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TRAGA-ME A CABEÇA DE LIMA BARRETO!

Luiz Marfuz
Peça em um ato.
Inspirada na obra de Lima Barreto,
em especial Cemitério dos Vivos e Diário Íntimo

Esta versão, atualizada em setembro de 2022, se destina a estudos


acadêmicos e não se constitui na versão final, que será revista para
publicação pela Edufba — Editora da Universidade Federal da Bahia, em
2023.

Direitos autorais registrados na Biblioteca Nacional


e na SBAT — Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, em 2017.
2

Esta peça é dedicada ao ator Hilton Cobra,


para quem ela foi escrita, em 2017,
em comemoração aos seus 40 anos de carreira artística.
3

NOTAS DO AUTOR

A peça Traga-me a cabeça de Lima Barreto! é inspirada na obra do


escritor carioca Lima Barreto (13/08/1881 – 01/09/1922), especialmente Diário
íntimo e Cemitério dos vivos, textos de forte tom autobiográfico. Trechos de
diários, crônicas, contos, romances do escritor entrecruzam-se com a livre
imaginação do dramaturgo e se dissolvem no tecido teatral.
Embora o embate post mortem entre os eugenistas e o escritor se dê em
um plano ficcional, é dado saber que em 1929, em São Paulo, foi realizado o I
Congresso Brasileiro de Eugenia.
A ação da peça se passa em 4 espaços, provavelmente em 1922, logo
após a morte do escritor:
Parlatório
Lugar de onde a personagem se dirige à plateia e apela à cumplicidade do
espectador no tempo presente teatral. O termo alude também ao espaço
reservado às conversas entre advogados de defesa e réus, por princípio, livre de
intervenções e censuras.
Audiência
Múltiplos lugares do congresso eugenista: antecâmara, tábua de dissecação,
mesa do congresso, sala de interrogatório, púlpito etc. Admite-se a possibilidade
de que tudo ali poderia ter ocorrido, devido a uma articulação forçada entre os
arcos histórico e ficcional.
Espaço íntimo
Lugar indeterminado onde se expressam as confidências íntimas e as
contradições admitidas pelo escritor, como se ele estivesse no quarto, na cama,
no hospício, a dizer coisas que não diria de viva voz.
In Delirium
Espaço mental, em que escritor dialoga com vozes interiores e personagens
ausentes, sob interferência das crises de delirium tremus, atribuídas ao álcool,
aos internamentos e a seu estado de penúria.
4

DRAMATIS PERSONAE

LIMA BARRETO

PRESIDENTE DO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA (Voz Off)

CONDE DE GOBINEAU (Voz off)

PRIMEIRO EUGENISTA (Voz off)

SEGUNDO EUGENISTA (Voz off)

TERCEIRO EUGENISTA (Voz off)

VOZES DOS CONGRESSISTAS (Voz off)

PORTA-VOZ DA HISTÓRIA (Voz off)


5

PRÓLOGO

VÍDEO
Os fracos, imperfeitos e incapazes são um peso para a sociedade e jamais se
tornarão fortes, perfeitos e capazes. A eugenia, ciência dos bem-nascidos,
pode corrigir a natureza e impedir o nascimento de novos fracos, imperfeitos e
incapazes.
[Francis Galton, criador da palavra Eugenia]

Já criamos belas galinhas, homéricos porcos, arquirrápidos cavalos de corrida.


Fizemos a eugenia bovina. Por que não a eugenia da raça humana?
[Luiz Pereira Barreto, médico eugenista e deputado, 1918] 1

A nossa preocupação tem de ser a de formação de uma raça superior; não


apenas aquela que goza de saúde física, mas a que possui atributos
intelectuais necessários à assimilação da cultura e à estabilidade moral da
sociedade e à segurança política do Estado.
[Oliveira Viana, médico eugenista, 1929]2

O símbolo da nossa nacionalidade é representado pelas palavras “Ordem e


Progresso”. Saneamento-Eugenia é Ordem e Progresso.
[Olégario de Moura, vice-presidente da
Sociedade Eugênica de São Paulo, 1919]3

Estende-se pelo mundo a noção de que há certas raças superiores e outras


inferiores, e que essa inferioridade é eterna e intrínseca à estrutura da raça. E
mais: que as misturas entre elas são um vício social e uma praga. Tudo isto em
nome da ciência e a coberto da autoridade de sábios alemães. Urge ver o
perigo dessas ideias, para nossa dignidade e nossa felicidade individual.
[Lima Barreto, 1905]4

1
BARRETO, Luis Pereira. Eugenia. Revista do Brasil. São Paulo, vol. 7, nº 28, abr. 1918, p. 415.
2
In: PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Actas e trabalhos, v. 1, 1929, p. 333.
3
In: Annaes de Eugenia. São Paulo: Editora da Revista do Brasil, 1919, p. 89.
4
BARRETO, Lima. Diário íntimo: memórias. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 110 -111.
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A ESCOLHA DAS CITAÇÕES FICA A CRITÉRIO DA ENCENAÇÃO,


INCLUINDO OUTRAS, SE NECESSÁRIO FOR. NA MONTAGEM INAUGURAL
DESTA PEÇA — DIRIGIDA POR FERNANDA JÚLIA ONISAJÉ, COM O ATOR
HILTON COBRA —, FORAM UTILIZADOS TRECHOS DO FILME HOMO
SAPIENS, DO CINEASTA ALEMÃO PETER COHEN NO EPÍLOGO. A
MONTAGEM ESTREOU EM 14 DE ABRIL DE 2017, NO TEATRO SESC-
COPACABANA, NO RIO DE JANEIRO.

LIMA BARRETO
(Voz Off)
Aninhado em minha cama fria, nem bem dormindo ou acordado, fiz a única
ablução do meu asseio, tomei o café, batata-doce e bananas da terra, e me
prestei a ler os jornais. Súbito, ouço tremores e clangores, língua estranha que
jamais percebera em vida. (Sons indistinguíveis de línguas estranhas e
embaralhadas convocam Lima Barreto). Quem incomoda? (A convocação
continua). Compreenderam? É isso aí mesmo que vocês ouviram. Sem tirar nem
pôr. (Os sons se intensificam e depois cessam) Ao som dessa doce convocação,
pus-me o terno estropiado pelo desvão da memória, sapato cambota, gravata
oblíqua, duas placas de suor e poeira nas costas: meu esbodegado vestuário. E
cá me vejo nessa antessala carrancuda, o corpo à disposição dos senhores
doutores pátrios dissecadores de cadáveres. Já não bastara a humilhação em
vida, era imperioso matar-me outra vez. E quantas mortes existam, muitas, nelas
eu viverei. Pois se em vida me submeti às mais sórdidas humilhações, em morte
não cederei. (Pausa)

LIMA BARRETO
(Entra no Parlatório)
E enquanto decidem se meu curriculum é vitae ou mortis, resolvi entabular um
fio de prosa, isto é, se me permitem, não tenho dúvida, cordiais que somos, aqui
homens e mulheres cordiais brasileiros, alhures outros, quiçá, racistas cordiais
brasileiros, sim, porque os há, pois nada mais me espanta em tempos sombrios
de tanta caquexia e barbárie tropical. (Silêncio) E já que licença me foi
concedida, assim concluo dado ao silêncio que oiço, aqui, ali, um pigarro, um
suspiro, um bocejo, ocorrências que não levo em conta, passo então a me
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mostrar. (Altivo) Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto, nascido a treze de


maio de 1881, no Rio de Janeiro, filho legítimo do mestiço João Henriques Lima
Barreto. Minha mãe, Amália Augusta Barreto, era descendente de escravizados.
A bisavó, ah, minha bisa, foi arrancada da terra mater pelo bico de uma ‘cegonha
matadora’: o navio negreiro. Eu nasci sem dinheiro, negro e livre. E, na época,
não me foi dado conviver com um escravizado. Mas, no futuro, tenho certo,
escreverei a história da escravidão no Brasil. A saga épica de um povo, o
“germinal” negro! (Pausa) O que mais desejava na vida? Ser aluno da Escola
Politécnica. E fui. Lá me habituara a assistir ao espetáculo de ascensão de meus
companheiros, brancos, ricos e bem-nascidos. (Pausa) O que mais desejo na
vida? Não ser mais aluno da Escola Politécnica. E não fui. (Pausa) Um grande
sonho a realizar... é isso? (Envergonhado) Ah, deixe-me cá, nem é tão grande
assim. (Altivo). Tenho a honra em proclamar que continuo candidato à vaga de
imortal da Academia Brasileira de Letras. Post mortem. E quem estiver em minha
cadeira, aviso logo: vou puxar a perna!

CENA I — PRIMEIRA TESE: A CONTAMINAÇÃO

INSTALA-SE O CONGRESSO. AS FALAS DOS MÉDICOS EUGENISTAS SÃO


APRESENTADAS EM VÍDEO, E EM VOZ OFF, E SE ENTRECRUZAM COM
IMAGENS DE CRÂNIOS HUMANOS. BARULHO, RISADAS, BATIDA DE
MARTELO.

PRESIDENTE DO CONGRESSO
Senhores doutores-patrícios da raça: na qualidade de fundador da primeira
sociedade eugênica da América Latina, declaro aberto o Congresso Brasileiro
de Eugenia5. No epicentro dos debates, sete teses fundamentais que corroboram
nosso projeto em defesa de uma sociedade justa, útil e limpa.
(Aplausos)

5
O médico paulista Renato Kehl foi o secretário geral do I Congresso Brasileiro de Eugenia.
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PRESIDENTE DO CONGRESSO
Saudamos o patrono deste congresso, o Dr. Francis Galton, criador da palavra
eugenia e da primeira tese fundamental!

ASSOVIOS E PALMAS ENTUSIASMADAS.


VÍDEO
Primeira tese fundamental
Sangue bom + Sangue bom = Sangue Melhor.
Sangue bom + Sangue ruim = Sangue Ruim.
Sangue ruim + Sangue ruim = Sangue Péssimo.
[Francis Galton, 1822 – 1911].

PALMAS. ASSOVIOS.

PRESIDENTE DO CONGRESSO
Hoje, dar-se-á o caso do dito escritor Lima Barreto. A questão é a seguinte: como
o cérebro de uma raça, dita inferior, poderia ter produzido incontáveis obras
literárias — romances, contos, crônicas e outras que tais — se a arte da boa
escrita é um privilégio das raças superiores?

VOZES DOS CONGRESSISTAS


A cabeça, impostor! A cabeça!

PRESIDENTE DO CONGRESSO
Silêncio! Com a palavra o… funcionário público Lima Barreto!

LIMA BARRETO
(Na Audiência)
Senhores médicos da nova raça, senhores eugenistas de plantão! Tão logo
soube que me queriam o corpo, vim de livre e espontânea vontade submeter-me
ao acurado exame de vosso positivismo eugênico. Nem precisariam me arrancar
do breu dos tempos. Fui testemunha e exemplo vivo de que a capacidade mental
dos negros é sempre discutida a priori e a dos brancos, a posteriori.
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REAÇÕES INDIGNADAS DOS CONGRESSISTAS.

Vejo aqui uma justa oportunidade de defender minhas ideias, obras e


personagens, pouco vistas, jamais reconhecidas. Assim, posso expectorar as
sílabas silenciadas em meu cérebro, estado de júbilo tal que saí às pressas e
nem tive tempo de me banhar nas águas do orixá que me guarda, lá, onde
descansava. Graças ao vício... (pega uma bebida, joga um gole de cachaça no
chão)... chego limpo, cheiroso e desinfetado. Essa é uma das vantagens do
álcool: preservar a natureza humana. (Pausa) Eis aqui minha cabeça. Entrego-
lhes meu cérebro para ser submetido à dissecação pública. Façam dele o que
melhor lhes convier.
PRESIDENTE DO CONGRESSO
Que se dê procedimento à autópsia da cabeça do dito escritor Afonso Henriques
Lima Barreto!

CENA II — SEGUNDA TESE: A ESTERILIZAÇÃO

VÍDEO
Segunda Tese Fundamental
“Se não é barbaridade impedir o alastramento de uma erva daninha nem fazer
a castração de um touro para melhoria dos genes, por que seria bárbaro
esterilizar um ser humano anormal? É pela eugenia que impediremos a
multiplicação de degenerados e desgraçados”.
[Dr. Renato Kehl, fundador da Sociedade Eugênica de São Paulo.
In: Annaes da Eugenia, 1919].

PRESIDENTE DO CONGRESSO
Os trabalhos serão iniciados com a brilhante tese de um jovem médico eugenista
sobre a atrofia hereditária.

PRIMEIRO EUGENISTA
Sem delongas, procedo à coleta de dados familiares para efeito de
demonstração da tese da hereditariedade racial. Estado civil?
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LIMA BARRETO
Celibatário.

PRIMEIRO EUGENISTA
Nunca casou?
LIMA BARRETO
Esqueci.

PRIMEIRO EUGENISTA
Filhos?

LIMA BARRETO
Aos montes.

PRIMEIRO EUGENISTA
Decline os nomes.

LIMA BARRETO
Policarpo Quaresma, Isaías Caminha, Gonzaga de Sá, Clara dos Anjos...

PRIMEIRO EUGENISTA
Isso não é gente. São personagens!

LIMA BARRETO
Filhos! Eu os criei e os eduquei para a eternidade. A arte e a literatura são
parceiras sublimes que não se rebaixam às contaminações da carne.

PRIMEIRO EUGENISTA
Então, nenhum contato íntimo com raparigas da vida ou rua, quiçá mulheres para
esposar, procriar...
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LIMA BARRETO
Sempre me foi penoso o convívio com as mulheres. Para mim... elas são... como
diria... uma forma assim transcendental de... não sei bem dizer... olha, quer
saber, doutor? Me falece competência para falar das mulheres!

RISOS. GALHOFA. VOZES.

LIMA BARRETO
(No Espaço Íntimo)
E esse sofrimento a que me imponho, e a mim me é impingido, encrespou-se-
me na alma como erva daninha. E passei a amar o meu sofrimento como um
homem ama a uma mulher. Custou-me tanto consegui-lo. Por que tirar de mim
aquilo que já é meu? É difícil dizer isso. Envergonha-me. Pesa em mim a desonra
de meu nascimento, o desejo de desaparecer no eterno. Desde menino, eu tenho
a mania de suicídio. Aos sete anos, logo depois da morte de minha mãe, fui
acusado injustamente de furto. Tive vontade de me matar. É dessa época que
senti a injustiça da vida, a dor que ela envolve, a incompreensão de minha
delicadeza, do meu natural doce e terno. Eu nunca tive sequer a simpatia com
que se olham as árvores… (Pausa. Entra no Espaço In Delirium). Ô, minha mãe,
tão linda, nem um afago pude sentir quando fostes embora tão cedo. Uma
saudade! Lembro a doçura amiga que não tive, o leite que não bebi, não dormir
a teu lado para esquecer. Beijos nunca os conheci. (De volta à Audiência)
Amanheci mal, tive um sonho erótico. Corri ao banheiro e depois fui à missa.
Rezar para Nossa Senhora da Glória. Benedicta tu in mulieribus.

PRIMEIRO EUGENISTA
Dito e feito está. No ventre atrofiado, gera-se o efeminado. Pois aquele que não
gera, logo se degenera. E que o feto não prosperado seja o do fraco e
degenerado.
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CENA III — TERCEIRA TESE: A SUPERIORIDADE

PRESIDENTE DO CONGRESSO
Tem a honra da palavra o nosso convidado internacional Dr. Arthur de Gobineau,
paladino da teoria da superioridade racial. La tête est à votre disposition.

VÍDEO
Terceira Tese Fundamental
“O homem perfeito e superior é louro, alto e teutônico. Por isso, a única saída
para os brasileiros é o cruzamento com os imigrantes europeus.”
[Conde de Gobineau, Ministro da França no Brasil,
Conselheiro pessoal de D. Pedro II].

PRESIDENTE DO CONGRESSO
Para que o interrogado possa entender claramente as palavras do Conde de
Gobineau, pedimos que seja feita a tradução do francês para o português...

LIMA BARRETO
Dispenso, excelência. Leio e falo fluentemente o francês.

VOZ OFF DO CONDE DE GOBINEAU COM INSULTOS EM FRANCÊS

LIMA BARRETO
E oiço melhor ainda. Bien sûr. (Pausa) Oui, monsieur.

CONDE DE GOBINEAU
Vous êtes catholique?

LIMA BARRETO
Non, Non. Não sou católico. Como poderia sê-lo se a igreja sempre foi uma
aliada do Estado?
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CONDE DE GOBINEAU
Non, non!

LIMA BARRETO
Oui, monsieur. No século XV, o papa Nicolau V abençoou a escravidão africana
em sua bula Romanus Pontifex.

CONDE DE GOBINEAU PROTESTA EM FRANCÊS.

LIMA BARRETO
Oui, c’ést la verité.

CONDE DE GOBINEAU
Alors, vous avez pensé anarchiste et révolutionnaire!?

LIMA BARRETO
Non, non, eu não sou um revolucionário. Sou afilhado de Nossa Senhora da
Glória. E um guerrilheiro das letras! Bien sûr.

VOZ IRADA DO CONDE DE GOBINEAU QUE BRADA CONTRA LIMA


BARRETO. SEGUE-SE UM BATE-BOCA IMPROVISADO EM FRANCÊS
ENTRE LIMA BARRETO E O CONDE DE GOBINEAU,

LIMA BARRETO
(Exaltado)
Je ne sais pas. C'est vrai, monsieur! Qu'est-ce? Je ne vous comprends pas.
Pouvez-vous répéter, s'il vous plaît? Est vous! Tais Toi! Nique ta mère! Est vous!

O BATE-BOCA É INTERROMPIDO PELO PRESIDENTE DA SESSÃO.

PRESIDENTE DO CONGRESSO
Eu, presidente deste congresso, faço saber...
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LIMA BARRETO
(No Parlatório)
Eu, Lima Barreto, faço saber. O horror não tem limites. O primeiro passo é a
melhoria, o segundo é a purificação, depois o extermínio. Milhares de milhões
serão dizimados em nome da purificação racial, gerações inteiras exterminadas
em guerras pesticidas, fratricidas, genocidas. Corpos serão incinerados vivos, e
mortos boiarão na baía dos Bálcãs, filhos de nenhuma pátria. O mapa dos
horrores humanos será repintado a ferro e sangue. E não haverá mais distinção
entre céu e inferno, porque quando Deus atravessa a porta do inferno, ele já está
entre os homens.

LIMA BARRETO
(Na Audiência)
Avez-vous bien compris, monsieur Gobineau?

CENA IV — QUARTA TESE: A MESTIÇAGEM

VÍDEO
Quarta Tese Fundamental
“É a mestiçagem do negro que destrói a nossa capacidade construtiva. País de
mestiços [o Brasil], onde branco não tem força para organizar uma Ku-Klux-
Khan, é país perdido para altos destinos”.
[Monteiro Lobato, carta ao escritor Arthur Neiva, 10 de abril de 1928]

SEGUNDO EUGENISTA
Procedo ao exame da capacidade de produção artística do cérebro. É fato que
sua obra é um vazadouro de galicismo, africanismo, indianismo e deploráveis
ismos. E, para agravar, não segue as regras estéticas da boa literatura!

LIMA BARRETO
Sou um escritor desassujeitado, de namoros com a palavra suja, a literatura
imperfeita, a linguagem enfermiça. Não me arrebatam os chamados da beleza.
Caio de amores é pelo desequilíbrio das linhas e formas. A literatura tem de ser
militante, não contemplativa; nem cheia de arremates e arrebiques. As regras
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estéticas que conheci nunca as professei. Enumero-as: pistolões, relações


promíscuas dos escritores com o poder, hipocrisias, títulos acadêmicos,
bajulações, o berço do nascimento...

SEGUNDO EUGENISTA
O que decerto justifica uma obra cheia de erros, um atentado à língua de
Camões!

LIMA BARRETO
Se meus livros saem errados, isto se deve ao meu relaxamento, à minha
péssima letra e aos meus péssimos revisores, inclusive eu mesmo. Por isso é
que dizem que minha literatura é um vazadouro de imundícies, barbarismo,
plebeísmo, neologismo, vulgarismo, cacófatos, hiatos, colisão, o inferno! É o
Brasil, excrescências! É o Brasil.

SEGUNDO EUGENISTA
E ainda assim cobras o elogio da crítica. Como não o tens...

LIMA BARRETO
“Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo!” (Pausa) Erasmo de Roterdã,
humanista, como eu! E hei de dizer-lhe mais: eu sou escritor, e grande ou
pequeno, tenho o direito de pleitear as recompensas que o Brasil dá aos que se
distinguem na sua literatura.

INTERMEZZO I – A CANÇÃO DO QUARESMA6

LIMA BARRETO
(No Parlatório)

6
As letras foram musicadas pelo compositor Jarbas Bittencourt, especialmente para a montagem com o
ator Hilton Cobra, direção de Fernanda Júlia Onisajé, em 2017.
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Entrei na faculdade
Não me queriam lá
Publiquei livros
Que ninguém lerá
Se branco fosse
Iam me glorificar
Dei por rica e acabada
Obra-prima de literatura
E depois de publicada
O silêncio ė que perdura.
Fosse um outro escritor
Branco, bem ou malnascido,
Seria mais de todo lido.
Loas à toa na proa dos pasquins:
O Estado, o Globo, todos daqui,
Dariam prêmio cágado ou jabuti

Cago para fama dos imortais


Mas ficaria de peito estufado
Se meu nome fosse glorificado
Até no obituário dos jornais.

Quaresma, meu coração,


Lima de tua alma o rancor
A ira, a raiva, o ódio da cor.
Dou-te a bênção, irmão!

SEGUNDO EUGENISTA
Passemos agora à investigação hermenêutica da literatura comparada.
Considerando a estirpe moral e intelectual do senhor Machado de Assis,
fundador da Academia Brasileira de Letras, o Congresso quer saber: por que
dois crânios de uma mesma raça produzem uma literatura tão diferente, sendo
um melhor do que o outro?
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LIMA BARRETO
E quem é o melhor?

VOZES DOS EUGENISTAS


(Off)
Machado.
LIMA BARRETO
Nã, nã, nã, ni nã não. Eu sou o melhor. Eu e ele ó... (Toca a pele com os dedos
das mãos) ...na época diziam de nós: mulatos, mas eu e ele somos negros,
nigérrimos. Mas ele fugiu da cor. Sobre os pretos brasileiros.... eu não li. Eu criei
uma protagonista mulher, pobre e negra, Clara dos Anjos; deflorada por um
rapaz rico, dito eugenicamente bem-nascido, e sequer julgado em vossos
tribunais. (Pausa) Mas Machado... eu não li. Tem protagonista preto nos
romances dele, lá? Eu não vi.

SEGUNDO EUGENISTA
Mas o senhor o imitou!

LIMA BARRETO
Jamais o imitei e ele jamais me inspirou. Que me falem de Balzac, Tolstói,
Dostoiévski — vá lá; todos me deram a sagrada sabedoria de me conhecer a
mim mesmo, de assistir ao raro espetáculo de meus pensamentos e emoções.
Mas Machado, ni penser! Aquela falta de simpatia, uma secura na alma... olha
só, conversa de morto: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu
cadáver dedico com saudosa lembrança estas Memórias Póstumas.” (Silêncio)
Brás Cubas. Esse é bonito, sim. Eu li. Mas mesmo assim...

SEGUNDO EUGENISTA
Já concluí meu laudo, excelência. O ressentimento é o melhor álibi para a falta
de talento.
LIMA BARRETO
(No Espaço Íntimo)
Os brancos não me reconhecem a superioridade intelectual. Os pretos também
não. Se nem os de minha cor e raça me distinguem, quem os há de? A bem
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dizer, tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente os de cor,
mas não posso transformar essa simpatia artística em convivência cotidiana,
pois eles não têm por mim nenhum respeito e nenhum amor. Até minha irmã,
negra que quer fugir do estigma da cor, fica se atirando por aí pra qualquer um,
cheia de farofas de beleza. Irmã, irmã, ponha-te em recato! Senão, a trama do
céu se alarga. (Grave) É triste não ser branco. (Toma um gole de cachaça)
Tomara que ninguém leia isso que acabei de escrever.

LIMA BARRETO
(No Parlatório)
Tal qual micróbio a estertorar-se na lâmina do microscópio, assim eu era,
ressentido, rancoroso, com vergonha da cor que me foi dada ao nascer,
remoendo na quina dos quartos feito viúva lamuriosa. E sem saber onde escoar
o ódio, voltei-o contra mim. Ressentimento gera sofrimento. Sabem vocês o que
é isso.

LIMA BARRETO
(De volta à Audiência)
Sabem, sim. Aqui, na pele. Isso mesmo, quando a injustiça de que se sofre, no
lugar de se voltar contra o mundo, volta-se contra si. E dilapida o patrimônio
imaterial da alma. Calando-me, nada recebi em troca, a não ser mais
acanhamento, e humilhação, e falsos reconhecimentos. Quanto mais meu corpo
vergava, mais minha alma se agigantava. Algo em mim fervia, suplicando
acontecimentos.

CENA V — QUINTA TESE: A INFERIORIDADE

VÍDEO
Quinta Tese Fundamental
“A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis
serviços à nossa civilização, por mais revoltante o abuso da escravidão, ela, a
raça negra, será sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo.”
19

[Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, 1932]7

TERCEIRO EUGENISTA
O Congresso quer saber: a literatura degenerada produzida pelo Senhor Lima
Barreto terá sido fruto de sua mente encharcada de álcool?

LIMA BARRETO
Provavelmente! Enquanto a de Machado de Assis era entupida de chá de
camomila.

TERCEIRO EUGENISTA
Pedimos para retirar o comentário ofensivo ao nobilíssimo escritor.
LIMA BARRETO
Faça ideia! Ora, só!

TERCEIRO EUGENISTA
O senhor tem descontroles! Seu pai também!?

LIMA BARRETO
Eu não tenho descontroles. Tenho implicâncias.

TERCEIRO EUGENISTA
O Congresso quer saber: seu pai era alcoólatra! O senhor também?

LIMA BARRETO
Provavelmente. No álcool sumo de mim mesmo, desapareço. Ninguém me
procura. Eu me basto.

TERCEIRO EUGENISTA
Seu pai era louco. O senhor também?

LIMA BARRETO

7
In: RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 4ª ed. São Paulo: Editora Nacional; Brasília: INL, 1976, p. 7.
20

Meu pai alucinado, o irmão larápio, a irmã desavisada, eu em rotação: minha


casa era a maquete de um hospício. De mim para mim, tenho certeza de que
não sou louco. Mas devido ao álcool, à tristeza e às dificuldades da vida material,
de quando em quando, dou sinais de loucura: deliro.

LIMA BARRETO
(No Espaço Íntimo)
É triste um pai, mesmo louco, enterrar seu filho. Meu pai morreu três dias depois
de mim. Na sua doce insanidade, ele acreditava que não poderia viver sem
minha companhia. E veio me encontrar. (In Delirium) Ele chegou muito fraco. E
eu disse: Pai, me perdoe, por ter ido embora sem cuidar de você. E ele me disse:
A polícia está atrás de mim, filho! Tem polícia no céu, não, pai. Tem, sim.
Cuidado, filho. Eles vão prender você, enterrar seus livros, branquear sua pele!
Deixa não, filho! (Retorna ao Espaço Íntimo) O delírio de meu pai tinha a ironia
dos loucos de Shakespeare. Mas como eu o amava! (De volta à Audiência) Pois
sim. Tivesse eu me habituado a tomar chá na Academia de Letras, eu teria
sobrevivido. Por que não exumam o outro, lá?

PRESIDENTE DO CONGRESSO
O Congresso faz saber: que é desnecessário exumar os despojos mortais do
acadêmico Machado de Assis. Sua mente foi perfeitamente absorvida pelo
ambiente sadio em que vivia; o que, de per si, justifica sua literatura de qualidade,
sem isso ou aquilo.

LIMA BARRETO
Isso e a quilo. Botem no prato da balança o meu coração e o dele. Quem mais
carrega o peso das dívidas com nossos irmãos? Admito, o meu chega ali no
limite. Mas o dele, afunda o prato e derruba a balança.

TERCEIRO EUGENISTA
Exame das condições e pretensões sociais. O senhor sempre foi um funcionário
público. Mas se não o fosse, gostaria de ter sido o quê?
21

LIMA BARRETO
Doutor! Resgataria o pecado original de meu nascimento humilde, amaciaria o
suplício premente e excruciante de minha cor. Teria direito a prisão especial.
Formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, como um sapo-bufo, pulando
pelas ruas e todos a dizer: como está, doutor? Pois não, doutor! Um cirurgião
cardíaco de ponta. Mas quem dentre vós entregaria o coração perfurado nas
mãos de um médico pobre e preto? O senhor entregaria, doutor Nina?

VOZES, CONFUSÃO, RISOS.

LIMA BARRETO
(no Parlatório)
Certo dia, recebi um cartão postal. Nele, um macaco em alusão a minha pessoa.
Dia seguinte, na barca Rio-Niterói, fui o único passageiro a ser revistado, decerto
pela aparência e pela cor. Na volta, no saguão do trem, dei-me com um colega
da Escola Politécnica: o BCL, um sujeito que não tem quatro ideias sobre o
mundo na cabeça. Ao lado, sua esposa. Ele então me desafiou: Vê, seu negro,
você pode me vencer nos concursos, mas não nas mulheres. Poderá até arranjar
uma moça, branca como a minha, mas não desse talhe aristocrático. Mirei o BCL
de cima a baixo e disse: meu preclaro BCL, não use o talhe aristocrático / pra
desonrar as mulheres, não / que o talhe está nas letras do teu nome: BCL: Burro,
Corno e Ladrão.

LIMA BARRETO
(De volta à Audiência)
Entregaria, Dr. Nina?

PRESIDENTE DO CONGRESSO
(intervindo)
O senhor está tumultuando os trabalhos do Congresso. Isto não está no
contexto.

LIMA BARRETO
E qual é o contexto?
22

PRESIDENTE DO CONGRESSO
Ora, o contexto. O contexto é o contexto!

LIMA BARRETO
Mas esse tal contexto só existe na cabeça de vossas indolências, meritíssimos.
O único contexto que conheço é o seguinte: sou preto, pobre e escritor e estou
sendo julgado não pelo mérito de minhas obras, mas pelo fato de assim eu ter
nascido.

LIMA BARRETO
(no Parlatório)
Sempre andei tão cortado de solidão e penúria, que meus únicos amigos eram
as míseras notas que sobravam no bolso. Ah, como eu amava aquelas notas
imundas. Cada vez que eu as trocava, no bonde, no bar da esquina por um
cafezinho, era como se eu perdesse um amigo, me separasse da pessoa amada.
Oh, lá vai mais uma! Um dia, tomado de compaixão, dei um dinheiro enorme de
esmola, uma nota que me sangrou a algibeira linfática. Chorei. O dinheiro para
mim tinha sentimento. Perdê-lo, dilacerava-me a alma. Secava-me o osso.

TERCEIRO EUGENISTA
Dou por encerrado meu exame da massa encefálica na cabeça do senhor Lima
Barreto e aponto fortes traços de degenerescência social e inferioridade
intelectual. Se não pelo tamanho do cérebro, é pela mancha genética na alma.

CENA VI — SEXTA TESE: O BRANQUEAMENTO

VÍDEO
Sexta Tese Fundamental
“Hoje, só nos convém a imigração branca. Não porque o Brasil seja racista.
Apenas desejamos ser brancos. E se quisermos fazer prosseguir o
branqueamento do Brasil, devemos abrir nossos portos à imigração branca”.
[Arthur Neiva. O problema imigratório brasileiro.
In: Revista de Imigração e Colonização, 1944, p. 232]
23

LIMA BARRETO
(no Espaço Íntimo)
De que me serve a educação que recebi, as belas letras, Tolstói, Stendhal,
Dostoiévski, todos fabricadores de desejos que me derrapam em ódio e despeito.
Por que me educaram assim? Para eu ficar só, sem amor? Ah, se eu pudesse,
se eu pudesse, varreria uma por uma as teorias, sentenças, noções, analogias
que se estorcem em meu cérebro. Pai saudoso, por que não tira de mim o
veneno do conhecimento? Que me importam os gregos e os germanos se tudo
que sou vem de meus avós e bisavós, desprendidos ou arrancados de sua terra
mater?

LIMA BARRETO
(In Delirium)
Ô, minha bisa, bisa querida, mãe da mãe de quem não tive o afago. Lembro
vagamente o vulto de minha bisa, cabecinha pequena, empastada de cabelos
brancos, tecidos como uma rama de algodão, os olhinhos castanhos quase sem
brilho. Nunca chegarei aos seus mais de cem anos. Sou fruto da longa elegia
das dores das vidas que precederam o orgulho de meu nascimento.

SEGUNDO INTERMEZZO — A CANÇÃO DO REVOLTADO

LIMA BARRETO CANTA NO PARLATÓRIO, ENQUANTO VÍDEO PROJETA


TRECHOS DE CRÔNICAS E DOS DIÁRIOS DE LIMA BARRETO.

LIMA BARRETO
(Falado)
O que é verdade na raça branca, não é extensivo ao resto. Eu, mulato ou negro,
como queira, escritor de estirpe moral e intelectual, fui condenado em vida. Mas
não me agasto com o desgosto, pois ele far-me-á grande.
(cantado)
Ele agora se solta, se incomoda, se revolta,
Não tem por que domar a dor.
Êhhhh, ahhhhh!
24

Lima vai?
Vou.

Ao lado dos pisados, ignorados


Homens marcados na cor
Êhhhh, ahhhhh!
Lima vai?
Vou.
(falado)
Faltava-me algo essencial: o ódio. Pois se é verdade que o amor faz grandes
obras, o ódio também poderá fazê-las. Até ali tinha eu sido a doçura em pessoa,
a bondade e a timidez, e vi bem que não podia, não devia e não queria mais ser
assim pelo resto de minha vida.
(cantado)
Por que na rua não empunha bandeira?
Escrever é minha faca, o livro é a trincheira.
Êhhhh, ahhhhh!
Então, vai?
Vou.
(falado)
E quase ao fim da vida, acordei. Nada estava no lugar. Tudo virado de ponta
cabeça. Não bastara a voz de meus personagens, era imperioso ouvirem minha
voz, que vissem estarrecidos minha assinatura nas crônicas dos jornais. Era
como se o mundo me estivesse esperando para continuar a evoluir. Nós nos
fazemos fortes, porque temos outro forte que nos insulta, que nos desafia.
(falado)
E se perder o emprego no Estado?
-Que mais já não me foi tirado?
Êhhhh, ahhhhh!
Lima vai?
Vou.
25

LIMA BARRETO
(Na Audiência)
Insolentíssimo dr. Nina, não bastasse estraçalhar a cabeça genial do preto
acadêmico doutor Pedro Archanjo, eu sei, o Jorge Amado me contou, lá, na
Tenda dos Milagres... pois saiba que soube, de vera voz jurada, que o senhor
queria autopsiar meu corpo lá na Faculdade de Medicina, no Largo do Terreiro
da Bahia. Olha que eu vou, hein! Provoca, não. Lá é terra de preto. E se eu for,
não irei sozinho. Vou com todos os meus encantados. Comigo, não. Atenção,
Dr. Nina, já medi seu crânio com fita métrica e deu anomalia intelectual. E o
meu, quer saber? Deu cravado: mente fenomenal. Estamos entendidos? E não
adianta frequentar terreiro de santo na Bahia, pois sua batata tá assando, viu!

VÍDEO
“Burros ou inteligentes, geniais ou medíocres, só nos convenceremos de que
somos uma ou outra coisa, indo ao fim de nós mesmos, dizendo o que temos a
dizer, com a mais ampla liberdade de fazê-lo.”
(Lima Barreto, 1907)

“O povo diz que macaco não olha para o seu rabo;


os parlamentares só olham para o dos outros.”
(Lima Barreto, 1915)

“Quando um ministro de Estado quer esfomear um país, não há mais para


onde apelar senão para a violência, para a brutalidade da força!”
(Lima Barreto, 1917)

“A propriedade é social e o indivíduo só pode e deve conservar, para ele, aquilo


que precisar para manter a sua vida e de sua família.”
(Lima Barreto, 1918)

A República do Brasil é o regime da corrupção. Todos querem comer.


Por isso, o Brasil é uma vasta comilança”
(Lima Barreto, 1918)
26

“Aposentado como estou, sou livre e feliz para falar claramente sobre o que
julgar contrário aos interesses do país.”
(Lima Barreto,1919)

“Os oficiais do Exército no Brasil dividem com Deus a onisciência


e com o Papa a infalibilidade.”
(Lima Barreto, 1922)

LIMA BARRETO
(na Audiência)
E digo mais: vós, senhores grosseiros de espírito, acantonados nesse falso
departamento das cogitações espirituais da humanidade, se fizeram autoridades
em coisas de raça, mas, no fundo, só conhecem as partes mortas do cérebro.
Vós, que formais essa carcaça intelectual de bananeiras pensativas, quereis
transformar suas falsas pesquisas e generalizações abstratas em artigos de fé,
uma Bíblia decadente, a determinar massacres, preconceitos e genocídios.

LIMA BARRETO
(no Parlatório)
Já não vivo a pátria dos vivos, quero a minha pátria estética. Povo degenerado,
raça degenerada, arte degenerada — assim Hitler nomeará um dia os
expressionistas, impressionistas, surrealistas, artistas livres em espírito, mas
queimados na terra, em nome de um ideal de beleza ariana. Esses, e mais os
pisoteados, loucos, os privados da liberdade e da sanidade, esses serão os
povoadores de minha pátria estética. Uma terra de homens e ancestrais. Lutei
por isso na trincheira das letras até que o álcool, a loucura, a indigência cotidiana
e a morte me tirassem de combate. (Pausa) Não, não foi a morte que eu desejei.
Agonizava na cama e pedi a minha irmã que me fizesse um chá. Quando voltou,
ela não mais me viu em vida. O coração parou, assim, como que por desencanto,
sem que eu pudesse me despedir dos poucos, pouquíssimos, que me amaram.
Gosto da morte pelo poder de aniquilamento que ela encerra. Gosto da morte
porque ela nos sagra.
27

CENA VII - SÉTIMA TESE: A ELIMINAÇÃO

VÍDEO
Sétima Tese Fundamental
“Ninguém poderá negar que no correr dos anos desaparecerão os negros e os
índios de nossas plagas, assim como os produtos resultantes dessa
mestiçagem. A nacionalidade embranquecerá à custa de muito sabão de coco
ariano”.
[Renato Kehl, in Lições de Eugenia, 1935]8

PRESIDENTE DO CONGRESSO
Com esta sétima tese fundamental, concluímos o laudo da cabeça do dito
escritor Lima Barreto: Mens sana capite spoliatus.

VÍDEO
(Jogo entre palavras e imagens)
Mente sadia em cabeça estragada.

PRESIDENTE DO CONGRESSO
Reconhecemos que muitas vezes a alma se amotina em lugares impuros na
esperança de que o ambiente seja purificado. Não sendo possível, como se deu
no caso em questão, a mente apodrece e instala a loucura no cérebro, não raro
acompanhada de revolta sem causa e alcoolemia em alto grau. Nihilominus, o
cérebro do dito escritor Lima Barreto tornou-se incrivelmente capaz de produzir
obras razoáveis como os romances Clara dos Anjos e Triste Fim de Policarpo
Quaresma. A que se deve esse fenômeno? Ora, pela conjunção das sete teses
fundamentais, isso é cientificamente atribuído ao percentual de sangue branco
de seus avôs portugueses, herdeiros de Camões e Padre Vieira. Já o restante,
quase toda a sua escrita inaproveitável, deriva claramente do sangue de seus
ascendentes africanos. Agrava esse quadro a presença de traços mestiços da

8
In: MACIEL, M. E. de S. A eugenia no Brasil. Anos 90, [S. l.], v. 7, n. 11, p. 1999. p. 132. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/view/6545.
28

mãe e do pai, que contaminam qualquer possibilidade de embranquecimento,


purificação ou salvação. Scientia est verum. Verum est lex.
PALMAS. IMAGENS DE EXPERIMENTOS EUGENISTAS.

PRESIDENTE DO CONGRESSO
Determino que a cabeça do dito escritor seja devolvida à terra e ali soterrada
com o conjunto de sua obra. A ciência agradece a contribuição prestada pelo
funcionário público Lima Barreto a quem se concede as últimas palavras, como
prova inconteste de nosso exercício de democracia racial.

LIMA BARRETO
(Os espaços se misturam e não se distinguem mais um do outro)
Senhores, deixo-lhes, sem saudades, minha cabeça, estropiada por desmazelos
e impropérios, mas, ainda assim, íntegra. Minha cabeça. Parto para o outro lado
do Atlântico. Oxalá, além daquela curva numinosa, possa rever os meus
ancestrais, ali aninhados no doce e sofregante esconderijo das almas. Já não
posso mais cumprir minha promessa: escrever a história do povo negro no
Brasil. Mas outros com certeza o farão. Na literatura, na dança, no teatro, nas
artes. Este é o meu legado. (Pausa) Obrigado a todos que compartilharam essa
noite de horrores. Sem essa doçura amiga, como poderia suportá-la? Deixo-lhes
a tarefa de vasculhar minha biografia e as falas de meus personagens e livros,
ditas aqui de viva voz. Mas não ficarei aborrecido se qualquer um de vocês não
souber dizer o que é vida, fruto de minha obra ou da imaginação. Eu também
não saberia. Eu e minhas criaturas somos um corpo só. (Pausa) O que
aconteceu depois daquela noite? A história e as histórias dirão. Até um dia.

PORTA-VOZ DA HISTÓRIA
(Voz off)
Naquela noite, quando Lima partiu, um estranho fenômeno aconteceu. Cabeça
de escritor explode em congresso e deixa escapar tesouro espantoso: uma
infinidade de crônicas, romances, contos, sátiras e uma multidão de
personagens. Uma comunidade de espectros. Policarpos, Claras, Isaías,
Gonzagas, outros que sabiam javanês e etecétera e etecétera. Alguns dizem
que esse fenômeno se deve à teoria dos espectros revoltados, partículas de
29

consciência que se atraem em tempos e espaços não quantificados e se


aglutinam em momentos cruciais da humanidade para atrapalhar o curso natural
da história. Enquanto isso, perturbadoras revoluções devem ocorrer, fazendo o
inamovível se movimentar, em um ciclo interminável. Cuidado, você pode fazer
parte dele sem o saber. Não tenho provas de que tudo isso realmente aconteceu,
mas posso afirmar com absoluta convicção de que eu estive lá. Coisas de Lima.
Essa cabeça encantada.

EPÍLOGO

ATOR/LIMA BARRETO
Em 1923, um político brasileiro, cujo nome não convém lembrar, afirmou que, na
fusão de duas raças, venceria sempre a superior. E que, por isso, no Brasil, o
negro desapareceria dentro de setenta anos9. Bem, já lá se vão quase cem. E
nós continuamos aqui. De plantão. Calados ou indignados, ressentidos ou
revoltados, derrotados ou bem-sucedidos e, mais do que bem-nascidos, somos
sempre muito bem-lembrados.

VÍDEO TRAZ PROGRESSIVAMENTE IMAGEM DE LIMA BARRETO. ATOR


CANTA A CANÇÃO DO PRETIÇO BARRETO E VAI SAINDO. O RETRATO DE
LIMA BARRETO OCUPA TODA A TELA.

CANÇÃO DO PRETIÇO BARRETO

Ele se dizia mulato


Afro preto pardo pretiço
E de vó preta parido
Afro-Barreto escritor

Escritor!
Negritor!

9
(Carvalho Neto, 1924) In: REIS, Fidélis; FARIA, João de. O problema imigratório e seus aspectos étnicos
na Câmara e fora da Câmara. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1924. Disponível em:
https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/16494/1/InassimilaveisPrejudicialmenteAssimilaveis.p
df
30

E dizia sou literato


Na letra do mar tingido
Preto renascido na cor
Pretiço Barreto escritor

Escritor!
Negritor!

Salvador, 03 de abril de 2017.


Luiz Marfuz10
Texto iniciado em 03 de novembro de 2016 , em Salvador, Bahia; continuado em
Nova Déli, Índia; e concluído em 03 de abril de 2017, em Mucugê, Bahia. Versão
revista pelo autor em 02 de outubro de 2022 [Não publicada].

10
Luiz Marfuz é diretor teatral, dramaturgo, jornalista e professor da Escola de Teatro e do PPGAC-UFBA.
Baiano, nascido em Coaraci, é autor das peças Traga-me a cabeça de Lima Barreto!, A capivara selvagem,
A última sessão de teatro, Cuida Bem de Mim (coautoria Filinto Coelho), Meu nome é mentira, A filha da
Monga - todas encenadas - e Senhora dos Infiéis (publicada pela Edufba, inédita nos palcos). É autor dos
livros: Beckett e a implosão da cena (Ed. Perspectiva), Dramaturgia do acontecimento no telejornal e
Senhora dos Infiéis (Edufba), Harildo Déda, a matéria dos sonhos (coautor Raimundo Leão).

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