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Universidade Federal de Minas Gerais

Reitor
Ronaldo Tâdêu Pena

Vice-Reitora
Heloisa Maria Murgel Starling

Editora UFMG

Diretor
Wander Melo Miranda

Vice-Diretoffi
Silvana Cóser
BEATRTZ SARLO
Conselho Editorial
Wander Melo Miranda (presidente)
Carlos Antônio Leite Brandão
José Francisco Soares
)uarez Rocha Guimarães
Maria das Graças Santa Bárbara-
Tempc passado
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Paulo Sérgio Lacerda Beirão
Cultura da memória e guinada subjetiva
Silvana Cóser

Tiadução

Rosa Freire d'Aguiar

Editora UFÀ4G

Av Antônio CarJos, 6627 AJa direita da Biblioteca Cerltrel _ Térreo


Carnpus Parrpuiha
-
Belo HorizontelMG
-,trz7o-9or -
Tel.: (3r) 3$9-4650 Fax: (3r) 3499-r,768 E-rnail: editora@uÍing.br
wi,r'w. editora. uÍ?ng.br
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CoNrpa NrÌlrA Das trrals
Copyright @ 2005 by Beatriz Sarlo

Tiempo pasado h a sido publicado oiginalmente en espafiol en zoo5. Estatraducción espublí- Sumário
cada mediante acuerdo con siglo xxl Edinres Argentina [Tempo passado foi pubÌicado ori-
ginalrnente em espanhol em zoo5. Esta traduFo épubÌicada mediante acordo com sigÌo xxr
Editores Árgentinal.

Título original
Tiempo pasado Cultura de Ia memoria y giro subjetivo. Una discusión
-
Capa
Rar:I Loureiro

, lmagemdampa
Fanfare (1974), de George Dannatt, guache e lápis sobre acrílico.
@ Coleção particulari The Bridgeman Art Library

Prepataçã.o
Marcos Luiz Fernandes

Revisão
Carmen S. da Costa
Isabel jorge Cury
1. Tempo passado,9
Dados Internacionais de CatalogaFo na Pubüação (crr)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) 2. Crítica do testemunho : suj eito e experiência, 23
Sallo, Beâtriz 3. A retórica testemunhal, 45
Tcmpo pasado : cultura da mmória c guinada subjetiva / Bãïiiï Sarlo ;
tradução Rosa Frcirc d'Aguiar São Paulo : Compaúia dâs Letrasi Belo 4. Experiência e argumentação, 69
Horizonte, : UFMG, 2007, -
5. Pós-memória, reconstituições, 9o
TÍtuJo original: Ticmpo pasado,
jsBN 978-85-359-0981-4 (Companhia das Lctras)
6. Além da experiência, rr4
rsBN 978-85-7041-583-7 (Ed. UFMG)

l. ÁÌgentina - Condições sociais - 1945-1983 2.,Argentina - Condiçôo Notas, rzr


sociais- 1983 - 3. MçmóÌia - Aspectos sociais - Ar8eDtina 4. Terrorismo de
Estado - ÁÌgentina - Historiografia 5. Vítim4 dc terorismo de fstado -
Argentina . Hisroriografia.

07-1046 cDD.982

Índicc para crtálogo sistemáticoi


1. I História social 982
^rgcDtina

lzoozl
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITOM SCHWARCZ ÌJIDÁ.
Rua Bandeira Pauüsta 7oz cj. 3z
o4532-ooz-São Paulo sp
Telefone (rr) 3707,35oo
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Fax (n) 37o7-35or
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( ìuerra Mundial até o presente, a memória ganhou um estatuto
ilrcfutável. É certo que a memória pode seÍ ì-rm impulso moral da 3" A retóríca testemunhal
iristória e também urna de suas fontes, mas esses dois traços não
srrportam a exigência de uma verdade mais indiscutível que aque-
las clue é possível construir com e a partir de outros discur-
- -
sos. Não se deve basear na memória uma epistemologia ingênua
cujas pretensões seriam rejeitadas em qualquer outro caso.tt Não
Iii'r ccluivaiência entre o direíto de lembrar e a afirmação de uma
vcrclacìe da lernbrança;tampouco o dever de memória obriga a
rrccitar esszr equivalência. Ao contrário, grandes linhas do pensa-
llrcnto clo século xx se permitiram desconfiar de um discurso da
memória exercido como construção de verdade do sujeito. E a arte,
quando não procura mimetizar os discursos sobre memória ela-
lrorados na academia, coÍÌo acontece com certas estéticas da
nlonumentalização contramonumentalização do Holocâusto,Ìe
e Quando acabaram as ditaduras do sul da América Latina,
cleilonstrou que a exploração não está contida apenas dentro dos lembrar foi uma atividade de restauração dos laços sociais e comu-
limites da mernóriar rnas que outras operaçÕes, de distanciamento nitários perdidos no exílio ou destruídos peÌa violência de Estado.
ou recuperação estética da dimensão biográfica, são possíveis. Tornaram a paiavra as vítimas e seus ïepresentantes (quer dizer,
seus narradores: desde o início, nos anos 1970, os antropólogos ou
ideólogos que representaíam histórias como as de Rigoberta
Menctrú ou de Domitila;rnais tarde, os jornaiistas).
Em meados da déca<ia de 1980, na cena européia, especial-
mente alemã, começou a se escrever um novo capítulo, clecisivo,
sobre o Hoiocausto. De um lado, o debate dos historiadores ale-
mães sobre a solução füral e o papel ativo do Estaclo alemão nas
políticas de reparaçãa e na monumentalização do Holocausto; de
outÍo, a grande difusão dos textos luminosos de Primo Levi, em
que seria difíciÌ encontrar alguma afirrnação do saber do sujeito
no Lager; rnais tarde, as ieituras de Giorgio Agamben, em qlre
tampouco é possívei encontÍar uma positividade otimista; o Íìlme
Shoahde Claude l-attzmann, que plopôs um novo tratamento do
testemunho e renunciou, ao lTlesmo tempo, à imagem dos cam-

44 45
sl:
Í
Ì
I
pos de concentração, privando-se, por um lado, de iconografia
e, impulso das transições democráticas, que na Argentina
poï outro, forçando o discurso dos sobreviventes. A menção se fez sob
a o signo do Nunca mais.*
acontecimentos poderia prosseguir.' Todos acompanharam
pro_ o choque da violência de Estado jamais pareceu um obstácu-
cessos nem sempre surpreendentes do ponto de vista
intelectual, lo para construir e escutar a narração da experiência sofrida.
mas de grande repercussão na esfera pública; o tema ocupou A
um novidade dessa experiência, tão forte como a novidade dos
fatos da
iugar muito visível e, na prática, produziu uma nova esfera Primeira Guerra Mundial a que se referia Benjamin, não impediu
de
debate. Num desses acasos que potenci arizamfatos significativos
aproliferação de discursos. As ditaduras representaram,
no senti_
e não podem ser ignorados, as transições democráticas no sul do mais forte, uma ruptuïa de épocas (como a Grande
da Guerra);
América coincidiram com um novo impulso da produção inte_ mas as transições democráticas não emudecerarn por
causa da
lectual e da discussão ideológica européia., os dois debates enormidade desse rompimento. pelo contrário, quando
se despon-
entrelaçaram de modo inevitável, em especial porque o Holo- taram condições da transição, os discursos começaram a circu-
as
causto se oferece como modelo de outros crimes e isso é
aceito por lar e demonstraram ser indispensáveis para arestauraçã"o
de uma
quem está mais preocupado em denunciar a enormidade do ter_ esfera pública de direitos.
rorismo de Estado do que ãm definir seus traços nacionais espe_ A memória é um bem comum, urn dever (como se disse no
cíficos. caso europeu) e uma necessidade jurídica,moral
política. Aiém
e
os crimes das ditaduras foram exibidos em meio a um flores- da aceitação dessas características, é bem crifïcil
estaberecer uma
cimento de discursos testemunhais, sobrçtudo porque os julga- perspectiva que se proponha examinar de
modo crítico a narração
mentos dos responsáveis (como no caso a-rgentino) exigiram que das vítimas. se o núcieo de sua'erdade
derre sel inquestionáver,
muitasvítimas dessem seutestemunho comoprovado quetinham tarnbém seu discurso deveria ser proiegido do
ceiicismo e da críti
sofrido e do que sabiam que outros sofreru- até morrer. No âmbi- ca' A confiança nos testemunhos das
vítimas é necessária para a ins-
to judicial e nos meios de comunic acão,aindispensáveÌ narração talação de regimes democráticos e o enraizamento
de um princípio
dos fatos não foi recebida com desconfiançasobre as possibilida- de reparação e justiça. pois bem, esses
discursos testemunhais,
des de reconstruir o passado, salvo pelos crirninosos e seus sejam quais forem, são discursos e não
repre_ deveriam ficar confinados
sentantes, que atacaram o valor probatório das narrações testemu- nurna cristalização inabordáver. sobretudo
porque, ern pararero e
nhais, quando não as acusaram de ser falsas e encobrir os crimes da construindo sentidos com os testemunhos
sobre os crimes das dita-
guerrilha' se se excluem os culpados,
ninguém (fora da esfe ra judi- duras, emergem outros fios de narracões
que não estão protegidas
ciária) pensou em submeter a escrutínio metodológico o testernu_ pela mesma intangibilidade nem peio
direito dos que sofreram.
nho em primeira pessoa das vítimas. Sem dúvld a, teriaalgo de Em outras palavras: durante cefto tempo (hoje
não sabemos
monstruoso aplicar a esses discursos os princípios de dúvida
*E*
metodológica que expusemos mais acima: as vítirnas falavam pela 1983-4, no governo do presidente
Raúl Alfo'sín, foi criada a comissão
Nacional sobre o Desaparecimento
primeira vez e o que contavam não só lhes dizia respeito, rnas se de pessoas, presidida peÌo escritor Ernesto
Sabato. Os resultados da comissão,
publicados no livro Nnnca más,levaram ao
transformava em "matéria-prima', da indignação e também em julgamento dos miÌitares
da ditadura. (N. f.)

+6
A7
iiliHll",

qLra'to)' pelo fato de denunciar o horror, o discurso sobre os crimes que presente se rememora e qual é o passado que se recupera. O
tcm preïrogativas, justamente por comportar um víncuÌo entre hor- presente da enunciação é o "tempo de base do discurso", porque é
ror e humanidade. outras narrações, inclusive as pronunciadas pelas presente o momento de se começar anarraÍ e esse momento fica
vítimas ou por seus representantes, que se inscrevem num tempo inscrito na narração. Isso implica o narrador em sua história e a
runterior ao dos crirnes (no caso argentino, o final dos anos 1960 e o inscreve numa retórica da persuasão (o discurso pertence ao
início dos 1970) e costumam p areceÍ entrelaçadas, seja porque pro- modo persuasivo, diz Riceur). Cs relatos testemunhais são "dis-
vêrn do mesmo narrador, seja porque se sucedem umas às outras, não curso" nesse sentido, porque têm como condição um narrador
tôrn as [Ìesmas prerrogativas e) na tarefa de reconstìtuir a época implicado nos fatos, que não persegue uma verdade externa no
crrclausurada pelas ditaduras, podem ser submetidas a crítica. momeitto em que ela é enunciada. É inevitável a rnarca do presen-
Além disso, se as narrações testemunhais são a fonte principai te no ato de narrar o passado, justamente porque, no discurso, o
rl..saber sobre os crimes das ditaduras, os testeffÌunhos dos miii- presente tem uÍna hegernonia reconhecida como inevitável e os
lrr'tes, intelectuais, políticos, religiosos ou sindicalistas das déca- tempos verbais do passado não ficam livres de uma "experiência
rl;rs anteriores não são a única fonte de conhecimento; só uma feti- fenomenológica" do tempo presente da enunciação., "O presente
r lr iz.ação da verdade testemunhal poderia outorgar-lhes um peso dirige o passado assim como um maestro, seus músicos", escreveu
riul)()l'ior ao de outros documentos, inclusive os testemunhos con- Italo Svevo. E, corno observava Halbwachs, o passado se distorce
lcr,porâneos aos fatos dos anos tr960 e 1970. só urna confiança para introduzir-se coerência.'
ingônua na plimeira pessoa e na lembrança do vivido preten{eria Estendendo as noções de Ricoeur, pode-se dizer que a hegerno-
estabelecer uma ordem presidida peio testemunhal. E só uma nia do presente sobre o passado no discurso é da ordem da erlperiên-
caracterização ingênua da experiência exigiria para ela uma verda- cia e se apóia, no caso do testernunho, na mernória e na subjetivida-

clc mais alta. Não é rnenos positivista.(no sentido em que Ben- de. A rememoração do passado (que Benjamin propunha como a
írnica perspectiva de uma história que não reificassse seu objeto) não
.jrr rrrìrr usou essa paiavra para cayacterizar os "fatos") a intangibili-

clrcle da experiência vivicla na nawaçãa testeinunhal do que a de é urna escolha, mas uma condição para o discurso, que não escapa da

luür relato feito a partir de outras fontes. E, se não submetemos memória nem pode iir,r'ar-se das premissas impostas pela atualidade
todas as narrações sobre os criines das ditaduras ao escrutínio à enunciação. E, mais que uma liber-taçao dos "fatos" coisificados,

ideoiógico, nãohárazãa rnorai para ignorar esse exarne quando se corno Benjamin desejava, é uma ligação, provavelmente inevitável,
trata ctras narrações sobre os anos que
precederam ou sobre fatos
as do passado com a subjetividade que rememora no presente.
alheios aos da repressão, que trhes foram conternporâneos. As narrações da memória também insinuam outros proble-
mas. Riceur assinala que é errado confial na idéia de que a narra-
ção possa preencher o vazio da explicação/compreensão: "Criou-se
IJMA uropla: t{Ão ESeUECER N,{D,â tima alternativa faisa quefazda narratividade tanto um obstáculo
como uiïì substituto d aexplicação'i'Há riois tipos de inteligibilida-
Paul Riccur se irergunta, no estuctro qrie dedica às diferenças de: a narrativ ae aexplicativa (causal). A primeira está apoiada num
já clássicas entre história e dlscurso, en' que presente se narra, em efei'co de "coesão", que provém da coesão atribuída urna rrida
a e ao

+8
49
sujeito que a enuncia como sua. Vezzetti assinalou que a memória O discurso da memória, transformado em testemunho, tem a
Íecorre preponderantemente ou sempre a formas narrativas, cujas ambição da autodefesa; quer persuadir o interlocutor presente e
representações "ficam necessariamente estilizadas e simplifica- assegurar-se uma posição no futuro; justamente por isso também é
das".6 Naturalmente, a estilização unifica etraçauma linha argu-
atribuído um efeito reparador da subjetividade. É esse aspecto
a ele
mental forte, mas também instala o relato num horizonte em que que salientam as apologias do testemunho como "cura" de identi-
tem raízes a ilusão de evitar
a dispersão do sentido.
dades em perigo. De fato, tanto a atribuição de um sentido único à
Da perspectiva da disciplina histórica, em compensação, jár história como a acumulação de detalhes produzem um moclo rea-
não se pretende reconduzir os acontecimentos a uma origem; ao lista-romântico em que o sujeito que narra atribui sentidos a todo
rdnunciar a uma teleologia simples, a história renuncia, ao mesmo detalhe pelo próprio fato de que eie o incluiu em seu relato; e, em
tempo, a um único princípio de inteligibiÌidade forte e, sobretudo, contrapartida, não se crê obrigado a atribuir sentidos nem a expli-
apropriado à intervenção na esfera pública, em que os velhos dis- car as ausências, como acontece no caso da história. O primado do
cursos de uma história com argumentos nítidos prevalecem sobre detalhe é um modo realista-romântico de fortalecimento da credi-
as perspectivas monográfìcas da história acadêmica. Justamente o bilidade do narrador e da veracidade de sua na rração.
discurso da memória e as.rÍarrações em primeira pessoa se movem Ao contrário, disciplina histórica
a se localiza longe da utopia
pelo impulso de bloquear os sentidos que escapam; não só eles se de que sua narração pode incluir tudo. Opera com elipses, por
articulam contïa o esquecimento, mas também lutam por um sig- motivos rrretodológicos e expositivos. Sobre essa questão, Riceur
nificado que unifique a interpretação. estabeleceu uma diferença entre "individual" e "específìco" (que
No limite está a utopia de um relatõacompleto", do qual nada lembra a defìnição lukacsiana de tipo):"paui Veyne desenvolve o
reste do lado de fora. A tendência ao detaJhe e ao-acúmulo de pre- aparente paradoxo de que a história não tem como objeto o indi-
cisões cria a ilusão de que o concreto da experiência passada ficou víduo, mas o específico.A noção de intriga nos afasta de toda defe-
capturado no discurso. Muito mais que a história, o d.iscurso é con- sa da história como urna ciência do concreto. Incluir um elemen-
creto e pormenorizado, por causa de sua ancoragem na experiên- to em uma intriga irnplica enunciar algo inteligível e, por
cíarecuperada partir do singular. O testemunho é insepar âvelda
a conseguinte, específico:'Tüdo o que se pode enunciar sobre um
autodesignação do sujeito que testemunha porque ele esteve ali indivíduo possui uma espécie de generaliclade"'.0 C específico his-
onde os fatos (lhe) aconteceram. É indivisível de sua presença no tórico é o que pode compor a intriga, não como simples detalhe
local do fato e tem a opacidade de uma história pessoal "afundada verossímil, rnas como traço signifìcativo;não é uma expansão des-
em outras histórias".'Por isso é admissível a desconfiança; nìas, âo critiva da intriga, mas urn elemento constitutirro submetido à sua
mesmo tempo, o testemunho é uma instituição da sociedade, que Ìógica. O princípio da elipse, confrontado com a idéia ingênua de
tem a ver com a esfera jurídica e com um laço social de confiança, que todo o narrável é importante, governa o específico porque,
como apontouArendt. Quando o testemunlao narra a morte ou a como acontece na literatura, a elipse é uma das iógicas de sentido
vexação extrema, esse laço estabelece tambérn uma cena para o de um relato.
luto, fundando assim Ìima comunidade ali onde ela foi destruída.'

5o
51

,,uú&.*,
( } M ()I)0 I].EALISTA-ROMÂNTICO
acaso, The linle school começa com o relato da captura
partnoy
de
contado em terceira pessoa, de modo que a identificação
(
)itci Susan Sontag no começo. Sua advertência de que diante seja
mediada por um princípio de distância. E, quase na metade
tios rcstos da história é preciso confiar menos na memória e mais do
livro, outro terto em teïceira pessoa vale como uma espécie
rr;ts opcrarções intelectuais, compreender de corte
tanto ou mais que lem- no movimento de identificação autobiográfica; a terceira
lrrrr', corresponde à de Annette Wieviorka, quando afirma que pessoa é
um compÍomisso com o específico da situação e não simplesmen_
vivcrnos "[...] uma época em que, de modo geral, o relato indivi-
te com o que ela tem de individuaÌ. A primeira frase "Naquere
é:
tltral c a opinião pessoal ocupam muitas vezes o lugar da análise',.t'
meio-dia ela estava calçando os chinelos do marido'Ì Esse
tom da época, importa salientar a potencialìdade
Se esse é o
mundo
familiar concreto se quebra com as batidas à porta; chegam
cxplicativa da intriga, que) para dar alguma inteligibilidade os
seqüestradores" No primeiro capítulo, a presa_desaparecida,
-
I)oucoírnportaquãoproblernática fatosreconstituídos, recém-transferida para "a Escolinha,] identifica, por baixo
rlcvc rnanter um controle sobre o detalhe. Sem dúvida, das ven_
a verdade das que a impedem de ver, uma manch a azul egotas
cstri no detalhe. Mas, se não é submetido à crítica, o detarhe afetaa de sangue: são
as caiças de seu marido' Nada mais, não ser a decisão de registrar
a
ntriga por sua abundânciã realista, isto é, por seu aspecto verossí-
i
tudo (olhando de soslaio, pâra o chão, pela fenda do purro
rnil mas não necessariamente verdadeiro. A proliferação do deta- q* rupu
seus olhos)' " Pela repetição do insignifi cante,
os detalhes de The tit-
lhe i'dividual fecha ilusoriamente as fendas da intriga e a apresen-
tle school se negam a criar um conjunto de representação. partnoy
ta como se ela pudesse ou devesse representar um todo, algo
os arïuma sabendo que são muito poucos e
completo e consistente porque o detJ[e o certifica, sem ter de muito pobres, porque
pertencem a uma experiência mutilada pela imobilidade
mostrar sua necessidade. Álérn disso, o detaheãforça o tom de perma_
nente e pela oclusão do visíver. o detalhe insignificante
verdade íntima do relato: o narrador que lernbra de modo exaus- e repetido
se adapta melhor que a proliferação ao que ela relata.
tivo seria incapaz de passar por alto o importante, nem forçá-Ìo,
Nenhuma soma de detalhes consegue evitar que uma
pois o que narra forrnou um desvão pessoal de suavida, história
e são fatos Íìque restrita às interrogações que rhe deram origem.
clue ele viu cam os próprias olhos.Num testemunho, jamais os firhos de
os deta- desaparecidos dizern isso de diversas maneiras:
lhes devem parecer falsos, porque o efeito de verdade depende senteüì que o rera-
to sempre fica incompleto e que devem continuar
rlc'les, inclusive de sua acumulação e repetição.rÌ a construí_lo.
Isso tem uma dimensão dramática e jurídica
que expressa a minu_
À4uitos relatos testemunhais são ercessivamente detalhadas,
ciosa destruição dos vestígios levada a cabo
peros responsáveis por
até proÌír'èrativos e alheios a qualquer pr-incípio cornpositivo; isso é
desaparecimentos.
bern claro no caso dos desaparecidos argentiiros, chilenos e uru-
Em outros casos, quando história que
guaios, e de seus farniliares. h4as há alguns textos em que o detaihe
a se deseja reconstituir
não é só a do pai ou da mãe assassinados, quanclo
écontrolado pela idéia de uma representação restrita da situação o que se busca
entender não é tanto o lugar ou as circunstâncias
carcerária e,por conseguinte, bem rnais limitada às suas condições. da morte e o des-
tino do corpo, quando as pretensões da narracão ultr.apassam
Penso err' Th.e little school, da argentina Alicia Fartnoy. Não por a
busca de uma lesposta à uergunta sobre as
condições em que se

))
exerceu a violência de Estado e visam incluir a paisagem cultural e estabelecido de antemão, os detalhes se acomodam nessa direção,
política anterior às intervenções militares, ficam bem evidentes as mesmo quando os próprios protagonistas custam a percebê-la. Os
fraquezas de uma memória que lembra uma profusão de detalhes traços, peculiaridades, defeitos menores e manias dos personagens
não significativos, uma memória qÌre, como não podia deixar de do testemunho acabam se organizando em algum tipo de necessi-
ser, ora entende e ora não entende aquilo mesmo que ela reconsti- dade inscrita além deles. O modo a que chamei de realista-român-
tui. É nesse momento que a ilusão de uma representação comple- tico se adapta bem a essas características da narração testemunhal
ta produz disquisições narrativas e descritivas, digressões e desvios que, justamente por estarem respaldadas por uma subjetividade
çujo motivo é apenas o fato de ter acontecido com o narrador ou que narra sua experiência, dão a impressão de colocá-la além do
com o sujeito que ele evoca. E, então, a proliferação multiplica os exame.
fios de um relato testemunhal sem encontrar arazão argumenta- A qualidade romântica tem a ver com duas características. A
tiva ou estética que sustente sua trama. Esse é o caso do livro de primeira, evidentemente, é o fato de centrar-se na primeira pessoa,
Cristina Zuker) que tem como objeto a vida de seu irmão Ricardo, ou numa terceira pessoa apresentada pelo discurso indireto livre,
militante montonero, desaparecido na fracassada contra-ofensiva que confere ao narrador a perspectiva de uma primeira pessoa. O
iniciada em 1979. O subtítulo Una saga familiar ê especialmente narrador confia na representação de uma subjetividade e, com fre-
apropriado à missão reconstitutiva, que começa com os avós qüência, em sua expressão efusiva sentimental, que rernete a um
e

maternos e paternos dos dois irmãos, sua infância, a relação com horizonte narrativo identificável com o "toque de cor" do jornalis-
os pais, a relação entre os pais, os conflLtos psicológicos de urna mo, algumas formas do non fiction olr os maus romances (sou
família, as preferências cotidianas, tudo isso conlo-um preâmbulo consciente de que o adjetivo mattsdesperta certa inquietação rela-
que se imagina necessário (como se se tratasse de um romance Íea- tivista, mas gostaria que se admitisse a existência de rornances a
lista) antes de entrar nos anos 1970; e,uté *.t*o nesses anos, os que se pode aplicar o adjetivo).

detalhes da vida farniÌiar, as crianças, o destino dos filhos de desa- Em segundo lugar, os textos <ie inspiração memorialística
parecidos ou combatentes ocupam posições importantes no rela- produzidos sobre as décadas de 1960 e1970 se referem àjuventu-
to, que, assim, se sustenta numa dimensão afetiva de rememora- de de seus protagonistas e narradores. Não se trata de r.lm simpies
dado demográfico (a metade dos mortos desaparecidos argenti-
ção. Restrita à idéia realista do romance, Zuker escreve um capítulo
e

final em que, como em Dickens, se acompanha o destino dos per- nos tinha menos de 25 anos), mas antes da crença em que certa
sonagens) em alguns casos até a morte, apresentada como emble- etapa de uma gigantesca mobilização revolucionária se desenvol-

mâlrcado que sofreram em vida, seÍn esses esclarecimentos finais veu sob o signo inaugural e iminente c1a juventude. Desde os anos
terem uma razão compositiva que os ligue à história central, que, da ditadura argentina, as organizações de direitos humanos, espe-

de toda maneira, foi se bifurcando em um testernunho da autora cialmente as Mães e mais tarde as Avós, falaram de "nossos fìlhos",

sobre a relação com seu irmão e muitas outras coisas.rl fixando numa palavra de ordem um argumento poderoso: sacrifi-
Entre detalhe individual e relato ieleológico há uma rclação cados ern plena juventude, justamente porque correspondiam a

óbvia, embora nem sempÍe visível. Se a história tern um sentido uma imagem da juventude que coincide com o senso comulïì
-
54 55
t

. i.
gtsK-,
lt'sP'c'dinreÌrto, ímpeto, idearismo. A quaridade juveniÌ
' é enfati- o presente em que estão respondendo;
,/;ì( l;Ì (rra'do os fìlhos desses militantes o mesmo acontece com os
mortos ou desaparecidos
sobreviventes dos campos de concentração,
rlrrPlic:irr' o efeito de juventude, destacando
que eres são, na
impelidos a ir mais
atua- longe do que lembrariam se entregues
litlrrrle, mais velhos que os pais no momento apenas a uma rememoração
em que estes foram
espontânea. Lanzmann força os aldeões
irssussinados' Entre as Mães e os Filhos, poÌoneses que viveram
o sujeito da memória des- perto dos locais dos campos a lembrar
srrs décadas é a juventude essencial, congerada o que esqueceram, o que
nas fotograÍìas e na
não querem lembrar, suas próprias
r'Ìt orte. misérias e indfnidades diante
dos trens que passavam com as vítimas;
É evidente que, para as e também consegue obter
vítimas ou seus familiares, montar
maís lembranças do que as "espontâneas,,
r rrrra história
um capítulo na busca de uma verdade que, de toda
é dos sobreviventes, a
quempersegue com sua câmera até que
rnarneira, a reconstituição dos fatos no modo alguns deleslhepeçam que
rearista-romântico dê a entrevista
tem, invariavelmente' condições de restaurar.
por encerrada. Nos dois casos, trata_se
A prática de uma
'ão dessa imposição da memória. Tanto nos
narrativa é um direito e, ao exercê-lo, embora subsista aldeões como nos sobreviven_
a parte tes, embora de modos distintos,
incompreendida do passado, e anarraçãonão a memória é exigida além do que
consiga responder
os sujeitos pensaram que elapoderia ser e além de seus interesses
às perguntas que a gerarair, a lembrança
como processo subjetivo e
vontades.Assim, a memória do Holocausto
abre uma expioração necessária ao sujeito se descentra, não por_
que Ìembra (e ao que abandone a cena do massacre,
mesmo tempo o separa de quem resiste a lembrar). mas poïque vai a ela apesar d,e
A qualidade quem dá seu testemunho, e pressionando
realista sustenta que a acumulação de-pcripécias a lembrança habitual.
produz o saber O conhecimento que Lanzmann
procurado e que esse saber poderia ter um tem dos campos empllrïa a
Significado geral. memória das vítimas ou dos testemunhos
Reconstituir o passado de um sujeito ou reconstituir a ponto de fazê_los dizer
o próprio mais do que diriam se entregues à própria
passado, através de testemunhos de
fortà inflexao autobiográfica, espontaneidade. A
intervenção é um jeito de forçar
irrrplica que o sujeito que n arra (porquenarra) memá.ia espontânea daquele
se aproxime de uma passado e sua codifirlaÇao numa "
verdade que, até o próprio momento da narração, narração convencional, sobre a
ele não conhe- qual se exerce a pressão de um conhecimento
cia totalmente ou só conhecia ern fì agmentos construído no pre_
escamoteados.
sente. Cs aldeoes ou as vítimas falam
no presente e, inevitavelmen_
te, sabem rnais do que sabiam
no momento dos fatos, embora tam
bérn tenham esquecido ou procui-ado
O QUE FOI O PRESENTE? o esquecimento.
Essa discordância dos terïpos
é inevitáveJ nas narrações tes_
iernunhais' A discipiina histórica também
Á mernória
sempre anacrônica:.,um revelador do presente,,,
é é perseguida pero ana-
ctronismc, e um de seus probÌemas justamente
escreveu F{albwacrrs. A rneinória não é invariaveÌmente é reconhecê_lo e
espontâ- traçar seus limites. Todo ato cle discorrer
nea. No frLme Slrcah, os aÌdeões poioneses, a quem sobre o passado tem urna
Lanzmann dirnensão anacrônlca; quando Benjamin
obriga a lembrar, com
violênciat,erbal e acuando_os com a câme_ se inclina por uma histó_
ria que liberte o passado de sua
ra, lespondem sobre uina época qìre se reificação, redimindo-o num ato
v-êem forçad as aitazer até
presente de memória, no imprilso
messiânico peÌo qual presente
o
_)o

E-
seresponsablízariapor uma dívida de sofrimento com o passado, posto daquilo que um sujeito se permite ou pode lembrar, daqui-
ou seja, no momento em que a história pensa em construir uma lo que ele esquece, cala intencionalmente, modifica, inventa,
paisagem do passado diferente da que percorre, com espanto, o transfere de um tom ou gênero a outro, daquilo que seus instru-
anio de Klee, ele está indicando não só que o presente opera sobre mentos culturais lhe permitem captar do passado, que suas idéias
a construção do passado, mas que também é seu dever fazê-lo. atuais lhe indicam que deve ser enfatizadoem função de uma ação
Ó anacronismo benjaminiano tem, por um lado, uma dimen- política ou moral no presente, daquilo que ele tttfizacomo dispo-
são ética e, por outro , faz parte da polêmica contra o fetichismo sitivo retórico para argumentar, atacar ou defender-se, daquilo
documental da história científica do começo do século xx. No que conhece por experiência pelos meios de comunicação, e que
e
entanto, a crítica da qualidade objetiva atribuída à reconstituição se confunde, depois de um tempo, com sua experiência etc. etc.la
dos fatos não esgota o problema da dupla inscríção temporal da A,impurezado testemunho é uma fonte inesgotável de vitali-
história. A indicação de Benjamin também poderia ser lida como dade polêmica, mas também requer que seu viés não seja esqueci-
uma lição para historiadores: olhar para o passado com os olhos de do em face do impacto da prirneira pessoa que fala por si e estarn-
quem o viveu, para poder ali captar o sofrimento e as ruínas. A pa seu nome como uma reafirmação de suaverdade' Tânto quanto
exortação seria, ness-dcaso, metodológicae, em vez de fortalecer o as de qualquer outro discurso, do teste-
as pretensões de verdade
anacronismo, seria um instrumento para dissolvê-lo. munho são isto: uma exigência de prerrogativas. Se no testemunho
Essas questões de perspectiva se colocam para encarar um o anacronismo é mais inevitávetr que em qualquer outro gênero de
problema que, de toda maneira, persjstirá. Simplesmente, â histó- história, isso não obriga a aceitar o inevitável como ínexistente,
ria não pode cultivar o anacronismo por esçolha, pois se trata de queuJizegaesquecê-1o justarnente porque não é possível eliminá-
uma contingência que a golpeia sern interrupções e é sustentada io. Peio contrário: é pleciso lernbrar a qualidade anactônicaporque
por um processo de enunciação q.r., .o*o se viu, está sempre pre- é impossível elirniná-la.
sente. Mas acontece que a disciplina histórica sabe que não deve se Quando falo de anacronismo,'' ref,iro-me ao que Georges
instalar comodamente nessa dupla temporalidade de sua escrita e Didi-Huberman chama de "tiivial", que não ilumina o passaclo,
de seu objeto.Isso a distingue das narrações testemunhais, em que mas mostra os lirnites que a distância impõe para sua compreen-
o presente da enunciação é a própria condição da remernor ação: é são. Contudo, Didi-F{ubeíÌ-nan reconhece, diante da triviaiidade
suamatériatemporal,assim como o passado é aquelamatériatem- de remeter qualquer passado ao presente, uma peÍspectiva da qual
poral que se quer recaptuÍaÍ. As narrações testemunhais sentem- se descobre nos fatos pretéritos "uma assemblagede anacronismos
se confortáveis no presente porque é aattalidade (política, social, sutis, fibra.s de tempo entremeaàas, campo aÍqueolÓgico a deci-
cultural, biográfìca) q.ue possibilita sua difusão, quando não sua f,rar'1tu btresse sentido, o anacronismo nunca poderia ser totalmen-
emergência. O núc.leo do testemunho é a memória; o mesmo não te eiiminado, e só uma- visão dominada pela generalização abstra-
se poderia dizer da história (afirrnar que é precis a fazer história ia seria capaz deconseguir aplainar textuïas temporais que não
as
como sese recordasse apenas abre uma hipótese). apenas aïmam o discurso damemória e da história, como tarnbém
O testernunho pode se perrnitir o anacronism o, jâqueé com- mostram de que substância ternporal heterogênea são tecidos os

;B

I
!:,
;;jl&rtirÌ*
"fatos'1 Reconhecer isso, porém, não implica que todo relato do náo fazmuito tempo. Ì'trão é preciso recorrer à idéia de manipuÌa-
passado se entÍegue a essa heterogeneidade como a um destino ção para afirmar que as rnemórias se colocam deliberadamente no
fatal, mas que trabalhe com ela para alcançar uma reconstrução cenário dos conflitos atuais e pretendem atuar nele' Por último'
inteligível, ou seja: que saiba com que fibras está construída e, sobre as décadas de 1960 e 1 970 existe uma massa de material escri-
como se se tratasse da trama de um tecido, que as disponha para to, contemporâneo aos fatos folhetos, reportagens, documen-
-
e congressos, manifestos e programas, cartas, jor-
mostrar da melhor maneira o desenho pretendido. tos de reuniões
Sem dúvida, não é um ideal de conhecimento renunciar à nais partidários e não partidários que seguiam ou antecipavam
-,
São fontes ricas, que seria insensato
densidade de temporalidades diferentes.Isso indicaria apenas um o correr dos acontecimentos.
desejo de simplicidade que não é suficiente para recuperar o pas- deixar de lado, pois é freqüente que digam muito mais que as lem-
sado num impossível "estado puro". Corno disse uma vez Althus- branças dos protagonistas ou, pelo menos, as tornem compreensí-
crânio deVoltaire menino. Mas para pensar o pas-
ser, não existe o veis, já que acïescentam a moldura de um espírito de época' Saber
sado também é insuficiente a tendência a colocar aí as formas como pensavam os militantes em 1970, e não limitar-se àlembran-
presentes de uma subjetividade que, sem reivindicar uma diferen- ça que agora eles têm de como eram e agiam, não é uma
pretensão

ça, imagina encontíar o "crânio de Voltaire menino" quando, na reificante da sub'jetividade nem um plano para expulsá-la da his-
verdade, está dando uma forma inteiramente nova aos objetos tória. Significa, apenas, que a "verdade" não resulta da submissão a
reconstituídos. Para dar um exemplo: nas décadas de 1960 e l97A uma perspectiva memorialística que tem limites nem, muito
não existia nos movimentos revolucionários a idéia de direitos menos) a suas operações táticas.
humanos. E, se é impossível (e indèïejável)_extirpá-la do presente, Evidentemente, limites afetam, como não poderia dei-
esses

tampouco é possível projetá-ia intacta pafa apassado. xar de ser', os testemunhos de quem foi vítima das ditaduras; esse
A memória, tal como ternos argumentado, suporta a tensão e caráter, o de vítimas, interpela uma responsabilidade rnoral coleti-
as tentações do anacronismo. trsso acontece nos testernunhos sobre va que não prescreve. Não é, em contrapartida, uma ordem para
os anos 1960 e i970, tanto os oriundos dos protagonistas e escritos testemunhos permaneçam subtraídos da análise. Até que
qLre selÌs

em prirneira pessoa, como os prociuzidos por técnicas etnográfi- outïos <iocumentos apaleçam (se é que aparecerão os que dizem
cas que utilizarn uma terceira pessoa muito próxima da primeira respeito aos rnilitares, se é que se coirseguirá reclrperar os que estão
(o que em literatura se denomina discurso indireto lívre). Diante escondidos, se é que outros vestígios não foram destruídos), eles
dessa tendência discursiva seria preciso ter ern conta, em primeiro são o núcleo de um conhecimento sobre a repressão; além disso,
luga5 que o passado recordado está perto demais por isso, ainda
e, têm a textura do vivido em condições e;-'tremas, excepcionais. Por
desempentrra funções poiíticas f,ortes no pïesente (vejam-se as isso são insubstituíveis na reconstituição desses anos. N4as o aten-
poiêmicas soÌ--re os projetos de urn rruseu da memória). Âlém tado das ditaduras coiltra o carâter sagrado da vida não transfere
disso, os que iernbram não estão afasl:ados da iuta política contem- esse caráter ao discurso testernuirhal sobre aqueles fatos. Qualquer
porânea; pelo contrário, têrn fortes e legítimas razóesparapartici- reiato da experiência é interpretável.
par deÌa e investir no presente suas opiniões sobre o que aconteceu

6a 6t
AS IDÉIAS E OS FATOS Acreditava-se quë as velhas lealdades políticas tradicionais
poderiam dissolver-se ou modificar-se, e que as tradições políticas
Das idéias que mobilizaram os anos 1960 e 197A, o que resta deviam ser reivindicadas porque sua transformação ídeológica as
nos relatos testemunhais? integraria em novos marcos programáticos. Essas operações não
A pergunta tem importância porque aquele período foi for- podiam setrealízadas sem um forte contingente letrado entre os
temente ideológico, tanto na esquerda como na direita (o pragma- quadros dirigentes e nos setores intermediários, e até mesmo na
tismo ainda não atravessara nenhuma das duas). Esse é um traço base das organizaçóes. O irnaginário da revolução era livresco e se
diferencial, uma qualidade que revela o tom da época e que se des- manifestava na insistência sobre a formação teórica dos militantes;
cobre muito depressa quando se lêem não só os textos francamen- as discussões entre organizações se alimentavarrì de citaçÕes
te políticos, o que é óbvio, mas também os jornais e revistas da (obviamente, cortadas e repetidas) de alguns textos fundadores,
indústria cultural. A televisão não tinha estabelecido uma hege- que era necessário conhecer. A política desses anos, com diferenças
monia completa; a imprensa escrita continuava a ser o principal de periodização segundo as nações do sul daAmérica, girava tanto
meio de informação; quem, numa hemeroteca, dedicar duas horas em torno de um texto sagrado, como da vontade revolucionária.
à consuka dos jornais populares argentinos desse período prova-
Ou, antes, a vontade revolucionária tinha em sua origem um livro,
velmente ficarâ surpreso, tanto quanto quem verificar que os
como tinha também um país socialista (Cr-rba, Vietnã, Cl-rina). A
Diários de Ernesto Guevara foram publicados em série na revista
importância da "teoria" (uma versão simplificada para usos práti-
mais sensacionalista do fim dos anos 1960, na qual dividiram as
cos), sobretudo no campo rrrarxista, deu caráter singularmente
páginas corn as notícias policiais *as vedetes do teatro direvista.
doutrinário a muitas intervenções políticas, e seria um erío pensar
No início dos anos 1970, consumiam-se na rnais jornais
"{,rgentina que isso só acontecia no espaço universitário ou só era protagoni-
por habitante do que atualmente q o noticiário televisivo ainda
zado pelapequena burguesia. até os popuiismos revolucionários
não havia substituído o diário popular vespertino, que oferecia a
baseavam sua ação nnm imaginário cujas fouies eram escritas.
seu público váriaspâgínas de informação sindical, num rnomento
Basta ler as centenas de páginas dos m.oviinentos cristãos
de r adicalização do sindicalismo.
raciicais, ern qLle as interpretações das encícÌicas e dos Evangelhos
O clima da época não se definia apenas por afinidades prag-
forarn verdadeiros exercícios de secul aúzação dateologia, influen-
máticas ou identificações afetivas. As ideologias, longe de declinar,
res irão só nas orgatizações poiíticas, coir-lo tarnbém entre muitos
apareciam como sistemas fortes que organizavam experiências e

subjetividades. Foram décadas ideológicas, em que o escrito ainda bispos da AméricaLatina." Cruzando-se, tnesciando-se e conta-
rninando-se com as rlersões rnarxistas, depenclentistas e naciona-
desempenhava papel importante na discussão política, por dois
motivos: d.e um lado, tratava-se da prática de classes médias, esco- listas, e na confluência. corn o peronisrno radical, um relato de ori-
larìzadas,com dirigentes oriundos da universidade ou de organi- gem cristã o iniienarismo produziu uma Íìassa de textos
-
que, nufiì extrerno,
-
integïava a "teologia
cla libertação" e, em outro,
zaçóes sindical-políticas onde a batalha de idéias era fundamental;
de outro, a maioria da militância e do ativismo era jovem e refor- a teoria da lutaatmada, jétque a nova sociedade seria precedida por

çava a carâtet ilustrado de franjas importantes dos movirnentos"


ìrma eiapa de destruição reparadora. O mílenarismo foi profético

Át 63

d9{&+".
e, através de seus profetas, a começar pela palavra de
Cristo, suas ca natradição de lutas nacionais que os velhos setores popuiares
legiões se reconhecem e se organizam. A profecia chega
ao pïesen_ não tinham aprendido nos livros, mas que os recém-chegados ac,
te vinda do passado, autorizando a mudanca anunciada
nos textos movimento deviam aprender neles.
sagrados. Na América Latina, o cristianismo revolucionário
o debate sobre a natureza dcr
dqs peronismo foi claramente ideológico e marcado por intervençõer;
arros i960 e 1970 marcou o rnomento mais compacto e de
maior intelectuais e acadêmicas.'e
penetração desse discurso. Leu-se a Bíbiia na cÌave terceiro-mun-
os caminhos da revolução (as "vias"),
as forças sociais que s€l
ciista e se dimlgaram versões secuiarizadas d.a mensagem evangé-
aliavam ou opunham em seu trajeto (as frentes, a direção, as eta-
se
lica. os documentos do Mo'imento dos sacerdotes para o Terceiro
pas, as tarefas, segundo o vocabulário da época) e o tipo de
or ganiza-
Mundo, a revista
cristianismo y Revornción, a teologia da liberta-
ção (partido, movimento, exército revolucionário, e suas respectivas;
ção do padre peruano Gustavo Gutiérrez prepararam o solo ideo_
céluÌas, formações, hierarquias, comunicação e compartimentação)
lógico em que o milenarismo cristão se encontrou com a radicali-
também eram capítulos doutrinários fundamentais e objeto cle
zação revolucionária.,'
debate não só na imprensa partidária.2o
As idéias era'r defendidas corno núcieo constitutivo da iden-
A emergência da guerrilha motivou, no caso argentino, revis-
tidade política, sobrétudo nas facçÕes marxistas do movimento
tas e semanários do mercado a colocarem essa discussão, de
radìcal. A afirmação daprimazìaintelectual não deve'ia ser longa
toma- tradição no movimento comunista e socialista, à disposição de,
da como descrição do que efetivamente acontecia com os sujeitos,
seus leitores. o vazamento de temas da teoria revolucioná riapara
mas como indicação do que devia acontecer. Mas essa indicação
a imprensa de informação geral,que se verifica quando
se exami-
em si mesma era um elemento atirõ'ãa reaiidade e incidia
na con- jornais da época, marca também um processo de difusão
figuração das identidades políticas: à utopia-ãe uma teoria revolu- 'am pare
as classes médias, que não necessariarnente seincluíairr nas orga_
cionária que animasse e guiasse a experiência pressionav a apráti-
nizações. As vanguardas políticas desse período participaram
ca diária dos movimentos. Isso não transformou em eruditos de
um movimento mais amplo de renovação cultural qlle acompa-
todos os militantes, inas assinaXou um ideal.
nhou os processos de modernização socioeconômica da década de
Ì{as facções populistas, como foi o peronisrno revolucionário
l970.Asmudanças culturais e nos costumes foram impulsionadas
na Argentina, por urn lado se reivindicava uma identidade
históri- porumageÍação que deixou suafiÌarcatambém no jornalismo, em
ca baseada irientifìcação com uin iíder carismático e se via a t
'a
oposição entre eiites letradas e ìrovo coíno
novas formas de vida e nas vanguardas estéticas.
uira linha divisória da Tlrdo isso
sabido. Pois bem, se o período foi ce'ário de urna
é
história nacio'ai, tão forte como a que opu'ha a naçãoao impe-
irnportante guinada nas idéias, que não se vilreu apenas "está-
riaiismo; por outro, difundia-se essa mesma história ern versão 'o
gio prático", mas sob formas discursivas, textuais, lirrrescas; se c
escrita, ensaística, liria e apre'dici.a pol i,ilhares de jovens
que imaginário potrítico,longe de se confìgurar contra o erudito, recor-
encontravam em alguns autores "nacionais" e na teoria da depen-
ria uma cultura ilustrada para articular impulsos, necessidades e
a
dência cle Cardoso e Faletto as chaves para exeïcet:) ao mesmo
cïenças; se o mito revoÌucionário se sustentou nurna história escri_
iefiìIro, uffÌ antiintelectualisrno hisio'icista e uma formacão livres-
ta e num debate que já tinha atravessado boa parte do século >it, o

64
O)
I
t
que se pergunta é: quanto do peso e da reverberação das idéias res- te-se a possibilidade de uma reconstituição do passado, abrem-se as
tou nas narrações testemunhais, ou melhor, que sacriftcio do sem- vias da subjetividade rememorativa e de umahistória sensível a ela,
blante intelectual e ideológico do movimento político-social se mas que se distingue conceitual e metodologicamente de suas nar-
impõe na narração em primeira pessoa de uma subjetividade da rações. Essa história, como assinala Rossi, vive sob a pressão de uma
época? Quanto subsiste desse teor ideológico da vida política nas memória (realizando, de modo extremor o que Benjamin solicitara
narrações da subjetividade?" Ou, caso se prefira, qual é o gênero como refutação do positivismo reificante) que reclama as prerro-
histórico mais afim com a reconstituição de uma época como gativas de proximidade e perspectiva; a essas prerrogativas talvez a
aquela? memória tenha direitos morais, mas não outros. Os discursos da
Não se trata de discutir os direitos da expressão da subjetivi- memória, tão impregnados de ideologias como os da história, não
dade. O que quero dízer emais simples: a subjetividade é histórica se submetem, como os da disciplina histórica) a um controle que
e, seacreditamos possível tornar a captá-la em uma narração, é seu ocoÍra numa esfera pública separada da subjetividade.
diferencial que vale. Uma utopia revolucionária carregada de A memória tem tanto interesse no presente quanto a história
idéias recebe um tratamento injusto se é apresentada só ou funda- ou a arte, mas de modo distinto. Mesmo nesses anos, quando já se
mentalmente como dÍama pós-moderno dos seus partidários. exerceu até as últimas conseqüências a crítica da idéia de verdade,
as narrações dememória parecem oferecer uma autenticidade da
qual estamos acostumados a desconfiar radicalmente. No caso das
CONTRA UM MITO DA MEMóRIA memórias da repressão, a suspensão dessa desconfiança teve causas
* :i-

morais, jurídicas e políticas. O importante não era compreender o


Paolo Rossi escreve que, depois.d" Rouìieau, "o passado será mundo das vítimas, mas conseguir a condenação dos culpados.
concebido como sempÍe'reconstituíão'e organizado sobre a base Mas quem está comprometido nurna luta pelo esclarecimen-
de uma coerência imaginária. O passado imaginado torna-se um to dos desaparecirnentos, assassinatos e torturas difìcilmente vai
problema não só para a psicologia, mas também (e se deveria dizer limitar-se, depois de duas décadas de transição democrática, a
sobretudo) pata a historiografia [. ..] A memória, como se disse, estabelecer o sentido jurídico de sua prática. As organizações cle
'coloniza'o passado e o organizana base das concepções e emoções direitos humanos politizaram o discurso porque foi inevitável que
do presente'l" A citação vai ao cerne de meu argurnento. A narta- procurassern um sentido substancial nas ações dos militantes qrÌe
ção dá sentido ao passado, mas só se, como assinalouArendt, a ima- sofreram o terrorismo de Estado. C Nunca mais parece, então,
ginaçãoviaja, se solta de seu imediatismo identitário; todos os pro- insufìciente e pede-se não só jr,rstiça, mas tarnbém um reconheci-
blemas da experiência (se se admite que há experiência) abrem-se mento positivo das ações das vítimas.
numa atualidade que oscila entre sustentar a crise da subjetivida- Entende-se o sentido moral dessa reivindicação. Mas, como
de em um mundo midiatizado e a persistên cia da subjetividade isso se transforma numa interpretação da história (e deixa de ser
como uma espécie de artesanato de resistência. apenas um fato de memória), custa admitir que ela se tnantenha
Seja como for, se não se pratica um ceticismo radical e admi- alheia ao princípio crítico que se exerce sobre a história. Quando

66 6Z
"1*

uma narração memorialística concorre com


1

a história apóia sua


exigência nos privilégios de uma subjetividade que seria sua
e
4" Experiência e argurnentação
garantia (como se pudéssemos voltar a crer em alguém que sim-
plesmente diz:"Falo a verdade do que aconteceu comigo ou do que
vi que acontecia, do que fiquei sabendo que aconteceu com meu
amigo, meu irmão"), ela se coloca, pelo exercício de uma imaginá-
ria autenticidade testemunhal, numa espécie de limbo interpre-
tativo.

Existem outras maneiras de trabalhar a experiência. Alguns


textos partilham com a literatura e as ciências sociais as precauçÕes
diante de uma empiria que não tenha sido construída como pro-
blema; e desconfiam da sinceridade e da verdade da primeira pes-
soa comoproduto direto de um relato. Recorrem a uma modalida -
de argumentativa porque não acreditam de todo no fato de que c
vivido torne simplesrnente visível, como se pudesse fluir de urna
se

nanação que acumula detalhes no modo realista-romântico. São


textos raros e me refìro a dois: "La bemba", de Emilio de Ípoia, e
Poder y fls5sparición: Los campos de concentración en Argentina, àe
Piiar Calveiro. '
Eies pressupõem leitores que buscam explicações não apoi:r-
das apenas no pedido de verdade do testemunho, nem no impacto
moral das condições que colocaram alguém na situação de ser tes-
temunha ou vítirna, nem na identificação. Fressupõem autorils
que não pensam que a experiência confere diretamente uila intc-
lecção dos elernentos que a compõem, como se se tratasse de uirra
espécie de dolorosa compensação do sofrimento. Contra a idéia

ó8 69
exposta porArendt, de que sobre certos fatos extremos só é possí- difundidos. De toda maneira, o livro de Calveiro foi amplamente
vel uma reconstituição narrativa, reservam-se o direito, que Arendt discutido, ao passo que o artigo de Ípola está esquecido, como que
também fez seu, de buscar princípios explicativos além da expe- escondido em outra dobra do tempo.
riência, na imaginação sociológica ou histórica. Afastam-se de
uma reconstituiçao só narrativa e da simples noção consoladora de
que a experiência por sisó produz conhecimento. TEORIA DO RUMOR CARCERÁRIO
Calveiro e Ípola escolheram procedimentos expositivos que
implicam um distanciarnento dos "fatos". Em primeiro lugar, não Aprimeiraversão de "Labemba"'foi escrita em maio de 1978,
privilegiam aprimeirapessoa do relato nem dão umaposição espe- quando Emilio de Ípola praticamente saía da prisão onde estivera
cial à subjetividade daquele que o enuncia; as remissões teóricas ea preso quase dois anos.'Foi um desafio; ele procurou provaï que o
perspectiva exterior ao material são tão importantes quanto as refe- autor continuava um cientista social, alguém que não perde-
a ser

rências empíricas; a visualização da experiência se sustenta num ra seus conhecimentos e podia continuar a exercê-los. Ípola quis
momento analítico, num esquema ideal anterior à narração. Em recuperar um passado universitário e empïegaÍ suas capacidades,
segundo lugar, a experiênõìa é submetida a um controle epistemo- demonstrando que a prisão não havia conseguido anular as habi-
lógico que, é claro, não surge dela, mas das regras da arte pratica- lidades adquiridas numa época anterior à repressão. O texto pÕe
das pela história e pelas ciências sociais. A perspectiva é fortemen- em cena um drama da identidade só na medida em que é produto
te intelectual e define te)iÍos que buscam um conhecimento, antes da reapropriação de um capital intelectual ctjautilização não se
de um testemunho. Diferentes em quase todos os aspectos, tanto limita à defesa de uma primeira pessoa narrativa. Ípola escreve da
Ípola como Calveiro se separam do discurso memorialístico ao posição de quem analisa seus materiais, não de quem quer teste-
aceitar restrições no uso da primeira pesioa, da anedota, d anarra- munhar como vítima ou denunciador.
ção de forte linha argumental, do sentimentalismo, da invectiva e Na "Introdução" do volume em que inclui "La bemba", um
se

dos tropos. texto hiperteórico, com grande afinidade com os que Ípoia escre-
Por isso, trata-se de textos excepcionais, não simplesmente veu no início dos anos 1980, chama atenção que o estudo seja
emtermos de qualidade intelectual, mas também porque exigiram caraçtetizado "simptresmente corno um testemunho e tambérn
autores previamente exercitados (Emilio de Ípola) ou decididos a como ufiìa espécie de matéria-prima para elaborações ulteriores
se exercitar para a escrita e parc as funções que esta cumpriria (nossas ou de outros)". A condescendência com que, em 1983'
(Pilar Calveiro).' Como se pudessem pôr provisoriamente em sus- Ípola julga seu artigo pode expiicar-se de duas maneiras: há' de urn
penso o fato de terem sido vítimas em termos diretos e pessoais da lado, a modéstia de um autor que preferiria evital as objeções dis-
repressão, ambos escrevem com conhecimento disciplinar, ten- ciplinares que seu afiígo poderia evocaÍ em futuros leitores (fun-
tando se ater às condições metodológicas desse saber. |ustamente ção convencional de uma introdução, em que a captatil benevolen-
por isso mantêm uma distânciaexataem relação à experiência de tiaprocura antecipar críticas); mas, de outro lado, tambérn é
seuspróprios sofrimentos.Tâmbémporisso não são os textos mais possível aceitar essa modéstia como própria de um primeiro rno-

70 7I

, ,
mento dos textos sobre a repressão e avioiência de Estado, quando bemba" com a desculpa de que é um texto preso demais a um
ainda não se podia saber que o testemunho ia ser hegemônico, dei- momento descritivo da experiência. Ípola exige mais dele. Os lei-
xando de lado outÍas perspectivas sobre os fatos. Ípola diz que seu tores, daquela época e de hoje, têm a impressão contrária: trata-se
texto (como Levi afirma do dele) é uma "matéria-prima I Natural- de um texto fortemente inspirado em teorias, em que a experiên-
rrìer1te, quando escreveu "La bemba" ele não podia conhecer os tex- cia da prisão é construída como objeto (teórico, como se diria nos
tos futuros nem ter idéia de quais seriam o tom e a retórica com que anos 1980) que permite o estudo do rumor e das condições carce-
ir lìteratura testemunhal apresentaria sua "matéria-prima". No rárias que possibilitam sua difusão e sustentam suaverossimilhan-
crrtanto, a"Introdução" deixa supor que o ter-to comecoua ser escri- ça. O queÍpola considera, em 1983, muito próximo ao testemunho
to na cadeia, "cumprindo o papel próprio aos'intelectuais'na pri- é, comparado com qualqueïtestemunho realmente existente, uma

siìo [...], isto é, o de se constituírem em analistas e comentadores, sofisticada análise em que o eu da testemunha nunca aparece, nem
rrrrris que em produto res de bembas'1o Nessa divisão entre produ- iresmo como lugar importante de enunciação.
l o l c analista se apóia todo o trabalho e tambérn minha leitura. O rumor é um tema característico da semiologia e da teoria
Na "Introdução'] Ípola examina não só as noções de verossi- da comunicação, disciplinas de vanguarda nos anos i 960 e 1970, às

rrr ilhança do rumor (bemba) com aquelas ern que o artigo trabalha quais Ípola chegava a partir de uma formação filosófica e social.
cxplicitamente, mas, julgando insuficiente a perspectiva teôríca Emboraincorpore outras influências,"Labemba"se apóia em dois
inicial, desenvolve "algo que [...] é apenas insinuado: o processo de textos característicos da época: Internados, de Goffman, sobïe o
produção-circulação das bembastern ulr-Ìa clara analogia cono sanatório psiquiátrico como instituição total (e, por conseguinte,
que a psicanálise chama de'elaboração secundá.rja'. Do mesmo como espelho da prisão) , e Vigiar e punir, de Foucault (embora o
nrodo que o paciente, na n arração de um s.onho, tende a apagar seu
ÍumoÍ seja uma fissura no controle absoluto). Mas, citados na
bibliografia, os trabalhos sobre semiologia e ideologia são também
aParente absurdo, preenchendo os brancos e construindo um rela-
um quadro deniro do qual as noções vindas do campo da comuni-
to contínuo e coeïente, o trabaÌho das bentbas consiste em elimi-
cação se crúzam com as do marxismo estruturalista. Esse era unl
rìar pïogïessivarnente os absurd.os aparentes ('duas mil liberda-
dos núcleos de uinanova semiologia, com outravertente que che-
ir dando forma, por esse
cles!') de uma pré-rrersão inicial, para
gava da antropologia estrutural de Lévi-Strauss. Menciono esses
caminho, a uma versão aceitável: verossímil". A "Introdução"
nomes e a que era então a Teoria (Althusser dominava cr espaço
salienta, na.rerclade, que o artigo não foi suficientemente teórico
marxista) não simplesmente para reconstituir as fontes teóricas de
ou que, clentro do espaço teórico, não acentuou uffra dimensão
"La bemba", mas para assinalar de que modo o texto corresponde
que, no momento de publicá-lo ein livro, interessa eirl especial a
a um espír'ito de época inarxista-estruturaLista e semiológico, cujo
Ípola; a psicanalítica. Ern srima, a rntrocÌução de 1983 valta a"La
denso aparelho teórico opera coino defesa diante de qualquer ver-
* são ingênua e "realista" da experiência.
Bentba,discursos fragmentários, i'umores. A origem da palavra seriam as rad,io-
bembas, os boatos que circularram de boca em boca antes da Revoiução Cubana. Dessa exper iêncía carcerâria, Ípola analis a só unt aspecto cìa
(N.r.) dimensão cornunicativa da virla cotidiana. C "objeto teórico" (pro-

11
73
duto de uma constÌ:ução, e não da experiência, porque esta não é confere às mensagens traços que não se atêm ao modelo tripartite
uma árvore de onde se pode arrancar um fruto) vem de um saber em que a produção (como na produção de mercadorias) define a
anterior prisão: Ípola conhecia os estudos semiológic os antes
à
de difusão e a recepção. Ípola força (exagera) o caráter analógico do
ser preso e, por isso, não escolhe um aspecto qualquer
de sua expe_ modelo comunicacional inspirado no modelo econômico, che-
riência, mas justamente aquele para o qual pensa estar preparado
e gando às raias do desmedido, como ao citar O capitalpara definir
que é interessante em termos teóricos. Em síntese,
Ípola tinha os o processo de circulação dabembacomo parte de seu processo de
instrumentos analíticos para escutar "cientifìcarnente" a bemba.
produção: "Em certo sentido, caberia dizer do'trabalho' das bem-
Não se fecha em sua experiência, mas a analisa como se sse fo a exp e_ basalgo muito parecido com o que Marx (O capitalvol.2) afirma
, riência de outro,colocando-se no extremo oposto do testemunho,
sobre o transporte de mercadorias, isto é, que esse trabalho se
embora sua matéria-prima seja testemunhal.
manifesta como'a continuação de um pïocesso deprodução den-
O que mais chama atenção em sua estratégia expositiva _
tro do processo de circulação epara este"'. Seria possível ler nessa
algo que não se repete em nenhumdos textos escritos nas
últimas citação de Marx uma perspectiva irônica se ela não estivesse em
décadas é que ele divide a matéria do artigo registrando sua
-
experiência de prisão erfi notas de pé de página, ostensivamente
total sintonia com os esforços realizados então por semiólogos e
marxistas que sublinhavam a subordinação de todo processo
fora do coÍpo principaÌ do texto em que ocorrem as operaçÕes
social sob o capitalismo às condições definidas pelo trabalho assa-
sócio-semiológicas, as análises e as hipóteses. A experiência em lariado na produção de mercadorias.
nota de pé de página e letra miúda é uma base empírica indispen_ Por sua excepcionalidacle, a bemba não corresponde ao
sável, mas mostrada em corpo rrrnor.*o modelo que, numa conjuntura teórica de modelos fortes, impiica
Ípola descreve aspectos da produção, .irJ.riuçao e recepção
levar em conta uma fo rçaçãa.Ípola analisa a partir desses rnodelos
do rumor carcerário, comparando esies três momentos com
o fortes e, por conseguinte, a bembalhe apresenta problemas a resol-
esquema analógico da produção e circuÌação de mercadorias
ver. O rumor carcerârío é uma instância de prova das possibilida-
mediante o qual, em fins dos anos 1960, alguns semiólogos tradu_
des dateoria porque é diferente de todas as outras mensagens, mas
ziam o modelo clássico de Roman Jakobson. o circuito comunica-
ao mesmo tempo é descrito naquilo que corresponde e naquiio
cional da bembaapresenta anomalias no vínculo entre produção,
que se clesvia de suas regras. É isso justamente que permite desco-
circulação e recepção das mensagens porque não é uma produção
brir em que consiste sua excepcionalidade, ou seja, a persistência
coinunicativa em condições normais, e, por conseguinte, a relação da comunicação num espaço de proibições quase totais, Para con-
entre os três momentos está distorcida peia escassez de informação
siderar essa excepcionalidade, Ípola não toma o carninho clo estu-
confiável, verossímil ouverdadeira, pelas dificuldades materiais
da do etnográfico da inventiva dos presos; nada está mais distante cle
comunicação e pela forte pressão de um tema (o da liberdade ou a
sua perspectiva do que uma reconstituição que coloque no centro
transferência) que, anuncia mudanças, pode entorpecer ou des_
se
os sujeitos. Antes, no centlo eie coloca uma estrutura de relações
truir as próprias condições de circulação das mensagens.
exposta conceitualmente. Não estuda os presos escutando ou
O caráter excepcional do meio onde se produz a comunicação
espalhando rumoÍes) mas as condiçÕes em que estes conseguem


75

t-.
-!,

significar alguma coisa. E interessam-lhe particularmente os pÍes- Naturalmente, o grande tema da bembasão as liberdades, os
supostos da verossimiihança do rumor. com sua análise ele não indultos e as transferências. O espaço carcerârto de sua produção
quer provar que sempre, em todas as condições, uma pequena define cruaÍnente o elenco de argumentos; e, como as bembas
sociedade consegue alcancar um pequeno mas significativo obje- nunca se concretizam, o caráter desses aïgumentos faz com que
tivo, e sim que a bemba altera as seqüências normais da circulação todas as mensagens com os mesmos temas devam ser esquecidas
de mensagens de um modo que a teoria será obrigada a considerar. para dar lugar a novas mensagens com os mesmos temas, que mais
Trata-se do estudo de uma exceção comunicacional, não simples_
uma vez serão esquecidas. Sem esse círculo em que o novo apaga o
mente de uma experiência comunicativa. anterior, desde o início o rumor estaria marcado pelo descrédito.
Ípola caract eriza aprisão como um espaço em que .,a qual- Lbembaé, basicamente, uma promessa de futuro que enveihece e
quer rnomento pode acontecer qualquer coisa". Essa indetermina_ moïre no mesmo dia, para dar lugar a outra promessa idêntica,
ção do esperado eryì termos cornunicativos é urna marca impos- mas fraseada com variações argumentais obrigatórias.
ta pelo poder carcerário para que os sujeitos vivam num regime Ípola se interroga sobre as condições de verossimilhança e as
semiológico de escassez. A qualquer momento pode acontecer bases da crença, e, ao fazê.-lq processa de modo analítico e inter-
qualquer coisa por doiímotivos: a fragmentação dainformação pretativo a circulação de rumores que ele enfrentou como preso.
que chega de fora, distorcida por redes de difusão fracas ou amea_
Em seu estudo, o vivido de uma experiência se faz presente só
cadas, e a escassez de mensagens que podem se produzir dentro,
nurrÌa confìguração descritiva que corresponde a normas discipli-
agravada por um regime de proibiçõ-es fortes mas oscilanteS, to_
nares. Por exemplo, quando, em agosto de I97 6,seespalha a bemba
do-poderosas e, ao mesmo tempo, instaveis. e_.rumor éa respos- ctra libertação de 2 rnil presos, Ípola analisa como o exagero, o cará-
ta à escassez e à indefinição das condiçÕes cornunicativas.
ter "imoderado" desse Íumor impediu que se acreditasse nele. Na
Como resposta a uma proibição sa uma escassez, abembase "Introdução'l ele volta a essa regra da moderação, que lhe parece
caracterìza llor seu "nomadismc'1 A rnensagem não se estabiliza verossimilhança do rumor. Mas iejei-
uma chave para explicar a a
era lugar nenhum nem pocle ser armazenada ein nenhurn registro
ção de trma bentba que comunica uma transferência em massa
de i'emória. Se não circutrar-,
fiìorre. A diferença das rnensagens exige explica,ção diferente: assim como se desconfia das bembas
"normals", abembasenlpre sobrepõe a produção e a difusão,
por_ otimisias demais, não se acredita naquelas de negatividade exage-
qr-re não hâ bembas guardadas pelos sujeitos, como eies podem
rada, que excluem qualquer esperança.
guardar as lrensagens subtraídas dc circuito comunicativo. Fora
Nessa recusa, Ípola obsen'a aigo mais importante: uma trans-
deste, a, ltentba'ão existe. E, assim como não pode ser guardada
ferência em rnassa destruiria as próprias condições de circulação
como conteúrcio de rnemória, essa própria impossibilidade garan-
de qualquer beml:a,porqlre sua difusão só é possível entre pessoas
te que os temas da bemba (mas não as mensagens) possam se repe_
muito conhecidas. Portanto, a resistência em aceitar um lumor de
tir sem que se esgote seu interesse, cliiereiateilente do que accnte- transferência vem clo fato de que ele ameaça o circuito e as condi-
ce en: condições "ilOrmais", em qr-le a r epetiçãa afeta o interesse por ções de produção comunicativa. A observação faz pensar que o cir-
d,esgaste da novidade informativa. cuito comunicativo se preserva além do desejo dos sujeitos qr,re

Z6
77
car-
nele intervêm. Abembaé o "grau zero" daresistência ao processo Lcaracletïzação das relações entre setores da populaçáo
por que Ípola pode
de desinformação carcerâria. Nesse grau zero,'(essas pobres miga- cerârrae seus guardas expÌica de algum modo
se submeter a ela' Os
lhas de informação" devem estaÍ sempre inscritas na lógica de seu fazer esse trabalho sobre a experiência sem
um conhecimen-
processo de produção e circulação, porque ali também alcançam carcereiros reconhecem que o preso político tem
extrair (ao contrá-
um grau deverossimilhança que evita suatransformação em men- to, geralmente político, que eies não conseguem
um conhe-
sagens frustradas, completamente descartáveis, na medida em que rio da informação, que pode ser extraídasob tortura)'
e sobre o qual Ípola
contradizem tanto as expectativas da recepção como as condições cimento aprendido nos livros, que não se perde
se considera um
em que devern ser produzidas e difundidas. funda sua identidade ao sair da prisão' Livre' não
esteve preso' "La
No papel de sociólogo da prisão, Ípola afirma que a recepção ex-preso da ditadura' mas um intelectual que
nas fontes teóricas
dabembadepende das categorias de presos que a escutam e difun- bemba" apresenta os fundamentos desse saber
que remete não só à
dem. A cïença no ïumor está ligada às qualidades e habilidades e sociolóiicas, citadas com uma abundância
intelectuais de seus receptores, que Ípola define, na estrutura da sua necessidade conceitual, mas também a essa definição identitá-
de seus carcereiros'
sociedade carcerâria, recorrendo a uma tipologia sociológica ria: lembram as armas do preso político diante
se constrói
orgamizadacom incisóíidentificado s de aa fr: membros orgâni- A teoria ilumina a experiência' O ensaio de Ípola
com o lugar ocupa-
cos de partidos de esquerda ou revolucionários; sindicalistas de com essa convicção, especialmente em sintonia
na antropologia estru-
alto nível e delegados sindicais médios; profìssionais e intelectuais do pela teoria no marxismo estruturalista'
de apoio
de esquerda sem militância; membros do governo peronistdder- tural, na semiologia, em que as crenças não são umabase
da ideologia' cuja
rnbado; simpatizantes distantes; e garrones, que ele descreve co- confiável, porque nunca estão livres da falsidade
intervenção apoiada
mo reveladores da verdade do sofrimento carcerário, na medida contarrrinação só pode ser dissipada poÏ Lrma
faz parte do
em que não podem, ao menos em princípi o,dar razãonem expli- no conhecimento' Por isso a experiência pessoalnáo
de pé de pagina'
caï em termos políticos o que lhes coube sofrer; o garrón é, para corpo do texto, lrtas está onde lhe cabe' nas notas
da página aPresenta
ÍpoÌa, uma condensação da prisão, e ele dedica uma extensa nota como "matéria-prima" da análise' O espaço
ao conheci-
a suas diversas categorias e procedências (digamos que o garrón grafìcamente a hierarquia que subordina a experiência
pessoa não tem outro privilégio além do
que
evoca, sem a mesma tragicidade, a figura do "muçulmano" nos L"nto. E a primeira
testemunhos de Plimo Levi). A tipologia da sociedad e carcerâria ganha pela sofìsticação de sua capacidade
analítica"'La bemba"
como o que se
não só exibe seu pretendido efeito de cientificidade, mas corrobo- inverte arelaçãoque cal acter izalanto o testemunho
pela teoria que pode expii-
ra) como outros recursos do texto, a distância que
Ípola quer man- escreve sobre ele. A experiência se mede
analisada'
ter da lembrança de sua experiência. Mais que revivê-la, ele pro- câ-la,aexperiência não é rememorada' mas
parece estranho
cura imprimir-lhe as categorias e a rctôríca expositiva de uma Examinando o artigo de Emilio de ipola' não
a experiência
disciplina que permita pensá-ia em termos gerais, extraindo-a da que tenha sido esquecido como texto que apresenta
são singularmente
esfera do imediatismo e da sensibilidade para pô-la na esfera inte- carcerâriadurante a ditadura' Suas qualiciades
lectual. alheiasàmassatestemunhaleàshistóriaspessoaisecoletivassobre

79
l8
o períoclo, porque se opõem a um modelo de reconstituição e tempo", possibilitada pela forma de poder inerente às Forças
denúncia que se impôs nas últimas duas décadas. Marcado pela Armadas, com o estilo da disciplina, a obediência e a burocratiza-
teoria do começo dos anos 1970, singular pela perspic âcia anaLiti- ção implícita na rotina miiitar. O excesso seria "a verdadeira noïrna
ca, "La bemba" não pode ser recuperado pelo movimento de reme-, de um poder desaparecedor". Também sugere a presença de uma
rnoração que coloca no centro a subjetividade confrontada com o matriz concentracionária na sociedade argentina, idéia que, ao
terrorismo de Estado. O ensaio quer ser algo mais e algo menos que tipificar uma reiteração histórica, uma espécie de constante que
isso; por excesso ou falta, fìcou invisível. supera as diferenças, é discutível, porque a originalidade do regi-
me do campo, justarnente demonstrada por Calveiro, rejeita a
hipótese de uma reiteração comvariantes. Se Calveiro temrazão,o
A EXPERÏÊNCIA DE OUTROS campo é uma invenção tão nova corno a figura do desaparecido
que deriva de sua existência. F.ntre repressão e desaparecimento,
Publicado em 1998, Poder y desaparición: Los campos de con- entre regime carcerário e regime concentracionário há distinçÕes
centración en Argentina, de Pìiar Calveiro, éa síntese de uma tese de que impedem pensar a persistência de urna matriz.A descrição
doutorado apresentáda no México,n Pilar Caiveiro foi uma prisio- analítica de Calveiro serve para provar isso.
neira que fìcou desaparecida durante um ano e meio, em1977,na Diante das Forças Armadas, as formações guerrilheiras são
À4ansão Seré; na delegacia de Castelar; na ex-casa de Massera etn "quase a condição sine qua non dos movimentos radicais cla
Panamericana e Thames) e na EscqJa de Mecânica da Mãrinha épocd'. Reconhecida por muitos não como uma opção equivoca-
(esu.+.). da, mas como "a expressão máxima da política, primeiro, e a pró-
O livro corìeça com uma caracterização da violência de pria política, mais tarde", a guerrilha começou a "reproduzir em
Estado, parapolicial, parapolítica e guerrilheira durante o goveÍno seu interior, pelo menos em païte, o poder autoritário que tentava
peronista derrubaclo em 1976. As hipóteses apresentam uma chave questionar". Caiveiro avalia de forma diferenciada os Montoneros
irìstórica conhecida: a primeira intervencão do Exército em 1930 e e o Exército Revolucionário do Fovo (snp) quando assinala que

as sucessivas alianças entre partidos políticos, elítes socioeconô- Roberto Santucho, líder do Eru, em julh o de 1976, pouco antes rÍe
rnicas e Forças Armadas demonstrariam qr.le os goipes de Estado sua morte, afilmou que o principal equívoco dessa formação
foi"am o produto de segr-licios enconiros de interesses, impulsos armada foi "não ter lecuado" e ter menosprezaclo seu isolamento ,

inírtuos e colusão de facções. Aqui n ão há nada que se afaste de uma do "movimento de rrrassas"; a estratégia montonera, eirÌ corrÌpen-
Ìeitura da história que cleixori para tr'ás a idéia cla existência de uma sação,fezprevalecer "uma Lógica revolucionária contra todo sen-
sociedacie lnocente, vítima sern responsabilidade nas intervenções tido de realidade, partindo, como premissa inqr-restionár'el, da cer-
railitares. C alcance interpretaiiiro do iivro tambérn se estende à teza absoÌuta do triunfo". For um lado, a guerrilha era a fotma
slla iese so-bre a ciitadura em i.97 6. principal dapaliticarerroiucionária no corneço da década de l97A
Calveiro aftttnaque o "campo de concentração" (cle tortura e e, por ísso, não poderia ser avaliada siinplesmente coirlo uirr ater-

desaparecimento) é "uma críaçâo periférica e inodular ao rnesmo que deloucura coletiva; poï outro, as duas principais organizaçoes

8o 81
guerrilheiras mantiveram com sua prática uma relação que Cal- ciosamente presente (o leitor sabe) e ao mesmo tempo elidida.
veiro (ex-militante montonera) acredita necessário diferenciar, Calando a primeira pessoa para trabalhar sobre testemunhos
por motivos queveremos em seguida. alheios, a partft de uma distância descritiva e interpretativa,
Quanto à guerrilha e a suas organizações de superfície,. Calveiro num lugar excepcional entre os que sofreram a
se situa
Calveiro se afasta do senso comum elaborado durante os primei- repressão e se propuseïam a representá-la. A verdade do texto se
ros anos da ditadura, persistente até hoje, de que o destino que desvincula da experiência direta de quem o escreve, que indaga na
coube aos desaparecidos se deu de modo casual. Em contraparti- experiência aiheia aquilo que poderia imaginar que sua própria
da, Calveiro afirma que amaioria deles era de militantes ou envol- experiência lhe ensinou. Por isso, o texto não exerce uma pressão
vidos periféricos; a repressão, o desaparecimento ou a tortura de moral particular sobre o leitor, que sabe que Calveiro foi uma
parentes, vizinhos e testemunhas não fazem parte da lei geral do presa-desaparecida, mas sobre aqueie de quem não se exige uma
sistema desaparecedor. Mas sua inclusão fortalecia a idéia de que crença baseada em sua própria história, e sim nas histórias de
"qualquer um podia cair", e assim consolidava o regime de ter-
se outïos, que ela retoma como fonte e, portanto, submete a operâ-
ror. Ao estabelecer essa diferença com o discurso mais difundido, ções interpretativas. Calveiro está se referindo a fatos excepcionais;
Calveiro se desvinculadesse senso comum cuja função nos anos da mas não exige que ninguém acredite neles só pela carga de sofri-
ditadura aindahoje deve ser avaliada, na medida em que, ao se afir- mento humano que (lhe) produziram, e sim pelo dispositivo inte-
mar que o acaso era lei geral, as conseqüências podiam ser tão des- lectual que os incorpora a seu texto. A leitura é iivre porque
mobilizadoras como a acusação de arbitrariedade total que caía Calveiro não se apresenta como prova do que foi dito, embora se
sobre os repressores. A análise de Õílveiro é mais complexa: na saiba que sua vida é parte dessa prova. A diferença é essencial:
medida ern que os centros de tortura e"*ort" fãdiam ser eventual- alguém investiga o que aconteceu com outros (embora exatamen-
mente vistos) como era o caso daquele'daAeronáutica, que funcio- te isso the tenha acontecido). Por outro lado, as hipóteses de
nava num hospital, ou das entradas e saídas ostensivas de uma Calveiro, por não estalem apoiadas unicamente em sua experiên-
delegacia, a comprovação de que as "histórias" sobre a repressão cia de tormento, podem ser discutidas.
encontravam provas parciais nos aspectos visíveis da máquina Como a primeira pessoâ se apaga,a obra de Calveiro proclrra
repressora reforçava o terror social. legitimidade não na persuasão nem em motivos biográfìcos, mas
Essas teses críticas não são, porém, o que mais impressiona no intelectuais. É claro que, provavelmente, o livro não teria sido
livro de Calveiro. Elas implicam, é claro, um julgamento sobre as escrito se não tivessem existido razões biográficas, mas essa sim-
organizações guerrilheiras, e também urna idéia do caráter da ples comprovação vale para muitos livros de teinas bastante dife-
repressão militar, a urn só tempo novo e apoiado numa história. O rentes. A biografìa está na origem, mas não no modo expositivo,
que seu livro ttaz coma interpretação central não é o que está sin- nem na retórica, nem no aparato de captação moraÌ do leitor.
tetizado até aqui, mas sua análise do campo de concentração. Assim, o que é singularmente original no iivro de Calveiro é a
Ali, sua experiência como prisioneira torna possívei o rnane- decisão de prescindir de uma narração da experiência pessoal
jo de outros testemunhos, entre os quais sua experiência está silen- como prova de seu argumento. Trata-se de uma negativa explícita.

8z 8t
Depois de anos de publicação de testemunhos, Calveiïo' que pos- me levem lá e, como estava amamentando minha Íìlha menor, de
sui os mesmos materiais vividos que os autores de narrações em quarenta dias, me davam mais tempo para que eu pudesse tirar o
primeira pessoa) opta por se separar do relato de suaexperiência, leite. Entro no banheiro, abro a janela e pulo. De pé. Eu me aventu-
coÌn o objetivo de üansformat a experíë,ncia concentracionâtia rava a duas coisas: a primeira, e fundamental, tentar fugir e perder-
argentina em objeto de hipóteses interpretativas. Nessa escolha me na Rivadavia i...] A segunda: se houvesse guardas lá fora eles
expositiva as idéias não aparentam surgir do próprio solo do vivi- poderiam me matar assim se acabava a história [. . . ] Eles ouvem
e

do. Calveiro se propôs a ser uma cientista social que tambémfoi obarulho de minha queda, melevantam elevam para cima,literal-
uma desaparecida; por isso, transformou-se no que não ela antes mente aos pontapés".'O livro silencia esse fato, suas circunstâncias
de sofrer a repressão e tornou-se cientista sacialporquefoi desapa- e conseqüências;também siiencia a existência dessa fìlha de qua-
recida. O livro não prolonga no presente sua identidade de útima. renta dias; nós, leitores, ficamos sabendo isso depois, em reporta-
Emvez de reparar o tecido de sua experiência, ela se esforça em gens publicadas quando sai a edição argentina da tese rnexicana.
entendê-ia em termos que não dependam exclusivamente do seu Calveiro, quando escreve e analisa, refere-se ao ato suicida
vivido. Pol isso a argument ação emais forte e extensa do que a nar- como a decisão que enfurecia os desaparecedores e tinha as conse-
ração sobre a quai se apóiã e moral
da qual parte. Do ponto de vista qüências rrais cruéis, porque significava um exercício proibido da
e político, ela faia como cidadã, não como ex-militante presa e tor- vontade, mas não menciona sua experiência, embora ela possa
turada. Seu direito ven de algo universal, e não de uma circunstân- persistir numa rernemoração calada. Como dado pessoal, essa
cia terrível. ç:: experiência foi apagada de um livro adequado a uma argumenta-
Alguns exemplos são muito evi.dentes. Calvei.ïo afirma que os ção baseada nos relatos de outros, isto é, nas fontes que Calveiro
desaparecedores se imaginam deuses, corn poder absoluto de vida pode analisar como material não autobiográfìco (embora sua vida
einorte. Essa consciência onipotente dos quê detinham o poder de seja um fundo sobre o qual esses dados tarnbém façam sentido,
decisão nesse âmbito explica a. cólera que seniiam <iiante do suicí- como se ela se dissesse que o que experimentou produz algurnas de
dio ou da tentativa de sr-ricídio cle um pïeso, que, por esse camínho suas condições de leitura).
definitivo, tentava escapaï à lógica totaX em que fora incluído. Ao Em vez de sua tentativa de suicídio, Calveiro escreve:'? morte
apresental essas iripóteses, Calveino não menciona slla própria podia parecer uila libertação. Na verdade, os torturadores usavam
tentativa de fuga, que foi interpretada coino suicídio e despertou a expressão'foi-se'para designar alguém que elestrnham matado
uma série feroz de represálias. É isso que ela diz a |uan Gelrnan dr-rrante a tortura. E, no entanto, decidir a própria morte era uma

nlrma reuoriagem, c,uairdo coioca no ii-lgar de quem dá urn tes-


se das coisas proibidas ao desaparecido, que então clescobria a difi-
ternunho, o qual não ocupa em seu próprio iivro: "Pulo pela jane- culdade, jânão de viver, mas de morrer. Morrer irão era fácil den-
la do prirneiro andar da Ìv{ailsão Seré poÍqìle païa mim é claro que, iro de uin campo. Teresa À4eschiati, Susana Burgos e muitos outros
à medida que o tempo passal, estarei em condições ffsicas cada'rez sobreviventes relatam tentativas por vezes absurdas, mas desespe-
pioles, perderei a iniciativa. Então penso que devo teagír' jâ'Eu radas, para encontrar a morte: tomar água poluída, deixar c1e res-
tinha visto que a janela do banhelro não estava tï ancada. Peço que pirar, tentar suspender voluntariamente qualquer função vital.

8+ 85
Mas não era tão simples. A máquina inexoriivel tinha se apropria- rece um conhecimento que, de certo modo' tem caráter indiscutí-
do zelosamente da vida e da morte de cada um". Teresa Meschiati, vel, tanto pelo imediatismo da experiência como pelos princípìos

Susana Burgos e fazpafie


outros: nessa curta enumeração, Calveiro morais que foram violados.
dos outros. Seu objetivo não é provar que o campo foi tão terrível Calveiro renuncia a essa proteção de uma auto-referência
que ela tentou se suicidar; não quer usar seu corpo como base tes- empírica. Claro, não poderia ocultar (seria não só impossível
temunhal. Quer provar, de modo mais amplo e intelectual, que as como absurdo) que foi uma detida-desaparecida, torturada, sobre
condições do carnpo podem conduzir à tentativa de suicídio de quem sesxerceram todas as violências do terrorismo de Estado.
muitospresos e que todos os desaparecedores reagem diante desse Mas, em vez do eu, surgem os testemunhos de terceiros. Calveiro
gesto último de liberdade com o exercício mais extremo da violên- não assume o lugar que lhe cabe para escrever seu Ìivro porque
cia, Calveiro não se apresenta como uma testemunha, mas como procura uma interpretação que é mais possível se suas fontes são
uma mulher em cuja vida houve o desaparecimento e a tortura, outras. Analisa a experiência e as condições que a proYocaram; mas
que recupera como matéria de uma análise que ela mesmarealíza. não põe suaexperiëncia no centro.
A vítima não procura úma identidade em sua biografia, mas no Ela constrói uma distância analítica com respeito aos fatos. A
dispositivo intelectuáfcom que rnonta seu argumento. dimensão autobiográÍìca quase ausente cede lugar à dimensão
Ela, Pilar Calveiro, a detida-desaparecida da ditadura, não argumentativa: onde se devia falar em primeira pessoa, fala-se em
vem dar seu testemunho, mas recebê-lo de outros detidos-desapa- terceira. O tempo passado não é o do testemunho e de sua dimen-
recidos. Essa mudança de lugares (gr1e não enfraquecesolidarie- a são autobiogrâfr.ca,mas o da análise daquilo qlre outros narrarailì

dade nem a simpatia, mas exclui Calveiro {g9se dom, porque ela e da elaboração de classificações e categorias: o tipo de tortura, os

procuÍa ser reconhecida em outro lugar e por outros motivos) é passos da resistência e os da delação, a lógica do campo' que repro-

claramente indicada nas fontes testemunhais que o texto mencio- duz a do pensamento totalitário, a vicia cotidiana dos desaparece-
na e cuja procedência se esclarece em notas. dores, jogando uma partida de truco que telrì como fundo solforo

Mas há umas poucas e mínimas inscrições autobiográficas: os discursos de Hitler; a coexistência do legal e do ilegal, do com-

seu próprio nome e seu número de pr esa,47 ,aolado do de Lila Pas- pletamente secreto e da quebra do segredo para induzir a urn ter-
tor generahzado; a categoria de subversivo que produz em simetria
toriza;uraa dedicatória:'A Lila Pastoriza, amiga querida, perita na
arte de encontrar brechas e disparar contra o poder com duas a do desaparecido. Uma sociedade concentracionária se desenha

armas de altíssima capacidade de fogo: o riso e o deboche". Suavida com suas leis e exceções, com os espaços entreglÌes ao impulso dos

está ali, mas Calveiro se recusa a citá-ia, como cita as iembranças de desaparecedores e os espaços regulamentados até nos detalhes
outros presos. Se uma detida-desaparecida fala de sua experiência mais insignificantes'

carcerâria emprimeira pessoa, o discurso resiste à discussão inter- Calveiro não escreve uma "fonte". Por isso é possível concor-
pretativa (como assinalou Ricceur); seu caráter extremo é uma dar ou discordar do que afìrma, sobretudo em suas hipóteses mais

espécie de blindagem que o cerca, transformando-o em aigo que gerais. A liberdade de leitura (uma liberdade intelectual e moral)

deve ser visto antes de analisado. O texto em primeira pessoa ofe- se encontra mais segura nesse terreno do que no da primeira pes-

B7
B6
soa, justamente pôrque â primeira pessoa tem um direito e uma experiência intransmissível, irrecuperável, da típica vítima. Tam-
capacidade impositiva, de presença, que faltam à terceira pessoa. bém aqui há uma reticência: Levi se vê obrigado a falar em lugar dos
Diferentemente do eu de um testemunho , cujarelação com os que não falam. Calveiro, cercada pelos que sobreviveram para falar
fatos é dificil de pôr em dúvida (deveria se demonstrar, por exem- e responder assim, indiretamente, à idéia de Levi, pega outro cami-
plo, que se trata das rnemórias de um vigarista) e em que é preciso nho igualmente complexo: não falar em nome próprio. Nessa ces-
muita desconfiança ou m â-féparadiscutirsuas asserções, Calveiro são da primeira pessoa, Calveiro sacrifica não apenas) como se
não se apresenta como testemunha, mas como analísta do teste- poderia pensar, a riqueza detalhada e concreta da experiência, mas
munho de outros. Nessa posição ela pode se mover com alegitimi- sua autoridade imperativa, seu caráter, afinal, intratávei.
dade de quem expulsou o próprio testemunho para incluir seu jul-
gamento, não sua experiência, nos termos de uma disciplina social
e de uma condenação moral e política que prescinde do próprio
sofrimento para ser justa. Seu
livro não decorre da prisão e da tor-
tuïa, mas do exíiio no México, onde ela pesquisou e incorporou os
instrumentos intêlectuais paÍa escrevê-lo, situando-se em primei-
ro lugar no mais acadêmico dos espaços e no gênero mais pesada-
mente escolar: a tese de doutorado, que ordena a exclusão do eu,
sem exceçÕes.
C que Calveiro faz com suã âxperiência é original com respei-
to ao espaço testemunhal. Ela"afirma que a vítima pensa, até
mesmo quando está à beira da lducura. Afirma que a útima dei,xa
de ser vítirn a porque pensa. Renuncia à climensão autobiográfica
porquequff escrever e entender- em ieÍmos mais ampios que os da
experiência sofrida.
Frimo Levi escreveu extensaìnente sobre como as condições
,Jo Lager afetavam os "muçulmanos", aqueles presos que já não
pertenciam ao mundo dos vivos porque tinharn abandonado toda
pulsão de vida, até em seus níveis físicos rnais elementares. Assi-
nalou que a v et dade da Lager estal,a Ítesses hornens n.ão y iy a s, mais
qlre nas categorias de presos nas quaís ele mesmo se inscrevia.
Assiiralou tambén: qr-re, soble a i'erdade final do Lo,ger,só os inor-
tos, isto é, aqueles cujo testemunho jamais se poderá escutar,teriam
i-rma palavra a dizei. Seus terics oclipan-r esse vazio rjeixado pela

oo
Bg
"lembrança",
anne Hirsch chama de "pós-memória" esse tipo de
5 . Pós - menró ria, reconstituições dando por inaugurada uma categoria cuja necessidade deve ser
"pós-
provada.' Interessa a Hirsch salientar a especificidade da
memória" não para se referir à memória púbiica, essa forma de his-
tória transformada em relato ou monumento, que não designa-
mos simplesmente com a palavra história porque queremos
Ela dá
salientar sua dimensão afetiva e moral, em suma, identitária.
,,lembrar" usos distintos dos que receberia no caso da
ao verbo
memória pública; não se trata de lembrar como a atividade que
prolonga a nação ou uma cultura específica do passado no pÏesen-
te através de seus textos' mitos, heróis fundadores e
monumentos;
tampouco lembrança comemorativa e cívica dos "lugares de
éa

memória". Trata-se de uma dimensão mais específica em


termos
Como
de tempo; mais íntima e subjetiva ern termos de textura'
James Young, no começo de At memory's edge,'pergunta-se pós-memória se designaria a memór íadagetaçã"oseguinte àqueia
que sofreu ou protagonizou os acontecimentos
(quer dizer: a pós-
como "lembrar" aqueles fatos que não foram diretamente experi-
mentados, como "lembrar" o que nãose viyeu. As aspas que sÍrqua- memória seria a "memória" dos filhos sobre a memóriados pais).
dram a palavr a lembrar indicam umüSb fi gurado: o que se "lembra" A idéia percoÍreu um longo caminho nos estudos sobre o século
é o vivido, antes, por outros. "Lembiar" se ãiferencia de lembrar xx. Aqui me proPonho a examiná-la'
pelo que Young denomin a carâter vièârio da "lembrança". Hirsch e Young assinalam que o traço diferencial da pós-
"lembranças"'
A dupla utilização de "lembrar" torna possível o deslocamen- memória é o carâter ineludivelmente mediado das
direta
to entre lembrar o vivido e "lembrar" narrações ou imagens alheias Mas os fatos do passado que as operações de uma rnemória
e estão ttni-
e mais remotas no tempo. É impossívei (a não seÍ num processo de da experiêricia podem reconstituir sào muito Poucos
identificação subjetiva inabitual, que ninguém consideraria nor- dos vidas dos sujeitos e de seu entorno imediato' É pelo discur-
às
o resto dos
mal) lembrar em termos de experiênciafatos que não foram expe- so de terceiros que os sujeitos são informados sobre
rimentados pelo sujeito. Esses fatos só são "lembrados" porque fatoscontemporâneos a eles; esse discurso, por sua vez' pode estar
em
fazemparte de um cânone de memória escolar, institucional, polí- apoiado na experiência ou resultar de uma construção baseada
como
fontes, embora sejam fontes mais próximas no tetrtpo'
o
tìca e até familiar (a lembrança em abismo: "lembro que meu pai
o de Burck-
lembrava", "lembro que na escola ensinavam", "lembro que aquele clássico de Fustel de Coulanges sobre os romanos ou
fon-
monumento lembrava"). hardt sobre o Renascimento. Nas sociedades modernas' essas
são crescentemente midiáticas, desvinculadas
da escuta direta
Alertado intermitentemente pelo marco que enquadra o lem- tes
de uma história contada ao vivo por seu protagonista ou
por
brado, Young assinala a carátet "vicárío" dessa meinória. Mari-

97
9o
,rllirrórn que ouviu seu protagonista. A oralidade imediata (as his- midiáticos" não são a última novidade, como parecem acreditar
tLrr irs do narrador que Benjamin pensa que deixaram de existir) é alguns especialistas em comuni caçáa, mas a forma como foram
r r ,r I ir:amente inencontrável, exceto sobre os fatos do mais estrito
conhecidas, para mencionar exemplos que têm quase um século, a
;

,r,tirliano. O resto são histórias recursivas: histórias de histórias Revolução Russa e a Primeira Guerra Mundiai. Jornais, televisão,

r,', .lhidas nos meios de comunicação ou distribuídas pelas insti- vídeo, fotografia são meios de um passado tão forte e persuasivo

I rrit, ocs. Por isso a mediação de fotografias, em Hirsch, ou o regis- como a lembrança da experiência vivida, e muitas vezes se confun-

Iro t Ic todos os tipos de discurso a païtiï dos quais a memória se dem com ela.

, . rri{ rói, em Young, não marcam um traço específico que mostre Young se estende acercados problemas colocados pelo cará-

,r rrlt cssidade de uma noção como a de pós-rnem órta, alé agota ter vicário da lembrança de um passado que não se viveu, como se

irrlxir;tente. fosse um traço inédito que pela prim eiravez caracterizasse os fatos

Se o que se quer dizer e que os protagonistas, as vítimas dos de uma história recente. Mas é óbvio que toda reconstituição do

l,rlo:; ou simplesmente seus contemporâneos estritos têm deles passado évícâriae hipermediada, exceto a experiência que coube
urìì;r cxperiência direta (por mais direta que possa ser uma expe- ao corpo e à sensibilidade de um sujeito.

r ii'rrt ia), brastaria denominar memória a captura em relato ou em A palavra pós-memória, empregada por Hirsch e Young, no
caso das vítimas do Holocausto (ou da ditadura argentina, já que se
,r r lirrrnento desses fatos do passado que não ultrapassam a duração

rlt' rrrla vida. Esse é o sentido restrito de memória. Por extensão, estendeu a esses fatos) descreve o caso dos filhos que reconstituem

e ssir rnernória pode se tornar um discurso produzido em segundo


as experiências dos pais, apoiados na memória deles, mas não só

grn rr, com fontes secundárias que não"vêin da experiência de quern nela. A pós-memória, que tem a memória etn seu centro, seria a

cxcrce essa memória, tnas da escuta davoz (dü-da visão das irna- reconstituição memorialística da memória de fatos recentes não
qcrrs) dos que nela estão impiicacios. Éssa é a rnemória de segunda lrividos peio sujeito que os reconstitui e, por isso,Young a qualifica

familiar de fatos auspiciosos ou trá- c0mo "rricária". Mas mesmo caso Se admita a necessidade da noção
llcra ção,lembrança pública ou
gicos. C prefixo pós indicaria o habitual: é o que vem depois da de pós-rnem 6ria paru descrever a forma como uirì passado não

ineinória daqueles que viveram os fatos e qÌ.le, ao estabelecer corn vivido, embora muito próximo, chega ao presente, é preciso aclmi-
tir tambrém que tada experiência do passado é úcriria, pois implica
cla essa relação de posterioridade, também tem conflitos e contra-
d ições característicos do exame rntelectual de um discurso sobre o sujeitos qlÌe procurâm entender alguma coisa colocando-se, pela
passado e de seus eíeitos sobre a sensibilidade. imaginação ou pelo conhecimento, no lugar dos que a viveram de
Apresenta-se corno novidade algo que pertence à ordern do fato. Toda narração do passado é uina representação, algo dito rto

cvidente: se o passado não foi'zivido, seu relato só pode vir do lugarãeumfato" O vicário irão é específico da pós-rnenória'
conirecido aitavésde rrrediações; e, fi1esmo se foivlvido, as rrtedia- Tampouco a mediaçã-o (ou "hipermecliação'] colno escre\re
Ybung parafortalecer por hipérbole seu argurnento) é uina quair-
ções fazem parte desse relato. Obviainente, quanto rnaior
o peso
dos meios de cornunicação na construção do público, maior a dade específìca. Nurna cultura caracterizadapela comunicação de

influência que terão sobre essas construções do passado: os "fatos massa a distância, os discursos dos meios de comunicação sempre

93
õ)
funcionam e não podem ser eliminados. Só a extremaprivação,
o
isolamento completo ou a loucura se subtraem a eles. por pesquisa, ajovem arqueóloga que chega da França para descobrir
outro
lado, a construção de um passado por meio de relatos e as condições damorte do pai não está de certo modo reduplican-
represen_
tações que lhe foram contemporâneos é uma modalidade do os métodos da tese que foi realizar no planalto pampiano?'Se
da his-
tória, não uma estratégia original da memória. o historiador forte envolvimento da subjetividade parece suficiente para se
esse
per-
corre os jornais, assim como o filho de um seqüestrado pela denominar um discurso de "pós-memótia", ele o será não pelo
ditadura examina fotografias. o que os distingue não caráter lacunar dos resultados, nem por seu caráter vicário. Sim-
é o carâter
"pós"daatividade que realizam, mas o envolvimento plesmente se terá escolhido chamar pós-memória o discurso em
subietivo nos
fatos representados. queháo envolvimento dasubjetividade de quem escuta o testemu-
' o
que diferencia,deumlado,abusca que os firhos fazemdos nho de seu pai, de sua mãe, ou sobre eles.
vestígios de um pai ou mãe desaparecidos e, de outro, a prâtica O gesto teórico parece então mais amplo que necessário.
de
uma equipe de arqueólogos forenses no sentido do esclarecimen- Não tenho nada contra os neologismos criados por aposição do
to e da justiça em termos gerais prefixo pós;pergunto apenas se correspondem a uma necessidade
é a intensidade da dimensão sub_
jetiva. Se se quer dar o nome de pós-memória à história do desapa_ conceitual ou se segllem um impuìso de inflação teórica. Desde o
recimento do pai recónstituída pelo filho, esse nome só seria século xx a Ìiteïatura autobiográfi ca abunda em memórias da me-
aceitável por duas características: o envolvimento do mória familiar. Sarmienlo, em Recuerdo s de prov incia, começap ela
sujeito em
sua dimensão psicológica mais pessoal e o caráter não ,.profissio_ história de sua familiae a reconstitui (bem arbitrariamente, deve-
nal" de sua atividade. O que o diferencia do historiador ou de um mos admitir) apartir de fontes familiares e uns poucos documen-
promotor, senão o que decorre da ordem da experiência subjetiva tos. Hoje, esses capíiulos de seu livro receberiam o nome de pós-

e da formação disciplinar? Só a memória do pai. memória, o que parece completamente desnecessário para se
Se é para chamar
de pós-memória o cliscurso provocado no firho, isso se deve compreender arelação complexa e conflituosa de Sarmiento com
à tra-
ma biográfìca e moral da transmissão, à dimensão subjetiva e mo- seu pai, o esteticismo e a vibração moral do retrato de sua rnãe e as

ral. Em princípio, ela não operaçÕes de invenção- recriação de uma família que, por seus bra-
é necessariamente nem mais nem menos
fragmentária, nem mais nem menos vicária,nem mais nem rne_ sões,lhe permite afirmar-se como filho de uma linhagem, e não só

nos mediada do que a reconstituição realizada por um terceiro; de suas obras. Victoria Ocampo começa sua autobiografia com o

mas dela se diferencia por ser perpassada pelo interesse subjetivo avô, que era amigo de Sarmiento;para entender esse começo é per-

vivido em termos pessoais. feitamente inútil o conceito de "pós-memória", que, em teoria,


O que faz Art Spiegelman senão pôr em cena, nìjma história deveria ser aplicado.

em quadrinhos, os avatares específicos da construção de uma"his- O fato de essas mernórias familiares de Sarmiento ou Ocampo

tória oral" em q*e sua subjetividade está envolvida, já que se trata não terem sido traumáticas, será que é isso que as separa dos relatos

de sua própria família, mas onde aparecem, além disso, muitos da pós-memória? Se assim f,osse, não se trataria de uma noção que

problemas do historiador?r E, quando descreve as etapas de sua só serve para se referir a fatos terríveis do passado (o que implicaria
defini-la por seus conteúdos)? Tendo acte\ de preferência, que a

94
o<
ï
I
{

Ê
t

i
tcoria da pós-memória não ievou em contâ esses avatares clássicos l
(pelo menos essa é a versão de Hirsch, que passa pelo centro exato
cla autobiografra- sobre os quais se escreveram bibliotecas desde I
l
do que aconteceu com sua própria família).
<1ue o tema foi inaugurado por Gusdorf e Starobinski e se incorpo- No entanto, uma observação de Hirsch, no fìnal de seu livro,'
rou à rnoda crítica por Lej eune mas foi elaborada no quadro dos . apresenta umarelação menos naÍcisista com as Elaafrr-
categorias.
cstudos culturais,
-,
especificamente naqueles que dizem respeito ao ma que, no caso dos judeus laicos e urbanos, a identidade judaica
[:lo]ocausto. A noção foi pensada nesse espaço interdisciplinar, e só se constrói como conseqüência da Shoah. Nessa dimensão identi-

aÌi se poderiam afirmar suas pretensões de especificidade, tanto na târia, a pós-memória cumpre as mesmas funções clássicas da
qualidade do fato rememorado, como no estilo co-memorativo das memória: fundar um presente em relação com um passado. A rela-
atividades que mantêm sua lembrança. ção com esse passado não é diretamente pessoal, em termos de
Mas os estudos de rnemória (nos últimos anos desenvolvidos famíiia e pertencimento, mas se dá através do público e da memó-
cm quantidades industriais, sobre todos os temas e identidades) ria coletiva produzida institucionalmente. É essa a dimensão em
citarn a noção de "pós-memória" (sobretudo tal como Hirsch a que se movem os ensaios de Young, que discute apenas a pós-
apresenta) como se elapossuísse algurna especificidade heurística memória do Holocausto e as estratégias de monumentalização
além do fato de que sê trata do registro, em termos memorialísti- (refutadas pelas estratégias simétricas dos contramonumentos).
cos, das experiências e da vida de outros, que devem pertencer à A questão é se a quaiidade "pós" diferencia a memória de
geração imediatamente anterior e estão ligados ao pós-mernoria- outras reconstituições. Corrio se viu, os teóricos da pós-memória
lista pelo parentesco mais estreito. Egs-a noção setornou umdnovi- argumentam de duas maneiras, oferecendo duas razões para a
dade teórica sintonizada com outro apogeu d-isciplinar: o dos estu- especificidade da noção. A primeira é que se trata de utna memó-
dos sobre subjetividade e sobre as "riovas" dirnensões biográficas rtavicínia e rnediada (esse é o argumento central de Young, que
cleslocamento feito pelo próprio livro de Hirsch, com capí- tende a considerar como um traço específico aquilo que é próprio
tuios em que assistimos à- análise cautelosa de fotos dela com a rnãe, do discurso sobre o passado); a segunda é que se trata de uma
tiradas pouco antes poï um fotógrafo de imprensa que, na opinião memória em que estão implicados dois níveis de subjetividade
de Fïirsch, não soube captaÍ a carâtet da relação que une mãe e (esse é o algLurìento central de l-{irsch, que tende a acentuaÍ a
filha; sem falar cla explicação de como Hirsch construiu o álburn de dimensão biográfica com valor identitário das operações de pós-
fotos familiares oferecido aos p,ais num aniversário importante memória). Ambos coincidem no aspecto fragmentário da pós-
(para a família Flirsch, é claro). inflaçãoteorica da pós-inemória memória e o consideram ulrÌ traço diferencial, como se os discur-
se redr-lplica, assiin, num armazém de banalidacles pessoais iegiti- sos sobre o passado não se definissem tarnbém por sua raclical
madas pelos novos direitos da subjetivldade, que se exibem não só incapacidade de reconstituir um todo.
no espaço trágico dos filhos do Holocausto, ffÌas naquele inais Abandonando-se o ideal de urna história que atinja a totali-
amável de imigrantes centto-elrropelìs que se deram bem na dade por rneio de certos princípios gerais que trhe dariam unidade,
Ainérica do Norte e encoiltram poucos traumas en-Ì seu passado toda lristória éftagmentária. Se o que se quer aíìrmar é que as his-
qr-le nãc se refiram a corno integrar-se aos novos costltmes e rnodas tórias ligadas ao Floiocausto o são ainda mais, tererrros de buscar

E6 97
as razões para admitir que sua memória tem mais lacunas do que aidéiadevazio deixada pelo Holocausto, essa evidência se transfe-
outïas. Primo Levi avança por esse caminho, porque acredita que a re, sem maiores exames, a outros "vazios". Filosoficam ente à la
verdade do Lagerestá nos mortos, que jamais poderão voltar para mode,essacorrente é mais sugestiva do que sólida.
enunciá-la. Mas, fora dessa convicção de Levi, seria preciso de-" A"vazio" entre a lembrança e aquilo que se lembra é ocupa-
monstrar a incompletude da memória sobre o Holocausto, um do pelas operações lingüísticas, discursivas, subjetivas e sociais do
acontecimento maciçamente cercado de interpret ação: aprópria relato da memória: as tipologias e os modelos narrativos da expe-
palavra com que é designado é umainterpretação trans-
de sentido riência, os princípios morais, religiosos, que limitam o campo do
cendente e inflexão religiosa. Na verdade, hoje o Hoiocausto não lembrável, otraumaque cria obstáculos à emergência dalembran-
parece lacunar, a menos que se pense que seu aspecto fr-agmentá- járealizados que incidem como guias de avalia-
ça, os juÌgamentos
rio vem do fato de não
se ter conseguido reconstìtuir cada umdas ção. Mais que de um vazio, trata-se de um sistema de defasagens e
acontecimentos (pretensão algo primitiva em termos de método, pontes teóricas, metodológicas e ideológicas. Se alguém quer cha-
embora represente umvalormoralno sentido dequ e cadaumadas mar esse sistema de "v-azio",temo direito de fazê-lo, na medida em
vítimas tem direito à reconstituição de sua história, que, no aspec- que defina outro espaço (entre o fato e sua memória) onde ocorra
to pessoal,obviameíte única). Ou também qlle o centro damâ-
é o discurso e se operem as condições de possibilidade. E um vazio
quina de morte, as câmaras de gás e os crematórios só podem ser cheio de retórica e de avaliação.
reconstituídos arqueologicamente. O aspecto fragmentário do discurso de memória, mais que
O aspecto fragmentário de toda memória é evidente."Ou se uma qualidade a se afirmar como destino de toda obra de reme-
deseja dizer algo mais que isso, o,rïimplesmente se está jogando moração, é um reconhecimento exato de que a relnemoração
sobre a pós-memória aquilo que se aceita universalmente desde o opera sobre algo que não está presente, para produzi-lo como Pre-
momento em que entïaram em criseãs grandes sínteses e as gran- sença discursiva com instrumentos que não são específicos do tra-
des totalizações: desde meados do século xx tudo é fragmentário. balho de memória, mas de muitos trabalhos de reconstituição do
Esse aspecto fragmentário decorre, na opinião deYoung,u do passado: em especial, a história oral e aquela que se apóia em regis-
vazio entre a lembrança e aquilo que se lembra. A teoria do vacuurn tlos fotográficos e cinematográfÌcos. O aspecto fragmentário não
ignora o fato de que essevazio sempre marca qualquer experiência é uma qualidade especial desse discurso que se vincularia com seu
de rememor ação, até a mais banal. Young passa sem a menor difi- "vazio" constitutivo, mas uma característica do relato, de urn Ìado,
culdade por cima dovazio deixado pelo Holocausto, do vazio dos e do caráter tnevitavelmente lacunar de suas fontes, de outro. Só na
judeus na Alemanh a e do vazío que está no centro da experiência teoria do irrepresentável do Holocausto seria possível afirmar a
da lembrança. Arma-se assim urna espécie de corrente metoními- prevalência d ovazto sobre a palavra. Mas, nesse caso, não se trataria
cadeumvazio para outro, embelezada por todos os prestígios teó- de relatos lacunares, e sim impossíveis. Em outros casos de discursos
ricos, a que se poderiam acrescentar o vazio constitutivo do sujei- sobre morte e repressão, essa teoria não poderia simplesmente
to, o vazio de onde surge o enunciado, o vazia cuja iembrança é estender seu domínio, e deveria demonstrar que essa extensão é des-
recortada com dificuldacle €tc. etc. Como é iinpossível contradizer critivamente adequada.

gB 99
I
ï

No entanto, como demonstra urna análise brilhante de com exclusão de outras, mas é necessário se precaver contra qual-
Georges Didi-Huberman, o irrepresentável do Holocausto é a quer resposta que prodnza uma clausura indesejável. euando
ausência daqueles documentos que foram sistematicamente des- analisa o projeto do museu judaico de Berlim, deDaniel Libeskind,
truídos. Não há imagens de um crematório em funcionamento, Young recorre auma fórmula com a qual acredita deixar estabele-
exceto as quatro fotografias tiradas por um preso e analisadas por cidos os méritos do projeto, porque teria"respondido ao problema
Didi-Huberman: "Custasse o que custasse, era preciso dar uma deixando-o sem solução".'A fórmula paradoxal não signifi ca tanto
forma àquele inimaginável".'O que sabemos do Lager éfragmen- como suas pretensões.Young quer dizer que Libeskind não anulou
tário, sobretudo porque houve urna decisão política e um espaço o problema, não o tornou invisível aos visitantes do novo ediftcio;
concentracionário que se propuseram liquidar toda possibilidade que, ao mesmo tempo que encontrou uma solução paÍa o projeto
dq comunicação com o exterior e, por conseguinte, de representa- e a efetivou, conservou os dados que seu próprio projeto devia
ção posterior. Os mortos, como indica Primo Levi, aqueles sobre resolver. Mas, emvez de apïesentaï esse argumento simples,young
os quais se cumpriu devez o destino concentracionário, são irre- recorïe ao paradoxo e, assim, salienta a aporia dos trabalhos de
presentáveis porque a e;periência em que culmina o Lager a memória (e de seus monumentos e contramonumentos). Salienta
câmara de gás éa experiência da quai não é possível reconstituir
-
- o que denomina a "irresolução perpétua",n uma fórmula tão
coisa alguma. Só os que se salvararn, diz Levi, têm condições de dar atraente como nebulosa. Se se quer dizer que uma questão estálite-
testemunho, mas essetestemunho, a urn só tempo obrigado coer- ralmente aberta à perpetuidade, isso é uma verdade óbvia,
e já que
citivo (pois exeïce sua força potencial:sobre os sobreviventes), e será retomada de modo inevitável com novos instrurnentos teóri-
incompleto, porque não tocou no núcleo assassino da verdade cos e em novos contefios significativos. Mas se se quer dizer que,
concentracionária. Mas Didi-Hubermân dedica sua análise a essas por defìnição, um problema está iro atual momento aberto à irre-
quatro imagens do crematório para, de um lado, mostraï que solnção, o que se afirma é, mediante outro léxico, uma noção de
atrguém, urn prisioneiro que arriscava tudo, tornou-as possíveis e,
'tç-cuttnt.Young recoïre à teoria do vacutnn,daquilo que não existe
de outro, que essas imagens, apagadas, imperfeitas, são urna base senão na ausência, e obriga-se a continuar ligado a ela só porque é
para imaginar o Lager, não urn ícone fetiche que encerraria seus
e quase sacríÌego afìrmar que os trabalhos da rnemórja coinparti-
sentidos ao tentil representá-los. tham a incompletude típica de toda lembrança do passado, até
Fora do Lager, diante de proclucões discursivas ou estéticas quancio já se tl'ansformaram em tópicos clássicos, e se transforma-
contemporâneas, longe do impacto qì-te pÍovoc ou o dictum de ram em tóprcos (a Shoah, os desaparecidos) justamente porque
Adorno, respondido, quase de imediato, peÌa poesia de paul Celan, não perrnanecerarÌ ir resolvidos.
a teoria do vazio representacional e da qualidadelacunar da Os exernplos trazidos do campo artístico que young analisa
reconstituição memorialístlca forma um sistema com outrolugar- mostram, consideradcs em selr conjunto, que a questão não ficou
comum contemporâneo, que afrrrna- que, quanto mais irnportan- irresolvida e que há um cânone estético fìrme (de instalações e
tes são as peïguntas, menos se pode pretender responder a elas. coniramonumeritos) que exerce seu poder simbóiico no presente,
Ì{ão se descarta sirnplesmente a resposta que impõe uma versão embora seu destino futuro seja o de ser revogável. É notávei o con-

100
io1
:li'.:
:..:rãiiitr
ignoradas provêm de origens sociais, contextos e imaginários, até
traste entre o discurso do "aberto", do "fragmentário""irresol-
e do
de modas teóricas difundidas como tendências culturais.
vido" com queYoung acompanha um conjunto de obras contra-
Uma rápida observação do caso argentino posterior a 1955
monumentais de primeira linha internacional. E é notável como
indica que,longe de se afastarem datotalização,longe de adotarem
transcïeve memórias dos artistas em que as coincidências sobre o
uma perspectiva exploratóúa e hipotética,longe de resistirem a
que se devefazer como pós-memória do Holocausto são de fato
encerrar alguns sentidos do passado, osjovens radicais da geração
espantosas. No campo artístico, a pós-memÓria tem um deci{logo
posterior à queda do primeiro governo de Perón procuraram uma
internacional unificado e fortemente criador de consenso-
história que lhes garantisse sentidos e seguisse uma trajetória defi-
Hirsch também insiste no caráter inacabado e fragmentário
niclaporumateleologia quelevava da queda à redenção revolucio-
que definiria, por sua próprìanatureza, as subjetividades que lem-
nária, com um protagonismo sólido ao qual foram atribuídas qua-
bram e a memória que produzem' Esburacados, mais evidentes
lidades absolutamente estáveis. Eles montaram um discurso que
por seus vazios que por seus cheios, os discursos da pós-memória
correspondia princípios da época tanto no âmbito político como
a
renunciam àtoÍalização-não só porque nenhuma totalizaçáo é
nas correntes ideológicas que prevaleciam no nacionalismo revo-
possível, màs porque elçs são destinados essencialmente ao frag-
lucionário e na esquerda.
mento. É dificit concordar com uma definição tão totalizante de fiIhos, mas a de jovens intelectuais,
Não foi sua condição
como taxativ a, jâ qt:e, depois da crise e da crítica das filosofias da vivi-
que definiu sua relação com o passado em que os pais tinham
história, a todo discurso não autoritário são atribuídos essestraços
do. Em vez de uma memória dos pais, eies procuraram uma
e, por conseguinte, o que lhe é atribuído como específico da pós-
memória histórica, que atribuíram ao Povo ou ao Proletariado. O
memória pertence a um universo generalizads. Se há diferenças,
diaTT de outubro de 1945, dia em que, segundo a tradição, se defi-
devem estar em outra Parte' ,:
niram a liderança de Perón eo protagonismo das massas popula-
res, foi o fato-chave: traumático para quem não conseguiu enten-
der seu significado. O desaparecimento do cadáver de Eva Perón
EXEMPLOS E CONTR.A-EXEMPLOS
configurou simbolicamente uma reivindicação do corpo que sub-
jugou um vasto imaginário político. O corpo roubado se transfor-
Convém evitar um discurso único sobre a memóri.a e a"pós-
mou em palavrade ordem para jovens que não tinham chegado a
memória". Caracterìzado pelo lacunar, pelo mediado, pela resis-
conhecerEvita.Aferidaaberta no corpo político do peronismo de-
tência àtotalização e por sua própria impossibilidade, o discurso
via ser rcparada,até pela vingança.
único da "pós-memória" sempre encontra o que procura e'par O discurso histórico com que se identificaram os que chega-
conseguinte, é monótono em seu descuido programático das dife- política nos anos 1960 não foi dubitativo nem lacunar; teve
vam à
renças entre relatos.
um centro bem estabelecido e uma direção que marcava origem e
Se se trata do modo como os filhos processam a história dos
futuro, Os fiihos dos quetinharnvivido naidadeadultasob o pero-
pais no ponto em que houve fraturas importantes, não adianta
nismo procÌrraram uma interprelação forte que unificasse os
identificar apenas uma forma invariável' As diferenças que são
103
102

{:r
.'iq&,
f.atos, contra a interpretação que seus pais apresentavam, caso
Trinta anos depois, encerrada a ditadura militar os filhos des-
tivessem sido opositores; ou mudando o sentido que os movera,
ses jovens dos anos 1960, muitos deles militantes desaparecidos e
caso tivessem sirnpatizado com o peronismo. Esses jovens, fi.lhos
assassinados pelo terrorismo de Estado, tomam diante do passado
da geração para a qual o 17 de outubro foi um trauma e uma data
dos pais posições bem diferentes. Ao fazê-lo,atêm-se igualmente a
fundadora, falaram abertarnente do passado de seus pais e consi-
normas da época, que valorizam a demonstração da subjetividade,
deraram que eies tinham sido participantes equivocados ou espec-
reconhecem plena legitimidade a inflexões pessoais e situam a
tadores que não entendiam os acontecimentos. Foram filhos que
memória em relação a uma identidade não meramente pública.
corrigirampolíticamenteo modo como primei-
seus pais viveram o
Ditado por esse espírito de época, um Íilme de Albertina
ro governo peronista; que os acusaram de ter sevoltado com inten-
Carri, Lo s rubio s,tt reírne todos os temas atribuídos à pós-memória
sidade para o público e não ter captado a verdadeira natureza do
de uma filha sobre seus pais assassinados. A respeito desse filme,
movimento de massas.
Martín Kohan escreveu: "Os amigos dos pais [da diretora, A]ber-
Em vez de construírem, como filhos, uma versão pessoal per-
tina Carri] exibem uma visão demasiado política das coisas ('ar-
meada e mediada do período imediatamente anterior que não
mam tudo poiiticamente'); o testemunho no qual se admite que
tinham vivido, propuseïzÌm um relato compacto e global dessa his-
naquele tempo o político tudo invadia, este, sim, tem cabimento,
tória contemporânea à juventude ou rnaturidade
de seus pais, para
mas admite-se isso como quem admite a confissão de uma culpa.
que os equívocos, as fantasias ou as limitações ideológicas das
A sensação de um exagero político, claro sinal desses tempos,
quais eles foram culpados não se repetissem no futuro. Não há
poderia levar a supor que los rubios vale insistir: o filme que
vazio nesses discursos, não há fragmeiifâção.Ì0 Os filhos criticaram -
uma filha de dois militantes políticos desaparecidos faz a partir do
as opções dos pais e se referiram
passaddpolítico para supe-
a esse
que aconteceu com seus pais prefere postergar a dimensão rnais
rá-1o, não porque se sentissem diretantente afetados, mas porque -
especificamente política da história, para recuperar e privilegiar
isso fazia parte de uma dimensão pública. A mernória devia fun-
uma dimensão mais ligada ao humano, ao cotidiano, ao rnais pes-
cionar como "mestra cia política" para que não se repetissem os
soal da história de Roberto Carri eAna Vlaría Caruso [...] E, ainda
equívocos da geração anterior, que não foi capaz de entender seu
assim, é notório que, em Los rubios,os Ínomentos em que os teste-
próprio presente.
munhos dos amigos de militância roçam ou transitam no registro
A experiência dos pais ea chamada "pós-memória" dos filhos
da'semelhança humana' não são muito menos desconsiderados
se enfrentaram num cenário de conflito agudo. A "pós-mernória"
do que o resto do que dizem"."
seria, nesse caso, uma correcão decidida da memória, e não urna
Certamente, o filme de Carri rnostra pouco interesse pelo que
trabalhosa tentativa de reconsiituição; seria r.rma certezacompac-
dizern dos pais dela aqueles que os conhecerarn. Seja porque esses
ta, que precisou dessa solidez porque a história difundida entre os
conternporâneos de seus pais ainda querem ditar as coisas a partir
fìlhos devia ser um instrurnento ideológico e cultural da política
de sua perspectiva política; seja porque não podem senão falar
nos anos i960 e na prirneira rnetade dos 1970" A época pensava
desse passado; sejaporque sempre relacionam a dimensão familiar
desse rnodo e os jovens pensavafiì de acordo corn a época.
privada à rniÌitância, o fato é que para a diretora-fiiha de desapaÍe-

ia4
io5
cidos as coisas perdem totalmente o interesse. Distante das idéias não está presente a lembrança dos pais, mas a da infância da dire-
políticas que levaram seus pais à morte, ela procura, antes de mais tora, por conseguinte, quando se filma esse campinho, o que se
e,
nada, reconstituir a si mesma na ausência do pai (conforme o filme evoca é a infância órfã, mas cercada por uma família solícita, que
esclarece, depois de citar uma frase de Régine Robin). A indiferen- dá à então meninaAlbertina Carri "a felicidade de ser mal-educa-
ça, e mesmo a hostilidade, diante do mundo de seus pais exacerba da'Ì Como se falasse daquele lugar infantil, em of se escuta: "Custo
a distância que o filme mantém em relação ao que se diz deles e aos a entender a escolha de mamãe. Por que não foi embora do país.
amigos sobreviventes que dão seu testemunho. Carri não procura Por que me deixou no mundo dos vivos". Essa voz em o7f ressoa
as "razões" de seus pais, muito menos a tradução dessas "tazóes" sobre a imagem da atrtz que representa a diretora, num gesto de
pelas testemunhas a quem recorre; procura seus paisna abstração grito desesperado. O filme também não atinge a compreensão dos
de uma vida cotidiana irrecuperável, e por isso não consegue se atos paternos, que a atïiz "custa" a entender, já que as razões desses
concentraÍ nos motivos que os levaram à militância poiítica eà dois militantes, se não forem buscadas na poiítica de uma época,
morte. Como as testemunhas que encontra são amigos de militân- ficarão definitivamente mudas.
cia de seus pais, as perguntas a que ela procura responder ficam Também são anônimos os amigos militantes que dão seu
inevitaveÌmente sêãr resposta, até quando testemunhas evocam
as depoimento no filme: caras evozes que o espectador não consegue
cenas domésticas e familiares. Não podia ser de outro jeito, pois o unir a um nome próprio. Só em letras muito miúdas, nos agrade-
filme interrogâ pessoas que ela considera unilaterais ou equivoca- cimentos finais, esses nomes aparecem escritos, separados de suas
das. O mal- entendido é compreee_sível. imagens correspondentes, que permanecem como imagens de
Outros testemunhos, como o de umlmulher que se nega a ser desconhecidos, embora mantenham com a diretora e com seu
filmada e foi companheira de cativeiro dos pais da diretora, dizem duplo uma relação afetiva indisfarçável. Em um filme sobre a iden-
o que já é sabido: que no Sheratonlo centro de detenção onde esta- tidade, em que a diretora escolhe representar-se dupiamente' por
vam Roberto Carri e sua mulher,além do desenhista Oesterheld) si mesma e através de uma atriz que diz seu nome e diz que repre-
todos trabalhavam num livro "por encomenda", uma história ilus- sentará a diretora, as testemunhas permanecem no anonimato.
trada do Exército. Mas acrescenta um dado: Ana María Caruso, a Pelo que contam, ficamos sabendo que foram amigos,parentes ou
mãe deAlbertina Carri, cuidou da filha recém-nascida de quem dá colegas dos pais da diretora, mas ern Las rubios seu anonimato é

o testemunho. O filme não tem nada a dizer sobre essas duas infor- um sinal de separação e, até, de hostilidade. A operação de dupla
mações. Provavelmente porque se trata davida no campo de con- afirmação da identidade deAlbertinaCarri contrasta com o seve-
centração, e, afinal, o que interessa à diretoranão ê isso, e sim sua ro despojamento do nome de outros. Identidade por subtração.
infância em outro campo, o de seus tios, onde viveu depois da cap- O filme começa e acaba no campo. Na primeira cena, ouve-se
tura dos pais. uma voz em off, a da diretora, que dá indicações de como estribar
A esse campo, o filme chama"Campinho", graças aumcartaz para andar a cavalo. Na última imagem, vê-se a atriz, que recebia
que não se sabe se é irônico ou se indica um simples paralelismo. essas indicações no início, ainda sendo assistida pela diretora, rnas
No "Campinho" se passam uma cena do começo e as do final, Ali já transformada em cavaleira, como se tivesse ocorrido ulrì apren-

ro6 to7

""iç"
dizado, não aquele que o filme se propõe afazer, mas outro: um quando souber quem matou os pais de sua mãe, ele vai matá-los.

aprendizado de destrezas "normais", que substituiria a fracassada Minha irmã não deixa".
exploração da memória.
As perucas usadas pela diretora, pela atriz que a representa e
por três membros da equipe de filmagem também são parte de SEM LEMBRANçAS
um dispositivo de deslocamento de um lugar a outro, de uma
identidade (paterna/materna) não encontrada a uma identidade Sentir-se abandonado, no caso dos filhos de desaparecirlos, é

adotada como personificação e disfarce. Antes desse final com inevitável. A tragicidade dos fatos tocou ali onde não havia i;ujei-
perucas louras, o filme justificou seu título em vários testemu- tos em condições de responder nem de se defender, sujeitos que
nhos de vizinhos que afirmam que a família Carri-Caruso e as não tinham escolhido um destino que incluía a morte como pos-
fìlhas eram todas louras lrubias). Asimagens da diretora, morena, sibilidade, sujeitos que pura e simplesmente não estavam em con-
e da atriz que a representa, também morena, evidenciam que os dições de escolher. Tiinta anos depois, esses filhos de pais desapa-
vizinhos traduziam a diferença percebida entre eles e a familia recidos dão desses fatos testemunhos diferentes. Um sonho arriicula
Carri em termos ftlicos e de classe (ser louro na Argentin anão ê o exercício de "pós-memória" de Carri com a busca de uma ima-
tão freqüente), ou então que os Carri, como faziam muitos mili- gem paterna ou materna e, concretamente, da história não sti pes-
tantes, mudaram a cor do cabelo para disfarçar sua aparência. Seja soal, mas política, desses desaparecidos: "Tenho dezoito anos, meu
como for, toda a família é defiqi{a pelos vizinhos comb "os lou- pai está desaparecido, era médico. Há pouco sonhei com ele' So-
ros". Ao colocar perucas louras, as pessoas*da equipe de filmagem nhei que me jogavam em cima dele e eu lhe dizia:'Ai, por favor, me
se situam no lugar dessa identidade passada diferente. E têm razão leve com voc ëparaonde você está, não me importa, seja o qtre for,
emfazê-lo porque, quando chegam ao bairro popular com suas me leve para a ESMA, não me importa, quero moÍrer ao seu [ado!'' E
câmeras, a aftiz que representa Carri diz:"Eramais que evidente ele me dizia:'Não, não, ande atrás dessa bandeira', e eu dizia'Não,
que não éramos dali. Devia ser parecido com o que aconteceu com não, não quero ir atrás de nenhuma bandeira, poÍque isso não
meus pais". A diretora e a equipe do filrne, por motivos culturais, passa pelo político, quero ficar com você', e ele como que me dizia
por sua aparelhagem técnica de câmeras, microfones e gravado- 'Não, você tem de ir atrás dessa bandeira'e eu dizia'Não, quero
res de som, por suas roupas, pelo modelo dos óculos e pelo corte ficar com você, mais nada"'.t' I

de cabelo, pelo automóvel ern que andarn, continuarn a ser, para Nesse relato de um sonho, a política, como mandato paterno,
os vizinhos, "louros" ou, como d.iz urna frase do filme, "branco, contrapõe-se força do desejo, tal como na insolúvel perploddade
à

louro, estrangeiro". destas perguntas: "Durante rnuitos anos pensei que eles lutaram
Envoltos nessa diferença fìzerarn o fìlme, em que talvez só por um país rnelhor, mas fiquei sem minha mãe por seis anos e não
haja um momento de equívoca identificação de Albertina Carri tenho mais meu pai. O que valia mais apena?. I-utar por utn país
com seus pais. É quando se ouve em offumdesejo seu não concïe- melhor ou formar uma famíiia? Tudo isso são contradições' ì{ão os
tizado: "Gostaria de fiÌinarmeu sobrinho deseis anos dizendo que, julgo por seus atos; são coisas que pala mirn continuam penrlentes.

ro8 1t)9
Tâmpouco eles têm ou tinham a resposta. Não previram até onde não se lembrava dela. Depois de muitos anos, María Laura e sua
chegariam os militares. Não podiam saber'1'n Às vezes, no lugar irmã mais moça, Silvina, foram para a França, viver com a mãe, em
vazio dos desaparecidos não hánem haverá nada, excetoalembran- relação a quem haviam mantido uma distância entremeada de
ça de um sujeito que nãolembra: "É diffcil dar forma a algo que a, visitas àprisão, mal-entendidos, uma espécie de repúdio. Formada
gente não conhece, que a gente não sabe, a nomes de pessoas que em paleontologia, anos depois María Laura retornou àArgentina
não têm um túmulo para que a gente diga que eles estão ali. Não se e procurou os restos do pai desaparecido, encontrou-os, enterrôu-
pode pôr nome em algo que não se conhece, eu tinha dois anos os em seu vilarejo e reconstituiu, tanto quanto lhe foi possível,
,
quando eles desapareceram) não me lembro de nada deles, lembro fragmentos de uma história de militante. Pôs diante da avó as pro-
de mim olhando pela janela, esperando que voltassem".t5 vas da ocultação em que transcoïreu sua infância.
Mas muitos dostestemunhos de filhos de desaparecidos com- María Laura e Silvina não souberam nada do pai, nem vive-
pilados por ]uan Gelman e Mara La Madrid em Ni elflaco perdón ram num meio em que a política e a miÌitância fossem considera-
de dios correspondem, em contrapartida, a uma busca da verdade das um compromisso pessoal a merecer o respeito de uma escolha
que não exclui a figura pública dos pais e seu compromisso políti- política e moral. Sua colocação diante do passado é reconstitutiva
co. O filme de Carri áúm exemplo quase que repleto demais da num sentido forte: recuperar aquilo que o pai foi como pessoa, não
forte subjetividade da pós-memória; os testemunhos de Ni el flaco simplesmente aquilo que foi como pai e em relação às filhas."
perdón de dios,assim como o filme de Carmen Guarini sobre Hrlos Nesse e em outros casos, entender significa pôr-se no lugar do
(a organização que reúne os que têr4 pais desaparecidos),mos- ausente. A descoberta dos restos do pai desaparecido poderia se
tram a outra face de uma reconstituição do pgssado. Muitos teste- transformar, no projeto do filho, na restauração desse homem em
munhos de Ni flaco perdón de dios são de jovens que se sentem
el seulugarpolítico. O filho levaria o pai ao lugar a que ele pertenceu:
mais próximos do compromisso político dos pais ou fazem esfor- "Não sei como vou reagir se o encontraï.Vou velá-lo no sindicato.
ço para entendê-lo, convencidos de que, se o entenderem, poderão Ele tinha paixão pelo sindicato"." Evidentemente, o çlue se recupe-
captar algo do que seus pais foram. Os utlos e Albertina Carri ra é a morte e o que precedeu a morte; não se recebe o perdido, mas
foram vítimas de acontecimentos históricos semelhantes: a dita- parece possível chegar a entender a perda.
dura inaugurada em I976 seqüestrou e assassinou seus pais. Poronde passao mainstreamdosfrlhos de desaparecidos: por
Ambos estariam no lugar de onde se constrói uma"pós-memória ] Carri ou pelos rapazes mais modestos do filme de Guarini e pela
mas em relação a ela suas operações são diferentes. compilação de Gelman e La Madrid, que não vêen'l inconvenientes

Muitos desses filhos estão sós na situação de reconstituir o em se identificar com um grupo verdadeiramente existente, esta-
passado: "Eles (a família) nem ficaram sabendo que me encontro belecer laços nacionais e internacionais e, digamos assim, compor-
com esse rapaz cujos pais desapareceram junto com os meus. Eles tar-se como pessoas cr.rjo sofrimento lhes permitiu acreditar que
não têm consciência da história, não sei quais serão os motivos'1'u conseguiram entender os pais e as idéias que moveram sua mili-
Outra história: MariaLatra foi enganadapela avó, que a criou tância? A origem social dos desaparecidos pode ser parte de uma
dizendolhe que o pai a havia abandonado, que vivia no Brasil e chave dessas diferenças.

110

Í
#
Num lado, estão os filhos de operários (uns 30% dos desapa- sado seria abordável somente por um exercício de pós-mem ória,a

rccidos o eram): "Que aconteceu com esses rapazes cujo pai era não ser que se reserve esse termo exclusivamente para o relato (seja

delegado sindicai defáfúcae cuja muìher não eraacompanheira, ele qualfor) da primeira geração depois dos fatos.
rïìas a esposa? É outra realidade social... Esses rapazes têm, na No caso dos desaparecidos, a pós-memória é tanto um efeiio
rrrelhor das hipóteses, uma visão diferente da nossa sobre o desa- de discurso como uma relação particular com os materiais da
reconstituição; com os mesmos materiais se fazem relatos decep-
lrarecimento. A nossa talvez seja mais intelectual".'e No outro
cxtremo social e cultural estão os fiIl'ros crescidos em famílias que cionantes e cheios de furos ou reconstituições precárias, que, no
nao repudiavam a rnilitância e que conheceram amigos e compa- entanto, sustentam algumas certezas, embora inevitavelmente
rrlrciros que podiam falar de seus pa.is com um afeto consolidado permaneçam os vazios daquilo que não se sabe. Mas isso o que
-
rn cxperiência política comum. Carri é parte de uma comunidade se desconhece não é um efeito da memória de segunda geração,
-
conseqüência do modo como a ditadura administrou o
tlrrc conheceu seus pais, por isso está em condições de tratar seus e sim uma

r.cprcsentantes,AÌciraArgumedo e Liìa Pastoriza, com a indiferen- assassinato.

\ iì r.i rn pouco distraída com que escutamos duas tias cujas histórias
jii ouvimos muitasvezes. Eísa desatenção não é socialmenteveros-
simil nem existe nos rapazes a quern, durante toda a infância, foi
ncgada a história dos pais e de quem os avós, ressentidos com as
escolhas dos fìlhos ou genros, roubaram até as fotografias.
As histórias detalhadas dos desaparecidoS"circularam em
comunidades de amigos e familiares, com,fieqüência no exílio, em
grupos inteiectuais ou classes médias, que não existiram quando as
vítimas foram rnernbros dos setores populares, cujas farnílias em
rrruìtos casos se esforçaram ern esquecer os desaparecidos, Os
íìlhos desses miiitantes estão desesperados com a história dos pais,
porque ali a fratura não foi só a da ditadura, mas a forma como a
Íì-atura se agïavou pelo silêncio. Basta percorrer os testemunhos
publicados por Gelman e La Madrid para que essas diferenças sal-
iem aos olhos.
Não há, então, urna "pós-mernória'l e sirn formas da memó-
ria que não podern ser atribuídas diretamente a uma divisão sim-
ples entre memória dos que viveram os fatos e mernória dos que
são seus fiÌhos. É ciaro que ter vivido uïn acontecimento e recons-
tituí-lo através de inforrnações não é a n-lesnea coisa. Ì\4as todo pas-

113
7r2
relação ao sistema devalores que definem o horizonte de onde se
6. Ném da experiência reconstitui o passado. Os relatos de circulação extra-acadêmica
são escritos partindo da suposição de que existe o princípio valo-
rativo. Seu lugar é a esfera pública no sentido mais ampio, e ali eles
concorrem.
Os testemunhos, as narrações em primeira pessoa' âs re-
constituições etnográficas da vida cotidiana ou da política tam-
bém correspondem às necessidades e tendências da esfera públi-
ca. Quando não se trata de autobiografias de escritores, tomam
a palavra no testemunho e na narração em primeira pessoa
sujeitos até então silenciosos. Numa signifìcativa coincidência,
também esses sujeitos contam suas histórias nos meios de co-
municação.
Há mais de trinta anos, uma história militante otganrzava
Os "fatos históricos" seriam inobserváveis (invisíveis) se não seus protagonistas ao redor de um conjunto de oposições sim-
estivessem articulados em algum sistema prévio que fixa seu signi- ples: nação-império, povo-oligarquia, para citar dois exem-
ficado não no passado, mas no presente. Só a curiosidade do anti- plos clássicos. Eles formavam o povo dos explorados, dos traí-
quário ou a pesquisa acadêmica mais obtusa e isolada da socieda- dos, dos pobres, da gente simples, dos que não governam, dos
de poderiam, hipoteticamente, suspend", urtãfuação valorativa que não são letrados. Hoje o elenco de protagonistas é novo ou
"
com o presente. A curiosidade tem uma'extensão limitada ao gru- recebe outros nomes: os invisíveis do passado, as mulheres) os
po de colecionadores. Sobre a pesquisa, RaymondAron, que difi- marginais, os submersos, os subalternos; também os jovens,
cilmente poderia ser confundido com um relativista, afirmava que $upo que atingiu sua existência mais teatral, estética e políti-
a história tem valor universal, mas que essa universalidade é hipo- ca no Maio estudantil francês, mas que antes tinha conferido
tética e "depende de uma escolha de valores e de uma relação com estilo aos primeiros anos da Revolução Cubana, depois ao Cor-
osvalores quenão se impõem atodos os homens e mudam de uma dobazo* e a quase todos os movimentos guerrilheiros ou ter-
época paruoutra". t A história argumenta sempre. roristas dos anos 1960 e 1970. os jovens como força curativa da
Como se disse no começo, o passado é inevitável e acomete naçáo ou da classe, a juventude como etapa de healing,tema
independentemente da vontade e darazão. Sua força não pode ser
*Rebelião
popular ocorrida na cidade de Córdoba, em maio de 1969, em repúdio
suprimida senão pela violência, pela ignorância ou pela destrui-
ao regime do general-presidente Juan carios onganía, marcado pela estagnação
ção simbólica e materíal. Por isso mesmo, essa força intratável econômica e pelabancarrotade centenas de empresas' O Cordobazo foi o prilrei-
desafia o acordo institucional e acadêmico, mesmo que esse acor- ro de uma série de levantes operários em várias cidades e da guerrilha urbana na

do tenha por vezes imaginado uma sepaïação metodológica em tugentina. (N. T')

115
tr4
l
i .::
ii; '
r.*b,r:
que o arielismo* do começo do século xx já
tinha apresentado sível ignorar as interrogações que se abrem quando ela oferece
em toda a América Latina. E, sob as ditaduras, seu
de prom"ssa de testemunho daquilo que, de outro modo, nunca se saberia, e tam_
renovação os jovens passaram a ser vítimas (a metade dos desapa_
bém de muitas coisas em que ela, a primeira pessoa, não pode
rccidos argentinos pertence a esse grupo).
demonstrar a mesma autoridade. De todas as matérias com que se
A enumeração coincide curiosamente com os novos
campos pode compor uma história, os relatos em primeira pessoa são
cle pesquisa. contemporânea do que os
se chamou nos anos pìo e
que demandam maior confiança, e ao mesmo tempo são os que
I980 a "guinada lingüística,'da história, ou muitas se
vezes acompa_ prestam menos abertamente à comparação com outras fontes. A
nlrando-a como sua sombra, produziu_se a guinada
subjetiva: demanda de crença exigida por quem pode dizer..Falo porque
"Trata-se, de certo modo, de uma dem
ocratização dos atores da his- sofri na própria carne o que conto', se projeta sobre outro (ou o
tória, que dá a palavra aos excluídos, aos sern_título,
aos sem_voz. No mesmo) sujeito, que afirma: "Digo isso porque soube diretamen_
contexto dos anos posteriores a 196g, tïatou_se também
de um ato te". O primeiro detém a anáJise, pelo menos até que muito
político: Maio de 1968 foi uma gigantesca tomada tempo
da paÌavra; o que tenha se passado; mas o segundo não teria motivos para detê-la.
vcio depois iria inscrever
esse fenômeno nas ciências hum"rrur,.ar_
como se vê, é uma questão de limites: onde passa a fronteira entre
tamente, mas também nog+neios de comunicação _
rádio ou tele_ a experiência do sofrimento e outras experiências desse mesmo
vi53e que começam a solicitar cadavezmais o homem
-, da rua,,., sujeito?
livro analisou pode ser explicado por essa guinada
O que este
Tentei explorar esses limites, sabendo não haver uma fórmu-
teórica e ideológica, embora a explicação não esgote
o potencial la que indicasse como traçá-los de modo definitivo
cultural dos relatos de memória. Eres se*dtaberecern e sabendo tam-
em um,.tea- b'ém que devia lidar com idéias que iam em direções distintas: o
tro da memória" que foi desenhado antes e ondãêles
encontram potenciâl da primeira pessoa para reconstituir a experiência e as
um espaÇo que não depende só de reivindícações
ideológicas, polí_ dúvidas que o recurso
ticas ou identitárias, rnas de urna curtura cie
primeira pessoa gera quand,o se coroca no
à
época que influi tanto
ponto onde parece mover-se com mais naturalidade: o da verdade
nas Ìristórias acadêmicas corno nas que circulam
no mercado. dessa experiência. Iá não é possível prescindir de seu registro,
Tentei assinalal alguns dos probÌemas que mas
a primeira pessoa
também não se pode deixar de problematizá-lo. A própria idéia de
colocava na reconstituição do passado mais
recente. A primeira
verdade é um problema.
pessoa é indispensável para restituir aquilo
que foi apagado pela
vioiência do terrorismo de Estado; e> ao mesrno
tempo, não é pos_

"Enr 1900, o uruguaio José Enr.ique Rocló pubÌicou


se tivesse de faiar por mirn, diria que encontrei na liieratura
o opúsculo Ariel, que teve
inrensa repercussão e foi referênciaparaváriasgerações (tao hostil a que se estabeleçam sobre ela limites de verdade) as
de inteiectuais. Base
teórica da onda de pensaürento nacionalista que imagens rnais exatas do horror do passado ïecente e de sua textura
se estendeu por todo o contr'-
nente, o arielismo propugnavâ a defesa das tradições
hispânicas como fonte de idéias e experiências. Em Glosa,luanJosé saer coioca a política
primordiaÌ da cuÌtura latino-americana, que ..turiu
,-.uçuda pero cosmopo- como o rnotivo aparentemente secundário
Ìitismo e pelo materiaÌismo. (N. T.) mas subterrâneo
- -
'ce uma ficção que transmite o que de mais exato ri sor:re a solidão
llíì

177
social do militante, o vazio por onde ele se desloca com o automa- torno do centro inequívoco, a explosão. Para qualquer lado que se
tismo de um desfecho previsto, e sua morte. No romance de Saer, fosse, ainda a centenas de metlos se podia topar com vestígios, que
o comprimido deveneno que carregavam alguns combatentes gueï- aliâs jânão eram mais que sinais mudos, aptos apenas para o epí-
rilheiros, sobre o qual se fala muito pouco nos testemunhos, é uma logo: os corpos desfeitos depois de terem sofrido, separados em
espécie de centro secreto, de caminho seguro rumo ao domínio pedaços e dispersos". A notícia abre um cenário de morte que
sobre a própria morte. O comprimido é um talismã que repïesenta nunca foi descrito desse modo. O romance fica marcado, daí em
o tudo ou nada de uma luta e dâàaçãoviolenta uma espécie de fi.rl- diante, por essa paisagem de restos humanos dispersos, que se cor-
gor metaftsico negativo: um Nada seguro. Quando o guerrilheiro já responde com o desaparecimento do amigo. A força da descrição
não tem condições de escolher um caminho, escolhe a morte. É o sustenta algo que não pôde passar pela erperiência, mas sim pela
final de quem não terá a experiência da prisão nem da tortura, por- imaginação que trabalhou sobre indícios mínimos, suposições,
que já passou o momento em que um retorno é possível. resultados do "sonho darazão" tepÍessoïa. Essas breves linhas cer-
Em Duas vezes junho, Martín Kohan explorou a perspectiva cam a cratera, o desaparecimento do amigo, em torno do qual
-
do oficial repressor e do soldado raso para organizar uma"figura- mas não sobre ele-se estenderá o romance. É desnecessário saber

ção do horror artisticaméãte controlada?'.'Um rigor formal extre- se Chejfec se remete a uma dimensão autobiográfica, porque a

mo permite que o romance se inicie comumaperguntailegível:"4 força da cena não depende disso.
partir de que idade se pode comessar Isic] a torturar uma criança?". Visitei Terezin, a cidade- fo rtalezab arro ca- camp o de concen -
Sem o controle artístico, essa pergunta inicial impediria constrüir tração, por causa de Sebald. Da utopia do não saber, de nunca mais
qualquer história, porque a escalada do horror afgrnaria intransi- encontrar lembranças nem vestígios que forcem a memória de seu

tável, obscena. Congelada e ao mesmo tempo conservada pela nar- passado de criança que escapou dos nazistas e chegou sozinha à
rativa "artisticamente controlada", a ficção pode representar aqui- Inglaterra, o personagemde Austeilitzpassa, com a mesma unìla-
lo sobre o que não existe nenhum testemunho em primeira pessoa: teralidade e o mesmo caríúer absoluto, à utopia da mais obsessiva
o militar que se apropria de crianças, mergulhado no que Arendt reconstituição do passado. Sebald mostra entre quais extremos se
chamou de banalidade do mal; e o soldado que o assiste com disci- move qualquer empreendimento reconstitutivo: desde a perda
plina, totalmente imune à emoção, esse sujeito de quem tampou- radical da identidade até a alienação na lembrança empurrada
co há vestígio testemunhal: aquele que soube o que acontecia nos pelo desejo, sempre impossível, de uma memória onisciente.
cativeiros clandestinos e considerou aquilo uma norrnalidade não A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas coloca-
submetida â exame (o ponto extremo dos que pensaïam que era dos, nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de
melhor não se meter). Aquilo que não foi dito. foradaexperiência, como se os humanos pudessem se apoderar do
No começo de Los planefas, Sergio Chejfec escreveu: 'Aquela pesadelo, e não apenas sofrê-lo.
notícia falava de restos humanos espalhados por uma extensa
superficie. Há uma palavra que descreve isso bem: regados. Mem-
bros regados, repartidos, arrumados em círculos imaginários em

u8 119
2. cRÍTICA Do rËsrEMUNHo: sutErro E EXIERTÊNcr [pp. 23-44] starobiaski. Mas tanto Gusdorf como starobinski se antecipam à moda contem-
porânea e não pertencem a ela.

I. Annette Wieviorka, L'ère du témoin,París,Pion, 1998, p. 12. 14. Geoffrey Hartmann, crítico literário e responsável acadêmico pelo
Z.Walter Benjamin, "O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai arquivo do Holocausto da universidade deYale, assinala essa dimensão: "o dever
Leskov']em Magiaetécnica, arteepolítica: Ensaios sobreliteraturaehistóriadacul- de escutar e de restabelecer um di:ílogo com pessoas que foram marcadas por sua

tura, São Pauio, Brasilien se, I994. experiência de tai modo que a integração total na vida cotidiana é apenas aparen-

3.'Ach, wen vermõgen/ wir denn zu brauchen? Engel nicht, Menschen te" (em Wievío rka, op. cit.,p.74l).
15. Homi Bhabha, O local da culturq Belo Horizonte, Editora uFMG,2003;
es schon,/ dass wir nicht sehr verlâsslich zu
nicht,/ und die findigen Tiere merken
e"DissemiNation: Time, narrative and the margins of the modern nation,i em
Haus sind/ in der gedeutetenWelt" (RainerMaria Rilke,"Primeira elegia",emEle-
Homi Bhabha (ed.), Nation and narration,Londres, Routledge, I991.
gias de Duíno,tradução de Dora Ferreira da Silva, São Paulo, Giobo,2001. Daqui
16. Odilio A.lves Aguiar, "Pensamento e narração em Hannah Arendt,,, em
em diante, salvo indicação em contrário, todas as traduções são minhas).
Newton Bignotto e Eduardo Jardim de Moraes (orgs.),Hannal.tArendt: DióIogos,
4. Jean-Pierre le Goff, Mai 68, I'hérítage impossible, Paris, La Découverte,
reflexões, memórías,BeIoHorizonte, Editora upuc, 2001.
2002 119981,p.3a.
17. Didier Guivarc'h,Lanúmoire collective. Delarecherche àI'enseignentent.
5. Com uma perspectiva crítica, é, no entanto, exaustivo o panorama pro-
Groupe de Recherche cn Histoire Immédiate, ecastex@univ-tlse2.fr.
porcionado por Luc Ferry e Alain Renault, em La pensée 68. Essai sur I'antíhuma- 18. Escreve Vezzetti:"fa memória] tende a ver os acontecimentos de uma
ni sm e contemp or ain, P arìs.GalÌimard, I 985. perspectiva única, rejeita ambigüidade
a e até reduz os acontecimentos a arquéti-
6. O artigo de Paul de Man,'Autobiography as de-facemenC', apareceu pela pos fixos'i
primeiravez em MLN, ComparatfueLìterature,vol.94, no 5, dezembro de 1979. O 19. Penso no discurso mimétíco entre crítica de arte e monumentos e con_
Ììvro de PlriÌippe Lejeune, Le pacte autobiografrque, foi publicado em Paris, pela tramonumentos. Veja-se, por exemplo: |ames E. young, At memory's edge After-
Seuil' emL9j5s images in conteffiporary art clnd ctrchitectrzr, Novayork e Londres, yale universitlz
Derrida, otobiog.aphies: L"ãíseignentent deNìetzsche etlopoh; Press,2000. Contrariamente, a análise deAndreas Huysseu sobre a obra de
qLLe du nom propre, Paris, GaÌilée, 1984. Publieado no ãió seguinte, com acrésci- Anselm Kiefer permite pensar numa inte'venção estética que tem o passado
mos, em ingÌês como T|te ear of the other,NoiaYork, Schocken Books. como objeto de uma perspectiva que não reproduz o discurso do artista sobre sua
8.Em EI espacio autobiográfico (Barcelona, Lumen, 199 i ), Nora CatelÌi ofe- obra (Enbusca delfuturo perdido: cultura y ntemoria en tiempos de globalìzacìón,
rece uma exposição clara dos escritos de Paul de Man sobre o tema. Buenos Aires, EcE, 200 1 ).
9. Comentário de Giorgio Agamben aos textos de Primo Levi ern Lo qu"e

queda de Auschwitz.Yalencia,Pretertos, 2000 | 1998] .

i 0. Entrevista de Primo Levi a Marco Vigevani, em Conyersazioní e intervis- 3. Á REróRrcA TESTEMUNHAL [pp. 45-65]
ti, 1963-1987, de Levi, Turim, Einaudi, !997,p.226.
l. "Mencionei a cÌescente i'rpo'tância do Holocausto como acontecimer-
I 1. Paul Riceur, Ia Ínéntoire,I'histoit'e,I'oubli,Paris,Setí1,2000,p.222.
to fundacional da memór.ia não só eur opéia. Essa percepção não podia se dar por
12. O mesmo acontece com a palavra "genocídio'] cujo uso extensivo aos
evidente. Durante várias décadas, diante da gigantesca confiontação miÌitar.da
mais diversos cenários já foi discutido o suficiente por Hugo Vezzetti em Pasaclo
segunda Guer ra Mundial, tendeu-se a trataÍ o assassinato em ÌrÌassa dos judeus
y preselxte, Buenos Aires, Siglo xxt Editores, 2002, e na série de seus artigos em
como algo mais periférico, um epiacontecimento, por assim dizer. Hoje o olharnos
Punto deVista,desde os anos 1990.
de outra perspectiva. o Holocausto passou a ocupar o centro da conflagr.ação e se
13. Veja-se Leonor Arfuch, op. cit.; eleonor Arfuch (comp .),ldentìdad.es, tornou o acontecimento nucÌear negativo do século xx. Temos razões para du'i-
nrjetos, subjetit,idades, Buenos Arres, Prometeo Libros,2003. Não se pode deixar dar que essa perspectiva correspoirdesse às percepcões históricas de seus conterr -
pioneiro das pesquisas de Fhilippe Lejeune sobre o espaço e
de assinalar o caráter porâneos" (Dan Diner, "Restitution and memory The Holocaust
o pacto autobiográfico, assim como os estudos de Georges Gusdorf e jean - de 2003, p.43).in Europea.
political cultures", New Gernnn Critíque,no 90, outono

722
r23
Nos ultimos anos, Por exemPlo, a discussão sobre museu e monumento
2. faz na esfera política está apoiada na crença construída por esses detalhes, que

abriu outro capítulo. Veja-se, no caso argentino: Graciela Siivestri, "Memoria y integram um "dispositivo de prova". Veja-se B. S., "Cuando la política era joven l
monumento. El arte en los límites de Ia representación", publicado em Punto de Punto deVista,no 58, agosto de 1997. Nesse artigo também se mencìonaLavolun'
Vista"r,P6S,dezembro de2000,e reproduzido emL.Arfuch (comp.),Identìdades, tad. àeMarlín Caparós e Eduardo Ânguita, Buenos Aires, Norma, 1997 e 1998.
: l2.AliciaPartn oy,TheLittle School:Tales ofdisappearance andsurvival.San
sujetos, subjetividades, op. cit'Tambémos estudos de Andreas Huyssen para os
casos norte-americano e alemão. Francisco, Midnight Editions, 1986. Chego a este livro graças a Francine Masiello.

3. Paul Riceur, Tempo e narrativa, Campinas, Papirus, 1995. Sabe-se que Sobre Partnoy, veja-se Diana Tayl or, Disappearing acts: Spectacles of gender and
Riceurretoma e aperfeiçoa as noções de história e discurso propostas por E. Ben- nationalism in Argentina's" Dirty War", Durham e Londres, Duke University
veniste H. Weinrich, preocupando-se especialmente em considerar a capacida-
e Press, 1997, pp. 162 ss.
de do relato de se desdobrar em duas temporaìidades, a do momento de contar e 13. Cristina Zuker, EI tren de Ia vìctoria: Una saga famillar, Buenos Aires,
a do tempo do narrado. Essa capacidade constitui sua dimensão reflexiva origi- Sudamericana, 2003.
naÌ, que o habilita, de um Ìado, a exPor uma experiência fictícia do tempo e, de 14. Elizabeth Jeiin escreve:'A memória é uma fonte crucial para a história,
outro, a ficar ligado ao tempo em que se escÌeve essa experiência' mesmo (e especialmente) em suas tergiversações, em seus deslocamentos e nega-
4. Maurice Halbwachs, A memória coletíva" São Paulo, Vértice' 1990' ções, que colocam enigmas e PergÌlntas
abertas à pesquisa" (Los trabajos de Ia

Annette Wieviorka afirma qu-e o testemunho se desenrola de ângulos "que per- memoría"Madri, Sigloxxr de Espanha Editores- Siglo nv deArgentina Editores,
tencem à época em que se realiza, a partir de uma interrogação e de uma expecta- 2002,p.75).
trabaÌho Á paìxão a exceção, São Pauìo
tiva que também lhe são cónternporâneas, atribuindo-lhe fins que dependem de 15. Retomo algumas idéias de meu e

apostas políticas ou ideológicas, que contribuempara criar uma ouvárias memó- e Belo Horizonte, Companhia das Letras e Editora da urMc' 2005.

rias coletivas erráticas em seu conteúdo, em sua forma, em sua função e em sua 16. Georges Didi-Huberman, Devant le temps: Histoire deI'art et anachro-

finalidade" ( op. cit., p. 13). nisme des images,Paris, Minuit, 2000, pp. 36-7' De acordo com Jacques Rancière,
5. Ricceur, la z émoire' l'histoire, I' ouhli;pp. 3A7 -8' Didi-Huberman sugere que esses objetos nos colocam diante de um tempo que

6.Yezzetti, op. cit., p. I92. ultrapassa os marcos de uma cronologia: "Esse tempo, que não é exatamente o
7,Ijcc:ltr, La mémoíre, I'histoire, I' oubli.pp- 204-5' passado, tem um nome: é a memória [...] q"e humaniza e configura o temPo,
e Reconciliação entrelaça suas fibras, assegura transmissões condena a uma essencial impu-
B. É muito interessante o caso da Conìissão da Verdade as e se

peruana. como aponta christopher van Ginhoven Rey, a cvn "reconheceu desde reza 1...1. Amemória é psíquica em seu Processo, anacrônica em seus efeitos de
. o início que o testemunho'é também uma forma de processar um luto longamen- montagem, de reconstrução ou de'decantação' do tempo. Não se pode aceìÏar a'
te postergado', um'instrumento terapêutico' essencial para a reconciliação, na dimensão memorativa da história sem aceitar, junto com ela, sua fixação no
medida em que toda transição procura reconciliar não só a sociedade civil consi- inconsciente e suâ dimensão anacrônica". A citação de Rancière é de "Le concept
go mesll]a, mas também a Iógica política com a 1ógica do Ìuto" ("La construcción d'anachronisme er la vérité de I'historien I tlnactuel,no 6,1996. Em seu trabalho
delafuenteylosfundamentos de lareconciliación en el Perú:Análisis dellnforme muito interessante sobre memória popular do fascismo (Fascivn in popular
a

Íìnal de Ia comisión de Iaverdad y Reconciliación", mimeo, departamento de mentory,canrbridge, cambridge univer sity Press, 1987), Luisa Passerini trabalìa
espanhol e português, Universidade de NovaYork,2005)' sobre os deslocamentos de tempo e de interpretação, assinalando que o testemu-
9, Paul Riccur, Tempo e rtarrativa,vol.l- úo é ineludível na medida em que o objeto do historiador for recoustituir a íorma
10. Wieviorka, oP' cit., P. 126. como uma colÌfiguração de fatos impactou os sujeitos contemporâneos a eles'
1 1. Assim funcionam os detalhes num relato tão clássico
e verossímii como 17. Uma antologia de textos e um panorama histórico podem seÌ encontra-

a non fictíonoto romance documental de Miguel Bonasso, EI presidente


que no dos em Beatriz Sarlo,Labatalla delas iàeas,Buenos Aires,Ariel,200l, em que Car'-
de seiscentas páginas se rePetem as Altamirano escreveu o capítulo sobre as posiçÕes nacional-populares. clau-
/ue, Buenos Aires, PÌaneta, 1997 ' Por mais
los

observações mínimas: o modo como Héctor Cámpora mastiga um bife, seus dia GiÌman estudou os debates intelectuais nesse período num livro excelente: Ia
olhares para as muÌheres, seu terno enfeitado. A verdade do que Cámpora diz ou plumayla espada, Buenos Aires, Siglo xx1,2003. Para uma perspectiva compara-

L24
t25
tiva com o caso francês, veja-se o já citado livro de Jean-Pierre le Goff, que reali- 2. "La bemba'l de Emilio de Ípola, foi incluída e m Ideología y discurso popu-

za, a propósito do Maio de 1968 e dos anos seguintes, um estudo cujo eixo é a his- /lsra" Buenos Aires, Folios Ediciones, 1983. Há uma edição de Siglo xxl, Buenos
tór'ia das ideias. Aires,2005.
18.Veja-se o "Estudio preliminar",cap.2,"Cristianos en elsiglo'l em Beatriz 3. Formado em filosofia pela Universidade de Buenos Aires, em 1964, e
SarÌo, In batalla de las idcas, op. cit. doutor pela universidade de Paris, em 1 969. Em 1 970, quando exercia a docência
I9. A mais proeminente, seguramente, foi o trabalho de ]uan Carlos Por- na universidade de Montreal, recebeu um convite da Faculdade Latino-Ameri-
tantiero e Miguel Murmis, Estudos sobre as ctrigens do peronismo, São Paulo, cana de Ciências Sociais (rlacso), com sede em Santiago, parajuntar-se ao corpo
BrasiÌiense, 1973.Yeja-se,para uma história das idéias sobre o peronismo, Carios de professores-pesquisadores.Aceitou em 1971,mudou-separao Chile. Depois
e,

Altamirano, Bajo el signo delas masas,Buenos Aires, Ariel Historia,2001. do golpe de Pinochet, a FLACso iniciou negociações com o governo de Cámpora
importâncía de uma revi stacamo Pasadoy Presente,eda série de obras
20. A para criar uma sede em Buenos Aires (mantendo a princípio a de Santiago). As
das rnais diversas linhas da tradição marxista surgidas nos Cuaclernos de Pasaào y negociações prosperaram) mas foram interrompidas pouco depois da renúncia
Presente, dirigidos por José Aricó, não é um dado isolado nem excepcional do de Cámpora. De toda maneira, a rracso manteve a sede em Buenos Aires como
período. Pasado y Presente reptesenta o níveÌ intelectual mais sofisticado, mas instituição privada. Ípola foi nomeado membro do comitê de Direção e profes-
fazia parte de um campo de publicações, no qual os fascícuÌos do Centro Editor sor. Instalou-se em Buenos Aires em 1974. Entre 197 4 e i 976, viajou várias vezes
de América Latina (que se vendiam em bancas de jornais às dezenas de miÌhares) a Santiago, por motivos administrativos e de pesquisa. Nessas viagens, a pedido
obtinham a maior difusão em massa. As coleções do Centro Editor, como Siglo- dos interessados costumava levar correspondência para membros de organiza-
mut'rdo (dirigida por iorge-íafforgue), Historia del sìndicalismo (dirigìda por ções de esquerda chilenas, em particular para o Movimiento de Acción popular
Alberto Plá), e mesmo Polémica, uma história argentina dirigida por Haydée unitária obrero campesino (varu oc), o partido socialista e o Movimiento de
Gorostegui de Torres, com maior participação dos historiadores profissionais, Izquierda Revolucionaria (r,an). No diaT de abril de 1976, por volta das duas da
formavam uma biblioteca política popular, que podia ser encontrada em toda a madrugada, foi preso em casa por um comando do primeiro corpo do Exército,
Argentina, transferido para a superintendência de segurança, interrogado, torturado (sub-

A captação do clima ideológico é, em contrapartida, exaustiva numa


21. marino) finalmente posto à disposição do ppN no dia 12 de abril. Ficou pouco
e

obla muito sensíveÌ também à representação de sensibiliáades revolucionárias, mais devinte meses na prisão.saiu"por opção", no contexto do artigo 23 da cons-
como a biografia de Roberto Santucho e a história do pnr, d eMariaSeoane,Todo tituição' modificado pela Junta Militar (a norma modificada autorizava o preso a
o nada (Brenos Air:es, Sudamerica, 199 i ). Mas se trata de uma história, com fon- solicitara saída do país,mas esse pedido podia ser negado).viajou a paris no final

ies documentais de todo tipo. e não siilplesmente rle uma reconstituicão à base de 1977 ' Em março de 1978 juntou-se à sede mexicana da FLACSo. Residiu no
de testemunhos. México até março de 1984. Desde então vive na Ârgentina.
22. Paolo Rossi, El pa-ca do, la memorìn, el olvido, Buenos Aires, Nueva 4. Pilar Calveiro, Poder y desaparición: Los campos de concentración en
Visión, 2003, pp. B7-8. Argentina,Buenos Aires, Colihue, i 998.
5. |uan Gelman, "En ei campo de detención estás en otra dimensión',,
Página/ I 2, 1o de novembro de I 998.
4. EXPER.rÊNCrA E, ARcUMENTA-ÇÃO lpp. 6S-BS]

Ì. Jererny Popkin ("Holocaust Memories, Historias'Ìúemoir s", Hìstory o-nd 5. rós -realróRrÀ, RECoÌ\TSrÌ rurçÕES [pp. 9 o-rr3 ]
Mentory,vol.15, nu 1, primavera-rrerão de 2003) estucla as memórias sobre a per-
seguição aos judeus e o Holocausto escritas por historiadores pÍofissionais. Suas I . Jarnes E. Young, op. rlr.
observações interessantes dificilmente podem ser projetadas no caso de um cien- 2. Marianne Hirsch, Family frames; photography, na.rratìye and postne,
tista social corno Ípola, por duas razões: Popkin só anaÌisa memórias e autobio- nrory, Cambridge (Mass.) e Londres, Harvard University press, 1997.
glafiasno estrito sentido genérico; e estas, difereniemente do texto de"Labemba'l 3. Art Spiegelman, Maus- Ahistórìa àe um sobreviyente,são paulo, Corn_
foram escritas bem depois dos fatos que narram. panhia das Letras, 2005. A respeito de Maus, Aacìreas Huyssen assinaÌa que sua

726 114
mistura da estética de quadrinhos com elementos vindos da tradiSo modernis- 6. arÉrr oe rxprnrÊNcrA Ipp. rr4-u9j
ta, numa palavra, a"complexidade de sua narração não é só um procedimento
estético [...] mas provém do desejo da segunda geração de conhecer o passado dos l. RaymondAron,"Introducción" (1959) aMaxWeber, El político y eI cien-

pais, do qual j á fazem parte, queiram ou não: é um proj eto de aproximação mimé- tífco, Madri, Nìanza, L9 67, p. 49.

tica do trauma histórico e pessoal que liga vários níveis de tempo" (Present pasts, 2. A.Wieviorka, op. cít., p. 128.
3. Miguel DaÌmaroni, "La moral de la historia: Novelas argentinas sobre la
urbanpalimpsests andthepolitics of mernory,Stanford, StanfordUniversityPress,
dictadura'l Hiqp am é ricq ano wxrr, no 96, 2003, p. 3 8.
2003,p.r27).
4. María Laura e Silvinai em ]uan Gelman e Mara La Madrid, Ni eI flaco per'
dón de dios. Hijos de desaparecidos,BtenosAires, Planeta, i997'
5. Hirsch, oP. cit., p.244.
6. James E.Young, oP, cit',P'66.
7. Georges Didi-Huberman, In ages malgré tou'; Paris, Editions de Minuit'
2003,p.2L
8. James E. Young, oP' cit., P. 17 0.
9.Ibìd.,p.92.
Um relato histórico qúe teve divulgação maciça e forte poder de cons-
10,
trução imaginária e política a$oiou-se em obras e inteffenções de autores con-
temporâneos do primeiro peronismo, como Rodolfo Fuiggrós, ]orge Abelardo
Ramos, Arturo |auretche e Juan José Hernández Arregui. vejam-se, Para
seus

antecedentes conceituais, Carlos Altamir ãno, op. cit.; ebeattiz Saflo, Labatalla
delasideas,oP. cit. n-4
71. Los rubios.Direção: Albertina carri; produção: Barry Ellsworth; assis-
e Marcelo Zanelli; fotoFfìa: CataÌina Fern:ín-
tentes de direção: Santiago Giralt
dezi cãmerat carmen Torres; montagem: Alejandra Almirón; trilha sonora:
Ryuichi sakamoto, charly García evirus; som: |ésica suárez; desenho de produ-
ção: PaoÌa Pelzmajer; intérprete:
Aaalía Couceyro' BuenosAires' 2003'
12. Martín Kohan,"La apariencia celebrada", emPunto deVisfa' no
78' abril

de2004,p.28.
I 3. Victoria, argentino -mexicana, vinte anos
(La histo ri a e s ésfrL documen-

tário de )orge Denti). Citado em Gelman e La Madrid, op' cit',p' 65'


14. Patricia, ibid.,P. 187.
15. OfeÌia, ibid.,P' a9'
I6. Darío, ibid.,P'9a.
17 Gelman e La Madrid, op. cit.,pp.19-32' Tâmbém o fìlme Hfos' de Car-
menGuarini.
18. Fernando, ibià'' P. 123'
1 9. Silvia (Córdoba)' ib íd., p. 136.

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