Você está na página 1de 192

NEXT

BorderBrasil
Line

NEXT BRASIL
Instrumentos para a inovação
Ano I, número 1, 2003

ISSN 1679-7922
© S3.Studium Itália, 2003

(1)
NEXT
BorderBrasil
Line

(2)
NEXT
BorderBrasil
Line

Editorial

“Se depender de mim, nunca sempre experimental, capaz


ficarei plenamente maduro, de promover uma convivência
nem nas idéias, nem no estilo, finalmente baseada na intros-
mas sempre verde, incompleto, pecção, na amizade, no amor,
experimental”. na dimensão lúdica da vida, na
Gilberto Freyre harmonia e na beleza.

O mundo precisa de um novo


modelo. Durante setenta
O primeiro número da NEXT foi anos de bipolaridade, se
publicado na Itália em 1998. confrontaram um comunismo
Agora, cinco anos depois do capaz de distribuir a riqueza,
lançamento italiano, iniciamos mas incapaz de produzi-la,
a edição brasileira da revista, com um capitalismo capaz de
coroando um longo percurso de produzir a riqueza, mas incapaz
seminários que, no curso deste de distribuí-la. Ao final, ambos
qüinqüênio, aproximaram os os modelos só foram consistentes
melhores estudiosos italianos de na idéia de privilegiar o poder, a
seus colegas do outro lado do riqueza e a acumulação de bens
oceano. materiais como objetivo último e
supremo da existência humana.
A sintonia entre essas duas
regiões do mundo – a Itália e Hoje se confrontam dois
o Mediterrâneo, de uma parte; outros modelos igualmente
o Brasil e a América Latina, alienados: de uma parte, o
de outra – é surpreendente e fundamentalismo islâmico,
intensa. Sobre essa sintonia, baseado no fanatismo religioso;
que a NEXT pretende explorar e de outra, o fundamentalismo
valorizar, será possível construir americano, baseado no
um modelo de vida sempre verde, fanatismo consumista.

(3)
NEXT
BorderBrasil
Line

A estes dois modelos, ambos comunicabilidade e doçura.


irredutíveis, expansionistas e Um modelo no qual a fantasia e
agressivos, temos que contrapor a concretude saibam encontrar
um terceiro modelo com raízes na síntese fecunda na criatividade,
antiga sabedoria greco-romana,
e no qual a criatividade saiba
na suave beleza do Renascimento
e na tolerante convivência tornar feliz esse mundo injusto
latino-americana. Um modelo que temos de melhorar.
no qual reencontremos a sensu-
alidade, alegria, hospitalidade,
amabilidade, solidariedade, Domenico De Masi

(4)
NEXT
BorderBrasil
Line

Editorial

Com a presente edição da melhores. Somos um povo unido


NEXT BRASIL temos o orgulho na diferença. Quais são as
de trazer para o público deste características socioculturais
país o mesmo ideal da revista de “brasilidade” que nos unem,
lançada na Itália pelo sociólogo e quais as que nos separam?
Domenico De Masi. Quando O resumo da pesquisa “Cara
nos foi proposto editar a Next brasileira”, também publicada
no Brasil, o país iniciava um nesta edição, tenta responder a
momento político condizente essas perguntas.
com o tema ao qual esta revista
se dedica integralmente: a A NEXT BRASIL espera
inovação e a transformação. colaborar com o processo
Elegemos um presidente operário de transformações positivas
através de eleições eletrônicas, pelo qual passa nosso país,
um paradoxo aparentemente tão representando um instrumento
grande quanto nosso território. de intercâmbio contínuo
de experiências, idéias e
É justamente nesse paradoxo conhecimento entre o Brasil e o
– tão bem descrito pelo ministro mundo. Somos um país jovem,
Cristovam Buarque em seu “verde”, mas cheio de alegria,
artigo “A Desorientação da vontade de crescer e progredir. E
Economia” – que penso ao tentar é exatamente por isso que, quem
definir a cara brasileira, o tema aqui chega, daqui não quer sair.
de estréia desta publicação. Nós,
brasileiros, somos uma mistura Ivan Bentini
de raças, credos e culturas
que, quase milagrosamente,
fala a mesma língua, gosta
das mesmas coisas e partilha
a mesma esperança de dias

(5)
Expediente
Border Line

NEXT BRASIL Redação


Instrumentos para a inovação Estrada de São Mateus, 293 Duque
Ano I, número 1, 2003 de Caxias – RJ
CEP 25215-283
A revista NEXT Brasil é uma telefax.: (21) 26761223
publicação trimestral dedicada à e-mail: info@nextbrasil.com.br
inovação do S3.Studim Brasil e www.nextbrasil.com.br
S3.Studium Itália.
O conteúdo de artigos assinados é Comitê Científico
de total responsabilidade de seus Affonso Romano De Sant’Anna
autores. (cultura), Cristina Nascimento
(educação), Cristovam Buarque
Não é permitida a reprodução
(economia e educação),
parcial ou total do conteúdo desta
Demócrito Dummar (jornalismo),
publicação, em qualquer meio, sem
Eduardo Giannetti da Fonseca
a prévia autorização da editora. (economia), Francisco Mazzucca
(administração e economia), Frei
© 2003 S3.Studium, Itália Betto (sociologia e teologia),
Hélio Mattar (ética e cidadania),
Diretor Responsável Ivo Pitanguy (medicina), Jaime
Domenico De Masi Lerner (administração pública
e urbanismo), Lino Villaventura
Vice-Diretor (moda), Marina Colassanti
Stefano Palumbo (literatura), Max Gehringer
(marketing), Milton Seligman
Editor (administração), Pérsio Arida
Ivan Bentini (economia e finanças), Roberto
D’Avila (comunicação), Sebastião
Jornalista Responsável Salgado (fotografia),Washington
Carolina Vigna-Marú Olivetto (design e publicidade)

(6)
Expediente
Border Line

Redação Itália Imagens


Francesca Chialà, Giusi Miccoli Toulouse Lautrec, Mulher Sentada
(pormenor), 1897
Redação Brasil
Vanessa Ornella Sebastião Salgado, foto exclusiva
para NEXT Brasil
Direção de Arte
Carolina Vigna-Marú (2) Arquivo Vigna-Marú © 2003

Assessoria de Imprensa Rembrandt van Rijn, A Profetisa Ana


Stanzione Comunicação (A Mãe de Rembrandt), 1631

Produção Nam June Paik, Global encoder


Projeto gráfico: Franco Maria Ricci
Coordenação: Ivan Bentini Sergio Valle, Giorgio Della Seta e o
Acompanhamento gráfico: Formato presidente Lula, no Acre.
Produções
(3) Arquivo Vigna-Marú © 2003
Capa
Paul Gauguin, Raparigas com Georges Seurat, Banhistas em Asnières
Flores de Manda (Mulheres de (pormenor), 1883-1884
Taiti), (pormenor), 1899
Óleo sobre tela, 94 x 72,4 cm Assinaturas
The Metropolitan Museum of Art, Informações sobre assinaturas:
NY. info@nextbrasil.com.br

(7)
Sumário
Border Line

número 1, 2003

Editorial por Domenico De Masi 3


Editorial por Ivan Bentini 5

I PARTE: EM FOCO
Trabalho, Organização e Economia
Cristovam Buarque A desorientação da Economia 10
Eduardo Giannetti da Fonseca Economia e felicidade 36
Aris Accornero Um século de trabalho! 49

Brasil Criativo
Marcelo de Alvarenga O piano erudito no país do carnaval 53
Carlos Takeshi Madame Satã em Hollywood 58
Therezinha Russo A palavra poética 71

II PARTE: POT-POURRI
Case History
Jaime Lerner O modelo de Curitiba 80
Lélia Deluiz Wanick Fotossíntese 98
Empresa global, responsabilidade local
Entrevista a Giorgio Della Seta 103
(8)
Sumário
Border Line

Valor Cultural
Frei Betto Voluntariado no Brasil 111
Jurema Luzia F. Sampaio Ralha Educação no Brasil 114
Marco Dalpozzo e Arão Sappiro Por uma nova Escola 122

Border Line
Milton Seligman O intangível na política 134
Elvira Vigna Literatura brasileira 145
Alexandre Negreiros Pirataria e livre manifestação da alma 150

III PARTE: ANÁLISE & SÍNTESE


Bits & Bites
Irapuan Martinez Acessibilidade e monopólios 154

Curta Metragem
Washington Olivetto Horário cultural gratuito 159

IV PARTE: MONOGRAFIA
Stefano Palumbo Cara Brasileira. A brasilidade nos negócios.
Um caminho para o made in Brazil 163
(9)
Trabalho, Organização e Economia

A desorientação da economia
Cristovam Buarque

A Desorientação Hoje, no começo truindo as primeiras


da Civilização do século XXI, comunidades fixas e
Apesar de cada os seis bilhões de permanentes;
minuto ser uma en- seres humanos
c) a esquina racional,
cruzilhada, a história na Grécia Clássica,
auferem uma
apresenta períodos de quando os homens
pequenas mudanças e renda de quase definiram formas
momentos de grandes 40 trilhões de racionais que permiti-
viradas. Como se exis- dólares anuais, o ram o desenvolvimento
tisse tempo de cami- equivalente a mais científico;
nhos retos e tempo de de seis mil dólares d) a esquina tecnológi-
dobrar esquinas. por ano para ca, na Europa, quan-
O processo histórico cada ser humano. do ocorreu a revolução
seguiu pequenas mu- Correspondendo técnico-científica que
danças, mas pode-se a este nível de permitiu a estrutura
considerar que dobrou renda, o mundo social contemporânea
cinco grandes esqui- dispõe hoje de do capitalismo;
nas civilizatórias1: capacidade e) a esquina consumis-
a) a esquina biológi- produtiva para ta, a partir dos EUA e
ca, provavelmente atender todas da Europa, com o
na África, quando às necessidades desenvolvimento cien-
o homem se dife- essenciais de
tífico e tecnológico do
renciou dos demais século XX, virando o
animais ao adquirir um cérebro projeto civilizatório para a insa-
com poder intelectual; ciável sociedade do consumo.
b) a esquina espacial, provavel- Até o último quarto do século
mente na Ásia Menor, quando XIX, o avanço técnico se ca-
os seres humanos passaram a racterizava pelo aumento da
produzir os bens de sobrevivên- produtividade e, como conseqü-
cia de forma sedentária, cons- ência, pela redução das neces-

(10)
Trabalho, Organização e Economia

sidades humanas, constituídas diante de seus valores, fazendo


basicamente dos mesmos bens com que a definição de belo fique
de consumo. A partir de então, perdida;
o avanço técnico começou a in- - há uma desorientação nos costu-
ventar mais produtos modernos mes, que faz com que os conceitos
do que aumentar a produtividade de família, de alimentação, de
para gerar os tradicionais; como local de residência, sejam pertur-
conseqüência, passou a ser indu- bados, quando não esquecidos;
tor de necessidades. - há uma desorientação ética
O século XX, especialmente a diante do poder da técnica para
partir da segunda metade dos manipular a vida, para mudar
anos 30, foi o século do con- o clima;
sumo crescente de novos bens. - há uma desorientação política
Até que, depois dos anos 70, os em um mundo onde o conceito
homens perceberam os limites de pátria perde o sentido sem ser
deste crescimento em função ainda substituído.
do desequilíbrio ecológico que Contudo, de todas as desorienta-
o processo econômico estava ções, a mais grave ocorre na lógi-
provocando. ca, na percepção, nos objetivos e
O final do século XX e o começo compromissos da ciência central
do século XXI representam o dos tempos atuais, enfim, na teo-
momento em que, pela primeira logia da modernidade: a Ciência
vez, a civilização percebe uma Econômica.
encruzilhada adiante: ou conti- Nenhuma ciência foi mais identi-
nua o caminho, das últimas dé- ficada com o século XX do que a
cadas, de aumento do consumo economia. Os economistas foram
para todos até a catástrofe ecoló- os teólogos do século, legitima-
gica – e concentra o crescimento ram os propósitos da civilização
apenas para poucos –, ou muda identificados com o consumo
o rumo do processo civilizatório. crescente, e definiram os prin-
Eliminando a indesejada alterna- cípios da racionalidade, expli-
tiva da catástrofe, a outra deixa a cando como funciona e evolui o
civilização indecisa, perplexa e processo civilizatório. Por isso, a
desorientada quanto a seu futuro economia está desorientada, em
porque: um grau ainda maior e em mais
- há uma clara desorientação dimensões do que os demais se-
na estética, com perplexidade tores do mundo das idéias.

(11)
Trabalho, Organização e Economia

AS DESORIENTAÇÕES DA auferem uma renda de quase 40


ECONOMIA trilhões de dólares anuais, o equi-
valente a mais de seis mil dólares
Riqueza ou Pobreza por ano para cada ser humano.
Na Grécia Clássica, a riqueza era Correspondendo a este nível de
definida pelo acúmulo de saber renda, o mundo dispõe hoje de
e de cultura do indivíduo. Em capacidade produtiva para aten-
uma sociedade onde o consumo der às necessidades essenciais
se limitava ao essencial, eram de todos. Mas, para surpresa de
mínimas as diferenças possíveis quem esperava, no ano 2000, o
em seus padrões. E mesmo estas ponto de coroamento do processo
diferenças pequenas tinham civilizatório, o quadro de pobreza
legitimidades que transcendiam persiste, atingindo uma imensa
a economia: decorriam de razões parte da população. O mundo
políticas, sociais e religiosas, não econômico é um arquipélago de
da renda. pequenas ilhas de riqueza no mar
O Mercantilismo definiu rique- da pobreza universal.
za como o acúmulo de ouro. A A humanidade acreditava que o
diferença de posses estava no aumento da riqueza erradicaria
tamanho do castelo, na qualida- naturalmente a pobreza. Era uma
de das obras de arte, das jóias, questão de esperar que os benefí-
mas quase nunca no consumo de cios do aumento da produção e da
produtos novos. Apesar das novas renda se espalhassem por todos
classes mercantis, de comercian- os habitantes, dentro das leis bem
tes e banqueiros, a desigualdade definidas pela ciência econômica:
era uma questão basicamente uma verdade tão forte quanto a
de status social legitimado, que certeza no comportamento dos
confundia riqueza com nobreza. astros. A realidade das últimas
Sem grandes possibilidades duas décadas mostra que esta es-
nem desejos de ascensão, quase perança é falsa. Ao mesmo tempo
como uma espécie de castas. Foi em que aumenta a riqueza, a eco-
a partir do século XIX, especial- nomia induz à pobreza.
mente no seguinte, que riqueza A economia foi um instrumento
passou a ser sinônimo de renda eficiente no aumento da rique-
e consumo. za, mas não é um instrumento
Hoje, no começo do século XXI, eficiente na redução da pobreza.
os seis bilhões de seres humanos O crescimento econômico não

(12)
Trabalho, Organização e Economia

produz os bens públicos para a essenciais.


atender às necessidades essen- Apesar de a realidade mostrar o
ciais dos pobres; ele se concentra contrário, os economistas insis-
no atendimento da demanda dos tem que o crescimento econômico
ricos por produtos privados. Por é o caminho para a erradicação
isso, os economistas se debatem, da pobreza porque, ao crescer,
entre perplexos e desorientados: a renda se espalha. Esta erra-
alguns ignoram os aspectos éticos dicação exige a oferta universal
da pobreza, outros tentam incor- dos bens e serviços essenciais,
porar o assunto, mas não sabem que podem ser produzidos com
como combinar enriquecimento o emprego da população pobre
e desempobrecimento. Porque a através do pagamento de incen-
erradicação da pobreza com a li- tivos sociais.
bertação das necessidades essen- A economia está hoje desorienta-
ciais para todos é um assunto da da. Continua preocupada apenas
Ética, assim como foi a libertação com o aumento da riqueza ou
dos escravos, séculos atrás. inventa métodos e formas para a
A economia continua definindo abolição da pobreza2?
como pobres aqueles com ren-
da inferior a um determinado Renda ou Patrimônio
valor, separados dos ricos por A palavra riqueza tem origem no
uma linha horizontal da pobreza. conceito de posse, de patrimô-
Define ainda que a erradicação nio. Este conceito permaneceu
da pobreza consiste em elevar a atravessando séculos. Ao longo
renda nacional para que ela se da história, mudou o numerário,
espalhe, elevando a renda dos passando de cultura, na Grécia
pobres acima desta linha. Desta Clássica, para ouro, na Europa
forma, percebe-se que a pobreza Mercantilista, sem perder o sen-
é um estado social de exclusão tido de acúmulo patrimonial. É
aos bens e serviços essenciais; muito recente a transformação do
que os pobres estão separados conceito patrimonial da riqueza
dos ricos por uma barreira ver- para o conceito atual de fluxo de
tical da pobreza, isolando os que renda. O conceito de PIB não tem
não têm acesso a esses bens e ainda duzentos anos e já ficou
serviços; e que a erradicação da velho e arcaico, ainda que não
pobreza consiste em garantir aos superado. Mais desorientação:
pobres o acesso a bens e serviços definir riqueza como patrimônio

(13)
Trabalho, Organização e Economia

acumulado ao longo dos tempos das Nações Unidas.


ou continuar como sinônimo de O fluxo anual de riqueza indicado
renda consumida a cada ano? pelo PIB não satisfaz uma lógica
Em uma realidade econômica nova, ansiosa por levar em conta
com a ecologia ameaçada, não o patrimônio natural e cultural,
é lógico entender que a econo- aumentar o tempo livre, elevar a
mia enriquece porque os longos qualidade de vida. Mas ainda não
engarrafamentos das grandes há outro indicador: o resultado é
cidades aumentam o PIB ao que a economia fica desorienta-
gastar mais combustível. Este da entre a tradição da renda e
aumento do consumo depreda as a falta de uma riqueza medida
reservas petrolíferas e desespera pelo patrimônio acumulado da
os passageiros, roubando-lhes sociedade. Os economistas ficam
tempo de vida e matando seus perplexos: alguns, por preguiça
lazeres; provoca destruição de intelectual ou incompetência
patrimônios culturais para per- técnica, continuam usando o
mitir a construção de estradas PIB como se nada mostrasse
e viadutos; esquenta o Planeta; sua falência; outros reconhecem
polui a atmosfera; rouba recursos as falhas do precoce envelheci-
públicos para corrigir o trânsito mento do PIB, mas não aceitam
no lugar de atender às neces- qualquer outro índice.
sidades sociais e empobrece o
oxigênio. O aumento da renda, Produto ou Civilização
do consumo e do PIB, graças a Mesmo o conceito de patrimô-
um engarrafamento, ao depredar nio entrou em crise, deixando
a natureza, empobrecer a vida a economia desorientada. Até
de indivíduos e desestruturar a aqui, quando medido, o pecúlio
sociedade, não pode servir como considera a soma dos bens ma-
indicador de riqueza de uma eco- teriais produzidos pelos homens
nomia nacional.3 no passado, o que já não basta
O PIB ficou burro e imoral como como dimensão da totalidade do
indicador de riqueza, mas os patrimônio.
economistas não conseguem A economia está desorientada
inventar com clareza um me- porque já não aceita o fluxo
lhor índice alternativo, apesar como medição de sua eficiência,
das propostas como o Índice de mas também porque, prisioneira
Desenvolvimento Humano (IDH) da valorização do produto mate-

(14)
Trabalho, Organização e Economia

rial dos homens, não sabe como Modernidade ou Tradição


medir a totalidade do patrimô- A economia da produção anual,
nio; não sabe como dar valor à da renda no lugar do patrimônio,
Natureza ou à Cultura. A própria é uma atividade destrutiva
Lógica, necessariamente antropo- por excelência. Para produzir,
cêntrica, não consegue valorar a a economia destrói o tempo
produção intelectual, uma obra todo. Destrói a natureza para
cultural, nem o aumento da es- apropriar-se de seus recursos e
piritualidade; também não sabe nela jogar seu lixo; o patrimônio
como estimar o valor intrínseco cultural, para forçar o consumo
de uma floresta virgem, um rio de novos produtos; e a vida,
de águas limpas e uma espécie para produzir bens. A economia
em extinção. é uma atividade de destruição
A prática religiosa termina sendo em nome da produção, e em
considerada um ônus pela redu- nome da modernidade destrói a
ção da capacidade produtiva. Em tradição. Mas, aos poucos, o fim
vez de ser considerada elevação de tradições mostra um mundo
civilizatória, uma obra prima é mais pobre. Esta constatação
medida pelo valor de mercado, provoca uma desorientação na
e não pelo que acrescenta es- economia, que se divide entre
teticamente à humanidade. O a modernidade e a tradição
tempo livre é contestado pela porque já não quer destruir tudo
perda de produção, e não pela que é velho, mas não sabe como
valorização do lazer. A Natureza valorar o que não produz, a cada
é medida pelo valor gasto por dia, como novidade.
turistas que queiram pagar para
conhecer seus lugares. A Cultura, Antropocentrismo ou
por aqueles que desejam gastar Ecologismo
para fotografar seus monumentos. A economia nasceu com um peca-
Mede-se o produto do homem, do original: localizada apenas ao
não a civilização em si, seu en- lado da sociedade, considerando
grandecimento, incluindo a parte a natureza como fonte de recursos
invisível das artes, das ciências, e depositário de lixo. Esta visão
da espiritualidade, da alegria, da unilateral da economia, como
paz, do pensamento, dos jogos, do o processo de produzir bens e
tempo livre e do valor intrínseco serviços, funcionou corretamen-
da Natureza. te enquanto a Natureza parecia

(15)
Trabalho, Organização e Economia

uma dispensa inesgotável e uma Trata-se de uma nova ótica, aliada


lixeira infinita. a uma nova ética, exigindo uma
A consciência dos limites nova lógica.
ecológicos exige uma mudança
nesta visão. Nação ou Planeta
A economia precisa incorporar Da mesma forma que nasceu
a natureza como parte de sua sob a ótica social, ignorando a
lógica e considerá-la parte de seu Natureza, a economia nasceu no
patrimônio. Mas não sabe como espaço nacional, desprezando a
fazer isso e fica desorientada. visão planetária. Tanto na sua
As tentativas de incorporação da pré-história ou no Mercantilismo,
natureza caem sempre na lógica quanto no seu período clássico,
econômica, levando em conta a economia buscou realizar
o custo de destruição dessa a riqueza de cada nação. As
para a economia, pela redução teorias de desenvolvimento
dos recursos naturais ou pelo também se basearam na busca
aumento dos custos de produção do enriquecimento.
e de vida, mas não pelo valor da O futuro exige uma economia
Natureza em si. planetária, mas todo arcabouço
A desorientação na forma de da ciência econômica continua
considerar a natureza como vinculado à nação. A economia
parte do valor econômico tem se desorienta: não há mais uma
um impedimento maior do que a única economia isolada, mas
própria economia, tem a ver com cada uma delas tem a si própria
a própria lógica. Desenvolvida a por objetivo. Apesar de o planeta
partir da ótica humana, a ciência hoje ter um conjunto de donos
econômica não poderá se furtar – no sistema financeiro e nos
de seu viés antropocêntrico, grandes blocos econômicos –,
mas já não cabe nesta ótica. a humanidade ainda age como
Fica desorientada entre o uma soma de tribos. Cada nação
antropocentrismo e o ecologismo, elege seus dirigentes, mas cada
visto como um novo olhar sobre um deles tem poder de provocar
“o processo pelo qual as pedras, impactos em todo o planeta,
as plantas e os animais são ainda que alguns mais do que
transformados nos homens e em outros.
seus produtos”, e não como um Um presidente eleito por dife-
movimento de conservacionistas. rença mínima de votos em uma

(16)
Trabalho, Organização e Economia

das cidades de seu país toma Paz ou Guerra


decisões que repercutirão em Concentrada no fluxo de renda
toda a Terra – a vontade é lo- como indicador de riqueza, a
cal, os impactos são mundiais. economia carrega como seu
O atual presidente dos Estados máximo paradoxo a percepção
Unidos, eleito com menos votos equivocada de que a guerra é um
do que seu opositor graças a uma elemento positivo porque eleva a
insignificante maioria em um dos produção, gera emprego, reduz o
estados, logo depois de sua posse, número de desempregados e au-
rompeu acordos internacionais menta a renda per capita graças
de proteção ambiental, como ao aumento na mortalidade. É
o acordo de Kyoto, e defendeu um absurdo ético carregado de
uma economia depredadora que lógica. Apesar de imoral, esta
poderá afetar o equilíbrio ecoló- lógica resistiu nas guerras tra-
gico e ameaçar a vida em todo o dicionais, como na Primeira e
planeta, por muitos séculos. Segunda Guerras Mundiais. Mas
O comércio internacional é ela se esgota na guerra nuclear,
feito sob a ótica de cada nação, que destrói além dos limites, e
nada tem de visão planetária. na guerra inteligente dos últimos
Mesmo quando buscam uma anos, que não provoca destruição
visão planetária, são os países de equipamentos ou mortes.
independentes que, com seus As guerras tradicionais destru-
interesses específicos, elegem os íam equipamentos nos campos
dirigentes dos órgãos internacio- de batalha e produziam os
nais, definindo políticas globais, equipamentos nas fábricas da
mas respondendo politicamente retaguarda. As guerras modernas
aos interesses nacionais de cada destroem os países adversários,
país que os elege. mas não induzem produção nos
A economia, arraigada a cada na- países vitoriosos. Elas se limitam
ção, não consegue captar o drama a provocar uma expressiva vitória
planetário da globalização. Sem política, nada mais. As guerras
poder romper com o nacionalis- contra Iraque, Iugoslávia e
mo, economia e política precisam Afeganistão pouco provocaram
descobrir que cada país é inde- de incentivo produtivo.
pendente, mas sua soberania tem A economia fica desorientada,
que ser regulada pelos interesses continua sem querer a paz, mas
do “Condomínio Terra”. não sabe como usar a guerra.

(17)
Trabalho, Organização e Economia

Presente ou Futuro ficam desorientadas, pensam


As decisões econômicas são por nações no imediato e agem
tomadas com base em curto provocando impactos planetários
horizonte de tempo de, no duradouros.
máximo, algumas décadas.
Aplicando-se as taxas de Democracia ou Condomínio
juros, os custos e os benefícios A democracia é um sistema
postergados por três décadas nacional e de curto prazo, em
são considerados nulos. Mas um mundo cuja economia pre-
algumas das decisões tomadas cisa de uma lógica global e de
hoje terão impactos ao longo longo prazo. Durante muitas
de séculos, pela desarticulação décadas ainda será impossível
da economia, e até mesmo por inventar e fazer funcionar uma
milhares de anos, pelo impacto democracia internacional está-
ecológico. vel. O caminho será compor as
Políticas econômicas com democracias nacionais com uma
horizonte de apenas alguns anos, justiça internacional, que seja
talvez alguns meses, devastaram capaz de impor o controle sobre
países como Argentina e Rússia cada economia, como forma de
por muito tempo. A decisão manter o equilíbrio ecológico,
de construir a usina nuclear forçar a distribuição de renda,
de Chernobyl levou em conta regular o fluxo migratório, aten-
apenas algumas décadas, mas der às necessidades básicas de
seus efeitos durarão alguns toda a humanidade em um mundo
milhares de anos. A destruição da global. No entanto, mesmo isso é
Amazônia, a depredação rápida impossível. Por um lado, devido
dos poços de petróleo, cada à dificuldade técnica conceitual,
decisão é voltada para o imediato, por outro porque este novo sis-
mas suas conseqüências são de tema seria feito para corrigir os
longo prazo. limites da nacionalidade com
Mesmo as decisões democráticas, base no poder nacional contem-
baseadas nos interesses dos porâneo. Por isso, a economia fica
eleitores de cada nação, desorientada entre as decisões
raciocinando conforme democráticas, nacionais e as
interesses de suas curtas vidas, exigências de uma democracia
têm impactos de longo prazo. internacional ainda não criada.
A democracia e a economia A solução é ver o planeta como

(18)
Trabalho, Organização e Economia

um condomínio, onde cada país mesmo quando percebe que esta


tem sua soberania interna, mas lógica não funciona.
deve respeitar regras de vizi- Graças a políticas dirigidas dire-
nhança. A economia da cada país tamente à solução dos problemas
deve levar em conta o impacto de sociais, o estado de Kerala, na
suas decisões locais sobre as cul- Índia, tem a mesma renda per
turas, as economias, o clima e o capita do resto do país e taxas
equilíbrio ecológico além de suas de mortalidade infantil, de al-
fronteiras, nos países vizinhos e fabetização e de escolaridade
em todo o planeta. equivalentes às da Europa; são
políticas executadas ao longo de
Feminina ou Masculina décadas, graças ao poder femi-
O machismo, ao longo dos sé- nino em exercício nesse estado
culos, fez com que a ciência indiano.
econômica observasse o mundo Mas a economia não consegue
sob uma lógica e com sentimento fazer o salto de uma lógica para
masculinos. Ao perceber a pobre- outra, não consegue incorporar
za como o contrário da riqueza, nos seus princípios os valores
a economia busca solucionar a éticos da urgência para a solu-
escassez social da mesma forma ção dos problemas sociais, e fica
como um homem busca solucio- desorientada.
nar a escassez familiar: procura
emprego, trabalha um mês, rece- Fiscais ou Sociais
be salário, para só então prover as Ao longo de cinqüenta anos, os
necessidades da casa. Na lógica incentivos sociais foram os mais
feminina, se falta comida em tradicionais instrumentos da eco-
casa, é preciso encontrá-la antes nomia para induzir o crescimento:
do final do dia. Para isso, procu- os governos faziam sacrifício fis-
ra-se ajuda, envia-se crianças cal em benefício dos empresários
para trabalhar ou pedir esmolas, que desejassem investir. A idéia
mas não se adia a solução da por trás era de que os investimen-
escassez. A lógica masculina da tos criavam emprego e produziam
economia não tem urgência ética bens de consumo para atender à
na procura de solução imediata demanda dos ricos e, em conse-
para os problemas sociais. A qüência, pagavam salários a seus
ciência econômica continua empregados, que comprariam os
pensando de forma masculina, bens necessários para atender às

(19)
Trabalho, Organização e Economia

suas necessidades. A realidade relação ao padrão de renda e con-


mostrou que estes incentivos sumo. O resultado deste processo
fiscais pouco adiantaram para foi uma padronização tão rápida
reduzir ou erradicar a pobreza. e brutal no século XX, que a hu-
Em países como o Brasil, eles manidade começou a perceber o
serviram para provocar migração empobrecimento que decorria da
do campo para as cidades, agra- morte de culturas.
vando o quadro de pobreza. Em Ainda que mantendo a desigual-
seu lugar, um instrumento efi- dade entre pessoas, viu-se uma
ciente seria utilizar os incentivos padronização entre países. O
sociais. Estes podem ser diretos, mundo do começo do século XX
quando oferecem uma renda é um mundo terceiro mundista,
aos pobres desempregados para onde os ricos consomem, vivem e
produzirem os bens e serviços pensam de uma maneira padroni-
essenciais, cuja carência carac- zada, como se fossem habitantes
teriza a pobreza, a exemplo do de um mesmo primeiro mundo in-
Bolsa-Escola, Poupança-Escola, ternacional dos ricos. Não impor-
Bolsa-Alfa e programas de im- ta o país onde vivam; os pobres
plantação de sistemas de água continuam desiguais, formando
e esgoto; e indiretos, que pagam um arquipélago social 5 .
aos não pobres para produzirem O final do século XX foi um perí-
bens e serviços essenciais, como odo de consolidação dos grandes
salários dignos para professores blocos, com a padronização entre
da rede pública e contratação de os países e, ao mesmo tempo, do
profissionais da saúde. fortalecimento de etnias dentro
Mas, entre os incentivos fis- de cada um deles.
cais e os incentivos sociais, a Do ponto de vista econômico, este
economia titubeia, insegura e multiculturalismo é não apenas
desorientada.4 custoso, mas ineficiente. Ao
mesmo tempo, o que se percebe é
Padronização ou uma desorientação entre os ape-
Multiculturalismo gos tribais pelo multiculturalismo
A economia nasceu buscando e a marcha pela padronização.
enriquecer cada nação, mas so-
nhando com uma padronização Ferro ou Ouro
que fizesse todas elas não apenas A partir do pensamento básico de
igualmente ricas, mas iguais em Adam Smith, a ciência econômica

(20)
Trabalho, Organização e Economia

evoluiu com contribuições de encontram os seres humanos.


economistas situados dentro A economia que enfrentou e
dessa idéia original. Sem derrubou a cortina de ferro não
considerar as formulações dos tem propostas para derrubar a
utopistas, Marx foi a primeira cortina de ouro, construindo uma
tentativa bem sucedida de sociedade humana integrada, sem
contestar o pensamento clássico exclusão.
de Smith, mas ficou à margem
da corrente principal. Depois da Igualdade ou Semelhança
revolução socialista na Rússia, O final do século XVIII trouxe
por mais de setenta anos o os sonhos da possibilidade de
pensamento econômico ficou igualdade de direitos entre todos
dividido por uma cortina de ferro, os seres humanos, rompendo sé-
entre o pensamento capitalista e culos de diferença entre grupos
o pensamento socialista. Com o sociais. A economia adicionou
fim do socialismo, o pensamento o sonho da igualdade na renda,
econômico volta à sua unidade, no consumo, seja por meio da
com uma identidade única justiça das políticas sociais
relacionada basicamente com o do socialismo ou da eficiência
chamado neoliberalismo. Mas a das políticas econômicas do
realidade do mundo sem a cortina capitalismo. Diante dos limites
de ferro não foi de integração ecológicos, o começo do século
social. Ao contrário, o mundo XXI apresenta a impossibilida-
ficou ainda mais dividido: não de de igualdade no consumo: é
mais por uma cortina geográfica e inviável a todos os seres humanos
ideológica, mas por uma barreira o acesso às imensas alternativas
entre grupos sociais. Uma cortina de produtos existentes. Em razão
de ouro, que separa incluídos de da impossibilidade da igualdade,
excluídos, ricos de pobres. se apresenta o risco de uma radi-
A economia, entretanto, não calização da desigualdade, pro-
consegue captar esta realidade vocando mais do que diferença
de uma cortina de ouro – uma dessemelhança entre os
substituindo a cortina de ferro. seres humanos.
Desorientada, ela cai na ilusão A observação do processo histó-
da integração mundial como rico, especialmente na evolução
se fosse um fato, sem perceber econômica das últimas décadas,
a trágica divisão em que se demonstra que o mundo caminha

(21)
Trabalho, Organização e Economia

a passos largos para a quebra da a economia fica desorientada


semelhança, com a ruptura da entre uma liberdade contra a
espécie humana em dois grupos igualdade ou uma igualdade que
biologicamente diferenciados, requer o fim da liberdade.
social e eticamente desseme- Como alternativa a estes dois
lhantes. Mas a ética prevalecen- caminhos repugnantes, estaria a
te continua presa aos princípios idéia de uma sociedade sem ex-
tradicionais da semelhança e o clusão social, com semelhança
resultado é uma desorientação entre os seres humanos, em que
da economia: fala em produção todos tivessem acesso aos bens e
para todos, mas produz para uma serviços essenciais, mas onde a
minoria. desigualdade no acesso aos bens
É eticamente inaceitável deixar e serviços supérfluos pudesse ser
continuar a evolução em direção tolerada. Contudo, esta posição
à ruptura da espécie humana, e não é aceita pelos economistas,
irreal propor a igualdade pro- divididos ainda entre os que
metida nas utopias socialistas. insistem na igualdade plena de
Assim, a economia fica deso- liberdade a qualquer custo e os
rientada entre continuar sonhan- que defendem a liberdade de
do com a igualdade ou lutar para desigualdade a qualquer custo.
garantir a semelhança entre os
seres humanos. Mercado ou Planejamento
Até recentemente, a economia
Igualdade ou Liberdade estava dividida entre os
No século XX, a civilização que defendiam o caminho
industrial evoluiu com base em da liberdade do mercado
um tripé sinérgico: liberdade, como forma de regular seu
igualdade e avanço técnico. funcionamento e aqueles que
Cada um destes três vetores se defendiam a intervenção do
ajudavam mutuamente, porém o Estado no planejamento dos
século XXI fez por quebrar esta atores econômicos. Havia
sinergia. A liberdade individual discordâncias, mas não havia
hoje aumenta a desigualdade e, desorientação: optava-se por um
ao mesmo tempo, é ameaçada por lado ou outro.
ela. O avanço técnico ameaça a A história recente mostra que
liberdade e provoca a ruptura o planejamento é incompetente
biológica da espécie. Novamente, e autoritário, o liberalismo é

(22)
Trabalho, Organização e Economia

injusto, amoral e incompetente, nem sabe como, mudar do


mas não está apontando para mundo-da-quantidade para o
um caminho alternativo a mundo-da-qualidade, e fica
estas duas possibilidades. A desorientada.
economia está desorientada,
sem saber como fazer funcionar Desejo ou Necessidade
a produção dos bens públicos Em sua fase natural, dos homens
sem usar o planejamento, e primitivos, a economia servia
como fazer funcionar a produção para suprir necessidades. Em
dos bens privados com o uso sua fase moderna, de produzir
do planejamento. Um caminho enlouquecidamente, ela teve que
poderia ser planejar a produção substituir as necessidades por
dos bens e serviços essenciais demandas. Como conseqüência,
e liberar para o mercado a a economia ficou injusta porque
produção dos bens privados. passou a ignorar as necessidades
Mas esta alternativa não resolve dos pobres em benefício da
o problema de como controlar os demanda dos ricos. E para isso,
efeitos nocivos da produção dos substituiu necessidades por
bens privados: no trânsito, no desejos, muitas vezes induzidos.
meio ambiente, na desigualdade, Ao final do século XXI, a
na violência. realidade social da humanidade
exige o limite no atendimento
Quantidade ou Qualidade desses desejos como forma
O sonho de transformar a econo- de frear a crise ecológica e
mia em uma ciência com equiva- evitar a destruição da vida; e a
lência epistemológica à física fez redescoberta das necessidades
os economistas submeterem todos como forma de resgatar a ética
os seus modelos a variáveis quan- e evitar a ruptura da espécie
tificáveis. Como conseqüência, a humana.
busca de qualidade de vida foi
abandonada em troca da busca do
aumento da quantidade de bens Consumo ou Felicidade
consumidos. O resultado é uma A economia trabalha o consumo
sociedade rica e pobre: rica na assumindo que este leva à
quantidade de consumo e pobre realização do ser humano. Já
na qualidade de vida. percebe que o ato de consumir
Mas a economia não tem como, não preenche todos os sonhos

(23)
Trabalho, Organização e Economia

nem aspirações de ser feliz, considerá-lo de uma maneira


mas não consegue incorporar acurada, científica.
a dimensão da felicidade, nem
criar uma ponte entre o consumo Lazer ou Trabalho
e a felicidade. A economia teve seu pilar no
culto ao trabalho. O emprego da
Prazer ou Bem-Estar mão-de-obra sempre foi o meio
Embora não consiga incorporar para produzir e o objetivo cen-
a dimensão da felicidade, e até tral da existência dos indivíduos.
considere este um assunto dos Ainda que prevalecesse a idéia
psicólogos e dos filósofos, os de reduzir o esforço e o tempo
economistas nunca se furtaram a de trabalho, a economia sempre
considerar o assunto do prazer ao manteve o trabalho humano como
falar de hedonismo; contudo, não o instrumento de transformação
conseguem transformar prazer em da natureza em bens e produtos
bem-estar. de sobrevivência dos indivíduos
Prazer se obtém pelo consumo, e da espécie, de construção da
por exemplo, de produtos eróticos; civilização e da realização pes-
bem-estar, pela realização plena soal dos seres humanos; mas, a
da sexualidade. O amor está partir dos últimos anos do século
para a pornografia como o bem- XX, com a revolução da informá-
estar está para o prazer. Os dois tica e conseqüente automação, a
convivem, se somam, mas não se economia dá um salto e realiza
identificam. O passageiro dentro uma ruptura com a necessidade
de um automóvel de luxo, com ar de trabalho.
condicionado e sistema de som, Por um lado, porque, de maneira
falando pelo celular, prisioneiro radical, o homem passa a ser
no trânsito, pode estar sentido substituído por máquinas inte-
prazer, mas não está vivendo ligentes; por outro, porque só
com bem-estar. A economia não pessoas com formação técnica
consegue dar o salto do prazer podem ser utilizadas para o pro-
– quando o considera – para a cesso produtivo. Neste contexto,
elevação no grau de bem-estar a economia ainda está orientada
individual, e ainda menos no pelo culto do trabalho, mas já em
bem-estar coletivo. Não apenas condições e necessitando presti-
pela desconsideração do assunto, giar uma sociedade do lazer.
mas também pela dificuldade em Diversos autores, como Domenico

(24)
Trabalho, Organização e Economia

de Masi, começam a escrever so- emprego e não de função. Ela


bre o assunto; alguns políticos remunera o trabalho, mas não o
começam a colocar em seus lazer comprometido com a ética
objetivos a redução do tempo da abolição da pobreza através do
de trabalho; mas a economia, produtivismo social6.
como se estivesse desorientada, Desorientada, a economia reage
continua reagindo perplexa, sem à idéia de remunerar funções:
entender como estruturar uma a mãe para cuidar dos filhos
sociedade do lazer. – o Bolsa-Escola 7 –, o adulto
para aprender a ler – o Bolsa-
Emprego ou Função Alfa8– e um jovem para estudar
Submetidos à lógica econômica, – o Poupança-Escola9.
os seres humanos entram no Programas como estes constituem
século XXI vivendo a tragédia incentivos sociais que remuneram
do desemprego. O mundo já não funções e promovem atividades
precisa de tanto trabalho para produtivas de interesse social.
produzir o necessário, mas as Não se trata de remunerações por
pessoas continuam precisando emprego, tampouco de benefícios
de emprego para sobreviver. laborais. São remunerações por
Mesmo quando já não há mais funções, ainda não entendidas
oferta, o emprego continua sendo corretamente pela economia em
o caminho da sobrevivência; as sua fase de desorientação.
necessidades sociais continuam
gritantes, mas uma imensa parte Liberalismo ou
da população mundial fica de- Neokeynesianismo
sempregada; o mundo vive a de- O keynesianismo foi uma das
sorientação estúpida de recusar grandes revoluções do pensa-
o uso da energia de bilhões de mento econômico. Graças a ele,
adultos, ao mesmo tempo em que o mundo saiu de uma terrível
condena estes adultos à escassez crise de desemprego e recessão,
dos bens e serviços essenciais. mas esta corrente gerou inflação,
Desorientada, a economia é inca- ajudou a induzir a crise ecológica
paz de encontrar formas de mobi- e acabou sendo substituída pelo
lizar a população desempregada liberalismo. Agora o liberalismo
para produzir os bens e serviços mostra sua face socialmente
de que ela própria necessita, perversa, eticamente imoral,
porque a economia entende de ecologicamente destruidora e

(25)
Trabalho, Organização e Economia

politicamente inviável na ausên- privados aumentou o consumo


cia de um sistema de apartação10. e exigiu elevados investimentos
A economia, porém, se desarvora em capital sem gerar empregos,
desorientada diante do risco in- agravando a crise ecológica; a
flacionário do keynesianismo e produção de bens públicos, por
do risco social do liberalismo. outro lado, não exige elevados
A solução poderia ser o produ- investimentos em capital, gera
tivismo social – empregar com empregos e protege o meio
incentivos sociais para produzir ambiente.
bens e serviços essenciais – mas Na economia contemporânea,
a economia resiste, prisioneira ao mesmo tempo em que se
do passado e desorientada no concentra a renda privada e
presente. se produz para indivíduos, a
oferta de bens sociais continua
Público ou Privado limitada por uma produção
A economia foi exitosa na insuficiente, deixando a economia
produção dos bens privados, desorientada – prometendo e
que atendem à demanda de cada desejando produzir para todos,
indivíduo, mas foi incompetente mas concentrada em atender
na produção dos bens públicos, às necessidades de apenas uma
que atendem às necessidades do parte da população.
conjunto da sociedade. Ao longo A economia terá de sair de sua
das décadas, viu-se enorme desorientação atual e ser capaz
aumento na produtividade de de induzir o aumento da produção
bens privados, mas os bens de bens privados, superando a
públicos continuam sendo escassez de bens públicos.
gerados a uma taxa próxima a
que se via anteriormente. Concentrar ou Distribuir
No mundo moderno, produtos Acreditava-se, até pouco tempo,
industriais são fabricados em que a economia era uma máquina
larga escala, ao passo que os distributiva, que a mecânica do
sistemas de água e esgoto, a processo produtivo forçava a
educação e a saúde, o transporte distribuição de renda e produto
público e a habitação continuam por causa do excedente e da queda
sendo produzidos de forma marginal de valor de cada bem
tradicional. Graças ao avanço ou insumo. A realidade mostra
técnico, a produção de bens que, no lugar de distribuir, a

(26)
Trabalho, Organização e Economia

economia concentra. No entanto, Macroeconomia ou


ela não satisfaz concentrando, Totaleconomia
nem consegue se livrar dessa A ciência econômica se dividiu
maldição. Fica desorientada, entre macro e microeconomia,
querendo distribuir, mas fazendo imaginando que esses dois lados
o necessário para concentrar. seriam capazes de incorporar
toda a dimensão do problema
Estrutura ou Superestrutura geral de produção e distribuição.
A economia nasceu pensando a Hoje, percebe-se que a economia
conjuntura. Evoluiu no período exige um salto capaz de levá-la
neoclássico para concentrar-se além da macro e captar a totali-
no curto prazo e, no final do dade da dimensão dos impactos
século XX, consolidou-se como de decisões e ações econômicas.
ciência puramente conjuntural, Quando uma decisão microeco-
limitada ao equilíbrio de curto nômica provoca o desemprego em
prazo. Nesse período, algumas uma fábrica, a macroeconomia
escolas reagiram ao pensamento considera seu impacto sobre a
circunstancial, defendendo um renda geral e a produção nacio-
modo de pensar estrutural, mas nal, mas não capta a totalidade
limitado ao imediato. dos impactos do desemprego:
A realidade de hoje, de uma eco- sobre os gastos sociais, sobre a
nomia planetária, exige o retorno violência, sobre a produtividade
ao pensamento estrutural, porém a longo prazo; deixa de lado os
em dimensão mais ampla: tanto verdadeiros impactos do processo
no tempo, a longo prazo, como produtivo e dos gastos públicos
nos atores, indo além da socie- sobre a vida das pessoas na saú-
dade e considerando a Natureza; de, na auto-estima, na violência,
e também no político nacional, no trânsito, no uso do tempo, na
levando em conta a responsa- qualidade do ar. A economia vai
bilidade de cada nação com o precisar dar um passo adiante
conjunto da sociedade universal. de maneira a incorporar todas as
Mas a economia não sabe como chamadas externalidades dentro
dar esse passo e fica desorientada de seu arcabouço teórico, uma es-
– descontente com o pensamento pécie de totaleconomia que con-
conjuntural e incapaz de dar um sidera a totalidade dos impactos
salto para o pensamento superes- de cada gasto econômico.
trutural. Se os objetivos da modernidade

(27)
Trabalho, Organização e Economia

estão em propósitos de enriqueci- Egoísmo ou Altruísmo


mento, além de mudar o conceito A inteligência da economia está
de riqueza, a economia deve con- no egoísmo de cada indivíduo,
siderar a totalidade do que ocorre que é a base sobre a qual se
no processo civilizatório. Mas, sustém o edifício do pensamento
envolvida com os limites que econômico contemporâneo – o in-
traçou para a macroeconomia, teresse próprio individual regeria
considerando tudo mais como eficientemente a economia; o edi-
externalidade, a economia não fício social seria construído pela
consegue dar o salto que dela vontade de cada indivíduo que se
espera a humanidade, ficando equilibra pela força do egoísmo
desorientada. dos demais.
Sem o princípio do egoísmo he-
Realidade ou Ilusão donista nenhuma lei econômica
A economia contemporânea dei- se mantém. Mas o egoísmo ficou
xou de ser uma fábrica nacional e burro, porque, no mundo de hoje,
se transformou em cassino global. com técnicas disponíveis para se
Ela gira em torno de artifícios apropriar de uma parte do mun-
financeiros, jogos em mesas de do, cada indivíduo ameaça sua
câmbio, roletas de ações. Um própria sobrevivência. Ao ter
imenso edifício de compra e um carro privado, cada pessoa
venda de papéis ou de impulsos aumenta o tempo necessário a
digitais criou uma economia arti- seu deslocamento devido aos
ficial e subjetiva, que pouco tem engarrafamentos; ao consumir
a ver com a realidade “do belo mais, todos ajudam a depredar
processo de transformação das o meio ambiente; ao concentrar
pedras, plantas e animais em a renda em benefício de uma
homens e seus produtos”. Mas minoria, a maioria se rebela na
este sistema, além de estúpido violência urbana dos dias de
do ponto de vista ético e lógico, hoje, prejudicando os próprios
é instável e pouco tem a ver com beneficiários.
a realidade de vida das pessoas. Invertendo duzentos anos da ló-
A economia de hoje incomoda a gica social baseada no egoísmo
todos por este artificialismo, mas de cada um, hoje a distribuição
os economistas não conseguem de renda pode oferecer mais em
sair da ilusão para a realidade. qualidade de vida, para quem
perde renda, do que em benefí-

(28)
Trabalho, Organização e Economia

cios que poderiam ser comprados máticos foram três: em primeiro


com esta renda; o sistema públi- lugar, considerar cada indivíduo
co de transporte se mostra mais como máquina de consumir, com
inteligente em relação ao ganho padrões previsíveis; segundo,
de tempo de vida individual. No buscar assumir em sua ciência
mundo de hoje, o egoísmo inte- uma neutralidade legítima entre
ligente exige altruísmo que dis- os cosmólogos, mas imoral em
tribua a renda, mas a economia uma ciência que lida com pes-
não sabe como sair da lógica do soas; terceiro, utilizar a mate-
egoísmo burro. mática desenvolvida pela física,
para objetos de comportamentos
Retórica ou Matemática repetitivos e sem vontade própria,
Foi o egoísmo hedonista e a per- como linguagem para explicar o
cepção da redução marginal do processo social. A economia
valor dos benefícios e custos11, exige uma nova matemática, da
que permitiram o matematismo mesma forma que Newton criou
dos sentimentos, desejos e das novos algoritmos para explicar
vontades com os quais a econo- o movimento dos astros. Mas,
mia trabalha. Mas foi, sobretudo, salvo raras exceções, os eco-
o complexo de inferioridade dos nomistas ficaram prisioneiros
economistas em relação aos físi- de um limitado conhecimento
cos que criou o sofisticado edi- matemático e não conseguiram
fício da economia matemática. criar novos algoritmos; ficaram
A impossibilidade de continuar como um menino que tenta usar
o caminho do egoísmo puro e a seu conhecimento aritmético
necessidade de sua substituição de primeiro grau para contar as
por um egoísmo inteligente abala nuvens. E essa contagem exige
esta estrutura; a necessidade de uma nova matemática, como o
incorporar a ética — não apenas funcionamento da sociedade vai
no pensamento, mas na própria exigir um tipo diferente de lin-
lógica do funcionamento e da in- guagem, capaz de usar a frieza da
tervenção na economia - a obri- matemática casada com a retórica
ga a sair da ilusão da linguagem da moral.
matemática e voltar à linguagem Da mesma maneira que é um
retórica, como forma de pensar e erro fugir das possibilidades da
explicar a ciência. matemática como elemento sim-
Os erros dos economistas mate- plificador da linguagem cientí-

(29)
Trabalho, Organização e Economia

fica, é um erro querer imaginar a realidade física e aqueles que


que o mundo das alternativas pensavam a realidade social. Os
infinitas e mutáveis de cada ser economistas passaram a sofrer de
humano pode ser regulado como um complexo de inferioridade em
o universo dos bem comportados relação aos físicos e começaram
astros celestes. A ciência econô- a tentar explicar a realidade da
mica não pode ficar prisioneira economia através da matemáti-
dos limites da matemática, como ca, buscando fazer previsões tão
desejam alguns, nem se limitar à próximas da realidade quanto
retórica, como desejam outros. aquelas feitas pelos astrônomos.
A economia não será uma ciên- O resultado é um fracasso total.
cia plenamente matematizável A ciência econômica é constan-
enquanto cada ser humano não temente ridicularizada por seus
for transformado em um robô sem erros de previsão. Entretanto, não
vontade própria, como uma pedra é possível – para uma ciência que
perdida no espaço sob o controle explica o imprevisível comporta-
rigoroso da lei da gravidade; mento humano – antecipar o que
ou enquanto a matemática não acontecerá no futuro; neste caso,
evoluir de maneira que lhe seja acertos são exceções.
possível prever cada gesto de A economia tem de entender o
um indivíduo com base em sua seu papel de ciência em que a
estrutura mental e física, em seus imprevisão não é sinônimo de im-
neurônios e células. perfeição – ela pode ser perfeita
Enquanto isso não existe, a eco- justamente em sua imprecisão.
nomia fica desorientada entre a Quando não busca a certeza,
matemática e a retórica. busca o entendimento do incerto
processo pelo qual os homens
Certeza ou Incerteza transformam as pedras, plantas
Em algum momento da história e animais em seus produtos e
do pensamento, a epistemologia civilização, tudo de acordo com
passou a idéia de que a matemá- objetivos e regras mutáveis a
tica é a linguagem da ciência. Só cada instante.
através dela seria possível expli- Mas depois de quase dois sécu-
car, entender e prever o compor- los procurando ser uma ciência
tamento da realidade. Através da igual às outras, a economia fica
economia, esta idéia atravessou a desorientada entre a comprova-
muralha entre os que pensavam da fragilidade de seus modelos e

(30)
Trabalho, Organização e Economia

previsões e seu sonho de confun- Protegidos pela neutralidade do


dir perfeição com certeza. conceito de equilíbrio, os eco-
O uso da probabilidade não nomistas jamais consideram a
resolve este problema, porque economia feia e imoral.
não se trata de erros dentro das A realidade do mundo de hoje,
margens de previsões, mas da de imensa riqueza rodeada de
impossibilidade total de ante- terrível pobreza, tem de adquirir
cipar o que acontecerá adiante. um conceito de harmonia, e não
Marx, talvez o maior dos gênios apenas de equilíbrio – harmonia
científicos na explicação do na relação dos homens com a
funcionamento do capitalismo, natureza, nas relações entre os
fracassou redondamente na seres humanos, e destes com as
previsão do futuro; não poderia gerações futuras.
imaginar que, logo depois de sua A economia mundial não é
morte, o avanço técnico, base de apenas instável, ela é feia – na
toda sua formulação, mudaria de desigualdade social, na depre-
dentro da fábrica para fora dela, dação ecológica. O mesmo vale
deixando de ser vetor de aumen- para cada economia nacional. A
to da produtividade e redução de economia não é apenas desequi-
necessidades para transformar-se librada, mas também feia.
em vetor de criação de produtos e As economias precisam ser não
indutor de necessidades12. apenas equilibradas ou dinâmi-
cas, mas harmônicas e bonitas.
Harmonia ou Equilíbrio Os economistas ficam desorien-
Ao nascer, influenciada pelas tados quando se imaginam como
bases epistemológicas da física, estetas e moralistas; ou quando
a economia passou a copiar o pensam o processo econômico
conceito de equilíbrio. O conceito como um enorme ballet de pes-
não se justifica: primeiro, porque soas com gostos volúveis e o
o equilíbrio é uma qualidade de sonho de construir um projeto
objetivos físicos, da mecânica, e adiante. A metáfora da física
não se aplica a um fenômeno im- não serve para a economia, e a
previsível como o funcionamento do ballet não parece satisfatória.
da economia; segundo, porque A economia fica desorientada:
este funcionamento provoca do- os economistas tentam consertar
res e sofrimentos, e não apenas os desequilíbrios sociais como
quedas. mecânicos, em vez de procurar

(31)
Trabalho, Organização e Economia

assessorar o concerto social, secadores do animal social, os


como maestros. economistas se comportam como
O problema se agrava, desorien- neutros anatomistas. A economia
tando ainda mais a economia, busca ser uma ciência baseada
quando se considera a harmo- na razão, mas ela não será capaz
nia interior de cada indivíduo. disso e de, ao mesmo tempo,
Como a teologia do século XX, incorporar os valores éticos nas
a economia comportou-se de ma- relações sociais e na dimensão
neira até mesmo irresponsável no ecológica. Mas ela não pode, tam-
tratamento de assuntos da huma- pouco, abandonar a razão e cair
nidade, ignorando totalmente os no sentimentalismo das vontades
aspectos da felicidade e harmonia ideológicas. A economia fica de-
de cada ser humano. Ao longo de sorientada em meio ao caminho
sua história, a economia foi vetor sentimental de economistas que
eficiente do crescimento do con- sofrem com a pobreza e a frieza
forto e da esperança de vida, mas dos que não percebem que os ato-
foi um instrumento de aumento, res da economia são pessoas. A
e não de redução, das angústias economia tem de descobrir uma
individuais. A economia foi um forma nova de pensar, na qual o
elemento de desarmonização dos sentimento seja parte integrante
seres humanos, vistos em suas da própria lógica que tenta ex-
individualidades: a desarmonia plicar a maneira como “as pe-
pelo desenraizamento devido dras, as plantas e os animais se
às migrações, pelo excesso de transformam nos homens e seus
desejos criados, pela impossi- produtos”.
bilidade de atender aos anseios A encruzilhada do presente
de consumo, pelo desemprego, exige não apenas reconhecer o
pelo descontentamento com a fracasso da pobreza lógica usada,
renda e o acesso a bens de con- mas também, depois de corrigir
sumo. Apesar de todo seu êxito, os erros lógicos, incorporar o
a economia foi, ao longo de sua sentimento à forma de pensar:
história, um elemento perverso pensar-sentindo.
do ponto de vista da harmonia
individual. Crise ou Tragédia
Tanto quanto o conceito de equi-
Sentimento ou Razão líbrio, a idéia de crise mostra a
Até aqui, como se fossem dis- imoral busca de neutralidade dos

(32)
Trabalho, Organização e Economia

economistas diante dos aconte- termos neutros de crise, e assu-


cimentos por eles provocados. mir a tragédia da realidade que
O sofrimento da população de ela constrói. Mas a tragédia tem
um país por causa de medidas sido deixada para a literatura: a
econômicas é muito mais do economia se desorienta sabendo
que uma crise: é uma tragédia. do tamanho da crise que ela pro-
O mundo regido pela economia voca ou é incapaz de evitar.
não atravessa apenas crises, vive
uma catástrofe. Técnica ou Ética
Enquanto o conceito de tragédia O século XIX prometia a igual-
não superar o de crise no lingua- dade entre os diversos povos do
jar dos economistas e, através mundo. O século XX construiu a
deles, da população em geral, os diferença entre seres humanos.
homens não terão a real dimensão O século XXI aparenta estar
da gravidade dos fatos atuais. construindo uma apartação que
As sucessivas destruições de provocará a dessemelhança entre
economias nacionais provocadas os seres humanos. Se continuar a
pelos chamados equilíbrios estru- atual modernidade técnica a ser-
turais e pela abertura de frontei- viço de uma parcela da humani-
ras, redução de gastos sociais e dade, dentro de poucas décadas
falta de perspectiva de futuro são o avanço técnico terá provocado
tragédias vividas por centenas de uma ruptura definitiva entre os
milhões de adultos sem emprego, seres humanos, através de uma
crianças sem infância, famílias mutação biológica induzida cien-
sem saúde; também é uma tragé- tificamente.
dia o que acontece em momentos De todas as desorientações da
de loucura ecológica, como nos economia, nenhuma precisa ser
episódios de Chernobyl, Alasca, solucionada com mais urgência
Bophal e de poluição do ar e do que sua hesitação entre cons-
das águas. Ainda mais grave é truir a modernidade técnica ou a
a tragédia ética da humanidade modernidade ética. Para gerar
que, aos poucos, se parte em uma situação em que ocorra o
dois grupos biologicamente di- cumprimento dos sonhos éticos,
ferenciados. seria necessário inverter a tra-
A economia precisa sair da dicional hierarquia da técnica
desorientação do pensamento a como sinônimo de modernidade.
que se acostumou, pensando em Abandonando os valores éticos e

(33)
Trabalho, Organização e Economia

subvertendo o sentido atual pelo construção de um mundo mais


qual o avanço técnico define a rico. Eles poderiam ter procurado
racionalidade econômica, que pensar e sentir comprometidos
por sua vez determina os objeti- eticamente, buscando construir
vos sociais, chegar-se-ia a uma um mundo mais belo e decente.
modernidade onde a ética deter- A economia vive a desorienta-
minaria os objetivos sociais, que ção entre o mundo da arte e o
definiriam a racionalidade eco- mundo da ciência, sem saber
nômica, para só no final fazer-se que caminho tomar e sem saber
uma opção técnica. compor um outro, que misture a
A física e a biologia nasceram da lógica do processo com a ética
abolição de mitos de éticas expli- que reja para onde ir e o espaço
cativas, evoluíram à neutralidade onde atuar.
da lógica, se transformaram em Quando este novo pensamento
ferramentas poderosas de mani- estiver formulado, será preciso
pulação da realidade, adquiriram dar-lhe um nome que explique
o poder de provocar catástrofes e tal processo econômico, funda-
redescobriram a necessidade da mentado entre a ciência e a arte,
ética reguladora. A física com a por sua vez regidas pela ética.
bomba atômica, a biologia com a Esta nova maneira de pensar
clonagem, a informática com o poderia se chamar econologia
poder de controle social – cada – uma mistura de ética, economia
ciência descobre a necessidade e ecologia.13
de ética no momento em que
percebe seu poder catastrófico
de transformar o mundo. A eco-
nomia já adquiriu este poder, mas
não descobriu ainda a necessida-
de de uma ética que o regule.

Ciência ou Arte
A história do pensamento mostra
que os economistas procuraram
entender a lógica da economia
querendo imitar os cientistas,
neutros e lógicos, buscando Este texto foi apresentado pelo autor
explicar e tentando induzir a em palestra no Seminário de Ravello,
Itália, em junho de 2002.
(34)
Trabalho, Organização e Economia

11
1
Sobre o assunto, ver livro do autor: A Cortina A idéia do “marginalismo” indica que
cada parcela adicional de um benefício tem
de Ouro, Editora Paz e Terra, 1995. valor inferior à parcela anterior. O prazer é
2
No livro A Segunda Abolição – um manifesto marginalmente decrescente, na medida em que
propositivo sobre a erradicação da pobreza, se amplia o consumo do objeto do prazer.
Editora Paz e Terra, 1999, o autor propõe 12
Ver sobre este assunto o livro do autor, A
uma forma de keynesianismo produtivo, um Cortina de Ouro – os sustos do final do século
produtivismo social que garantiria a mobilização e um sonho para o futuro, Editora Paz e Terra,
da população pobre e desempregada rumo São Paulo, 1995
à produção do que é necessário para abolir 13
Sobre este assunto, ver livro do autor: A
a pobreza. O exemplo mais conhecido destes Desordem do Progresso, Editora Paz e Terra,
incentivos sociais é o Bolsa-Escola: o pagamento São Paulo, 1992, publicado em inglês como The
de um salário a mães pobres para garantirem a End of Economics, Zed Books, Londres, 1993.
freqüência escolar de seus filhos.
3
Devo ao professor Celso Furtado, em seu
livro Prefácio a uma Nova Economia Política,
Editora Paz e Terra, São Paulo, 1970, o primeiro
contato com o paradoxo do PIB como indicador
de riqueza.
4
Sobre o conceito e propostas programáticas de
incentivos sociais, ver o texto “Projeto Áureo”,
do autor, in Revista República, São Paulo,
Jan/2002.
5
Sobre estes conceitos, ver, do autor, o livro
Admirável Mundo Atual – dicionário pessoal
dos horrores e esperanças do mundo globalizado,
Editora Geração, São Paulo, 2001.
6
Conceito que substitui a idéia do welfare state.
Sobre o assunto ver, do autor, o livro A Segunda
Abolição, op.cit.
7
O Bolsa-Escola é um programa proposto em
1987 e implementado em 1995 em Brasília,
DF, pelo qual as mães de famílias abaixo da
linha de pobreza recebem um salário mensal
sob a condição de que todas as suas crianças
estariam matriculadas e nenhuma delas faltaria
às aulas naquele mês. Logo depois, o programa
foi implantado em todo o Brasil, no México e
em diversos outros países. Em 2002, ao redor do
planeta, estimava-se que cerca de 10 milhões de
mães recebem este benefício.
8
Programa adotado em Brasília, DF, pelo qual o
governo compra a primeira carta escrita na sala
de aula por um adulto alfabetizado.
9
Por este programa, cada aluno oriundo de
famílias abaixo da linha de pobreza, se aprovado
ao final do ano letivo, recebe um depósito em
caderneta de poupança, em seu nome, para ser
retirado se e quando concluir seu curso básico.
10
Conceito criado pelo autor para diferenciar Cristovam Buarque é doutor em Economia pela
o desenvolvimento separado por raças – o Universidade de Sorbonne. Criador do Bolsa-Es-
apartheid – do desenvolvimento separado por
grupos sociais – a apartação. Ver livro do autor O cola e autor de 19 livros sobre educação infantil,
que é Apartação – o apartheid social brasileiro, atualmente é ministro da Educação do Brasil.
Editora Brasiliense, São Paulo, 1994.
(35)
Trabalho, Organização e Economia

Economia e felicidade
Eduardo Giannetti da Fonseca

O roteiro da minha A felicidade pode do universo das


exposição está divi- parecer fora do preocupações de
dido em três partes, universo das um economista mas,
que eu cobrirei preocupações de
na verdade, muito
seqüencialmente. trabalho sério de pes-
um economista
Iniciarei com uma quisa vem sendo feito
reflexão sobre a rela- mas, na verdade, em relação a esse
ção entre economia e muito trabalho tema, que pertence
felicidade, relatando sério de pesquisa ao campo da teoria
algumas pesquisas vem sendo feito econômica conhecido
recentes que indicam em relação a esse como Economia do
anomalias naquilo tema. Bem-Estar.
que esperaríamos Qual o questiona-
dessa relação. Em segundo lugar, mento básico proposto pela
falarei do papel da competição e teoria econômica do bem-estar?
da solidariedade na convivência É o seguinte: o que nos permite
econômica, tentando sugerir afirmar que uma dada situação
algumas hipóteses explicativas socioeconômica seja superior
para as anomalias que descre- a uma outra? Que critério nos
verei na primeira parte. Por permite justificar racionalmente,
fim, num exercício prospectivo, se possível, a preferência por
buscarei refletir acerca do futuro um estado de coisas em relação
e o que ele nos reserva, tanto a outro? Que parâmetro consente
do ponto de vista do que é mais dizer que uma forma de arranjo
provável, como do ponto de vista ou organização sócioeconômica
do que seria desejável, senão é mais desejável, preferível ou
utópico. superior a outra?
Durante muito tempo, os eco-
Economia e felicidade nomistas, imitando as ciências
A felicidade pode parecer fora naturais, buscaram uma respos-

(36)
Trabalho, Organização e Economia

ta puramente objetiva para essa é parte da realidade, tanto quan-


pergunta. O ideal de objetivida- to qualquer indicador objetivo
de seria encontrar algum critério ou qualquer fenômeno publica-
publicamente observável, mensu- mente observado. A experiência
rável, e que não dependesse do subjetiva das pessoas – conforme
ponto de vista do investigador; vem sendo descoberto e eviden-
desta forma, poder-se-ia hierar- ciado pelas pesquisas atuais
quizar, de forma rigorosa, estados em Economia – não pode ser
sócio-econômicos e situações desprezada.
preferíveis. A idéia era buscar O que se constatou, quando a
para a Economia algo análogo relação entre o objetivo e o sub-
ao termômetro na mensuração jetivo começou a ser estudada
da temperatura; algo que tives- na Economia do Bem-Estar – e
se objetividade e que pudesse relatarei a seguir alguns resul-
ser publicamente observável e tados empíricos –, é que não
mensurável, além de ser inde- há uma relação direta ou linear
pendente do sentimento e do entre o que chamamos de indi-
ponto de vista do observador. cadores de bem-estar objetivos e
Após avançar nesta direção os subjetivos.
– e alguns avanços importantes Para fundamentar esta distinção
foram feitos nesse sentido –, o entre indicadores objetivos e
que se constatou é há limites subjetivos, explicarei como são
para esse enfoque. Abordarei, apurados e como se chega a
basicamente, os limites dessa estes indicadores, relatando, por
busca de objetividade no campo fim, os resultados de um caso em
da Economia do Bem-Estar. particular.
Quais são, basicamente, os limi- O fundamento filosófico desta
tes à objetividade do Bem-Estar? distinção parte de uma cisão
O limite fundamental é que a inerente e inescapável à condição
realidade objetiva não é toda a humana: a de que existe um pon-
realidade. Existe a experiência to de vista interno, do sujeito, e
subjetiva, aquilo que os indiví- uma experiência pública, objeti-
duos sentem a respeito da vida va e comum a todos. Considerem,
que levam. Há uma percepção, para citar um exemplo trazido
um sentimento e uma experiência pelo filósofo americano Thomas
em relação a estados de coisas e Nagel, o que acontece com
a arranjos socioeconômicos. Isto uma pessoa que ouve uma bela

(37)
Trabalho, Organização e Economia

música. Existe uma dimensão Economia, estes indicadores? Os


puramente objetiva deste fenô- indicadores objetivos são aqueles
meno: as ondas sonoras que se com os quais os economistas vêm,
propagam pelo ar são captadas tradicionalmente, trabalhando há
por nosso aparelho auditivo e se muito tempo. São coisas como
transformam em uma configura- renda monetária – renda média
ção específica em nosso cérebro. por habitante, em um país –,
Essa é a dimensão objetiva que indicadores biomédicos – mor-
a ciência pode nos dar da per- talidade infantil, esperança de
cepção das ondas sonoras de vida –, todos eles objetivos e
uma música, alguma coisa pu- passíveis de mensuração. A
blicamente passível de conheci- estes, podemos acrescentar ou-
mento, de teste, de detalhamento tros elementos, como padrões
e elaboração de um mapa muito de consumo alimentar e outros
preciso, à medida que o conhe- tantos passíveis de observação
cimento avança. Pois bem, isto, pública. Cabe lembrar ainda do
evidentemente, é muito limitado desemprego, da inflação e assim
quando se considera o ponto de por diante.
vista interno do sujeito ao ouvir E os indicadores subjetivos?
e experimentar uma música. Por Como é que nós temos alguma
mais que avance o conhecimento indicação em relação à experi-
científico externo do que se passa ência dos indivíduos que vivem
no cérebro de alguém que ouve, numa determinada sociedade?
por exemplo, “A Criação” de Como é que se obtém alguma
Hayden, isso não nos dirá nada informação quanto a isso, que
do que se passa na experiência não seja diretamente observável
interna do sujeito que, ao ouvir e passível de medida? O méto-
a abertura, faz associações, tem do que o economista encontra
uma experiência estética, a qual não é acessível ao físico, ou a
é interna e inteiramente fechada qualquer cientista natural. Um
à observação objetiva, de fora, economista romeno uma vez se
pelos métodos da ciência. Esse perguntou o que faria um físico
é o fundamento do assunto aqui se pudesse perguntar aos elétrons
tratado, dividindo indicadores por que pulam. A resposta a tal
objetivos e subjetivos de bem- pergunta talvez marcasse o fim
estar. da Física como ciência exata,
Ora, como são obtidos, no caso da mas certamente daria-lhe di-

(38)
Trabalho, Organização e Economia

mensão adicional. O que faz o surgiu numa pesquisa sobre a


economista? Ele pergunta aos condição da mulher. A pesquisa,
indivíduos como eles se sentem cientificamente conduzida, per-
em relação à vida que levam. Se guntou para mulheres de países
eles estão satisfeitos, mediana- da União Européia se acreditam
mente satisfeitos ou insatisfeitos que a sua situação de direitos e
em relação à sua existência. Isso igualdade, isto é, sua condição
vem sendo sistematicamente objetiva, é melhor do que a da
feito, principalmente em países geração de suas avós – 93% das
desenvolvidos, como os europeus, mulheres responderam que sim.
Estados Unidos e Japão, obtendo- Elas acreditam claramente no
se séries temporais e históricas, avanço em termos de igualdade
com resultados em relação aos e prerrogativas de direitos. No
indicadores subjetivos. entanto, apenas 46% se con-
Dessa forma, passa-se a ter sideram mais felizes do que a
indicadores objetivos e subje- geração de suas avós. Vejam que
tivos de bem-estar. Alguns dos aqui já não há uma relação dire-
objetivos, como o desemprego ta entre aumento e melhoria da
e a inflação, apresentam forte eqüidade, naquilo que é possível
e inequívoca correlação com os medir e observar de fora, e a ma-
subjetivos. Ou seja, ao aumento neira como a mulher se sente em
do desemprego ou da inflação, há relação à geração das suas avós.
uma contrapartida direta muito Esta é uma anomalia da mesma
forte com a piora dos indicado- natureza, daquela sobre a qual
res subjetivos. Uma proporção falo.
maior dos indivíduos passa a O que acontece – e esse é o pon-
se sentir mais infeliz quando to – quando se tenta detectar a
aumentam variáveis objetivas, relação entre renda e felicidade
como essas. Outros indicadores humana? Que tipo de informa-
– me concentrarei no preferido ção as pesquisas sistemáticas
dos economistas, a renda –, pelo realizadas em muitos países nos
contrário, não apresentam corre- revelam em relação a isso? Um
lação deste tipo. Pode haver até dado curioso e intrigante: a partir
uma ausência total de correlação de certo nível de renda per capita,
ou correlação negativa. em torno de dez mil dólares por
Cabe mencionar, num breve habitante, acréscimos de renda
parêntese, um dado curioso que não produzem qualquer tipo de

(39)
Trabalho, Organização e Economia

elevação relevante no nível de países como Grécia, Portugal e


bem-estar subjetivo dentro de Coréia do Sul.
cada país. Ao se analisar países Em comparação com 1957, hoje
que cresceram muito ao longo do os americanos possuem duas
pós-guerra, pode-se constatar vezes mais carros per capita,
que a proporção de indivíduos além de fornos de micro-ondas,
declarados felizes, medianamente TVs coloridas, videocassetes,
felizes ou infelizes praticamente aparelhos de ar condicionado,
não se altera. Há uma incrível secretárias eletrônicas e doze
estabilidade nos indicadores bilhões de dólares em tênis de
subjetivos de bem-estar, en- marca. Os americanos, portanto,
quanto os indicadores objetivos, devem estar mais felizes? Não.
especialmente de renda, mostram Não há qualquer contrapartida
enorme aumento. detectável, estatisticamente
Existem dois autores que traba- relevante nos indicadores subje-
lharam em pesquisa detalhada tivos de bem-estar. A proporção
em relação a este assunto; ca- dos americanos que se considera
bem rápidas citações, para que feliz, medianamente feliz e infeliz
se perceba um pouco o teor do continuou, rigorosamente, a mes-
achado empírico, que é esta fal- ma, não obstante esta espantosa
ta de relação direta entre o lado ascensão do ponto de vista do
objetivo e o lado subjetivo, entre consumo e do nível de renda
economia e felicidade. médio por habitante.
O PIB real per capita nos Estados Antes de prosseguir às hipóteses
Unidos cresceu 43% entre 1975 explicativas em relação a esse
e 1995, resultado espantosa- fato, gostaria de concluir a pri-
mente bom do ponto de vista meira parte deste trabalho, acer-
do crescimento da renda média ca dos limites inerentes a cada
por habitante – o dado provém um dos indicadores. O estudioso
de Robert Wright, autor que tra- do bem-estar humano não pode,
balhou esse assunto e diz que a evidentemente, como já foi ana-
felicidade média dos americanos lisado, se ater apenas à dimensão
não se alterou. O ponto a partir do objetiva, pois isso o levaria a uma
qual acréscimos de renda deixam postura de arrogância e paterna-
de trazer mais felicidade está em lismo. Quando se assume apenas
torno de dez mil dólares anuais, uma dimensão objetiva, assume-
o que é, hoje, a renda média de se a posição de quem pensa

(40)
Trabalho, Organização e Economia

poder dizer à sociedade o que é humana, tal como obtidas nas


melhor para ela, correndo o risco respostas colhidas quando se
de, eventualmente, levá-la a uma investiga sistematicamente esse
direção não desejada. assunto? Para iniciar a reflexão
Por outro lado, não se pode tam- acerca das hipóteses dessa ques-
bém imaginar o oposto: que a di- tão, me permitirei relatar um bre-
mensão subjetiva seja absoluta ve episódio de minha experiência
e soberana. Existem problemas como pai, que considero muito
nessa forma de dimensão, como ilustrativo e que ajuda a entrar
a questão da adaptação. Se uma no assunto.
pessoa reduz muito seu nível de Tenho um filho pequeno – na épo-
aspiração, ela pode se considerar ca, tinha nove ou dez anos – que,
feliz numa situação muito adver- como toda criança dessa idade,
sa, do ponto de vista objetivo. É a gosta muito de assistir a vídeos.
experiência do escravo feliz, ou a Certo dia chuvoso, ele insistiu
postura dos estóicos, filósofos que para irmos à locadora alugar
acreditavam que todo sofrimento um vídeo. Como morávamos em
humano advém de uma incon- apartamento, disse que iríamos à
gruência entre os nossos desejos locadora, desde que apanhásse-
e o curso dos acontecimentos. mos o guarda-chuva na garagem,
Se transformarmos seus ou nos- no subsolo do prédio. Ele, então,
sos desejos de acordo com os ficou muito bravo comigo, porque
eventos, seremos sempre felizes, estava aflito e queria ir direto à
qualquer que seja o curso dos locadora, sem ter de apanhar o
acontecimentos. Evidentemente, guarda-chuva na garagem do pré-
tal atitude não é desejável. Temos dio. Porém, convenci-o de que eu
de encontrar algum tipo de equi- não gostaria de ir sob a chuva.
líbrio entre a mudança de desejos Ele foi brigando o tempo inteiro,
e algum poder sobre a realidade mas aceitou. Apanhamos o guar-
para que a felicidade seja menos da-chuva e saímos em direção à
incongruente com aquilo que de- locadora, eu segurando o guar-
sejamos para as nossas vidas. da-chuva e ele, ao meu lado, não
Chego, então, ao problema e à inteiramente coberto. Na metade
segunda parte desse estudo. Por do caminho, meu filho começou a
que, a partir de certo nível de brigar novamente comigo, desta
renda, cessa a correlação entre vez porque eu estava coberto e
renda per capita e felicidade ele estava tomando chuva. Então

(41)
Trabalho, Organização e Economia

eu retruquei: “Mas se nós dois par não só com o seu bem-estar


tivéssemos vindo na chuva, você absoluto, mas também com sua
estaria tomando toda a chuva e posição relativa na sociedade.
não apenas metade. Agora, pelo A percepção de como estas pes-
menos, você está parcialmente soas estão em relação às demais
coberto”. Ele falou: “Mas agora passa a ter peso dominante na
você está debaixo do guarda- avaliação que fazem de sua si-
chuva e eu estou me molhando, e tuação. Instala-se, assim, uma
isso eu não aceito”. Tal afirmativa espécie de corrida armamentista
começa a desvendar um pouco do do consumo. O que ocorre numa
mistério: para ele, sua posição re- corrida armamentista em estrito
lativa em relação a mim se tornou senso? Um país investe cada vez
muito mais importante que estar mais recursos na sua segurança e,
ou não na chuva. Embora ele no entanto, se descobre cada vez
estivesse objetivamente melhor mais inseguro, cada vez menos
– ao ficar parcialmente coberto; protegido dos demais. Na corrida
melhorou sua situação –, sub- armamentista há este paradoxo:
jetivamente, ele se sentia pior, quanto mais um país aumenta
porque se nós dois estivéssemos seu arsenal bélico – o que deve-
igualmente na chuva, estaríamos ria elevar proporcionalmente seu
alegres e felizes a caminho da sentimento de segurança –, mais
locadora. Aquela situação, na se sente vulnerável, e cada vez
qual eu estava inteiramente mais aberto a algum tipo de ata-
resguardado em contraste com que. Na corrida armamentista do
sua proteção parcial, era uma si- consumo, as pessoas competem
tuação horrível de desigualdade por renda para não ficarem atrás
e de inferioridade. E isso ele não das demais. Mas isso não eleva a
aceitava. satisfação ou bem-estar subjetivo
Algo semelhante deve estar delas, que se apressam para ficar
acontecendo em relação a essa no mesmo lugar ou mesmo retro-
anomalia dos indicadores obje- ceder. O problema é que esse
tivos e subjetivos de bem-estar. tipo de jogo leva a sociedade a
Acho que a experiência que tive caminhos que ela não deseja.
com o meu filho pode, de certa Isso distorce os comportamen-
forma, ser generalizada. A partir tos e a locação de recursos em
de certo nível de vida, de renda, relação ao que nós, idealmente,
as pessoas passam a se preocu- preferiríamos.

(42)
Trabalho, Organização e Economia

Um economista americano, ainda, o tempo gasto no trabalho,


Robert Frank, sugere um expe- para gerar a renda para comprar
rimento mental útil à ilustração casas maiores, possa ser usado de
desse tipo de jogo perverso forma alternativa: para encontrar
competitivo. Supõe-se duas os amigos com maior freqüência,
sociedades A e B, idênticas em fazer exercício físico regular ou
tudo, exceto pelo fato de que os mesmo para a leitura de clássi-
habitantes de A moram em casas cos. Se houver usos alternativos
com dois mil metros quadrados de para tudo isso que a sociedade
área, enquanto os habitantes de B A empatou em consumos de
moram em casas com mil metros bens materiais, parece muito
quadrados. Os valores nominais provável, e até plausível, que o
do exemplo são arbitrários, pois uso alternativo dos recursos na
poderíamos levar em considera- sociedade B possa elevar o bem-
ção o número de automóveis ou estar subjetivo da maioria, de
a freqüência a restaurantes finos. forma consistente. A pergunta é:
Duas observações preliminares quem vive melhor, quem desfruta
devem ser feitas: primeiramente, daquilo que a vida pode oferecer
se os membros de A e B não têm de melhor? Os residentes da
contato entre si, os indicadores sociedade A, com suas casas
subjetivos não conseguem detec- enormes e uma noite por mês
tar diferenças significativas entre com os amigos, ou os residentes
seus níveis de bem-estar subjeti- da sociedade B, com suas casas
vo, e o tamanho de suas casas não menores, mas quatro noites por
conta mais para melhorar a satis- mês com os amigos, mais tempo
fação ou felicidade desfrutada. A para ler os clássicos ou jogar
segunda premissa é que existam futebol? Os residentes de B
usos alternativos para o tempo poderiam possuir casas maiores,
e o dinheiro que a sociedade A mas, em vez disso, preferiram
empatou em suas casa enormes. gastar menos tempo trabalhando
Suponhamos, por exemplo, que o e gerando renda monetária, a fim
mesmo recurso gasto na constru- de preservar outros valores.
ção de casas maiores, em áreas Na convivência humana, esse
mais vastas, possa ser gasto em tipo de distorção ocorre: a idéia
transporte coletivo e, portanto, de que estaríamos presos a algum
em menor tempo de desloca- tipo de mecanismo de convivên-
mento até o local de trabalho. Ou cia que leva a sociedade a resul-

(43)
Trabalho, Organização e Economia

tados e caminhos nos quais os do. O ideal, creio, seria encontrar


indivíduos não se reconhecem. algum tipo de equilíbrio entre
Existe ainda um outro compo- estes dois extremos: sonhar e
nente de psicologia moral. A apostar no sonho, mas sem tirar
idéia, neste caso, é de que as o pé da realidade. Saber respeitar
pessoas, na verdade, vivem uma o econômico, até para que ele não
competição externa com aqueles se vingue dos desaforos sofridos,
com quem convivem e cujo nível escravizando-nos por completo,
de consumo sempre buscaram mas também não permitir que a
emular. Mas existe também uma força de seu apelo se torne um
competição interna, intrapessoal, único valor imperialista, capaz
de valores e motivos que percor- de subjugar e render tudo o que
rem o sujeito. obstar o seu domínio. O que a ex-
Prossigo esta reflexão, lembrando periência dos países desenvolvi-
de uma pergunta feita pelo dra- dos mostra, no entanto, é que há
maturgo britânico Oscar Wilde: uma propensão muito maior ao
“Qual a diferença entre um cíni- excesso do cinismo, do que ao
co e um sentimental?” Ele mes- do sentimentalismo.
mo responde: “Enquanto o cínico Em outra pesquisa, realizada nos
é o sujeito que sabe o preço de Estados Unidos pelo professor
tudo, mas não conhece o valor de sociologia da Universidade
de nada, o sentimental é aquele de Princeton, Robert Wuthnow,
que percebe um valor incomen- surge outro resultado intrigante.
surável em tudo, mas não sabe A pesquisa perguntava quais são
o preço de nada”. O contraste as imagens que os americanos
retrata visões polares quanto ao alimentam de si mesmos e que
lugar do econômico na existên- valores regem suas vidas. O
cia humana: o cínico é o idiota da dado mais surpreendente desta,
objetividade, cego a tudo que vá feita de maneira sistemática com
além da métrica monetária; ele é uma amostra representativa da
competitivo ao extremo, diligente sociedade americana, é que 89%
nos negócios, mas indolente no dos americanos consideram sua
espírito. Já o sentimental é uma sociedade excessivamente
espécie de idiota da subjetivida- preocupada com o dinheiro e
de, o cândido visionário, solidário 74% julgam ser o materialismo
ao extremo, embora normalmente exagerado um grave problema
sem recursos e alheio ao merca- social. É curioso: esses números

(44)
Trabalho, Organização e Economia

revelam que a ampla maioria da tem a ver com o viés do juízo em


sociedade americana não se reco- causa própria.
nhece nos valores que governam O ponto de vista interno de
a sua convivência. O tom geral cada um sobre seu caráter e sua
da cultura, marcado pelo forte conduta na vida prática difere
apego aos ganhos e bens deste da perspectiva externa dos que
mundo, destoa das preferências estão ao seu redor. A opinião
declaradas daqueles que nela de cada motorista, baseada na
vivem e trabalham. Existe um vivência íntima que ele tem de
quê de paradoxal nessa situação; suas habilidades, não bate com
como é possível que algo assim a percepção dos que interagem
aconteça? Afinal, se uma parce- com ele nas ruas e para os quais
la tão expressiva dos americanos ele não passa de mais um bar-
acredita mesmo que materialismo beiro na multidão. O mesmo se
e competição excessivos são um aplica ao materialismo. O anseio
mal em suas vidas, algo a ser alheio por lucro e consumo, visto
combatido como a poluição e de fora, difere do nosso. O nosso
o tabagismo, então por que não materialismo não nos ofende,
passam a cultivar outros valores, mas agride tanto quanto o dos
solucionando, assim, esse pro- demais.
blema que, aparentemente, tanto Quem se imaginaria cínico – na
os aflige? acepção de Oscar Wilde, alguém
Essa situação remete a uma ou- que sabe o preço de tudo e des-
tra pesquisa, também realizada conhece o seu valor? O meu carro
nos Estados Unidos, segundo a é um instrumento de trabalho; o
qual nove entre dez motoristas do vizinho é fruto da vaidade e do
americanos acreditam dirigir exibicionismo. O turismo que eu
melhor que a média. Trata-se faço é cultural; o do meu vizinho
de uma impossibilidade estatís- é crasso e vulgar. Como diria o
tica. É provável até que muitos filósofo francês do século XVII,
dos que se declaram abaixo François La Rochefoucauld,
da média estejam, na verdade, cada um de nós descobre nos
acima dela, dado que ao menos outros as mesmas falhas que os
não superestimam sua perícia outros descobrem em nós. Há
ao volante. Parte da resposta, uma tensão clara, um conflito
nos dois casos – e toco aqui no entre os motivos e valores que
meu ponto de psicologia moral –, permeiam a sociedade america-

(45)
Trabalho, Organização e Economia

na e, ao meu entender, não só arranjo socioeconômico desastra-


ela. Talvez isso seja levado mais do poderia afastá-lo, em caráter
longe na experiência americana, permanente, do seu sonho de re-
mas certamente outras socieda- alização. O melhor sistema seria
des vivem, claramente, este tipo aquele que ampliasse o campo de
de tensão. O sonho de um mundo escolha efetivo aberto ao indiví-
menos competitivo e escravizado duo, e aqui o valor da igualdade
ao econômico se choca com a de oportunidades – creio – é
realidade da força da motivação central. A solidariedade insti-
econômica e da competição por tucionalizada do estado do bem-
prestígio e status, no sonho de estar deve melhorar as condições
cada um. de vida e oferecer igualdade de
Para concluir, pensemos no ca- oportunidades a todos, seja na
minho à nossa frente. Nenhum saúde pública, seja na educação
sistema econômico, mudança ins- fundamental – peças essenciais
titucional ou progresso material da boa sociedade. E a boa socie-
vai resolver, por nós, os nossos dade, ao mesmo tempo, é aquela
problemas de realização pessoal que não nos leva, coletivamente,
e o problema ético da escolha de para caminhos nos quais não nos
um projeto, de um plano de vida. reconhecemos. Ela não incorre
Foi uma ilusão muito custosa nesse problema de alienação,
para a humanidade do século ou seja, de mecanismos sociais
XX a noção de que algum arran- que ganham vida própria e nos
jo institucional ou alguma nova afrontam como forças hostis, que
sociedade solucionaria, coleti- nos amedrontam e assustam. A
vamente, esse problema perene grande esperança de mudança
da humanidade, que, desde que advém do fato de que há uma
se inaugurou a reflexão ética, competição intrapessoal e de
é a busca da melhor vida. Por que os indivíduos certamente
outro lado, sistemas e arranjos não estão satisfeitos com a vida
socioeconômicos desastrados que levam, mesmo na sociedade
podem arruinar vidas humanas americana, que teria tudo, do
– e muitas vezes o fizeram – , ponto de vista material, para se
prejudicando seriamente nossos encontrar mais perto dessa rea-
planos de realização. Embora lização, pelo menos no campo da
só o indivíduo possa encontrar objetividade do mercado.
a melhor vida, certamente um Numa última reflexão, afirmo

(46)
Trabalho, Organização e Economia

que, na verdade, competição e liberdade é deserta. Competição


solidariedade, devidamente en- e solidariedade, não competição
tendidas, não são antagônicas. ou solidariedade.
útil para esclarecer esta questão. Por fim, o mais surpreendente é
A concorrência, bem entendida, que esse princípio da moderação,
não é a selva do vale-tudo, mas a ainda por cima, aloja uma
competição balizada por normas e curiosíssima contradição lógica:
justiça, por um sistema legal, que o que acontece quando aplicamos
efetivamente dirige o interesse do o nada em excesso apolíneo a ele
indivíduo para fatores produtivos, próprio? Algo surpreendente:
de agregação de valor social. Ao como economista e adepto da
mesmo tempo, a solidariedade, racionalidade, eu defendo a
bem entendida é essa institu- prudência, o equilíbrio e o
cionalização das transferências autocontrole como elementos
de renda extra mercado que centrais de um viver bem-
garantem condições adequadas conduzido. O cálculo dos meios
de partida, senão para toda a e a análise criteriosa dos fins
sociedade, pelo menos para a são pré-condições do agir
sua grande maioria, ou seja, um conseqüente. O caminho da
mecanismo institucionalizado e ruptura, da entrega apaixonada
legítimo. Competição e solida- e do impulso irrefletido é o
riedade, bem compreendidas, atalho mais curto para o desastre
não são de modo algum opostas, e o arrependimento. Juízo míope,
mas sim complementares. Ambas agir descomedido. O problema
partem da melhor sociedade. – e aqui vem a contradição do
O sonho desprovido de senso princípio da moderação – é que
prático naufraga, o senso prático uma vida pautada pela aplicação
desprovido de sonho não zarpa. uniforme do “nada em excesso”
A ética desligada da ciência é leva a um viver insípido e
vazia, a ciência desligada da defensivo. O que esperar, afinal,
ética é cega. A intuição sem de uma existência imune à
lógica é dogmática, e lógica sem entrega, ao arrebatamento e às
intuição é eunuca. A criação apostas no imponderável? De
apartada da tradição é caótica, uma existência reta, na qual
a tradição apartada da criação toda exaltação entusiástica e
é estéril. A liberdade sem disci- toda concentração de valor é
plina é suicida, a disciplina sem suspeita? Nenhum desastre, é

(47)
Trabalho, Organização e Economia

certo, mas também nada além


da cinza mediocridade de uma
quase morte em vida.
Como dizia o ultra racionalista
Sócrates, em Fedro, nossas
maiores dádivas chegam a nós
por meio da loucura. Nada
mais irracional do que ignorar
os limites da racionalidade.
Do ponto de vista da melhor
vida, pecar pelo excesso de
moderação pode ser tão grave
quanto pecar pela falta dela. A
moderação, concluo, não escapa
de si mesma: também ela precisa
ser moderada.
Texto adaptado a partir de transcrição
de palestra ministrada no Seminário
de Ravello, Itália, 2001.

Eduardo Giannetti da Fonseca é professor de His-


tória do Pensamento Econômico da Faculdade
de Economia e Administração da Universidade
de São Paulo e do IBMEC.

(48)
Trabalho, Organização e Economia

Um século de trabalho!
Aris Accornero

No final do século O trabalho se O papel central do


XIX assistiu-se aos espalha e se trabalho é o que mais
sinais de inadequação dispersa, tanto em se nota. Trata-se, em
da empresa e do tra- termos espaciais
primeiro lugar, de
balho e aos rangidos uma centralidade no
como temporais;
das organizações e das modo de produzir,
contratações. Hoje, ao observa-se pessoas com a organização
mesmo tempo em que trabalhando do trabalho padro-
as empresas tentam se por toda parte nizada e taylorista.
tornar flexíveis, cres- e a qualquer Em segundo lugar,
cem as inseguranças hora, enquanto uma centralidade do
dos trabalhadores; as grandes modelo de desenvol-
além disso, as certe- catedrais, vimento, com base
zas, as garantias e os os monstros na idéia audaciosa de
caminhos da vida de sagrados das que o produtor fosse,
trabalho se desesta- grandes fábricas, ao mesmo tempo, o
bilizam. parecem ter consumidor. Esta cen-
desaparecido. tralidade originou um
trabalho concentrado
A Centralidade do nos lugares e com sa-
Trabalho turação dos tempos. Um trabalho
O século do trabalho, ou seja, no qual os vários ofícios do pas-
o século XIX, pode ser definido sado se agrupavam em grandes
como tal por quatro tipos de mo- categorias organizadas em seto-
tivos: a centralidade assumida res; um trabalho onde o próprio
pelo trabalho, o reconhecimento profissionalismo se uniformizava
que ele recebeu, o seu caráter em conselhos ou sindicatos de ca-
preponderantemente subordina- tegorias contratuais; um trabalho
do e a tutela conseqüente a esta no qual a oferta dependia da pro-
subordinação. cura, e a procura, por sua vez, de

(49)
Trabalho, Organização e Economia

uma série de outras coisas, entre da classe operária, mas também


as quais, da guerra e das crises um elemento de força, requeren-
econômicas. do necessariamente uma tutela
Essa centralidade se deve sobre- que tornasse aquele equilíbrio
tudo ao reconhecimento atribuído socialmente possível.
ao trabalho. Reconhecimento po- Tanta subordinação exigiu muita
lítico, como categoria, mas prin- tutela, fato que produziu leis e
cipalmente como sujeito, interlo- contratos protecionistas, grandes
cutor e partner. Reconhecimento estruturas organizacionais, que
cultural, seja na forma de ima- se contrapunham às grandes es-
gens, seja nas várias represen- truturas empresariais, e grandes
tações. Enfim, reconhecimento pactos nos campos da segurança
no sistema de regulação social, social e dos acordos entre as
quanto à idéia fundamental de categorias.
colocar capital e trabalho jun-
tos, debaixo das asas do Estado. As Linhas de Mudança
Esse último originou festas e Hoje este mundo está mudando.
representações retóricas nas de- O trabalho se espalha e se dis-
mocracias, assim como o mito da persa, tanto em termos espaciais
nação proletária e da ditadura do como temporais; observa-se pes-
proletariado nos Estados totalitá- soas trabalhando por toda parte
rios – do “Sozialismus ist Arbeit” e a qualquer hora, enquanto as
(Socialismo é trabalho) ao “Arbeit grandes catedrais, os monstros
macht frei” (O trabalho liberta). sagrados das grandes fábricas,
Este tipo de trabalho era visível parecem ter desaparecido. A
e reconhecido sobretudo devido natalidade e a mortalidade das
à forte subordinação – sistêmica, empresas e das profissões se
e não somente nas fábricas – que tornaram mais acentuadas e
tinha. Tal subordinação era de- mais aceleradas. O encontro
terminada por uma dependência entre a procura e a oferta se
subjetiva muito forte nas relações torna cada vez mais difícil, pois
de propriedade, e de uma depen- a uma maior seletividade da
dência objetiva, ditada pelas procura corresponde, agora, uma
modalidades de execução do tra- também crescente – embora em
balho e simbolizada pela cadeia menor proporção – seletividade
de montagem. Ela representou da oferta.
não só um elemento de fraqueza Contudo, as principais linhas

(50)
Trabalho, Organização e Economia

da tendência à mudança dizem um capitalismo que se mostrou,


respeito, sobretudo, à natureza nestes últimos vinte anos, um
e aos termos das prestações de aparato cada vez mais formidável
serviço: os conteúdos que eram para produzir necessidades. Um
de manipulação se transformam, capitalismo que já não oferece
cada vez mais, em cognitivos; as somente várias opções para a
tarefas que eram executivas se compra de um carro por quinze
tornam cooperativas; e as com- mil euros, mas camisetas com
petências requeridas deixam de bolsinhos personalizados por
ser de especialização, tendendo quinze euros.
mais para a polivalência. Observamos o cerne da mudança
Tudo isso produz uma melhora no trabalho como um antipático e
objetiva da prestação, mas o inaceitável trade-off entre a qua-
mesmo não pode ser dito dos lidade, que melhora, e a tutela,
termos das mesmas. Aqui sur- que piora. Seria de se auspiciar
gem os problemas porque, lado a que melhorando a qualidade,
lado a uma menor subordinação a tutela também melhorasse,
e a uma maior autonomia – mes- mas infelizmente não é isso que
mo no assim chamado trabalho acontece e não há uma alterna-
subordinado, – nos deparamos tiva intermediária. Um trabalho
com relações de trabalho menos com menos vínculos implica
duradouras, com menor estabili- uma maior responsabilidade do
dade ao longo do tempo e com trabalhador, e responsabilidade
menos uniformidade: aumentam significa risco.
os contratos circunscritos, as
normativas especiais e os acordos Flexibilidade
individuais. Uma vez que a empresa reconhe-
Além disso, enquanto mudam as ce a necessidade de ser flexível
relações de trabalho, a estrutura nos modos de produção que ela
de contratação não muda; só re- mesma escolhe, e dado que a em-
centemente começou-se a propor presa se tornou, de fato, flexível e
o contrato por distrito, na região carente de um trabalho conforme,
do Vêneto (nordeste da Itália). é completamente errônea a idéia
de que a empresa permanece
O Pós-fordismo rígida e deseja que somente os
Todas estas mudanças são o miolo trabalhadores sejam flexíveis.
do pós-fordismo; são os efeitos de Enquanto isso, nós escutamos os

(51)
Trabalho, Organização e Economia

rangidos das organizações e das diante de todas estas mudanças,


contratações; tudo aquilo que é dentre as quais é difícil escolher
grande e hiperprotetor está em o bem e afugentar o mal.
crise. As conseqüências do “homem
Portanto, as apreensões são mais flexível” devem ser lidas com as
que compreensíveis e as insegu- categorias adequadas, e não com
ranças parecem estar aumentan- aquelas usadas no início do sécu-
do. As certezas, as garantias e os lo para prever o que aconteceria
caminhos da vida de trabalho com o homem atordoado pelo
estão se tornando instáveis. É maquinismo industrial.
necessário, contudo, raciocinar Há vinte anos, nos perguntá-
com a cabeça fria e evitar juízos vamos como o trabalho poderia
alterados. continuar a formar a identidade
social; agora estamos passando
Cautelas do trabalho com “T” maiúsculo
Não é possível que se lamente, ao trabalho com “T” minúsculo,
por exemplo, o desaparecimento e, apesar disso, ele continua a
de uma realidade como aquela do constituir e a reconstituir, a mo-
emprego fixo, que na Itália tinha delar e a recompor as identida-
um peso superior ao de outros des, muito mais do que podíamos
países – devido à presença do prever.
setor público e do para-estado –,
oferecendo motivos para que al- Este artigo foi publicado na revista “Next
– Strumenti per l’innovazione”, Roma, nº10,
guns lamentassem o seu desapa- 2000.
recimento. Na realidade, existiu
por um período bastante breve.
Richard Sennet chama atenção
para isso, dizendo que nós não
sentimos saudades de um século,
mas sim de um determinado, feliz
e breve período do século, aquele
que alguns definiram como a gol-
den age do capitalismo. Mas este Prof. Aris Accornero é sociólogo e professor de
século não foi, de forma alguma, Sociologia Industrial em La Sapienza, Universitá
o século do emprego fixo. degli Studi di Roma, instituição parceira
Portanto, eu sugiro uma atitude do S3.Studium, um laboratório de pesquisas
mais reflexiva e bem meditada coordenado pelo sociólogo Domenico De Masi.

(52)
Brasil Criativo

O piano erudito no país do carnaval


Marcelo Alvarenga

Calor, praia, samba, Poucos sabem o Conservatório de


carnaval e futebol. que nosso país Paris. Em sua banca
Essa é a imagem mais é um dos mais examinadora, estavam
comum do Brasil no premiados
presentes ninguém
exterior. Há outras, menos que Fauré e
em concursos
claro, que não vêm ao Debussy – este último
caso agora. Estamos internacionais de chegou a lhe escrever
falando de cultura. piano. uma belíssima carta,
Não podemos esque- referindo-se ao seu
cer também das telenovelas, do toque e virtuosismo. Não obstan-
antigo cinema e seu ressurgi- te, aquela menininha do Brasil,
mento, que resultou em prêmios que estava concorrendo com mais
internacionais, como nos filmes de trezentos candidatos a uma
“A Hora da Estrela”, “Central vaga no Conservatório, obteve o
do Brasil” e o tão comentado primeiro lugar no concurso de
“Cidade de Deus”. admissão.
Justamente na questão dos prê- Guiomar fez uma carreira bri-
mios, poucos sabem que nosso lhante – gravou muito para os
país é um dos mais premiados maiores selos da época, tocou por
em concursos internacionais de todo o planeta. Era comparada a
piano. pianistas do quilate de Horowitz
Voltando ao passado, dois nomes e Rubinstein. Infelizmente, pouco
projetaram o Brasil internacional- material em vídeo ainda existe,
mente no princípio do século XX: pois, após o célebre incêndio da
Magdalena Tagliaferro e Guiomar Rede Globo, grande parte deste
Novaes. A primeira, uma pianista acervo foi perdida. A compensa-
sensibilíssima, dona de marcan- ção está nos discos. Gravou todos
te personalidade; a segunda, uma os Noturnos, Prelúdios, Sonatas,
grande estrela internacional. Concertos, Mazurcas – além de
Guiomar entrou pequena para diversas grandes obras isoladas

(53)
Brasil Criativo

– de Chopin, e constavam em Tomás Teran. Foram esses os


seu repertório todos os outros responsáveis pela sólida forma-
grandes compositores, como ção de uma nova geração que,
Bach, Mozart, Beethoven, Liszt, por sua vez, formou uma outra, e
Brahms, Schumann, Debussy, assim por diante.
Villa-Lobos, Camargo Guarnieri A música passou a ter como
e outros. Este ainda era um tempo capital o Rio de Janeiro, a
em que não se editava discos, as nossa Cidade Maravilhosa. É
gravações eram feitas ao vivo. estranhamente delicioso ver uma
Devemos a esta artista o pionei- estátua dedicada a Chopin bem
rismo da projeção do piano bra- em frente à Praia Vermelha, na
sileiro no exterior, em seu mais Urca. Muitos questionam: “O
alto nível. Diferentemente de que faz uma estátua de Chopin,
Magdalena, Guiomar dedicou-se compositor polonês, em frente
exclusivamente ao piano; não foi à praia?” Ora, justamente na
professora, portanto não fez uma cidade das praias é que foram
“escola” de fato, embora ouvi-la formados os pianistas que mui-
seja sempre uma grande lição. to deram – e ainda dão – o que
Havia outros grandes nomes na falar no exterior. E outros virão,
época, como Antonieta Rudge certamente.
e Souza Lima, que, por outros Desse grupo, podemos citar Maria
motivos, não seguiram grande da Penha, que foi aluna de Elzira
carreira internacional. Cabe Amabile e ganhou, na Itália,
lembrar de Menininha Lobo, que, o terceiro prêmio do Concurso
em idade avançada, gravou três Internacional Busoni. Seguindo
discos em uma igreja americana. pela Europa, foi aceita na classe
Nunca pôde seguir carreira por da festejada Marguerite Long, a
problemas de saúde, porém, ao grande dama do piano francês.
final da vida, teve chance e força Já o pianista Arthur Moreira
para realizar essas gravações. Lima, aluno de Lúcia Branco,
Católica, a escolha de uma igreja foi premiado no Concurso
foi bastante apropriada. Tschaikowski, em Moscou, no
Seguindo no tempo, tínhamos Concurso de Leeds, na Inglaterra,
no Rio de Janeiro, então Capital e ficou com o segundo prêmio do
Federal, grandes pedagogos: Concurso Chopin, em Varsóvia,
Lúcia Branco, Arnaldo Estrella, sendo que o primeiro prêmio
José Kliass, Homero Magalhães, ficou com ninguém menos que

(54)
Brasil Criativo

Martha Argerich. Não resta dúvida de que abraçar


Nelson Freire, aluno de Lúcia este ofício, morando no Brasil, é
Branco e Nise Obino, causou realmente um sacerdócio.
furor ao fazer prova para a Certamente haverá quem con-
Academia de Viena e ainda sidere o fato de essas pessoas
conquistou o primeiro prêmio do estarem morando no exterior.
Concurso Internacional Vianna da Sim, porém a base de todos esses
Motta, em Lisboa. Dono de uma artistas foi construída aqui. Além
carreira brilhante, é atualmente o disso, eles não nos decepcionam,
pianista brasileiro de maior proje- fazendo sempre uma ou duas tem-
ção internacional. Considerado o poradas anuais no Brasil. E, uma
“Leão do Teclado”, Nelson cole- vez aqui, apresentam-se com o
ciona prêmios e elogios por onde mesmo respeito que sentem pela
passa. Em recente artigo de uma música e por si próprios no ex-
revista especializada européia, terior. Certa vez, perguntei a um
foi considerado o maior pianista deles que platéia considerava a
da atualidade, unindo técnica mais difícil. Fiquei surpreso com
perfeita a musicalidade ímpar. a resposta: “A do Rio de Janeiro.”
Certamente é uma unanimidade. No fundo, a explicação foi óbvia:
Nelson possui um repertório tão “Aqui moram a minha família e
grandioso quanto o de Guiomar, meus amigos...”
e ainda mantém um duo com Sim, tocar para uma platéia co-
Martha Argerich, sua grande nhecida é bem mais arriscado,
amiga e colega de Academia. seja lá onde for. E ainda há uma
A terra do samba, calor e car- outra questão: diferentemente
naval não parou de produzir da música popular, em que
talentos. Antes de seguir, deve- os artistas se apresentam por
mos observar que não estamos, temporadas, o músico clássico
aparentemente, no local geográ- faz apresentações únicas. Seu
fico mais adequado para tanta desempenho tem de ser o melhor
dedicação. Não é nada fácil ficar possível, sempre.
horas estudando sob forte calor Voltando a citar pianistas, ainda
enquanto as praias nos convidam há muitos nomes, e certamente
para um mergulho. No Rio de não haverá espaço aqui para
Janeiro, temos ainda outras op- todos. Na linha dos que viveram
ções, como a floresta e suas não algum tempo no exterior sem ter
menos convidativas cachoeiras. se dedicado tanto aos concursos,

(55)
Brasil Criativo

mas aos estudos e, posteriormen- Sonata em Si Menor, de Liszt, e a


te, aos concertos, todos premia- Polonaise Fantasie, de Chopin.
dos, posso citar Yara Bernette, Eliane Rodrigues conseguiu
Estelinha Epstein, Heitor o mérito de ser premiada no
Alimonda, Fernando Lopes, Concurso Rainha Elizabeth, na
Linda Bustani, Lílian Barreto, Bélgica.
Sônia Strutt, Sônia Goulart, Arnaldo Cohen venceu o
Gilberto Tinetti, Caio Pagano, Concurso Busoni, na Itália, assim
Vera Astrachan e Luiz Medalha. como José Carlos Cocarelli, que
Há outros casos especiais, como também teve bom desempenho
os pianistas que participaram de em diversos outros concursos,
muitos concursos e obtiveram entre eles o Marguerite Long.
felizes resultados. Entre estes, Cristina Ortiz venceu o Concurso
estão: Van Cliburn, no Texas, e tem o
Edson Elias, que obteve quase seu trabalho registrado em inú-
vinte premiações internacionais. meros discos.
Atualmente, leciona em Paris e O saudoso Jacques Klein ven-
no Conservatório de Genebra, ceu o Concurso de Genebra, e
onde assumiu a cadeira que foi de Cesarina Riso obteve o terceiro
Franz Liszt. Continua tocando, e prêmio do mesmo concurso, no
muito bem. Gravou, na íntegra, as ano em que Martha Argerich foi
Sonatas de Mozart para Piano. vencedora.
Diana Kacso estreou no temido Ricardo Castro Santos venceu o
Concurso Chopin, em Varsóvia, Concurso de Leeds.
obtendo o sexto prêmio. Venceu Ricardo, Cristina, Eliane, Diana,
o Concurso Viña del Mar e o Cocarelli, Cohen e Edson con-
Tereza Carreño; obteve o segundo tinuam fazendo uma brilhante
prêmio em Leeds e no Concurso carreira ao piano.
Arthur Rubinstein, em Israel; Como podemos ver, nosso país é
foi finalista do Tschaikowski, um celeiro de talentos pianísti-
em Moscou, e vencedora do cos. Nossa mistura de raças deve
Tschaikowski de Nova Iorque. ter influenciado, fazendo com
Enfim, recebeu quase quinze que um brasileiro toque tão bem
prêmios internacionais. Sua uma peça de Schumann quanto
premiação em Israel lhe valeu um de Nazareth, Bach ou Chiquinha
disco pelo célebre selo Deustche Gonzaga.
Gramophon, interpretando a Tom Jobim, um dos pais da Bossa

(56)
Brasil Criativo

Nova, traduz bem a convivência


do “rei dos instrumentos” no
título de seu samba “Piano na
Mangueira”. É isso mesmo, um
piano de cauda no morro, a vista
da Atlântica, o Corcovado...
e muitos artistas de grande
talento.

Marcelo de Alvarenga é pianista clássico e chefe


do departamento de piano da Escola de Música
Arte Som, RJ. Obteve a primeira colocação em
sete concursos de piano.
Site: www.marcelodealvarenga.com.br

(57)
Brasil Criativo

Madame Satã em Hollywood


Carlos Takeshi

O cinema brasileiro [...] nossa 1896, através das


está mudando. Para imagem ainda mãos de um empre-
melhor. Tivemos uma tende a ser a de endedor maluco que
infância relativamen- Madame Satã,
vai à Europa buscar
te feliz, com papais filmes para exibir por
uma bicha negra
cultural e economi- aqui. Alfonso Segreto
camente ricos, mas e pobre, com todo passava, então, pela
depois passamos por o orgulho de ser o alfândega carregan-
uma fase adolescen- que é. do, além dos rolos
te um tanto quanto de celulóide, aquilo
conturbada, com rebeldias e que podemos considerar nossa
indecisões. Como todo jovem, primeira câmera cinematográ-
não sabíamos o caminho a tomar fica. Era de madeira e mani-
e atirávamos para todos os lados. vela, e a primeira imagem por
Agora, chegando à fase adulta, ela registrada foi a da Baía da
começamos a amadurecer, a Guanabara. O cinema brasileiro
estabelecer nossa identidade e não poderia começar melhor. O
daqui poderemos, quem sabe, Rio de Janeiro já era lindo.
alçar vôos mais ousados. A novidade pegou. Adentramos
E você quer saber o que Madame 1908 com 22 salas de exibição
Satã tem a ver com isso, certo? na Capital Federal. A produção
Já explico. Antes, deixe-me exibida ainda era estrangeira,
lembrar os primórdios do cine- porém as manivelas logo pas-
ma tupiniquim – sem nenhuma sariam a girar. Começariam as
conotação negativa, ao contrário, produções Made in Brazil. O
com muito orgulho. regionalismo dos filmes produziu
algumas obras peculiares, que se
CENA 1 – A primeira diferenciavam dos estrangeiros
claquete buscando temas e linguagem
O cinema chega ao Brasil já em próprios. O cinema era uma arte

(58)
Brasil Criativo

nova, para qual todos, aqui e em em 1930, por Mário Peixoto. O


Hollywood, estavam buscando filme é até hoje considerado um
ainda o melhor caminho. Havia marco na cinematografia brasi-
pouco a ser copiado e muito a ser leira e já apareceu na lista dos
registrado. cem melhores filmes do mundo
Mas alguns bem que pensaram de todos os tempos. Infelizmente
em produzir filmes de cowboy. Mário Peixoto parou por aí, mas
E produziram. Na década de — contra todas as probabilida-
1920, filmava-se de tudo no des e crises —, em 1931, surge
Rio de Janeiro, em São Paulo, a Cinédia no Rio de Janeiro,
Recife... O genial Humberto através das mãos de Adhemar
Mauro voltava suas lentes para Gonzaga.
Cataguases, em Minas Gerais, Sabendo que quem canta seus
enquanto Silvino Santos (veja males espanta, nada melhor que
O Cineasta da Selva, de Aurélio fazer os musicais invadirem as
Michilles) enfrentava o calor e telas. A Cinédia solta A voz do
os insetos para documentar a re- carnaval com nossa primeira
gião amazônica, acompanhando grande estrela, Carmem Miranda,
as incursões expansionistas de que na verdade era portuguesa.
Marechal Rondon e seu encontro Logo Carmem seria exportada
com tribos indígenas. para os States, o que me faz
O cinema era mesmo tupiniquim, lembrar nosso amigo Madame
mas Silvino era português. E Satã. Afinal, ele vai ou não falar
vários europeus viriam na se- inglês?
qüência.
Vamos dar uma pausa no ro-
CENA 2 – A primeira crise teiro.
Um roteiro onde tudo é certi- Espero que o filme Madame
nho, sem problemas, resulta em Satã, de Karim Ainouz, faça
um filme chato. Para animar a boa viagem e carimbe o passa-
História, em 1929 tivemos o porte em todos os aeroportos do
crack da bolsa de Nova York. O mundo, assim como outros filmes
cinema, que estava engatinhan- brasileiros de qualidade que têm
do, foi obrigado a diminuir a pro- surgido nos últimos anos. Mas
dução drasticamente, o que não não gostaria de ver Hollywood
impediu a filmagem de uma das recriando o personagem. O ci-
pérolas de nosso cinema: Limite, nema chinês é ótimo falando da

(59)
Brasil Criativo

China, o iraniano falando do Irã e Alemães, tchecos, húngaros e


o cinema brasileiro é bom falan- mais e mais nacionalidades se
do de Brasil. Quando invadimos misturavam numa ONU das sa-
o faroeste ficamos ridículos. E las escuras.
vice-versa. Carmem Miranda é Quando surge a Atlântida, em
fantástica, mas alguns de seus 1941, um de seus principais
filmes americanos trazem cenas participantes é Edgar Brazil, ale-
lamentáveis. Patropi não combi- mão que fotografou quase todos
na com o American way of life. os filmes desse estúdio. Estava
Em geral, o cinema americano no país havia muito tempo e foi
sempre peca ao retratar as ma- o diretor de fotografia de Limite
zelas de outras pátrias. A nossa e vários outros filmes importan-
ferida é a que mais dói; a dor do tes, entre os quais figuravam os
outro, não sabemos exatamente de Humberto Mauro. Durante
onde é. Madame Satã é coisa e depois da Segunda Grande
nossa. Guerra, essa grata invasão se
Já que estamos falando de nacio- acentuou. Muitos queriam fugir
nalidades e influências culturais, das bombas e zarparam para uma
vejamos como ocorreu a forma- das Américas.
ção do nosso cinema. Outra participação importante
foi a de Franco Zampari, que,
CENA 3 – Os europeus antes do cinema, já havia in-
A influência americana no ci- vestido no Teatro Brasileiro
nema brasileiro foi importante, de Comédia (TBC). Zampari e
mas eram especificamente os Cicillo Matarazzo, dois grandes
europeus que aportavam nos industriais da época, montaram
trópicos trazendo malas e baús a Companhia Cinematográfica
repletos do que se considerava Vera Cruz, em 1949. Não pou-
cultura. A idéia de que o que pando esforços, abriram os cofres
vem de fora é melhor já vigora- para que os estúdios fossem com-
va, e muitos que aqui chegaram parados aos americanos e euro-
eram nomes de peso com grandes peus. O local escolhido foi uma
filmes rodados em suas terras. granja falida dos Matarazzo, ou
Isso impressionava. Tudo bem, seja, a era industrial do cinema
toda criança começa a crescer brasileiro começou num grande
imitando os adultos, e para nós galinheiro.
os adultos eram os europeus. Praticamente todos os técnicos

(60)
Brasil Criativo

foram importados da Europa, sólido imutável e intransponí-


apesar de já termos muita gen- vel. Está mais para um líquido,
te trabalhando com cinema. um gás ou, para usar um termo
Colocados em posição inferior, próprio do cinema, uma luz que
quase desprezados, não tivemos vai invadindo o espaço alheio e
outra opção senão seguir os se confundindo. Assim, quando
ensinamentos do sábio Oswald assistimos Floradas na serra, de
de Andrade e assumirmos o 1954, por exemplo, não podemos
papel de antropófagos culturais. deixar de comparar a personagem
Restava extrair-lhes o caldo tuberculosa vivida por Cacilda
e degluti-los com farinha de Becker, em rara aparição nas
mandioca. O pirão criado tinha telas, com a de Greta Garbo em
boas chances de ser nutritivo. A Dama das Camélias, de 1937.
E foi. Mesmo com o aspecto O que é europeu nesse filme? A
negativo da invasão cultural, fotografia? O que é americano?
não podemos negar que houve O roteiro? A maquiagem? Ou é
uma mudança significativa na o contrário? É difícil mensurar
técnica dos filmes. Sem dúvida, quanto de brasileiro há, mas as
eles conheciam melhor os novos influências são inegáveis.
equipamentos, além de o modo
de produção ser um pouco menos Nova pausa para reflexão.
artesanal. O cinema nunca dei- O que significa ser ou não bra-
xará de sê-lo, mas numa época sileiro? Como identificar uma
em que se pensava em fábrica nacionalidade?
de sonhos, produzir de modo Não me refiro ao lugar em que
industrial era importante. nascemos, e sim às caracterís-
Esses europeus começaram a ticas marcantes de um povo ou
ditar a estética do nosso cinema lugar. Certa vez caminhava so-
pós-guerra: o tipo de iluminação, litário por uma rua em Tóquio e
o enquadramento, até mesmo as vi, adiante na calçada, um rapaz
locações e cenários pareciam vendendo quadros. Havia algo
uma cópia dos filmes de lá. Mais me dizendo que ele era brasi-
nos dramas, porque as chan- leiro, então resolvi perguntar. A
chadas usavam uma linguagem resposta veio com sotaque forte:
completamente brasileira. Claro “Sou do Brrrasil.” Vendo meu
que seria inevitável a mescla das olhar desconfiado, o jovem logo
influências. A cultura não é um me explicou que de fato era de

(61)
Brasil Criativo

Israel, mas tinha vivido por dois Braga no elenco é covardia,


anos em São Paulo, casou-se com qualquer filme fica com cara de
uma brasileira e, juntos, muda- Brasil.
ram-se para o Japão. Portanto, Um filme como Gaijin (estran-
considerava-se brra-si-lei-rro. geiro, em japonês), de Tizuka
Não seria eu, um descendente Yamazaki, é brasileiro? Diria
de japoneses nascido no Brasil, que tanto quanto eu.
a negar-lhe a nacionalidade es- Alguém afirmou, certa vez, que
colhida. Seu sotaque gestual era Walter Salles fez um filme ameri-
inconfundível. cano em A grande arte; um filme
O que o judeu de Tóquio tinha de europeu em Terra Estrangeira;
brasileiro não se sabe. Da mesma e acertou na mosca com o su-
forma não consigo definir as ca- per-hiper-brasileiro Central do
racterísticas do sotaque estético Brasil. Tenho que concordar, e
que definem o que faz um filme já explico o porquê.
ser – ou não ser, como diria Voltemos ao roteiro.
Shakespeare – brasileiro. Talvez
seja impossível listar essas ca- CENA 4 – Fiat Lux: as
racterísticas em palavras, mas câmeras respiram
vou tentar. Para provar que não O cinema, inicialmente docu-
é uma questão de nacionalidade, mental, registrando paisagens,
o francês Marcel Camus fez de mostrando fazendas e complexos
Orfeu negro, em 1959, um filme industriais de quem podia bancar
tão ou até mais brasileiro que as despesas de filmagem, passou
a versão de 1999, dirigida por por um período de reclusão nos
Cacá Diegues. Mas esse mesmo grandes estúdios, onde tentava
Cacá nos presenteou com um dos reproduzir até mesmo cenas de
filmes mais brasileiros de todos exterior. Assim, o controle da
os tempos, ironicamente chama- iluminação era maior e obti-
do Bye bye, Brasil. nha-se aquele efeito fotográfico
Em minha opinião, O quatrilho hollywoodiano, que fazia tanto
de Fábio Barreto, por exemplo, sucesso.
não é brasileiro. Já Dona Flor e Mas aos poucos descobrimos que
seus dois maridos, de seu irmão a luz do sertão não poderia ser
Bruno, tem o cheiro da moque- como a luz européia. A névoa
ca de siri-mole que aparece no que difundia a luz do hemisfério
filme. Aliás, com a atriz Sônia norte, ocultando imperfeições da

(62)
Brasil Criativo

pele das estrelas, poderia ser boa no sertão nordestino. Até certo
para alguns filmes, mas o chão ponto, isso é verdade. Talvez seja
seco e de rugas profundas, como essa a nossa verdadeira cara,
a pele de nossa gente comum, só aquela que vemos todos os dias
poderia ser fielmente mostrada no espelho e, portanto, sabemos
sob a luz direta e marcante que como retratar melhor, resultan-
inspirou Euclides da Cunha. do em boa arte. É impossível
Nosso sol é parte de nossa perso- imaginar um filme brasileiro
nalidade sertaneja. Assumimos marcante com personagens aris-
a diferença como quem diz: tocratas como os de Visconti.
“Somos diferentes, nem melhor, Até mesmo quando retratamos
nem pior.” a realeza chegando ao Brasil,
Foi um grande avanço. tendemos a imprimir uma visão
Aprendemos com os mestres poeirenta, como em Carlota
europeus, mas, por não sermos Joaquina, rodado em 1995 por
europeus, sem desprezar os Carla Camurati, para desgosto
ensinamentos recebidos, in- da personagem título, que desta
ventamos junto com eles nossa terra não queria nem o pó.
própria fotografia. Na verdade, Passando desse pó histórico a
nossos fotógrafos perceberam outro mais nocivo acabamos
em filmes mexicanos e de bang- chegando até Cidade de Deus, de
bang uma iluminação que fugia Fernando Meirelles, lançado em
aos padrões estabelecidos. Era 2002. Infelizmente, este repre-
possível ousar. Fez-se a luz, em senta muito bem uma outra cara
vários sentidos. Redescobrimos do Brasil, a de rei da cocaína. A
o Brasil em filmes como O seqüência em favelas merece um
cangaceiro, em 1953, de Lima capítulo próprio.
Barreto; Vidas secas, em 1963,
de Nelson Pereira dos Santos; e CENA 5 – Filmes urbanos
Deus e o Diabo na terra do Sol, Entre os filmes urbanos das
em 1964, de Glauber Rocha, décadas de 1950 e 1960, vale
só para citar alguns dos mais destacar Rio 40 graus, de Nelson
importantes. Retornávamos aos Pereira dos Santos, em 1955, e
cenários exteriores como quem O bandido da luz vermelha, de
queria respirar aliviado. Rogério Sganzerla, em 1968.
Mais comentários. Pode parecer Dá inveja dos bandidos e ma-
que só há bons filmes rodados landros dessa época, pois eram

(63)
Brasil Criativo

românticos, quase ingênuos. lidade artística, mas do que vem


Infelizmente, uma porção dessa à cabeça quando pensamos no
malandragem light, principal- Brasil. Um filme como O homem
mente a carioca, foi sendo assi- que virou suco, de João Batista
milada por toda a população e se de Andrade, filmando em 1981,
tornou uma das características passa-se em São Paulo e é exce-
que revelam o que é conside- lente, mas raramente lembrado.
rado ser brasileiro. Comparado Se entra na lista dos que consi-
ao terror mostrado em Cidade dero brasileiro? Já está dentro.
de Deus, pensamos até que ser
roubado não era tão ruim assim. A trajetória de seu personagem
Mas, na origem, o mal é o mes- central representa bem o que
mo, em proporções diferentes. pode acontecer quando se perde
O ideal da “esperteza” gerou a identidade cultural.
distorções comportamentais ter- Vale um paralelo com o próprio
ríveis, não só no ponto de vista cinema. Um nordestino chega à
do traficante que pensa poder cidade grande e tem sua alma
comprar tudo, como também nas destroçada. Aconteceu isso com
atitudes do homem dito de bem os índios, geralmente acontece
que não vê mal algum no ato de com quem muda de país e tam-
cortar a fila do congestionamento bém com a arte, que esquece de
pelo acostamento. voltar seu foco para o próprio
Muitos filmes foram feitos sobre espírito. Quem perde suas refe-
o Rio de Janeiro e São Paulo, rências pessoais não pode ser um
duas grandes cidades. Os grande artista. No entanto, não
conterrâneos paulistanos que defendo o isolamento cultural.
me desculpem, mas a impres- Para ser um bom artista também
são é de que os filmes sobre a
Paulicéia poderiam ser rodados é preciso estar aberto a todas as
em qualquer grande cidade do influências. Um personagem que
mundo, pois São Paulo não tem mostra bem o que é assimilar
personalidade própria. Tanto que influências, e confunde-se com
os filmes sobre o Rio de Janeiro o próprio Brasil, é Macunaíma,
ou a Bahia, por exemplo, ge- de Mário de Andrade, que
ralmente são mais lembrados chegou às telas sob o comando
como representantes do cinema de Joaquim Pedro, também de
brasileiro. Não se trata de qua- Andrade, em 1968.

(64)
Brasil Criativo

Vou voltar a Madame Satã. a bicha negra bandida têm um


A identidade de um povo ou de ponto em comum: são pobres.
um indivíduo vem do que come- Economicamente falando, por-
mos, da música que ouvimos, do que culturalmente são verdadei-
lugar, da época, do modo que vi- ros magnatas. As pessoas tendem
vemos. Se deslocarmos Madame a confundir países ou regiões
Satã da boemia da Lapa para a
Cidade de Deus, dentro do pró- pobres com falta de cultura.
prio Rio de Janeiro, não teremos Quando viajam, são atraídas a
o mesmo homem. Ele era daque- Roma e Paris, como se o Coliseu
le jeito porque conviveu com ar- e o Louvre fossem o supra-sumo
tistas, putas, bandidos. E sofreu da cultura mundial. Visão bur-
o que sofreu porque era negro, ra, colonizada e deturpada. O
pobre e homossexual. Mas além acarajé das baianas de Salvador
de ser, faço questão de repetir, deve ser preservado tanto quanto
negro, pobre e homossexual, o David de Michelangelo. Essas
também era um artista, uma puta sábias nordestinas já pediram
e um bandido. E muito mais do o tombamento da receita. Se o
que um artista pobre, um negro
puta, um bandido homossexual acarajé ou o David tivesse que
ou qualquer outra combinação desaparecer, garanto que, para
possível, Madame Satã era um decidir, muita gente ficaria mais
homem íntegro, inteiro, com- pensativa que a famosa escultura
pleto, com outras características de Rodin.
que não essas com as quais o Infelizmente, escolhas desse
rotulavam. Podia ser pobre, mas tipo são feitas diariamente sem
não deixava que lhe roubassem que ao menos percebamos. E o
a dignidade, por isso se tornou prejuízo é sempre da cultura po-
um mito. A identidade cultural pular, que vai virando fantasma.
de Madame Satã era mais im- Para alguns, a cultura vale o que
portante que qualquer coisa.
Apesar do apelido, não vendeu rende, senão pode ser descarta-
a alma ao diabo e não deixaria da. Nas bilheterias do cinema, a
nunca sua vida ser espremida assertiva também é verdadeira,
para fazer parte da receita de mas é bom não esquecer que
uma vitamina mista. cinema não é necessariamente
O nordestino que virou suco e sinônimo de arte.

(65)
Brasil Criativo

CENA 6 – Um novo cinema cinema.


ou o Cinema Novo Se toda boa arte faz experimen-
Terminei a cena cinco afirman- tações, com o cinema não foi di-
do que é preciso estar aberto a ferente, apesar de um relevante
todas as influências. Foi o que diferencial: o custo. Fazer um
aconteceu com o nosso cinema. desenho custa pouco, inventar
O mundo estava experimentan- uma música, idem, porém fazer
do várias formas de filmagem, as um filme... Por isso não é tão
informações já trafegavam com fácil ficar experimentando no ci-
boa velocidade, e não demorava nema, o que por um lado é bom.
muito para sermos contagiados Como é preciso pensar duas ou
pelas novas tendências euro- mais vezes antes de disparar a
péias e americanas em todos câmera, o espectador comum
os setores. O cinema mundial, não é obrigado a enfrentar elu-
e também o nosso, passava por cubrações artísticas incompre-
uma fase adolescente onde, com ensíveis para a maioria. Tal fato
a certeza de já ser adulto, se aconteceu posteriormente com o
atirava sem receio pelos mais surgimento do vídeo-arte, que
diversos caminhos estéticos. produziu muita coisa intragável.
Muita bobagem foi produzida. Mas, veja bem, sou a favor das
Dos anos de 1950 até os de 1980, experimentações, sim. Graças
ergueu-se uma verdadeira Babel aos nossos intrépidos adoles-
cinematográfica, falava-se todas centes, viajamos do Himalaia
as linguagens possíveis. Foi um ao Saara cinematográfico em
período fértil. busca do mapa da mina. É certo
Em arte não se pode afirmar que alguns se contentam em ir
que este ou aquele caminho é à Disneyworld, mas como canta-
o correto. Todos os caminhos ram os roqueiros “Titãs”: A gente
são válidos e nem sempre levam quer comida, diversão e arte.
à Roma. Para se ter uma idéia Desse modo, no cinema, alguns
da variedade, tínhamos estilos fazem só entretenimento, outros
completamente incomparáveis, são artistas radicais, e há tam-
como os de Carlos Manga, Walter bém aqueles que tentam juntar
Hugo Khouri e Roberto Farias, as duas coisas. Eu, particular-
apenas para citar alguns. Fomos mente, prefiro esses últimos, mas
da chanchada à pornochancha- há espaço para todos. Quem está
da, do Cinema Novo ao velho nos extremos está longe de uma

(66)
Brasil Criativo

boa parte do todo, já quem está muitos trabalhadores do meio


no meio fica perto de todo o mun- cinematográfico a viver exclu-
do. A arte radical impressiona, sivamente de publicidade. O
às vezes violentamente, porém, interessante é que hoje acontece
como atinge poucos “entende- o caminho inverso e muitos ex-
dores”, não tem uma amplitude celentes diretores de comerciais
significativa. Glauber Rocha partiram para a grande tela.
é importantíssimo, mas uma Fernando Meirelles, de Cidade
música de Noel Rosa atinge um de Deus, Andrucha Waddington,
número bem maior de pessoas. de Eu, tu, eles, e Ugo Giorgetti,
Antes que alguns experts quei- de Sábado, são alguns bons
ram me crucificar, quero bradar exemplos. Outros insistiram
aos quatro ventos: viva Glauber, em ficar no cinema mesmo com
viva Zé Celso Martinez Correa, as contas bancárias em baixa,
viva Oswald de Andrade, e vivas acreditando que a salvação seria
também ao Zé Ninguém que os filmes eróticos, na forma de
Cospe Fogo na Rua. Poderia pornochanchadas ou até mesmo
citar outros nomes até mais de sexo explícito. Diretores reno-
radicais, no entanto prefiro mados usavam pseudônimos para
– coerentemente ao que disse não “queimarem seu filme”. Esse
anteriormente – me restringir a foi um período bastante popular
esses radicais aceitos pelo públi- para o cinema, contando com
co. Eles estão em um limite que estrelas da sensualidade como,
provocam, causam desconforto, Helena Ramos.
fazem pensar, acrescentam novos Outra crise que gerou muita
pontos de vista, pelo menos para discussão foi a da Embrafilme.
mim. São esses que encaminham Produtores eram acusados de
a verdadeira evolução. Cada pes- ganhar dinheiro embolsando
soa tem seus próprios limites, e o parte das verbas cedidas pela
meu mapa não é o mesmo que o instituição. Falava-se em pa-
seu. Procure a sua melhor trilha, nelinha, corrupção e favoreci-
porque seguir atalhos alheios mentos. O fato é que na nefasta
pode levar ao inferno. era Collor, quando a Embrafilme
foi extinta, muita gente chiou.
CENA 7 – Crises financeiras Hoje, as leis de incentivo às
As dificuldades financeiras nos artes tentam financiar o cinema
anos de 1970 e 1980 levaram através de vantagens fiscais para

(67)
Brasil Criativo

os patrocinadores. Eu Sei Que Vou Te Amar, de


Será que em algum momento foi Arnaldo Jabor. E mais uma vez
ou será fácil fazer cinema? os alemães viam, em 1987, uma
brasileira levar o Leão de Prata.
CENA 8 – E o vencedor é... Ana Beatriz Nogueira encantou
Em todas as épocas tivemos bons o mundo com sua Vera, no filme
filmes, mas os prêmios recebidos homônimo de Sérgio Toledo.
são relativamente poucos. O pri- Finalmente tivemos premiações
meiro grande premiado foi Orfeu e indicações importantes para
negro, que, entre outros, ficou Central do Brasil e Fernanda
com a Palma de Ouro e o Oscar Montenegro, incluindo o cobiça-
de filme estrangeiro. Logo de- do Oscar e os Leões de Berlim.
pois, éramos novamente indica- Vamos provocar mais um pouco.
dos ao Oscar com O pagador de Onde estão nossos atores? No
promessas, de Anselmo Duarte, quesito prêmios, as mulheres
mas faturamos novamente a estão dando um show sobre os
Palma de Ouro no Festival de marmanjos.
Cannes. Nada mau. Fiz essa pergunta para comentar
Erguemos outros prêmios aqui a competição na arte. Nossas
e ali, mas, saltando da década atrizes são melhores que os
de 1960 para os anos de 1980, homens? Acho essa pergunta
assistimos orgulhosos nossas tão ridícula quanto acreditar
grandes atrizes subirem ao que determinada atriz ou de-
pódio. Em 1982, Pixote, de terminado ator é o melhor do
Hector Babenco, recebeu vá- mundo naquele momento. Fazer
rios prêmios, como o de melhor uma lista dos dez melhores já é
atriz para Marília Pêra. Pouco difícil. Uma obra de arte pode
depois, tivemos uma seqüência ser considerada boa ou ruim por
impressionante que revelou o ta- si mesma, mas compará-la com
lento dos artistas brasileiros. Em outra pode ser arriscado.
1985, Marcelia Cartaxo recebeu Como ator, eu mesmo já fui in-
o Leão de Prata no Festival de dicado a prêmios e não posso
Berlim, por sua perfeita Macabea considerar meu trabalho melhor
em A Hora da Estrela, de Suzana ou pior que o daqueles que fo-
Amaral. No ano seguinte seria a ram indicados comigo, ou sequer
vez de Fernanda Torres ser pre- compará-lo ao de quem não teve
miada em Cannes, pelo filme indicação alguma. O prêmio ou

(68)
Brasil Criativo

simplesmente a indicação têm listados filmes com qualidade


um valor mercadológico que artística, mas digeríveis pelo
serve para atrair mais público. grande público como simples
É apenas mais um aval na hora entretenimento. E que tenham,
de escolher o que se quer ver. principalmente, a cara do
Apesar disso, nota-se que o Brasil.
comportamento artístico de al- - Orfeu negro, Marcel Camus,
guns mudou após a indicação ao 1959
Oscar de O quatrilho, em 1996, e - O pagador de promessas,
de Central do Brasil, em 1999. Anselmo Duarte, 1962
Quanto à visão de aumentar as - Vidas secas, Nelson Pereira dos
vendas do filme pelo mundo em Santos, 1963
função de um prêmio, não há - Macunaíma, Joaquim Pedro de
problema. O preocupante é que, Andrade, 1968
durante a criação, alguns já - Dona Flor e seus dois maridos,
estão pensando em Oscar. Isso Bruno Barreto, 1976
pode levar a uma deturpação - Bye bye, Brasil, Cacá Diegues,
do trabalho artístico semelhante 1979
às cópias hollywoodianas que - O homem que virou suco, João
apareceram no início de nosso Batista de Andrade , 1981
cinema. Seria um retrocesso - Pixote, Hector Babenco,1981
incrível. Temos criadores e do- - Central do Brasil, Walter Salles
mínio técnico suficientes para Jr., 1998
realizar um cinema próprio, com - Cidade de Deus, Fernando
a nossa cara, e acredito que se Meirelles, 2002
não for assim não atingiremos o É óbvio que as caras do Brasil
mundo. Todos esses filmes cita- não se restringem a esses pou-
dos acima têm personalidade e, cos filmes, mas é importante
por isso, impressionam. notar o que eles têm em comum.
Acabei de afirmar que fazer uma Principalmente o fato de retrata-
lista dos dez mais é difícil, mas, rem o homem pobre, até mesmo
como bom geminiano, decidi miserável. Não adianta fantasiar
arriscar. Não fazer uma lista nosso cinema com trajes finos,
dos melhores, revolucionários, para depois fazer feio à mesa na
fundamentais. Não vou incluir hora de usar os talheres. Temos
Limite, por exemplo, apesar de consciência de quem somos.
toda a sua importância. Serão Elegemos Lula para presidente.

(69)
Brasil Criativo

Esse é nosso mais autêntico re-


presentante. Queremos enrique-
cer, nosso cinema está cada vez
melhor, a produção está a toda
velocidade, no entanto nossa
imagem ainda tende a ser a de
Madame Satã, uma bicha negra
e pobre, com todo o orgulho de
ser o que é.
Estamos assistindo ao surgimen-
to e ressurgimento de ótimos di-
retores. O público está confiando
no cinema nacional. Depois de
Madame Satã, vários filmes es-
trearam e estão atraindo cada vez
mais gente.
Pretendia encerrar o texto-ro-
teiro com a palavra FIM, como
acontece nos filmes, mas prefiro
deixar o roteiro em aberto para
que muitas e muitas outras cenas
ainda possam ser escritas, roda-
das e assistidas por nós. Vamos
espalhar pelo mundo o nosso ci-
nema, nossa cultura, projetando
luzes verde-amarelas em obras
de arte genuinamente brasilei-
ras. Aguardem o lançamento da
continuação 2, 3, 4, 5...

Carlos Takeshi é ator, cineasta e apresentador de


televisão. Seu último trabalho foi Gaijin 2.

(70)
Brasil Criativo

A palavra poética
Therezinha Russo

Por palavra poética O pensar do do homem realiza-se,


entende-se o som poema diz-se com todo o seu vigor,
emitido pela espé- sempre de muitas na poesia. No entan-
cie Homo sapiens na maneiras. O poeta to, os tons da vida
palavra da diferen- são inúmeros, cheios
é um cantador
ça. É a poesia que de nuances, por isso
nos remete a um incurável, um daremos à frase um
saber inesgotável e, viajante sem tom próprio, pessoal,
ao mesmo tempo, pouso, um diferente.
precário. Poetas pássaro que A palavra para nós
e pensadores há se desloca de está inscrita na
muito anunciam um seu lugar para Física dos sons do
movimento estranho procriar em mundo ou se revela
que se exercita en- outro, muito através da musicali-
tre o nosso corpo e longe. dade do universo. A
os demais, quaisquer palavra dá-se na re-
que sejam, da terra ou do céu, lação homem-natureza, homem-
e que é capaz de exprimir pen- mundo (expressões inclusivas).
samentos indizíveis. Ao dar-se, funda a poesia, por-
Como isto se processa? Para que ainda não está referida nos
se pensar sobre isso, é impor- objetos expostos aos olhos do
tante reconhecer que a lingua- cientista e nem pertence aos
gem, hoje, está sob o domínio esquemas/sistemas filosóficos,
da metafísica da subjetividade, é a palavra do puro pensamen-
da representação codificada, to, é a criação candente de um
perdendo-se de sua essência. jeito que o homem tem de se
Diz Heidegger: “O homem conformar, arbitrariamente,
deve aprender a existir, no ine- ao seu próprio corpo, como
fável”1. Esta frase dá o tom de um corpo anônimo, que, sem
seu pensamento: a Humanitas direção e com a simplicidade

(71)
Brasil Criativo

da bóia que flutua no mar, tem arrebentando os telhados das


a sabedoria inexplicável que casas. No caminho, desdobra
permite navegar para nenhum barulhos, ruídos que avançam
ponto fixado e não ser, neces- por nossos ouvidos como sons
sariamente, atraído pelo fundo invencíveis. E mais, sons que
abismal dos oceanos. passam por nós, quebrando-
No entanto, a Ciência conhece se em formas sonoras quando
a lei que permite o objeto bóia aderem aos afetos, aos nossos
e se sustentar na superfície da afetos.
água. Ora, o inexplicável e o E as palavras emergem deste
explicável se pertencem. Para movimento intransigente, vio-
aquilo que a Ciência explica, lento, amoroso, à semelhança
o poeta canta e usa as palavras das flores quando explodem
que cabem ao seu canto: inefá- da terra, em sua hora predileta.
vel, mistério, enigma e muitas Na sua diferença, tais palavras
conhecidas, inventadas, trans- são insensíveis aos referentes,
mutadas. Estar aí indica estar porque, por natureza, elas se
no meio, no trânsito, entre os colhem na liberdade de seus
corpos que emitem barulhos, encontros, na angústia que
ruídos, vozes. advém dos atritos entre os
A poesia funciona como deco- corpos.
dificador natural de quaisquer Na introdução do livro
códigos engendrados, inclusive Reflexões 2 , Márcia de
o belíssimo código matemático, Sá Cavalcante refere-se
porque ela inventa para si, para à importância do termo
a sua composição, uma lei que “traduzir” para Hölderlin, em
não é lei; ela inventa regras ins- seu trabalho de tradução. “O
tantâneas para o afeto, regras que se leva de uma língua para
desmancháveis, traz consigo o outra, de uma arte para outra,
seu processo de resistência, um não são os fatos, ou coisas
movimento inverso: codificada, possíveis de designação, mas
a poesia volta ao instante de a palavra, ou a experiência do
seu nascimento. Eis o porquê fundo da existência”. O que
de a palavra poética ser como se pode concluir é que, no
o vento, irracional, provocando afazer da tradução, Hölderlin
um destino desarrumado, espar- experimenta, literalmente, o
ramando-se entre as árvores, convívio com o que ressoa.

(72)
Brasil Criativo

Diz ele: “Do encontro entre o Botticelli


tradutor e o ressoante, surgem
palavras que só poderiam surgir é pintura o teu verbo
nesse lugar, nesse momento, escreveste rostos de amor
nesse terreno.”3 textos dourados
Segundo os comentários da com os pincéis vindos de teu
época, Hölderlin faz uma tra- lugar estranho
dução muito pouco convencio- de tuas luzes inflamadas
nal das tragédias de Sófocles
– Empédocles e Antígona. Como que segredos nas pontas de teus
explicar isso? Na verdade, o pincéis
que importava ao autor era
traduzir a relação com uma estou pálida estou viva nos
língua morta, radicalizando a teus rostos
experiência poética; incluso
experimentar a sutileza entre teu discurso
vida e morte, enquanto me- sou textura pronta para falar
táforas radicais e finitas que imagem feita para morrer
as palavras são. O algo que por que esta certeza
se passa na experiência é no teu traço
controlado pelo caráter finito, na tua voz?
próprio da natureza da palavra,
tanto quanto é o nosso caráter
humano, a finitude. No entanto, Chamemos a atenção para o
tal experiência não abarca só último verso. Apenas a interro-
a totalidade do acontecimento gação: “por que esta certeza /
ao mesmo tempo em que não no teu traço / na tua voz?”
suporta uma certeza sequer, Pergunta-se: como o poeta tem
que só a descrição objetiva essa certeza sobre a certeza do
garante. pintor?
Aqui abrimos um parêntese Para Hölderlin, isto é o “co-
para um pequeno poema da nhecer” 5 . Refere-se à mobi-
autora deste artigo, face à obra lidade do coração 6 . Entre a
de Botticelli4. poetisa, a pintura e Botticelli,
Num único momento, o pintor e entre o que está vivo e o que
a poetisa encontram-se em um está morto, eclodiu um poema,
jogo de ressonâncias. uma certeza, um conhecer; uma

(73)
Brasil Criativo

forma ativa configurou-se no Pode-se dizer que a música é a


interior do acontecimento, da composição dos múltiplos mun-
experimentação, do encontro. dos construídos. É o som na sua
Nesse instante, ratificaram-se própria natureza física, é maté-
ressonâncias entre a ensaísta, ria-energia que propicia à voz
o pintor Botticelli e o poeta humana esta construção, isto é,
Hölderlin. a composição musical de afetos
Puxemos, agora, uma outra li- e pensamentos. Tal construção
nha do pensamento para dizer é uma escritura, ela escreve o
em palavras-filhas da physis modo de proceder da Física do
que a experiência poética é Universo. É uma escrita, uma
uma experiência de “co-nas- grafia que propicia ao próprio
cimento” 7, tal como a relação universo se fazer ouvir e se fa-
viva que se arquiteta entre os zer conhecer em sua complexi-
elementos químicos e físicos dade, impondo muitos mistérios
da biologia humana, quando à contemplação humana. Desta
então se desnuda o paradoxo perspectiva, a obra é esculpida
da propagação da espécie, em deste som que a nossa espécie
que filho é, também, pai e mãe. consegue traduzir na palavra
Trata-se, pois, de um bloco que – uma escultura-sonora. Por
explode em co-nascimento num isso a palavra é um canto.
tempo que não é o sucessivo. A história do Ocidente, no
Neste caso, a questão de quem entanto, progressista e urgen-
nasceu primeiro é interdita te, trouxe em tal positividade
para os instintos humanos. O o esquecimento do canto do
que a vida se nos apresenta, mundo, simplificando as lem-
em instantes, é a simulta- branças de sua gênese a favor
neidade, a co-pertinência de dos sistemas que sustentam os
diferenças que o poema ex- interesses pragmáticos. Assim,
pressa sem pudor e que deixa o clamor dessa memória mu-
o cientista abismado com tanto sical, genética, aderente aos
despudor. “A temporalidade do sentidos, torna-se insuportável
fundo radical da existência não para o poeta, por serem intensi-
pode obedecer a nenhum tempo dades excessivas, que, ao atra-
sucessivo, porque é uma tem- vessarem seus corpos físicos,
poralidade percussiva, aquela mexem com os equilíbrios que
própria a uma ressonância” 8. os garantem.

(74)
Brasil Criativo

O poeta penetra numa lógica tânea de um sentido original,


extravagante e se expõe ao per tinente à experiência do
poema. Hölderlin chamou-a de clímax do nascimento da pala-
lógica hiperbólica – a lógica do vra, da qual ele participou com
exagero. Aos nossos olhos, a pa- o suor que lhe cobriu o corpo
lavra – metáfora original que inteiro.
advém como uma das formas A experiência da mistura de
mais legítimas de abrandamen- sentidos (sensações, percep-
to deste sentir o infinito, deste tos, idéias), para mim, parti-
sentir a clausura no ilimitado, cularmente, evoca a palavra
trazendo perplexidade ante a “mistério”. Quando algo me
vida e a morte suposta. É este captura, inexoravelmente, como
experimentar, diabolicamente, alguma coisa que vem de fora,
a vida e a idéia de morte que incontrolável, abre feridas em
nos aproxima das palavras, mim, sinto-me fora e dentro.
entendidas como impalpáveis, Inexplicável, “mistério” – um
como: divino, mistério, inefá- estado indiscernível do meu
vel e enigma, que para nós são, corpo. É um instante de nas-
apenas, grafias da ressonância cimento, exatamente, quando
mesma daquilo que acontece. a cabeça da criança nega-se à
São palavras que o poeta usa novidade de uma vida diferen-
nos instantes que lhe é per- te que se aproxima e o médico
mitido. opta pela facilitação do evento,
Quando a palavra vem, percorre com o corte. A mãe recusa a
os caminhos de misturas afeti- intervenção. Coitada! Insiste
vas; a delimitação feita pelos em sofrer o esgotamento tal
dicionários é histórica e cul- qual o poeta que insiste em ex-
tural. A escolha do significado perimentar o som das palavras,
é sempre uma diferenciação de na potência máxima, o que quer
sentidos que a palavra propõe. dizer que quanto mais plural de
No instante fatal de seu nasci- sentidos for a palavra, maior a
mento, emerge um sentido que dificuldade de captar o mais
se pretende o único verdadeiro; perfeito, o que provoca muitas
então, ela passa a ter outro som, das vezes dores intensas e, al-
outro cheiro, outro sabor; ressoa gumas vezes, mortais.
na diferença. Por isso o poeta Por outro lado, é preciso nave-
tem direito à patente instan- gar, é preciso não ter medo das

(75)
Brasil Criativo

palavras já ditas, convenciona- sons dissonantes, quanto às


das, interpretadas, porque elas interpretações das pesquisas
voltam sempre, voltam como acadêmicas.
outro poema, como lembran- O chamamento, a sonorização
ças esquecidas da sua própria de determinadas palavras pro-
gênese. E o poeta encont ra picia relações experienciais que
para elas mais uma das muitas autorizam filosofias e religiões
verdades nelas acumuladas. Os a capturá-las em esquemas de
poetas, os ressoantes ressoam, interpretações, que inibem a
e o fazem com exatidão, o ca- pluralidade de sentidos possí-
ráter encantatório do mundo. O veis de cada palavra, levando-a
mundo está sempre chamando a um falso esgotamento. O terem
as criaturas para brincar, para sido, então, petrificadas, inclu-
exercitar-se no confronto. Este sive no sistema de línguas, não
é o seu char me, vir ulento e implica, necessariamente, mor-
maravilhoso. Aí se insere a ló- tes para o sentido criador, que
gica do exagero, evidentemente, as devolve ao primeiro contato
porque coloca o corpo inteiro e, portanto, a novos caminhos,
numa zona escorregadia, em inusitados.
que a vida e a morte deslizam: A palavra traz consigo o destino
pisamos, pesadamente, no pa- trágico de seu expositor,
radoxo, nos deita mos ent re porque é, ao mesmo tempo,
coexistentes. Palavra bendita, expressão de algo que explode,
palavra maldita. resplandece, e expressão de
Palavra que é apenas e sempre algo que faleceu. Não importa
a primeira mensagem. Quanto o momento, a palavra é
ao poeta, ele se destina a fa- sempre uma comoção devido
zer jorrar mensagens, quando à circunscrição desta coisa que
enfrenta a abertura do mundo. se torna visível. Ela limita e
Ao se deixar afetar, vive, cada expande o mundo de cada um e
um, o seu próprio “mistério”. Ao de todos. A palavra é tão finita
deixar o corpo abandonado ao quanto nós, mas imortaliza o
tempo da vida, ele recolhe os corpo que gostaríamos que fosse
cânticos do que há de melhor infinito, sugerindo o caráter
e de pior no moderno. Os po- inesgotável do movimento vital.
emas cantam o cotidiano com Dessa forma, o retorno à palavra
palavras tão precisas, em seus torna-se de imensa valia, do

(76)
Brasil Criativo

ponto de vista filológico ou, ela [a própria análise] especifica,


principalmente, do ponto mas a encontrar em cada momen-
to, a passagem da “totalidade do
de vista de sua experiência poema” sob a forma em que este
como metáfora original. Nela, está momentaneamente depositado
exercitamos o paradoxo que e estático"9.
fixa a espécie no patamar das
criaturas “sobrenaturais” afeitas A afirmação diz que a própria
à criação do sentido e, portanto, totalidade das forças confli-
geneticamente preparadas para tantes do poema deposita-se
a transvaloração, lembrando em cada uma das palavras, no
Nietzsche. Ainda sobre a instante de sua construção.
palavra, tenhamos a audácia Cada palavra é um momento
de dizer que significa um tipo de arrebatamento que passa.
de “imagem” (matéria) em Enquanto análise que pretende
movimento, assim como as apreender o todo do poema im-
notas musicais constituem os põe um limite que se fecha em
pontos marcados de um tipo si mesmo, Hölderlin quer expli-
de movimento, ondas sonoras citá-lo como um todo aberto, um
crivadas. todo que enseja, a cada instante,
Blanchot, em seu livro A parte um tipo de contato. Esse conta-
do fogo, chama a atenção para to permite o pressentimento da
um aspecto extremamente im- palavra que, então, advém da
portante quando analisa o tipo palavra ancestral, no entanto,
de comentário que Heidegger sentido nunca antes conhecido.
fez do poema de Hölderlin: Os poetas querem as palavras
“Como num dia de festa”. que emergem como repetição de
“A interrogação de Heidegger, um único modelo de si, o mode-
interroga cada palavra, cada vír- lo sem cópias, sempre original.
gula, e exige de todos os elementos É assim que o poeta prova con-
isolados, tomados, uns após outros,
uma resposta completa e, ela, tam- tinuamente o sabor do mundo,
bém, isolável. A impressão é muitas esse todo aberto onde a vida se
vezes estranha [...] aquilo que pede dá generosamente.
contas a cada parcela do poema e o Suas palavras são aquelas que
obriga a se justificar analiticamen- brotam do andarilho, chegadas
te. A análise de Heidegger chega da paixão, do cruzamento de in-
finalmente, não (grifo da autora) tensidades de vidas diferentes.
a recompor o sentido geral a partir Não é procedente duvidar de
de todos os sentidos particulares que
(77)
Brasil Criativo

quanto pensamento há no afa- psíquica, no interior de sua


zer poético, um afazer luxuoso loucura de muitos anos, fazia
da estética, quando os sentidos ouvir seu canto e o tocar de
revestem os pensamentos, copu- seus instrumentos. Hölderlin
lam entre si e as jóias irrompem. soube que, apesar de sua na-
A jóia é um dito cuja pertinên- tureza indecomponível, a onda
cia encontra--se na teia de seus sonora se decompõe. Ele vive,
materiais, aberta aos visitantes. experimenta o seu “mistério”,
O poema é um pensar, a mais uma excitação. Entende-se por
pura forma do pensar. Que o “mistério” a palavra poética
diga Fernando Pessoa, um pen- com a qual o homem ganhou
sador que deu à luz muitos pen- e driblou a imortalidade. Se a
sadores. Citando José Gil sobre idéia de morte não descansa o
Pessoa: “A descrição do mundo pensamento, então é simples
através das sensações coincide – poetizo tudo o que encon-
com o ritmo dos versos e com o tro, marco com marcas pro-
ritmo da análise das sensações fundas as palavras do poema
vividas”10. A matéria-prima de e me vingo de minha própria
tal afazer são a sensação e a mortalidade, zombo de minha
análise (o pensar) da própria finitude. “Mistério”, palavra
sensação. “As sensações nas- que sobe dos infernos, dona
cem analisadas”, diz Bernardo dos paradoxos, das incompre-
Soares. ensões, das curiosidades; dá o
Na verdade, a palavra dos poe- tom encantatório do mundo e
tas traz pistas para novas ima- nos dá a vantagem poética de
gens do pensamento, imagens inventar o divino, o sagrado,
singulares, sempre singulares. o profano. Como classificar as
O pensar do poema diz-se palavras cantadas por Salomé
sempre de muitas maneiras. O ante a cabeça decepada de João
poeta é um cantador incurável, Baptista? Como classificar as
um viajante sem pouso, um palavras de Canto do Cisne, da
pássaro que se desloca de seu ópera Carmina Burana, quando
lugar para procriar em outro, aquele que morre (o cisne) des-
muito longe. creve a lentidão de sua morte na
Tal movimento foi vivido e assadeira da taberna? Quando
explicitado por Hölderlin, que, descreve o ritmo do movimento
no âmago de sua fragilidade dos dentes que estraçalham a

(78)
Brasil Criativo

carne queimada e cheia de gosto fora que o faça aflorar. É deste


prazeroso? “Mistério”. jeito impiedoso que o processo
No entanto, são apenas palavras alardeia o seu próprio mistério,
poéticas, nada mais, e atingem deixando o poeta estarrecido
sua autenticidade genética. ante a crueldade da vida.
Não pedem interpretações
consistentes e sistêmicas, não
pedem certezas inalteráveis, 1. Carta sobre o Humanismo, Guimarães
Editores, págs. 46-47, Lisboa, 1973.
não pedem crenças religiosas, 2. Hölderlin. Reflexões, Editora Relume -
às quais subsidiam. Elas, Dumará, Rio de Janeiro, 1994.
3. Ob. Citada, pág. 13
simplesmente, soam no cor- 4. Therezinha Russo – Poemas sobre a morte,
po-pensamento. São afetos Editora Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,
1979
experimentados que permitem 5. Conhecer, etimologicamente, se diz como
sentidos inexplorados, muitos nascer, conjuntamente, com o que difere de
si mesmo
diferentes, sempre mais. 6. Mobilidade do coração entoada na alegria e
Os poetas são andarilhos que na ternura. (pág. 9, op. cit.)
7. Termo usado por Hölderlin
trazem, para nós, os sons do 8. op. cit. pág. 11.
mundo. É neste momento que 9. Maurice Blanchot, A parte do fogo, Editora
ele se experimenta no lugar do Rocco, pág. 112, Rio de Janeiro, 1997
10. José Gil, Diferença e Negação na Poesia de
filósofo. Sem os constrangimen- Fernando Pessoa, Editora Relume – Dumará,
tos dos conceitos articulados, pág. 52, Rio de Janeiro, 2000
esse artista da palavra se ofere-
ce como a matriz que recolhe o
que vem de fora, e pensa ques-
tões antes impensadas. Pensar,
por exemplo, que uma palavra
interroga o que vem, porque
é uma passagem, um crivo na
totalidade da experiência de um
mundo aberto. Uma vez afeta-
do, o poeta conhece o sofrer, o
estranhamento de si mesmo, e,
sem alternativas, ele se propõe
a dizer de alguma maneira o
signo que está para chegar e Therezinha Russo é ensaísta e poetisa. Mestre em
que pede “uma” tradução de si, Psicologia teórica e doutora em Comunicação
pede à linguagem alguma metá- pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

(79)
Case History

O modelo de Curitiba
Jaime Lerner

Para começar esta Quando comecei quando é projetada


leitura, contarei aqui a trabalhar com vai-se de encontro a
algumas histórias que planejamento ela. Inclusive porque
narram como as cida- urbano, parecia
se deseja ter razão, e,
des podem alcançar portanto, faz-se todo
que a cidade era
um nível crescente o possível para que
de qualidade de vida extremamente a tragédia aconteça.
e de solidariedade, a complexa, difícil. Porém, é preferível
partir de uma visão Na verdade, eram concentrar toda a nos-
generosa. os vendedores sa energia no sentido
Em muitos países de complexidade de mudar tendências
não existe uma visão que queriam não desejadas.
generosa em relação fazer com que Há uma frase de
às cidades, que, em acreditássemos René Dubois que
geral, são considera- nisso, porque conservo sempre na
das grandes proble- não queriam que memória: “Tendência
mas, pois a ênfase tivéssemos uma não é destino”. A
quase sempre é posta leitura simples da simples detecção de
na dificuldade em cidade. uma tendência não
administrá-las e nas desejável consiste,
suas qualidades de exatamente, no come-
vida insatisfatórias. Assim, o ço da mudança. Isso tem acon-
tradicional é projetar a tragédia: tecido no mundo inteiro, mas
estipular o dia em que a Cidade mais inquietante é essa falta de
do México terá cinqüenta mi- visão generosa sobre as cidades.
lhões de habitantes, ou que São Como se elas fossem tão somente
Paulo alcançará uma população a externalização de um problema
de trinta milhões de habitantes. econômico, enquanto, na verdade,
Pessoalmente, não gosto de a cidade é transformadora, indu-
projeções da tragédia, porque tora e revolucionária; não é um

(80)
Case History

problema, e sim a solução para muito elevados, e começamos a


muitos países. Pode-se começar nos deparar com a necessidade
a resolver melhor o problema de de encontrar uma solução que
habitação, de transporte urbano, estivesse dentro de nossas pos-
de saúde, de educação e do meio sibilidades. Na verdade, a falta
ambiente a partir dela. Portanto, de recursos é a mãe da criativi-
devemos questionar cada vez dade. Começamos, então, a nos
mais esta visão trágica sobre o perguntar: o que faz um trans-
futuro das cidades. porte de massa ter qualidade,
Tomemos, a princípio, exemplos conforto, segurança, velocidade,
simples a propósito da cidade freqüência? Este último item é
de Curitiba, mas que poderiam um ponto fundamental, porque
ter ocorrido em qualquer outra ninguém gosta de esperar quan-
cidade e, atualmente, de fato, do usa um sistema de transporte.
acontecem de formas diversas e Éramos uma equipe formada por
específicas em muitas cidades jovens arquitetos, engenheiros e
do mundo, oferecendo exemplos economistas, e começamos a pen-
extraordinários de criatividade. sar em um esquema que tivesse
Porém, a solução encontrada essas condições, dando início à
para a questão do transporte de implantação de um sistema de
Curitiba, parece mais do que um ônibus, usando pistas exclusivas
caso exemplar, uma referência. e com determinado número de
Há trinta anos, refletíamos sobre paradas programadas. Creio que
como resolver o problema do o transporte do futuro seja de
transporte numa cidade com 650 superfície; esclarecerei o porquê
mil habitantes. A idéia predomi- mais adiante.
nante na época era a de que toda Este sistema de ônibus foi inau-
cidade com mais de um milhão gurado em 1974 com 25 mil
de habitantes deveria ter um me- passageiros por dia. Ainda me
trô. Para não fugirmos à regra, recordo da noite em que nossa
cogitamos sobre essa alternativa. equipe circulou por Curitiba, tes-
Remetemos ao projeto “Metrô tando o sistema. Estava presente
do Ano 2000” – estávamos nos o atual prefeito da cidade, Cássio
anos de 1970 e, portanto, o ano Taniguchi, além de muitos outros
2000 era ainda um longínquo membros do grupo, que naquela
futuro. Porém, os custos de cons- época eram ainda muito jovens.
trução de uma rede de metrô são Quando fizemos o primeiro passeio

(81)
Case History

com o novo sistema de ônibus cinqüenta segundos. Num metrô


– porque as suas características de qualidade, a freqüência de
já eram de um sistema e não de dois minutos e meio já é
linhas isoladas – percebemos considerada boa.
que estávamos realizando algo Então, graças a esse sistema, nós
importante. Começamos com 25 passamos de compradores a ven-
mil passageiros por dia. No dia dedores de tecnologia. Há aproxi-
de sua implantação, a população madamente um ano, o secretário
de Curitiba comemorava a dos transportes dos Estados
novidade, gratuita durante os três Unidos, com sua equipe, anali-
primeiros dias, em cada ponto de sou o sistema de Curitiba, porque
ônibus. Inclusive, aconteceu um pretende começar a implantação
incidente tragicômico, de que me deste nas 18 maiores cidades
recordo vivamente: de acordo americanas. Hoje, temos um sis-
com o projeto original, de 1974, tema bastante sofisticado, que não
o motorista deveria anunciar o pára de encontrar sempre novas
nome de cada parada – “Próxima soluções criativas, numa eterna
estação, Passeio Público!”, transformação. Assim, posso
“Próxima estação, Centro!”, e afirmar que o futuro é superfície,
assim por diante. Aconteceu porque é muito difícil obtermos
– por má sorte – que, logo no nas grandes cidades de hoje re-
primeiro dia de funcionamento des completas como aquelas de
do sistema, um dos motoristas Londres, Moscou, Nova York ou
tinha fala nasalada, e todo mundo Paris. Isso ocorre porque hoje é
ria sem parar ao seu anúncio. Em muito caro trabalhar no subsolo.
conseqüência disso, o esquema Fazer uma rede completa hoje é
de anúncio das estações não impossível.
funcionou nunca mais. Mas Dessa forma, poderemos ter
o importante é dizer que esse cidades com um número de li-
sistema foi sendo melhorado e nhas de metrô que varia de três
aperfeiçoado continuamente, e a seis, mas não teremos uma rede
pode-se afirmar, com certeza, completa, e, assim, o sistema de
que é bem sucedido. A sua transporte urbano terá de ser, em
construção é duzentas vezes mais sua grande parte, um transporte
barata por quilômetro do que a de superfície. Temos que “me-
construção de um metrô, além de tronizar” a superfície; esta é uma
permitir, hoje, uma freqüência de das idéias.

(82)
Case History

Houve uma exposição de Curitiba linha experimental em uma


em Nova York que incluía a de- semana, imagine o sistema que
monstração de nosso sistema se pode fazer em seis meses. Não
de transporte. Levamos até lá precisamos esperar uma geração
uma equipe de cinco pessoas e inteira, durante trinta anos, para
implantamos o sistema em cinco fazer uma ou duas linhas, sempre
dias. E os americanos ficavam a que se tenha o recurso para isso.
dizer: “It’s not possible because of Um outro exemplo a citar aqui é
the Unions.” – ou seja, o sistema é o do lixo. Havia financiamento no
inviável por culpa dos sindicatos. Brasil para projetos de separação
Mas eu retrucava: “So, let’s go to e reciclagem de lixo, mas as solu-
the Unions.” E começamos a dia- ções eram caras. E o nosso gran-
logar com os sindicatos. “No, it’s de problema era onde colocar o
not possible for the handicapped”, lixo, pois nossos sistemas faziam
insistiam eles, ao que eu sempre as coisas totalmente erradas, do
respondia: “OK, vamos falar com ponto de vista ambiental. Juntar
eles”. E assim conseguimos im- o lixo orgânico com aquele reci-
plantar o sistema em cinco dias. clável, compactando-os cada vez
Alguns detalhes dessa história mais no caminhão coletor, signi-
são incríveis, como a burocracia fica repetir e otimizar um crime.
de Nova York , que não é fácil. Pois era isso que estávamos
Nosso arquiteto fez algumas liga- fazendo, lado a lado às usinas de
ções elétricas irregulares, mas o lixo caras. Foi quando descobri-
sistema funcionou perfeitamente mos que a coisa mais simples a
por um mês e meio. fazer é montar uma usina na casa
Durante o Habitat em Istambul, de cada cidadão. E até hoje – já
alguns anos depois, se não me en- se vão 12 anos – nós separamos o
gano em 1992 ou 1994, levamos lixo na cidade de Curitiba.
num avião Antonov um ônibus O mais importante, contudo,
biarticulado às estações, e lá não é a simples separação, é a
implantamos o sistema em uma redução. Porque, se um terço
semana. Somente uma linha, é é reciclável, outro terço pode
claro, através do Bósforo. A idéia ser transformado em compos-
não é e não era bater recorde de to orgânico e o último terço é
velocidade de implantação, mas aquele realmente orgânico, que
simplesmente dizer que é pos- tem de ser colocado em algum
sível. Se pudemos realizar uma lugar. A dimensão do problema

(83)
Case History

reduz-se, portanto, a um terço. lixo por vales-transporte.


A segunda redução diz respeito Hoje posso dizer, com alegria,
aos custos, pois sai muito mais que só em meu estado já são 202
barato reciclar dessa maneira. cidades que fazem a separação do
Em terceiro lugar, é necessário lixo. Mas em Curitiba a fazemos
atentar à redução do desperdí- há 12 anos. E nunca falhou.
cio, educando a população para Muitas cidades brasileiras tenta-
a noção de que existe um lixo ram implantar este sistema. São
que pode ser aproveitado e que Paulo deu início ao processo, po-
a sociedade não pode viver des- rém de maneira errada, porque
perdiçando eternamente. Desse começou em áreas de renda muito
modo, iniciamos a separação em alta, como se só a população que
todos os lares e escolas. Durante morasse nessas regiões tivesse
três ou quatro meses, as crianças a compreensão do esquema. Na
aprenderam o processo e ensina- verdade, se a administração está
ram a seus pais. Em seguida, o fazendo um teste, e a população
sistema foi implantado. Até hoje, compreende que seus governantes
cerca de 70% da população faz não têm segurança quanto àquilo
a separação. Em nenhuma outra que propõem, ela não assume a
cidade do mundo se consegue sua co-responsabilidade.
esse percentual porque muitas Também é de suma importância
ambicionam um sistema muito tratar do outro assunto que diz
sofisticado: como separar o vidro respeito à criança de rua. É um
segundo as várias colorações, problema que abala todos os
quando, na verdade, temos o brasileiros. Em uma das várias
orgânico e o inorgânico. reuniões que assisti sobre o
Criamos uma coleta especial nos tema, esta no magnífico teatro
bairros mais pobres, comprando o Odéon, em Paris, representantes
lixo. Ou seja, nos locais que eram do mundo inteiro falavam sobre
sujeitos à poluição, onde a popu- a tragédia das crianças de rua
lação simplesmente jogava o lixo no Brasil. Muitas lideranças
no meio ambiente, onde o acesso políticas naquela época faziam
do caminhão de lixo era difícil, previsões escabrosas, dizendo
começamos a comprá-lo. E todos que no ano tal iríamos ter tantos
pensaram que havia um prefeito milhares de crianças nas ruas e,
louco no Brasil, que comprava alguns anos mais adiante, tería-
lixo! Na realidade, trocávamos o mos mais e mais. Enfim, era a

(84)
Case History

projeção de uma tragédia. uma dessas crianças. Com este


Hoje posso afirmar com segu- fim, desenvolvemos programas
rança que, dividindo, compar- que permitem que famílias
tilhando esse problema com as assumam tal papel e possam,
cidades, não teremos esse tipo de inclusive, adotar uma criança.
problema. Não desejo fazer aqui Minha família, assim como mui-
nenhum tipo de propaganda, mas tas outras, independentemente da
é muito importante relatar que, ação do governo, adotou algumas
aliados todos os municípios do crianças, recebendo os boletins
Paraná, conseguimos firmar um escolares e acompanhando-as
acordo que nos compromete a pelo resto da vida ou durante
retirar as crianças das ruas. uma boa parte.
Mais importante ainda que os A sociedade exige respostas cada
programas existentes é a questão vez mais rápidas e o poder local
da escola. Se obtivermos em todos é aquele que oferece a resposta
os municípios um acordo, através mais veloz. Grande parte do
do qual todos se comprometam a sucesso e do enorme avanço na
fornecer escola, permitindo que área de saúde nacional foi pos-
possamos garantir a qualidade da sível porque o atual programa
educação para estas crianças de foi muito bem descentralizado.
rua, pouco importa o fato de que Acreditou-se na ação dos esta-
isto pode ter sido obtido graças dos e municípios. Trata-se de
ao programa bolsa-escola ou a um um programa exemplar. Quanto
de cesta básica. O importante é mais um município recebe um
poder garantir que a família seja crédito, mais ele se esforça,
atendida e que a criança seja ambicionando atingir qualidade
acompanhada. cada vez maior.
Atualmente funciona um sistema, Portanto, a cidade não é tão
iniciado em Curitiba e depois re- complexa quanto os vendedores
passado a todas as cidades do de complexidade querem nos
Paraná, através do qual tiramos fazer acreditar. Quando comecei
70 mil crianças das ruas e as co- a trabalhar com planejamento
locamos na escola. É necessária urbano, parecia que a cidade era
uma organização muito grande extremamente complexa, difícil.
para realizar um programa des- Na verdade, eram os vendedores
sa escala, porque é imperioso de complexidade que queriam
acompanhar o estudo de cada fazer com que acreditássemos

(85)
Case History

nisso, porque não queriam que trata só da questão da árvore, mas


tivéssemos uma leitura simples também da energética e de uma
da cidade – e o mundo está cheio soma de várias outras interliga-
deste tipo de pessoa. Nós devería- das, todas essas representadas
mos abatê-los a chineladas, pois a pela gasta, porém exata, palavra
solução está no poder local aliado “sustentabilidade”. Porque um
à sobrevivência global. país com as nossas dificuldades,
Vale analisar também o meio am- como, aliás, qualquer país, não
biente, que me angustia muito. A pode se dar ao luxo de desper-
mídia nos recorda diariamente o diçar.
quão condenados estamos, como Quando se fala sobre desperdício,
se fôssemos pacientes terminais, cabe lembrar de algo chamado “a
padecendo devido ao aqueci- cidade-integração de funções”.
mento da Terra ou ao buraco na Nós, arquitetos, planejadores ur-
camada de ozônio. E ficamos imo- banos etc, influenciamos muitas
bilizados numa espécie de UTI, cidades do mundo, mas fizemos
como se nada pudesse ser feito. uma interpretação mal à droite
Na verdade, há muito que se da Carta de Atenas, que dizia
fazer, a começar por usar menos serem funções da cidade habitar,
o carro e separar o lixo. Se todos trabalhar, circular e recriar. O
fizessem isso, com toda certeza o erro foi que muitos começaram
problema seria muito menor. a separar estas funções. As ci-
A separação do lixo é importante dades européias não passaram
porque cinqüenta quilos de papel por isso, mas outras, com seus
reciclado significam uma árvore grandes conjuntos, seus grandes
poupada – esse dado sempre foi ensembles, perseveraram nesta
enfatizado na cidade de Curitiba, direção. Felizmente agora se
reverberado pela frase: “Nós sal- compreendeu que a cidade é
vamos 1200 árvores por dia.” tanto mais humana quanto mais
Então, se considerarmos duzentas misturarmos as funções, as ida-
árvores como equivalentes a um des e as diversas rendas.
bosque, essa quantia representa O trabalho realizado no Rio de
salvar seis bosques por dia. E se Janeiro, chamado Projeto Rio
todo o país, se todas as cidades fi- Ano 2000, objetivava cobrir e
zessem a mesma coisa, poderiam completar a função que estivesse
ser salvos cerca de quinhentos faltando. No centro da cidade
bosques por dia. Porém, não se faltava moradia, logo a idéia era

(86)
Case History

devolver residências em poten- fazer acontecer? Na verdade,


cial àquela zona. Na Barra da essa é a dúvida. E quando du-
Tijuca e algumas regiões faltava vidamos, as visões pessimistas
a função serviço, logo o objetivo sempre passam na frente, nos
era providenciá-la e torná-la tornando cada vez mais imóveis.
disponível. Por quê? Porque fazer acontecer
Acompanhei todos os movimen- não é fácil. Porque é preciso
tos do urbanismo contemporâneo partir do princípio que se deve
e posso afirmar que ainda não se começar pelo simples e fazer do
inventou nada melhor do que simples a base do futuro. Na raiz
a rua tradicional. Aquela rua, de uma grande transformação
integração de funções, que cada está a pequena transformação,
um de nós viveu, vive e tem na a pequena mudança como início
memória. As pessoas mais oti- de metamorfose. É por essa razão
mistas pensam que as cidades que precisamos de uma política
do futuro serão parecidas com o urbana geradora de transforma-
cenário do “Flash Gordon”; já as ções que aconteçam agora, e não
pessimistas, que vai se parecer das que precisem de vinte anos
com aquele do “Blade Runner”. para acontecer. O importante
Mas, na verdade, a cidade do é introduzir novidades agora;
futuro não vai ser fisicamente depois, com o tempo, aportar
muito diferente do que é hoje, aperfeiçoamentos contínuos. As
justamente por não termos hoje soluções futuras cabem às futu-
algo fisicamente muito diferente ras gerações; cabe a nós, agora,
do que há trezentos anos. O que encontrar aquelas possíveis, pois
vai mudar, e tem mudado, é o não temos a eternidade para ten-
modo de geração de emprego. tar intervir nas cidades.
Felizmente, as empresas estão se A visão de um objetivo futuro é
deslocando, de forma que, hoje, uma visão teleológica: coloca-se o
é mais fácil trabalhar próximo ao objetivo diante de si e faz-se com
local de moradia, sem mencionar que as coisas aconteçam, que se
os serviços que se tornam dispo- abra um caminho para uma certa
níveis em diversas áreas. direção. Por exemplo, significa
Quando nos referimos à vida nas fazer do ônibus o embrião e o me-
cidades, sempre nos considera- trô do futuro; fazer da indústria de
mos impotentes para transformar fundo de quintal, ou da garagem,
sua realidade. É possível mudar, a base de alguma transformação

(87)
Case History

econômica; fazer da escola a base melhor ter infra-estrutura do que


de integração da criança com a não ter. É sempre melhor fazer
sociedade; fazer do aumento de aquilo que pode ser feito imedia-
trocas entre a população de ren- tamente. Durante a construção de
da alta e baixa a base para um um prédio, os operários dispõem
programa de segurança; fazer da de água e luz na hora, porque não
solução de saneamento por casa ambicionam uma forma definitiva
ou por quarteirão o saneamento e bem acabada. O importante é
básico de uma cidade; fazer da dispor de água e luz, do jeito que
memória da cidade a base para for possível. A mesma coisa pode
um programa de revitalização; fa- ser feita nas favelas.
zer de uma vila rural a base para Já mencionei o cenário da cidade,
uma reforma agrária viável. e gostaria agora de adotar a cida-
Tive a oportunidade, em vários de de Las Vegas como ilustração
momentos de minha vida, de me do cenário indutor que às vezes
deparar com certos dilemas, hoje criamos. Tivemos vários exem-
considerados simples. Um deles plos disso quando se começou a
surgiu numa época em que eu celebrar os aniversários e datas
estava trabalhando em Cararas e significativas das cidades, de
deveria levar infra-estrutura aos Houston à estátua da Liberdade,
morros da cidade. Não conseguia em Nova York, ou durante os
entender por que queriam mexer Jogos Olímpicos. São eventos
tanto no solo, o que fazia com que começam a criar cenários,
que eu e meus colegas corrês- compondo a cenografia do mun-
semos riscos. Conhecia bem as do inteiro. Francis Ford Coppola
dificuldades que havíamos en- fez de Las Vegas um cenário
frentado em nosso país, quando inesquecível, porque, com um
tivemos de completar a rede de truque – molhando o piso para
saneamento básico ou de ener- refletir o néon da cidade –, per-
gia elétrica. Por que não usar a mitiu que ela ganhasse uma outra
escadaria? Por que não usar o dimensão.
corrimão para levar água e infra- Se podemos criar um cenário in-
estrutura para cada casa? E se a dutor, que estimule o desenvol-
casa é uma favela, entra-se pela vimento, por que não considerar
janela, ou entra-se por onde for também o transporte um cenário
possível, criando o esgoto pelo capaz de exortar a ocupação futu-
vão da escadaria, porque é muito ra, com vistas ao crescimento, ao

(88)
Case History

encontro e à animação? As ruas e havia, portanto, troca entre


são cenários prontos e caros que estas populações. Hoje elas se
podem ter um múltiplo uso esca- separaram totalmente, e quan-
lonado no tempo. Não podemos do há separação, há violência.
ter cidades de alto custo, como Se iludem aqueles que querem
a estrutura do centro de cidades construir um pequeno oásis e
como o Rio de Janeiro ou São dizer: “Aqui temos segurança
Paulo, não ocupadas durante 16 total”. Formam-se vilas, guetos
horas por dia; tornam-se caríssi- de gente muito rica ou de gente
mas. Por esse motivo devemos muito pobre. A segurança nestes
pensar numa cidade que funcione casos, é ilusória, pois se esquece
24 horas por dia. Não necessaria- que haverá sempre alguém espe-
mente toda a cidade, mas algu- rando na saída.
mas ruas, algumas áreas. Se, por E em relação às megalópoles?
exemplo, nascem dificuldades Como vamos conviver com cida-
como a marginalização de uma des com escalas de dez milhões
parte da população, isso acontece de habitantes?” Hoje, há um
porque foi interrompida a troca, o grande número de cidades no
intercâmbio entre a população de mundo com muito mais habitan-
alta renda e a de baixa renda. Em tes, o que desperta o alerta para
1984, quando trabalhávamos no agirmos com urgência, como se
Rio de Janeiro, propusemos que estivéssemos em estado de guer-
a base de cada morro, de cada ra. Essa situação exige o domínio
favela, virasse uma zona franca, do crescimento urbano em uma
para que se pudesse abrir, cada certa direção e a integração das
vez mais, novas oportunidades de funções urbanas, de forma a gerar
empregos, havendo, dessa forma, empregos próximos aos locais em
mais trocas de serviços. Porque que a população mora. Da mesma
quanto mais trocas existem, me- forma, devemos dar prioridade ao
nos a violência ocorre. transporte de massa, limitando a
Lembro-me do Rio de Janeiro, circulação de automóveis de
no período em que se construía modo que o transporte individual
a zona sul. Certas famílias mo- seja consentido só para as curtas
ravam na favela da área, mas a distâncias, utilizando veículos
mulher trabalhava como domés- que trafeguem em baixa velocida-
tica numa casa ou apartamento de e sem causar poluição. É fun-
rico da mesma zona geográfica, damental que cada cidade grande

(89)
Case History

se comprometa com determinada descobrir essa estranha linha,


maneira de crescer, tendo visão esse desenho escondido, que,
global de seu gerenciamento, na verdade, reflete pontos de en-
recebendo e produzindo estímu- contro, situações que aconteciam
los de agregação e integração da na cidade, que se consagraram e
cidade informal, das tecnologias constituíram esse desenho. Sim,
apropriadas e da estrutura futura é possível dirigir uma cidade,
desta cidade. assim como é possível dirigir um
Percorri, durante muitos anos, estado. Quando se olha o mapa de
várias estruturas de planejamen- uma cidade não se enxerga nada,
to urbano, em diversas cidades mas, quando se observa sua es-
do mundo, bastante sofisticadas. trutura de crescimento, pode-se
Quando perguntava às pessoas enxergar muita coisa.
que lá trabalhavam: “Para onde Qual a proposta de solidarieda-
vai esta cidade?” ou “Do que de? A cidade é, então, o melhor
vivem as pessoas que aqui mo- cenário de solidariedade. A
ram?”, obtinha como resposta: proposta deve definir, afinal, que
“Bem, estamos estudando os ve- espaço geográfico nós queremos
tores de crescimento…” Portanto, ocupar num país. Como se dará
passei a dirigir as mesmas per- o aproveitamento dos recursos
guntas ao motorista de táxi ou ao naturais? Que tecnologia será
barbeiro, que respondiam: “Aqui colocada à disposição? Como
a gente deixou de viver de indús- se fazer a distribuição no espa-
tria porque agora o negócio é esse ço geográfico brasileiro? Qual a
ou aquele…” Enfim, há sempre proporção de pessoas na cidade
muitas pessoas que sabem ler e e no campo, e qual a qualidade
que já interpretaram a pesquisa. de vida nesses locais? Quais são
É possível ordenar e estabelecer os princípios éticos que vão reger
a direção de crescimento de esta sociedade?
uma cidade. Também é possível Quando se fala em estrutura
redescobrir o desenho originário de crescimento, o desenho de
de uma cidade. Trata-se de uma Curitiba poderia parecer com o
estranha arqueologia: fazer revi- de qualquer outra cidade, mas
ver os desenhos e projetos escon- começamos a notar que tem uma
didos em uma cidade. Por isso, visão integrada de estrutura de
no nosso trabalho, somos também vida e trabalho, de maneira mui-
arqueólogos, porque temos que to simples, com algumas áreas de

(90)
Case History

maior densidade. Então, tem-se ferrovia com ônibus. No fundo, o


a oportunidade de morar em lu- tubo não passa de uma conexão,
gares mais densos, onde há mais infelizmente não implantada no
ofertas de transporte coletivo, ou Rio. Lembro-me que chegamos a
pode-se morar em áreas menos fazer um modelo à mão, em meu
densas, mas próximas ao trans- escritório, até achar a escala justa;
porte público. A estrutura é feita elaboramos um protótipo de ma-
de forma que haja uma correlação deira e fui buscar o então prefeito
entre o tipo de transporte e o uso para que ele visse o projeto. Havia
do solo, o que não é novidade, chamado também os técnicos do
mas já é uma prova clara de que BNDES, mas a reação deles foi
a cidade está estruturada. Não perguntar: “E como se limparia o
se trata de arquitetura, porque a tubo?” Da pergunta do tecnocrata
arquitetura é a visão de uma cul- não há quem se salve! É a lógica
tura, podendo ser boa ou má. burra. O tubo se limpa como se
Existe um terminal de ônibus em limpa qualquer coisa. Mas eu ain-
Curitiba, pelo qual passam 750 da tive a coragem de responder:
mil pessoas por dia e não deixa “Com a língua.” É verdade que
de ser uma praça. Os ônibus não foi financiado.
biarticulados transportam, cada Outro sistema implantado em
um, trezentos passageiros. O Curitiba se chama “ligeirinho”.
sistema é simples e, em algumas O embarque é no mesmo nível: o
estações, encontramos as deno- passageiro paga antes de entrar
minadas “Ruas da Cidadania”, no ônibus, por isso a operação é
onde todos os serviços públicos rápida como no metrô.
são prestados. Lembro-me também que, na épo-
Um exemplo de uma solução ca, ainda não tínhamos a solução
simples é o do tubo que trans- para os portadores de deficiência.
forma ônibus em metrô. A forma, Foi quando quase desistimos
tubular, tem por objetivo não do tubo, porque seria preciso
interferir no desenho da cidade. construir rampas. Na verdade, é
É uma forma geométrica simples, uma questão de filosofia, e dou o
um cilindro. Na verdade, esse pro- exemplo: quando construí a minha
jeto foi desenhado para o sistema casa, havia na planta uma lareira.
de transporte do Rio de Janeiro, O desenho era difícil e o mostrei
com o objetivo de integrar ônibus para o mestre de obras, que logo
com metrô, metrô com ferrovia e disse que faria tal lareira. No que

(91)
Case History

perguntei como a faria, ele res- cer em muitas cidades do mundo


pondeu: “Tem mestres que é prá com ônibus biarticulados, ou seja,
fazer e tem mestres que é prá não veículos de maior dimensão, que
fazer. Eu sou mestre prá fazer”. poderiam funcionar como uma
Quando foi verificada a neces- espécie de metrô, porém com im-
sidade das rampas, nos demos plantação muito mais rápida, uma
conta de que se tratava de um vez que em seis meses o sistema
problema muito difícil, porque já pode funcionar inteiramente.
seria necessário subir cerca de Ainda tivemos de convencer a
noventa centímetros ou um me- Volvo a fabricá-lo, mas testa-
tro, o que significava, portanto, mos este chassi durante alguns
dez metros de desenvolvimento. meses e conseguimos implantar
Decidi, então, implantar o tubo o sistema.
normalmente, com a certeza que De fato, tudo tem um desenho. Um
logo viria a solução. E, de fato, estado tem desenho definidor de
uma semana depois, um membro prioridade, que não é rígida, que
de nossa equipe a desenhou. vai acontecendo, mas em que
Trata-se de um tubo pequeno se começa a delinear uma certa
que levanta a plataforma e faz estrutura de crescimento. E isso
com que os portadores de defici- é o que está acontecendo no meu
ência usem o sistema inteiro, em estado. Na realidade, essa estru-
qualquer lugar, sem nenhuma tura é logística e de qualidade
dificuldade. de vida. Não existe somente uma
Em seguida, partimos para os visão econômica, e sim uma vi-
ônibus biarticulados porque são integrada de assentamentos
precisávamos de ônibus maio- humanos, isto é, de atividades
res. Havia lido que a Renault, econômicas unidas à maneira
em associação com a Volvo, como as pessoas vivem. Todas as
tinha a intenção de fabricar um vezes que a sociedade separou a
ônibus biarticulado. Porém, essa vida do trabalho, apenas aconte-
associação foi desfeita e iríamos ceu uma tragédia. Um país não
perder a oportunidade. Solicitei pode se preocupar apenas com a
uma entrevista com o diretor da economia.
Volvo, a inventora do chassi biarti- De repente, o Brasil mudou. Foi
culado, para apresentar um estudo necessária a crise da energia para
de viabilidade de mercado, uma que nos déssemos conta dessa mu-
previsão do que poderia aconte- dança. Como foi possível anunciar

(92)
Case History

uma crise sem propor a solução? o valor; o outro, uma imagem,


E o mais extraordinário é que o que varia de país para país. Esta
povo brasileiro acabou encontran- imagem agora nos pergunta: “E a
do, antes do governo, a solução gente?”. Um dia, os formulado-
de economizar energia. Isso res da política econômica terão
culminou em uma transformação de descobrir que existe gente.
incrível. Basta lembrar do Brasil Se tão responsáveis fiscalmente,
de muitos anos, da época em que tão responsáveis em manter a
se exaltava o nacionalismo; era estabilidade, como pudemos ter
o período de Vargas, quando se descuidado a ponto de anunciar,
escutava sempre, pelo rádio, uma quando o país estava decolando,
canção que dizia mais ou menos uma crise energética? Dizer que
o seguinte: “Oh, meu Brasil, para não há energia, quando, na reali-
aumentar tua glória, dia virá o teu dade, há. É só saber economizar,
futuro ascensional, porque o mun- racionalizar.
do invejará a tua história, porque Há vinte anos, passamos pela
serás um paraíso universal.” Este crise do combustível. A cidade
fundo musical era acompanhado de Curitiba demonstrou que se
do retrato do Getúlio, pendurado pode economizar 25% de com-
na parede de todas as lojas. Meu bustível. Houve um redireciona-
pai era comerciante e fazia ques- mento de todos os fluxos. Há três
tão de ter o tal retrato na vitrine. anos, antes da crise, adotamos
Era um momento de um naciona- medidas de economia de energia
lismo quase fascista, exaltado. no Paraná. Graças ao redirecio-
Depois, passamos pelo tempo de namento de fluxo, economizamos
Juscelino, época do desenvolvi- 17% de energia. Um modo para
mento. Não tão distantes estão os se obter esse resultado positivo é
anos do autoritarismo, da ditadu- fazendo com que as pessoas saiam
ra, seguida pela década perdida, de casa uma hora mais cedo, o
até chegarmos ao período da es- que economiza de 10 a 12% de
tabilidade econômica, do ajuste energia.
fiscal, da lei de responsabilidade Na verdade, o problema era com-
fiscal, que foi muito importante. portamental. Por exemplo, temos
Mas a crise energética determinou tarifas diferenciadas, uma que
o final deste período. Iniciou-se, funciona durante a madrugada,
assim, a era das pessoas, pois outra para as horas de maior
a moeda tem dois lados: um é fluxo, etc, o que já funciona há

(93)
Case History

três anos. Então, qual foi o erro? lembrar do desastre ocorrido no


Anunciar a crise sem ter a solu- rio Iguaçu, devido a um derra-
ção. Todo mundo gosta de apitar mamento de óleo. Um grande
o jogo no videotape. Apitar o jogo desastre ecológico. Por isso, pre-
depois é muito fácil. O importante tendemos tratar todos os vales, de
é resolver. todos os rios, depois os platôs, os
Para se ter uma idéia de como degraus, o que já está sendo fei-
é possível mudar os índices de to. Do ponto de vista ambiental,
áreas verdes de uma cidade, em a vida em cluster não funciona,
poucos anos, Curitiba tinha meio continuidade é vida e a continui-
metro quadrado de área verde por dade ao longo desses vales dos
habitante, e hoje tem 52 metros rios é fundamental.
quadrados dessa área, com a po- Mas o rio Iguaçu também tinha
pulação triplicada. Temos, hoje, suas feridas: os exploradores de
uma pedreira transformada em areia, que poluíam seu vale. Em
teatro ao ar livre, com capacidade prol de sua recuperação, todos
para cem mil pessoas. os moradores participarão deste
Outra obra notória é a processo de limpeza das águas,
Universidade Livre do Meio que se estenderá até a foz.
Ambiente, com arquitetura de ma- No percurso do rio Iguaçu existem
deira e antigos postes elétricos ou várias barragens antigas. A partir
de telefonia, que foram comprados de agora, as cataratas desse rio
porque nós acreditamos ser esse o apresentarão duas características
verdadeiro pós-moderno. extraordinárias. A primeira é a
Há ainda o Bosque do Papa, re- usina de Itaipu, maior demons-
alizado com base na memória da tração de força do homem; e a
cidade, na importância das suas segunda é um canal para que os
várias etnias; o Jardim Botânico, peixes subam o rio, garantindo a
construção que, normalmente, continuidade das várias espécies.
uma cidade leva cem anos para Assim, teremos uma catarata de
poder começar a usufruir. Mas, peixes ao contrário, com 120
em nosso caso, nos demos conta metros de altura.
de que ele já poderia ser ocupado No encontro dos rios Paraná
ao mesmo tempo em que se planta; e Iguaçu existe o Fórum das
a população poderia desfrutá-lo Américas. Estamos dando um
imediatamente. tratamento à sua costa fluvial
Quanto à biodiversidade, cabe de 1.400 quilômetros ao longo

(94)
Case History

da barragem de Itaipu. Quantos obra, muito dinheiro. Nós es-


países do mundo podem ter uma colhemos um eixo da cidade e
costa fluvial deste tamanho e com começamos, aos poucos, a cons-
as cataratas de Iguaçu ao lado? truir os equipamentos. Até que
Como isso será divulgado para que um dia estaremos capacitados a
as pessoas possam conhecer? Com realizar uma Olimpíada, facil-
os Jogos Mundiais da Natureza, mente, sem gastar um só centa-
espetáculos maravilhosos que co- vo. Para tal efeito, já possuímos
meçamos a realizar desde 1997. a Universidade do Esporte.
Este espetáculo foi transmitido Além disso, criamos a
para 120 países, 840 televisões Universidade do Professor, que
no mundo inteiro, sem muita apresenta o formato de vila. Para
divulgação. Mas agora, com mais este projeto, aproveitamos uma
tempo, se tornarão ainda mais antiga usina, já com hospital e
conhecidos. escolas, a ampliamos e adapta-
Estamos desenvolvendo um pro- mos para treinar mil professores
jeto com o qual estamos muito por semana. É uma imersão, onde
entusiasmados. Treinamos atores oferecemos o que há de melhor
para contar a história de cada re- no país e no mundo e colocamos
gião do estado do Paraná. Além à disposição desses professores,
desse, outro projeto interessante ali alojados para o treinamento.
é o Circo da Ciência. Trata-se de Trata-se de um espaço muito
um circo normal, como qualquer privilegiado. Affonso Romano de
outro, porém os espetáculos serão Sant’Anna e Marina Colassanti
acompanhados de demonstrações estiveram lá, dando palestras.
científicas. Por exemplo, quando o Os professores provêm de lo-
equilibrista anda na corda bamba calidades diversas e ocupam as
com a vara, é apresentada uma casas da vila em grupos de
explicação do princípio da Física quatro, convivendo durante uma
correspondente, sem tirar o aspec- semana e intercambiando suas
to lúdico do circo. Cada número, experiências. Paralelamente, há
seja ele o do mágico que gira os uma série de trabalhos, ativida-
pratos, ou o globo onde os ciclistas des culturais, teatro, orquestras,
giram, será acompanhado de uma enfim, várias iniciativas. É uma
explicação. vivência inesquecível.
Muitas cidades constroem vilas Ainda no campo da Educação, o
olímpicas e gastam, com essa programa Da Rua para a Escola

(95)
Case History

faz com que o uso de subsídios na e criam bônus para a obtenção de


forma de alimentos, com o acordo um retorno, como acontece com
da família, tire a criança da rua e as empresas? Seria a bonificação
a coloque na escola. da solidariedade, aplicada nas re-
É de suma importância relacionar giões que forem de interesse dos
competitividade com solidarieda- países ou na área social. Não há
de, deixar claro que o que está nada aqui proposto – como esse
acontecendo no mundo é uma bônus de solidariedade, que é o
tentativa de retirar o direito à acerto da dívida ambiental e ins-
territorialidade das pessoas. E não trumento de compensação entre
podemos ficar simplesmente como os países – que já não tenha sido
espectadores, pensando que não feito.
se pode fazer nada, constatando a Há um exemplo disso muito sim-
globalização. Não. O fenômeno da ples, que usamos para abordar
globalização é de fato real, porém o assunto com pescadores. Em
também podemos apresentar nos- muitas regiões do mundo, gasta-se
sas propostas em relação ao que muito dinheiro para se despoluir
deve compreender competitivida- as baías. No Rio de Janeiro, o pro-
de na produção e solidariedade na jeto está previsto em oitocentos
distribuição. A cidade é o cenário, milhões de dólares. No entanto,
por excelência, da solidariedade. não adianta investir em obra se
Podemos mudar muitas coisas, não se toca o nó do problema, que,
inclusive nas relações entre os nesse caso, é a mentalidade de
países. continuar poluindo. No Paraná,
Um ano atrás, tive a ocasião de estamos limpando as nossas baías,
propor um bônus de solidariedade gastando quase nada. Tudo graças
nas Nações Unidas. Pelo acordo a um acordo feito com os pesca-
de Kyoto, toda empresa que não dores: se eles pescarem, o peixe
queira pagar imposto no seu país é deles. Já se pescarem lixo, nós
pode comprar uma área no Brasil compramos. Se o dia não estiver
ou em qualquer outro país, para bom para a pesca, eles vão pes-
preservá-la, obtendo, dessa forma, car lixo e, assim, limpam a baía.
desconto no imposto de renda. Quanto mais cedo limparem, mais
Mas por que isso deve ser limi- peixe haverá – e eles sabem disso.
tado à decisão de uma empresa? Então, quantos problemas podem
Por que um país, uma cidade ou ser resolvidos quando a própria
um estado não montam um projeto fonte pode gerar a solução?

(96)
Case History

A meu ver, há alguns estágios fun- não me afastar da possibilidade de


damentais para que isso aconteça. resolver as duas coisas. Encontrei,
O primeiro é a vontade política. em muitos lugares do mundo,
Depois, uma visão de solidarieda- gente com vontade política, visão
de. Já trabalhei em muitos países solidária e estratégica, mas que
do mundo, assessorando prefei- não sabe montar uma equação de
tos, governadores e presidentes. co-responsabilidade.
Durante trinta anos, encontrei O problema de energia exigia essa
gente com muita vontade de equação, em vez de uma ameaça
fazer. Porém, após os primeiros de punição à população. Setenta
meses de administração, haviam por cento da população curitibana
gastado todo o orçamento devido à separa o lixo, sem punição. Porque
falta de visão global e excesso de as pessoas sabem muito bem da
paternalismo. Há também aque- sua responsabilidade. Então, é
les que têm uma visão solidária, necessário montar uma equação
mas não conseguem realizar muita de co-responsabilidade onde
coisa, porque lhes falta visão es- todos possam entrar: governo,
tratégica. Isso me custou anos e iniciativa privada, etc. Por último,
anos para entender. é preciso fazer dessa equação um
Na verdade, essa visão não é só a sonho coletivo. Porque, se já é di-
procura do que é necessário, não fícil realizar um sonho individual,
significa atender a todas as neces- muito mais difícil é realizar um
sidades, porque quando se tenta coletivo, tamanhas as diferenças
atender a todas as necessidades, entre as necessidades de uns e
não se muda nada. Por outro lado, as ambições de outros. Há muita
quando se procura atender só às gente capaz de responder a tantos
potencialidades, àquilo que vai sonhos coletivos.
mudar a vida de grande número
da população, corre-se o risco do Texto adaptado a partir de trans-
afastamento desta. crição da palestra ministrada no
Portanto, a visão estratégica seria Seminário de Ravello, Itália, em
um balanço diário entre necessi- 2001.
dades e potencialidades. Fiz disso Jaime Lerner é membro honorário do Real
um exercício: trabalho num lugar, Instituto de Arquitetos do Canadá e do Insti-
pela manhã, somente com as po- tuto Americano de Arquitetos (AIA). Foi eleito
tencialidades; e à tarde, em outro governador do Paraná em 1994, tendo sido
lugar, com as necessidades, para reeleito em 1998.

(97)
Case History

Fotossíntese
Lélia Deluiz Wanick

O planeta Terra é tão Então surgiu a um modo geral, já as-


bonito, tão interessan- idéia de plantar similaram a palavra.
te e tão intrincado. uma floresta e Mas o verdadeiro con-
Justamente por este tentar recompor
ceito que esta palavra
último motivo é que resume – a ciência
a paisagem da
ele se encontra na que estuda as comple-
situação atual: rios época de nossos xas interligações entre
sem água, ar poluído, antepassados. as formas de vida do
buraco na camada de Rapidamente planeta – talvez ainda
ozônio, terras erodi- a idéia virou não esteja assimilado.
das, animais expulsos felicidade, e O simples fato de se
de seus habitats natu- em nome desta, falar na natureza
rais. Isto só para falar buscamos auxílio como algo que nos
da natureza, esta que para que o cerca passa a idéia de
nos cerca, como se é projeto finalmente que estamos no meio,
de costume falar! E se tornasse como numa ilha, não
sobre o ser humano, realidade. fazendo parte dela;
que balanço fazer? que somos especta-
Vinte por cento de- dores ou produtores;
tendo 80% da riqueza e 80% ou ainda que, do alto da nossa
sofrendo por 100% de pobreza, racionalidade, podemos domi-
desnutrição, poluição, doenças, ná-la ou controlá-la. Segundo o
falta de instrução, guerras, ex- conceito ecológico, somos parte
ploração, prostituição de crian- integrante deste conjunto global
ças, enfim, uma lista infinda de e interdependente de seres vivos.
mal viver. Somando-se, claro, ao Nós somos o meio ambiente, e ele
egoísmo e egocentrismo dos que é nós. Sem a fotossíntese feita
detêm o poder. pelos seres verdes, bactérias e
Em nossos dias, ouve-se muito algas, não existiria oxigênio e,
falar em ecologia; as pessoas, de sem este componente do ar, nem

(98)
Case History

os seres humanos, nem alguns contrar especialistas para ajudar


dos outros seres vivos poderiam nos primeiros caminhos.
existir. Sem a fotossíntese, a terra Nosso amigo Renato de Jesus,
seria inerte. grande plantador de árvores,
É um privilégio podermos parti- rapidamente adotou o pensa-
cipar dessa interação de relações mento, fazendo aumentar nosso
ecológicas, que é a vida do nosso entusiasmo e nos colocando a
planeta. par das linhas a seguir. Elaborou
Quando estes conceitos começam um projeto florestal, levando em
a povoar as mentes é impossível conta a desertificação da terra.
não se pensar em soluções. A par- Foi necessário um estudo da
tir destas reflexões, nos veio – a planta topográfica para estabele-
meu marido, Sebastião Salgado, cer as características da peque-
e a mim – a decisão de colocar na cobertura vegetal existente.
uma terra de 675ha que possu- Projetou a restauração com um
ímos a serviço da natureza. Era total de 1.500.000 árvores, num
com tristeza que olhávamos para período seqüencial de cinco anos.
aquela paisagem degradada, de No início de novembro de 1999,
terras completamente erodidas, utilizando plantas doadas pela
de córregos sem água e animais Companhia Vale do Rio Doce,
magros. E assim é toda a região começamos a primeira plantação
do Vale do Rio Doce – um rio ou- com a ajuda e o entusiasmo da co-
trora tão caudaloso e navegável, munidade, sobretudo das crian-
hoje completamente assoreado. ças. Foi uma festa da natureza, e
A Mata Atlântica, que fizera até a chuva aceitou o convite.
o esplendor da região, hoje só Para o bom desempenho do pro-
aparece aos jovens através de jeto, foi necessário planejar uma
gravuras ou fotografias. estrutura administrativa e finan-
Então surgiu a idéia de plantar ceira. No início daquele mesmo
uma floresta e tentar recompor ano, foi criado o Instituto Terra,
a paisagem da época de nossos com sede na fazenda Bulcão, no
antepassados. Rapidamente a Município de Aimores, na divisa
idéia virou felicidade, e em nome de Minas Gerias com Espírito
desta, buscamos auxílio para que Santo. Esta fazenda já tinha o
o projeto finalmente se tornasse estatuto de Reserva Privada do
realidade. Como a nós só cabia a Patrimônio Natural (RPPN) re-
boa intenção, precisávamos en- conhecido pelo Instituto Estadual

(99)
Case History

de Florestas de MG desde 1998. são o complemento à riqueza da


Devo ressaltar que esta foi a floresta.
primeira RPPN registrada em Para que o instituto cumprisse
terras sem florestas, graças à sua verdadeira vocação,
credibilidade conquistada por um Centro de Educação e
nossos propósitos e projetos. de Recuperação Ambiental
Pode ter sido a primeira vez que (CERA) foi criado para difundir
um casal tenha doado suas terras tecnologias desenvolvidas, criar
à Natureza com a obrigação de ali um processo educacional com
plantar uma floresta. diferentes públicos sobre as
O Instituto Terra é uma insti- questões ambientais prioritárias,
tuição sem fins lucrativos com- promover uma reflexão sobre o
posta pelos conselhos diretor, atual modelo de desenvolvimento
consultivo e fiscal. Uma equipe e potencializar agentes de
administrativa responde pelo transformação rumo ao modelo
bom andamento cotidiano das de desenvolvimento sustentável.
diversas atividades. A partir do O CERA está em funcionamento
principal objetivo de reconstruir desde fevereiro de 2002,
o ecossistema florestal através de tendo acolhido mais de 2.400
diferentes formas de intervenção, participantes de 46 municípios
recuperando os processos ecoló- de MG, ES e RJ, nos 130 cursos
gicos e contribuindo para a ma- ministrados. Sua estrutura
nutenção e o enriquecimento da educacional é organizada de
biodiversidade local, as idéias maneira a não ter professores
só fizeram por florir. Estávamos fixos. Para cada módulo são
criando um grande laboratório convidados especialistas de
onde a pesquisa seria da maior diversas matérias, com métodos
importância. Testar e avaliar téc- diferentes. Os cursos são
nicas para recuperação florestal, dados no tempo médio de uma
desenvolver modelos de recupe- semana, segundo o público alvo.
ração de áreas degradadas da Participam do projeto pessoas
Mata Atlântica, utilizar técnicas que, com suas atividades,
de baixo custo e alta participa- tenham possibilidade de ajudar
ção comunitária. A avaliação dos na mudança dos comportamentos
processos ecológicos vigentes nas – professores primários e
áreas remanescentes e o monito- secundários, secretários de meio
ramento dos sítios recuperados ambiente, prefeitos, produtores

(100)
Case History

rurais, técnicos agrícolas, Waterhouse Coopers, Prefeitura


policiais florestais e tratoristas, de Aimorés, Laboratório Aventis
agrícolas e de estradas. Pasteur (França), Legambiente
Também foi criado um projeto de e Prefeitura de Parma (Itália),
desenvolvimento sustentável para Governo das Astúrias (Espanha),
atender aos produtores rurais da Lannan Foundation e Tides
região. Foram delimitadas as di- Foundation (EUA) e International
versas bacias hidráulicas do mu- Finance Corporation, membro do
nicípio e está sendo desenvolvido Banco Mundial.
um trabalho de reflorestamento Para a produção de mudas, o
das fontes, para a recuperação Instituto Terra já está atuando em
da água já quase inexistente, seu próprio viveiro. A SOS Mata
além do esforço para recuperar Atlântica doou parte das 160 mil
e manter pelo menos 20% de mudas iniciais; o Ministério do
floresta em cada propriedade Meio Ambiente, uma extensão do
local, conforme exige a lei. Tão viveiro para ampliar a capacidade
importante quanto o trabalho pu- para um milhão de mudas anuais,
ramente ecológico é o trabalho a fim de assegurar as plantações
com os proprietários, no sentido nas terras da região.
de encontrar novos produtos e As instalações de infra-estrutura
novas tecnologias para o desen- do Instituto Terra foram proje-
volvimento econômico necessário tadas com devida preocupação
nesta região, também vítima do ecológica. Suas construções se
êxodo rural, onde a pobreza se inserem perfeitamente na natu-
instalou na mesma proporção da reza; os materiais escolhidos são
morte da água e da terra. a madeira – eucalipto tratado – e
Para o desenvolvimento do proje- a alvenaria. Os edifícios foram
to, tivemos o apoio de empresas e implantados em círculo, em tor-
instituições brasileiras e estran- no do antigo curral reformado e
geiras, entre elas: Companhia transformado em escritórios para
Vale do Rio Doce (CVRD), a administração.
Natura Cosméticos, Fundo Era primordial que a memória
Brasileiro para a Biodiversidade não se perdesse. Na antiga balan-
(FUNBIO), Subprograma ça de pesar gado, um agradável
Projetos Demonstrativos (PDA), refeitório se instalou. As salas de
Conservation International aulas, a biblioteca, o laboratório e
do Brasil, W/Brasil, Price o herbário fazem parte do conjun-

(101)
Case History

to cultural, onde uma sala poli- mil árvores nos próximos dois
valente faz as vezes de auditório, meses. Tratam-se de 150 dife-
cinema e teatro, o primeiro do rentes espécies, todas cultivadas
município a ver luz. Mais adian- a partir de sementes colhidas na
te, a residência dos professores, região.
com uma bela varanda em deck, Nos sítios onde ainda não houve
virada para um lago, todo ladeado intervenção, a Natureza se refaz
de coqueiros. No fechamento do por sua conta. Do primeiro plan-
círculo, a residência para 36 alu- tio, já se vê espécies pioneiras
nos. Todos os edifícios possuem de até dez metros de altura. O
quartos especiais e rampas de canto dos pássaros retornados ao
acesso para deficientes. habitat original pode ser ouvido
Está em fase de projeto mais um como se fosse uma orquestra, das
alojamento para trinta alunos, mais harmoniosas. É um enorme
que serão residentes durante privilégio fazer parte deste con-
dois anos consecutivos, em tur- junto!
mas de 15 a cada ano. Trata-se
de um curso de formação em
meio ambiente para técnicos
formados em escolas agrícolas.
A idéia é inseri-los em todas as
atividades, tais como produção de
mudas, monitoramento da fauna e
da flora, assistências nos diversos
cursos do CERA e no aprendiza-
do, captação e uso dos recursos.
Tudo isto inserido em um jardim
onde as árvores foram escolhidas
para florir o ano inteiro, cada
uma com cromática e formas
distintas.
Ao redor, a paisagem de um
relevo privilegiado está em cons-
tante mutação. Até hoje, 500 mil
árvores já foram plantadas. No Lélia Deluiz Wanick é fundadora e atual vice-
período de chuva retomamos o presidente do Instituto Terra.
plantio, com a previsão de 130 Site: www.institutoterra.org

(102)
Case History

Empresa global, responsabilidade local


Entrevista de Ivan Bentini a Giorgio della Seta

Next: Dr. Giorgio Entrevista com pessoas de raízes


della Seta, obrigado exclusiva concedida tão diferentes – negra,
por conceder esta pelo presidente índia, européia, japo-
entrevista à Next dos grupos Pirelli nesa, entre outras –,
Brasil. O senhor tem e Telecom Itália vivendo juntas dentro
uma história pessoal América Latina, de um brasileirismo
e profissional de Dr. Giorgio della construído por todos,
consciência social e Seta, realizada no qual se vive em
incentivo à cultura. O em 20 de outubro harmonia.
lema da TIM é “viver de 2003, com a Mario Cohen: Embora
sem fronteiras”. Até participação de a globalização seja
onde o senhor consi- Mario Cohen, da inevitável, a coexis-
dera possível a globa- 18 18Branding. tência de culturas
lização sem que isto locais dentro deste
interfira com a cultura local? cenário é possível. Para que não
Della Seta: Eu acho as duas coi- ocorra a morte dessas culturas, é
sas um pouco contraditórias. A necessário fortalecer a convivên-
cultura local vem transformando- cia entre elas. Temos de promo-
se, tanto aqui quanto na Europa, ver esse contato e nossos esforços
em algo mais regional que nacio- são justamente nesse sentido, a
nal. A globalização, fenômeno exemplo dos projetos da TIM di-
irreversível, veio mexer com a recionados à música, que criam
cultura mundial, mas a cultura lo- condições para que culturas
cal precisa ser preservada. Neste locais possam existir dentro de
país, por exemplo, eu acho que há uma dimensão global.
um sentimento muito forte de bra- DS: A música é, evidentemente,
silidade. Para um europeu, como uma realidade global, mas se
eu, é muito interessante observar manifesta de forma focal. A TIM
como é possível existir tão forte percebeu na música a capaci-
união entre regiões tão díspares, dade de eliminar fronteiras sem

(103)
Case History

enfraquecer as culturas locais. à educação, que é, a meu ver,


Portanto, ao elegê-la como instru- provavelmente o maior problema
mento de preservação de culturas do Brasil. Essa é uma das razões
regionais e objeto de incentivo, pelas quais temos apoiado, dentro
tomamos uma decisão acertada. de nossos limites, ações voltadas
O TIM Festival expressa uma à erradicação do analfabetismo
lógica e filosofia que queremos no país. O ministro da Educação,
associar à empresa. A cultura Cristovam Buarque, está muito
brasileira consegue absorver empenhado na batalha contra o
realidades multifacetadas, que analfabetismo, a meu ver, uma
se integram em uma única forma prioridade do governo Lula ain-
de expressão. da maior que o combate à fome. É
MC: É verdade. Um outro bom claro que combater a fome chama
exemplo dessa integração é a mais a atenção, pois há regiões
fotografia brasileira, que tenta- brasileiras onde este problema
mos preservar em um projeto da é muito grave. Porém, essas são
Pirelli com 13 anos de duração. áreas cada vez menores, ao passo
Nossa fotografia é famosa inter- que ainda há muito a ser feito no
nacionalmente e mantém um campo da educação. Atualmente,
olhar sensível sobre a realidade uma grande quantidade de
nacional. crianças não recebe a formação
Next: O senhor acha possível que, necessária.
apesar da tendência à concentra- E foi nesse cenário, após um
ção de renda, haja esperança de encontro casual com o ministro
desenvolvimento socioeconômico Buarque, que surgiu a idéia de
sustentável para países com o sta- incluir a TIM e a Pirelli na luta
tus tecnológico do Brasil? pela educação. Inicialmente,
DS: Estou certo de que isso acon- tivemos dificuldade de deter-
tecerá, mas vai ser um caminho minar onde poderíamos iniciar
difícil. Urge haver uma evolução ações com este fim. Optamos
elaborada nessa direção. É evi- pelo Acre, que não é um estado
dente que as atuais diferenças tão grande quanto Minas Gerais
sociais e econômicas no Brasil, ou São Paulo, e no qual teríamos
que são particularmente acentu- condições de encarar tal desafio.
adas, consistem no primeiro obs- Além disso, a Pirelli já havia ini-
táculo a ser superado. Para isto, ciado um diálogo com autorida-
é necessário dar especial atenção des do Acre, pessoas fundamen-

(104)
Case History

talmente honestas e motivadas, candidataram voluntariamente à


como o governador Jorge Viana função, mesmo sem bonificações,
e a ministra Marina Silva, que para ensinar aos seringueiros
garantiriam que os recursos des- como tratar o látex. A Pirelli for-
tinados a esse projeto chegassem neceu as ferramentas e máquinas
ao seu objetivo final. necessárias, e isso marcou o iní-
A história da Pirelli no Acre é cio de nosso relacionamento de
muito antiga, é uma história de sucesso com o estado e com os
proteção ao seringueiro. A mi- seringalistas.
nistra Marina Silva, que cuida Posteriormente, o governador
da classe e conhece seus pro- Viana afirmou, para grande sa-
blemas de perto, veio nos visitar tisfação da Pirelli, que muitos
há sete ou oito anos, justamente seringueiros que pensavam em
com o objetivo de nos sensibilizar abandonar a região desistiram
para a questão dos seringueiros. dessa idéia, e outros começavam
Viajei ao Acre e percebi que a en- a retornar. Foi nessa ocasião que
tão senadora tinha razão quando o presidente Lula me presenteou
falava da impossibilidade de os com uma foto nossa, tirada no
seringueiros permanecerem na Acre, com uma dedicatória sua
floresta amazônica sem algum que muito me emocionou. Ela
tipo de apoio, isto porque eles diz: “sem medo de ser feliz”, e
vivem em lugares muito distantes me parece muito brasileira por-
e isolados, tirando seu provento que carrega o otimismo, a espon-
da extração de borracha, que taneidade, ao mesmo tempo em
normalmente é comercializada a que é um agradecimento muito
preços extremamente baixos. elegante do presidente Lula,
A partir de então, a Pirelli teve demonstrando que não é apenas
como primeiro objetivo eliminar a universidade que ensina a ser
todas as transações interme- um grande estadista.
diárias, comprando borracha Next: A orientação de respon-
diretamente da cooperativa dos sabilidade social da Pirelli de-
seringueiros. O segundo objetivo monstra a forte preocupação do
foi fazer com que essa borracha senhor também com a ecologia
atingisse um nível tecnológico (a exemplo das ações junto aos
adequado à nossa produção. seringueiros do Acre). Como o
Para isso, enviamos ao Acre uma senhor estima o retorno que uma
equipe de funcionários que se empresa deste porte obtém com

(105)
Case History

ações comunitárias como esta? retorno – quando o poder cons-


DS: Sinceramente, esta é uma tituído reconhece publicamente
pergunta difícil de responder, as iniciativas sociais de uma em-
pois, por um lado, é um compro- presa, embora o reconhecimento
misso pessoal meu e, por outro, do cidadão comum também seja
é algo que tem de ser justificado fundamental.
junto aos acionistas, que querem Next: Hoje em dia, com
um dividendo apropriado. Toda o salto tecnológico das
empresa de origem estrangeira telecomunicações, a sociedade
tem uma dívida com o povo e tem acesso instantâneo às
o país que a acolhe. A maneira manifestações do poder público
mais apropriada de retornar isso é e informações, que se difundem
dentro de um plano social vincu- rapidamente. A sociedade tem
lado à realidade desse país, pois manifestado reconhecimento
todas as nações têm problemas de pelas ações socioculturais da
diferentes naturezas. TIM e da Pirelli?
No Brasil, um dos principais pro- DS: A TIM é uma empresa nova,
blemas diz respeito à educação. entrou no país há dois anos. A
Quando tentamos formar para o Pirelli, ao contrário, tem uma
futuro jovens de comunidades história de 75 anos no Brasil.
carentes, como as favelas, esta- Creio que a maioria reconhece
mos ajudando a própria empresa. que a Pirelli participa da vida
Se esses jovens viram bandidos, cultural e social brasileira, e
isso se torna um problema tam- que o mesmo está começando a
bém para as empresas que atuam acontecer com a Tim, o que não
no país. Esse apelo, pelo menos é fácil, pois muitas empresas não
dentro de nossa empresa, foi per- conseguem este reconhecimento.
feitamente entendido. Esperamos O meu objetivo é repetir, com o
que esse esforço seja reconhecido TIM, o trabalho social realizado
pela sociedade. O próprio presi- pela Pirelli. Hoje, todo mundo
dente do Brasil, que compareceu fala que gosta de ecologia. Eu
à inauguração da nova fábrica da não acredito nisso. A maioria
Pirelli, um grande investimento das empresas que diz proteger
feito no país, agradeceu-nos e o meio ambiente desmata,
declarou que a Pirelli e a TIM polui, contamina o solo, mas,
são exemplos de empresas com não obstante, faz campanhas
responsabilidade social. Isso é o de marketing centradas na

(106)
Case History

preocupação ecológica. Por isso Como no Brasil os números são


eu digo que devemos buscar não sempre muito grandes, estamos
ser hipócritas. falando, portanto, de milhões de
Next: Talvez por isso, muitas crianças.
ONGs se dedicam, hoje, a ava- Next: Outras empresas participam
liar e fiscalizar empresas, criando do financiamento deste projeto?
indicadores como o selo verde. DS: Não, este projeto é intei-
DS: Isso é muito importante, ramente financiado pela TIM,
pois, ou a empresa seleciona com o apoio organizacional das
uma causa verdadeiramente im- prefeituras locais.
portante para apoiar, ou é melhor MC: É a iniciativa privada,
que não faça nada ou então faça atuando conjuntamente com o
investimentos em outros setores. poder público, em benefício da
A TIM tem investido em música, sociedade.
de forma ampla – não só no já fa- Next: Atualmente, o Ministério do
moso festival internacional, dire- Trabalho italiano está promoven-
cionado ao público pagante, como do o intercâmbio de profissionais
também no programa Música na dos dois países, financiando
Escola, voltado a crianças de estágios de brasileiros em várias
baixa renda matriculadas em empresas na Itália. Que áreas o
escolas públicas. Neste progra- senhor acha mais interessantes
ma, professores contratados pela para este tipo de iniciativa?
TIM ensinam música nas escolas, DS: Acredito que qualquer área,
reduzindo, desta forma, a evasão porque, na realidade, só o fato de
escolar, pois os brasileiros gostam ampliar os horizontes culturais
de música quase tanto quanto de dos jovens já é muito importante.
futebol. Os resultados têm sido Se isso ocorrer no período de sua
muito produtivos: os alunos formação, torna-se ainda mais
aprendem, em aula, a tocar desde significativo. Nossa empresa aju-
flauta até bateria. É verdade que da muitos brasileiros que querem
iniciativas como esta têm sido fazer estágio na Itália.
mais fáceis no atual governo. O Next: Com o intuito de estimular
próprio ministro da Cultura tem outros empresários, o senhor po-
apoiado este projeto, e nosso deria explicar como a responsabi-
objetivo é chegar a um número lidade social pode se transformar
expressivo de crianças, cobrin- em lucro para a empresa?
do cinco capitais brasileiras. DS: Esse tipo de lucro, na reali-

(107)
Case History

dade, é muito difícil de calcular. lado, fazer as reformas necessá-


Porém, creio que a imagem de rias sem perder o apoio de alguns
empresa-cidadã tem importância companheiros que não concordam
crescente. Por outro lado, em- com elas. A imagem que esse
presas que usaram mão-de-obra governo conseguiu conquistar
infantil ou mal paga tiveram fora do país é extraordinária, e
repercussão muito negativa na ninguém poderia esperar que os
mídia, que se traduziu em queda indicadores econômicos melho-
nas vendas. A empresa que tiver rassem tanto, e tão rápido. Todos
uma boa imagem corporativa será os indicadores macroeconômicos
também preferida pelos consumi- são um termômetro da confiança
dores. do mercado no país, e o governo
MC: Essa é uma das chaves de está de nota dez pela conquista
atuação da TIM e da Pirelli, pois dessa confiança. Infelizmente,
hoje em dia o consumidor valora internamente, algumas reformas
iniciativas desse tipo, associando ainda têm de ser feitas, e o gover-
a empresa às suas ações sociais. no tem se empenhado nisso para
DS: Retornando à pergunta, cumprir as promessas da campa-
podemos dizer que, se o lucro nha. O presidente Lula tem se re-
é difícil de ser mensurado, o lacionado com a opinião pública
retorno dessas iniciativas para a de uma maneira muito franca e
empresa é enorme. transparente, o que ajuda muito.
Next: O presidente Luis Ignácio Mas alguns obstáculos grandes
Lula da Silva o chamou de “meu ainda precisam ser superados.
caro Giorgio della Seta” e o Eu, particularmente, tenho con-
senhor foi o único empresário a fiança no êxito do governo.
tomar parte na comitiva presiden- Next: O festival que a TIM promo-
cial ao Acre. A ligação do senhor ve está tendo uma repercussão na
com a política de transformação é mídia extremamente favorável. A
notória. Como vê o momento polí- música sem fronteiras é um cami-
tico pelo qual o Brasil passa? nho para a paz?
DS: Um momento muito particu- DS: Eu acredito que sim, e a paz é
lar; de muita esperança, mas de muito importante no nosso mundo
cobrança por resultados concre- atual. Levantar as fronteiras é o
tos das políticas governamentais. primeiro passo para alcançá-
O governo tem de encontrar um la. Eu fico muito contente por
equilíbrio que permita, de um termos escolhido este caminho

(108)
Case History

como meio de expressão da em- DS: Não existe nada mais efêmero
presa, e tenho certeza de que a que a publicidade sem um con-
sociedade reconhece isso, o que ceito por detrás. Hoje, todas as
ajuda a consolidar a imagem da empresas fazem publicidade, mas
TIM, uma empresa nova, mas já procuramos que a nossa seja um
percebida como uma empresa de espelho da realidade que vive-
tecnologia mais avançada que mos e dos valores que pregamos.
as demais. A TIM apresenta, Estamos tentando patrocinar
ao mesmo tempo, uma noção também o Auditório Niemeyer,
de responsabilidade social ma- no Ibirapuera, uma obra de arte
nifestada de diversas formas, maravilhosa que eu espero que a
como já falamos. Promovemos o TIM possa presentear ao Brasil.
projeto Música nas Escolas, que Next: A sociedade tem de ter
é mais próximo à parcela carente consciência do alto custo, para
da sociedade, o Prêmio TIM de a empresa, de iniciativas como
Música, que reconhece novos essas. Na Itália, o Professor De
talentos, e o TIM Festival, que Masi se empenhou pessoalmente
está tendo ampla repercussão na para conseguir o financiamento
mídia, o que tem sido muito bom para o auditório Niemeyer, que
para nossa imagem. A TIM até será construído na belíssima
mesmo recebeu um importante cidade de Ravello.
prêmio por todas essas inicia- DS: É importante observar que o
tivas. auditório na Itália já foi autoriza-
MC: Nós trabalhamos em cima do, enquanto ainda aguardamos
de valores, e não de um discurso autorização aqui no Brasil, pátria
superficial. Temos um posiciona- deste brilhante arquiteto.
mento muito consistente. Tudo se Next: Como Domenico de Masi já
inicia como uma reflexão sobre a havia comentado em palestra na
atividade da TIM. Na essência, última Bienal do Livro, o Brasil
somos uma empresa de comu- deve ter um problema sério de
nicação, e comunicação boa é auto-estima. Esperamos que a
quando não existem fronteiras. Next Brasil seja um instrumento
Assim, não há somente uma de inovação e colabore com esta
marca, mas um conceito. Desta transformação. Sabemos que a
forma, procuramos uma ativida- TIM partilha do nosso sonho.
de essencialmente sem fronteiras, Fale sobre outros projetos de
como a música. ação cultural da TIM e sobre

(109)
Case History

como a cultura pode melhorar a o é. Porém, uma característica


auto-estima do brasileiro. do Brasil verdadeiramente par-
DS: Me vem logo à mente o pro- ticular é seu povo, com a típica
jeto de fotografia da Pirelli, já manifestação de otimismo e
em sua décima terceira edição, grande receptividade para os
em parceria com o MASP, que estrangeiros. Eu nunca me senti
é provavelmente a mais impor- estrangeiro no Brasil. Passei toda
tante coleção privada de fotos minha vida viajando por diversos
do país. Acho que este projeto países, e posso dizer que não é a
tem contribuído para melhorar mesma coisa em outras nações,
a auto-estima do brasileiro, pois nas quais há dias em que você
ficou patente o grande número realmente se sente estrangeiro e
de excelentes fotógrafos que este fica com saudades de casa. Aqui,
país tem. A maioria, ainda jovem no Brasil, isso não acontece, por-
e com muito a contribuir. Este que os brasileiros são abertos e
projeto é uma batalha que tem de gostam dos estrangeiros, mesmo
ser vencida todos os anos, pois os quando falamos mal o português.
recursos são escassos, mas tenho Até nos momentos de maior difi-
certeza que, pelos longos anos culdade, os brasileiros mantêm o
de sua existência, contribuiu otimismo e a crença em um futuro
para melhorar a auto-estima do melhor. A alegria e a cortesia são
brasileiro, ajudando a revelar incríveis, as pessoas são amáveis,
centenas de jovens talentos, que de uma forma que não ocorre em
finalmente conseguiram uma outros lugares. Parabéns aos
posição de destaque nacional brasileiros por essa atitude. O oti-
e internacionalmente. A TIM mismo existencial do povo brasi-
precisa participar de projetos se- leiro atualmente se expressa pela
melhantes, e estou convencido de figura do presidente Lula, o que
que a Next Brasil comunga esses fica evidente na dedicatória que
mesmos ideais. ele me fez. A busca da felicidade
Next: O senhor é, notoriamente, sem medo é algo que nós, que não
um apaixonado pelo Brasil. Como somos cem por cento brasileiros,
o Brasil o conquistou? temos de aprender.
DS: Mais do que o Brasil, foram
os brasileiros que me conquista- Giorgio della Seta é doutor em Direito pela
ram. O Brasil é grande, bonito e Universidade de Milão e presidente dos grupos
variado, mas o mundo também Pirelli e Telecom Itália América Latina.

(110)
Valor Cultural

O voluntariado no Brasil
Frei Betto

O Brasil foi o país Não há de infantil tem sido


que mais se destacou verdadeiro reduzida considera-
entre as 123 nações voluntariado velmente no país.
que abraçaram a sem trabalho em
proposta da ONU de Motivação
equipe. É nessa
considerar 2002 “O O voluntariado fortale-
Ano do Voluntariado”. atuação conjunta ceu-se, historicamen-
Monitorado por Milu que o voluntário te, graças à emulação
Villela, o Instituto se reeduca, religiosa. O princípio
Brasil Voluntário livrando-se do bíblico de “amar o
(IBRAVO), com o individualismo, próximo”, presente
seu programa “Faça do estrelismo e da em outras tradições
Parte”, favoreceu improvisação. espirituais, tem des-
a mobilização de pertado iniciativas de
cerca de 22 milhões de pes- solidariedade ao longo dos sécu-
soas que, hoje, em nosso país, los. Daí o fato de as sinagogas,
se dedicam a prestar serviços igrejas e mesquitas terem sido as
sem remuneração financeira. primeiras a favorecer a educação,
Há muitas redes de voluntariado improvisando-se em escolas, e o
atuando no Brasil, entre as quais cuidado dos enfermos, ensejando
se destaca a Pastoral da Criança, a criação de hospitais. Jesus com
liderada pela doutora Zilda Arns, certeza aprendeu a ler na sinago-
que mobiliza cerca de 150 mil ga de Nazaré. E talvez o símbolo
voluntários para atender a 1,1 de excelência do voluntariado es-
milhão de famílias em 32,7 mil teja contido na parábola do Bom
comunidades cadastradas em Samaritano, descrita no capítulo
3.555 municípios. Graças a este 10 de Lucas, nos Evangelhos.
trabalho de acompanhamento de A disposição ao voluntariado
mulheres gestantes e de crianças nasce, pois, do altruísmo, da
de zero a seis anos, a mortalida- generosidade, da vontade (do

(111)
Valor Cultural

latim voluntate) de fazer algo em favelados são gente como há nos


benefício do próximo. Isso é ali- demais setores da sociedade: en-
mentado por disposições éticas, tre eles há, também, mentirosos,
valores morais, motivação religio- oportunistas, corruptos etc. É
sa ou cívica, implicando disponi- em meio a essa crise que mui-
bilidade de tempo e desinteresse tos voluntários, decepcionados,
de compensação material, ainda abandonam o trabalho. Sobretudo
que mereça reconhecimento, o aqueles que, sem preparo, “de-
que é natural em se tratando da sembarcaram” junto aos pobres,
auto-estima do voluntário. como Colombo na América
– convencidos de que levariam
Desafios a civilização aos selvagens...
Os desafios, contudo, são gran- A terceira etapa, que só o bom
des, desde a pedagogia de tra- preparo pedagógico consegue
balho às artimanhas utilizadas vencer, é a da alteridade no rela-
para tentar fazer do voluntariado cionamento. Não mais de sujeito
uma forma sutil de dispensar (o voluntário) a objeto (o favoreci-
mão-de-obra remunerada. Em do), mas sim de sujeito a sujeito.
geral, os voluntários atuam junto Na linha educativa de Paulo
à população carente – pobres, Freire, de estudo fundamental
enfermos, migrantes etc. Ora, não para superação desta etapa, o
se pode dar o que não se possui. voluntário não ensina, mas ajuda
Muitos voluntários animam-se o outro a aprender. Faz do outro
quando recebem a proposta de seu próprio protagonista do pro-
trabalharem, por exemplo, com a cesso educativo, de modo que a
comunidade de uma favela. Mas comunidade venha a depender do
se não têm o preparo pedagógico voluntariado o mais curto espaço
adequado, correm o risco de não de tempo possível, assumindo ela
superarem a segunda etapa de mesma o seu protagonismo.
inserção junto à comunidade.
A primeira é o encantamento, Riscos
quando o voluntário, cheio de boa Voluntariado não pode significar
vontade e excelentes intenções, preenchimento de postos de tra-
dispõe-se a ajudar os favelados a balho remunerados. Por exemplo,
manterem uma creche, por exem- uma escola privada de idiomas,
plo. A segunda é o desapontamen- que cobra mensalidade de seus
to, quando ele descobre que os alunos, incluir voluntários em

(112)
Valor Cultural

seu corpo docente. O trabalho Equipe


voluntário tem por objetivo, Não há verdadeiro voluntariado
justamente, contribuir para a sem trabalho em equipe. É nessa
educação cidadã de comunida- atuação conjunta que o voluntário
des que não teriam outro meio se reeduca, livrando-se do indi-
de acesso a direitos mínimos vidualismo, do estrelismo e da
senão contando com ele e com improvisação. Não são o tempo
a presença do Estado, através de livre e o conhecimento acumu-
políticas públicas. lado o mais importante que o vo-
Assim, o programa Fome Zero, luntário oferece aos outros. É a si
prioridade do governo Lula próprio, doando-se como pessoa,
para reduzir drasticamente a aceitando modificar seus antigos
subnutrição que ameaça cerca valores e adotar posturas e proce-
de 44 milhões de brasileiros, dimentos mais condizentes com a
conta com um grande exército ética de uma civilização solidária.
de voluntários, devidamente Nesse sentido, vale resumir que
capacitados, para atuar junto o voluntariado é uma escola de
às famílias beneficiadas. São os amor. E, como todo grande amor,
Agentes de Segurança Alimentar implica paixão, entrega total.
(SAL) – que fazem o contato
direto com os beneficiados,
levantando o perfil da família,
suas carências básicas e o modo
de ajudá-las a transporem a
barreira que, hoje, impede a sua
inclusão social. Esses agentes são
convocados, preferencialmente,
nas próprias comunidades
beneficiadas, induzindo-as a
promover atividades de superação
da insegurança alimentar, como
hortas comunitárias, abertura
de cisternas e poços artesianos,
restaurantes populares,
alfabetização de adultos, Frei Betto é escritor, autor da biografia de
oficinas de saúde nutricional, Jesus “Entre todos os homens”, Ed. Ática, entre
adestramento profissional, etc. outros livros.

(113)
Valor Cultural

Educação no Brasil
Jurema Luzia de Freitas Sampaio Ralha

Falar de educação Culpar a escola fossem as únicas cau-


no Brasil sem cair pela má qualidade sas que, se resolvidas,
na dicotomia entre dos resultados solucionariam todo o
“mal” ou “bem” pode acadêmico- problema.
parecer complicado, educacionais
É constante a idéia
mas, sem desmerecer de que os problemas
dos alunos é, no
os trabalhos existen- da educação se re-
tes e em andamento, mínimo, repassar, sumem a uma visão
que apontam os sem assumir, sindicalista, ou seja,
problemas, gostaria culpas que na que se melhorarem as
de apontar minhas verdade são de condições de traba-
próprias idéias sobre todos. lho dos professores, a
educação. A primeira educação melhorará.
delas é que a educação brasilei- Mesmo ao tratar dos problemas
ra tem muitos problemas, sim, e da formação de professores, a
isso não é novidade alguma, mas questão é abordada sob esse as-
também tem muitos aspectos pecto. É fato que os professores
positivos. ganham “mal” em sua maioria,
Particularmente, tenho uma visão mas mesmo assim há muitos
diferenciada na abordagem de que fazem ótimos trabalhos. A
problemas: em vez de procurar tendência de procurar ajustar o
culpados, sou adepta da busca educando ao meio, sem levá-lo
de soluções. Listar problemas a refletir e analisar criticamente
sem apresentar soluções tem sua realidade social (VIANA,
sido prática freqüente de muitos 1988) tem se mostrado, infeliz-
analistas e pesquisadores, infe- mente, prática pedagógica fre-
lizmente. Em alguns casos, as qüente de algumas instituições,
soluções até são apresentadas, fator que contribui para esses
mas partindo de visões segmen- resultados negativos.
tadas do problema, como se essas Em 2002, na Folha de São Paulo,

(114)
Valor Cultural

Newton Lima Neto abordou uma esclarecer o que é entendido


questão interessante sobre os re- como educação.
sultados do Exame Nacional do A vida contemporânea, apesar de
Ensino Médio (ENEM) divulga- todo desenvolvimento tecnológi-
dos pelo Ministério da Educação co, ainda necessita de sociabili-
(MEC). Estes teriam revelado, dade. A educação não pode ficar
segundo o jornalista, a “situação alheia nem aos avanços tecnoló-
dramática da educação no país”. gicos nem às necessidades sociais
Relata ele que “três quartos dos humanas. A chamada “crise dos
brasileiros que concluem essa paradigmas científicos” (USP,
etapa final da educação básica 2002) parece estar chegando à
demonstram desempenho de in- educação.
suficiente a regular” e aponta que Em sua maioria, os estudantes
esses resultados seriam retratos de hoje em dia questionam a
de “uma dura e cruel realidade: utilidade prática do que apren-
nossas escolas não estão cum- dem na escola. Porém, basear
prindo sua função de ensinar”. currículos em ensinamentos téc-
Nossas escolas, em todos os nicos somente, sem abordagens
níveis (não só no ensino médio) humanísticas, reforça uma visão
têm defasagens, mas por que não funcionalista da educação, sem o
cumprem a função de educar? entendimento de que se trata de
Será que é só das escolas essa um processo contínuo e comple-
função? Aliás, qual a função da xo; esse tipo de raciocínio só fará
escola? Segundo Domenico de com que os problemas tendam a
Masi, em entrevista, “A função se perpetuar.
da escola é, primordialmente, As atuais leis que regem a
preparar para a vida”, estimu- educação brasileira1 são claros
lando os alunos a “pensar por exemplos da institucionalização
meio de atividades, onde estejam de uma preocupação coletiva com
presentes os vários aspectos da a interdisciplinaridade, contextu-
vida: estudo, trabalho, lazer, etc.” alização dos conteúdos curricula-
(MOREIRA, 1999) Neste sentido, res educacionais e formação do
será mesmo que nossas escolas, cidadão. Notadamente, em sua
nos diversos níveis, estão dando essência, a Lei de Diretrizes e
uma educação adequada aos Bases (LDB, 1996) da educação
nossos filhos? brasileira procura combinar o de-
Em primeiro lugar, é necessário senvolvimento de conhecimentos

(115)
Valor Cultural

práticos – que contemplem as escrito: “A educação, dever da fa-


necessidades da vida contem- mília e do Estado, inspirada nos
porânea – ao desenvolvimento princípios de liberdade e nos ide-
de conhecimentos teóricos que ais de solidariedade humana, tem
atendam às necessidades de por finalidade o pleno desenvolvi-
formação de cultura geral e visão mento do educando, seu preparo
de mundo, através do desenvol- para o exercício da cidadania e
vimento de competências e ha- sua qualificação para o trabalho”.
bilidades individuais voltadas ao Mas a máxima de que a educação
“exercício de intervenções e jul- começa em casa parece ter sido
gamentos práticos”. No Parágrafo esquecida por grande parte das
2º do Artigo 1º está claramente pessoas, as mesmas que criticam
explicado que “a educação esco- as instituições educacionais,
lar deverá vincular-se ao mundo relegam as responsabilidades,
do trabalho e à prática social”. todas, à escola e aos governos.
Num entendimento amplo, nota- Isso tem ocorrido com uma fre-
-se que o desenvolvimento da qüência cada dia maior na reali-
cidadania deve ser o centro das dade social brasileira. Como diria
práticas educativas. Adiante, no meu pai, “pode-se dividir tarefas,
art. 43, inciso I, a lei estabelece nunca responsabilidades”.
que a educação superior deve Sem entrar em questões de orga-
“estimular a criação cultural e nização social e econômica, que
o desenvolvimento do espírito por muitas vezes são colocadas
científico e do pensamento re- como principais responsáveis por
flexivo” (LDB, 1996). Este pen- esse “desleixo” com relação à for-
samento reflexivo é, então, um mação de nossas crianças, como
dos principais responsáveis pelo cobrar da escola uma educação
desenvolvimento da cidadania, e que o educando deveria ter “tra-
é nesses pontos principais que a zido de casa”, como a formação
educação se apóia. mínima de estrutura de relacio-
A dificuldade cada vez maior namento, e o respeito às normas
das famílias em assumir sua res- e limites? Como querer da escola
ponsabilidade, intransferível, na essa função? Infelizmente não há
educação e encaminhamento dos receitas para isso e limites são
filhos também é fator relevante um dos aspectos da educação,
em uma avaliação qualitativa do somente. Mas há necessidade
assunto. No Artigo 2º da LDB está de esclarecer responsabilidades.

(116)
Valor Cultural

Culpar a escola pela má quali- utopia para a maioria da popu-


dade dos resultados acadêmico- lação, tornando o computador
educacionais dos alunos é, no um objeto “distante”, fora de
mínimo, repassar, sem assumir, sua realidade. Essa também
culpas que na verdade são de parece ser a situação da maioria
todos. das escolas públicas, que rece-
bem poucos investimentos dos
Formação de professores governos para modernização e
Há vários estudos sobre os pro- melhoria da qualidade de ensino
blemas de formação de professo- (COSENZA, 1995), mas a reali-
res. Na prática da área de atuação dade contemporânea de uso das
(ensino de arte) em que desenvol- tecnologias digitais nos mostra o
vo pesquisas, já pude constatar, que se pode apreender disso.
numericamente, alguns deles. Em O professor não “faz melhor”, em
trabalho apresentado no IHC99 grande parte, porque desconhece
da Unicamp (SAMPAIO RALHA, possibilidades devido a inúme-
1999), mostro comprovadamente ras falhas em sua formação. No
que cerca de 80% dos 120 pro- entanto, ainda assim procura
fessores de arte entrevistados aprender e melhorar. Falo aqui
nunca havia usado um computa- do verdadeiro professor. Falo de
dor, nem sequer para redigir um quem tem vocação – e não “sacer-
texto, muito menos como forma dócio”, como muitos se referem
de expressar seu fazer artístico. para justificar o injustificável: a
O que mais surpreendeu, entre- má remuneração do professor,
tanto, foi constatar que a maioria em geral –, de quem realmente
sequer cogitava que arte pudesse quer ensinar e gosta disso. Sim,
ser feita usando um computador porque como em qualquer outra
como ferramenta, por total desco- profissão, há de ser gostar do ofí-
nhecimento das possibilidades. O cio para fazê-lo bem feito. Falo
debate provocado pela apresen- do prazer de ver o outro crescer,
tação de uma obra em colagem descobrir e aprender com sua
digital, impressa com auxílio de ajuda. Esse professor, indepen-
uma plotter, despertou interesse dente da má formação que tenha
relevante dos profissionais para tido, busca melhorar a cada dia
a temática. para, assim, contribuir com sua
Falar em informática aplicada parte na formação e educação de
à educação pode parecer uma seus alunos. E isso não é tão raro

(117)
Valor Cultural

como possa parecer! Mesmo sem bastando, para isso, que se con-
muitos recursos, muitas ONGs centrem esforços nessas idéias
fazem verdadeiros “milagres que a própria LDB brasileira já
educacionais”. declara.
Em entrevista à Revista Nova Onde, então, estariam as soluções
Escola, o professor e pesquisador para a educação brasileira?
espanhol Fernando Hernández2 A busca por uma educação mais
declarou: eficiente deverá passar pela
O Brasil é um dos países do mundo definição de metas globais e pro-
que eu conheço em que os educadores curar manter uma regionalização
vibram mais. Eles são apaixonados, de planos e aplicações. Assim,
preocupados, comprometidos. Esse
é um capital que o país tem e não atendendo às necessidades re-
pode ser desperdiçado. Outra questão gionais, as chances de realiza-
interessante é que o professor tem ção de trabalhos mais coerentes
desejo de aprender e vontade de se são maiores, porém uma espécie
comprometer com sua aprendizagem. de “praga”, conhecida como
Eu conheço poucos em outros países Metodologia de Projetos, vem
que não têm dinheiro e mesmo assim assolando a educação brasileira
se reúnem em grupo para comprar um desde a década de 1980.
livro e aprender conjuntamente. Isso é
maravilhoso. (MARANGON, 2002) Domenico de Masi condena a
estrutura de ensino que encara a
Em agosto de 2002, tive a opor- educação sob a forma de uma “li-
tunidade de estar presente a uma nha de montagem” (MOREIRA,
palestra do professor Hernández, 1999), mas é exatamente isso
no Congresso da Sociedade que temos visto com a aplicação
Internacional de Educação indiscriminada e sem objetivos
Através da Arte (InSEA), em claros dos “projetos de traba-
Nova York, onde fui apresentar lho”3. Sem mesmo entender o que
um trabalho de autoria coletiva, é metodologia – basta ler alguns
minha e de um grupo de pes- dos projetos para verificar –,
quisadores em arte e formação muitas propostas nem ao menos
de professores. Na palestra deixam claro os objetivos a que
de Hernández, pude constatar se propõem!
pessoalmente sua visão otimista Não pretendo nenhuma crítica
sobre o Brasil e a capacidade de à Metodologia de Projetos em
nossos professores promoverem si, muito pelo contrário. Apenas
uma educação de qualidade, proponho uma reflexão dedicada

(118)
Valor Cultural

sobre a verdadeira utilidade ções significativas na cultura


dessa prática educacional nos escolar (HERNÁNDEZ, 1998).
encaminhamentos que a LDB Hernández ainda esclarece que
pretende para a educação. “os projetos de trabalho signifi-
Mas o que é um projeto? Quais cam [...] um enfoque do ensino
são as características básicas de que tenta ressituar a concepção e
um projeto? O que diferencia um as práticas educativas na escola,
projeto de outras atividades? A e não simplesmente readaptar
simples cópia de projetos apli- uma proposta do passado, atuali-
cados com sucesso em algumas zando-a”, e propõe que o docente
situações, geralmente, tende a abandone o papel de “trans-
dar errado. Mostra a prática que, missor de conteúdos” para se
se aqueles projetos tiveram êxito, transformar em um pesquisador.
foi porque atenderam às neces- (HERNÁNDEZ, 2000, p. 179)
sidades daquelas situações em Em sua proposição de trabalhar
especial, o que não faz com que por projetos, Hernández aborda
sejam uma “receita mágica” para os seguintes aspectos: para tra-
todos os problemas. Por mais se- balhar por projetos, é necessário
melhantes que sejam os entraves definir e tornar público o tema,
constatados, tenho muito receio estabelecendo o quê e como se
de modelos e receitas prontas quer pesquisar; é importante en-
como solucionadores. Acredito tender que o professor também é
mais – e a prática me prova um aprendiz, tanto dos conteú-
– numa consciência pedagógica dos quanto dos processos; que se
capaz de avaliar os problemas deve questionar uma versão única
e propor projetos com soluções da realidade e buscar diferentes
adequadas a cada desafio. relações possíveis entre os fatos;
Fernando Hernández, com mesmo que se use como base uma
base nas idéias de John Dewey4 proposta de projeto já existente,
(1859-1952), questiona a forma este nunca acontecerá da mesma
atual da educação no mundo e, forma; deve-se aprender a escu-
ao descrever sua proposta, afirma tar os outros, valorizando o deba-
que, além do tema, alguns outros te como forma de aprendizagem;
pontos são fundamentais para deve-se procurar esclarecer que
fazer dos projetos de trabalho há várias formas de aprendizado
uma proposta de fato inovadora, e cada um pode e deve avaliar a
capaz de promover transforma- forma como aprende; compreen-

(119)
Valor Cultural

der que a organização curricular devem significar uma abordagem


por disciplinas não é a única nova do processo de aprendiza-
forma possível de organizar a gem, a qual é a soma de todas as
educação; que todo aluno pode experiências educativas; e que a
encontrar seu espaço e seu pa- implementação de qualidade total
pel em um projeto que preveja a em níveis administrativos de uma
contemplação da diversidade do instituição não garante qualidade
grupo e a contribuição de cada total em nível acadêmico.
um, e entender que o fazer, a ati- É neste sentido que as possíveis
vidade manual e a intuição tam- soluções para a educação brasi-
bém são importantes formas de leira se apresentam mais viáveis.
aprendizagem. (HERNÁNDEZ, Pesquisar, buscar, entender, estu-
F. & VENTURA, M., 1998) dar e mapear os problemas para
Os projetos de trabalho apontam desenvolvimento de propostas
para uma nova forma de ver o educacionais em sintonia com
conhecimento – como algo acu- as reais necessidades do povo
mulado, sim, mas em constante brasileiro. É neste sentido que
transformação; e a educação, temos visto, a cada dia, resulta-
como um processo em que os dos significativos!
alunos se tornem capazes de ir
além da informação, podendo
compreender diferentes pontos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Ministério da Educação – MEC. Lei de
de vista, procurar explicações, Diretrizes e Bases – LDB. Lei n.º 9.394, de 20 de
levantar hipóteses e elaborar dezembro de 1996. [online] Arquivo capturado
em 02 de dezembro de 2002. Disponível em http:
suas próprias conclusões sobre //www.mec.gov.br/home/ftp/LDB.doc
conseqüências dessas visões em COSENZA, C.A. (Org.) Um relato do estado
atual da informática no ensino no Brasil.
torno de um mesmo assunto. Brasília: Ministério da Educação e Cultura;
A saída é mudar o foco da po- Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa.
Versão Preliminar, 1985.
lítica educacional, de geração HERNÁNDEZ, F. Cultura Visual, Mudança
de números para um foco de Educativa e Projeto de Trabalho. Tradução:
Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes
geração de resultados com quali- Médicas, 2000.
dade. Programas de “Qualidade ________. Transgressão e mudança na
Total” vêm sendo estudados como Educação – os projetos de trabalho. Porto
Alegre: Artmed, 1998.
agentes de mudança efetivos em HERNÁNDEZ, F.; VENTURA, M. A organização
algumas instituições, mas há do currículo por projetos de trabalho. In: O
conhecimento é um caleidoscópio. 5ª ed. Porto
a necessidade de se entender Alegre: Artes Médicas, 1998.
que tais programas na educação LIMA NETO, N. Aprendizagem já!
Folha de São Paulo, 28 nov. 2002.

(120)
Valor Cultural

MARANGON, C. Pesquisar para aprender:


educador espanhol explica como trabalhar a
aprendizagem utilizando projetos. Entrevista
com Fernando Hernández. Revista Nova Escola,
n. 154, ago 2002. [online] Arquivo capturado em
02 de dezembro de 2002. Disponível em:
http://www.uol.com.br/novaescola/ed/154_
ago02/html/repcapa_qdo_hernandez.htm
MOREIRA, M. N. Escola não valoriza a
criatividade. Entrevista com Domenico de Masi.
Jornal O Dia, Rio de Janeiro, 08 jun 1999.
SAMPAIO RALHA, J. L. F. WORKSHOP
SOBRE FATORES HUMANOS EM SISTEMAS
COMPUTACIONAIS, II, 1999, As Novas
Tecnologias e o Professor de Educação Artística:
atas. IHC99, 1999. Categoria: Pôster.
USP. Prolam - Programa de Pós-Graduação em
Integração da América Latina da Universidade
de São Paulo. Objetivos e linhas de pesquisa.
[online] Arquivo capturado em 02 de dezembro de
2002. Disponível em http://www.usp.br/prolam/
objetivos.html
VIANA, Cleide Maria Q. Orientação educacional:
críticas e perspectivas. 1988, 1988, 119 p.
(Mestrado) – Dissertação, 1v. Universidade
Federal do Ceará, 1988.
1
Lei de Diretrizes e Bases - LDB 9394/96;
Referenciais Curriculares Nacionais – RCNs
Pré-escola; Parâmetros Curriculares Nacionais
- PCNs Ensino Fundamental e Diretrizes
Curriculares Nacionais – DCNs Ensino Médio.
2
Doutor em Psicologia e professor de História
da Educação Artística e Psicologia da Arte na
Universidade de Barcelona.
3
Se quiser testar, experimente digitar
“metodologia de projetos” em um site de busca
qualquer. No Google (http://www.google.com),
em 02 de dezembro de 2002, tive como resultado
63.500 referências à expressão. Se a mesma busca
for feita com “projetos de trabalho” aparecerão
380 mil referências, de todos os níveis.
4
Filósofo e pedagogo norte-americano que
defendia a relação da vida com a sociedade,
dos meios com os fins e da teoria com a prática.

Jurema Sampaio é professora universitária no


Curso de Comunicação Social, habilitação em
Publicidade e Propaganda da UNIP-SP, Campus
Marginal Pinheiros, onde também coordena o
Projeto Integrado de Comunicação (PIC, 3º ano).
Site: www.jurema-sampaio.pro.br.

(121)
Valor Cultural

Por uma nova escola


Marco Dalpozzo e Arão Sapiro

Propomos uma Um encontro, um


"Parece que o ideal nova escola propósito
brasileiro de felici- que busque a O que reuniu os au-
dade humana, for- transformação e
tores neste artigo foi
mado por tradições e um debate natural,
tendências oriundas forneça formação surgido ao longo do
tanto da intelligent- complexa para convívio profissional
sia como da gente os futuros cotidiano, sobre os
comum, não se reduz educadores: um paradoxos de um
à conquista de vanta- aprendizado novo tempo, no qual
gens ou comodidades duradouro aos a tecnologia parecia
puramente materiais. que ensinam e ser capaz de prover,
Esse ideal inclui o trabalham para o finalmente, todas as
desenvolvimento da desenvolvimento demandas da huma-
personalidade hu- de outros, nem nidade por paz, pros-
mana por processos perdedores nem peridade e satisfação,
que parecem ter sido, ganhadores, mas que tem repre-
senão determinados, apenas sentado, efetivamente,
condicionados atra- transformadores. poucos resultados em
vés de largo inter- função das expectati-
câmbio de valores intelectuais e vas que lhe recaem.
morais que o contato democrá- A quebra do paradigma moderno
tico entre várias raças e cultu- do mais e do crescimento como
ras tornou possível. Parece que um valor em si parece não estar
ao Brasil há de caber notável sendo bem encaminhada pela
contribuição em relação ao de- sociedade e suas organizações.
senvolvimento da personalidade Embora de modo localizado, é
humana no mundo moderno. possível encontrar profissionais
Gilberto Freyre" e empresas que já iniciaram
projetos cujo propósito é concre-

(122)
Valor Cultural

tizar situações mais consistentes sentar uma parcela considerá-


e harmoniosas com o caráter e a vel de respostas às perguntas a
psique humana, num contexto de ela colocadas, e já mostrou ser
preservação sustentável do meio possível satisfazer a maioria das
em que se vive. necessidades materiais e funcio-
A formação humana e sua ação de nais do ser humano. Conseguiu
transformação em um futuro dese- substituir o homem nas ativida-
jável são temas vitais para debate des de trabalho mais cansativas
e questionamento. Este artigo e manuais; e também conectar,
analisa o cenário educacional, virtual e transversalmente, alguns
propondo, em seguida, diretrizes de nós – e não fosse o domínio
para organizações transformado- de poucos versus a dominação de
ras e uma nova escola voltada à muitos, todos os seres humanos
formação do indivíduo. poderiam estar hoje conectados
por meio da comunicação virtual.
Paradoxos do contexto De qualquer forma, tudo isso, há
atual poucas décadas, era considerado
Nossas inquietações em relação um sonho mantido e imaginado
ao futuro se expressam a partir por autores e artistas, em novelas
de diferentes pontos de vista, e filmes.
percepções e regiões do mundo, Mas a tecnologia não trouxe
em tons e cores diversas. O fim satisfação. A humanidade está
das grandes ideologias políticas inquieta, circundada de uma dra-
de socialização humana deixou maticidade de vida anacrônica e
livre espaço à expansão de um injusta, considerando o caminho
capitalismo difuso, que conquis- até aqui trilhado e as riquezas
ta – sem possibilidade de crítica materiais geradas. Alguns enri-
– tanto quem o experimenta há quecem, porém se empobrecendo
um bom tempo, e consegue dele de relações e sociabilidade, culti-
beneficiar-se materialmente, vando certo mal-estar emocional;
quanto os que aspiram a seus outros apreciam a sociabilização
benéficos efeitos e, por isso, estão e espontaneidade de afetos e
prontos a renunciar a outros tipos sentimentos ou, ao menos, des-
de vantagens, inerentes a outros frutam dessa possibilidade, mas
modelos de vida talvez menos experimentam a falta de bens
narcisistas. materiais e seu conseqüente
A tecnologia conseguiu apre- desconforto.

(123)
Valor Cultural

O mundo econômico está cada Observa-se muitas mudanças no


vez mais dividido em dois: quem Brasil dos últimos anos, mas a di-
tem e quem não tem. Sabe-se que ferença de nível de renda entre os
os recursos produzidos seriam su- mais ricos e os mais pobres não
ficientes para todos, mas não se mudou ou, se mudou, foi para
consegue – e talvez não se queira pior. Este parece ser o grande
– redistribuí-los. Muitos se dão tema neste país, refletindo-se por
conta de que é injusto e difícil todo o planeta. De fato, o Brasil
continuar assim, mas o processo representa um grande laboratório
de transformação parece lento, de problemáticas mundiais, pois
não é debatido em profundidade concentra grande divisão de
necessária, e talvez seja, incons- renda, gerada historicamente e
cientemente, indesejado. reforçada por aspectos socioló-
Parece que o corpo administrati- gicos e pelo neoliberalismo, ao
vo das empresas tem dificuldade passo que detém grande parcela
em se envolver no debate pela dos recursos naturais do mundo e
transformação dessa realidade. é o centro das principais questões
Inseridas no paradigma do “lu- ecológicas.
cro como objetivo”, concentram Ao olhar um jovem pintor tra-
nele seus esforços e capaci- balhando em uma das praças de
dades. Escassamente crítico qualquer grande cidade, deve-se
da realidade político-social da refletir que, em outras épocas ou
qual faz parte, o management lugares, sua capacidade técnico-
concentra-se em encontrar for- artística teria sido premiada de
mas cada vez mais sofisticadas forma bem diferente da atual, e
de comunicação e dissuasão de que sua capacidade de trabalho
nossa porção “consumidora” da no mundo econômico talvez nem
necessidade de reflexão sobre seja reconhecida como profissão.
a angústia criativa, na qual se Atualmente, o mundo econômico
constrói. A resposta dos dirigen- é demasiado importante, indis-
tes de empresas a estas questões cutível, intocável. Não está mais
é que não é seu papel resolver a a serviço da sociabilidade, da
questão da distribuição de renda natureza, da identidade humana.
de um país, apesar de a iniciati- O management, com sua raciona-
va privada ser um dos principais lidade e busca de um status quo
atores deste mundo cada vez mais aparentemente “construtivo”,
desigual. pode transformar-se em um gran-

(124)
Valor Cultural

de limite. Artistas, empreendedo- vimento econômico parece cada


res e educadores deveriam alcan- vez mais anacrônico e imutável.
çar um novo papel na sociedade A linha reta deveria ser substitu-
que está sendo construída, por ída, como metáfora do modelo de
serem pessoas com imaginação, desenvolvimento futuro e de uso
sonhos e respeito pela raça huma- do tempo, por uma linha “heli-
na e sua convivência harmoniosa coidal”. Um modelo que siga “em
com o meio ambiente. frente” – essência da linearidade
O poeta Pablo Neruda (interpretado –, mas que reconheça a impor-
por Philippe Noiret no filme ficcio- tância dos pontos de evolução
nal “O Carteiro e o Poeta”), quando histórica e crie a exigência de
questionado pelo carteiro (papel de
Massimo Troisi) sobre a importância uma circularidade; que abarque
da poesia, responde que os seres a compreensão e inclusão das
humanos não têm nada a ver com individualidades humanas; e
a complexidade das coisas. Edgar respeite a ciclicidade ecológica
Morin, sociólogo francês, escre- e os ritmos reguladores da na-
veu em seu livro La tête bien faite: tureza – a única existente, que
"Quanto mais os problemas ficam mostra claramente os sinais de
multidimensionais, maior é nossa irritação multiplicando-se entre
incapacidade de pensar a multidi-
mensionalidade deles; quanto mais os seres humanos. Este modelo
a crise progride, mais progride a in- parece mais viável teoricamente,
capacidade de pensar a crise; quanto pois ainda é fortemente utópico
mais os problemas ficam planetários, se confrontado com a realidade e
mais impensáveis se tornam. Uma com ações atuais.
inteligência incapaz de considerar o Vivendo nas organizações, traba-
complexo planetário nos deixa cegos, lhando junto a elas e seus indiví-
inconseqüentes e irresponsáveis."
duos, surgem inúmeras questões.
Mudou-se muito ao longo da Qual seria o nosso papel? Como
história social; o momento exi- poderíamos escrever uma história
ge que seja revisto o modelo transformadora, digna e coeren-
de desenvolvimento linear pro- te? Qual a essência de nosso
posto pela revolução industrial trabalho? Como estamos con-
e, sucessivamente, alavancado tribuindo para o futuro? Nestas,
pelo capitalismo, com sua visão o tema “formação humana” é
positivista de especialização. sempre colocado no centro dos
Pensar somente em avançar em movimentos de transformação da
direção a um suposto desenvol- sociedade. Educar, formar, cons-

(125)
Valor Cultural

truir reflexões, pensamentos, sa- realidade. Em outros lugares, o


beres, experiências emocionais e excesso de história ocidental e
de relacionamento, conhecimen- estruturação das relações huma-
tos técnicos multidisciplinares, nas deixa o futuro com fisionomia
evolução de conhecimentos e de de presente, e o sonho, afastado
inteligência – a formação é um ou relegado às necessidades no-
elemento básico e poderoso de turnas. Esta característica brasi-
transformação humana, que in- leira de “juventude inacabada”
teressa às escolas e, sobretudo, representa uma oportunidade
às organizações. enorme, limitando as resistên-
Mas que tipo de formação? O que cias dos paradigmas passados e
aprende um administrador? E um propiciando a chance da verda-
operador de linha de produção, deira experimentação e de uma
um vendedor, um universitário? real opção de mudança. A per-
Quanto dessa formação é trans- gunta então é: de que formação e
disciplinar, complexa, sistêmica, de que profissional da formação
científica, artística? Como e onde se necessita, e qual a distância
se discute a evolução da identi- disso para a realidade?
dade humana e da humanidade
como um todo? Onde atuam os Formar: dar “espessura”
formadores, os que ensinam e Os modelos formativos conhe-
conduzem projetos de forma- cidos e utilizados nas empresas
ção? são direcionados à especia-
Como o pintor de antigamente, o lização, e são racionalmente
“formador”, principalmente de alinhados às necessidades
adultos, representa um papel- daquela organização de forma
chave para a evolução da socie- mecanicista. Reforça-se, com
dade, que percebe a necessidade ações formais em sala de aula e
de construir a partir do entendi- na prática do ofício, a aquisição
mento de sua realidade pontual. de conhecimentos e metodologias
O Brasil transmite, mais do que aparentemente aplicáveis na ro-
qualquer outro contexto socioge- tina de trabalho. A formação da
ográfico, esta oportunidade sedu- identidade e da capacidade de
tora de construção. Aqui, o futuro reflexão recebe pouca atenção
é futuro. Reconhece-se seu lado – como o indivíduo constrói sua
incerto e a força de um sonho personalidade, as experiências
que pode ainda transformar a vitais formam sua identidade.

(126)
Valor Cultural

Cada profissão detém um lado mais rígida, como os europeus,


comportamental, humano, que utilizam modelos de mudança
só é analisado e tratado super- que investem muito mais na
ficialmente. transformação do indivíduo,
Os modelos de relações não podendo substituir pessoas
nas organizações mudaram com facilidade e menor margem
forçadamente como conseqüência para mudanças. Isso gerou dois
dos modelos estruturais. O modelos formativos distintos,
chamado pensamento sistêmico, com experiências e expertise
quando abordado em programas diferentes e complementares. A
formativos, acaba sendo tratado integração dessas experiências e
como a soma de marketing, abordagens diversas traria, por
produção, distribuição etc, e não exemplo, riqueza e aprendizagem
como a análise de um sistema maior e mais complexa dos mo-
único a ser compreendido em delos atuais. Para isso acontecer,
sua natureza racional, emocional é necessário gerar um idioma da
e original. Para compreender integração, um tradutor etnográ-
a complexidade deste mundo fico que se proponha a juntar
finalmente planetário, que experiências e conhecimento.
começa a ser percebido, será Muito se discute sobre que
necessária uma formação que ferramentas se transformariam
respeite tal complexidade, e que, nas mais poderosas do futuro:
em vez de explicá-la, busque o e-learning ou o ensino
compreender suas origens e presencial? Uma ou outra
evolução para enxergar o futuro, determinada metodologia?
respeitando as incertezas. Muda o instrumento, mas não
A cultura de management de pa- muda o paradigma: continuamos
íses com estrutura organizacional a executar a formação presencial,
de trabalho mais flexível, como a na qual um professor transmite
norte-americana, importada por seu conhecimento especializado
quase todos os outros países, e unidirecional.
utilizam o modelo transformati- Como são formados os
vo fundamental à mudança nas professores, agentes de
estruturas organizacionais, ado- educação nas instituições?
tando processos de adaptação ou O que se aprende de arte,
de substituição de pessoal. Já pa- filosofia, ecologia, psicanálise
íses com estrutura organizacional ou antropologia nas escolas?

(127)
Valor Cultural

Como gerar conhecimento além mas, por outro, observa-se que


da aula, do outdoor ou do e- o hibridismo é subjetivo, e
learning? Como gerar formação que existe um conhecimento
e formadores circulares? experiencial acontecendo em
Para construir o verdadeiro meio a integrações, comparações
pensamento sistêmico, será e desentendimentos de
necessário organizar um currículo interpretações de “sinapses
e uma escola para formadores, emocionais”. Estas são únicas,
também sistêmica e voltada à originais, e representam o novo
complexidade do ser humano e nível de evolução do ser humano:
da natureza. como construir identidades
Um outro ponto fundamental múltiplas, sistêmicas, e como
é elaborar a capacidade do gerar suportes e ajuda emocional
encontro com o outro — o para equilibrar este novo estado
outro diferente, de outra cultura do ser.
etnográfica, de outro nível social, Por isso, propomos uma nova
de outra idade. Esta capacidade escola que busque a transformação
reflete a disponibilidade e forneça formação complexa
para desvinculação do que para os futuros educadores: um
recebemos em nossa evolução aprendizado duradouro aos que
– família, educação, experiência ensinam e trabalham para o
– e abertura ao novo, ao incerto. desenvolvimento de outros, nem
Este hibridismo profundo gera perdedores nem ganhadores,
diferentes estados de ânimo a apenas transformadores.
quem é criado e desenvolvido
em um paradigma cultural Por uma escola futura
definido e próprio, mas é este Caberá à nova escola atuar sob um
“encontro” que pode permitir, novo paradigma. O que se busca
no futuro, a solidariedade é uma nova proposta didático-
em vez da competitividade. pedagógica. É preciso encontrar
Viver no meio termo gera uma práxis de educação focada
um excesso de informações, nas aspirações da sociedade
conhecimentos, capacidades e, por uma condição pós-moderna
ao mesmo tempo, uma solidão mais próspera. Nesse contexto, a
difícil de compartilhar. De um escola será chamada a abandonar
lado aprende-se vários idiomas sua atitude tradicional de
ou como se vive aqui e ali, receptora e transmissora de uma

(128)
Valor Cultural

cultura técnico-científica, cujo como um ambiente estimulante,


paradigma é a imparcialidade e a onde as potencialidades são
impessoalidade. Imagina-se uma desenvolvidas de várias formas,
escola que lidere a luta por uma propiciando novo paradigma de
cultura autêntica, comprometida ser e agir. Desse modo, nenhuma
com os interesses de realização e ação é despropositada, e sim
transformação. ligada à ação de formar, buscando
Esse caminho só é possível se sua integridade, manifestada
exercitarmos a criatividade em em seus aspectos cognitivo,
problemas concretos, por meio psicológico e afetivo (pensar,
do hábito do estudo crítico. Nesse sentir e agir). Nesse novo modelo
contexto, a função do mestre de escola, o formador buscará
como detentor dos critérios de descobrir e aprofundar nossa
certo e errado ou elemento cen- história sem reproduzir modelos
tral, de quem se espera verdades predefinidos, mas ajudando a
prontas, não faria sentido. Nessa desenvolver talentos originais.
escola, parte-se da premissa de A formação só fará sentido
que todos os seus participantes
quando refletir primeiro o
já sabem muitas coisas e são ca-
pazes de refletir, são abertos ao indivíduo, depois a sociedade
intercâmbio de idéias e, princi- e, finalmente, a inserção do
palmente, devem mergulhar em indivíduo na sociedade. E que
seu próprio eu, desenvolvendo ações executadas pela escola
um entendimento mais suave e ajudariam a formar o indivíduo
maduro da realidade. e a sociedade desejada?
Mas formar o quê? A resposta
não é simples. A escola deveria Tipificação da escola de
incentivar a manifestação de formadores
pessoas capazes de atuar, operar O desafio é idealizar uma
e transformar a realidade. Nesse nova escola com pressupostos
sentido, a educação se define de aprendizagem, conteúdo
como o modo de compreender, e metodologia concebidos de
interpretar e transformar acordo com o seu papel de
o mundo, cabendo indicar “formar formadores”. O quadro
que direções tomar com as a seguir apresenta a formalização
transformações propostas. desses aspectos no pensamento
Assim, imaginamos a escola pedagógico:

(129)
Valor Cultural

As escolas e os pensamentos pedagógicos – 1


Critérios Pensamento tradicional
Liberal Progressista Tecnicista
Propósito da Formar moral e Integração ao meio Produzir indivíduos
formação intelectualmente social competentes

Estudar o ambiente Condicionamento às


Pressuposto de Repassar
conforme o interesse respostas desejadas
aprendizagem conhecimento através do reforço

Experiência
Cultura e valores Saber técnico-
Conteúdo de ensino vivenciada com
tradicionais científico estabelecido
desafios cognitivos

Modelo de Herbart: Abordagem


Aprender fazendo,
Metodologia expor, associar, sistêmica e instrução
pesquisando
generalizar, aplicar programada

As escolas e os pensamentos pedagógicos – 2


Critérios Pensamento progressista
Libertadora Libertária Crítica

Atingir uma Transformar a Familiarizar com a


Propósito da consciência crítica
compartilhada com o personalidade do contradição, a partir
formação formando de conteúdos “vivos”
mestre

Codificação e Crescimento sem Identificação de


Pressuposto de decodificação da avaliação dentro dos modelos para os novos
aprendizagem problemática social grupos conhecimentos

há conteúdo pré- Grandes linhas


Educação com caráter Não de pensamento
Conteúdo de ensino estabelecido. O grupo
político reavaliados à luz das
decide os temas. realidades sociais

Participativa; busca
Autogestão pela a compreensão de
Metodologia Grupo de discussão vivência grupal fatos e tópicos de
discussão

Adaptado de LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 1992.

(130)
Valor Cultural

Essa é uma base segura para se conceber, então, uma escola que preen-
cha as células do quadro abaixo e que identificariam e caracterizariam
sua capacidade de ser formadora de formadores:
A escola de formadores
Critérios
Propósito da formação Formar atitudes em um clima favorável ao autodesenvolvimento e à
realização.
Pressuposto de Apreender é mudar as próprias percepções, valorizando o “eu” em um
aprendizagem regime de auto-avaliação.
Processo de desenvolvimento das relações e das comunicações. Incentivo
Conteúdo de ensino à pesquisa com base em interesses específicos. Abrangência conceitual.
Técnicas de sensibilização, buscando a melhora dos relacionamentos
Metodologia interpessoais e a exploração da potencialidade intelectual, psicológica/
emocional e artística do indivíduo.

Planejamento para a nova formador toma para si o compro-


escola misso de promover e incentivar
No processo de planejamento, a formação de outros educadores
trabalha-se inicialmente com que, agindo individualmente ou
uma visão compartilhada do em grupos, terão a competência
projeto realizado. Considerando de construir e transformar o
a concretização do novo tipo mundo.
de escola de formadores, talvez Os formadores teriam como desa-
fosse possível idealizar grupos fio de superação o aprofundamen-
de formandos que, durante o seu to de seu próprio aprendizado.
período de capacitação, tivessem Indivíduos de grande domínio
a oportunidade de desenvolver pessoal, conseguem atingir me-
domínio sobre muitas competên- tas. Porém, poucos trabalham
cias. Estas estariam associadas as questões de domínio pessoal
à capacidade de aprofundar a porque é muito difícil alcançar
ciência das coisas para poder proficiência em questões que
ver a realidade objetiva. envolvam os próprios valores sem
Por que escola de formadores? o emprego de uma metodologia,
A resposta encontra-se no com- que será, então, oferecida pela
promisso da escola, como apre- escola de formadores.
sentado no quadro anterior, que Ao planejar esta escola, chega-
se refere à sua responsabilidade se ao paradigma sobre o qual
transformadora. Em seu meio ou serão erigidas suas atividades.
na organização em que atua, o Significa dizer que, nesta fase,

(131)
Valor Cultural

se procura estabelecer diretrizes Há ainda o campo do domínio


para a condução do projeto até técnico, no qual as capacidades
sua concretização. É o momento a serem desenvolvidas são a ha-
da generalização, de definir ca- bilidade física e a memória. Em
minhos como respostas ao modelo qualquer aprendizado, ele será
mental reconhecível. Estando o solicitado, seja para escrever
modelo certo, a concretização um simples memorando, seja
do projeto se viabiliza. Estando para trabalhar com máquinas
equivocado, o empreendimento sofisticadas. A formação nos
se perderá em meio a inúmeros quatro diferentes campos que
esforços e iniciativas ineficien- caracterizam as competências
tes. do indivíduo — domínio pessoal,
Da mesma maneira, o formando modelagem mental, pensamento
da nova escola desenvolve sua sistêmico e domínio técnico — é
capacidade de identificar para- função de diferentes dimensões
digmas, o que norteia a noção do aprendizado: científica, técni-
do que pode ser feito ou não em ca, artística e intuitiva. Para cada
cada situação. O trabalho com campo, aplicam-se essas dimen-
os modelos mentais começa por sões com ênfases diferentes.
questionar imagens preestabe- O conteúdo programático da es-
lecidas e, através de atividades cola de formadores deveria cobrir
que envolvem indagação e argu- diferentes campos de domínio e
mentação, levam seu praticante suportar metodologias que tra-
a um novo estado mental de re- balhassem diferentes dimensões
conhecimento das forças atuantes de construção do conhecimento.
no contexto, apontando as opções Uma escola que estudasse a
disponíveis. evolução, aquisição, criação e o
O pensamento sistêmico ainda uso do conhecimento cognitivo,
tem a capacidade de entender emocional e espiritual, além de
as inter-relações das coisas, a contar com vários roteiros de
seqüência de causa e efeito, aprofundamento, seria a base
preservando a unicidade que para o exercício das profissões do
possibilita a antecipação de ten- futuro, mais adequada à filosofia
dências, a partir da compreensão e responsabilidades dos nossos
do funcionamento de eventos que tempos. Essa escola represen-
se sucedem, sem que estejam, em taria, de fato, uma faculdade
princípio, relacionados. das complexidades ecológicas e

(132)
Valor Cultural

econômicas que abordasse, por


um lado, a cultura humanista, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BORDENAVE, J.D.; PEREIRA, A.M.,
considerando as questões fun- Estratégias de ensino-aprendizagem. Petrópolis:
damentais do ser humano; e por Vozes, 1988.
CARMAGNOLA F.; VARCHETTA G.; Cartografie
outro, a cultura tecnocientífica della complessita. Sviluppo & Organizzazione,
mais concreta e especializada, en- 1996.
DARHENDORF, R.; Libertá attiva, sei lezioni
frentando questões mais tangíveis, su un mondo instabile: quadrare il cerchio,
formando um quadro representati- benessere econômico, coesione sociale e libertá
política. Editore Laterza, 2003.
vo e multidisciplinar da condição DE MASI, D.; FREI BETTO, José Ernesto
humana no contexto social. Bologna (interm.). São Paulo: DeLeitura
Editora, 2002.
Uma escola como essa deveria FORTI D.; VARCHETTA G.; L’approccio
atuar nos campos das ciências psicosocionalaitico allo sviluppo delle
da educação e comunicação so- organizazzioni. Franco Angeli, 2001.
LUCKESI, C. C.; Filosofia da educação. São
cial; oferecer estudos no campo Paulo: Cortez, 1992.
da arte, da ciência e na área MARQUES, H.R.; Metodologia do ensino
superior. Campo Grande: Editora UCDB,
da tecnologia; e ainda trabalhar 2002.
os aspectos profundos de seus MORIN, E.; La tête bien faite, I sette saperi
necessari all’educazione del futuro. Raffaello
participantes como exercício de Cortina: Seuil, 2001
autoconhecimento e domínio PIEVANI, T.; VARCHETTA, G.; Il management
dell´unicità: Organizzazione, evoluzione,
pessoal no desenvolvimento formazione. Milão: Guerini & Associati , 1999.
de seus respectivos tirocínios. QUAGLINO, G.P.; Scritti di formazione. Franco
Angeli, 1998.
Deveria apresentar disciplinas SENNET, R.; The corrosion of character:
da educação em suas diferentes the personal consequence of work in
the new capitalism. Nova York-Londres:
manifestações, desde a educação Norton&Company, 1999.
ambiental até a educação estética. VARCHETTA G.; La solidarietá organizzativa.
Deveria abordar as disciplinas de Milão: Guerini & Associati, 1993.
áreas próprias da matemática,
filosofia, lingüística e gestão das Marco Dalpozzo é diretor de RH e Comunicação
relações. da Parmalat Brasil.
Esse é um sonho que começou a
ser idealizado a partir da reflexão Prof. Arão Sapiro é presidente do Instituto de
da organização humana, e que se Estudos para a Competitividade (INSEC). Mestre
firmará na medida em que con- pela EAESP da Fundação Getúlio Vargas, com
seguir romper as barreiras que especialização pela FEA-USP. Vivência docente
separam diferentes disciplinas, em instituições como o EPGE da FGV, IBMEC
em busca de um todo mais har- Educacional e ESPM. Autor, tradutor e revisor
monioso e compreensível. de textos de Management.

(133)
Border Line

O intangível na política
Milton Seligman

Qual o futuro da ati- A política está século XXI?


vidade política dentro organizada A crescente importân-
de um cenário de a partir da cia dos novos meios de
instabilidade global, identificação do
comunicação, como o
como o que estamos advento da internet,
território onde
vivendo? tem valorizado ativos
Para discutir esta o exercício do até então secundários
questão, darei ao ter- poder se aplica, no desenvolvimento
mo política o conceito enquanto o econômico, como
usado pelos estudio- processo de conhecimento, redes
sos italianos Norberto globalização de relações, acesso
Bobbio e Pasquino, no simplesmente pioneiro a novas tec-
Dizionario di politica. supera o conceito nologias, enfim, bens
Por política entende- de território. intangíveis se com-
se, aqui, o conjunto parados aos valores
de atividades que têm como típicos da sociedade industrial.
termo de referência a pólis, ou Muitos atores políticos e pensa-
seja, o Estado. Dessa forma, o dores têm se manifestado sobre
conceito de política está estrei- este novo cenário. Tomo três
tamente ligado à noção de poder; exemplos significativos:
em outras palavras, à posse dos Fernando Henrique Cardoso, em
meios para dominar os outros e discurso na Cúpula Ibero-Latino
a natureza em busca de alcançar Americana de Havana de 1999,
uma “vantagem qualquer” ou os afirmou:
“efeitos desejados”. Não é de hoje a preocupação com os
Como conceituar o atual cenário desafios que se apresentam à comu-
do desenvolvimento social, eco- nidade internacional no contexto de
nômico e político, identificando a uma economia e de um sistema inter-
nacional crescentemente globalizados.
emergência de “fatos novos” nas No entanto, em tempos recentes, essa
relações humanas neste início de preocupação ganhou maior destaque

(134)
Border Line

e passou a estar no centro da agenda fundador da Inter Press Service,


internacional. agência internacional de notícias
Ao longo das últimas décadas, as
inovações sem precedentes nas tecno- especializada na temática da
logias de telecomunicações, o acesso globalização, comentou assim o
a modalidades de transportes mais assunto, pouco tempo atrás:
rápidas e mais baratas e a crescente O tema se coloca como se a nova
relevância dos fluxos internacionais economia criasse novos desafios e
de comércio, capitais, informação e novas possibilidades, alterasse a re-
tecnologia fizeram com que os gover- lação entre ética e estética, fantasia
nos e as sociedades se vissem diante de e racionalidade.
problemas novos que exigem respostas Na realidade, este debate nasce com a
adequadas por parte de governos e so- descoberta de Gutenberg. Os momen-
ciedades em todo o mundo. tos globalizantes da história humana
Tanto no plano econômico como no (como primeiro foi o Colonialismo,
âmbito político e social, boa parte depois a Revolução Industrial e,
dos temas que hoje definem a agenda agora, a globalização) têm acele-
internacional remete a uma questão rado o debate e o questionamento,
básica: os países, as sociedades, são mas não aberto questões até então
cada vez mais afetados por eventos inexistentes.
que se produzem fora de suas fron- A questão é, então, identificar onde as
teiras e mesmo em locais remotos, novas tecnologias ampliam o espaço,
mas os mecanismos de decisão, com em um debate já existente. Em reali-
poucas exceções, permanecem ainda dade, hoje sabemos que é a cultura do
essencialmente circunscritos às juris- momento, quando o salto se produz,
dições nacionais. que determina o seu conteúdo. O
A rigor, a ocorrência de repercussões impacto da tecnologia é somente o de
internacionais não é característica amplificar, mas não porta por si só os
exclusiva de nossa época. Nos séculos conteúdos.
XV e XVI, os resultados das grandes A nova economia se abre em um
navegações no Novo Mundo afetaram momento preciso: a partir da queda
as economias de Portugal e Espanha do muro de Berlim se fala de globa-
e, por extensão, as relações de poder lização (não se falava antes). É uma
no contexto europeu. No século XVIII, globalização cujo sentido financeiro
a Revolução Francesa teve impacto é mais forte do que o produtivo – as
muito além de suas fronteiras. Em trocas financeiras entre bolsas e moe-
1914, o atentado em Sarajevo foi das são centenas de vezes maiores do
descrito como um tiro ouvido ao re- que a produção econômica, industrial
dor do mundo. e do comércio.
É uma globalização que supera as
O jornalista italiano Roberto realidades nacionais, que possuem
Sávio, presidente emérito e regras – talvez imperfeitamente apli-
cadas – mas que foram nascidas sobre
(135)
Border Line

o conceito, de consenso nacional, de a cabo por partidos de tradição po-


como gerenciar a democracia e seus pular que atuaram em concordância
valores: eqüidade, solidariedade, com os interesses dos países centrais,
participação e justiça social. através dos bancos e organismos in-
A globalização, nesta superação das ternacionais [...]
realidades nacionais, não recolhe ne- O crescente abandono do controle
nhum dos valores que têm formado as social sobre a vida pública permite,
democracias nacionais. Somente in- além disto, o aumento do fenômeno
troduz alguns novos, como eficiência, da corrupção, que se liga invariavel-
liberdade para os atores econômicos mente, segundo pesquisas de opinião,
e competição, que, de certo modo, já à política e ao exercício do poder.
existiam em nível nacional.
É no debate sobre esses valores que o São três opiniões na mesma di-
novo salto da globalização decidirá reção, ou pelo menos muito mais
as novas relações entre fantasia e próximas do que se poderia su-
realidade, ética e estética. por, partindo de atores sociais tão
O professor Eduardo Galvéz da distintos quanto o ex-presidente
Universidade de La Plata argu- do Brasil, um jornalista europeu
mentou na seguinte linha: com notável militância terceiro-
Estamos assistindo ao que se poderia mundista e um professor univer-
chamar de verdadeira crise de repre- sitário argentino, que reproduz o
sentação, materializada com menor discurso das esquerdas latino-
participação dos partidos políticos e
sindicatos e desconfiança crescente no americanas.
parlamento e nas grandes estruturas Em comum entre eles está a
de mediação política. constatação de que a política está
Mas a democracia como forma de go- organizada a partir da identifica-
verno não está em jogo. O imaginário ção do território onde o exercício
social do continente latino-americano do poder se aplica, enquanto o
está de acordo com o fato de que a processo de globalização sim-
democracia deva ser fortalecida. plesmente supera o conceito de
Para fazer isto é necessário reforçar
as identidades, voltar o olho para as território.
práticas sociais e não ter de aplicar Desta diferença nasce uma
receitas importadas que sempre estão separação entre as dinâmicas
pensadas pelo centro, desde o centro e da política e da economia, com
para o centro. importantes reflexos para o de-
Entre a multiplicidade de fatores que senvolvimento social. A questão
originam esta situação de desencanto da luta pela hegemonia apresen-
político na América Latina, podemos
mencionar a decepção produzida pelas ta dinâmicas diferentes nos dois
políticas de ajuste neoliberal, levadas processos.

(136)
Border Line

O processo político se fortalece América.


pela luta de um grupo (partidos O resultado desta diferença é
políticos ou tendências internas que o mundo da política e “os
aos partidos) para assumir o con- Estados, aos poucos, estão se en-
trole de organizações da socieda- gajando num jogo diferente: eles
de, como sindicatos, prefeituras, estão competindo por participa-
unidades da federação e, final- ção no mercado mundial como o
mente, dos Estados nacionais. meio mais seguro de aumentar a
A ação econômica, por sua vez, riqueza e a segurança econômi-
fortalece aqueles grupos que ca." São palavras pioneiras de
conseguem atuar simultanea- Susan Strange, escritas há mais
mente em diferentes mercados de dez anos.
oferecendo produtos e serviços A afirmação chama a atenção
a um número cada vez maior de para o fato de que, hoje, a ques-
clientes, independentemente de tão central não é tanto se cada
onde se encontram e de qual é sociedade integra-se ou não ao
seu marco e identidade cultural. capitalismo transnacionalizado
Assim, o processo de globaliza- (de fato, várias sociedades estão
ção colocou os atores da política à margem do sistema, principal-
e, por conseqüência, os Estados mente na África), mas como está
nacionais em uma nova situação integrada e, mais importante
estratégica. Em maior ou menor ainda, o que vem fazendo para
medida, todos eles perderam mudar sua posição na ordem
capacidade de interferir sobre global.
o mundo econômico, entendendo Mas o que há de tão radicalmente
aí a realidade das empresas e dos novo no processo de acumulação
mercados. capitalista, que sai hegemônico
A questão que envolve os interes- da Guerra Fria?
ses da Microsoft e a posição do Primeiro: convivemos com a co-
governo norte-americano relativa municação instantânea, em tem-
aos limites para a concentração po real e a baixo custo, tornando
de mercado ilustra bem o grau realidade o sonho capitalista dos
de dificuldades que os Estados mercados que nunca dormem.
nacionais enfrentam para inter- Segundo: a informática está in-
ferir nos mercados, mesmo que corporada ao sistema produtivo;
esse Estado nacional atenda o tratamento eletrônico de infor-
pelo nome de Estados Unidos da mações é parte do próprio sistema

(137)
Border Line

de produção. Kong, por exemplo, já sofreram


Somadas, as duas permitem a ataques especulativos. O Japão
distribuição espacial da produção está há anos com problemas e
de uma maneira nunca pensada. com taxa recorde de desemprego
Pode-se fabricar partes de um – em torno de 5%, o que é muito
produto em cada canto do mundo, numa sociedade rica e habituada
segundo vantagens comparativas ao pleno emprego.
em relação à redução de custos O que sabemos é que não existem
de produção e maior velocidade soluções nacionais para os efei-
para colocação dos produtos no tos da globalização financeira.
mercado. O controle da produção Ainda não foram construídos
não depende mais da proximida- os instrumentos para enfrentar
de física entre o ser humano e a globalmente os novos problemas
máquina. supranacionais. Utopicamente,
Outra mudança, intensa e pro- poder-se-ia dizer que, na crise
funda, ocorre nos mercados evidente do Estado nacional, fal-
financeiros. A comunicação por ta uma instância mundial, uma
redes de computadores e os mer- espécie de estatuto da humani-
cados que nunca dormem possi- dade que declare os direitos dos
bilitaram uma alta especulação e povos diante desse novo cenário
a conseqüente virtualização do traçado pela globalização. Seria,
dinheiro. É o intangível coman- por exemplo, um novo Bretton
dando os concretos interesses de Woods?
industriais e trabalhadores. No Arthur Schlesinger resume em
limite, a própria governabilidade uma frase a situação de perple-
dos países fica comprometida a xidade em que se encontram os
partir dessas mudanças. governos: “[...] o Estado nacional
A conseqüência dessa globa- ficou pequeno demais para re-
lização é que não se tem mais solver os grandes problemas e
autoridade sobre o sistema finan- grande demais para resolver os
ceiro pulverizado. Nenhum banco pequenos.”
central a tem. Tudo virou aposta Os países mais fortes perderam
futura, tudo passou a ser expecta- a antiga facilidade de impor uma
tiva. Em nome delas, os mercados ordem, porque a força é eficaz
reagem e os países são afetados, para submeter, mas totalmente
podendo todos, fortes ou fracos, inepta para construir pactos ra-
ser atingidos. Canadá e Hong zoáveis de convivência e projetos

(138)
Border Line

de desenvolvimento, como nos atuais. Dessa forma, ampliam-se


mostra a presença norte-ameri- os graus de liberdade dos países
cana e inglesa no Iraque. e das pessoas. E muda a natureza
Uma nova ordem virtuosa so- das relações sociais, econômicas
mente será possível se houver e políticas.
equilíbrio internacional, fruto de No entanto estas questões não
uma sociedade global que com- nascem agora. Acompanham
partilhe a liderança, as decisões, todos os processos de internacio-
as oportunidades e as responsa- nalização acentuada de qualquer
bilidades. modelo que se torna hegemônico,
A idéia de um mundo comparti- mas se tornaram críticas a partir
lhado, ao mesmo tempo em que do esgotamento do sistema de re-
exclui o temor de que estejamos lações internacionais que equili-
marchando para um mundo brava os dois blocos hegemônicos
opressivo, exige o respeito à da tangível sociedade industrial.
pluralidade e à diversidade. A Guerra Fria entre os Estados
Respeito e tolerância. Em vez Unidos, potência hegemônica
de um mundo homogeneizado, do bloco capitalista, e a União
pode-se alcançar o mundo da di- Soviética, líder do bloco socialis-
versidade, onde haverá lugar para ta, condicionou todas as relações
a afirmação nacional. E a cultura institucionais da segunda metade
será o principal elemento desse do século XX, o fim do período
amálgama. moderno.
Os meios de comunicação, O sociólogo português Boaventura
hoje, influenciam com grande Souza Santos foi um dos que
velocidade, o que pode não ser relatou o fenômeno da pós-mo-
apenas uma ameaça. Este pro- dernidade, em seus estudos nas
cesso depende da força que cada Universidades de Coimbra e de
sociedade tem para reelaborar a São Paulo, no Brasil, onde se
influência recebida, transforman- dedicou a interpretar a situação
do e atualizando seus próprios dos subúrbios da grande metró-
valores. pole brasileira. Ele identificou
A globalização traz em si novos que os dois grandes paradigmas
elementos de dominação, mas da modernidade – socialismo e
também possibilita muito mais capitalismo – haviam superado
acesso à informação e ao conhe- de forma irreversível os seus
cimento – chaves nos tempos próprios limites, ficando, cada

(139)
Border Line

um a seu lado, além e aquém de valores da ética contemporânea


suas propostas. pode ser escrito desta maneira:
O capitalismo é capaz de produ- liberdade, mas também justiça;
zir muito mais riquezas do que igualdade, mas com pluralidade;
muitos liberais jamais chegaram fraternidade, mas também com
a imaginar, mas segue incapaz as mulheres; coexistência, mas
de distribuir os frutos desta pro- também paz; produtividade, mas
dução, permitindo a existência também solidariedade com o am-
de massas de excluídos e uma biente; e tolerância, mas também
distribuição injusta de oportuni- ecumenismo.
dades entre regiões do planeta, No campo do desenvolvimento
no interior das próprias nações e técnico e científico, junto à sua
entre segmentos sociais. participação no modo de pro-
O socialismo foi capaz de esta- duzir, é notável a influência do
belecer um sistema de repartição avanço tecnológico das teleco-
igualitária sem precedentes. Para municações e da informática na
isto, criou uma burocracia de redução de custos das empresas
estado, dando-lhe responsabili- e na facilidade com que podem
dade para planejar a economia ocupar mercados globais.
e garantir a justa repartição das A revista The Economist compa-
oportunidades. O sistema limitou rou as duas ondas mais recentes
a capacidade empreendedora, de globalização. A primeira, vi-
tolheu a liberdade da sociedade, vida após a Revolução Industrial,
inibiu sua capacidade criativa e nasceu da queda dos custos de
gerou um regime de opressão e transporte, graças ao desenvol-
autoritarismo. vimento e financiamento das
A superação dialética de ambos ferrovias, das hidrovias e do
os paradigmas da modernidade automóvel. Com estes meios de
tem se dado nos dois campos comunicação mais rápidos, a po-
em que as Revoluções Francesa pulação pode chegar mais longe e
e Inglesa deram à luz a era mo- mais barato, aumentando o nível
derna. de relacionamento comercial
No campo dos valores éticos, o e humano. A segunda onda da
filósofo católico holandês Hans globalização está sendo criada
Küng definiu o que chama de a partir da queda dos custos
exigências éticas pós-modernas. de telecomunicações, graças às
Para Küng, o novo conjunto de invenções dos microchips, dos

(140)
Border Line

satélites, das fibras óticas e da cia e suas relações recíprocas.


própria rede mundial de compu- No atual período de globalização,
tadores, a internet. percebe-se a convivência e atua-
Com estas tecnologias e os avan- ção contemporânea dos processos
ços experimentados nas áreas da de destruição construtiva e de
genética, biotecnologia, mecâni- preservação das mais profun-
ca de precisão e novos materiais das raízes culturais. A própria
postos no jogo da produção, muda Organização das Nações Unidas
a qualidade das relações produti- (ONU) tem refletido essa situação
vas e não só a sua quantidade. ao convocar uma série de confe-
As observações feitas por Marx e rências internacionais durante
Engels em seu célebre Manifesto os anos de 1990. Tais encontros
Comunista, de 1848, podem ser abordaram temas globais como
novamente lembradas, sem perda crianças, meio ambiente, popu-
de atualidade: lação, direitos humanos, mulhe-
A burguesia só pode existir com a res, habitação, desenvolvimento
condição de revolucionar incessante- social, segurança alimentar, entre
mente os instrumentos de produção, outros. Dois aspectos foram par-
por conseguinte, as relações de pro-
dução e, com isso, todas as relações ticularmente relevantes nestas
sociais. A conservação inalterada do conferências: a nova temática
antigo modo de produção constituía, escolhida para compor a agenda
pelo contrário, a primeira condição de de assuntos internacionais e a
existência de todas as classes indus- presença marcante da sociedade
triais anteriores. Essa subversão contí- civil organizada, vinda de todas
nua da produção, esse abalo constante as regiões.
de todo o sistema social, essa agitação As mudanças profundas pelas
permanente e essa falta de segurança
distinguem a época burguesa de todas quais o mundo está passando co-
as precedentes. Dissolvem-se todas as locam um paradoxal sentimento
relações sociais antigas e cristaliza- de riscos e de oportunidades, tal
das, com seu cortejo de concepções e qual o ideograma chinês usado
de idéias secularmente veneradas, as para descrever crise, como, por
relações que as substituem tornam-se exemplo, os Estados nacionais
antiquadas antes mesmo de ossificar- que estão ficando pequenos para
se. Tudo que era sólido e estável se
desmancha no ar, tudo o que era enfrentar os grandes problemas,
sagrado é profanado e os homens são notadamente no campo dos fluxos
obrigados finalmente a encarar com financeiros internacionais, com
serenidade suas condições de existên- sua capacidade de especulação

(141)
Border Line

destrutiva. que sua exclusão não é questão


Por outro lado, existem razões de particular; é ato de ofensa aos
sobra para se discutir a renovação direitos de toda a humanidade.
dos instrumentos internacionais Hoje é possível lançar campanhas
multilaterais, capazes de fazer internacionais que envolvam a
frente a um novo conjunto de sociedade civil, sobre temas di-
desafios. As grandes e recentes recionados, e bloquear ações de
conferências internacionais da Estado. Os grupos específicos e
ONU são o começo deste movi- as minorias têm à sua disposição
mento. instrumentos poderosos de par-
Os Estados nacionais não têm ticipação.
mais condições para conduzir O acesso a novas tecnologias cria
individualmente políticas so- novos tipos de desigualdades,
ciais, tampouco escolher seg- pois nem todos têm as mesmas
mentos a serem beneficiados e habilidade e oportunidade para
suas formas de implementação. usar os novos equipamentos e
Felizmente, não podem mais dei- dispositivos.
xar de contar com a participação As experiências de massa no uso
das organizações da sociedade de novas tecnologias aplicadas
civil para manejar alguns dos tanto a processos político-eleito-
temas mais delicados, como os rais como a atividades bancárias
que compõem a vasta agenda de ou governamentais mostram que
temas sociais. a adaptação da população é sur-
Regiões, países e segmentos da preendentemente rápida.
população excluídos não contam O desemprego da mão-de-obra
na lógica da desregulamenta- desqualificada dos países em
ção, privatização e abertura das desenvolvimento, causado pelo
fronteiras para o mercado inter- fim de setores produtivos que
nacional. se tornam obsoletos pelo avanço
Por outro lado, a população tem tecnológico, é um risco.
como fazer ouvir a sua voz, sem a A universalização e a melhoria da
necessidade de partidos políticos qualidade do ensino, para que a
atuando como intermediários. As população possa ter acesso a no-
próprias pessoas, individualmente vas oportunidades de trabalho e
ou em grupos, podem convencer renda, é um fato contemporâneo.
não aos Estados nacionais, mas Cresce a consciência e o número
à própria sociedade mundial de de países em desenvolvimento

(142)
Border Line

que têm dado prioridade máxima que a luta pela preservação dos
a seus sistemas educacionais. valores culturais tem acompanha-
O desenvolvimento econômi- do dialeticamente o processo de
co sem precedentes com uma globalização em todo o mundo.
concentração de renda e capital O risco é concentrar os sistemas
jamais vistos, é um problema de comunicação em poucas mãos
aguçado pela globalização. e em poucos países, divulgando
A democratização do capital, com uma série de eventos fora de
a criação de fundos de investi- contexto e criando o paradoxo
mento público manejados com da desinformação por excesso
transparência e participação da de dados.
sociedade, também é fruto deste A oportunidade é usar as poten-
processo de internacionalização cialidades da internet para criar
da economia. Segue crescendo sinergia entre organismos seme-
a pobreza em algumas partes do lhantes e dispersos que podem so-
mundo, enquanto se acumulam mar recursos para atuar de manei-
fortunas impensáveis em outras. ra global. Não só as empresas mas
Existem instrumentos para também os governos e os partidos
estimular processos de desen- políticos começam a usar a rede
volvimento local sustentável e mundial de computadores para
integrado, aproveitando os bene- suas comunicações e atuação.
fícios das novas tecnologias, para Porém, há o grande perigo de se
a criação de redes de cooperação seguir a barbárie que caracteri-
e integração, que tornam possível zou o século XX, o mais violento
o desenvolvimento de pequenas de todos os séculos. A chance é
localidades articuladas à lógica fazer valer as exigências éticas
de desenvolvimento regional, da pós-modernidade, impondo à
nacional ou global. tirania os limites de uma civili-
A massificação cultural a partir zação que se pretende livre, justa,
das regiões hegemônicas, com a igualitária, pluralista, respeitosa
perda das identidades locais, é com homens e mulheres de todas
uma realidade, bem como a uti- as idades e credos, pacífica, que
lização das diferenças culturais respeita o meio ambiente, toleran-
como fator de desenvolvimento, te com a diversidade e elevada em
buscando uma inserção interna- seus valores espirituais, de forma
cional diferenciada e de grande ecumênica.
valor agregado. Cabe lembrar Que mundo resultará dessas

(143)
Border Line

mudanças? Ainda não sabemos.


Não concordo, entretanto, com
aqueles que anunciam o fim da
História e a desimportância da
política.
O que existe é uma nova História
sendo escrita. Por ser nova, talvez
seja ainda muito cedo para vê-la
com nitidez e isso aumenta a an-
gústia, a incerteza sobre o futuro,
o medo, o pessimismo.
Para atuar no sentido de construir
dias melhores é necessário que
existam instrumentos de política
adequados a esta nova era da
democracia.
Prefiro concluir com uma frase do
livro Internet e o Sul, do jorna-
lista e escritor uruguaio Esteban
Valenti: “[...] as revoluções criam
sempre mais perguntas do que res-
postas. E aí está, precisamente,
sua força renovadora.”
Outubro de 2003.

Milton Seligman, engenheiro eletricista, atuou


como secretário executivo do Ministério da
Justiça, presidente do Instituto Nacional de Co-
lonização e Reforma Agrária, secretário executivo
da Comunidade Solidária e secretário executivo
do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior do Brasil no Governo Fernan-
do Henrique Cardoso. Atualmente é diretor de
Relações Corporativas da AmBev - Companhia
de Bebida das Américas.

(144)
Border Line

Literatura brasileira
Elvira Vigna

No primeiro fim de Com exceção do Maria Helena e Peter


semana da estação de título do poeta Schambil (Dicionário
compras natalinas do Mauro Faustino, de expressões idio-
ano passado, havia, no todos os outros
máticas da Língua
estande “Novidades” Inglesa), Marcia
da filial Botafogo livros - no estande Mattos (O livro da lua
Praia Shopping da mais nobre de – 2003), Lian Hearn,
rede Siciliano, os uma das maiores Mario Faustino (O
seguintes autores: filiais de uma homem e sua hora),
Eric Hobsbawn, Tim conceituada Frederick Forsyth,
LaHaye, Bernard rede de livrarias Dalai Lama, Malvine
Cornwell, Haroldo do país - são Zalcberg, Christian
de Campos, Hérica de autores Jacq, Isabel Allende,
Marmo (Toda a histó- estrangeiros ou Dean Koontz, David
ria dos Titãs), Cecilia de não-ficção Colbert, Deepak
Beatriz L. da Veiga nacional. Chopra, Ômar Souki
Soares (O livro de (A receita dos cam-
ouro das flores), Roger Highfield peões: Jesus Cristo, Abraham
(A ciência de Harry Potter), Emma Lincoln, Jack Welch, Madre
McLaughin (na capa do livro, a Teresa...), Max Klim (Anuário
indicação: mais de um milhão de de Astrologia - 2003), Dennis
exemplares vendidos nos Estados Lehane, Sig Bergamin (Adoro!),
Unidos), Antonieta M. Barbosa Elio Gaspari, Richard Gordon
(Câncer – direito e cidadania), (A assustadora história do sexo),
Bruce Metzger (Dicionário da Paul Auster e Marion Zimmer
Bíblia), Fiódor Dostoievski, Bradley.
Claudia Pattson (Gente famosa Na mesma semana, eu me corres-
– aventuras e desventuras de Ruby pondia pela internet com vários
Lake, repórter de celebridades), autores brasileiros, nenhum deles
Junior Azzi (Quer casar comigo?), mencionados acima. Na verdade,

(145)
Border Line

nenhum deles presente em qual- Algo de muito diferente de al-


quer estande daquela ou de algu- gumas das melhores literaturas
ma outra livraria do país, mesmo estrangeiras? Não. E é este o
tendo tido livros publicados em ponto: o acento na semelhança e
datas próximas a da pesquisa. não na diferença daquele sempre
Fica a impressão de uma esqui- dúbio projeto literário “nacional”
zofrenia cultural, de um espelho que não se sustenta, por imobi-
quebrado. Com exceção do título lizado, nem por dois segundos.
do poeta Mauro Faustino, todos Justamente por sermos semelhan-
os outros livros – no estande mais tes é que deveríamos estar na-
nobre de uma das maiores filiais quele estande onde não estamos.
de uma conceituada rede de li- Escrevemos muito bem. Dizer
vrarias do país, em uma de suas que o fulaninho, completamente
maiores e mais importantes cida- desconhecido, é um Paul Auster,
des – são de autores estrangeiros é cair no mesmo erro da livraria.
ou de não-ficção nacional. A frase seria: Paul Auster é um
Enquanto isso, na internet, na fulaninho americano. Há um
troca de informações e afetos por outro fulaninho, brasileiro, que
e-mails e blogs, e na linguagem também escreve muito bem.
tão característica de oralidade e Onde ele está?
informalidade, cresce e aparece Há um Antônio José de Moura
forte rio literário brasileiro. que ganha prêmio com sua his-
É uma literatura nervosa, essa. Se tória do Araguaia (Magrinha).
eu tivesse de achar um aspecto Jádson Barros Neves também
em comum nos textos que leio e ganha, no ano seguinte, o mesmo
que vêm de lugares/realidades tão prêmio literário de que ninguém
diferentes como Goiás, Águas de ouviu falar – das Faculdades
São Pedro e Tocantins, eu apon- Teresa Martin, de São Paulo
taria a frase elíptica, cortada, – com outra história, esta sobre
as palavras em número apenas o Tocantins, que ele também
suficiente para passar seu(s) conhece muito bem (O homem, o
sentido(s). Quando não precisar pássaro, o rio). Cláudio Galperin
de verbo, o verbo some; quando escreve do mesmo jeito que vive-
der para se adivinhar o fim da fra- mos todos – no susto, com pressa,
se, para quê escrevê-la? Como se partido entre amores, morte e di-
tivéssemos de correr para vencer nheiro. Ele conseguiu a atenção
um tempo perdido, de mordaça. de Ignácio de Loyola Brandão,

(146)
Border Line

que assina o prefácio de seu O diante dele e informou não haver


avesso dos dias, de uma editora o livro O assassinato de Bebê
Beca. E este é mais um aspecto Martê naquela livraria.
desta nossa esquizofrenia. Há Voltei lá.
editores – acho mesmo que são a Refiz os passos. Chamei o rapa-
maioria – que, claro, pensam em zinho. Pedi o livro. Mas, ao con-
dinheiro, mas que também vivem trário do meu amigo, que ficou
da paixão de trabalhar com um comportado a seu lado no balcão,
texto bom, novo. Livreiros, não. eu, muito mais ansiosa, me postei
Isto me traz à memória o caso do ao lado do computador, acompa-
O assassinato de Bebê Martê, meu nhando cada letra na telinha. E
primeiro livro em editora grande, na telinha o rapazinho escrevia:
feito depois de alguns anos fora "O assacinato de Bebê Martê". E
do ambiente editorial. Um amigo este, de fato, não havia.
pede o livro, respondo que não O atendente da melhor e mais
dou. Que compre. Afinal, digo, chique livraria do Rio de Janeiro
se os amigos não comprassem, era um semi-analfabeto.
quem haveria? Ele diz que está O dono da melhor e mais chique
bem. Mora na esquina da livraria livraria do Rio de Janeiro deve
mais em moda, o point da época, pagar uma miséria para pesso-
com seu café onde é difícil conse- as não-preparadas, para assim
guir mesa. Lá eu tinha estado um poder ganhar a maior margem
dia antes, na averiguação nervo- de lucro possível. Por que tais
sa de autor novo ou quase novo a capitalistas iriam se preocupar
lamber minha cria. O livro estava em: 1) exibir representantes,
lá. Em uma prateleira de fundos, no estande “Novidades” de sua
dois exemplares perdidos. Mas loja, da cultura feita no país
estava. Pois meu amigo volta para onde estabeleceram seu comér-
me dizer que não tinha encontra- cio; 2) manter funcionários com
do o livro “em lugar algum”. o mínimo de conhecimento sobre
− Você esteve na Letras e o produto que vendem?
Expressões, aí ao lado? É falta de respeito. E burrice.
− Claro. Compro livro adoidado. Escrevo
O rapazinho do computador, para também. Meus amigos são es-
quem ele pedira ajuda após não critores. Este comércio livreiro,
ter encontrado o livro nas prate- feito nos moldes de quem vende
leiras mais à vista, fez a pesquisa batata, alija uma parcela de

(147)
Border Line

compradores constantes que são fundo das livrarias.


justamente os ausentes do estan- Para refletir, segue uma compi-
de “Novidades”. lação de fragmentos de textos da
Volto para a internet. internet:
Lá há os contos de Mauricio
Guimarães e Fabio Fernandes, O homem, o pássaro, o rio, de
a poesia feminista e feminina Jádson Barros Neves:
de Cyana Léhay-Diós; Ronaldo Tinham coberto a gaiola do corrupião
Cagiano, de Brasília; a pesquisa com um pedaço de tecido escuro.
histórica de Carlos Erick Novello. − Por que o pano sobre a gaiola?
− A claridade da televisão o deixa
Enfim, gente que forma uma rede nervoso.
subterrânea e muito boa de talen- Sentado à mesa, tendo a seu lado a
tos. Oh, vontade de vê-los subir mochila com o ouro e vendo Helena
à superfície. cortar a cebola sobre o bife na frigi-
Fico pensando na lei que obriga deira, José da Libânia compreendeu
a exibição mínima de filmes na- que as vertentes das águas turbulentas
cionais nos cinemas brasileiros. que deságuam na dor haviam cessa-
Talvez hoje nem seja mais tão do. Agora podia procurar o caminho
dos rios de leitos tranqüilos, que levam
importante, mas pode ter sido às crianças correndo pela casa.
um instrumento de educação
de público e exibidores. E se
livrarias tivessem de dedicar um Porque ela terminou brava, voltei
determinado percentual de cada andando, de Jefferson Alves de
um de seus estandes a autores Lima:
brasileiros? Daí ela apareceu. Dirigia
O professor-bibliotecário da um Chevetoso branco de es-
Universidade de Nova Jersey, Dr. capamento furado. Tinha o
buço pingado de suor, o cabelo Clara
Tom Moore, veio ao Brasil tocar Nunes 1975 travado de lado com um
flauta barroca em uma apresenta- presilhão e o vestido branco ou marfim.
ção de Laura Ronái, da Uni-Rio. Estava escuro dentro do carro e tinha
Sentado na espreguiçadeira de o cheiro do quindim velho. Um colar de
minha casa, arregalou os olhos já contas para cada santo balançando no
redondos para dizer que nunca, pescoço e queria saber como chegar à
em nenhum lugar do mundo onde parte da cachoeira. Pois, veja só. Vou
esteve, viu os livros nacionais do para lá agora. Sigo para lá nesse
minutinho, colega.
país visitado serem colocados,
como aqui, nas prateleiras de

(148)
Border Line

Mínimo eu, de Valério Oliveira: minimalha do alheio, de Oswaldo


Perdão, Estér, Martins:
sei o quanto o beco
você me ama, com seus homens
o quanto em abismo
você me quer, cria
mas uma coisa na minimalha
te digo, do alheio
gozar, uma geografia
gozar mesmo, que delira
eu só consigo
comigo.
O avesso dos dias, de Claudio
Choro de homem, de Marcos Galperin:
Rodrigues: O telefone tocava e tocava e tocava
À noite, o filé do Moraes. Grande, e tocava e tocava e tocava e tocava
alto e frito. Coberto de alho. Pesado. e ressoava e tocava e preenchia todos
Na madrugada, a falta de ar. A com- os cantos da casa. Saí sem apagar
pressão. A horrorosa sensação de es- as luzes.
trangulamento. O grito preso que sai
urro. Acordo com ela me sacudindo.
Acendo a luz, vou lavar o rosto.
Pergunto que marca é essa no pescoço.
− Qual pescoço? − pergunta ela.

Elvira Vigna, escritora, tem mestrado em Teoria


da Significação pela faculdade de Comunicação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Último livro publicado: Coisas que os homens
não entendem, Cia. das Letras, 2002.
Site: www.vigna.com.br

(149)
Redes

Pirataria e livre manifestação da alma


Alexandre Negreiros

Dos primórdios, en- Não se encontrou –, experimentando


quanto voava o osso ainda limite lógico hoje em nossas
de Kubrick, o ser plenamente aceito cabeceiras o hálito
humano emergiu de ao que pode ou
sedento da Recording
sua inconsistência Industry Association of
não ser tratado
comunicativa para a America1 (RIAA), ao
maravilhosa Internet, como objeto esmiuçar intimidades
até outro dia utópica, sujeito a direito em busca de ícones
tornando proféticos autoral dentro que desestimulem
os que a imaginavam do espectro de tamanha sangria. A
e contrariando alguns nuances de uma partir de sérios dese-
teóricos que ainda criação artística. quilíbrios estruturais,
se extasiam com lidos providencial-
suas virtudes e sua capacidade mente como oportunidades de
de alterar relações de poder mercado, os detentores do bom
aparentemente consolidadas há gosto melódico dedicaram nos
bem pouco tempo. A livre trans- últimos vinte anos seus votos de
ferência de arquivos musicais devoção teórica aos preceitos da
nesta grande rede, protagonista moderna administração para, sob
de crise setorial internacional de os auspícios do sonho americano,
um dos mais importantes mer- inventar, instalar e usufruir de
cados culturais do planeta, tem uma seqüência ilimitada de efê-
trazido visões divergentes quanto meros popstars. Mantendo arrefe-
à sua legalidade, ou mesmo sua cidos os maus humores cíclicos
pertinência. de Wall Street, ali distribuíram
Por um lado, ouvimos a grita fartamente os dividendos e, in-
e sentimos ainda o esguicho ternamente, construíram solidez,
jorrado da aorta do sistema dos poder de barganha e planos de
conglomerados de entreteni- benefícios mirabolantes aos seus
mento – a indústria fonográfica dirigentes. Afinal, todos filhos

(150)
Redes

de Deus e merecedores de cada humor e drama com que lidavam


Jaguar. os primeiros gênios da raça, que
Em paralelo, a existência humana pioneiramente registraram, para
segue singela, com seus líquidos nosso resgate e deleite, em algu-
promovendo os amores e os delí- ma mídia do tipo “Pergaminho-
rios, as virtudes e as desgraças. RW”, suas manifestações de
De agentes passivos, nos perce- espírito. E a personalidade do
bemos instrumentalizados em produtivo Mozart é então retra-
nossa sala de estar, com a vasta tada em nosso cinema através de
dimensão da criação se tornando simbologia óbvia, colaborativa
amplamente sujeita à cognição e de seu marketing, do ser humano
ao aproveitamento. Em viés con- virtuoso, tal qual malabarista de
trário aos temerários espasmos fi- sinal, ressalvando-se sua influên-
nanceiros da concentração global, cia na corte.
cada macroincorporação parece Reza o senso das convenções
gerar sementes incontroláveis globais que o período de
da supremacia do universo indi- aproximadamente uma geração
vidual. É um chinês na frente de e meia é de bom tamanho para
cada tanque. O peer-to-peer que que se mantenha sob tutela
enlouquece o Rumsfeld da dis- familiar o fruto hereditário de
tribuição fonográfica; o Linux que cada vovô criativo, determinado
engrossa os óculos do William de ou apadrinhado. Mas não se
Redmont; os hackers púberes que encontrou ainda limite lógico
desesperam o estado-maior. E as plenamente aceito ao que pode
gozações divinas de sempre, ou não ser tratado como objeto
como o fotógrafo cego, um outro sujeito a direito autoral dentro
imune ao vírus da Aids, o italiano do espectro de nuances de
de 102 anos que quer uma noiva, uma criação artística. Tratados
sem Viagra, com prazer. Como se avançam e leis são criadas,
dissesse em Bíblia extemporânea: embora em número muito
“Quem manda ainda sou Eu.” menor do que as controvérsias
A linguagem musical moderna que geram. Há pouco tempo, a
vive assustada com a complexi- gigante Apple lançou um software
dade dos portentos da ansiedade prometendo extinguir o ítem
autoral, do frenesi de destaques “música original” dos orçamentos
criativos, embora continue se va- do mercado multimídia: o
lendo das mesmas prescrições de Soundtrack. Já não falamos de

(151)
Redes

remixes e DJs inventivos, mas va, econômica ou politicamente,


da instituição do recorte-e-cole e que continuam estabelecendo
dinâmico e plenamente ajustável, os limites do alcance dessa legi-
com acabamento profissional. timação pública e autoral. Não se
Há vinte anos, os computadores ouviu barulho contra ou a favor
pessoais reorganizaram o mundo, de Adolf Sax e seu revolucioná-
e não haveriam de não fazê-lo rio invento de sopro do século
com a música. Teclados agora XIX. E jamais ouviremos falar
tocam em uma só nota sinfonias em royalties pagos por Kenny ou
inteiras e, assim, reabrem o Gandelmann a um dos principais
debate sobre o menor elemento responsáveis por seus sucessos,
gerador de direito autoral da forma como se paga hoje por
possível. Reorganizaram-se as pequenas citações. As criações
relações de trabalho, como já têm dono, e isso deve ser respei-
haviam feito o fonógrafo, rádio e tado. Mas até onde?
TV, e isso tende a ser positivo. Recentemente, ainda desferindo
Embora pessoalmente vulnerável rajadas contra um combalido
à sua eficiência, não me sinto Napster, um depoimento do en-
capaz de avaliar a integridade tão principal executivo do grupo
moral das coleções de samples, BMG – que recentemente se fun-
pequenas “peças” sonoras diu com a Sony Music – à revista
pré-autorizadas, rítmicas ou Billboard lembrava, em outras
também harmônicas, usadas palavras, que provavelmente eles
para a montagem de músicas em – Napster – não queriam a música
produções modernas. Creio em livre que pregavam, mas sim de-
reformulação de conceitos, não ter o seu controle. Há menos tem-
obstante algumas premissas que po, a Federação dos Jornalistas
os fundamentam insistam em se esgoelou-se contra uma decisão
manter atreladas aos interesses de certa juíza federal paulista
dos que se pretendem superiores favorável à livre expressão pú-
em eloqüência, sensatez, blica sem pré-requisitos. Sem a
capacidade financeira ou física. necessidade do diploma, poderes
Ou alguma outra virtude que os seriam destituídos, e é provável
projete nessa obsessiva busca por que outras montagens teatrais fi-
poder e controle. Não é tão fácil zessem sucesso, outros picaretas
ser bem amado. não fossem denunciados e CDs de
Há aqueles que mantêm a voz ati- outras origens alcançassem a lista

(152)
Redes

dos mais vendidos. Em 1969, soube que um homem


A relação orgânica entre a indús- pisou na lua e voltou vivo. Isso
tria cultural e a mídia é o pilar parece menos crível enquanto se
central para a sobrevivência eco- troca um pneu na chuva, mas
nômica dos grupos envolvidos, e limites como esses, que
a democratização dos canais de suportamos pela inércia da
informação não consegue se re- ganância, são deliciosamente
velar benéfica a seus controlado- atenuados pelo mais novo sucesso
res. Selos independentes, acesso que um amigo acaba de trazer, e
fácil e espaço político renovam o parece que foi obtido na rede.
mundo para nós, público, e para Advoga-se aí pelo lado divino da
os que buscam espaço fora da música, se manifestando e
padronização, caminho natural operando além dos encontros
dos discos de platina. O ITunes d’alma, e deixa-se de lado a força
Music Store (sistema de venda motriz de sua cadeia produtiva.
de músicas online da Apple Mas esta música continuará por
Computer) representa o famoso séculos, tão subjetiva como
“dá ou desce”, e sua sobrepu- quando pela primeira vez em que
jança pretende a implementação nossos antepassados a
dos mesmos fatores que sempre saborearam. E não custa lembrar
atribuíram a estes um pouco mais que os herdeiros de John
do que àqueles. Sebastian deveriam estar hoje, se
Só nos resta celebrar a humani- outros parâmetros vigorassem,
dade e saborear o ar assustado saboreando um Bloody Mary em
dos pretensos controladores do algum lago natural do Caribe. Da
espírito humano. Se há chance cor do sangue que jorra da
de um caminho mais justo, que indústria, mas por ela também
condenemos a nossa vigésima bombeado.
casa de campo, ou estaremos 1
Associação da Indústria Fonográfica
mais três séculos lamentando Americana
os excessos de nossos represen-
tantes frente à fome das ações ao
portador. Democratizar a comuni-
cação e relativizar a escassez dos Alexandre Negreiros é sociólogo, produtor e perito
gulosos me sugere inteligência e musical; diretor da LAS Cinevídeo e da rádio
submissão à nossa própria condi- comunitária Pop-Goiaba UFF. Representa a
ção humana. Warner/Chappell e a BMG junto à UFRJ.

(153)
Bits & Bytes

Acessibilidade e monopólios
Irapuan Martinez

Quem recorda como Entenda porque democrático que já


se formou o embrião o interesse existiu. Qualquer
da internet, na dé- comercial de um com acesso à
cada de 1960, sabe uma empresa
internet pode ser
que esta se desen- tanto receptor, quanto
de informática
volveu em ambiente transmissor de infor-
militar e científico. pode estar mações. Isto já virou
As principais carac- prejudicando a uma questão social
terísticas desse meio inclusão digital designada “inclusão
de comunicação per- nos países digital” – ações para
duram até hoje: uma pobres. levar o acesso à inter-
rede descentralizada, net a classes sociais
unificada por um mesmo proto- menos favorecidas. Embora
colo. A descentralização atende possa parecer absurdo classifi-
a uma necessidade militar – em car como necessário o acesso a
caso de ataque, não há como computadores quando há tantas
desativar uma central a fim de necessidades imediatas, como
interromper o fluxo de informa- saúde, alimentação, vestuário e
ção. A unificação sob o mesmo segurança, o acesso à informação
protocolo atende a um interesse pode beneficiar os necessitados,
científico: como existem diversas tanto ou quanto o tradicional
plataformas computacionais, assistencialismo.
qualquer uma poderia se conec- Há uma gama muito extensa
tar a qualquer outra, desde que de serviços que pode se dar
conversassem a mesma língua e via internet, como: requisição
tivessem o mesmo protocolo. de serviços sociais, acesso
Talvez sem querer, essa inicia- a bancos de empregos, troca
tiva descentralizada e aberta a de informações entre centros
qualquer plataforma tornou-se comunitários, acesso a ações
o meio de comunicação mais sociais (campanhas de saúde,

(154)
Bits & Bytes

por exemplo), assistência legal, torno de quatrocentos reais do


comunicação com centros preço total por este software. Se
administrativos e políticos, você tivesse optado pelo Linux
denúncia de crimes preservando − de uso livre − seu computador
o anonimato, etc. teria sido mais barato.
Mas quanto custaria o acesso A poderosa Microsoft, empresa
à internet? Isto depende da que fabrica o sistema operacional
plataforma escolhida. É possível Windows, tem acordos com
vislumbrar um futuro em que os fabricantes de computadores para
populares telefones celulares embutir seu sistema operacional
pré-pagos poderão oferecer nos aparelhos produzidos.
acesso a serviços como os já Essa prática já perdura há
mencionados. Entretanto, nos duas décadas e, graças a ela,
dias de hoje, o acesso à internet a Microsoft detém o monopólio
se dá preferencialmente por de sistemas operacionais, que
meio de computadores. desencadeou alguns outros.
Alguns projetos tentam o desafio Como o sistema operacional
de lançar um “computador de fábrica acompanha um
popular” com preço em torno de navegador da web, ou browser,
quinhentos reais, exatamente conhecido como Internet
para favorecer a inclusão Explorer, é justamente com ele
digital. No coração desses que a esmagadora maioria dos
projetos, reside o uso de um internautas acessa a internet.
sistema operacional de uso Estatísticas de um universo
livre, o Linux. Sendo o software bastante amplo revelam que
livre, não é necessário licença 98% dos internautas utilizam o
de uso. Internet Explorer para acessar
Sistema operacional é o programa a web.
essencial que controla as rotinas Como este monopólio prejudica
do computador, como abrir a inclusão digital? Por dois
outros programas, conectar-se mecanismos: a estratégia
à internet e exibir informações. de mercado da Microsoft e
Se você recentemente comprou as análises equivocadas de
algum computador que já veio estatísticas.
com o sistema operacional A linguagem HTML (Hyper Text
Windows instalado, talvez não Markup Language), utilizada
saiba que tenha pago algo em para escrever as home pages

(155)
Bits & Bytes

que compõem a web, é baseada (como as de computadores popu-


em uma especificação que a torna lares) vê-se prejudicado ao tentar
compatível com qualquer plata- acessar a web por não utilizar o
forma computacional. Ocorre navegador que os webdesigners
que a Microsoft projetou seu elegeram como preferencial gra-
navegador de tal forma que ele ças aos recursos estendidos.
pudesse estender as capacidades Então por que as plataformas
da HTML como, por exemplo, to- abertas – como o Linux – não
lerar códigos inconsistentes (es- adotam os mesmos recursos
critos com erros) e efeitos visuais proprietários do Windows?
que beiram a pirotecnia. Porque alguns deles ferem os
O que podia parecer ser bom direitos autorais da Microsoft.
em princípio – inventar novos Plataformas abertas só podem
recursos para web – limitou o utilizar tecnologias livres de
acesso de outras plataformas licenças pagas.
que não os suportam, como o Há ainda o problema de se reco-
Linux, utilizado em programas nhecer a Microsoft como padrão
de inclusão digital. no mercado. O consórcio W3,
Os webdesigners, profissionais que define os padrões para a web,
que desenvolvem páginas para é composto por múltiplas frentes
a web, sabem que o uso de re- e vários profissionais com co-
cursos chamados “proprietários” nhecimentos multidisciplinares,
(isto é, que rodam apenas em favorecendo a possibilidade de a
alguns navegadores específicos) internet ser acessível a qualquer
limita o acesso de outras plata- plataforma computacional. Este
formas. No entanto, ao levantar consórcio respalda a inclusão
as estatísticas de visitação de um digital.
site, constata-se que mais de 90% Alguns anos atrás, antes do com-
usam o Internet Explorer. Desta pleto domínio da Microsoft sobre
forma, passa a ser justificada a a internet, era mais fácil para os
utilização de tais recursos. webdesigners compreenderem a
Ou seja, como se já não bastasse importância de se adotar padrões
o monopólio previamente estabe- abertos. Hoje em dia, com este
lecido, criar sites que só funcio- monopólio estabelecido, a nova
nam na plataforma Windows o geração de profissionais encontra
reforça ainda mais. Quem precisa dificuldade de se libertar do pa-
se valer de plataformas abertas drão Internet Explorer. Isto cria

(156)
Bits & Bytes

uma resistência a modificar o com recursos absurdos como,


método de trabalho ou a defender por exemplo, impedir o acesso
o ideal da acessibilidade. Basta de quem não estiver usando o
observar que os sites que adotam Internet Explorer. Sites bancários
padrões abertos são limitados ou tipicamente utilizam esse artifí-
focados em audiências diminu- cio, sob a alegação que os outros
tas – as que não usam o Internet navegadores não têm os recursos
Explorer como navegador. necessários para a navegação.
Há uma corrente que defende Este fato contrasta com relató-
que o webdesign esteja associado rios de empresas de segurança
ao design gráfico e à publicida- de informação, que consideram
de, priorizando recursos esté- o Internet Explorer pouco seguro.
ticos para cativar a audiência. A divulgação, quase que quinze-
Isto combina muito bem com nal, de “patchies” (programas de
a disponibilidade de recursos correção de segurança) no site
do Internet Explorer, aliados à da Microsoft reforça a falta de
sua imensa quantidade de usuá- segurança deste navegador.
rios. Entretanto, essa estratégia Felizmente, há um movimento
começa a se mostrar ruim por de profissionais, ainda tímido,
valorizar a estética e recursos retomando o uso de padrões
proprietários em detrimento da abertos para que os sites sejam
acessibilidade. acessíveis a qualquer plataforma
Recentemente, fui vítima dessa de computadores. Nos Estados
cultura. Ao requisitar um serviço Unidos, há uma lei conhecida
no site governamental do INSS, como “508 Section” que obriga
o formulário não funcionava no que sites do governo – ou de
meu navegador, que não era o empresas que com ele negociam
Internet Explorer. Felizmente, – sejam acessíveis a pessoas
eu estava usando o Windows e com certos tipos de deficiência
pude acionar o browser “certo” física, como os incapazes de usar
para preencher o formulário. o mouse para apontar e clicar ou
Mas se eu estivesse rodando os deficientes visuais que usam
em Linux, o sistema operacional sintetizadores de voz para aces-
que é uma das bases estratégicas sar a web. Indiretamente, esta
da inclusão digital, ficaria sem lei impõe o uso de recursos que
acesso ao serviço. permitam o acesso independen-
Este monopólio ainda gera sites te da plataforma, mesmo que não

(157)
Bits & Bytes

relacionados a limitações físicas Irapuan Martinez, designer, atua com internet


do usuário. Seria este o caso do desde 1996. Mora em Goiânia, prestando
Linux, usado nos programas de serviços à produtoras em Brasília, São Paulo,
inclusão digital. Rio de Janeiro e Florianópolis.

(158)
Curta Metragem

Horário cultural gratuito


Washington Olivetto

Na política, o coadju- Não gosto da são para se transfor-


vante foi transformado produtização marem no persona-
em protagonista; o dos candidatos a gem que alguém lhes
assistente, em dire- cargos públicos,
disse que “deveriam
tor; o acessório, em parecer aos olhos do
e acho que no
essencial. E assim, consumidor”. Por ser
aos olhos do povo, os mundo inteiro esse repudiável, esse tra-
marqueteiros se torna- formato está tão vestismo precisa ser
ram mais importantes hipervalorizado discutido e mais bem
que os próprios can- quanto entendido.
didatos aos mais altos exagerado. Venho observando
cargos das nações. que, de anos para cá,
Isso não é o eixo de um romance na disputa ombro a ombro pelas
kafkiano, nem um probatio per vagas do rico cenário político,
absurdum, a tentativa de provar juntam-se aos candidatos cada
uma afirmação pela falsidade vez mais assessores, articuladores
óbvia de sua contraditória. O políticos, experts e marqueteiros.
que parece ficção é a realidade Formando batalhões eleitoreiros,
das campanhas eleitorais. E isso armam-se com pesquisas tão frá-
aconteceu novamente de 20 de geis quanto prematuras e partem
agosto a 25 de outubro de 2002, para a conquista do principal ter-
no Brasil, devido a uma boa parte reno político de hoje – o espaço
da imprensa, que, ingenuamente, editorial.
vem creditando aos marqueteiros A voracidade cotidiana e sema-
poderes milagrosos. nal dos jornais, revistas, rádios e
Mais surpreendente talvez seja TVs leva a imprensa a usar todas
apenas a ingenuidade dos can- as pesquisas — quando não as
didatos que passam a acreditar recebe, ela faz as suas — para
que, para serem eleitos, precisam criar manchetes. Publica e divul-
deixar de ser os indivíduos que ga menos que previsões, menos

(159)
Curta Metragem

que premonições, pouco mais pode prejudicar populações in-


que nada. Conta para milhões de teiras. Assessores que ajudam
cidadãos o que poucas centenas jogadores de futebol a vestir
de seujoães e donasmarias mal um terno Armani são uma coisa.
informados e mal perguntados Assessores que ajudam candida-
responderam que fariam se a tos a cargos públicos a travestir
eleição fosse hoje e não daqui a sua personalidade são outra.
dez, nove, oito, sete, seis, cinco, Analisando toda essa bobajada,
quatro, três, dois ou um mês. criei para mim um adorável
Essa balbúrdia agita os sempre sistema de vida que recomendo
tensos operadores financeiros, a todos, caso a aberração do
para depois reverberar nas Horário Eleitoral Gratuito se
mentes dos sempre temerosos repita nas próximas eleições: o
empresários tropicais ou tropi- Horário Cultural Gratuito. Com
calizados. E esses temores, ex- base na idéia de que o tempo
postos nas principais manchetes que se gasta assistindo àquelas
do dia seguinte, aos poucos vão baboseiras pode ser investido em
reformando as idéias de todos. coisas bem melhores, aproveitei
No meio dessa roda-viva da es- cada momento de desrespeito à
peculação transformada em fato, inteligência de todos na mídia
é inevitável que impere cada vez para viver e me informar mais
mais forte a voz dos experts e e melhor.
espertos. Até mesmo para gente Durante o tal Horário Eleitoral
que, como eu, conhece bem essa Gratuito, li Paulo César de
tragédia, não simpatiza com ela, Araújo analisando a importância
jamais fez uma campanha política dos músicos bregas brasileiros e
e tem certeza de que, se viesse a suas dificuldades – inclusive com
fazer, faria mal. a censura do regime militar – no
A minha razão é pessoal: não gos- livro Eu não sou cachorro, não1.
to da produtização dos candidatos Reli, dessa vez em português,
a cargos públicos, e acho que no dois clássicos: Aqui está Nova
mundo inteiro esse formato está York,2 de E. B. White – ‘um texto
tão hipervalorizado quanto exage- daqueles que se gostaria de en-
rado. Se por um lado a marqueti- garrafar e preservar para sempre’
zação pode até beneficiar alguns –, e Hiroshima3, de John Hersey,
candidatos muito honestos, mas certamente a melhor reportagem
pouco carismáticos, por outro de todos os tempos.

(160)
Curta Metragem

Ouvi com atenção e prazer os os limites éticos e estéticos dessa


CDs Eu Não Peço Desculpa, de comunicação sejam restabeleci-
Caetano Veloso e Jorge Mautner, dos. De um jeito mais efetivo para
Longo Caminho, dos Paralamas os candidatos e mais respeitoso
do Sucesso, Na Humildade, de para com os cidadãos. Com o
Nega Gizza, e o dos Tribalistas. acréscimo de vida inteligente, as
Observei as esculturas do artista campanhas políticas podem pas-
plástico venezuelano Jesús Soto; sar a obter melhores resultados
me encantei com a pintura de com menos dinheiro. E o gesto de
Robert Ryman; fiquei de olho invasão da intimidade do eleitor
nos novos pops chineses Sui – propaganda é intromissão
Jianguo, Wang Guangyi e Qiu – pode deixar de ser um ato de
Zhijie; acompanhei os jogos estupro mental para passar a ser
do Real Madrid e seu novo um processo de sedução.
esquadrão, com Ronaldo, Figo,
Raul, Roberto Carlos e Zidane; P.S.: Não fui o único a desprezar
conversei muito com meu filho; o Horário Eleitoral Gratuito nas
freqüentei botequins; pedi para o TVs abertas. Segundo matéria
meu amigo Celso Fonseca gravar do jornal O Estado de S. Paulo
uma versão bossa-nova do Hino de 20 de outubro de 2002, a TV
do Corinthians e namorei muito paga brasileira teve pela primeira
a minha mulher. vez seu crescimento de audiência
Resumindo: aproveitei a vida e aferido em temporada eleitoral
aperfeiçoei a minha relação com – e esse crescimento foi bastante
o futuro ou com o Next, se assim significativo.
vocês preferirem.
Sei que parece uma atitude ra- Nota do autor: Este artigo foi
dical, um jeito de pensar meio escrito especialmente para a pri-
Vladimir Maiakovski – que pre- meira edição de NEXT BRASIL
feria morrer de vodca a morrer de – Instrumentos para a Inovação,
tédio –, mas na verdade, e apenas em outubro de 2002. O lança-
esclarecendo para aqueles que mento da publicação foi adiado,
ainda acreditam em saci-pererê, mas, devido à sua pertinência, de-
bicho-papão e mula-sem-cabeça, cidi manter o texto original. Aliás
eu não estou dizendo aqui que os – curiosamente –, um ano depois
candidatos não devam se comuni- de ter sido escrito, este continua
car. Estou apenas sugerindo que absolutamente atual.

(161)
Curta Metragem

1
Editora Record, 2002. Washington Olivetto é publicitário. Recebeu 54
2
Editora José Olympio, 2002. Leões no Festival Internacional de Publicidade
3
Editora Companhia das Letras, 2002.
de Cannes. Fundador e presidente da W/Brasil.

(162)
Monografia

Cara Brasileira
A brasilidade nos negócios. Um caminho para o made in Brazil
Stefano Palumbo

INTRODUÇÃO Qualidades da Brazil fundamenta-


cultura brasileira do na cultura vem ao
Premissas que podem encontro de um dos
A pesquisa apresen- agregar valor
mecanismos econô-
tada neste capítulo se micos hoje emergen-
à produção
inseriu em um proje- tes: a valorização das
to – promovido pelo das pequenas identidades locais
Serviço Brasileiro empresas. como resposta às
de Apoio às Micro e Sugeridas por tendências globali-
Pequenas Empresas 25 prestigiosos zantes. Revitalizar
(Sebrae) e realizado especialistas e inovar o patrimônio
pelo S3.Studium –, cultural, além de um
cujo objetivo central foi a cria- investimento social profícuo,
ção de uma imagem nacional consiste em uma operação
para os produtos e serviços econômica de grande eficácia.
brasileiros, uma imagem do Em um mercado que atingiu
made in Brazil que favoreça, níveis de super-produção e
sobretudo, maior capacidade de hiper-concorrência em grande
exportação por parte das inúme- parte dos setores produtores de
ras micro e pequenas empresas bens e serviços que satisfazem
(MPEs) existentes no País. necessidades básicas (nutrição,
A hipótese de fundo, que carac- proteção, mobilidade, cuidados
terizava o projeto, era a de que com a saúde, etc.), produtos e
a melhor forma para se criar serviços de elevado conteúdo
esta imagem seria a valoriza- cultural representam uma
ção do amplo e diversificado fronteira ainda amplamente
patrimônio cultural brasileiro. inexplorada. E é em tal direção
Esta orientação é importante que as pessoas, cada vez mais,
sob dois pontos de vista. De um vão procurar satisfazer os de-
lado, um marketing do made in sejos de enriquecimento da

(163)
Monografia

consciência e de crescimento 1. PATRIMÔNIO


pessoal, como conseqüência da NATURAL E CULTURAL:
crescente disponibilidade para AS POSSIBILIDADES DE
o lazer. VALORIZAÇÃO
Por outro lado, a promoção
de atividades econômicas
fundamentadas no patrimô- Aspectos gerais da cultura
nio cultural do país fornece brasileira
às MPEs um instrumento de
crescimento muito acessível.
Homens e mulheres que tiram Identidade cultural
seu sustento (como empresários As dimensões continentais, a
ou empregados) das milhões de mistura de raças, a existência
MPEs estão, de fato, imersos de culturas diversas, a coexis-
neste patrimônio e contribuem, tência de populações indígenas
em grande medida, para a ainda em estado primitivo e de
conservação e difusão deste pessoas com acesso a padrões de
conceito. Hoje, no entanto, não modernidade e desenvolvimento
conseguem, na maior parte dos comparáveis àqueles das socie-
casos, tirar desse patrimônio os dades mais avançadas criam no
instrumentos para a melhoria da Brasil fortes contrastes que não
própria condição. encontram paralelo no mundo.
O projeto Cara Brasileira repre- A cultura brasileira é aberta à
sentou o primeiro passo a favor incorporação de diversas ma-
do desenvolvimento do “valor nifestações culturais, sem se
cultural agregado” no trabalho sentir ameaçada. Isso minimiza
das MPEs brasileiras. A análise a necessidade de afirmação de
e as sugestões destacadas pela expressões culturais excluden-
pesquisa 1 são o resultado da tes e, por conseguinte, reduz as
consulta, em três etapas, de 25 áreas de atrito. A convivência
especialistas, escolhidos entre multicultural e multirracial é,
os mais prestigiosos do Brasil2. pois, um traço cultural próprio
O texto aqui apresentado é uma dessa cultura: a miscigenação
síntese da pesquisa original, – que em outros contextos seria
que foi discutida no fórum rea- destrutiva –, no caso do Brasil,
lizado em Brasília, nos dias 13 provou ser benéfica.
e 14 de março de 2002. Além disso, no futuro, a grande

(164)
Monografia

especificidade do Brasil consis- nos Estados Unidos, por exemplo


tirá, na verdade, em sua própria – uma acepção absolutamente
“inespecificidade” – em função negativa.
de sua evidente diversidade cul- Tal característica assume, na
tural. As condições geográficas, atual contingência histórica, um
climáticas e históricas conti- valor ainda maior do que teve no
nuarão a criar elementos que passado. Nas áreas mais moder-
caracterizam o “espírito brasilei- nizadas do mundo, de fato, será
ro”, configurado em forte marca cada vez mais sentida a necessi-
cultural. dade de solidariedade pessoal, ao
passo que o individualismo pre-
Solidariedade e índole valente levará as pessoas a uma
relacional grande solidão e a uma forma de
O Brasil é uma sociedade mobi- fragilidade individual.
lizada e mapeada por um sistema O povo brasileiro acolhe bem o
cultural no qual as relações so- estrangeiro, seja ele visitante ou
ciais são muito importantes. Um imigrante. As tradições de cordia-
tema central da cultura brasileira lidade e relacionamento se enraí-
é, na verdade, representado pela zam e os brasileiros continuarão,
ética e pela índole relacional, na no futuro, a se caracterizarem
medida em que as relações en- como pessoas capazes de agregar
globam os próprios indivíduos, a seus relacionamentos “grande
sobrepondo-se a estes em graus dose de calor humano”.
de importância. As ações são valorizadas em
Tudo aquilo que conduz ao en- função dos relacionamentos e a
contro e ao relacionamento nos amizade traz consigo verdadeiros
leva, por extensão, à brasilidade. axiomas comportamentais: “mu-
Essa qualidade pode estar em- lher de amigo meu, para mim,
butida nas diversas manifesta- é homem”; “a tudo se resiste,
ções da cultura: nos alimentos, menos ao pedido de um amigo”;
na música, na fraternidade dos “aos amigos tudo, aos inimigos
relacionamentos pessoais. a lei”.
A conseqüência desse fato se Como conseqüência natural do
traduz em um repúdio das pes- que se disse até aqui, o brasi-
soas ao individualismo. Esse leiro odeia ficar sozinho. Exílio e
elemento configura no Brasil – à isolamento são formas de punição
diferença daquilo que representa e castigo, condições que se evi-

(165)
Monografia

tam a todo custo, em face de sua formam a população brasileira e,


intrínseca periculosidade e do por conseguinte, a se refletir na
enorme sofrimento que causam. produção artesanal do país.
Com mesma importância, essa Até mesmo o modo de se relacio-
característica se dá na esfera nar com os sistemas religiosos e
de relacionamentos ligados à com a fé constitui uma caracterís-
vida das empresas. Por força da tica muito peculiar do Brasil, que
tradição, todas as formas de trata- se manifesta, sobretudo, por meio
mento acabam se transformando da tolerância – uma das grandes
em contato pessoal: é necessário virtudes desse país, da cordiali-
ser “amigo” daquele com quem dade e da curiosidade.
se faz negócios, ainda que isso, A religiosidade – múltipla e
isoladamente, não constitua ga- integrada – representa forte
rantia de cumprimento da palavra característica nacional. Nesse
empenhada ou do contrato. país, quase todos são católicos,
Assim, muitas decisões são mas, ao mesmo tempo, freqüen-
tomadas coletivamente, ou sob tam os terreiros de candomblé
forte influência de família ou e de espiritismo, além de outros
amigos: em quem votar, o que cultos de gêneros diversos.
vestir, que tipo de penteado usar,
onde jantar, o que beber. Adaptabilidade e abertura
ao novo
Sincretismo e religiosidade Devido à colonização e em função
Entre os elementos que mais da elite política que considera
realçam as diferenças entre o possível modernizar o Brasil de
Brasil e os demais países quanto cima para baixo, a nação possui
à questão dos relacionamentos, uma enorme experiência em
estão os aspectos que refletem o virtudes como a paciência, a in-
sincretismo da cultura. ventividade e a capacidade de se
As características da brasilidade, mover entre os diversos códigos
que nascem do sincretismo, re- de comportamento.
metem à idéia unitária de Brasil, Na esfera civil, tanto os produ-
que projeta nos objetos as ima- tores quanto os cidadãos comuns
gens do português, do índio e do são habituados a reinterpretar a
negro. Essa qualidade sincrética legislação, adequando-se a regras
continuará a caracterizar a amál- e normas – que o governo inventa
gama de influências diversas que e impõe à sociedade – e tradu-

(166)
Monografia

zindo códigos e linguagem. Essa gia mais moderna”, as tradições


forte capacidade de adaptação culturais continuarão a dar uma
está estritamente ligada a uma contribuição maior ao conceito de
outra importante característica brasilidade do que outras trans-
de brasilidade: a de conviver com formações e inovações recentes.
a tênue linha que separa o sacro Tomemos como exemplo o can-
do profano, o formal do informal, domblé mostrado aos turistas na
o público do privado, a emoção Bahia - não passa de encenação,
da regra. O “jeitinho brasileiro” mas mantém todos os aspectos
é propriamente o meio que se ritualísticos de suas raízes his-
encontra para harmonizar con- tóricas. Quando essas realidades
trastes, superando as regras de mantêm a tradição, detêm a força
modo a não caracterizar culpa. que sempre possuíram.
A facilidade de se passar de um De maneira geral, os brasileiros
campo a outro, de uma qualidade pensam que ao adotar atitudes
a outra, também tem conseqüên- e acolher instituições moder-
cias práticas em muitos âmbitos nas (por exemplo, os partidos
específicos. Aqui, há de se su- políticos, os jornais e a TV, a
blinhar, sobretudo, o fato de que universidade, etc.) estarão se
o brasileiro coloca-se aberto ao modernizando. Esquecem-se,
novo e à mudança e, mesmo em contudo, que há modos de agir
seus piores momentos, enfrenta a bem definidos em muitos âmbitos
realidade de forma positiva. específicos:
- Dar ordens e obedecer, refletido
A brasilidade entre a na política;
tradição e a inovação - dar notícias, refletido nos
jornais; e
Tradição versus inovação? - inventar histórias, como na TV.
A tradição cultural é certamente Nesse sentido, a tradição é um
um dos principais pontos fortes recurso, uma oportunidade, mas
do Brasil. Somente uma falsa também um obstáculo. Existe,
brasilidade se afastará totalmen- na cultura brasileira, um apego
te das tradições culturais. No ao antigo, ao velho, a tudo que
que diz respeito à identificação é “legal”, como denuncia a
da parte mais positiva do país própria expressão popular. Tal
com os mais “cultos e educados” apego torna difícil transformar
ou com quem possua a “tecnolo- e modificar, porque permanece

(167)
Monografia

não-expresso. vidade à tradição sem ponderar


As “boas” tradições, assim como as implicações. Isso faz do país
as inovações, agregam valor à um sistema complexo e proble-
imagem externa do Brasil, a des- mático, mas, ao mesmo tempo,
peito do peso que as tradições muito rico.
“ruins” - como o patrimonialismo O Brasil deve valorizar, ao mesmo
e a ingerência privada; o clien- tempo:
telismo e a corrupção político- – O fato de ser um país jovem,
judiciária; o provincianismo; e comparativamente a outros
preconceitos, mais de classe países de forte tradição cultural,
que de raça - e o desprezo pelo como a China, o Japão e a
passado continuarão a ter. Índia;
– seu passado significativo (que
Tradição com inovação tem até a figura do Imperador),
As rápidas transformações, por diferentemente de outros países
outro lado, fazem e vão fazer sem- jovens.
pre parte do “estilo” brasileiro. Entre os recursos – tradições e
Como o país é jovem, demonstra inovações – deve se valorizar,
mais amor à inovação que às portanto, a imagem externa do
tradições, adora a novidade e as- Brasil, no momento em que ele
simila rapidamente as novas tec- venha a perceber-se de modo
nologias – como a internet, que se positivo, identificando o valor
difundiu aqui mais rapidamente daquilo que é característica de
do que na Europa. Além disso, seu povo.
as inovações recentes e já bas-
tante difundidas, relacionadas ao A música como caso
mundo da informação, deixaram exemplar
de representar necessariamente A melhor síntese entre tradição e
uma contaminação e, portanto, modernidade é representada pela
não constituem elementos de música popular, que se estabele-
modificação negativa do com- ce como exemplo também para
portamento. os demais setores. De um lado,
A “tradição” brasileira pode, apóia-se sobre raízes culturais,
com efeito, ser definida pela ca- de outro, é moderna, pois já rea-
pacidade ilimitada de se adaptar, lizou a brilhante combinação de
aceitar, reciclar e se adequar ao rock com elementos da cultura
novo. Os brasileiros unem a no- nordestina, música baiana e pop,

(168)
Monografia

bossa nova e jazz. Qualidades e limites da


No âmbito musical, o Brasil reúne cultura brasileira
dois pontos fortes:
– Número significativo de bons Pontos fortes e deficiências
artistas; Na seqüência dos acontecimentos
– padrão nacional de qualidade, de 11 de setembro de 2001, nos
que se impõe de norte a sul. Estados Unidos, o fato de o Brasil
Sob essa ótica, o trio elétrico se caracterizar pela presença de
representa uma das mais perfei- diversas raças e culturas em con-
tas integrações entre tradição e vivência pacífica transformou-se
inovação. num fator de oportunidade e pro-
moção extremamente positivo. Os
O risco da dependência brasileiros, na verdade, demons-
cultural tram, de maneira geral, possuir
Para a cultura brasileira, existe alto grau de sensibilidade social
o risco de que a escolha de um e política – são sensíveis aos
caminho próprio entre tradição confrontos dos outros e à própria
e inovação se dê sob a égide da vontade.
influência cultural externa. Alguns concorrentes do Oriente
Há, por exemplo, no mercado, Médio e do Sudeste Asiático,
uma demanda implícita em rela- sobretudo os países situados
ção a um certo regionalismo da próximos a zonas de conflito,
moda. Tal elemento folclórico é sofreram duros golpes, abrindo,
muito perigoso. Cair nas vestes com isso, de certa forma, novas
típicas ou regionais seria ape- oportunidades ao povo brasilei-
nas uma máscara, uma vez que ro, que por sua vez, demonstra
ninguém no Brasil se veste com uma surpreendente capacidade
trajes típicos, a exemplo das mu- de adaptação e sobrevivência
lheres da Bahia, que não saem às dentro de um ambiente caótico,
ruas vestidas de “baianas”. preservando de modo particular
Os brasileiros devem, assim, o organismo social.
aprender a enxergar aquilo que Entre as características positivas,
possuem e a estimar as próprias os brasileiros, em geral, são aber-
possibilidades por meio da cons- tos a novidades, além de dóceis
ciência do próprio mercado, em e trabalhadores. Como caracte-
vez de se preocupar em adivinhar rísticas negativas, apresentam
o que o mundo espera deles. a dispersão, a impontualidade

(169)
Monografia

e a falta de cultura geral. Além aflige o Brasil relaciona-se à sua


disso, esse povo não se dá conta elite, que é ignorante (não lê nem
do quanto invade, abusivamente, estuda nada, ou quase nada),
a privacidade alheia. arrogante (evita ouvir e buscar
Um outro aspecto negativo está conselho ou orientação de ter-
caracterizado pela diversidade ceiros) e convicta de que a mera
de comportamentos na esfera pú- posse de um nome, prestígio ou
blica, comparativamente à esfera dinheiro lhe tornará lícito o que
privada: tende-se, na verdade, a quer que seja.
abusar dos relacionamentos pes-
soais e de amizades na tentativa Pontos fortes
de perpetuar: Em síntese, atualmente, os prin-
- Desigualdades; cipais pontos fortes do Brasil, em
- falta de direito ou de obediência ordem decrescente de importân-
à lei; cia, são os seguintes:
- a dilapidação do patrimônio das 1) Pluralismo racial e cultural;
empresas, sobretudo as públicas 2) elementos culturais provenientes
ou estatais. de tradições e experiências de
Os brasileiros, em geral, pos- vida autenticamente populares;
suem pouca capacidade de visão 3) alegria e o otimismo;
de mundo, de valorização e pro- 4) características pluralistas e
moção de si mesmos e, em maior sincréticas da cultura;
grau, uma capacidade intuitiva 5) ênfase nos relacionamentos
e sentimental à qual se alia um pessoais;
espírito hábil que lhes permite 6) hospitalidade e a
descobrir maneiras de otimizar cordialidade;
condições muitas vezes precá- 7) criatividade.
rias. Uma grande característica
brasileira consiste na criativida- Pontos fracos
de espontânea, quase irreverente, Os principais pontos fracos do
observada em todo o país. Uma Brasil são, em ordem decrescente
criatividade que depende mais de importância:
da grande diversidade dos modos 1) Falta de auto-estima e
de ser individuais do que das valorização apenas do que vem
diferenças entre grupos sociais e de fora, resultante da pobreza
comunitários em âmbito local. cultural;
Um problema muito grave que 2) falta de confiança nas

(170)
Monografia

autoridades e no governo, fator pertencem às pessoas, portanto


que se reflete em desconfiança a socialização mais verdadeira
geral para com as empresas ocorre justamente aí. Entre as
públicas; segundas deve-se, ao contrário,
3) um certo desprezo pela técnica e destacar os novos ricos das cida-
a ignorância como “profissão de des, que escolhem vestir-se com
fé” (“se consegui ganhar dinheiro imagens falsas, como os partici-
sem ler um livro, então...”); pantes das festas de Barretos, em
4) a idéia de malandragem como São Paulo, trajados de cowboys ou
necessidade de tirar partido latifundiários.
de tudo, sobretudo dos mais Contudo, os brasileiros são
humildes; pessoas capazes de enfrentar a
5) escassa divulgação do trabalho realidade e recriar seus espaços
cultural brasileiro em todos os de vida segundo suas próprias
setores; necessidades. Apenas a classe
6) personalismo arrogante, posto média perdeu a capacidade de
acima da lei; recriar seus espaços de vida,
7) convicção de que todo mundo contentando-se com um bem-
engana só para ganhar mais estar imitativo. Diante de tal
dinheiro; situação, a fim de se manter
8) desonestidade em nome da uma vitalidade contagiosa, são
família e dos amigos; indispensáveis certa “cintilân-
9) falta de compromisso em relação cia” e a elaboração de algo que
aos acordos firmados. rompa com o que é “correto”,
sem chegar a ser anárquico.
Como se exprime, hoje, a Entre as classes sociais existem
criatividade brasileira? barreiras que impedem o desen-
volvimento de uma criativida-
A criatividade cultural de espontânea e irreverente.
O Brasil vive de um conjunto Assim, em âmbito social, a
de imagens. Algumas delas são criatividade se exprime com
verdadeiras, ao passo que outras menor força nas ações oficiais
são falsas. Entre as primeiras, en- destinadas a promover o senti-
contram-se aquelas produzidas na mento de grupo por parte dos
periferia, mesmo que inadequa- cidadãos.
das e violentas, como as pessoas O Brasil é campeão de criativi-
se encontrando nas ruas - a ruas dade em festas. Aqui realiza-se

(171)
Monografia

as maiores e melhores festas de e da pesquisa científica e tec-


massa de todo o mundo. Pode- nológica comparativamente a
se dizer que no âmbito interno, países mais desenvolvidos.
com esse know-how, único em Nos próximos anos, a criativida-
seu gênero, é possível iden- de brasileira se mostrará insu-
tificar outras características ficiente em áreas das ciências
culturais e sociais muito im- humanas e tecnológicas, não
portantes, mas esse aspecto é obstante o fato de que veremos
o mais notável. aumentos nos incentivos espe-
Até mesmo as artes plásticas cíficos nessas esferas, uma vez
contemporâneas brasileiras ofe- que chegará o entendimento de
recem pelo menos dois pontos que as disciplinas aqui referidas
fortes a quem queira desfrutar: poderão surgir como símbolo de
a qualidade dos artistas e a brasilidade a longo prazo.
criatividade da arquitetura. Um exemplo digno de nota
Os artistas plásticos contem- relativa à criatividade econô-
porâneos deverão evitar a pre- mica brasileira é aquele que se
valência de aspectos típicos. poderia definir como “indústria
Todavia, alguns continuarão a da alegria”, setor econômico
usar a fruta tropical como tema que realiza suas atividades sem
decorativo, que se prestará necessidade de auxílio ou inter-
muito bem, por exemplo, para ferência oficiais – quanto menos
a decoração de biquínis. interferirem os burocratas, tanto
No âmbito sociocultural, o melhor. Verifica-se, assim, o
Brasil se exprime com maior quanto o povo é criativo, muito
criatividade: na música (sobre- mais criativo, eficiente e inova-
tudo na música popular), nas dor do que a elite. A maior parte
artes populares, na publicidade dessa elite, com efeito, continua
e na propaganda, na arquitetu- a preservar seus privilégios, con-
ra, na dança, e em alguns ramos tatos pessoais, seu patrimônio,
da medicina e da ciência. e a transferir dinheiro público
para a iniciativa privada.
A criatividade econômica e No âmbito econômico e tecno-
tecnológica lógico, o Brasil se exprime com
O Brasil continuará a apresen- maior criatividade: nas comuni-
tar índices de desenvolvimento cações, nos recursos naturais, no
baixos no campo da medicina artesanato e no esporte.

(172)
Monografia

2. UMA CARA função, acrescentando um toque


BRASILEIRA PARA OS a mais de satisfação e de prazer
PEQUENOS NEGÓCIOS inesperados.
Em resumo, os produtos bra-
As qualidades dos produtos sileiros deverão surpreender o
e dos serviços consumidor pela sua generosi-
dade, pois oferecerão algo mais
Os produtos: energia, do que se esperava em termos de
surpresa, confiabilidade quantidade e qualidade.
Na concepção dos produtos, deve- Mas haverá outra característica
se considerar que no mercado dos essencial na qual pode-se apos-
bens de consumo a “economia da tar, sempre dentro deste ponto de
experiência” avançará cada vez vista, valorizando uma qualidade
mais nos próximos anos. De fato, brasileira: a confiabilidade, que
o consumidor, se atendidas suas garante a procedência dos pro-
necessidades fundamentais, vai dutos naturais, de origem animal
procurar produtos que atendam ou agrícola.
outras dimensões, que não as ób- A rastreabilidade, o fato de saber
vias. As pessoas estarão dispostas de onde provém um determinado
a pagar mais por um produto ou produto, será um dos imperativos
serviço que apresente alguma da concorrência internacional.
densidade cultural. Será de fundamental importân-
A energia será uma das qualida- cia fazer com que os produtos
des mais importantes no projeto das MPEs possuam estas ca-
de produtos, pois poderá trazer racterísticas, o que representará
consigo muitas outras qualidades um capital imaterial precioso,
positivas da imagem brasileira. justamente porque vai explorar
Este conceito, então, deverá ser o “valor cultural agregado” que
associado tanto à forma quanto o Brasil pode oferecer. De fato,
à função dos produtos, tendo o patrimônio intangível do lugar
implícitas luminosidade, saúde, será incorporado à sua rastreabi-
natureza e força. lidade.
A valorização dos produtos pode-
rá concretizar-se tanto do ponto Características dos serviços
de vista da forma, explorando, Na elaboração da oferta das
sobretudo, as cores e as propor- MPEs, deverão ser consideradas
ções amplas e sensuais, quanto à aquelas qualidades que, estando

(173)
Monografia

relacionadas às características zendo alguma coisa a mais do que


da cultura brasileira, serão mais simplesmente comprar ou vender
adequadas para uma valorização um produto, tornando-se parte de
comercial. No campo dos servi- uma família e da sociedade bra-
ços, por exemplo, poderão ser sileira, do seu modo de ser, de
focalizadas as características conviver e de se relacionar. Este
associadas aos conceitos de ale- conceito deverá permear toda a
gria, generosidade, amabilidade, ação de comunicação.
energia. A oferta de serviços deverá fun-
A criatividade brasileira estimu- damentar-se em duas caracterís-
lará, em muitos casos, inovação ticas bastante diferentes, mas
nos serviços, que poderá ser complementares: um envolvimen-
independente do uso da tecno- to pessoal e espontâneo, mas, ao
logia, concentrando-se mais na mesmo tempo, profissional.
forma de planejar um produto A exposição das MPEs ao merca-
ou serviço, abordar o cliente e do exterior significará um esforço
realizar a venda. por parte dos empresários e dos
Por si só, esta criatividade dirigentes para entender que as
poderá constituir um fator de exigências impostas pelos consu-
diferenciação entre as empresas midores vão além da qualidade
brasileiras. inerente aos produtos e serviços
A capacidade de prestar ser- oferecidos, atingindo também
viços será importante também a qualidade das relações de
nas relações de negócios. Será, trabalho estabelecidas pelas
de fato, mais fácil ter confiança empresas. De fato, uma melhora
em uma empresa brasileira que nestas relações irá se refletir no
trata as pessoas como “amigos” modo de receber e na percepção
e estabelece relações humanas do produto oferecido.
mais próximas.
Um dos pontos fortes das MPEs As mudanças dno
é o fato de que estas serão cer- funcionamento
tamente capazes de fazer com organizacional
que o fornecedor interaja com o
consumidor, de modo que este se Aspectos estruturais:
sinta bem recebido. a gestão moderna e a
O principal fator será fazer com flexibilidade
que o cliente perceba que está fa- Atualmente, há um conflito na

(174)
Monografia

pequena empresa entre a ne- Nesse caso, a mudança do modelo


cessidade de sobrevivência ime- organizacional será muito mais
diata e o aprimoramento futuro. fácil para as novas empresas, que
A micro empresa que consegue poderão aplicar um modelo de
crescer, normalmente, é aquela flexibilidade desde o seu
que já fornece algum produto ou nascimento. Entretanto, será
serviço para uma grande empre- necessário qualificar as MPEs
sa tendo, assim uma garantia de com métodos e técnicas modernas
faturamento. A luta pela sobrevi- de gestão das organizações, para
vência, então, já não é o objetivo melhorar a capacidade de
principal. Pode-se concluir que a gerenciamento e modernizar a
maneira mais eficaz de moderni- visão e o planejamento
zar a pequena empresa é fazendo estratégicos. Estas mudanças
com que a grande empresa exija acontecem independentes da
qualidade de seus fornecedores, valorização das especificidades
fato que deve ser aproveitado da cultura social brasileira, mas
para aumentar a qualidade das podem servir de base para os
MPEs. gestores perceberem os valores
Para valorizar a brasilidade na culturais e direcioná-los à
interação com os clientes, as melhora de seus negócios e
empresas deverão aprender que relações de trabalho.
eles precisam de confiança no
produto, tendo direito a trocá-lo. Cultura organizacional e
O produto, por sua vez, deve ser gestão das pessoas
resistente, ter boa manufatura e A organização das MPEs apro-
marca. veitará os aspectos positivos das
A flexibilidade é um dos pontos comunidades de artesãos, valori-
fortes das MPEs. Por outro lado, zando a transmissão do conheci-
suas principais dificuldades são a mento através das gerações e o
capacidade de manter qualidade aprendizado do “fazer”. Assim, os
e compromisso com o cliente, do grupos sociais que poderão fun-
ponto de vista logístico. cionar positivamente nas MPEs
Para que estas possam colocar são aqueles capazes de absorver
no mercado algo interessante, e se apropriar das interferências
estas dimensões deverão unir-se introduzidas na produção. Só a
à beleza, à magia e ao apelo da combinação desses elementos
dimensão humana. permitirá o incremento na co-

(175)
Monografia

mercialização de produtos. a criatividade e o empreende-


Também a necessidade do dorismo;
associativismo exigirá que - mas serão também importan-
aprendam novas capacidades, tes as capacidades ligadas às
como a transmissão de valores relações pessoais, como infor-
e o trabalho objetivo, em busca malidade, envolvimento pessoal,
de resultados, em vez de usar a capacidade de interagir com os
energia para saber o que o outro outros, hospitalidade, amabilida-
está pensando. de e simpatia;
Uma influência positiva da - e, por fim, valorizar a capa-
brasilidade sobre a vida da cidade de infundir emoção nas
organização é a consideração atividades – humor, alegria,
pessoal: o personalismo que faz calor humano.
com que um patrão ou um supe- Será muito útil saber que o
rior hierárquico veja seu cliente, brasileiro se comporta de modo
subordinado ou empregado como diferente dentro de uma empre-
um ser humano. sa. Uma vez que é mais alegre
Para se compreender a necessi- e lúdico, ele pode se tornar
dade de mudança, cabe refletir menos tenso. Estes valores, bem
sobre as características das pes- explorados, poderão aumentar a
soas, que podem influir positiva- competitividade das empresas
mente no funcionamento das em- brasileiras.
presas, pois essas são as mesmas Hoje, porém, uma empresa bra-
em todos os povos: preparo, com- sileira não é o melhor lugar para
petência, honestidade, harmonia, se trabalhar. Confiança e lealdade
tolerância, inovação, simpatia e entre patrões e empregados são
objetividade. Em qualquer país, elementos de força para as MPEs,
o oposto do indicado acima vai um fator dinâmico de moderniza-
influir negativamente. ção. No entanto, isto acontecerá
De qualquer maneira, é possível somente se os patrões tiverem
ressaltar algumas características consideração para com os empre-
das pessoas e dos grupos sociais gados. Em empresas que adotam
do Brasil que podem influenciar o modelo americano, gerenciado
positivamente o funcionamento pela impessoalidade, os valores
das empresas: brasileiros seriam um obstáculo.
- a um primeiro grupo perten- As empresas brasileiras podem
cerão o otimismo, a disposição, melhorar se implantarem progra-

(176)
Monografia

mas de qualidade. Entretanto, micro e pequenas empresas, so-


isso seria difícil, pois o proprie- bretudo nos setores de turismo,
tário tende a querer ser o gestor música, e esporte.
absoluto do processo. Outra alter- A fragilidade diante das grandes
nativa é a instituição de prêmios empresas, somada ao não-reco-
pela inovação. Para que isso nhecimento, por parte do país, de
aconteça, será preciso aprender seu importante papel na economia
maneiras de mensurar a contri- e a conseqüente falta de um apoio
buição de cada inovação para os eficiente são os piores problemas
resultados finais das empresas. enfrentados pelas MPEs.
Além disso, o Brasil continuará
Obstáculos à valorização e a manter alta carga tributária e
pontos fracos das MPEs grande número de impostos. E,
como subproduto das taxas, de-
Os obstáculos externos: verá, nos próximos anos, suportar
política e estrutura muita corrupção. Neste contexto,
econômica a maior parte dos empresários
Uma primeira explicação para as brasileiros continuará a dar va-
dificuldades enfrentadas pelas lor à improvisação e à economia
MPEs encontra-se na estrutura informal.
socioeconômica do país. O Brasil O excesso de burocracia tende a
fará tentativas isoladas mas com continuar alimentando no Brasil
uma distribuição de renda que a cultura da cópia, em detrimento
apresenta, seria impossível for- da cultura da inovação e da cria-
mar, em pouco tempo, uma ver- tividade. Ter uma idéia nova e
dadeira e própria massa crítica. transformá-la em um produto ou
A fragilidade do mercado inter- serviço ainda será um empreendi-
no, do ponto de vista econômico mento hercúleo para um pequeno
e social, não impede a constru- empreendedor.
ção de uma “cara brasileira” Em síntese, os principais obs-
reconhecida dentro e fora do táculos que poderão impedir ou
país. Mas, frente à quantidade dificultar a valorização econômi-
dos recursos envolvidos na ex- ca das especificidades brasileiras
ploração das especificidades da por parte das MPEs seriam:
cultura brasileira, os grandes 1) Impostos exorbitantes;
grupos empresariais continuarão 2) desperdício de dinheiro
a ser favorecidos em relação às público em grandes e inúteis

(177)
Monografia

obras, em causas perdidas, em inferioridade nas pequenas


voluntarismos improdutivos; comunidades locais (e isto será
3) desconhecimento e falta negativo para a valorização
de vivência da realidade de comercial das especificidades
preços praticados no mercado culturais);
internacional para produtos - relacionando-se ainda à idéia
similares, fazendo com que anterior, deve ser considerado
se supervalorize o preço das que, freqüentemente, ao se
mercadorias, inviabilizando a comparar os produtos semelhantes
sua colocação; estrangeiros com os nacionais,
4) o fato de o país não reconhecer o estes são desacreditados pela
papel das MPEs na economia; própria população brasileira;
5) a fragilidade gerencial; - enfim, a espontaneidade popular,
6) ausência de um modelo de se desenvolvida respeitando
desenvolvimento sustentado suas características naturais,
para as populações interioranas terá como tendência se opor à
e silvícolas; cultura cultivada.
7) as infindáveis exigências Um dos principais obstáculos à
burocráticas das agências valorização das especificidades
reguladoras. brasileiras é justamente a falta
de educação e informação por
Os obstáculos externos: parte da população. Em relação
ignorância e vícios culturais à possibilidade de desenvolvi-
A promoção da atividade das mento das MPEs, o quadro fica
MPEs espalhadas por todo o ter- agravado, por exemplo, pela falta
ritório nacional, freqüentemente de designers para apoiar os pe-
introduzidas em comunidades quenos empresários na conquista
muito pequenas e afastadas dos do mercado e na criação de um
centros dotados de cultura design brasileiro.
internacional, virá a acarretar Um elemento de fragilidade
dificuldades e obstáculos que, brasileira que poderá também
sendo de caráter social, deverão interferir negativamente no
ser considerados: funcionamento das empresas
- Antes de mais nada, o contato menores pode ser encontrado na
com a chamada cultura prolixidade que, freqüentemente,
desenvolvida, muitas vezes, caracteriza os brasileiros e preju-
incrementa o sentimento de dica sua possibilidade de oferecer

(178)
Monografia

informações objetivas. brasileiras por parte das MPEs


O clientelismo permanecerá como são:
grande fator negativo presente na 1) A cultura da cópia em
cultura brasileira, em relação às detrimento da cultura da
empresas, pois favorecerá a falta inovação e da criatividade;
de reconhecimento do mérito. A 2) falta de compreensão das
este, alia-se o descuido adminis- especificidades;
trativo com o dinheiro público, 3) medo da inovação;
que representa uma das piores 4) desconhecimento de outras
características dos brasileiros. A línguas, principalmente inglês
maior parte da população ainda e espanhol;
acredita na existência do “dinhei- 5) tragédias de violência urbana,
ro do Governo”, que não perten- chacinas e matanças;
ce aos contribuintes, como se o 6) os exemplos de roubos, de
Governo fabricasse dinheiro. ambição, de voracidade;
Será também necessário cons- 7) a crença de que elogiar é aderir,
cientizar os brasileiros, sobre- vender-se, entregar-se.
tudo empresários e intelectuais,
de que: Os obstáculos internos às
- criticar acarretará a obrigação MPEs
de indicar também soluções; Deve-se considerar que as MPEs
- elogiar não significará aderir, encontrarão dificuldade em usu-
vender-se ou entregar-se; fruir das vantagens produzidas
- a crítica não será equivalente a pela valorização da imagem da
uma auto-flagelação ou a um cultura brasileira direcionada para
suicídio cultural. o mercado exterior, por numerosas
O funcionamento das empresas razões:
poderá também ser influenciado - A falta de uma adequada visão
por inúmeros “vícios” que afligem do mercado externo;
pessoas e grupos sociais tais como - a competição com o mercado
o amadorismo e a indisciplina, a interno, que desvia a atenção do
informalidade, a falta de pontua- investidor no exterior;
lidade e de controle no horário, o - a falta de perseverança na
individualismo. atividade, que leva a mudanças
Em síntese, os principais obstá- contínuas dos objetivos;
culos socioculturais à valorização - a praxe, por parte dos empresários,
econômica das especificidades de apropriar-se dos lucros da

(179)
Monografia

empresa, transferindo-os no - prestar contas;


âmbito privado, sem reinvestir - avaliar e ser avaliado
suficientemente em atividades individualmente;
e, sobretudo, sem qualificar e - aceitar o contraditório
remunerar seus funcionários. e estabelecer um debate
Além disso, as MPEs sofrem, fre- democrático;
qüentemente, as conseqüências - separar a empresa da vida
do isolamento, o que acarreta di- privada;
ficuldade de acesso, baixa escala - ser transparente nos acordos;
de produção e falta de informação - receber interferências, uma
sobre o seu tipo de atividade. vez que pode comprometer sua
Uma série de obstáculos estão li- autonomia.
gados à cultura dos empresários. Um forte elemento de fragilidade
O principal deles é o fato de, das MPEs será ditado pelo ama-
por desempenhar vários papéis dorismo e a falta de eficiência
dentro da empresa, os pequenos em prestar os seus serviços. As
empresários não terem tempo de MPEs, de fato, não dão a devida
se instruir e estabelecer rela- atenção à qualidade e à excelên-
ções. Somado ao baixo nível de cia. Para superar o entrave que
escolaridade dos empresários das isso representa para a sua com-
MPEs, esse problema acarreta: petitividade, nos próximos anos
- Uma reduzidíssima percepção elas deverão se preparar melhor
das vantagens de introduzir e difundir uma nova mentalidade.
tecnologia em suas atividades; Todavia, antes de transformar esta
- falta de compreensão da mentalidade, tais aspectos negati-
existência de uma dimensão vos deverão ser compensados com
intangível nos negócios, além a amabilidade e sociabilização.
da dimensão material; Enfim, um grave obstáculo à
- incapacidade de contextualizar valorização econômica das es-
sua atividade no âmbito pecificidades brasileiras, por
econômico; parte das MPEs, são as profun-
- falta de percepção na relação das diferenças das condições
com o cliente. econômicas e sociais dentro das
Entre os limites culturais que próprias empresas – na relação
afligem os empresários brasi- empregador/empregado e na
leiros, devem ser ressaltadas as redistribuição dos resultados do
dificuldades em: trabalho.

(180)
Monografia

3. A INSERÇÃO DOS biológico, a fauna e a flora susci-


PEQUENOS NEGÓCIOS tarão uma atenção internacional
NO MERCADO especial.
A natureza brasileira constituirá
uma imagem de síntese e de muita
Divulgar a cara brasileira: força. Não obstante sua origem tra-
indicações setoriais dicional, essa imagem poderá vir
associada sem qualquer problema
aos movimentos pós-modernos que
A imagem da natureza: falam de ecologia. O que mais se
biodiversidade e delicadeza deve destacar nela é o respeito e
no uso a dependência da população. A
No Brasil, as identidades social ênfase dada à beleza da natureza
e nacional estarão sempre as- deverá estar associada à qualidade
sociadas às coisas naturais. A e à delicadeza de seu desfrute. A
natureza, como valor, será um promoção será feita à luz daquilo
dado relevante da vida nacional que a cultura popular brasileira
e poderá ser usada de forma in- sabe fazer com os produtos que
direta em praticamente qualquer colhe da natureza.
campanha ligada às MPEs. A flora detém o maior potencial
A geografia brasileira, em que inexplorado, o qual se transfor-
pese ser extremamente diversi- mará em grande diferencial de
ficada, caracteriza-se, antes de promoção do país.
tudo e em seu conjunto, pelo sol Na produção de gêneros ali-
e a luz. mentícios, deve-se privilegiar
A imagem do Brasil será valori- as frutas tropicais, o que criará
zada a partir de aspectos ligados um contraste natural com aque-
à idéia de energia, à saúde e ao las tradicionalmente encontradas
corpo, aproveitando-se de produ- nos supermercados do país e do
tos energéticos da floresta e da exterior.
alimentação natural, como frutas Tanto para as frutas como para
e verduras. Além disso, a idéia de outros produtos amazônicos, a
energia estará fortemente ligada à qualidade essencial a ressaltar
floresta como pulmão do mundo. são sua alta “naturalidade” e seu
Na verdade, dado o interesse por alto valor nutritivo e energético.
sua biodiversidade, as florestas Substâncias naturais como o
tropicais, o patrimônio ambiental guaraná e a catuaba, entre outros,

(181)
Monografia

numa grande gama de produtos produtos naturais. É importante


energéticos, deveriam ser expor- sublinhar que, nesses campos, o
tadas e produzidas como iguarias Brasil reunirá níveis de excelên-
brasileiras. cia adequadamente reforçados.
A fauna, com exemplares únicos Podem contribuir para a imagem
no mundo e novos potenciais que do Brasil, também, os recursos
venham a ser descobertos, será e técnicas associados à cura do
uma força de atração turística, corpo, que consistem em:
interna e externamente. A fauna - Alimentação à base de produtos
das praias de rio é, por exemplo, da floresta, sobretudo aqueles
um dos aspectos que mais valo- energéticos;
riza a imagem do país. - o culto à saúde, sobretudo em
cidades praianas;
Pesquisa e medicina - a vida saudável das cidades
Num futuro próximo, o mundo se do interior e a alimentação do
mobilizará na busca de produtos brasileiro, que se reconhece pela
mais “naturais”. Nesse sentido, elevada qualidade.
ao promover o setor farmacêutico
e cosmético, também deve-se res- A “cara brasileira” impressa
saltar, de modo especial, a biodi- nas obras de arte
versidade e as qualidades únicas As manifestações artísticas irão
da flora e da fauna brasileiras. contribuir de modo extraordinário
A tradição brasileira no campo da para a promoção da imagem do
pesquisa científica na área sani- país, na medida em que permitem
tária será de importância notável. fixar a idéia de um país pluralista,
Desse modo, o país poderá desen- mas ao mesmo tempo com algu-
volver uma imagem associada à mas características únicas. Será
pesquisa de vanguarda, com a fácil associar fotografias, paisa-
melhor utilização dos imensos gens, obras de arte e música aos
recursos de sua flora. serviços e produtos brasileiros. A
No campo da medicina, deveria “cara brasileira” será impressa
associar sua própria imagem a tanto em paisagens quanto obras
todas as especialidades que gi- de arte e na música.
rem em torno do culto ao corpo As obras literárias, a música, as
e à saúde, como a cirurgia plás- artes plásticas, a arquitetura e o
tica, a alimentação saudável e a urbanismo podem contribuir para
farmacologia estética à base de a promoção de uma imagem do

(182)
Monografia

Brasil se possuírem um caráter de gará a representar uma condição


universalidade, que faça dessas sine qua non, um dos maiores
manifestações produtos assimilá- trunfos no que diz respeito ao
veis por um público mais amplo, objetivo de promoção da ima-
além dos brasileiros. Ao mesmo gem do Brasil. Nesse sentido,
tempo, devem conservar suas nos próximos anos, o país estará
características nacionais. em condições de fazer uso desse
Entre as obras que melhor grande diferencial – com base na
podem promover a imagem do qualidade musical de seu povo
Brasil incluem-se a arquitetura – de forma mais ampla do que
e a literatura (com destaque para faz até o presente.
Jorge Amado). No panorama da A música brasileira poderá ser
moda, das correntes culturais ou utilizada como instrumento de
das escolas artísticas, particular- marketing graças à sua fácil
mente adaptadas para reforçar o divulgação no país e ao conhe-
marketing do made in Brazil, cimento adquirido no exterior.
incluem-se também o artesanato Iniciar pela música a promoção
indígena, os ceramistas, como da imagem brasileira será fácil,
Francisco Brennand, entre outros simples e prático.
e a produção têxtil do Ceará. Pode-se valorizar a “cara brasi-
As MPEs poderão aproveitar, em leira” pela música popular, uma
termos de marketing, desde o bar- vez que sua criatividade e qua-
roco mineiro até a modernidade lidade gozam de reconhecimento
de Brasília. internacional. As virtudes mais
evidentes desse fator cultural es-
A música, uma condição tão no modo de ser do músico bra-
sine qua non sileiro, na qualidade técnica e no
A imagem do Brasil pode ser pro- refinamento, na criatividade, com
movida de maneira excepcional o uso de uma linguagem própria e
pela música popular brasileira. na sofisticação do estilo.
Na verdade, a grande visibilidade
do Brasil no mundo é veiculada As manifestações populares:
pela música, que é única, mo- know-how, participação e
derna e, ao mesmo tempo, muito sensualidade
característica – porém, sem o As manifestações populares bra-
“ranço” de coisa típica. sileiras serão um fortíssimo veícu-
A música popular brasileira che- lo para a promoção da imagem da

(183)
Monografia

“cara brasileira”. As principais Certamente, promoverá a imagem


virtudes dessas manifestações, do Brasil no estrangeiro – com
que poderão ser valorizadas na sua capacidade de revolucionar
divulgação e no marketing das o mundo cotidiano – e continuará
MPEs, são, em ordem decres- a atrair uma grande quantidade
cente de importância: de turistas, ainda que de forma
1) A participação popular e geograficamente bastante dife-
multirracial; renciada – no Rio de Janeiro, a
2) a alegria; evolução se dará em torno do luxo
3) a música; e da coreografia, em detrimento
4) o caráter de preservação da espontaneidade popular; em
e difusão de uma cultura outras partes do Brasil (especial-
autêntica e popular; mente no Nordeste), será mantida
5) a sensualidade; a espontaneidade.
6) o sincretismo; As possibilidades de se valorizar
7) o know-how na adoção e no uso o carnaval resultam do fato de
de tecnologias extraordinárias que a maior das festas brasilei-
(como, por exemplo, a ras é produzida por todos e para
iluminação do carnaval do Rio todos e com qualidade.
de Janeiro). A idéia de fundo a se valorizar na
O fato de o povo brasileiro ser divulgação é a de que o brasileiro
alegre, ter senso de humor e se diverte de modo hospitaleiro,
saber se divertir deve ser asso- generoso e participativo.
ciado às mensagens de promoção Os grandes meios para a divulga-
dos produtos de entretenimento, ção de festas e outras manifesta-
os quais devem se constituir ções culturais serão a música, o
em verdadeiras viagens expe- cinema e o turismo.
rimentais para as pessoas. Um
importante instrumento para a Objetos e locais como
valorização desses recursos é o veículos de imagem do país
parque temático. Se até mesmo as artes plásticas
O carnaval, em particular, se representam uma oportunidade,
perpetuará como a festa popu- ainda que de importância infe-
lar que mais se identifica com rior à música, o marketing da
a brasilidade e se mostrará produção artesanal das MPEs
como manifestação singular e deverá refletir o sincretismo
incomparável do povo brasileiro. brasileiro, traduzido na plurali-

(184)
Monografia

dade cultural do país e de modo com indumentária e objetos que


a permitir que a utilização dos tenham interesse internacional e
produtos seja universalizada, possam transformar-se em moda
associando-lhes características contemporânea.
que levem a isso, seja no design, Os trajes, em particular, podem
seja na funcionalidade. valorizar a capacidade que o cor-
Para promover a imagem do país po dos brasileiros possui de atrair
podem ser valorizados objetos e e vender. O vestuário, remetendo
locais da vida cotidiana. Desse ao modo de vida brasileiro, po-
ponto de vista, é aconselhável deria caracterizar-se pela sensu-
concentrar-se, em ordem de- alidade e informalidade. Abre-se,
crescente de importância, nos assim, um campo muito amplo
seguintes aspectos: para a moda brasileira, permi-
1) Música e seus instrumentos; tindo transmitir conceitos como
2) fotografias de pessoas; alegria e jovialidade, energia,
3) dança; luminosidade e abundância de
4) fibras naturais; cores, leveza de formas.
5) redes;
6) rendados. Dar visibilidade ao trabalho
Uma imagem positiva para a dos brasileiros
divulgação será também aquela As tecnologias e os métodos de
das áreas comuns dos edifícios e trabalho brasileiros, tanto os tra-
casas, como quintais e varandas. dicionais como os mais recentes,
podem representar, em toda a
A moda: do típico ao sua variedade, uma boa imagem
internacional para a promoção de tecnologias
Na moda brasileira, o uso do típi- agrícolas sem manipulação ge-
co ou étnico pode ser passageiro, nética, tecnologias ancestrais de
deixando de ser algo obrigatório. convivência nos trópicos (com
O componente étnico, além de sua medicina floral), tecnologias
sua presença na literatura, adap- da indústria aeroespacial, além
ta-se melhor a outros âmbitos de da capacidade de empenho e
expressão de design. Existem, cooperação na realização de pro-
por outro lado, algumas coisas jetos, como o desfile das escolas
típicas que podem ser usadas de samba.
para diferenciar as maneiras de Os aspectos a evidenciar para a
montar e mostrar uma silhueta, promoção do país devem estar

(185)
Monografia

relacionados com a diversidade se ocupar um nicho de qualida-


e riqueza do “fazer” artesanal. de na camada de consumidores
Além de eficaz, estarão mais es- conscientes dos diversos países
treitamente ligados aos objetivos mais avançados estará reserva-
finais da promoção – melhorar o da aos produtos associados ao
nível socioeconômico de grande conceito de método natural de
parte da população pobre do produção, provenientes de flora
Brasil. e fauna locais e confeccionados
segundo critérios socialmente
Idéias e estratégias cruciais corretos.
de divulgação Além de recursos naturais e
geográficos, os elementos que
Duas metas da promovem uma forte imagem do
comunicação: o brasileiro e país no exterior são, sobretudo,
o estrangeiro as festas populares e os esportes,
Em um mercado global, cada dentre os quais o mais significa-
vez mais competitivo, a margem tivo é certamente o futebol.
de diferenciação em termos de Para o marketing da produção
preço/qualidade será sempre re- brasileira das MPEs, deve-se
duzida. Para o consumidor, não considerar que nos próximos
faz diferença se a praia limpa anos os brasileiros não terão
e o mar azul estão na América ainda a consciência da peculia-
do Sul, no Caribe, no Sudeste ridade de sua cultura.
Asiático ou no Oriente Médio. Um dos maiores desafios que se
Na falta de qualquer diferencial, apresentam para o futuro será
a seleção acabará girando em o de alimentar a confiança no
torno do preço final. Mas o Brasil Brasil e nas suas coisas.
disporá, com sua população, de Os que detêm o poder demons-
hospitalidade, cordialidade, ale- trarão pouca sensibilidade
gria e generosidade de um singu- diante de campanhas destina-
lar elemento distintivo, que será das à promoção da consciência
valorizado e bem vendido. coletiva do brasileiro. Todavia,
Outro recurso que será apreciado os brasileiros aceitarão com
pelos consumidores estrangeiros muito entusiasmo a proposta de
será a atenção dada à qualidade, valorizar o país.
seja de produtos, seja do proces- Destacam-se como elementos
so produtivo. A possibilidade de fortes para transmitir a imagem

(186)
Monografia

do país internamente os recursos promoção do Made in Brazil, é


naturais e geográficos, as festas possível propor cinco estratégias
religiosas, as festas populares principais para divulgar a “Cara
e o esporte, particularmente o Brasileira”.
futebol.
Ademais, é importante perceber Contagiar o visitante
que, no Brasil, a natureza As pessoas que chegam ao Brasil
se personaliza em âmbitos devem ser contagiadas pelo es-
afro-brasileiros, como a pírito de grande hospitalidade.
umbanda por exemplo. Esse fator Uma questão crucial, nesse
pode ser usado em campanhas sentido, é que, para criar uma
publicitárias normais, tanto imagem externa, é necessário
para a conscientização dirigida criar primeiro uma imagem
ao público quanto às MPEs. interna de modo realista, evi-
Imagens como a da casa e da tando a falta de significado. A
família, de crenças e fé religio- empatia em relação aos outros,
sas populares, além dos pratos e em relação ao que é diferente,
prazeres das refeições conjuntas, será usada como uma vantagem.
também serão bem-sucedidas se As MPEs valorizarão as especi-
usadas na promoção do Brasil, ficidades da cultura social brasi-
tanto interna como externa- leira, aproveitando a imagem de
mente. “país amigo” e estabelecendo
Outros aspectos visíveis da contato personalizado com seus
“marca brasileira” passíveis de clientes.
valorização no marketing das A aproximação do cliente com
MPEs incluem o culto ao corpo a sociedade brasileira será uma
e à expressão corporal, um tipo estratégia muito importante, quer
específico de beleza, e as cores. para uma empresa em particular,
quer para a promoção da econo-
Cinco idéias vencedoras mia brasileira como um todo. As
para a “cara brasileira” viagens de negócios ao Brasil,
À luz das indicações reunidas onde se combinam programações
até aqui em relação aos elemen- de trabalho e lazer, deveriam tor-
tos culturais mais importantes, à nar-se elementos de fundamental
qualidade dos produtos e servi- importância, visando superar os
ços que possam ser valorizados preconceitos existentes para com
e às principais oportunidades de o país e seus produtos.

(187)
Monografia

O Brasil exuberante Para concretizar essa idéia, deve-


No Brasil tudo é abundante – os se centrar a divulgação sobre al-
sentimentos, as cores, a música gumas idéias-chave:
– diferentemente de países mi- - No Brasil existe um espírito
nimalistas. Deve-se, portanto, rejuvenescedor (é um país
evitar apresentações muito dinâmico);
contidas. Conforme já foi subli- - percebe-se um ânimo diferente
nhado, pode-se, por exemplo, daquele que se vê na Europa;
afirmar que o Brasil é o país que - o brasileiro tem um jeito muito
realiza as maiores festas de todo ágil de compensar a falta de
o planeta. condições propícias, um modo
Além disso, para valorizar o particular de sentir e de ver a
patrimônio ambiental, será im- vida.
portante confrontar a extensão
de parques e áreas de preser- Parentesco global
vação com a dimensão de outros Como já se disse, em seguida
territórios do país, assim ele se aos acontecimentos de 11 de
caracterizará como um lugar de setembro de 2001, nos Estados
natureza mais exuberante, mais Unidos, o fato de o Brasil se
“forte”, desligando-se, ao mesmo caracterizar pela convivência
tempo, da idéia de país exótico. pacífica de diferentes raças e
Essa visão será publicitária, pri- culturas transformou-se em fator
mária, simplista, mas ao mesmo de promoção extremamente po-
tempo verdadeira e, por isso mes- sitivo. A existência de elemento
mo, aceita com facilidade. de diversas nacionalidades, como
japonesa, árabe, européias de di-
Rejuvenescendo no Brasil versas procedências, entre outros,
Será fácil estabelecer uma “es- facilita a identificação, por parte
tética brasileira” baseada na do povo brasileiro, com outras
idéia de país jovem, inteligente, populações.
criativo. Trata-se de imagens um Essa característica da brasili-
tanto hiperbólicas, mas em torno dade também poderá ser valo-
de idéias que o mundo desejará rizada com o objetivo de gerar
consumir. Deve-se realizar um identificação entre produto e
trabalho interno para fazer com consumidor, permitindo que se
que as pessoas venham ao Brasil tire proveito da esfera emocional
e voltem sentindo-se remoçadas. de quem compra, envolvendo-a

(188)
Monografia

por um senso de “parentesco” Notas


em relação ao produtor. 1. A pesquisa foi conduzida misturando dois
métodos das ciências sociais: o focus group e
o Delphi.
Beleza e encanto A primeira etapa consta da análise preliminar
Sobretudo no campo do artesana- do tema “Cara Brasileira”: a equipe de
pesquisadores examinou o tema para identificar
to, será importante mostrar que a as dimensões de análise, as disciplinas envolvidas
vida necessita de beleza. Deve- no problema da pesquisa e elaborar uma lista de
possíveis especialistas, escolhidos entre os mais
se apresentar os produtos como competentes e reconhecidos do país. A lista, com
artigos capazes de redesenhar o mais de 80 possíveis especialistas, subdividida
em aproximadamente vinte disciplinas, foi
mundo a cada dia, trazendo de submetida à validação por um grupo de
volta seu encanto. Estes serão consultores escolhidos pela sua capacidade de
visão ampla dos campos envolvidos.
mais competitivos, na medida Depois, foram constituídos dois painéis (com
em que forem feitos com tais alguns dos especialistas mais indicados pelos
consultores) para a realização de focus groups.
valores em mente, o que será Nesses focus groups, foram propostos ao painel de
muito importante, sobretudo, especialistas alguns questionamentos de caráter
na apresentação de produtos de amplo, embora focalizados no tema central
– a identificação dos aspectos da identidade
“arte popular”, cuja única função brasileira valorizáveis no marketing das
é embelezar o mundo. pequenas empresas.
Ao final dos focus groups, foi solicitado a
Os produtos das MPEs deverão cada participante a indicação de dois outros
denotar, também, que são feitos possíveis especialistas para cada disciplina
considerada. Elas foram comparadas com
com alegria e que se destinam, a primeira lista elaborada, para escolher os
igualmente, a serem consumidos melhores especialistas para as fases seguintes
da pesquisa, conduzida através do método
com alegria. Nesse sentido, os Delphi. Com base nos resultados do focus group,
produtos naturais poderão vir a equipe de pesquisa elaborou um documento de
base e um questionário com perguntas abertas
ao encontro do desejo de feli- sobre 17 temas.
cidade. o painel de especialistas foi respondido por
escrito ou através de entrevistas diretas. A equipe
elaborou e reordenou as respostas por temas e
as submeteu, novamente, aos mesmos nove
especialistas, em um segundo questionário com
perguntas pré-estabelecidas. Com isso, obteve-se
o consenso ou o dissenso sobre cada uma das
hipóteses surgidas durante a primeira consulta.
É importante destacar que os especialistas – de
acordo com as regras do metodo Delphi – não
sabiam quem fazia parte do painel durante toda a
realização da pesquisa. Dessa maneira, cada um
avaliava as afirmações com base apenas em seu
conteúdo, independentemente da proveniência
das idéias.
A pesquisa foi concluída com a elaboração das
respostas, a seleção das hipóteses aceitáveis
(aquelas que receberam ao menos seis indicações
(189)
Monografia

consensuadas entre os nove especialistas), a da Academia Brasileira de Moda em abril de


análise dos resultados, a definição dos temas a 1999.
serem tratados no relatório e, enfim, a redação Janete Ferreira da Costa. É responsável por
do texto. centenas de projetos de arquitetura de interiores
e ambientação de residências, prédios públicos,
2. Os especialistas consultados pela pesquisa escritórios de empresas e sobretudo hotéis.
foram: Atuou como consultora em restaurações de
Afrânio Aragão Craveiro. Professor emérito da sítios históricos, como o Teatro de São Luís, no
Universidade Federal do Ceará no Laboratório Maranhão, e a Igreja São Lourenço dos Índios,
de Produtos Naturais, foi pró-reitor de Pesquisa no Rio de Janeiro.
na mesma universidade. Realizou dezenas João de Jesus Paes Loureiro. Poeta, professor
de patentes de produtos naturais e orgânicos, de Estética da Universidade Federal do Pará
e publicou com outros autores cinco livros e doutor em Sociologia da Cultura na Sorbone,
resultantes de sua pesquisa acadêmica. Paris. Foi secretário de Estado de Cultura e de
Anna Verônica Mautner. Nasceu na Hungria mas Educação do Pará. Possui mais de dez livros
vive no Brasil desde a infância. É psicanalista, e obras publicadas no Brasil, na Itália, na
com consultório em São Paulo. Atua como Alemanha e no Japão.
jornalista, com treinamento para executivos Joice Leal. Trabalha há 28 anos na promoção
e atendimento individual em consultório de design, tecnologia e comércio internacional.
particular. Foi professora de Psicologia das Atuou promovendo o produto brasileiro no
Relações Humanas na Universidade de São Consulado Geral do Brasil em Milão, Itália.
Paulo. Organizou feiras, exposições e fez estudos e
Antônio Risério. Antropólogo, participou da pesquisas de mercado e oportunidade comercial
implantação da TV Educativa na Bahia e foi para diversos produtos brasileiros no mercado
um dos criadores, depois diretor, da Fundação europeu.
Gregório de Matos. Criou e o coordenou o Centro Jorge Cunha Lima. Advogado, pós-graduado em
de Referência Negromestiça e foi assessor do administração de empresas, jornalista e escritor.
Ministério da Cultura para a área de “cultura Foi secretário de Estado das Comunicações e da
popular”. Cultura de São Paulo. Foi membro do Conselho
Caio Luís de Carvalho. Já presidente da da Bienal de São Paulo e membro eleito da
Embratur, foi ministro do Esporte e da Cultura diretoria do Museu de Arte Paulista (Masp). É o
pelo segundo governo de Fernando Henrique atual presidente da TV Cultura.
Cardoso. Foi também presidente do Conselho Juca Kfouri. Formado em Ciências Sociais
Executivo da Organização Mundial do Turismo e pela Universidade de São Paulo, é jornalista,
da Comissão das Américas. Representou o Brasil comentarista esportivo, apresenta programas
em diversas missões internacionais. esportivos na TV e no rádio, e escreve colunas
Carlos Sandroni. Professor do Programa de Pós- para os principais órgãos de imprensa do país.
Graduação em Antropologia da Universidade Escreve o jornal O Lance e possui uma coluna na
Federal de Pernambuco, onde coordena o revista Carta Capital.
curso de especialização em Etnomusicologia. Lino Villaventura. É um dos mais intrigantes
É compositor de várias músicas gravadas por criadores da moda nacional, misturando como
cantores como Milton Nascimento, Adriana ninguém o regionalismo com a exploração de
Calcanhoto, Olívia Bygton, dentre outros. materiais. O estilista encontrou também seu lugar
Fábio Magalhães. Diretor-presidente da na criação do figurino de filmes como “Bocage,
Fundação Memorial da América Latina. É o Triunfo do Amor”, “Xuxa Pop Star”, além do
membro da Diretoria da Fundação Bienal São espetáculo “Dorotéia - Uma Farsa Irresponsável
Paulo. Atuou em diversos cargos públicos como em Três Atos”.
secretário de Apoio à Produção Cultural do Luís Nassif. Diretor superintendente da
Ministério da Cultura e Secretário de Cultura Agência Dinheiro Vivo, primeira empresa de
do Município de São Paulo. informações eletrônicas do país. Colunista e
Glória Kalil. Jornalista, consultora de moda e membro do Conselho Editorial da Folha de
empresária. Foi diretora da Fiorucci, empresa S.Paulo. Introduziu o jornalismo de serviço e o
que introduziu no mercado brasileiro o conceito jornalismo eletrônico na imprensa brasileira, com
de moda jovem no final dos anos 1970. Membro as seções “Seu Dinheiro” e “Jornal do Carro”,

(190)
Monografia

do Jornal da Tarde. línguas, presente em seis países. Também preside o


Luiz Sebastião Araújo Rosa. Médico Centro Brasileiro de Filosofia para Criança. Foi
especializado em pneumologia e professor. fundador e presidente da Associação Brasileira
Largou a medicina para se dedicar à atividade de Franchising e da Comissão Estadual dos 500
empresarial. É dono de uma das mais bem anos do Brasil.
sucedidas franquias do país, a Imaginarium, Roberto Damatta. Ocupa a cátedra Reverendo
que nos últimos anos abriu mais de 50 lojas nas Edmund P. Joyce, de Antropologia da
principais cidades brasileiras. Universidade de Notre Dame (E.U.A.), onde
Lula Vieira. Publicitário, sócio-diretor da V ensina desde 1987. É também professor titular do
& S Comunicações. Já foi diretor de criação Departamento de Antropologia da Universidade
de diversas agências de publicidade, dentre Federal Fluminense. Mantém, semanalmente,
elas a Vip Publicidade, em São Paulo, a uma coluna no jornal O Estado de S. Paulo.
JMM Publicidade e a J. Walter Thompson. Sérgio Wladimir Bernardes. Cineasta, ganhador
Foi agraciado com mais de duzentos prêmios de muitos prêmios nacionais e internacionais.
de propaganda, dentre eles o Leão de Ouro no Produziu diversos documentários, tendo como
Festival de Cannes e o Clio Awards. tema a natureza, a fauna, parques nacionais, os
Maria Clementina Pereira Cunha. Professora da povos da floresta e seus conhecimentos, como “Um
Universidade Estadual de Campinas, é também Outro Brasil”, “Casa da Floresta” e “Panthera
diretora do Centro de Pesquisa em História Social Onça”, todos premiados.
da Cultura dessa instituição. Tem dezenas de Sheila Maureen Bisilliat. Iniciou seus estudos
artigos publicados em livros e revistas científicas, no campo das artes visuais em Paris e Nova
tendo participado como conferencista em vários York. Junto ao seu esposo, Jacques Bisilliat e ao
congressos nacionais e internacionais. arquiteto Antônio Marcos Silva criou a galeria “O
Maria das Mercês Parente. Dirigiu por 14 Bode”, dedicada à divulgação da Arte Popular
anos a Divisão de Cultura e Artesanato, na Brasileira. Realizou o Pavilhão da Criatividade
Superintendência do Desenvolvimento da da Fundação Memorial da América Latina.
Região Centro-Oeste, apoiando projetos de
cultura material indígena. Foi responsável pelo
Programa do Artesanato Brasileiro no Ministério
da Indústria, do Comércio e do Turismo.
Mônica Pimenta Velloso. Historiadora,
pesquisadora e orientadora de pesquisa da
Fundação Casa de Rui Barbosa, desde 1999.
Foi curadora da exposição “Do Guarani ao
Guaraná: história, humor e nacionalidade”,
promovida pelo Ministério da Cultura junto à
Fundação Casa de Rui Barbosa.
Nelson Motta. Tem formação de jornalista,
mas é considerado um dos mais conceituados
produtores musicais brasileiros. Possui mais
de duzentas letras gravadas por nomes como
Natalie Cole, Sérgio Mendes, Caetano Veloso,
Carmen MacRae, dentre outros. É também crítico
musical, letrista, escritor e designer criativo.
Peter Henry Fry. Inglês, naturalizado
brasileiro, com formação em Antropologia
Social. Professor titular da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Realizou dezenas de
pesquisas de campo na área de antropologia no Stefano Palumbo é redator da revista Next - Stru-
Brasil e em vários países do mundo. Realizou
consultorias para o Banco Mundial e para menti per l’innovazione e professor do S3.Studium
diversos organismos internacionais. de Roma, do qual também é coordenador do de-
Ricardo Young Silva. Empresário. Presidente da
Yázigi Internexus – rede educacional de ensino de partamento de pesquisa.

(191)
NEXT
BorderBrasil
Line

NEXT BRASIL
Instrumentos para a inovação
Ano I, número 1, 2003

(192)

Você também pode gostar