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Instituto de Psiquiatria

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ISSN 1414-0166

Cadernos
IPUB
Noção de Pessoa
e Institucionalização
dos Saberes Psicológicos
no Brasil
N2 8, 1997

Instituto de Psiquiatria
U F R • J
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Reitor: Paulo Alcântara Gomes
Decana do Centro de Ciências da Saúde-. Vera Lúcia C. R. Halfoun
Diretor do Instituto de Psiquiatria: João Ferreira da Silva Filho
Vice-Diretor: João Romildo Bueno

Editores: Ana Cristina Figueiredo


Annette Leibing

Editores Convidados: Luiz Fernando Dias Duarte


Jane Araújo Russo

Conselho Editorial-. Alfredo Schechtman (Ministério da Saúde), Ana Maria


Fernandes Pitta (Universidade de São Paulo), Branca Telles Ribeiro (Universidade
Federal do Rio de Janeiro), Céline Mercier (McGill University), Cristina Maria
Loyola Miranda (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Horst Dilling
(Medizinische Universitãt zu Lübeck), João Ferreira da Silva Filho (Universidade
Federal do Rio de Janeiro), Naomar Almeida Filho (Universidade Federal da
Bahia), Pedro Gabriel Godinho Delgado (Universidade Federal do Rio de Janeiro),
Sherrine Njaine Borges (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Cadernos do IPUB / Instituto de Psiquiatria da UFRJ. - N° 8


\
(1995)- • - Ri° de Janeiro : UFRJ, 1997.

Periodicidade irregular
Cada número tem título distinto - n*i° 8: Noção de Pessoa e Institucionalização
dos Saberes Psicológicos no Brasil

1. Pessoa 2. Saberes Psicológicos 3. Psiquiatria


I.Instituto de Psiquiatria da UFRJ

ISSN 1414-0160
CDD 616.89
CDU 616.89

Capa: Gustavo Meyer

520008858
rwSTITUTO DE PSIQUIATRIA - IPUB
CADERNOS DO IPUB
Número 8,1997

Introdução: A Análise da Pessoa Moderna pela História e Etnografia dos


Saberes Psicológicos
Luiz Fernando Dias Duarte....................................................................... 1

Os Três Sujeitos da Psiquiatria


Jane A. Russo.......................... 11

Degenerescência: Queda, Progresso e Evolucionismo


Octavio Domont de Serpa Jr..................................... 22

Nascimento da Psiquiatria no Brasil


Manoel Olavo Loureiro Teixeira.... 42

Loucura, Sanidade e Terapêuticas: o Caso da Esquizofrenia


Ana Teresa A. Venâncio....................................................... 79

Notas de um Estudo acerca da História da Psiquiatria Infantil


Paulo Rennes Marçal Ribeiro................................................. 89

A ‘Creança Brazileira ’, Futuro da Nação: Infância, Educação e Higiene Mental


na Primeira República
Alexandre Schreiner Ramos da Silva.................................................................. 99

Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de Entre-guerras


(Notas Preliminares de Pesquisa)
Sérgio Luis Carrara.............................................................. 113

O Imaginário sobre a Mulher através do Olhar da Medicina no Século XIX


Fabíola Rohden.............................................................................................. 129

Psicanálise, Individualismo e Divisão de Si


Erimaldo Matias Nicácio.......................... 148

Da Psicologia Aplicada à Institucionalização Universitária: a Regulamentação da


Psicologia enquanto Profissão
Deise Mancebo.......................................................................................................... 161

A Profissão de Psicólogo: Constituição do Campo


Ana Maria Jacó Vilela, Ana Paula Barreiro S. Gonçalves e Leila A. Oliveira 178
Introdução

INTRODUÇÃO: A ANÁLISE DA PESSOA MODERNA PELA


HISTÓRIA E ETNOGRAFIA DOS SABERES PSICOLÓGICOS

Luiz Fernando Dias Duarte*

O Instituto de Psiquiatria da UFRJ tem desempenhado um papel pioneiro no


acolhimento de uma interlocução entre o saber psiquiátrico (enquanto especialidade da
racionalidade médica ocidental moderna) e as ciências humanas em geral (onde uma
psiquiatria concebida de modo mais lato tem certamente seu assento). Os convites do
então Diretor José Leme Lopes ao antropólogo Gilberto Velho no começo da década de
1970 para diversas atividades acadêmicas no Instituto desencadearam um sistema de
trocas regulares entre o IPUB e o Museu Nacional, que ora se materializam sob a forma
de um projeto integrado sob a responsabilidade conjunta minha e de Jane Russo (que
comigo organiza este número temático). O projeta, que tem por objeto "A
institucionalização dos saberes psicológicos no Brasil (Rio de Janeiro): uma
contribuição à antropologia da Pessoa ocidental moderna", teve início no ano de 1996,
com a chancela do CNPq, e congregou neste primeiro ano de suas atividades cerca de
trinta pesquisadores e bolsistas, numa auspiciosa colaboração entre aquelas duas
instituições e também o Instituto de Medicina Social e o Instituto de Psicologia da
UERJ.
O presente número dos Cadernos enfeixa uma série de trabalhos produzidos por ■
alguns dos pesquisadores participantes do projeto e representa a sua primeira
contribuição pública conjunta - oportunamente propiciada pelo Instituto que o abriga
oficialmente.
O projeto, concebido sob uma perspectiva antropológica, se articula na interface
das ciências sociais com os saberes psicológicos, psiquiátricos e psicanalíticos e - por
envolver desenvolvimentos ideológicos e institucionais ao longo do tempo - tem uma
dimensão histórica inarredável, ainda que instrumental.
O uso da expressão "saberes psicológicos" em um sentido lato - tal como aparece
nos títulos do projeto e deste número temático - não pode deixar de merecer uma
explicitação. Considera-se que - para além das diferenciações disciplinares
historicamente constituídas sobre que se amparam as distinções contemporâneas entre a
Psiquiatria, a Psicologia e a Psicanálise - pode-se discernir um horizonte de
representações, de concepções culturais comuns a que não se pode chamar senão de
"psicológicas", na medida em que se voltam para a determinação dos modos de
existência, de funcionamento e de perturbação da psyche humana, dessa "alma",
"espírito", mind, Geist - enfim - desse "outro lado" da corporalidade estrita partícipe
da res extensa, produzida na cultura ocidental com tão particular nitidez desde meados
do século XVII (cf. Le Breton, 1988 e 1990).
As ciências sociais têm dado uma crescente atenção aos estudos comparados sobre
a construção social da Pessoa, sobre as diferentes modalidades pelas quais as culturas
elaboram as formas e sentidos dos entes sociais, das pessoas, sujeitos ou indivíduos: o

* Doutor em Antropologia Social; Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu


Nacional/UFRJ.

1
Cadernos do IPUB n°8, 1997

sentimento de si. Esse investimento se dá tanto no eixo etnográfico, contemporâneo,


lançando mão de dados de múltipla procedência e qualidade sobre outras culturas — o
que se chama às vezes significativamente de "etnopsicologia” -, quanto no eixo
histórico, sobre os estados anteriores de nossa própria cultura ocidental — o que se pode
chamar também significativamente de "psicologia histórica". É claro que avultam nesta
última linha os dados referentes às sociedades “clássicas”, pelo peso muito específico
que detêm para a auto-construção de nossas identidades culturais.
A pesquisa antropológica nessa área implica uma relação muito singular com os
saberes especializados que se desenvolveram na cultura ocidental em tomo do
conhecimento do funcionamento “interior” do ser humano, sob as sucessivas rubricas do
“espiritual”, do “moral”, do “mental”, do “psicológico”, do “psicosocial”, etc. As
disciplinas da Medicina Mental, da Psiquiatria, da Psicologia e da Psicanálise (todas
elas com divisões ainda mais especializadas e historicamente variadas) conformam uma
tradição erudita complexa e abrangente, institucionalmente elaborada e refinada em
privilegiada interlocução com os grandes movimentos ideológicos do Ocidente e com
uma altíssima capacidade de intervenção na dinâmica social.
A locução “saberes psicológicos” procura abarcar assim o conjunto desse universo
erudito, fazendo a economia de suas múltiplas e acirradas contradições e divergências
em nome de uma percepção sociológica de mais alto fôlego e de uma perspectiva
histórica de mais longue durée. Observá-las de tal ponto de vista significa sobretudo
supor que sua estruturação obedeça a alguma necessidade simbólica específica de nosso
universo cultural mais amplo, por mais complexa e problemática que seja sua definição.
O pressuposto da solidariedade complexa das instituições de significação no corpo
estruturado das culturas orienta essa investigação, comprometida portanto
explicitamente com uma perspectiva racionalista e universalista corrigida por um
relativismo metodológico (a comparação antropológica).
Essa disposição de pesquisa sobre a vida institucional dos “saberes psicológicos1
pode implicar a produção de uma “sociologia” ou “antropologia da ciência”, ou seja, um
investimento que se dedique à maneira pela qual esses saberes se propõem - e operam
coerentemente com tal objetivo - desenvolver uma atividade “científica”, com todas as
implicações desse domínio no Ocidente. Mas pode, mais especificamente, implicar a
investigação sobre as ordens de significação mais abrangentes em que se pode incluir o
propósito cognitivo mesmo das “ciências” em geral, das “ciências psicológicas” em
particular, e - inclusive - das “ciências sociais”. A atitude de “desacralização” face à
cientificidade dos saberes psicológicos só se sustenta na medida em que se radica numa
disposição de redução sociológica desse próprio dispositivo de redução, no bojo de uma
observação sistemática da racionalidade específica do Ocidente.
De um modo muito geral, a presente perspectiva associa a produção dos “saberes
nsicológicos” ao desenvolvimento e hegemonização do eixo ideológico central da
cultura ocidental: o individualismo. Isso envolve não só a representação mais
comumente referida por esse termo de uma ênfase no privilégio do interêsse individual
obre os compromissos coletivos, mas sobretudo o caráter sistemático de uma visão de
mundo que se veio consolidando ao longo de nossa tradição histórica, através de um
nercurso complexo e contraditório ao qual se dedicam numerosas análises históricas
P ■ - de mundo é regularmente associada à "modernidade", enquanto momento
Essa visão
específico de hegemonização política daquela ideologia (através da implantação de

2
Introdução

instituições políticas crescentemente comprometidas com os valores da “liberdade” e da


“igualdade”), ou enquanto espaço cultural global de sua afirmação (através da laicização
e universalização sistemática do conhecimento e através da “singularização” e
“interiorização” dos sujeitos).
As grandes interpretações históricas e sociológicas de nossa tradição descrevem
diferentes aspectos ou dimensões desse processo, por meio de constructos teóricos
muito divergentes. Esforços analíticos recentes procuram no entanto aproximar diversas
dessas linhas de interpretação, sobretudo em tomo de autores como Tocqueville,
Tõnnies, Simmel, Durkheim, Weber, Elias, Polanyi, Foucault e Dumont.
A conformação específica da noção de Pessoa que dá o nome àquela visão de
mundo - o Indivíduo - dispõe de características muito peculiares: uma ênfase radical no
seu caráter “autonômico” impôs certas direções muito claras à produção dos saberes
ocidentais modernos. Pode-se acompanhar como essa “autonomia” é solidária da visão
de mundo que justificou o surgimento das próprias ciências naturais (os casos da
Astronomia de Galileu, da Mecânica de Newton ou da Fisiologia do Séc. XVIII já foram
bem explorados) ou ainda como ela conformou muito linearmente o surgimento e
desenvolvimento de ciências como a Política e a Economia (cf. Gusdorf, 1974 e 1982;
Dumont, 1977; Figlio, 1975; Lawrence, 1979; Rousseau, 1991).
Mais direta ainda foi e inevitavelmente há de ser a solidariedade entre aquele
pressuposto “autonômico” e o desenvolvimento de saberes ditos “psicológicos”, ou seja,
justamente comprometidos com a conceitualização, descrição e explicação dos
fenômenos característicos da interioridade moral da pessoa, a mente, as faculdades, a
cognição, a emoçãp, os afetos, o psiquismo - seja que nome ou conceito se aplique
enfim a essa dimensão da realidade humana. As qualidades, atributos e limites da
autonomia serão exatamente as pedras de toque das dissensões conceituais que
emprestam uma dinâmica complexa ao campo desses saberes, tanto no que concerne à
sua atualização regular quanto no que concerne ao desencadeamento de suas
perturbações, disfunções ou anomalias - e suas terapêuticas (cf. Gauchet, 1984; Gauchet
& Swain, 1980; Salem, 1992; Swain, 1977; Foucault, 1975; Foucault, 1978).
O corpo filosófico tradicional do Ocidente já incluia em seus ramos uma
psicologia, como teoria das faculdades do espírito, herdada da filosofia grega. Uma
profunda realocação desse saber produziu-se a partir do Séc. XVII, face - por um lado
- à emergência de saberes fisicalizantes da pessoa (sobretudo a fisiologia nervosa) a
que o dualismo cartesiano não satisfazia, e - por outro - à sistematização de uma
representação radicalmente empirista do funcionamento da mente (a mind do atomismo
associacionista). A resposta holista e idealista de Leibniz assentada no postulado do
“paralelismo psicofísico” completou logo um quadro de alternativas filosóficas que
mantem até hoje sua pregnância, no que respeita à tensão entre o físico e o moral e entre
preeminência da parte ou do todo (cf. Danziger, 1980a; Leary, 1978).
A emergência de uma “psiquiatria” no séc. XIX não escapou às marcas desse
horizonte psicológico: entre as expectativas de compreensão dos fenômenos
psicopatológicos pela determinação física (de que é testemunho sobretudo o chamado
“localizacionismo”) e as propostas de etiologias e tratamentos “morais (como o do
alienismo francês) distende-se o vasto elenco das alternativas teóricas e práticas
psiquiátricas até nossos dias (cf. Bercherie, 1989; Birman, 1978; Castel, 1978b;
Venancio, 1990).

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Cadernos do IPUB n° 8, 1997

O final do Séc. XIX viu formular-se uma proposta ambiciosa de


reequacionamento da tensão físico-moral, sustentada no postulado de um nível de
realidade autônomo da vida psíquica, dotado de uma dinâmica de auto-afirmação
própria, independente da aparência consciente de seus fenômenos e capaz de suportar
intervenções terapêuticas “morais” (ainda que não diretivas). A psicanálise, oriunda da
obra freudiana, passaria a compartilhar assim o campo cada vez mais complexo dos
saberes “psicológicos” anteriores, embora - sob certos aspectos — levasse a
“psicologização” a um nível de sistematicidade incomparavelmente mais radical. Jane
Russo explora no primeiro texto deste volume o modo como o novo sujeito sustentado
por esse saber se articulou num modelo tripartido com os dois anteriores (o sujeito
“liberal” ou “cidadão” e o fisicalista ou “biomédico”).
À ocasião da proposta da Psicanálise, já a Psicologia (tanto a especulativa ou
“filosófica”, quanto a experimental ou “científica”) e a Psiquiatria (em suas mais
variadas modalidades) encontravam guarida nas instituições universitárias e de pesquisa,
associadas ao saber filosófico, médico ou fisiológico, além de comporem um quadro
profissional de extensão e prestígio crescentes (através tanto do funcionamento das
instituições asilares quanto da atividade “clínica” privada) (cf. Paicheler, 1992;
Machado & al., 1978; Beit-Hallamy, 1987; Bringman, & Tweney, 1980; Brozek, 1975;
Canguilhem, 1972; Castel, Castel & Lovell, 1982; Costa, 1981; Ellenberger, 1986;
Langenbach, 1982; Rieber, 1980; Vezzeti, 1985). A Psicanálise propôs suas próprias e
novas formas de institucionalização, que se acrescentaram ao quadro geral através de
processos específicos de legitimação e divisão de domínios (cf. Decker, c.1977;
Roudinesco, 1982; Figueira, 1983, 1985 e 1991; Figueiredo, 1984; Russo, 1991;
Sagawa, 1989; Balán, 1991; Castel, 1981).
A história social desses processos tem sido objeto neste século de uma crescente
literatura, marcada sobretudo pela especialização nas três disciplinas em separado:
Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Dado o volume da tarefa, mesmo as análises
internacionais comparadas sistemáticas a respeito de uma disciplina são raras,
prevalecendo um padrão de análise de configurações seja “nacionais”, seja por escolas e
correntes. A produção intelectual brasileira nessa área é importante e regular. Na maior
parte dos casos provem de pesquisadores emergentes dos próprios quadros das
disciplinas “psicológicas”, dispostos a refletir sobre as condições mais abrangentes
(políticas, filosóficas, ideológicas) de suas experiências profissionais e acadêmicas. Mas
é também crescentemente objeto de pesquisadores em ciências sociais interessados na
riqueza etnográfica desse segmento da experiência da cultura ocidental.
Além dos trabalhos sobre a constituição propriamente teórica e institucional
dessas disciplinas no quadro histórico, desenvolveu-sejima linha de investigação sobre
e se convencionou chamar de uma psicologização , ou seja, a transposição para
° 1 tes planos do conhecimento generalizado, popular ou mediático de traços ou
fôrmas oriundas daqueles saberes eruditos. Esse tipo de pesquisa estabeleceu-se em
'ntima interação com trabalhos dedicados à descrição e compreensão de outros sistemas
’ vnlicação das perturbações físico-morais dentro das sociedades ocidentais - de
Ímho religioso ou não e que competem ou convivem de forma complexa com a
h7,Ç“ “c,o"aiks ■"<**» «» saberes
"X1ÓSÍCM". o tema da “«asilo d.ferenc.al desses saberes pelo eixo das tradições
p “ pode envolver uma dimensão mais propriamente erudita e acadêmica m.
2S'questoes relativas a «hos ou ênfases culturais especificas mais geneX^

4
Introdução

mais ou menos favoráveis a algumas das versões dos saberes eruditos) (cf. Castel,
1978a; Moscovici, 1978; Duarte, 1986a; Herzlich, 1969).
Uma tradição acadêmica bastante especial se desenvolveu no Rio de Janeiro, a
partir do início dos anos 70, em torno sobretudo de uma interlocução entre a
Antropologia Social e a Psicanálise (mas envolvendo também a Psiquiatria influenciada
pela Psicanálise). Esse espaço suscitou uma grande produção intelectual, com referência
cruzada; incluindo trabalhos de pós-graduação no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional/ UFRJ, no Instituto de Medicina
Social da UERJ, no Instituto de Psiquiatria da UFRJ e na Pós-Graduação em Psicologia
Clínica da PUC/RJ (V. Duarte, 1989b, in fine).
Foi sobretudo a existência dessa tradição ativa que sugeriu a formulação de um
projeto abrangente de pesquisa a partir do levantamento de dados históricos e
etnográficos sobre a institucionalização dos saberes da Psicologia, Psiquiatria e
Psicanálise na área cultural do Rio de Janeiro, visando a produção de um corpus
documental e analítico de referência para o desenvolvimento de pesquisas concatenadas
sobre o desenvolvimento das formas psicologizadas da Pessoa ocidental moderna. Seus
coordenadores são pesquisadores treinados naquele espaço de interlocução, para o qual
contribuiram com publicações originais, orientação de teses e outras iniciativas de
organização do campo. Seu trabalho conjugado já se havia institucionalizado inclusive
desde 1992 na animação do Grupo de Documentação e Pesquisa Social em Psiquiatria
(GRUPEPSI) da UFRJ. Muitos dos demais pesquisadores participantes também já
tinham feito contribuições significativas a questões relacionadas ao projeto (V. as
referências bibliográficas de Duarte; Duarte, Ropa et al.; Duarte & Giumbelli; Russo;
Russo & Santos; Russo & Silva Fo.; Carrara; Venancio; Delgado & Venancio; Teixeira
e Rohden).
O projeto engloba no momento uma proposta central de organização crítica de um
centro de referências (ou guia de fontes) e um feixe de projetos específicos articulados
em tomo do tema central, que lhe imprimiram desde o início um dinamismo intelectual
diversificado. Sua intenção mais permanente - e a longo prazo - é a de formalizar o
núcleo de uma rede institucional que permita manter viva a tradição mencionada de
pesquisas, pela constituição de arquivos e sistemas de referência centralizados e
universalizados, seja sob a forma de publicações, seja sob a forma de registros
informatizados. Isso não impediría a permanente atividade autônoma de pesquisadores
interessados na área, mas permitiría a consolidação de uma arena de interreferência mais
cerrada.
Um banco de dados dedicado a Bibliografia, Biografias, Instituições e Legislação
no que toca à área da pesquisa está sendo montado, tendo-se concentrado o trabalho
neste primeiro ano sobretudo no item Bibliografia (sobretudo brasileira). Já dispõe de
cerca de três mil títulos, com informações complexas, que logo estarão à disposição de
quaisquer pesquisadores interessados.
Os textos que compõem o presente volume representam a outra dimensão da
pesquisa - a dos projetos específicos articulados em tomo do projeto central. Os
trabalhos de Russo, Serpa Jr., Teixeira, Venancio e Marçal-Ribeiro dedicam-se mais
especificamente à Psiquiatria; o de Nicacio, à Psicanálise, e os de Mancebo e Jacó-
Vilela à Psicologia. Três áreas limítrofes complementares são cobertas pelos outros três
artigos: o de Ramos-da-Silva se ocupa dos "cuidados com a infância"; o de Carrara, da

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Cadernos do IPUB n° 8, 1997

sexologia ; e o de Rohden, da "medicina da mulher". Como se verá, porém, muitos


outros fios os entrelaçam e essa imbricação das temáticas é muito reveladora das
problemáticas e dinâmicas comuns, que se visa justamente esclarecer sob um ângulo
menos usual. Trata-se porém, é claro, de um esforço ainda incipiente do ponto de vista
do seu alcance global, mesmo que, em alguns casos, já espelhe uma reflexão
amadurecida de cada projeto isolado.

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Cadernos do IPUB n° 8, 1997

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10
OS TRES SUJEITOS DA PSIQUIATRIA
*
Jane A. Russo

Este trabalho surgiu a partir na minha participação no XIV Congresso Brasileiro


de Psiquiatria, realizado em Belo Horizonte no ano de 19961. Congresso bastante
polêmico, dividido em três grandes eixos - biologia, política e filosofia - e com razoável
participação de não-psiquiatras e de psicanalistas2. O próprio modo como foi organizado
o congresso, e a polêmica que o mesmo suscitou, iluminaram de forma notável, por um
lado, as linhas de tensão que atravessam a psiquiatria moderna e, por outro, as
divergências e contradições intrínsecas à moderna noção de pessoa que se refletem
nessas linhas de tensão.
É possível usar a tripartição proposta pelo congresso para caracterizar grosso
modo três linhas básicas de tensão que parecem marcar a discussão interna ao campo
psiquiátrico, pelo menos do modo como ele se configura no Rio de Janeiro. De um lado
a chamada psiquiatria biológica, preocupada em afirmar o substrato biológico (ou
neuroquímico) dos transtornos mentais. De outro a psiquiatria “militante” que, inspirada
na reforma psiquiátrica italiana e numa literatura anti-psiquiátrica, propõe uma visão
política da questão, tendo como objetivos primordiais o resgate da cidadania plena do
doente mental, colocando no centro dos debates os direitos do paciente e sua reinsersão
social. E, last but not least, a “clínica da psicose”, de inspiração psicanalítica, centrada
na afirmação da singularidade da psicose e do psicótico, opondo-se à segunda linha por
sua ênfase na alteridade e na diferença, em detrimento da igualdade (dos direitos, do
cidadão etc.), e também na idéia de sofrimento psíquico que pressupõe um cuidado
especial com o que sofre. A afirmação aí é do sujeito, não enquanto sujeito-cidadão,
mas enquanto sujeito singular.
Temos aí colocadas, no interior dessas três linhas de tensão, formas divergentes de
conceber o sujeito humano — determinado por sua natureza biológica (ou físico-
química); tolhido pelas injunções vindas da sociedade (pela opressão socio-política);
singularizado por seus conflitos intra-psíquicos. Nos três casos está em jogo uma
questão crucial para a definição do sujeito moderno: o livre-arbítrio.
A concepção biológica de doença mental aponta para uma racionalidade estrita, na
medida em que cabe à razão humana, através da objetividade científica, desvendar o
funcionamento do cérebro de modo a controlar/erradicar os transtornos mentais. Vemos

* Doutora em Antropologia Social; Professora do Instituto de Psiquiatria da UFRJ e do Instituto de Medicina Social
da UERJ; Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental do Instituto de
Psiquiatria/UFRJ.
1 Participei da Mesa Redonda “O Estado e o Cidadão”, apresentado o trabalho “O Sujeito Cidadão”, que constitui o
núcleo central deste texto.
2 Em sua maioria também psiquiatras.
3 A influência do ideário da reforma italiana sobre as experiências de reforma do aparelho psiquiátrico brasileiras não
é uniforme. A experiência levada a cabo no município de Santos, a mais paradigmática de todas, se inspirou
nitidamente na reforma italiana. Em outras, como na de Angra dos Reis ou de Porto Alegre, a influência italiana se
mescla seja à “psicoterapia institucional” francesa, seja a um ideário sanitarista propriamente brasileiro. As
experiências mais localizadas do Rio de Janeiro e de São Paulo têm enfoques diferenciados e peculiares. Sobre as
diferentes vertentes da reforma psiquiátrica ver, entre outros, Teixeira (1993) e Venâncio (1993); sobre as
experiências brasileiras ver Leal (1994), Amarantes (1995) e artigos no Cadernos do IPUB n.4.
Cadernos do IPUB n° 8; 19S

sujeito biológico é o legítimo representante do todo poderoso sujeito da razão, capaz


de controlar de forma racional e científica os comportamentos bizarros e inadequados.
Ao mesmo tempo representa uma espécie de redescoberta, ou revalorização da diferença
através da biologia (da neuroquímica e da genética), o que implica a adoção de um
determinismo biológico que impõe fronteiras e limites à igualdade.
O “sujeito cidadão” da psiquiatria “militante” sustenta-se na afirmação de um
ideal de livre arbítrio a ser conquistado. A autonomia do sujeito aparece aí como
questão crucial - desdobrando-se em autonomia propriamente política (ou cívica) e
autonomia social (enfatizando-se o trabalho como via privilegiada de autonomização do
sujeito). Uma concepção implícita de igualdade baseada num substrato moral comum a
todos os seres humanos sustenta o ideal de livre-arbítrio.
O “sujeito da singularidade”, por seu turno, coloca em cheque a própria noção de
livre-arbítrio, já que é um sujeito que desconhece suas motivações e vive na ficção de
ser senhor de seus atos. A diferença aí se transforma em diferença individual (ou
singularidade). Há aí uma ênfase no que distingue um ser humano do outro em
detrimento do que é comum ao ser humano de um modo geral.
A apresentação desses três “sujeitos”, baseada nas linhas de tensão internas à
psiquiatria moderna, é necessariamente esquemática, já que as três posições são bem
mais matizadas que isso e, sobretudo, há sobreposições, composições e alianças que
permitem um certo trânsito entre elas. Resolvemos mostrá-las despidas de suas
contradições e matizes, como “tipos ideais”, com o intuito de chamar a atenção para os
paradoxos que cercam a construção da concepção moderna de pessoa — centrados,
sobretudo, em tomo das polaridades igualdade/diferença e liberdade (livre-arbítrio)
/determinismo. A partir dos três “tipos ideais” procederemos a uma reconstituição do
que seria uma gênese da concepção moderna de pessoa, que, do nosso ponto de vista,
está longe de ser unitária ou isenta de contradições, tomando as polaridades já citadas
como movimentos que se sucedem no tempo, cada um surgindo como reação ao
movimento precedente sem apagá-lo de todo

O SUJEITO CIDADÃO

O que estamos chamando de “sujeito cidadão” se constitui paulatinamente a partir


sobretudo do Renascimento e da Reforma, atingindo, porém, toda sua glória no século
XVIII culminando com a potente afirmação da igualdade e da liberdade pela Revolução
Francesa. A literatura em tomo desse tema nos mostra como a cidadania se constrói em
conjunto com o racionalismo que, desde o Renascimento, vai paulatinamente
produzindo o que mais tarde se reconhecerá como o pensamento científico. É a razão
que demole as concepções tradicionais sobre o mundo, alicerçadas numa visão religiosa
e totalizante. É a razão de Estado que comanda o funcionamento racional de um estado
que se desprende de injunções éticas vinculadas à religião e de lealdades a grupos e a
famílias.
Lembro que a concepção moderna de sociedade envolve a idéia de uma
“associação”, isto é, a junção de indivíduos que devem ter o mesmo valor - livres e
iguais - e que transferem parte de sua liberdade para a esfera política, para as
instituições encarregadas de governá-los. Indivíduos desvinculados das lealdades
tradicionais (à família, à linhagem, à terra etc.). A autonomização da esfera política

12
Os Três sujeitos da Psiquiatria

(autonomização exatamente da totalidade social formada por estas lealdades


tradicionais) é correlata ao surgimento do indivíduo enquanto categoria central do
pensamento ocidental. Indivíduo que se livra das teias que o prendem à tradição, para se
submeter a um poder centralizado na figura do Estado.4
Esse sujeito-cidadão - indivíduo autônomo, livre e igual - é, ao mesmo tempo, o
“homem natural” redescoberto. Ao se libertar o sujeito das contingências e injunções
que lhes são impostas pelas lealdades e obrigações ditadas pela tradição emerge o ser
humano tal como ele é em sua verdadeira natureza. Surge, desse modo, uma concepção
universalizante de ser humano, que privilegia o que é comum a todos os homens, o que
os une numa mesma espécie natural. O indivíduo livre e igual é, portanto, parte da
natureza. Uma natureza, porém, desencantada, desligada de qualquer cosmologia
religiosa, cujas leis de funcionamento são, por isso, passíveis de serem compreendidas e
desvendadas pela razão humana. E esta que detem as luzes capazes de iluminar o
funcionamento do mundo. O indivíduo/cidadão é sujeito da razão em dois sentidos -
porque está, enquanto homem natural, submetido (sujeito à) razão (pois é compreensível
através dela) e ao mesmo tempo sujeita o mundo (e a si próprio) através da razão. Esta,
na verdade, será a base de sua autonomia. Livre-arbítrio e razão se interligam de forma
inextricável.

O SUJEITO BIOLÓGICO

Se o século XVIII europeu assistiu a afirmação da igualdade e da liberdade do


cidadão, o século XIX se apressou por diferenciar os iguais e limitar o livre arbítrio.
Rapidamente, a partir da afirmação de uma série de diferenças ancoradas na biologia (e,
portanto, na natureza), a concepção de cidadania se restringe e se matiza, frustrando
possíveis pretensões universalizantes e niveladoras. Trata-se, entretanto, de uma outra
diferença, diversa daquela que demarcava fronteiras no universo tradicional. Uma
diferença que se quer ancorada na biologia, e portanto, na natureza, e que, deste modo,
não contradiz a concepção jurídica e política do cidadão como ser autônomo, livre e
igual, dono de direitos e deveres universais. A diferença de que se trata agora não é
socialmente fundamentada, ou seja, nada tem a ver com as antigas teias de lealdades e
obrigações que ao mesmo tempo opunham e relacionavam as pessoas. A sociedade de
contrato pressupõe, para seu funcionamento, sujeitos livres e iguais capazes de manter o
contrato. A diferença se constroi em outra seara, que não a jurídica e a política -
exatamente aquela seara que se supõe escapar do que é fundamentalmente o contrato
jurídico e político - o terreno da biologia e da natureza.
Coloca-se aí uma dualidade fundamental que vai comandar nossa visão de homem
e sociedade e que congrega diversos pares de opostos tais como: natureza versus cultura,
indivíduo versus sociedade, biológico versus social; estando o indivíduo do lado da
natureza e do biológico. O biológico/natural é o que delimita, impõe fronteiras ao
social/cultural, é o que escapa ao contrato (de natureza eminentemente jurídica e
política, isto é, voluntário) e, portanto, do livre-arbítrio. A uma concepção artificial e
voluntarista de sociedade - uma sociedade que é uma associação, um contrato entre
pares - corresponde uma concepção natural e pré-social de indivíduo, cuja natureza é

4Sobre o vínculo entre a autonomização da esfera política e a concepção modema de indivíduo ver Dumont (1983) e
Viveiros de Castro e Araújo (1977).

13
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

domesticada pelo contrato, mas não inteiramente.


E importante ressaltar o duplo papel da concepção de natureza: num primeiro
momento, sendo caracterizada pela razão e por ser racional, afirma a igualdade do
gênero humano. Num segundo momento, sendo o que é prévio ou escapa ao contrato,
aponta uma desigualdade pré-social, biológica/natural. Esta, se acaba tendo importantes
consequências jurídicas e políticas, não encontra sua justificativa neste plano, mas num
outro, mais fundamental, mais básico, lá onde o livre-arbítrio, a vontade, encontram seu
limite. Um plano que escapa ao social e não lhe diz respeito. Através dessa dicotomia
foi possível manter a ficção de um estado liberal formado por cidadãos autônomos,
livres e iguais em seus direitos e deveres, mantendo, ao mesmo tempo, e com o mesmo
raciocínio, a idéia de que determinados sujeitos são mais ou menos cidadãos que outros,
têm menos ou mais direitos e deveres, alguns deles podendo ter sua autonomia reduzida,
porque passíveis de tratamento especial ou tutela. O que possibilita a convivência dessa
dupla noção - de uma cidadania universal e de uma cidadania retrita e qualificada - é a
oposição natureza/cultura que duplica a oposição indivíduo/sociedade. Ou seja, é a
concepção de um indivíduo pré-social e de uma sociedade contratual e, portanto,
artificial.
É verdade que alguma coisa na própria concepção de natureza havia mudado.
Como nos mostra Richard Sennett,5 o século XVIII europeu convive com uma
concepção ainda transcendente de natureza. Esta, embora concebida de forma
mecanicista e dessacralizada, implicava uma ordenação natural das coisas e dos seres
apreensível pela razão, indicando a persistência de uma ordem transcendente. Os
fenômenos tinham seu lugar na ordem da Natureza, mas a Natureza transcendia os
fenômenos. Era essa crença - em uma Ordem Natural superior a qualquer arranjo social
dado, independente das convenções e particularidades de qualquer sociedade - que
sustentava uma concepção universalizante e igualitária de ser humano. A idéia de
natureza do século XVIII justificava, portanto, a junção entre liberdade e igualdade.
Segundo o mesmo autor, esse resto de transcendência se despedaça no século
XIX. quando o processo de secularização produz uma imanência radical: a Ordem da
Natureza é substituída por uma “ordenação dos fenômenos naturais”. Não se trata mais
de remeter o significado dos fenômenos a algum tipo de ordenação que os transcenda,
ao contrário, o significado é imanente às coisas e aos fenômenos. Embora,
evidentemente, não se abandone a idéia de que existem leis a serem descobertas acerca
do funcionamento do mundo (e da alma humana), o caminho está aberto para o
particular, a exceção, o desvio, e também para uma certa descrença na possibilidade de
uma iluminação absoluta dos mecanismos de funcionamento do universo através da
razão.
Se o século XVIII foi o século do mecanismo, não por acaso século seguinte
escolherá o organismo como metáfora favorita. Isto significou uma reação ao excessivo
atomismo e à fragmentação constitutivos da concepção mecanicista do mundo. A
metáfora do organismo contém uma idéia de totalidade, mas sobretudo de funções
diferentemente valoradas, ou seja, não apenas as diferentes partes de um organismo
desempenham funções diversas, como também essas funções, no que tange à
manutenção da vida, não são comparáveis, não têm o mesmo valor. Estão implicadas aí

5Cf. Sennet (1976).

14
Os Três sujeitos da Psiquiatria

as noções complementares de hierarquia e diferença.6


O que é e como se dá a afirmação da diferença no século XIX europeu?
Nesse momento, a comunicação entre as ciências da sociedade e a medicina é uma
via de mão dupla - de um lado as ciências sociais nascentes emprestam da medicina e da
biologia seu modelo; de outro, a medicina tem cada vez mais o que dizer acerca do que
era visto como distúrbio ou perturbação social. Vejamos como.
Conforme vimos, coube à mente oitocentista dar conta de um mundo social
profundamente injusto e desigual, que se baseava na concepção política e jurídica de
igualdade, devendo justificar a desigualdade sem colocar frontalmente em cheque essa
concepção. Isso foi possível através da disjunção de dois planos: o jurídico/político
propriamente dito, e o biológico/natural. O primeiro comprometido com a afirmação da
igualdade, o segundo com a descoberta da diferença, do desvio, do que era excessivo e
do que faltava. O plano jurídico-político vinculava-se à idéia de contrato social, isto é,
de sujeitos livres e iguais, livre contratantes. Suas leis, portanto, eram leis produzidas
pelo livre-arbítrio desse homem livre e igual, leis artificiais e convencionais. O plano
biológico/natural aponta para leis que estão para além do livre-arbítrio, que escapam à
vontade e a subordinam. Neste sentido, a lei biológico/natural encompassa e subordina a
lei artificial/convencional do contrato, ditando, desse modo, seus limites. Assim é que a
mulher não terá os mesmos direitos civis e políticos do homem devido à sua
desigualdade natural (excesso de sensibilidade em detrimento da razão, por exemplo). O
mesmo raciocínio foi aplicado aos povos não-brancos, “primitivos”, e, com a teoria da
degenerescência, chegou aos marginais de todo o tipo, aos desvalidos, aos que faziam
parte das camadas mais pobres da população.
A medicina e as ciências básicas que lhe servem de suporte funcionaram como
operadores da diferença e delimitadores da igualdade jurídica e política. Os dois planos,
embora operando em níveis distintos de realidade, se comunicam, uma vez que o plano
biológico/natural se pretende encompassador, isto é, pretende subordinar o outro.
Temos, como testemunha dessa comunicação, toda a discussão em tomo da
antropologia criminal, a disputa entre direito positivo e direito clássico, as questões que
fizeram surgir a psiquiatria forense e a medicina legal - importantes campos de
intersecção entre direito e medicina, entre a lei jurídica e a norma biológica. Onde se
discutiu e se discute até hoje exatamente os limites do livre arbítrio e, por conseqüencia,
da responsabilidade penal.

O SUJEITO DA SINGULARIDADE

Essa relação entre lei e norma, entre aparato jurídico e aparato médico-psiquiátrico
não implica, porém, apenas uma separação entre os que são donos de livre arbítrio,
senhores de si, daqueles que o perderam ou nunca o possuiram. Não se trata somente de
uma partilha entre indivíduos diferentes. Trata-se também, e isso é muito importante, de
uma partilha no interior do próprio indivíduo.
Falei antes da mulher e do “primitivo”. Todos “diferentes” e por isso, passíveis de

6 Cf Duarte, (1993: 69).


7Sobre a teoria da degeneraçào ver Carrara (1996: 53-68)e Serpa Jr. (1997 e artigo neste volume).
8Sobre isso ver Carrara (1988 e 1992) e Fry (1985).

15
Cadernos do IPUB n°8, 1997

tutela. É preciso, porém, lembrar um outro personagem que, desafiando as regras do


contrato, impõe-se como o alienado por excelência: o louco. Recorrendo a Robert Castel
percebemos que este colocava um problema para a concepção contratual de sociedade (e
para a concepção clássica de direito). Se nesta, a privação da liberdade só é consentida
nos casos de punição, em que houve alguma infração à lei, o que fazer com o louco, que
não necessariamente infringe a lei, mas coloca um problema para a manutenção da
ordem no espaço social? A exclusão social do louco, necessária socialmente, deixa de
ser uma questão jurídica (porque não pode sê-lo), para transformar-se em assunto
médico. O alienismo, surgindo para cobrir uma lacuna do estado de direito burguês,
aponta para a possibilidade do indivíduo alienado de si mesmo. Mais do que isso,
através da concepção de monomania, afirma a possibilidade de uma “loucura
raciocinante”, isto é, de um indivíduo que é capaz de atos de loucura embora mantenha
sua capacidade de raciocínio. O louco deixa, assim, de ser o outro da razão, passando a
habitar como virtualidade o interior de cada um.10
O sujeito-cidadão se vê, desse modo, frente a uma alienação potencial, a uma parte
de si mesmo que potencialmente lhe escapa, e o obriga a conviver com a idéia de que
todo o seu comportamento de homem razoável não é suficiente para impedir a
existência de um “lado sombrio” em seu interior.
Se a psiquiatria dá início ao destronamento da razão no campo do próprio saber
científico, no campo literário e filosófico o “lado sombrio”, a vertigem da sensibilidade
exacerbada, a exaltação das paixões, vão ser celebrados pelo romantismo. A reação
romântica ao iluminismo, ao mesmo tempo em que propunha uma concepção viva e
englobante de natureza em oposição ao mecanicismo racionalista, contrapunha à idéia
do indivíduo enquanto cidadão livre e igual uma noção quase mística de um eu como
sede do absoluto. Ao triunfo da razão opunha o domínio da experiência subjetiva. A
ênfase na incomparabilidade de cada indivíduo, em sua uniqueness, se expressava na
mitificação do gênio e do artista. Uniqueness em vez de igualidade, a liberdade se
desloca para um plano puramente interior, e traz consigo a noção de um eu fugidio,
enigmático, que desafia as tentativas de enquadramento e interpretação. Um eu alienado
de si.11
Longe estamos do sujeito da razão, reinando impávido em um mundo ordenado e
cientificamente conhecível. O que se vê, ao contrário, é um sujeito alienado de si,
buscando se orientar num mundo cuja ordenação se mostra cada vez mais difícil.
Vemos, portanto, a (re)introdução da diferença por dois caminhos: de um lado
uma diferenciação que visa atingir determinadas categorias de pessoas (que se
distinguem por atributos visiveis e socialmente relevantes, como a etnia, o gênero, o
pertencimento de classe). De outro, uma diferenciação que poderiamos classificar de
psicológica, e que diz respeito ao indivíduo, independente de categoria social. Ambas se

9Cf. Castel (1978).


loSobre isso ver Foucault (1987:509-522). Ver ainda Gauchet e Swain (1980), segundo os quais a própria idéia de
tratamento moral do alienismo nascente só é possível através da afirmação de que há “um resto de razão na loucura"
Ou seja, a partilha absoluta entre razão e desrazao que marcara o mundo europeu no século anterior deixa de onerar'
o que significa o surgimento de uma nova concepção de sujeito: “Celui toujours en arrière de lui
inépuisablement en reserve vis-à-vts de lui-meme, espece de speaateur immuablement distant par un côié mair
indivisiblement soudé à lui-méme et en particulter immaítrisablement engagé dans son corpr te[ esl en ' " ,
susceptible de devenir étranger à lui-méme -tout en restam présent à cette étrangeté advenue ” (p 339) Esse
argumento é também desenvolvido em Swain (1994), vp fcsse
"Sobre o individualismo da uniqueness e conseqüente produção do eu como enigma,
enigma. ver Simmel (1950)

16
Os Três sujeitos da Psiquiatria

apoiam, sem dúvida, na autonomização do plano jurídico-político. Têm, porém, destinos


diferentes. Enquanto o primeiro tipo - a diferenciação de categorias de pessoas -
enfrenta uma oposição crescente, tendendo a perder legitimidade face ao imperativo
crescente da igualdade e concomitante afirmação da unidade do gênero humano, o
segundo tipo - a afirmação da singularidade do indivíduo - conhece, ao contrário, uma
aceitação cada vez maior. No primeiro caso o plano jurídico/político teve força
suficiente para se contrapor à dominação do plano natural/biológico. Isto é, o imperativo
da igualdade entrou em contradição com o tipo de diferença engendrado. O embate se
deu (e ainda se dá) no plano político e jurídico, com efeitos .importantes sobre o terreno
do natural/biológico.
No segundo caso, da singularização do indivíduo, não parece ter havido
contradição. Ao contrário, a autonomização dos dois planos (no caso, o jurídico/político
e o psicológico) parece ter funcionado (e funcionar até hoje) bastante bem. O indivíduo
da lei - dono de livre arbítrio, autonomia e senhor de seus atos - é ao mesmo tempo o
sujeito da norma - que não sabe de si, depende dos especialistas e pode não ser
responsável pelo que faz. As duas concepções não são vistas ou experimentadas seja
como contraditórias, seja como excludentes.
Assim é que o fato de admitirmos, por exemplo, a existência do inconsciente
como instância psíquica e, consequentemente, da nossa ignorância acerca de nós
mesmos, não diminui nossa crença em nossa responsabilidade jurídica e política
enquanto cidadãos. Somos bem capazes de admitir a singularidade do sujeito enquanto
indivíduo e a igualdade enquanto cidadão.
Essa convivência, como já afirmei anteriormente, se explica pela autonomização
das duas esferas, que acaba produzindo e se apoiando em uma série de oposições e
dualidades, como público/privado, objetivo/subjetivo, sendo a mais básica a que opõe
indivíduo e sociedade. No campo dos saberes científicos, produziu-se uma concomitante
separação de domínios, com ciências que se ocupam da sociedade, e outras que se
ocupam do indivíduo (e sua interioridade). Uma partilha que nada mais faz que refletir a
concepção de um mundo fragmentado, repartido em esferas e campos autônomos de
vida e saber, deixando para trás a visão totalizante e encompassadora do universo
tradicional, que hoje viveriamos como asfixiante e perturbadora. Ao libertar-se das
cadeias que o prendiam ao dogma religioso, às obrigações para com a linhagem, ao
nome de família, à terra e ao ofício de seus ancestrais, ao abrir mão de uma ordenação
que lhe era superior, o determinava e dava sentido à sua existência, o indivíduo
moderno, ao mesmo tempo em que pode se afirmar enquanto cidadão livre e igual, viu-
se fadado a buscar dentro de si mesmo as certezas que passaram a faltar. O eu concebido
como sede da significação, como núcleo irradiador de sentido, passa a ser objeto de
constante interrogação e escrutínio. Em vez de lugar da certeza, transforma-se em
enigma a ser decifrado. Neste sentido o eu como enigma nada mais é que a contrapartida
do sujeito-cidadão.

PSIQUIATRIA E NOÇÃO DE PESSOA

Voltemos à psiquiatria e a seu XTV Congresso Brasileiro. Como especificamos na


introdução, o modo como foi organizado aponta para as linhas de tensão que atravessam
a psiquiatria moderna e para os três principais grupos que disputam entre si a hegemonia

17
Cadernos do IPUB n°8, 1997

no interior do campo. Como também afirmamos, as fronteiras entre os grupos não são
rígidas e há negociações e passagens entre eles. É visível, por exemplo, a maior
possibilidade de comunicação e o efetivo intercâmbio entre a psiquiatria “militante’ e a
‘clínica da psicose” psicanalítica, ambas unidas em uma acirrada crítica à “psiquiatria
biológica”. Ao mesmo tempo, a ascensão desta última como força hegemônica no
campo é inegável. Isso aponta para rearranjos no que tange à concepção moderna de
pessoa e das polaridades que a constituem: diferença/igualdade; livre-arbítrio
(liberdade)/ determinismo.
Essa espécie de aliança entre a psiquiatria “militante” e a “clínica da psicose”—
apesar de sujeita a rupturas, disputas e rearranjos que refletem tanto discordancias
ideológicas irredutíveis quanto necessidades políticas ocasionais — não é uma novidade
no campo. A hegemonia da psicanálise na psiquiatria anglo-saxã do pós-guerra coincide
com as primeiras críticas ao modelo asilar tradicional e com o surgimento de novas
propostas - mais liberalizantes e humanizadoras - no tratamento do louco. Do mesmo
modo Robert Castel nos mostra que, na França, a reforma psiquiátrica dos anos 60
conviveu de forma pacífica (e muitas vezes francamente amigável) com a psicanálise
que se difundia no campo assistencial psiquiátrico. Estudos sobre a reforma psiquiátrica
brasileira mostram a impossibilidade de se discutir esse movimento sem levar em conta
a difusão da psicanálise no meio psiquiátrico - em grande parte dos casos foram os
próprios psicanalistas os responsáveis pela introdução de reformas liberalizantes no seio
da instituição psiquiátrica.12 Por um lado, pode-se falar em uma afinidade no próprio
modo de conceber o sujeito, pois, como falamos mais acima, “o eu como enigma nada
mais é que a contrapartida do sujeito-cidadão”. A luta política propriamente dita pode
perfeitamente se articular a uma luta política “interior”, por uma maior liberdade de
existência, de comportamento, de escolhas etc. Uma interpretação libertária da
psicanálise coadunava-se à perfeição com o movimento libertário do pós-guerra. Com o
passar do tempo assistiu-se a uma interpenetração entre as duas esferas que mais acima
indiquei como separadas: as que delimitam as polaridades indivíduo/sociedade,
público/privado, objetivo/subjetivo. A idéia de que uma mudança interna ao próprio
indivíduo deve preceder qualquer pretensão de mudança social mais profunda tomou-se
a base de todo o movimento da contracultura - é necessária uma mudança interna que
passa pela rejeição de valores, paradigmas e comportamentos burgueses ou tradicionais.
A liberdade sexual, a negação do modelo tradicional de família, o hedonismo em
oposição à ética do trabalho, o culto às drogas que “expandiam a consciência”, são
aspectos da “revolução interior” propugnada pela contracultura.13 A crítica generalizada
a qualquer tipo de opressão toma o manicômio e as práticas psiquiátricas repressivas
como alvos privilegiados.14 “Revolução interior” e reforma psiquiátrica se encontram,
tendo a psicanálise, senão como fio condutor, pelo menos como possibilidade de
costura.
Os tempos mudaram, e com eles a psiquiatria. A psicanálise deixou de ser
hegemônica no campo. A partir dos anos 80, e sobretudo nos anos 90, assiste-se a uma
inegável ascensão da psiquiatria chamada biológica enquanto modelo hegemônico. Este
não é um fato isolado. Faz parte, na verdade, de uma espécie de “re-biologização” de
temas e discussões antes circunscritos ao campo do embate político. Referido-nos, por

,2Ver sobre isso Teixeira (1993).


13 Sobre a ligação entre contracultura e difusão da psicanálise ver Russo (1987).
l4Cf. Castel (1987).

18
Os Três sujeitos da Psiquiatria

exemplo, às discussões em tomo da diferença de gênero e da diferença de “raças”. Outro


exemplo é o projeto “genoma humano”, que promete desvendar os segredos contidos
nas espirais de DNA do ser humano - segredos relativos não apenas às doenças que
acometem os homens, como também a seus comportamentos de um modo geral. Os
estudos de neuroimagem permitem que se chegue a um detalhamento preciso do
funcionamento cerebral, distinguindo o modo de pensar de homens e mulheres, crianças
e adultos, chineses e americanos, etc. No velho embate entre nurture e nature esta
última parece estar ganhando terreno. Embora se admita o papel facilitador ou
neutraiizador do ambiente, as pessoas parecem aliviadas ao descobrir a origem genética,
ou neuroquímica, de algum comportamento perturbador, que passa a ser rotulado de
“distúrbio” ou “síndrome”. Preguiça, tensão pré-menstrual, mau-humor, desatenção,
hiperatividade, tudo pode ser passível de um diagnóstico e de uma terapêutica
medicamentosa. No campo específico da psiquiatria, marcado desde seu surgimento
pela tensão entre um modelo “moral/psicológico” e um modelo “fisicalizante”, assiste-
se ao retomo do “objetivismo médico”.15 O que significa essa virada em termos das
tensões e paradoxos que já apontamos na noção moderna de pessoa?
Inicialmente, parece indicar um esgotamento da idéia do eu como enigma, e,
consequentemente, do processo de interiorização e de busca de auto-deciframento. O
enigma a ser decifrado diz respeito ao funcionamento fisico-químico do corpo. E, apesar
da necessidade de algum grau de introspecção para responder às perguntas de uma
anamnese padronizada, esse deciframento se dá através do olhar objetivo do médico - e
será tanto mais confiável quanto mais se apoiar em exames laboratoriais, radiológicos
etc. Abandona-se na mesma medida a idéia de alienação - tanto no sentido de uma
alienação de si constitutiva do humano (o que é um correlato do “eu como enigma”),
quanto do louco alienado de seus direitos, de sua cidadania, de sua autonomia.
Assiste-se a um banimento da desrazão, ou da irracionalidade. Todo
comportamento desarrazoado reflete uma desíunção neuroquímica ou genética passível
de compreensão racional e de um tratamento baseado nessa compreensão. A concepção
romântica da loucura como portadora de verdade - seja de uma verdade do sujeito, seja
de uma verdade metafísica acerca do ser humano - deixa de fazer sentido.
É possível que a pacífica complementaridade que apontamos acima - entre o “eu
como enigma” e o sujeito-cidadão ou entre a singularidade absoluta no piano individual
e a igualdade completa no plano jurídico-político - esteja com seus dias contados. E que
o sem-sentido da loucura - metáfora impar para indicar os limites da vontade humana —
se dissolva face ao instrumental tecnológico pronto a desvendá-la. Triunfo completo do
sujeito senhor-de-si da razão iluminista? Cedo para afirmar. Até porque os paradoxos e
tensões que cercam a noção moderna de pessoa não são passíveis de resolução pela
psiquiatria. Esta é um dos saberes eruditos sobre a pessoa existentes no mundo moderno.
Convive com outros, eruditos ou populares, que expressam modos diferenciados de
conjugação entre os temas básicos que compõem a noção moderna de pessoa. Assim é
que o triunfo de uma vertente biológica da psiquiatria convive com um “re-
encantamento do mundo”, um intenso revival de concepções místicas ou esotéricas da
pessoa e do universo,16 em completa negação do objetivismo e do fisicalismo que
sustentam a nova hegemonia psiquiátrica. Isso apenas mostra que o gosto moderno pelo

,5Cf. Castel, ibid.


l6Sobre isso ver Soares (1989), Russo (1993), Cardoso Jr.(1997), entre outros

19
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

paradoxo não cessa de surpreender. E que, muito possivelmente, os verdadeiros embates


em tomo da definição moderna de pessoa há muito deixaram de circular no espaço
restrito das ciências “psi”, transbordando para espaços “paralelos” ou “alternativos” que
aliam a total falta de prestígio acadêmico a um inegável poder de atribuir sentido à vida
das pessoas.

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21
DEGENERESCÊNCIA: QUEDA, PROGRESSO E
EVOLUCIONISMO*

Octavio Domont de Serpa Júnior

Não é incomum encontrarmos o tema da degenerescência associado com o


evolucionismo e até, mais precisamente, com odarwinismo. É preciso examinar, no
entanto, como se pode associar as duas coisas. Se caracterizamos a teoria da
degenerescência em função de sua primeira elaboração na psiquiatria, ou seja, a partir
dos trabalhos de Morei, esta associação revela-se implausível. Isto porque o Traité des
dégénérescences, de Morei, foi publicado em 1857, ao passo que Darwin tomou
pública a sua teoria da evolução através da apresentação que Lyell e Hooker fizeram de
dois textos seus na "Linnean Society"1 de Londres, em 1858, e da publicação, no ano
seguinte, de A Origem das Espécies", cuja primeira tradução francesa data de 1862.
Contudo, seria muito simples, pior, muito simplista, resolver esta questão através
de uma mera impossibilidade cronológica. Isto na medida em que, tanto no que
concerne a idéia de degenerescência quanto no que concerne a teoria da evolução de
Darwin, todo um conjunto de imagens, representações, sistemas e teorias já se
desenvolvia, de uma maneira ora mais clara, ora mais subterrânea, ora mais sistemática,
ora mais difusa, antes de cada elemento deste conjunto ser organizado de forma mais
abrangente, totalizante. Pretendo, portanto, apresentar quais eram os problemas, debates,
transformações, que estavam em jogo no conhecimento acerca da vida e dos seres vivos,
na contemporaneidade da constituição da degenerescência tal como apresentada por
Morei. Isto nos permitirá descrevê-la menos como o resultado de uma incompatibilidade
de datas - no que se refere ao evolucionismo - do que como decorrente de determinadas
escolhas teóricas.
Dupeu (1976) apresenta, esquematicamente, o estudo dos seres vivos e da vida,
nesta época, que poderiamos situar entre a segunda metade, quiçá último quarto, do
século XVIII e a metade do século XIX, como estando dividido em quatro posições
dadas pela combinatória, dois a dois, dos elementos de dois pares de oposição:
fixismo/transformismo e unidade de plano/diversidade de plano da criação. A posição
mais arcaica, que era claramente hegemônica até metade do século XVIII, é a que
afirma o fixismo e a unidade radical do plano de criação. É possível afirmar que até
então, a Terra e os seres vivos não têm história, a sucessão das gerações nada mais é do
que a repetição monótona, do que já fora dado, de uma vez por todas, no momento da
Criação, de acordo com o relato bíblico. Esta posição vai pouco a pouco sofrer uma
série de remanejamentos. Assim, poderemos ter uma posição que afirma o fixismo ao
mesmo tempo que acentua a diversidade de plano, propondo a existência de séries
múltiplas e irredutíveis em tomo das quais se organizam os seres vivos. Ou ainda, pelo
contrário, uma posição que afirma o transformismo, a possibilidade de surgirem novas

Este texto é uma versão, com adaptações e pequenas modificações das


” N“ •*». d.
Doutor em Psiquiatria (UFRJ). Membro da Associação Casa Verde Ê errn’nisn,°

Uma parte
enviado do seuantes
um pouco Ensaio 1844
paradeAsa - naumverdade,
Gray, umamericano.
botanista esboço da "Origem
" d esPécies - e uma cana que ele havia
Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo

espécies, mas sempre de acordo com um plano unitário de criação, teleológico, uma
"escala dos seres". E fmalmente a posição, que será a do darwinismo, que enfatiza a
diversidade, dispersão e descontinuidade dos seres vivos, ao mesmo tempo que a
transformação das espécies em função de variações contingentes, selecionadas
posteriormente pelo meio. Proponho que examinemos com mais detalhes como se
deram estes remanejamentos, para finalmente podermos situar, em relação a eles, a
constituição da teoria da degenerescência.
Para que a posição flxista e criacionista, tão fortemente arraigada e sustentada pela
influência da religião católica, fosse abalada, a conjugação de toda uma série de fatores
foi necessária. Alguns de ordem mais geral, referentes aos movimentos históricos mais
amplos, tais como a Reforma, as grandes navegações, a redescoberta do pensamento dos
clássicos, o desenvolvimento das filosofias de Bacon, Leibniz e Descartes, a
constituição das ciências físicas, com Galileu e Copémico, etc. Mas, como eu disse,
tudo isso é muito amplo, muito abrangente e se dá num intervalo de tempo alargado, de
mais ou menos duzentos anos, se tomarmos como limite final do intervalo a virada do
século XVIII para o século XIX. Neste ambiente cultural já aparecem trabalhos como o
de Fontenelle, no final do século XVII, sobre a "pluralidade dos mundos", onde ele
propõe uma tese sobre a origem do mundo e sobre a existência de seres vivos em outros
planetas. Décadas depois, já no século XVIII, Benoit de Maillet, apoiando-se em
estudos geológicos, propõe que o ambiente físico da Terra mudou no decorrer de sua
história, em função de avanços e recuos do mar, e que, consequentemente, também
mudaram os seres vivos que nela habitam, os seres terrestres sendo considerados como
antigos seres aquáticos transformados. Ao mesmo tempo, as ciências físicas, de
Copémico e Galileu até Newton e Laplace, elaboram leis gerais, como por exemplo as
leis de Newton, que governam todos os fenômenos físicos, terrenos e celestes. Assim, se
os planetas movem-se em suas órbitas de uma forma que é previsível por estas leis,
toma-se pensável a idéia de que o Criador não precisa intervir a todo momento para
assegurar o bom andamento do universo. O Criador é a causa primeira mas a partir do
momento inicial e fundamental da criação do mundo, este é regido por "causas
secundárias", as leis da física.
Mais próximo do momento histórico em que o fixismo começa efetivamente a ser
abalado, e numa relação mais estreita com este fato, nós temos, já no século XVIII, as
mudanças que a geologia experimenta, no conhecimento acerca das transformações
pelas quais passou a Terra, bem como acerca da idade da Terra. Concebe-se, desde
então, que a maior parte dos estratos geológicos são depósitos sedimentares, cujas
espessuras pode variar de 3000 a 30000 metros, que se formam pouco a pouco e que
para atingirem estas dimensões exigiríam um período de tempo muito maior do que os
4000 anos de idade que a narrativa bíblica atribui à Terra.2 Por outro lado, em função
das viagens ao Novo Mundo, os limites da biogeografia se alargaram enormemente.
Novas espécies animais e vegetais, que não existiam na Europa, são descritas. Por que,
então, a fauna do mundo não é uniforme, se todos os animais, salvos do dilúvio por
Noé, espalharam-se a partir de sua arca? A questão da extinção e da transformação de
espécies de seres vivos também é levantada pela descoberta de fósseis. Na verdade, a

2 Relata Bowler (1989) que no século XVII o Arcebispo James Usher tentou calcular a data da criação, retrocedendo
dos patriarcas até Adão e fixou como o marco da criação o ano de 4004 A.C. . John Lightfoot, vice-reitor da
Universidade de Cambridge, em busca de maior precisão, determinou, na mesma época, que o dia e hora exatos da
criação do homem eram nove horas da manhã do Domingo, 23 de outubro de 4004 A.C..

23
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

existência destes já era conhecida de longa data mas eles eram, até o século XVIII,
explicados como tendo crescido a partir das rochas, como um cristal ou mineral, fosse
como o resultado de uma vis plastica da natureza, capaz de gerar qualquer tipo de forma
nas rochas, fosse como resultado de uma "geração espontânea", que teve lugar numa
rocha. Na medida em que se admitiu que os fósseis seriam de organismos que teriam
vivido anteriormente mas cuja espécie não existia mais sobre a Terra, a primeira
tentativa de conservar a versão bíblica, fixista e criacionista, foi a de interpretar os
fósseis como sendo vestígios de espécies que pereceram no dilúvio. No entanto, estes
fósseis não só não correspondiam aos animais existentes naquele momento, como
também eles se distribuíam através de camadas geológicas. Ou seja, a cada estrato
correspondiam uma fauna e uma flora, fósseis, peculiares, o que parecia indicar que não
só a superfície do planeta como as características de seus habitantes teriam passado por
importantes transformações no decorrer do tempo.
Assim, é ao século XVIII que é habitualmente creditada a emergência do
pensamento transformista, oposto ao fixismo tão bem encarnado na mesma época por
Linneu. Como representantes da corrente transformista são relacionados desde o já
mencionado Benoit de Maillet, que publicou o seu "Taliamed" em 1748, passando por
Robinet, Charles Bonnet e Diderot, até chegar a Maupertuis e Buffon. De qualquer
forma, Jacob (1970) procura diferenciar o que se passa neste momento daquilo que ele
considera como o verdadeiro transformismo. Na sua opinião, o que começava a se
pensar então era na possibilidade de transformação, que ele distingue do transformismo,
entendido este último como "...um impulso vindo dos próprios seres e que os conduz
pouco a pouco do simples ao complexo através das vicissitudes da Terra (...) o
transformismo constitui uma teoria causai da aparição das espécies, da sua variedade, do
seu parentesco" (pp.149-150).
Neste processo ao longo do qual a concepção fixista vai sendo abalada e pouco a
pouco deslocada da posição de hegemonia pela concepção transformista, alguns nomes
costumam ser mais lembrados, tais como Buffon, Lamarck, Cuvier, Geoffroy Saint-
Hilaire, Lyell, culminando com Darwin. Pretendo apresentar, então, de forma super
sintética, os principais pontos das proposições destes autores, para que possamos dispor
de um panorama geral deste debate, o que permitirá uma maior clareza acerca da
posição da teoria da degenerescência neste contexto. Mas antes de passar aos autores,
gostaria de fazer uma pequena ressalva sobre a questão da "atribuição" de autoria.
Assim, com Foucault (1994, T.II), quero ressaltar que o que está em jogo, por trás dos
nomes citados, quaisquer que sejam eles, não é a pretensão de apresentar a totalidade da
obra ou do pensamento de um autor. Procedemos sempre a uma escolha. Privilegiamos
um texto, ou uma passagem de texto, ou no caso, um comentário, e deixamos outros de
lado. O que procuro aqui, não é o exame autoral de uma obra precisamente delimitada
mas antes identificar as transformações pelas quais passa o conhecimento em uma dada
época histórica e que podem ser salientadas de uma maneira fecunda em determinados
textos de determinados autores.
Grosso modo, pode-se dizer que o naturalismo no século XVIII foi dominado por
Linneu e por Buffon. Carl Linneu, sueco de nascimento e falecido em 1778, legou aos
botânicos e zoólogos a nomenclatura latina das espécies vivas, ainda em uso. Esta
nomenclatura era aplicada na sistemática classificatória que ele concebeu, de maneira
lógica e um tanto artificial, abarcando todos os seres vivos. Apesar de sua opção
reconhecidamente fixista, Mayr (1989) considera que Linneu lançou as bases de uma

24
Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo

classificação hierárquica natural, que pode ser relacionada com o conceito de


descendência a partir de ancestrais comuns, uma concepção transformista. No entanto, é
a Buffon que uma incipiente inclinação transformista é atribuída. Nascido no mesmo
ano que Linneu (1707) e falecido dez anos depois dele, Georges Louis Leclerc, Conde
de Buffon, após um período na Inglaterra, onde estudou matemática, física e fisiologia
das plantas, retoma à França, onde é nomeado intendente do "Jardin du Roi" (atual
"Jardin des Plantes"). Dedica-se então a escrever uma "História Natural", projeto que
rendeu trinta e cinco volumes publicados entre 1749 e 1788 - ano de sua morte - e mais
nove volumes póstumos. Pode-se constatar, através da sequência dos volumes de sua
"História Natural", a evolução do seu pensamento. Assim, nos três primeiros volumes
de sua obra, de acordo com Mayr (1989}, Buffon estava bastante marcado pelo
pensamento de Newton, de quem havia traduzido alguns textos para o francês, e
enfatizava as noções de movimento e continuidade, de maneira que não se interessava
por entidades descontínuas e estáticas, como as espécies, gêneros e famílias da
taxonomia de Linneu. Para ele a única coisa que existia eram os indivíduos. Mas ele
logo mudará de opinião sobre a existência de espécies fixas e delimitadas, as quais são
por ele definidas em função do critério de interfecundidade, ou seja, o cruzamento entre
membros de uma mesma espécie é capaz de produzir uma descendência fértil. Este
ponto é importante porque sustenta a idéia de que seria impossível a descendência das
espécies a partir de uma origem comum. Assim, no pensamento de Buffon, não havia
lugar para o aparecimento de novas espécies. A sua hipótese para o surgimento das
espécies envolvia a combinação de moléculas orgânicas, que formavam como que o
protótipo de cada espécie, contendo em sua configuração uma "fôrma interior" que
assegura a reprodução da espécie idêntica a si mesma através das gerações. As
transformações que podem ocorrer são devidas a ação do meio, como indica o seu
conceito de degeneração? Só que, se estas transformações são passíveis de ocorrer, elas
acontecem sempre nos limites estritos da espécie, garantidas pela "fôrma interior". Em
relação à espécie humana, desde o princípio, ele destacava radicalmente o Homem do
restante dos animais, em função da sua capacidade de pensar. Autor de uma obra vasta e
cambiante, o pensamento de Buffon é passível, portanto, de mais de uma interpretação.
Mayr (op.cit.) identifica em Buffon pelo menos a abertura de possibilidades para um
pensamento transformista, em função de suas contribuições à biogeografia, de sua
proposição de uma nova cronologia da Terra, e de sua ênfase na "unidade do tipo", que
para Mayr cria as condições para o estudo da anatomia comparada. Jacob (op.cit.), por
outro lado, toma Buffon como um exemplo típico da sua distinção, já citada, entre
transformismo e transformação. Assim, se de qualquer forma seria abusivo atribuir a
Buffon a origem do transformismo, ele não é, por outro lado, um autor passível de uma
interpretação unívoca, ficando a cargo do intérprete que aspecto de sua obra será
ressaltado e com que fins. Isto é importante na medida em que Buffon é um dos
naturalistas mais citados por Morei e em relação ao qual Morei procura definir a sua
noção de degenerescência.
O Transformismo, no sentido em que Jacob (op.cit.) procura caracterizar, pode ser
claramente reconhecido, pela primeira vez, em Lamarck. Jean-Baptiste Pierre Antoine

3Ao contrário da degenerescência de Morei, que era entendida como um "desvio doentio de um tipo primitivo" da
espécie humana, transmissível hereditariamente à descendência e com agravamento progressivo no decorrer das
gerações, a degeneração de Buffon é entendida, por Morei, como um "desvio natural do tipo primitivo", devido às
condições climáticas e de nutrição, podendo retomar, sob outras condições, ao tipo originário.

25
Cadernos do IPUB n°8, 1997

de Monet, cavaleiro de Lamarck, nasceu em uma família nobre do norte da França em


1744. Após uma passagem pelo exército, na juventude, ele se interessa pela história
natural, em particular pela botânica e escreve uma Flora da França, em quatro volumes.
Já em Paris, vai ser escolhido por Buffon para ser o preceptor e acompanhante de
viagem de seu filho. Pouco depois, Buffon consegue para Lamarck um posto no Museu
de História Natural de Paris. Em 1793 é nomeado professor encarregado do ensino
acerca dos "animais inferiores", ou invertebrados, como virão a ser por ele
denominados. Em 1799, no Discurso de abertura do seu curso anual, Lamarck ainda
professava uma convicção fixista. No ano seguinte, também no Discurso inaugural, ele
já começava a enunciar as suas novas convicções, que serão formuladas na sua obra
mais importante, a "Philosophie Zoologique", de 1809. Lamarck justificava a
necessidade de sua nova teoria em função de dois conjuntos de fatos. O primeiro seria a
presença de uma série gradativa de "aperfeiçoamentos" que conduziríam dos animais
mais simples até os mais complexos, numa série praticamente linear culminando no
homem. O segundo seria a "espantosa" diversidade dos seres vivos. Lamarck pensava,
portanto, que existia uma mudança evolutiva, no sentido de um aumento do nível de
complexidade dos seres ao longo de uma escala linear progressiva, os seres mais
complexos sendo formados a partir dos mais simples. Dois eram os mecanismos
postulados por Lamarck como estando na base destas mudanças evolutivas. O primeiro
seria uma tendência, existente em todos os seres e proveniente do "Autor Supremo de
todas as coisas", para adquirir sempre mais complexidade. Já o segundo mecanismo
corresponde a capacidade dos organismos para reagirem às condições e mudanças do
ambiente.4Estes dois mecanismos estavam, por sua vez, ancorados em duas leis, a do
uso e de desuso, ou, em outras palavras, uma parte do corpo pode se desenvolver ou
atrofiar em função do maior ou menor uso, e a da herança dos caracteres adquiridos,
que Lamarck não se preocupava em explicar, tão evidente parecia este fato para ele e
todos os seus contemporâneos, e que que previa que caracteres físicos adquiridos no
decorrer da vida eram transmitidos, pela via da hereditariedade, à descendência. Jacob
(op.cit.) enfatiza o papel que o tempo passa a ter na organização do mundo vivo a partir
da concepção de Lamarck. E isto em função da cooperação de três fatores: sucessão,
duração e aperfeiçoamento de organização. Além disso, deve-se asinalar que a variação,
a transformação, tem para Lamarck um valor necessariamente positivo. Ela conduz
sempre do mais simples para o mais complexo, do menos perfeito para o mais perfeito.
Não existem variações malogradas no seu sistema. Elas são bem sucedidas de antemão.
”A série de transformações só é pensada através do caráter contínuo do espaço. Por aí é
afastado todo caráter contingente na configuração do mundo vivo" (Jacob, op.cit.,
p.169). É por isso que Jacob (op.cit.) afirma que mesmo tendo proposto a descrição de
um transformismo generalizado, Lamarck permanece preso às representações do século
XVIII.
Assim, pode-se dizer que no início do século XIX, com Lamarck, temos uma
concepção que considera que os seres vivos não foram criados todos ao mesmo tempo e
desde sempre perfeitos e adequados a vida que vivem, mas que pelo contrário, surgiram
no decorrer do tempo, através da transformação do simples no complexo e respondendo

4 P «te segundo mecanismo que faz com que a série não seja completamente linear, como seria de se esoerar
ca enas de uma complexificação crescente. As respostas ao ambiente e a c^----- * que osK
nÇa. de cdevem
es^sempre em completa harmonia com o ambiente faz com que a série de Lamarck
" -~c'; apresente "ramificações”
localizadas.

26
Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo

a uma necessidade de perfeição e adaptação crescente. Esta concepção, no entanto,


conserva do século anterior, a noção de scala naturae, ou de série linear de progressão.
A estas características da formulação lamarckiana, Cuvier vai ser o correspondente
simétrico. Ou seja, ele defenderá ao mesmo tempo uma concepção fixista e a existência
de uma pluralidade de planos de organização, ou de séries.
Contemporâneo de Lamarck, Georges Cuvier foi muito respeitado sobretudo por
seus trabalhos em anatomia comparada e paleontologia, da qual é considerado o
fundador. Ele representa, ao olhar de hoje, uma espécie de paradoxo. Preso a teoria
fixista, ele acumula resultados e métodos que fariam da paleontologia uma sustentação
evidente para o evolucionismo. Ele demonstra que para cada camada geológica existe
uma fauna peculiar e que quanto mais profundo é um estrato, tanto mais distinta é a sua
fauna da atualmente existente. O reconhecimento da existência de formas de seres vivos
que não existem mais era acompanhado pela explicação através das catástrofes. Ou seja,
estas espécies teriam desaparecido após catástrofes naturais: vários dilúvios, terremotos,
erupções vulcânicas, etc. Embora Cuvier não tenha adotado claramente este ponto de
vista, seus sucessores não hesitaram em afirmar que após cada cataclisma, uma nova
Criação teria recomposto a fauna e a flora da Terra. Por outro lado, ele opõe-se
inequivocamente a idéia de uma scala naturae. Para ele, existem quatro ramos, e não
uma série única. E estes ramos são completamente autônomos e independentes uns dos
outros. Não é possível estabelecer qualquer gradação ou hierarquia entre eles. Não
existe gradação progressiva, ou seja, não se pode dizer que dois tipos de sêres se
sucedem e que entre eles existe uma diferença constante, que é a diferença que deve
existir entre todos os graus da escala, que em princípio devem estar ocupados. Como
escreve Foucault (op.cit.), "...existe em Cuvier uma crítica de três temas: o da passagem,
o da gradação e o da unidade de série" (p.51)./Por isso mesmo, Cuvier considerava
insustentável a concepção evolucionista de Lamarck. Em primeiro lugar, em função do.
seu ponto de vista que afirmava a descontinuidade, no lugar da série única progressiva.
Mas também em decorrência de sua convicção de que o mundo e todos os organismos
são harmoniosamente concebidos. Cada espécie teria sido criada pela vontade divina e a
ela teria sido destinado um lugar na economia da natureza, do qual ela não podería se
afastar, nem se aperfeiçoar, pois cada espécie já é perfeita desde o princípio, em relação
ao seu ambiente natural. Só certas combinações são possíveis e estas já estão todas
realizadas na natureza. As mudanças no ambiente e as mudanças de hábito decorrentes,
só podem, na sua opinião, produzir mudanças superficiais nas espécies. Estas variações
inessenciais possíveis podem ser também aleatórias e contingentes, "...não é preciso que
uma forma, que uma condição, seja necessária; me parece mesmo que frequentemente
ela não tem necessidade de ser útil para se realizar: basta que seja possível(...)" (Cuvier,
apud Jacob, op.cit., p.l71). Isto é radicalmente distinto de Lamarck, para quem a idéia
de variação era necessariamente ligada a idéia de utilidade, necessidade, progresso. Em
contrapartida, para Cuvier, mudanças nos órgãos que correspondem às principais
funções - sistema nervoso, circulatório, respiratório, digestivo, etc. - seriam
impensáveis. E, no seu sistema, estes órgãos e funções teriam uma configuração estável
nas respectivas classes e ramificações sucessivas. Foi em tomo destas questões que se
organizou a querela entre Cuvier, por um lado, e Lamarck e, sobretudo, Geoffroy Saint-
Hilaire, por outro. E se alguém pode ser declarado vencedor deste embate intelectual,
este alguém foi Cuvier, e consequentemente o ponto de vista fixista mas também o da

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Cadernos do IPUB n°8, 1997

pluralidade de séries.5
Enquanto isso, do outro lado da Mancha, estes problemas eram considerados,
sobretudo, sob o prisma da Teologia Natural: a natureza é o produto, acabado e pouco
suscetível de ser melhorado, da sabedoria divina. A natureza é pura harmonia e
manifesta o desígnio de Deus. Não existe, portanto, maior homenagem ao Criador do
que dedicar-se ao estudo de suas obras. Além disso, uma outra característica das
ciências naturais na Grã-Bretanha era o predomínio da geologia sobre a história natural.
E neste campo travou-se um importante debate entre catastrofismo e uniformitarismo.
A concepção do catastrofismo corresponde ao ponto de vista de Cuvier para
explicar a extinção de espécies, tal como podia ser deduzida da presença dos fósseis.
Submetendo-se este ponto de vista à visada da teologia natural, chegou-se a uma
posição que contava com a existência de sucessivas catástrofes, a cada catástrofe
seguia-se uma nova criação, e cada nova criação representava um progresso em relação
a criação anterior, como se a sucessão de faunas representasse uma espécie de
"amadurecimento" do plano da Criação. Temos aí então uma versão do catastrofismo
que foi chamada progressismo, que associa ao catastrofismo uma reformulação
criacionista da scala naturae. Em contraposição ao catastrofismo, qualquer que seja a
sua versão, temos o uniformitarismo, cujo representante mais ilustre foi Charles Lyell.
De acordo com Mayr (op.cit.), a posição uniformitarista engloba um conjunto complexo
de teorias, dos quais tentarei destacar os principais pontos. Partindo de uma convicção
criacionista, o uniformitarismo, no entanto, no lugar de catástrofes, postulava que as
mesmas causas agiram - e agem ainda - através dos tempos geológicos e que a
intensidade das forças geológicas também sempre foi a mesma. O que podería acontecer
eram "constelações" variadas destas causas e forças em diferentes momentos da história
da Terra. O uniformitarismo coloca o fator tempo numa posição absolutamente
relevante e propõe que as mudanças que aconteceram - e acontecem - na superfície da
Terra se dão de forma lenta e gradual. Finalmente, este mundo submetido a "um regime
constante", não apresentava uma progressão rumo a um fim ou a uma forma definida.
Mayr (op.cit.) considera discutível a importância da influência de Lyell sobre
Darwin.6 Quanto a esta questão em particular, Bowler (1989) considera que Darwin
reteve, de Lyell, sobretudo a idéia de uma transformação contínua e gradual, embora o
uniformitarismo de Lyell não possa ser facilmente associado as idéias de transformação
e evolução. Isto porque o uniformitarismo trabalhava, na verdade, com a idéia de uma
Terra estável, na qual as diferentes transformações geológicas pelas quais a Terra
passava eram mutuamente compensatórias. Neste sentido, portanto, a visão catastrofista
era muito mais próxima de uma concepção da Terra como instável, sujeita a
transformações. De qualquer maneira, é inegável que Lyell introduz alguns pontos
importantes, que serão desenvolvidos, de uma maneira própria, dentro da teoria
darwiniana. A uma transformação do mundo e das espécies obedecendo a uma
teleologia do tipo scala naturae ou provocada por catástrofes eventuais, ele opunha um
mundo submetido a forças constantes, regulares, e transformando-se gradual e
contingentemente, no qual a extinção ou o aparecimento de novas espécies deve ser
esclarecido pela interrogação das relações destas espécies com as mudanças que estas
mesmas forças, que agem no presente, infligem ao ambiente.

debate e suas principais consequências epistemológicas, ver Foucault, 1987b e 1994, T.II.
5 Sobre este-----
6 Cf. Mayr, op.cit., pp.503-51o.

28
Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo

Pode-se dizer, então, que a esta altura dos acontecimentos, todas as peças que vão
ser reunidas por Darwin para montar a sua teoria, já haviam aparecido, de maneira
esparsa, isolada, figurando nos trabalhos de Lamarck, Cuvier, Lyell: transformação das
espécies, diversidade e pluralidade do plano de criação, contingência das variações,
relação da extinção e aparecimento das espécies com as transformações graduais pelas
quais passa o ambiente, etc. Com efeito, a teoria da darwiniana é muito menos o
resultado de uma revolução devida ao caráter individual de um gênio, do que a
culminância de um processo mais amplo de transformação cultural.

"Muitos conceitos diferentes de mudança natural têm sido, de fato, explorados


pelos cientistas em um momento ou outro, com um consenso emergindo
somente após um debate considerável acerca das alternativas. Geólogos
discordaram durante séculos acerca da natureza básica dos eventos que
modelaram a superfície da Terra, e a moderna teoria da deriva continental só
emergiu nas últimas poucas décadas. Biólogos também postularam um leque
abrangente de diferentes idéias acerca de como a vida pode ter evoluído. A
teoria Dprwinjqna da seleção natural é apenas uma destas possibilidades."
(Bowler, op.cit., p.8)

É uma destas posibilidades mas é a possibilidade que as reformulações e debates


que apresentei nos parágrafos pareciam conspirar para que começasse a se impor a partir
da segunda metade do século XIX. Como se sabe, boa parte das hipóteses de Darwin já
estavam presentes no seu Ensaio, de 1844. Partes deste, aliás, só vieram a público, em
1858, porque neste mesmo ano ele recebeu, de um desconhecido explorador inglês que
se encontrava na Malásia, Alffed Russel Wallace, um curto ensaio onde apareciam
várias hipóteses semelhantes às suas. Wallace queria saber a opinião de Darwin, que já
era então um naturalista respeitado, quanto a pertinência de publicar o seu trabalho. Foi
daí que Lyell e Hooker, que acompanhavam a elaboração do pensamento de Darwin,
decidiram apresentar os trabalhos de Darwin e Wallace numa sessão da Linnean
Society. Wallace, por sua vez, nunca procurou entrar numa querela de autoria intelectual
com Darwin, e como assinalam Drouin e Lenay (1990), quando publicou uma obra de
síntese sobre as suas teorias, a intitulou "O Darwinismo".
Resumidamente, até porque não é meu objetivo aqui detalhar os seus
pressupostos, para Darwin não existe a idéia de necessidade no mundo dos seres vivos,
não há nenhuma harmonia sobrenatural que imponha um tipo determinado de relação
entre os seres. É o império da contingência. Nenhum plano de Criação pré-concebido
capaz de apontar a direção e o sentido de uma scala naturae. No lugar de uma série
única, linear, e progressiva, a divergência, a diversificação e a dispersão. As variações,
contingentes, não obedecem, portanto, a nenhum desígnio, e são julgadas, a posteriori,
pelo meio ambiente. É a seleção natural. Por isso é possível dizer que não há nada de
necessário no mundo em que vivemos: tivessem sido outras as variações e as
transformações do ambiente, outro seria o mundo dos seres vivos, ou mesmo sequer
existiría vida. Darwin, aliás, raramente empregava o termo "evolução".7 Ele preferia

7 Bowler (op.cit.) e Gould (1977) indicam que, na verdade, o termo evolução aparece pela primeira vez, nas
discussões pertinentes às ciências da vida, no século XVIII, no contexto da posição pré-formacionista no debate
acerca da geração dos seres vivos. O pré-formacionismo postulava que o futuro ser vivo, objeto do processo de
geração, já está todo formado - no óvulo ou no espermatozóide, de acordo com o ovismo ou o animalculismo - mas é

29
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

falar de "descendência com modificação1’ ou de "modificação das espécies pela seleção


natural". Foi sobretudo Herbert Spencer quem difundiu a palavra evolução para
designar a transformação das espécies. Com efeito, ele emprega esta palavra para
designar uma mudança orgânica desde 1852, sistematizando o seu uso em 1862, quando
a define como "...uma mudança de uma homogeneidade incoerente, indefinida, para
uma heterogeneidade definida, coerente, através de contínuas diferenciações e
integrações" (apud Gould, 1977, p.31). Na verdade, ele tendia a confundir evolução do
indivíduo com evolução das espécies e com "evolução" social, tendo a palavra
evolução nestes casos sempre a conotação de um progresso rumo a um estado de maior
complexidade, pré-definido como 0 melhor. Para Spencer, a evolução tinha um caráter
inequivocamente metafísico.
Após este apanhado geral, fica mais fácil identificar as escolhas teóricas de Morei.
E sobretudo identificar como escolhas e não como 0 resultado de contingências do
calendário. Ressalta, então, que em meados do século XIX, as escolhas de Morei foram
resolutamente setecentistas. Criacionismo, Fixismo, Teleologia, Harmonia e
proeminência do Homem no plano da Criação. São estas as bases naturais da teoria da
degenerescência desenvolvida por Morei. Sua principal referência em história natural é
um nome do século XVIII, Buffon. Um autor que ele leu e cita diretamente, inúmeras
vezes no seu Traité des dégénérescences mas ao qual chegou através de Flourens, que
influencia a leitura que Morei vai fazer de Buffon e também de Cuvier. Flourens é um
daqueles discípulos de Cuvier que enfatizaram e radicalizaram o fixismo e o
criacionismo do mestre. Outra referência setecentista determinante em Morei é a noção,
de origem linneana, de "economia natural". A economia natural postula que os seres
vivos desenvolvem relações harmoniosas e necessárias entre si, reflexo de uma ordem
natural que expressa e assegura a finalidade de cada espécie no plano da Criação.
Estes pressupostos, dos quais se pode dizer que são antagônicos aos postulados da
teoria darwiniana, constroem a fisionomia da teoria da degenerescência na espécie
humana, de Morei. Na espécie, porque dado os postulados fixistas, a espécie não pode
nem se extinguir nem se transformar em outra coisa. E num quadro de vida governado
pela "economia natural", o processo degenerativo, atingindo ,0 homem, culminância do
trabalho do Criador e encarregado por este de aperfeiçoar o seu trabalho na Terra, na
direção do progresso, só pode ser necessariamente limitado, pelo obstáculo da
esterilidade, que, "coisa maravilhosa", impede a propagação indefinida da linhagem
degenerada. A interpretação teológica, teleológica, que Morei escolhe para o
entendimento do lugar do Homem na Natureza, não é entretanto, norteada apenas por
opções setecentistas, no domínio das ciências da vida e dos seres vivos. Ela resulta
também de sua adesão uma forma de reflexão acerca da sociedade e da história, muito
pregnante em sua época, a ideologia do progresso, adesão esta fortemente temperada
pela sua formação pessoal católica - foi educado em um seminário - e em particular pela
influência exercida sobre ele pelo pensamento de Buchez.
Mais do que um fato absoluto em sua natureza, o processo de degenerescência foi
pensado como um acontecimento relativo à noção de progresso. Pode-se mesmo dizer
que a degenerescência é como que o avesso do progresso, e neste sentido seria quase
impossível pensar uma coisa sem a outra. E isto tanto no caso de se pensar o progresso

—^7—-^ganhando visibilidade pelo crescimento, espessamento, desdobramento e solidificação de suas


formas É a este desenrolar das formas que Haller e Bonnet chamaram de evolução.
8C£ DrouineLenay, op.cit., pp.10-11.

30
Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo

como uma teleologia, um objetivo a ser atingido pela espécie humana, quanto no sentido
das transformações sociais, políticas e econômicas pelas quais já passa a sociedade
contemporânea ao aparecimento da teoria da degenerescência.

"...degenerescências, nome sob o qual eu pensava designar todas as variedades


doentias que me pareciam se afastar de um tipo normal trazendo em si próprio
as condições indispensáveis à continuidade do progresso na espécie." (Morei,
1857, p.341)

Martin (1983) apresenta, em linhas gerais, o contexto intelectual no qual a idéia de


progresso se impôs, como um destino da humanidade. Foi neste contexto que também se
constituiu a noção de degenerescência. A idéia de progresso, entendida como a
convicção de que a história tem uma direção e um sentido rumo a um objetivo, definido,
ou por uma finalidade divina ou pela Razão, é uma idéia relativamente recente. Mais
antiga é a concepção de um paraíso perdido ou de uma idade de ouro que ficou
definitivamente para trás. Ou seja, a perfeição permanecendo para sempre no passado. É
a partir do Renascimento que vai começar a se conceber uma historicidade distinta da
temporalidade cristalizada da narrativa bíblica. As recentes conquistas técnicas e
científicas autorizam a crença em um saber em transformação, em um devir da ciência.
E isto traria como consequências um aumento da potência da vida humana. A marcha do
saber como a garantia da marcha da humanidade. A história afirma-se pouco a pouco
como uma temporalidade que aponta para a acumulação paulatina de conhecimentos,
que permite conceber um futuro investido de significações positivas. É no século XVIII
que esta concepção de progresso da humanidade se estabelece, em todos os domínios de
atividade. Com exceção de Rousseau, que identifica o equivalente a idade de ouro no
estado natural primitivo e denuncia o efeito corruptor do progresso, os outros filósofos
desta mesma época, como Helvetius, Diderot, Voltaire, tem uma concepção otimista do
progresso. Pouco mais tarde, Hegel, em 1822, na sua Filosofia da História vai afirmar a
positividade da história e o seu vetor de perfectibilidade.
A história pensada como positividade vai implicar na idéia de um progresso social
que se realiza. Turgot postula que, apesar das guerras, a humanidade apresenta um
aperfeiçoamento lento mas contínuo no domínio dos costumes e das leis. Algumas
décadas mais tarde, Condorcet, imbuído dos ideais iluministas, sistematiza este
pensamento, associando o progresso ao desenvolvimento da razão e das ciências, que
devem ser difundidos por uma instrução pública. A humanidade cada vez mais instruída
aumentará o seu poder sobre a natureza e ampliará as suas possibilidades de felicidade.
O progresso deve, para isso, manifestar-se em três registros: destruição da desigualdade
entre as nações, desenvolvimento da igualdade entre os indivíduos de um mesmo povo,
aperfeiçoamento biológico do homem. O paraíso será aqui. E de Condorcet que emanam
as idéias básicas em tomo das quais vai se constituir o pensamento social e político
francês no século XIX. Mais notadamente o pensamento de Comte e Saint-Simon.
Para Comte, que tem Condorcet como "um pai espiritual", a história revela um
progresso baseado na evolução da inteligência. Sobre Saint-Simon e seus discípulos -
dentre os quais figurava Buchez - a influência de Condorcet se fará notar através da
ênfase nos temas dó intemacionalismo, socialismo e higienismo.
A crença no progresso, enquanto marcha contínua e não contingente, vai assumir,

31
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

no século XIX, o caráter de uma convicção bastante arraigada. Como testemuho, pode-
se transcrever trechos do verbete "Progresso" do "Larousse Universel", de 1866, citados
por Martin (op.cit.):

"A humanidade é perfectível e ela vai incessantemente do menos bem para o


melhor, da ignorância para a ciência, da barbárie para a civilização. Esta
idéia que a humanidade se torna a cada dia melhor e mais feliz é
particularmente cara ao nosso século. A fé na lei do progresso é a verdadeira
fé do nosso século.(...) A lei da perfectibilidade se manifesta tão visivelmente
que ninguém ousaria desconhecê-lo, os fatos falam. O homem desprende-se
das trevas da noite para se elevar gradualmente à luz.(..) O homem
encaminha-se lentamente para ajustiça." ( apud Martin, p.199)

Por outro lado, no entanto, como demonstra Foucault na "História da loucura na


idade clássica"9, desde meados do século XVIII, começa a se organizar uma nova
percepção social da loucura. Esta passa a ser vista como tendo aumentado os seus
poderes de devastação justamente em função dos progressos da civilização: "...o homem
toma-se frágil a medida em que se aperfeiçoa." (Foucault, op.cit., p.360) Desta forma,
pode-se dizer que é uma consciência da loucura que decorre de uma certa análise da
modernidade, ou seja, o temor que a irrupção da loucura suscita neste momento é um
temor contido numa certa moldura histórica e social. Como elemento central desta
análise, a noção de meio ou de "forças penetrantes", que envolve não só o ambiente
natural (clima, geografia, etc.) mas também, e sobretudo, as transformações impostas a
este pela civilização.

"Tornam-se "forças penetrantes" uma sociedade que não mais reprime os


desejos, uma religião que não mais regula o tempo e a imaginação, uma
civilização que não mais limita os desvios do pensamento e da sensibilidade."
(Foucault, op.cit., p.363)

Assim, da mesma forma e ao mesmo tempo em que o progresso se estabelecia


como o devir da humanidade, a loucura, inscreve-se como seu corolário negativo, o
outro lado do progresso: "...multiplicando as mediações, a civilização oferece
incessantemente ao homem novas possibilidades de alienar-se" (Foucault, op.cit.,
p.371).
Como se pode notar, portanto, se por um lado havia a crença no progresso da
humanidade, no sentido do seu aperfeiçoamento, e esta crença podia se justificar já em
funções de realizações presentes, por outro lado, também uma certa análise do presente
indicava que esta marcha progressiva rumo ao supremo bem da espécie humana deixava
um rastro de degradação, ou ao menos criava condições para que figuras da decadência
humana emergissem. Este exame do presente levava em conta não só estes temas
imaginários que citei acima mas também os resultados de enquetes populacionais, que
se faziam cada vez mais frequentes, e que descreviam as condições miseráveis das
populações camponesas e do operariado emergente: situação de moradia, regime de
trabalho, hábitos e costumes, consumo de bebidas alcoólicas, observância, ou não dos

9 Op.cit.. Ver especialmente parte III, capítulo 10.

32
Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo

ditames morais burgueses, tudo isso associado com medidas antropométricas,


conjugando-se para pintar um quadro no qual a decadência parecia evidente e em franca
contradição com a fé no progresso. É neste cenário, e tentando dar conta desta
contradição, que se constitui a teoria da degenerescência.

"...no estado que eu designo sob o nome de degenerescência, não se observa


esta propensão do indivíduo para retornar ao seu tipo normal, pela razão que a
degenerescência é um estado doentiamente constituído, e que o ser degenerado,
se ele é abandonado a ele mesmo, cai numa degradação progressiva. Ele
torna-se (e eu não temo repetir esta verdade) não somente incapaz deformar,
na humanidade, a cadeia de transmissibilidade de um progresso, mas ele é
ainda o maior obstáculo a este progresso, pelo seu contacto com a parte sã da
população.” (Morei, op.cit., p.6)

Como eu mencionei anteriormente, para que possamos compreender qual a base


da relação entre degenerescência e progresso, também é fundamental o exame da
influência do pensamento de Buchez sobre o trabalho de Morei.10
Philippe Buchez nasceu em 1796, filho de um republicano inspirado por Rousseau
e de uma católica devota. Ele estudou medicina em Paris, tendo se formado em 1824.
No período de sua formação interessou-se pelos trabalhos de Lamarck, Cuvier e
Geoffroy Saint-Hilaire. Durante a Restauração envolveu-se com a política, tendo sido
um dos fundadores do movimento dos Carbonários na França, que tramavam a
derrubada da monarquia. Foi preso diversas vezes até que em meados dos anos 1820
abandona as atividades políticas clandestinas para dedicar-se apenas à escrita, inspirado
pelas idéias de Saint-Simon, de uma "fisiologia social". Ao lado disso era adepto do
catolicismo, numa versão "progressista", democrática, liberal, igualitária, que não
agradava particularmente ao clero oficial. A sua concepção de história, tingida pelos
matizes do catolicismo, era a de que a história científica deveria ensinar mais do que a
salvação individual, deveria subordinar os efêmeros acontecimentos particulares à uma
interpretação englobante, mostrando a parte de cada unidade no todo orgânico. O
avanço social poderia ser entendido como do arranjo das duas forças histórico-sociais: a
força circular e a força serial, ou, em outras palavras, repetição estruturada e
desenvolvimento. Além disso, havia lugar no esquema de Buchez para o retrocesso, a
decadência, assim como para a Queda, no sentido bíblico: "A degradação física de Adão
como resultado da sua desobediência não está totalmente além da explicação científica"
(apud Pick, 1989, p.64). Ainda assim, nem o pecado original, nem a hipótese de um
retrocesso acarretavam em Buchez qualquer pessimismo social, político ou filosófico.
Esta atitude otimista vai se transformar, ao ponto de ele incorporar a idéia de
degenerescência no seu pensamento social e político, após a sua acidentada passagem
pela vida pública, na sequência dos acontecimentos que o conduziram à Assembléia
legislativa depois da revolução de 1848.
De volta à medicina em 1851, Buchez logo desempenhou um importante papel na

10 Para uma apresentação resumida do pensamento de Buchez, ver Pick, D. - Faces of Degeneration: A European
Disorder, C.1848-C.1918, 1989, sobretudo parte I, Capítulo 2.
11 Esta força é constantemente citada por Morei. Ela postula que "os fenômenos se sucedem de tal sorte que parecem
se comandar e se gerar uns aos outros."

33
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

fundação da "Société Médico-Philosophique", em 1852, na medida em que ele exercia


uma grande liderança e contava com discípulos como Cerise, Trélat e Morei, mas
sobretudo porque ele representava uma certa ortodoxia política e religiosa que a
nascente associação tinha o interesse de exibir para o recém instalado Segundo Império.
Como já foi mencionado, a passagem de Morei, na sua juventude, pelo seminário
de Saint-Dié, não fói sem consequências nas suas opções teóricas futuras. Já vimos a sua
adesão aos postulados criacionistas e fixistas, a sua crença no pecado original, num tipo
perfeito criado por Deus e decaído em seguida. Liégeois (1991) aponta um
Escolasticismo eclético, reinterpretado a luz de Descartes, como sendo uma '‘teologia
oculta" que anima as concepções de Morei. A sua passagem pelo seminário encerrou-se,
no entanto, de forma tempestuosa: Morei foi expulso do seminário devido as suas
simpatias pelo catolicismo de Lamennais, que pregava a separação da Igreja e do Estado
e um catolicismo liberal e democrático. E vai ser justamente esta versão do catolicismo
que ele vai encontrar em Buchez e no pequeno círculo de amigos que este liderava, e ao
qual Morei se juntou, para com eles discutir religião, filosofia e política. Buchez vai
desempenhar um papel importantíssimo na carreira de Morei. Vai ser por sua influência
que Morei será nomeado para o seu primeiro posto de médico-chefe, em Maréville, e
vai ser ele que se encarregará de apresentar à "S.M.P." os seus dois principais livros, o
Traité des dégénérescences e o Traité des maladies mentales. Mas a sua importância
não se restringe a isso. É a presença dos pontos de vista de Buchez na elaboração da
teoria da degenerescência que permite dar conta da aparente contradição que existe no
interior de uma época que acreditava simultaneamente no progresso e na decadência.
Para Buchez o homem tem um papel social, designado na criação, para cumprir
sobre a Terra, e que encontra no respeito às prescrições da lei moral o seu critério de
verdade. No homem, o organismo animal é um mecanismo submetido às finalidades da
alma, cujas propriedades são a unidade, a identidade, a liberdade, a espontaneidade, a
responsabilidade e a consciência. A humanidade do homem decorre da dominação que a
alma exerce sobre o organismo. Quando esta relação é invertida, o homem é menos do
que o animal, porque ele sai de sua função, enquanto o animal ainda desempenha a
dele.12 Sintetizando, poderia dizer que a essência do "tipo primitivo" postulado por
Morei na sua definição da degenerescência é a aceitação da lei moral, a convicção do
dever. O aspecto moral subjuga o físico. E qual é a função do homem, da qual ele é
afastado pelo processo de degenerescência? Morei, citando Buchez, nos aponta a
resposta:

"...esta definição que quer que o homem seja uma função, em outros termos,
que ele seja um espírito criado para agir como força livre e inteligente, e ao
qual Deus consagrou um organismo, a fim de que ele cooperasse livremente
com a obra da criação. (...) não é no estudo exclusivo da ação destes agentes
fisicos sobre o organismo que nós encontraremos a solução do problema que
nos ocupa, e nós devemos, necessariamente, enfatizar a parte da influência
exercida sobre os fenômenos da vida orgânica pelo objetivo intelectual e moral
que o homem se propõe a atingir. (Morei, op.cit., p.325, grifos do autor, para
marcar as citações de Buchez)

12 Cf. Zaloszic, 1976.

34
Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo

Esta passagem indica com toda a clareza que, para Buchez e para Morei, o criador
dotou o ser humano da função de continuar, na Terra, o trabalho da criação,
aperfeiçoando-o no sentido do seu progresso. O progresso aqui aparece
inequivocamente como o resultado de uma teleologia divina que emprega o homem
como o seu mais bem acabado instrumento terreno. Esta posição demonstra claramente
que só se pode falar em evolucionismo, no contexto da degenerescência de Morei,
entendendo-o como relacionado à ideologia do progresso e ao lugar proeminente do
Homem no plano da criação. O que é contrário a posição darwiniana, para a qual as
transformações por que passa a natureza resultam de variações aleatórias julgadas a
posteriori por um ambiente cambiante, processo que não prevê nenhum lugar especial
para o ser humano, este também resultado dos acasos do tempo e da história da vida na
Terra. Além disso, por sua ênfase no aspecto moral da função humana, a passagem
acima citada ilustra todo o poder da idéia de degenerescência como um transdutor de
significados físicos e morais.
Com relação a esta função do Homem sobre a Terra, o processo de
degenerescência aparece como o seu mais consistente obstáculo. "...A degenerescência é
o desvio doentio de um tipo normal primitivo’, ora, o progresso, que é o objetivo e a vida
da humanidade, é incompatível com uma tal situação” (Morei, op.cit., p.361, grifo do
autor). Assim, se o progresso é pensado como um objetivo inelutável, divinamente
fixado, a ser atingido pela humanidade, aqueles dentre os homens que demonstram não
serem capazes de colaborar com esta missão, só podem ser pensados como vítimas de
uma segunda Queda, como elementos que se distanciam do tipo primitivo normal da
humanidade. O degenerado o é porque tomou-se incapaz de exercer a função do homem
sobre a Terra, ou seja, ele é pensado com referência a um progresso que deveria se
produzir. Por outro lado, este progresso, indicado por Deus como o destino do homem
neste mundo, se ele não acontece plenamente ou parece ser seguidamente desmentido ou
ameaçado pelos fatos, isto se deve à degenerescência na espécie humana. Destaca-se
assim, portanto, o quanto estas duas noções, tão caras ao século XIX, e aparentemente
tão antagônicas, estão extremamente intrincadas. O exame desta relação íntima das duas
noções, degenerescência e progresso, ocupa uma grande parte da apresentação que
Buchez faz do livro de Morei à "S.M.P.", indicando o quanto ela não era fortuita, mas
antes, necessária.

"Na minha opinião, é à filosofia da história que devemos a definição rigorosa e


por conseguinte a posição da questão das degenerescências da espécie
humana. Em geral, nós só possuímos uma idéia nitidamente quando nós temos
ao mesmo tempo a idéia diretamente contrária, ou sua antinomia, como diriam
os alemães. Nós podemos então defini-las e de algum modo limitá-las uma pela
outra. Assim, nós só temos a percepção clara da degenerescência do indivíduo
e da espécie na humanidade adquirindo a da sua progressividade. A idéia de
perfectibilidade define a de degradação pela sua própria oposição. ” (Buchez,
1857, pp.457-458)

Apesar disso tudo, são insistentes as tentativas de se relacionar a teoria da


degenerescência com Darwin e o evolucionismo. O panorama que apresentei até agora
permite que se compreenda que que a relação entre Darwin e Morei é implausível e que
evolucionismo, neste contexto preciso, só pode ser entendido nos termos da ideologia

35
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

do progresso. Entretanto, não é de todo descabido relacionarmos Darwin com a teoria da


degenerescência, num outro contexto. Se Darwin e o evolucionismo podem, de alguma
forma, ser relacionados com a teoria da degenerescência, será preciso esperar o final do
século XIX e a versão de Magnan e discípulos - Féré, Déjerine, Legrain - da noção de
degenerescência.
E possível localizar em torno da obra de Valentin Magnan um segundo momento
privilegiado de efervescência em tomo da noção de degenerescência. Isto deve-se em
grande parte ao ensino clínico ministrado por Magnan, em Sainte-Anne, onde era
médico-chefe, e que era muito frequentado, e a sua prolífica produção escrita, publicada
em diferentes periódicos. No entanto, os trinta anos que separam Morei de Magnan não
foram inócuos, é claro. Alguns importantes remanejamentos no panorama científico e
intelectual, neste período, vão necessariamente refletir-se na versão de degenerescência
que será desenvolvida por Magnan.
Uma primeira transformação diz respeito à difusão e assimilação do darwinismo
no cenário intelectual francês. Desde a primeira tradução francesa da "Origem das
espécies", que data de 1862, o pensamento de Darwin enfrentou grande resistência por
parte dos naturalistas franceses, principalmente de Robin e Flourens. Apesar disso, em
1875, o verbete "darwinismo" é introduzido simultaneamente no dicionário da
Academia francesa e na Enciclopédia das ciências médicas. Neste mesmo ano as teses
de Darwin começam a ser ensinadas no Museu de História Natural, na Sorbonne e na
Escola de Antropologia de Paris. Finalmente, em 1878, a Academia de Ciência acolhe
favoravelmente a candidatura de Darwin. Pode-se dizer, portanto, que na década de
1880, o darwinismo já tinha sido assimilado pela cultura francesa. Mas não sem
misturas. Desde 1870, desenvolvia-se uma ressurgência do pensamento lamarckiano, de
modo que muito frequentemente a assimilação de Darwin se deu via Lamarck, ou seja,
Darwin foi lido e interpretado de forma a confirmar ou completar a teoria lamarckista.
Na verdade, como afirma Martin (1983), "...as teses darwinistas nunca foram
integralmente aceitas em nenhuma disciplina, mas cada uma desenvolveu a sua leitura e
utilização própria do darwinismo, de acordo com a sua ideologia particular e com o seu
paradigma pré-existente" (p.229). Assim, por exemplo, os pressupostos da economia
natural, de uma ordem teleológica na natureza, apontando para o progresso,
incompatíveis com os princípios darwinianos de acaso, variação cega e seleção natural,
são, por uma espécie de mágica, confirmados por estes mesmos princípios antagônicos.
A seleção natural passa a ser entendida não como um processo que julga variações
casuais mas como um mecanismo orientado por uma finalidade, que através da
sobrevivência dos mais aptos e eliminação dos menos adaptados, caminha no sentido de
um progresso biológico contínuo. O darwinismo é usado, então, como caução científica
para a ideologia do progresso, como indica claramente esta passagem de Ribot: "Era
preciso substituir uma concepção subjetiva, hipotética do progresso por uma doutrina
cósmica, objetiva, científica" (Ribot, 1882, apud Martin, op.cit., p.232).
No entanto, é importante frisar que a importação do modelo evolucionista para a
psicologia e psicopatologia, realizada sobretudo por Ribot e Féré, se faz sobretudo a
partir de Spencer, e não de Darwin. Spencer, alguns anos antes da publicação da
"Origem das espécies", já havia concebido uma organização evolutiva do psiquismo De
acordo com a sua concepção, as associações que se criam em um indivíduo exposto a
situações repetitivas são hereditárias e originam o instinto; a inteligência e a memória
originam-se secundariamente a partir daquele. Assim, as fimções mais simples dão

36
Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo

origem às funções mais complexas. De qualquer forma, de acordo com Martin (op.cit.),
será a posterior difusão do darwinismo que condicionará a aceitação favorável das teses
de Spencer, que tiveram uma recepção reservada quando do seu surgimento em 1855.
As idéias de Spencer serão introduzidas na França por Taine e, sobretudo, por Ribot. No
que concerne psicopatologia, suas idéias serão para ela transportadas através de Jackson
que concebe a estruturação e funcionamento do sistema nervoso, através da filogênese e
da ontogênese, de maneira evolutiva, as doenças mentais sendo entendidas como
desestruturação, ou, em outras palavras, como o caminho inverso do processo evolutivo.
Outra transformação importante neste período refere-se a teoria de Weismann,
publicada em 1883, que prevê que as células germinativas, portadoras dos caracteres
hereditários, pertencem a uma linhagem totalmente independente da linhagem das
células somáticas. Esta concepção representa um duro golpe na concepção quase
dogmática da herança dos caracteres adquiridos. Como era de se esperar, o papel da
hereditariedade mórbida, em geral, e na degenerescência, em particular, tende a ser
questionado, embora ainda em escala reduzida. Para Ribot e Féré, o papel da
hereditariedade, sobretudo sob a forma da hereditariedade dessemelhante, na patologia
mental e nervosa, segue sendo fundamental.
Além disso, os resultados obtidos pela embriologia e teratologia experimentais,
deslocando o interesse da transmisão de caracteres hereditários para o processo de
geração intra-uterina, e a influência sobre esta das ações do meio, resumidas na idéia de
nutrição, contribuirão para gerar discussões acerca da identidade hereditário/degenerado.
De acordo com Genil-Perrin (1913), a primeira vez que Magnan abordou a
questão da degenerescência foi em 1882, quando ele publicou as suas "Leçons sur la
Dipsomanie". Mas na verdade, a concepção de Magnan sobre a degenerescência, ou
melhor, sobre o degenerado13, começa a se sistematizar nas "Recherches sur les
centres nerveux", cuja a segunda parte da segunda série é consagrada aos "hereditários
degenerados", e nas "Leçons Cliniques sur les maladies mentales" (1887), que contém
uma série de conferências sobre os "hereditários degenerados". Mas é no livro escrito
em co-autoria com o seu antigo aluno Legrain, "Les dégénérés" (1895) que os pontos
de vista de Magnan são apresentados na sua forma mais sistemática e definitiva.
Recusando a "definição antropológica do degenerado" que é dada por Morei14,
Magnan se propõe a ir adiante.15 E define a degenerescência da seguinte maneira :

13 É interessante notar que em Magnan a ênfase desloca-se da "degenerescência", como um processo abrangente,
insidioso, cósmico, verdadeiro espectro do mal, para a figura concreta do degenerado, com as suas características
físicas e mentais peculiares, que o distinguem dos outros seres humanos.
14 Se Magnan recusa a definição moreliana, nem por isso ele faz menos questão de demonstrar seu reconhecimento a
Morei, procurando ressaltar que este introduziu o conceito de degenerescência, a dimensão etiológica na classificação
das doenças mentais e pôde destacar o papel da hereditariedade na série causai da degenerescência e das diferentes
formas de loucura: "É de Morei, na verdade, o mérito de ter assinalado a transformação das espécies pela
hereditariedade, fenômeno patológico em virtude do qual os descendentes não apresentam mais, ao cabo de um certo
número de gerações, os mesmos atributos que os ascendentes mas novos atributos físicos e intelectuais fixos,
imutáveis, que os diferenciam do tipo comum da espécie e que dele fazem novos sêres que ele qualifica de
degenerados^...). Esta concepção tomou uma forma tão luminosa no espírito de Morei que ele logo descreveu no seu
tratado das doenças mentais (1860) um novo grupo de loucura sob o nome de alienações hereditárias, grupo muito
vasto, o mais vasto de sua classificação" (Magnan & Legrain, op.cit., pp.12-13, grifos dos autores).
15 "Nós mostraremos (...) os pontos fracos da doutrina de Morei, sempre conservando o seu princípio, ao qual nos
alinhamos; nós a completaremos e a modificaremos nos detalhes" (Magnan & Legrain, op.cit., p. 17).

37
*

Cadernos do IPUB n°8, 1997 & I


"A degenerescência é o estado patológico do ser que, em comparação com os
seus geradores mais imediatos, é constitucionalmente diminuído na sua
resistência psico-flsica e só realiza incompletamente as condições biológicas
da luta hereditária pela vida.^sta diminuição, que se traduz por estigmas
permanentes, é essencialmente progressiva, salvo regeneração intercorrente;
quando esta não acontece, culmina mais ou menos rapidamente na aniquilação
da espécie." (Magnan & Legrain, 1895, p. 79)

Magnan procura caracterizar a degenerescência como "...um estado patológico e


não um um estado regressivo, uma anomalia reversiva..." (Magnan & Legrain, op.cit.,
p.74, grifos dos autores). A idéia do tipo perfeito original moreliano é descartada como
inconcebível cientificamente. Para Magnan, a "...perfectibilidade é uma qualidade de
todo ser que evolui normalmente"(Magnan & Legrain, op.cit., p.75). Assim, a perfeição
deve ser procurada não na origem, mas no fim, desde que nenhum obstáculo se
interponha à marcha do progresso na sua direção. Nesta marcha, as duas funções
fundamentais são a nutrição e a reprodução. Logo, o mais perfeito é aquele que melhor
responde a esta dupla exigência de se conservar e conservar a sua espécie. Neste
contexto, então, a degenerescência deve ser compreendida como o movimento de "...um
estado mais perfeito para um estado menos perfeito, este aqui sendo gerado por
qualquer causa suscetível de contrariar o duplo movimento natural do ser no sentido de
sua própria conservação e a da sua espécie" (Magnan & Legrain, op.cit., p.76, grifo dos
autores). Mas este recuo do mais para o menos perfeito não é entendido como um
movimento simplesmente regressivo ou reversivo, porque neste caso, mesmo que ainda
se tratasse de um recuo, seria de um estado mais "evoluído" para outro menos
"evoluído", mais ainda assim "normal", no sentido de poder voltar a se aperfeiçoar. "Isto
não seria mais do que um retardo no sentido da evolução. Não é, em todo o caso, de
jeito nenhum a criação de um tipo mórbido que, se é menos perfeito como o regressivo,
não possui mais em si mesmo os meios de se regenerar" (Magnan & Legrain, op.cit.,
p.76). Este "tipo mórbido" é o que resulta do "recuo" próprio à degenerescência. As
causas da degenerescência são diversas e variadas e, bem de acordo com a idéia corrente
de que a degenerescência era uma espécie de reverso da civilização, cada época traz
consigo seu repertório de causas: "...elas são um complemento quase obrigatório do
movimento de progressão." (Magnan & Legrain, op.cit., pp.79-80) No entanto, o
produto degenerado quase não varia nas suas características, qualquer que seja a sua
causa.
O livro de Magnan e Legrain, que de certa forma apresenta uma versão sistemática
e definitiva das posições de Magnan acerca da degenerescência, foi precedido em alguns
anos por uma discussão na "S.M.P." sobre os "signos físicos intelectuais e morais das
loucuras hereditárias", discussão que contribuirá para organizar os pontos de vista de
Magnan. Assim, "Les dégénérés", bem como outras publicações de Magnan posteriores
a este debate, são em larga medida moldadas pelas críticas feitas as suas concepções e a
elas procuram responder. Esta discussão na "S.M.P." foi desencadeada por uma
comunicação feita pelo próprio Magnan, em janeiro de 1885, sobre as "perversões
sexuais", onde ele apresenta o ^seu famoso esquema "anátomo-funcional" para o
entendimento do ".desequilíbrio". Apesar das críticas e do ceticismo de alguns a

16 Na concepção de Magnan, o desequilíbrio destaca-se como um condição definidora do degenerado Ele refere
destruição hipotética do equilíbrio entre todas as funções cerebrais.Este traço essencial seguirá seu a
curso na

38
I i ’
f Degenerescência: queda, progresso e evolucionismo
I
posição de Magnan sai triunfante, mesnjo se éle tem fazer algumas concessões aos
seus críticos. * • (
Sintetizando, pode-se dizer que encontramos em Magnan uma apropriação do
vocabulário e dos temas do darwinismo, reinterpretados em função da persistente
ideologia do progresso. Basta reportar-se a própria definição que Magnan dá para a
degenerescência para que este procedimento intelectual tome-se evidente. Além disso,
procurando ater-se a uma perspectiva naturalista iluminada pelo positivismo, Magnan
rompe todos os laços com qualquer perspectiva metafísica, o que era um traço marcante
da concepção de Morei. Assim, Magnan procura ancorar o seu discurso não só no
evolucionismo mas neste na medida em que é transposto para o entendimento do
sistema nervoso central. Daí a sua definição do degenerado como um desequilibrado.
Tal desequilíbrio é explicitado no seu modelo anátomo-íuncional, desenvolvido para
estudar a função sexual. O desequilíbrio entre os centros do eixo "cérebro-espinhal"
responsáveis pelas funções intelectuais, afetivas, sensitivas e instintivas é o responsável,
portanto, pelas diferentes formas clínicas dos "hereditários degenerados".
Finalmente, é preciso ressaltar que a partir da identidade que é estabelecida entre
degenerado e desequilibrado começa a delinear-se o destino da degenerescência,
especialmente na psiquiatria francesa, na medida em que logo - início do século XX - os
termos desequilíbrio mental e desequilibrado vão herdar aproximadamente as mesmas
funções nosológicas que possuíram na segunda metade do século XIX os termos
degenerescência e degenerado. Este deslizamento terminológico e semântico é o de um
processo entendido, pelo menos inicialmente, de uma forma abrangente e de limites
imprecisos - a degenerescência - para um mecanismo patológico que se pretende
ancorado numa neurologia localizacionista e evolutiva e numa psicologia atomista.

Neste texto procurei caracterizar os sucessivos deslizamentos semânticos pelos


quais passaram, ao longo do século XIX, termos como degenerescência, transformismo,
evolucionismo. Na medida em que são termos que variam enormemente em seu sentido
de acordo com os diferentes contextos de uso - contextos históricos, geográficos,
teóricos - o seu emprego de forma desatenta em relação a estas variações termina por
associar idéias e conceitos incompatíveis, não só cronologicamente, mas sobretudo
teoricamente. Como é o caso da associação não nuançada entre o pensamento de Darwin
e a teoria da degenerescência, que culmina por caucionar cientificamente procedimentos
de repercussão ética desastrosa, como se sucede no caso das proposições do eugenismo
e de todas as formas de darwinismo social.

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41

4
NASCIMENTO DA PSIQUIATRIA NO BRASIL >

Manoel Olavo Loureiro Teixeira*

INTRODUÇÃO

O ano de 1852 é considerado o marco do início da atividade psiquiátrica no


Brasil com a inauguração no Rio de Janeiro do Hospício de Pedro II, no bairro da Praia
Vermelha, junto à extinta praia da saudade1.
A criação da primeira instituição psiquiátrica do país deu-se a partir de uma
conjunção de fatores que não pretendemos esgotar no momento. Em primeiro lugar,
representou uma resposta do poder público às reclamações feitas pelos médicos da
Sociedade de Medicina e Cirurgia contra a circulação dos loucos pelas ruas, o que era
visto como ameaça à ordem urbana e à higiene pública. Também representou uma
resposta às constantes denúncias de maus tratos a que eram submetidos os loucos
internados nas enfermarias da Santa Casa. Com a inauguração do asilo, a Santa Casa
livrou-se da proximidade incômoda dos alienados e, ao mesmo tempo, ampliou seu
poder institucional, já que a construção do Hospício de Pedro II foi coordenada pelo seu
provedor, José Clemente Pereira, e seu gerenciamento ficou subordinado à
administração da Santa Casa. E, por último mas não menos importante, representou
uma espécie de coroamento simbólico do nascente Império brasileiro. Um Império sul-
americano, tropical, mestiço, com uma sociedade predominantemente rural e
escravagista, e quase esfacelado pelas guerras regionais da conturbada fase da Regência.
Tratava-se, mais que nunca, de um Império em busca da afirmação de um poder central
forte, ávido por mostrar-se em sintonia com a modernidade representada pela civilização
européia. Basta destacar que o decreto de construção do Hospício foi assinado como
um dos atos que solenizaram a coroação do Imperador Pedro II, em 18 de julho de
18412. Mostrar-se moderno aos olhos dos europeus significava àquela altura construir
um manicômio para tratamento dos alienados, visto que o velho continente vivia a
chamada “idade de ouro do Alienismo”, na definição de Castel3, na qual as práticas de
reclusão asilar eram inquestionáveis, tanto do ponto de vista médico quanto social.
Assim, aqui como além-mar, a psiquiatria nasce como um corolário do
constituição do asilo. A internação dos doentes no Hospício de alienados toma-se um
imperativo de filantropia e verdadeiro espírito científico, estando sua defesa presente na
primeira tese sobre psiquiatria surgida entre nós: “Considerações Gerais sobre a
Alienação Mental”, apresentada por Antônio Luiz da Silva Peixoto à Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro em 183T4.
Desde muito cedo, o discurso do alienismo no Brasil mostra-se em sintonia

Psiquiatria. Mestre em'Psiquiatria - IPUB/UFRJ. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria.


Psicanálise e Saúde Mental - IPUB/UFRJ
1 Informação contida em Costa, Jurandir Freire - História da Psiquiatria no Brasil: um corte ideológico - Rio de
Janeiro: Campus, 1981, pg. 22.
2 Citado por Calmon, Pedro -O Palácio da Praia Vermelha -Rio de Janeiro: Ed. Universidade do Brasil, 1952. Pg. 23.
3 Vide Castel, Robert - A Ordem Psiquiátrica: A idade de ouro do alienismo - Rio de Janeiro: Graal, 1978.
4 Idem, pg. 392.
í I Nascimento da Psiquiatria no Brasil
, I
teórica com o discurso da psiquiatria frafiqesa. As referências teóricas iniciais vêm do
tratamento moral de Pinei e Esquirol e, num segundo momento, da teoria da
degenerescência de Morei e Magnan. A formação dos primeiros alienistas brasileiros
passava necessariamente por Paris. Teixeira Brandão,*primeiro alienista a dirigir o
Hospício de Pedro II, tinha inegável fascínio não só pelo alienismo mas por toda a
cultura francesa. A este respeito, Calmon observa:

“ (...) a psiquiatria brasileira fóra dominada pelas idéias francesas, das quais o
expoente era o grande Magnan. Os nomes das várias seções do Hospício são
disso prova: Pinei, Esquirol, Morei, Calmeil, Bourneville. O prof. Teixeira
Brandão, homem de inteligência invulgar, pertencia à cultura francesa ”5.

A escola francesa foi hegemônica dentro da psiquiatria brasileira até a


assimilação, a partir da primeira década do século XX, dos conceitos da psiquiatria
alemã de base kraepeliniana, liderada pelo psiquiatra Juliano Moreira (1873-1933)6.
O que se nota é que, no Brasil, não obstante a divulgação do alienismo francês, o
funcionamento asilar precede o início de uma atividade psiquiátrica formal, com
reconhecimento institucional. Apenas em 1881 são criadas as cadeiras de clínica das
moléstias mentais das escolas médicas do Rio de Janeiro e Bahia, pelo decreto 3024 de
reforma do ensino médico, proposto pelo Visconde de Sabóia. E somente em 1882 a lei
3141 põe em plena execução este ensino7. Apenas em 1887 o primeiro médico alienista
com formação específica, João Carlos Teixeira Brandão (1854-1921), assume a direção
do Hospício de Pedro II8. Antes, o poder administrativo era exercido, na prática, pelas
freiras da Ordem de São Vicente de Paulo, representantes da Santa Casa de
Misericórdia, e clínicos gerais exerciam a direção médica. E é apenas com o decreto
1132 de 1903, primeira lei geral de assistência aos alienados no Brasil, que ficam
estabelecidas, entre outras medidas, a obrigatoriedade de que a direção dos hospícios
fosse entregue a médicos alienistas ou as normas jurídicas reguladoras da internação e
alta dos alienados9. Como observa Medeiros, no Brasil:

“...a instituição psiquiátrica, corporificada desde então pelo hospital (asilo,


hospício), precede em mais de 70 anos a medicina psiquiátrica (...) A
instituição psiquiátrica percorreu o caminho de ser inicialmente filantrópica
(com as Santas Casas), depois médica e porfim psiquiátrica” .

Também como diferença, segundo Machado11, vemos que no Brasil o hospício


foi uma solução pacificamente adotada pela elite médica e política. A trajetória que
culmina na fundação do Hospício de Pedro II foi uma sucessão de sugestões aceitas,

5 Calmon, Pedro - O Palácio da Praia Vermelha - Rio de Janeiro: Ed. Univ. do Brasil, 1952. Pg. 66.
6 Para aprofundamento, vide Carrilho, Heitor - Professor Juliano Moreira - in Arquivos do Manicômio Judiciário do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 1/2, pgs. 1-20 (1933).
7 Citado por Medeiros, Tácito - Formação do Modelo Assistencial Psiquiátrico no Brasil - op. cit. pg. 81.
8 Citado por Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência a Psicopatas no Distrito Federal - Arquivos Brasileiros
de Neuriatria e Psiquiatria - 39(2); 79-118. Pg. 93.
9 Idem, pg. 115.
10 Medeiros, Tácito - Uma História da Psiquiatria no Brasil - in Duzentos Anos de Psiquiatria - Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1993. Pgs. 76-77.
11 Machado, Roberto et allis - Danação da Norma - op. cit. pgs. 428-429.

43
I ;
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

bem encaminhadas e sancionadas


sancionadas pelo
:• h
pelo gpvemo
gpvemo imperial.
. ..
imperial E tambémdestase P
‘ —t de
nascentes
bastidores, resolvidas com a nomeaçãò para os cargos de direção
implantação ou
instituições dos mesmos enfants terribles que lutaram por sua
posteriormente criticavam seu funcionamento.
Portanto, o hospício entre nós não foi, como na França, o resultado final do
debate político sobre a assistência aos alienados e de redefinição de sua jurispru encia,
iniciado com a Revolução de 178912. Foi um consenso de elites e, assim como na rase
de Aristides Lobo sobre a proclamação da República (1889), “o povo assistira a tu o
bestializado”13.

EUROPA E BRASIL

O asilo nasce no Brasil visando a reclusão de loucos e desviantes, sob a égide de


um discurso humanitário, assistencialista e higienista. A constituição do discurso
específico da medicina mental ocorre em paralelo, indo posteriormente caucionar a
ascensão dos alienistas para a linha de frente da prática clínica e administrativa, além de
facultar-lhes a elaboração da legislação sobre os alienados e as instituições que deles se
ocupam.
De todo modo, aqui como em outros lugares, a medicina mental não foi uma
disciplina teórica e uma técnica terapêutica que sempre tenham existido. O alienisrúo
aparece como o primeiro tipo de medicina especial que recebe, na passagem do século
XVIII para o XIX, a incumbência de tratar, com enfoque médico, dos loucos encerrados
no interior dos asilos. Isto é, tratar da herança sem dono e do resto sem esperança das
multidões de doentes, miseráveis, libertinos, hereges, devassos e sifilíticos confinadas
nos hospitais gerais europeus durante o período que Foucault denominou “a grande
internação”, nos séculos XVII e XVIII . Desse modo, o que irá caracterizar a nascente
medicina mental, segundo Serpa Jr.:

" (...) é menos o seu material bruto do que as condições diferenciadas da


produção de seu objeto, tanto no que diz respeito ao seu espaço institucional de
exercício quanto no que concerne às suas referências e modelos teóricos”15.

Um tipo de discurso médico sobre a loucura, transformada em alienação ou


doença mental, só se constitui em um determinado momento da história. E, no decorrer
deste processo, a loucura teve que ser redescrita para que se tomasse objeto do
emergente discurso teórico do alienismo. Houve a necessidade da construção de um
sistema de referências conceituais que a definisse como tal, pois é pelo saber e em
interior que um objeto constitui-se como científico. seu
A loucura pôde ser transformada em objeto de intervenção médica atrav'
constituição de uma prática clínica a ela dedicada. Existe um certo consenso oue ?
Philippe Pinei (1745-1827) como introdutor do enfoque clínico na nsiauiatri/
na psiquiatria, conforme

14 Foucault, Michel - História da Loucura na Idade Clássica - São Paulo: Perspectiva, 197R p„ a -
is Serpa jr, Octávio Domont - op. cit. pg. 100. • rSs- 43-78.

44
I
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

se verifica por sua “Nosographie Philosophique” (1798) e seu “Traité Médico-


Philosophique sur l Aliénation Mentale\ (1.801)16. Para Pinei, era preciso que se
partisse dos sintomas para se chegar aos quadros clínicos gerais, através da observação e
análise sistemática dos fenômenos perceptíveis da doença. JSeu objetivo principal era
. afastar os pressupostos teóricos das doutrinas médicas que tentavam explicar as doenças
mentais nos séculos XV, XVI e XVII, como a doutrina pneumática, a iatromecânica, as
teorias animistas e vitalistas17. Estas doutrinas eram marcadas por idéias metafísicas
e/ou teológicas, derivadas das opiniões pessoais dos autores, e em geral desprovidas de
qualquer base empírica de comprovação. Os modelos de classificação da loucura eram
incontáveis e de duração efêmera. Isto tudo devia incomodar terrivelmente a um
espírito iluminista como o de Pinei, militante ligado ao grupo dos Ideólogos, que
representou na França a síntese das correntes de pensamento inovadoras que marcaram
o século XVIII. Eis como Pinei posicionava-se a este respeito:

“Os princípios que devem orientar um médico na busca da verdade são os


mesmos das outras ciências naturais; as mesmas regras para adquirir um gosto
puro e conhecimentos sólidos; a mesma atenção em tirar proveito dos preceitos
gerais fornecidos pelos filósofos, a fim de assegurar a marcha e os progressos
do espírito humano ” .

Em busca deste fim, Pinei recomenda uma metodologia aos jovens alienistas:

“1) Cumpre, em primeiro lugar, entregar-se a pesquisas nos hospitais e


começar pelos sintomas vistos de maneira isolada e independente de toda
classificação; 2) quando se tiver também feito um estudo particular dos
sintomas durante algum tempo, passar-se-á ao seu conjunto, ou seja, ao
andamento das doenças começando pelas agudas, por exemplo, tendo-se o
cuidado de estudar a influência particular que os lugares, um regime, as
afecções morais podem exercer sobre a doença; 3) somente depois de se ter
adquirido familiaridade com as doenças simples ou limitadas a uma única
ordem de sintomas, deve-se passar ao exame das que são complicadas (...); 4) a
necessidade de estabelecer uma ligação estreita em seus conhecimentos
médicos e de formar uma experiência esclarecida exige, imperiosamente, que
se classifiquem as doenças estudadas e que se as enquadrem nos diversos
gêneros de uma distribuição simples e metódica”19.

Um novo campo instalado é instalado com este procedimento. Pinei elabora uma
classificação das formas de loucura, inspirada nos métodos da História Natural, no
método empírico-indutivo de Francis Bacon20, exposto no livro Novum Organum
(1620) e nos conceitos filosóficos de duas obras de destaque no panorama cultural

16 Vide Postei, Jacques & Quetel, Claude - Nouvelle Histoire de la Psychiatrie - op cit. pgs. 152-161.
17 Para aprofundamento, vide Pessoti, Isaías - O Século dos Manicômios - São Paulo: Ed. 34, 1996. Pgs. 29-46.
18 Philippe Pinei - in Nosographie Philosophique -citado por Beauchesne, Hervé - História da Psicopatologia - op.
cit p£ 24.
19 Philippe Pinei - Nosographie Philosophique - citado por Beauchesne, Hervé - op. cit. pg. 24.
20 Para aprofundamento, vide Teixeira, Manoel - O Método Empírico-Indutivo e sua Relações com a Psiquiatria - in
Jom. Bras. Psiq., 44(12); 605-615, 1995.

45
Cadernos do IPUB n°8, 1997

francês da época, dentro do que ficou conhecido como a “filosofia das luzes . O y
de Locke (1690) e o Traité des Sensations de Condillac (1754) .
Nesta reorganização do conhecimento vários conceitos operatórios tomam s
disponíveis: (1) uma semiologia psiquiátrica, a partir do olhar do alienista que convive,
observa e descreve minuciosamente o comportamento dos doentes; (2) uma nosogra ia,
com a conhecida divisão pineliana em quatro grandes classes, a saber, a mania, a
melancolia, a demência e o idiotismo23; (3) uma abordagem clínica, que parte dos
sintomas para chegar aos quadros clínicos; e (4) uma terapêutica específica da loucura,
voltada para o tratamento das causas corporais e, principalmente, das chamadas causas
morais, isto é, das paixões descontroladas, ardentes ou pervertidas que estariam na base
da insanidade24. Pinei definia as paixões de forma ambígua, como um tipo de alteração
da sensibilidade físico-moral do indivíduo:

“Passions spastnodiques propres à déterminer Paliénation: (...) Les passions


en général sont des modifications inconnues de la sensibilité physique et morale
dont nous pouvons seulement démeler et assigner les caractéres distinctifs par
des signes extérieurs. Quelque opposées que puissent paroitre quelques-unes
d’entre elles, comme la colère, la frayeur, la douleur la plus vive, une joie
soudaine, elles sont marquées surtout par des spasmes variés des muscles de la
face, et se dessinent à l ‘exterieur par des traits saillans dont les poetes, les
sculpteurs et les peintres du premier rang ont fait l ‘étude la plus approfondie.
(...) Les emportmens répétés de colère sont toujours nuisibles au jugement dont
ils empêchent le libre exercise, et une irascibilité extreme est quelquefois le
prélude de Vdliénation ou dispose puissamment à la contracter; (...) Un
sentiment d’horreur ou une frayeur vive et le dernier degré de désespoir,
quoiquon me puisse les regarder comme entièrement synonymes, ont une
grande conformité dans les spasmes des muscles de la face: front ridé de haut
en bas, abaissement des sourcils, prunelle contracté, étincelante et mobile, les
narines grosses, ouvertes et élevées. (...) Des passions débilitantes ou
oppressives: (...) Ces passions, comme le chagrin, la haine, la crainte, les
regrets, les remords, la jalousie, Tenvie, (...) sont susceptibles de divers degrés
de force et de nuances infinies, suivant le concours de quelque autre passion, la
sensibilité individuelle, les idées accesoires qui viennent s’y joindre, ou la
vivacité de la cause déterminante; mais elles ne dégénèrent en aliénation que
parvendes à un très-haut degré d’intensité, que par des passages brusques de
l 'une à l 'autre ou des commotions en sens contraire1,25 (grifos do autor).

Com Jean-Etienne Esquirol (1772-1840), sucessor de Pinei, o manicômio passa a


ser cada vez mais proclamado como o lugar de cura por excelência. Apenas no interior

21 Para aprofundamento, vide Pessoti, Isaías - O Século dos Manicômios - op. cit pgs 25-28.
22 Na acepção adotada por Georges Lantéri-Laura - vide Prefácio in Os Fundamentos da Clínica: história p
do saber psiquiátrico - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. Pgs. 13-19. strutura
23 Vide Bercherie, Paul - Os Fundamentos da Clínica: história e estrutura do saber psiquiátrico - Rio de Jane-
Zahar, 1987. Pg. 36. orge
24 Informações contidas in Beauchesne, Hervé - História da Psicopatologia - op. cit pgs. 23-28- in Te' • *
Olavo Loureiro - O Método Empírico-Indutivo e suas Relações com a Psiquiatria - in Jornal Brasileiro
44(12): 605-615, 1995. ae Ps>quiatria
25 Pinei, Phillipe - Traité Médico-Philosophique sur L’Aliénation Mentale - Paris: Brosson, 1809 Pgs 25 28

46
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

do hospício o verdadeiro tratamento moral pode se dar. Trata-se do princípio do


isolamento, formulado em textos como “De la folie” (1816) e “Sur Visolement des
alienés” (183 2)26:

“O projeto de um hospício de alienados não é, de forma alguma, uma coisa


indiferente e que possa ser confiada apenas aos arquitetos; o objetivo de um
hospital comum é tornar mais fáceis e mais econômicos os cuidados dedicados
aos indigentes doentes. Um hospital de alienados é um instrumento de cura
c..)"27
Chega-se, afinal, ao relativo consenso que irá marcar a Europa durante a primeira
metade do século XIX: o manicômio, por si só, é o instrumento de cura e a reclusão é
uma medida médica necessária. Mas este consenso, no caso francês, encontra
sustentação e justificativa teórica na própria reorganização conceituai do saber
psiquiátrico que apontamos. O saber dos alienistas não pode prescindir do manicômio,
assim como o manicômio não pode prescindir do saber dos alienistas. Uma coisa não
vai sem a outra. Na França, a nosografia e o tratamento moral de Pinei e Esquirol foram
marcos teórico-clínicos que surgiram concomitantemente à transformação dos antigos
Hospitais gerais em manicômios especializados. Isto equivale a dizer que o novo olhar
clínico resultante destes marcos permitiu que o manicômio fosse pensado como uma
instituição diferente dos antigos hospitais gerais ou dos depósitos de desviantes .
_ Já no caso do Brasil, observa-se que o discurso científico do alienismo impõe-se
e organiza-se lentamente, numa instituição asilar já em pleno funcionamento, e só
assume o status de principal formulador da gestão do hospício no final do século XIX.
A dissimetria entre a influência dos alienistas e o funcionamento asilar fica evidente no
caso brasileiro. O Hospício de Pedro II é construído dentro das normas arquitetônicas
mais adequadas para a tarefa do tratamento moral mas funciona, por quase cinquenta
anos, como depósito indiferenciado de desvalidos e desviantes de todos os gêneros,
onde o discurso da medicina mental praticamente inexiste. Esta também é a percepção
social que se estabelece no Rio de Janeiro, e no resto do país, quanto à função
institucional do palácio da praia vermelha. No Brasil, o poder médico, laico e científico,
precisou disputar (e vencer) o controle técnico e administrativo do Hospício de Pedro II
com as freiras da Santa Casa. O Hospício nasce, no caso brasileiro, com cara de hospital
geral europeu do século XVIII.
_ O início da atividade psiquiátrica no Brasil está intimamente ligado à
consolidação política da independência nacional e à constituição do Estado Monárquico,
e também ao início das práticas da medicina social. A construção do Hospício de Pedro
II foi uma medida proposta pelo Conselho de Império com o intuito de celebrizar a
maioridade de Pedro II, ao fim do conturbado período regencial. O nascente Império
Brasileiro busca implementar novas práticas e instituições, e a medicina brasileira forja-
se ao favor destas transformações, tomando-se um corpo institucional que serve de

26 Informação contida em Machado, Roberto et allis - Danação da Norma: Medicina Social e Constituição da
Psiquiatria no Brasil - Rio de Janeiro: Graal, 1978. Pg. 430.
27 Esquirol, Jean-Etienne - Des Maladies Mentales Consideres sous les Rapports Medicai, Hygiénique et Médico-
Legal - Paris:Bailliére, 1838. Pg. 421 (trad. nossa).
28 Vide Pessoti, Isaías - O Século dos Manicômios - São Paulo: Ed. 34, 1996. Cap. II e III.

47
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

veículo das aspirações de uma sociedade em transformação. A\ medicina defende a


moralização e o progresso da ordem social brasileira, num período 1 de reordenaçao
jurídico-institucional e grande turbulência política.
O chamado Período Regencial (1831-1840) foi dos mais agitados da história
política do país. Nele, esteve em jogo a unidade territorial do Brasil, com várias revoltas
provinciais, e o centro do debate político foi dominado pelos temas da centralização ou
descentralização do poder, do grau de autonomia das províncias e da organização da
Forças Armadas. Ao final, optou-se por uma solução conservadora, que implicava na
antecipação da coroação do adolescente Pedro II: o chamado movimento pelo
“regresso”. Portanto, é no contexto dos acontecimentos do regresso, isto é, da
reconstrução e do fortalecimento do Império brasileiro em moldes centralizados, que
devemos situar a iniciativa da construção da monumental obra do “Palácio da Praia
Vermelha”. A coroação de Pedro II como Imperador irá ocorrer em 18 de julho de 1841,
mesma data da assinatura do decreto que funda o Hospício. Mais significativo que isso,
impossível.
A construção do palácio da praia vermelha é um expressivo capítulo da novela
nacional de querer mostrar-se em sintonia com o primeiro mundo. Algo que Gregório de
Matos Guerra já chamou de “síndrome do mazombo”, isto é, a vergonha de ter nascido
brasileiro e não europeu. Só que, na Europa, o hospício aparece como marco definidor
da reformulação que as nascentes instituições democrático-burguesas exigiam em
relação à figura do louco. Era a ciência, isto é, a medicina, que deveria tratar, em lugares
especializados, destes sujeitos inadequados ao projeto da cidadania burguesa, visando
sua recuperação. Já entre nós, o hospício nasce da ambição de vestir um país
escravocrata, semi-feudal, patriarcal e patrimonialista, carente de qualquer projeto de
universalização da cidadania, com os trajes de uma democracia burguesa à européia.

/
OS LOUCOS DURANTE O PERÍODO COLONIAL

Vários autores situam na primeira metade do século XIX o início da


hospitalização dos loucos no Brasil . Antes, estes viviam nas ruas, ou eram recolhidos
às prisões quando agitados. Se pertenciam a famílias abastadas, eram recolhidos a
aposentos-prisões construídos nos fundos de suas casas ou às vezes enviados à Europa,
quando suas condições físicas permitiam. Dados sobre o destino dos doentes mentais no
Brasil durante o período colonial são raros. Sabe-se que, já no século XVIII, no hospital
da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, os doentes mentais eram mantidos nas
“casinhas de doudos”, que não eram lugares específicos de tratamento30. Durante o
período Colonial, a assistência médica e hospitalar dependia sobretudo das irmandades
religiosas. Assim, desde 1543, quando é fundada a Santa Casa de Santos (SP), a
primeira do país, os hospitais das Santa Casa de Misericórdia funcionam como

29 Machado, Roberto et allis - Danaçào da Norma - op. cit.; Medeiros, Tácito - Formação do Modelo AssisterJ i
Psiquiátrico no Brasil - op. cit.; Postei, Jacques et Quetel, Claude - Nouvelle Histoire de la Psychiatrie Pn
Dunod 1994; Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - cm Tratado de Clínica Psiquiátrica - São Pi

ssxxf r D““Fea"’ - -
30 Informação contida em Postei, Jacques et Quetel, Claude - Nouvelle Histoire de la Psychiatrie - Paris- n
1994. Pg. 497. ' Unod’

48
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

albergues para os pobres, órfãos, inválidos e, obviamente, loucos31. Muitos destes


hospitais surgem em cidades que sequer possuíam médicos. O colonizador português
assenta entre nós a instituição hospitalar como um espaço para doentes e como um
abrigo de desvalidos. O intuito de uma Santa Casa, segundo Souza, era de:

“educar os enjeitados, libertar os cativos, acudir os presos, cobrir os nus, dar


de comer aos famintos, dar de beber a quem tem sede, dar pousada aos
peregrinos, curar os enfermos, acompanhar e enterrar os mortos

No Brasil, o mais antigo registro conhecido de internação psiquiátrica data de


1817, na Santa Casa de São João Del Rei (MG) . Na Bahia, desde o início do século
XIX, os alienados passam a ser recolhidos pela Santa Casa de Misericórdia e internados
no Hospital São Cristóvão. Em Pernambuco, o Hospital de S. Pedro de Alcântara, no
Carmo, Recife, também abrigava os doentes mentais. No Rio de Janeiro, o mesmo
papel foi destinado ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia, fundado em 156734.

A ORGANIZAÇÃO DO CAMPO MÉDICO E A CAMPANHA PRÓ-


MANICOMIAL

Uma série de transformações sociais são provocadas no país e, em particular, no


Rio de Janeiro, com a transferência da corte portuguesa para o Brasil (1807). A
população do Rio dobra nesse período (passando de 50 para 100 mil habitantes),
iniciam-se atividades produtivas, comerciais e culturais. A medicina brasileira organiza-
se como campo institucional no bojo deste contexto. Durante a permanência da Corte
Portuguesa no Brasil são criados os colégios de medicina e cirurgia do Rio de Janeiro
(1813) e da Bahia (1815)35, transformados em 1832 nas primeiras faculdades de
medicina brasileiras. Isto encerra um longo monopólio da formação dos médicos
brasileiros pelas faculdades portuguesas. Em 1829 é fundada a Academia Imperial de
Medicina. O aparecimento do primeiro jornal médico do país, o “Propagador das
Ciências Médicas” ou “Anais de Medicina, Cirurgia e Farmácia”, fundado por Xavier
Sigaud (médico francês radicado no Brasil), desempenha papel considerável no
desenvolvimento da cultura médica no país36. Divulga a medicina européia e, em
particular, a francesa. Teve duração efêmera, entre 1827 e 1828, mas publicou
numerosos estudos psicopatológicos, como o trabalho “Sobre as Alucinações dos
Sentidos” de Bayle; ou o trabalho de Victor Broussais ”Sobre a Epilepsia”', ou ainda
outro estudo de Bayle intitulado “Nova doutrina das Moléstias Mentais” .
Em 1829, é fundada a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, que
se define como “uma sociedade apta a promover o gosto pelos estudos médicos e o

31 Idem, pg. 497.


32 O que não deixa de ser um projeto social no mínimo ambicioso. Citado por Souza, Luís Rodrigues - O Problema
Hospitalar no Brasil: Novos Rumos, Novas Soluções - in Medeiros, Tácito - Uma História da Psiquiatria no Brasil -
op. cit. pg. 74.
33 Citado por Medeiros, Tácito - Formação do Modelo Assistencial Psiquiátrico no Brasil - op. cit. pg. 5.
34 Citado por Medeiros, Tácito - idem, pg. 73.
35 Citado por Arruda, Elso - Resumo Histórico da Psiquiatria Brasileira - Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. Pg. 20.
36 Citado por Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - In Tratado de Clínica Psiquiátrica - São Paulo:
Grijalbo, 1976. Pgs. 4-5.
37 Idem, pg. 5.

49
Cadernos do IPUB n°8, 1997

interesse pelo progresso da ciência”38. Trata-se de uma sociedade de medicina social,


em cujo interior a influência da medicina francesa era notável. Entre seus membros
fundadores, encontram-se dois médicos franceses, Jean Maurice Fraive e Xavier Sigaud.
Vários dos associados brasileiros, como José da Cruz Jobim e Joaquim Cândido Soares
de Meirelles, haviam-se formado em escolas francesas39. A Sociedade defende medidas
de higiene pública e, pelas páginas do seu órgão oficial, o Semanário de Saúde Pública
( fundado em 183140), desencadeia uma ofensiva em prol de uma melhor assistência ao
alienados. O mesmo Semanário publica, em seu número inaugural, o primeiro trabalho
escrito no país sobre doenças mentais: uma observação clínica de José Martins da Cruz
Jobim, intitulada “Insônia loquaz, ocasionada por uma pneumonia crônica com
tubérculos pulmonares ”41.
Nesta campanha destacam-se os médicos Joaquim Cândido Meirelles, José
Martins da Cruz Jobim, Luiz Vicente De-Simoni e Xavier Sigaud, todos fundadores da
Sociedade de Medicina42. Eles se fazem porta-vozes do que consideravam a sociedade
esclarecida e a ciência avançada, e repetem insistentemente à autoridade pública o
pedido de instalação de um hospital destinado ao verdadeiro tratamento dos alienados.
O recolhimento a estabelecimentos especiais para a loucura impõe-se como uma medida
de proteção social.
Protesta-se contra a existência de loucos vagando pelas vias públicas. Xavier
Sigaud publica, no Diário da Saúde da Sociedade de Medicina, o artigo “Reflexões
acerca do trânsito livre dos doidos pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro” (1835)43,
onde comenta a existência de três problemas no tocante às atribuições da Câmara
Municipal em relação aos alienados: 1) a manutenção dos doentes abastados em casas
particulares, com suas famílias; 2) o seu livre trânsito pelas ruas da cidade; e 3) sua
reclusão ao Hospital da Santa Casa. Para Sigaud, a municipalidade não deveria
preocupar-se com o primeiro caso, daqueles que:

“pertencem a famílias abastadas, ou que são objecto de caridade, vivem pela


maior parte isolados em quartos fechados, vigiados, alimentados e tratados”44.

Embora ressaltasse que:

"a sua presença é um fardo pennoso, uma vizinhança incômoda e, ás vezes,


insuportável para os vizinhos; e a reclusão á que são comdemnados em
aposemptos pequenos e pouco arejados, torna quase sempre ineficaz o
curativo ”45'.

A questão principal para Sigaud era a dos loucos miseráveis. A eles deveria
voltar-se a vigilância do poder público.

38 Citado por Postei, Jacques & Quetel, Claude - Nouvelle Histoire de la Psychiatrie - op. cit. pg. 498.
39 Citado por Arruda, Elso - Resumo Histórico da Psiquiatria Brasileira - op. cit. pg. 20.
40 Citado por Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg. 5.
41 Idem, pg. 6.
42 Ibidem, pg. 5. . .
43 Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg. 7.
44 Idem, pg. 7.
45 Ibidem, ibidem.

50
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

“Esta deve se estender, pelo contrário, aqueles que circulam livremente pelas
ruas e, embuçados com grotescos andrajos, excitam as risadas dos viandantes,
(...) ou a torrente de grosseiras injúrias e ridículos epítetos com que são
amofinados (...) .Por que medidas a Camara Municipal pode prevenir a
presença dos doidos nas ruas? Por que meios coercitivos pode impedir que eles
sirvam de divertimento aos que transitam? Só existe um: é a fundação de um
hospício de doidos, ou o estabelecimento de uma casa de saude, primeiramente
em ponto pequeno, e que gradualmente se vá aumentando ”46.

Os principais protestos vão para os maus-tratos e abandono dos loucos recolhidos


à Santa Casa de Misericórdia:

“O hospital da misericórdia tem cellas destinadas a recolher os maníacos?


Sim, é verdade, mas que distancia vai dessas gaiolas humanas, postas na
vizinhança de um cemiterio, e por baixo de enfermarias ajoujadas de
doentes...9,47

José Martins da Cruz Jobim, mais tarde primeiro professor de Medicina Legal da
Faculdade de Medicina (1832) e primeiro médico chefe do Hospício Pedro II, redige,
em 1830, um relatório em nome da recém-fundada Comissão de Salubridade Geral da
Sociedade de Medicina sobre as condições de tratamento dos doentes mentais no Rio48.
Nele afirma:

”Uma coisa não podemos passar em silêncio, e vem ser a maneira porque os
doidos são ali tratados (no Hospital da Santa Casa de Misericórdia); custa a
crer-se que no Rio de Janeiro se encontre o cumulo de barbaridade em uma
casa destinada ao alívio de desgraças a que todo o homem está sujeito, e que
não tenha havido até o presente um coração benfazejo que se lembre daqueles
miseráveis, que lhes procure um local conveniente onde eles possam
restabelecer-se por um tratamento physico e moral bem dirigido, e não aonde
eles não se tornem ainda mais loucos; pois qual será o alienado, que
recuperando a razão nos seus intervalos lúcidos, não quisera antes viver
sempre privado delia, do que considerar-se ligado a um tronco, deitado no
chão e cercado de outros, que q cada passo o podem acommeter, e maltratar
horrivelmente ? Estamos persuadidos de que so tem falta de um coração
benfazejo, e com bastante influência para fazer sentir a necessidade de um
asilo de alienados nas vizinhanças da cidade, onde eles gozem de todas as
comodidades que exige o seu estado e tratamento ”49.

Luiz Vicente De-Simoni publica na “Revista Médica Fluminense” o artigo


“Importância e Necessidade da Criação de um Manicômio ou Estabelecimento
Especial para o Tratamento de Alienados” (1839)30. Nele descreve as condições dos

46 Ibidem, ibidem.
47 Ibidem, pgs. 7-8.
48 Citado por Postei, Jacques et Quetel, Claude - op. cit. pg. 498 (trad. nossa).
49 Citado por Paim, Isaías - op. cit pgs. 6-7 (grifo nosso)
50 Paim, Isaías - O Hospital Psiquiátrico: as origens, as transformações e seu destino - In Jornal Brasileiro de

51
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

doentes da Santa Casa: 40 doentes, em 12 pequenas celas, situadas num corredor


estreito sob uma sala destinada às aulas da Faculdade de Medicina, onde ficavam
expostos à curiosidade e provocação dos passantes. Assinala ainda que:

lá havia um tronco, de madeira onde durante o dia, em uma casa religiosa e


de caridade, prendiam os escravos do Plospital que tinham de ser supliciados a
chicote. Durante a noite, os guardas sempre se utilizavam de tão aviltante meio
de contenção para imobilizar os doentes em acesso de delírio, por força
furioso, aos quais também fustigavam com a pretensão ignara de acalmal-
>>51
OS

De-Simoni cita e defende Pinei e Esquirol, e afirma estranhar que num “país
livre, em uma casa de caridade”, “os alienados sejam tratados pior do que se trataria ao
maior dos criminosos, e com o mesmo rigor e aspereza com que um senhor castiga o seu
escravo, prendendo-o no tronco”. Aqui, a marca contraditória da sociedade escravista:
De-Simoni constrange-se com o fato dos insanos serem tratados de forma pior que os
criminosos e igual a um escravo. O curioso é que De-Simoni era, ele próprio, o
responsável pela assistência médica dos loucos internados na Santa Casa, e havia sido
diretamente criticado por Silva Peixoto, em sua tese de 1837, quanto à desumanidade
dos métodos por ele ali empregados:

“Não podemos concordar com o meio de repressão adoptado pelo Dr. De-
Simoni em fazer meter os doudos no tronco. Além de importar isso a exasperal-
os mais, tem ainda o inconveniente de fazel-os perder o estímulo. Não se diga
que eles não estão em estado de poder avaliar os actos de degradação que com
eles se pratica, porque, apesar do desarranjo de suas faculdades intellectuaes,
eles têm a consciência de si e do que o cerca”52.

Em 1837, é apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro a tese de


Silva Peixoto, “Considerações Gerais sobre a Alienação Mentar\\%3T). Seu trabalho é
vinculado à tradição do alienismo francês, quase uma reprodução dos trabalhos de seus
autores principais . Baseia-se no “Tratado Médico-filosófico sobre a Alienação
Mental” de Pinei, e, principalmente, nos trabalhos de Esquirol, cuja orientação o autor
~ - 53
afirma seguir .
O texto filia-se ao compromisso metodológico do iluminismo, de inspiração
impírico-nominalista,
e: de buscar o verdadeiro conhecimento científico a partir da
observação e descrição minuciosas dos fatos clínicos referentes à loucura, de sua
vinculação às leis gerais da natureza, contra os preconceitos dos pensadores do passado.
Ao descrever o modo como os antigos estudavam e explicavam a loucura, Silva Peixoto
pergunta-se:

"Mas, como o fizeram elles? Procuraram acompanhar a natureza em suas

Psiquiatria-Rio de Janeiro 25(2-3); pg. 149.

52 Cdadopor Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg. 10.
53 Ibidem, pg- 8.

52
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

observações, e dellas dar razões physiologicas? Recorramos a história, e delia


colheremos que o estudo da alienação mental foi por muito tempo influenciado
pelos prejuizos, e por isso era ella atribuida a causas sobrenaturaes. Assim, os
antigos, não procurando definir nem estudar esta moléstia com exatidão,
davam como causas de sua existência o demonio, espíritos animaes no cérebro,
através dos quais a alma não podia sentir nem pensar com precisão; mais
tarde, atribuíram-na a uma indisposição ignea e maligna dos espíritos, ou a um
humor ou matéria pecante, que convinha eliminar do cerebro; e para
conseguir, empregavam certos medicamentos que julgavam próprios a
fortificar o cerebro e a razão ”54.

Ao referir-se ao progressos de seu tempo, Silva Peixoto não oculta o espírito


triunfal do iluminismo:

"... honra seja dada ao nosso século, porque nos trabalhos ultimamente
publicados sobre a alienação mental, os fatos são ditados pelo espírito de
observação: a sua autoridade não poderá definhar, senão quando a natureza
deixar de ser constante em suas leis; no entanto, que esses outros dos séculos
remotos, tristes frutos do espírito do sistema, e contando todas as loucuras de
que era então susceptível o espírito humano, não poderiam ser hoje repetidos
sem provocar o riso e um justo desprezo ”55.

Ao discorrer sobre a gênese da doenças mentais, afirma:

“Poucas moléstias há em que a influencia hereditária esteja mais provada do


que a alienação mental (...) e o uso imoderado de alcoholpredispõe a loucura,
enfraquecendo as faculdades intellectuaes ”56.

Destaca também a influência das causas determinantes morais no


desencadeamento de perturbações mentais, e afirma, parafraseando Esquirol:

“ (...) que não há, talvez, circunstamcias da vida, que não se possam tornar
causas de alienação mental. Certamente, não haverá quem negue, que muitas
vezes a mais simples impressão é capaz de produzir a alienação mental, e muy
principalmente em um indivíduo a quem afecta uma indisposição physica, o que
bem prova quanta influência tem o physico sobre o moral, verdade esta
exuberantemente demonstrada por Cabanis"57.

O trabalho de Silva Peixoto corrobora a posição dos médicos da Sociedade de


Medicina e Cirurgia: ele condena as condições precárias de assistência aos alienados e o

54 Ibidem, idem.
55 Ibidem, pgs. 8-9 (grifo nosso)
56 Ibidem, pg. 9.
57 Cabanis é o filósofo mais citado por Silva Peixoto, sobretudo seu livro "Rapports du Physique et du Moral”. A
deferência de Peixoto em relação ao médico e membro do Grupo dos Ideólogos é evidente. Vale lembrar que Cabanis
foi o autor do célebre relatório sobre “Les Conditions des Insénsés detenus à la Salpetrière'. Ibidem, pgs. 9-10.

53
Cademos do IPUB n° 8, 1997

costume de aplicar-lhes castigos físicos, para defender, ao final, a construção de um


hospício) como condição sine qua non de uma assistência científica aos mesmos.

A CONSTRUÇÃO DO HOSPÍCIO

Ao alarido dos médicos contra as condições dos alienados na capital do Império,


soma-se a voz do provedor-geral da Santa Casa de Misericórdia, José Clemente Pereira
(1787-1854), o grande mentor da construção do Hospício de Pedro II.
Português de origem, Clemente Pereira nasceu em Trancoso. Veio para o Brasil
em 1815, como bacharel. D. João VI nomeia-o como juiz na Praia Grande, onde adquire
fama de enérgico e inteligente. Segue-se sua transferência para a vara da Capital, em
1820. Entra para a política, e se toma presidente do Senado da Câmara. Foi aí que atuou
como um dos articuladores do “dia do fico”, em 9 de janeiro de 1821, tendo sido o
redator da carta que o Imperador leu para o povo reunido junto ao palácio nessa data.
Em 1827, é nomeado por D. Pedro I como intendente de polícia.
Clemente Pereira era, segundo o espectro político da época, um “caramuru”; Isto
é, um conservador que apoiava a reunificação do grande Império Português, e que não
contava com a simpatia dos brasileiros natos. Assim, cai num ostracismo de seis anos,
após a abdicação de D. Pedro I, mas volta à cena com o movimento do “regresso”,
atuando pelo partido conservador. Toma-se gestor da maioridade; deputado eleito por
três estados; Ministro do Império no primeiro ministério e Ministro da Guerra no
Gabinete da Maioridade; Senador pelo Pará em 1842; presidente do tribunal do
comércio e, finalmente, provedor geral chamado de “herói da Santa Casa” ou de
“mordomo de deus”58. Segundo Calmon:

“Clemente Pereira confundira a eficiência do governo com a assistência aos


desgraçados. E metera-se (desde que, em 1838, assumira a provedoria da
Santa Casa) na tríplice tarefa de lhe dar um Hospital Geral, que fosse modelar,
um recolhimento para as órfãs, digno do nome, um hospício de alienados em
forma de monumento público ” .

Esta biografia mostra que os médicos brasileiros não podiam ter encontrado
aliado com maior influência. Este era, sem dúvida, o coração benfazejo do qual Cruz
Jobim falara. Em seu relatório anual de 1839, Clemente Pereira proclama a urgência de
serem atendidas as reclamações que os homens da ciência vinham fazendo sobre as
condições dos alienados.

“Viviam (Clemente Pereira refere-se às mulheres doentes mentais internadas


na Santa Casa) encerradas em estreitos cubículos, privadas de toda e qualquer
vista, que até a do ceu lhe é vedada, e do ar necessário para a vida, recebendo
apenas uma fraca luz emprestada; assim as desgraçadas vão caminhando todas
daquele lugar de martírio para o cemmiterio, definhadas, thysicas ou

58 Informações contidas em Calmon Pedro - O Palácio da Praia Vermelha - Rio de Janeiro: Ed. Univ Do Brasil
1952. Pgs. 10-15.
59 Calmon, Pedro - idem, pg. 12.

54
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

hydropticas ”60.

No relatório de agosto de 1840, Clemente Pereira profetizava:

“ e não sei que espírito de providência me inspira! a chácara do vigário geral


ha de um dia converter-se em hospício de alienados ”6J.

Neste trecho, Pereira refere-se ao pavilhão por ele construído em anexo à


lavanderia geral da Santa Casa, localizado na Chácara do Vigário Geral, no Caminho
das Fortalezas da Praia Vermelha. Ali, vinha experimentando colocar algumas das
mulheres alienadas que encontravam-se no Hospital da Santa Casa, e cuja sorte tanto o
impressionava62. Clemente Pereira afirma, em outro ponto do relatório:

“Deplorável sobretudo é a sorte da alienadas! ... Parece que entre nós a


desgraça da perda do uso das faculdades intellectuaes se acha qualificada de
crime atroz, pois é punida com a pena de prisão que, pela natureza do cárcere
onde se executa, se converte na de morte ” .

Clemente Pereira pregava a necessidade de uma reformulação geral nas


instituições ligadas à Santa Casa, como a Casa dos Expostos, o Recolhimento de Órfas e
o Hospital. Defendia a construção de espaços específicos para cada condição: um
cemitério, uma enfermaria de bexiguentos, uma de tuberculosos, um novo hospital, um
hospício. Queria, em última análise, a ampliação e a especialização dos vários espaços
institucionais.
José Clemente Pereira instrumentaliza as medidas para a construção do hospício:
inicia uma campanha pública cujo slogan, muito a propósito, era: “aos loucos, o
Hospício”6*. Cria uma subscrição pública para arrecadar fundos que conta, em 1841,
com fundos de 2:500$00065. Soma a esta o montante de outra subscrição do comércio
do Rio de Janeiro, que deveria ser aplicada em estabelecimentos de caridade; e envia
ofício, quando Ministro da Guerra, em 15 de julho de 1841, ao Ministro do Império
Araújo Vianna, onde afirma:

“O zelo de melhorar a sorte dos infelizes que, tendo a desgraça de perderem o


juízo não encontraram nesta capital hospital próprio, onde possam obter
tratamento adequado à sua moléstia, (...) me fez lembrar a necessidade de dar-
se princípio a um hospital destinado privativamente para tratamento de

60 Transcrito por Paim, Isaías - O Hospital Psiquiátrico ... - op. cit pg. 149.
61 A Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e o Hospício de Pedro II - Rio de Janeiro: Villeneuve, 1882. Pg.
17. .
62 Informação contida em Lopes, José Leme - A Psiquiatria e o Velho Hospício - In Jomal Brasileiro de Psiquiatria -
14(1-2) Rio de Janeiro, 1965, pg. 119.
63 Machado, Roberto et allis - op. cit. pg. 427.
64 Citado por Arruda, Elso - Resumo Histórico da Psiquiatria Brasileira - op. cit. pg. 21.
65 Informação contida em Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência a Psicopatas no Distrito Federal - In Arch.
Bras. de Neuriatr. e Psiquiatria - 39(2); pg. 82.

55
Cadernos do IPUB n°8, 1997

alienados”66.

Mais adiante, acrescenta:

D como seja indispensável lugar salubre e apropriado, com terreno suficiente


para as comodidades e larguezas, que estabelecimentos de semelhante natureza
exigem, poderá o referido estabelecimento fundar-se na chácara que a Santa
Casa de Misericórdia possui na Praia Vermelha, denominada do Vigário
Geral, e onde existe já uma enfermaria de alienados que tem obtido
melhoramentos, e alguns até um total restabelecimento”67.

Pede também que se leve:

“o referido à soberana presença de Sua Majestade Imperial para que haja por
bem ordenar o que for mais do seu imperial agrado e fará um ato que
eternizará o fausto dia da sagração e coroação do mesmo Augusto Senhor, a
fundação de um hospital de alienados, que bem poderia tomar o nome de
Hospício de Pedro II”68.

Três dias depois, na data da sagração e coroação do jovem Imperador de 16 anos,


D. Pedro II assina o decreto n. 82, de 18 de julho de 1841, que funda o Hospício e desde
o início subordina sua administração à Santa Casa de Misericórdia:

“Desejando assinalar o fausto dia de minha sagração com a criação de um


estabelecimento de pública beneficência: hei por bem fundar um hospital
destinado privativamente para tratamento de alienados com a denominação de
Hospício Pedro II, o qual ficará anexo ao Hospital de Santa Casa de
Misericórdia desta Corte, debaixo de minha imperial proteção, aplicando
desde já para princípio de sua fundação o produto de subscrições promovidas
por uma comissão da praça do comércio, e pelo provedor da sobre dita Santa
Casa, além das quantias com que eu houver por bem contribuir (...)”69.

A construção do Hospício levará mais de 10 anos. De início, José Clemente


Pereira providenciou, junto à Mesa da Santa Casa, a autorização para que o edifício
fosse construído no terreno da Praia Vermelha. Em fins de 1841, foi nomeada uma
comissão de três membros encarregada de administrar sua construção. Antes mesmo de
iniciarem-se as obras, a comissão providenciou algumas reformas e adaptações no
pavilhão da Chácara Geral, para onde foram enviados todos os alienados internados na
Santa Casa. Estes ficaram sob a guarda do administrador geral da obra, Manoel Maria
da Costa70. O estado de abandono em que se encontravam os doentes e os problemas
“disciplinares” que se seguiram a esta remoção fizeram que o secretário da comissão

66 Citado por Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência... - op. cit pg. 82.
67 Idem, pgs. 82-83.
68 Machado, Roberto et allis - op. cit. pg. 427-428.
69 Transcrito por Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pgs. 12-13.
70 Informações contidas em Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg 13

56
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

administrativa do Hospício sugerisse, em 1842, a necessidade de que um médico, pelo


menos duas vezes por semana, fosse visitar os doentes e formular seu tratamento.
Procurou-se o Dr. José da Cruz Jobim, então professor de Medicina Legal e Diretor da
Faculdade de Medicina, que desse modo tomou-se o primeiro médico responsável pelo
Hospício de Pedro II71.
Em 1845, por iniciativa da comissão, o Dr. Antônio José Pereira das Neves foi
enviado à Europa, com o objetivo de estudar e conhecer, por dois anos, os principais
hospícios do velho continente. Faz estágios em hospitais de Paris. Esta é, como observa
Tácito Medeiros, “a primeira tentativa brasileira de formação de psiquiatra habilitado” .
Sobre esta experiência, Pereira das Neves publica o “Relatório acerca do Tratamento
dos Alienados e seus principais Hospitais em França, Inglaterra, Itália, Alemanha,
Bélgica e Portugal\ nos “Annaes de Medicina Brasiliense”. Em suas três edições, fala
apenas sobre a França73.
Mais tarde, após a inauguração do Hospício, Pereira das Neves será nomeado
como seu médico assistente, em janeiro de 1853, junto com o Dr. Lallemant. Um mês
depois, Lallemant pedirá demissão. Na mesma época, Pereira das Neves será suspenso,
e depois afastado defmitivamente, “pela relaxação com que se tem havido no
cumprimento de seus deveres, pouco zelo e nenhuma caridade no tratamento dos
doentes “74.

A INAUGURAÇÃO DO HOSPÍCIO DE PEDRO II

O Hospício de Pedro II é finalmente inaugurado em 5 de dezembro de 1852,


embora as obras tenham prosseguido até 1855. O Dr. Cruz Jobim é nomeado como seu
primeiro diretor (1842-1852). O tom hiperbólico quanto a sua fundação é corrente nos
registros de época ou mesmo nos atuais. Chamado de “mais belo edifício das Américas”
ou “suntuoso palácio da Praia Vermelha”, seu desenho, de grande requinte
arquitetônico, foi inspirado no hospital criado pelos padres de São João de Deus nos
arredores de Paris que, laicizado pela Revolução Francesa, passou a chamar-se Maison
Nationale de Charenton5.
Construído nos limites da cidade, as condições de ar puro e tranquilidade são
destacadas nos registros. A planta básica foi de Domingos Monteiros, detalhes
arquitetônicos couberam a Joaquim Cândido Guillõbel, como as sacadas, e a José Maria
Jacinto Rabelo, que projetou a canalização d’água e a escadaria. O princípio da
vigilância, arquitetonicamente materializado nas instituições congêneres da europa, não
foi esquecido por Guillõbel e Jacinto Rabelo, sob a forma de corredores com celas
individuais e de uma torre de vigilância, no centro do prédio. O hospício foi concebido
como um grande retângulo, enquadrando quatro grandes pátios internos, separados por
um corpo central, de modo a distanciar duas alas, uma masculina e uma feminina
(respectivamente, a ala Pinei e a ala Esquirol). Cada ala está ainda dividida em três

71 Idem, pgs. 13-14.


72 Medeiros, Tácito - Formação do Modelo Assistencial... - op. cit. pg. 80.
73 Citado por Machado, Roberto - Danação da Norma - op. cit. pg. 426.
74 Acta da Sessão de Administração do Hospício de Pedro II (1853) 19 fev. transcrito por Medeiros, Tácito -
Formação do Modelo Assistencial... - op. cit. pg. 80.
75 O prédio, atualmente, abriga a reitoria da UFRJ, no campus da Praia Vermelha. Citado por Lopes, Leme - A
psiquiatria e o Velho Hospício - op. cit. pg. 122.

57
Cadernos do IPUB n°8, 1997

classes, a primeira classe, que dispõe de quarto individual; a segunda, com um quarto
para dois alienados; e a terceira, que congrega os indigentes e escravos, com enfermarias
para quinze pessoas (a profunda divisão social do Brasil, entre a elite e a massa de
escravos e miseráveis, não foi esquecida na arquitetura de seu primeiro Hospício). Cada
ala tem dois andares: a andar inferior era ocupado pelos doentes agitados, o andar
superior, pelos doentes calmos. Havia dois grandes refeitórios, um para pensionistas,
outro para indigentes. No andar superior do corpo central, ficava a Capela. Abaixo dela,
a farmácia. Havia ainda salões, bibliotecas e banhos. Cunha Lopes assim descreve a
cerimônia de inauguração do Hospício Pedro II:

Em 1852, a 30 de novembro, com a presença do Imperador, benzeu-se o


edificio e sagrou-se a capela. Quinze dias depois, inaugurou-se o
estabelecimento, celebrando pontificai Monsenhor Narciso da Silva
Nepomuceno, e produzindo sermão alusivo à solenidade o padre frei Antônio
do Coração de Maria. A orquestra foi regida pelo maestro Francisco Manoel
da Silva. Após o ato religioso, foram lidas as atas das sessões da mesa conjunta
da Irmandade da Santa Casa de onde constava ter a administração tomado a si
a tarefa do levantamento do hospital e a elevação duma estátua ao Imperador
para perpetuar a memória da fundação. Finda a leitura, foi descerrada a
cortina que cobria a estátua. Seguiram-se discursos de José Clemente Pereira,
Dr. José Martins da Cruz Jobim, diretor da Faculdade de Medicina, e Dr.
Francisco de Paula Cândido. Por essa ocasião, Suas Majestades Imperiais
aceitaram um refeição oferecida pela Irmandade ”76.

Foram encomendadas, ao famoso escultor holandês Pettrich, sete estátuas de


mármore: A da Ciência; a da Caridade; a do Imperador Pedro II; a de José Clemente
Pereira; a de São Pedro de Alcântara, padroeiro do Império, do país e da capela do
hospital; e as de Pinei e Esquirol. Pinei guardava a entrada da seção masculina e
Esquirol, a da seção feminina. A estátua em mármore de Carrara do Imperador,
revestido de cetro e capa, é posta num pedestal num dos extremos do salão nobre da
edificação. Em sua base, lia-se a seguinte inscrição em latim:

“A Pedro Segundo
Honra e Defesa do Brasil
E deste Hospício
Protegido pela gloriosa sombra de seu nome
Fundador;
Este testemunho de um ânimo agradecido
Os Irmãos do Hospital da Misericórdia
Levantaram
No ano do Senhor de 1852
Em 15 de Dezembro” .

76 Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência a Psicopatas no Distrito Federal - op. cit. pg. 89
77 Transcrito por Moreira de Azevedo - O Rio^de^Janeiro: Sua História, Monumentos, Homens Notávei:
is, Usos e

58
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

No extremo oposto à D. Pedro II irá ficar a estátua de José Clemente Pereira,


empunhando a vara de provedor. Esta última será inaugurada em 1857, como
homenagem à sua morte (1854), em “monumento da glória que ergue o imperador para
si e para o provedor da Santa Casa”78.
A maledicência da época, segundo Leme Lopes , logo criou uma piada que
dizia que a Ciência e a Caridade eram as únicas que não haviam entrado no Hospício,
pois suas estátuas ficaram do lado de fora dos muros, junto aos degraus do pórtico de
granito.
Qual foi o custo total da construção? De início, a subscrição da praça do
comércio rendeu 6.5000$000 e o provedor da Santa Casa doou 2.560$000. Em janeiro
de 1844, José Clemente Pereira comunicou à mesa da Santa Casa que o Imperador
mandara juntar 67.755$800, dinheiro obtido por uma subscrição feita à época de seu
casamento. Até 19 de junho de 1850, incluídos os lucros de duas loterias concedidas
pela Assembléia Provincial do Rio de Janeiro, as doações contavam 567.044$213. Em
1855, com o edifício inteiramente construído, havia-se gasto a quantia de
1.313.451 $481, “provenientes de donativos feitos por SS. MM. Imperiaes, por irmãos
da Santa Casa e fiéis, pelo producto de loterias e supprimentos feitos pela Santa Casa e
OA

por legados de bemfeitores” . Até 1882 foi gasto na edificação um total de


2.672.424$68981.
Boa parte das doações dos benfeitores, que José Clemente Pereira chamava de
“imposto da vaidade”, foi obtida com a venda de títulos de nobreza não-hereditários.
Aqui se pode ver uma dupla afirmação do Império brasileiro: a ampliação da emergente
nobreza local, em geral prósperos comerciantes ou proprietários rurais, ao mesmo tempo
que recolhia doações para a implantação da mais suntuosa instituição de benemerência
já vista no país. Em 1894, diante da discussão sobre quem deveria ficar com a
administração do asilo, o Estado ou a Santa Casa, Machado de Assis escrevia em uma
crônica publicada em “A Semana”:

“Se é verdade que o Hospício foi levantado com o dinheiro de loterias e de


títulos nobiliários, que o José Clemente Pereira chamava de impostos sobre a
vaidade, é evidente que o Hospício deve ser entregue aos doudos, e eles que o
administrem. O grande Erasmo (ó Deus) escreveu que andar atrás da fortuna e
de distinções é uma espécie de loucura mansa; logo, a instituição, fundada por
doudos, deve ir aos doudos. E o que me parece! (...) O seu a seu dono ” .

O INÍCIO DO FUNCIONAMENTO ASILAR

Dois aspectos caracterizaram os primeiros anos de funcionamento do Hospício: a


superlotação e o conflito de autoridade. Falemos sobre eles: o funcionamento asilar

78 Citado por Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência... - op. cit. pg. 93.
79 Lopes, Leme - A psiquiatria e o Velho Hospício - op. cit. pg. 124.
80 A Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e o Hospício de Pedro II - Rio de Janeiro: Villeneuve, 1882. Pg.
21.
81 Citado por Lopes, Leme - idem, pg. 125.
82 Machado de Assis - in Obras Completas, volume III, pg. 637, crônica 149 transcrito por Machado, Roberto -
Danação da Norma.. - op. cit. pg. 485.

59
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

iniciou-se em 8 de dezembro de 1852, quando foram ali internados 140 doentes, 67


vindos da enfermaria provisória da Praia Vermelha e 73 vindos da Santa Casa. O
Hospício fora planejado para comportar 300 doentes. Vinte e um meses após sua
inauguração, sua lotação estava completa. Em 1858 já abrigava 350 doentes, vindos de
várias províncias. Esta média não mais diminuiría. O hospício fica superlotado. Em
1854, estabelece-se a proibição de serem admitidos alienados das províncias sem prévia
autorização do Ministro do Império. Mais tarde, em 1862, o Governo Imperial e o
Marques de Abrantes, provedor da Santa Casa, concordam na resolução de que novas
admissões ficassem proibidas, a não ser que contassem com a anuência do provedor.
Em 4 de dezembro de 1852, o decreto 1.077 cria os estatutos do Hospício de
Pedro II . Em 14 de março de 1858, é aprovado seu primeiro regimento interno, pelo
provedor geral da Santa Casa84. Este regimento determinava que não seriam recolhidos
ao hospício os “idiotas, imbecis, epilépticos ou paralíticos dementes, que se reputam
incuráveis e podem viver inofensivos no seio da família”85. Ou seja, apenas recebería
loucos e, dentre estes, apenas os curáveis. Entretanto, sua condição de única instituição
de seu tipo existente no Império, e sua percepção pela sociedade como um lugar de
abrigo para inúteis e necessitados, faz com que acorram ao Hospício de Pedro II,
muitos como pensionistas pagantes, outros encaminhados pelas autoridades públicas,
toda sorte de incuráveis, de incômodos para a família e sociedade, de arruaceiros,
bêbados, doentes com seqüelas físicas, alguns internados em seus últimos dias de vida.
Segundo Teixeira Brandão86, a proporção de incuráveis é de 2/3, em 1886. Nas celas
individuais com grades, passam a ser colocados dois, três ou mais doentes. A ocupação
média, nas décadas de 60 até 90, passa a ser de 500 internos . A esta população soma-
se um grupo de 50 órfas, administradas pelo recolhimento de órfas da Santa Casa, que
determina que estas ficassem domiciliadas no asilo, auxiliando as irmãs de caridade em
seus serviços. O Hospício toma-se uma entidade caritativa inespecífica para toda sorte
de desvalidos, a serviço de uma administração diretamente subordinada à Santa Casa de
Misericórdia. Este aspecto ressalta, como afirma Roberto Machado, um início que exibe
um “funcionamento secundariamente medicalizado”88.
A proibição de novas internações em 1862 fez com que as autoridade públicas
encaminhassem os loucos que perturbavam a ordem pública para o Asilo de
Mendicidade, também administrado pela Santa Casa, e para as cadeias públicas. Na
década de 80, o Asilo de Mendigos, que tinha capacidade para 200 internos, abrigava
cerca de 350 alienados89. Paim90 relata ser habitual, no asilo de mendigos, colocar os
loucos agitados dentro de caixões destinados aos mendigos mortos, pregar alguns
sarrafos no lugar da tampa e abandoná-los ao relento. Tal situação fez com que a
eficácia do Hospício fosse atacada a partir de dois flancos: de um lado, pelo fato de não
abrigar uma população exclusiva de loucos definida através de critérios científicos e

83 Infomnação contida em A Santa Casa de Misericórdia e o Hospício de Pedro II - op. cit. pg. 21.
84 Idem, idem.
85 Transcrito por Machado, Roberto - Danação da Norma ... - op. cit. pg. 474 - capítulo X, “Da admissão e saída dos
alienados”.
86 Os Alienados no Brasil, op. cit. pg. 43.
87 Segundo Nuno de Andrade - A Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e o Hospício de Pedro II - Ri0 de
Janeiro: Villeneuve, 1882. Pg. 6.
88 Machado, Roberto - Danação da Norma... - op. cit. pg. 475.
89 Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg. 18.
90 Idem, pg. 18.

60
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

convenientemente tratada; de outro, pelo fato de haver no Rio de Janeiro loucos não
recolhidos ao hospício, convivendo com criminosos e mendigos. A onda de ataques
atinge principalmente a administração da Santa Casa de Misericórdia. João Carlos
Teixeira Brandão é uma voz eloqüente a se levantar:

“O Hospício Pedro II, único estabelecimento no município neutro afeto à


reclusão e tratamento dos alienados, está fora da alçada das autoridades
públicas; portanto, não havendo outro, na alternativa de dar liberdade ao
doente (não se cogita de sua cura) com risco de reincidência nos delitos, ou de
encarcerá-los, a autoridade sensatamente adota o segundo alvitre (...) Além de
estar com sua lotação completa, o Hospício é administrado pela Santa Casa de
Misericórdia e a autoridade pública não pode neste colocar doente algum sem
consentimento do digno provedor ”91.

O exercício do cargo de diretor médico do Hospício, no período posterior à sua


implantação, não deve ter sido tarefa das mais simples. Assim é que, à posse do
primeiro diretor, o Dr. Cruz Jobim, seguiu-se a nomeação, em 1853, do Dr. Manoel José
Barbosa, que permanece como único facultativo até 1857. Manoel Barbosa fica no cargo
até 1866, auxiliado por Joaquim Antônio de Araújo e José Teodoro da Silva Azambuja.
Em continuação, foram sucessivamente diretores, até 1887, os Drs. José Ludovico da
Silva, Inácio da Silva Goulart, Gustavo Balduíno de Moura Câmara, Nuno de Andrade
e Souza Lima92 .
Qual era então o alcance da ação médica no Hospício durante esta fase? Em
1886, o asilo abriga 308 doentes. O serviço clínico é composto de cinco médicos. O
atendimento só pode beneficiar realmente um terço dos doentes, pois o resto é de
“dementes incuráveis”, na acepção de Teixeira Brandão . Há três facultativos clínicos e
dois médicos internos. Mesmo assim, o atendimento deixa a desejar. Nas palavras de
Teixeira Brandão:

“Não obstante o excessivo numero de médicos para tão poucos doentes que
possam aproveitar-lhes os cuidados, o serviço clinico deixa muito a desejar. Os
facultativos clínicos limitam-se a visitas diarias, ás 8 da manhã, e a prescrever
os medicamentos indicados pelo estado do doente que examinam. Os médicos
internos permanecem e dormem no hospício, mas não veem os loucos senão
quando algum accidente grave no curso de qualquer moléstia intercurrente faz
recear pela vida desses infelizes, ou quando houve alteração notável na ordem
e disciplina do estabelecimento. Fóra desses casos, os doentes ficam entregues
ao pessoal do serviço economico e aos enfermeiros, que não tem habilidade
para notar as mudanças da symptomatologia mórbida, registrar os factos
dignos de observação, os phenomenos que poderíam esclarecer o juizo
diagnostico e mais particularidades assignalaveis. Motivos são esses que
justificam não ter ainda o Hospício, apesar de 40 annos de existência, dado

91 Transcrito por Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pgs. 17-18.
92 Informações contidas em Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência a Psicopatas no Distrito Federal - op.
cit. pg. 93..
93 Teixeira Brandão - Os Alienados no Brasil - Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Pg. 82.

61
Cadernos do IPUB n°8, 1997

lograr áproducção de um trabalho medico de valor”94.

Apesar da veemência de Teixeira Brandão, decerto havia uma definição médica


na assistência prestada pelo Hospício de Pedro II. Este discurso apoiava-se no modelo
teórico francês. O problema é que, na prática, pouco era oferecido. O tratamento moral
era preconizado, mas oferecia-se apenas algumas atividade de trabalho. Em 1854, por
iniciativa do facultativo Manoel José Barbosa, foram instaladas oficinas de flores,
alfaiate, estopa e colchoaria, que funcionavam durante o dia95. Mais tarde, surgiríam as
de marcenaria e sapataria. Alguns internos trabalhavam nas oficinas, nos serviços
internos e na cozinha. Mulheres ocupavam-se em oficinas de costura e bordado. José
Clemente Pereira providenciou que fossem entregues aos alienados uma rabeca, uma
flauta e um clarinete, “como meio de distração e talvez de cura”96.
Os facultativos empregavam alguns medicamentos: o brometo, o iodeto de
potássio, cloridrato de morfina, revulsivos e purgativos97. Os preparados de beladona, os
compostos ciânicos e antiespasmódicos eram utilizados, bem como digital e
emetizantes. A lipemania era tratada por meio de tônicos, de preparados opiáceos, de
banhos sulfurosos e de duchas. A loucura epiléptica era tratada com preparados de
brometo. A histeria, com antiespasmódicos. A paralisia geral, com opiáceos. Os
superexcitados eram acalmados com banhos momos, camisola de força ou banhos de
emborcação. No centro do Hospício, foram erguidas quatorze casas forte para os
doentes mais agitados. Moura e Câmara, diretor médico em 1878, assinalava que:

“o aspecto lúgubre e a tristeza que infunde a presença das enormes grades


destes quatorze calabouços, tristes na forma, tristíssimos na prática. Eles
trazem a idéia de uma cadeia antiga para toda sorte de criminosos ”98.

Denúncias de violência e maus-tratos contra os doentes eram comuns:

“Um enfermeiro em luta com um doente vazou-lhe um olho, não se podendo


determinar se foi um fato de mera casualidade ou se entrou nisto execrável
brutalidade da parte do enfermeiro. Freqüentes vezes poderá encontrar V. Ex.,
neste hospício, enfermeiros com largas contusões: como é natural, houve luta e
o alienado, que contundiu, não ficou impune

A adoção de medidas violentas e coercitivas, entretanto, estava presente no


próprio discurso médico, associada ao tratamento moral de Pinei e Esquirol, desde que
aplicada pelas mãos de um médico hábil, que a transformasse em instrumento de
correção pedagógica. O que fica clara é a recríminação à violência indiscriminada por
parte dos enfermeiros, autorizada pelas freiras, e a reivindicação do monopólio do uso

94 Teixeira Brandão - Idem, idem.


95 Citado por Jaguary, Visconde de - em A Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e o Hospício de Pedro II -
Rio de Janeiro, Villeneuve, 1882. Pg. 9.
96 Citado por Arruda, Elso - op. cit. pg. 33.
97 Informação contida em Postei, Jacques&Quetel,Claude-Vouve//e//zsroíret7eZap^íaZn-e. ch
98 G B de Moura Câmara-Relatório do médico diretor do Hospício de Pedro II, 1877-1878 no n trXt *
Machado, Roberto - Danação da Norma.. - op. cit. pg. 460. ’ P8> ‘transcnt0 Por
99 G. B. de Moura Câmara - idem, pg. 31; idem, pg. 461.

62
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

da violência pela autoridade médica. Assim é que João Paulo Vieira da Silva, em sua
tese à faculdade de medicina “Tratamento das moléstias mentais” admite o uso
com fins terapêuticos: 1) do cautério, pelo temor que produz; 2) do isolamento na cela;
3) da camisola de força; 4) da privação de visitas e passeios; 5) da diminuição de
alimentos; e 6) dos banhos de emborcação, que consistiam em mergulhos sucessivos da
cabeça do doente em um tanque de água, com duração de dez segundos cada um, em
séries de no máximo seis banhos100.
A rigor, os doentes permaneciam entregues aos cuidados dos enfermeiros e das
freiras e padres da Ordem de São Vicente de Paulo, que priorizavam uma visão
caritativa e religiosa da abordagem da loucura. Um mal estar adicional provinha da
origem portuguesa dos religiosos desta ordem. Em 1855, por exemplo, encarregavam-se
do asilo treze irmãs, doze enfermeiros e um único médico: o diretor Manoel José
Barbosa. As irmãs detinham o poder real e determinavam as regras de funcionamento
asilar. E este conflito entre a ordem médica, portadora de um discurso médico-
científico, e o poder religioso conferido às freiras, irá marcar o funcionamento do
Hospício durante quase quarenta e cinco anos.
Poucos dias após a inauguração do Hospício, um grupo inicial de seis irmãs de
caridade foi transferido do Hospital da Santa Casa para supervisionar a administração da
nova instituição.101 Mais tarde, chegam ao Brasil as irmãs portuguesas, trazidas por
Clemente Pereira. As representantes clericais da Santa Casa, de modo gradual,
absorvem toda a administração. E as baterias do poder médico alijado voltam-se contra
estas.

TEIXEIRA BRANDÃO: O PINEL BRASILEIRO

João Carlos Teixeira Brandão (1854-1921), renomado alienista que não tinha
pudores em se auto-proclamar o “Pinei brasileiro”, nasceu em 28 de dezembro de 1854
em São Marcos, estado do Rio de Janeiro, filho de Felício Viriato Brandão e Maria
Flora Teixeira Brandão . Formado em medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro,
começou clinicando em Barra Mansa, de 1878 a 1880. Suas primeiras publicações
mostram um Teixeira Brandão voltado para a cirurgia: (tOperações reclamadas pelos
estreitamentos de urethra”; “Das quinas"; “Do melhor tratamento das feridas
accidentaes e cirúrgicas”; e a tese “Lesões orgânicas do Coração” com a qual
obtém o grau de doutor em medicina .
Gradativamente, Teixeira Brandão passa a interessar-se pelo tema da alienação
mental. Em seguida, por “sugestão de grande mestre e amigo, o Prof. Torres Homem”,
faz uma viagem à Europa, onde aperfeiçoa-se por conta própria nessa matéria, na
França, Alemanha e Itália104. O nascente campo do alienismo aparece como chance de
ascenção social e reconhecimento público para o cirurgião de Barra Mansa. Em 1883,
retoma à França e apresenta, em 26 de novembro, uma breve comunicação à Société

100 Citado por Arruda, Elso - Resumo Histórico da Psiquiatria Brasileira - op. cit. pg 24.
101 Citado por Paim, Isaias - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg. 15.
102 Citado por Blake, Augusto Victorino - in Diccionario Bibliographico Brazileiro - Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1895. Pg. 393.
103 Idem, idem.
104 Informação contida em “Dados Biográficos do Patrono da Cadeira n. 36 da Academia Fluminense de Medicina”.

63
Cadernos do IPUB n°8, 1997

e . Wfah^gique de Paris, “Des Établissements d’aliénés au Brésil”, por meio da


qua eixeira Brandão toma-se o primeiro brasileiro aprovado como “membre associé
e / anger . Curiosamente, nesta apresentação, o feroz crítico do funcionamento do
ospicio de Pedro II não se pronuncia. Pelo contrário, o tom elegético é predominante:

L'hospice de Pedro II est admirablement situé: éloigne du centre le plus


peuplé, il se trouve placé au sud de la bale de Botafogo, d’oü, dominant un
vaste paysage et ayant sur tous les côtés une grande étendue de terrain qui en
fait partie, il réalise parfaitement les conditions nécessaires pour un complet
isolement (...) Tous ceux qui ont visite cet établissement s 'étonnent de l’ordre,
de l’excessivepropreté, ainsi que des curieux travaux faitspar les aliénés. II va
sans dire que Tarchitecte qui a fait cet hospice a pris pour modele les
établissements analogues de l”Europe: seulement il Ta adapté au climat,
faisant ainsi les compartiments plus largues, les plafonds plus élevés, et ne
regardant nullement aux dépenses nécessaires à sa construction, il en a fait un
édifice somptueux et digne d'admiration. (...) Le Service médical est sous la
surveillance du director qui est responsable de tout ce qui concerne les
malades. Le personnel médical est consideráble: en dehors de deux médecins
internes qui restent tous les deux dans Tasile, il y a encore deux médecins: Tun
chargé du Service des femmes et Tautre de celui des hommmes. (...) La camisole
est presque complètement abandonné, on n’y a recours que dans des cas
exceptionnels. (..) Les moyens physiques et moraux sont simultanément
conseillés. Les premiers sont indiqués par la nature de la maladie, constitution
et tempérament du malade; les seconds sont ceux qui résultent de la pratique et
de l’expérience de tous les aliénistes qui nous ontprécédés” (grifas nossos)105.

De volta ao Rio de Janeiro, Teixeira Brandão prossegue sua feroz campanha


contra a administração do asilo, em termos muito distintos dos usados em Paris. No
decorrer da década de 80106, publica artigos em jornais não-especializados, como “O
Paiz” e o “Diário Oficial”, onde critica a ausência de um verdadeiro tratamento moral no
Hospício, sua superlotação, a violência a que os doentes eram submetidos, a inexistência
de qualquer registro estatístico ou de trabalhos científicos. Denuncia que o Hospício
apenas admitia pensionista pagantes, doentes que enlouqueciam no hospital da Santa
Casa, ou apadrinhados de seu provedor. Reclama a necessidade de uma administração
pelo poder público, com critérios científicos de gestão. O Hospício é denunciado como

baía“Odehospício de de
Botafogo, Pedro é admiravelmente
ondeII domina uma vasta situado:
paisagemdistante do centro
e é cercado uma populoso
por mais ele h
grande extenso ♦ ao suI da
pertence, reunindo perfeitamente as condições necessárias para um completo isolamento ( e.terreno <lue lhe
visitam o estabelecimento surpreendem-se com a ordem, o grande asseio, bem como com ' 1 °d°S aqueles clue
pelos alienados. Não é preciso dizer que o arquiteto que contruiu o hospício teve como °S .Cl!riosos trabalhos feitos
análogos da Europa; somente foram feitas adaptações ao clima, contruindo-se quartos ma’0»6 ° °S estabelecimentos
elevados e, sem economia nas despesas necessárias,à sua conslruçâo, fez-se uma edific£mais
admiração. (...) O serviço médico é fiscalizado pelo diretor que é responsável por tudo ou d Suntuoso e digno de
O pessoal médico é considerável: além de dois médicos internos que moram no asilo h' d FeSpe,to aos doentes,
um encarregado do serviço feminino e outro do masculino (..) A camisa de força ’e r a*™* d°ÍS °Utr0S médicos:
sendo utilizada apenas em casos excepcionais (...) Os meios físicos e morais são simult pratlcamente abandonada,
primeiros são indicados segundo a natureza da doença, constituição e temperamento do d ancamente empregados. Os
da prática e da experiência de todos os alienistas que nos precederam “ Brand- ?°entc; os segundos resultam
établissements daliénés au BrésiP - in Annales Médico-Psychologiques - Park AH n d CarIos Teixeira - "Des
106 Citado por Machado, Roberto - Danação da Norma ... - op. cit. pg. 480 ’ ‘ PêS' 277"283 (trad. nossa)

64
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

um lugar de privilégios e abandono, e não uma instituição voltada para a caridade e a


ciência. Teixeira Brandão identifica no poder clerical a gênese da falta de orientação
científica no asilo: inexistência de registros clínicos, de estatísticas, predomínio de
concepções arcaicas e violentas. O suntuoso Hospício de Pedro II, segundo Teixeira
Brandão:

“(...) o unico estabelecimento, na capital do Império, em condições favoráveis


á cura dos que a insania sorprehendeu no caminho da vida, não póde mais
acolhel-os; o Asylo de Mendicidade, transformado, pouco a pouco, em deposito
de alienados, está litteralmente ocupado; as prisões se acham em idêntico
estado; e no emtanto o numero de doentes augmenta sempre e a exigencia de
collocal-os é cada vez maior!” .

Mesmo a riqueza arquitetônica do Hospício é questionada:

“É forçoso confessar as numerosas imperfeições que se notam no plano


arquitetônico do Hospício de Pedro II; aí a arte esqueceu a ciência; sua
construção é imponente e monumental, porém peca pelo lado científico de sua
. ~ ,,108
missão

E novamente se afirma que os loucos, amontoados junto às grades do hospício,


ficavam expostos à curiosidade dos passantes, que deles zombavam e atiravam objetos.
O mesmo argumento utilizado pelos membros do Sociedade de Medicina e Cirurgia,
mais de quarenta anos atrás.

O AGRAVAMENTO DA DISPUTA PELO PODER

Nuno de Andrade, diretor do asilo entre 1881-82, resolve propor a separação do


Hospício da Santa Casa, argumentando que sua autoridade de clínico era tolhida pelas
atribuições conferidas às irmãs de caridade. A solução, em seu entender, era uma só: “O
meio, que se me depara, é o de separar-se o hospicio da Santa Casa de Misericórdia e
confiar a direcção dele ao Estado”109. Com este intuito, envia carta ao provedor e
conselheiro Visconde de Jaguary, em 1882, onde afirma:

“Mais nitidamente do que eu, comprehende V. Ex. que os regulamentos do


hospicio são de uma sombria contextura. O regimento interno oppõe-se
flagrantemente aos estatutos e é a negação mais radical da legislação
applicavel a um asylo de alienados. (...) Quando aqui chegaram as irmãs de
caridade, o benemerito provedor José Clemente Pereira foi recebe-las e trouxe-
as sob o pallio sagrado; e confeccionando os estatutos do hospicio, teve em
vista render-lhes o soberano preito de admiração e applausos, reservando-lhes
o exercido do mais brilhante attributo do coração feminino: a abnegação. Por
isso dispôz no paragrapho segundo do artigo quarto que as funcções da irmãs

107 Teixeira Brandão, in Os Alienados no Brasil - Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Pg. 78.
108 G. B. de Moura Câmara - Relatório do médico diretor do Hospício de Pedro II, op. cit. pg. 10 (grifo nosso).
109 A Santa Casa de Misericorida do Rio de Janeiro e o Hospicio de Pedro II - op. cit. pg. 7.

65
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

de caridade serião de auxiliares dos facultativos clínicos (...) Seis annos após
veio à luz o regimento interno do hospício, quando as irmãs de caridade já se
havião domiciliado no paiz; e ainda hoje me sorprendo de que a administração
da Santa Casa (...) entregasse, com manifesta postergação do decreto de 18 de
julho de 1852, o governo discricionário do hospício ás irmãs de caridade e aos
padres de S. Vicente de Paulo”110.

Nuno de Andrade apega-se às contradições existentes entre as atribuições das


freiras segundo os Estatutos de 1852 e o Regimento Interno de 1858:

“Os Estatutos commettem o serviço econômico ao administrador do hospício;


mas o regimento confia-o ás irmãs de caridade; os estatutos fazem das irmãs
simples enfermeiras, e o regimento, no art. 45, dá-lhes a direcção das
enfermarias; eleva-as, no art. 30, parag. 3, á mesma hierarchia profissional
do director do serviço sanitario; coloca-as, no art. 61 parag. 1 e 5, muito
acima dos facultativos clínicos (...)”1U.

Sua carta aponta para problemas como roubo e prevaricação de padres e freiras:

“(...) os padres de S. Vicente de Paulo imperão no hospício de Pedro II. O


artigo oitenta e dois do regimento interno ahi está censurando perpetuamente o
clero nacional, e indicando a todos nós que o serviço religioso não foi
instituído para os pobres loucos, que quasi nunca pódem receber o sacramento
da extrema-unção nem purificar-se no exercido do mez mariano; mas sim que
elle foi creado para gozo espiritual das irmãs, que procurão desta sorte redimir
os veniaes peccados com o dinheiro dos desgraçados! Ainda não ha muito
tempo, sr. Visconde, clamava-se no Hospício de Pedro II, pela falta de agua
para o serviço do estabelecimento; (...) Pois bem: os padres de S. Vicente, que
havião comprado um palacete na proximidade do hospício, quizerão isentar-se
de novos dispendios; e a administração da Santa Casa concedeu-lhes que do
encanamento do hospício tirassem, por uma derivação, a agua já escassa para
os loucos! “112.

Para Nuno de Andrade, existia no Hospício uma “efervecencia congreganista”113,


capaz de “vincular o futuro de nossa patria ao poderio da mais temivel das corporações
religiosas!”114.

“Quanto prosperaria o hospício, se em vez de ser, como é, uma anomalia


hospitalar lastimosa, fosse uma casa de tratamento de alienados, onde o
serviço sanitario emergisse com o brilho de nossa missão profissional e com a

110Idem, pgs. 3-4.


1,1 Ibidem, pg. 4.
112 Ibidem, pg- 5.
113 Ibidem, idem.
1,4 Ibidem, ibidem.

66
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

serenidade arguta da abnegação feminina? ”115 (grifo nosso).

Em resposta à Nuno de Andrade, o Visconde de Jaguary observa que os


regulamentos do Hospício não eram de uma “sombria contextura”, mas produto de
judiciosas disposições ditadas pela experiência. Afirma que não via sobreposição de
poderes em termos hierárquicos, e dá um puxão de orelhas nos médicos, no tocante à
sua incapacidade de reconhecer os pendores artísticos dos internos:

“O art. 30 dispõe assim: propor (o direclor do serviço sanitario), de accôrdo


com a irmã superiora, a natureza das officinas e misteres, em que os alienados
devão ser empregados (...) Está visto que - accôrdo - não quer dizer senão -
combinação - e esta é indispensável para que o serviço se faça
convenientemente. (...) O medico é, sem a menor contestação, o unico
competente para determinar o gênero de trabalho que póde convir ao alienado,
e é compatível com suas forças e estado geral; mas o medico não conhece a
aptidão artística de cada um dos enfermos, nem esse conhecimento é da sua
profissão, ao passo que a irmã superiora, que tem a seu cargo a inspecção das
t officinas, lhes será util auxiliar ” .

Em continuação, o Visconde de Jaguary lamenta a falta de confiança


demonstrada por Nuno de Andrade na administração da Santa Casa, afirma que o
Hospicio de Pedro II não era uma “anomalia hospitalar lastimosa”, mas sim “um
estabelecimento modelo e único na América Meridional” . E completa observando
que, para ele, a simples suposição da separar-se o Hospício da Santa Casa era uma
injúria pungente à sua administração. Finalmente, Nuno de Andrade é demitido pelo
Visconde de Jaguary do cargo de diretor, em carta de 4 de maio de 1882. Seu sucessor é
o Dr. Souza Lima:

“V. S. não confia na direcção da administração da Santa Casa, entende que


ella deve passar para o Estado, quando a administração da Santa Casa está
convencida de que póde continuar a ser util a esses infelizes (...) Sendo assim, a
decisão - a que V. S. allude no final de sua obsequiosa carta não póde ser
senão a escolha de outro medico que o substitua no cargo que occupa no
i . • >sI18
hospício

A PSIQUIATRIA COMO ESPECIALIDADE MÉDICA

O demissionário Nuno de Andrade119irá ser o primeiro alienista a ocupar a


cátedra de clínica psiquiátrica e moléstias mentais da Faculdade de Medicina, nomeado

1,5 Ibidem, pg. 5.


116 Ibidem, pgs. 9-10.
117 Ibidem, pg. 11.
118 Ibidem, pg. 15.
1,9 Cuja tese de doutoramento versava sobre “O Tratamento da Nevroses” - citado por Medeiros, Tácito - Formação
do Modelo Assistencial... - op. cit. pg. 81.

67
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

provisoriamente em 18 82120. Ali também será sucedido por Souza Lima, que assume a
cátedra por um curto período121.
Souza Lima foi sucedido, em 1883, pelo jovem médico de 29 anos, o Dr. João
Carlos Teixeira Brandão, alienista, polemista da imprensa e membro associado da
Sociedade Médico-Psicológica de Paris, que se torna o primeiro titular aprovado por
concurso público122, conforme determinava a lei n. 3141 de 1882. Souza Lima saúda o
aparecimento de “uma escola prática de um dos ramos do conhecimento médico que, em
nossos dias, figura entre os de mais alto interesse”123. O alienismo finalmente obtinha o
status de tema médico de ensino especial, trinta anos após a inauguração do hospício.
Até então, os temas da medicina mental eram tratados dentro da Clínica Geral, embora
já existisse a cadeira de Medicina Legal124, cuja titularidade era exercida por José
Martins da Cruz Jobim.

DEUS E A CIÊNCIA NA TERRA DO SOL

O poder médico-alienista reforçado segue identificando o poder religioso como


inimigo do progresso e responsável pelo caos reinante no hospício. Teixeira Brandão
assinala que:

“cumpria o dever humanitário e o dever cívico de chamar a attenção do


governo para os perigos que podem advir do poderio do reacionarismo
ultramontano, do qual elas são meros instrumentos passivos”125.

E prossegue:

“Entregue às irmãs de S. Vicente de Paulo, assemelhava-se mais a um convento


do que a um hospital. De manhã à noite, os cânticos religiosos confundiam-se
com o alarido dos loucos entregues a enfermeiros boçaes, emquanto as irmãs
de caridade cumpriam os preceitos impostos nos estatutos da congregação.
Dispondo das chaves do estabelecimento, faziam o que queriam, dando ingrès
so e sahida a quem bem lhes appetecia; até 1887, reinavam no hospital como
soberanas, não admitindo admoestações nem conselhos. (...) Nestas
circumstancias o dominio das irmãs era absoluto. Os diretores e os médicos
ficavam adstrictos ás informações que as irmãs lhes ministravam. E se algum
deles ousava, suspeitoso, inquirir de facto que não lhe parecia regular,
ouvia insultos que não podia repellir ” .

Em outro trecho, afirma com virulência:

121 Citado por Arruda, Elso - Resumo Histórico da Psiquiatria Brasileira - op. cit. pg. 34.
122 Citado por Medeiros, Tácito - Formação do Modelo Assistencial Psiquiátrico no Brasil - op. cit. pg. 81..
123 Transcrito por Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg 20.
124 Criada pela reforma do ensino de 1832.
125 Teixeira Brandão in Questões relativas à assistência médico-legal a alienados e aos alienados - Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1897 - pg. 96.
126 Idem, pgs. 78-79.

68
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

“Ao tempo das irmãs de caridade, diretoras de fato do estabelecimento, porque


tudo estava a elas subordinado, desde o último empregado até o diretor do
serviço sanitário, o que ocorria ficava sepultado no maior sigilo. Quando,
porventura, o médico, por um acaso providencial, não surpreendia os delitos,
os pobres alienados saíam das casas forte para a vala dos cemitérios, como se
fossem vítimas de um ataque”127.

Teixeira Brandão não hesita em trazer a público duas denúncias: a primeira,


sobre um acontecimento de 1874, o assassinato do interno de nome SanfAnna por
enfermeiros durante uma briga, que as freiras teriam tentado acobertar. A segunda, sobre
a reclusão do alienado Silvestre Marques de Souza durante dois dias, em 1885, na casa
forte, feita sem consentimento do corpo médico . Estes fatos são usados por Brandão
como prova da incúria administrativa, de conluio entre as freiras e a enfermagem, e de
que os médicos eram os verdadeiros aliados dos doentes:

“Os castigos, pela camisola de força, os jejuns impostos aos doentes, as


cacetadas, os máos tratos e até o assassinato eram praticados pelos
enfermeiros com a acquiescencia das irmão que caridosamente os defendiam
quando o facto chegava ao conhecimento do medico ou do diretor”129.

Para Teixeira Brandão, as mudanças necessárias envolviam dois aspectos: a


laicização do asilo, através de sua desvinculação administrativa da Irmandade da Santa
Casa, e o reforço da autoridade médica em sua gestão.
Em 1886, Teixeira Brandão redige o célebre relatório “Os Alienados no Brasil”,
enviado ao Barão de Cotegipe, presidente do Conselho de Ministros e provedor da Santa
Casa130, onde alinhava suas denúncias e chama a atenção para a necessidade da
decretação de leis de amparo ao alienado em nome de sua proteção. O trecho inicial
deste trabalho já evidencia uma relação de cortesia e deferência para com o Barão de
Cotegipe:

“Animado, hoje, por estar na presidência do conselho de ministros o Exm. Sr.


Barão de Cotegipe, muito digno provedor da Santa Casa, que, neste ultimo
cargo, ha tido opportunidade de verificar quão necessária é uma reforma a
esse respeito, vimos desobrigar-nos do compromisso que tomámos perante a
nossa consciência, expondo com franqueza o que pensamos sobre a
interferencia da autoridade nas questões relativas à alienação mental
descrevendo o abandono em que ainda jazem os loucos e quaes as medidas
mais urgentemente reclamadas para melhorar-lhes a sorte ”

O Barão de Cotegipe também havia sido provedor da Santa Casa da Bahia e


conhecia o problema dos alienados. Ele se toma protetor político de Teixeira Brandão,

127 Ibidem, pg. 84.


128 Ibidem, pgs. 85-89.
129 Ibidem, pg. 84.
130 Citado por Medeiros, Tácito - Formação do Modelo Assistencial Psiquiátrico no Brasil - op. cit. pg. 109-111.
131 Teixeira Brandão - Os Alienados no Brasil - op. cit. pg. 60.

69
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

que termina, sob sua influência, sendo nomeado diretor do Hospício de Pedro II em
1887. O relatório de Teixeira Brandão consegue o efeito que Nuno de Andrade não
obteve. E assim, mais um radical ascende à direção do asilo, desta vez para empreender
a ofensiva final por sua medicalização e transformação numa instituição laica, no
contexto de um regime monárquico enfraquecido e de um crescente movimento
republicano.

TODO PODER AOS ALIENISTAS

A primeira medida adotada por Teixeira Brandão revela um populismo que quer
explicitar as vantagens da ascensão do humanitarismo médico ao poder administrativo
total:

“Nomeado medico do hospício pelo Sr. Barão de Cotegipe, de saudosa


memória, em 24 de outubro de 1884, na mesma data cedi metade dos
vencimentos que me competiam para compra de apólices destinadas ao
patrimônio do hospício ”132.

Ao mesmo tempo, Brandão inicia a remodelação administrativa do hospício e


retira poder das irmãs. Um ato exemplar é a expulsão do grupo de órfas, para a qual
alega razões de ordem moral, sem abrir mão da ironia:

“(..) mantinha-se no Hospício um asylo de orphàs, educadas de um modo


edificante na convivência de alienados, que não primam ordinariamente pela
decencia e pelo commedimento de linguagem ”133.

Teixeira Brandão prega que as mentalidades deviam ser reformadas, não apenas
o prédio do Hospício:

“Não é na falta de apparelhos hydroterapicos e electrotherapicos, como


acredita muita gente, que supomos residir a principal causa do atrazo do
hospício, mas na organização do serviço medico e principalmente nas funcções
do director”134:

Brandão considerava essencial o fortalecimento da figura do alienista diretor do


hospício. E esta figura deveria encarnar habilidades especiais, tais como:
1. ser capaz de angariar respeito por seu grande conhecimento científico;
2. conseguir reconhecer os diferentes tipos de loucura e distinguir, dentro das
melhanças
sei das apresentações clínicas, as peculiaridades de cada caso;
3. conseguir orientar uma conduta terapêutica adequada à cada caso em
particular;

132 Teixeira Brandão - Questões relativas a assistência... op. cit. pg. 90.
133 Idem, pg. 78.
134 Teixeira Brandão - Os Alienados no Brasil - op. cit. pg. 99.

70
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

4. ter a habilidade para distribuir ternura ou para punir com severidade, quando
necessário; o alienista deve estar atento ao caminho da justiça;
5. saber ocupar sua função como um exemplo de retidão moral e honradez, que
inspirasse a todos no interior do asilo.
Para Teixeira Brandão, esta era a única reforma que poderia implantar o
tratamento moral entre os alienados e controlar a conduta dos funcionários. A
onipresença do alienista diretor seria reguladora dos desvios passionais de loucos e
funcionários. Neste ponto, revela-se o discípulo fiel de Pinei e Esquirol:
“Com algum sacrifício pecuniário, a administração poderia adquirir
todos os instrumentos indispensáveis ao tratamento das affecções mentaes
(...), mas nem por isso terá destruído o vicio radical que se oppõe ao seu
adiantamento scientifico. O diretor de um asylo de alienados deve ter directa
interferencia em todas as determinações que disserem respeito á occupação,
emprego e distribuição dos doentes. Sua influencia deve-se exercer
constantemente sobre todo o serviço e o pessoal incumbido da guarda ou
vigilância dos alienados. De todas as circumstancias que occorrem no
ambiente a que está o doente submettido póde o director do asylo tirar
partido, como meio de tratamento moral, e, portanto, só aproveitando-se de
todas ellas, ser-lhe-á possível oppôr a variedade dos meios á diversidade das
affeccões e dos caracteres dos doentes. Os empregados do serviço devem
agir segundo as indicações do director, porque só este conhece tudo o que é
relativo aos alienados e qual o concurso que cada empregado póde prestar
para a obtenção de um fim almejado. Na direcção impressa aos diversos
empregados, reside o meio mais geral do tratamento moral, que actúa tanto
mais efficazmente quanto mais constante é sua acção” .
A mesma crença no poder de discernimento do alienista e da ciência é exposta
por Brandão neste trecho de “Os Alienados no Brasil”(1886):

“Seria muito para desejar que o Exm. Sr. provedor ampliasse mais a acção dos
médicos, de modo que elles não se limitassem, como até aqui, á prescrição dos
agentes therapeuticos. Os exercícios methodicos, as distracções e o trabalho,
que constituem a base do tratamento moral, deveriam ser ordenados e
presididos pelos médicos. As indicações do tratamento moral dependem da
forma de loucura, das moléstias orgânicas que, sendo as mesmas, podem trazer
delírios diferentes, da posição social, do caráter, enfim das particularidades
moraes do doente; não é possível, portanto, subordinal-as a regras communs e
só a experiencia esclarecida do médico pode ser guia seguro na escolha e
direção dos meios hygiênicos que mais convém aos doentes”136.

A convicção no discernimento conferido pelo saber é de certa forma auto-


explicativa, gerando um raciocínio circular: é a possibilidade de acesso ao conhecimento
nosográfico, que é generalizador em suas classificações, que permite ao alienista o
reconhecimento da diferença e da peculiaridade. Portanto, é apenas o conhecimento

135 Idem, pgs. 99-100.


136 Teixeira Brandão, ibidem, pgs. 80-81.

71
Cadernos do IPUB n°8, 1997

médico que pode romper as regras estabelecidas pelo conhecimento médico, a partir de
justificativas que sejam igualmente médicas. O que equivale a dizer que o discurso
teórico da medicina mental é aquele que detém a verdadeira competência em relação à
verdade dos fatos clínicos. Nada mais natural, por conseguinte, que detenha o
gerenciamento das instituições às quais os loucos estão recolhidos.
De todo modo, o pensamento de Teixeira Brandão é um produto de seu tempo.
Brandão faz uma exaltação tardia da cruzada do conhecimento científico contra as
concepções religiosas e os preconceitos do passado, no melhor estilo do ideário
iluminista do século XVIII. Para Brandão, a marcha da ciência traria a regeneração
moral da humanidade:

“Tudo prenunciava uma segura regeneração moral. As velhas doutrinas mal se


sustinham sobre os alicerces carcomidos pelo tempo e já abalados por
estranhas lufadas demolidoras, indicios da borrasca que desencadeou-se nos
fins do século passado. Em todos os ramos dos conhecimentos humanos, os
espíritos agitavam-se á procura de um novo ideal (...) As falsas crenças de
outras eras foram em breve destruídas; os preconceitos erroneos, abafados; os
princípios abstrusos de um metaphysica esteril, substituídos por criteriosas
noções, filhas da observação e experiencia”137.

Brandão, bem como muitos pensadores contemporâneos, acreditava na promessa


da revolução antropocêntrica que o espírito das luzes e da ciência acenava: o domínio da
Terra e de tudo que nela acontece. O método experimental empirista de Francis Bacon
era, a seu ver, um baluarte desta transformação:

“Luthero não trepidara em arrostar os anathemas da curia romana. Galileu


ousara affirmar que não era a terra o centro ao redor do qual movia-se todo o
systema planetário; (...) Kepler estabelecia as leis do movimento dos planetas e
firmava as bases da astronomia moderna. Bacon, enfim, formulou o principio
do methodo experimental, dizendo: Non fingendum, non excogitandum sed
inveniendum quid naturafaciat aut ferat”1^.

A concepção do triunfo representado pelo advento de uma sociedade científica,


sabemos, desemboca no positivismo de Auguste Comte (1798-1857), na segunda
metade do século XIX. Para Comte, a humanidade passaria por três estágios: teológico,
metafísico e positivo, este último caracterizado pela hegemonia da ciência, vista, de
modo paradoxal, como religião da humanidade. No Brasil, o positivismo estava em alta.
Entre os positivistas brasileiros, incluíam-se políticos como Lauro Sodré e Barbosa
Lima. Um Apostolado Positivista havia sido criado por Miguel Lemos e Teixeira
Mendes, que também fundaram uma Igreja Positivista. A influência do positivismo
junto à jovem oficialidade militar era marcante, como no caso de Benjamim Constant. E
é sob o signo do ideário comtiano que a República será proclamada no Brasil.

137 Teixeira Brandão - Os Alienados no Brasil - op. cit. pg. 62.


138 “Não imaginando, não elocubrando, mas apenas encontrando o que a natureza faz ou semeia” (trad nossa)
Teixeira Brandão - Elementos Fundamentaes de Psychiatria Clinica e Forense - Rio de Janeiro: Leite Ribeiro &
Maurillo, 1918. Pg. 7, (Grifo nosso).

72
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

A REPÚBLICA E O HOSPÍCIO NACIONAL DE ALIENADOS

A proclamação da República (1889) irá encontrar na direção do Hospício de


Pedro II o ardente republicano, liberal e anticlerical Teixeira Brandão. Ele é mantido
pelo novo regime. Finalmente, em 11/01/1890, o governo republicano edita o decreto
142-A, que desanexa o Hospício de Pedro II da Santa Casa de Misericórdia139 e
determina a reversão do patrimônio a ele pertencente. O asilo passa à administração do
Estado e sua denominação é mudada para Hospício Nacional de Alienados140. As freiras
são expulsas do asilo. Teixeira Brandão negou haver influído nesta decretação,
atribuindo-a exclusivamente à iniciativa do Ministro do Interior Aristides Silveira Lobo.
Mas sua interferência no fato parece inegável.
Em seguida, o decreto 206-A, de 15/02/1890, cria a Assistência Médico-Legal a
Alienados, englobando o Hospício Nacional e as Colônias de Mesquita e São Bento, na
Ilha do Governador141. Teixeira Brandão é nomeado diretor. Este serviço, vinculado ao
Ministério do Interior, defme-se como tendo o fim de “socorrer os enfermos alienado,
nacionais e estrangeiros, que careçam de auxílio público, bem assim os que mediante
determinada contribuição derem entrada em seus hospícios”142. Pelo Hospício nacional
passariam todos os doentes admitidos, sendo o único a receber pensionistas. As colônias
ficariam reservadas aos indigentes.
Os aspectos definidores do caráter médico e científico do funcionamento asilar
são reforçados. O decreto 896, de 29/06/1892, cria e concede autonomia ao laboratório e
ao museu anatomopatológico do Hospício143. O primeiro chefe do laboratório de
análises foi Mário Nunes Galvão, que estudara em Viena e Würsburg.
Também por iniciativa de Teixeira Brandão foi criada a Escola Especializada de
Enfermeiros, pelo decreto do Governo Provisório de 27/09/1890, como modo de dar um
estatuto técnico à formação destes profissionais e esvaziar a influência de religiosos
nesta função. A escola, entretanto, só começou a funcionar em 1905, já sob a direção de
Juliano Moreira144.
Segue-se o decreto 1559 de 7/10/1893, que atribui ao chefe de polícia ação
administrativa sobre os alienados indigentes, e determina as modalidades de
seqüestração e alta dos mesmos em asilos públicos145: um primeiro esboço de
legislação, quarenta anos após o início do funcionamento do hospício.
Este decreto também amplia o número de médicos no Hospício, cria o cargo de
oftalmologista e diretor do serviço sanitário, e um serviço de avaliação preliminar dos
pacientes que se apresentavam para ser internados no Hospício Nacional: o pavilhão de
observação146. Neste serviço, sob direção do catedrático de psiquiatria Teixeira
Brandão, os doentes seriam examinados por até 15 dias, para decidir seu
encaminhamento. O pavilhão também serve para as aulas dadas ao alunos do sexto ano
do curso médico. O professor de psiquiatria era pago pela Assistência a Alienados,

139 Citado por Lopes, Leme - A Psiquiatria e o Velho Hospício - op. cit. pg. 126.
140 Citado por Paim, Isaías - O Hospital Psiquiátrico ... - op. cit. pg. 150.
141 Citado por Medeiros, Tácito - Formação do Modelo Assistencial... - op. cit. pg. 111.
142 Artigo 2 do decreto 206-A - trancrito por Paim, Isaías - O Hospital Psiquiátrico ... - op. cit. pgs. 150-151.
143 Citado por Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência... - op. cit. pg. 95.
144 Citado em “Dados Biográficos do Patrono da Cadeira n. 36 da Academia Fluminense de Medicina”.
145 Citado por Paim, Isaías - Primórdios da Psiquiatria no Brasil - op. cit. pg. 21.
146 Citado por Lopes, Cunha - Notícia Histórica da Assistência... - op. cit. pg. 94.

73
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

devendo residir em casa vizinha ao Hospício, com a incumbência de atender os doentes


do pavilhão a qualquer hora em que fosse solicitado147. Este pavilhão, mais tarde
chamado Instituto de Psicopatologia da Assistência aos Alienados, é a origem histórica
do Instituto de Psiquiatria da UFRJ148.
Quanto ao exercício de medidas coercitivas contra os doentes agitados, antes
denunciadas como indiscriminadas c sem orientação terapêutica, vemos que Brandão
não as aboliu, mas restringiu-as à uma decisão de cunho médico. Os Estatutos do
Hospício de Pedro II de 1892, elaborados já durante a República, observam no capítulo
III, “Do regimen hygienico e disciplinar

“ (...) 7. Os alienados que manifestarem tendências impulsivas, desrespeitarem


aos médicos e outro funccionarios, ou se entreguem à prática de actos que
requeiram correctivo, ficarão sujeitos, a juizo do medico, às seguintes penas:

1. Privação do recreio.
2. Reclusão em uma cellula;
3. Collete de força.
8. Quando regressarem do recreio, serão revistados pelos primeiros
enfermeiros ou inspectoras, antes de entrarem para suas sub-secções.
9. Aos que for prescripto o tratamento pela eletricidade, serão conduzidos à
presença do chefe do gabinete electrotherapico, com guia do medico que o
enviar.
Art. 7 . Sem ordem do medico respectivo não se applicará ducha a doente
j „149
algum

Teixeira Brandão procura influir junto à legislação sobre os alienados, dando


sugestões em sua maioria inspiradas na lei francesa de 1838. Também cita as leis da
Bélgica (1850) e Inglaterra (1890). No artigo “Questões relativas a Assistência Medico-
Legal a alienados e aos alienados” (1897) propõe o estabelecimento de normas
jurídicas e clínicas que permitam que seja feita a distinção “dos alienados perigosos, dos
alienados criminosos e dos comdemnados comuns”150. Apresenta como modelo
aceitável o texto integral dos artigos 38, 39 e 40 da lei francesa de 1838, que compõem
o título “Des condamnés devenus aliènés dits criminels; des inculpès presumes aliènés
et soumis à une expertise médico-légale” . Neste trabalho, Brandão, já como diretor,
também relata sua campanha contra o mau funcionamento anterior do asilo, e procura
defender-se de acusações que pipocavam contra a sua gestão, principalmente quanto ao
alto índice de mortalidade hospitalar (comentários afirmavam atingir a 1/3 do total de
internos). Teixeira Brandão é acusado pela imprensa de preocupar-se mais com sua
carreira política do que com o atendimento dos alienados. Também é chamado de

w Citado por Medeiros, Tácito - Formação do Modelo Assistencial... - op. cit. pgs. 81-82.
148 Segundo Paim, Isaías - O Hospital Psiquiátrico ... - op. cit. pg. 153.
149 Instrucções para o Serviço Interno do Hospício Nacional dos Alienados - Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1892. Pg. 7, (grifos nossos).
150 Brandão, Teixeira - Questões relativas a Assistência Médico-legal a alienado e dos alienados - Rio de Janeiro-
Imprensa Nacional, 1897. Pg. 107.
151 Idem, pg. 113 - transcrito por Teixeira Brandão.

74
f
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

ultrapassado em termos teóricos, por aferrar-se aos “decadentes princípios do alienismo


francês”. Brandão defende-se, responsabilizando os monarquistas e os membros da
direção da Santa Casa como financiadores de uma campanha de difamação sem base na
realidade, motivada por sentimentos de vingança.
Com a morte de seu protetor, o Barão de Cotegipe, e o recrudescimento da
campanha contra sua gestão, Teixeira Brandão deixa a direção do Hospício e da
Assistência Nacional aos Alienados, que é extinta em 1899, por medida de economia..
Deixa também a cátedra de Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina, que é
ocupada interinamente por Márcio Néry (1904-1907) e depois por Henrique Roxo
(1911-1921), em caráter efetivo152.
Teixeira Brandão dedica-se intensamente à atividade política, atuando como
polemista através da imprensa da capital federal. É eleito deputado federal pelo Rio de
Janeiro por dois mandatos: de 1903 a 1911; e de 1915 a 1920153. Em 1903, o deputado
João Carlos Teixeira Brandão é o relator, junto à comissão de saúde do Congresso, do
projeto de lei 1.132 que, aprovado em 22/12/1903154, toma-se a primeira lei geral sobre
a jurisprudência e assistência aos alienados no Brasil. O campo de jurisprudência do
alienismo, afinal, estava consolidado no Brasil.
O deputado Teixeira Brandão também será relator, junto à Câmara, do projeto de
lei que institui a vacinação obrigatória contra a varíola155. O projeto, parte da estratégia
do diretor da Saúde pública Oswaldo Cruz (1872-1917) para a reforma sanitária do Rio
de Janeiro, foi apresentado no Senado por Manuel José Duarte, membro da Comissão
de Saúde Pública, e aprovado em 20 de julho de 1904. Sabemos da polêmica que
seguiu-se a esta aprovação, que culminou com a rebelião popular conhecida como a
Revolta da Vacina (1904). Diante dos protestos populares e de médicos contra a
obrigatoriedade da vacinação, e contra a necessidade de apresentação do atestado de
vacina para matrículas, empregos, casamento, retirada de título eleitoral, etc., o relator
do projeto, Deputado Teixeira Brandão, manifesta publicamente sua desaprovação
contra tal rigor156. Aqui, mais uma vez, cruza-se o destino dos pioneiros da higiene
pública e dos alienistas no Brasil.
Em 1897, Teixeira Brandão, junto com Azevedo Sodré, fundou a Sociedade de
Jurisprudência Médica e Antropológica, o “Brazil Medico”, da qual os “Archivos de
Jurisprudência Medica e Antrophologyca” eram o órgão oficial137 . Esta pode ser
considerado um embrião de organização institucional do alienismo, embora estivesse
mais voltada para aspectos médico-legais da matéria. No entanto, será apenas em
novembro de 1907 que, por influência de Juliano Moreira, fundar-se-á a Sociedade
Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal , cujo órgão oficial toma-se os
“Archivos Brasileiros e Psychiatria, Neurologia e Sciencias Affins”159Esta foi, de fato,

152 Informações contidas em Arruda, Elso - op cit. pg. 40.


153 Fonte: Annaes do Congresso Nacional - Vol. II - abril e maio de 1920.
154 Citado por Medeiros, Tácito - idem, pg. 114.
155 Citado por Scliar, Moacyr - Oswaldo Cruz: entre Micróbios c Barricadas - Rio de Janeiro: Relume-
Dumará:Prefeitura, 1996. Pg. 55.
156 Informações contidas em Scliar, Moacyr - idem, pgs. 52-61.
157 Citado em “Dados Biográficos do Patrono da Cadeira n. 36 da Academia Fluminense de Medicina”.
158 Citado por Arruda, Elso - op. cit pg. 44.
159 O primeiro número dos “Archivos Brasileiros de Psychiatria, Neurologia e Sciencias Affins” data de 1905. Foi
editado pelo então diretor do Hospício Nacional dos Alienados, Juliano Moreira, e pelo alienista Afrânio Peixoto. O
número 1 da publicação, portanto, é anterior à fundação da Sociedade de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal.

75
Cadernos do IPUB n° 8, 1997 t

a primeira sociedade científica brasileira especificamente voltada para assuntos


psiquiátricos. Teixeira Brandão é eleito presidente de honra. O primeiro congresso
brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal também lhe confere este título .
Entretanto, o tempo de pioneirismo francófilo de Teixeira Brandão havia-se esgotado.
Capitaneada por Juliano Moreira, a psiquiatria brasileira caminhava a passos largos para
sua germanização.

BIBLIOGRAFIA

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Imprensa Nacional, ed. set/1903; out/1903; jul/1904; out/1904; ago/1906*

A rigor, foi a primeira publicação científica regular sobre psiquiatria surgida no Brasil. - informações contidas em
Arruda, Elso - idem, pgs. 34 e 44.
160 Citado em “Dados Biográficos do Patrono da Cadeira n. 36 da Academia Fluminense de Medicina”.

76
Nascimento da Psiquiatria no Brasil

dez/1906; jul/1907; set/1907; out/1907; abr/1909; abr/1915; mai/1915; set/ 1917;


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78
LOUCURA, SANIDADE E TERAPÊUTICAS: O CASO DA
ESQUIZOFRENIA*

Ana Teresa A. Venancio

INTRODUÇÃO

Quando pensamos nas palavras Loucura, Sanidade e Terapêuticas somos atraídos


a definí-las de acordo com o sentido que acreditamos ser verdadeiro. Vou propor aqui
um outro caminho de reflexão: ao invés de definir essas palavras vou tentar
compreender o significado de que podem estar imbuídas quando relacionadas a uma
categoria específica corrente no meio psiquiátrico: a de esquizofrenia.
Assim como todos os outros estados do ser que remetemos de um modo geral à
"loucura” ou à sanidade (e as terapêuticas correspondentes a esses estados) a
esquizofrenia é uma construção sócio-cultural e é como tal que proponho observá-la.
Desnaturalizar a palavra esquizofrenia e o estado que ela designa significa considerar
que não estiveram desde sempre presente entre nós, esperando que algum pensador ou
psiquiatra genial viesse somente descobri-los. Ao contrário, o que quero destacar é que
quando a categoria esquizofrenia surge como diagnóstico psiquiátrico ela vem
exatamente reifícar uma representação social específica a respeito da Pessoa moderna: a
do "eu dividido”. Isto é: o fato de que nos é possível imaginar e tentar comprovar a
existência de uma cissão interna do sujeito.

A NOÇÃO DE PESSOA MODERNA: O CASO DO "EU DIVIDIDO"

Não poderemos analisar aqui, no espaço deste trabalho, a rica trajetória da idéia de
um "eu dividido" no processo de organização dos saberes "psi”. Quero somente
destacar que alguns temas caros à organização "científica"1 desses saberes (ao menos
desde a 2a metade do século XVIII) ajudaram à própria construção da representação de
um "eu dividido”: o tema da influência, o do magnetismo ou mesmerismo, o da
sugestão, o do sonambulismo, o da hipnose e o do desdobramento da personalidade ou
personalidade múltipla.
O surgimento desses temas nessa ordenação, por sua vez, implicou menos a idéia
de superação de um tema por outro2, e mais na construção crescentemente radical de
uma representação "científica” de Pessoa interiorizada, acompanhada pari passu por
especificações cada vez maiores a respeito da existência de uma cisão interna do sujeito.
Verificamos assim que da influência ao desdobramento da personalidade a
questão fundamental da relação do homem com "o mundo" se manteve mas,

. Este texto foi originalmente apresentado pela autora na mesa redonda "Loucura, Sanidade, Terapêuticas" do I
Congresso de Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro, novembro de 1996.
” Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ.
1 O conhecimento especial izante, a experimentação e as provas.
2. Testemunha a favor dessa afirmativa, por exemplo, o fato do tema remoto da influência ser objeto de livro recente
- Roustang (1990) - mas sob a condição de tema pertinente aos desenvolvimentos atuais do conhecimento
psicanalítico (numa retomada do desafio originário do "hipnotismo").
Cadernos do IPUB n°8, 1997

concomitantemente, a forma e conteúdo dessa relação se transformaram. A palavra


influência - "espécie de fluxo considerado proveniente dos astros e agindo sobre os
homens e as coisas" representante no século XIII de uma relação totalizante, passou a
significar, a partir do século XVIII, uma relação do indivíduo com os outros homens e
consigo mesmo. Relação "vivida" entre os homens e ele próprio, porque inscrita no
terreno das sensações propriamente humanas, estas últimas entendidas num sentido
físico-moral3.
Foi sob o prisma desse sentido, ao mesmo tempo físico e moral, que o tema da
influência foi retomado por Franz Mesmer (1734/1815), dando origem ao que se
chamou de mesmerismo ou magnetismo animal.4 Assim como os espíritos animais, os
fluidos mesméricos seriam aqueles que percorreríam as fibras nervosas as quais, por sua
vez, ao comunicarem as partes mais heterogêneas do corpo, tomavam o indivíduo uma
totalidade físico-moral integrada.
Seguindo a análise de Duarte (1986) sobre a configuração do nervoso, observa-se
que também a teoria mesmérica apontava para uma nova concepção de Pessoa, ao
mesmo tempo individualizante e monista: individualizante porque as concepções .
criadas a respeito da Pessoa direcionavam-se para a observação da singularidade do ser
humano e sua interioridade; monista, porque a representação dessa interioridade, vista
como encarnada nos nervos, permitia ao substrato desses últimos veicular também as
qualidades morais individuais.5
A esse processo totalizante em direção à interioridade individual, observada sob o
prisma ao mesmo tempo físico-moral, encontramos associado o desenvolvimento do fio
da determinação/vontade: discussões e explicações a respeito do que podia ser
articulado a um determinismo - fosse físico, fosse moral - ou ao livrê-arbítrio individual.
O tema da influência passou assim, paulatinamente, a ser traduzido em termos de uma
das faculdades humanas relativa à interioridade do sujeito: a vontade6.
A investigação sobre a determinação física da vontade (pelos nervos) foi, por sua
vez, crescentemente deslocada para uma ênfase na sua determinação moral. Não seria
mais somente o sistema nervoso o único a ter seu véu levantado e seu conteúdo
explorado. Os estados de sono e outras partes "obscuras", "desconhecidas" e não
colocadas até então em "experimentação", começavam a ser investigadas e trazidas às
claras 7, conformando, a partir de fins do século XVIII até a primeira metade do século

3. A obra de Condillac de 1754 - Traité des Sensations é citada por Roustang (1990) como paradigmática da crítica à
crença na ação dos astros sobre os homens e da mudança de perspectiva para as sensações propriamente humanas.
\ Para uma compreensão mais aprofundada da teoria mesmérica ver Mesmer (1779).
s. A análise de Duarte (1986) sobre a configuração do nervoso certamente é muito mais complexa e detalhada do que
os poucos pontos aqui ressaltados. No entanto, nesse momento cumpre destacar apenas a preeminência do aspecto
totalizante da concepção de pessoa que se forjava e o caminho percorrido, então, em direção à interiorização
individual.

6 Conforme Barberis, (1992), já em 1785, o marquês de Puységur, discípulo de Mesmer, levou ao conhecimento
deste último uma sua experiência modificada do mesmerismo. O paciente por ele magnetizado, ao invés de cair nas
crises e convulsões usuais provocadas pelo magnetismo animal, passara a um estado de sono. Mesmer, por sua vez,
interpretaria o sonambulismo como uma das formas possíveis de crise mesmérica e Puységur, gradativamente se
afastaria da idéia de seu mentor sobre a presença do fluido magnético. Para Puységur o verdadeiro agente de cura
seria a vontade do magnetizador. As possibilidades de comunicação da vontade entre os indivíduos considerando çp
mesmo a não "consciência" de uma das partes, passaram a ser um ponto central.

7 Como exemplo Roustang (1990) cita o trabalho apresentado por Maine de Biran na Sociedade Médica de Rero
em 1807, intitulado Mémoires sur les perceptions obscures ou sur les impressions générales affectivesetfes

80
Loucura, Sanidade e Terapêutica

XIX, o que Barberis (1992) chamou de uma cultura magnético-sonambúlica. Tais


estudos magnético-sonambúlicos já demonstravam uma preocupação com a
possibilidade de existência de uma outra, "segunda”, personalidade, por vezes mais
brilhante que a primeira e também possuidora de memória.8
Impossível retomar e reconstruir aqui todas as "descobertas" e discussões a
respeito da existência, num mesmo indivíduo, de mais de uma personalidade. . Mas é
notável que tais discussões levaram, à época, à reflexão sobre a constituição da esfera
eminentemente "obscura" da "psique" humana. Conforme Barberis (op. cit.) durante
todo o século XIX discutiu-se a questão da existência de mais de uma "organização
psíquica" e de suas possíveis inter-relações, desenvolvendo-se os conceitos de duplo eu,
dipsiquismo, e até de uma "psique" múltipla: o polipsiquismo? Nesses debates, cumpre
ressaltar que os temas da memória e da consciência passaram a ser amplamente
discutidos, isto é: a existência ou não de memórias correspondentes a cada uma das
personalidades e a questão da consciência de uma personalidade em relação a outra.
Destituía-se, assim, a preeminência até então dada à unidade da personalidade ou
do indivíduo, fundamentando-se a possibilidade de observação da construção de outros
"personagens" dentro, e por obra, consciente ou inconsciente, de um mesmo eu.
Entretanto, esse trajeto em direção à "descoberta" da interioridade do indivíduo
esteve longe de ser linear e unívoco. A entrada em cena de investigações sobre a
pluralidade da personalidade individual, a partir da analogia com as experiências
oníricas, não neutralizou de uma vez por todas a forte concorrência das teorias
fisicalistas fundamentadas nos nervos, produzindo mesmo combinações sui generis.
como a de hipnose?®'. fadiga nervosa causada ao se fixar um objeto de muito perto,
quando ocorrería um estrabismo convergente por parte do paciente.
A "importância" do tema da hipnose se deve mesmo ao fato dele ser expressão de
mais uma das tentativas de reunião da atenção às esferas física e moral do indivíduo.
Uma tentativa representativa do "corpo científico" em gestação e afirmação, frente a
saberes vistos, à época, como não totalmente "autorizados" ou legítimos - como foi o
caso do mesmerismo - e que desempenhava o papel de mediação entre a idéia - mais
antiga - da influência, e a mais atual, do "eu dividido".

sympathies en particulier. Interessante reencontrar aqui a categoria da simpatia; uma das noções que, juntamente com
os humores, os temperamentos e a melancolia conformou o que Duarte (1986) chamou de configuração da
melancolia, por contraste à configuração do nervoso e à configuração do psicológico.
8.Segundo Barberis (1992), em 1803 Reil relacionaria alguns estados de sono à dissociação da personalidade. Para
ele o fenômeno da dissociação da personalidade seria similar ao que se verificava em sonhos normais em que o
sonhador representava apenas um dos papéis, apesar de todos os atores serem criações de sua fantasia.
9. Segundo Barberis (1992) a palavra polipsiquismo parece ter sido criada por Durand de Gros, que afirmava que o
organismo humano era formado por segmentos anatômicos diferenciados a que correspondiam diferentes "eus"
psíquicos. Cada "eu" teria sua própria consciência, a faculdade de percepção, de memória e de realizar complexas
operações psíquicas. Entretanto, esses "eus" encontrar-se-iam subordinados a um "eu" geral, ou consciência normal;
a soma de todos os "eus" constituindo a vida inconsciente do indivíduo. Na experiência da hipnose, o eu totalizador
era colocado de lado, emergindo à consciência um certo número diferenciado de "eus".
10.Em 1841, ao se impressionar com uma demonstração feita pelo aluno de Puységur e magnetizador francês
Lafontaine, o médico James Braid escreveu, dois anos depois, Neurohypnology or the Rationale of Nervous Sleep
Considered in Relation -vvith Animal Magnetism. (Neurohipnologia ou a Análise Racional do Sono Nervoso
Considerado em Relação ao Magnetismo Animal). Braid criava, então, a palavra hipnose. Modificando algumas
práticas já utilizadas, fazia os pacientes fixarem seu olhar num objeto luminoso, ocasionando assim a hipnose. Sob a
égide dos conhecimentos da fisiologia nervosa e cerebral (ao invés da teoria do fluido magnético), Braid mesclava
suas concepções teóricas com a prática mesmérica das sugestões.

81
I
Cadernos do IPUB n° 8, 1997 i
1 .1
O "EU DIVIDIDO” PELA PSIQUIATRIA

No que se refere especificamente à relação entre a idéia de loucura e a de um "eu


dividido", podemos dizer que elas parecem ter sido tematizadas de forma entrelaçada já
no início do século XIX - à época do surgimento da Psiquiatria. Segundo a análise de
Swain (1977), tal entrelaçamento seria visível na concepção de Hegel (1817) sobre a
loucura propriamente dita, que vinha se contrapor à idéia kantiana de vesânia. Em
Kant (1798) a loucura estaria relacionada à disposição das faculdades de entendimento
e de julgamento, sendo a vesânia a Desrazão por excelência - como uma "outra" regra -
fora da Razão. Já em Hegel (1817) a loucura propriamente dita seria " 'um simples
desarranjo, desordenamento, uma simples contradição no interior da razão, a qual se
encontra ainda presente’. Hegel desloca assim a loucura exterior, onde a situava Kant,
para o interior da razão, de uma razão ao mesmo tempo e indissoluvelmente posta em
jogo e conservada." (Hegel, 1817:376/77 apud Swain, 1977: 181). 11
Considero entretanto que, em ambos os casos, a idéia de ruptura - na qual o
sujeito estaria envolvido na situação de loucura - está diretamente associada à faculdade
do juízo, inscrevendo-se assim dentro da discussão em tomo da dicotomia
razão/desrazão. Desta feita, o que se tematizava era menos a divisão do sujeito do que
a razão, em si contraditória, do sujeito. A idéia de um sujeito dividido, se presente,
encontrava-se englobada pela preeminência da discussão sobre a faculdade - humana -
da Razão, da tematização sobre sua totalidade e sua contradição.
A própria análise de Swain (1977) ressalta a importância que Hegel teria dado a
Pinei e Esquirol - enquanto os fundadores da primeira Psiquiatria - por terem
descoberto, com a idéia de alienação, ao mesmo tempo um resto de razão nos
alienados e o princípio aí contido da possibilidade da cura: na sua natureza a loucura da
alienação implicava a conservação do ser de razão e, por consequência, era considerada
curável em natureza. Neste sentido, embora a primeira Psiquiatria tenha cunhado a idéia
de um indivíduo alienado em relação a si mesmo, em sua alienação o sujeito manteria
um núcleo são/razoável e por isso seria passível de ser alcançável por outrem: o
V • + 12
aliemsta.
Somente no início deste século é que a concepção de um "eu dividido" é
realmente entrelaçada à questão da loucura e assume uma conotação especificamente
psiquiátrica, expressa na categoria esquizofrenia. Essa categoria, empregada a partir de
1906 por Éugen Bleuler (no plural: o grupo das esquizofrenias), vinha se contrapor à
concepção clássica de demência precoce, sistematizada pelo psiquiatra alemão Emil
Kraepelin.
Segundo Bercherie (1989), o termo demência precoce embora muito
frequentemente utilizado na França desde Morei, designava somente um modo, uma
forma terminal possível para quaisquer dos grupos por Morei classificados como de
loucura.
Com Kraepelin a categoria demência precoce passaria a se constituir como

""Na loucura, diz Hegel, ’o sujeito se acha na contradição entre sua totalidade sistematizada no interior de sua
consciência e, de outro lado, a determinação particular que, nessa totalidade, não é nem fluida, nem ordenada on
subordinada’" .(Hegel, 1817:375 apud Swain, 1977: 183 ).
,2. Em Venancio (1990) já havia considerado o aliemsmo enquanto alicerce tanto do conhecimento psiquiátrico
"moral" a respeito da "loucura" quanto da afirmação da possibilidade terapêutica desta última.

82
Loucura, Sanidade e Terapêutica

categoria nosológica, como entidade psiquiátrica clínica. Ela aparece pela primeira vez
na 6a edição de seu Compêndio de Psiquiatria (1899)13: seu trabalho resumo do que se
tentou em termos nosográficos durante todo o século XIX. Tal súmula se tomava
mesmo possível, com a instauração, por parte desse psiquiatra alemão, de critérios
exclusiva e marcadamente pertencentes à "clínica1': o "quadro clínico" da doença e sua
"evolução", isto é, a história progressiva da enfermidade - estes dois elementos
analíticos fundando a categoria nosológica. Kraepelin considerou assim que um
determinado quadro clínico poderia evoluir - por exemplo - para uma demência, não.
sendo, entretanto, a demência em si, o foco a priori fundamental. Além disso, a
determinação evolutiva para a demência não estava sempre presente. O sentido de
"precoce" estava remetido tão somente ao fato de que, quando a demencia aparecia, isto
se dava geralmente fora do período biológico a ela correspondente - a velhice; não
sendo nunca identificada com a chamada demência senil e podendo aparecer apenas até
os 40 anos de idade.
Kraepelin destacaria ainda que o principal problema que existia na demência
precoce (assim como na catatonia e na hebefrenia) era uma afecção da vontade. A
categoria vontade, que caracteriza uma das faculdades da alma desde a filosofia clássica
aparecia, então, com função explícita de diagnóstico.14 Com Kraepelin essa categoria
tomou assento na Psiquiatria de modo sistemático, permitindo que se passasse a afirmar
que a determinação e preponderância de uma afecção da vontade caracterizava um
quadro clínico particular - o de demência precoce, (cf. Bercherie, 1989: 172).
A noção de demência precoce, entretanto, seria "substituída" pela de
esquizofrenia. Através dessa categoria Bleuler imporia à concepção kraepeliana uma
descrição mais "dinâmica". A própria criação do termo esquizofrenia (p grupo das
esquizofrenias') relacionava-se estreitamente com o surgimento na Psiquiatria da
chamada "corrente psicodinâmica", emergente na Alemanha na década de 1900. Tal
corrente opunha-se à vertente psiquiátrica kraepeliana que teria estabelecido correlações
estáticas entre os sintomas e as lesões, a exemplo da medicina anátomo-clínica do
século passado. Caracterizava-se ainda por ser a primeira a dialogar com as idéias de
Freud, introduzindo-as no conhecimento psiquiátrico. (Cf. Bercherie, 1989 e Alexander
& Selesnick, 1968). As formulações freudianas a respeito de um "eu dividido",
alicerçadas na importância dada ao inconsciente, já integravam o cenário "científico" da
época, quando do trabalho de Bleuler (1911) sobre a esquizofrenia em 1906. 15
Vários são os testemunhos da aproximação e interlocução de Bleuler com Freud e
Jung, este último tendo sido aluno de Bleuler e por ele introduzido às teorias freudianas.
Segundo Gay (1988), no final de 1900 Jung entrou para o sanatório de Burghõlzli, que
funcionava como clínica psiquiátrica da Universidade de Zurique. O referido sanatório
encontrava-se desde 1898 sob a direção de Bleuler. Nessa instituição de renome

13. Publicado em oito edições atualizadas e ampliadas entre 1883 e 1919.


14,Muito provavelmente a categoria vontade foi utilizada por Kraepelin do mesmo modo que Wundt a empregou. A
relação entre o pensamento de Kraepelin e Wundt está indicada em Bercherie (1989) e Alexander & Selesnick
(1968). Em Duarte & Venancio(1995) encontram-se alguns desenvolvimentos analíticos sobre a teoria da Pessoa de
W. Wundt.
15_ Em a Psicanálise, enquanto teoria fundada por Freud na noção de inconsciente dinâmico, já estava constituída. A
noção de inconsciente estava presente no capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos (1900) e em 1906 Freud já
tinha publicado também Estudos sobre a Histeria (1893/5), A psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Três
ensaios sobre sexualidade (1905).

83
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

internacional, à época, Bleuler pediría a Jung que apresentasse A Interpretação dos


Sonhos à equipe.
O próprio Jung daria a Freud um testemunho da influência deste último sobre
Bleuler. Em uma carta de agradecimento a Freud, por volta de 1906, Jung informa com
entusiasmo que, embora de início Bleuler tivesse resistido firmemente às idéias de
Freud, estava "agora completamente convertido", (cf. Gay, 1988: 192/3). Freud & Freud
(1979) também atestam o crescente interesse que, a partir de 1907, a psicanálise
despertou em várias personalidades científicas, citando um trecho de Sigmund Freud
em que este comenta: "Bleuler já me havia antecipado em uma carta que meus trabalhos
eram estudados e aplicados no Burghõlzli" (Freud & Freud, 1979: 176).16
Mas já em 1911, ao renunciar à Associação Psicanalítica Internacional,
recentemente organizada, Bleuler declarou a Freud: "este 'quem não está conosco está
contra nós', este 'tudo ou nada' é, na minha opinião, necessário para as comunidades
religiosas e útil para os partidos políticos. (...) mas para a ciência considero-o
pernicioso". (Gay, 1988:207). Essa postura de Bleuler coadunava-se com uma certa
reserva quanto à dimensão da empreitada de Freud, considerando-se, inclusive, as
próprias dúvidas que Bleuler mantinha quanto à ênfase freudiana na questão da
sexualidade.
Em termos de formulações teóricas observamos que a influência de Freud sobre
Bleuler e Jung se deu no sentido da atribuição de importância especial à afetividade "na
regulação, na direção, ou na perturbação da vida psíquica e do pensamento" (Bercherie,
1989:226). Jung (1906) introduziu assim o termo complexo emocional que servia para
designar um grupo de idéias investido emocionalmente em tomo de um núcleo central,
parcial ou totalmente reprimido. "Os complexos constituiríam, em sua ação sobre o
pensamento e sobre a conduta do sujeito, o fator realmente motivador da vida psíquica"
(1989:226).
Bleuler, por sua vez, defendería como causa última do processo de fixação do
complexo, a anterioridade da ação de uma toxina que, então, conferiría ao complexo
causai sua potência patogênica. Mas mesmo preocupado com a explicação do ponto de
vista físico-orgânico, o que se observa é que Bleuler priorizou o ponto de vista moral-
psicológico quando da caracterização dos sintomas esquizofrênicos. Privilegiou, então, a
investigação das perturbações afetivas ou volitivas e do fluxo e conteúdo do
pensamento, observando-as como decorrentes da atuação dos complexos e dos
mecanismos - já explicitados por Freud - presentes nos sonhos e nos atos falhos. Na
"nova" descrição - a de esquiozfrenia - Bleuler (1911) passaria a considerar as situações
que correspondessem a uma "ruptura das diferentes funções psíquicas", no sentido de
uma divisão interna do sujeito.

16.Segundo Freud (1985), já em 1896 Bleuler fez uma revisão de seu Estudo sobre Histeria no Münchener
medizinisch Wochenschrift. Também a revisão de Bleuler sobre Die psychischen Zwangsercheinungen de 1
Lõenfild em Münchener 'medizinisch Wochenschrift, 51 e a sua discussão de Emil Raimann - Die hysterischen
Geistesstõrungen - ambas de 1904, citam elogiosamente o caminho teórico fundado por Freud. Nessa última
publicação, Bleuler termina com a seguinte frase:
■' -É verdade que esse revisor não acredita no significado exclusivo da sexualidade, que ele tem compreensão
insuficiente do conceito de conversão, etc; entretanto, ele considera o método de Freud indispensável para uma
compreensão aprofundada da psique, tanto saudável quanto doentia.’ Essas são provavelmente as primeiras
avaliações positivas do trabalho de Freud por um líder da psiquiatria acadêmica." (Freud, 1985: 462, nota 3)

84
Loucura, Sanidade e Terapêutica

Bleuler (1911) apontaria assim a existência do grupo das esquizofrenias, se


contrapondo à idéia kraepeliniana sobre a existência de uma demência que seria
caracteristica e determinantemente precoce ou juvenil no seu desenvolvimento
patológico. Ele definiría tal grupo acatando a tripla tipologia de Kraepelin - catatônica,
hebefrênica e paranóide - e incluindo aí dois novos tipos: a esquizofrenia latente e a
esquizofrenia simples. A primeira, era vista como provavelmente muito comum e
implicava que o diagnóstico deveria ser usado para pessoas bizarras ou excêntricas, nas
quais emergia a "suspeita de esquizofrenia" (Bleuler,1911: 239 apud Black & Boffeli,
1989: 1267). A esquizofrenia simples, por sua vez, era caracterizada por um
"retraimento social" e "embotamento afetivo".
Bleuler (1911) apresentaria ainda os sintomas esquizofrênicos divididos em
"sintomas acessórios" e "sintomas essenciais" ou "primários", afirmando que a
esquizofrenia poderia ser identificada pela presença somente dos sintomas essenciais,
enquanto que os sintomas acessórios seriam menos importantes e não encontráveis nos
subtipos simples e latente. Os sintomas essenciais - fundamentais e universais na
esquizofrenia - consistiam nos hoje conhecidos "Quatro As" de Bleuler: distúrbios
afetivos, perda associativa, autismo e ambivalência. Cumpre destacar que os dois
últimos termos foram originalmente criados pelo próprio Bleuler. Neste sentido Bleuler
determinaria no quadro esquizofrênico a atitude mental peculiar de "autismo", em que o
indivíduo vivería desligado da realidade. O conteúdo do pensamento seria
predominantemente endógeno e se houvesse material objetivo para o pensamento, este
recebia ênfase e significado subjetivos. A "ambivalência", por sua vez, seria
caracterizada como a coexistência de emoções, atitudes, idéias ou desejos opostos em
relação a um determinado objeto ou situação.
A novidade da idéia de um sujeito esquizofrênico traduzia a possibilidade do
conhecimento psiquiátrico observar o indivíduo, privilegiadamente, através de sua
afetividade e de suas funções psíquicas. Por intermédio da ênfase nessas duas "partes"
do indivíduo o dilema físico-moral que tem perpassado as representações modernas
sobre a Pessoa e suas perturbações foi expresso, no caso em estudo, pela ênfase na
esfera mais propriamente moral, em detrimento da esfera física. A importância da idéia
de vontade - categoria utilizada por Kraepelin e representativa do âmbito moral
individual - foi subordinada à representação sobre um mundo moral em que a vontade
dependería da tensão e ruptura das funções psíquicas individuais. Constituía-se,
definitivamente, a representação psiquiátrica sobre um "eu dividido": divisão do sujeito
em relação à realidade, como indicava a atitude peculiar do autismo e da ambivalência;
mas também divisão do sujeito em relação a si mesmo, pelo avassalamento da cisão das
17
funções psíquicas sobre a totalidade individual.
Nessa perspectiva a esquizofrenia aparece como uma forma moderna - limite e
possível (?) - da loucura existir em nosso mundo: essa loucura específica do "eu
dividido". Ela permanece incluída nas classificações psiquiátricas há quase um século,

,7. Nos detivemos mais na apresentação e análise das teorias morais a respeito do "eu dividido", alicerçadas e
desenvolvidas a partir da noção de vontade. Entretanto, para um estudo detalhado do dualismo físico-moral que
perpassa as representações modernas sobre a Pessoa e suas "perturbações", caberia observarmos ainda o
conhecimento construído na direção oposta àquele em tomo da vontade, isto é, as teorias naturalistas e fisiológicas
que fundamentaram concepções fisicalistas as mais variadas sobre a interioridade individual. Para tanto seria
necessário proceder a uma sistematização dos reducionismos fisicalistas presentes no conhecimento científico a
partir do começo do século XIX, em especial os que influenciaram a produção do saber psiquiátrico.

85
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

mantendo-se assim sua pertinência no interior dos ordenamentos que tais classificações
estabelecem entre o conjunto de sinais observáveis sobre as perturbações físico-morais
dos sujeitos e o estoque de categorias disponíveis.
Entretanto, parece haver, ao menos nas últimas duas décadas, uma proliferação de
if
outras" e novas categorias no interior das classificações psiquiátricas oficiais. Doença
do pânico, agorafobia são algumas das novas designações psiquiátricas para
"perturbações" vistas também como possíveis e pertinentes à Pessoa moderna.
Sabemos que as teorias psiquiátricas a respeito do valor e expressão daquilo que é
"interior" ao indivíduo tem oscilado entre o privilegiamento da observação ora da esfera
física, engendrada por diferentes "biodeterminismos", ora da esfera moral individual,
veiculada por variadas expressões da Psicanálise.18
Do ponto de vista "físico-orgânico" observamos atualmente tanto a criação das
"novas" categorias diagnosticas citadas quanto a reformulação de teorias e terapêuticas
para antigas categorias, como a de esquizofrenia. Sob um olhar alicerçado na
objetificação, o conhecimento psiquiátrico físico-orgânico remete a causalidade última
das "perturbações" a uma origem química e/ou genética: a interioridade do indivíduo
sendo observada, portanto, como um conjunto de substâncias químicas que, em
interações específicas umas com as outras, reforçadas ou não por determinações
genéticas particulares, podem levar a algum tipo de "perturbação" medicalizável.
Constrói-se assim o que podemos chamar de uma "psiquiatria de resultados",
fundamentada numa abordagem individualizada, mas somente a respeito do tempo
"presente", descartando-se qualquer referência a uma "historicidade" individual.19
Nesse contexto, as "terapêuticas" pelas "novas" substâncias químicas encarnam o papel
de representantes de uma visão a respeito do indivíduo que pode ser considerada mais
imediatista, no sentido de privilegiar a produção instantânea de um "bem estar",
qualquer conflito interno ao indivíduo que possa conduzir a uma investigação de si
sendo destituído de valor.
Do ponto de vista "moral-psicológico", as discussões sobre o estatuto do espaço
de interioridade levam à questão da capacidade volitiva e de livre-arbítrio do indivíduo
na produção, condução e manutenção de sua própria vida "saudável". Privilegia-se,
portanto, o desenvolvimento de uma "autonomia" do sujeito, auxiliado por psicoterapias
as mais variadas - individuais e grupais - e pela atenção a algumas das esferas sociais
vistas como essenciais à vida do indivíduo, não só o trabalho mas também o lazer. É
notável neste sentido a tentativa de considerar ao mesmo tempo as esferas individual e
coletiva do sujeito, como expressa tão bem a categoria "psicossocial".
Ao produzir concepções diferentes a respeito do indivíduo moderno e sua
interioridade, os pontos de vista "físico-orgânico" e "moral-psicológico" desenvolvem
assim representações muitas vezes inconciliáveis e estanques sobre a sanidade, a loucura
e suas terapêuticas. Neste sentido fica faltando compreendermos como esses dois pontos
de vistas tem sido combinados pelo atual conhecimento psiquiátrico para lidar com essa
"loucura" específica do "eu dividido" chamada esquizofrenia.

18 Para a caracterização da psiquiatria enquanto um saber que tem sido construído sobre a tensão entre a adoção de
abordagens ora mais fisicalistas, ora mais morais, a respeito das ”perturbações” individuais, ver Venancio (1993)
19 Em Venancio (1992) encontra-se uma descrição mais detalhada dessa vertente psiquiátrica e seu "lugar" no camoo
terapêutico psiquiátrico no Brasil, a partir de etnografia desenvolvida sobre o Instituto de Psiquiatria da UFRJ P

86
Loucura, Sanidade e Terapêutica

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Psiquiatria' ", em Physis - Revista de Saúde Coletiva, 3 (2): 117-135, Rio de
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88
NOTAS DE UM ESTUDO ACERCA DA HISTÓRIA DA
PSIQUIATRIA INFANTIL*

**
Paulo Reunes Marçal Ribeiro

APRESENTAÇÃO

A Saúde Mental enquanto campo de estudo e atuação profissional interdisciplinar


é muito recente. Quando se fazia referências à saúde mental do indivíduo, queria-se
dizer da sua condição pessoal, do seu estado psicológico, num período em que as
ciências e categorias profissionais atuavam isoladamente ou dependentes da psiquiatria
ao lidar com as enfermidades mentais, e não se falava em prevenção.
Pode-se dizer que somente após Gerald Caplan, em 1963, é que se começou a
vislumbrar novos caminhos para o atendimento do doente mental, com ênfase na
comunidade, na prevenção e na interdisciplinaridade, onde se destaca o trabalho
integrado das diversas categorias profissionais que hoje compõem o campo da saúde
mental.
O primeiro estudo que fiz dentro do tema Aspectos Históricos, Sociais e Políticos
de Saúde Mental resultou em minha tese de doutorado1, seguida do livro Saúde Mental:
Dimensão Histórica e Campos de Atuação, onde numa primeira parte procurei resgatar
aspectos históricos das ciências e profissões ligadas à Saúde Mental, buscando
configurá-la como uma grande área do saber humano formada por diversas faces a ela
circunscritas, faces estas que têm histórias distintas ou paralelas ao longo das épocas e
que somente nas décadas atuais puderam ser reunidas para constituir uma história única,
a História da Saúde Mental.
Ao concluir estes dois trabalhos, voltei-me para um assunto específico dentro do
mesmo tema, que é o resgate de aspectos históricos da Saúde Mental Infantil no Brasil,
ou seja, a partir de um estudo mais amplo e geral, optei por reduzir o universo de minha
pesquisa à infância, de certa forma como complementação ao estudo geral realizado.

PEQUENO HISTÓRICO DA SAÚDE MENTAL INFANTIL.

Os primeiros interesses para com as crianças portadoras de algum tipo de


enfermidade ou distúrbio mental partiram de educadores que, a partir do século XVIII,
preocupados com a reeducação dessas crianças, criaram instituições ou escolas
destinadas ao aprendizado especial que elas necessitavam, como Pestalozzi (1746-1827)
eFrõbel (1782-1851).

’ Este artigo é um resumo da pesquisa desenvolvida no Curso de Pós-Doutorado realizado pelo autor no Instituto de
Psiquiatria da UFRJ e intitulada História da Saúde Mental Infantil no Brasil: Um Estudo Multidisciplinar.
Doutor em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Professor da UNESP, em
Araraquara, SP.
1 MARÇAL RIBEIRO, P. R. Saúde Mental na Rede Pública: Estudo Analítico Descritivo do Discurso de um Grupo
de Profissionais de um Ambulatório da Rede Estadual de Saúde. Tese de Doutorado em Saúde Mental. Campinas:
Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, 1995.
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

Antes do século XVIII, como decorrência da sociedade medieval, não havia um


comprometimento com a infância por parte da sociedade de uma maneira geral, e muito
menos com as crianças que eram portadoras de algum tipo de deficiência ou
enfermidade. Pode-se até dizer que não havia “infância”, da forma como a concebemos
hoje, pois como relata ARIÈS 2, “passados os cinco ou sete primeiros anos, a criança se
fundia sem transição com os adultos”, e o que era visto como pertinente à infância se
reduzia aos comportamentos típicos da criança de poucos anos de idade, quando não
fala ou está começando a falar, quando a dependência em relação aos adultos é maior,
exigindo muito mais cuidados. Crianças crescidas e adolescentes pertenciam ao mundo
dos adultos, iam para o Exército (homens) ou se casavam (mulheres), ainda que se
usasse o termo criança para designar estes indivíduos que ainda não eram adultos mas
pertenciam ao mundo dos adultos”.
ARIÈS explica que:

“na sociedade medieval (...) o sentimento da infância não existia - o que não
quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou
desprezadas. O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas
crianças: corresponde à consciência da particularidade que distingue
essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não
existia. Por essa razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a
solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade
dos adultos e não se distinguia mais destes. ”3

Até o século XVIII, este modo de pensar se manteve inalterado, portanto toda
iniciativa no sentido de mudar esta percepção da infância e explicitar sua
particularidade é precursora da efetiva consolidação de um enfoque - primeiro na
psicologia e na pedagogia, e depois na psiquiatria - onde a criança seria considerada um
indivíduo próprio, com características próprias e distintas do adulto, merecendo, então,
um método também próprio de estudo e tratamento.
Neste contexto, Pestalozzi e Frõbel, dentre outros que serão mencionados adiante,
surgiram como empreendedores dos primeiros ensaios no atendimento infantil
institucionalizado.
Johann Heinrich Pestalozzi era suíço, nascido em Zurique, e fundou na cidade de
Yverdon, uma escola para educação de crianças pobres baseada na experiência e no
contato com a natureza. Friederich Frõbel era alemão, seguidor das idéias de Pestalozzi,
e, fundou, em 1873, o primeiro jardim-de-infância. A importância de Frõbel está que,
embora fosse um educador de crianças, ele, como explica MÃRZ 4, “não se fixa na
pedagogia das crianças pequenas e do jardim-de-infância. Ele se preocupa com a
educação do homem. Seu plano se estende desde a infância na família, passando pelo
jardim-de-infância, a escola elementar, a escola de aprendizagem ou de conceitos, até a
escola profissional e da vida. Ao mesmo tempo, foi um dos primeiros a buscar um
método para a educação da criança pequena. Nos seus Cantos maternos e de carinho.
mostrou formas insuperáveis de temo tratamento da criança. (...) Entre os maiores

2 ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 186.
3 ARIÈS, P., op. cit., p. 156.
4 MÀRZ, F. Grandes Educadores. São Paulo: E. P. U., 1987, pp. 109-110.

90
Notas de um estudo acerca da História da Psiquiatria

méritos de Frõbel inclui-se o seu engajamento em prol do direito de brincar da criança”.


Outro nome pioneiro é o do educador Édouard Seguin (1812-1880), que criou na
França uma escola de reeducação e dedicou-se às crianças deficientes mentais.
Vale a pena lembrar, fazendo um parêntese, que a nosologia das doenças mentais
nos séculos XVIII e XIX não possuía a organização e classificação que hoje adotamos.
Foi Pinei (o mesmo que libertou os doentes mentais dos hospitais franceses La Bicêtre e
Salpêtriere) quem primeiro fez importante classificação das doenças mentais em sua
Nosografia Filosófica (1798-1818). Depois, Emil Krãepelin (1856-1925) a suplantou ao
realizar uma mais completa classificação e descrição das enfermidades mentais.
O objetivo deste parêntese é que o leitor compreenda que, por um lado, havia
homens de ação propondo alternativas e agindo com os cuidados da infancia, e por outro
lado, engatinhava-se na compreensão, organização e classificação das doenças mentais,
sendo que, além disso, a criança não possuía um método próprio e tampouco uma
organização e classificação próprias das doenças mentais infantis. Eram adultos em
miniaturas, como destacaram ALEXANDER e SELESNICK5 .
Os casos de deficiência mental foram os mais relatados em estudos de médicos e
psiquiatras do século XVIII, como o menino selvagem de Aveyron, França, encontrado
em 1797. Diagnosticado por Pinei como deficiente mental, mereceu atenção especial de
Jean Marc Gaspard Itard (1774-1838), médico-chefe do Instituto de Surdos e Mudos de
Paris, que, como relatam ALEXANDER e SELESNICK , “passou cinco anos tentando
educá-lo por métodos humanos, foi capaz de mostrar que o menino, que nunca chegou a
ser normal, podia melhorar seu comportamento social. A experiência de Itard foi, assim,
o primeiro esforço realizado para treinar um indivíduo mentalmente retardado.”
Até o início do século XX, vamos encontrar iniciativas importantes no campo da
Saúde Mental Infantil, em obras que subsidiaram atuações dos profissionais da época.
Tissot, em 1755, tratou de psicoses infantis e fez observações sobre delírios, segundo
MOREIRA . Pestalozzi escreveu Leonardo e Gertrudes e Como Gertrudes ensina seu
filho (1801). Também em 1801, Itard narra seu trabalho com o menino selvagem em sua
Memória sobre os primeiros desenvolvimentos de Victor de Aveyron. Seguin escreveu O
tratamento moral e clínico dos idiotas (1846) e, associado a Jean Étienne Esquirol
(1772-1840), constituiu a primeira equipe médico-pedagógica, como lembra
AJURIAGUERRA . Em 1888, o francês Moreau de Tours, filho, publicou A loucura
entre as crianças.
A Síndrome de Down foi descrita em 1866 pelo médico inglês John Langdon
Down (1828-1896). Em 1887, o alemão Hermmann Emminghãus publicou o tratado
Distúrbios psíquicos da infância. Pode-se citar também as contribuições de William
Prever, James Scully e Milicent Shin.
São opiniões e obras isoladas num contexto em que prevalecem as idéias de
Krãepelin e, posteriormente, de Bleuler, sem lugar para a descrição das doenças mentais
infantis com características próprias.

5 ALEXANDER, F. G. e SELESNICK, S. T. História da Psiquiatria São Paulo: IBRASA, 1980, p. 480.


6 ALEXANDER, F. G. e SELESNICK, S. T., op .cit., p. 481.
7 MOREIRA, M. S. Esquizofrenia Infantil. Rio de Janeiro: EPUME, 1986, p. 31.
8 AJURIAGUERRA, J. de. Manual de Psiquiatria InfantiL Rio de Janeiro: Livraria Atheneu/Masson, s/d, p. 3.

91
Cadernos do IPUB n°8, 1997

ASSUMPÇÃO JR. 9 diz que no século XIX “a loucura na criança é vinculada às


oligofrenias”. ALEXANDER e SELESNICK 10 esclarecem que “infelizmente as idéias
de Emminghãus foram ignoradas.” LEME LOPES 11 traduz estas críticas de forma
bastante esclarecedora: “Em 1908, uma monografia escrita por Fleller fixava uma
primeira forma de doença mental infantil, a famosa dementia infantilis, que hoje entra
dentro do quadro de esquizofrenia infantil. Naquela época a descoberta não teve maiores
ecos. Estava então aparecendo a oitava edição do Tratado de Kraepelin. Chama-nos a
atenção o fato de Kraepelin não ter se preocupado com a psiquiatria das crianças”.
Nos fins do século XIX, com o advento dos testes de inteligência, da psicanálise e
do movimento de orientação infantil surgido nos Estados Unidos é que vão se
intensificar os cuidados com a saúde mental da criança. Na verdade, é a partir deste
período e das descobertas dele decorrentes que a saúde mental infantil terá seu grande
impulso.
Édouard Claparéde (1873-1940), como cita AJURIAGUERRA 12 ’2, “integra no
ensino público, em Genebra, em 1898, as primeiras turmas voltadas ao aprendizado das
crianças deficientes, denominando-as classes especiais. De sua colaboração com o
neurologista François Neville nasce, entre 1904 e 1908, o primeiro exame médico-
pedagógico, destinado a estabelecer os critérios de admissão e fazer a triagem para as
classes especiais”. Alfred Binet (1857-1911) e Theodore Simon (1858-1916) (?) criaram
a primeira escala métrica de inteligência, sistematizando a avaliação do nível mental
(1905).
Sigmund Freud (1856-1939) publicou em 1905, seu Três ensaios sobre uma
teoria da sexualidade, onde apresentou seus estudos sobre sexualidade infantil; em
1908, Teorias sexuais infantis', e, em 1909, Análise da fobia em um menino de cinco
anos, que é o relato sobre o primeiro tratamento psicanalítico feito em uma criança.
Outras publicações se seguiram nos anos posteriores.
13
ALEXANDER e SELESNICK falam de Hermione von Hug-Heemuth e de seu
livro Um estudo da vida mental da criança, “no qual mostrou que a recreação livre de
uma criança representava produção de fantasia e oferecia um meio de compreender seus
processos inconscientes”, mas foram Melanie Klein (1882-1960) e Anna Freud (1895-
1982) que sistematizaram uma teoria psicanalítica infantil e desenvolveram uma técnica
de análise de crianças; ainda que divergentes, foram as pioneiras no trabalho analítico
infantil.
Em 1909, nos Estados Unidos, iniciou-se um movimento voltado para a
investigação e tratamento dos distúrbios da criança, historicamente conhecido como
Movimento de Orientação Infantil, surgido em decorrência da preocupação que
educadores e higienistas estavam tendo com a delinqüência desde o século XIX. Foram
criados vários centros de estudos da criança, e é deste período a inserção do assistente
social na equipe de orientação infantil psiquiátrica, ocorrido primeiramente no Hospital

9 ASSUMPÇÃO JR., F. B. Pequena História da Psiquiatria Infantil, in ASSUMPÇÃO, JR. F. B. (org.).


Psiquiatria da Infância e da Adolescência. São Paulo: Livraria Editora Santos/Editora Maltese, 1994, n. 4.
10 ALEXANDER, F. G. e SELESNICK, S. T., op. cit., p. 479.
11 LEME LOPES, J. Conceito e Evolução Histórica da Psiquiatria Infantil, in KRYNSKI, S. Temas de
Psiquiatria Infantil. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1977, p. 6.
12 AJURIAGUERRA, J. de., op. cit., p. 4.
13 ALEXANDER, F. G. e SELESNICK, S. T., op. cit., p. 486.

92
Notas de um estudo acerca da História da Psiquiatria

Psicopático de Boston, em 1912.


Na Itália, Sancte de Sanctis (1863-1935) publicou estudos sobre doenças mentais
infantis. Maria Montessori (1870-1952), formada em Medicina pela Universidade de
Roma, dedicou-se à educação de crianças deficientes mentais, criando posteriormente o
método educativo que levou o seu nome e é utilizado até hoje no ensino e aprendizagem
de crianças normais em muitos estabelecimentos.
Nas décadas de 30-40 surgem grandes estudos, destacando-se a obra Psiquiatria
Infantil, de Leo Kanner (1935); a realização do Primeiro Congresso Internacional de
Psiquiatria Infantil, em 1937; a criação do Teste Gestáltico Viso-motor, em 1938, por
Lauretta Bender; para medir o grau de maturação percepto-motora da criança; e os
estudos de René Spitz, em 1946, sobre as reações psicológicas de crianças
hospitalizadas sem a mãe.
A partir da década de 50 vamos ter os estudos de John Bowlby sobre a relação
mãe-criança e os de D. W. Winnicott, sobre o desenvolvimento psicodinâmico da
criança. E não se pode deixar de mencionar Jean Piaget (1896-1980) e seus estudos
sobre a inteligência e o desenvolvimento mental da criança; e Bruno Bettelheim (1903-
1990) e seus estudos sobre o autismo.
Ao chegar aos dias de hoje, as diversas áreas ou categorias profissionais que
compõem o vasto campo da Saúde Mental Infantil estão suficientemente sólidas e
organizadas, as intersecções entre elas são mais que os limites e se pode pensar
perfeitamente em ações integradas e interdisciplinares.
GRÜNSPUN 14 corrobora esta idéia quando descreve que ã psiquiatria e a
psicologia clínica tomaram-se especialidades multidisciplinares por necessidades de
apreciar os achados de cientistas e estudiosos de campos afins. A antropologia, a
biologia, a sociologia, a educação, a bioquímica, a economia, a comunicação e a
arquitetura são alguns dos campos que fornecem conhecimentos necessários para poder
acompanhar os estudos que são, muitas vezes, fundamentais ao progresso das ciências
da conduta”.
Mais adiante, descreve 15 uma equipe ideal:
“1. Médico; 2. Assistente social; 3. Psicólogo; 4. Psicopedagogo; 5.
Fonoaudiólogo; 6. Enfermeira; 7. Fisioterapeuta; 8. Terapeuta Ocupacional; 9. Outros
técnicos especializados: A. Professores especializados; B. Geneticista; C. Dentista; D.
Nutricionista.”
A própria Organização Mundial de Saúde em seu documento Child Mental Health
and Psychosocial Development 16, preconiza, ao referir-se ao atendimento infantil, que
se deve investir mais na ação preventiva, melhorando os serviços de saúde prestados às
mães e os serviços sociais e educacionais prestados às crianças, ajudando as escolas a
favorecerem o seu desenvolvimento psicossocial integral. Ou seja, está sugerindo uma
ação preventiva por parte de uma equipe multiprofissional integrada. Aqui já temos a
história presente.

14 GRÜNSPUN, H. Distúrbios Psiquiátricos da Criança. Rio de Janeiro: Livraria Atheneu, 1987, p. 39.
15 GRÜNSPUN, H., op. cit., p. 41.
16 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Child Mental Health and Psychosocial Development. Geneva: 1977.

93
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

SAÚDE MENTAL INFANTIL NO BRASIL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A história da Saúde Mental no Brasil, além de mais recente que a da Europa pelas
próprias características do país - colônia desde 1500 até o início do século XIX -, não
teve nada estruturado ou sistematizado até o século XIX, quando surgiram as primeiras
teses em psicologia e psiquiatria, e quando foi criado o primeiro hospital psiquiátrico
brasileiro - o Hospício D. Pedro II, em 1852 - seguido de vários outros ao longo do
território nacional.
Sobre a infância, os primeiros escritos voltaram-se para a deficiência mental, ou
idiotia, como na monografia de Carlos Eiras, Tratamento dos Idiotas, de 1900,
apresentada no IV Congresso de Medicina e Cirurgia, no Rio de Janeiro. Em 1903,
Juliano Moreira e Fernandes Figueira inauguraram um pavilhão anexo ao Hospital
Psiquiátrico da Praia Vermelha, destinado às crianças portadoras de enfermidades
mentais e que, até então, compartilhavam o mesmo espaço dos adultos. Em São Paulo, o
primeiro pavilhão infantil foi criado em 1921, por Franco da Rocha, no Hospital do
Juqueri, e dirigido por Vicente Batista. Em Minas Gerais, a psicóloga russa Helena
Antipoff implanta o Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento
Pedagógico, em 1929, onde realiza pesquisas sobre testes de inteligência e
desenvolvimento mental de crianças. Posteriormente criou a Sociedade Pestalozzi e o
Instituto Pestalozzi, voltados para os cuidados de crianças deficientes mentais. Em
Pernambuco, o trabalho pioneiro de Ulysses Pernambucano no atendimento dos doentes
mentais, criando vários serviços até então inéditos e responsável por várias reformas
assistenciais, estendeu-se aos cuidados da criança. Criou, em 1925, o Instituto de
Psicologia, de onde saíram numerosas pesquisas sobre testes de inteligência, o grafismo
e o Roscharch. Foi o autor do primeiro trabalho brasileiro sobre deficiência mental, em
1913: Classificação das crianças anormais: a parada do desenvolvimento intelectual e
suas formas. A instabilidade e a astenia mental.
Várias obras publicadas nas primeiras décadas do século XX demonstram os
variados graus de interesse pelas questões da infância. Basílide de Magalhães publicou
em 1913 o Tratamento e educação das crianças anormais de inteligência: contribuição
para o estudo desse complexo problema científico e social, cuja solução urgentemente
reclamam - a bem da infância de agora e das gerações porvindouras - os mais elevados
interesses materiais, intelectuais e morais da pátria brasileira; e, em 1917, A educação
da infância anormal e das crianças mentalmente atrasadas na América Latina:
apreciação sumária dos modernos sistemas pedagógicos europeus e modificações
indispensáveis que devam sofrer no ambiente físico social do novo mundo. Também em
1917, Vieira de Mello publicou Débeis mentais na escola pública. Sílvio Rabello
publicou, em 1935, um livro sobre o grafismo - Psicologia do desenho infantil - e, em
193 85 A representação do tempo na criança.
Já percebemos, desde essa época, a estreita relação entre a psiquiatria infantil a
deficiência mental, a psicologia e a pedagogia, representada pela associação de
trabalhos, pesquisas e profissionais que vêem a importância de uma atuação integrada e
multiprofissional.
tt 17
Segundo o estudo de JANUZZI , com a criação do Pavilhão Boumeville em

17 JANUZZI, G. A Luta pela Educação do Deficiente Mental no Brasil. Sào Paulo: Editora Autores
Associados, 1992, pp. 34-35.

94
Notas de um estudo acerca da História da Psiquiatria

1903, anexo ao Hospício da Praia Vermelha, já citado, as crianças passaram a receber


também orientação pedagógica. No pavilhão infantil criado por Franco da Rocha, em
1921, foi também criada uma escola, sob orientação do professor primário Norberto
Souza Pinto. E não se pode deixar de mencionar o pioneirismo de Ulysses
Pernambucano também ao criar, em 1929, a primeira equipe multiprofissional para atuar
com as crianças do Instituto de Psicologia.
No Rio de Janeiro, em 1937, foi criado o Instituto de Puericultura, que tinha um
serviço de consultas médicas e outro de consultas psicológicas, que resultou num centro
de atendimento infantil chamado COJ - Centro de Orientação Juvenil. Lá, uma equipe
multidisciplinar formada por psiquiatras, psicólogos, assistente-sociais e secretárias,
atendiam crianças e adolescentes de 0 a 18 anos e suas famílias.
— 18
Mais próximos de nossos dias, ASSUMPÇAO JR. ressalta o nome do
professor Stanislau Krynski, que desde 1940, no Hospital do Juqueri, se dedicou aos
estudos de psiquiatria infantil e deficiência mental. Em 1955 ele iniciou o Serviço de
Higiene Mental do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP, onde
atuavam as dras. Dulce V. M. Machado (psiquiatra), Aydil M. Queiroz (psicóloga) e
Mina Buzvosky (assistente social).
Em 1967 é fundada a Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil,
que desde então tem norteado os caminhos da psiquiatria infantil no Brasil, tendo em
seus quadros, médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, psico-pedagogos e assistentes
sociais, seguindo uma abordagem multidisciplinar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No estudo preliminar realizado até agora pude perceber a lacuna relativa a


publicações sobre- História da Saúde Mental Infantil no Brasil num enfoque
multidisciplinar. Mesmo os trabalhos específicos sobre História da Psiquiatria Infantil
19 20 - 21
(por exemplo, SHECHTMAN , LEME LOPES e ASSUMPÇAO JR ) são
reduzidos.
Consultadas as bases de dados em computador (MedLine, Bireme, Lilacs, PsyClit
e Unibibl), não obstante haja um número substancial de artigos indexados na área de
saúde mental e afins, verifiquei a carência de publicações que envolvam temas do
assunto que propus investigar. Na área de educação pude constatar a existência de
trabalhos envolvendo a História da Deficiência Mental no Brasil, onde destaco
JANUZZI , dentre outros. Não encontrei, ainda, referências mais específicas ou
completas sobre a História do Serviço Social, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional e
Enfermagem ligadas à infância.
A relevância do trabalho desenvolvido está em, justamente, recuperar as histórias

18 ASSUMPCÃO JR., op. cit., p. 7.


19 SCHETMAN, A. Psiquiatria e Infância: um Estudo Histórico sobre o Desenvolvimento da Psiquiatria Infantil no
Brasil. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da UERJ, 1981.
20 LEME LOPES, J., op. cit.
21 ASSUMPÇÀO JR., F. B. Psiquiatria Infantil no Brasil: Esboço Histórico. São Paulo: Lemos Editorial e Gráficos,
1995.
22 JANUZZI, G., op. cit.

95
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

das ciências e categorias profissionais que se agregam à Saúde mental, histórias estas
isoladas num determinado período, mas que acabam por se fundir num contexto único
que podemos chamar de História da Saúde Mental, ao se considerar que a Saúde Mental,
enquanto campo de atuação, estudos e pesquisa contém (ou utiliza) a psiquiatria, a
psicologia, a enfermagem, o serviço social, a fonoaudiologia, a terapia ocupacional e a
psico-pedagogia.
Há um processo histórico brasileiro de pouco mais de cem anos que culminou no
surgimento, evolução e organização do campo da Saúde Mental Infantil no Brasil. Tal
processo se vincula à história do próprio homem brasileiro, da sociedade, da cultura, do
pensamento e da medicina. Mostrar a inter-relação entre a Saúde Mental Infantil e estes
elementos formadores de sua história e identidade nos diversos períodos em que
caminharam juntos é, a meu ver, extremamente relevante num universo onde pesquisas
sobre a história da infância brasileira são bastante reduzidas. Neste ponto, vale a pena
lembrar MASSIMI que escreve que “o esquecimento da própria história impede um
povo de reconhecer seus traços originais e elaborar, a partir destes, um projeto
autônomo de vida social e cultural.” Ou, que é a partir da experiência e exemplo dos
foij adores do passado que se chega às necessidades do presente .
Os dados sobre a história são encontrados dispersos, o que exige que o
pesquisador seja paciente, determinado e incansável numa busca que irá perfazer um
caminho importante para se chegar até os desafios que a Saúde Mental Infantil nos
propõe nos dias de hoje.
Por se tratar de uma pesquisa histórica, as técnicas utilizadas foram específicas
para este tipo de pesquisa. Fundamentei o presente trabalho em RICHARDSON e
cols.24, GIL25 e LAKATOS e MARCONI 26 . O tema do projeto, obviamente, não
pôde ser desenvolvido por outro tipo de pesquisa, o que me levou a utilizar as técnicas
de pesquisa bibliográfica e da pesquisa documental. Os procedimentos utilizados foram:
a) busca de publicações e documentos em bibliotecas e outros locais; b) leitura
exploratória; c) leitura seletiva; d) leitura analítica; e) leitura interpretativa; f) tomada
de apontamentos; g) redação do trabalho.

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23 MASSIMI, M. História da Psicologia Brasileira: da Época Colonial até 1934. São Paulo: E. P. U„ 1990
p. 2.
24 RICHARDSON, R. J-e cols. Pesquisa Social: Métodos e Técnicas. São Paulo: Editora Atlas, 1985,
pp. 199-212.
25 GIL, A. C. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. São Paulo: Editora Atlas, 1988, pp. 63-85.
26 LAIOVrOS, E. M. e MARCONI, M. de A. Fundamentos de Metodologia Científica. São Paulo: Editora Atlas
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A CREANÇA BRAZILEIRA, FUTURO DA NAÇÃO:
INFÂNCIA, EDUCAÇÃO E HIGIENE MENTAL NA
PRIMEIRA REPÚBLICA

Alexandre Schreiner Ramos da Silva

INTRODUÇÃO

É interessante notar que a maioria dos estudos históricos em relação ao


desenvolvimento de cuidados psiquiátricos na infância, seguem uma linha de pesquisa
cujo eixo básico geralmente leva à conclusão de que a assistência nesta área inicia-se de
maneira adultomorfa ( com os conhecimentos adquiridos na clínica de adultos sendo
apenas adaptados para a clientela infantil) ou então se constituiría de maneira diversa à
rede de cuidados médico-psiquiátrico pois estaria mais vinculada à área educacional.
Assim, CASTEL (1987) analisa a descoberta tardia da infância pela psiquiatria pública
francesa dentro da política de setor na década de 60, pois que o dispositivo de cuidado
sobre o tratamento de crianças repousava mais sobre instituições de origem pedagógica
(classes especiais, internatos e centros médico-pedagógicos, grupos de ação psico-
pedagógicos), muitas desenvolvendo trabalhos de inspiração psicanalítica, do que no
sistema médico-psiquiátrico. Para DONZELOT (1986), o nascimento da psiquiatria i
infantil não está ligado ao aparecimento de um objeto próprio, uma patologia mental
que incidisse em crianças, mas de uma prática disciplinar da psiquiatria geral aspirante à
não só gerir os reclusos mas regular a inclusão social.
O ponto de partida deste trabalho localiza-se na discussão sobre o
desenvolvimento da noção de cuidado moral na sociedade ocidental moderna, iniciando
uma abordagem histórica que aproxima dois campos que considero peculiarmente
intercomunicantes .
O primeiro campo se refere à análise do desenvolvimento do sentimento moderno
de infância, vinculado ao surgimento de dispositivos de cuidados pedagógicos baseados
em uma idéia de formação moral. Quase que obrigatoriamente, podemos citar os
trabalhos de P. ARIÉS ( 1981 ) em tomo da História Social da Criança e da Família.
Este autor coloca que o século XVII marca uma mudança considerável no lugar
assumido pela criança e a família, transformação que pode ser compreendida à partir de
duas abordagens distintas :
1) O movimento de moralização promovido pela reforma católica que se
extendeu à organização de leis e do Estado, iniciando um longo processo de
enclausuramento das crianças ( como dos loucos, pobres e prostitutas ). A criança foi
separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, corporificada
pela escola, pelo colégio.
2) A importância atribuída a educação origina uma afeição necessária entre os
cônjuges e entre pais e filhos. Surge então um sentimento inteiramente novo de

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental


Cadernos do IPUB n°8, 1997

preocupação com a criança, centro da emergente família nuclear.


Esta construção irá embasar as duas teses de Ariés, a ausência do sentimento de
infância na Idade Média e o destaque da infância e da família nas sociedades industriais
contemporâneas.
O segundo campo se constitui pela contextualização histórica do saber médico em
tomo da loucura, tendo em vista o desenvolvimento da psiquiatria no século XVIII e
suas preocupações com uma noção de moral que fundamentava uma etiologia ( a
causalidade moral da alienação ) e um tratamento.
Podemos então construir uma aproximação entre a criança e a loucura, ou melhor,
entre o desenvolvimento de dispositivos teóricos e institucionais para cuidar da Infância
e o tratamento moral proposto pelo Alienismo.
Enfim, quais seriam as vinculações entre educar e tratar ?
Tendo em vista o desenvolvimento da Medicina e da Educação no Brasil, seu
relacionamento com o Estado e a Sociedade, suas técnicas de atuação, comecei a
caminhar do século XIX para o XX dentro de um itinerário que me mostrava a
transformação do Brasil-Colônia em Brasil-Nação e os traços de normatização presentes
nas práticas educativas e higienistas originadas deste “ processo civilizatório”. O
período da Primeira República revela-se extremamente atraente para a empreitada aqui
pretendida.
A aproximação entre as políticas e práticas educacionais e o contexto médico-
higienista surge com grande intensidade neste período, estando vinculada à preocupação
de organizar uma nação pacífica e progressista, que superasse os atrasos decorridos do
período imperial e se inserisse na ordem econômica mundial. Iremos agora delinear
como a preocupação com o futuro da nação se relaciona com investimentos
pedagógicos-higienistas em tomo da infância brasileira.

BRASIL: PODEROSO IMPÉRIO, REPÚBLICA FRACASSADA... EM BUSCA


DE UMA IDENTIDADE

Observamos no discurso da historiografia brasileira contemporânea, uma


expressiva incidência de análises em tomo da temática do caráter ou identidade
nacional. Do período imperial ao republicano, tem sido ressaltado a variedade de
formulações em tomo das características do povo, da sociedade, do Estado, enfim, deste
continente chamado Brasil.
Analisando o período pré-independência, LYRA (1994) expõe a utilização de um
certo discurso utópico que previa um glorioso destino para o Brasil, relacionando-o
com uma estratégia de renovação da Monarquia Portuguesa, que assim teria um futuro
promissor nas terras do chamado “Novo Império”. O Brasil como salvação para o Reino
de Portugal.
Os adjetivos nesta época para tal porvir venturoso, irão identificá-lo com “novo”
“vasto”, “poderoso”, “grande”, como podemos observar na citação do jornalista
Hipólito da Costa, feita no Correio Brasiliense em 1813 :

'E assim lançariam os fundamentos do mais extenso, ligado, bem defendido e

100
A Creança Brazileira, futuro da nação

poderoso Império, que é possível que exista na superfície do globo no estado


atual das nações que o povoam

CARVALHO ( 1990 ), em trabalho sobre o imaginário republicano brasileiro,


coloca que a preocupação central do Império Brasileiro era a organização de um Estado
que garantisse a sobrevivência da unidade política do país e mantivesse a união das
províncias e a ordem social. Sómente ao final do Império teriam surgido questões
vinculadas a redefinição de conceitos como nação e cidadania. O problema da herança
escravocrata ( a incorporação dos ex-escravos à vida nacional), a imigração estrangeira
e as dificuldades de implantação do regime republicano, evidenciaram a urgência de
uma discussão temática nacionalista.
A geração intelectual da Primeira República será marcada pela tarefa de buscar
uma identidade coletiva para o país, de uma base para a construção da nação.
Em outro trabalho, CARVALHO ( 1994 ) frisa a grande movimentação de idéias
no período inicial da República no Brasil. Não teria ocorrido propriamente a produção
de novas correntes ideológicas ou visões estéticas, mas uma maior circulação delas,
misturando-se várias vertentes do pensamento europeu como o Liberalismo, o
Positivismo, o Socialismo e o Anarquismo. Desta maneira, nasceram várias concepções
de cidadania, nem sempre compatíveis entre si, balançando-se desde a negação da
participação à participação autoritária e a alienação. De forma geral, a ação política
popular no início da República se dava fora dos canais e mecanismos previstos pelo
arranjo institucional . Era mais uma reação à alguma medida do governo do que uma
tentativa de influir na orientação da política pública. O Estado aparece como algo a que
se recorre, como algo necessário e útil mas externo ao controle do cidadão. Carvalho
denomina esse peculiar comportamento político brasileiro como estadania.
Desempregados, insatisfeitos, migrantes urbanos, todos acabavam olhando o Estado
como porto de salvação e a perspectiva de inserção desses deslocados não se dirigia a
afirmação dos direitos de cidadania. As interpretações dos intelectuais para essa
aparente passividade da sociedade frente a participação política variava desde a que no
Brasil não existia povo, nacionalidade e cidadãos até a afirmação de que, na verdade,
existiam muitos “povos” em um só.
Deste “caldeirão” emerge um debate cujo tema central é a relação entre o privado
e o público, ou seja, como na sociedade brasileira se situariam valores como o Indivíduo
e a vida em comunidade.
Alberto Sales dizia que o brasileiro era muito sociável mas pouco solidário. Sua
sociabilidade e extroversão davam-se nas relações pessoais e nos pequenos grupos, mas
faltava-lhe o individualismo dos anglo-saxões, responsável pela capacidade de
associação destes povos.
Sílvio Romero utilizando a visão de um autor francês, Edmond Demolins, afirma
que o povo brasileiro era de formação comunária, opondo-se a formação individualista
anglo-saxã, mas dava sinais de crise através da excessiva dependência em relação ao
Estado e a busca do serviço público.
Em oposição a esta visão favorável à concepção burguesa e individualista do
mundo, Anníbal Falcão, pioneiro no diagnóstico cultural da problemática cultural,
raciocinava dentro de uma visão positivista, mas chega a mesma conclusão que os

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Cadernos do IPUB n° 8, 1997

autores anteriores. O Brasil, junto com os outros povos ibéricos, caracterizava-se pela
sociabilidade, pela predominância dos aspectos morais, afetivos, integrativos,
colaborativos. Os povos de tradição protestante eram egoístas, voltados para aspectos
materiais, para a ciência, para a competição.
Essas contínuas confirmações da diferença entre o povo brasileiro e a tradição
anglo-saxã, traz a tona uma sensação de que talvez tivéssemos chegado a um impasse na
trajetória da constituição desta identidade brasileira. O Brasil poderia afirmar sua
diferença ?
Utizaremos Sílvio Romero como uma espécie de guia para melhor discernimento
dos elementos da mistura do tal “caldeirão” citado anteriormente. Romero ( 1851-1914
), bacharel pela Faculdade de Direito de Recife, é um dos mais expressivos intelectuais
desse período, exercendo influência sobre várias gerações de pensadores brasileiros.
Articulando autores como Taine, Gobineau, Comte, Spencer e Darwin, irá realizar uma
elaborada costura entre idéias de cunho liberal e as teses da antropologia filosófica
evolucionista. PATTO (1990), assim descreve o seu diagnóstico :

“Na confluência do pessimismo presente entre os teóricos europeus do


racismo, que viam com fatalismo o destino dos povos miscigenados e da
necessidade histórica de acreditar no Brasil como nação, Sílvio Romero, como
abolicionista e republicano que era, definia como única saída para o país o
branqueamento gradual do povo, através de sucessivas migrações,
identificando, assim, ‘branqueamento e progresso’” (PATTO, 1990, p 66/67).

As teses raciais acabam por determinar o ponto da mistura do “caldeirão”, onde


surpresos observamos o cozimento de quem, senão do próprio povo brasileiro.
No pensamento europeu e norte-americano do século XIX, florescem iniciativas
de aferição e qualificação dos potenciais físicos, morais e intelectuais de um povo
através da análise da sua constituição racial, que determinaria a aproximação ou
distanciamento de um ideal civilizatório.
O que se verificava no Brasil era o fenômeno da mestiçagem, com a mistura racial
entre branco, negro e índio originando diferentes visões, para alguns positiva, marca de
especificidade da nossa sociedade e para outros, negativa, prognosticando um futuro
obscuro para o país.
Inicialmente, em meados do século XIX, o Brasil indígena tomava-se o centro das
atenções
desta discussão que contrapunha Tupis (tidos como matriz da nacionalidade)
considerados pacíficos e cooperativos aos Tapuias, guerreiros, oposicionistas ao avanço
civilizatório do colonizador. Com a extinção do tráfico negreiro em 1850 e a gradual
abolição do sistema escravagista, as teses raciais se situam em relação aos mestiços, ex-
escravos e seus descendentes, tendo em vista uma já difundida superioridade branca. A
polêmica em tomo da miscigenação racial brasileira vincula-se de maneira estreita as
discussões sobre imigração de outros povos para o Brasil. O fluxo imigratório foi
intenso entre 1880 e 1920, a maioria proveniente da Europa, principalmente Itália.
Romero propunha que os imigrantes fossem distribuídos por todo território
nacional, para evitar bolsões de colônias estrangeiras não assimiláveis ( como as

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A Creança Brazileira, futuro da nação

colônias alemãs no sul) que proporcionassem desequilíbrios regionais ameaçadores a


unidade nacional. O povoamento do território por imigrantes brancos iria clarear a pele
do brasileiro do futuro, concorrendo para a formação de um tipo nacional, mais
civilizado que o consórcio racial brasileiro daquele momento, sem destruir a base da
nacionalidade que é a cul tura e a língua portuguesa.
O caldeirão revela-se um laboratório onde misturas raciais poderão ser elaboradas
à luz da ciência e do espírito evolucionista propulsor da civilização ocidental. Desprezar
determinados ingredientes em prol de uma essência “enbranquecedora” é o segredo para
o sucesso da receita. No Brasil, tudo ainda estava por se fazer, inclusive o seu povo.
Em resumo, a nação brasileira idealizada era nada mais que um esboço, um
rascunho a ser melhor definido pelas mãos precisas da ciência baseada nas teses da
antropologia física européia do final do século XIX.
E importante assinalar que neste período o conteúdo atribuído a palavra raça por
vezes era muito impreciso e ao lado do determinismo racial, encontramos propostas de
discussão da realidade nacional que ressaltariam aspectos econômicos, políticos e
culturais. A Primeira Guerra Mundial (1914-18) marca uma fase de críticas ao fatalismo
racial brasileiro, ocorrendo um fértil desenvolvimento e estruturação de ideais
nacionalistas que se reflete na proliferação de análises e propostas para modificação do
unânime panorama desalentador do país. Educação e saúde surgem como as principais
bandeiras a serem deflagradas e começam a compor um enquadramento de pretensões
totalizantes em tomo da compreensão dos problemas nacionais. São ao mesmo tempo o
mal e a cura.
“ Vitalizar pela educação e pela higiene”, prescrevería Miguel Couto em um artigo
de 1927, onde desenvolvia a sua tese de que no Brasil só existia um problema nacional,
a educação.
Examinemos alguns passos dados anteriormente nessa direção .
Tendo como pano de fundo o debate nacionalista, intensificado pelas críticas ao
regime republicano acusado de não desenvolver seu ideário solidificador da nação e da
cidadania, observamos a proliferação nos anos 10 e 20 de associações e ligas que
congregavam intelectuais, políticos, médicos, educadores, engenheiros, estabelecendo
discussões temáticas que giravam em tomo da alfabetização, saúde, culto ao civismo.
A Liga de Defesa Nacional, fundada em sete de setembro de 1916 por iniciativa
de Olavo Bilac, Pedro Lessa e Miguel Calmon é a mais influente organização
nacionalista do período.
Descreve a situação do Brasil como um ser que “padece e sofre da falta de crença
e esperança” e portador de uma “desgraça de caráter e morte moral”. O remédio
prescrito é a apologia do serviço militar obrigatório, avaliado como sendo “o triunfo
completo da democracia”, “o nivelamento das classes”, “a escola da ordem”, “o
laboratório da dignidade própria”, “a higiene obrigatória”.
Em fevereiro de 1918 é criada a Liga Pró-Saneamento do Brasil sob a direção do
médico Belisário Penna reunindo, entre outros, membros da Academia Nacional de
Medicina, cientistas do Instituto Oswaldo Cruz, antropólogos do Museu Nacional,
militares, juristas, educadores. Desenvolvem intensa campanha pelo saneamento rural
do país, tendo em vista a idéia de doença como característica central do povo e a crítica

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Cadernos do IPUB n° 8, 1997

ao abandono da população do interior pelos governos.


Nos anos vinte, Vicente Licínio Cardoso cunha a expressão “Pensar o Brasil”,
criticando a inadequada condução do regime republicano da transição de uma economia
agrícola-escravagista para a fase industrial do operário urbano livre, propondo uma
política de valorização do homem-trabalhador brasileiro. Cardoso pertencia a um grupo
industrialista, vinculado ao Club dos Bandeirantes do Brasil, organização que contava
em seus quadros com personalidades como o Presidente da República Washington Luiz
e o Ministro da Fazenda, Getúlio Vargas. Considerava que o processo de transição para
o trabalho livre sem “uma única palavra sobre ensino profissional, nenhum plano de
educação dos negros emancipados, nenhum programa geral de combate ao
analfabetismo”, estava marcado por “perdas sociais de energias gastas em atritos
passivos violentíssimos”, abalando então “a saúde da própria sociedade”. O Brasil é
considerado um ‘organismo de vida estéril”, “sem continuidade de seiva e ritmo de
vida” com “milhões de analfabetos de letras e ofícios”, desamparados nos “latifúndios
enormíssimos do país” se constituindo em “peso morto” para a nação. Neste quadro, a
educação ganha estatuto de peça fundamental de uma política de valorização do homem
como fator de produção e integração nacional.
É um Brasil analfabeto, doente e improdutivo que irrompe do discurso
educacional e higiênico.

A INFÂNCIA COMO PROBLEMA

“ o menino desvalido desabrochara no homem forte de corpo e alma,


aparelhado material e moralmente para ser uma unidade no movimento de
expansão civilizadora da sua Pátria” (L.Renault,1930).

A emblemática citação foi retirada da ótima revisão sobre o tema da assistência à


infância no Brasil realizada por RIZZINI (1993). Léon Renault foi diretor do Instituto
“João Pinheiro”, uma colônia agrícola criada em 1909 e localizada nas proximidades de
Belo Horizonte.
Este Instituto teria sido aclamado na época, pela imprensa, por especialistas,
médicos, educadores, juristas como um modêlo a ser seguido por outras instituições
similares do país. Visava, segundo o seu diretor, o atendimento do “menor” em risco de
perversão ou “já
viciado”, “à criança abandonada e criminosa, ou, apenas em via de tornar-se
criminosa”. Inserindo-se em uma perspectiva preventivista, o Instituto utilizava na sua
aspiração de asilo ideal, um modelo de funcionalidade e disciplinarização inspirado no
regime político republicano. Nesta “República Escolar”, os aposentos se tomariam
“Municípios” e os pavilhões seriam “ Estados”, sendo o executivo formado pelo diretor
“Presidente da República” e três menores “Ministros”, eleitos pelos demais.
Um ideal de infância republicana, ordeira, moralmente e fisicamente bem
constituída, parece se delinear no Brasil do início do século.
As primeiras manifestações nacionalistas surgiram de maneira sistemática no
campo da educação escolar, com uma ampla divulgação de livros didáticos de conteúdo

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A Creança Brazileira, futuro da nação

moral e cívico. Essas obras pretendiam fornecer à criança e ao jovem brasileiro uma
imagem do país influenciada pela via sentimental.
Segundo RIZZTNI :

A preocupação com a infância no início do século será expressa pela


denúncia de médicos, juristas, educadores e jornalistas, de que a criança,
basicamente a *criança pobre’ é maltratada, seja qual for o seu habitat: a
família, a rua, o asilo ou a fábrica” (RIZZINI, 1993, p 25).

O conceito de infância será desmembrado em várias categorias, segundo o olhar


técnico responsável pela avaliação e assistência à clientela infantil. A criança poderá
então ser qualificado como “menor”, “moralmente abandonado”, “desvalido”,
“pervertido”, sendo que uma avaliação da estrutura familiar acompanhará o diagnóstico
médico-jurídico-social da situação .
Passemos a alguns fatos referentes a assistência médica e da legislação de
proteção à infância brasileira no período da virada do século XIX até a década de 20.
Em 1881, o médico Carlos Arthur Moncorvo de Figueiredo (1846-1901),
considerado o fundador da Pediatria científica no Brasil, organiza a Policlínica Geral do
Rio de Janeiro onde se instala a primeira clínica infantil e o primeiro curso de moléstias
de crianças, responsável pela formação de pediatras e puericultores como Fernandes
Figueira, Clemente Ferreira, Olinto de Oliveira, Moncorvo Filho.
Em memorial dirigido ao Ministro Rodolpho Dantas do Governo Imperial,
Moncorvo de Figueiredo descrevia assim a situação da infância pobre brasileira :

“ (...) Em nosso país, em que a questão da população se constituiu, desde há


muito, uma das preocupações mais sérias das classes dirigentes, a frequência
das moléstias que afetam a infância, tanto da primeira como da segunda idade
avulta sobremodo, em relação ao que se pode observar em outros países do
velho e do novo mundo. ” (Moncorvo de Figueiredo, 1882).

A mortalidade das crianças no Rio de Janeiro atingia proporções consideráveis,


calculada aproximadamente na proporção de até 460 em 1.000 nascimentos. O Barão do
Lavradio já tinha alertado para tal fato ao considerar a mortalidade infantil como uma
das causas do lento aumento populacional brasileiro, em 1878.
Em 1890, o Decreto 439 estabelece as bases para a organização da “atenção à
infância desvalida”. O Código Penal do mesmo ano ( o primeiro da República )
apresenta a inovação da inculpabilidade irrestrita para os menores de 9 anos.
O Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro (I.P.A.I.) é
fundado por Moncorvo Filho em 1899, iniciando seu funcionamento em 1901. Pode ser
considerado como grande difusor de ideologia e práticas em tomo da infância,
influenciando a legislação pública subsequente.
No seu estatuto de 1904, podemos encontrar dispositivos como:
“Inspecionar as condições em que vivem as crianças pobres, especialmente a
alimentação, roupas, habitação, educação, instrução (...) Dispensar toda a proteção

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Cadernos do IPUB n° 8, 1997

necessária às crianças que receberem maus tratos físicos, habituais ou excessivos; às


que estejam privadas dos cuidados indispensáveis; às que se entregarem à
mendicidade, vadiagem, ou libidinagem; às ocupadas em misteres condenados pelos
bons costumes e inconvenientes à população; e por último, às moralmente
abandonadas, tais sejam os filhos de pais de má conduta, ébrios, mendigos ou
condenados (...) auxiliar, pelos meios que possa dispor, a inspeção médica nas escolas
públicas e particulares (...) regulamentar e exercer vigilância sobre o trabalho das
criançasf.) Zelar pela vacinação e revacinação das crianças(...) Difundir noções,
princípios e instruções tendentes à profilaxia da tuberculose e de outros morbos
comuns à infância ”.
Fernandes Figueira toma-se Presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria,
fundada em julho de 1910.
Em 1921 é autorizada a criação do Serviço de Assistência à Proteção à infância
Abandonada e aos Delinquentes. A criminalidade infantil irá se configurar em problema
de grande alarde, sendo que no I Congresso Brasileiro de Proteção à Infância (1922),
Franco Vaz, diretor da Escola Correcional Quinze de Novembro, irá apresentar um
trabalho estatístico sobre as contravenções mais comuns entre a população de “menores”
até 20 anos. O Decreto 16272 de 1923, acompanhando a literatura especializada do
período, classifica minuciosamente o universo dos “menores” dividindo-o em dois
grandes grupos: os abandonados e os delinqüentes.
O pediatra Almir Madeira propõe no I Congresso Pan-Americano da Criança,
realizado no Rio de Janeiro, a indicação para que o dia 12 de outubro(1923), data do
descobrimento da América, se destinasse à comemoração do Dia da Criança,
oficializado em 1924.
O tipo de investimento sobre a Infância que se desenvolve nas três primeiras
décadas deste século no território nacional, pode ser resumido pelo texto dos “Direitos
da Criança”, promulgados pela Conferência da Liga das Nações :

“A criança que tem fome deve ser alimentada; a criança doente deve ser
tratada; a criança retardada deve ser assistida; a criança delinquente deve ser
corrigida; ao órfão e ao desamparado devem ser dados abrigo e
acorro "(Convenção de Genebral924).

EDUCAÇÃO E HIGIENE MENTAL

Examinaremos aqui, de forma geral, as várias matizes formadas pela confluência


entre práticas pedagógicas e práticas médico-higienistas em tomo da criança e da
família brasileira no período da República Velha.
Trabalhos consagrados como os de MACHADO et Al (1978) e COSTA(1979)?
descortinam de forma precisa os caminhos da Medicina no Brasil do século XIX e seu
gradual avanço sobre a normatização do espaço urbano e seu correspondente micro-
social, a família nuclear. A característica desta medicina emergente é o fato de tomar-se
social, ou seja, deixa de ser luta contra doenças para investir contra suas causas. Para
cumprir tal mandato, investe sobre a sociedade com o objetivo de localizar e transformar

106
A Creança Brazileira, futuro da nação

os elementos responsáveis pela deterioração do estado de saúde das populações. Nasce a


perspectiva de controle das virtualidades, da periculosidade, enfim, da prevenção. A
Higiene será o tipo de intervenção proposta pela Medicina Social, desenvolvida através
da formulação de conceitos elaborados à luz da ciência médica e programas de ação
dirigido por médicos.
Na metade do século XIX, os higienistas parecem eleger a organização familiar
como objeto privilegiado de preocupação. A mortalidade infantil é relacionada a noção
de nocividade familiar, pela falta de educação física, moral e intelectual dos pais. Os
papéis são ressituados dentro de limites precisos, cabendo ao pai a proteção familiar e à
mãe a iniciação da educação infantil. Os filhos deveríam ser criados para amar e servir a
“humanidade” e não para servir a família. Os médicos elaboram uma concepção da
criança como uma entidade físico-moral amorfa que deveria ser moldada sobre os
preceitos de uma educação higiênica. As disposições morais seriam condicionadas por
circunstâncias físicas e vice-versa.
As críticas higienistas também se voltam para os colégios e internatos infantis.
Reunidas em grande número, em uma casa pouco asseada, situada em ruas tortuosas,
muitas próximas a hospitais e quartéis, recebendo uma educação livresca em detrimento
da educação física, recebendo castigos corporais, as crianças não encontravam
condições para um aprendizado sadio. O discurso médico sobre as escolas defende sua
localização fora do espaço urbano, organizando a intervenção sobre o interior da escola
sob dois aspectos interrelacionados. Um ligado à materialidade do edifício, de suas
disposições internas e outro ligado aos indivíduos. O objeto privilegiado da atenção
médica é o jovem estudante. Já no momento da matrícula, o médico deveria realizar
uma inspeção física e moral e da saúde geral do candidato. Dentro da escola, há uma
investida sobre a totalidade da vida dos colegiais com uma articulação minuciosa do
controle físico-moral destes. Esta nova escola é a escola medicalizada.
Esta perspectiva eminentemente social da Medicina irá rascunhar intemamente,
nas suas preocupações com a saúde pública e com o seu esquadrinhamento do espaço
urbano, uma nova especialidade médica, fundamental na articulação aqui desenvolvida
entre educação e higiene mental na Primeira República.
Segundo CUNHA(1986), os primeiros gestos do reconhecimento oficial da
psiquiatria são a inauguração, em 1882, da especialização acadêmica na área
psiquiátrica e a transformação do antigo Hospício D. PedroII em Hospital Nacional de
Alienados, em 1890, que se constituiu na primeira experiência efetiva de medicalização
da loucura sob administração direta do Estado. A autora considera que a instauração da
República conferiu maior visibilidade às práticas disciplinadoras, como as exercidas
pela medicina social e mental, sendo que esta fase :

“(■.), constitui um momento importante do processo; para além do amplo


movimento de criação de órgãos públicos que indicam a constituição de um
setor estatal da medicina, há avanços quase imediatos no campo
específico do alienismo. Em primeiro lugar, o aparecimento da figura do
alienista-fimcionário público, responsável exclusivo pela gestão dos hospícios
sob o novo regime. Em segundo lugar, o governo republicano,(...),estabelece
pela primeira vez uma legislação que define e regulamenta a assistência aos
alienados em todo território nacional” (CUNHA, 1986, p. 45/

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Cadernos do IPUB n° 8, 1997

Entre 1912 e 1920, assistimos a uma importante expansão dos estabelecimentos


destinados aos alienados. Acompanhando a perspectiva de intervenção social presente
no discurso médico desde o século anterior, a psiquiatria irá reinvidicar um lugar de
destaque nas discussões sobre a realidade nacional e seu destino frente aos processos de
urbanização e capitalização emergentes. O olhar dos alienistas irá transitar por
diferentes questões sobre o cotidiano da vida urbana, a sexualidade, a promiscuidade,
criminalidade, mobilizações operárias, vagabundagem, os jogos e vícios.
Na base teórica dessa embrionária psiquiatria brasileira, encontramos a mescla do
otimismo terapêutico de Pinei e Tuke, baseados no asilo e o tratamento moral, com os
teóricos da degeneração ( Morei) e da corrente organicista alemã. A psiquiatria nacional
parece então caminhar em dois pólos complementares, da reclusão terapêutica dos
alienados nos asilos e da identificação e combate aos focos de degenerescência.
Preocupando-se com o aspecto moral da população, o saber psiquiátrico brasileiro irá
propor um trabalho de higienização ao nível das emoções e paixões.
Observamos que existe praticamente um consenso na historiografia psiquiátrica
brasileira em caracterizar que a intervenção deste saber na infância inicia-se nos anos
20.
SCHECHTMAN(1981), coloca que a partir da década de 20, a psiquiatria
brasileira passará a se preocupar com a questão da infância, buscando a legitimação
enquanto instância de regulação do espaço social, desenvolvendo uma pretensão
preventivista. A escola, tomada gratuita e obrigatória, demandaria a ajuda de outras
instâncias reguladoras para a tarefa de disciplinarização infantil.
NUNES (1988), frisa que apesar da infância ter sido um dos principais alvos da
medicina social do século XIX, a questão dos cuidados com a criança brasileira estava
na ordem do dia durante os anos 20 e 30.
Este período em especial, a última década da Primeira República, surge como
essencial para a análise das representações e das práticas emanadas do campo escolar e
médico em tomo da infância brasileira. Já descrevemos anteriormente, algumas partes
deste percurso e nos deteremos agora na estreita vinculação entre os ideais de um
discurso pedagógico nascente e o lugar reservado para a criança na visão psiquiátrica.
Sedimentou-se nos anos 20, entre os intelectuais que discutiam e avaliavam o
processo republicano, a crença de que na educação residia a solução de todos os
problemas nacionais. Esperava-se da educação a possibilidade de regenerar o brasileiro,
considerado doente, indisciplinado e improdutivo. O analfabetismo tomava-se o
símbolo da inaptidao nacional para o progresso.
NAGLE(1974) irá referir-se a este hiperdimensionamento da importância da
Educação como um movimento inicial de entusiasmo pela educação. Posteriormente
há um crescimento de outro movimento educacional que denominou de otimismo
pedagógico, onde seria enfatizado a importância da aplicação de novas técnicas de
ensino, constituindo uma nova pedagogia formadora de um novo homem que as
exigências de uma sociedade cada vez mais industrializada e competitiva solicitaria.
Lembremos que a década de 20 caracteriza-se por campanhas liberais conduzidas pelos
segmentos sociais insatisfeitos com a lentidão da transição de um modelo agro-
exportador para o modelo industrial. Na discussão sobre uma mudança de prioridades(
da difusão para a qualidade) no destino da organização escolar brasileira, podemos

108
A Creança Brazileira, fiituro da nação

colocar o surgimento da Associação Brasileira de Educação (ABE) como um marco


significativo deste panorama.
Fundada no Rio de Janeiro em 1924 com o objetivo de congregar os educadores
daquele Estado, a ABE foi projetada como modelo de organização nacional, passando a
exercer tal influência a partir de 1927 com a promoção de Conferências Nacionais.
CARVALHO(1989), cita uma afirmação de Heitor Lyra’da Silva, tido como
principal idealizador e organizador da entidade :

“Creio interpretar a maioria senão a totalidade dizendo que não temos o


fetichismo da alfabetização intensiva e que estamos convictos, salvo pequenas
divergências secundárias, de que o levantamento do nível popular tem que
repousar sobre tríplice base: moral, higiênica e econômica, o que significa que
sem a cultura das qualidades do caráter, sem a melhoria das condições de
saúde da massa da população e sem uma racional organização do trabalho é
utopia esperar que a alfabetização rápida e quase instantânea, se possível,
viesse a transformar para o bem as atuais condições do nosso país” ( Heitor
Lyrada Silva, 1925).

Este educador considerava a instrução pura e simples como uma “arma perigosa”
que podería se colocar nas mãos da população. A educação deveria ser integral,
educação do sentimento, dos gestos, do corpo e da mente. As principais iniciativas da
ABE, como suas reuniões e conferências eram marcadas como eventos cívicos. Sua
atuação na cidade do Rio de Janeiro, orientou-se principalmente como resistência
moralizadora ao processo degenerativo inerente ao processo de urbanização vigente.
Neste sentido, organizavam-se pregações, festas pedagógicas, constituição de Círculos
de Pais destinados a ampliar a influência da escola, medidas de proteção à infância.
Valores e personagens eram celebrados como o Lar, a Escola, o Mestre, o Dever, a
Saúde, o Trabalho, o Esporte, a Fraternidade.
A década de 20 também verá nascer um potencial “redentor da nação” no seio da
psiquiatria brasileira. Segundo CUNHA (1986), o psiquiatra Gustavo Riedel, ao retomar
do Congresso Latino-Americano de Higiene Mental realizado em Havana em 1923,
organiza no Rio de Janeiro, a Liga Brasileira de Higiene Mental (L.B.H.M.), com o
objetivo inicial de melhorar a assistência aos doentes mentais através da renovação dos
quadros profissionais e dos estabelecimentos psiquiátricos. E declarada de utilidade
pública no ano seguinte e já em 1925, recebe doações orçamentárias do governo federal
e do município do Rio de Janeiro, além de verbas particulares. Entre outros figuram na
sua corporação, Félix Pacheco, Miguel Couto, Afrânio Peixoto, Lemos de brito,
Roquete Pinto, General Rondon, Evaristo de Moraes, ao lado de psiquiatras eminentes
como Juliano Moreira, Franco da Rocha,Gustavo Riedel,Pacheco e Silva.
Em 1926, os. integrantes da L.B.H.M. começam a elaborar projetos de cunho
preventivista que formariam um amplo programa de higiene mental e de eugenética.
Definia-se a higiene mental como a “moral universal do amanhã”, sendo
fundamental o papel da pedagogia. Impunha-se incentivar o desenvolvimento da
eugenia e da educação que teriam missões complementares. Para construir uma
educação dos sentidos era proposta a organização de um sistema de higiene infantil, que
incluiría a padronização dos métodos obstétricos, estabelecimento de serviços pré-natais

109
Cadernos do IPUB n°8, 1997

e assistência ao escolar. Era apregoado a atuação dos médicos e psiquiatras nas escolas
através de serviços de higiene escolar.
Henrique Roxo colocava que a inspeção médico-escolar podería constatar
possíveis distúrbios degenerativos além de classificar as crianças conforme seu
desenvolvimento intelectual, o que facilitaria a formação de classes diferenciadas a
partir de critérios psicológicos.
NUNES (1988), refere que a Liga mantinha estreitas relações com a A.B.E.
Tendo em vista a difusão do saber psicanalítico pelo discurso médico-psiquiátrico
nos anos 20, a autora frisa que a teoria da sexualidade é um dos pontos-chave para a
incorporação da psicanálise pela psiquiatria, abrindo um novo flanco para a perspectiva
pedagógica vigente neste período. A maioria dos artigos sobre psicanálise valorizavam a
sua possibilidade de utilização no campo educacional, visando o melhoramento das
crianças e de sua família. Através dela, podería se corrigir as predisposições mórbidas
da infância e evitar futuros desvios. A educação infantil baseada na psicanálise é
enfatizada como pedra fundamental do programa de regeneração social.
Acompanhemos a trajetória de Júlio Pires Porto-Carrero(l 887-1937), médico da
Marinha ,catedrático de Medicina Legal, Membro Honorário da Academia Nacional de
Medicina, um dos mais importantes precursores da psicanálise no Rio de Janeiro.
Em maio de 1926, cria a clínica psicanalítica da Liga Brasileira de Higiene
Mental, sendo que em junho do mesmo ano, faz uma conferência sobre Educação e
Psicanálise, irradiada pela Rádio Clube do Rio de Janeiro. No ano seguinte, apresenta
um trabalho na I Conferência Nacional de Educação realizada em Curitiba, intitulado “
O caráter do escolar segundo a Psicanálise”, escrevendo no mesmo período um prefácio
para o livro “A Psicanálise da Educação” de Deodato de Moraes, integrante do
Conselho Diretor da A.B.E.
O ano de 1928, marca a estreita ligação de Porto-Carrero com a ABE, onde realiza
palestras sobre as “Bases da Educação Moral do Brasileiro” e da “Aplicação
Psicanalítica à Formação Moral da Criança”, além de proferir a aula inaugural do Curso
de Psicanálise aplicado à Educação.
Desta maneira, pudemos observar a clara confluência em relação ao cuidado
infantil entre as práticas pedagógicas e a perspectiva preventiva da psiquiatria
alimentada por uma determinada incorporação da psicanálise e de medidas eugênicas,
sendo esta última intensificada na década de 30.
O estudo da Infância Brasileira revela-se um rico campo para explorações
temáticas em tomo da vinculação entre o problema da identidade nacional, as práticas
assistenciais e o campo pedagógico .

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112
SEXUALIDADE E SEXOLOGIA NO RIO DE JANEIRO DE
ENTRE-GUERRAS (NOTAS PRELIMINARES DE PESQUISA)

Sérgio Carrara

INTRODUÇÃO

Grande parte da investigação sociológica e antropológica que nos últimos anos


vem tomando como objeto a sexualidade humana tem sido motivada, ou fortemente
impulsionada, pelo advento e disseminação da Sídrome da Imunodeficiência Adquirida
(AIDS) em diferentes países. Nesse campo, muito se tem dito sobre a importância do
conhecimento da “cultura sexual” de determinada sociedade ou grupo social para a
compreensão do modo pelo qual a epidemia tende a se configurar localmente.1 Baseadas
geralmente em entrevistas com largas camadas da população ou com grupos
especialmente atingidos pelo mal, inúmeras pesquisas sobre “crenças”, “atitudes” e
“comportamentos” vêm sendo realizadas em diferentes partes do mundo no sentido de
estabelecer os contornos de tais “culturas sexuais”. Porém, muito menor tem sido a
preocupação em investigar as instâncias sociais responsáveis por sua produção e
reprodução, a trajetória que descrevem quando consideradas diacrônicamente e,
finalmente, as possíveis relações dinâmicas que mantêm entre si no âmbito de
configurações culturais que transcendem fronteiras nacionais. Tomando como referência
o surgimento e desenvolvimento da sexologia no Brasil, busco contribuir para a
compreensão dos valores em relação ao sexo hoje vigentes entre nós e das injunções
sociais e políticas concretas que fizeram com se tomassem hegemônicos.
A perspectiva adotada é portanto a da antropologia histórica, que, segundo me
parece, apenas se distingue das abordagens históricas tradicionais na medida em que
procura mais sistematicamente estabelecer tipologias, tanto do ponto de vista dos
discursos e práticas que analisa, fazendo emergir as categorias ou princípios sociais que
os ordenam; quanto do ponto de vista dos processos descritos, fazendo transparecer
certas estruturas de transformação típicas e comparáveis transculturalmente. Há vários
anos, na área da antropologia social, a ênfase no trabalho sobre dados históricos tem
correspondido a tentativas de superação de perspectivas analíticas mais tradicionais que
tendem a ver a cultura, definida grosso modo como sistema de valores de determinado
grupo social, como espécie de entidade transcendental, a-histórica, cujo sentido poderia
ser integralmente apreendido através de análises sincrônicas. Como a observação
participante, a metodologia que geralmente suporta esse tipo de análise foi desenvolvida
a partir de investigações realizadas junto a sociedades tribais. Porém, depois de a
antropologia social ter começado a colocar sob análise sociedades complexas, para as
quais registros históricos são disponíveis, parece ter se tomado possível (e justificável)

Doutor em Antropologia Social; Professor do Instituto de Medicina Social/UERJ


1 Ver principalmente (PARKER: 1991, 1994)
2 Entre os pesquisas brasileiras que caminharam nessa direção ressalto (PEREIRA, 1994); (FRY, 1982a e b)
3 Utilizo aqui o termo desenvolvimento na acepção estritamente técnica divulgada pelo sociólogo Nobert Elias, para
quem a expressão designa um conjunto de transformações sociais de longo prazo em determinada direção ou sentido,
sem quaisquer conotações valorativas (ELIAS: 1990:217).
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

pensar a cultura como resultado sempre provisório de um processo social e político em


que diferentes grupos se enfrentam e se articulam, negociando constantemente o sentido
ou sentidos a serem atribuídos à própria realidade social e ao mundo natural com o qual
ela se constrói.
E nessa perspectiva que venho desenvolvendo minha pesquisa no âmbito do
projeto integrado “A institucionalização dos saberes psicológicos no Brasil (Rio de
Janeiro): uma contribuição à antropologia da pessoa moderna”.4 Meu principal objetivo
é a análise do surgimento e implantação da sexologia no Brasil - particularmente no Rio
de Janeiro - durante a primeira metade do século XX.5 Pretendo focalizar as principais
idéias divulgadas pela nova disciplina científica e os conflitos sociais, políticos e
profissionais que seus propositores brasileiros se envolveram para defendê-las. Tais
idéias ou representações em tomo da sexualidade têm sido por mim tratadas como um
capítulo do tema da responsabilidade humana, conforme vem sendo explorado no
âmbito das ciências sociais desde os trabalhos pioneiros da Escola Sociológica
Francesa.6 Tributária da reflexão antropológica mais ampla sobre as noções relativas à
pessoa humana presentes em diferentes contextos históricos e sociais, a questão da
responsabilidade e, consequentemente, a do autocontrole vêm sendo por mim
exploradas especificamente em tomo do sexo em sua relação com a vontade', temos,
poderiamos ter ou deveriamos ter controle sobre nossas demandas sexuais? Dito de
outro modo, privilegiando a discussão em tomo da responsabilidade, a pesquisa busca
contribuir para o aprofundamento da compreensão das dimensões propriamente político-
morais das representações em tomo da pessoa humana, cuja importância no caso das
sociedades modernas de tradição ocidental vem sendo apontada desde o trabalho
inaugural de Marcei Mauss (MAUSS: 1991 [1938]). As idéias aqui apresentadas devem
portanto ser consideradas provisórias, refletindo sobretudo os pressupostos que têm
orientado um trabalho que ainda se encontra em fase inicial.

DAS DOENÇAS VENÉREAS À SEXOLOGIA

Por que a sexologia? Antes de mais nada, essa disciplina científica despertou
minha atenção por tima série de razões que poderíam ser aqui chamadas de “empíricas”,
pois se prendem diretamente ao contato que, em pesquisa anterior,7 pude fazer com
material produzido por alguns auto-denominados sexologistas ou sexólogos brasileiros.
Comecemos então por elas...

4 Coordenado pelos profs. Jane Russo e Luiz Fernando Dias Duarte, o projeto conta com o apoio do CNPq e envolve
inúmeros profissionais da UFRJ e da UERJ. Em seu primeiro ano de execução, o subprojeto por mim coordenado
conta com a participação de dois bolsistas de iniciação científica: Messias do Espírito Santo e Fabiano Vilaça dos
Santos.
5 Inicialmcnte, pensei em restringir a investigação às décadas de 1920 e 1930, mas o levantamento bibliográfico
realizado até o presente momento já aponta claramente para a necessidade de incluir também os anos 1940, momento
em que as publicações sobre o assunto realmente tomam vulto no país.
6 Penso especialmente nas reflexões levadas a cabo na passagem do século por Durkheim (DURKHEIM •1969'1 e
discípulo Fauconnet (FAUCONNET:1920). ' > seu
7 Trata-se da pesquisa que empreendí para confecção de minha tese de doutoramento defendida junto ao Programa d
Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e recentemente publicada sob o título* Tribut *
Venus: a luta contra a sifilis no Brasil da passagem do século aos anos 40 (CARRARA, 1996). O levantam//
inicial de dados contou com a participação de Santuza Cambraia Naves e Bárbara Musumcci Soares e fni T
financeiramente pela Fundação Ford do Brasil. f01 aP°^do

114
Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras

Durante os últimos anos, estive investigando o modo pelo qual, no Brasil, foram
pensadas e executadas intervenções sociais (estatais ou não) visando combater os “males
venéreos”, especialmente a sífilis, geralmente considerada o mais grave entre eles.
Como era de se esperar, a discussão em torno do assunto podia ser tudo, menos
tranqüila ou desapaixonada. Visccralmente relacionada ao comportamento sexual, à
moralidade, à família, à prostituição etc., as medidas aconselhadas ou colocadas em
prática para abordar as atualmente chamadas “doenças sexualmente transmissíveis”
tiveram o poder de levantar terríveis polêmicas, dentro e fora do meio médico. Em finais
do século passado, muitos - principalmente os representantes da Igreja Católica ou os
adeptos mais fervorosos de suas doutrinas - achavam que tais doenças não deviam
sequer ser objeto de políticas propriamente “públicas”. Problemas adstritos à esfera
privada, sua resolução devia restringir-se ao indevassável diálogo entre o doente e seu
médico, protegidos ambos pela ética do segredo profissional. Como se vê, já de início,
não foi fácil transformar as “doenças venéreas” em problema de saúde pública. Para
tanto, foi necessário um gigantesco esforço conjunto de um extenso grupo de
profissionais (médicos sobretudo), espalhados por diferentes países do mundo ocidental.
Mas, mesmo depois de as “doenças venéreas” começarem a ser reconhecidas
como graves doenças endêmicas, merecedoras como outras da atenção do Estado, seu
combate não deixou de continuar espalhando discórdia. A polêmica passava a girar
então em tomo dos meios mais adequados de prevenção e, nesse sentido, muitas foram
as medidas propostas: regulamentar a prostituição, isto é, colocar as prostitutas -
amplamente consideradas como principais disseminadoras do mal - sob regime sanitário
(e jurídico) especial; instituir o exame pré-nupcial obrigatório, vedando o casamento aos
“contagiantes”; implementar a educação sexual dos jovens celibatários e sobretudo dos
militares, supostamente mais atingidos pelas devastações “venéreas”; divulgar os meios
eficazes de evitar a contaminação durante o ato sexual (uso de camisinhas, desinfetantes
etc.); educar moralmente a juventude no sentido de promover a abstinência sexual antes
ou fora do casamento; responsabilizar penalmente os que transmitiam tais doenças;
criminalizar a prostituição; instituir a notificação médica obrigatória de tais doenças e o
tratamento obrigatório dos doentes etc. Como se pode facilmente suspeitar, ao longo de
toda a primeira metade deste século, cada uma dessas medidas tinha (muitas continuam
tendo até hoje) a capacidade de gerar verdadeiras guerras entre os próprios médicos e,
também, entre eles e padres, juristas e pedagogos. Inicialmente, procurei entender a
estrutura dessa “guerra”: quais seriam os princípios, as representações ou os valores que,
revelando o sentido mesmo do desenrolar da disputa, poderíam tomar inteligíveis as
posições defendidas pelos diferentes contendores? Durante algum tempo, pensei que as
divergências poderíam ser ordenadas a partir da oposição lei versus educação.
Efetivamente, enquanto vários médicos advogavam intervenções mais “tradicionais”,
através da adoção de leis e regulamentos especiais; outros defendiam intervenções que,
por utilizarem a educação como instrumento privilegiado para gerar mudanças efetivas
no comportamento de homens e de mulheres, apresentavam-se em finais do século
passado como mais “modernas”. A oposição era sem dúvida importante, pois à época
disseminava-se no Brasil a idéia de que leis não mudam comportamentos, pois, em
desacordo com a realidade sobre a qual legislam, simplesmente não são respeitadas.
Embutida aí, uma crítica à tradição “bacharelesca” do Estado brasileiro que, a partir das
últimas décadas do século passado, tornava-se cada vez mais corrente entre profissionais
que, como os médicos, julgavam-se porta-vozes da ciência (VENÂNCIO FILHO,
1982).

115
Cadernos do IPUB n°8, 1997

Porém, essa oposição estava longe de tomar satisfatoriamente inteligível os dados


empíricos, deixando como resíduo contradições flagrantes. Assim, vários médicos que
se notabilizaram por combater intransigentemente a regulamentação do meretrício -
típica intervenção legal que, desde o início do século XIX, vinha sendo adotada na
França -, defendiam entretanto a adoção de medidas legais no sentido de, por exemplo,
impedir o casamento de “contagiantes” ou tomar a prostituição em si mesma um crime.
Outros médicos, que, ao contrário, tornaram-se famosos por suas posições favoráveis à
regulamentação da prostituição, não deixaram contudo de defender e implementar
campanhas educativas junto aos jovens, sobretudo aos do sexo masculino, para
disseminar entre eles o conhecimento dos “meios profíláticos” adequados para, sem se
privarem das relações sexuais, evitarem as “doenças venéreas” (uso de camisinhas, de
desinfeções pré e pós-coito etc.).
Com o tempo, fui percebendo que sob a oposição lei/educação e a ela
parcialmente articulada havia ainda uma outra, aparentemente muito mais determinante
ou heurística. Esse grande divisor de águas dizia respeito a diferentes concepções quanto
à natureza da própria sexualidade humana e apresentava-se no mais das vezes sob a
forma de uma teoria sexológica implícita. Assim, ao longo do século XIX e início do
século XX, havia os que, retomando o fio de uma longa tradição médica, hipocrática e
galênica (FOUCAULT, 1984 e 1985), consideravam a sexualidade enquanto função
fisiológica, necessidade primária cuja satisfação, uma vez atingida a puberdade, seria
fundamental para o equilíbrio orgânico dos homens e, para alguns, também das
mulheres. Em marcado contraste, desenhava-se uma outra posição, que, herdeira do
ideário cristão dos primeiros séculos deste milênio, concebia a sexualidade não como
necessidade primária (como a sede, a fome ou o sono) a ser regulada, mas como apetite
físico, cuja frustração sistemática tinha o poder de aumentar a vitalidade do corpo e,
senão purificar ou salvar a alma como propunham diferentes igrejas cristãs, ao menos de
elevá-la, aperfeiçoando-lhe as “faculdades” (BROWN, 1990).
A partir dessa oposição, o material empírico começou a fazer muito mais sentido.
Os que abraçavam a idéia do sexo-necessidade tendiam efetivamente a defender, no
plano jurídico, a adoção de regulamentos especiais para o “saneamento” das prostitutas,
lutando por um sistema médico-policial que as submetesse a uma vigilância sanitária
constante. A prostituição seria um “mal inextinguível”, ou agostinianamente, um “mal
necessário”, uma vez que servia à canalização da irreprimível e imperiosa energia sexual
masculina, que, sem ela, iria, ou “bater” em outras “portas”, atingindo mulheres
“honestas”, ou se acumularia, dando origem a inúmeros males físicos e morais. No
plano educativo, os adeptos desse ponto de vista tendiam obviamente a defender uma
educação sanitária que permitisse aos homens uma “saudável” prática sexual, através da
utilização dos então chamados “preservativos de contágio”.
O sexo-apetite físico dispensável era obviamente a idéia defendida pelos
representantes da Igreja Católica brasileira que, qualquer que tenha sido o grau de
tolerância que, na prática, manifestou frente ao comportamento sexual de seus fiéis,
continuava formalmente a ver na abstinência sexual completa um meio privilegiado de
purificação da alma. Porém, uma versão desta idéia era também abraçada por muitos
médicos, que tentavam demonstrar cientificamente a inocuidade, do ponto de vista da
saúde, da abstinência sexual. Em seu discurso, o autocontrole era possível e desejável.
Ao que parece, a divulgação laica de tais idéias tomou vulto nas últimas décadas do
século XIX através de um amplo movimento social, conhecido como “movimento

116
Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras

abolicionista”. Tal movimento originou-se nos meios protestantes ingleses e seu


desenrolar confunde-se com a formação mesma do movimento feminista
(WALKOWITZ:1983). O controle médico-policial das prostitutas - conforme defendido
por muitos e existente em vários países europeus - passou então a ser sistematicamente
criticado. Depois de abolida a escravidão dos negros, diziam seus porta-vozes, tratava-se
agora de abolir a “escravidão sexual” a que vinham sendo submetidas certas mulheres,
“arrastadas” à prostituição para satisfazer desejos ou apetites imorais e reprimíveis dos
homens. De um modo geral, os “abolicionistas” consideravam a idéia de se combater as
“doenças venéreas” através do controle médico-sanitário das prostitutas um mero
expediente para oferecer, oficialmente, mulheres “limpas” à licenciosidade masculina.
Era aceitar, portanto, o duplo padrão de moralidade, que permitia aos homens o que era
vedado às mulheres, ou seja, o livre exercício da atividade sexual uma vez atingida a
maturidade. Para acabar com as “moléstias venéreas”, o Estado deveria, ao contrário,
combater a própria prostituição (criminalizando-a e/ou endereçando às meretrizes
políticas sociais que propiciassem sua “recuperação”) e, através de campanhas
educativas, moralizar os homens, fortalecendo-lhes o autocontrole. Como as mulheres,
eles podiam e deviam chegar castos ao casamento e assim se manterem quando dele
privados.
Assim, aos poucos fui então percebendo que o combate às “doenças venéreas”,
durante o período que se estendeu de finais do século XIX até o pós-Segunda Grande
Guerra, tomava-se bastante mais inteligível (e, do meu ponto de vista, interessante) caso
fosse tratado como um longo, conflituoso e geralmente implícito debate sobre da
sexualidade humana e sobre o grau de controle que, nessa área, os indivíduos podiam
exercer sobre si mesmos.
Em cada contexto nacional, tal debate parece ter seguido caminhos particulares,
determinando políticas sanitárias diversas e, em certos casos, divergentes. Em países
como a França, onde prevalecia a idéia do sexo-necessidade primária (ao menos para os
homens), milhares de mulheres, prostitutas ou assim consideradas, foram cadastradas
pela polícia e submetidas obrigatoriamente a exames regulares e à hospitalização
compulsória, quando contaminadas (CORBIN:1982). Em países como os Estados
Unidos, em que parece ter prevalecido a idéia oposta, ou seja, onde se acreditou que a
castidade pré ou extraconjugal era possível e desejável para homens e mulheres, a
prostituição foi criminalizada e milhares de mulheres foram enviadas às prisões ao
longo da primeira metade do século XX (BRANDT:1985). Além disso, e um pouco por
toda a parte, através de escolas, quartéis e associações profissionais, surgiram à mesma
época projetos para a educação sexual da juventude. Divulgando implicitamente a idéia
do sexo-apetite dispensável, alguns procuravam moralizar os jovens. Manifestando
tendência oposta, outros buscavam apenas “esclarecê-los” quanto aos meios técnicos
que possibilitavam uma vida sexual com menores riscos de contaminação.
No Brasil, embora nunca tenha havido um controle sanitário generalizado das
prostitutas através de uma legislação nacional, até as primeiras décadas do século XX
era hegemônica entre os médicos a idéia de que o sexo ou a função sexual, como
preferiam dizer, era necessidade fisiológica primária. Defendiam assim a
regulamentação do meretrício ou a realização de campanhas para a educação sexual de
jovens solteiros e adultos celibatários. De fato, foram tais idéias que nortearam a ampla
campanha contra os “males venéreos” que se desenvolveu no país entre os anos de
1921-1934 (CARRARA,1996). Porém, a partir dos anos 1930, a idéia do sexo-

117
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

necessidade fisiológica começaria a perder terreno no meio médico nacional. Tal


movimento já se anuncia nos anos 20, quando alguns médicos começam a se apoiar nos
então recentes estudos sobre endocrinologia, para afirmar, como o fez Felício dos
Santos, que a “verdadeira” ciência se harmonizava com a religião. Para o médico,
depois da “descoberta” dos “hormones” e de seus múltiplos efeitos orgânicos, seria
possível afirmar que testículos e ovários não tinham apenas uma função genital ou
reprodutiva. Como, segundo Felício dos Santos, “nos casos de pluralidade de funções
em um órgão, a atrofia ou desuso de uma delas aumenta a atividade das outras”, estaria
então cientificamente demonstrado que...

“...a Castidade estimula a produção de hormones e a endocrinia salutar que


fortifica o organismo e desperta a acuidade psíquica para as excelsas
cogitações científicas e morais. Quanto menos esgotados forem os órgãos
genitais por atos sexuais, tanto mais concorrem eles para a energia mental” (in
SURBLED,1923)

O SURGIMENTO DA SEXOLOGIA NO BRASIL

Além da importância que teorias sexológicas implícitas tiveram na configuração


da luta contra as “doenças venéreas”, fui percebendo também que, enquanto
especialidade médica, a sexologia floresceu de modo notável entre nós a partir dos anos
1930. Florescimento talvez previsível se nos lembrarmos que o sexo, mais
particularmente o excesso sexual, parece ter sido considerado desde muito antes do
período aqui investigado um atributo distintivo dos brasileiros. Como se sabe, a
explicação para tal fenômeno oscilou historicamente entre a influência do clima tropical,
da raça negra ou mestiça ou de certas peculiaridades sociais relacionadas ao processo de
colonização e, especialmente, à presença de escravos.8 Embora as razões da emergência
da sexologia no país só possam ser melhor compreendidas com o avanço da
investigação, é já possível apresentar algumas das características de seu
desenvolvimento entre nós e alguns índices que atestam sua originalidade.
Talvez devamos considerar a obra A libertinagem no Rio de Janeiro, perante a
história, os costumes e a moral, de autoria do médico José Ricardo Pires de Almeida e
publicada pela primeira vez ao longo do ano de 1902, como o marco zero da sexologia
brasileira, pois, nela, mais do que uma etnografia do mercado sexual (especialmente do
mercado homossexual) carioca da passagem do século, temos a articulação de uma
teoria mais geral sobre a sexualidade humana. Porém, parece ter sido somente no final
dos anos 1920 e ao longo dos anos 1930 que começam a ter projeção os primeiros
médicos brasileiros que, como Júlio P. Porto-Carrero, Emani do Irajá ou José de
Albuquerque, proclamaram-se em algum momento de suas carreiras sexólogos ou
sexologistas, empenhando-se na implantação da nova disciplina e na divulgação da
“questão sexual”, cujos meios de resolução estariam em suas mãos. Dos três, o que

8 Inúmeros autores da primeira metade do século XX, refletiram sobre as causas da sexualidade excessiva dos
brasileiros. Entre os mais importantes figuram sem dúvida Gilberto Freyre (FREYRE: 1952(1933]) e Paulo Prad
(PRADO: 1931). Porém, como se sabe, o tema do Brasil como "paraíso sexual" remonta aos primórdios da
colonização e, recentemente, mereceu a instigante análise da historiadora Laura de Mello e Souza (SOUZA-19931
9 O caráter pioneiro do livro de Pires de Almeida também é ressaltado por (PEREIRA, 1994,104).

118
Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras

detinha maior prestígio acadêmico era sem dúvida Porto-Carrero. Membro honorário da
Academia Nacional de Medicina e professor catedrático de medicina-legal da
Universidade do Rio de Janeiro, Porto-Carrero havia sido, no início de sua carreira,
médico da marinha, dedicando-se ao estudo das “doenças venéreas”. Aí talvez a origem
do interesse pela sexualidade que o levaria, nos anos 20 e 30, a dedicar-se à sexologia e
especialmente à psicanálise, sendo um dos principais introdutores das doutrinas
freudianas no Brasil.10
Marginais à elite médica da então capital federal, José de Albuquerque e Emani do
Irajá vincularam mais fortemente suas carreiras à sexologia e nos legaram vasta obra.
Foram também os autores nacionais mais prolíficos do gênero, contando cada um, com
mais de uma dezena de livros publicados em diversas edições, principalmente pelas
editoras Freitas Bastos e Irmãos Pongetti.11 À sua atividade de escritor, Irajá articularia
ainda a de consagrado pintor de nus femininos e de médico voltado à clínica sexológica.
Já Albuquerque, como veremos adiante, distinguiria-se como propagandista e líder de
um notável movimento ocorrido no Rio de Janeiro em prol da educação sexual. Os
principais temas abordados por ambos os autores são a psicopatologia sexual - a
inversão sexual, a impotência masculina, a “coitofobia” no homem etc. -, a morfologia
da mulher brasileira, a educação sexual, o exame pré-nupcial, as doenças venéreas, o
amor, a virgindade etc.
Como já se pode perceber, o mercado editorial não ficou indiferente ou passivo
frente à emergência da sexologia entre nós; ao contrário, logo descobriu o seu imenso
potencial de vendas, devendo ser considerado instância fundamental da implantação da
nova disciplina. Várias editoras montaram importantes coleções, nas quais publicavam
autores nacionais e divulgavam também os grandes sexólogos estrangeiros. Na
“Biblioteca de Cultura Científica” e na “Biblioteca de Medicina-Legal”, a editora
Guanabara-Koogan publicaria trabalhos sobre temas sexuais, escritos por membros da
12
elite médica brasileira, como o próprio Júlio Porto-Carrero, Antônio Austregésilo,
Afrânio Peixoto e Estácio de Lima, e por nomes consagrados intemacionalmente, como
Freud. Outras editoras seriam entretanto mais especializadas em temas sexológicos. E
o caso da editora Civilização Brasileira que, junto com a Companhia Editora Nacional
de São Paulo organizaria, ao longo dos anos 30, a “Biblioteca de Educação Sexual”,
publicando então traduções de clássicos da literatura sexológica: Havelock Ellis,

10 Entre seus trabalhos compilados até o momento temos os seguintes livros: A psicologia profunda ou psicanálise,
publicado em segunda edição em 1932 (PORTO-CARRERO, 1932a); Criminologia e psicanálise (PORTO-
CARRERO, 1932b); Psicanálise de uma civilização (PORTO-CARRERO, 1933a); Ensaios de psicanálise,
publicado em segunda edição em 1934 (PORTO-CARRERO, 1934)Sexo e cultura (PORTO-CARRERO, 1933b).
’’ Entre os inúmeros livros dos dois autores, destaco: (ALBUQUERQUE, 1928; 1929; 1930; 1934; 1940 e 1941) e
(IRAJÁ, 1930a e b; 1933a, b e c; 1937).
12 Austregésilo também publicaria, através de outras editoras, títulos sexológicos AUSTREGÉSILO, 1928 e 1932).
I3De Porto-Carrero, a Guanabara-Koogan publica Sexo e Cultura (ensaios de psicanálise), em 1933; de Austregésilo,
Perfil da mulher brasileira, em 1922; Conduta sexual, em 1934; e Fames-libido-ego (sua aplicação à análise
mental), em 1938; de Afrânio Peixoto, publica, em segunda edição, Sexologia forense, em 1934, e, finalmente de
Estácio de Lima, publica, em 1935, A inversão dos sexos. Em 1934, lançaria no mercado três livros de Freud:
Introdução à psicanálise, traduzido por Elias Davidovich, Totem e tabu e O futuro de uma ilusão, traduzidos do
alemão por Júlio Porto-Carrero (FREUD, 1934a; b e c).
14 Ellis é por muitos considerado o fundador da moderna sexologia (ROBINSON, 1976; WEEKS, 1996 ). Ao longo
dos anos 1930, a Companhia Editora Nacional e a Civilização Brasileira colocariam no mercado vários volumes de
sua grande obra Studies in the psychology of sex, originalmente publicada entre os anos de 1897 e 1910. Temos já
compilados os seguintes títulos: O instinto sexual (ELLIS, 1933a), A educação sexual (ELLIS, 1933b); A inversão
sexual (ELLIS, 1933c); A seleção sexual no homem (ELLIS, 1935) e O pudor, a periodicidade sexual, o auto

119
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

Theodor Hendrik Van de Velde, Fritz Khan, J. R. Bourdon, Auguste Forel, Wilhem
Stekel, entre os estrangeiros, e José de Albuquerque, entre os nacionais. A editora
carioca Calvino, por seu lado, lançaria uma “Coleção de Cultura Sexual”, publicando
traduções de livros de Magnus Hirchfeld, Wilhelm Gustav Liepman, Otto Schwartz,
Harry Elmer Bames, Jean Marestan, entre os estrangeiros, e, entre os brasileiros vários
livros de um outro importante divulgador das teorias freudianas no Brasil, Gastão
Pereira da Silva.
Assim, à primeira vista, já se pode afirmar que, a partir dos anos 30, é visível no
Brasil, particularmente no Rio de Janeiro, a existência de um importante mercado
consumidor para a literatura sexológica. Para que se tenha uma pálida idéia do sucesso
de vendas de tais obras, basta lembrar que, publicada em finais dos anos 1920 pela
Civilização Brasileira, a primeira edição (três mil exemplares) do famoso livro A
questão sexual, de August Forel, esgotou-se em pouco mais de dois meses, conforme
declarava surpreso, em 1928, o medico-legista Flamíneo Fávero, responsável pelo
prefácio à segunda edição. Nesse prefácio, Fávero não só deixa entrever a pujança deste
mercado, como os conflitos vividos por muitos médicos, dilacerados entre suas crenças
religiosas e os ensinamentos da nova ciência. Depois de tecer muitos elogios ao trabalho
de Forel, Fávero sente-se obrigado a declarar:

"...registre-se, ademais, que oponho algumas restrições a certas idéias do


trabalho, com as quais, naturalmente, não concordo, crendo, como creio, na
divina inspiração das Sagradas Escrituras, cujos ensinamentos sigo” (in
FOREL, 1957, X).

Em 1933, ao prefaciar a edição brasileira do clássico O matrimônio perfeito, de


Van de Velde, o sexólogo José de Albuquerque não só atestava o sucesso de vendas de
tais obras, como as suspeitas que podiam pairar sobre as editoras que as publicavam:

"O inexperiente no comércio de livros pensa que o que leva os editores a


aumentar a produção de seus livros de sexologia, seja a ânsia do lucro, pela
fácil aceitação que estes encontram no mercado. Puro engano! Se o livro é de
Ciência Sexual, não interessa aos libidinosos, pois estes querem tão somente
livros licenciosos e lúbricos... ” (in VELDE, 1933,XVIII).

Ainda que superficial, a análise que estamos realizando desse mercado editorial já
revela a íntima relação que existia entre a literatura sexológica e a literatura marxista ou,
ao menos, anticatólica. O caso da editora carioca Calvino parece exemplar. É
sumamente interessante perceber que, ao lado da literatura sexológica, alinhavam-se
livros como Materialismo histórico em 14 lições, de Tchefkiss; A inspiradora de Luiz
Carlos Prestes, de Figueiredo Pimentel; Rússia, de Maurício de Medeiros, Catolicismo,
partido estrangeiro, de Carlos Süssekind de Mendonça; Um engenheiro brasileiro na
Rússia, de Cláudio Edmundo; A vida sexual e o amor na Rússia, de L. Helman; A vida
sexual na Rússia Soviética, de H. Fouillet, entre outros.

erotismo (ELLIS, 1936).


15 Este livro, uma apologia ao socialismo soviético no que respeitava à transformação completa do estatuto social da
mulher, foi por mim comprado em um sebo carioca e fazia parte da biblioteca de um general. Seu antigo proprietário

120
Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras

As relações efetivas entre os sexólogos e grupos mais à esquerda no espectro


político brasileiro dos anos 20 e 30 deverão ser melhor elucidadas, porém desde logo
sabe-se que durante muito tempo a educação sexual foi considerada por intelectuais
católicos como instrumento dos “comunistas” para destruir a “família”. Porém, ao que
parece, a Igreja Católica não foi apenas hostil aos sexólogos e psicanalistas, mas tratou
também de produzir suas próprias obras sobre o assunto. Além das editoras
propriamente católicas, como a Vozes, a Mensageiro da Fé ou a Paulinas, a José
Olympio parece ter sido a grande divulgadora dos escritores católicos: médicos,
sacerdotes e outros intelectuais. Em 1938, a editora publicaria Idade, sexo e tempo (três
aspectos da psicologia humana), de Alceu Amoroso Lima (LIMA, 193 8) e, no ano
seguinte, lançaria no mercado o livro intitulado A educação sexual, escrito pelo mons.
Negromonte (NEGROMONTE:1958). Em 1958, este livro já estava em sua 9a edição e
parece ter sido pioneiro no Brasil entre as obras do gênero escritas de um ponto de vista
católico, abordando explicitamente uma questão que até ali havia sido monopolizada
sobretudo pelos médicos. Encarregado do nihil obstat, o então assistente eclesiástico do
Secretariado Nacional de Educação da Ação Católica e técnico do Ministério da
Educação e Saúde Pública, padre Hélder Câmara, escrevia sobre a obra, em 1939: “A
princípio vacilei quanto à oportunidade de um livro sobre o assunto, escrito, no Brasil,
por um sacerdote... ” Depois, convencido de sua utilidade, complementava:

“O fato de o livro ser escrito por um padre será uma segurança para os
educadores católicos, receosos de abrir um livro qualquer sobre educação
sexual. E seria pouco esclarecer os nossos, enquadrados quase todos, no velho
grupo dos que confundem ignorância com virtude?” (in
NEGROMONTE:1958).

Pelo menos em parte, o enorme interesse do público pelos temas sexuais deve ser
também compreendido como resultado das notáveis atividades de agitação e propaganda
desenvolvidas por alguns sexólogos no Rio de Janeiro. Nessa área, deve merecer
destaque o nome do médico José de Albuquerque que, durante os anos 30, organizou
dois periódicos especializados de enormes tiragens: o Boletim de Educação Sexual e o
Jornal de Andrologia'. Em suas páginas, além do próprio Albuquerque, escreveríam
outros sexólogos, como Júlio Porto-Carrero e Emani do Irajá. Além disso, Albuquerque
criou entidades civis como o Círculo Brasileiro de Educação Sexual, fundado no Rio
de Janeiro em 1933, destinadas a divulgarem a chamada “questão sexual”, a lutarem por
mudanças sociais mais amplas no âmbito da justiça, da escola, da família e a abrirem
um espaço institucional para a sexologia no âmbito das ciências bio-médicas.
De fato, José de Albuquerque foi responsável por um dos desdobramentos mais
originais da implantação da sexologia no Brasil, pois foi ele quem sugeriu pela primeira
vez a idéia de se criar uma ciência especial que, a exemplo da ginecologia, se ocupasse
exclusivamente dos problemas sexuais masculinos: a andrologia. Note-se que o Brasil
foi o primeiro país a incorporar em uma de suas universidades (a “modernista”
Universidade do Distrito Federal) uma cátedra especial de andrologia e parece ser o

ou um leitor ocasional fez questão de escrever depois do prefácio: “Livro de mentiras, como todos os que defendem a
Rússia Soviética. Senão, digam os defensores qual a razão de não se permitir na Rússia a liberdade de imprensa? ”.

121
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

único a possuir até hoje médicos-andrologistas em atividade.16


Além disso, principalmente durante os anos 30, Albuquerque agitaria a então
capital da república com um intenso movimento em prol da educação sexual,
produzindo eventos interessantes, como o Dia do Sexo, promovido pelo Círculo
Brasileiro de Educação Sexual. O Dia do Sexo foi festejado pela primeira vez a 20 de
novembro de 1935. Conforme se anunciava no Boletim de Educação Sexual, a principal
finalidade do evento, era “fazer a reabilitação moral do sexo, mostrando que nenhuma
razão séria existe para que se o tome na conta de imoral” {Boletim de Educação Sexual,
ano III, n°9, 1935). Aparentemente, naquele ano, as solenidades se realizaram com
pompa no Instituto Nacional de Música, contando com adesão de várias estações de
rádio. A banda do Corpo de Bombeiros tocou, à entrada do Instituto, o “Hino à
educação sexual” e, no seu interior, a maestrina Joanídia Sodré regeu a Grande
Orquestra Sinfônica, interpretando a "Ode ao Sexo", poema sinfônico de José de
Albuquerque, musicado especialmente pelo maestro Assis Republicano. Durante a
solenidade, o sexólogo teria realizado a palestra "Divagações sexológicas" e, na Hora do
Brasil, cujo microfone lhe teria sido franqueado pelo Departamento de Propaganda do
Ministério da Justiça, dirigiu-se pelo rádio a todo país. O Círculo obteve ainda a
autorização do então prefeito Pedro Ernesto para a colocação, nas ruas do Rio de
Janeiro, de três mil cartazes alusivos à campanha. Mais ou menos nos mesmos moldes,
o Dia do Sexo seria comemorado ainda nos anos de 1936 e 1937. Além do Dia do Sexo,
tenho informações preliminares sobre a realização, também nos anos 30, no Rio de
Janeiro e em São Paulo, de “semanas de educação sexual” com extensas programações.
Nas décadas de 1940 e 1950 a luta em prol do esclarecimento sexual da população
brasileira parece continuar intensa e médicos como José de Albuquerque iriam se
engajar na produção sistemática de uma literatura popular ou de divulgação científica
sobre temas sexuais', especialmente dirigida aos homens. É o caso de duas publicações
periódicas intituladas respectivamente, Conselhos sexuais - à luz da ciência, dirigida por
J. P. Schettini e pelo médico Ideal Peres, e Seleções sexuais - todos os problemas do
17
amor e do sexo, dirigida por Edgar de Abreu.
Embora um dos principais objetivos da investigação seja justamente identificar os
várias modelos de compreensão da sexualidade humana presentes entre os primeiros
sexologistas brasileiros; obviamente, enquanto parte da tradição médica, tal disciplina
tendia a exibir de um modo geral as concepções derivadas da idéia do sexo-necessidade
fisiológica primária, embora, como vimos, alguns médicos tentassem adequar os
princípios da nova ciência e suas concepções morais e religiosas.

SEXO E TRADIÇÃO RELIGIOSA: HIPÓTESE DE PESQUISA

Assim, as teorias sexológicas interessaram-me por estarem implicitamente


supostas no campo da luta antivenérea, articulando-o em profundidade, e por terem dado
origem a um vasto campo de disputas e a um amplo movimento cultural no Brasil. Ao

16Recentemente, o antropópogo português Miguel Vale de Almeida informou-me que também Portugal conta com
andrologistas.
17 O fato de tais publicações se dirigirem especialmente aos homens se revela através dos poucos produtos que são
comercializados em suas páginas. Entre eles, o preservativo Cacique, o Consultório de Moléstias Sexuais c
Impotência do dr. Santos Dias e a brilhantina Gumex.

122
Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras

longo da pesquisa, aprofundarei a análise do conteúdo das idéias apresentadas pelos


diferentes personagens que se envolveram nessa história, procurando investigar se, a
exemplo do que acontecia com as políticas antivenéreas, as teorias sexológicas também
oscilavam segundo diferentes contextos nacionais. Do meu ponto de vista, seria
particularmente interessante pensar o papel das diferentes tradições religiosas para a
hegemonia de uma ou de outra das concepções segundo as quais o sexo ora era
considerado uma necessidade fisiológica, ora um apetite dispensável. Aqui também uma
comparação sistemática com o que acontecia na França e nos Estados Unidos à mesma
época pode ser estratégica para a compreensão o que estava em jogo.18
A relação entre concepções médicas e religiosas a respeito do sexo já foi sugerida
por Max Weber em uma interessante nota de seu clássico A ética protestante e o espírito
do capitalismo, na qual faz alusão explícita às discussões que se travavam na passagem
do século XIX para o XX em tomo da regulamentação da prostituição. Falando sobre a
ética sexual de alguns grupos puritanos, diz Weber:

“A transição para um puro, e higienicamente orientado, utilitarismo já se deu


em Franklin, que adotou aproximadamente o ponto de vista dos médicos
contemporâneos, que aceitam a castidade como repressão das relações sexuais,
até onde for desejável para a saúde, e que têm, como se sabe, dado conselhos
teóricos do modo pelo qual ela pode ser alcançada (...) Os puritanos e os
higiênicos racionalistas do sexo geralmente percorrem trilhas muito diferentes,
mas se entendem nisso perfeitamente” (WEBER:1967[1904-5]:206).

É certo que Weber parece fazer derivar, em bloco, toda a reflexão médica sobre
sexualidade que lhe foi contemporânea a uma mesma tradição puritana. Assim, tanto os
que defendiam a abstinência quanto os que a ela se opunham por razões higiênicas viam
o sexo de um ponto de vista utilitário, racionalizando seu exercício. Acredito, porém, ser
possível fazer diferenciações mais sutis. Como já disse, durante um longo período,
países como os EUA e a Inglaterra, de um lado, e a França e grande parte do mundo
latino, de outro, opuseram-se claramente uns aos outros quanto às idéias sobre a
sexualidade que adotavam e às políticas por elas inspiradas. A partir de uma pesquisa
comparativa mais sistemática talvez seja possível estabelecer um modelo “protestante”
de concepção da sexualidade em oposição a um modelo “católico”, como sugeriam
alguns médicos brasileiros, quando contrastavam o que ocorria no mundo “latino” ao
que se passava simultaneamente no mundo “anglo-saxão” ou “nórdico” em matéria de
luta contra as doenças venéreas. Aparentemente, em um momento em que até mesmo a
nascente sexologia parecia oscilar quando se tratava de saber se a abstinência sexual era
ou não fisiologicamente nociva, os países de forte tradição católica foram mais
permeáveis à vertente que via o sexo como necessidade fisiológica primária, enquanto
os de tradição protestante incorporavam mais facilmente a ênfase na abstinência e no
autocontrole.
Talvez devamos compreender a permeabilidade diferencial de países de tradição
católica e de tradição protestante à idéia de ser o sexo força incoercível através do modo

18 Como têm revelado vários autores, desde o advento do cristianismo, o sexo tem sido uma das instâncias cruciais
i para a construção social da pessoa característica da tradição ocidental. Para isso, ver (DUARTE &
> GIUMBELLI:1995).
>
123
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

pelo qual as duas tradições atualizam diferentemente a tensão entre autonomia e


heteronomia, constitutiva da concepção cristã da pessoa humana. Como se sabe, depois
de ter se transformado em religião de Estado, a tradição católica orientou-se sobretudo
por formulações agostinianas que, através de uma singular interpretação do mito do
pecado original, enfatizavam a heteronomia, a falência irremediável do poder da
vontade dos descendentes de Adão (PAGELS, 1989). Ao analisarem as idéias de Santo
Agostinho sobre o pecado original, Foucault e Sennet já apontaram explicitamente para
esse ponto:

“Adão tentou escapar da vontade de Deus e adquirir uma vontade


independente, ignorando que a existência de sua vontade dependia inteiramente
da vontade de Deus. Adão perdeu o controle sobre si mesmo. Ele quis adquirir
uma vontade autônoma e perdeu o suporte ontológico para tal vontade, que
então se viu invadida por movimentos involuntários. A fraqueza de Adão teve
resultados desastrosos. Seu corpo ou partes de seu corpo deixaram de obedecer
aos seus comandos, revoltaram-se contra ele e os órgãos sexuais foram os
primeiros a se levantarem em desobediência’’.(FOUCAULT & SENNETT:
1981:5, grifos meus)

Assim, para a tradição católica, o pecado original tomou-se um signo distintivo da


humanidade, um símbolo, como quer Ricoeur, da “unidade metafísica do gênero
humano”, apontando para uma “espécie de solidariedade trans-biológica e trans-
histórica”, construída sobre um servo-arbítrio comum (RICOEUR: 1969:278). A
concepção do pecado original como estigma permanentemente inscrito na natureza
humana, permitiría mais facilmente que o Indivíduo fosse pensado enquanto entidade
que raramente exibia um controle perfeito sobre si mesmo, sendo transpassado por
forças que, a exemplo da necessidade sexual, frequentemente tomavam as rédeas de sua
vontade. Talvez tributária da crença puritana na existência de uma “comunidade de
eleitos” (essa “aristocracia de santos” de que nos fala Weber (WEBER:1967
[1904/5]: 184) e na’possibilidade da libertação completa do pecado já neste mundo, a
concepção do Indivíduo como ser dotado de um poder absoluto sobre si mesmo ou de
um livre arbítrio radical (o que, no que respeitava à sexualidade, parecia embasar a
defesa da possibilidade de uma abstinência completa) estaria no centro das teorias
sexológicas hegemônicas nos países de forte tradição protestante.
Esta é a hipótese mais geral que vem orientando a pesquisa. Porém, a ênfase no
contraste e na oposição dos dois modelos não nos deve impedir de estabelecer as
relações dinâmicas que os une ao longo do tempo. Também como hipótese a ser
demonstrada, parto da idéia de que temos assistido ao longo do século XX a um
movimento mais global no sentido de uma maior responsabilização dos indivíduos,
quando se trata do comportamento sexual. Ou seja, à primeira vista, tanto nos países de
maioria protestante quanto nos de maioria católica, supõe-se e se exige um autocontrole
cada vez mais refinado dos indivíduos, sobretudo dos homens, sobre seu
comportamento sexual. Do meu ponto de vista, a mais superficial análise diacrônica das
legislações dos países ocidentais a respeito dos “crimes sexuais”, por exemplo, podería,
revelando a crescente severidade com que são tratados ao longo do tempo, demonstrar a
validade da hipótese. Nesse sentido, a história da implantação da sexologia no Brasil e
no mundo talvez possa ser considerada como um dos avatares do “processo civilizador”,

124
Sexualidade e Sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras

analisado por Norbert Elias (ELIAS: 1976,1990). De um modo geral, parece que os
sexólogos estiveram bastante implicados na simultânea criação de uma população mais
permeável aos novos interesses da “biopolítica” que os governos ocidentais passaram a
desenvolver a partir do século XIX (FOUCAULT, 1982) e de sujeitos mais conscientes
de sua responsabilidade biológica, dotados de um autocontrole que lhes permitisse
resistir mais firmemente aos “imperativos da carne”.
Para o sociólogo Norbert Elias, o desenvolvimento progressivo no sentido da
exigência de um maior controle individual sobre emoções. impulsos, instintos etc., ou
seja, de um maior “distanciamento de si”, a que denomina de processo civilizador, nada
mais seria que a contrapartida necessária de um longo e profundo processo de mudança
estrutural, social e política. Segundo diz, desde o fim da Idade Média, submetidas a
mecanismos concorrenciais, as sociedades ocidentais vêm sendo conduzidas à formação
de estruturas estatais (monopólios legítimos da violência) que se estendem sobre
territórios e populações cada vez mais vastos. No interior de tais unidades sócio-
políticas (“sociedades-Estado”, na expressão de Elias) a possibilidade de um convívio
“pacífico” propiciaria o aprofundamento da diferenciação das funções sociais e sua
integração, ou como diz, o progressivo prolongamento das cadeias de interdependência
entre os indivíduos e grupos sociais. Para Elias, a capacidade por parte dos indivíduos
de um maior controle sobre suas próprias emoções e instintos seria uma espécie de
efeito-instrumento desse processo mais amplo, pois é a um só tempo exigida e
propiciada por ele. Conforme diz, em espaços sociais altamente diferenciados, onde
redes de interdependência cada vez mais cerradas exigem uma convivência pacífica:

'Thomme incapable de réprimer ses impulsions et passions spontanées


compromet son existence sociale; Vhomme qui sait dominer ses émotions
bénéficie au contraire d'avantages sociaux évidents, et chacun est amené à
réfléxir, avant d'agir, aux conséquences de ses actes” (ELIAS: 1975:195).

Assim, de seu ponto de vista, a consolidação e a expansão dos Estados e o


progresso na interiorização, por parte dos indivíduos, de controles sociais cada vez mais
refinados seriam fenômenos complementares. Na esteira de autores como Michel
Foucault e Norbert Elias, a pesquisa busca contribuir não apenas para a elucidação de
certos aspectos da moderna “cultura sexual brasileira”, mas também para a compreensão
do modo pelo qual determinadas representações sociais em tomo da pessoa humana
estiveram implicadas com processos sócio-políticos mais amplos, correspondendo, no
nível simbólico, a certas estruturas institucionais e formas de dominação.

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Cadernos do IPUB n° 8, 1997

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128
O IMAGINÁRIO SOBRE A MULHER ATRAVÉS DO OLHAR
DA MEDICINA NO SÉCULO XIX

Fabíola Rohden

SOBRE O CORPO E O FEMININO

O objetivo deste artigo é refletir sobre as representações do corpo feminino


presentes nos discursos das especialidades médicas sobre a mulher como a ginecologia e
a obstetrícia que se desenvolvem de maneira especial na segunda metade do século XIX
e nas primeiras décadas do século XX. É na fundação dessas disciplinas no Brasil e nas
referências e polêmicas que as sustentam que se concentra um primoroso inventário do
que se acreditava ser a condição feminina. O contraste entre o discurso médico e outros
com ele relacionados ou por ele provocados permite discutir a noção de identidade
feminina ou de pessoa feminina em construção na época bem como dar algumas pistas
para se pensar certos conceitos relacionados à mulher e às relações de gênero (papéis
sociais atribuídos a cada sexo biológico) em voga ainda hoje.
Com efeito, esta proposta surgiu em decorrência de problemáticas atuais na área
da Antropologia de Gênero e de discussões que se tomam cada vez mais frequentes no
debate e imprensa feministas. Trata-se de um retomo ao corpo, de uma volta à
preeminência do biológico, dos caracteres orgânicos, quando se pensa o gênero
feminino. E ainda mais, trata-se de uma revalorização positiva da aproximação da
mulher com o domínio do natural.
Essa é por exemplo, a perspectiva oferecida pelo chamado "feminismo da
diferença" ou "ecofeminismo"1, que se apresentam como uma contrapartida ao
"feminismo igualitário" , cujo ápice se deu nas décadas de 1960 e 1970 e que tinha
como bandeira de luta a igualdade e liberdade da mulher, pensada em grande medida
como consequência da liberalização do corpo feminino da reprodução sem escolha, da
equação sexualidade/procriação . Essas novas linhas são calcadas fundamentalmente na
idéia de valorização da mulher e do corpo feminino pelas suas especificidades,
diferenças em relação ao homem. A associação da mulher com a natureza, com o
biológico, com os processos reprodutivos é recuperada como a grande chave de
entendimento do feminino e de supostas características superiores em relação ao
masculino. Uma das vertentes dessa linha, o "ecofeminismo", vai mais longe ao
enfatizar a missão ecológica das mulheres. Por estarem mais próximas da natureza,
compreenderem melhor o sentido da vida, já que são geradoras de vida em seus próprios
corpos, e estarem mais distantes dos processos de industrialização e competição do meio
público, já que sempre estiveram mais presentes no meio privado, teriam mais

* Doutoranda em Antropologia pelo PPGAS/Museu Nacional/UFRJ e pesquisadora do ISER.


1 Ver Oliveira (1991) para exemplo dessa perspectiva e Soij (1992) e Arruda (1994) para análises críticas.
2 Ver Franchetto et al (1981).
3 Esse feminismo e as propostas teóricas a ele vinculadas, em geral, problematizavam a associação do gênero
feminino com o corpo da mulher, com a função da procriação, ou mesmo com a natureza, de uma forma negativa,
uma imagem que precisava ser rompida. O advento da pílula e outros anticonceptivos foram vistos como importantes
conquistas que liberavam a mulher do imperativo da reprodução.
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

capacidade de oferecer alternativas à crescente degradação ambiental e ética do mundo


moderno4.
Essa fronteira entre os dois domínios e o imperativo do corpo aparecem de forma
especial em dois conceitos fundamentais no discurso dessas feministas: experiência e
essência. A mulher em sua integração com o mundo, com o ambiente que a cerca, com o
transcendente passa por uma experiência diferenciada do homem. Ela é muito mais
relacionai, intuitiva e sensível devido a sua proximidade com os processos de geração da
vida. No que se refere à noção de essência, essa densidade que caracterizaria o feminino
é ainda mais aprofundada.
Frequentemente esta categoria é evocada no discurso dessas feministas, seja para
reafirmá-la no sentido mais comum do termo (associado a uma essência biológica, neste
caso), seja para refutá-la, evocando a idéia de que o que dá "especificidade" à mulher é a
"experiência", o que por si só levaria a uma relativização da noção de "essência" e a sua
percepção enquanto do domínio do social, do cultural. Esta noção de "experiência" tão
frequentemente sustentada pelas feministas faz referências à dimensão do "corpo"
feminino e a processos inerentemente biológicos, que distinguem de maneira ímpar as
mulheres dos homens5. Portanto, trata-se de algo que beira as fronteiras do social, mas
também do biológico6. A "diferença" entre homens e mulheres é definida por uma
"experiência", que se compõe de nuances entre o "social" e o "natural", entre as
características apreendidas socialmente na vivência no mundo privado e os processos
biológicos inerentes a cada sexo. As dimensões mais delicadas, mais dentro dessas
nuances, como aquelas do "sentimento", "intuição", capacidades de "gratuidade" e
"cuidado com o outro" parecem ser as que mais se preenchem pela ambiguidade entre o
"social" e o "natural" e que não podem ser reduzidas somente a um dos extremos7.
Isso demonstra como a discussão sobre o corpo na construção dos gêneros e nos
paradigmas resultantes dessas construções continua efetivamente válida e recorrente e
necessitanto de novas abordagens. Além disso, a questão do corpo se coloca também no
amplo debate que os meios feministas fazem a respeito dos direitos reprodutivos8. A
conquista da possibilidade de escolha sobre a reprodução, incluindo acesso a informação
e programas de saúde da mulher, traz à tona o imperativo do corpo na vida das
mulheres. As abordagens teóricas que têm tratado do debate acerca dos direitos
reprodutivos, aborto e temas afins, de um modo geral, procuram centrar as atenções nas
práticas oferecidas e experimentadas especialmente pelas mulheres de camadas
populares, bem como nas implicações políticas em curso quando a temática vem a
público. Certamente essa linha de pesquisa tem sido fundamental para a compreensão de

4 Ver Corral (1994).


5 Uma proposta paradigmática nessa linha é o livro Elogio da diferença: o feminino emergente de Rosiska D. de
Oliveira (1991).
6Em minha dissertação de mestrado (Rohden, 1995), discutindo a teologia produzida por católicas brasileiras, sugiro
que essa noção de essência para as feministas e teólogas pode ser pensada em analogia com o uso desta categoria
pelos pensadores românticos alemães do século XIX. Para eles, a idéia de "essência" está vinculada à idéia de
"singularidade", de determinada especificidade que a toma "única". Não se trata de uma concepção de "essência"
racionalista, onde se localiza um "núcleo" rígido de demarcações, mas de uma "qualidade" que define a
especificidade dos elementos em termos de relação à "totalidade".
7Em termos concretos, o que as feministas chamam de "diferença feminina", e que poderiamos classificar
como "essência", é definido sempre em relação ao "masculino" e entre suas implicações ou seu conteúdo
programático está a composição de uma visão de mundo dicotomizada entre as esferas "masculina" e "feminina".
8 Ver Oliveira (1993), Ávila (1993), Arruda (1994), Barsted (1992) e Ribeiro (1992).

130
O Imaginário sobre a mulher através do olhar da Medicina no Século XIX

vários temas, como os modelos de família, acesso a saúde e educação por parte das
mulheres brasileiras. Contudo, apesar de evidenciar a preeminência do corpo e
especialmente das funções reprodutivas para a situação social das mulheres hoje, poucas
reflexões têm se detido nos aspectos culturais, de representação e imaginário que
fundamentam a relação corpo e identidade no universo feminino.
Uma referência exemplar nesse sentido, é o trabalho de Ondina F. Leal (1995)9
que pesquisando comunidades na periferia de Porto Alegre, tem demonstrado como o
acesso a informação e assistência médica não significa mudar práticas contraceptivas
consideradas desaconselháveis ou perigosas, como a esterilização ainda no começo da
vida reprodutiva das mulheres ou o aborto. A análise dos discursos de mulheres e
homens da região mostrou que as representações sobre o corpo feminino e seus
processos como menstruação, período de fertilidade, gravidez e aborto apresentam
idéias bastante distintas daquelas que fundamentam o sistema médico "racional" que
lhes é oferecido10. Confunde-se período fértil com período menstruai, aborto com "fazer
descer a menstruação", misturam-se pílulas, rezas e chás na administração da economia
reprodutiva, não pelo desconhecimento das prescrições médicas, mas pela concepção de
um outro sistema simbólico sobre o corpo.
A menstruação, aliás, tema que marca os estudos que tratam das poluições
atribuídas ao corpo feminino e as consequências sociais disso,11 começa a ser estudada
no contexto atual. Cecília Sardemberg (1995) além de resenhar as principais etnografias
que tratam do assunto faz algumas considerações sobre como a menstruação é tratada na
sociedade brasileira contemporânea. Afirma como a sua presença é um marco na
passagem para a vida adulta, o "ficar moça", e para a maturidade, a menopausa, além de
como é recorrente entre mulheres um constante falar sobre a menstruação. Além disso,
de alguns anos para cá, a legitimação médica sobre a "tensão pré-menstrual" permitiu a
eclosão de um debate público e o retomo a concepções "tradicionais" sobre as
peculiaridades do ciclo feminino, definindo um contraste com a suposta ausência de
marcas tão claras no corpo masculino. Isso leva a uma série de considerações sobre a
sua importância nas relações sociais entre os gêneros e a definição de status e papéis.
Inegavelmente essa distinção biológica leva a construções culturais diferenciadas quanto
às distinções entre os gêneros e legitima a condição social da mulher. Essas marcas do
corpo feminino são responsáveis, em muitos casos, pelas representações atribuídas à
mulher no campo dos poderes sobrenaturais. O sangue menstruai ou outros fluidos do
corpo feminino, como o leite materno ou a placenta, são conferidos de poderes
insuperáveis especialmente contra os homens. Estes elementos e a representação a eles
associada delimitam muitas vezes o caráter de exclusão, vergonha ou prestígio
assumidos pelas mulheres em diferentes sociedades.
Na tradição ocidental a reflexão sobre corpo e pessoa femininos é rica em
passagens ilustrativas. Alguns modelos de percepção sobre a mulher e a sexualidade são
especialmente tratados pela bibliografia histórica e social. São fragmentos significativos

9 Ver também Victora (1995) sobre as representações femininas do funcionamento do corpo e aparelho reprodutivo.
10 Interessantes estudos têm surgido quanto à interação médico e paciente na área da saúde da mulher. Grassi et al.
(1994), por exemplo, distinguem três tipos de abordagens médicas ginecológicas e obstétricas: o paradigma
cientifícista, o paradigma pragmático e o paradigma integracionista. Já Mitjavila e Echeveste (1994) mostram a
onipresença da medicina na reprodução e sua função normatizadora, apontando valores como a naturalização da
maternidade e dos cuidados domésticos e uma valorização máxima do filho em contraste com o altruísmo da mãe.
11 M. Douglas (1976).

131
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

de um complexo conjunto cultural e político. Um marco presente na literatura sobre o


corpo no Ocidente sem dúvida são as teorias da Antiguidade sobre a natureza dos corpos
masculino e feminino e suas distinções. Desde lá, as marcas do corpo feminino ou
atribuídas ao corpo feminino dão margem a interpretações que condensam as diferenças
entre os sexos ou entre os gêneros. Filósofos como Aristóteles, quando discutiam a
função da mulher na reprodução, diziam que ela não contribuía em nada com a
concepção, tinha o mesmo papel passivo que assumia no ato sexual, seu sangue
menstruai era apenas uma matéria amorfa e passiva que deveria ser conformada pelo
esperma, princípio ativo e organizador. O prazer da mulher no ato nada significava .
Entre os médicos romanos, a polaridade entre homens e mulheres era explicada
pela natureza. A virilidade masculina que se opunha à fraqueza moral feminina era
pensada em termos da química da gestação. Os homens tinham reunido calor suficiente
na gestação e o calor do sêmen que possuíam provava isto. Já as mulheres eram homens
imperfeitos, mal formados durante a gestação, e a presença da menstruação indicava que
elas não conseguiam queimar os excedentes orgânicos que coagulavam dentro de si e
que tinham como única função alimentar a semente masculina13. Segundo autores que
tratam do período inicial do cristianismo, muito das características dessa diferenciação
vai passar para a cosmologia cristã.
A ênfase nos perigos da sexualidade, no seu caráter pecaminoso e demoníaco vai
ser um marco do mundo cristão, desde suas primeiras oposições com alguns grupos
gnósticos14 até uma interminável regulação do sexo para procriação15. Já nos primeiros
séculos dessa era, os padres da Igreja vão enfatizar a ascese sexual e exaltar a
virgindade. Ao mesmo tempo, os tratados cristãos vão falar especialmente do estado
físico das mulheres casadas: os riscos do parto, a dor na amamentação, a vergonha da
infertilidade e a possibilidade de serem substituídas pelas criadas na preferência do
marido (Brown, 1990). É a elas que se dirige a primeira literatura cristã sobre a
sexualidade, com Tertuliano e Cipriano no século III (Rousselle, 1983).
De um modo geral, o que prevalesceu dos primeiros cristãos quanto ao sexo em
muito tem a ver com a doutrina de Paulo, ou melhor, segundo P. Ariès, com as
apropriações e reinvenções dela, sobre o amor e o casamento. Nas proposições deste
apóstolo, a mulher aparece associada à introdução do pecado no mundo, mas tem a
maternidade como possibilidade única de redenção. E através do amor conjugal que
pode ressarcir-se de seus pecados. Esse amor significa a submissão que deve nutrir pelo
marido e uma entrega sempre controlada, jamais semelhante à entrega desmedida da
cortesã. A dignidade da maternidade deve traçar as bases de sua diferença com as
mulheres mundanas que se entregam por paixão (Ariès, 1987a). Essa valorização da
maternidade e a distinção entre o amor fora e dentro do casamento são vistas como um
denso núcleo do modelo de família e sexualidade presentes no mundo ocidental. A
própria noção de honra comum aos países mediterrâneos que herdamos já tem aí suas
raízes.
A distinção entre os dois grandes paradigmas da mulher, a honrada, casta, pura,
p-— e
a desonrada, pecaminosa, impura, é um elemento fundamental para se entender• o

12 Flandrin (1981), Maloney (1991).


13 Cf. Brown (1985 e 1990).
14 Ver Brown (1990), Rousselle (1983), Pageis (1992).
15 Ver Ariès (1987a e 1987b), Flandrin (1981).

132
O Imaginário sobre a mulher através do olhar da Medicina no Século XIX

modelo de família e organização social centrado na virilidade masculina, na capacidade


atribuída ao homem de explorar e dasafiar o mundo público, e na castidade feminina, no
recolhimento da mulher ao lar e às obrigações de boa filha, mãe e esposa, sempre pura e
submissa ao marido. A mulher santa, ao exemplo da Virgem Maria, se contrapõe à
mulher impura, à prostituta, que gozando da liberdade do mundo público não tem
limites para a sua sexualidade. E sempre no corpo que está a insígnia da distinção entre
a mulher honrada e a sua contraparte. É pelo fato ou não de ser tocada pelo homem, as
formas disso e os resultados acima de tudo físicos, que sua identidade será definida.
Além disso, é também pelas marcas corporais e pela ênfase na sexualidade que são
definidas outras categorias de mulheres marginais ou poderosas. O caso das bruxas ou
feiticeiras ilustra como o corpo decaído da mulher mais velha, ao lado da ausência da
capacidade reprodutiva, da liberdade da presença da concepção, está associado a
poderes sobrenaturais. As bruxas no imaginário popular e na maioria das representações
que sobram da história medieval são sempre mulheres feias, velhas, sempre sem a
presença controladora de um homem por perto, sem a distinção da maternidade. Figuras
ameaçadoras, lembradas por histórias de sedução, de coitos com demônios, de feitiços
corporais. A figura da bruxa enquanto uma instituição histórica representa um eco de
uma associação mais geral da mulher com o mal, com o pecado, da onde vem toda a
necessidade de seu controle pelo sexo masculino, mais racional e contido. O seu poder,
sempre temido aparece ligado ao caráter poluidor atribuído a evidências do corpo
feminino como o sangue menstruai ou uma sexualidade desordenada, cuja representação
negativa e perseguição serve de contraponto às mulheres puras e controladas (Pitanguy,
1985).
Estes exemplos nos mostram como tanto as etnografias quanto considerações
teóricas da área de relações de gênero ou os debates políticos atuais ou fragmentos da
tradição ocidental cristã atestam a importância do corpo na definição dos papéis sociais
atribuídos à mulher, na definição da identidade feminina. O que se coloca como um
desafio é pensar sobre o corpo e as representações do feminino, com referência a esse
imaginário que enfatiza a sexualidade, mesmo em concepções consideradas mais
científicas ou pragmáticas, como é o caso da medicina. Certas definições específicas
sobre o corpo da mulher e banhadas pela legitimidade da ciência que aparecem com a
especialização da medicina moderna no século XIX são interessantes focos de análise.
Os novos saberes médicos emergentes na época continuam a se compor pela referência a
uma determinada concepção moral do corpo e sexualidade femininos. Trata-se dos
conceitos sobre a anatomia e funções do corpo, alguns usados hoje em dia, que só
aparecem nitidamente com o maior desenvolvimento das especialidades médicas sobre a
mulher, como a obstetrícia e a ginecologia em meados do século XIX. Estas
especialidades surgem em meio a uma série de outros discursos sobre a natureza
feminina ou as funções sociais características da noção de mulher que se construía
então. Trata-se de uma multiplicidade de vozes que passam a dar conta dos fenômenos
que cercam a vida do sexo feminino. Articulam-se preceitos da ordem do fisiológico a
do moral para falar das novas funções ou papéis que passam a constituir o universo
particular das mulheres, sejam as corretas mães ou esposas de família, sejam as devassas
e prostitutas. O surgimento das novas especialidades médicas dedicadas ao corpo
feminino se coloca como um momento sintetizador do imaginário que se construía sobre
o feminino com todas as polêmicas, arbitrariedades e singularidades que comporta.

133
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

SOBRE A MULHER E A MEDICINA

Para entender melhor o contexto de surgimento dessas especialidades e a sua


relação com as representações sobre o feminino, é preciso traçar uma linha de referência
que sugere como o século XIX é palco de vigorosas transformações no que se refere à
construção do indivíduo e da relação com o seu corpo e seus cuidados.
Na verdade, as modificações que se concentram no século XIX são observadas
pela literatura antropológica sobre a noção de "indivíduo" ou pela reflexão histórica
como produto de uma série de características que remontam a elementos constituidores
da tradição ocidental presentes em diferentes épocas. Distintas abordagens situam
momentos e durações específicas na construção do que seria a modernidade ocidental e
o indivíduo singularizado. De qualquer forma, são certas possibilidades já contidas na
narrativa da modernidade que vão permitir que aflorem com expressividade na
passagem para o século XIX concepções morfológicas de sociedade e percepções sobre
o indivíduo como sujeito empírico e de valor. É como auge da modernidade que o
indivíduo ganha preeminência através de transformações que ocorrem na linha da
criação da intimidade, da subjetividade e interiorização, em contraste com perspectivas
mais encompassadoras de laços sociais extensos16.
A elaboração de uma noção de sujeito marcada pela construção de determinados
tipos de sentimentos e padrões de comportamento que dão o tom da singularização é
expresso no que N. Elias chamou de O processo civilizador (1990). Elias vê na
sociedade de corte o foco de delineamento de uma série de novos cuidados com o corpo
e seus produtos, com a proximidade física com os outros, com normas de conduta que
concorrem para delimitar novas íronteitas entre os atores sociais. Os corpos e condutas
são modelados de forma com que criem uma nova possibilidade de distinção do sujeito,
que interioriza e reflete os padrões de cuidado e percepção de si.
M. Foucault (1988) interessa especialmente aqui porque referencia esse processo
em uma nova apreensão e tratamento disciplinar do corpo. Mais do que isso, ele localiza
na história do Ocidente uma passagem fundamental associada à confusão de uma
sexualidade passível de "repressão" e "liberação" . O sujeito é percebido como capaz
de descortinar a sua verdade a partir daquilo que é dito ou não dito, reprendido, quanto
ao sexo. É na passagem de um "dispositivo de aliança" calcado no gerenciamento dos
laços pela família e outros grupos sociais para o "dispositivo da sexualidade" centrado
na disciplinarização do corpo, na produção da sexualidade, que o indivíduo moderno é
dotado de singularidade. Uma singularidade principalmente definida pela ordem
psicológica, pela possibilidade de exame e confissão do sujeito a respeito de si mesmo.
Para Foucault, a era vitoriana representa o ápice de uma época em que muito mais
do que a ausência, a multiplicidade crescente de dicursos sobre o sexo sugere uma
investida na normatização dos corpos e sujeitos. Uma normatização que teve como um
de seus principais agentes o médico, definidor de padrões normais e patológicos. A
dificuldade de falar sobre o sexo fez a medicina se dedicar a um falar sobre as suas

16 Para uma revisão da literatura sobre sujeito e modernidade ligada a transformações nas relações de gênero, ver
Heilbom (1992).
17 Giddens (1993) também trabalha com a noção de sexualidade ao discutir as transformações da intimidade que
ocorrem no mundo moderno, embora com distinções em relação a Foucault. M

134
O Imaginário sobre a mulher através do olhar da Medicina no Século XIX

aberrações, definidas, antes de tudo, por critérios morais18. Os médicos do final do


século XIX propuseram classificações sociais baseadas nos princípios da higiene e em
um projeto de pureza moral e física da sociedade, eliminando e excluindo os portadores
de caracteres nocivos. Para Foucault, o sexo ao longo do século passado é percebido
através de duas abordagens: uma biologia da reprodução que seguia as normas
científicas em voga e uma medicina do sexo, muito mais vinculada a orientações
morais, políticas, etc.. Enquanto a primeira significaria uma "vontade de saber",
instituidora do discurso científico ocidental, a segunda representaria uma vontade
obstinada do “não-saber”(Foucault, 1988, p.55).
Os médicos das especialidades então nascentes possibilitaram a construção de um
aparelho em tomo do sexo que se oferecia como capaz de desvendar a verdade sobre ele,
mesmo que, em última instância, insistisse em ocultá-la ainda mais19. A transformação
do sexo como um lugar de produção de verdade vai implicar também em determinadas
estratégias ou dispositivos de saber e poder, entre os quais, para o nosso caso, se destaca
a "histerização" do corpo da mulher. Trata-se de um:

"tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado - qualificado e


desqualificado - como corpo integralmente saturado de sexualidade; pelo qual,
este corpo foi integrado, sob o efeito de uma patologia que lhe seria intrínseca,
ao campo das práticas médicas; pelo qual, enfim, foi posto em comunicação
orgânica com o corpo social (cuja fecundidade regulada deve assegurar), com
o espaço familiar (do qual deve ser elemento substancial e funcional) e com a
vida das crianças (que produz e deve garantir, através de uma
responsabilidade biológico-moral que dura todo o período da educação): a
Mãe, com sua imagem em negativo que é a 'mulher nervosa', constitui a forma
mais visível desta histerização." (Foucault, 1988, p.99)20

Esse dispositivo efetuou-se através de uma medicalização progressiva do corpo


das mulheres, especialmente de seu sexo, em função de seu papel fundamental na
gestação e cuidado com a saúde dos seus filhos, na preservação da família e da
21
sociedade .
A proposta de Foucault sobre a sexualidade é válida tanto como um referencial

18 Sobre a justaposição entre físico e moral no pensamento médico e sua importância na construção da noção de
pessoa, com relação particularmente às "perversões sexuais", ver a análise de Duarte (1988) sobre a Psycopaíhia
sexualis de Krafft-Ebing.
19 Segundo Corbain (1991, p.528-529), a palavra "sexualidade" só aparece em 1859 designando os caracteres do que
é sexuado, no contexto de uma época em que os médicos começam a codificar os "divertimentos conjugais" e as
"condutas desviadas".
20 De um modo geral, o problema dos "nervos" ou as doenças mentais femininas apresentadas na época eram
marcadas pelo excesso, principalmente devido a uma paixão amorosa proibida (pelo pai ou por outra mulher, por
exemplo) (Perrot, 1991a). Segundo A. Corbain (1991, p.454): "O gozo da mulher sem a presença masculina parece
particularmente intolerável. A 'manualização' constitui o supra-sumo do vicio. Para o homem, figura o segredo
absoluto, infinitamente mais misterioso que as comoções do coito. Aqui nem se cogita de privilegiar os riscos de
esgotamento, pois a capacidade copuladora da mulher parece infinita; porém outras sanções, igualmente terríveis,
espreitam no horizonte da falta. Não há um quadro clínico, mas a biografia de ninfômana, de histérica ou prostituta
que se abre sobre a imagem da pequena viciosa. Reencontra-se aqui a hostilidade que os médicos do século XIX
demonstram diante do clitóris, simples instrumento de prazer, inútil na procriação."
21 M. Perrot (1991a) fala de como a sexualidade feminina é amplamente tematizada no século XIX, desde a mulher
virgem levada a ocupar-se com terços e novenas nas igrejas para apaziguar suas angústias até a mulher casada e o
constante risco do adultério.

135
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

que conclui sobre um processo de normatização e disciplinarização dos corpos, tanto


pelos elementos contextualizadores e instigantes quanto aos atores e discursos que se
efetivavam pesadamente sobre os corpos femininos no final do século XIX. Contudo,
apesar de permanecerem válidas as suas referências sobre o surgimento de uma nova
tecnologia política do corpo (Foucault, 1988; Mitjavila, 1994), é preciso um certo
cuidado na apropriação de suas teorias para o contexto brasileiro no que diz respeito a
uma normatização do indivíduo e da sociedade. Certamente, as especificidades locais
dão uma densidade e coloração diferenciada a esses processos22.
Além disso, Foucault (1988) também demonstra o caráter predominante da
medicina da época, como fonte e caixa de ressonância de padrões, prescrições e dúvidas.
O surgimento da figura do perito enquanto um agente específico de saber e poder ilustra
bem a passagem para uma visão do indivíduo pensado e visto como objeto de cuidados
e olhares23. O médico especializado observa e experimenta a natureza fisiológica e
moral de seu paciente, desde já colocando a tensão entre as partes e o todo que o
compõem. Isso só é possível porque o saber médico é valorizado e respeitado nos fins
do século XIX, é investido de responsabilidade para dar conta e ajudar a construir o
novo sujeito que se tomava cada vez mais distinto e singularizado24. Uma
singularização expressa antes de tudo no novo modelo de família que emergia .
Na verdade, trata-se de uma construção de valores sobre a família tal como a
conhecemos hoje, que se dá no contexto das tranformações ocorridas a partir de meados
do século XVIII. Para J. Donzelot (1980), em função de modificações operadas na
concepção do trabalho no contexto da Revolução Industrial, da crescente intervenção do
Estado e das ideologias concomitantes, acontece um processo de reconstrução histórica
da família e da infância. A preeminência dos laços de solidariedade calcados no
parentesco e o direito patriarcal que forneciam os critérios de regulação das relações
sociais no contexto do liberalismo nascente vão dar lugar a uma realocação das funções
da família. Já que não era mais imperativa pela concepção de suas alianças devia agora
se adequar ao novo momento onde a sociedade precisava de indivíduos livres para o
trabalho. O poder sobre os filhos, os padrões de educação e higiene, passam a ser dados
pelos agentes do Estado, agrupados em um vasto complexo tutelar que englobava além
do trabalho de orientadores e assistentes sociais, o aparelho jurídico e instituições de
internação das crianças. Tudo isso concorre para possibilitar a construção do indivíduo
como um agente muito menos vinculado aos laços de sangue e solidariedade mais
extensos do que aos novos conceitos de moralidade, saúde e unidade doméstica restrita.
Para o Brasil, também admite-se essa interpretação da "privatização" da família na
passagem para o século XIX, detacando-se o papel dos médicos. Para Jurandir Freire
Costa (1983), os médicos, especialmente munidos de um prestígio cada vez maior,
lançam-se a efetivar a estratégia da medicina higiênica no governo dos indivíduos. A
família toma-se um de seus alvos prediletos, especialmente a família dos senhores mais

22 M. Corrêa (1982) tratando da Escola Nina Rodrigues coloca algumas ressalvas às apropriações feitas da obra de
Foucault quanto ao "processo de normatização" local.
23 Herzog (1991) mostra como o nascimento da medicina e valorização do saber médico em fins do século XIX
implicou na contrução de um "sujeito-da-doença" e um poder sobre o corpo.
24 T. Laquer (1992) discutindo as origens do humanitarismo faz referência à importância do discurso médi
inclusive com relatos sobre mulheres que praticavam aborto ou infanticídio, especialmente por sua capacidade^’
detalhes e apreciações, na definição de uma preocupação moral com o corpo e o indivíduo.
25 Ver Perrot (1991b).

136
O Imaginário sobre a mulher através do olhar da Medicina no Século XIX

abastados. Seus hábitos, condutas física, moral, intelectual, sexual e social passam a ser
avaliados com rigor e transformam-se em objeto de ordenações prescritivas.26 Pretende-
se modificar até a própia concepção do casamento, que agora deveria seguir os moldes
higiênicos e os objetivos de procriar cidadãos saudáveis. A higiene faz do sexo, antes,
na colônia prioritariamente regulado pela Igreja,27 objeto de intervenção médica. Vem à
tona a idéia do "amor físico" também como direito das mulheres e que na visão dos
médicos concorrería para o sucesso do casal higiênico28. Um novo código de relações
entre homens e mulheres toma lugar, respeitando de uma forma jamais vista nesse
contexto as vontades individuais. Mas, vontades que seguissem os padrões de
feminilidade na mulher, frágil, delicada e sentimental, e masculinidade no homem,
dotado de força física e vigor intelectual, além da função primeira da procriação. Na
família, o pai não era mais simplesmente o proprietário da mulher e crianças, mas um
agente da higienização, assumindo a responsabilidade na educação dos filhos, o que não
significa que o poder patriarcal perdesse lugar. A figura da mãe higiênica representava
um novo estatuto para as funções da mulher, mas ela não deixava de estar sob os
auspícios da autoridade do marido. A diferença é que agora ambos tinham um agente
externo, o médico, que ditava as normas do que seria válido para o sucesso da família. A
mulher, de certa forma, era uma aliada especial do médico no projeto higiênico, já que
era a mais diretamente envolvida com a geração e cuidado com os filhos. Diante dos
primeiros raios de emancipação feminina do século passado, implicada no novo
contexto urbano, os higienistas ofereceram em troca da permanência no lar e na
obediência, a glorificação social e o prazer da maternidade. Mas, a sexualidade feminina
continuava restrita às funções da procriação, ao lado da exelatação do ideal da mulher
pura, casta e civilizada (Costa, 1993).30
Em contrapartida, intensifica-se o discurso sobre as mulheres mundanas, as
prostitutas que viviam soltas das amarras e prescrições relativas ao lar. M. Rago (1993)
mostra como as prostitutas aparecem como um contra-ideal necessário para dar limites à
liberdade feminina, tanto no discurso de médicos quanto de jornalistas, criminalistas e
literatos. Os médicos, especialmente, chegaram a definir as características que
marcavam a figura da prostituta. Elas se distinguiam da "mulher normal" por uma

26Segundo o autor: "O conjunto de interesses médico-estatais interpôs-se entre a família e a criança, transformando
a natureza e a representação das características físicas, morais e sociais desta última. As sucessivas gerações
formadas por essa pedagogia higienizada produziram o indivíduo urbano típico do nosso tempo. Indivíduo física e
sexualmente obcecado pelo seu corpo; moral e sentimentalmente centrado em sua dor e seu prazer; socialmente
racista e burguês em suas crenças e condutas; finalmente, politicamente convicto de que da disciplina repressiva de
sua vida depende a grandeza e o progresso do Estado brasileiro." (Costa, 1983, p.214)
27 Cf. Silva (1984), na Colônia, a Igreja era o grande agente regulador do casamento e sexualidade e traçava as
fronteiras entre a sexualidade permitida e a pecaminosa.
28 Segundo Corbain (1991), os médicos europeus exploravam a importância da sexualidade par a saúde da mulher e
entregavam ao marido a responsabilidade de uma sexualidade bem temperada, que salvasse a esposa dos perigos da
ninfomania ou nervosismo.
29 Bicalho (1988) apresenta elementos de como já em fins do século XIX tinha lugar um imprensa feminina que
alocava novos padrões de sociabilidade, incluindo valores como individualidade, igualdade e emancipação da
mulher.
30Esse ideal de mulher, acima de tudo seguindo os padrões do mundo cristão, se definia pela honra feminina. Uma
honra baseada no controle da sexualidade. O sexo só era admitido para procriação e assim deveria ser administrado.
Todas as suas manifestações fora dos domínios do casamento e em busca do prazer e satisfação pessoal estavam
proibidas, mas com distinções para homens e mulheres. Aos homens, a demonstração de virilidade que parece marcar
o ideal do colonizador português era admitida desde que não atingisse a mulheres honradas (Almeida, 1987). Mas, às
destituídas deste bem social, não havia restrições do ponto de vista masculino. Contudo, para as mulheres de família,
toda e qualquer investida que escapasse aos domínios do pai ou do marido era motivo de execração e punição severa,
e complicações para o sedutor. Os valores e prescrições da Igreja ainda sustentavam tal concepção (Silva, 1984).

137
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

formação biológica diferenciada e por traços de personalidade específicos. Desde o


andar, o sorriso, o olhar, a preguiça, a mentira, a depravação e o alcoolismo, até a
ausência de senso moral, apetite sexual exaltado e limitados recursos intelectuais, eram
indicadores apontados pelos médicos. Elas eram o símbolo da anti-higiene, eram
consideradas as grandes fontes de transmissão de doenças, especialmente as venéreas.
Mas o que as caracterizava enfaticamente era a sua sexualidade sem limites ou
fronteiras.
Esse era o motivo também do cuidado com que foi concebida ou tratada uma outra
personagem feminina, a mulher histérica. Esta figura, que foi alvo de grandes
investimentos médicos no século passado, intrigava particularmente pela pretendida
ânsia sexual e pelo fato de incorporar uma doença que estranhamente não deixava
marcas físicas. O mal da histeria era explicado pela natureza feminina ou pela remissão
a teorias mais antigas, de um útero dotado de manifestações independentes escondido no
corpo da mulher. Essa associação com os órgãos reprodutivos femininos faz com que os
primeiros especialistas procurados sejam os ginecologistas. Mas já na segunda metade
do século, entende-se que o sistema nervoso está intimamente implicado . Isso em um
contexto onde os "problemas dos nervos" já recebiam redobradas atenções dos médicos,
com especificidades quando se tratava das mulheres, pois estariam relacionados com sua
debilidade moral . A mulher histérica sofre de manifestações exteriores a sua vontade,
expressas na sua sexualidade e curáveis através da sua boa administração. Dessa forma,
acometida de um mal associado à exacerbação de sua sexualidade e à sua fraqueza
nervosa, ela também forneceu os parâmetros negativos que possibilitavam distinguir a
boa esposa e mãe de família, segundo os critérios médicos . Médicos que já passavam a
reinar soberanos sobre o corpo e a moral dos indivíduos (Costa, 1983).
É no século passado que eles começam a ostentar e monopolizar o saber e o
direito de tratar os doentes e definir os limites da saúde normal (Costa, 1983). Os
médicos passam a opinar sobre assuntos antes fora de seus domínios. E o caso
identificado por Gonçalves (1987) sobre a Roda dos Expostos. Esse mecanismo de
acolher crianças abondonadas, frutos de uniões ilegais, mães solteiras ou sem condições
de criarem os filhos, em asilos de caridade passa a ser um tema constante nas teses das
faculdades de medicina durante o século XIX. Os médicos que passavam a propagar as
novas idéias sobre a família e seu bem-estar se colocam de maneira particular quanto ao
problema. De acordo com seus princípios de civilização e modernidade, a Roda era um
mecanismo que incentivava o abandono de crianças, que acobertava as consequências
do sexo desregulado e ilegítimo e por isso merecería seu combate. Por outro lado, o
imperativo da manutenção da honra das famílias, a conservação da imagem de
legitimidade da sociedade quando os frutos de aventuras eram escondidos, fazia-os

31 Sobre a construção da histeria por Charcot, em princípio como um modelo feminino, no âmbito da psicologia
físicalista francesa, ver Barberis (1992).
32 Duarte (1986) demonstra como essas figuras nosológicas e o modelo de sujeito nelas implícito estariam
relacionadas ao que chamou de "configuração do nervoso" que teve seu auge no final do século XIX. Sobre a
neurastenia, a medicalização dos nervos e até mesmo a sua apreensão como um "barômetro" das preocupações e
mudanças sociais no século XIX, especialmente quanto ao gênero, ver Davis (1989).
33 G. Swain (1983, p.107) discutindo a histeria no âmbito da "despossessào subjetiva" vai ainda mais longe: "II faut
traiter 1'hystérie - et le discours médical sur l'hystérie - comme des tévélqtçurs. Dans et à porpos de 1'hysterie,
jusqu'à Charcot, quelque chose se symbolise: le destin feminin. La maladie fonctionne comme une scène oü se
dévoile et ou s'exhibe la vérité du corps feminin, et la condition qui en résulte. Car lafemme est toute par son corps,
ou du moins par une partie de ce corps: sapartie reproductive, 1'hystera des Grecs et les organes associes, dont les
manifestations hystériques ontjustement pour sens de rappeler et de signaler Vemprise preponderante"

138
O Imaginário sobre a mulher através do olhar da Medicina no Século XIX

ponderar sobre a utilidade desse mecanismo. De qualquer modo, as investidas passam a


cada vez mais se concentrar na prevenção, na educação das futuras mães para que não
abandonassem seus filhos, na promoção da idéia de que só seres "desnaturados" e
"incivilizados” se desprenderíam de suas crias 34.
Já nessa produção médica sobre a Roda dos Expostos, tem-se um constante definir
dos padrões femininos que se expande para várias áreas da medicina. S. Nunes (1991)
estudando a medicina social e a questão feminina vai delinear essa aproximação entre
médicos e mulheres. Segundo ela, na linha de uma intervenção normatizadora
generalizada da medicina, a mulher vai ser a aliada por natureza dos médicos. Ela é
especialmente dotada de atributos para o bem cuidar da família. Sua natureza mais
frágil, menos afeita às agruras do mundo externo ao lar é feita sob medida para que se
dedique ao sucesso do emprendimento familiar. Sua anatomia e mais tarde o seu
psiquismo serão vistos dessa forma e assim justificados positivamente como inferiores.
Ela é própria para a maternidade, é inapta para outras funções e por isso precisa do
apoio da família e do marido para sobreviver. Mas, é essa necessidade biológica de
sobrevivência que a fará contribuir exemplarmente para a manutenção de seu lar. E essa
prerrogativa da união que deve motivar as mulheres ao casamento e não os ímpetos da
sexualidade. A sexualidade não é própria das mulheres sadias e de família35. Prova
disso, para os médicos, eram as constantes e múltiplas doenças que afetavam as
prostitutas. A estas últimas era recomendado o casamento polido e regrado, pois era pela
falta dele que adoeciam.
Contudo, para além desses traços gerais do pensamento médico sobre as mulheres
do século XIX, tem-se também redefinições e precisões importantes. Segundo Nunes
(1991), a década de 1870 é fundamental para se entender certas mudanças de ponto de
vista dos médicos. Até esta época as mulheres, especialmente as acometidas de algum
mal como a loucura, a prostituição, a prática de crimes como o aborto ou infanticício,
eram consideradas muito mais vítimas da falta de tutela do que seres responsáveis por
seus atos. A "infantilidade" das mulheres era a justificativa para a necessidade de um
vigiar constante. Mas, nas últimas décadas do século passado, o pensamento médico
começa a expressar a periculosidade natural do sexo feminino, bem ao gosto das idéias
vinculadas ao modelo da degeneração36. No intuito de melhorar a saúde da população e
aprimorar a raça, ganha vulto a noção de degeneração psíquica, onde personagens como
criminosos, loucos, prostitutas, alienados, histéricas, negros, desviantes sexuais,
infanticidas, ganham destaque. Uma má formação, uma constituição degenerada que é
transmitida na família, faz com que médicos intervenham desde a regulação do
casamento para se evitar a proliferação dos estigmas degenerativos. Nesse contexto, têm
lugar de destaque as doenças venéreas, importante foco dos médicos higienistas. Males

34 E. Badinter (1985) explora esse conceito de mãe desnaturada usado pelos médicos para convencerem as mães das
necessidades de aleitamento e cuidados com os filhos. É interessante que ela enfatiza que sob as luzes das idéias de
Rousseau e outros pensadores que valorizavam o selvagem, o natural, como o exemplo da boa natureza do humano,
as mães européias dos séculos XVIII e XIX são levadas a abandonar os costumes aristocráticos de recusa de uma
vivência intensa da maternidade. No caso do Brasil, segundo o que historiadores da época enfatizam, as mães eram
acima de tudo pouco civilizadas e preparadas, ainda marcadas pelo abandono da colônia. Parece que aqui os médicos
higienistas tiveram que lançar mão ao invés dos argumentos da boa natureza, dos argumentos da boa educação e
valores associados à urbanização e modernização para o sucesso de seu empreendimento.
35 Boons (1986) diz a propósito, que na época vitoriana, o gozo feminino é considerado bruxaria, é sempre um
elemento estranho e assustador.
36 Sobre a figura da mulher enquanto obsessiva sexual e suas implicações na teoria da degeneração, ver a análise de
Carrara (1992) sobre o romance As mulheresfatais do médico Cláudio de Souza.

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Cadernos do IPUB n° 8, 1997

como a sífilis contribuíram para que se traçasse os limites da normalidade e saúde


sexual, além de colocar a sexualidade na ordem do dia das discussões públicas (Carrara,
1995). O discurso médico enfatiza também a mulher como o lugar dos maus instintos,
transformando em anomalia as peculiaridades deste sexo. Estudando aborto,
infanticídio, prostituição e loucura, detectam sinais de uma monstruosidade peculiar à
mulher, uma base degenerada comum a todas as decendentes de Eva. Ela agora não é
mais a criança irresponsável, mas alguém no nível de uma raça inferior, identificada por
diagnósticos médicos como um ser que se distingue pelo cérebro menor e gânglios
maiores . A sua patologização vai fazer com que se conclua que ela é uma criminosa
em potencial, capaz de se entregar à prostituição caso não haja controles adequados,
uma histérica excessivamente sexuada38. Diante disso, a mulher deve estar
permanentemente vigiada pela medicina.
E nesse contexto que aparecem e se afirmam as especialidades médicas dedicadas
exclusivamente às mulheres. Até o século XIX, as manifestações físicas específicas ao
corpo feminino, especialmente ligadas à maternidade e sexualidade eram alvo da
atenção de parteiras e comadres que faziam uso de um complexo conjunto de estratégias
e produtos de tratamento. Aos remédios da flora brasileira ou mesmo de maravilhosos
elixires importados se juntavam um sem número de rezas, simpatias e prescrições. Os
médicos só eram chamados nos casos mais graves, de doenças mais sérias ou em casos
de partos complicados que colocassem em risco a vida da mãe ou da criança. As
enfermidades femininas não eram dignas de suas atenções. De um modo geral, a
medicina até então não intervinha no "aparelho geniturinário". O tratamento quando
empreendido por médicos era apenas de caráter clínico e paliativo. Isto devido em
grande medida ao parco conhecimento sobre as próprias doenças, especialmente as que
se manifestavam mais amiúde nos corpos femininos (Santos Filho, 1991).
Já no século XIX, mais precisamente em 1809, a Arte Obstétrica passa a ser
lecionada na Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro e a cadeira de Partos que constava do
currículo das Academias Médicas Cirúrgicas do Rio de Janeiro e Bahia é integrada
definitivamente quando estas se transformam nas prestigiadas Faculdades de Medicina,
criadas em 1832. A partir de então, inúmeras afecções ginecológicas são descobertas e
diagnosticadas pelos médicos brasileiros, que passam a olhar os males que acometiam
as mulheres com um certo cuidado. O "quisto", por exemplo, tumor de caráter benigno
que aparece no ovário, toma-se alvo de uma série de estudos e teses das faculdades de
medicina. Seu tratamento paliativo empregava purgativos, sudoríferos,
antiinflamatórios, preparados contendo ouro, iodo e chumbo, enquanto a cura consistia
na perigosa "ovariotomia", motivo de grandes discussões. Mas, durante a maior parte
do século, eram as manifestações relativas à concepção que preocupavam os médicos
(Santos Filho, 1991).
A cadeira de Partos era a única relativa especificamente ao corpo feminino que já
fazia parte do currículo das faculdades desde sua criação. Mas, parece não atrair muito
aos futuros médicos. No início do século, essa parecia ser uma matéria ainda pouco
digna de maiores atenções. Além disso, investia-se muito mais, e aí os médicos

37A Endocrinologia da época tinha um importante papel na definição das diferenças entre os homens e mulheres ao
enfatizar as distinções hormonais.
38 Cf. Rago (1993), os médicos higienistas, a partir de Parent-Duchâtelet e de Lombroso, estenderam o conceito de
prostituta a todas as mulheres que por algum motivo ficavam fora dos padrões considerados normais.

140
O Imaginário sobre a mulher através do olhar da Medicina no Século XIX

excerciam sua autoridade, na regulamentação das práticas das parteiras mulheres. Já em


1832 estava criado um curso de partos para essas senhoras, para que aprendessem de
acordo com os preceitos da ciência a correta maneira de atender as mulheres no
momento do parto e os primeiros cuidados com a criança . Passou-se a propagar-se a
idéia das parteiras com certificado de sua atividade dada pelos médicos. Estas tomam-se
as mais legítimas e requisitadas pelas famílias mais poderosas e "civilizadas". É nessa
época que também desembarcam no Rio de Janeiro parteiras francesas formadas em seu
país e que traziam novas técnicas e prescrições. Muitas ganham fama e prestígio,
gozando de um status pouco comum às mulheres de sua época. M. Mott (1992) salienta
esta especificidade das parteiras, chamando a atenção para o fato de combinarem a este
prestígio uma certa repulsa, uma certa marginalidade que teria a ver com o desprezo
mais geral sobre as manifestações do corpo feminino. De qualquer forma, algumas,
como Madame Durocher, tomaram-se célebres por partos famosos ou pela quantidade
de crianças que trouxeram ao mundo, como também por características particulares40.
Ela, a primeira a receber o diploma do curso de partos da Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro, tomou-se respeitada e reconhecida pelas autoridades médicas pelo bom
cumprimento de suas funções e chegou inclusive a escrever sobre a profissão de
. • 41
parteira .
Atender a parturiente e refletir mais acuradamente sobre o fato e sobre as doenças
ginecológicas dentro da medicina brasileira de forma sistemática e pedagógica só se
efetiva em tomo de 1884 quando é instalada a cadeira de Clínica Obstétrica e
Ginecológica nas duas faculdades brasileiras 42. À sombra de um movimento mais geral
para a medicina brasileira, esta área também passa a ter as suas principais bases de
influência na França, ao contrário dos primeiros séculos da colônia, onde as referências
eram basicamente ibéricas. Alguns importantes médicos brasileiros vêm formados de
Paris e de lá trazem novas técnicas e novos conhecimentos. Mesmo manuais como o
Leçons sur les maladies des femmes escrito pelo inglês Charles West em 1856, e que se
toma a principal fonte de ensino da ginecologia aqui, são usados na versão francesa.
Vêm da França também os médicos especialistas requisitados em casos famosos.
Lycurgo Santos Fiho (1991) relata que um médico famoso na época por ser um grande
obstetra, Luís da Cunha Feijó, barão e visconde de Santa Isabel, foi o parteiro da
princesa Isabel, herdeira do trono, quando do nascimento do primeiro filho. Diante de
um parto complicado, Feijó para salvar a mãe sacrificou o filho, praticando uma
"craniotomia" (abertura e extirpação do crânio da criança para melhor extração). Tal
opção provocou uma grande celeuma entre os médicos da época estampada nos jornais
do Rio de Janeiro. Um dos resultados do fato foi que quando em 1875 a princesa estava
novamente grávida, seu marido, o Conde d'Eu, fez vir de Paris o obstetra Jean Arme
Henri Depaul que assistiu ao nascimento de D. Pedro. Segundo Santos Filho, o médico
retomou à Paris satisfeito com os "honorários elevadísssimos" e uma fortuna recebida
em troca de numerosas consultas em Petrópolis. Mas, de volta à França, uma entrevista

39 Por outro lado, as mulheres eram impedidas de cursar as faculdades de Medicina. A primeira médica brasileira,
Maria Augusta Generoso Estrela se formou nos E.U.A. em 1881. No Brasil só em 1887 Rita Lobato Velho Lopes é
diplomada (Cf. Kaastrup, 1983 e Santos Filho, 1991).
40 Segundo Mott (1992) e Santos Filho (1991), Madame Durocher era conhecida pelos traços masculinos que
reafirmava através de vestimentas e hábitos, chegando a ser chamada de "a mulher-homem".
41 A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro chegou a instituir um prêmio com seu nome na área da obstetrícia.
42 Segundo Magalhães (1932), a antiga cadeira de Partos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro passa a se
chamar Obstetrícia em 1884, sendo desdobrada em 1911 em Clínica Obstétrica e Clínica Ginecológica.

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Cadernos do IPUB n° 8, 1997

"descortês" e "injuriosa" contra os brasileiros provocou a revolta de muitos cidadãos


locais. A polêmica se agravou quando a princesa novamente grávida em 1878 requisitou
o médico. Sua presença foi motivo de numerosos ataques a ele e ao casal imperial na
imprensa carioca. A gravidade do caso fez com que em 1881 quando esperava outro
filho, a princesa optasse ir para Paris, onde nasceu D. Antônio mais uma vez sob os
cuidados de Depaul.
Nesta época, os médicos brasileiros já ostentavam o conhecimento de técnicas
"sofisticadas" para cuidar dos partos. E diante de declarações como a do Real Colégio
dos Médicos de Londres de que não era digno de um médico assistir a parturientes, os
médicos locais se colocavam à disposição para resolver com sua autoridade os casos
mais difíceis, que exigiam seu conhecimento e maestria. Nestes casos, praticava-se a
"manobra de Mauriceau" (técnica usada quando o feto apresentava-se em posição
complicada, desconhecida das parteiras), o fórceps (instrumento ausente na medicina do
período colonial) e a operação cesariana. Cada uma destas técnicas era sempre alvo de
discussões e polêmicas entre os especialistas já preocupados com o bom gerencimento
das funções reprodutivas femininas e suas consequências. O caso da anestesia com
clorofórmio durante o parto também foi alvo de debates, especialmente porque temia-se
a "loucura puerperal" ou perturbações na saúde da criança (Santos Filho, 1991).
A prática das parteiras também é cada vez mais visada. Exige-se das parteiras
francesas que chegam ao Brasil, como também das brasileiras, um exame frente aos
médicos delegados para que o diploma de parteira seja registrado nas Câmaras
Municipais. Apesar disso, a recorrência a "comadres" ou "curiosas", para os médicos
sem nenhuma habilitação, continuou frequente. A isso atribuíam a frequente infecção
puerperal, dada a falta de higiene e assepsia. Além disso, os médicos combatiam-nas
também pelo fato de conhecerem e executarem técnicas de aborto em qualquer
solicitação (Santos Filho, 1991).
Cada vez mais os médicos vão tomando a frente no gerenciamento da saúde
feminina e reprodução. Vão se especializando e investindo na normalização das práticas
relativas ao corpo feminino. A influência das parteiras é crescentemente defasada.
Quando surge a primeira maternidade no Rio de Janeiro, em 1877, a Maternidade Santa
Isabel, as parteiras diplomadas são convocadas ao trabalho, mas completamente sob o
controle dos médicos (Santos Filho, 1991). A autoridade de ginecologistas e obstetras
sobre o comportamento das mulheres no final do século XIX ultrapassa em muito o
domínio dos consultórios. E principalmente ultrapassa o domínio do físico, do orgânico
ou mesmo do psíquico para se instalar no domínio do moral. A crescente especialização
médica sobre o corpo feminino aliada ao clima intervencionista mais geral que
caracteriza a medicina do século passado são fatores implicados nesse processo.
Casos como o do "invento Abel Parente" são exemplares para se perceber até
aonde iam suas intervenções. Especialmente pelo prestígio que ganhavam, as celeumas
entre os médicos tomavam-se públicas e seu alcance insuperável, envolvendo outros
importantes agentes como juristas e literatos. O polêmico "invento" era uma técnica de
raspagem do útero que segundo o médico que o concebeu, Abel Parente, e seus anúncios
nos jornais cariocas nos idos de 1893, provocava a esterilização temporária na mulher.
Tal possibilidade de controle da concepção provocou a ira dos mais afamados
especialistas da área que não se cansaram de publicar artigos ou solicitações à Academia

142
O Imaginário sobre a mulher através do olhar da Medicina no Século XIX

Nacional de Medicina contra o médico43. O mais interessante no evento é que os


argumentos colocados pelos especialistas beiravam muito mais à prescrição moral do
que apenas à saúde da mulher. O principal argumento que foi motivo das acusações na
Academia e mais tarde de abertura de um inquérito contra Abel Parente era o fato de
que as mulheres só cumpriam adequadamente suas funções de esposas e mães, zelando
pela família porque estavam presas às consequências da concepção. Era por isso que se
mantinham casadas e respeitavam o marido. Caso contrário, se algum método lhes
garantisse evitar os filhos advindos de relações sexuais desenfreadas, todas se
entregariam à prostituição44. A natureza moral da mulher percebida como frágil diante
dos prazeres carnais sucumbiría facilmente caso não tivesse o controle provocado pelos
filhos. Facilmente todas se transformariam em adúlteras ou mundanas, abandonando o
lar e a família45.
Tais argumentos legitimados pela comunidade médica e celebridades como o
escritor Machado de Assis transformaram o "invento Abel Parente" em caso de polícia
(Santos Filho, 1991). Mas, o mais interessante é que ilustram por onde passava a prática
e a autoridade médica ginecológica no final do século passado. O conhecimento prático
de obstetras, ginecologistas e também endocrinologistas sobre a natureza do corpo
feminino, suas diferenças, seu funcionamento estranho e intimamente marcado pela
procriação estavam associadas a concepções sobre a natureza de suas mentes e
debilidade moral. Era dever do médico alertar e combater práticas que atestassem contra
a tutela masculina das mulheres. Era digno de sua parte que cuidassem para o bom
regulamento das condutas femininas, já que eles é que dispunham do conhecimento
sobre suas naturezas e capacidades.
Os especialistas são requisitados e assumem com ímpeto a tarefa de fornecer os
padrões de normalidade que passam a cercar o gênero feminino. Cada vez mais as
descobertas médicas sobre a anatomia e funcionamento do corpo da mulher passam a ser
associadas a comportamentos sociais. Fundamentam intervenções na vida da família,
desde o casamento até a educação das crianças. Mas, acima de tudo colaboram muito
eficazmente na construção da imagem do feminino em curso na época.

BIBLIOGRAFIA

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43 Santos Filho (1991), Magalhães (1922), Mello (1893) e Castro (1893).


44 Cf. Corbain (1991, p.549), mediante denúncias e práticas de "ovariotomias" visando a esterilização, o corpo
médico europeu reafirmou as pesadas consequências da "fraude" do sexo sem procriação: a mulher teria
hemorragias, gastralgias, consumpção, enervamento, um desequilíbrio psíquico geral, causados pela ausência de
líquido seminal e gestações sucessivas.
45 Cf. o protesto do Dr. Públio de Mello apresentado na Sociedade de Hygiene do Brasil em 1893.

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147
PSICANÁLISE, INDIVIDUALISMO E DIVISÃO DE SI*

Erimaldo Matias Nicacio *

INTRODUÇÃO

A psicanálise, na qualidade de saber com pretenções à cientifícidade, sempre


afirmou sua validade universal. Já desde o seu nascimento, ela não se reduzia a um
método de tratamento das neuroses, mas se constituía como teoria geral do psiquismo
humano. No entanto, é necessário contingenciá-la historicamente, por em evidência as
condições de possibilidade de seu surgimento, mostrar em que medida ela está
circunscrrita a um universo cultural específico.
Neste trabalho, pretende-se explorar a hipótese de que o sujeito psicanalítico
fundamenta-se numa concepção de pessoa peculiar à sociedade ocidental moderna. Tal
concepção tem como valor central o indivíduo, no sentido de que se define por
qualidades que lhe são imanentes.
Num primeiro momento, o trabalho descreve os principais traços e a constituição
desta concepção moderna de pessoa. Em seguida, identifica nos textos freudianos
dedicados à analise da cultura um dos itens fundamentais desta concepção de pessoa: a
oposição individuo-sociedade, ilustrada no postulado de que a cultura se fundamenta na
renúncia à satisfação pulsional. Finalmente, discute a hipótese de que existe
continuidade entre o sujeito dividido descrito pela psicanálise e o individualismo
moderno.
O itinerário realizado neste trabalho se constituiu a partir de um tratamento
exploratório de algumas análises consagradas ao estudo histórico-social da constituição
do sujeito moderno e de sua utilização numa releitura dos textos freudianos de cultura.
Por isso, o que se oferce aqui são hipóteses de trabalho a serem aprofundadas ou até
mesmo corrigidas.

A CONCEPÇÃO MODERNA DE PESSOA

Se toda e qualquer sociedade humana é constituída por indivíduos, por homens


reais, concretos, não é universal a experiência associada à percepção do indivíduo como
valor central da sociedade. Não é universal a concepção de indivíduo enquanto
totalidade autônoma e elemento fimdante das instituições sociais. Na verdade, tal ênfase
no “valor-indivíduo” pertence a um universo cultural específico: a cultura ocidental
moderna.
Um dos esforços pioneiros de afirmação do caráter social desta noção de

* Este artigo é uma versão modificada do trabalho apresentado para a disciplina Sociedade e Doença Mental II
ministrada pela professora Jane Russo no Programa de Pós-graduação em Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental da
UFRJ.
’* Professor do Curso de Especialização em Medicina do Trabalho da Faculdade Souza Marques e doutorando do
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Medicina SocialAJERJ.
Psicanálise, individualismo e divisão de si

indivíduo foi realizado pelo antropólogo francês Marcei Mauss, ao fazer uma história
social de uma das categorias do espírito humano1: a moderna noção de “pessoa”, de
“eu”. No clássico artigo de 1938 Uma Categoria do Espírito Humano: a noção de
pessoa, a noção do “eu”, sua intensão era mostrar como a noção de “eu” é recente,
tendo atravessado um lento desenvolvimento na história do ocidente.
Do sentido jurídico, em que o termo “pessoa” designava uma condição ou posição
social, um domínio, passa-se à noção de pessoa como fato moral, ou seja, como “(..)
ser consciente, independente, autônomo, livre e responsável” (MAUSS, 1974: 233-
234). O Cristianismo, posteriormente, acrescentou-lhe um fundamento metafísico
forjando uma concepção metafísica de pessoa humana, substância racional indivisível,
individual. O passo seguinte, dado pelos filósofos, se dirige para a constituição da noção
de “eu ”, enquanto consciência, enquanto ser psicológico.
Os dados etnográficos reunidos por Mauss testemunham que em diversas
sociedades tribais a identidade do indivíduo não se define por suas propriedades
intrínsecas, mas pela posição que ele ocupa no clã, por sua relação com seus ancestrais
ou pelo papel que lhe é atribuído numa situação de ritual. Longe de se definir como um
eu individual, cada membro da tribo encarna um personagem, assumindo sempre a
qualidade de ser social.
Seguindo as pistas deixadas por Mauss e situado na mesma linhagem teórica,
Louis Dumont realizou um trabalho sistemático de relativização da concepção moderna
de indivíduo. Suas pesquisas sobre o sistema de castas da índia mostraram como este
sistema social e o nosso - que pode ser denominado “ocidental moderno ” - constituem
configurações ideológicas2 radicalmente distintas. Para apreciar em que consiste esta
oposição cumpre visualizar os dois sentidos implicados na palavra indivíduo'.

“(1) o sujeito empírico da palavra, do pensamento, da vontade, amostra


indivisível da espécie humana tal como o observador encontra em todas as
sociedades;

(2) o ser moral, independente autônomo e, assim (essenciamente), não social,


tal como se encontra sobretudo em nossa ideologia moderna do homem e na
sociedade” (Dumont, 1993: 75).

O sistema indiano, como, de resto, as chamadas sociedades tradicionais, se


acentam no princípio da hierarquia, que supõe a preeminência do todo sobre as partes e
das relações sobre os seus termos. O indivíduo, no primeiro sentido indicado encontra-
se englobado pelo todo social, onde é percebido e se percebe como um homem coletivo,
que não se opõe à sociedade, mas, ao contrário, tem suas ações orientadas para a
atualização dos valores e das regras partilhados por seu grupo social. Além disso, a
identidade de cada indivíduo é função da posição que ocupa no todo que o engloba e
ordena. Trata-se, portanto, de uma configuração de valores holista.

1 uma dessas idéias que julgamos inatas (...) ", Mauss, 1974, p. 209.
2Segundo Dumont (1992, 51) a ideologia, enquanto conjunto de idéias e valores, de forma alguma é um aspecto
secundário da vida social (da ordem da superestrutura, por exemplo), mas, ao contrário, é central e determinante da
sua dinâmica.

149
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

A sociedade moderna, na qual predomina uma configuração de valores


individualista, tem seus alicerces fincados no princípio da igualdade, que implica a
supremacia das partes sobre o todo e dos elementos sobre as relações. Este sistema
social tem como valor central e englobante o indivíduo, no segundo sentido apontado
acima. Vinculado inextrincavelmente aos valores de liberdade e igualdade, este
indivíduo é concebido como sendo ou devendo ser livre da coerção das instituições e
normas sociais e como possuindo uma natureza que o iguala a todos os outros
indivíduos.
Segundo Dumont o individualismo moderno teve uma origem longínqua, nos
primórdios do Cristianismo, se bem que assumindo uma forma diferenciada da que se
consolidou na modernidade. A religião teria sido o ‘fermento essencial ” na difusão e na
evolução do individualismo (Cf. Dumont, 1993). A idéia central do autor é a de que se o
indivíduo como valor estava presente entre os primeiros cristãos, ele assumia uma forma
diferenciada em relação à concepção moderna: tratava-se de um indivíduo apartado do
mundo social, um indivíduo que renuncia à vida mundana subordinando-a à valores
extra-mundanos. E um “indivíduofora-do-mundo’1', semelhante ao renunciante indiano
que, na sua busca da verdade e da libertação, abandona a vida social e seus
constrangimentos. Ele se diferencia do moderno “ indivíduo-no-mundo”, construído a
partir da Reforma com Calvino, quando a extramundanidade passa a se concentrar na
vontade individual. O homem, neste caso, se opõe à vida social, embora viva dentro
dela.
Dumont desenvolve, então, a hipótese segundo a qual para que o individualismo
pudesse surgir numa sociedade holista - tal como se realizou na índia e no começo da
era cristã no Ocidente - foi necessário que ele se constituísse em oposição à sociedade,
segundo o modelo do indivíduo-fora-do-mundo.
Com efeito, a partir dos ensinamentos de Jesus Cristo e de São Paulo, o cristão é
concebido como um “indivíduo-em-relação-com-Deus”, ou seja, a alma
individual recebe valor eterno de sua relação filial com Deus e nessa relação se funda
igualmente a fraternidade humana: os cristãos reúnem-se no Cristo, de quem são
membros” (Op. cit., p. 42). Esta relação de uma alma individual com um Deus único
transcendente implica, por um lado a exaltação do valor infinito do indivíduo e, por
outro, a desvalorização do mundo tal como ele efetivamente existe.
Por consegüinte, toma-se compreensível que, numa cultura que passou distinguir a
vida prometida da vida tal como ele é na realidade tenha surgido a idéia de “mudar o
mundo” (Op. cit., pp. 43-44). Tal desqualifícação cristã da vida real encontra-se na base
de um dos traços fundamentais do mundo moderno: a separação entre valor e fato.
Diferentemente da filosofia platônica, o mundo moderno distingue, de um lado, o
verdadeiro e, do outro, o belo e o bem. Trata-se de uma separação entre o que é e, pois o
valor designa algo diferente do ser: “Uma questão de valores não é uma questão de
fato. ” (Dumont, 1993b: 241)
Pode-se concluir, portanto, que a configuração de valores individualista,
característica da sociedade ocidental moderna, não concerne apenas a um certo tipo de
relacionamento entre indivíduo e sociedade. A própria distinção entre indivíduo e
sociedade já é peculiar a este universo de valores.

150
Psicanálise, individualismo e divisão de si

FREUD E A OPOSIÇÃO INDIVÍDUO-SOCIEDADE

Nos seus textos sociológicos, ou de cultura, Freud assume como objeto de estudo
“as funções psíquicas das comunidades humanas e dos povos”, (Freud, 1923: 2.739)
empreendimento que seria justificado pelas inúmeras analogias encontradas entre a
psicologia individual e a psicologia coletiva . Não escapou a Freud a constatação deste
traço fundamental do mundo civilizado que é a oposição entre indivíduo e sociedade.
Tal oposição está pressuposta ao longo de todos os seus textos de cultura (Cf Mezan,
1985: 483) e, mais especificamente, em dois momentos cruciais: na tese de que o
desenvolvimento da civilização se baseia na crescente renúncia à satisfação das pulsões
e no uso do conceito de filogênese. Nossa hipótese é a de que a presença da distinção
entre indivíduo e sociedade na obra de Freud é um dos indicadores das relações entre o
sujeito descrito pela psicanálise e a ideologia individualista moderna.
Freud define cultura - recusando-se a distingui-la do conceito de civilização -
como tudo aquilo que diferencia o homem do animal e que se refere a duas ordens de
fenômenos: por um lado, os recursos utilizados para dominar as forças da natureza a fim
de obter os bens naturais necessários ao homem; por outro, as organizações necessárias
para regular as relações que se estabelecem entre os homens. Se Freud recusa a
dicotomia entre civilização e cultura, se as considera como interdependentes, é porque a
obtenção dos bens materiais suscetíveis de satisfazer as necessidades dos homens
exercem grande influência nas suas relações e, além disso, o próprio homem pode se
constituir um bem natural ao ser utilizado por outro como força de trabalho ou como
objeto sexual. Mas também porque

“(...) cada indivíduo é virtualmente um inimigo da civilização, apesar de ter


que reconhecer seu interesse humano geral. Sucede, com efeito, o fato singular
de que os homens, a despeito de ser impossível manterem-se no isolamento,
sentem como um peso intolerável os sacrifícios que a civilização lhes impõe
para tornar possível a vida em comum. Assim, a cultura tem que ser defendida
contra o indivíduo e a esta defesa respondem todos os seus mandamentos,
organizações e instituições, os quais não tem por objetivo efetuar tão somente
uma determinada distribuição dos bens naturais mas também mantê-la e
inclusive defender contra os impulsos hostis dos homens, os meios existentes
para o domínio da natureza e para a produção de bens” (Freud, 1927: 2.962).

A fim de poder enfrentar os desafios que a natureza lhe impõe, o homem precisa
se ligar a outros homens e, por consegüinte, deve submeter a certas limitações à

3 Há um certo debate em tomo da questão de se existe ou não em Freud uma teoria a respeito da constituição e do
funcionamento da sociedade. De nossa parte, pensamos que Freud, de fato, tem por objeto os processos implicados
na gênese e no funcionamento da sociedade, estando familiarizado, diga-se de passagem, com as principais
concepções teóricas e metodológicas em voga nas ciências sociais na sua época. Por isso, consideramos ocioso
discutir a validade dos seus estudos, enquanto teoria social, tomando-se por base parâmetros teóricos atuais. Por
outro lado, é necessário frizar que os textos de cultura não se reduzem meramente a trabalhos de psicanálise
aplicada, na medida em que as reflexões ali empreendidas são constitutivas da teoria psicanalítica in toto. No
entanto, para os objetivos do presente trabalho, não interessa no momento acompanhar a complexa trama que liga os
textos sociológicos à metapsicologia.

151
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

satisfação de suas pulsões. A necessidade da vida em comum exige, de um lado, o


imperativo de renúncia à satisfação e, de outro, a proteção das instituições culturais
contra os interesses individuais. Em todos os seus textos de cultura desponta a questão
do processo de inserção do indivíduo na vida social, bem como das condições de
preservação do seu funcionamento. Em O Mal-estar na Cultura esta oposição é descrita
de forma muito clara:

“Assim como combatem no indivíduo as duas tendências antagônicas - a


felicidade individual e a união humana - do mesmo modo devem
necessariamente enfrentar-se, disputando terreno ambos os processos
evolutivos: o do indivíduo e o da cultura. Porém, esta luta entre indivíduo e
sociedade não é filha do antagonismo, quiçá inconciliável, entre as duas
pulsões originais, Eros e Morte, mas responde a um conflito na própria
economia da libido, conflito comparável à luta pela partilha da libido entre o
ego e os objetos. A despeito das penosas exigências que impõe à existência do
indivíduo, tal combate pode alcançar neste um equilíbrio definitivo que, tal
como esperamos, a cultura também alcançará no futuro” (Freud, 1930: 3.064-
3.065).

Para Freud, portanto, a inserção do sujeito na cultura é marcada pelo conflito e


pela agressividade. A estrutura narcísica do indivíduo entra em conflito com sua
necessidade de partilhar a existência com seus semelhantes. Trata-se, aqui, da questão
da passagem do estado de natureza para o estado de cultura, tematizada em Totem e
Tabu, através do mito do assassinato do pai da horda primitiva.
É necessário, no entanto, sublinhar que a noção de natureza, neste texto, não se
refere à ordem biológica ou vital, mas ao registro do narcisimo. Trata-se da passagem da
onipotência narcísica originária para uma ordem marcada pela mediação simbólica entre
os sujeitos, governada por regras às quais todos se submentem a fim de não serem
aniquilados. A fonte de inspiração de Freud para realizar tal reflexão encontra-se na
filosofia política dos séculos XVII e XVIII4.
Os principais representantes desta tradição filosófica - Rousseau, Locke e Hobbes
- através da “teoria do contrato social”, refletiram sobre a questão dos direitos naturais
dos indivíduos na ordem política. Para estes autores, o que está em jogo não é a
passagem do estado de animalidade para o estado de cultura, mas a passagem do estado
de natureza no qual o homem se situa como ser individual, num isolamento abstrato,
anterior à vida social, para um contexto de relações com outros indivíduos,
estabelecendo com eles uma associação. O contrato social toma-se a mediação
fundamental que permite manter os direitos naturais dos indivíduos no contexto de
sociedade. Em Hobbes, por exemplo, um dos direitos naturais fundamentais é o direito à
vida, de modo que a ameaça de morte no estado de natureza representa a condição para
que os indivíduos estabeleçam o contrato social e o pacto político.
Segundo Dumont, a passagem do isolamento do indivíduo natural para a
organização da sociedade ou do Estado, na teoria do direito natural, implica dois
contratos sucessivos: um contrato de associação entre iguais e um contrato de sujeição a

4 Cf. Birman, 1989, p. 54.

152
Psicanálise, individualismo e divisão de si

um governante. Na medida em que não é mais o grupo, enquanto totalidade orgânica,


mas o indivíduo que é o ser real da sociedade, a hierarquia desaparece e, por
consegüinte, desaparece a atribuição imediata de autoridade a um governo. Esse duplo
contrato trairia, segundo Dumont, a incapacidade moderna de conceber, de forma
unificada, um modelo hierárquico de grupo, vinculada a uma dificuldade de combinar
individualismo e autoridade, igualdade e diferenças de poder na sociedade.
Desde o Renascimento, opera-se um afastamento cada vez maior em relação à
antiga concepão de “universitas ” - uma sociedade que forma um todo a partir de suas
instituições, língua e valores, antecedendo os indivíduos - ao mesmo tempo em que se
consolida a moderna concepção de “societas ” - associação entre iguais através de um
contrato. Na medida em que a opressividade das instituições e formas restritivas de vida
perderam seu fundamento, afirma-se o ideal de libertação do indivíduo. A liberdade
aparece como um estado natural, parte da existência original da espécie e do indivíduo
que, agora, deveria ser restabelecida5.
É impossível não evocar, neste momento, o mito do parricídio primitivo de Totem
e Tabu. A hipótese fundamental deste instigante texto possui como horizonte a
construção de uma resposta para as seguintes questões: Se a organização mais
primitiva conhecida é a de associações de homens, teria ela sua origem no antigo
agrupamento da horda? E como teria sido possível esta passagem? (Cf. Freud,
1912-13, p. 1.838)
Ao introduzir esta interrogação Freud já havia reunido os seguintes fios:
1) A concepção psicanalítica do totem:
A partir do exame de alguns casos de zoofobia, Freud mostra que o animal temido
substitui o pai, através de um deslocamento dos impulsos edipianos que comportam
uma disposição afetiva ambivalente, já que implicam a presença de sentimentos hostis e
também sentimentos de admiração e de carinho.
Destas observações Freud extrai dois traços encontrados na fobia infantil e no
sistema totêmico: a completa identificação com o animal totêmico e a atitude
ambivalente em relação a ele. Segue-se a firmação da coincidência as duas proibições
fundamentais do totemismo - não matar o totem e não realizar o coito com uma mulher
pertencente ao mesmo totem - com os crimes de Édipo e com o complexo nuclear das
neuroses. (Cf. Freud, 1912-13, p. 1.831)
2) A evidência da refeição totêmica:
Passando para o campo da história Freud recorre à descrição de Robertson Smith a
respeito da refeição totêmica, citando o exemplo do sacrifício de um camelo entre tribos
beduínas no deserto do Sinai, no final do século IV de nossa era. Freud apóia as teses do
autor, segundo o qual o sacrifício era um elemento fundamental da religião totêmica,
reforçando pelo seu caráter sacramental, a identidade entre os membros da tribo, o
animal e a divindade. O fundamental é que no festim totêmico reitera-se o laço
genealógico entre o clã, o animal sacrificado e o deus;

5 Sobre esta conexão entre estado de natureza e liberdade, Simmel (1964, p.65) escreve: "Se a natureza é concebida
como a existência original de nossa espécie, tanto quanto de cada indivíduo como o ponto de partida do processo
cultural (independentemente da ambigüidade de 'original ’ que pode significar 'primeiro' ou ‘essencial e básico’), o
século XVIII tentou reconectar numa síntese gigante, o final ou o topo deste processo com seu ponto de partida.”

153
Cadernos do IPUB n° 8,1997

3) A teoria da horda primitiva de Darwin, modificada por Atkinson:


Segundo Darwin, baseado nos costumes dos gorilas, o homem primitivo teria
vivido em pequenas hordas, nas quais um macho adulto e mais robusto impedia a
promiscuidade sexual possuindo várias fêmeas em seu poder, expulsando os jovens
machos na medida em que cresciam. Estes, segundo Atkinson, seriam conduzidos a
formar uma nova horda, reproduzindo a mesma proibição das relações sexuais, criando,
por conseguinte, as condições para a instituição da lei da exogamia.
Para responder às questões colocadas, Freud elabora o famoso mito do parricídio
primitivo:

“Os irmãos expulsos se reuniram um dia, mataram o pai e devoraram seu


cadáver, pondo, assim, um fim à existência da horda paterna. Unidos
empreenderam e levaram a cabo o que individualmente lhes teria sido
impossível. Pode-se supor que o que inspirou seu sentimento de superioridade
foi um progresso da civilização, talvez a aquisição de uma nova arma.
Tratando-se de selvagens canibais era natural que devorassem o cadáver. Além
disso, o violento e tirânico pai constituía seguramente o modelo invejado e
temido de cada um dos membros da associação fraternal, e, ao devorá-lo, se
identificavam com ele e se apropriavam de uma parte de sua força. A refeição
totêmica, talvez a primeira festa da humanidade, seria a reprodução
comemorativa deste ato criminoso e memorável que constituiu o ponto de
partida das organizações sociais, das restrições morais e da religião. ”
(FREUD, 1981a, p. 1.838)

Em que sentido o crime primordial é o ponto de partida da sociedade, da moral e


da religião?
Segundo Freud, é necessário admitir que a mesma ambivalência de sentimentos
característica do complexo paterno das crianças e dos neuróticos estava presente entre
os membros da horda primitiva. Estes odiavam o pai tirânico, mas ao mesmo tempo, o
amavam e admiravam. Daí, surgem o remorso pela execução do ato criminosos e a
consciência de culpabilidade, conferindo ao pai morto um poder maior do que aquele
que possuía em vida, pois os jovens machos passaram a impor a si próprios as
proibições antes vigentes, interditando a morte do totem, substituto do pai e
renunciando ao contato sexual com as mulheres do grupo. A consciência de
culpabilidade engendrou, portanto, os dois tabus fundamentais do totemismo, que
coincidem com os desejos recalcados do complexo de Edipo. Decorre daí a afirmação
de que “(...) a origem da religião, da moral, da sociedade e da arte, coincidem com o
complexo de Édipo. ” (FREUD, 1981a, p. 1.847).
A possibilidade da formação da comunidade de irmãos iguais em condição está no
assassinato do pai tirânico, dito de outro modo, encontra-se na recusa daquela instância
de poder e de dominação que antes os subjugava . A conspiração contra o pai é um
evento que sucita o sentimento de força comum e na refeição coletiva, em que ele é
devorado, consolida-se a percepção mútua da condição de igualdade por partilharem os
mesmos atributos do pai. Por outro lado, eles se sentem culpados e passam a renunciar

6 Cf. Enriquez, 1990.

154
Psicanálise, individualismo e divisão de si

ao desejo de tomar o lugar do pai para exercer a mesma onipotência.


Opera-se, assim, a passagem de um estado de natureza, onde prevalecem as
relações de força para um Estado de direito onde uma lei transcendente substitui o
arbítrio total. Pode-se dizer que, cm Freud a inserção do indivíduo na cultura tem como
modelo as teorias de formação da “societas”, próprias do individualismo moderno. A
expressão associações de homens testemunha a presença de uma concepção de
sociedade como coleção de indivíduos, que para assegurar a vida em comum renunciam
parcialmente à satisfação pulsional, ou seja, estabelecem um contrato de sujeição.
Cumpre enfatizar, para finalizarmos este tópico, que Freud desenvolve uma
concepção original desta passagem do estado de natureza para o estado de cultura
estabelecendo alguns dos axiomas fundamentais do imaginário do homem moderno
como, por exemplo, a ambivalência de sentimentos, os impulsos incestuosos e o
sentimento de culpabilidade .

DIVISÃO DE SI E INDIVIDUALISMO

No item anterior, argumentamos em favor da idéia de que a oposição entre


indivíduo e sociedade que se verifica nos textos em que Freud tematiza a inserção do
sujeito na ordem da cultura é indicadora dos vínculos entre o sujeito psicanalítico e a
configuração de valores individualista. No entanto, tal hipótese pode suscitar a seguinte
objeção: a constatação de que a oposição entre indivíduo e sociedade atravessa o texto
ffeudian não autoriza a afirmação de que este indivíduo seja concebido como um ser
autônomo, centrado em si mesmo. O sujeito freudiano está longe de ser representado
como um eu que exerce domínio sobre sua própria vontade, pois ele é descentrado,
dividido em diferentes instâncias psíquicas e determinado pelas forças do inconsciente.
O sujeito freudiano não se confunde com a representação clássica de um sujeito jurídico.
Entretanto, não é por acaso que a matriz discursiva sobre a qual se apóia Freud,
para dar conta da reflexão acerca da passagem que o indivíduo realiza da onipotência
narcísica para o estado de cultura seja a filosofia política dos séculos XVII e XVIII. É
que existem linhas de continuidade entre o sujeito jurídico do contrato social e o sujeito
dividido da psicanálise, pois é constitutivo da experiência do homem moderno, baseada
na afirmação do valor-indivíduo, o paradoxo de ser representado por um lado, como um
ser autônomo e senhor de sua vontade e, por outro, como estando permanentemente à
Q

procura de si mesmo, porque despossuído de si . Vejamos.


Segundo Gauchet e Swain (1980), este homem moderno encontra-se mergulhado
num paradoxo: ao mesmo tempo em que o indivíduo é reconhecido como possuidor de
direitos originais, inalienáveis, como senhor de si, encontra-se despossuído de si mesmo
na sua interioridade, na sua vida subjetiva. A autonomia externa é acompanhada de uma
servidão íntima:

“A emancipação social do indivíduo tem por consequência ou contrapartida


fundamentais a revelação do assujeitamento psíquico. Possuindo a si mesmo do

7 É necessário desenvolver um estudo mais aprofundado acerca da originalidade desta teoria da origem da sociedade
de Freud em relação aos modelos da filosofia política clássica, o que será realizado em um próximo trabalho.
8 Cf. Russo, 1993.

155
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

ponto de vista do outro, o homem moderno é simultaneamente sujeito que se


reencontra e se experimenta na sua própria esfera íntima como determinado
por isso que ele mesmo encontra subtraído de seu poder. A história da
individualização, pois o indivíduo não cessa de advir, de se separar, de se
confinar no seu íntimo, de se afirmar em sua auto-suficiência é de outro lado, e
necessariamente, história de uma despossessão pessoal ou de uma destituição
subjetiva. ” 9

A despeito dos dois séculos que os separam, o nascimento do sujeito da razão com
a pedagogia e a crise do sujeito com o “tratamento moral” franquearam a constituição
do que se tomou conhecido mais tarde como sujeito psíquico. A diferença entre tais
práticas reside no fato de que uma intervém sobre a razão, atributo impessoal da
individualidade; a outra, age sobre a intimidade do ‘‘eu ”.
O surgimento do asilo e do tratamento moral é o momento de instauração de uma
prática do espírito humano, em que a organização do dispositivo terapêutico, por um
lado, se orienta para a intervenção sobre os indivíduos, sobre a pessoa do alienado e, por
outro, lança mão de regras e recursos que operam sobre o indivíduo com o seu
desconhecimento, à sua revelia, como que imitando sua própria divisão.
Na história da divisão do sujeito, a loucura será a base privilegiada de retomo do
homem sobre si. O homem pode, de agora em diante, olhar-se de fora, desde um outro
lugar que não ele mesmo. A alienação mental, esse “devir outro por si mesmo”, será
reveladora de uma alteridade essencial, constitutiva da subjetividade.
Segundo os autores, é com os primeiros alienistas que surge a representação de
uma força no interior do sujeito que o determina a despeito da sua vontade.
Com efeito, Esquirol recusou duas grandes concepções clássicas a respeito das
causas da loucura. Uma delas, sustentada pela corrente somatista, era a de que a
alienação mental decorria de lesões orgânicas ou cerebrais que comprometeríam o bom
funcionamento das faculdades mentais do indivíduo. A outra, proposta pela corrente
moralista afirmava que a alienação consistia numa perturbação das associações de idéias
determinada pelas disposições imorais do sujeito, estando, portanto, ligada à intervenção
deliberada, consciente, se bem que sob uma forma pervertida, da sua vontade.
É em oposição a essa alternativa causai - fixada desde o século XVIII e que se
prolonga na psiquiatria alemã do início do século XIX - que a psiquiatria propriamente
moderna se constituiu. (Cf. Gauchet e Swain, 1980, capítulo 3 da 2~ parte)
A concepção de loucura que surge com o tratamento moral é, em certa medida,
tributária da concepção moral clássica, porém estabelece uma ruptura ao retirar a
determinação da alienação da ordem da consciência e da vontade. Se a perturbação da
capacidade reflexiva é, como na concepção clássica, abolição total do sujeito, cegueira
total do pensamento sobre si mesmo, então a alienação é incurável. Com Pinei e
Esquirol passa-se a conceber que o alienado não é atingido de forma global pela loucura,
pois existe “um resto de razão na mania”. Um tanto de razão se mantém, pois ela não é
totalmente afetada. É precisamente esta noção que sustenta o ideal de curabilidade.
Esquirol inscreve a loucura no registro das paixões, cuja exacerbaçao define seu caráter

9 Gauchet e Swain, 1980, p. 485.

156
Psicanálise, individualismo e divisão de si

patológico, determinando o indivíduo à despeito de si mesmo.


É na primeira hora da psiquiatria que se instaura a representação de uma
destituição subjetiva, de uma divisão do sujeito, cuja cartografia terá sua expressão mais
radical no inconsciente freudiano.
Tal descentramento em relação ao plano da consciência pode ser considerada uma
radicalização do individualismo ocidental. Se o indivíduo não é mais absolutamente
autônomo, perdendo a sobrania sobre si mesmo, ele passa a ser determinados por forças
que escapam ao seu controle, é verdade, mas que constituem qualidades imanentes ao
indivíduo. Estas qualidades que habitam o seu interior constituem a sua verdade.
Foucault demonstrou como na história do ocidente, no limiar da modernidade,
surgiu uma reflexão antropológica sobre o homem nas suas relações com a loucura e a
verdade, na qual o conhecimento da verdade do homem passa pelo homem alienado10. O
conhecimento objetivo do homem, representado pela psicologia, teve como fundamento
o acesso à verdade do homem alienado. A positividade do saber psicológico se apóia,
portanto, na negatividade do patológico: “Deixemos que a linguagem siga o seu
caminho: o homo psychologicus é um descendente do homo mente captus. ”H
Sabe-se que muito cedo os resultados da investigação psicanalítica deixaram de se
referir exclusivamente às manifestações psicopatológicas e passaram a desempenhar um
papel fundamental na compreensão da vida psíquica normal. A clínica das neuroses
colocaram as bases para a construção de uma teoria do aparelho psíquico aplicável a
fenômenos os mais cotidianos como o sonho, os atos falhos, os chistes12. Se esta
passagem foi possível é porque já era constitutivo da experência do sujeito moderno a
definição da verdade do seu ser a partir da verdade do louco.
Mas isso não é tudo, pois uma transformação decisiva se realiza no momento em
que a loucura não implica mais um certo relacionamento com a verdade, mas uma
relação do homem com a sua verdade'. “(...) o ser humano não se caracteriza por um
certo relacionamento com a verdade, mas detém, como pertencente a ele de fato,
simultaneamente ofertada e ocultada, uma verdade. ” 13
Segundo Foucault, a loucura passa a sustentar uma linguagem antropológica
sobre a verdade do homem e sobre a perda dessa verdade. No campo literário, por
exemplo, no século XIX, sob a égide do Romantismo, surge um discurso louco dotado
do poder de revelar uma verdade acerca do homem, de sua subjetividade, de sua
individualidade14:

“Para além do longo silêncio clássico, a loucura encontra assim sua


linguagem. Mas uma linguagem com significações bem diferentes; ela esqueceu
os velhos discursos trágicos da Renascença onde se falava do dilaceramento do
mundo, do fim dos tempos, do homem devorado pela animalidade. Ela renasce,
essa linguagem da loucura, mas como uma explosão lírica: descoberta de que

10 Cf. Foucault, 1991, cap. 14.


11 Op. cit., p. 522.
12 No Esboço de Psicanálise Freud lembra que com A Interpretação dos Sonhos a psicanálise deixa de ser apenas
uma terapia das neuroses e passa a ser também uma nova psicologia (Freud, 1980, p. 2.735).
13 Foucault, op. cit., p. 522.
14 Foucault, op. cit., p. 510.

157
Cadernos do IPUB n°8, 1997

no homem o interior é também exterior, de que o ponto extremo da


subjetividade se identifica com o fascínio imediato do objeto, de que todo fim
está votado à obstinação do retorno. Linguagem na qual não mais
transparecem as figuras invisíveis do mundo, mas as verdades secretas do
homem. ”15

A passagem, descrita por Gauchet e Swain, da concepção moral da desrazão


clássica para a concepção de um sujeito dividido no alienismo ilustra um dos
deslocamentos fundamentais realizados na cultura ocidental: a uma estrutura
antropológica binária - onde se opõe verdade e erro, Dia e Noite - é substituída por uma
estrutura de três termos - onde se conjugam o homem, sua loucura e sua verdade.
Ao que parece algumas forças que foram decisivas para a consolidação do
individualismo moderno, em particular no que se refere à busca de uma verdade interior
já estavam operando no século XVHL
Por um lado, a Reforma protestante, que, nos termos de Dumont (1991),
representa a primeira ofensiva do individualismo e mais especificamente dos valores
associados à figura do indivíduo-no-mundo. Na Alemanha, este movimento difundiu,
através do “pietismo”, um individualismo interiorizado associado ao sentimento de
pertencimento a uma comunidade global, formando assim uma combinação específica,
regional, entre individualismo e holismo em oposição ao universalismo predominante na
cultura francesa. Por outro lado, o Iluminismo e a Revolução Francesa, constituiríam a
segunda onda individualista, atingindo o campo sócio-político, onde predomina uma
concerpção jurídico-política de indivíduo.
Dumont afirma que a Reforma imunizou a Alemanha contra a revolução, pelo
desenvolvimento de um individualismo religioso16, limitado ao homem interior, que se
afirmará no ideal da “Bildung” ou “educação-de-si-mesmo”^. Forma-se aí uma
concepção de indivíduo bastante peculiar, posto que realiza uma combinação específica
entre holismo e individualismo: o auto-cultivo, a busca da própria interioridade só ganha
sentido na medida em que o sujeito se define por seu pertencimento a uma cultura
singular, ou seja, enquanto é parte de um todo.

15 Op. cit., p. 511.


16 Dumont (1991, p. 41) afirma que: "A marca profunda deixada nos espíritos alemães pela reforma luterana tanto
determinou como forneceu, digamos, o operador pelo qual os elementos externos e institucionais do Iluminismo e
da Revolução puederam ser interiorizados: os pensadores alemães forneceram no plano das representações aquilo
que outros povos fizeram no plano histórico.

17 Cf. Dumont, 1991, p. 35. Norbert Elias (1994, cap. 1) descreve esta afirmação da especificidade da cultura alemã
ao analisar a gênese social dos conceitos de cultura e civilização. A oposição, na cultura alemã do século XVIII,
entre Kultur - ou as realizações intelectuais artísticas e religiosas de um povo - e Zivilisation - aparência externa dos
seres humanos - expressava um contraste social entre a intelligentsia alemã de classe média e a etiqueta da classe
cortesã. Os jovens intelectuais de classe média opunham à superficialidade cerimoniosa eàs conversas formais da
corte os idéias de profundidade de sentimento e o desenvolvimento da pesonalidade individual. Com a Revolução
Francesa, os conceitos de civilizado e civilização passam a estar mais ligados à imagem do francês, fazendo com que
aquela oposição passe a expressar uma antítese nacional.

158
Psicanálise, individualismo e divisão de si

CONCLUSÃO

Afirmar que a psicanálise possui uma concepção de sujeito própria da


configuração de valores individualista não significa supor que ela tem por objeto um
indivíduo autônomo, unificado, centrado em si mesmo, mas que ela implica uma
concepção de pessoa diferente daquela que predomina em sociedades holistas, no
sentido de Dumont.
E próprio de uma cultura holista que o indivíduo se defina a partir da posição que
ele ocupa no todo social, sendo esta posição pré-definida em função de valores
transcendentes. A identidade de um indivíduo, bem como o significado de suas
experiências nunca são definidas por qualidades a ele intrínsecas.
Ao contrário, na configuração de valores individualista, marcada pela negação de
toda transcendência, a identidade de cada um é constituída por suas propriedades
imanentes. As partes se revestem da condição de totalidades isoladas, podendo-se
definir nos seus próprios termos. A psicanálise, assim como outras ciências do
indivíduo, puderam se constituir numa sociedade em que o indivíduo se define por
qualidades que são imanentes a ele. A verdade sobre si mesmo o habita; encontra-se
interiorizada.
Ainiciativa de relativização histórico-cultural da psicanálise não desqualifica, em
absoluto, sua importância teórica, tampouco desfaz a originalidade da empresa
freudiana. Esta produziu um saber, cuja positividade constitui, para usar uma expressão
de Félix Guattari, uma das principais "cartografias” do sujeito moderno. Reconhecer,
não apenas seus antecedentes teóricos, mas também as bases culturais sobre as quais ela
se erigiu pode nos provisionar de instrumentos de grande potencial heurístico para a
compreensão dos dilemas do sujeito moderno.
Talvez seja possível vislumbrar também uma consequência prática desta proposta
analítica, considerando-se que a identificação dos principais traços da concepção
moderna de pessoa talvez possa, subsidiar a reflexão sobre os impasses e as
possibilidades existentes no exercício da psicanálise em contextos culturais distintos
daqueles que habitualmente abrigam esta prática. Como desdobramento da progressiva
universalização dos sistemas de saúde nacionais e das transformações dos dispositivos
assistenciais em saúde mental, têm-se observado uma crescente oferta de tratamento
psicoterápico a setores populacionais que antes não freqüentavam os consultórios,
notadamente os membros das classes populares. Os impasses que tem sido apontados
em relação ao atendimento psicoterápico dirigido a estes grupos, indicam a importância
de aprofundar esta questão.

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160
DA PSICOLOGIA APLICADA À INSTITUCIONALIZAÇÃO
UNIVERSITÁRIA: A REGULAMENTAÇÃO DA PSICOLOGIA
ENQUANTO PROFISSÃO*

Deise Mancebo *

INTRODUÇÃO

Desde o início do século passado, as práticas psicológicas já eram exercidas no


país, dentre estas também o ensino de “psychologia”. As primeiras Faculdades de
Medicina, fundadas no Rio de Janeiro e em Salvador no século XIX, já apresentavam
em seus currículos os conhecimentos psicológicos.
Desde o começo do século, a disciplina foi ensinada dentro de cadeiras de
Filosofia das escolas secundárias, em especial, nas escolas normais, espaço no qual a
Psicologia Pedagógica tem o seu primeiro desenvolvimento.
As primeiras tentativas de organizar um aprendizado específico de Psicologia no
Rio de Janeiro ocorreram a partir de experiências do Laboratório de Psicologia da
Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro, fundado em 1923, por Gustavo Riedel.
Na época, uma série de embriões de laboratórios de pesquisa surgiram no Rio de
Janeiro, especialmente ligados a trabalhos com doentes mentais ou a escolas normais,
mas nenhum deles teve sua vinculação com a formação. No entanto, o Laboratório de
Psicologia da Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro, sob a direção de Waclaw
Radecki, a partir de 1924, tem suas atividades ampliadas para pesquisas e cursos de
especialização. Sua produção não se restringiu às pesquisas experimentais. Na verdade,
pouco se conseguiu produzir neste campo. Trabalhos teóricos, trabalhos de natureza
clínica e de Psicologia Aplicada ocorreram em maior quantidade do que a expressão
“laboratório” podería sugerir e, na condição de centro didático, temática de maior
interesse para este trabalho, os colaboradores do Laboratório ministraram uma série de
cursos, na sua maioria para um público médico.(Penna, 1992)1
As experiências citadas, de forma sintética, anteriormente, bem exemplificam a

Este trabalho apresenta parte dos resultados de uma pesquisa intitulada “História dos Cursos de Psicologia no Rio
de Janeiro (1956/1978): a Cultura Psicológica nas Instituições de Ensino Superior”. Participaram do levantamento de
dados desta pesquisa os seguintes alunos: Gildete Silva e Margarete Dias, bolsistas de iniciação científica da
FAPERJ, Isabela Silva Vieira e Daniela Carvalho da Silva Fontes, bolsistas de iniciação científica da UERJ, Leandro
Vieira Osuna, bolsista do CNPq/Pibic, Eduardo Ceschin Rieche, estagiário de pesquisa e Alexandre Teixeira dos
Santos, mestrando do Instituto de Psicologia/UERJ
” Doutora em Educação; Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ.
1 Em 1932, este laboratório é novamente transformado, pelo Decreto Lei n° 21173, em Instituto de Psicologia da
Secretaria de Estado de Educação e Saúde Pública, onde deveria ter funcionado o primeiro curso de Psicologia. No
entanto, supostamente por problemas financeiros, sobrevive, nestas condições poucos meses, sendo incorporado em
junho de 1937, através da Lei n° 452, à então Universidade do Brasil, como Instituto de Psicologia da Universidade
do Brasil. Na Universidade do Brasil, já existia um Departamento de Psicologia da Faculdade Nacional de Filosofia e
a incorporação do antigo laboratório criou uma situação dupla da Psicologia nesta Universidade, situação
insustentável legalmente, mas que é protelada até 1948, quando os dois órgãos continuam a existir, mas com um
único diretor. A fusão propriamente, só ocorre em 1964.
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

fase dos solitários pioneiros da Psicologia, no Rio de Janeiro. Com a criação das
primeiras Universidades, tem início uma nova etapa mais orgânica da história do ensino
de Psicologia nesta região do país. Nas Universidades, os cursos ganham em
organicidade e continuidade, além da estrutura universitária possibilitar uma maior
aproximação de teóricos e pesquisadores interessados na disciplina psicológica.
No entanto, apesar destas facilidades institucionais, o ensino da Psicologia
permaneceu, até a regulamentação da profissão, organizado no âmbito de diversas áreas
do conhecimento, Filosofia, Direito, Medicina, Serviço Social, Economia, Educação
Física, Pedagogia e Teologia e era com este formato fragmentado e “adaptado” a outros
saberes que se repassava e construía o pensamento psicológico entre nós.
A regulamentação da profissão, em 1962, foi portanto, um marco para a
construção dos saberes psicológicos, enquanto disciplina independente, no Brasil. Este
trabalho propõe-se à análise deste momento, na história da Psicologia, tomando por
base, a experiência do Rio de Janeiro. Para tal, pretende-se analisar, primeiramente, o
crescimento das práticas psicotécnicas, a partir dos anos 30 e a contribuição que esta
Psicologia Aplicada teve no desenlace da regulamentação da profissão; depois, discutir
o próprio ato legal que instituiu a Psicologia como profissão e os seus cursos de
formação; para finalmente, apresentar as principais dificuldades e soluções encontradas,
nos primeiros anos, pela novel corporação.

A PSICOLOGIA APLICADA E SUA INSTITUCIONALIZAÇÃO NO ISOP

A maior parte da historiografia referente à Psicologia tem dado ênfase ao


desenvolvimento dos chamados sistemas psicológicos contemporâneos (o
estruturalismo, o funcionalismo, o behaviorismo, o gestaltismo e a psicanálise) cujas
hipóteses teóricas centrais foram apresentadas até o início deste século.
A Psicologia Aplicada, sob forte embasamento funcionalista, tem sido quase que
assepticamente ignorada pela maioria dos autores de ensaios de história da Psicologia.
No entanto, é preciso recordar que o movimento que pretendia oferecer à Psicologia
uma alternativa científica, de pesquisa psicofísiológica, iniciado por Wundt, no século
XIX, em Leipzig, desaguaria em uma versão aplicada, no século XX, em especial nos
Estados Unidos. (Geniviève, 1992)
A Psicologia Aplicada, voltada esquematicamente para a educação, o trabalho, o
ajustamento do indivíduo em suas relações com outros sujeitos, consigo mesmo e na
sociedade, desenvolve-se, então, neste século, estruturando-se em três grandes campos -
Psicologia Escolar ou Educacional; Psicologia do Trabalho e Psicologia Clínica - aos
quais até recentemente limitou-se. A aplicação da Psicologia encontrava desafios
concretos propostos nestas áreas e pragmaticamente os respondia com a criação de
técnicas que facilitassem o diagnóstico e a intervenção do psicólogo.
No Brasil, o início das atividades dos psicologistas ou psicotécnicos deu-se
posteriormente ao assistido nos países desenvolvidos. Surgem no país, em período
muito significativo em termos de mudanças ao nível econômico, social, político,
desencadeadas pela revolução de 30.
A partir de 30, o país praticamente inicia o seu processo de industrialização e
passa a absorver, tanto no âmbito público quanto de empresas privadas, certas idéias em

162
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária

voga nos países desenvolvidos, e que tinham na organização racional do trabalho uma
de suas principais bandeiras. Parcela do empresariado e elementos dentro do Estado
viam no projeto de otimização do trabalho, assim como na eficientização do processo
educacional uma possibilidade de atender a parcela significativa dos problemas
referentes à força de trabalho.
Em decorrência inicia-se um certo mercado ou demanda por profissionais que
pudessem avaliar as características dos indivíduos, otimizá-las e ajustá-las. Havia uma
preocupação crescente com o fator humano, não só quanto ao seu aprimoramento
técnico, como quanto ao desenvolvimento de suas aptidões. A expectativa era tomar a
produção mais eficiente: conseguir os homens mais adequados para os postos, ou
encaminhá-los desde cedo para seus devidos lugares no aparelho escolar. O profissional
que surge nestes primeiros anos, no campo “psi”, era chamado de psicotécnico, sendo
arregimentado principalmente entre médicos, engenheiros e militares.
Lourenço Filho (1995), defensor da Psicologia Aplicada, era explícito: a
Psicologia fornecería os instrumentos teóricos e metodológicos para a organização da
sociedade e, em particular, para as atividades educativas e do trabalho, que passam a ser
entendidas no quadro mais amplo da manipulação técnica da sociedade (p. 149).
Deste modo, não foi propriamente do crescimento das experiências de pesquisa e
ensino, universitários ou não, que a Psicologia desenvolve-se e cria raízes, a ponto de
ser regulamentada. As experiências desenvolvidas no campo da Psicologia Aplicada,
fora dos ambientes formais de ensino, parecem ter dado uma maior contribuição para a
autonomização legal dos saberes psicológicos.
Desenvolvimento semelhante pode ser observado na prática clínica. Nesta, a
experiência psicológica também desenvolveu-se, fora dos muros universitários, nos
espaços dos consultórios e em grupos organizados para a discussão clínica, em especial
a psicanalítica2. Conforme Luís Cláudio Figueiredo (1995):

“As investigações naturalistas do psiquismo (...) quase sempre foram


desenvolvidas dentro dos muros dos Institutos de Pesquisa e das Universidades
e, por isso, sempre aí estiveram em casa. (As investigações clínicas), ao
contrário, quase sempre, se originaram em outros lugares - nos contextos
práticos de atendimento - e somente a duras penas foram ingressando nos
ambientes universitários. ” (p. 65)

Desde a sua gênese, portanto, parece ter existido uma certa divisão de tarefas, na
qual à Universidade cabia a reprodução teórica do saber psicológico, ficando para os
psicotécnicos a construção da prática “psi”, respondendo às demandas concretas de
ajustamento do homem a novas ordens sociais.
No Rio de Janeiro, o grande impulso aos psicotécnicos, ocorre ao fim da 2a Guerra
Mundial. A vinda de Mira y López, em 1945, representou um marco neste sentido; sua
preocupação eminentemente prática em oferecer serviços do tipo orientação profissional

2 Estes grupos organizados de discussão, posteriormente evoluíram para a criação das Sociedades de Psicanálise,
espaço de formação por excelência. Sobre este desenvolvimento vide: FIGUEIREDO, A.C.C. Estratégias de difusão
do movimento psicanalítico no Rio de janeiro -1970/1983; Dissertação de Mestrado; Departamento de Psicologia da
PUC-RJ; 1984 e SAGAWA, R.Y. Os inconscientes no divã da História; Dissertação de Mestrado; UNICAMP; 1989.

163
Cadernos do IPUB n°8,1997

e seleção foi viabilizada através de um curso ministrado pelo próprio Mira, na Fundação
Getúlio Vargas, neste ano.
A FGV, recém criada - em 20 de dezembro de 1944 - tinha por finalidade dedicar-
se aos estudos e pesquisas que pudessem contribuir para maior eficiência da
administração brasileira. Conforme o idealizador e primeiro presidente da FGV, Luís
Simões Lopes (1969), referindo-se à criação da instituição:

“Ao analisar as atividades da FGV, o observador descobre, com efeito, que


elas estão afinadas para tornar o processo administrativo mais racional, o
trabalho das entidades públicas e particulares mais produtivo, o trabalhador
mais competente do ponto de vista profissional, e mais ajustado do ponto de
vista psicológico. Eis porque, interessada no avanço das Ciências Sociais em
geral, a FGV empenha-se mais a fundo no ensino e pesquisa da Administração
Pública e Empresarial, da Economia e da Psicologia Aplicada. Mantendo um
laboratório de Psicologia Aplicada, acredita a Fundação estar concorrendo
para difundir conhecimentos e práticas, que tornem judiciosas as escolhas de
profissões e ajustados os trabalhadores na produção, na empresa, no serviço
público, no grupo social e na comunidade a que pertençam. ” (p. 6)

Portanto, desde a fundação da FGV, havia uma clara definição quanto à ajuda que
a Psicologia poderia oferecer para o alcance dos seus objetivos institucionais. De fato,
ao curso ministrado por Mira y López seguiu-se o convite, para organizar, na Fundação
Getúlio Vargas, o Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP).
Mira y López esteve à frente do ISOP, de sua criação em março de 1947, até a sua
morte, em 1964. Na sua gestão o ISOP tomou-se um laboratório, uma escola e um
centro de implantação e difusão da Psicologia, de suas aplicações e derivações
tecnológicas. Manteve permanente contato com a comunidade científica e a sociedade,
visando oferecer através de seu trabalho uma resposta à constante e crescente demanda
de conhecimentos e práticas psicológicas.
Mira y López deixou uma vasta obra e, a par do seu ecletismo, pode-se perceber
uma intenção na sua produção escrita: a produção de trabalhos de divulgação científica,
voltados para um público maior, com forte finalidade didática. Seus livros “ensinam”
aos pais a educar seus filhos; aos idosos, como viver em sua velhice; aos alunos, a como
se adaptarem melhor. (Rosas, 1995).
A partir de setembro de 1949, com a criação dos Arquivos Brasileiros de
Psicotécnica, passou o ISOP a contar com um veículo para publicar com regularidade o
produto de seus estudos. Foi a primeira publicação periódica brasileira especificamente
de Psicologia e com circulação que, desde os números iniciais, procurou alcançar todos
os centros onde a Psicologia era praticada no país.
tm síntese,
Em uauauxv desenvolvido pelo ISOP
simesc, ou trabalho peio seu idealizador e diretor
lovr ec pelo
incrementou o interesse metodológico pela aplicação da Psicologia, auxiliando aos
psicotécnicos a elaborarem soluções práticas, eficazes e úteis de ajustamento dos
homens aos problemas advindos de uma sociedade em vias de modernização

164
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária

PSICOLOGIA TEÓRICA X PSICOLOGIA APLICADA: EMBATE NA


CRIAÇÃO DOS PRIMEIROS CURSOS

Os primeiros cursos estruturados em Psicologia, criados no Rio de Janeiro,


ocorreram na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), em 1953, e
no Instituto de Psicologia da atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, então
Universidade do Brasil, em 1964. Em ambos os casos, existiam sérias tensões com as
experiências desenvolvidas no ISOP.
O ISOP tinha verbas à disposição, maior autonomia do que as Universidades e
Mira y López, homem dinâmico, de forte atração pessoal, bem aproveitava estas
condições para “formar” os psicotécnicos, através dos cursos oferecidos na FGV. À
revelia das Universidades, ele começava a “formar” e treinar estes profissionais, pois era
uma necessidade para o desenvolvimento de seu próprio serviço. O ISOP pelos seus
trabalhos e cursos tomava-se conhecido e popular, principalmente junto à classe média.
Lá era, até certo ponto, reproduzido um clima universitário em termos de discussão e
estudo, em especial quando se tratava do contato com a prática. Possuía uma publicação
periódica, promovia discussões de casos, idas a congressos e a organização dos mesmos
no Rio de Janeiro. Construía um clima de debate e de produção de conhecimentos, à
semelhança de uma instituição de ensino superior, com a vantagem de conseguir, em
função do pragmatismo adotado, uma penetração razoável das discussões sobre
Psicologia, na sociedade carioca.
Ao mesmo tempo, a formação que o ISOP proporcionava denunciava o
afastamento teoria-prática existente nas Universidades, pois, no Instituto, apesar dos
aspectos teóricos não serem priorizados, os profissionais se percebiam equipados com
técnicas e instrumentados para a ação.
As Universidades, ao contrário, não tinham verbas nem condições institucionais
de desenvolver o trabalho realizado na Fundação. Ofereciam cursos de Psicologia
vinculados a outros Departamentos, em especial, sob bases teóricas filosóficas, no
entanto, estes cursos não respondiam às demandas sociais, em relação às práticas
psicológicas: as demandas por diagnósticos, testagens, seleções, orientações
profissionais, dentre outras.
Neste contexto, a movimentação desencadeada a partir do ISOP é percebida como
uma ameaça pela Universidade, que se mostrava afastada da prática, e
conseqüentemente distante de uma resposta à demanda que se colocava para a
Psicologia. Duas Universidades, em especial, reagiam à dinâmica provocada nos meios
“psi”, pelo ISOP: a PUC-RJ e a atual UFRJ.
Na UFRJ, a direção do Instituto de Psicologia, desde 1948, encontrava-se sob a
responsabilidade do professor Nilton Campos, que acumulava esta função com o cargo

3 Outros dois cursos surgiram nesta mesma época: o da atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
então Universidade do Estado da Guanabara (UEG), criado em 1964, sob a forma de bacharelado, sendo ampliado
para a formação de psicólogos, em 1967, e o da Universidade Gama Filho (UGF), que teve a entrada de sua primeira
turma em 1967. Optei por não incluí-los neste texto, pelo fato de não terem se constituído numa referência, àquela
época, para as disputas e embates travados no campo “psi”, discutidos neste artigo.

165
Cademos do IPUB n°8, 1997

de catedrático de Psicologia da Faculdade Nacional de Filosofia. Era, portanto, uma


personalidade central no campo “psi” desta instituição e suas idéias, a respeito da
Psicologia, chocavam-se frontalmente com o trabalho desenvolvido no ISOP. Para ele,
o sentido mais especulativo e reflexivo da Psicologia deveria prevalecer sobre a parte
experimental e prática. Conforme depoimento do Professor Schneider (1992):

“(O professor Mira y López) me nomeou para o ISOP na esperança de manter


um contato com a Universidade e aproximar-se do professor Nilton Campos.
Mira y López, justiça seja feita, era um grande organizador e realizador,
produtivo, apressado, dava muitas aulas e conferências, escrevia - era
brilhante! Mas o professor Nilton Campos tinha uma prevenção contra ele e
não aceitou a mão estendida. (...) Mira y López era homem da Psicologia
Aplicada e Nilton Campos, ironicamente, dizia que ele se cercava de
“mirotécnicas” - porque recrutava pessoal da área da Educação com uma
liberdade muito grande (...) O ISOP fazia Psicologia Aplicada e o Instituto de
Psicologiafazia Psicologia Teórica. ” (p. 145)

Nilton Campos receava ainda a popularização da Psicologia, que desrespeitasse


um modelo científico, entendido aqui como aquele que se aproximasse das ciências
naturais: posicionava-se, a um só tempo, contra muitas práticas dos psicotécnicos e
também contra o exercício da psicoterapia pelo psicólogo. Conforme suas próprias
palavras:

“Começaram a surgir os falsos psicologistas, com conhecimentos


autodidáticos, ou então, supostamente adquiridos em palestras de divulgação,
onde se obtém certificados sem nenhuma validade científica para fins
profissionais. Reveste-se porém de especial gravidade o exercício da prática
terapêutica por alguns mais audaciosos, constituindo uma séria violação legal
e moral. Na verdade, é inadmissível permitir-se tal prática sem prévia
formação universitária profissional, e sem obediência a indeclináveis
imposições de ordem ética. ” (Campos, 1957, p.l)

Sua visão muito afastada da prática entrava freqüentemente em choque, com a de


Mira y López, cuja preocupação era exatamente divulgar, tomar conhecida, provocar o
interesse pelas técnicas psicológicas e atender às demandas aí geradas.
Na PUC-RJ, Hans Lippman, professor atuante de Psicologia em vários cursos
desta instituição, mantinha perfeita consonância com as idéias do Prof. Nilton Campos.
A ele é atribuída a fundação do primeiro curso de Psicologia no Brasil, o Instituto de
Psicologia Aplicada (IPA), com funcionamento na Santa Casa da Misericórdia, a partir
de 1953, mas filiado à Pontifícia Universidade Católica4.
Conforme Langenbach (1982-b):

“0 surgimento do curso de Psicologia da PUC, em 1953, pareceu se relacionar

4A partir de 1957, este curso passa a funcionar na própria PUC-RJ, sob a coordenação do Padre Benkõ.

166
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária

com uma tentativa de valorizar a formação universitária, desbancando de certo


modo instituições paralelas, das quais o ISOP era a mais representativa, e que
implicavam uma certa ameaça para a Universidade. ” (p. 8)

O Instituto de Psicologia Aplicada da PUC surge, portanto, dentre outros motivos,


como uma alternativa ao ISOP, para de certo modo “esvaziar” o poder crescente da
formação paralela oferecida por esta última instituição. Atribui-se à maior autonomia
universitária da PUC-RJ, o fato dela ter sediado esta iniciativa. Na Universidade do
Brasil (atual UFRJ), apesar das divergências em relação às práticas desenvolvidas no
ISOP atingirem um maior grau de intensidade, polarizadas na figura do Prof. Nilton
Campos, tal iniciativa só pôde ser tomada após a regulamentação da profissão.

REGULAMENTAÇÃO DA PROFISSÃO E DOS CURSOS DE PSICOLOGIA: A


VITÓRIA DOS PSICOTÉCNICOS

Na década de 50, a presença do psicotécnico era bastante significativa no âmbito


dos serviços estatais e paraestatais, já havia sido construído todo um clima para a
regulamentação da profissão e parcelas médias da sociedade demandavam os serviços
do psicólogo. Na expressão de Rosas (1995):

“ O crescente número de “gabinetes”, “serviços”, “clínicas” ou “institutos” de


Psicologia Aplicada, vinculados ao poder público ou em funcionamento por
iniciativas particulares, existentes no Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Porto
Alegre e outros locais, impunha a edição de instrumento legal que instituísse a
criação de cursos de Psicologia. De outra parte, acompanhando a “tradição ”
corporativa vigente no país a partir de Getúlio Vargas, impunha-se,
igualmente, a regulamentação da profissão de psicólogo. Os cursos do ISOP
eram importantes, mas não bastavam. ” (p. 105)

Faltava a base legal para o exercício autônomo da profissão e a ausência de


legislação própria, para a regulamentação dos cursos de formação, traziam impasses ao
crescimento da Psicologia como disciplina autônoma e ao psicólogo enquanto
profissional liberal. Assim, iniciativas no sentido de removê-los são tomadas.
Trabalharam nesta direção, sobremodo a partir da segunda metade dos anos 50,
além do ISOP, dó SENAI e do SENAC, segmentos do Instituto de Psicologia da
Universidade do Brasil, do Instituto de Psicologia Aplicada da PUC-RJ e organizações
profissionais ou acadêmicas concernentes à Psicologia?
O primeiro anteprojeto de lei sobre a formação e regulamentação da profissão foi
criado pelo ISOP, em 1953, em conjunto com a então denominada Associação Brasileira
de Psicotécnica, da qual Mira y López era secretário geral. (Pessotti, 1975, p.12).

5 Dentre as organizações participantes deste movimento, pode-se citar: a Sociedade de Psicologia de São Paulo, a
mais antiga, criada em 9 de novembro de 1945; a Associação Brasileira de Psicotécnica, instalada em 2 de dezembro
de 1949, desde abril de 1959, denominada Associação Brasileira de Psicologia Aplicada; a Associação Brasileira de
Psicólogos, fundada cm 10 de outubro de 1954 e a Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul, com atividades
iniciadas em 1959.

167
Cadernos do IPUB n°8, 1997

Este anteprojeto, enviado posteriormente ao Ministro da Educação, propunha dois


tipos de formação: a de bacharel e a licença. Esta última comportaria três tipos de
especializações, todas fundamentalmente práticas, conforme a tradição das instituições
idealizadoras: a psicotécnica da educação, a psicotécnica do trabalho e a psicotécnica do
ajustamento clínico.
O parecer da Comissão de Ensino Superior, datado de 1958, da qual Lourenço
Filho era relator, diferia substancialmente do anteprojeto elaborado pelo ISOP e pela
ABP. Como já citado, Lourenço Filho era um fervoroso defensor da Psicologia
Aplicada. No entanto, regulamentar as práticas psicológicas significava retirar parcela
importante das atividades de outros profissionais, em especial, dos médicos psiquiatras e
dos educadores e, neste aspecto, a posição de Lourenço Filho distanciava-se dos
psicotécnicos. Deste modo, seu parecer em relação ao anteprojeto da ABP e do ISOP era
claro: concordava com a regulamentação da nova profissão “em face do
desenvolvimento de gabinetes e centros de aplicação psicológica, em escolas, empresas
comerciais e industriais e serviços abertos ao público” (Lourenço Filho, 1958, p. 2); mas
discordava quanto ao tipo de formação, extensão e orientação geral, dadas à nova
profissão, no interior do primeiro projeto, preservando, assim, os interesses das outras
duas corporações.
Os pontos capitais deste segundo anteprojeto eram os seguintes: (1) a formação
far-se-ia em Faculdades de Filosofia, em dois cursos sucessivos, um de bacharelado,
com três anos de extensão, e outro de licença em Psicologia, com duração de dois anos;
(2) o curso de bacharelado era único e exigia o curso secundário completo como
requisito para o ingresso; (3) para a matrícula no curso de licença exigir-se-ia o diploma
de bacharelado; (4) o curso de licença comportaria duas modalidades: a de pesquisa e
ensino e a de aplicação; (5) os cursos de formação de psicologistas só poderíam ser
autorizados em Faculdades de Filosofia que já mantivessem em regime de
reconhecimento os cursos de Filosofia e Pedagogia, e que organizassem um Instituto de
Psicologia, com serviços de aplicação à educação e ao trabalho, abertos ao público,
gratuitos ou remunerados; (6) os cursos de formação poderíam abranger serviços de
Psicologia Clínica, desde que sob a direção de médico psiquiatra devidamente
habilitado; (7) o diploma de bacharel em Psicologia habilitava o portador ao exercício
da profissão de psicologista na categoria de auxiliar, em serviços de Psicologia oficiais
ou privados, após o registro do título no Ministério da Educação; (8) o diploma de
licença, na modalidade ensino e pesquisa, habilitava o portador ao ensino da Psicologia
e Filosofia em escolas de ensino médio, bem como, após estágio prático de 4 meses, em
serviços de orientação educacional; por fim, (9) os diplomas de licença numa e noutra
modalidade, habilitavam os portadores a organizar e dirigir órgãos voltados à Psicologia
Aplicada, no entanto, não poderíam os licenciados, dirigir, serviços de Psicologia
Clínica, embora pudessem neles trabalhar, quando sob a direção de médico devidamente
capacitado.
O teor deste parecer de Lourenço Filho desagradou aos psicotécnicos e bem
demonstra a luta travada, pela regulamentação da profissão. O grande obstáculo era o
enffentamento com a corporação médica, em relação à prática clínica. Conforme
Velloso (1982):

“Provavelmente, foi a clínica a grande responsável pelos entraves ao


reconhecimento legal da profissão de psicólogo. Os esforços iniciais, nesse

168
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária

sentido, das associações culturais de Psicologia - sobretudo as do Rio e de São


Paulo - foram obstaculizados durante mais de dez anos. Os anteprojetos de lei,
nos quais se empenharam pessoalmente Mira y López (...) nem chegavam ao
Congresso, eram ‘vetados ’ antes. A esses anteprojetos se impunham restrições,
tornando-se condição essencial para sua aprovação a limitação da atividade
do psicólogo à psicometria e a uma posição subalterna. As atividades clínicas
eram sumariamente condenadas. (...) Francamente hostilizados eram os cursos
que - admitindo alunos sem formação médica - incluíssem o estudo, ainda que
superficial, de técnicas psicoterápicas. ” (p. 23)

De duas associações de São Paulo surgiu, por fim, um substitutivo que foi o
aproveitado para a regulamentação. Este se colocava também claramente a favor das três
especialidades, aproximando-se do anteprojeto da Associação Brasileira de
Psicotécnica. Ligada à especialidade clínica, o “ajustamento” tomou-se uma atribuição
do psicólogo e, deste modo, o caminho para as práticas clínicas também estava
legalmente aberto a este profissional.
A promulgação da Lei 4119 de 27 de agosto de 1962, pelo Presidente João
Goulart, constituiu-se no primeiro diploma legal específico sobre os cursos de formação
de psicólogos. Seguiu-se a este expediente, ato do Conselho Federal de Educação que,
através do Parecer n° 403 de 1962, fixou o currículo mínimo e a duração do curso de
Psicologia, com vigência a partir do ano seguinte. Portanto, a regulamentação da
profissão ocorre através do mesmo ato legal que normatiza os cursos de Psicologia.
A nova Lei determinava, logo no seu Artigo Io: “a formação em Psicologia far-se-
á nas Faculdades de Filosofia, em cursos de bacharelado, licenciado e psicólogo”,
passando a ser “obrigatório o registro dos diplomas no órgão competente do Ministério
da Educação e Cultura” (Artigo 10) para o exercício profissional. A este novo
profissional foram atribuídas as seguintes funções privativas: “a ) diagnóstico
psicológico, b) orientação e seleção profissional, c ) orientação psicopedagógica e d )
solução de problemas de ajustamento”. (Art.13 Parágrafo Io).
Além de regulamentar a profissão e a criação dos cursos para formação de
psicólogos, a nova legislação permitia aos portadores de diplomas ou certificados de
especialista em Psicologia, Psicologia Educacional, Psicologia Clínica e Psicologia
Aplicada ao Trabalho, o direito ao registro daqueles títulos (Art.19) num prazo de 180
dias. Permitiu, assim, o registro de psicólogo aos psicotécnicos, que já vinham
exercendo a profissão ou tinham exercido por mais de cinco anos, atividades
profissionais de Psicologia Aplicada, na data da publicação da Lei (artigo 21).
O Decreto n° 53.464 de 21 de janeiro de 1964, que regulamentou a Lei 4119/62,
explicita mais detalhadamente e amplia o universo dos que poderíam requerer o registro:
militares e funcionários públicos efetivos que estivessem exercendo o cargo, as pessoas
que já tivessem exercido por mais de cinco anos atividades profissionais de Psicologia,
os possuidores do diploma de Doutor em Psicologia, em Psicologia Educacional, bem
como os Doutores em Filosofia, em Educação ou em Pedagogia que tivessem defendido
tese sobre assunto concernente à Psicologia (Artigo 2o). Houve, portanto, uma vitória
dos psicotécnicos atuantes em diversas áreas, que através dos registros no MEC,

169
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

puderam legalizar sua vida profissional .6


Na realidade, aos profissionais da Psicologia Aplicada pode-se atribuir a
responsabilidade maior por este ato. Com suas práticas, difundiram a profissão,
divulgaram-na, construíram o clima necessário à regulamentação da Psicologia,
imprimiram sua marca na Lei e venceram as resistências universitárias, penetrando nos
cursos, paulatinamente, através dos currículos, rogramas e dos “Serviços de Psicologia
Aplicada”.

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PROFISSÃO E DOS CURSOS DE


PSICOLOGIA: DIFICULDADES E SOLUÇÕES ENCONTRADAS

O ato da regulamentação trouxe conseqüências imediatas para os psicólogos.


Primeiramente, teve um papel muito importante em termos de valorizar a profissão, na
medida em que determinou a exigência do curso superior para o acesso à corporação. Na
realidade, a proliferação de psicotécnicos, formados através de cursos breves, podería ter
imputado aos psicólogos uma profissão de nível “médio”, de tipo “técnico”, para a qual
não seria necessário um curso universitário. Esta questão deve ter preocupado, em
especial, os acadêmicos deste campo, de modo que o próprio termo “psicotécnico” passa
a ser mal visto e acaba por cair em desuso.
A regulamentação contribui também para modificar o perfil do profissional. Os
psicotécnicos eram assalariados, geralmente inseridos dentro da estrutura do Estado, ou
dentro de uma instituição empresarial. Já a partir da regulamentação, isto parece ter se
modificado, afastando-se o psicólogo mais e mais não só do assalariamento, como
também das esferas públicas. Surge um novo profissional, cujas aspirações
encaminham-se no sentido de tomar-se um profissional liberal: ser autônomo,
determinar sua clientela e o que fazer com ela parece ter sido, desde o início, uma das
grandes aspirações do psicólogo regulamentado. Neste sentido, o exercício da
psicoterapia representava a realização deste anseio, já que implicava uma liberdade e
independência, impossíveis para os profissionais enquanto inseridos em organizações.
No entanto, muitas dificuldades permaneceram após a regulamentação da
profisssão e dos cursos.
A dificuldade de estabelecer os contornos (não raramente chamados de identidade)
da profissão foi um primeiro problema a ser enfrentado. Deu-se em dois sentidos
entendidos, na época, como antagônicos. O primeiro foi a delimitação em relação ao
campo médico e pedagógico, principalmente.
Durante a própria tramitação do projeto de Lei no Congresso, são notadas pressões
de grupos ligados à área médica, no sentido de ser retirado o item referente à
competência do psicólogo para atuar na solução de problemas de ajustamentoe durante
os anos que se seguiram, não foram poucos os protestos, as discussões e as tentativas de

6 Em levantamento realizado junto aos arquivos do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-05), até
o ano de 1980, encontramos 4148 psicólogos inscritos. Destes, 539 (13%) não atestaram a posse de diplomas e,
portanto, entraram para a corporação pelo fato de serem portadores de registro no MEC. É importante ressaltar que
este fato’ocorreu com maior freqüência nos primeiros anos de atividade do Conselho. Assim, em 1974, data em que
esta autarquia começa a funcionar para o registro obrigatório de profissionais, 37,05% dos psicólogos inscritos no
CRP-05 não tinham diploma, em 1975, este percentual foi de 36,72%, decaindo para 0 (zero) no ano de 1980.

170
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária

mutilação da Lei n° 4119.7 Não faltaram as perseguições do Conselho Federal de


Medicina e do extinto Conselho Nacional de Saúde, controlando consultórios e
cobrando alvarás.
Os pedagogos também reagiram, tendo à frente destas contestações o próprio
Professor Lourenço Filho. Para ele, a Lei aprovada havia erigido a figura de um
psicólogo “polivalente”, capaz de tudo realizar, nos mais diferentes campos de
aplicação. Sua execução viria coibir “a ação regular de psiquiatras, assistentes sociais,
orientadores educacionais, especialistas em orientação e seleção profissional, e mesmo a
ação dos educadores menos empíricos, que se socorr(iam) de instrumentos e técnicas
psicológicas.” (Lourenço Filho, 1966, p. 24/25)
A tensão com os educadores alcançou expressão tal que a Associação Brasileira de
Psicologia Aplicada organiza, em 1966, um “Encontro entre Psicólogos e Orientadores
Educacionais” com o objetivo de “aparar as arestas”, cabendo ao Professor Schneider,
uma resposta às críticas formuladas quanto ao conteúdo da nova Lei:

“Os orientadores e psiquiatras que faziam Psicologia, obtiveram registro fácil


de psicólogo de acordo com a Lei. De modo algum concordamos que a Lei
tenha tornado ‘privatistas’ as 'atividades inerentes ao exercício normal de
outras profissões conforme a frase do mestre (referindo-se ao Profi Lourenço
Filho). O que o tal art. 13 citado pretende, é que todos esses profissionais que
faziam de fato aplicação da Psicologia nessas profissões vizinhas e
amigas (como o diagnóstico psicológico, os conselhos de seleção e orientação e
a própria orientação psicopedagógica, lembrado pelo Prof. Lourenço Filho),
possam fazê-lo de direito e que no futuro, os que preferirem o trabalho
psicológico sem a sobrecarga absorvente das funções próprias ao trabalho nas
especialidades paralelas, possam escolher o curso de Psicologia. ” (Schneider,
1966, p. 22/23)

Os primeiros anos posteriores à regulamentação da profissão foram, portanto, anos


de “ocupação de espaço”, estabelecimento de limites de atuação, defesa do campo
profissional, ainda ocupado por médicos, principalmente no que se referia ao exercício
da psicoterapia.
O outro sentido da dificuldade em estabelecer os contornos da profissão, no pólo
oposto aos problemas encontrados com os médicos e pedagogos, referia-se à separação
da Psicologia em relação ao senso comum, às chamadas “práticas alternativas”8. É

7 0 conflito mais significativo ocorrido desde a regulamentação da profissão foi, entretanto, o decorrente da
apresentação, em 1980, de um projeto de autoria do deputado Salvador Julianelli à Câmara Federal. Esse projeto, se
aprovado, tomaria privativa do médico, a utilização de procedimentos psicoterápicos, bem como toda a atuação
classificada como psicanalítica. Determinaria, ainda, que o atendimento individual em Psicologia ocorresse sempre
mediante prescrição ou indicação médica. Tão intensas foram as manifestações dos psicólogos e de outras categorias,
que seriam prejudicadas com a aprovação do projeto, que, antes mesmo de ser votado, o deputado Salvador Julianelli
decidiu pela sua retirada.
8 Utilizo, neste texto, para a expressão “práticas alternativas”, o seguinte sentido, sintetizado por Tourinho e
Carvalho Neto (1995): “Prática alternativa é uma denominação genérica para um conjunto bastante heterogêneo de
atividades, incluindo desde técnicas adivinhatórias e de descrição de personalidade até técnicas de Medicina
alternativa baseadas em pressupostos místicos e religiosos. Essas técnicas, via de regra, originam-se a partir de
concepções tradicionais de homem e de mundo e baseiam-se em conhecimentos pré-científicos ou embasados no
senso comum. Sua utilização é habitualmente interpretada como uma busca de recursos mágicos para a solução de

171
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

preciso relembrar que, há mais de 30 anos, a profissão já vinha sendo exercida sem
qualquer regulamentação ou controle, e encontrava-se, portanto, em situação bastante
vulnerável quanto à assimilação de procedimentos, que poderíam macular a imagem de
cientificidade desejada pela nova corporação.
Para evitar tal perigo, os contornos da Psicologia são definidos, em sentido
contrário às “práticas alternativas”. Encontrei vasto material do Conselho Federal e
Regional de Psicologia referentes ao assunto, demonstrando que o empenho em
,o
delimitar os contornos da cientificidade psicológica não é recente. O próprio Parecer n‘
403/62 do Conselho Federal de Educação já afirmava:

"... (é) imperativo que se acentue o caráter científico dos estudos a serem
realizados, que só assim há de ser possível (...) evitar as improvisações que, do
charlatanismo, a levariam fatalmente ao descrédito”, (p.37)

São vários os textos que fixam e detalham as “atribuições profissionais do


psicólogo”, dando ênfase à conceituação do que efetivamente tipifica esta atividade, de
modo a contribuir para a identidade e estabilidade da sua imagem diante das outras
categorias profissionais e do público em geral.
Com sucesso ou não, é importante marcar que o caminho encontrado pelos órgãos
normatizadores para estabelecer os contornos da profissão em relação às outras práticas
leigas de “tratamento das almas” foi procurar dar-lhes um “caráter científico”, fornecido
principalmente pelo pensamento positivista.9
Não tenho a intenção, pelo menos neste trabalho, de definir ou discutir a
existência de uma fronteira clara entre a Psicologia e as chamadas práticas alternativas
quanto ao tema da cientificidade, mas considero importante destacar, para futuros
desdobramentos, alguns aspectos desta discussão. Primeiro, a constante tentativa de
filtragem no interior da disciplina psicológica dos conteúdos místicos, religiosos e
supersticiosos, como um pré-requisito para a consolidação do campo profissional da
Psicologia. Depois, o empenho dos órgãos normatizadores em estabelecer esta
delimitação. Por fim, a continuidade das resoluções dos Conselhos referentes ao
assunto, leva-me a deduzir que os psicólogos continuaram ultrapassando as fronteiras
das práticas definidas como próprias à Psicologia, permanecendo ou mesmo ampliando,
o uso de expedientes norteados por um certo misticismo ou uma certa religiosidade.
Um outro grupo de dificuldades enfrentadas pela nova corporação referia-se à luta
interna, entre os próprios pares, pela manutenção e consolidação dos espaços já
conquistados anteriormente à regulamentação.
Este fato transparece na própria implantação do Conselho Federal de Psicologia,
criado em 1971, e efetivamente em funcionamento somente a partir de 1974. Foram
necessários três anos, portanto, para se aplainar as diferenças. A Lei 5766 de 20 de
dezembro de 1971 determinava que, “para constituir o primeiro Conselho Federal de
Psicologia, O Ministério do Trabalho e Previdência Social convocaria Associações de

problemas cotidianos, (p. 84)


9O currículo mínimo, estabelecido através do Parecer n° 403/62 do Conselho Federal de Educação, um instrumento
básico para o estabelecimento dos cursos de Psicologia, é rico em referências que apontam na direção da grande
influência que os positivistas tiveram entre nós

172
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária

Psicólogos com personalidade jurídica própria, para elegerem, através de votos de seus
delegados, os membros efetivos e suplentes desse Conselho”(Artigo 37).
Conforme testemunho de Soares (1979), um dos motivos que levou a esta demora
foram exatamente as lutas internas da corporaçãoos profissionais de Psicologia, na
cátedra ou fora dela, mourejavam isolados, caminhando quase à sombra, como a temer
que o contato e a troca de experiências e opiniões lhes ameaçassem a segurança e o
“status” adquiridos, a duras penas.” (p.29)
Na realidade, foram necessários três encontros das Sociedades e Associações de
Psicologia, realizados em São Paulo, Barbacena e no Rio de Janeiro, respectivamente,
para que se fizessem os acertos necessários à eleição dos primeiros conselheiros. E
importante registrar que no Io Encontro Nacional não estiveram presentes, apesar de
convidadas, entidades importantes como a Sociedade de Psicologia do Rio Grande do
Sul, a Sociedade de Psicologia do Rio de Janeiro e a Associação Brasileira de Psicologia
Aplicada.
Na confecção do currículo mínimo, as lutas de poder também estão expressas. O
currículo mínimo foi, na realidade, uma “composição de correntes que já estavam, cada
uma, com seu território assegurado e com suas equipes formadas” (Pessotti, 1984, p.30).
Efetivamente na expressão do Parecer n° 403/62 do Conselho Federal de Educação, o
currículo mínimo pretendia traduzir “a média do pensamento dominante captada através
de sucessivas reuniões”, das quais participaram Lourenço Filho e Nilton Campos, da
Universidade do Brasil, Carolina Martuscelli Bori, da Universidade de São Paulo, Padre
Antonius Benkõ da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Pedro Parafita
Bessa da Universidade de Minas Gerais. Por mera superposição, os currículos plenos
ficaram autorizados a contemplar teorias e sistemas psicológicos, técnicas variadas de
investigação, discussões filosóficas, embasamentos psicopatológicos e procedimentos
diversos de intervenção, dentre outros.
E importante assinalar esta fórmula encontrada pelos psicólogos para a solução
das contradições da sua disciplina, pois com este procedimento, as matrizes que
compõem o saber “psi” (Figueiredo, 1991), detectáveis a partir de uma análise
epistemológica mais atenta, foram (e tem sido), camufladas e a própria crítica e reflexão
sobre o projeto de Psicologia como ciência independente foram subtraídas.
Por fim, o crescimento desordenado da profissão e dos cursos constitui-se num
terceiro grupo de dificuldades. Conforme dados apresentados pelo Conselho Federal de
Psicologia, em 1974, a categoria contava com 895 profissionais, em 1975 este número
subiu para 4950, no ano seguinte já alcançava a cifra de 6890 (Soares, 1979, p. 51) e em
1988 já se registravam 61738 psicólogos no país (Bastos & Gomide, 1989, p. 6).
Os cursos de Psicologia também proliferaram, no mesmo sentido da expansão de
toda a rede de ensino superior do país, qual seja, na direção do crescimento da iniciativa
privada. No levantamento que realizamos junto ao Conselho Regional de Psicologia -
05, observamos que 72, 29% dos psicólogos formados, até 1980, tiveram sua formação
realizada em escolas particulares, ficando o ensino público (ministrado na Universidade
Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade do Estado
do Rio Janeiro) responsável somente pela formação de 27,71% dos profissionais.
Essencialmente, na década de 70, há um crescimento explosivo de instituições
privadas para atender àqueles que, excedentes da rede oficial, desejavam obter um título

173
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

universitário. A educação passa a ser encarada como um grande negócio, com cursos
funcionando à noite, turmas superlotadas e cursos de baixa qualidade. Estas novas
escolas, não possuindo condições de investir em outras áreas, optavam, na maioria das
vezes, pelos cursos de humanidades, os menos onerosos. Este também foi o
desenvolvimento do ensino superior de Psicologia. Assim é que, em nível nacional, os
28 cursos de Psicologia em 1971, passaram a 51 em 1977 (Rosemberg, 1984, p. 11). No
Rio de Janeiro, tínhamos quatro cursos até o ano de 1968, em 1979 este número havia
subido para nove, seis dos quais (67%), alocados em instituições de ensino superior
privadas. Muitas destas escolas foram criadas e ampliadas, com contenção de custos, e
portanto às expensas da qualidade. Seus professores eram - e são - pagos por hora de
trabalho, mantinham suas atividades estritamente em sala de aula, isolados portanto de
seus parceiros, o que colocava como conseqüência a ausência de integração entre as
diversas disciplinas, o ensino unicamente reprodutivo, já que a produção de
conhecimentos não recebia incentivos.
Estes dados se tomam mais alarmantes quando se avalia que a maioria dos cursos
existentes não atendiam sequer às exigências da Lei, em termos de currículo, em
especial, quanto à existência de estágios.10 Além de não atenderem aos requisitos
formais estabelecidos, eram comuns os expedientes de “tapa-buraco”: disciplinas eram
ministradas por professores não portadores de qualificação de fato para tal. O
depoimento de Pessotti (1984) demonstra-o muito bem:

“Eu participei da formação dos primeiros psicólogos e posso afirmar que ela
foi viezada. Não se fazia o pretendido, o desejado, porque o currículo
prescrevia certas disciplinas. Muitas vezes não havia um docente para
determinada disciplina e outro era chamado a substituí-lo... ” (p.30)

Adende-se a estas dificuldades o clima repressivo vivido nas instituições de


ensino superior no pós-64, mais particularmente no pós-68. A oposição parlamentar
encontrava-se amordaçada. Os espaços legais de luta, e a própria legalidade, estavam
sob suspeição. Na Universidade, diretórios estudantis eram fechados, alguns invadidos,
alunos expulsos, inquéritos policiais instaurados.
Este quadro político-institucional marcou os cursos de Psicologia num momento
em que praticamente começavam a funcionar, contribuindo, portanto, para aprofundar a
precária qualidade das Faculdades e sua baixa densidade científica. Nas Faculdades
consolidou-se a ênfase à profissionalização, praticamente inexistindo espaço para a
pesquisa, mesmo nas instituições de ensino superior públicas. As possibilidades de
mudança eram estreitas, já que as relações no interior das Universidades encontravam-se
permeadas pelo medo, o que obstaculizava os críticos e propositores de reformas a este
quadro.

10 O descumprimento das exigências legais nos cursos de Psicologia gerou um impasse para os formandos que se
tomavam impossibilitados de exercer a profissão. Para a “superação” do problema o Conselho Federal de Psicologia
instituiu o dispositivo da “autorização temporária” de modo a permitir o desempenho profissional, expediente
utilizado até finais dos anos 70.

174
Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As práticas dos psicotécnicos, desenvolvidas a partir dos anos 30, devem ser
consideradas como a grande experiência que divulgou e difundiu a profissão de
psicólogo no Brasil, na sua gênese. Elas construíram, na sociedade e no campo “psi”,
uma demanda e uma certa tensão necessárias à regulamentação da profissão e dos cursos
de Psicologia, ocorrida através de ato legal, considerado como um marco para a
construção dos saberes psicológicos enquanto disciplina independente e sua
institucionalização nas Universidades,.
Nos primeiros tempos, após este expediente, a Psicologia atravessou uma fase de
consolidação dos seus limites em relação a outras disciplinas já estabelecidas - como a
Medicina e a Pedagogia - e aos “saberes leigos” sobre as “faculdades mentais”. Nossa
análise apontou, contudo, para a seguinte consideração: a delimitação legal deste novo
campo do saber foi marcada por lutas corporativas quanto à ocupação de espaços
institucionais e no mercado de trabalho, não tendo propriamente operado cortes no
sentido da construção de um novo saber. Especificamente na relação com a Medicina e a
Psiquiatria, interessava à Psicologia trazer o “emolduramento científico” e a força dos
espaços institucionais a elas relacionados. Sem maiores conflitos, os conhecimentos
psicológicos acumulados por estes profissionais e também por educadores, engenheiros,
filósofos, desenvolvidos dentro ou fora do espaço acadêmico, foram assimilados e
“colados”, no interior dos cursos, às discussões sobre teorias e sistemas psicológicos.
Do mesmo modo, naturalmente que sem o aval explícito da corporação, muitas
práticas consideradas não-científicas, místicas, logicamente infundadas também foram
trazidas para este campo, especialmente quando se tratava “do-que-fazer”, da prática
psicológica em sentido estrito. Esta sobreposição de técnicas dissociadas de um corpo
teórico, que não têm a possibilidade de se submeter a uma problematização e confronto
com outras argumentações teóricas, transformaram-se, com muita facilidade, num
pensamento obscurantista e mistificador, cujo critério avaliativo é o senso-comum.
Por fim, nestes anos de consolidação, a profissão, seus cursos de formação e a
clientela atingida cresceram desmesurada e desordenadamente. Esta situação tomou-se
mais complexa quando se sabe que os necessários embates no campo epistemológico
não foram tratados com a devida atenção, na medida em que a corporação, em seus
momentos defmitórios, optou pela busca de soluções acomodatícias, à justificação de
projetos de grupos, que visavam muito mais à manutenção do “status” já atingido, por
alguns de seus membros, do que propriamente pelo enfrentamento teórico.

BIBLIOGRAFIA

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Cadernos do IPUB n° 8, 1997

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Da Psicologia aplicada à institucionalização universitária

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CRONOLOGIA DA LEGISLAÇÃO CONSULTADA

Lei n° 4119 de 27 de agosto de 1962. Dispõe sobre os cursos de formação em


Psicologia e regulamenta a profissão.
Conselho Federal de Educação. Parecer n° 403 de 1962. Estabelece o currículo mínimo
dos cursos de Psicologia.
Decreto n° 53464 de 21 de janeiro de 1964. Regulamenta a Lei n° 4119 de 1962.
Lei n° 5766 de 20 de dezembro de 1971. Cria o Conselho Federal de Psicologia e os
Conselhos Regionais de Psicologia e dá outras providências.
Conselho Federal de Psicologia. Resolução n° 008 de 27 de agosto de 1982. Estabelece
o que constitui a função privativa do psicólogo.
Conselho Federal de Psicologia. Resolução n° 002 de 27 de julho de 1986. Institui o
Manual Unificado de Orientação e Fiscalização.

177
A PROFISSÃO DE PSICÓLOGO: CONSTITUIÇÃO
DO CAMPO

Ana Maria Jacó-Vilela*


Ana Paula Barreiro de Souza Gonçalves"
Leila de Andrade Oliveira***

Vários são os atributos e as definições de psicólogo que, numa investigação


impressionista, podem ser encontrados em nossa sociedade. Uma característica
comumente presente, mesmo em entendimentos marcantemente negativistas - como
naqueles em que o psicólogo é referido como pessoa de extrema frieza, invasora etc. -
é a que o circunda com uma aura de magia, como um taumaturgo, um novo tipo de
sacerdote, o portador - moderno - da bola de cristal, o especialista nas adivinhações
sobre o outro.
Entretanto, ao acompanharmos a sedimentação do campo psi, seus saberes e
práticas em nossa realidade, verificamos que, muito ao contrário, em vez de procurar
substituir ou complementar a magia - ou o romance, o outro encarregado dos
“recônditos da alma”-, a Psicologia procura se firmar como ciência orientadora de uma
prática profissional.
Sabe-se que a atuação psicológica no Brasil começou a existir bem antes da
regulamentação da profissão ou da criação dos cursos. Nas primeiras décadas do século
XX, trabalhos psicológicos enfocam tanto aspectos fisiológicos e neurológicos quanto
possibilidades de aplicação social - a psiquiatria forense, a higiene mental etc. É desta
época (1923) a fundação da Liga Brasileira de Higiene Mental que, do objetivo inicial
de prevenir e, mesmo, aprimorar a assistência aos doentes mentais, passa rapidamente à
perspectiva de um projeto de eugenia (COSTA, 1980).
Posteriormente, a área de Educação também se aproxima da Psicologia, mantendo
o modelo médico - curativo, assistencialista, individualizante. A preocupação é com a
resolução de problemas de aprendizado e rendimento escolar. É interessante observar
que, nesta área, a institucionalização do ensino de Psicologia ocorre bem mais cedo que
nos cursos médicos, provavelmente pela influência do movimento escolanovista.
A aplicação ao trabalho, por sua vez, surge na década de trinta, principalmente
através de técnicas de seleção e orientação profissionais - the right man in the right
place. Os treinamentos - de motivação, de relações humanas - vão aparecer bem mais
tarde, com o incentivo à industrialização nos anos cinquenta.
Neste momento, a prática segue o paradigma positivista: é necessário conhecer,
medir, quantificar, para individualizar. Assim, novos reagrupamentos são viabilizados,
os indivíduos colocados em séries, os dados observados transmudados em essência de
cada classe.

‘ Professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da UERJ; Doutora em


Psicologia pela USP.
’* Graduanda em Psicologia pela UERJ, bolsista de Iniciação Científica.
Graduanda em Psicologia pela UERJ, bolsista de Iniciação Científica.
A profissão de psicólogo

Ao constituir um certo corpo teórico e prático, toma-se necessário à Psicologia


obter os mecanismos que, na sociedade cartorial brasileira, legitimam determinado
saber. Os primeiros passos são conjuntos: regulamentação da profissão e
estabelecimento do currículo mínimo (pelo Conselho Federal de Educação), ambos em
1962 e representando a correlação de forças existente no momento. Assim, o
pensamento classificatório estará presente no Parecer 403/62, fundamento da Resolução
que estabelece o currículo mínimo e a duração do curso de Psicologia. Nele, explicita-se
a necessidade do caráter científico dos estudos, para evitar-se improvisações que, do
charlatanismo, levariam [a nova profissão] fatalmente ao descrédito. Tal “caráter
científico”, representando a “matriz cientificista” da classificação de FIGUEIREDO, L.
C. (1991), será claramente fornecido pelo positivismo. Senão, vejamos: o currículo
mínimo enfatiza a objetividade, a neutralidade, separando a investigação - ciência - da
prática, estabelecendo o estudo do objeto per si (“a” personalidade, “o”
desenvolvimento... e, não menos revelador, “a” Psicologia “social”, explicitando uma
área dedicada ao indivíduo-em-relação, no enquadre geral de estudo “do” indivíduo).
Ao repetir a divisão clássica entre ciência básica e aplicada, estabelece a modalidade
“Bacharelado”, encarregada da fundamentação, e a modalidade “Formação de
Psicólogo”, em que se privilegiam as técnicas profissionais e, consequentemente, se
concentram os estágios nas diferentes áreas que tradicionalmente constituíram campos
de aplicação.
Pode-se também entender as preocupações expressas no Parecer 403 como
representando a dupla vertente sob a qual se institucionaliza a Psicologia no Brasil:
como ciência e como profissão. Para alcançar o primeiro objetivo, toma-se

imperativo o caráter científico dos estudos (...) a importância dos


conhecimentos instrumentais (Fisiologia, Estatística) e os conhecimentos de
Psicologia sem os quais, a nosso ver, “ficaria comprometida uma adequada
formação profissional ”

Se o paradigma positivista de ciência implica na repetibilidade para a obtenção do


conhecimento, sua conseqüência, em Educação, será pensar o aprendizado através da
reprodução de técnicas. O conhecimento científico não é visto como em construção,
uma produção continuamente exercida por professores e alunos. E, antes, um
conhecimento já pronto, cujo instrumental encontra-se disponível principalmente nas
matérias de Psicologia Experimental e de Estatística, e que

traz para o currículo mínimo apenas o estudo de um instrumental reconhecido


como científico, mas que pode permanecer totalmente desvinculado de
qualquer contato com uma pesquisa por parte dos estudantes. [Além disto,] a
ausência de consideração sobre outros métodos cria a falsa impressão de que
pesquisa em Psicologia se reduz à realização de experimentos e de tratamento
estatístico de dados ( WEBER e CARRAHER, 1982, p. 10).

Entretanto, sê a lei busca prescrever fatos sociais, é impossível atentar a todas as


nuances destes; sua concretização, de fato, será regida pelas condições efetivas da
realidade:

179
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

Eu participei da formação dos primeiros psicólogos e posso afirmar que ela foi
viezada. Não se fazia o pretendido, o desejado, porque o currículo prescrevia
certas disciplinas. Muitas vezes não havia um docente para determinada
disciplina e outro era chamado a substituí-lo - como até hoje ocorre. Por
exemplo, quem entendia Piaget, dava Piaget com diversos nomes - Psicologia
da criança, da Aprendizagem... cada grupo lutava, com a melhor das intenções,
para impor uma determinada direção à essa formação. (...) A elaboração dos
currículos seguiu em grande parte a uma necessidade de compor correntes que
já estavam, cada uma, com seu território assegurado e com suas equipes
(PESSOTTI, in SA V1ANI et al., 1984, pp. 30-1).

Este é o funcionamento que permeia os cursos até o início dos anos 70. Profissão
nova, poucos alunos, poucos cursos, existentes quase somente nas universidades
públicas. Embora a situação política brasileira sofra grandes mudanças logo após a
regulamentação da profissão, com o golpe de 1964, os ainda novos saberes e práticas psi
encontram-se voltados para si mesmos, pouco se imiscuem na esfera sócio-política mais
ampla. Esta subjetividade intimista, na verdade, já se prenuncia na sociedade brasileira
desde o projeto de modernização do governo JK. Entretanto, os novos tempos vão
possibilitar consolidações e desdobramentos outros.

TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS, NOVOS SABERES E PRÁTICAS...

A década de setenta traz a marca da ruptura provocada pelos acontecimentos dos


anos sessenta. O maio de 68 francês é um não a uma ordem social excludente. Pretende-
se a imaginação no poder, este transubstanciado de instância de subsunção do indivíduo
à totalidade em dispositivo de criação de novas potencialidades, do novo homem. Em
seu rastro, explodem movimentos contestatórios em várias partes do mundo,
caracterizando o que se denominou “contracultura”. No Brasil, este movimento
apresenta outro tom.
Pois no Brasil, 1968, por sua vez... é o momento do ‘golpe dentro do golpe’, com
a decretação do Ato Institucional número 5 e o acirramento do regime instalado pela
ditadura militar em 1964. Ao lado do fechamento político, imprime-se maior vigor ao
processo de desenvolvimento econômico iniciado no governo Juscelino Kubitschek
(1956-1960). Modemizam-se vários setores da economia, entre eles o das
telecomunicações, propiciando à classe média, instrumento interessado do golpe em
1964, grandes oportunidades de ascensão social. É o “milagre brasileiro” - paralelo à
tortura e ao desaparecimento de opositores políticos, à ausência de liberdade de
expressão e ação, ao agravamento da desigualdade na distribuição de renda, a classe
média chega ao paraíso: ao carro, à casa própria, ao telefone, à TV a cores e, last but no
least, à universidade, pela expansão da rede de ensino superior, via incentivo às
instituições particulares, com o objetivo de eliminar o problema político dos
‘excedentes’.
Em relação à Psicologia, coincidentemente, o início dos anos setenta assiste à
afirmação da profissão. Ainda é frágil e duramente atacada pela corporação médica,
que considera perda de seus direitos a atribuição - conciliatória - ao psicólogo da
possibilidade de atuar na “solução de problemas de ajustamento”. Entretanto, com o
currículo mínimo, a regulamentação da profissão, o reconhecimento dos primeiros

180
A profissão de psicólogo

cursos, o funcionamento dos Conselhos, é mais fácil rechaçar propostas de mecanismos


legais percebidos como danosos à profissão.
O Parecer Alcântara/Cabemite, de 1973, propondo a retirada do item referente à
solução de problemas de ajustamento das atribuições do psicólogo, não tem
prosseguimento. A proposta de reformulação do currículo mínimo preparada pelo
Departamento de Assuntos Universitários do Ministério de Educação e Cultura (projeto
DAU/MEC), de 1978, atribuindo ao psicólogo o cuidado dos casos de desvio social1
contraria toda a categoria que, mobilizando-se, consegue seu arquivamento. O mesmo
ocorrerá com o projeto Julianelli, de 1980, regulamentando atribuições para o psicólogo
e outras doze categorias profissionais da área de saúde, hierarquizando-as sob a
categoria médica. Enfim, todas essas tentativas legais são amplamente rejeitadas, num
movimento político que engloba profissionais, professores e conselheiros. E interessante
observar que esses momentos de explicitação do papel normalizador do psicólogo
parecem ser os únicos em que, de “profissional liberal”, a categoria se transforma num
coletivo de lutas.
Talvez por ocorrer esta explicitação, este é, também, um momento de crise nos
saberes e práticas psi. A impressão é de abandono do panoptismo: o psicólogo do final
dos anos setenta não se concebe como agente da norma. Sua atuação é pela liberdade e
felicidade, estas, sim, interditas pela normalização em curso. A “matriz romântica”
(FIGUEIREDO, L. C., 1991), representada neste momento pela Psicanálise, assume o
predomínio antes ocupado pela “cientificista”.
Por outro lado, se os psicólogos não desejam ser agentes da norma, valorizam as
oportunidades de ascensão social. Esta não se esgota na obtenção do diploma
universitário. No código simbólico próprio do campo psi, partilhado pela sociedade
ampla, a ascensão efetiva depende do título de psicanalista. Mas isto não é fácil.
Esse título se encontrava preservado pelas sociedades oficiais, filiadas à
International Psychoanalytical Association (IPA), cujo modelo de formação fora
estabelecido em 1926, no Congresso de Bad Hombourg, a partir de uma moção de Max
Eitingon objetivando homogeneizar a formação de psicanalista nos diferentes países.
Até então, cada Instituto de formação funcionava de forma autônoma. O modelo
proposto por Eitingon implicava em três pontos interligados: a formação não podería
acontecer por iniciativa individual, era necessária a mediação de uma sociedade filiada à
IPA; em contrapartida, cada uma dessas sociedades se responsabilizaria pela aceitação
ou recusa dos candidatos; a análise de controle, seguindo o funcionamento do Instituto
de Viena, deveria ser realizada por um outro analista que não o analista-terapeuta
(ROUDINESCO, 1989). Estabelece-se, assim, o tripé da formação analítica: a análise
pessoal com um analista didata, a análise de controle com outro didata, os seminários,
sempre sob o cuidado das sociedades encarregadas de zelar pela pureza da “verdadeira
Psicanálise” (COIMBRA, 1995). A supervisão, portanto, instaura-se como prática
supondo o controle como forma de aprendizagem:

1 Um de seus trechos mais polêmicos diz: Reconhece-se, nos dias que correm, que a ação preventiva, de
orientação psicológica, diagnóstico precoce, aconselhamento e terapia psicológica, exercida em larga escala, é um
dos poucos recursos realmente efetivos que as comunidades podem lançar mão, a fim de evitar que se agrave ainda
mais um estado de coisas realmente inquietante, notadamente em domínios como crime e delinquência, tóxicos,
deterioração de relações familiares, abuso de crianças, alcoolismo, desvios sexuais, desvios ideológicos e
terrorismo etc. (pp. 3/4).

181
Cadernos do IPUB n° 8, 1997

É uma idéia de aprendizagem visando ao objetivo de transmissão de uma


habilidade, uma formação específica que deve ser controlada tanto pessoal
quanto profissionalmente por um outro que vê além, quer dizer, para onde o
aluno deve ir. (...) Reveste-se de um caráter autoritário e de controle da prática
daquele que está em formação, interferindo até mesmo na avaliação de sua
própria formação pessoal, na medida em que se propõe a supervisionar sua
análise pessoal como condição ao direito do exercício público do ofício
(MORATO, 1989, p. 123).

A importância da Psicanálise na profissão de psicólogo está presente desde o


início da configuração da ocupação. Aqui, a história se bifurca - em São Paulo, a única
sociedade oficial, filiada à IPA, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
(SBPSP), permite, em seus estatutos, o ingresso de médicos e psicólogos. No Rio de
Janeiro, entretanto, as duas sociedades oficiais - Sociedade de Psicanálise do Rio de
Janeiro (SPRJ) e Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) —
excluem os psicólogos. O movimento destes tomará rumos distintos em cada um desses
lugares. Em São Paulo, os psicólogos procuram ingressar na SBPSP. No Rio de Janeiro,
com a interdição, eles circulam em torno - fazem cursos, submetem-se à análise,
realizam supervisão com psicanalistas das sociedades oficiais, geralmente os
‘progressistas’ - sem poderem se intitular psicanalistas. Trabalham principalmente com
crianças, o que não é a “verdadeira Psicanálise”. FIGUEIREDO, A.C. (1984), em
trabalho pioneiro sobre a difusão do movimento psicanalítico no Rio de Janeiro, intitula-
os “psicólogos psicanalíticos” e assim retrata o momento:

No início da década de 1970 o contingente de psicólogos formados já era


grande e a clínica definitivamente eleita como a especialidade psicológica por
excelência. O modelo de atendimento privado predomina em detrimento do
trabalho nas instituições vinculadas ao Estado e a inspiração é
predominantemente psicanalítica. A penetração da Psicanálise na Psicologia
clínica - ponto chave de sua difusão no campo profissional - vai culminar no
boorn dos anos 70. Nesse quadro, a atuação dos psicólogos clínicos vai ser
decisiva para alterar os rumos do movimento psicanalítico (p. 37, negrito no
original).

Que atuação será esta? Com a proibição de acesso à “verdadeira Psicanálise”, os


psicólogos começam a criar suas próprias sociedades. Muitas surgem como cisão de
uma anterior, a quase totalidade de seus membros são psicólogos, não há filiação à IPA.
Entretanto, o tripé da formação psicanalítica se mantém. A diferença ocorre na
flexibilidade de atendimento a esses enquadres, tanto pela perspectiva de contestação
que lhes deu origem como porque, como sociedades iniciantes, faltam-lhes quadros. Há
certa liberalidade na escolha de analistas e supervisores, os estudos teóricos tendem a
não se restringir à Psicanálise, contemplando Antropologia, Filosofia etc.
Além desta face diretamente voltada para a Psicanálise, sem dúvida hegemônica, o
movimento dos psicólogos recebe outra influência importante. Desde o início dos anos
setenta, psicanalistas argentinos estavam presentes no Brasil, a convite das sociedades
psicanalíticas oficiais. Seus principais interlocutores, entretanto, no sentido de mais
interessados em suas propostas de inovações técnicas, são os psicólogos. As terapias

182
A profissão de psicólogo

breves, o grupo operativo, o trabalho institucional e a possibilidade de prevenção são


descobertas importantes para os psicólogos, frustrados por sua exclusão das sociedades
oficiais.
Parece ser o encontro de um “lugar ao sol”. A prática psicanalítica, com seu
enquadre individualizado e privado, pode então ser percebida como dirigida às elites e
substituída pelo papel de agente de mudanças, com uma marca acentuada na prevenção.
Abandonam-se as categorias psicopatológicas clássicas, a dicotomia saúde/doença, e se
privilegiam situações antes entendidas como de “normalidade” - acompanhamento de
gestantes, orientação vocacional clínica, atendimento pré-cirúrgico etc. Há uma
recepção a-crítica das novas técnicas, desconhecendo-se, por exemplo, a experiência da
Liga Brasileira de Higiene Mental, reveladora da possibilidade eugenista encoberta pela
prevenção. Entretanto, mesmo utilizando o referencial teórico da Psicanálise, continuam
impedidos de intitular-se psicanalistas. Não se analisa, à época, o que isto significa em
termos da representação do modelo assistencial brasileiro, em sua face mais perversa: o
atendimento privado, a “verdadeira Psicanálise”, para as camadas dominantes; o
atendimento às camadas inferiores, clientela das instituições públicas, por profissionais
não devidamente “qualificados”.
Ao mesmo tempo, outros movimentos despontam na Psicologia: fruto da ‘invasão
argentina’, quando psicólogos e psicanalistas argentinos, em função do golpe militar de
1976 na Argentina, se exilam no Brasil - cujo regime militar se encontra na fase de
‘abertura’-, nos anos oitenta encontramos uma presença discreta, porém firme e
expansiva, da análise institucional.
Esta ‘segunda geração’ de argentinos (COIMBRA, 1995), sem se constituir num
grupo coeso, permeia suas práticas com uma visão política e contribui para romper com
a mitificação da “verdadeira Psicanálise”. Com ela começa uma divulgação sistemática
das idéias e conceitos institucionalistas, a ponto destes se constituírem, atualmente,
junto a uma pequena parcela de psicólogos, uma vertente brasileira desse movimento.
Entretanto, esta não é a vertente principal. Nos anos oitenta, o empenho no
‘cuidado de si’ amplia o campo psi tanto pela consolidação do lacanismo - um ‘retomo’
ao ‘verdadeiro’ Freud quanto através de uma “segunda onda de difusão da
Psicanálise” - o surgimento de uma variedade de teorias e técnicas psicológicas, como
as terapias corporais e o movimento do potencial humano (COIMBRA, 1995; RUSSO,
1993), surgidas em oposição, complementação ou reavaliação da Psicanálise. CASTEL
(1987) denomina tais teorias e técnicas de “pós-psicanalíticas”: embora autônomas,
derivam, sucedem e coexistem com a própria Psicanálise. Este novo momento de
expansão se caracteriza principalmente pela perda do lugar da Psicanálise no controle do
processo de sua própria difusão. Outros atores entram em cena, mas o modelo de
formação psicanalítica se mantém: o tripé terapia pessoal, prática supervisionada e
seminários teóricos já está naturalizado.
O movimento dos psicólogos propiciou, entre outras coisas, a difusão da
Psicanálise. O saber psi toma-se parte integrante da cultura simbólica das novas
camadas médias em ascensão: os elementos constituintes de uma cultura psicológica - a
modernização tecnológica, a individualização/fragmentação, a psicologização - estão
formados (FIGUEIRA, 1985; VELHO, 1987). O saber psicológico sobre o indivíduo
constrói esse mesmo indivíduo como sujeito autônomo, ocupado com sua privacidade,
com sua interioridade. Isto redunda não só em maior demanda pelas formações

183
Cademos do IPUB n° 8, 1997

psicanalíticas como, principalmente, amplia a demanda pelas práticas psi.


O psicólogo pode, assim, não se representar como agente da norma, pois é um dos
cuidadores desse modo de subjetivação onde predomina a intimidade, o espaço da
liberdade interior.
O encargo desse cuidado, por sua vez, estende-se à normalidade, com a quebra da
dicotomia clássica entre saúde e doença e com a alteração dos objetivos: não mais a cura
(inatingível, segundo a Psicanálise)2, mas a felicidade. Para isto, a importância do
conhecimento de si, do constante escrutínio que possibilita a emergência de
potencialidades desconhecidas. Encontramo-nos, então, frente a um projeto de
formação continuada a que se submetem, primeiro, os encarregados de sua transmissão.

NOVOS PROPÓSITOS

Refletem-se nos cursos as novas alternativas de atuação articuladas à plena


constituição de uma cultura psicológica. Professores e alunos, marcados por essas
transformações, ofertam e requerem inovações, como discutimos mais detalhamente em
outro lugar (VILELA, 1996). Estas, no entanto, rapidamente se convertem em
"cartilhas’ - com a diferença de que, agora, temos várias -, e, mesmo não sendo a
Psicanálise, imbuídas do espírito de "formação’ de subjetividades intimistas, aptas a
"cuidar’ de forma correta de outras intimidades.
O início dos anos 80 encontra os cursos envolvidos em questões como qual a
identidade do psicólogo?, que profissional queremos formar?, qual o papel social do
psicólogo?, problematizações tradutoras da insatisfação com ‘o que está aí’.
Discussão envolvente à época, em certo sentido funciona para o psicólogo como
resposta à ameaça contida nos projetos Julianelli e DAU/MEC — de se ver como agente
da adaptação, da preservação das normas, da cultura dominante. Pode-se pensar,
também, se seu disparador não seria a dissonância entre o ""espírito” cientifícista do
currículo mínimo e a instalação da cultura psicológica de matriz romântica.
De qualquer forma, os cursos começam a se repensar, no sentido de que há uma
desistência nas tentativas de reformulação do currículo mínimo, talvez por se entender
melhor suas brechas - por onde flexibilizá-lo -, mas principalmente em decorrência de
uma descrença num projeto coletivo. A reformulação curricular toma-se projeto
particular, específico de cada curso e, em muitas instituições, o currículo pleno é
efetivamente reformulado. Nos cursos novos, o currículo pleno já é construído na nova
perspectiva - tanto de entendimento das possibilidades de flexibilização do currículo

2 VEYNE (1988), em prefácio a tradução francesa da obra de Sêneca Da Tranqüilidade da Alma, compara os
exercícios filosóficos do estoicismo com a Psicanálise: (Freud) fala, pouco antes de sua morte, do caráter
‘‘interminável” da cura psicanalítica. Os exercícios filosóficos não são menos intermináveis; é preciso, diz Sêneca,
passar a vida a aprender a viver; a filosofia não é um assunto para as classes terminais, mas, antes, para a idade
adulta e para todo o curso da existência. A cidadela não está jamais livre do inimigo, o estado de conclusão não é
jamais alcançado. (...) Certos psicastênicos da antigüidade devem ter vivido sua filosofia como outros vivem
em nossos dias sua cura psicanalítica: por não conseguirem obter dela a cura, encontraram nela ao menos uma
nova paixão, a da psicanálise; e talvez a psicanálise não tenha jamais conseguido qualquer outro efeito curativo. A
filosofia antiga também não (pp. 22-23).

184
A profissão de psicólogo

mínimo como na conciliação das matrizes cientificista e romântica cujos principais


pontos parecem se situar em tomo de parâmetros formais, desde a diminuição da carga
horária global do curso e dos pré-requisitos, até a introdução de disciplinas relativas a
abordagens não contempladas anteriormente ou voltadas para a prática institucional,
notadamente nas instituições de saúde, como também a ampliação do elenco de
disciplinas eletivas e a inserção de disciplinas profissionalizantes mais ao início do
curso, evitando o modelo tradicional de Bacharelado e Formação como seqüenciais.
É interessante observar que as alterações sumariadas são comuns às instituições
públicas e às privadas. Em certo sentido, é até mais lógico serem mais freqüentes nestas,
por implicarem em diminuição da carga horária do curso, reduzindo os custos do ensino
oferecido. Os gastos com a ampliação de eletivas podem ser minimizados com formas
organizacionais de oferecê-las, não implicando necessariamente em retomo ao total de
carga horária anterior: os professores sendo contratados no regime de hora-aula, o
computo da carga horária é de extrema importância nessas instituições; além disto, a
presença dessas eletivas sugere um caráter “moderno” ao curso, importante em termos
mercadológicos.
A principal alteração, contudo, ainda é muito tênue, não captável em termos
quantitativos. Refere-se ao trabalho de alguns - poucos - professores, comumente
ligados às disciplinas relacionadas às instituições escolares e de saúde, que procuram
historicizar a temática abordada, contribuindo assim para a desnaturalização do saber
psi. O que toma sintomática essa exceção é serem estas disciplinas exatamente as
consideradas como “menos importantes” no curso - entenda-se: disciplinas secundárias
em comparação com as dedicadas às teorias e técnicas psicoterápicas.
As reformulações nos cursos, todavia, não contemplam todas as variedades do
campo profissional. Assim, as denominadas Práticas Alternativas não encontram eco
neles. Embora tais práticas estejam em grande expansão nos anos noventa, sua origem
pode ser claramente reconstruída a partir dos movimentos contestatórios do final dos
anos sessenta, implicando numa grande questão: serão elas práticas científicas?
Esta preocupação em ressaltar o caráter científico da Psicologia para distinguí-la
de outras práticas que, lidando também com o humano, podem ser consideradas
psicológicas, é uma constante. Esta foi a principal vertente crítica às terapias corporais
quando de seu surgimento ao final dos anos setenta, consideradas então como
Psicologia Alternativa. Talvez por isto, quando de sua institucionalização nos anos
oitenta, algumas delas adotaram uma ortodoxia próxima à das sociedades filiadas à
IPA3. Sua legitimidade terá sido obtida assim? Porque algumas se fizeram presentes nos
cursos, cabendo hoje o rótulo “alternativo” a outra categoria de práticas, inicialmente
denominadas “esotéricas”, como se houvesse uma gradação entre as Psicologias - as

3 RUSSO (1993) faz as seguintes observações sobre uma sociedade reichiana, ao analisar a trajetória das
primeiras gerações de terapeutas corporais e a criação de instituições de formação,: (...) o setting usado pelos
terapeutas do [Instituto] Ola Raknes me pareceu aproximar-se do setting psicanalítico em termos de sua disposição
física, em especial pelo uso de um divã. Também falei da exigência, feita por esta instituição, de algo que se
assemelha à análise didática própria das sociedades filiadas à International Psychoanalytical Association. O termo
usado para designar a permissão obtida para praticar a orgonoterapia por aqueles que terminaram a formação é o
mesmo usado pelos analistas lacanianos: "autorização”. A ênfase é na terapia individual, com o abandono dos
workshops e maratonas da fase anterior. Parece-me, portanto, haver aí um desejo de aproximação com a
Psicanálise, e com o conseqüente status por ela outorgado. Não só a Psicanálise é alvo deste tipo de aproximação,
mas também a medicina, fonte inesgotável de status e prestígio. Lembro a acusação feita por Navarro a Lowen que,
segundo ele, "nunca foi médico nem psiquiatra", o que parece ser um defeito em si. (p. 156, destaques no original)

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Cadernos do IPUBn°8, 1997

científicas, aquelas que se propõem como uma alternativa a essa cientificidade e


aquelas, de fato, fora do reino da ciência (e, portanto, também fora da Psicologia).
O Conselho Federal de Psicologia iniciou, em 1991, uma “guerra” contra estas
últimas em que estava presente a divulgação de um cartaz de “Alerta à população”, em
que se explicita que a Psicologia se baseia em conhecimentos científicos [e] não faz
milagres: Práticas místicas e advinhatórias (Taro, 1 Ching, Búzios, etc...) não são
técnicas da Psicologia (PROPSI, 1992, p. 9). Este clima foi, aos poucos, substituído por
propostas de reflexão sobre o estatuto epistemológico da Psicologia e das práticas
alternativas, implicando em simpósios, pareceres, artigos etc. O que desponta mais
claramente de todas essas análises é o caráter competitivo da interdição às Práticas
Alternativas, a cientificidade assumida como característica “nossa”, não presente nas
demais abordagens, sem considerar-se, por exemplo, a diversidade teórica do campo psi
e suas dificuldades epistemológicas e metodológicas.
Por outro lado, verifica-se que tanto as teorias e técnicas ditas “científicas” quanto
as “alternativas” costumam, na prática cotidiana, reforçar a idéia individualista de
autonomia e singularidade, em vez de explicitar seu caráter ilusório. Contribuem, assim,
para a naturalização de um determinado modelo de sujeito, atendendo à demanda de
familiaridade e não possibilitando novas produções, novas subjetividades. Supomos,
concordando com FIGUEIREDO, L. C. (1995), que a questão deveria então ser
enfocada num outro plano, o das condutas éticas:

Creio que a questão exija ser trabalhada em um outro plano, ou seja, que tanto
as chamadas práticas alternativas quanto as diversas escolas e sistemas da
psicologia sejam confrontados no plano da ética, enquanto dispositivos éticos
tomados como dispositivos de subjetividades. (pp. 69-70, destaques no
original).

Neste sentido, deve-se ressaltar também a urgência desse enfoque nos cursos de
Psicologia. As transformações sociais, na profissão e nos cursos não acontecem
isoladamente, imiscuem-se umas em outras. O desconhecimento da história do campo
profissional, das condições sociais que possibilitaram (ou dificultaram) seu
desenvolvimento em uma ou outra direção propicia o entendimento de que o que
sempre foi sempre será, o pressuposto de uma igualdade entre diferentes momentos que
- o que é mais problemático, na atual situação de mercado da profissão - pode engendrar
a igualização também de diferentes camadas sociais. A este respeito, MELLO
hipotetizava, em 1975, sobre uma possível expansão do mercado de trabalho do
psicólogo

com escolares em escolas públicas da periferia, com as famílias desses


escolares, com os professores e diretores dessas escolas, com menores órfãos e
abandonados, nos recolhimentos de menores, nos orfanatos, com as pessoas
que cuidam desses menores, com delinquentes nas prisões, com os policiais e
juizes, com os migrantes e suas famílias, chegados há pouco em São Paulo (p.
18).

Dizia então que o saber ministrado no curso de Psicologia representava uma

186
A profissão de psicólogo

Psicologia de “classe intermediária” (as camadas médias urbanas, psicologizadas?) e


suponha que, com a expansão do mercado de trabalho, os psicólogos se defrontariam
com circunstâncias ambientais tão desfavoráveis ao desenvolvimento dos seres
humanos (p. 19) que seriam obrigados a rever fórmulas e técnicas aprendidas, a
reformular o próprio conceito de “comportamento normal”.
A atualidade deste texto aponta uma das dificuldades do caminho do psicólogo:
como não ser um especialista do privado, como escapar a um modo de subjetivação
natural em nossa sociedade, ao atuar junto a pessoas que vivem em circunstâncias tão
desfavoráveis? Supomos que historicizar os saberes, práticas e o objeto de
atenção psi é uma tentativa de superar as pedras no caminho, construir um novo
caminho.

BIBLIOGRAFIA

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parecer do Prof. Samuel Pfromm, Brasília, 1978.
BRASIL. Leis, decretos, etc. Projeto de lei 2276, de 1980, de autoria do Deputado
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MORATO, Henriette T. Penna - “Eu-supervisão” - em cena uma ação
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Paulo.

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Impressão e Acabamento em equipamento Xerox Docutech 135


CADERNOS DO IPUB

1. XVIII Congresso Interno do IPUB (1995)

2. Organização do Trabalho
e Saúde Mental (1995)

3. Por uma Assistência Psiquiátrica


em Transformação (1996)

4. As Políticas Públicas
no Município de Angra dos Reis (1996)

5. O Discurso em Mosaico:
Contribuições da Lingüística e da Semiologia
para o Campo da Saúde Mental (1997)

6. Saúde Mental no Hospital Geral (1997)

7. Saúde Mental e Desinstitucionalização:


Reinventando os Serviços (1997)

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