenção do Estado, seu
combate não deixou de continuar espalhando discórdia. A polêmica passava a girar
então em tomo dos meios mais adequados de prevenção e, nesse sentido, muitas foram
as medidas propostas: regulamentar a prostituição, isto é, colocar as prostitutas -
amplamente consideradas como principais disseminadoras do mal - sob regime sanitário
(e jurídico) especial; instituir o exame pré-nupcial obrigatório, vedando o casamento aos
“contagiantes”; implementar a educação sexual dos jovens celibatários e sobretudo dos
militares, supostamente mais atingidos pelas devastações “venéreas”; divulgar os meios
eficazes de evitar a contaminação durante o ato sexual (uso de camisinhas, desinfetantes
etc.); educar moralmente a juventude no sentido de promover a abstinência sexual antes
ou fora do casamento; responsabilizar penalmente os que transmitiam tais doenças;
criminalizar a prostituição; instituir a notificação médica obrigatória de tais doenças e o
tratamento obrigatório dos doentes etc. Como se pode facilmente suspeitar, ao longo de
toda a primeira metade deste século, cada uma dessas medidas tinha (muitas continuam
tendo até hoje) a capacidade de gerar verdadeiras guerras entre os próprios médicos e,
também, entre eles e padres, juristas e pedagogos. Inicialmente, procurei entender a
estrutura dessa “guerra”: quais seriam os princípios, as representações ou os valores que,
revelando o sentido mesmo do desenrolar da disputa, poderíam tomar inteligíveis as
posições defendidas pelos diferentes contendores? Durante algum tempo, pensei que as
divergências poderíam ser ordenadas a partir da oposição lei versus educação.
Efetivamente, enquanto vários médicos advogavam intervenções mais “tradicionais”,
através da adoção de leis e regulamentos especiais; outros defendiam intervenções que,
por utilizarem a educação como instrumento privilegiado para gerar mudanças efetivas
no comportamento de homens e de mulheres, apresentavam-se em finais do século
passado como mais “modernas”. A oposição era sem dúvida importante, pois à época
disseminava-se no Brasil a idéia de que leis não mudam comportamentos, pois, em
desacordo com a realidade sobre a qual legislam, simplesmente não são respeitadas.
Embutida aí, uma crítica à tradição “bacharelesca” do Estado brasileiro que, a partir das
últimas décadas do século passado, tornava-se cada vez mais corrente entre profissionais
que, como os médicos, julgavam-se porta-vozes da ciência (VENÂNCIO FILHO,
1982).
115
Cadernos do IPUB n°8, 1997
116
Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
8 Inúmeros autores da primeira metade do século XX, refletiram sobre as causas da sexualidade excessiva dos
brasileiros. Entre os mais importantes figuram sem dúvida Gilberto Freyre (FREYRE: 1952(1933]) e Paulo Prad
(PRADO: 1931). Porém, como se sabe, o tema do Brasil como "paraíso sexual" remonta aos primórdios da
colonização e, recentemente, mereceu a instigante análise da historiadora Laura de Mello e Souza (SOUZA-19931
9 O caráter pioneiro do livro de Pires de Almeida também é ressaltado por (PEREIRA, 1994,104).
118
Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras
detinha maior prestígio acadêmico era sem dúvida Porto-Carrero. Membro honorário da
Academia Nacional de Medicina e professor catedrático de medicina-legal da
Universidade do Rio de Janeiro, Porto-Carrero havia sido, no início de sua carreira,
médico da marinha, dedicando-se ao estudo das “doenças venéreas”. Aí talvez a origem
do interesse pela sexualidade que o levaria, nos anos 20 e 30, a dedicar-se à sexologia e
especialmente à psicanálise, sendo um dos principais introdutores das doutrinas
freudianas no Brasil.10
Marginais à elite médica da então capital federal, José de Albuquerque e Emani do
Irajá vincularam mais fortemente suas carreiras à sexologia e nos legaram vasta obra.
Foram também os autores nacionais mais prolíficos do gênero, contando cada um, com
mais de uma dezena de livros publicados em diversas edições, principalmente pelas
editoras Freitas Bastos e Irmãos Pongetti.11 À sua atividade de escritor, Irajá articularia
ainda a de consagrado pintor de nus femininos e de médico voltado à clínica sexológica.
Já Albuquerque, como veremos adiante, distinguiria-se como propagandista e líder de
um notável movimento ocorrido no Rio de Janeiro em prol da educação sexual. Os
principais temas abordados por ambos os autores são a psicopatologia sexual - a
inversão sexual, a impotência masculina, a “coitofobia” no homem etc. -, a morfologia
da mulher brasileira, a educação sexual, o exame pré-nupcial, as doenças venéreas, o
amor, a virgindade etc.
Como já se pode perceber, o mercado editorial não ficou indiferente ou passivo
frente à emergência da sexologia entre nós; ao contrário, logo descobriu o seu imenso
potencial de vendas, devendo ser considerado instância fundamental da implantação da
nova disciplina. Várias editoras montaram importantes coleções, nas quais publicavam
autores nacionais e divulgavam também os grandes sexólogos estrangeiros. Na
“Biblioteca de Cultura Científica” e na “Biblioteca de Medicina-Legal”, a editora
Guanabara-Koogan publicaria trabalhos sobre temas sexuais, escritos por membros da
12
elite médica brasileira, como o próprio Júlio Porto-Carrero, Antônio Austregésilo,
Afrânio Peixoto e Estácio de Lima, e por nomes consagrados intemacionalmente, como
Freud. Outras editoras seriam entretanto mais especializadas em temas sexológicos. E
o caso da editora Civilização Brasileira que, junto com a Companhia Editora Nacional
de São Paulo organizaria, ao longo dos anos 30, a “Biblioteca de Educação Sexual”,
publicando então traduções de clássicos da literatura sexológica: Havelock Ellis,
10 Entre seus trabalhos compilados até o momento temos os seguintes livros: A psicologia profunda ou psicanálise,
publicado em segunda edição em 1932 (PORTO-CARRERO, 1932a); Criminologia e psicanálise (PORTO-
CARRERO, 1932b); Psicanálise de uma civilização (PORTO-CARRERO, 1933a); Ensaios de psicanálise,
publicado em segunda edição em 1934 (PORTO-CARRERO, 1934)Sexo e cultura (PORTO-CARRERO, 1933b).
’’ Entre os inúmeros livros dos dois autores, destaco: (ALBUQUERQUE, 1928; 1929; 1930; 1934; 1940 e 1941) e
(IRAJÁ, 1930a e b; 1933a, b e c; 1937).
12 Austregésilo também publicaria, através de outras editoras, títulos sexológicos AUSTREGÉSILO, 1928 e 1932).
I3De Porto-Carrero, a Guanabara-Koogan publica Sexo e Cultura (ensaios de psicanálise), em 1933; de Austregésilo,
Perfil da mulher brasileira, em 1922; Conduta sexual, em 1934; e Fames-libido-ego (sua aplicação à análise
mental), em 1938; de Afrânio Peixoto, publica, em segunda edição, Sexologia forense, em 1934, e, finalmente de
Estácio de Lima, publica, em 1935, A inversão dos sexos. Em 1934, lançaria no mercado três livros de Freud:
Introdução à psicanálise, traduzido por Elias Davidovich, Totem e tabu e O futuro de uma ilusão, traduzidos do
alemão por Júlio Porto-Carrero (FREUD, 1934a; b e c).
14 Ellis é por muitos considerado o fundador da moderna sexologia (ROBINSON, 1976; WEEKS, 1996 ). Ao longo
dos anos 1930, a Companhia Editora Nacional e a Civilização Brasileira colocariam no mercado vários volumes de
sua grande obra Studies in the psychology of sex, originalmente publicada entre os anos de 1897 e 1910. Temos já
compilados os seguintes títulos: O instinto sexual (ELLIS, 1933a), A educação sexual (ELLIS, 1933b); A inversão
sexual (ELLIS, 1933c); A seleção sexual no homem (ELLIS, 1935) e O pudor, a periodicidade sexual, o auto
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
Theodor Hendrik Van de Velde, Fritz Khan, J. R. Bourdon, Auguste Forel, Wilhem
Stekel, entre os estrangeiros, e José de Albuquerque, entre os nacionais. A editora
carioca Calvino, por seu lado, lançaria uma “Coleção de Cultura Sexual”, publicando
traduções de livros de Magnus Hirchfeld, Wilhelm Gustav Liepman, Otto Schwartz,
Harry Elmer Bames, Jean Marestan, entre os estrangeiros, e, entre os brasileiros vários
livros de um outro importante divulgador das teorias freudianas no Brasil, Gastão
Pereira da Silva.
Assim, à primeira vista, já se pode afirmar que, a partir dos anos 30, é visível no
Brasil, particularmente no Rio de Janeiro, a existência de um importante mercado
consumidor para a literatura sexológica. Para que se tenha uma pálida idéia do sucesso
de vendas de tais obras, basta lembrar que, publicada em finais dos anos 1920 pela
Civilização Brasileira, a primeira edição (três mil exemplares) do famoso livro A
questão sexual, de August Forel, esgotou-se em pouco mais de dois meses, conforme
declarava surpreso, em 1928, o medico-legista Flamíneo Fávero, responsável pelo
prefácio à segunda edição. Nesse prefácio, Fávero não só deixa entrever a pujança deste
mercado, como os conflitos vividos por muitos médicos, dilacerados entre suas crenças
religiosas e os ensinamentos da nova ciência. Depois de tecer muitos elogios ao trabalho
de Forel, Fávero sente-se obrigado a declarar:
Ainda que superficial, a análise que estamos realizando desse mercado editorial já
revela a íntima relação que existia entre a literatura sexológica e a literatura marxista ou,
ao menos, anticatólica. O caso da editora carioca Calvino parece exemplar. É
sumamente interessante perceber que, ao lado da literatura sexológica, alinhavam-se
livros como Materialismo histórico em 14 lições, de Tchefkiss; A inspiradora de Luiz
Carlos Prestes, de Figueiredo Pimentel; Rússia, de Maurício de Medeiros, Catolicismo,
partido estrangeiro, de Carlos Süssekind de Mendonça; Um engenheiro brasileiro na
Rússia, de Cláudio Edmundo; A vida sexual e o amor na Rússia, de L. Helman; A vida
sexual na Rússia Soviética, de H. Fouillet, entre outros.
120
Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras
“O fato de o livro ser escrito por um padre será uma segurança para os
educadores católicos, receosos de abrir um livro qualquer sobre educação
sexual. E seria pouco esclarecer os nossos, enquadrados quase todos, no velho
grupo dos que confundem ignorância com virtude?” (in
NEGROMONTE:1958).
Pelo menos em parte, o enorme interesse do público pelos temas sexuais deve ser
também compreendido como resultado das notáveis atividades de agitação e propaganda
desenvolvidas por alguns sexólogos no Rio de Janeiro. Nessa área, deve merecer
destaque o nome do médico José de Albuquerque que, durante os anos 30, organizou
dois periódicos especializados de enormes tiragens: o Boletim de Educação Sexual e o
Jornal de Andrologia'. Em suas páginas, além do próprio Albuquerque, escreveríam
outros sexólogos, como Júlio Porto-Carrero e Emani do Irajá. Além disso, Albuquerque
criou entidades civis como o Círculo Brasileiro de Educação Sexual, fundado no Rio
de Janeiro em 1933, destinadas a divulgarem a chamada “questão sexual”, a lutarem por
mudanças sociais mais amplas no âmbito da justiça, da escola, da família e a abrirem
um espaço institucional para a sexologia no âmbito das ciências bio-médicas.
De fato, José de Albuquerque foi responsável por um dos desdobramentos mais
originais da implantação da sexologia no Brasil, pois foi ele quem sugeriu pela primeira
vez a idéia de se criar uma ciência especial que, a exemplo da ginecologia, se ocupasse
exclusivamente dos problemas sexuais masculinos: a andrologia. Note-se que o Brasil
foi o primeiro país a incorporar em uma de suas universidades (a “modernista”
Universidade do Distrito Federal) uma cátedra especial de andrologia e parece ser o
ou um leitor ocasional fez questão de escrever depois do prefácio: “Livro de mentiras, como todos os que defendem a
Rússia Soviética. Senão, digam os defensores qual a razão de não se permitir na Rússia a liberdade de imprensa? ”.
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
16Recentemente, o antropópogo português Miguel Vale de Almeida informou-me que também Portugal conta com
andrologistas.
17 O fato de tais publicações se dirigirem especialmente aos homens se revela através dos poucos produtos que são
comercializados em suas páginas. Entre eles, o preservativo Cacique, o Consultório de Moléstias Sexuais c
Impotência do dr. Santos Dias e a brilhantina Gumex.
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Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras
É certo que Weber parece fazer derivar, em bloco, toda a reflexão médica sobre
sexualidade que lhe foi contemporânea a uma mesma tradição puritana. Assim, tanto os
que defendiam a abstinência quanto os que a ela se opunham por razões higiênicas viam
o sexo de um ponto de vista utilitário, racionalizando seu exercício. Acredito, porém, ser
possível fazer diferenciações mais sutis. Como já disse, durante um longo período,
países como os EUA e a Inglaterra, de um lado, e a França e grande parte do mundo
latino, de outro, opuseram-se claramente uns aos outros quanto às idéias sobre a
sexualidade que adotavam e às políticas por elas inspiradas. A partir de uma pesquisa
comparativa mais sistemática talvez seja possível estabelecer um modelo “protestante”
de concepção da sexualidade em oposição a um modelo “católico”, como sugeriam
alguns médicos brasileiros, quando contrastavam o que ocorria no mundo “latino” ao
que se passava simultaneamente no mundo “anglo-saxão” ou “nórdico” em matéria de
luta contra as doenças venéreas. Aparentemente, em um momento em que até mesmo a
nascente sexologia parecia oscilar quando se tratava de saber se a abstinência sexual era
ou não fisiologicamente nociva, os países de forte tradição católica foram mais
permeáveis à vertente que via o sexo como necessidade fisiológica primária, enquanto
os de tradição protestante incorporavam mais facilmente a ênfase na abstinência e no
autocontrole.
Talvez devamos compreender a permeabilidade diferencial de países de tradição
católica e de tradição protestante à idéia de ser o sexo força incoercível através do modo
18 Como têm revelado vários autores, desde o advento do cristianismo, o sexo tem sido uma das instâncias cruciais
i para a construção social da pessoa característica da tradição ocidental. Para isso, ver (DUARTE &
> GIUMBELLI:1995).
>
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Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras
analisado por Norbert Elias (ELIAS: 1976,1990). De um modo geral, parece que os
sexólogos estiveram bastante implicados na simultânea criação de uma população mais
permeável aos novos interesses da “biopolítica” que os governos ocidentais passaram a
desenvolver a partir do século XIX (FOUCAULT, 1982) e de sujeitos mais conscientes
de sua responsabilidade biológica, dotados de um autocontrole que lhes permitisse
resistir mais firmemente aos “imperativos da carne”.
Para o sociólogo Norbert Elias, o desenvolvimento progressivo no sentido da
exigência de um maior controle individual sobre emoções. impulsos, instintos etc., ou
seja, de um maior “distanciamento de si”, a que denomina de processo civilizador, nada
mais seria que a contrapartida necessária de um longo e profundo processo de mudança
estrutural, social e política. Segundo diz, desde o fim da Idade Média, submetidas a
mecanismos concorrenciais, as sociedades ocidentais vêm sendo conduzidas à formação
de estruturas estatais (monopólios legítimos da violência) que se estendem sobre
territórios e populações cada vez mais vastos. No interior de tais unidades sócio-
políticas (“sociedades-Estado”, na expressão de Elias) a possibilidade de um convívio
“pacífico” propiciaria o aprofundamento da diferenciação das funções sociais e sua
integração, ou como diz, o progressivo prolongamento das cadeias de interdependência
entre os indivíduos e grupos sociais. Para Elias, a capacidade por parte dos indivíduos
de um maior controle sobre suas próprias emoções e instintos seria uma espécie de
efeito-instrumento desse processo mais amplo, pois é a um só tempo exigida e
propiciada por ele. Conforme diz, em espaços sociais altamente diferenciados, onde
redes de interdependência cada vez mais cerradas exigem uma convivência pacífica:
BIBLIOGRAFIA
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O IMAGINÁRIO SOBRE A MULHER ATRAVÉS DO OLHAR
DA MEDICINA NO SÉCULO XIX
Fabíola Rohden
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O Imaginário sobre a mulher através do olhar da Medicina no Século XIX
vários temas, como os modelos de família, acesso a saúde e educação por parte das
mulheres brasileiras. Contudo, apesar de evidenciar a preeminência do corpo e
especialmente das funções reprodutivas para a situação social das mulheres hoje, poucas
reflexões têm se detido nos aspectos culturais, de representação e imaginário que
fundamentam a relação corpo e identidade no universo feminino.
Uma referência exemplar nesse sentido, é o trabalho de Ondina F. Leal (1995)9
que pesquisando comunidades na periferia de Porto Alegre, tem demonstrado como o
acesso a informação e assistência médica não significa mudar práticas contraceptivas
consideradas desaconselháveis ou perigosas, como a esterilização ainda no começo da
vida reprodutiva das mulheres ou o aborto. A análise dos discursos de mulheres e
homens da região mostrou que as representações sobre o corpo feminino e seus
processos como menstruação, período de fertilidade, gravidez e aborto apresentam
idéias bastante distintas daquelas que fundamentam o sistema médico "racional" que
lhes é oferecido10. Confunde-se período fértil com período menstruai, aborto com "fazer
descer a menstruação", misturam-se pílulas, rezas e chás na administração da economia
reprodutiva, não pelo desconhecimento das prescrições médicas, mas pela concepção de
um outro sistema simbólico sobre o corpo.
A menstruação, aliás, tema que marca os estudos que tratam das poluições
atribuídas ao corpo feminino e as consequências sociais disso,11 começa a ser estudada
no contexto atual. Cecília Sardemberg (1995) além de resenhar as principais etnografias
que tratam do assunto faz algumas considerações sobre como a menstruação é tratada na
sociedade brasileira contemporânea. Afirma como a sua presença é um marco na
passagem para a vida adulta, o "ficar moça", e para a maturidade, a menopausa, além de
como é recorrente entre mulheres um constante falar sobre a menstruação. Além disso,
de alguns anos para cá, a legitimação médica sobre a "tensão pré-menstrual" permitiu a
eclosão de um debate público e o retomo a concepções "tradicionais" sobre as
peculiaridades do ciclo feminino, definindo um contraste com a suposta ausência de
marcas tão claras no corpo masculino. Isso leva a uma série de considerações sobre a
sua importância nas relações sociais entre os gêneros e a definição de status e papéis.
Inegavelmente essa distinção biológica leva a construções culturais diferenciadas quanto
às distinções entre os gêneros e legitima a condição social da mulher. Essas marcas do
corpo feminino são responsáveis, em muitos casos, pelas representações atribuídas à
mulher no campo dos poderes sobrenaturais. O sangue menstruai ou outros fluidos do
corpo feminino, como o leite materno ou a placenta, são conferidos de poderes
insuperáveis especialmente contra os homens. Estes elementos e a representação a eles
associada delimitam muitas vezes o caráter de exclusão, vergonha ou prestígio
assumidos pelas mulheres em diferentes sociedades.
Na tradição ocidental a reflexão sobre corpo e pessoa femininos é rica em
passagens ilustrativas. Alguns modelos de percepção sobre a mulher e a sexualidade são
especialmente tratados pela bibliografia histórica e social. São fragmentos significativos
9 Ver também Victora (1995) sobre as representações femininas do funcionamento do corpo e aparelho reprodutivo.
10 Interessantes estudos têm surgido quanto à interação médico e paciente na área da saúde da mulher. Grassi et al.
(1994), por exemplo, distinguem três tipos de abordagens médicas ginecológicas e obstétricas: o paradigma
cientifícista, o paradigma pragmático e o paradigma integracionista. Já Mitjavila e Echeveste (1994) mostram a
onipresença da medicina na reprodução e sua função normatizadora, apontando valores como a naturalização da
maternidade e dos cuidados domésticos e uma valorização máxima do filho em contraste com o altruísmo da mãe.
11 M. Douglas (1976).
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O Imaginário sobre a mulher através do olhar da Medicina no Século XIX
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16 Para uma revisão da literatura sobre sujeito e modernidade ligada a transformações nas relações de gênero, ver
Heilbom (1992).
17 Giddens (1993) também trabalha com a noção de sexualidade ao discutir as transformações da intimidade que
ocorrem no mundo moderno, embora com distinções em relação a Foucault. M
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O Imaginário sobre a mulher através do olhar da Medicina no Século XIX
18 Sobre a justaposição entre físico e moral no pensamento médico e sua importância na construção da noção de
pessoa, com relação particularmente às "perversões sexuais", ver a análise de Duarte (1988) sobre a Psycopaíhia
sexualis de Krafft-Ebing.
19 Segundo Corbain (1991, p.528-529), a palavra "sexualidade" só aparece em 1859 designando os caracteres do que
é sexuado, no contexto de uma época em que os médicos começam a codificar os "divertimentos conjugais" e as
"condutas desviadas".
20 De um modo geral, o problema dos "nervos" ou as doenças mentais femininas apresentadas na época eram
marcadas pelo excesso, principalmente devido a uma paixão amorosa proibida (pelo pai ou por outra mulher, por
exemplo) (Perrot, 1991a). Segundo A. Corbain (1991, p.454): "O gozo da mulher sem a presença masculina parece
particularmente intolerável. A 'manualização' constitui o supra-sumo do vicio. Para o homem, figura o segredo
absoluto, infinitamente mais misterioso que as comoções do coito. Aqui nem se cogita de privilegiar os riscos de
esgotamento, pois a capacidade copuladora da mulher parece infinita; porém outras sanções, igualmente terríveis,
espreitam no horizonte da falta. Não há um quadro clínico, mas a biografia de ninfômana, de histérica ou prostituta
que se abre sobre a imagem da pequena viciosa. Reencontra-se aqui a hostilidade que os médicos do século XIX
demonstram diante do clitóris, simples instrumento de prazer, inútil na procriação."
21 M. Perrot (1991a) fala de como a sexualidade feminina é amplamente tematizada no século XIX, desde a mulher
virgem levada a ocupar-se com terços e novenas nas igrejas para apaziguar suas angústias até a mulher casada e o
constante risco do adultério.
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22 M. Corrêa (1982) tratando da Escola Nina Rodrigues coloca algumas ressalvas às apropriações feitas da obra de
Foucault quanto ao "processo de normatização" local.
23 Herzog (1991) mostra como o nascimento da medicina e valorização do saber médico em fins do século XIX
implicou na contrução de um "sujeito-da-doença" e um poder sobre o corpo.
24 T. Laquer (1992) discutindo as origens do humanitarismo faz referência à importância do discurso médi
inclusive com relatos sobre mulheres que praticavam aborto ou infanticídio, especialmente por sua capacidade^’
detalhes e apreciações, na definição de uma preocupação moral com o corpo e o indivíduo.
25 Ver Perrot (1991b).
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O Imaginário sobre a mulher através do olhar da Medicina no Século XIX
abastados. Seus hábitos, condutas física, moral, intelectual, sexual e social passam a ser
avaliados com rigor e transformam-se em objeto de ordenações prescritivas.26 Pretende-
se modificar até a própia concepção do casamento, que agora deveria seguir os moldes
higiênicos e os objetivos de procriar cidadãos saudáveis. A higiene faz do sexo, antes,
na colônia prioritariamente regulado pela Igreja,27 objeto de intervenção médica. Vem à
tona a idéia do "amor físico" também como direito das mulheres e que na visão dos
médicos concorrería para o sucesso do casal higiênico28. Um novo código de relações
entre homens e mulheres toma lugar, respeitando de uma forma jamais vista nesse
contexto as vontades individuais. Mas, vontades que seguissem os padrões de
feminilidade na mulher, frágil, delicada e sentimental, e masculinidade no homem,
dotado de força física e vigor intelectual, além da função primeira da procriação. Na
família, o pai não era mais simplesmente o proprietário da mulher e crianças, mas um
agente da higienização, assumindo a responsabilidade na educação dos filhos, o que não
significa que o poder patriarcal perdesse lugar. A figura da mãe higiênica representava
um novo estatuto para as funções da mulher, mas ela não deixava de estar sob os
auspícios da autoridade do marido. A diferença é que agora ambos tinham um agente
externo, o médico, que ditava as normas do que seria válido para o sucesso da família. A
mulher, de certa forma, era uma aliada especial do médico no projeto higiênico, já que
era a mais diretamente envolvida com a geração e cuidado com os filhos. Diante dos
primeiros raios de emancipação feminina do século passado, implicada no novo
contexto urbano, os higienistas ofereceram em troca da permanência no lar e na
obediência, a glorificação social e o prazer da maternidade. Mas, a sexualidade feminina
continuava restrita às funções da procriação, ao lado da exelatação do ideal da mulher
pura, casta e civilizada (Costa, 1993).30
Em contrapartida, intensifica-se o discurso sobre as mulheres mundanas, as
prostitutas que viviam soltas das amarras e prescrições relativas ao lar. M. Rago (1993)
mostra como as prostitutas aparecem como um contra-ideal necessário para dar limites à
liberdade feminina, tanto no discurso de médicos quanto de jornalistas, criminalistas e
literatos. Os médicos, especialmente, chegaram a definir as características que
marcavam a figura da prostituta. Elas se distinguiam da "mulher normal" por uma
26Segundo o autor: "O conjunto de interesses médico-estatais interpôs-se entre a família e a criança, transformando
a natureza e a representação das características físicas, morais e sociais desta última. As sucessivas gerações
formadas por essa pedagogia higienizada produziram o indivíduo urbano típico do nosso tempo. Indivíduo física e
sexualmente obcecado pelo seu corpo; moral e sentimentalmente centrado em sua dor e seu prazer; socialmente
racista e burguês em suas crenças e condutas; finalmente, politicamente convicto de que da disciplina repressiva de
sua vida depende a grandeza e o progresso do Estado brasileiro." (Costa, 1983, p.214)
27 Cf. Silva (1984), na Colônia, a Igreja era o grande agente regulador do casamento e sexualidade e traçava as
fronteiras entre a sexualidade permitida e a pecaminosa.
28 Segundo Corbain (1991), os médicos europeus exploravam a importância da sexualidade par a saúde da mulher e
entregavam ao marido a responsabilidade de uma sexualidade bem temperada, que salvasse a esposa dos perigos da
ninfomania ou nervosismo.
29 Bicalho (1988) apresenta elementos de como já em fins do século XIX tinha lugar um imprensa feminina que
alocava novos padrões de sociabilidade, incluindo valores como individualidade, igualdade e emancipação da
mulher.
30Esse ideal de mulher, acima de tudo seguindo os padrões do mundo cristão, se definia pela honra feminina. Uma
honra baseada no controle da sexualidade. O sexo só era admitido para procriação e assim deveria ser administrado.
Todas as suas manifestações fora dos domínios do casamento e em busca do prazer e satisfação pessoal estavam
proibidas, mas com distinções para homens e mulheres. Aos homens, a demonstração de virilidade que parece marcar
o ideal do colonizador português era admitida desde que não atingisse a mulheres honradas (Almeida, 1987). Mas, às
destituídas deste bem social, não havia restrições do ponto de vista masculino. Contudo, para as mulheres de família,
toda e qualquer investida que escapasse aos domínios do pai ou do marido era motivo de execração e punição severa,
e complicações para o sedutor. Os valores e prescrições da Igreja ainda sustentavam tal concepção (Silva, 1984).
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31 Sobre a construção da histeria por Charcot, em princípio como um modelo feminino, no âmbito da psicologia
físicalista francesa, ver Barberis (1992).
32 Duarte (1986) demonstra como essas figuras nosológicas e o modelo de sujeito nelas implícito estariam
relacionadas ao que chamou de "configuração do nervoso" que teve seu auge no final do século XIX. Sobre a
neurastenia, a medicalização dos nervos e até mesmo a sua apreensão como um "barômetro" das preocupações e
mudanças sociais no século XIX, especialmente quanto ao gênero, ver Davis (1989).
33 G. Swain (1983, p.107) discutindo a histeria no âmbito da "despossessào subjetiva" vai ainda mais longe: "II faut
traiter 1'hystérie - et le discours médical sur l'hystérie - comme des tévélqtçurs. Dans et à porpos de 1'hysterie,
jusqu'à Charcot, quelque chose se symbolise: le destin feminin. La maladie fonctionne comme une scène oü se
dévoile et ou s'exhibe la vérité du corps feminin, et la condition qui en résulte. Car lafemme est toute par son corps,
ou du moins par une partie de ce corps: sapartie reproductive, 1'hystera des Grecs et les organes associes, dont les
manifestations hystériques ontjustement pour sens de rappeler et de signaler Vemprise preponderante"
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34 E. Badinter (1985) explora esse conceito de mãe desnaturada usado pelos médicos para convencerem as mães das
necessidades de aleitamento e cuidados com os filhos. É interessante que ela enfatiza que sob as luzes das idéias de
Rousseau e outros pensadores que valorizavam o selvagem, o natural, como o exemplo da boa natureza do humano,
as mães européias dos séculos XVIII e XIX são levadas a abandonar os costumes aristocráticos de recusa de uma
vivência intensa da maternidade. No caso do Brasil, segundo o que historiadores da época enfatizam, as mães eram
acima de tudo pouco civilizadas e preparadas, ainda marcadas pelo abandono da colônia. Parece que aqui os médicos
higienistas tiveram que lançar mão ao invés dos argumentos da boa natureza, dos argumentos da boa educação e
valores associados à urbanização e modernização para o sucesso de seu empreendimento.
35 Boons (1986) diz a propósito, que na época vitoriana, o gozo feminino é considerado bruxaria, é sempre um
elemento estranho e assustador.
36 Sobre a figura da mulher enquanto obsessiva sexual e suas implicações na teoria da degeneração, ver a análise de
Carrara (1992) sobre o romance As mulheresfatais do médico Cláudio de Souza.
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37A Endocrinologia da época tinha um importante papel na definição das diferenças entre os homens e mulheres ao
enfatizar as distinções hormonais.
38 Cf. Rago (1993), os médicos higienistas, a partir de Parent-Duchâtelet e de Lombroso, estenderam o conceito de
prostituta a todas as mulheres que por algum motivo ficavam fora dos padrões considerados normais.
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O Imaginário sobre a mulher através do olhar da Medicina no Século XIX
39 Por outro lado, as mulheres eram impedidas de cursar as faculdades de Medicina. A primeira médica brasileira,
Maria Augusta Generoso Estrela se formou nos E.U.A. em 1881. No Brasil só em 1887 Rita Lobato Velho Lopes é
diplomada (Cf. Kaastrup, 1983 e Santos Filho, 1991).
40 Segundo Mott (1992) e Santos Filho (1991), Madame Durocher era conhecida pelos traços masculinos que
reafirmava através de vestimentas e hábitos, chegando a ser chamada de "a mulher-homem".
41 A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro chegou a instituir um prêmio com seu nome na área da obstetrícia.
42 Segundo Magalhães (1932), a antiga cadeira de Partos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro passa a se
chamar Obstetrícia em 1884, sendo desdobrada em 1911 em Clínica Obstétrica e Clínica Ginecológica.
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PSICANÁLISE, INDIVIDUALISMO E DIVISÃO DE SI*
INTRODUÇÃO
* Este artigo é uma versão modificada do trabalho apresentado para a disciplina Sociedade e Doença Mental II
ministrada pela professora Jane Russo no Programa de Pós-graduação em Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental da
UFRJ.
’* Professor do Curso de Especialização em Medicina do Trabalho da Faculdade Souza Marques e doutorando do
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Medicina SocialAJERJ.
Psicanálise, individualismo e divisão de si
indivíduo foi realizado pelo antropólogo francês Marcei Mauss, ao fazer uma história
social de uma das categorias do espírito humano1: a moderna noção de “pessoa”, de
“eu”. No clássico artigo de 1938 Uma Categoria do Espírito Humano: a noção de
pessoa, a noção do “eu”, sua intensão era mostrar como a noção de “eu” é recente,
tendo atravessado um lento desenvolvimento na história do ocidente.
Do sentido jurídico, em que o termo “pessoa” designava uma condição ou posição
social, um domínio, passa-se à noção de pessoa como fato moral, ou seja, como “(..)
ser consciente, independente, autônomo, livre e responsável” (MAUSS, 1974: 233-
234). O Cristianismo, posteriormente, acrescentou-lhe um fundamento metafísico
forjando uma concepção metafísica de pessoa humana, substância racional indivisível,
individual. O passo seguinte, dado pelos filósofos, se dirige para a constituição da noção
de “eu ”, enquanto consciência, enquanto ser psicológico.
Os dados etnográficos reunidos por Mauss testemunham que em diversas
sociedades tribais a identidade do indivíduo não se define por suas propriedades
intrínsecas, mas pela posição que ele ocupa no clã, por sua relação com seus ancestrais
ou pelo papel que lhe é atribuído numa situação de ritual. Longe de se definir como um
eu individual, cada membro da tribo encarna um personagem, assumindo sempre a
qualidade de ser social.
Seguindo as pistas deixadas por Mauss e situado na mesma linhagem teórica,
Louis Dumont realizou um trabalho sistemático de relativização da concepção moderna
de indivíduo. Suas pesquisas sobre o sistema de castas da índia mostraram como este
sistema social e o nosso - que pode ser denominado “ocidental moderno ” - constituem
configurações ideológicas2 radicalmente distintas. Para apreciar em que consiste esta
oposição cumpre visualizar os dois sentidos implicados na palavra indivíduo'.
1 uma dessas idéias que julgamos inatas (...) ", Mauss, 1974, p. 209.
2Segundo Dumont (1992, 51) a ideologia, enquanto conjunto de idéias e valores, de forma alguma é um aspecto
secundário da vida social (da ordem da superestrutura, por exemplo), mas, ao contrário, é central e determinante da
sua dinâmica.
149
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
150
Psicanálise, individualismo e divisão de si
Nos seus textos sociológicos, ou de cultura, Freud assume como objeto de estudo
“as funções psíquicas das comunidades humanas e dos povos”, (Freud, 1923: 2.739)
empreendimento que seria justificado pelas inúmeras analogias encontradas entre a
psicologia individual e a psicologia coletiva . Não escapou a Freud a constatação deste
traço fundamental do mundo civilizado que é a oposição entre indivíduo e sociedade.
Tal oposição está pressuposta ao longo de todos os seus textos de cultura (Cf Mezan,
1985: 483) e, mais especificamente, em dois momentos cruciais: na tese de que o
desenvolvimento da civilização se baseia na crescente renúncia à satisfação das pulsões
e no uso do conceito de filogênese. Nossa hipótese é a de que a presença da distinção
entre indivíduo e sociedade na obra de Freud é um dos indicadores das relações entre o
sujeito descrito pela psicanálise e a ideologia individualista moderna.
Freud define cultura - recusando-se a distingui-la do conceito de civilização -
como tudo aquilo que diferencia o homem do animal e que se refere a duas ordens de
fenômenos: por um lado, os recursos utilizados para dominar as forças da natureza a fim
de obter os bens naturais necessários ao homem; por outro, as organizações necessárias
para regular as relações que se estabelecem entre os homens. Se Freud recusa a
dicotomia entre civilização e cultura, se as considera como interdependentes, é porque a
obtenção dos bens materiais suscetíveis de satisfazer as necessidades dos homens
exercem grande influência nas suas relações e, além disso, o próprio homem pode se
constituir um bem natural ao ser utilizado por outro como força de trabalho ou como
objeto sexual. Mas também porque
A fim de poder enfrentar os desafios que a natureza lhe impõe, o homem precisa
se ligar a outros homens e, por consegüinte, deve submeter a certas limitações à
3 Há um certo debate em tomo da questão de se existe ou não em Freud uma teoria a respeito da constituição e do
funcionamento da sociedade. De nossa parte, pensamos que Freud, de fato, tem por objeto os processos implicados
na gênese e no funcionamento da sociedade, estando familiarizado, diga-se de passagem, com as principais
concepções teóricas e metodológicas em voga nas ciências sociais na sua época. Por isso, consideramos ocioso
discutir a validade dos seus estudos, enquanto teoria social, tomando-se por base parâmetros teóricos atuais. Por
outro lado, é necessário frizar que os textos de cultura não se reduzem meramente a trabalhos de psicanálise
aplicada, na medida em que as reflexões ali empreendidas são constitutivas da teoria psicanalítica in toto. No
entanto, para os objetivos do presente trabalho, não interessa no momento acompanhar a complexa trama que liga os
textos sociológicos à metapsicologia.
151
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
152
Psicanálise, individualismo e divisão de si
5 Sobre esta conexão entre estado de natureza e liberdade, Simmel (1964, p.65) escreve: "Se a natureza é concebida
como a existência original de nossa espécie, tanto quanto de cada indivíduo como o ponto de partida do processo
cultural (independentemente da ambigüidade de 'original ’ que pode significar 'primeiro' ou ‘essencial e básico’), o
século XVIII tentou reconectar numa síntese gigante, o final ou o topo deste processo com seu ponto de partida.”
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Cadernos do IPUB n° 8,1997
154
Psicanálise, individualismo e divisão de si
DIVISÃO DE SI E INDIVIDUALISMO
7 É necessário desenvolver um estudo mais aprofundado acerca da originalidade desta teoria da origem da sociedade
de Freud em relação aos modelos da filosofia política clássica, o que será realizado em um próximo trabalho.
8 Cf. Russo, 1993.
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
A despeito dos dois séculos que os separam, o nascimento do sujeito da razão com
a pedagogia e a crise do sujeito com o “tratamento moral” franquearam a constituição
do que se tomou conhecido mais tarde como sujeito psíquico. A diferença entre tais
práticas reside no fato de que uma intervém sobre a razão, atributo impessoal da
individualidade; a outra, age sobre a intimidade do ‘‘eu ”.
O surgimento do asilo e do tratamento moral é o momento de instauração de uma
prática do espírito humano, em que a organização do dispositivo terapêutico, por um
lado, se orienta para a intervenção sobre os indivíduos, sobre a pessoa do alienado e, por
outro, lança mão de regras e recursos que operam sobre o indivíduo com o seu
desconhecimento, à sua revelia, como que imitando sua própria divisão.
Na história da divisão do sujeito, a loucura será a base privilegiada de retomo do
homem sobre si. O homem pode, de agora em diante, olhar-se de fora, desde um outro
lugar que não ele mesmo. A alienação mental, esse “devir outro por si mesmo”, será
reveladora de uma alteridade essencial, constitutiva da subjetividade.
Segundo os autores, é com os primeiros alienistas que surge a representação de
uma força no interior do sujeito que o determina a despeito da sua vontade.
Com efeito, Esquirol recusou duas grandes concepções clássicas a respeito das
causas da loucura. Uma delas, sustentada pela corrente somatista, era a de que a
alienação mental decorria de lesões orgânicas ou cerebrais que comprometeríam o bom
funcionamento das faculdades mentais do indivíduo. A outra, proposta pela corrente
moralista afirmava que a alienação consistia numa perturbação das associações de idéias
determinada pelas disposições imorais do sujeito, estando, portanto, ligada à intervenção
deliberada, consciente, se bem que sob uma forma pervertida, da sua vontade.
É em oposição a essa alternativa causai - fixada desde o século XVIII e que se
prolonga na psiquiatria alemã do início do século XIX - que a psiquiatria propriamente
moderna se constituiu. (Cf. Gauchet e Swain, 1980, capítulo 3 da 2~ parte)
A concepção de loucura que surge com o tratamento moral é, em certa medida,
tributária da concepção moral clássica, porém estabelece uma ruptura ao retirar a
determinação da alienação da ordem da consciência e da vontade. Se a perturbação da
capacidade reflexiva é, como na concepção clássica, abolição total do sujeito, cegueira
total do pensamento sobre si mesmo, então a alienação é incurável. Com Pinei e
Esquirol passa-se a conceber que o alienado não é atingido de forma global pela loucura,
pois existe “um resto de razão na mania”. Um tanto de razão se mantém, pois ela não é
totalmente afetada. É precisamente esta noção que sustenta o ideal de curabilidade.
Esquirol inscreve a loucura no registro das paixões, cuja exacerbaçao define seu caráter
156
Psicanálise, individualismo e divisão de si
157
Cadernos do IPUB n°8, 1997
17 Cf. Dumont, 1991, p. 35. Norbert Elias (1994, cap. 1) descreve esta afirmação da especificidade da cultura alemã
ao analisar a gênese social dos conceitos de cultura e civilização. A oposição, na cultura alemã do século XVIII,
entre Kultur - ou as realizações intelectuais artísticas e religiosas de um povo - e Zivilisation - aparência externa dos
seres humanos - expressava um contraste social entre a intelligentsia alemã de classe média e a etiqueta da classe
cortesã. Os jovens intelectuais de classe média opunham à superficialidade cerimoniosa eàs conversas formais da
corte os idéias de profundidade de sentimento e o desenvolvimento da pesonalidade individual. Com a Revolução
Francesa, os conceitos de civilizado e civilização passam a estar mais ligados à imagem do francês, fazendo com que
aquela oposição passe a expressar uma antítese nacional.
158
Psicanálise, individualismo e divisão de si
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
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DA PSICOLOGIA APLICADA À INSTITUCIONALIZAÇÃO
UNIVERSITÁRIA: A REGULAMENTAÇÃO DA PSICOLOGIA
ENQUANTO PROFISSÃO*
Deise Mancebo *
INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta parte dos resultados de uma pesquisa intitulada “História dos Cursos de Psicologia no Rio
de Janeiro (1956/1978): a Cultura Psicológica nas Instituições de Ensino Superior”. Participaram do levantamento de
dados desta pesquisa os seguintes alunos: Gildete Silva e Margarete Dias, bolsistas de iniciação científica da
FAPERJ, Isabela Silva Vieira e Daniela Carvalho da Silva Fontes, bolsistas de iniciação científica da UERJ, Leandro
Vieira Osuna, bolsista do CNPq/Pibic, Eduardo Ceschin Rieche, estagiário de pesquisa e Alexandre Teixeira dos
Santos, mestrando do Instituto de Psicologia/UERJ
” Doutora em Educação; Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ.
1 Em 1932, este laboratório é novamente transformado, pelo Decreto Lei n° 21173, em Instituto de Psicologia da
Secretaria de Estado de Educação e Saúde Pública, onde deveria ter funcionado o primeiro curso de Psicologia. No
entanto, supostamente por problemas financeiros, sobrevive, nestas condições poucos meses, sendo incorporado em
junho de 1937, através da Lei n° 452, à então Universidade do Brasil, como Instituto de Psicologia da Universidade
do Brasil. Na Universidade do Brasil, já existia um Departamento de Psicologia da Faculdade Nacional de Filosofia e
a incorporação do antigo laboratório criou uma situação dupla da Psicologia nesta Universidade, situação
insustentável legalmente, mas que é protelada até 1948, quando os dois órgãos continuam a existir, mas com um
único diretor. A fusão propriamente, só ocorre em 1964.
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
fase dos solitários pioneiros da Psicologia, no Rio de Janeiro. Com a criação das
primeiras Universidades, tem início uma nova etapa mais orgânica da história do ensino
de Psicologia nesta região do país. Nas Universidades, os cursos ganham em
organicidade e continuidade, além da estrutura universitária possibilitar uma maior
aproximação de teóricos e pesquisadores interessados na disciplina psicológica.
No entanto, apesar destas facilidades institucionais, o ensino da Psicologia
permaneceu, até a regulamentação da profissão, organizado no âmbito de diversas áreas
do conhecimento, Filosofia, Direito, Medicina, Serviço Social, Economia, Educação
Física, Pedagogia e Teologia e era com este formato fragmentado e “adaptado” a outros
saberes que se repassava e construía o pensamento psicológico entre nós.
A regulamentação da profissão, em 1962, foi portanto, um marco para a
construção dos saberes psicológicos, enquanto disciplina independente, no Brasil. Este
trabalho propõe-se à análise deste momento, na história da Psicologia, tomando por
base, a experiência do Rio de Janeiro. Para tal, pretende-se analisar, primeiramente, o
crescimento das práticas psicotécnicas, a partir dos anos 30 e a contribuição que esta
Psicologia Aplicada teve no desenlace da regulamentação da profissão; depois, discutir
o próprio ato legal que instituiu a Psicologia como profissão e os seus cursos de
formação; para finalmente, apresentar as principais dificuldades e soluções encontradas,
nos primeiros anos, pela novel corporação.
162
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária
voga nos países desenvolvidos, e que tinham na organização racional do trabalho uma
de suas principais bandeiras. Parcela do empresariado e elementos dentro do Estado
viam no projeto de otimização do trabalho, assim como na eficientização do processo
educacional uma possibilidade de atender a parcela significativa dos problemas
referentes à força de trabalho.
Em decorrência inicia-se um certo mercado ou demanda por profissionais que
pudessem avaliar as características dos indivíduos, otimizá-las e ajustá-las. Havia uma
preocupação crescente com o fator humano, não só quanto ao seu aprimoramento
técnico, como quanto ao desenvolvimento de suas aptidões. A expectativa era tomar a
produção mais eficiente: conseguir os homens mais adequados para os postos, ou
encaminhá-los desde cedo para seus devidos lugares no aparelho escolar. O profissional
que surge nestes primeiros anos, no campo “psi”, era chamado de psicotécnico, sendo
arregimentado principalmente entre médicos, engenheiros e militares.
Lourenço Filho (1995), defensor da Psicologia Aplicada, era explícito: a
Psicologia fornecería os instrumentos teóricos e metodológicos para a organização da
sociedade e, em particular, para as atividades educativas e do trabalho, que passam a ser
entendidas no quadro mais amplo da manipulação técnica da sociedade (p. 149).
Deste modo, não foi propriamente do crescimento das experiências de pesquisa e
ensino, universitários ou não, que a Psicologia desenvolve-se e cria raízes, a ponto de
ser regulamentada. As experiências desenvolvidas no campo da Psicologia Aplicada,
fora dos ambientes formais de ensino, parecem ter dado uma maior contribuição para a
autonomização legal dos saberes psicológicos.
Desenvolvimento semelhante pode ser observado na prática clínica. Nesta, a
experiência psicológica também desenvolveu-se, fora dos muros universitários, nos
espaços dos consultórios e em grupos organizados para a discussão clínica, em especial
a psicanalítica2. Conforme Luís Cláudio Figueiredo (1995):
Desde a sua gênese, portanto, parece ter existido uma certa divisão de tarefas, na
qual à Universidade cabia a reprodução teórica do saber psicológico, ficando para os
psicotécnicos a construção da prática “psi”, respondendo às demandas concretas de
ajustamento do homem a novas ordens sociais.
No Rio de Janeiro, o grande impulso aos psicotécnicos, ocorre ao fim da 2a Guerra
Mundial. A vinda de Mira y López, em 1945, representou um marco neste sentido; sua
preocupação eminentemente prática em oferecer serviços do tipo orientação profissional
2 Estes grupos organizados de discussão, posteriormente evoluíram para a criação das Sociedades de Psicanálise,
espaço de formação por excelência. Sobre este desenvolvimento vide: FIGUEIREDO, A.C.C. Estratégias de difusão
do movimento psicanalítico no Rio de janeiro -1970/1983; Dissertação de Mestrado; Departamento de Psicologia da
PUC-RJ; 1984 e SAGAWA, R.Y. Os inconscientes no divã da História; Dissertação de Mestrado; UNICAMP; 1989.
163
Cadernos do IPUB n°8,1997
e seleção foi viabilizada através de um curso ministrado pelo próprio Mira, na Fundação
Getúlio Vargas, neste ano.
A FGV, recém criada - em 20 de dezembro de 1944 - tinha por finalidade dedicar-
se aos estudos e pesquisas que pudessem contribuir para maior eficiência da
administração brasileira. Conforme o idealizador e primeiro presidente da FGV, Luís
Simões Lopes (1969), referindo-se à criação da instituição:
Portanto, desde a fundação da FGV, havia uma clara definição quanto à ajuda que
a Psicologia poderia oferecer para o alcance dos seus objetivos institucionais. De fato,
ao curso ministrado por Mira y López seguiu-se o convite, para organizar, na Fundação
Getúlio Vargas, o Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP).
Mira y López esteve à frente do ISOP, de sua criação em março de 1947, até a sua
morte, em 1964. Na sua gestão o ISOP tomou-se um laboratório, uma escola e um
centro de implantação e difusão da Psicologia, de suas aplicações e derivações
tecnológicas. Manteve permanente contato com a comunidade científica e a sociedade,
visando oferecer através de seu trabalho uma resposta à constante e crescente demanda
de conhecimentos e práticas psicológicas.
Mira y López deixou uma vasta obra e, a par do seu ecletismo, pode-se perceber
uma intenção na sua produção escrita: a produção de trabalhos de divulgação científica,
voltados para um público maior, com forte finalidade didática. Seus livros “ensinam”
aos pais a educar seus filhos; aos idosos, como viver em sua velhice; aos alunos, a como
se adaptarem melhor. (Rosas, 1995).
A partir de setembro de 1949, com a criação dos Arquivos Brasileiros de
Psicotécnica, passou o ISOP a contar com um veículo para publicar com regularidade o
produto de seus estudos. Foi a primeira publicação periódica brasileira especificamente
de Psicologia e com circulação que, desde os números iniciais, procurou alcançar todos
os centros onde a Psicologia era praticada no país.
tm síntese,
Em uauauxv desenvolvido pelo ISOP
simesc, ou trabalho peio seu idealizador e diretor
lovr ec pelo
incrementou o interesse metodológico pela aplicação da Psicologia, auxiliando aos
psicotécnicos a elaborarem soluções práticas, eficazes e úteis de ajustamento dos
homens aos problemas advindos de uma sociedade em vias de modernização
164
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária
3 Outros dois cursos surgiram nesta mesma época: o da atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
então Universidade do Estado da Guanabara (UEG), criado em 1964, sob a forma de bacharelado, sendo ampliado
para a formação de psicólogos, em 1967, e o da Universidade Gama Filho (UGF), que teve a entrada de sua primeira
turma em 1967. Optei por não incluí-los neste texto, pelo fato de não terem se constituído numa referência, àquela
época, para as disputas e embates travados no campo “psi”, discutidos neste artigo.
165
Cademos do IPUB n°8, 1997
4A partir de 1957, este curso passa a funcionar na própria PUC-RJ, sob a coordenação do Padre Benkõ.
166
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária
5 Dentre as organizações participantes deste movimento, pode-se citar: a Sociedade de Psicologia de São Paulo, a
mais antiga, criada em 9 de novembro de 1945; a Associação Brasileira de Psicotécnica, instalada em 2 de dezembro
de 1949, desde abril de 1959, denominada Associação Brasileira de Psicologia Aplicada; a Associação Brasileira de
Psicólogos, fundada cm 10 de outubro de 1954 e a Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul, com atividades
iniciadas em 1959.
167
Cadernos do IPUB n°8, 1997
168
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária
De duas associações de São Paulo surgiu, por fim, um substitutivo que foi o
aproveitado para a regulamentação. Este se colocava também claramente a favor das três
especialidades, aproximando-se do anteprojeto da Associação Brasileira de
Psicotécnica. Ligada à especialidade clínica, o “ajustamento” tomou-se uma atribuição
do psicólogo e, deste modo, o caminho para as práticas clínicas também estava
legalmente aberto a este profissional.
A promulgação da Lei 4119 de 27 de agosto de 1962, pelo Presidente João
Goulart, constituiu-se no primeiro diploma legal específico sobre os cursos de formação
de psicólogos. Seguiu-se a este expediente, ato do Conselho Federal de Educação que,
através do Parecer n° 403 de 1962, fixou o currículo mínimo e a duração do curso de
Psicologia, com vigência a partir do ano seguinte. Portanto, a regulamentação da
profissão ocorre através do mesmo ato legal que normatiza os cursos de Psicologia.
A nova Lei determinava, logo no seu Artigo Io: “a formação em Psicologia far-se-
á nas Faculdades de Filosofia, em cursos de bacharelado, licenciado e psicólogo”,
passando a ser “obrigatório o registro dos diplomas no órgão competente do Ministério
da Educação e Cultura” (Artigo 10) para o exercício profissional. A este novo
profissional foram atribuídas as seguintes funções privativas: “a ) diagnóstico
psicológico, b) orientação e seleção profissional, c ) orientação psicopedagógica e d )
solução de problemas de ajustamento”. (Art.13 Parágrafo Io).
Além de regulamentar a profissão e a criação dos cursos para formação de
psicólogos, a nova legislação permitia aos portadores de diplomas ou certificados de
especialista em Psicologia, Psicologia Educacional, Psicologia Clínica e Psicologia
Aplicada ao Trabalho, o direito ao registro daqueles títulos (Art.19) num prazo de 180
dias. Permitiu, assim, o registro de psicólogo aos psicotécnicos, que já vinham
exercendo a profissão ou tinham exercido por mais de cinco anos, atividades
profissionais de Psicologia Aplicada, na data da publicação da Lei (artigo 21).
O Decreto n° 53.464 de 21 de janeiro de 1964, que regulamentou a Lei 4119/62,
explicita mais detalhadamente e amplia o universo dos que poderíam requerer o registro:
militares e funcionários públicos efetivos que estivessem exercendo o cargo, as pessoas
que já tivessem exercido por mais de cinco anos atividades profissionais de Psicologia,
os possuidores do diploma de Doutor em Psicologia, em Psicologia Educacional, bem
como os Doutores em Filosofia, em Educação ou em Pedagogia que tivessem defendido
tese sobre assunto concernente à Psicologia (Artigo 2o). Houve, portanto, uma vitória
dos psicotécnicos atuantes em diversas áreas, que através dos registros no MEC,
169
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
6 Em levantamento realizado junto aos arquivos do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-05), até
o ano de 1980, encontramos 4148 psicólogos inscritos. Destes, 539 (13%) não atestaram a posse de diplomas e,
portanto, entraram para a corporação pelo fato de serem portadores de registro no MEC. É importante ressaltar que
este fato’ocorreu com maior freqüência nos primeiros anos de atividade do Conselho. Assim, em 1974, data em que
esta autarquia começa a funcionar para o registro obrigatório de profissionais, 37,05% dos psicólogos inscritos no
CRP-05 não tinham diploma, em 1975, este percentual foi de 36,72%, decaindo para 0 (zero) no ano de 1980.
170
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária
7 0 conflito mais significativo ocorrido desde a regulamentação da profissão foi, entretanto, o decorrente da
apresentação, em 1980, de um projeto de autoria do deputado Salvador Julianelli à Câmara Federal. Esse projeto, se
aprovado, tomaria privativa do médico, a utilização de procedimentos psicoterápicos, bem como toda a atuação
classificada como psicanalítica. Determinaria, ainda, que o atendimento individual em Psicologia ocorresse sempre
mediante prescrição ou indicação médica. Tão intensas foram as manifestações dos psicólogos e de outras categorias,
que seriam prejudicadas com a aprovação do projeto, que, antes mesmo de ser votado, o deputado Salvador Julianelli
decidiu pela sua retirada.
8 Utilizo, neste texto, para a expressão “práticas alternativas”, o seguinte sentido, sintetizado por Tourinho e
Carvalho Neto (1995): “Prática alternativa é uma denominação genérica para um conjunto bastante heterogêneo de
atividades, incluindo desde técnicas adivinhatórias e de descrição de personalidade até técnicas de Medicina
alternativa baseadas em pressupostos místicos e religiosos. Essas técnicas, via de regra, originam-se a partir de
concepções tradicionais de homem e de mundo e baseiam-se em conhecimentos pré-científicos ou embasados no
senso comum. Sua utilização é habitualmente interpretada como uma busca de recursos mágicos para a solução de
171
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
preciso relembrar que, há mais de 30 anos, a profissão já vinha sendo exercida sem
qualquer regulamentação ou controle, e encontrava-se, portanto, em situação bastante
vulnerável quanto à assimilação de procedimentos, que poderíam macular a imagem de
cientificidade desejada pela nova corporação.
Para evitar tal perigo, os contornos da Psicologia são definidos, em sentido
contrário às “práticas alternativas”. Encontrei vasto material do Conselho Federal e
Regional de Psicologia referentes ao assunto, demonstrando que o empenho em
,o
delimitar os contornos da cientificidade psicológica não é recente. O próprio Parecer n‘
403/62 do Conselho Federal de Educação já afirmava:
"... (é) imperativo que se acentue o caráter científico dos estudos a serem
realizados, que só assim há de ser possível (...) evitar as improvisações que, do
charlatanismo, a levariam fatalmente ao descrédito”, (p.37)
172
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária
Psicólogos com personalidade jurídica própria, para elegerem, através de votos de seus
delegados, os membros efetivos e suplentes desse Conselho”(Artigo 37).
Conforme testemunho de Soares (1979), um dos motivos que levou a esta demora
foram exatamente as lutas internas da corporaçãoos profissionais de Psicologia, na
cátedra ou fora dela, mourejavam isolados, caminhando quase à sombra, como a temer
que o contato e a troca de experiências e opiniões lhes ameaçassem a segurança e o
“status” adquiridos, a duras penas.” (p.29)
Na realidade, foram necessários três encontros das Sociedades e Associações de
Psicologia, realizados em São Paulo, Barbacena e no Rio de Janeiro, respectivamente,
para que se fizessem os acertos necessários à eleição dos primeiros conselheiros. E
importante registrar que no Io Encontro Nacional não estiveram presentes, apesar de
convidadas, entidades importantes como a Sociedade de Psicologia do Rio Grande do
Sul, a Sociedade de Psicologia do Rio de Janeiro e a Associação Brasileira de Psicologia
Aplicada.
Na confecção do currículo mínimo, as lutas de poder também estão expressas. O
currículo mínimo foi, na realidade, uma “composição de correntes que já estavam, cada
uma, com seu território assegurado e com suas equipes formadas” (Pessotti, 1984, p.30).
Efetivamente na expressão do Parecer n° 403/62 do Conselho Federal de Educação, o
currículo mínimo pretendia traduzir “a média do pensamento dominante captada através
de sucessivas reuniões”, das quais participaram Lourenço Filho e Nilton Campos, da
Universidade do Brasil, Carolina Martuscelli Bori, da Universidade de São Paulo, Padre
Antonius Benkõ da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Pedro Parafita
Bessa da Universidade de Minas Gerais. Por mera superposição, os currículos plenos
ficaram autorizados a contemplar teorias e sistemas psicológicos, técnicas variadas de
investigação, discussões filosóficas, embasamentos psicopatológicos e procedimentos
diversos de intervenção, dentre outros.
E importante assinalar esta fórmula encontrada pelos psicólogos para a solução
das contradições da sua disciplina, pois com este procedimento, as matrizes que
compõem o saber “psi” (Figueiredo, 1991), detectáveis a partir de uma análise
epistemológica mais atenta, foram (e tem sido), camufladas e a própria crítica e reflexão
sobre o projeto de Psicologia como ciência independente foram subtraídas.
Por fim, o crescimento desordenado da profissão e dos cursos constitui-se num
terceiro grupo de dificuldades. Conforme dados apresentados pelo Conselho Federal de
Psicologia, em 1974, a categoria contava com 895 profissionais, em 1975 este número
subiu para 4950, no ano seguinte já alcançava a cifra de 6890 (Soares, 1979, p. 51) e em
1988 já se registravam 61738 psicólogos no país (Bastos & Gomide, 1989, p. 6).
Os cursos de Psicologia também proliferaram, no mesmo sentido da expansão de
toda a rede de ensino superior do país, qual seja, na direção do crescimento da iniciativa
privada. No levantamento que realizamos junto ao Conselho Regional de Psicologia -
05, observamos que 72, 29% dos psicólogos formados, até 1980, tiveram sua formação
realizada em escolas particulares, ficando o ensino público (ministrado na Universidade
Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade do Estado
do Rio Janeiro) responsável somente pela formação de 27,71% dos profissionais.
Essencialmente, na década de 70, há um crescimento explosivo de instituições
privadas para atender àqueles que, excedentes da rede oficial, desejavam obter um título
173
Cadernos do IPUB n° 8, 1997
universitário. A educação passa a ser encarada como um grande negócio, com cursos
funcionando à noite, turmas superlotadas e cursos de baixa qualidade. Estas novas
escolas, não possuindo condições de investir em outras áreas, optavam, na maioria das
vezes, pelos cursos de humanidades, os menos onerosos. Este também foi o
desenvolvimento do ensino superior de Psicologia. Assim é que, em nível nacional, os
28 cursos de Psicologia em 1971, passaram a 51 em 1977 (Rosemberg, 1984, p. 11). No
Rio de Janeiro, tínhamos quatro cursos até o ano de 1968, em 1979 este número havia
subido para nove, seis dos quais (67%), alocados em instituições de ensino superior
privadas. Muitas destas escolas foram criadas e ampliadas, com contenção de custos, e
portanto às expensas da qualidade. Seus professores eram - e são - pagos por hora de
trabalho, mantinham suas atividades estritamente em sala de aula, isolados portanto de
seus parceiros, o que colocava como conseqüência a ausência de integração entre as
diversas disciplinas, o ensino unicamente reprodutivo, já que a produção de
conhecimentos não recebia incentivos.
Estes dados se tomam mais alarmantes quando se avalia que a maioria dos cursos
existentes não atendiam sequer às exigências da Lei, em termos de currículo, em
especial, quanto à existência de estágios.10 Além de não atenderem aos requisitos
formais estabelecidos, eram comuns os expedientes de “tapa-buraco”: disciplinas eram
ministradas por professores não portadores de qualificação de fato para tal. O
depoimento de Pessotti (1984) demonstra-o muito bem:
“Eu participei da formação dos primeiros psicólogos e posso afirmar que ela
foi viezada. Não se fazia o pretendido, o desejado, porque o currículo
prescrevia certas disciplinas. Muitas vezes não havia um docente para
determinada disciplina e outro era chamado a substituí-lo... ” (p.30)
10 O descumprimento das exigências legais nos cursos de Psicologia gerou um impasse para os formandos que se
tomavam impossibilitados de exercer a profissão. Para a “superação” do problema o Conselho Federal de Psicologia
instituiu o dispositivo da “autorização temporária” de modo a permitir o desempenho profissional, expediente
utilizado até finais dos anos 70.
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Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As práticas dos psicotécnicos, desenvolvidas a partir dos anos 30, devem ser
consideradas como a grande experiência que divulgou e difundiu a profissão de
psicólogo no Brasil, na sua gênese. Elas construíram, na sociedade e no campo “psi”,
uma demanda e uma certa tensão necessárias à regulamentação da profissão e dos cursos
de Psicologia, ocorrida através de ato legal, considerado como um marco para a
construção dos saberes psicológicos enquanto disciplina independente e sua
institucionalização nas Universidades,.
Nos primeiros tempos, após este expediente, a Psicologia atravessou uma fase de
consolidação dos seus limites em relação a outras disciplinas já estabelecidas - como a
Medicina e a Pedagogia - e aos “saberes leigos” sobre as “faculdades mentais”. Nossa
análise apontou, contudo, para a seguinte consideração: a delimitação legal deste novo
campo do saber foi marcada por lutas corporativas quanto à ocupação de espaços
institucionais e no mercado de trabalho, não tendo propriamente operado cortes no
sentido da construção de um novo saber. Especificamente na relação com a Medicina e a
Psiquiatria, interessava à Psicologia trazer o “emolduramento científico” e a força dos
espaços institucionais a elas relacionados. Sem maiores conflitos, os conhecimentos
psicológicos acumulados por estes profissionais e também por educadores, engenheiros,
filósofos, desenvolvidos dentro ou fora do espaço acadêmico, foram assimilados e
“colados”, no interior dos cursos, às discussões sobre teorias e sistemas psicológicos.
Do mesmo modo, naturalmente que sem o aval explícito da corporação, muitas
práticas consideradas não-científicas, místicas, logicamente infundadas também foram
trazidas para este campo, especialmente quando se tratava “do-que-fazer”, da prática
psicológica em sentido estrito. Esta sobreposição de técnicas dissociadas de um corpo
teórico, que não têm a possibilidade de se submeter a uma problematização e confronto
com outras argumentações teóricas, transformaram-se, com muita facilidade, num
pensamento obscurantista e mistificador, cujo critério avaliativo é o senso-comum.
Por fim, nestes anos de consolidação, a profissão, seus cursos de formação e a
clientela atingida cresceram desmesurada e desordenadamente. Esta situação tomou-se
mais complexa quando se sabe que os necessários embates no campo epistemológico
não foram tratados com a devida atenção, na medida em que a corporação, em seus
momentos defmitórios, optou pela busca de soluções acomodatícias, à justificação de
projetos de grupos, que visavam muito mais à manutenção do “status” já atingido, por
alguns de seus membros, do que propriamente pelo enfrentamento teórico.
BIBLIOGRAFIA
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Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária
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A PROFISSÃO DE PSICÓLOGO: CONSTITUIÇÃO
DO CAMPO
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Cadernos do IPUB n° 8, 1997
Eu participei da formação dos primeiros psicólogos e posso afirmar que ela foi
viezada. Não se fazia o pretendido, o desejado, porque o currículo prescrevia
certas disciplinas. Muitas vezes não havia um docente para determinada
disciplina e outro era chamado a substituí-lo - como até hoje ocorre. Por
exemplo, quem entendia Piaget, dava Piaget com diversos nomes - Psicologia
da criança, da Aprendizagem... cada grupo lutava, com a melhor das intenções,
para impor uma determinada direção à essa formação. (...) A elaboração dos
currículos seguiu em grande parte a uma necessidade de compor correntes que
já estavam, cada uma, com seu território assegurado e com suas equipes
(PESSOTTI, in SA V1ANI et al., 1984, pp. 30-1).
Este é o funcionamento que permeia os cursos até o início dos anos 70. Profissão
nova, poucos alunos, poucos cursos, existentes quase somente nas universidades
públicas. Embora a situação política brasileira sofra grandes mudanças logo após a
regulamentação da profissão, com o golpe de 1964, os ainda novos saberes e práticas psi
encontram-se voltados para si mesmos, pouco se imiscuem na esfera sócio-política mais
ampla. Esta subjetividade intimista, na verdade, já se prenuncia na sociedade brasileira
desde o projeto de modernização do governo JK. Entretanto, os novos tempos vão
possibilitar consolidações e desdobramentos outros.
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A profissão de psicólogo
1 Um de seus trechos mais polêmicos diz: Reconhece-se, nos dias que correm, que a ação preventiva, de
orientação psicológica, diagnóstico precoce, aconselhamento e terapia psicológica, exercida em larga escala, é um
dos poucos recursos realmente efetivos que as comunidades podem lançar mão, a fim de evitar que se agrave ainda
mais um estado de coisas realmente inquietante, notadamente em domínios como crime e delinquência, tóxicos,
deterioração de relações familiares, abuso de crianças, alcoolismo, desvios sexuais, desvios ideológicos e
terrorismo etc. (pp. 3/4).
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A profissão de psicólogo
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Cademos do IPUB n° 8, 1997
NOVOS PROPÓSITOS
2 VEYNE (1988), em prefácio a tradução francesa da obra de Sêneca Da Tranqüilidade da Alma, compara os
exercícios filosóficos do estoicismo com a Psicanálise: (Freud) fala, pouco antes de sua morte, do caráter
‘‘interminável” da cura psicanalítica. Os exercícios filosóficos não são menos intermináveis; é preciso, diz Sêneca,
passar a vida a aprender a viver; a filosofia não é um assunto para as classes terminais, mas, antes, para a idade
adulta e para todo o curso da existência. A cidadela não está jamais livre do inimigo, o estado de conclusão não é
jamais alcançado. (...) Certos psicastênicos da antigüidade devem ter vivido sua filosofia como outros vivem
em nossos dias sua cura psicanalítica: por não conseguirem obter dela a cura, encontraram nela ao menos uma
nova paixão, a da psicanálise; e talvez a psicanálise não tenha jamais conseguido qualquer outro efeito curativo. A
filosofia antiga também não (pp. 22-23).
184
A profissão de psicólogo
3 RUSSO (1993) faz as seguintes observações sobre uma sociedade reichiana, ao analisar a trajetória das
primeiras gerações de terapeutas corporais e a criação de instituições de formação,: (...) o setting usado pelos
terapeutas do [Instituto] Ola Raknes me pareceu aproximar-se do setting psicanalítico em termos de sua disposição
física, em especial pelo uso de um divã. Também falei da exigência, feita por esta instituição, de algo que se
assemelha à análise didática própria das sociedades filiadas à International Psychoanalytical Association. O termo
usado para designar a permissão obtida para praticar a orgonoterapia por aqueles que terminaram a formação é o
mesmo usado pelos analistas lacanianos: "autorização”. A ênfase é na terapia individual, com o abandono dos
workshops e maratonas da fase anterior. Parece-me, portanto, haver aí um desejo de aproximação com a
Psicanálise, e com o conseqüente status por ela outorgado. Não só a Psicanálise é alvo deste tipo de aproximação,
mas também a medicina, fonte inesgotável de status e prestígio. Lembro a acusação feita por Navarro a Lowen que,
segundo ele, "nunca foi médico nem psiquiatra", o que parece ser um defeito em si. (p. 156, destaques no original)
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Cadernos do IPUBn°8, 1997
Creio que a questão exija ser trabalhada em um outro plano, ou seja, que tanto
as chamadas práticas alternativas quanto as diversas escolas e sistemas da
psicologia sejam confrontados no plano da ética, enquanto dispositivos éticos
tomados como dispositivos de subjetividades. (pp. 69-70, destaques no
original).
Neste sentido, deve-se ressaltar também a urgência desse enfoque nos cursos de
Psicologia. As transformações sociais, na profissão e nos cursos não acontecem
isoladamente, imiscuem-se umas em outras. O desconhecimento da história do campo
profissional, das condições sociais que possibilitaram (ou dificultaram) seu
desenvolvimento em uma ou outra direção propicia o entendimento de que o que
sempre foi sempre será, o pressuposto de uma igualdade entre diferentes momentos que
- o que é mais problemático, na atual situação de mercado da profissão - pode engendrar
a igualização também de diferentes camadas sociais. A este respeito, MELLO
hipotetizava, em 1975, sobre uma possível expansão do mercado de trabalho do
psicólogo
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A profissão de psicólogo
BIBLIOGRAFIA
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0
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í Biblioteca do
í Indtitato de
Pdiqidatria
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E
HS31
Dívimo Gráfica
SG6/L1-RJ
2. Organização do Trabalho
e Saúde Mental (1995)
4. As Políticas Públicas
no Município de Angra dos Reis (1996)
5. O Discurso em Mosaico:
Contribuições da Lingüística e da Semiologia
para o Campo da Saúde Mental (1997)