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RdNClIloS

Salete
de Almeida
i Cara
A POESIA
LÍRICA
A autora procura recuperar o conceito de
poesia lírica ao longo dos tempos, desde o
primeiro teórico a abordar a problemática dos
gêneros literários no Ocidente, Platão. O percurso
histórico do lirismo é objeto de reflexão crítica em
seus momentos fundamentais — a Antigüidade
Clássica, a Época Medieval, o Renascimento, o
Romantismo e a Modernidade. São
problematizadas, nessa trajetória, as relações
entre prática poética e respectivas visões
teóricas e críticas, tendo em vista o
questionamento da própria possibilidade de uma
visão normativa, hoje, sobre o que seria a poesia
lírica.
Salete de Almeida Cara é professora do Ensino
Superior em São Paulo e crítica literária do
Jornal da Tarde Publicou Manuel Bandeira e A
recepção crítica

.(reas t/e i///eresse c/a oo/a/ne


• Artes • Estética • Literatura

ÓWztzí áreas i/a série


• Administração • Antropologia 1 Ciências
• Civilização • Comunicações • Direito
• Educação • Filosofia • Geografia • História
• Lingüística • Política • Psicologia Sociologia
Direção
Samira Youssef Campedelli
Benjamin Abdala Júnior
Preparação de texto
Ivany Picasso Batista
Arte
Coordenação e projeto gráfico / miolo f
Antônio do Amaral Rocha
Arte-final
René Etiene Ardanuy
Joseval Souza Fernandes
Capa
Ary Normanha

CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação
Câmara Brasileira do Livro, SP

Cara, Salete de Almeida.


C25p A poesia lírica / Salete de Almeida Cara. — 1. ed. — São
Paulo : Ática, 1985.
(Série princípios)
Bibliografia.
1. Poesia — História e crítica 2. Poesia lírica 3. Poética
I. Título.

CDD—809.14
—801.951
85-0808 —809.1

índices para catálogo sistemático:


1. Poesia : Crítica : Teoria literária 801.951
2. Poesia lírica : História e crítica 809.14
3. Poética : Retórica : Literatura 808.1

1985
Todos os direitos reservados
Editora Ática S.A. — Rua Barão de Iguape, 110
Tel.: (PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8656
End. Telegráfico “Bomlivro" — São Paulo
Sumário
Introdução .5
2. - Poietké_______ 9
Duas visões estéticas 9

3. A herança clássica___________________12
Entre a música e a palavra________________________ 12
Um pouco de história-------------------------------------------13
Teoria e prática: enquanto os teóricos “ressuscita­
vam” teorias _______________________________ 23
... Os poetas faziam poesia . ___ __________________ 26

4. A lírica romântica____________________ 29
Um novo tempo. Uma nova concepção de poesia?-------- 29
Um novo tempo. Uma nova poesia?________________ 33

5. O lirismo moderno___________________ 40
A emancipação do lirismo moderno________________ 40
O sujeito lírico moderno_________________________ 47

6. Lirismo e gêneros literários____________ 55


Afinal, o que é poesia lírica?--------------------------------- 55
E como ficam os “gêneros literários”?----------------------67
Colocando em discussão_________________________ 69

7. Vocabulário crítico__________________ 71

8. Bibliografia comentada 74
Para o Bruno e a Júlia
í
Introdução

Este volume chama-se A poesia lírica mas, ao con­


trário do que o título sugere, não supõe ser possível fechar
questão sobre o tema, e muito menos procurar auxílio de
normas, preceitos ou regras. O leitor que chegar ao fim
da leitura vai observar que o caminho é o seguinte: partir
de uma visão histórica da questão da poesia lírica e, assim,
ir abandonando qualquer pretensão classificatória. Essa
visão histórica tem a finalidade de acompanhar o desenvol­
vimento das relações entre prática da poesia e visão teórica
e crítica, ao longo dos tempos.
A situação sempre foi mais ou menos a seguinte: a
poesia nunca gostou dos esquemas clàssificatórios, já que
sua natureza não se presta a encaixes dóceis em modelos
previamente constituídos. A teoria, no entanto, sempre
preferiu trabalhar em cima de amplos esquemas, o que
parece facilitar seu trabalho.
A contradição entre poesia e teoria foi sendo resolvida
a duras penas.
Neste volume aparecem quatro momentos escolhidos
a dedo: a Antiguidade clássica e sua releitura pelo Renas­
cimento (séculos XV e XVI); o período do Romantismo
6

(levando em conta seus momentos preparatórios, locali­


zado na primeira metade do século XIX); o período mo­
derno (considerando que a consciência moderna se deli­
neia claramente em fins do século XIX). Em cada um
desses momentos, pode-se observar de que modo era resol­
vida a tensão entre poesia e teoria.
Na Antiguidade, vemos o nascimento de uma poesia
de expressão pessoal, diretamente ligada à música — a
poesia lírica —, que o principal teórico da época, Aristó­
teles, praticamente deixou passar ao largo.
Os neoclássicos do Renascimento fizeram uma releitu-
ra da Poética de Aristóteles privilegiando, um tanto par­
cialmente, uma visão teórica mais normativa e preceptiva,
e dando ênfase aos grandes esquemas classificatórios, onde
a poesia lírica encontrou lugar. A melhor poesia dessa
época, no entanto, não chegou a responder com rigidez a
essas normas e preceitos. Isto é: o conhecimento da teoria
poética neoclássica não é suficiente para dar conta da qua­
lidade poética dos melhores poetas líricos renascentistas.
No período romântico, o sistema crítico neoclássico
explode de vez, tanto no plano da teoria quanto no plano
da prática poética. Para compreender as raízes dessa mu­
dança é preciso recorrer a uma visão histórica e social da
época, com a formação da sociedade burguesa pós Revo­
lução Francesa e o avanço da ciência, da indústria e da
tecnologia. Há uma revolução no conceito de poesia e o
poeta enfrenta um novo papel na nova sociedade. A poesia
lírica adquire, durante o período romântico, um prestígio
inusitado, como veremos.
Mas a crise radical do poeta, com o aguçamento
quase insuportável de uma visão crítica de sua função e
da função da própria poesia, vai acontecer um pouco mais
tarde. O poeta moderno, jogado na grande cidade cosmo­
polita percebe, com nitidez cada vez maior, os contornos
ilusórios da antiga crença: a crença numa relação, plena
7

de sentido, entre poeta (o “eu” da poesia?) e realidade


(objetiva ou subjetiva). Sua atenção se desloca, então,
para os modos possíveis dessa relação, valorizando a lin­
guagem, que a realiza. Com essa crise, entra também em
crise o conceito de lirismo como “expressão pessoal”.
Tanto o artista moderno quanto o teórico se interes­
sam pelas propriedades do material (a linguagem) usado
pelo primeiro. Há, portanto, uma coincidência ainda não
ocorrida plenamente: agora a “idade crítica” chega, tanto
para poetas quanto para teóricos e críticos.
É dessa perspectiva histórica, com olho na tensão
entre propostas teóricas e concomitante prática poética,
que deve ser enfrentada a questão do sujeito da (na)
poesia de expressão pessoal, o sujeito lírico: do “ego”
racionalista da poesia clássica, passando pelo subjetivismo
romântico e chegando ao sujeito da poesia moderna quan­
do, assumindo a diferença entre o “eu” real do poeta e o
“eu” que aparece no poema, o conceito de sujeito lírico
se amplia.
Na poesia moderna (e na teoria), mesmo que não
haja um “eu” explícito no poema, o sujeito é concebido
como aquele elemento do texto que amarra todas as esco­
lhas de linguagem que formam tal poema.
Numa perspectiva histórica, a própria noção de gêne­
ros literários também se amplia, pois já não é possível
pensar, hoje, apenas em termos dos três gêneros tradicio­
nais (o lírico, o épico e o dramático), e nem essa classi­
ficação genérica e ampla resolve as invenções propostas
por cada texto particular.
O lirismo é uma maneira especial de recorte do mundo
e de arranjo da linguagem. Pode ser até que existam
temas considerados mais líricos ou menos líricos, em fun­
ção das expectativas de produção e leitura que, em cada
tempo histórico, criam predisposições específicas em auto­
res e leitores. Mas para o poeta e crítico moderno a poesia
8

lírica vai-se concretizar, de fato, no modo como a lingua­


gem do poema organiza os elementos sonoros, rítmicos e
imagéticos. Reencontrando sua antiga tradição musical,
a poesia lírica tem sua marca nas propriedades de som e
ritmo das palavras — que Ezra Pound chamava melopéia.
A melopéia, no entanto, não existe sozinha mas vem
junto, em maior ou menor grau, com as imagens (fano-
péia) e idéias do poema (logopéia). Esses elementos,
selecionados, é que irão combinar-se para a organização
do texto poético. O resultado da superposição de seleção
e combinação é a poeticidade da linguagem (que o lin-
güista Roman Jakobson chamou função poética da lin­
guagem).
E aqui cabe perguntar: até que ponto lirismo e função
poética da linguagem não podem ser pensados em conjunto?
A questão da poesia lírica, vista dessa ótica, perde
aquelas açtigas referências exteriores e genéricas, que pre­
tendiam servir como normas para todos os textos produ­
zidos: a poesia lírica como expressão do “eu”, a poesia
lírica sendo necessariamente curta, e por aí afora. As
referências tradicionais são, então, substituídas por refe­
rências internas ao próprio texto poético, ou seja, pelas pró­
prias qualidades poéticas de sua linguagem.
Poietké

Duas visões estéticas

Aristóteles (384-322 a.C.), vindo da periferia da


Macedônia, torna-se professor de Alexandre, o Grande.
Tentando compreender as obras de arte de sua época, fala
aos alunos sobre “poietké”, termo onde a própria idéia de
poesia era compreendida como “arte poética”. A palavra
arte (“tekhne”), por sua vez, também tinha sentido bem
mais amplo, incluindo qualquer tipo de produção que não
fosse um “engenho natural” — manual, industrial ou espi­
ritual. À dança, à literatura, à música e à pintura Aristó­
teles chamava “artes miméticas”.
O mestre Platão, aspirando ao mundo dos deuses, das
verdades absolutas, se angustia com a realidade precária
do homem: a realidade dos signos, o mundo vicário da
imitação, da linguagem, os limites da imaginação e do
desejo. Platão quer atingir o mundo das idéias, onde está
a essência, a forma dos objetos. Para ele, o caminho seria
o da ciência — a intelecção do filósofo — e não o da poe­
sia — o mundo da opinião e da sensação.
10

A imitação tem, para Platão e Aristóteles, sentidos e


funções bem diferentes. A realidade humana é, para Pla­
tão, basicamente imitativa e distante da essência do ser
— o mundo das idéias. Nesse mundo imitativo, em pri­
meiro lugar está o artesão e só depois, de modo degradado,
a imitação artística. Por sua função menor, Platão ex­
pulsa os poetas da República. Já para Aristóteles, imitar,
representar, criar imagens é natural ao ser humano e, sen­
do a forma imanente ao objeto, a obra de arte é uma
realidade ela própria, podendo ser mais importante do
que a própria história: “é preferível o impossível que é
verossímil ao possível que é incrível”.
Tanto para Platão como para Aristóteles, no en­
tanto, coloca-se o impasse entre o discurso lógico da razão
e o discurso alógico e inventivo da poesia — enquanto o
geômetra Platão é radical na sua insatisfação, o biólogo
Aristóteles experimenta compreender a arte, essa experiên­
cia especial de relação entre o homem e o mundo.
O texto da Poética de Aristóteles, anotado pelos alu­
nos, ficou esquecido durante séculos e só foi traduzido para
o idioma aramaico no século VI. Depois disso, ao lado
de Horácio, Quintiliano e mesmo Platão, foi base para a
formação de uma teoria poética clássica, ao tornar-se
objeto de estudo durante o Renascimento. De fato, com sua
Retórica e sua Poética — que teve perdida a segunda parte,
supostamente sobre a comédia, e tratou na primeira so­
bretudo da tragédia e (alguma coisa) do poema épico —,
Aristóteles foi o arquiteto da visão estética clássica que, no
conjunto, pretendeu um recenseamento de regras, a partir
de um inventário de modelos com características precisas:
ordem, harmonia, lógica, equilíbrio. Passa por aí a crença
na possibilidade de uma ciência poética, através da qual se
poderia até mesmo aprender a fazer poesia. Mas ao criar
o conceito de unidade e sugerir o de tensão, ao mesmo
tempo em que falava da poesia como o mundo do possível
11

e do impossível, Aristóteles também abriu caminho para


diálogos mais recentes dentro da Teoria Literária moderna
que, na sua época, era chamada justamente de Retórica e
Poética.
Curiosamente, no entanto, sua Poética não faz ne­
nhuma referência explícita à poesia lírica, quem sabe pelo
seu íntimo parentesco com a música, quem sabe porque,
como se pode observar em outros momentos da Poética
antiga, ficava difícil enquadrar a variedade métrica da líri­
ca em modelos e gêneros capazes de captar uma essência
do gênero lírico. Há, no entanto, na Poética, rápidas refe­
rências aos ditirambos — cantos festivos expressando
grandes alegrias ou grandes tristezas — onde ritmo, canto
e metro são usados ao mesmo tempo, e onde aparece
a própria pessoa do autor (“eu”) como narrador.
A classificação de obras literárias segundo gêneros
está presente, pela primeira vez, na República de Platão.
Com as novas roupagens da Teoria Literária moderna,
acompanhando a prática criativa das épocas, essa classifi­
cação às vezes parece ainda indispensável como quando,
por exemplo, se quer estudar uma “teoria da prosa”.
A herança clássica

Entre a música e a palavra

Quando falamos em poesia lírica, imediatamente pen­


samos em dois outros gêneros de poesia: a épica e a
dramática. Essa é uma das possibilidades tradicionais de
abordar a literatura: do ponto de vista de uma teoria dos
gêneros, que nasceu na Grécia Antiga com Platão e Aristó­
teles e foi sistematizada mais tarde.
Segundo a teoria dos gêneros, uma das maneiras de dis­
tinguir a poesia lírica das outras duas formas de poesia é
através do modo como o poeta se apresenta no poema: o
gênero lírico seria o poema de primeira pessoa ou de pri­
meira voz; b gênero épico seria quando existe um narra­
dor, uma voz épica que conta alguma coisa para alguém;
o gênero dramático incluiria todas as peças teatrais em
versos, quando as personagens é que falam e não o poeta.
Numa conferência pronunciada em 1953, o poeta T. S.
Eliot (1888-1965) questiona se, de fato, todo poema que,
pelo menos aparentemente, expresse sentimentos pessoais do
poeta poderia ser considerado lírico. E, ainda mais, será que,
como quer a tradição, todo poema lírico deve ser curto?
13

Para se ter uma idéia de como essas noções se gene­


ralizaram, Eliot remete ao Oxford Dictionary, onde se lê,
em lírico: “atualmente o nome que se dá a poemas curtos,
geralmente divididos em estrofes, exprimindo diretamente
os sentimentos e pensamentos do próprio poeta”.
A Encyclopedia of Poetry and Poetics, de Princeton,
vai buscar o sentido de lírica muito mais longe e adequa­
damente, a partir de sua origem na expressão musical. Por
isso mesmo é que a relação com o elemento musical está
presente nos próprios termos que as várias culturas usam
para designar essa poesia, que não é nem narrativa (épica)
e nem dramática (teatral).
A palavra lírica, no entanto, carrega uma ambigüidade:
entre os gregos era composta para ser cantada ou acom­
panhada por música, e já com a invenção da imprensa,
no Renascimento (século XV) passou para o campo da
palavra escrita para ser lida, abandonando seu antigo
acompanhamento musical.
Assim, se é verdade que não se pode procurar, na
poesia, qualidades próprias da música, é preciso distinguir
quais seriam as qualidades próprias da poesia que, apesar
das mudanças, podem fazê-la reencontrar sua antiga tra­
dição lírica.
Edgar Allan Poe (1809-1849) falou em brevidade;
Coleridge (1772-1834) em relações harmoniosas, métrica
coerente; Wordsworth (1770-1850) em espontaneidade;
Hegel (1770-1831) em subjetividade, emoção pessoal.
Mas será que essas abordagens, entre outras, foram
capazes de dar conta do fenômeno lírico e de sua produ­
ção ao longo da história?

Um pouco de história
Na Grécia Antiga, a vida em comunidade, a vida da
“polis” — que tanto pode ser traduzida por cidade como
14

por estado — era marcada por uma incrível coesão de


idéias e crenças. A Cidade-Estado encarnava, de fato,
todos os valores do homem grego que, através deles, parti­
cipava da vida comunitária.
Essa unidade da “polis” foi expressa, pela primeira
vez, na forma da poesia épica. Homero (século VI a.C.)
foi seu grande representante, configurando o próprio cará­
ter e espírito gregos. Com a Ilíada e a Odisséia, é consi­
derado fundador das bases da cultura grega e, ao mesmo
tempo, educador de seu povo.
Estética e ética, portanto, andavam juntas. Mas não
custa lembrar que a arte, quando ensina, o faz de uma ma­
neira especialíssima, e não é nunca expressão meramente
utilitária.
A épica moderna conheceu seu último representante
durante o Classicismo Renascentista do século XVI, com
o poeta português Camões e sua obra Os lusíadas.
Depois de Os lusíadas já não se pode mais falar em
épica, e a poesia vai deixando a função de narrar ações
de heróis para um público. Os heróis modernos já são
outros e serão encontrados, como personagens, em ro­
mances, contos, novelas e no teatro.
A mais antiga forma de canto épico acabava sempre
com a vitória de um herói individual mas, significativa­
mente, esse herói nunca contava sua própria história.
Havia um narrador de fora, que não participava daquilo
que estava contando. Na épica, o poeta nunca falava em
seu próprio nome.
Entretanto, quanto mais a vida dos cidadãos ficava
submetida às leis da “polis” parecia crescer a necessidade
de uma expressão individual: nascia a poesia lírica. As
primeiras poesias gregas de expressão pessoal, no entanto,
ainda traziam fortes marcas daquelas tradicionais finali­
dades públicas e oficiais.
15

Falando sobre episódios da vida comunitária — ba­


talhas ou jogos — demonstravam que a poesia ainda era
entendida como forma de conhecimento do mundo. “Que
é, afinal, um escudo, senão um pedaço de pele de boi
curtida, com uns adornos de metal brilhante?” afirma o
lírico grego Arquíloco (712-664 a.C.), tentando ironizar
o modelo do herói épico de Homero, ainda muito presente
na sua concepção de cultura.
Essa poesia de caráter individual documenta um mo­
mento importante da vida grega, com a multiplicação dos
centros de vida, o desenvolvimento das cidades e a deca­
dência das antigas aristocracias, que já não controlavam
mais as riquezas. Como vimos, eram poesias feitas para
serem cantadas com acompanhamento musical. Entre os
vários tipos de poesia lírica grega destaca-se a poesia méli-
ca (de “melodia”) que, através de Safo e Alceu, foi a que
teve o acompanhamento musical mais completo e a maior
liberdade de composição.
Havia também a poesia de coro & as elegias, que con­
servavam um pouco das relações com a poesia épica, na
medida em que glorificavam deuses e vencedores de jogos,
mantendo uma certa natureza política e bélica.
Os instrumentos usados habitualmente para acompa­
nhar a poesia eram a flauta e a lira, instrumento musical
de cordas. Daí é que vem a expressão poesia lírica.
Embora hoje em dia a gente não possa mais saber o
que foi exatamente a música grega e pouca coisa tenha
sobrado dos textos de poesia, a não ser fragmentos, é
possível observar que as palavras não tinham posição se­
cundária em relação à música, mas permaneciam com suas
potencialidades de ritmo e canto. De canto com as pró­
prias palavras, sem notas musicais.
Píndaro, que nasceu perto de Tebas por volta do ano
de 518 a.C., dizia que seus cantos eram “semelhantes à
abelha”, voando “de um assunto a outro”. E seu texto,
lido hoje, é repleto de imagens sonoras e plásticas, como
quando, descrevendo o poder da música, traduz por mo­
vimentos verbais de som e imagem, as referências à própria
música e à dança.
Lira de ouro, bem comum
de Apoio e das Musas de trança violeta:
os passos de dança, principio de júbilo,
te escutam, os aedos
obedecem teu sinal
quando pulsa vibrada os primeiros compassos
dos prelúdios condutores de coros.
Consegues apagar o pontiagudo raio
de fogo semprefluente. Sobre o cetro de Zeus
adormeces a águia,
que recolhe de um flanco e de outro suas asas rápidas,
rainha dos pássaros.
Toldas sua cabeça em gancho de uma névoa escura,
doce claustro das pálpebras; possuída por teus sons
ela crispa no sono o dorso flexível.
(Tradução de Haroldo de Campos)

Mas a grande e primeira voz realmente individual


da poesia grega foi a de Safo (séculos VII-VI a.C.), uma
mulher aristocrata que nasceu na ilha de Lesbos e dirigia
sua poesia, intensamente amorosa, a outras mulheres.
Basta-me ver-te e ficam mudos os meus lábios, ata-se
a minha lingua, um fogo sutil corre sob a minha pele,
tudo escurece ante o meu olhar, zunem-me os ouvidos,
escorre por mim o suor, acometem-me tremuras e fico
mais pálida que a palha: dir-se-ia que estou morta.

É uma voz feminina, portanto, que se expande através


de uma linguagem de alta voltagem amorosa, assumindo
a expressão da intimidade do sentimento.
17

1
Em torno a Silene esplêndida
os astros
recolhem sua forma lúcida
quando plena ela mais resplende
alta
argêntea
2
morto o doce Adónis
e agora,
Citeréia,
que nos resta?
lacerai os seios,
donzelas,
dilacerai as túnicas.
(Tradução de Haroldo de Campos)

Estariam os homens, nesse momento, começando a


abandonar os deuses para aspirar ao desfrute de prazeres
mais terrenos? “Sem a loira Afrodite não há vida nem
prazer! Preferia estar morto se tivesse de não gozar dela
mais”, afirma o poeta Mimnermo (fim do século VII a.C.).

A poesia lírica entre os romanos sofreu grande in­


fluência da lírica grega e floresceu durante a época do
imperador Augusto (63 a.C. — 14 d.C.), grande pro­
tetor das artes. Apesar do caráter imitativo dessa poesia,
que inclusive possibilitou o conhecimento, de viés, da pró­
pria poesia grega original, a poesia lírica romana consegue
uma separação muito maior do que a grega entre insti­
tuições sociais, econômicas, políticas, jurídicas e a criação
de um mundo imaginário, via palavras.
Um pouco anterior à época de Augusto (época de
Horácio, Virgílio, Ovídio), o poeta Catulo (84-54 a.C.)
18

com seus poemas líricos dedicados à Lésbia, revela um


momento alto da lírica latina.
Vivamos, minha Lésbia, e amemos,
e as graves vozes velhas
— todas —
valham para nós menos que um vintém.
Os sóis podem morrer e renascer:
quando se apaga nosso fogo breve
dormimos uma noite infinita.
Dá-me pois mil beijos, e mais cem,
e mil, e cem, e mil, e mil e cem.
Quando somarmos muitas vezes mil
misturaremos tudo até perder a conta:
que a inveja não ponha o olho de agouro
no assombro de uma tal soma de beijos.
(Tradução de Haroldo de Campos)

O grego e o latim eram línguas flexionadas, isto é,


as palavras possuíam apêndices que indicavam sua função
sintática na oração. O ritmo dos versos (alternância das
sílabas no tempo) tinha sentido de duração (sílabas longas
e sílabas breves). Nas línguas neolatinas, não-flexionadas,
a duração deslocou-se para a intensidade das sílabas (áto-
nas e tônicas). Ao mudar o esquema de duração das
sílabas nas línguas flexionadas para o de intensidade nas
línguas não-flexionadas, a versificação silábica das línguas
neolatinas acabou aprisionando, numa camisa-de-força,
aquilo que era ritmo natural de acentos e pausas.
Mas o verso medieval, da região de Provença (sul
da França), foi importantíssimo para a tradição da poesia
ocidental, na medida em que essa poesia, eminentemente
lírica, produzida entre os séculos XI e XIII, ligada ainda
à música mas já também à escrita, trabalhava a língua no
esquema da tonicidade e ao mesmo tempo, como toda boa
poesia, fazia perdurar o aspecto da duração das sílabas.
19

A poesia provençal foi uma prova de como a lin­


guagem poética não precisa dobrar-se a nenhuma regra
ou gramática. Perdidas as músicas que a acompanhavam
ela demonstra, através dos textos verbais que ficaram,
que o elemento musical deve ser intrínseco ao próprio
trato com as palavras.
De fato, a poesia provençal deu uma especial atenção
ao caráter de melopéia da linguagem. Como vimos ante­
riormente, melopéia é o conjunto de propriedades musicais
de som e ritmo das palavras intimamente ligadas ao signi­
ficado que expressam. E toda grande poesia saberá, daí
para frente, rebelar-se contra a tirania da versificação
silábica, notadamente a partir do Romantismo.

Aura amara
Aura amara
branqueia os bosques, car­
come a cor
da espessa folhagem.
Os
bicos
dos passarinhos
ficam mudos,
pares
e impares.
E eu sofro a sorte:
dizer louvor
em verso
só por aquela
que me lançou do alto
abaixo, em dor
— má dama que me doma.
Foi tão clara
a luz do seu olhar,
que no meu cor­
ação gravou a imagem.
20

Dos
ricos
rio, seus vinhos.
damas e ludos
parec­
em-me vulgares.
Só tenho um norte:
morrer de amor
imerso
no olhar da bela
que me tomou de assalto.
seu servidor
ser, dos pés à cova.
Arnaut Daniel (Tradução de Augusto de Campos)

Sobre esse poema de Arnaut Daniel (1180-1210),


citado na Divina Comédia de Dante como o “melhor artí­
fice”, Ezra Pound (1885-1972) afirma que ele “não se
referiu apenas a pássaros que cantavam. Ele, efetivamente,
fez os pássaros cantarem em palavras na canção”.
A poesia lírica provençal, cujas origens são discutidas
— influência da poesia erótica de Ovídio? influências
árabes? influência das próprias canções populares dos
povos europeus? —, seguia algumas regras formais e
regras de etiqueta. As primeiras, o “trobar clus” (pensa­
mento denso) e o “trobar ric” (invenção formal), eram
complementadas pelas segundas, que orientavam o modo
como deveria dar-se o contato entre o poeta e sua dama.
O fato é que os poetas medievais aparentemente não
podiam dar asas à paixão de tons arrebatados e eróticos
pois, de modo geral, a moral cristã tratava de organizar
as relações amorosas. Essa, pelo menos, é a visão mais
convencional que se tem da lírica provençal, entendida
como uma lírica de idealização amorosa. Mas em Pro-
vença encontra-se também uma outra vertente possível do
lirismo, recuperada sobretudo pela modernidade, que é a
21

do lirismo erótico, isto é, uma poesia amorosa que en­


frenta, cara a cara, a experiência da relação amorosa, da
sensualidade e do desejo físico.

O lance de dados

(...)
Chamam-me "o mestre sem defeito':
Toda mulher com quem me deito
Quer amanhã rever meu leito:
Neste mister sou tão perfe ito,
Tenho tal arte,
Que tenho pão e pouso feito
Por toda parte.
E não me digam que isto é prosa.
Ainda outro dia tive prova,
Jogando uma partida nova.
Sai-me bem no meu primeiro
Lance de dados:
Não vi os de nenhum parceiro
Tão bem jogados.
Mas ela disse, com desprezo:
‘Os vossos dados não têm peso,
Vos desafio a uma outra vez.'
E eu: “Montpelier não vale o preço
Destes pedaços.'
E ergui-lhe o avental xadrez
Com os dois braços.
Depois de erguer o tabuleiro,
Joguei os dados:
Dois foram cair colados,
E o terceiro
Feriu o meio do tabuleiro.
E estão lançados.
Guilherme de Poitiers (1071-1127)
22

O período da arte provençal foi da maior importância


para todo o desenvolvimento da poesia lírica de um Dante
Alighieri (1265-1321) e de um Petrarca (1304-1374),
através de quem o patrimônio poético de Provença perma­
nece vivo. Petrarca, inclusive, acrescenta uma dimensão
analítica à atitude sentimental provençalesca, além de de­
monstrar uma aguda consciência de seu papel de artista
e intelectual.
lo canterei d'amor si novamente,
Ch'al duro fianco II di mille sospiri
Trarrei per forza, e mille alti desiri
Reaccenderei nella gelata mente

Provavelmente, aqueles que conhecem os sonetos de


Camões (1524-1580) reconhecerão nesse quarteto de Pe­
trarca uma das influências fundamentais do poeta renas­
centista português.
Eu cantarei do amor tão docemente
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Como quase todas as literaturas, a portuguesa também


começou pela transmissão oral de poesias, fixadas no papel
bem depois de suas origens. Desse modo, se é do fim do
século XII o poema mais antigo coletado nos cancioneiros
dos séculos XIII e XIV, supõe-se que a tradição oral
venha de muito antes.
As cantigas portuguesas, de influência provençal,
eram cantadas com acompanhamento musical e, muitas
vezes, dançadas com coreografia, como nos provam alguns
dos manuscritos coligidos nesses cancioneiros. Um deles,
o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, traz inclusive um
apêndice, “A arte de trovar”, em que há várias referências
às relações entre letra e som das canções.
23

As cantigas de amigo, onde o poeta falava em nome


da mulher, têm origem popular e folclórica, enquanto as
cantigas de amor apresentam um trovador que idealiza a
relação amorosa — via de regra com alguém de condição
social superior — e repetem os temas do amor cortês
provençal.

Quantas sabedes amar amigo


treydes comig'a lo mar de Vigo
e banhar nos emos nas ondas.
Quantas sabedes amar amado
treydes comig'a lo mar levado
e banhar nos emos nas ondas.
Treydes comig'a lo mar de Vigo
e veeremo'lo meu amigo
e banhar nos emos nas ondas.
Treydes comig'a lo mar levado
e veeremo'lo meu amado
e banhar nos emos nas ondas.
Cantiga de amigo de Martim Codax (século XIII)

Já a linhagem mais erótica e realista da poesia amo­


rosa aparece nas chamadas cantigas de escárnio e maldizer,
valorizadas, pela história literária, apenas pelo seu caráter
de registro da época e da vida social mundana. Dessa
forma, não foram consideradas líricas.

Teoria e prática: enquanto os teóricos


“ressuscitavam” teorias ...

Curiosamente, aquela poesia grega de expressão sub­


jetiva, que nasceu acompanhada de música, não foi objeto
24

de reflexão de Aristóteles, o grande teórico da Antigui­


dade.
Aristóteles refere-se apenas de passagem ao lirismo.
Os ditirambos, que, como já ressaltamos, são cantos festivos
expressando grandes alegrias ou grandes tristezas, narrados
em primeira pessoa, aparecem apenas algumas vezes em
sua obra, a Poética.
Pode ser que a variedade métrica da poesia lírica
tenha dificultado seu enquadramento num modelo com
características precisas, como acontecia com o drama ou a
poesia épica. Por exemplo: o drama deveria ser escrito sem­
pre em versos jâmbicos (uma sílaba breve, outra longa) e
a poesia épica em dátilos (uma sílaba longa e duas breves);
a tragédia e a comédia só podiam falar de nobres e reis, e
apenas a comédia podia falar da classe média; as sátiras e
farsas eram os gêneros próprios para tratar das camadas
populares. Além disso era impossível misturar tragédia e
comédia.
Aristóteles, convém reforçar, classificava a dança, a
música, a pintura, a escultura e a poesia como “artes mimé-
ticas”. Mas o que era exatamente a “mimesis” para Aris­
tóteles? Apenas a imitação de ações humanas, da práxis?
Embora ele não explicite suficientemente seu con­
ceito, parece claro que a “mimesis”, como inclusive foi
retomada modernamente, era alguma coisa além da mera
imitação. O próprio Aristóteles, aliás, afirma que aquilo
que a “mimesis” da arte provoca no receptor é bastante
diferente da reação provocada pelo confronto do receptor
com a própria realidade.
Retomemos o capítulo anterior: a Poética ficou esque­
cida durante séculos e foi traduzida para o idioma ara-
maico no século VI. Depois, ao lado de Quintiliano, de
Horácio e mesmo de Platão, tornou-se base para a for-
25

mação da teoria poética do Renascimento, a teoria neoclás­


sica. Mas a teoria poética renascentista viu, em Aristó­
teles, um teórico mais preocupado com a questão ética,
e entendeu que a “mimesis” seria, segundo o teórico, a
imitação de ações humanas.
Dessa forma, a leitura que se fez, no Renascimento,
de Aristóteles — e que encontra certo respaldo no seu
texto da Poética — preferiu elegê-lo como arquiteto de
uma visão estética clássica basicamente normativa e pre-
ceptiva.
O sistema de leis e regras, de modelos estéticos e
morais que sustentou o sistema crítico neoclássico, codi­
ficado na Itália e França dos séculos XVI e XVII, é con­
sequência, portanto, de uma certa leitura de Aristóteles.
Entre a época dos gregos e o neoclassicismo renas­
centista, a tradição de Platão e Aristóteles tinha sofrido
modificações, principalmente durante a Idade Média. Ape­
nas para ficar com a questão dos gêneros literários, o
próprio Dante Alighieri já tinha relacionado o estilo às
modalidades nobre, médio e humilde: respectivamente, o
épico, o trágico e o elegíaco (lirismo).
O sistema crítico neoclássico vai desintegrar-se, de
fato, apenas em meados do século XVIII, com a explosão
romântica, que rompe com seu esquema rígido de com­
preensão dos fenômenos artísticos. Mas todo aquele racio-
nalismo neoclássico foi obrigado a conviver com uma prá­
tica poética que era sua própria negação. Para ficar com
um exemplo de língua portuguesa, é só observar como a
poesia de um Camões fez muito mais do que simplesmente
obedecer aos rigores da norma clássica e como pôde esta­
belecer um diálogo de fato com os modelos que o influen­
ciaram — dos clássicos romanos, gregos, via tradução, aos
provençais e italianos.
... Os poetas faziam poesia ...

Através da criação poética, o poeta vai além do que


seria uma simples resposta às doutrinações estéticas e ideo­
lógicas de sua época. O que faz a verdadeira poeticidade
de um texto é que nunca ele obedece servilmente a quais­
quer diretrizes racionais e teóricas, mas estabelece uma
constante tensão com as mais amplas potencialidades da
expressão, fazendo-as vir à tona no discurso.
Ou seja: pensando apenas no campo estético, uma
coisa é a teoria, outra coisa é a prática poética. Na
primeira temos convenções e leis; na segunda, a liberdade
de invenção.
É verdade que a poesia de Camões já transbordava
os limites do classicismo, indo em direção à estética bar­
roca. Mas essa não é a única razão pela qual o conheci­
mento das bases da cultura renascentista não é suficiente
para iluminar o texto do poeta português.
Uma mera suposição: se a poesia de Camões seguisse
apenas as normas poéticas clássicas, não precisaria fazer
mais do que usar as leis da língua para expressar, o mais
inteligentemente possível, idéias já convencionalizadas pelo
uso e pelo trânsito social. A imaginação poética seria,
portanto, freada pela razão ordenadora — única maneira,
segundo a teoria clássica, de alcançar a Beleza Absoluta.
E, sendo assim, haveria uniformidade de estilo, e a varia­
ção ficaria por conta da elaboração apenas superficial e
brilhante dos detalhes. A poesia clássica nasceu num
mundo governado pela Razão, que conferia lugar seguro
às convenções poéticas.
Não podemos negar que a poesia clássica é uma
poesia intelectual que, brotando num momento de crença
no equilíbrio e ordem do universo, predispõe o poeta às
análises psicológicas ou filosóficas, às tentativas de com­
preensão dos fenômenos de toda ordem, suas causas e con-
seqüências. Tudo isso, no entanto, já passa por uma me­
diação: o nascimento simultâneo daquilo que se diz com o
material usado para dizê-lo — no caso, as palavras. Por
isso, cada texto de poesia é sempre primeiro e único na
maneira como escolhe dizer aquilo que diz.
Na poesia lírica clássica é possível observar a dialé­
tica entre emoção e contensão, através de uma ousadia
afetiva que se desprende da uniformidade de construção,
mesmo quando o poeta disseca um tema, aparentemente
impassível.
Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de que: um ri so brando e honesto,
Ouase forçado: um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso:
Um despe/o quieto e vergonhoso:
Um repouso gravissimo e modesto:
Uma pura bondade, manifesto
Indicio da alma, limpo e gracioso;
Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento:
Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pode transformar meu pensamento.
Camões

A presença afetiva do eu lírico está aqui, como em


toda boa poesia, no próprio modo de composição do
retrato: não apenas um retrato, mas um arranjo cuidadoso
e emocionado de traços e qualidades da mulher, através
de um ritmo expressivo de recortes e pausas. O último
terceto acaba jorrando “ousadamente”, dando por con­
cluída a montagem do retrato, como a confirmar a difi­
culdade emocional de sua construção.
Ainda usando o exemplo de Camões, é só ver um
trecho como o que vem a seguir, do poema épico Os
lusíadas. Nesta passagem, “as ondas", com seu balançar
rítmico e sonoro, vão invadindo e ecoando de verso em
verso (fundo, profundas, onde, esconde, donde, furibundas,
responde, jucundas) e, nesse sentido, talvez seja possível
falar numa voz lírica.
Essa voz lírica, não sendo de forma alguma uma voz
típica de primeira pessoa, é a voz que, embora narrando
ações épicas, neste momento faz algumas escolhas de lin­
guagem para descrever um clima e uma situação — que
repercutem de modo intensamente emocional no leitor do
texto:
No mais interno fundo das profundas
Cavernas altas, onde o mar se esconde,
Lá, donde as ondas saem furibundas,
Ouando às iras do vento o mar responde,
Netuno mora, e moram as jucundas
Nereidas e outros deuses do mar, onde
As águas campo deixam às cidades,
Oue habitam essas úmidas deidades.
(Canto VI. estrofe 8)

O próprio texto épico de Homero tem momentos onde


a invenção melódica é mais importante do que a narrativa
heróica — são os momentos líricos brotando, por exemplo,
dos lamentos de Helena, na Ilíada.
A lírica romântica

Um novo tempo. Uma nova concepção de


poesia?

A sociedade burguesa pós Revolução Francesa cria


os primeiros artistas profissionais. Ao mesmo tempo — e
paradoxalmente — data daí também a inadaptação do
artista, tornado inútil num mundo regido pelos critérios
do utilitarismo e pelo avanço da ciência, da indústria e da
tecnologia. “Tu que tudo alteras com teus olhos pene­
trantes./ Por que assim rapinas o coração do poeta/
Abutre, com tuas asas que são realidades chãs?” lamenta,
em 1829, Edgar Allan Poe, num soneto dedicado à ciência,
sendo ele um dos primeiros a pressentir a crise que só
explodirá mais tarde, com os modernos. Diante dessa
realidade, onde o trabalho da mão tem a máquina como
concorrente, o poeta, atônito, ainda não se deu conta de
que sem a mão a máquina não pode funcionar. O poeta
pressente mudanças, impactado.
Uma das saídas, talvez a mais procurada pela maioria
dos poetas, é se instalar como um saudoso dos tempos
antigos — o caminho da evasão romântica. O indivídua-
30

lismo burguês, atomizando a antiga unidade, é traduzido,


pelo poeta romântico, por agudo subjetivismo emocional:
a fuga para o mundo interior é um meio de autodefesa.
Por esse caminho a poesia romântica pode correr o
risco de transformar-se num mero balbucio emotivo, sufo­
cado na esfera pessoal, e o texto seria apenas expressão
dessa emotividade (a função emotiva da linguagem').
A única maneira de reacender a chama da linguagem
criativa era então incorporar, na poesia, o mundo e as
circunstâncias da modernidade. Esse privilégio, no en­
tanto, não o puderam assumir todos os poetas românticos,
mas apenas alguns que, dessa forma, já estabeleceram
diálogo com o Simbolismo e com a poesia moderna.
Quando Edgar Allan Poe se declara “out of space /
out of time”, sua resposta, sendo a de um poeta que reflete
sobre a criação poética, enfrenta o desafio feito pelas novas
técnicas de reprodução e novas tecnologias, capazes de
multiplicar as linguagens. Era preciso procurar atentamen­
te, no próprio material verbal, as potencialidades de uma
expressão que, na trilha da antiga aliança entre palavra
e som, desde sempre valorizada pelos bons poetas, pudesse
dar novo perfil à linguagem da poesia.
O poeta romântico, de um modo geral, ainda tenta
manter o antigo mito literário que exalta a figura do
poeta. A lucidez de um Edgar Allan Poe não contagia a
maioria dos poetas românticos, que prefere tratar a crise
que se anuncia como uma questão de foro íntimo, lamen­
tando a profunda solidão do “eu”. Esse “eu”, assim como
o próprio artista na sociedade, pretende manter seu lugar
assegurado, e o faz através da valorização do sentimento
e da emoção individual.
O período romântico, coincidindo com um agudo
senso do indivíduo, altera o conceito do sujeito clássico,
submetido à convenção universalista do “Iogos” — o
“penso, logo existo” — que definia o “ego” da tradição
31

clássica. De fato, já a partir do século XVII inicia-se


esse processo de valorização e reconhecimento da indivi­
dualidade: das pessoas, das diferentes épocas históricas, de
cada contexto e caráter nacional.
Naquele momento, já era possível ter consciência da
diferença que separava a época grega da época contempo­
rânea. Mas antes mesmo da explosão romântica, já du­
rante a primeira metade do século XVIII, a teorização
clássica vinha sendo deixada de lado por leitores privile­
giados.
Com o advento do Romantismo, a poesia não se justi­
fica mais como imitação (o conceito neoclássico da “mi-
mesis” aristotélica), mas como expressão inspirada de
uma alma. O poeta será comparado a um organismo vivo:
está, portanto, delineada uma verdadeira revolução no
conceito de poesia e, dentro da nova ordem de valores, a
poesia lírica terá lugar de destaque nas produções e refle­
xões estéticas.
Tal lugar de destaque é resultado previsível da valo­
rização da produção literária como expressão individual, da
pessoalização do poético, o que implica também numa
revisão da classificação clássica dos gêneros literários.

Entre os críticos que mais contribuíram para o novo


rumo do pensamento crítico está o pré-romântico alemão
Johann Gottfried Herder (1744-1803), considerado como
o primeiro que rompeu com o pensamento neoclássico
europeu. Herder repele a classificação por gêneros e,
quando fala em epopéia, drama e poesia lírica, é capaz
de fundir o que, em Aristóteles, estava rigidamente sepa­
rado.
Mas o mais interessante para a nova idéia de lirismo
é a modernidade de sua concepção da poesia como lin­
guagem de sons, tons e metro: uma concepção que, embora
32

moderna, acaba sendo uma recuperação da unidade origi­


nal de poesia e música. Além do aspecto da eufonia da
linguagem, Herder aponta a importância da imagem, da
analogia, e sua convivência, na poesia, com a fábula e o
mito. Atente-se para o fato de que som, tom e metro é
que são os elementos propriamente líricos do poema.
Herder teve discípulos como Novalis e Goethe.
O alemão Novalis (1772-1801), poeta romântico mal
compreendido em seu próprio século, lançou reflexões
teóricas extremamente próximas de uma poética moderna,
na medida em que, como mineralogista, estendia seu en­
canto pelos processos químicos para as combinações ver­
bais. Para Novalis a poesia lírica seria a pura expressão
do poético, do mundo da magia, embora, nesse mundo
mágico, entrasse o dado da construção matemática a orga­
nizar fragmentos do mundo.
Goethe (1749-1832) também discutiu bastante a
questão dos gêneros e não aprovava que fossem misturados.
Mas ao desaprovar o princípio da subjetividade poética que
dominava a seu tempo, chamando-o de “doença geral da
época”, deu um passo decisivo no entendimento da ver­
dadeira função do sujeito da poesia, o sujeito lírico, acre­
ditando numa identidade entre sujeito e objeto, espírito e
natureza ou, enfim, homem e natureza.
Durante o século XIX, no entanto, a teoria do crítico
francês Brunetière (1849-1906) lembra ainda a visão
clássica dos gêneros, embora com tintas modernas. A
visão de Brunetière, aparentemente legado das teorias evo-
lucionistas em moda nos fins do século XIX, é ainda nor­
mativa, considerando os gêneros literários como entidades
em si mesmas, sem levar em conta o processo criativo de
produção dos textos.
O novo rumo da reflexão moderna, iniciada no Ro­
mantismo, não se contentará em aceitar etiquetas, e estará
33

cada vez mais interessado na própria especificidade do


discurso poético.
Benedeto Croce (1866-1952), por exemplo, direta­
mente inspirado pelo espírito romântico, desprezava qual­
quer abordagem científica e, ao invés da idéia de gêneros
como modelos, colocava em primeiro lugar a concepção
de cada obra de arte como expressão única e insubstituível:
interessavam os objetos reais, os textos, o gosto do leitor
e não os conceitos de gêneros, suportáveis apenas enquanto
instrumentais empíricos.

Um novo tempo. Uma nova poesia?

Do ponto de vista das conquistas técnicas da lingua­


gem poética, o Romantismo dará lugar de destaque ao
ritmo, no projeto de organizar analogicamente — por tra­
ços de semelhança ou diferenças — a imagem do mundo
no poema. A rebelião romântica contra a versificação
silábica irá casar-se com sua própria aventura de pensa­
mento, já liberto do racionalismo anterior. Ritmo e ana­
logia: eis os princípios românticos.
Os poetas românticos alemães e ingleses foram fun­
damentais naquele momento, pela relevância que deram à
distribuição rítmica dos acentos — o que puderam apreen­
der de sua própria tradição poética. Já a poesia francesa,
tradicionalmente mais presa aos modelos métricos silábicos,
precisou fazer uma verdadeira revolução contra essa versi­
ficação silábica e regular e, mesmo assim, o seu lirismo
romântico é muito menos libertário e arrojado.
Se é possível falar num “estilo lírico”, talvez ele en­
contre em alguns poetas românticos seus momentos mais
exemplares, naqueles casos em que o dado subjetivo con­
segue ultrapassar o estágio da mera confissão para en­
contrar até mesmo seu oposto — os limites da própria
34

expressão subjetiva —, dando o salto para o coletivo e o


universal.
Ao referir-se ao poema de Wolfgang Goethe, “Wan-
derers Nachtilied”, a “Canção noturna do viajante”, Emil
Staiger fala nele como um dos “exemplos mais purps de
estilo lírico”. Descontado o fato de Staiger, no seu livro
Conceitos fundamentais da poética, de 1946, partir da dis­
cutível possibilidade de determinar os gêneros — épico,
lírico e dramático — em estado puro, sua expressão pode
ter sentido.
Sobre os picos
paz
nos cimos
quase
nenhum sopro.
Calam aves nos ramos.
Logo, vamos,
virá o repouso.
(Tradução de Haroldo de Campos) *

A leitura que desse texto fez Emil Staiger destaca a


tessitura sonora e as suspensões de frases modulando a
entonação da voz como um dos modos de falar sobre o
silêncio e a espera. Adorno, ao referir-se a esse mesmo
poema, mostra como ele presentifica um instante: depois
de sonhar com a paz de uma natureza já perdida, vem a
percepção de que essa paz é apenas uma promessa, talvez
definitivamente adiada.
O poema se faz sob o signo da negatividade sem alar­
des e, por isso mesmo, dolorosa, ecoando profundamente
na alma melancólica e nostálgica do sujeito lírico. Ao

* O texto original é: “Über allen Gipfeln/Ist Ruh/In allen Wipfeln/


/Spürcst du/Kaum einen Hauch/Die Võgelein schweigen im Wal-
de/Warte nur, balde/Ruhest du auch".
35

contrapor a tradução de Haroldo de Campos com a que


vem ao pé da página do livro de Staiger * é possível per­
ceber como a recriação de Haroldo realiza a profunda
unidade entre som e sentido, forçando uma explicação ex-
tralingüística, dada pelas sugestões jónicas: são elas que
mantêm a tensão entre a utopia do sonho (paz/quase/ca­
lam/virá) e sua ruptura (sopro/ramos/vamos/repouso).
Qualquer consolo parece impossível, irremediavelmente
travado pelas vírgulas de "Logo, vamos,”. São as sugestões
fônicas que amarram a paisagem no interior de um clima
de desejo do sujeito lírico: pela extrema unidade e coesão,
não permitem a intromissão de nenhum outro “eu”, mas
apenas o desdobramento, num momento extremo, desse
“eu” num “tu”, interlocutor que é apenas uma inútil con­
solação de si mesmo.
As relações entre imagens, ritmos e sonoridades pre­
valecem sobre a lógica de uma sintaxe submetida à versi­
ficação: é esse o caminho mais fecundo do Romantismo.
Nesse poema de Goethe, portanto, a natureza já é
um bem perdido. Mas o Romantismo talvez represente
os últimos momentos em que o artista ainda pode sentir-se
grandioso e glorioso, acreditando fazer da linguagem poé­
tica um meio de expressar a si próprio e à natureza.
Levando tal posição ao extremo, o poeta, como vimos,
cairá num solipsismo subjetivista que nada tem de lírico,
como acontece com muitos textos dos românticos brasilei­
ros mais descabelados, que servem hoje mais como exem­
plos de clichês líricos (muitos dos textos de Álvares de
Azevedo [1831-1852] e quase todos os de Casimiro de
Abreu [1839-1860]).
Num país orgulhoso de afirmar-se como personalidade
social e poética, num momento de autodescoberta, o liris-

* "Sobre todos os cumes/quietude./Em todas as árvores mal perce-


bes/um alento./Os pássaros emudecem na floresta./Esperas só um
pouco, breve/descansas tu também.”
mo romântico brasileiro acabou superpondo afirmação
nacionalista, personalidade literária e eloqüência retórica.
Nesse contexto, o verso de dez sílabas, por exemplo, tor­
nou-se apenas um molde repetitivo e empobrecedor. Nesses
casos, a estética aliou-se à retórica: mesmo flagrando, apa­
rentemente, a “mais autêntica” expressão da emoção pes­
soal e suas relações com a natureza, essa poesia romântica
apenas respondia a códigos e expectativas de linguagem já
previstos.
Não podemos nos esquecer de que a persuasão e in­
dução retóricas — hoje chamadas consenso e manipulação
— podem incluir no seu projeto de aceitação uma “retó­
rica do afeto”, para facilitar a adesão do leitor à mensagem.
Não sendo a regra, no entanto, o lirismo romântico
brasileiro também conseguiu, em muitos momentos, inte­
grar “eu” e “natureza” na linguagem do poema. O poema
de Gonçalves Dias (1823-1864) que vem abaixo, temati-
zando o próprio decorrer do tempo no decorrer do texto,
é um belo exemplo de como a expressão lírica pode al­
cançar um estatuto amplo e contundente.

Leito de folhas verdes

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo


A voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.

Eu sob a copa da mangueira altiva


Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,


Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.
37

Brilha a lua no céu, brilham estrelas,


Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!
A flor que desabrocha ao romper d'alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.
Sejam vales ou montes, lago ou terra.
Onde quer que tu vás. ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pe nsamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!
Meus olhos outros olhos nunc a viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazóia na cinta me apertaram.
Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma;
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!
Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
A voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!
Gonçalves Dias

Entre os românticos que foram capazes de levar as


sugestões de sua época a ponto de reverter radicalmente
modelos e expectativas estéticas, está o brasileiro Sousân-
drade (1832-1902). O Guesa errante, longo poema divi­
dido em cantos, publicado em Nova Iorque em 1876, traz
uma introdução à edição americana onde o próprio poeta
já sente dificuldades de encaixar seu texto nas classificações
de épico, lírico ou dramático, talvez pelo caráter de inven-
ção melódica que ultrapassava a concepção tradicional de
melodia romântica.
“O Guesa nada tendo do dramático, do lírico ou do
épico, mas simplesmente da narrativa, adotei para ele o
metro que menos canta, e como se até fosse necessária, a
monotonia dos sons de uma só corda.”
Eia, imaginação divina!
Os Andes
Vulcânicos elevam cumes calvos,
Circundados de gelos, mudos, alvos,
Nuvens flutuando — que espetac'los grandes!
Lá, onde o ponto do condor negreja,
Cintilando no espaço como brilhos
D'olhos, e cai a prumo sobre os filhos
Do lhama descuidado; onde lampeja
Da tempestade o raio; onde deserto,
O azul sertão, formoso e deslumbrante,
Arde do sol o incêndio, delirante
Coração vivo em céu profundo aberto!
(Fragmento inicial do Canto Primeiro)

Em outros poemas do mesmo autor, que não perten­


cem ao Guesa, observa-se também a opção moderníssima
por uma lógica analógica que, sem precisar ficar amarrada
ao modo da subordinação estabelece, entre as imagens
colhidas, verdadeiras relações de montagem.
Dá meia-noite

Alb...

Dá meia-noite; em céus azul ferrete


Formosa espádua a lua
Alveja nua,
E voa sobre os templos da cidade.

Nos brancos muros se projetam sombras:


Passeia a sentinela
39

À noite bela
Opulenta da luz da divindade.
O silêncio respira: almos frescores
Meus cabelos afagam:
Gênios vagam,
De alguma fada no ar andando à caça.
Adormeceu a virgem: dos espíritos
Jaz nos mundos risonhos —
Fora eu os sonhos
Da bela virgem ... uma nuvem passa.
Sousândrade
0 lirismo moderno

A emancipação do lirismo moderno

Assim como a antiga cidade tinha configurado um


novo ambiente para o poeta, fazendo nascer a poesia lírica
na Grécia Antiga, é outra vez a cidade que vem dar novos
contornos ao modo como o sujeito se relaciona com o
mundo objetivo: agora, mais do que nunca, substitui
aquela onipotência de um sujeito heróico, narrador do
mundo e das peripécias dos homens, pela relatividade do
mergulho na subjetividade.
Mas ao contrário do poeta romântico, que ainda
acredita na poesia como expressão do “eu”, o poeta mo­
derno sabe perfeitamente que qualquer recorte do mundo
será apenas linguagem e não lhe é possível mais do que
isso: o poeta moderno se vê projetado no mundo exterior,
sabendo que desse mundo poderá fazer apenas uma tradu­
ção parcial.

A idéia da arte como fatura, que aparece nos textos


de Edgar Allan Poe (“Filosofia da composição” e “O
41

princípio poético”), foi fundamental para seu tradutor fran­


cês — o pré-simbolista Baudelaire (1821-1867) —, o
primeiro poeta moderno a sistematizar o poema como
relações entre sons, ritmos e imagens, como aparece no
soneto “Correspondências”, metaforicamente referidas à
natureza:
Como longos ecos que de longe se confundem
numa tenebrosa e profunda unidade,
vasta como a noite e a claridade,
os perfumes, as cores e os sons se correspondem.

Baudelaire é o poeta que reconhece a nova cidade e


o homem das multidões: um texto crítico importante é
o que escreveu sobre “O pintor da vida moderna”, onde
incorpora a seus conceitos estéticos os dados dos novos
tempos das metrópoles, abandonando o interesse pelo
Belo absoluto para ater-se ao Belo transitório. “Há na
vida trivial, na metamorfose jornalística das coisas exte­
riores, um movimento rápido que ordena ao artista uma
igual velocidade de execução”, diz ele. -f
Deixando de lado os grandes pintores como Delacroix,
Daumier, Courbet, escolhe um pintor menor, Constantin
Guys, para falar do artista como homem do mundo,
homem das multidões. Citando um pequeno diálogo que
teve com Delacroix, acerca da predisposição curiosa em
observar o novo — seja ele rosto ou paisagem, luz, cores
ou roupas —, acaba caracterizando a modernidade como
uma capacidade para extrair o “eterno do transitório’’.
Apontando os rumos da pintura, Baudelaire preconiza o
impressionismo e afirma que a modernidade está também
no próprio código usado pelo artista.
Tanto em Poe como em Baudelaire a poesia associa-se
à inteligência crítica. Mas a modernidade para Baudelaire
é ainda mais: é também a possibilidade de transformar em
42

poético tudo aquilo de artificial, grotesco e feio que a


grande cidade pode oferecer ao artista — o caminho para
uma “estética do feio". »
Os herdeiros de Poe e Baudelaire serão os poetas
mágico-inspirados e os poetas lógico-construtores do Sim­
bolismo: Verlaine, Rimbaud e Mallarmé, para ficar apenas
com a primeira leva, entre os franceses.
Observando as conseqüências do esforço constitutivo
da linguagem poética, a partir sobretudo de Rimbaud e
Mallarmé, é possível afirmar que Baudelaire contribuiu
para mostrar que o campo da expressão e comunicação
não se reduz, de modo algum, apenas às manifestações do
pensamento lógico.
Nas Lettres d’un voyant (Cartas de um vidente), escri­
tas em 1871, Arthur Rimbaud (1854-1891) falou de sua
admiração por Baudelaire, e disse: “Baudelaire é o pri­
meiro vidente, rei dos poetas, um verdadeiro Deus” para,
em seguida, reclamar que sua tendência mais conformista
e tradicional acabou por abafar a possibilidade de inven­
ção de novas formas poéticas.
É possível compreender a radicalidade de Rimbaud
nessa crítica: basta ler seus textos.

Oh estações, oh castelos,
Oue alma é sem defeito?

Oh estações, oh castelos,

Eu fiz o mágico estudo


Da felicidade, que ninguém evita.

Ora viva ele, toda vez


Oue canta o galo gaulês.

Mas não desejarei mais nada,


Ele tomou conta de minha vida.
43

Esse encanto! Fez-se de carne e osso,


e dispersou todos os esforços.
Como compreender minha palavra?
É preciso que ela fuja e voe!
Oh estações, oh castelos!
Rimbaud (Tradução de Mário Faustino)

Stéphanc Mallarmé (1842-1898) foi, decerto, o ponto


máximo dessa caminhada do poeta moderno contra uma
sociedade que tudo automatiza. Por isso o poeta precisa
buscar suas armas dentro da própria linguagem da poesia,
mesmo sabendo que nada é definitivo e "um lance de dados
jamais abolirá o acaso” — título do longo e elaboradíssimo
poema visual e musical escrito em 1897.
“Hoje ou sem presumir do futuro o que sairá daqui,
nada ou quase uma arte, reconheçamos facilmente que a
tentativa participa, com imprevisto, de pesquisas particu­
lares e caras a nosso tempo, o verso livre e o poema em
prosa. Sua reunião se cumpre sob uma influência, eu sei,
estranha, a da música ouvida em concerto; encontrando-se
nesta muitos meios que me parecem pertencer às Letras,
eu os retomo”, afirma o poeta no prefácio.

Quanto mais os meios de comunicação foram se de­


senvolvendo, quanto mais a arte foi evoluindo em direção
à técnica, tanto mais a linguagem expressiva foi sendo
percebida como mediação entre poeta e realidade, perdendo
seu caráter de verdade e desestabilizando a função do
poeta. Esse se sente desgarrado em seu novo “habitat”,
sem acreditar que pode compreendê-lo e dominá-lo defini­
tivamente.
O olhar lírico de Baudelaire sobre a cidade moderna,
Paris, ainda guarda a nostalgia da antiga e reconfortante
44

relação entre homem e natureza mas, ao mesmo tempo,


já “procura um asilo na multidão”.
Uma das modernas técnicas de linguagem que mais
colaboraram para essa nova visão foi a fotografia, de 1829
(a invenção do negativo é de 1839). Num primeiro mo­
mento, parecia que ela vinha apenas roubar a função de
reprodução do real que, até então, pertencia à pintura.
No entanto, a fotografia propunha um outro modo de
captar a realidade e uma outra possibilidade de traço, que
logo o pintor impressionista aproveitou. Quanto ao outro
modo de captar a realidade a fotografia mostrava que cabe
ao artista, de modo pessoal e inventivo, dar uma versão
possívei do real, ao invés de pretender e supor possível a
perfeita cópia.
Edgar Degas (1843-1917), o singular pintor impres­
sionista francês, ao captar flagrantes de bailarinas (“O en­
saio”, “Ensaio de balé”, “No palco”, “A orquestra da
ópera”), usa vibrações de luz, técnicas de pastel e con­
tornos esfumaçados para criar uma perspectiva que foge
do enquadramento tradicional. Ele recorta a cena obtendo
um dinamismo, reforçado pelos fragmentos apenas insinua­
dos, como se a cena fosse parte incompleta de um conjunto:
uma sapatilha descendo a escada e vista por baixo, por
exemplo.
A perspectiva de Degas prevê a da câmara fotográ­
fica e cinematográfica onde a escolha do ângulo pelo ar­
tista é dado não escamoteado e a participação do receptor
na aventura, dado previsto.

Esse é um novo papel do poeta — do sujeito lírico


— diante da cidade moderna: ao mesmo tempo em que
se acentua sua importância, pelo traço característico e in­
substituível de seu olhar, de seu recorte de mundo, acen-
45

tua-se também sua impotência em dar um sentido defini­


tivo àquilo sobre o que está falando e em dominar o pró­
prio instrumento que usa.
Fala um trecho do poema “Sentimento de um oci­
dental”, do poeta simbolista português Cesário Verde
(1855-1886), herdeiro de Baudelaire, expressando a nova
situação do poeta na cidade grande:
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnldade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
0 gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Ainda o poema de Cesário Verde, que escrevia num


momento em que a imagem da multidão (magotes) podia
funcionar como paisagem evocadora daquelas crônicas
navais do tempo das narrativas épicas:
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelo cais a que se atracam botes.
E evoco, então, as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul. salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

Nesse mesmo momento ou pouco mais tarde, sabe-se,


a cidade vai aparecer ora como paisagem (quando a refe­
rência é, portanto, o passado), ora como loja (a transfor­
mação moderna) para, finalmente, acabar na imagem do
46

grande magazine ou loja de departamentos, engolindo o


poeta que vaga pelas ruas.
E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem:
Casas de confecções e modas resplandecem:
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar


Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

O poeta moderno, jogado no coração da grande ci­


dade capitalista, sem função e público certos, precisa recu­
perar uma História na qual sua condição atual possa fazer
sentido. Para essa recuperação precisa forjar seu instru­
mental, e assim, a linguagem alegórica e fragmentada é o
modo que encontra para dialogar com a tradição.
Ao caminhar cada vez mais em direção às próprias
possibilidades internas da linguagem — ritmo, sonoridade,
ambigüidade de sentidos, organização inédita de imagens e
associações criativas —, abandonando regras e modelos,
o fenômeno lírico se expande e se emancipa.

Poética

Estou farto do lirismo comedido


Do lirismo bem comportado
(...)
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
[o cunho vernáculo de um vocábulo
(...)
Estou farto do lirismo namorador
(...)
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
[de si mesmo.
Manuel Bandeira (1886-1968)
47

O sujeito lírico moderno

Na poesia moderna, o sujeito explicitado como “eu”


não se refere a uma pessoa particular. A poesia não ali­
menta nenhuma ilusão de ser um armazém de emoções
reais:
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me...
escreve Fernando Pessoa (1888-1935), mestre em refletir,
através da própria sintaxe, na função do sujeito da poesia.
A voz que fala na lírica moderna, afirma Mallarmé,
oculta “tanto o poeta quanto o leitor”. E Rimbaud: “é
falso dizer: penso. Dever-se-ia dizer: pensa-se em mim”.
Já não há possibilidade, nos poetas mais radicais, de
ir buscar na biografia do autor, como os românticos ou
mesmo Baudelaire permitiam, os dados para a explicação
do texto. Já não se leva em conta o “eu sou”.
Isto

Dizem que finjo ou minto


Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
48

Sério do que não é.


Sentir? Sinta quem lê!

Fernando Pessoa

O sujeito lírico sempre existe através das escolhas de


linguagem que o poema apresenta, mas na poesia moder­
na fica mais evidente que o sujeito lírico é o responsável
por esses “atos de denominação”: não pode ser confun­
dido com o poeta em carne e osso porque sua existência
brota da melodia, do canto, da sintaxe, do ritmo: o sujeito
lírico é o próprio texto, e é no texto que o poeta real
transforma-se em sujeito lírico.

Certeza

Si es real la luz blanca


De esta lámpara, real
La mano que escribe, i son reales
Los ojos que miran lo escrito?

De una palabra a la otra


Lo que digo se desvanece.
Yo sé que estoy vivo
Entre dos parêntesis.

Octavio Paz (1914-)

O sujeito lírico moderno é aquele que, a partir do


Simbolismo, toma consciência de que o espaço da poesia
não é nem o espaço da realidade (a objetividade será im­
possível, portanto), nem o espaço do “eu” (a dita subje­
tividade será encarada também como ilusória).
Mesmo naqueles textos para cuja total compreensão
a biografia do autor pode ajudar, o “eu” que fala no
poema, a subjetividade, não se refere apenas ao poeta que
escreveu o texto.
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Oue chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Fernando Pessoa

No caso do poeta português Mário de Sá-Carneiro


(1890-1916), a instabilidade e precariedade do sujeito são
dados biográficos e tema sobre os quais o poeta discorre
mas, principalmente, transparecem na própria sintaxe do
texto: “serei mas já não me sou”.
Dispersão

Não sinto o espaço que encerro


Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro —
Não me acho no que projeto.
(...)
Desceu-me n'alma o crepúsculo:
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
(...)
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...
Mário de Sá-Carneiro

As audácias da poesia lírica moderna ecoam num


conceito de poesia como transgressão da lógica e, nesse
sentido, podem até ser chamadas “loucuras”. A poesia mo­
derna é, mais claramente do que as anteriores, continente
de todas as dispersões possíveis do “eu” e da “alma” em
direção ao mundo do desejo e da utopia. Aquela dimensão
50

do “eu” aprisionada pela lógica liberta-se, através do poe­


ma. O poema é um espaço possível de liberdade. Outro
espaço pode ser o sonho.
O assinalado

Tu és o louco da imortal loucura.


O louco da loucura mais suprema,
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,


Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu'alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado


Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco.

Na Natureza prodigiosa e rica


Toda audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!
Cruz e Souza (1861-1898)

Num de seus poemas de Clepsidra, o poeta simbolista


português Camilo Pessanha (1867-1927) tematizou a im­
potência do sujeito em dominar o real, percebida aguda­
mente pelo poeta moderno. Ele se angustia por não poder
apreender totalmente as imagens que passam diante de
seus olhos.
Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, por que não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...

Ou para o lago escuro onde termina


Vosso curso, silente de juncais,
SI

E o vago medo angustioso domina,


— Por que ides sem mim. não me levais?
Sem vós o que são os meus olhos abertos?
— O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez e sucessivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
— Estranha sombra em movimentos vãos.
Camilo Pessanha

Em 1929, Paul Valéry (1871-1945) afirmou: “A


poesia não é mais do que a literatura reduzida ao essencial
de seu princípio ativo. Foi purgada das ilusões realistas e
de ídolos de todo tipo; do possível equívoco entre a lin­
guagem da verdade e a linguagem da criação etc. E este
papel quase criador, fictício da linguagem (ela, de origem
prática e verdadeira), torna possível a fragilidade ou ar­
bitrariedade do sujeito”.

Vamos tomar alguns poemas de autores modernos


brasileiros como exemplos de como deve ser encarada a
questão do sujeito lírico.

Pensão familiar
Jardim da pensãozinha burguesa.
Gatos espapaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
O sol acaba de crestar as boninas que murcharam.
Os girassóis
amarelo!
resistem.
E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.
Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant-Palace
52

Encobre cuidadosamente a mijadinha.


Sai vibrando com elegância a patinha direita:
— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.
Manuel Bandeira

Se alguém perguntasse onde está o sujeito lírico desse


poema, a resposta poderia ser que ele ocupa um lugar
semelhante ao de um pintor ou cineasta que fosse esco­
lhendo, cuidadosamente, as cores, os traços, as imagens
e relações entre imagens para seu quadro ou filme.
O sujeito lírico é o elemento que une todas as esco­
lhas de linguagem de que é feito um texto. Há, por
exemplo, um andamento especial com os pontos finais e
as pausas mais demoradas entre uma cena e outra, que
vai reforçando no leitor a expectativa de uma relação
de familiaridade com o que está lendo — “pensão fami­
liar”. Há também o movimento lânguido dos gatos, mole­
mente estirados na assonância dos /a/; a insistência das
tiriricas, pragas a brotarem pela assonância dos /i/ e,
resplendoroso, o destaque amarelo do sol.
Por um momento, o “amarelo!” brilha sozinho na
página, tomada em primeiro plano que tem os girassóis
como figura de fundo. E não são apenas “gatos”, mas
“gatos espapaçados”, “gatos espapaçados ao sol”; não é
apenas “sol”, mas um “sol” que caminha do fim de um
verso, onde tem função sintática complementar, para o
começo de outro, onde aparece como sujeito impiedoso
e pleno.
O leitor participa, através da leitura, dessas operações
efetuadas pelo sujeito lírico.

Em “Sol”, que vem a seguir, de Oswald de Andrade


(1890-1954), a repetição em gradação do nome da cidade
tem função de evocação, tempo arrastado da lembrança,
53

Sol
Uma vez fui a Guará
A Guaratinguetá
E agora
Nesta hora de minha vida
Tenho uma vontade vadia
Como um fotógrafo
Oswald de Andrade

que parece romper-se com a solenidade retórica dos versos


3-4 seguintes! “E agora/Nesta hora de minha vida”. Uma
ruptura aparente que logo se desfaz, para recuperar o
olhar errante e a disposição fluida (“Tenho uma vontade
vadia/Como um fotógrafo”), que vão ricochetear sono­
ramente até mesmo na fugaz retórica já mencionada dos
versos 3-4 (vadia -» vida), terminando por uma compa­
ração (“Como um fotógrafo”) que, ligando-se ao “sol” do
título, alarga o espaço de comparação para o próprio poe­
ma, pequeno “flash” intrometido no presente da leitura, à
maneira de lembrança.
O sujeito do texto só se revela através da construção
do texto (no texto, portanto) e aí encontra o leitor, como
sujeito da leitura-tradução, metade indispensável para que
o processo tenha significação.

Num texto como:


João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no
[morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no Bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu
[afogado.
54

de Manuel Bandeira (“Poema tirado de uma notícia de


jornal”) estamos, aparentemente, diante de uma pequena
história, de uma narrativa com personagem e ações. Os
verbos, no entanto, principalmente aqueles que compõem
versos inteiros, têm duas leituras possíveis. A primeira é
a do sentido literal, a segunda a de uma precipitação física
(dada sobretudo pelo ritmo), onde o próprio movimento
dá as cartas, até mesmo quando aparece o pronome refle­
xivo se, em “se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas”.
A individualidade de João Gostoso se afoga no ano­
nimato de uma morte para a qual é empurrado pela
fatalidade de um destino marginal. Esse poema, portanto,
distingue-se de uma notícia de jornal porque há uma ma­
neira especial de organizar a linguagem, capaz de transfor­
mar a notícia individual, o evento, num símbolo amplo e
atemporal de uma certa condição de vida. Quem faz esse
recorte crítico é exatamente o sujeito lírico do texto.
Lirismo e gêneros literários

Afinal, o que é poesia lírica?

Alguém já comparou os gêneros literários a institui­


ções como a Igreja, a Universidade ou o Estado: para
reformá-las é preciso primeiro aderir a elas. Talvez por
isso é que a teoria clássica dos três gêneros — o lírico,
o épico e o dramático — tenha permanecido durante tanto
tempo.
Emil Staiger, por exemplo, em seu Conceitos funda­
mentais da poética, retoma a questão a partir de uma visão
tradicional. Seus críticos não se cansam em apontar o cará­
ter ainda normativo de suas distinções, mesmo partindo de
um ponto de vista ontológico, na medida em que reflete em
termos de formas puras.
No entanto, dentre os vários autores que têm falado
do problema dos gêneros, e apesar dessas ressalvas a
Staiger, há uma distinção em seu livro que me parece
bastante operatória, e que talvez possa ser aproveitada se
considerarmos que remete a elementos fundamentais para
o sentido de qualquer texto: sua construção e seu leitor.
56

Tal distinção é a seguinte: uma coisa é usarmos a


palavra lírica como substantivo, outra coisa é usá-la como
adjetivo. Essa distinção, que serve também para épica e
dramática, pode ajudar a perceber por que nem todas as
formas de lírica (considerada normativamente como um
possível compêndio abstrato de características) são, neces­
sariamente, líricas.
Quando essas palavras são usadas como substantivos
— a Lírica, a Épica, a Dramática — estamos falando de
uma classificação geral dos gêneros, de herança clássica.
Aí cabem todas as obras que tiverem as características
gerais tradicionalmente atribuídas a cada um dos gêneros,
mesmo que elas apareçam ao lado de outras: a questão
é de prioridade. Por essa classificação, portanto, cabem
na Lírica todos os poemas não muito longos, sem persona­
gens claramente delineados, onde o ritmo e a melodia ser­
vem para expressar o estado da alma de um “eu”; cabem
na Épica os textos, em verso ou em prosa, onde um
narrador conta uma história com personagens, aconteci­
mentos e situações; cabem no Drama os textos dialogados
para serem representados num palco.
Quando essas palavras são usadas como adjetivos,
significam uma qualidade que decorre de traços estilísticos
específicos que podem — ou não — estar presentes num
texto, independente do gênero a que pertence.
Avançando na proposta de Staiger, podemos afirmar
que esses traços estilísticos, nascendo principalmente do
ritmo e da melodia, já mal caberão em qualquer classifi­
cação: é só ver que, ao ler a “Canção noturna do via­
jante”, de Goethe, o próprio Staiger precisou curvar-se ao
texto do poeta, único, irrepetível e, nesse sentido, inclassi­
ficável. O lirismo do poema pode ser percebido apenas
após sua leitura.
São dois dados portanto: o texto como construção de
linguagem mais a situação de leitura que suscita. Essa si-
57

tuação de leitura, por sua vez, envolve não apenas a relação


entre leitor e texto mas também a relação entre texto e
seu tempo histórico, que cria certas expectativas, tanto para
o fazer do texto como para sua recepção. Vamos por
partes.
Para fazer um soneto

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,


e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.
Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.
Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.
Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.
Carlos Pena Filho(1930-1960)

Usando uma típica forma-padrão, o soneto, o poeta


está longe de tratar o fazer poético (e lírico) como uma
questão de domínio técnico, mas sim como um modo es­
pecial de utilizar a percepção, a experiência e a intuição.
A palavra poética, brotando de uma “vã certeza”, vai
procurar no próprio fazer do texto, o que e o como dizer.
Que el verso sea c omo una llave
Que abre mil puertas.
Una hoja cae; algo pasa volando;
Cuanto miren los ojos creado sea,
58

Y el alma dei oyente quede temblando


(...)
Por qué cantais la rosa, ioh Poetas!
Hacedla florecer en el poema:

escreveu o poeta chileno Vicente Huidobro (1893-1948),


o primeiro grande poeta moderno da America espanhola.

Num poema lírico, nem mesmo as comparações apa­


rentemente mais lógicas podem ser substituídas, sem pre­
juízo da composição de seu desenho, recortado ritmica­
mente no tempo. Essa “intraduzibilidade” é traço de todo
texto criativo, cuja informação primeira não é nunca con­
ceituai. Talvez não seja exagero afirmar que, provavel­
mente, a simples leitura de
Nulla unda
Tam profunda
Ouam vis amoris
Furibunda

possa transmitir maior emoção poética, mesmo para quem


não conhece o latim, do que a tradução do tipo “nenhuma
onda profunda é tão furiosa quanto a força do amor”.
Na expressão lírica, portanto, há uma espécie de
tensão e luta contra qualquer intencionalidade lógica e
gramatical, contra qualquer explicação da emoção e do
sentimento. Se a poesia lírica pode ser uma forma de
conhecimento é porque ela faz conhecer, no momento da
leitura, a própria linguagem, distanciada do hábito e re­
vivida como nova pela invenção poética.
A relação do texto poético (e lírico) com seu leitor
não vem de nada que seja anterior à própria matéria verbal
do poema. E, provavelmente, os traços de linguagem que
59

envolvem primeiro o leitor são a qualidade sonora das pa­


lavras e as unidades rítmicas.
Ezra Pound considera a melopéia — a característica
de “produzir correlações emocionais por intermédio do
som e ritmo da fala” — como essencial da lírica.
Poemas da amiga

Minha cabeça poisa nos teus joelhos,


Vem o entre-sono, e é milagroso!
A vida se conserva em mim doada pelos seus joelhos,
E sou duma inimaginável liberdade!
(...)
Oh espiritos do ar, dizei-me a rosa incomparável
Que se evola reagindo em baile no ar!
Baile! Baile de mim no entre-sono!
Não é uma alma, não é um espirito do ar, não é nada!
Ê a outra coisa que baila, que baila, que baila.
Livre de mim! gratuita enfim! fútil de eternidade!
Oh, brinca, brinca, minha melodia!
Sabiá da mata que canta a mei-dia!
Olha o coco, Sinhá!
Mário de Andrade (1893-1945)

Quem já não sentiu verdadeira emoção lírica ao en­


toar:
Tantum ergo sacramentum
Veneremur cernui:
Et antiquum documentum
Novo cedat ritui:
Praestet fides supplementum
Sensuum defectui...
Santo Tomás de Aquino (1225-1274)

A prova definitiva é que as traduções que correm


nos folhetos das missas de hoje já não são capazes de
60

sustentar a mesma emoção, embora conservem a mesma


melodia.

O ritmo de recepção da poesia lírica é também um


ritmo associativo, baseado nas relações de contigüidade
da linguagem, capazes de propor uma leitura de aproxi­
mações entre elementos do texto que não estão necessa­
riamente numa seqüência lógica: uma imagem aqui, uma
imagem ali, um ritmo cá, uma sonoridade lá, e eis o mer­
gulho numa ilha de existência apenas poética.

Ode no cinqüentenário do poeta brasileiro *


(...)
Debruço-me em teus poemas
e neles percebo as ilhas
em que nem tu nem nós habitamos
(ou jamais habitaremos)
e nessas ilhas me banho
num sol que não é dos trópicos,
numa água que não é das fontes
mas que ambos refletem a imagem
de um mundo amoroso e patético.

(...)
Certamente não sabias
que nos fazes sofrer.

Ê difícil explicar
esse sofrimento seco,
sem qualquer lágrima de amor,
sentimento de homens juntos,
que se comunicam sem gesto
e sem palavras se invadem,
se aproximam, se compreendem
e se calam sem orgulho.

* Esta ode foi feita em homenagem a Manuel Bandeira.


61

(...)
és tu mesmo, é tua poesia,
tua pungente, inefável poesia,
ferindo as almas, fogo celeste, ao visitá-las;
é o fenômeno poético, de que te constituiste o
[misterioso portador
e que vem trazer-nos na aurora o sopro quente dos
[mundos, das amadas exuberantes e das
[situações exemplares que não suspeitávamos.
(...)
Carlos Drummond de Andrade

O fenômeno lírico, no entanto, também responde a


um certo “horizonte possível”, determinado pelo seu
tempo e contexto. É preciso perseguir as relações entre
expressão lírica e história, observando seus modos de ex­
pressão nos vários momentos.
O poema lírico moderno, por exemplo, navega em
águas amorosas muito mais ousadas e reveladoras do que
poderia supor qualquer esquema idealista-amoroso. Uma
liberdade amorosa que subverte velhos temas e antigas
ideologias.

Ãgua-forte

O preto no branco,
O pente na pele:
Pássaro espalmado
No céu quase branco.
Em meio do pente,
A concha bivalve
Num mar de escarlata.
Concha, rosa, ou tâmara?
No escuro recesso,
As fontes da vida
A sangrar inúteis
Por duas feridas.
62

Tudo bem oculto


Sob as aparências
Da água-forte simples:
De face, de flanco,
O preto no branco.
Manuel Bandeira

No seu livro de 1945, A rosa do povo, Carlos


Drummond de Andrade (1902-) enfrentou um outro pre­
conceito ligado à expressão lírica: até que ponto ela pode
manifestar-se num texto considerado tipicamente político
e participante? Aquela tradicional introspecção lírica seria
possível num poema voltado para a comunicação de ques­
tões “objetivas”?
Nesse momento é preciso lembrar: num texto fa­
moso, o teórico T. Adorno (1903-1969) da Escola de
Frankfurt mostrou — inclusive pela leitura do poema de
Goethe que vimos atrás — de que modo a expressão lírica,
mesmo quando mergulhada na subjetividade, encontra, na
corrente subterrânea da linguagem, seu sentido mais amplo
e social. Mas a questão colocada nesse momento é oposta:
um poema que não tem a marca típica da subjetividade
lírica traz, para o interior da representação poética, o pólo
do lirismo e o da participação articulando, via lirismo, o
dado social e o individual.

Áporo

Um inseto cava
cava sem alarme
procurando a terra
sem a char escape.

Oue fazer, exausto,


em pais bloqueado
enlace de noite
raiz e minério?
63

Eis que o labirinto


(oh razão mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana
uma orquídea forma-se.
Carlos Drummond de Andrade

Também João Cabral de Melo Neto (1920-), poeta da


geração de 45, poucas vezes teve sua obra estudada pelo
ângulo da expressão lírica, interessando aos críticos sobre­
tudo a maneira como seus poemas refletem, ao mesmo
tempo, sobre a paisagem nordestina e a própria poesia.
É curioso observar, no entanto, no poema que vem a
seguir, de que modo a expressão lírica nasceu exatamente
de uma relação íntima entre erotismo e paisagem nordes­
tina, que se cruzam na linguagem do poema.
Em primeiro lugar, fica evidente que o sujeito lírico
é falado pela linguagem do poema, que escapa de qualquer
tentativa de controle, o que acentua seu clima lírico-erótico.
O contraponto desse clima é exatamente a paisagem nor­
destina, presente em todo o texto através do processo
fônico e rítmico e revelando a paisagem feminina.

Paisagem ao telefone

Sempre que no telefone


me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,
64

a alguma manhã de praia


no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina.
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que são velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem. somente as desveste


de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se


telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, minima,

e que por minima, pouco


de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua.


só de teu banho vestida,
65

que é quando tu estás mais clara


pois a água nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estroles mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.
João Cabral de Melo Neto

O título “Paisagem ao telefone” procura ocultar o


caráter amoroso do texto, pela ambigüidade do sentido de
“paisagem”. Mas desde o início, o jorro das relações lógi­
cas da sintaxe, somado ao encadeamento obsessivo de
imagens, ritmo e sonoridade, ao invés de encobrir a fixa­
ção do desejo acaba por desvendá-lo: a nudez da mulher
vai-se revelando por força dos sucessivos deslocamentos
que erotizam a paisagem (conferir as estrofes 2, 6 e 7) e
por força da assonância provocadora e insinuante das vo­
gais abertas. Uma luta vã da lógica contra o impulso do
desejo, feito linguagem.

Na “Balada do Esplanada” o lirismo de Oswald de


Andrade opta por um tom paródico em relação a uma
certa concepção de poesia lírica (“Eu qu’ria/ Poder/ En­
cher/ Este papel/ De versos lindos/ É tão distinto/ Ser
menestrel”): o poeta trabalha, o tempo todo, em cima
de um clichê, uma fórmula de lirismo. Esse clichê acaba
até mesmo integrando elementos do cotidiano moderno —
o jornal, o elevador — mas apenas como um recurso retó­
rico ou uma rima a mais. Novos tempos, velhas fórmulas.
A “oferta” do poema é reforçada pelo desenho que acom­
panha o texto: um retângulo comprido como um elevador,
escrito embaixo: “não funciona”. Que tipo de “amor”
(“poesia” ou “lirismo”) pode-se esperar daqui prá frente?
Novos tempos, velhas fórmulas?
66

Balada do Esplanada

Ontem à noite
Eu procurei
Ver se aprendia
Como é que se fazia
Uma balada
Antes d'ir
Pro meu hotel

É que este
Coração
Já se cansou
De viver só
E quer então
Morar contigo
No Esplanada

Eu qu'ria
Poder
Encher
Este papel
De versos lindos
É tão distinto
Ser menestrel

No futuro
As gerações
Oue passariam
Diriam
É o hotel
Do menestrel

Prá m'inspirar
Abro a janela
Como um jornal
Vou fazer
A balada
Do Esplanada
E ficar sendo

J
67

O menestrel
De meu hotel
Mas não há poesia
Num hotel
Mesmo sendo
'Splanada
Ou Grand-Hotel
Há poesia
Na dor
Na flor
No beija-flor
No elevador
Oferta
Ouem sabe
Se algum dia
Traria
O elevador
Até aqui
O teu amor
Oswald de Andrade

E como ficam os “gêneros literários”?

Já não é mais possível, como na antiga poética, pen­


sar apenas em termos gerais de modelos abstratos. A velha
retórica, baseada em classificações amplas, deixava de lado
o aspecto da originalidade de cada produção literária. E a
produção literária moderna, pela sua consciência crítica,
pelo alargamento de suas possibilidades criativas, como
resultado da história da poesia, da história do poeta, da
própria história, está demolindo, todo o tempo, os mode­
los homogêneos e classificáveis em esquemas gerais.
Essa demolição iniciou-se com a explosão romântica
c, naquele tempo, os próprios teóricos já puderam ir aban-
68

donando o esquema neoclássico, ao observarem atenta­


mente a prática poética de seu tempo. Substitui-se a auto­
ridade externa pela visão individual.
Diante da poesia moderna, a Teoria da Literatura
precisou de novos instrumentais de análise, já que até
mesmo a própria distinção entre prosa e poesia tornou-se
discutível. Nesse sentido, a noção de “gêneros literários”
adquiriu um dinamismo que antes não tinha, na medida
em que, para o analista moderno, interessa a realidade de
cada texto como um jato de linguagem, sem se esquecer
de que os gêneros existem também como função histórica.
O Formalismo russo dos anos 20, primeira sistemati­
zação de uma Teoria Literária moderna, que coloca a
Linguística como disciplina fundamental para uma nova
Poética, centrou suas preocupações nas propriedades da
linguagem poética.
A Lingüística, no entanto, não é capaz de esgotar
sozinha as relações entre texto, real empírico e história e
pode cair na tentação de reduzir o poema a uma “gramá­
tica”, a uma descrição hipotética de uma estrutura poética
geral. Essa tendência da chamada crítica estruturalista,
felizmente, não predominou por muito tempo.
O que ficou dessa herança foi principalmente a con­
cepção do texto como realidade de linguagem e suas arti­
culações com as séries histórica e literária, o que permite
entender os gêneros como modos de selecionar e organizar,
como linguagem, aspectos da realidade empírica ou da
imaginação. Nesse sentido, os três gêneros tradicionais já
são hoje insuficientes.
O receptor dos textos, elemento apenas entrevisto na
visão formalista e estruturalista, foi incluído em momentos
posteriores da reflexão crítica, alargando a concepção do
discurso poético como arranjo verbal especial.
É o receptor que articula (ou rearticula, melhor di­
zendo) a tensão entre aquele mínimo de redundância
69

necessário para a produção e recepção dos textos e a cria­


tividade com que o texto literário manipula os códigos
conhecidos. Entre tais códigos está a própria noção de
gênero, de acordo com o horizonte de expectativas da
cultura e época de sua produção e recepção.
A despeito dessa dose mínima de redundância, as
“convenções dos gêneros" tornam-se cada vez mais parti­
culares de uma dada obra ou texto, sob a bateria aberta
da prática poética moderna, que despreza qualquer norma.

Colocando em discussão

A Lírica não pode mais ser compreendida sob a ótica


normativa, mesmo que as normas digam respeito a traços
de estilo. Pode-se falar em lirismo, mas não numa Lírica
como gênero fechado.
Enfrentando todas as contingências, o lirismo se en­
contra onde se encontra uma expressão particular cuja
figura é criada pelas relações — de acorde ou dissonância
— entre som, sentido, ritmo e imagens. Essas relações
são comandadas pela visão subjetiva de um sujeito lírico.
Não é possível generalizar. É preciso examinar cada
caso, cada texto, cada circunstância — cada poeta.

Olhos, olhos de boi pendidos vertem


prantos por quem se foi. Ouvidos ouvem,
calam. Crepes enlutam as janelas.
Fundas ouças escutam seus gemidos.
Tudo é soluço, oi, oi, soluço, inerte.
Ninguém, ninguém, ninguém. Nem os ciprestes.
A morte é surda. Amém nos teus ouvidos.
O céu mata, o sol mata, a mão também.
Quem é que está jorrando sangue sem
espelho para ver-se em fronte rubra?

J,
70

Um duro som de sombra prolongada


enche a negra mortalha congelada,
que com ela não há quem não se cubra.
Jorge de Lima

Como um Chagall deprimido e depressivo, o soneto


de Jorge de Lima (1895-1953) não tem a explosão alegre
de quadros como “Eu e a aldeia” ou “Dedicado à minha
mulher”, que evocam de modo sensual as forças da natu­
reza. Mas haverá também lirismo nessa montagem de
recortes e encaixes sintáticos, sonoros e rítmicos que, num
crescendo, criam um espaço de desolação, solidão e morte?
Qual a força desse sujeito lírico do soneto, num mundo à
revêlia?
A linguagem, desde a metáfora “olhos de boi”, é
lamento. Uma pintura sonora da morte onde o ser humano,
sem identidade e metonimicamente despedaçado, dilui-se,
sem reflexos, entre correspondências e dissonâncias de
imagens e sons insistentes e assustadores: um clima de
pesadelo. “O céu mata, o sol mata, a mão também”.
O “som de sombra prolongada” é sinestesia que se
estende e cobre todo o poema — uma outra dimensão de
tempo e espaço, que pertence à poesia.
Vocabulário crítico

Assonância: repetição da mesma vogal dentro de um ou


mais versos.
Clichês: são verdadeiros módulos de linguagem, esquemas
que se repetem sempre.
Combinação: para que haja comunicação é preciso haver,
entre outros elementos (como o próprio receptor, por
exemplo), uma mensagem organizada, formando um
contexto. Mesmo que ele seja composto de apenas uma
palavra ou expressão, será sempre formado por unida­
des mais simples. Entre essas unidades houve uma com­
binação, para que o contexto pudesse ser formado.
Entonação: é a modulação da voz daquele que está reci­
tando ou mesmo falando; é a inflexão, o tom que sua
fala adquire.
Fanopéia: projeção do “objeto (fixo ou em movimento)
na imaginação visual”.
Função emotiva da linguagem: “A chamada função emoti­
va ou expressiva visa a uma expressão direta da atitude
de quem fala em relação àquilo que está falando. Tende
72

a suscitar a impressão de uma certa emoção, verdadeira


ou simulada”.
Função poética da linguagem: na função poética, a lingua­
gem privilegia seu próprio modo de construção; “o en­
foque da mensagem por ela própria, eis a função poética
da linguagem”.
Gêneros literários: a primeira referência ocidental à possi­
bilidade de organizar conjuntos de textos — espécies
— se dá com Platão. Daí para frente a teoria literária
veio tentando determinar o(s) modo(s) de constituição
dos textos, e os critérios vão receber nuances especiais
em função de cada tempo histórico, se bem que a visão
clássica tenha podido resistir até, pelo menos, a explosão
romântica no século XIX.
Logopéia: estimulação de “associações (intelectuais ou emo­
cionais) que permaneceram na consciência do receptor
em relação às palavras ou grupos de palavras efetiva­
mente empregados”.
Melopéia: produção de “correlações emocionais por inter­
médio do som e do ritmo da fala”.
Métrica: metrificação ou versificação é um modo de or­
ganizar o ritmo a partir de algumas regras de contagens
de sílabas e acentos fortes ou fracos.
Relações de montagem: quando dois elementos, verbais ou
visuais, estão ao lado um do outro compondo um sen­
tido que fica explícito pela própria presença contígua
desses elementos.
Ritmo: alternância de elementos no tempo e no espaço.
Esses elementos, no caso da poesia feita com palavras,
são as sílabas, as sonoridades que vão se sucedendo no
tempo-espaço da leitura e da página.
73

Seleção: todo e qualquer uso da linguagem implica em


que se escolha (se selecione) cada signo específico (uma
palavra, uma imagem) em detrimento de outros possí­
veis, que poderiam até mesmo substituir o signo esco­
lhido. Seleção e substituição representam, portanto, duas
faces da mesma operação.
Solipsismo subjetivista: trata-se, na verdade, de uma ex­
pressão redundante, pois solipsismo já diz respeito a
uma doutrina que coloca o “eu” como única realidade
existente.
Bibliografia comentada

Adorno, Theodor W. Notas de literatura. Barcelona, Ariel,


1962.
No capítulo “Discurso sobre lírica y sociedad” o teórico
mostra de que modo a linguagem lírica acaba por ter
uma participação na esfera do social, do geral, por meio
de sua especificidade estética. As obras de arte deixam
falar o que a ideologia oculta, e Adorno não perde de
vista o caráter de imediatez e desmaterialidade da lírica
moderna, numa visão histórica que diferencia os con­
ceitos histórico-literários antigos e modernos.
Benjamin, Walter. A modernidade e os modernos. Rio
de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975.
Um dos estudos fundamentais para que se possa com­
preender a nova situação do artista no mundo moderno.
A figura central aqui é a do poeta Charles Baudelaire.
Cidade, Hernâni. Luís de Camões, o lírico. Lisboa, Li­
vraria Bertrand, 1967.
O crítico português estuda a poesia lírica de Camões
abrangendo, minuciosamente, o mundo e as idéias qui­
nhentistas.
75 <

Eliot, T. S. A essência da poesia. Rio de Janeiro, Arte-


nova, 1972.
Podemos destacar sobretudo dois capítulos desse livro
de ensaios: “Musicalidade da poesia” e “As três vozes
da poesia”. Nesse último o crítico discute, exatamente,
a pertinência das classificações que tentam dar conta
do que seja um poema lírico.
Friedrich, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo,
Duas Cidades, 1978.
Um panorama completo dos principais poetas líricos
modernos, a partir dos quais o autor vai mapeando os
problemas enfrentados pela poesia desde Baudelaire.
Frye, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo, Cultrix,
1973.
Esse livro tem um capítulo dedicado à teoria dos gê­
neros, onde o autor procura elaborar critérios de abor­
dagem da lírica, da epopéia, do drama e da prosa.
Apesar de trabalhar ainda com uma visão de resquícios
normativos é leitura complementar interessante.
Hegel. Estética. Lisboa, Guimarães, 1964.
Obra fundamental porque, dedicando a terceira parte
aos gêneros poéticos clássicos (a poesia épica, a lírica e
a dramática), mostra uma visão do lirismo que, mesmo
recuperando a história, é de recorte nitidamente român­
tico.
Jaeger, Werner. Paideia. São Paulo, Martins Fontes, 1979.
Estudando a formação do homem grego, fala do de­
senvolvimento do Estado, da sociedade, da literatura,
da religião e filosofia daquela época.
Jakobson, Roman. O que é a poesia. In: Toledo, Dioní-
sio (org.). Círculo linguístico de Praga: estruturalismo
e semiologia. Porto Alegre, Globo, 1978.
76

—. Lingüística e poética. In: —. Linguística e comuni­


cação. São Paulo, Cultrix, 1969.
Trata-se de um autor-chave para a compreensão de en­
foque teórico moderno em relação às questões poéticas.
O primeiro livro citado, aliás, traz outros ensaios e
autores que também interessam, dos quais destacamos
Jan Mukarovsky com “A denominação poética e a
função estética da língua”.
Lima, Luiz Costa. A questão dos gêneros. In: —. (org.)
Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro, Fran­
cisco Alves, volume I, 1983.
Costa Lima faz um estudo histórico das diversas abor­
dagens da questão dos gêneros literários, chegando até
a estética da recepção. No volume II, organizado tam­
bém por Luiz Costa Lima, destacamos o texto de Walter
Benjamin, “Paris, capital do século XIX” e os textos
dos teóricos da estética da recepção.
Paz, Octavio. El arco y la lira. México. Fondo de Cultura
Económica, 195.6-
—. Os filhos do barro; do romantismo à vanguarda.
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
Dois livros importantíssimos que refletem sobre a lin­
guagem da poesia e sua história até a modernidade, pro­
curando compreender a natureza dessa linguagem e suas
implicações mais amplas. Um recorte pessoalíssimo da
questão poética e não apenas um amplo panorama.
Pound, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo, Cultrix, 1970.
—. A arte da poesia. São Paulo, Cultrix, 1976.
Sem nenhuma visão normativa e dogmática, a preocu­
pação de Pound é sobretudo com a poesia como lin­
guagem viva, não importa a que época pertença. Sua
erudição não serve para amontoar informações mas para
77

recortar momentos e poetas mais significativos, na manu­


tenção de uma qualidade poética ao longo dos tempos.
Em Pound, a questão da poesia lírica não aparece nunca
vinculada aos antigos conceitos dos três gêneros: é uma
reflexão sobre a própria linguagem da poesia.
No segundo livro aqui citado destaco os capítulos sobre
os trovadores e a poesia de Camões, para o leitor mais
interessado na questão da poesia lírica.
Rosenfeld, Anatol. O teatro épico. Rio de Janeiro, Bu­
riti, 1965.
Um livro que traz um capítulo claro e sucinto sobre a
clássica teoria dos gêneros e seus traços estilísticos fun­
damentais, segundo uma visão mais tradicional. Utiliza-
-se de algumas diferenciações propostas por Emil Staiger.
Spina, Segismundo. Spina, introdução à poética clássica.
São Paulo, FTD, 1967.
“Uma exposição dos mais importantes princípios do for­
malismo clássico.”
Staiger, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio
de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975.
Embora criticado por seu apego à visão tradicional dos
três gêneros, na qual apenas colocaria novas roupagens,
é livro básico, dividido em quatro partes: “estilo lírico:
a recordação”; “estilo épico: a apresentação”; “estilo
dramático: a tensão” e “da fundamentação dos gêneros
poéticos”.

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