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TEXTO: PULSÃO EM NIETZCHE

Diferentemente do conceito de pulsão proposto pela psicanálise de Freud, a


compreensão de Nietzsche buscou se afastar da problemática representacional
através da qual o conceito captura a coisa em sua doma linguística. Explorando o
ultrapassamento dessas limitações axiomáticas por onde todo pensamento moderno
trilhou, o filósofo alemão nega a distinção entre instinto e pulsão. Estes aspectos são
compreendidos enquanto campos de forças plurais que se manifestam justamente
através das relações que tecem umas nas outras.
De acordo com Giacoia (1995) “Pulsão é, em Nietzsche, um sem-fundo
misteriosos onde se abisma todo indicar e denotar, carga energética implacável,
invisível e plurívoca, ao mesmo tempo matéria e demiurgo de toda concreção do
mundo orgânico e natural." (p.80). Nesse sentido, a teia de forças múltiplas que se
imbricam umas nas outras, causam reações, rupturas, agenciamentos, alianças,
tensões, condensações, onde a emergência do real é a manifestação mais visível
deste jogo.
Sob a verve da compreensão foucaultiana de Nietzsche, somos levados a
analisar estes jogos entre forças como jogos de poder. Embora sejam sempre forças
em oposição, que se manifestam pelo poder de umas sobre as outras, não devem
ser compreendidas a partir de uma premissa hegeliana acerca das dinâmicas das
forças opostas, onde existe sempre um notório antagonismo entre tese e antítese,
além da conciliação de forças para a emergência da síntese. Isso porque na
perspectiva nietzscheana estas forças em oposição não tratam de unidades
representacionais através da qual existe um diálogo de antagonização. Trata-se de
intensidades energéticas que não possuem nenhum lastro identitário, “sua essência
consiste em seu próprio efetivar-se, em seu produzir efeito sobre todas as outras
quantidades de força com as quais se encontra necessariamente em relação”
(GIACOIA, 1995, p. 81).
Ou seja, as pulsões só podem ser compreendidas enquanto efetuação de
forças sobre as outras forças com as quais se relaciona. O aspecto relacional é
fundamental para compreender a própria dinâmica da vida e sua indivisibilidade
entre instâncias da cultura e da natureza. Este emaranhado quimérico de forças sem
substrato só pode ser entendido na sua atualização relacional com as demais forças.
“O efeito das forças pulsionais é a própria força que o atualiza, é o ato de sua
efetivação” (GIACOIA, 1995, p. 82). A pulsão não pode ser compreendida fora do
mundo, no campo das identidades, mas apenas enquanto efeito entre relações de
forças dinâmicas e multiformes.
Estas forças que se rivalizam constituem a dinâmica da própria produção da
vida, do movimento do devir em sua constante diferenciação. O sentido que se trilha
é o resultado dessas dinâmicas de poder, onde cada força burca efetuar seu poder
sobre todas as demais, extraindo “a cada instante sua última consequência em
relação a todas as outras forças” (GIACOIA, 1995, p. 83). Este aspecto da dinâmica
do poder é uma característica das forças, que se rivalizam para efetuarem-se,
compreendido como Vontade de Poder. É desse espaço relacional entre forças que
a vontade de poder das forças umas sobre as outras pode adquirir uma pluralidade
de sentidos, conforme suas sujeições e dominações. Os valores de uma força
dominante podem ser totalmente revertidos desde seu fundamento conforme esta se
sujeita à dominação de outra força com valores rivais.
Mais uma vez podemos apontar distinções da compreensão de Nietzsche em
relação à dialética de Hegel. Tendo em vista que as rivalidades entre as forças,
mobilizadas pela vontade de poder, dominam ou se sujeitam umas às outras, a
reversibilidade valoral das forças sujeitadas representa uma ruptura com as noções
de conciliação e de síntese relacional das oposições. Se pode, por assim dizer,
reformular toda uma cultura “do zero”, a partir de uma força que exerce dominação
sobre outra, agora subjugada. É assim que vemos na história: reviravoltas,
revoluções, rupturas, a despeito do progresso conciliador que a modernidade
esperou.
Tudo isso se manifesta no corpo. O corpo é algo como “muitas almas” onde a
emergência dessas forças se apresenta. É um “corpo-resultado”, tendo em vista que
é uma complexidade de forças que nele se encontram. “Irradiando-se do corpo, as
pulsões se afrontam e entrelaçam em miríades complexas de quantidades
intensivas.” (GIACOIA, 1995, p. 86).

REFERÊNCIA

Giacoia J. O. (1995) O CONCEITO DE PULSÃO EM NIETZSCHE. (p.79-96). In.


MOURA, A. H. (Org.). AS PULSÕES. São Paulo: Escuta

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