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Lá se vão seis anos do momento em que, ao

começar a existir publicamente como Amara, a


psicóloga com quem eu fazia acompanhamen-
to à época me pediu para ter paciência com
ela, pois ainda estava tentando entender o que
a levava a não conseguir nem me chamar de
Amara nem me tratar no feminino. Insisti por
mais duas sessões, até me dar conta de que

E sta obra está organizada a partir de um trabalho narrativo aquela situação estava me fazendo mais mal do
que bem e que, na realidade, parecia que nos-
feito, principalmente, por profissionais da psicologia sas posições tinham se invertido. Eu não tinha
que, quando pensam seus fazeres clínicos, éticos e (nem tenho, aliás) formação em psicologia e
tampouco tinha psicológico para suportar a si-
políticos, levam em consideração, não como elemento
tuação em que me via, não me restando senão
central, mas como elemento não passível de isenção, os romper drasticamente o acompanhamento. O
atravessamentos singulares das relações de gênero (sejam curioso, no entanto, é que, dois anos antes,
José Stona é Psicólogo e Psicanalista. quando eu havia chegado ao seu consultório
eles de raça, etnia, classe, gênero, orientação sexual,
Doutorando em Psicanálise e Cultura pedindo ajuda para não voltar a tomar hormô-
religião, deficiência, nacionalidade etc.). São, além disso, nios nem pensar mais em transição, as palavras
Contemporânea (UFS). Mestre
autores que, em seu campo de atuação, deixam que a que ela me disse foram cruciais para me aju-
em Psicanálise: Clínica e Cultura
dar a me tornar o que hoje sou: “por que, ao
(UFRGS). Especialista em Problemas clínica seja primária em relação à teoria e fazem dos seus invés disso, a gente não tenta entender o que
do Desenvolvimento da Infância e corpos ações políticas, partindo do pressuposto de que a sua levou você a querer transformar seu corpo, a
Adolescência (Lydia Coriat). Tem se imaginar de outro gênero?”. Àquela época,
teoria, independentemente da linha teórica adotada, não
como principal área de atuação e pessoas trans eram sujeira estatística nas uni-
é imparcial frente a estigmas, violências e discriminações. versidades, mas de lá para cá essa presença
interesse a psicanálise, com enfoque
tem se tornado cada vez mais marcante, e os
nos temas: estudos queer, estudos
primeiros frutos começam a ser colhidos agora,
de gênero, transidentidades,
sob a forma de produções que nos permitem
população LGBTTQIA+ e infâncias. tanto compreender melhor o que somos e o
que deixamos de ser (problematizando a pers-
pectiva cisgênera a partir da qual aprendemos
a nos ver) quanto transformar os próprios pa-
radigmas que orientam a construção do saber
acadêmico de forma ampla. Chegará um dia
em que profissionais psi não serão mais for-
mados sem um debate profundo sobre gênero
e sexualidade, dia em que não precisarei mais
me preocupar em procurar profissionais psi
LGBTQIA+ para que o processo de escuta clí-
nica não seja pautado pela LGBTTQIA+fobia.
Chegará esse dia, e chegará logo. Os artigos
aqui presentes terão um papel crucial na in-
venção desse dia.

Amara Moira

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