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ROBERTO

PIVA

VIDA POÉTICA

RICARDO
MATTOS
Roberto Piva: Vida Poética
Ricardo Mendes Mattos
ISBN: 978-85-913155-3-6
Criação: Flagrante Delito
São Paulo
2015
Índice

1. Poesia e pederastia: o Mário de Andrade de Roberto Piva................................. 01

2. 50 anos de rebelião poética em Roberto Piva ou poética anárquica, dionisíaca,


blasfematória e criminosa.................................................................................. 13

3. Roberto Piva: poesia e crime ou blasfêmias eróticas heroicas & assassinas........ 21

4. A poética de Roberto Piva nos Manifestos de 1962............................................ 33

5. R Artes: o poeta do rock, o profeta do rock................ 53

6. Abra os olhos e diga Ah!: a política do corpo em chamas................................... 71

7. - 83

8. 20 poemas com brócoli: o abandono da civilização............................................. 97

9. A Quizumba de Roberto Piva.............................................................................. 109

10. Roberto Piva na década de 1980..... 123

11. Poesia e êxtase em Roberto Piva: eterno retorno da experiência mítica


originária............................................................................................................ 139

12. O selvagem em Roberto Piva: caso Paulinho Paiakan......................................... 155

13. Recepção da poesia de Roberto Piva de 1960 a 1990.......................................... 161

14. Poesia da experiência vivida & a experiência vivida da poesia............................ 175


Apresentação

Este livro reúne ensaios publicados e inéditos em torno da verve seminal da aventura poética
de Roberto Piva: a fusão entre arte e vida. Em conjunto com minha tese de doutorado (Roberto
Piva: derivas políticas, devires eróticos & delírios místicos1) este livro reúne as reverberações de
minha intensa vivência da poesia de Piva. A experiência do êxtase me levou a outras expressões
da poesia mágica: nas rodas de jongo, nos desafios do calango e no ermo da mata, incorporo o
mundo indômito que Piva me fez penetrar.

1
Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
i

O leitor de Piva

Claudio Willer

No prefácio das obras completas de Gérard de Nerval pela coleção Pléiade, seu
organizador, Claude Pichois, fez observações sobre a demora na percepção da dimensão do
autor de Aurélia. Faltaram críticos, observou, como aqueles que teve Baudelaire. De fato, não
há como separar a leitura da poesia, prosa poética e crítica de Baudelaire do modo como foi lido
por Walter Benjamin, Edmund Wilson, Octavio Paz, Georges Bataille, Erich Auerbach e outros
colossos da crítica moderna.

Após décadas recebendo uma atenção restrita a leitores que compunham uma espécie
de círculo iniciático, felizmente agora Roberto Piva é um poeta não apenas lido, porém
lo de um de seus manifestos
de 1985. De fato, a partir de 2000, com as reedições de Paranóia, a publicação de Obras
reunidas, de entrevistas e depoimentos, além dos documentários, mais a correlata difusão no
meio digital, foi ganhando novos ensaios, dissertações e teses. Essa produção relativiza uma de
suas idiossincrasias: verberava universidades
e,
mesmo dispondo-se a dar entrevistas para jornalistas, evitava os pesquisadores. Sua reação à
notícia das teses e dissertações examinando sua obra era de desconfiança.

Mantidas todas as críticas ao academicismo, aos formalismos, reducionismos e


sectarismos em instituições de ensino, é forçoso reconhecer, contudo, que nossas boas
universidades são plurais. Comportam de tudo, do melhor ao pior. Podem abrir-se para o
inesperado, o original, o atípico. Por exemplo, na bibliografia piviana, uma tese como Roberto
Piva: derivas políticas, devires eróticos & delírios místicos de Ricardo Mendes Mattos,
apresentada em junho de 2015 no Instituto de Psicologia da USP, e agora complementada,

cabem: afinal, uma tese sobre poesia na Psicologia da USP, sem invocar nenhum dos quadros
de referência tipicamente curriculares embora haja, na tese e nos ensaios, bastante psicologia,
porém do tipo marginal, associada a uma espécie de insurreição anarco-psicanalítico-poética
que propúnhamos, fundamentada em Freud, Sandor Ferenczi, Wilhelm Reich, Herbert Marcuse
e Norman Brown isso, além dos compêndios de psicopatologia sexual, a exemplo daqueles de
Stekel, que Piva fruía como se fossem prosas poéticas. Mas o trabalho de Mattos também seria
estranho se apresentado em cursos de Letras, pois, assim como estes ensaios, parece dispensar
teorias literárias, embora ambos, tese e ensaios, sejam Literatura Comparada e tratem, de modo
sistemático e consistente, daquilo que importa: a poesia.

Sua principal contribuição é nos mostrar Piva como poeta leitor; como autor culto.
Alguém que foi constituindo uma identidade e adquirindo uma voz ao desenvolver uma
extraordinária capacidade de leitura, desencadeada pela identificação com autores que ia
descobrindo, nos quais via expressadas sua própria inquietação e inconformismo. Da paixão pela
leitura resultaram a varredura obsessiva de livrarias e as constantes recomendações de leituras
e indicações de obras, das quais eu e outros amigos nos beneficiamos. Observei em outra
ocasião que destacar o Piva leitor é importante em face desse aspecto preocupante da realidade
brasileira: sermos um país com 70% de analfabetos funcionais, com índices tão baixos de leitura
ii

de livros. Na mesma medida, é manifestação de inconformismo e


resistência de Piva a ser fácil e discursivo. Navegou contra a correnteza ao apresentar-se como
erudito de uma erudição pouco curricular, nada acadêmica e pontuar seus poemas com
epígrafes, citações, menções e alusões a outros autores.

Ensaios como estes ajudam a deixar para trás o tempo em que, citando Mattos,

poesia ao psicodelismo, à ingestão dessa ou daquela substância, aos porres desenfreados e


outras peripécias de uma vida livre, a um amplo espectro da sintomatologia psiquiátrica, a uma
contracultura ainda inexistente na época da publicação de Paranóia, Piazzas, Ode a Fernando
Pessoa e dos primeiros manifestos, e da qual foi um lúcido precursor, como seria notado bem
mais tarde.

É claro que tudo isso


é verdade. Atesta a
que
condiz com a minha vocação poética
Vida poética, é primorosamente exato. Não é biografia; mas situa-se no pólo oposto do
ão literária.
Vozes proibidas / vozes dos sexos

replica um procedimento do próprio Piva. A leitura atenta e informada vai mostrando que o
magma imagético sempre é significativo, que as alusões, menções e citações de outros autores
são precisas, desde que examinadas pelo crítico sensível, atento e informado. Destituindo o
chavão reacionário da qualifi
os escritos iniciais, havia formulado uma poética, indissociável de uma visão de mundo; que
reflexão e criação sempre caminharam juntas. Cito-
uma poética posta em ação em Paranóia, da mesma forma que materiais como Manifesto da
Poesia Xamânica & Bio-Alquímica (1992) ou poesia = xamanismo = técnicas arcaicas do êxtase
(1997), por exemplo, dialogam com Ciclones.
interte

Ao longo da sua obra, a tentativa de superação de uma contradição profunda, entre


palavra e corpo. Ao descobrir a declaração de Octavio Paz, a propósito de Luis Cernuda, de que
a a transformaria em lema, assim

vinha fazendo, como poeta-pensador ou poeta-crítico, contribuindo para uma leitura melhor
Piva vivencia os versos alheios em sua visceral
pederastia. Não é uma relação apenas com o poema, mas uma experimentação na carne. Antes

tema da sexualidade presente em Mário de Andrade, o faz por via da plena realização sem

outras inflorescências na poesia de Mário, Allen Ginsberg e García Lorca, entre outros, que vá
procurá-lo em Piva e nas leituras empreendidas por Mattos.
iii

A criminalização positiva da poesia através da associação de poesia e crime, aqui


examinada é quase um coro
crime. É poesia sobre crime, escrita por um delinquente, cuja força é de apologia ao crime,

A poesia deve ser feita por todos, havia proclamado Lautréamont mas, pode-se acrescentar

Outra das contribuições relevantes de Mattos é o tratamento dado à marginalia piviana,


examinando textos que não estão nas Obras reunidas e no volume de entrevistas, a exemplo de
suas contribuições regulares para os jornais Artes e Versus. É crítica que nos traz o poeta em sua
integridade. No meu entender, a cronologia de publicações de livros de Piva pode ser
enganadora: é, penso, muito mais função de oportunidades editoriais, de haver alguém
majoritariamente, mas não exclusivamente Massao Ohno disposto a publicá-lo, do que de
momentos ou surtos de criatividade. Piva foi poeta em tempo integral; sempre criou. É típica a
efusão de prosa poética em sua entrevista sobre conjuntos brasileiros de rock para a Rolling
Stone brasileira, assim como ele me visitar em algum momento da década de 1960, após a
publicação de Piazzas, para mostrar-me manuscritos
subseqüente xamanismo. Ou então, alguns registros gravados de suas apresentações públicas,
com belos poemas que jamais encontrariam a publicação e que, alguns, infelizmente,
desapareceriam de vista. Roberto Bicelli relatou que houve um primeiro Abra os olhos e diga
Ah!, manuscrito sem cópias que Piva simplesmente presenteou a um rapaz cuja família, ao ver
aquilo, lhe deu o destino que julgou apropriado. Eu não fui o Eckermann, o Boswell, o Crabb
Robinson2 de Piva deveria tê-lo sido; deveria ter recolhido mais dos escritos que ele ia largando
por aí
gular
e Plural; e muito está salvo, como os Corações de Hot Dog e outros originais, no Instituto Moreira
Salles.

Piva, notoriamente, considerava-se poeta em primeira instância; queria ser lido e


publicado. Como conciliar isso com seu aparente descaso e idiossincrasias? Uma boa
interpretação está aqui, quando Mattos trata das suas mutações aparentes, desde o
-
que caracteriza Roberto Piva: sempre rebelde, sempre inqu

Talvez também prevalecesse sobre a obra, seu conceito de livro, como meio de sedução
e combate de preferência, algo bem portátil, que ele pudesse retirar dos depósitos de editores
para sair por aí, distribuindo aos jovens leitores em potencial que o agradassem. Seu modelo de
publicação é representado por 20 poemas com Brócoli, livro minimalista, contrastando com as
edições em um formato enorme que Massao Ohno fazia naquele período. Tanto é que reclamou
do tamanho de Ciclones, livro mais extenso por haver acumulado material à espera de editores
é de 1997, mas com poemas que vinham sendo escritos desde 1982 , como testemunhado
por Sergio Cohn, que digitou os originais, em seu livro sobre Piva.

2
Interlocutores de Goethe, Samuel Johnson e William Blake que publicaram suas conversações com eles.
iv

Tudo isso, aspectos do movimento, do trânsito vertiginoso, para citar um dos títulos a

típicas do bom leitor de Baudelaire, que Piva entendeu plenamente, como tão bem exposto
aqui, nestes ensaios que, pelo valor não só como guias para a leitura do autor de Paranóia, mas
da poesia de qualidade em geral, merecem a mais ampla difusão.
1

Poesia e pederastia: o Mário de Andrade de Roberto Piva3

Mário de Andrade é o poeta pederasta quando encarnado na vida poética de Roberto


Piva. Lá está ele no Largo do Arouche paquerando colegiais que saem das escolas; ou nas
lassidões do Cambuci, delirando na Alameda dos Beijos da Aventura. Na imaginação excitada de
Roberto Piva, ambos poetas transam adolescentes numa bacanal no Parque do Ibirapuera e
saem de mãos dadas noite afora. Juntos na poesia, juntos na orgia, juntos na pederastia.

É uma relação erótica com o autor de Girassol da Madrugada. Uma relação escandalosa.

Paulicéia Desvairada pulula aqui e ali, numa vivência da cidade cravada em seus locais mais
conhecidos. No entanto, ninguém ousava tocar nessa faceta homoerótica da poesia de Mário
de Andrade - muito menos da maneira visceral como faz Roberto Piva. Daí o estarrecimento.

Há dois motivos para o espanto. Por um lado, como aponta Eliane Robert de Moraes4, a
tradição literária brasileira dava pouca vazão à expressão do erotismo tão presente nas
conversas populares o que vai ocorrer especialmente a partir dos modernistas de 22. Por
outro lado, a questão da sexualidade em Mário de Andrade é uma polêmica. A mesma Eliane
Moraes observa o conflito moral que fez o autor de Macunaíma retirar alguns trechos
pornográficos na reedição do livro. Assim, apenas muito atualmente se fala na sexualidade do
poeta, pairando aí um clima proibitivo que certamente era ainda mais forte no início dos anos

Daí o escândalo do poeta pederasta tal como aparece em Roberto Piva. Essa retomada
enfrenta a repressão sexual de toda uma cultura justamente em um dos maiores autores
nacionais. Dessa forma, Piva consegue levar adiante a incorporação literária da sacanagem
popular, iniciada com os primeiros modernistas, com a ousadia que lhe é peculiar.

É desta retomada homoerótica da poesia de Mário de Andrade que irei tratar. Para
tanto, centrarei fogo nas primeiras publicações de Roberto Piva, nomeadamente os poemas San
(1961), Ode a Fernando Pessoa (1961) e No Parque Ibirapuera (1963).

A estreia de Roberto Piva nas letras se dá na famosa Antologia dos Novíssimos (1961).
Já neste momento se estabelece interessante diálogo com Mário de Andrade. Vejamos o trecho
inicial do último poema:

Ruas do meu São Paulo,


A culpa do insofrido,
Onde está?
MARIO DE ANDRADE

De um bar qualquer
Do Largo do Arouche
assisto São Paulo passar dentro de mim
Imerso na paisagem cinza-úmida
-

3
Publicado originalmente na Agulha: revista de cultura, edição n. 08, março de 2014.
4
MORAES, Eliane Robert. Essa sacanagem. São Paulo, Ide, v. 1, pp. 75-79, 2005.
2

como disse Mário de Andrade.


Do bar recorto no asfalto umedecido
o olhar dos pederastas
mariscando colegiais farfalhantes nas esquinas5.
[...]

-
-
de Mário de Andrade que Roberto Piva incorpora: a toponímia do Largo do Arouche, a fusão
entre poeta e cidade, e a crítica aos costumes conservadores. O poeta modernista empresta

ruas de São Paulo?6

Tristura, poema de Paulicéia Desvairada, que Mário de Andrade descreve o matrimônio do


-
repetitiva quando a garoa que representa São Paulo. Se o poeta busca um amor vivo, a cidade
só lhe oferece a relação contratual do casamento o amor encarcerado na moral patriarcal.
uma pobre monja com os cabelos
cortados aqui mais uma imagem de castração à sensualidade.

A filha monja é mencionada ainda no poema A Caçada, em que o poeta se queixa do

arlequinal da poesia a um ideal ilusório. Aí surge uma caçada


companheiro modernista - Abade Liszt da minha filha monja, / Na Cadilac mansa e glauca da
7
. O músico abade,
representando essa aliança da arte com a moral cristã, é contraposto ao companheiro
modernista. É esse último verso que aparece parafraseado no poema de Roberto Piva. Talvez
-benta.
Mas em Piva, são pederastas paquerando colegiais. A renovação viria não pela genialidade, mas
por um erotismo transgressor.

Roberto Piva vê aí outra mania deliciosa. De quem seria? Mário de Andrade, em seu
Prefácio Interessantíssimo, utiliza a seguinte imagem para abordar a desordem da lírica e seus
influxos do inconsciente:
Existe a ordem dos colegiais infantes que saem das escolas de mãos dadas,
dois a dois. Existe uma ordem nos estudantes das escolas superiores que
descem uma escada de quatro em quatro degraus, chocando-se lindamente.
Existe uma ordem, inda mais alta, na fúria desencadeada dos elementos8.

Seria exagerado dizer que Piva mescla ambas passagens de Paulicéia Desvairada, numa
junção do verso sobre Oswald mariscando gênios com a passagem de Mário observando

5
Em: OHNO, Massao (org.) Antologia dos Novíssimos (Coleção
dos Novíssimos, vol.09). São Paulo: Massao Ohno, 1961. pp. 97.
6
ANDRADE, Mário de. Lira paulistana. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins; Brasília; INL,
1946/1972. p. 283.
7
Ibidem, p. 44.
8
Ibidem, p. 21.
3

colegiais saindo de mãos dadas? No poema de Roberto Piva, estaria Mário de Andrade entre os
pederastas mariscando colegiais?

ambos os poetas parecem tê-


los observado bem. A imagem de Mário de Andrade os coloca de mãos dadas, num clima ao
mesmo tempo ingênuo e malicioso. Já Piva ambienta a cena no Largo do Arouche, local
conhecido pela frequentação de pederastas.

No ano de publicação de Paulicéia Desvairada


Mário de Andrade como ele mesmo admitiu saber, em carta a Sergio Milliet. Se ainda hoje
causam escândalo essas manias deliciosas de nosso venerando modernista, o que dizer do clima
de 1960? Certamente as cartas de Mário de Andrade ainda não eram de conhecimento público;
e Roberto Piva era tido por maluco muito embora tenha antecipado em muitos anos a recente
especulação em torno da biografia de Mário de Andrade.

Sexo e drogas no Cambuci

À luz do dia, a cidade bate na cadência repetitiva de suas fábricas; na monotonia moral
da burguesia; no metro beletrista de seus poetas. São as sempiternas mesmices convencionais,
como pondera Mário de Andrade. A luz do dia e suas capturas pelo trabalho, escola e família. É
a cidade sem asas, sem poesia, sem alegria.

Em Ode a Fernando Pessoa (1961), Roberto Piva utiliza a mesma expressão das

Ó maior
9
parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti? . Com tom ora satírico, ora
cáustico, Roberto Piva rechaça as reconhecidas instituições de ensino (Faculdade de Direito do
Largo São Francisco), as igrejas, o governo e até resistência dos comunistas.

Mas a madrugada oferece outras luzes, como aquelas do poema Noturno, de Paulicéia
Desvairada. Ali a cidade ganha asas:
[...]
Luzes do Cambuci pelas noites de crime...
Calor!... E as nuvens baixas muito grossas,
feitas de corpos de mariposas,
Rumorejando na epiderme das árvores...

Gingam os bondes como um fogo de artifício,


Sapateando nos trilhos,
Cuspindo um orifício na treva cor de cal...

Num perfume de heliotrópios e de poças


Gira uma flor-do-mal... Veio do Turquestan;
E traz olheiras que escurecem almas...
Fundiu esterlinas entre as unhas roxas
Nos oscilantes de Ribeirão Preto...

[...]

9
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, op. cit., p. 25.
4

Calor!... Os diabos andam no ar


Corpos de nuas carregando...
As lassitudes dos sempres imprevistos!

E as almas acordando às mãos dos enlaçados!


Idílios sob os plátanos!...
E o ciume universal às fanfarras gloriosas
De sáias cor de rosa e gravatas cor de rosa!...

Balcões a cautela latejante, onde florem Iracemas


para os encontros dos guerreiros brancos... Brancos?
E que os cães latam nos jardins!
Ninguem, ninguem, ninguem se importa!
Todos embarcam na Alameda dos Beijos da Aventura!
Mas eu... Estas minhas grades em girândolas de jasmins,
Enquanto as travessas do Cambuci nos livres
Da liberdade dos lábios entreabertos!...
Arlequinal! Arlequinal!
As nuvens baixas muito grossas,
Feitas de corpos de mariposas,
Rumorejando na epiderme das árvores...
Mas sobre estas minhas grades em girândolas de jasmins,
O estelário delira em carnagens de luz,
E meu céu é todo um rojão de lagrimas!... 10
[...]

O poeta transpassado pelas sensações se multiplica nos versos simultâneos encharcados


de cores, cheiros e visões. O clima é inebriante e o teor é altamente sexual. Um mulato
cantarolando aqui, corpos de putas acolá e diabos numa fanfarra que inclui todos os sexos e

tem aí uma sensação ambígua de prazer e tristeza: a liberdade sexual do lugar contrasta com as
grades que o aprisionam. Diante dos delírios carnais, o poeta experimenta a tristeza das
lágrimas. É nessa teia de contradições que a sexualidade em Mário de Andrade fica explícita: o
gozo ao lado do interdito. É um conflito sexual que não encontra correspondência em Roberto
Piva.

Na Ode a Fernando Pessoa, Piva retoma esse Mário de Andrade de Noturno. O poeta
caminha com Álvaro de Campos e os tenebrosos vagabundos de São Paulo numa vida
radicalmente subversiva. Bebedeiras, assaltos, violações e orgias. A loucura sensacionista de
experimentar tudo ao mesmo tempo agora. Caminham pelos becos e encruzilhadas do lado
obscuro da cidade, recheado de putas e adolescentes que abandonaram o sono das famílias. É

nos trilhos da Ave


-moça violada por nós num dia de Chuva e Tédio, Não te levarei ao
11
.

Se Piva retoma o tema da sexualidade presente em Mário de Andrade, o faz por via da
plena realização sem grilhões e sem remorsos. Frequenta os mesmos inferninhos da cidade,
mas adiciona à sua vagabundagem um tom violento e mesmo criminoso. Se Mário de Andrade

10
ANDRADE, Mário de. Paulicéia desvairada, op. cit., p. 44-5.
11
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, op. cit., p. 23.
5

mostra certa frustração e pudor, Roberto Piva é só furor: viola a menina-moça. O poeta
paranoico carrega em si toda o vigor dos piratas da Ode Marítima
crimes! Ser todos os elementos componentes dos assaltos aos barcos e das chacinas e das
violações! [...] Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres que foram violadas,
12

O entrelaçamento dos modernismos português e brasileiro via erotismo fica claro na


seguinte imagem: Álvaro de Campos andaria mãos dadas com Mário de Andrade no Largo
13
.

Na Ode, Roberto Piva novamente fala do sexo de Mário de Andrade, agora num tom
Lira Paulistana nos
14
. Mas tudo o que Roberto
Piva faz é acordar o sexo de Mário de Andrade. E não só o sexo. É um Mário de Andrade em
meio a pederastas e maconheiros!

No poema de abertura de Paranóia (1963), Roberto Piva tem a


solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um Lótus colando sua boca
15
. É no mínimo
inusitado: Mário de Andrade em posição meditativa, recebendo uma iluminação num comboio
de maconha! O contraste da santidade do lótus com a criminalidade do tráfico. E tudo em torno
de Mário de Andrade! A princípio se pode pensar em exagero, impertinência ou mero absurdo
e quantos críticos não caem nesse lugar-comum? Mas, vejamos de novo os seguintes versos
de Mário de Andrade no poema Noturno: Num perfume de heliotrópios e de poças / Gira uma
flor-do-mal... Veio do Turquestan; / E traz -
do-mal, Tusquestan?! Mário de Andrade delira tanto quanto Roberto Piva! Mas ambos com
muita lucidez. Senão, vejamos.

Desde as famosas viagens de Marco Polo, a região do Turquestão é associada à origem


da utilização do cânhamo (cannabis). O autor de Flores do Mal, Charles Baudelaire, inicia seu
Paraísos Artificiais exatamente com menção a Marco Polo, discutindo a utilização do cânhamo
nesta região russa na
na alimentação16. Na apresentação escrita por Théophile Gautier sobre Baudelaire, exatamente
nas edições de Flores do Mal a partir de 186817, fala-

12
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. (Teresa Rita Lopes, org.). São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. p. 117
13
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, op. cit., p. 22.
14
ANDRADE, Mário de. Lira Paulistana, op. cit., p. 300
15
PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas volume I
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 30.
16
Baudelaire, Charles. Les paradis artificiels. Paris: Baudinière, 1860, (Collection Les chefs-d
français). p. 14.
17
GAUTIER, Théophile. Charles Baudelaire. In: BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. Paris: Calmann
Lévy Éditeur, 1896. p. 61. Passagem na íntegra: Il en est de même pour les extases olfactives qui vous
transportent en des paradis de parfums où des fleurs merveilleuses, balançant leurs urnes comme des
encensoirs, vous envoient des senteurs d'aromates, des odeurs innomées d'une subtilité pénétrante,
rappelant le souvenir de vies antérieures, de plages balsamiques et lointaines et d'amours primitives dans
quelque O'Taïti du rêve. Il n'est pas besoin de chercher bien loin pour trouver dans la chambre un pot
d'héliotrope ou de tubéreuse, un sachet de peau d'Espagne ou un châle de cachemire imprégné de
patchouli négligemment jeté sur un fauteuil
6

Mário de Andrade! Além de uma referência clara à grande obra do poeta francês, seria a flor-
do-mal uma referência à cannabis sativa
menção ao efeito do consumo de maconha, tal como as de que nos
fala Baudelaire? Não me parece estranho pensar no consumo dessa erva na região barra-pesada
do Cambuci.

Se podemos colocar em dúvida essa interpretação dos versos de Mário de Andrade, os


versos de Piva são inequívocos. A imagem delirante de Piva se baseia em uma leitura ousada da

sem o conhecimento das memórias de viagens e cartas em que Mário de Andrade relata suas
experiências com alucinógenos.

Mário de Andrade surg


flor oriunda do mesmo Oriente que o Turquestão. E o poeta modernista tem essa iluminação
deitado, olhando as estrelas, com a boca colada no ouvido de Roberto Piva, ao seu lado. Onde
estariam os poetas deitados gozando essa intimidade?

No Parque Ibirapuera

Nos gramados regulares do parque Ibirapuera


Um anjo da Solidão pousa indeciso sobre meus ombros
A noite traz a lua cheia e teus poemas, Mário de Andrade, regam minha
imaginação
Para além do parque teu retrato em meu quarto sorri
para a banalidade dos móveis
Teus versos rebentam na noite como um potente batuque
fermentado na rua Lopes Chaves
Por detrás de cada pedra
Por detrás de cada homem
Por detrás de cada sombra
O vento traz-me o teu rosto
Que novo pensamento, que sonho sai de tua fronte noturna?
É noite. E tudo é noite.
É noite nos pára-lamas dos carros
É noite nas pedras
É noite nos teus poemas, Mário!
Onde anda agora a tua voz?
Onde exercitas os músculos da tua alma, agora?
Aviões iluminados dividem a noite em dois pedaços
Eu apalpo teu livro onde as estrelas se refletem
como numa lagoa
É impossível que não haja nenhum poema teu
escondido e adormecido no fundo deste parque
Olho para os adolescentes que enchem o gramado
de bicicletas e risos
Eu te imagino perguntando a eles:
onde fica o pavilhão da Bahia?
qual é o preço do amendoim?
é você meu girassol?
A noite é interminável e os barcos de aluguel
fundem-se no olhar tranqüilo dos peixes
7

Agora, Mário, enquanto os anjos adormecem devo


seguir contigo de mãos dadas noite adiante
Não só o desespero estrangula nossa impaciência
Também nossos passos embebem as noite de calafrios
Não pares nunca meu querido capitão-loucura
Quero que a Paulicéia voe por cima das árvores
suspensa em teu ritmo.18

O poema é ambientado naquele parque inaugurado nas comemorações do IV


Centenário da cidade de São Paulo. A história é conhecida: entusiasmo diante da industrialização

cooptação pelo Estado. Ao contrário dessa retomada oficial da tradição modernista, Piva
encontra naquele parque outra relação com Mário de Andrade.

São versos que rebentam na noite e estão imanentes em todos os movimentos do poeta
na cidade. Uma encarnação poética que se dá distante dos holofotes, distante das
conclama Piva, mencionando versos de Mário de Andrade
em Meditação sôbre o Tietê. Sob a ponte, contemplando o rio, Mário de Andrade associa a noite

anha-
19
. Roberto Piva retoma esse poeta noturno:
o homem com suas paixões fluindo inconscientemente. Mais próximo do rio e do ambiente
natural; distante da civilização e sua vida corrupta.

É à noite que Roberto Piva imagina-se com o autor de Girassol da Madrugada


paquerando adolescentes, com Mário de Andrade perguntando a um deles se seria seu girassol.
Piva encontra um poema escondido de Mário de Andrade, anunciado já no início quando

SONETO

(Dezembro de 1937)

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...


...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro


Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo

18
PIVA, Roberto. Paranóia. op. cit., pp. 64-5.
19
ANDRADE, Mário de. A Meditação sobre o Tietê. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins;
Brasília; INL, 1946/1972. p. 305.
8

Também mais nada, só te olhar, enquanto


A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... a evasão total do pejo


Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas20.

Seria um daqueles adolescentes o jovem amante de Mário de Andrade, que o próprio


se pergunta Piva. Com ou sem esse girassol, Mário de

poetas saem de mãos dadas noite afora. Roberto Piva, sem dúvida, aceita o amor do modernista
como este o encara!

É Piva de mãos dadas com a tradição modernista fortemente erótica. Em entrevista a


Fábio Weintraub21 ado

Exatamente na análise do poema No Parque do Ibirapuera, o crítico argentino Mario


Cámara afirma, num tom provocativo:
La de Piva puede considerarse como una primera lectura corporal y sexual del
modernismo brasileño. Y testimonia la búsqueda alternativas al discurso más
técnico y, por lo tanto más mental, del concretismo, a la modernidad
desarrollista que está emergiendo de los claustros de la Universidad de San
a izquierda literaria brasileña22

Duma certa perspectiva, a Paulicéia Desvairada faz uma crítica da cidade atrelando os
aspectos político-econômicos, morais e estéticos. A moral conservadora é tão aprisionadora
quanto a economia burguesa e o metro poético. As Enfibraturas do Ipiranga dão inúmeros
exemplos de crítica à regularidade do metro em poesia, colocado no mesmo patamar que o
trabalho assalariado e o matrimônio. O poeta bom moço, conservador na vida e na poesia, é
aquele do poema com ênfase formal. O antípoda do desvairado caminhando ao ar livre na ruas
mal afamadas da cidade, nas carnagens de luz e na maconha na simultaneidade desordenada
de versos livres. Em sua época, a crítica de Mário de Andrade certamente dirigia aos

ia23. Antônio Cândido também


24
. É
exatamente o movimento concretista e a Geração 45 que Roberto Piva irá criticar já nos
manifestos de 1962. O racionalismo e anti-lirismo de uns e a disciplina fabril e formal de outros.

20
ANDRADE, Mário. A costela do Grã Cão. Em: Poesias completas. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Editora da USP, 1987. pp. 320-1.
21
WEINTRAUB, Fabio. Conversa com Roberto Piva. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2000/2009. pp. 124-135.
22
CÁMARA, Mario. Sexualidad y ciudad em la poesia de Roberto Piva. Revista Anclajes, Santa Rosa
(Argentina), n. 14, dezembro 2010, p. 35.
23
HOLLANDA, Sergio Buarque de. Retórica e Poesia. Em: O espírito e a letra. São Paulo: Companhia das
Letras, 1950/1996, pp. 165-9.
24
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira III. Modernismo. 5.
ed. São Paulo / Rio de Janeiro: Difel, 1975. 374 p.
9

Ambos expressões da ideologia da modernização: seja na administração racional da poesia, ou


na ingênua exaltação da modernização e da mercadoria. Ou seja, Roberto Piva atualiza a crítica
modernista também no que diz respeito à poesia nacional. Exatamente essa atualização,
distante da institucionalização estatal ou das escolinhas literárias, permite a Roberto Piva a
radicalidade erótica e livre.

Mais em termos de atualização, convém lembrar a opinião de Mário de Andrade sobre

poética brasileira, especialmente com dicções da poesia norte-americana.

Como bem observou Claudio Willer25, o poema No Parque Ibirapuera mantém forte
intertexto não apenas com Mário de Andrade, mas também com Garcia Lorca e Allen Ginsberg.
Acrescento a importância de Álvaro de Campos, que em sua Saudação a Walt Whitman,

De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.


Quantas vezes eu beijo o teu retrato.
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)
Sentes isso, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)

E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá,


Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito,
Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da minha alma.

Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,


Mas perante o universo a tua atitude era de mulher,
E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo 26

Andrade em seu quarto um símbolo forte de admiração juvenil. Mas Whitman era o poeta da
fusão com todo o universo, aquele que se tornava os outros homens e penetrava em todos
objetos. Seu próprio livro o trazia vivo e vibrante em cada página:
27
livro / quem toca neste livro, toca num homem [...] Eu salto de .
É assim que Álvaro de Campos encarna Whitman e, como o faz Piva com Mário, caminha com
ele de mãos dadas. É a poesia como força que flui para além do espaço e tempo, como queria
Whitman, impregnando a tudo com sua vibração imanente: em cada pedra, em cada homem,
etc como surge em ambos poemas. Mas para além dessa imanência poética, Piva, como
Campos, se pergunta também onde estará agora, mesclando a sensação da presença com a
angústia da busca.

Piva retoma a Mário de Andrade tal como Álvaro de Campos a Walt Whitman. Mas não
só. Os fios das longas barbas do bardo foram vistos também em Um Supermercado da Califórnia.

Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles: Quem matou as

25
WILLER, Claudio. Roberto Piva e a poesia. Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências, n. 2, 2010.
Disponível em: http://novaserie.revista.triplov.com/numero_02/claudio_willer/index.html
26
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos, op. cit., p. 149.
27
WHITMAN, Walt. Leaves of Grass. (2ª ed.), 1860. Disponível em:
whitmanarchive.org/published/LG/1860/ Data da consulta: 12/05/2008.
10

28
costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo? . Os poetas provam tudo

Supermercado aqui, Parque acolá, o encontro de Piva com Mário de Andrade é um

da caminhada de mãos dadas, etc. Mas se Ginsberg, após todas essas imaginações, se sente
a paquera com os garotos angélicos,
os brasileiros vão além.

E os versos de Ginsberg, como bem sabia Roberto Piva, também são variações da
seguinte passagem de Garcia Lorca, em sua Ode a Walt Whitman ¿Qué ángel llevas oculto en
la mejilla? / ¿Qué voz perfecta dirá las verdades del trigo? / ¿Quién el sueño terrible de tus
anémonas manchadas? 29.

Eis a complexidade do intertexto em Roberto Piva. Em primeiro lugar: Piva vivencia os


versos alheios em sua visceral pederastia. Não é uma relação apenas com o poema, mas uma
experimentação na carne. Antes de textual é sexual. E essa relação transparece nos versos que,
a um só tempo, fazem menção a Mário de Andrade (com o girassol), a Garcia Lorca (já que o
girassol dialoga com a anêmona: outra flor com forte teor erótico e mágico) e a Allen Ginsberg
(já que o girassol corresponde ao anjo).

Nessa retomada erótica de Mário de Andrade, Roberto Piva atualiza a inteligência


artística brasileira com versos surreais de Lorca e a beat de Ginsberg. Todos colocados numa
espécie de genealogia da poesia homoerótica que irradia de Whitman e passa por Álvaro de
Campos.

Roberto Piva consegue mesclar uma escrita radicalmente delirante e espontânea com
cuidadosos estudos dos poetas que menciona. Pois Roberto Piva era um leitor bem atento. A
aproximação de Mário de Andrade com a pederastia e a drogadição não são meros exageros
delirantes, mas fruto de análise bem criteriosa. Se o delírio poético e a transgressão radical são
feições muito mencionadas para se referir à Piva, falta ainda dizer algo sobre sua argúcia crítica.

Aqui chegados, concluímos uma parte da caminhada. Ainda resta fazer uma leitura
atenta das semelhanças entre Macunaíma e Coxas: sex fiction & delírios. Tal leitura ampliaria o
-revolucionária
que inclui outros heróis sem caráter.

Eis o Mário de Andrade de Roberto Piva. Nem o bom moço dos cânones acadêmicos,
nem o capturado pelo Estado das comemorações oficiais, nem arauto venerado nas escolinhas
literárias. Poeta pederasta, vadiando nos inferninhos da cidade e experimentando drogas. É
com esse que Roberto Piva caminha de mãos dadas.

28
GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 2005. p.
49. (Coleção LP&M Pocket, vol. 188).
29
LORCA, Frederico García. Poet in New York: a bilingual edition. Grove Press, 2008. p. 148.
13

50 anos de rebelião poética em Roberto Piva ou poética anárquica, dionisíaca,


blasfematória e criminosa30

Poesia do ímpeto e do giro,


Da vertigem e da explosão,
Poesia dinâmica, sensacionista, silvando
Pela minha imaginação fora em torrentes de fogo,
Em grandes rios de chama, em grandes vulcões de lume.

(Fernando Pessoa/Álvaro de Campos).

Por onde passa a alucinação poética de Roberto Piva devassa. Seu pulsar em fúria
ejacula desordem. As convenções sociais se prostram definhadas. Os deveres suicidam-se
aturdidos. As autoridades masturbam-se convulsionadas. Os relógios ventilam e olhares
sedentos devaneiam em rodopios maravilhados.

Reparei como a consciência se desequilibra no parapeito do Absurdo, enquanto a Razão


amanhece jogada bêbada ao meio-fio.

No ritmo violento de seus versos, vagabundos, putas e pederastas copulam sorridentes.


A juventude se excita. As palavras pululam em vertigens. O corpo convulsiona inebriado pelo
aroma libertino que exala de seus poemas.

No quinquagésimo ano da estreia de Piva, com sua Ode a Fernando Pessoa (1961), este
ensaio celebra a sua vida.

Sua poética, qual meteoro incandescente desgovernado, ganha virilidade a cada ano,
explode em gerações de novos poetas e transgressores nele inspirados, abre crateras no bom
mocismo ainda predominante na poesia.

A publicação individual de estreia de Roberto Piva foi impressa em longa tira de papel
similar à forma de Bomb beat
era publicada em San Francisco. O poema era distribuído nos bares da cidade de São Paulo,
tendo sido escrito no mesmo ano de sua participação na Antologia dos Novíssimos (Massao
Ohno, 1961).

A Ode já abriga o germe da poesia piviana, com toda sua força subversiva e anárquica.
Já aqui a poética da irresponsabilidade, das sensações em detrimento das obrigações. Apologia
do ilegal. Poesia da orgia, cujo erotismo toma o poder de assalto. Blasfêmia, sarcasmo e
ridicularização do mundo oficial. Poesia sustentada pela loucura e pelo delírio.

Já aí estão as primeiras grandes influências poéticas do transgressor, especialmente de


Pessoa-Álvaro de Campos, Walt Whitman, Allen Ginsberg e Mário de Andrade. Saudar a
Fernando Pessoa-Álvaro de Campos, como este saudou a Walt Whitman, saudado também por
Allen Ginsberg e Garcia Lorca. Escrever uma ode ao mestre nessa forma literária. É delinear uma
linhagem poética. É inserir-se em uma genealogia literária de ruptura.

30
Publicado originalmente no Projeto Editorial Banda Lusófona, em maio de 2011.
14

A ruptura se inicia com a versificação.

Versos livres e longos. Ode a Fernando Pessoa à maneira das grandes odes de Álvaro
Campos. Versos no ritmo voraz do pseudônimo que tomava o poeta lisboeta de assalto em
acessos de possessão, de escrita febril, compulsiva e convulsiva. O virulento tremular da pena
violenta, arrebentando em Pessoa um ente-de-letras incontrolável, impulsivo que destronava
até seu próprio criador. Inventivas noites insones.

Frequentes aparições do pronome de


utilização literária e formal escapando até uma expressão do

versos, ou no meio deles, com expressões iguais a de Campos em suas odes. Construção similar

Poesia de ruptura, com raízes bem conhecidas. Barbas longas e livres do velho Whitman,
com o vento da liberdade a soprar em seu corpo nu deitado sobre folhas de relva. Verso criado
em estado de transe, a livre associação de ideias em pensamento veloz, com ritmo definido pelo
pulsar do corpo e na medida da respiração.

Ouve-se também o Uivo e seus relatos entusiastas de situações subversivas, além de


grande influência do Ginsberg de América. A oralidade da linguagem das ruas, as gírias, os
impropérios, também marcam um vocabulário ultrajante com palavras libertas que vibram
gesticulando malcriações.

Ora, a forma de Ode contrasta bastante com as experimentações narrativas


características do conjunto da obra de Piva. Os versos fragmentados, entremeados de
glossolalias em Piazzas, e, principalmente, a prosa poética sucedida de poesias em Coxas que
- relação espaço-tempo no âmbito da narrativa moderna31.

Contra as responsabilidades pelas sensações

decadente e pessimista, em seus despudorados balanços de vida, com todas suas vilezas e
fracassos. São solilóquios loquazes em carne viva.... deixando as vísceras ali espalhadas no rés-
do-chão, em qualquer vão, para todos verem. Esse Campos dos longos exames de consciência,
beirando a culpa e despertando amiúde a piedade, não é o poeta apropriado por Piva, mas sim

vida sedenta, o pulular de sensações amorfas e desregradas, desesperadas pela aventura de


evadir-se e transbordar-se no mundo. O fluir ininterrupto em meio ao desconhecido. Daí a fúria
contra as amarras que procuram atenuar seu voo. As convicções não devem durar mais que um
estado de espírito. É a liberdade de vagar, sem ideias fixas: o vadiar descompromissado. Poesia
do alto-mar.

Em lugar das convicções temos inquietações mais ou menos indeterminadas. Confusão,


- /

31
WILLER, Cláudio. Uma introdução à leitura de Roberto Piva. Em: Um estrangeiro na legião, Obras
reunidas volume 1. (organizador Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005. p. 144-183.
15

[sequência] / Sempre, sempre, sempre / Esta angústia excessiva do espírito por coisa
32
.

A mesma frase apropriada por Piva na Ode

A labilidade, a infindável busca pela intensidade das experiências. É a afirmação da vida


contra toda forma de controle social. A sensação é antagonista da responsabilidade, deveres,

O entregar-se às emoções de maneira ininterrupta, mergulhado na torrente das


sensações difusas, traz uma vontade megalomaníaca de fundir-se a tudo e a todos. A vivência
risos, todos os olhares,
/ todos os passos, os crimes, as fugas, Todos os êxtases sentidos de uma vez, / Todas as vidas

A mesma busca desesperada observada em várias passagens de Campos, como por exemplo:

os modos possíveis ao mesmo tempo, / Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos


33
.

O elemento do excesso é a fúria. Em sua Ode Marítima, Campos leva ao extremo essa
violência em sua adoração aos piratas. Aqui a fúria se traduz em transgressão, criminalidade,
facetas bastantes características da poética delinquente de Piva, cuja erupção passa ao largo
indisciplinador

marítimas salpicada de crimes, / Da grande vida dos pir

A figura do pirata ilustra bem a figura de sujeitos selvagens que vivem matando,
roubando, torturando, proliferando uma série de crueldades. Os Césares com quem Campos

34
.

oética sensacionista,
irresponsável, embriagada pela ferocidade selvagem e vomitando atrocidades.

Vozes proibidas / vozes dos sexos e luxúrias

na linhagem poética orgástica do autor de Folhas de Relva


35
sensações-em- .

32
Todas as citações da poesia de Álvaro de Campos são extraídas de: PESSOA, Fernando. Poesia completa
de Álvaro de Campos. (edição Teresa Rita Lopes). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 312.
33
Ibidem, p. 177.
34
Ibidem, p. 120.
35
Idem, p. 148-9.
16

De passagem podemos comentar que o diálogo com Whitman também se dá a partir de


Ginsberg. Em Supermercado da Califórnia

36
. A relação de Ginsberg
com Whitman, que remete a uma genealogia poética e de vida subversiva, é parafraseada por

Assim, a Ode é uma constante conversa com Whitman. Sua barba prefigura aqui e ali,
enroscando os fios nas páginas.

De Whitman, Piva compactua a poética como subversão do corpo, definição atribuída a


Octávio Paz. É o corpo como turbilhão dos desejos, da sexualidade. Com Whitman, Ginsberg e
Piva o homoerotismo alcança ares

A Ode está recheada de orgias e bacanais, alusões ao sexo como expressão da liberdade.
Numa sociedade moralista e crivada p
segundo o próprio Piva, a liberdade sexual é bastante fronteiriça do proibido, do criminoso:

numa orgia insaciável e insaciada de todos os propósitos-

O tom de Revolução Sexual que iria caracterizar a década de 1960 é aí antecipado. A

rapazito de olheiras fez ao companheiro


pederastas pelo simples prazer de traí- aqui com possível alusão a Jean Genet.
Poética erótica, imoral, na qual não há freios para o desejo que não cessa de não cessar. Poesia
e Orgia.

Whitman e sua fusão com as pessoas comuns, personagens urbanos.... suas gírias,

Vozes dos sexos e luxúrias.... vozes veladas, e eu removo o véu, / Vozes indecentes esclarecidas
37
.

São putas, escravos, ladrões, deformados, desesperados e delinquentes juvenis.... com

38
acompanhe .

Este histórico encadeado à marginalidade, às figuras delinquentes, escoa na Ode:

fora da lei e todos os desajustados, / Não existe um gangster juvenil preso por roubo e nenhum

Piva leva a fusão da poesia com a marginalidade/criminalidade ao extremo. As famosas


frases em entrevistas dão conta de que se a verdadeira poesia é transgressora, é fora da lei,
também se liga a outras ações e personagens que constroem suas subjetividades em contínuo
conflito com as convenções sociais.

36
GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. (tradução, seleção e notas de Cláudio Willer). Porto
Alegre: L&PM, 2006. p. 49.
37
WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. (tradução Rodrigo Garcia Lopes). São Paulo: Iluminuras, 1855/2008.
p. 77.
38
Ibidem, p. 105.
17

criminal. Uma poesia cuja transgressão aponta, em última instância, para o crime, e para a
anarquia generalizada 39

Na Ode, o poeta gangster vivencia e poetiza diversas situações subversivas, muitas vezes
com aberta alusão a atos delinquentes. São crimes, fugas, assaltos, estupros, que lembram em

- .

A atividade criminosa revela uma negação incondicional do mundo burguês, suas


instituições sociais e moralidade castradora..... Afirma a vida pulsante, o desejo imediato, a
liberdade individual que se impõem com violência e intensidade. Uma poética anárquica que
cospe violentamente o fogo da desordem.

Tal tom subversivo/criminoso tem ojeriza a qualquer forma de controle. Daí frases como
-te daqui para fora, policiamento familiar da alma dos fortes: eu quero ser como um raio

É certo que a poética do urbano, que caracterizará a São Paulo em Paranóia é


normalmente atribuída à influência de Mário de Andrade (Paulicéia Desvairada) e Garcia Lorca
(Poeta em New York). Porém, estes dois últimos poetas, é sempre bom lembrar, fazem
referências diretas a Whitman em sua poesia ao ar livre.

Poesia arejada, impregnada dos burburinhos das grandes metrópoles. O estado de vida
poético como a fusão da poesia e vida..... como uma existência sempre em movimento, no
turbilhão urbano caótico.

Mário de Andrade, presença frequente nos primeiros escritos de Piva. O Mário da


Paulicéia Desvairada -
sinergia com os espaços e situações da cidade. Mário do insulto ao burguês, do conluio com

asas,

A veia antropofágica de Piva no colorido das expressões populares, informais, de uma

ouvem bossa-nova deitados na palma da mão do Cristo.... o maxixe na Bahia com seus becos e
40
porres. Como bem lembra Ricardo Rizzo, trata- .

39
MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. Em: O começo da busca: o surrealismo na
poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Tranversais). p. 241 e 246.
40
Revista Agulha, n. 49, 2006.
18

Até hoje o poeta antropófago autogr


referência ao Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade como se lê na entrevista
à Marco Vasques41.

A cidade de São Paulo de Piva


do é toda a vida que se move no subterrâneo, nos interstícios,
distante do controle social. Justifica tudo o que foi dito aqui sobre a transgressão como víscera
da poesia piviana. A nomeação dos locais, parques, praças, ruas da cidade segue uma trilha
aberta pela Paulicéia Desvairada. Porém, seu tom mordaz e pungente revela que se poetiza o
que se vive. A cidade do poeta/transgressor é permeada pelas vielas, bares, becos, subúrbios.
-se, numa hemoptise de personagens

das famílias; os adolescentes iletrados nos parques, as putas, os bêbados e todos os


desconhecidos.

É o palco onde se encontram tod


centro aos domingos quando toda a gente decente dorme, e só adolescentes bêbados e putas
encontram-

Se ainda hoje tais versos soam sublevadores, o que dirá na época em que foram escritos.
É Willer quem relata o espanto e repúdio com que as primeiras poesias de Piva foram recebidas
pela provinciana cidade de São Paulo, uma cidade moralista, fechada, regrada, puritana. O
espanto intercalado ao silêncio da imprensa, pois era impensável uma literatura excitada pelo
erotismo, transpirando palavrões. Havia pouco, o Uivo de Ginsberg foi recolhido das prateleiras,
o gerente da livraria preso e a obra perseguida em longo processo judicial

Na comemoração de seu quarto centenário, os paulistanos orgulhavam-se de seu Parque


Industrial, de seu progresso, de seu futuro. É neste contexto que Piva constrói uma originalidade
poética com grande toque de sarcasmo. Desfile de escárnios provocadores e chistosos. Todo o
mundo oficial é francamente satirizado.

O pai do racionalismo tecnicista tem sua célebre frase ridicularizada em cômica paródia:
-

O humor elevado à categoria de sátira, goza das autoridades, instituições e situações


convencionais. Trata-se mesmo do tom blasfematório que o próprio Piva atribui a sua poética.

agredida, a oposição aspirante ao poder também não tem melhor

As autoridades religiosas, representantes oficiais do cristianismo recebem também seu


s

A universidade, instituição do saber oficial, com seu academicismo tão odiado pelo poeta,
recebe uma imagem que denota o quanto reprime os desejos em prol de uma lógica racional
rbação /

41
Revista Agulha, n. 69, 2009.
19

non-sense Piva escreverá


42
.

A feição mordaz da poética verborrágica lembra em muito a maneira como Ginsberg


43
. Na
Ode

es da ordem não cessam

O tom provocador é absolutamente libertário. Incentiva a sublevação por meio de


comportamentos anárquicos, em uma atitude política que torna a Ode a Catedral da Desordem
na contracultura brasileira. A poesia na qual primeiro jorrou a fonte transbordante de
sublevações da jovial década de 1960.

Uma poética do amor livre, da orgia, da liberdade sexual. Uma poética subversiva,
vivenciada na desobediência sistemática das instituições sociais de controle. Uma rebelião
poética furiosa, que estilhaça todas as formas de disciplina e domesticação.

Uma poética dionisíaca, pagã, que faz delirar na embriaguez estética da afirmação da vida,
da vida em sua diversidade. Poética ditirâmbica, do batuque irracional sentido no ritmo do
corpo.

tornar- ética extemporânea, um poeta póstumo, que desbravou


uma vida experimental encarnada pelas gerações subsequentes de outros espíritos livres.

Se cabe ao poeta chegar ao desconhecido de seu tempo, eis aqui um poeta vidente,
visionário, que abre brechas na realidade e potencializa em cada um outras vidas a serem
vividas.

42
PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça. Em: Um estrangeiro na legião, Obras reunidas volume 1.
(organizador Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1962/2005. p. 132-141.
43
Ibidem, p. 58.
21

Roberto Piva: poesia e crime ou blasfêmias eróticas heroicas & assassinas 44

E se o estupro, o veneno, o incêndio e a punhalada,


Não puderam bordar com seus curiosos planos
A trama banal dos destinos humanos,
É que nossa alma enfim não é bastante ousada.

Baudelaire, Flores do Mal

Vede os bons e justos! Quem eles odeiam mais? Aquele


que quebra suas tábuas de valores, o quebrador, o
infrator: - mas este é o criador

Nietzsche, Assim Falou Zaratustra

1. Roberto Piva é direto: a palavra criminal é um princípio básico para se entender sua poesia.
Sua poética exala o crime. Por ela ferve um turbilhão assaltos, assassinatos, estupros,
incêndios... ora com feições cruéis, em que cabeças são decepadas, em meio a flagelações....
ora como perversões sexuais, à exemplo do oblato com sexo arrancado.... ou mesmo em rituais
com feições pagãs, no qual garotos são castrados. Seus personagens são vadios, delinquentes,
45
.

Não é apenas a poesia que relata o crime, é poesia feita por criminoso!

Em entrevista concedida a Floriano Martins, o poeta paulistano vocifera seu desejo de


se dedicar ao crime, andando armado pela cidade de São Paulo, no final da década de 50. Prisão

adolescente, eu era um delinquente. Era uma pessoa que vivia absolutamente dedicada às
46
.

O poeta-
consegui ser gângster. Então acabei escrevendo poesia, que é uma forma de incentivar o
47
.

Ora, aqui temos uma relação indissociável entre poesia e crime. É poesia sobre crime,
escrita por um delinquente, cuja força é de apologia ao crime, incitação à transgressão de
qualquer ordem, lei ou convenção social. A poesia mesma é crime. Não se trata de exagero, pois

44
Publicado originalmente na Revista Zunai, no Portal de Poesia Ibero Americana e no Projeto Editorial
Banda Lusófona, entre abril e maio de 2011.
45
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócolis (vol. II, p. 104). Todas as citações da poesia de Piva são extraídas
de suas obras reunidas, em três volumes, por Alcir Pécora, publicadas em 2005, 2006 e 2008
respectivamente, pela Editora Globo. Indico a obra, volume e o número da página.
46
COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. O agitador da
transgressão. Entrevista concedida a Paulo Mohylovski, em maio de 1987.
47
MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. Em: O começo da busca: o surrealismo na
poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Tranversais). p. 241-258.
22

48
.

O poeta-bandido procura a desorganização da vida, a instituição da desordem, a


abertura violenta de brechas na realidade pelas quais a afirmação da vida subversiva possa
jorrar.

Quais os sentidos do crime na poética de Piva? Com tal enigma tento aliciar o leitor para
fazer-se cúmplice e percorrer o emaranhado de vielas e becos, onde viceja a vida transgressora
na poética de Roberto Piva. Nesses subterrâneos encontraremos outros comparsas com os quais
Piva foi iniciado na poética criminosa. Encontrando leitores tão audaciosos quanto o poeta,
podemos ser até enquadrados no crime de formação de quadrilha!

2. Do delírio ao delito. A história da poesia moderna é a história do poeta contra a sociedade.


Considerado louco, miserável, perigoso e criminoso, ele é o solitário desesperado que atenta
contra toda ordem social.

Piva rememora esta relação desde a consolidação da aliança da moral, da razão e da


verdade, com os decadentes Sócrates e Platão, no triste advento da sociedade ocidental. Toda
a força da tragédia, a vida como obra de arte na afirmação da existência como fenômeno
estético, é substituída pela fraqueza da ética que domestica os instintos humanos mais
espontâneos. O poeta como mestre da verdade, o louco possuído pelos deuses em seus delírios
poéticos é excluído da República e o Delírio eliminado da teoria do conhecimento. Poetar é
agora perigoso: o delírio é delito. A poética de Piva é crivada por esse corte, assim como pelo
renascimento da tragédia e a hemoptise do espírito dionisíaco no mundo.

3. Poesia e possessão. O impacto da poética de Dante Aliguieri (1265-1321) foi tão grande em
Inferno de
49
.

O poeta punido com o desterro, em suas andanças entre os apaixonantes personagens


do Inferno, encontra toda a sorte de criminosos: avaros, hereges, ladrões, assassinos,
sodomitas, suicidas, falsários, traidores, bruxos, semeadores de discórdia, etc.. No olor
estonteante, no suor das quentes fornalhas do Inferno sem esperança, estava Vanni Fucci,
ladrão de Igrejas, que prediz em versos trágicos a derrota dos correligionários políticos de Dante.

Ao falar sobre sua poética, o poeta- er a


ordem do dia. A blasfêmia e o roubo. Veja o episódio Vanni Fucci no Inferno de Dante. Gíria da
50
.

Poesia, blasfêmia, roubo e vidência. Heresia e magia. Crime como manifestação política.
Mimetismo. Piva se apropria do personagem: toma-o para si, assalta sua identidade. Se o poeta
começa sua trajetória como louco possuído por deuses, aqui age como possuidor, usurpador de
personagens.

48
Idem.
49
Idem.
50
PIVA, Roberto. O jogo gratuito da poesia (vol. III, p. 187).
23

Eis aqui a diferença crucial entre os poetas. Se Dante caminha por amor, rumo ao
Paraíso, se apiedando dos personagens do Inferno, Piva encarna-os: se faz um deles. Se Dante
conduziu Piva ao centro do turbilhão de criminosos, deixou-o lá, solitário e desesperado. Ele não
continua a trajetória do florentino ao Purgatório e Paraíso. Sua Beatriz foi esfaqueada num beco
escuro. Piva faz poesia para o crime, não sobre ele. Nesse movimento, o próprio poeta faz-se
criminoso. É com Villon que ele faz conluio.

4. Vilanias de Villon. François Villon (1431-1463?): primeiro poeta maldito. Órfão entregue aos
cuidados eclesiásticos, filho de prostituta. Rasgou com seu punhal as vísceras dos poetas-bobos-
da-corte e marionetes dos mecenas. Perdeu todas as proteções eclesiásticas e régias, em virtude
de seu modo de vida transgressor, traduzido em uma poesia satírica. A partir daí Villon não mais
vende sua arte ao mecenas: bate sua carteira!

Posso vê-lo, ferido nos lábios pela adaga do inimigo, vagabundeando errante nas
tabernas, prostíbulos, a procura de uma trapaça qualquer que lhe renda algum trocado.
Envolvendo-se em brigas, como aquela na qual matou um sacerdote. Manipulava a pena com
tanta habilidade como seu punhal, praticando a poesia e o crime com a mesma vivacidade. Ao
poeta a prisão, a tortura, o desterro, a condenação à forca. Poesia como sinônimo de perigo
social.

Suas baladas ridicularizam as autoridades civis e religiosas, com tanto sarcasmo quanto
descrevem cenas eróticas com sugestivas devassidões. Poesia aqui tem ares de um crime dos
mais audaciosos e refinados. Mas as Baladas do bandido ainda são devotas, com pedidos de
perdão a Deus e demais rebanhices cristãs mesmo considerando a época em que foram
escritas, sem qualquer anacronismo. Perto da poesia de Piva, as Baladas de Villon são
arrependimentos em confessionário. O crime em Piva é essencialmente blasfemo. É no fervor
da carne orgiástica que Piva prefere inscrever sua delinquência. É uma poética erótica. Crime,
poesia e erotismo: elementos bolinados pelo sádico Marquês.

5. Poesia e apologia ao crime. Coxas pode ser lido como um diálogo com Marquês de Sade
(1740-1814). Ou melhor: uma orgia com Sade. Nele, a transgressão é indissociável da livre
expressão sexual. Liberdade total dos instintos mais selvagens, culminando em crueldades
exibi

criada pelo Marquês.

Se o verbo poético de Piva delira em seu homoerotismo marginal, o Marquês de Sade


se presta a fundamentadas argumentações filosóficas entre uma suruba e outra. Para ele as
irrefreáveis leis da Natureza imprimem no ser humano o império dos desejos, a efervescência
de instintos incontroláveis. Fazendo tudo o que deseja, gozando todas as paixões, o homem não
faz senão responder à sua natureza mais essencial. Quaisquer leis ou convenções sociais
contrárias a tais desejos não respondem à natureza humana e não devem ser obedecidas. Daí o

aproximam o homem de seu destino selvagem. Em verdadeiros manifestos políticos distribuídos


aos cidadãos republicanos, assim como no estatuto da Sociedade dos Amigos do Crime, Sade
defende uma vida coletiva sem leis e sem regulação pela moral cristã.
24

Se Dante descreve e classifica os crimes em três categorias (contra Deus, o próximo e


contra si mesmo), Sade se utiliza dessa mesma classificação para legitimar um a um, com astutas
e audaciosas citações filosóficas, históricas e antropológicas. Clara apologia ao crime, incitação
mesmo do ato delituoso, defendendo a liberdade de sodomia, adultério, incesto, roubo, suicídio
e assassínio.

Tal visão é marcada pelo extremo desprezo pela vida humana, especialmente pela
prepotência do homem em ser o senhor do Universo, quando não passa de um elemento
bastante dispensável diante da força da Natureza. Essa crítica severa ao antropocentrismo e
toda a tradição humanista influenciou Piva, também por intermédio de Lautreamont e
Nietzsche, como veremos adiante.

A entrega a todas as volúpias e deleites, a livre expressão de todos os atos sem

em alguns posicionamentos político


51
. Neste estado selvagem, pode apostar que o erotismo como transgressão ocupa lugar

loucos, foras da lei, drogados e rebeldes.

Distante do antropocentrismo, da moral cristã e das leis sociais, sua poética junta
sexualidade e violência como cerne da relação humana que busca exprimir toda sua vitalidade:
XUAL, isto é, numa AGRESSÃO cujo
52
.

6. Crime como obra de arte. Ainda em Coxas o poeta-selvagem cita a célebre publicação do
comedor de ópio Thomas de Quincey (1785-1859): O assassinato considerado como uma das
belas-artes (1827). O grande deambulador vagabundo observa que os registros da imprensa
sobre homicídios revelam a enorme criatividade dos assassinos, comparada a de grandes
pintores e poetas. Com características de seguidores de Sade, havia um clube de aristocratas
dedicados ao prazer do crime. Reunidos se extasiavam em narrar os crimes que cometeram,
com suas circunstâncias e premeditações, gerando grande efusão quando os mais originais eram
considerados como obra de arte.

Se poesia e vida são parte de um mesmo ato subversivo de amor e liberdade, aqui a
beleza do crime prescinde da poesia. O próprio delito é belo. A poesia como crime mostra seu
avesso: o crime é poético.

7. O criminoso no centro da criação poética na rebelião romântica. Na aurora do romantismo,


o impulso antiautoritário vocifera sua fúria na peça Os Salteadores, escrita pelo jovem Schiller
(1759-1805), então com 18 anos. O delinquente juvenil Karl Moor, misto de ladrão e herói a lá
Robin Hood, exalta a liberdade individual contra as convenções sociais. Encenada em 1782, a
peça foi um marco da rebelião romântica, arrancando gritos selvagens da plateia, precipitando
desmaios e intenso furor. Seu autor foi punido com prisão e proibição de escrever.

51
COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. A poesia
selvagem e de possessão de Roberto Piva. Entrevista concedida a Ademir Assunção, em abril de 1991.
52
PIVA, Roberto. Piazzas (vol. I, p. 129).
25

Aqui há uma ruptura da qual Piva é visceralmente continuador. O repúdio ao classicismo


com a figura do artista de gabinete que cultua a virtude moral nos marcos de uma cultura
conservadora. Uma arte cerebral, impregnada dos bons costumes e do bom senso, limitada no
equilíbrio e harmonia da presunçosa razão. É o poeta que não caiu na vida, o brocha, a favor do
instinto de morte, submetido aos leões de chácara da cultura e frequentador do chá das cinco,
que tanto Piva satiriza. A eles o poeta-bruxo responde com agressividade: precisamos de poetas
perseguidos pela polícia!

Com o romantismo, o poeta deixa de se ajoelhar à ordem estabelecida, comprazendo-


se com o elemento perturbador, que cinde, fragmenta, desconcerta. O desajustado, o louco, o
selvagem passam a ocupar o centro da atividade artística. Em detrimento do bem comum sob
qualquer bandeira coletivista, surge a erupção violenta dos desejos individuais. A rebelião
romântica foi criada pelo sujeito subversivo. A desobediência incentivada, a ilegalidade exaltada
foram marcos de uma poética com feições libertárias. Não era já o crime no centro da criação
poética?

8. Corpo elétrico possuído por todos os fora da lei. O jovem pederasta gingando seu corpo ágil
em meio à multidão citadina. A fusão com todos os desvalidos, rejeitados e criminosos. Ao final
da perambulação, deita suas barbas longas nas folhas de relva, dissolvido na natureza, com seu
corpo elétrico entregue ao amor com qualquer desconhecido. Whitman (1819-1892) e sua
cumplicidade com os marginais:
53
.

A poesia aberta às vozes proibidas, como receptáculo de toda sorte de sujeitos que a
sociedade se esforça por esconder e eliminar. Esta mesma cumplicidade se torna aguda em Piva:

fora da lei e todos os desajustados, / Não existe um gangster juvenil preso por roubo e nenhum
54
louco sexual que eu / não acompanhe para ser julgado e .

Percebam: trata-se de Piva em sua primeira publicação individual, uma longa tira de
papel distribuída nos bares de São Paulo, intitulada Ode a Fernando Pessoa (1961). Aqui, antes
de manifestações similares da arte e criminalidade/marginalidade, característica da década de
1960, o poeta já tem delineadas as linhas orientadoras de sua poética de desorientação.

Além de Whitman, a Ode embarca Piva no cruel convés dos piratas de Álvaro de
Campos-Fernando Pessoa (1888-1935). Sua cópula criminal, na batida violenta de espuma e
fúria, esparrama saques, estupros, violações e demais atrocidades. O poeta-pirata desbravou

9. Poesia roubada: criação como apropriação indébita. Os Cantos de Maldoror

humanidade e sua moral. A poética criminosa que atrela criação, loucura e maldade de maneira
inaudita. É possuído por Isidore Ducasse (1846-187

53
WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. (tradução Rodrigo Garcia Lopes). São Paulo: Iluminuras, 1855/2008.
p. 105.
54
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa (vol. I, p. 24)
26

nuvens coçavam os bigodes enquanto masturbavas colérico sobre o / cadáver ainda quente de
55
.

metamorfose de todos elementos rumo ao caos. A mesma metamorfose se opera em várias


direções, coabitando o mesmo núcleo: o crime que subverte a ordem, ao lado da loucura que
se apossa do poeta, vinculada à subversão da própria linguagem.

Lautreamont expande a afirmação da poética do crime como subversão do real pela


poesia. O crime é criação com o roubo, o plágio, a perversa paródia de textos e frases de outros
autores. A criação poética é crime autoral. São deliberados furtos de textos, inversão de
enunciados e mesmo falsificação de passagens consagradas, criando um sentido novo:
metamorfoseado e inusitado.

O estudo da intertextualidade em Piva é um grande enigma, entrevisto por diversos


estudiosos (vide Cláudio Willer e Marcelo Antonio Milaré Veronese, por exemplo). Vários versos
são apropriados de outros autores, com acréscimos de sentidos ou mesmo expansão de
criações, como a passagem acima de Whitman-Piva. Não seria novamente o crime como motor
da criação poética que move Piva, grandemente influenciado por este Anjo Negro que
revolucionou a criação poética? Ou o poeta ladrão encarna com tanta vivacidade o que lê,
transforma com tanto vigor a letra em sangue, que já não se sabe bem quem é seu verdadeiro
autor? Ou seria, por fim, como Lautreamont: sinal da derrocada da autoria individual, o
assassinato do autor?

10. Vidência do grande criminoso: tempo dos assassinos. O grande vagabundo do Oriente,
aventureiro do paradoxo, caminhando em andrajos no meio de mendigos, entre abissais porres
de absinto. O multiplicador do desconhecido, em seu elemento mais natural: o escândalo
como aquele em que recebe tiro de Verlaine, em uma de suas discussões amorosas.

Há poucos poetas como Rimbaud (1854-1891) que conseguiram criar uma poesia tão
original e sistematizá-la em método/sistema tão explícito. Em sua famosa passagem sobre o

entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito

Estes são os toques do inferno que Piva


violador da língua, das leis, dos comportamentos estereotipados. É o grande doente e cheio de
saúde ao mesmo tempo, anunciador de tempestades, ladrão de fogo celeste e aliado dos
deuses, bandidos, bandido, bruxo,
56
.

Sua alquimia do verbo, a sagração da desordem de seu espírito, era já a disseminação


da desordem no espírito de seu tempo. Era já o tempo dos assassinos.

11. Poética pagã: ave de rapina que semeia discórdia. O jovem Piva precipitado no abismo.
Estupefato e febril. Esta é sua descrição da leitura de Genealogia da Moral. A tresvaloração de

55
PIVA, Roberto. Paranóia (vol. I, p. 48)
56
COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. A quizumba
poética de Roberto Piva. Entrevista concedida a Pepe Escobar, em outubro de 1983.
27

todos os valores, enxergando com desconfiança tudo o que se considerava bom e enobrecendo
instintos dantes tidos como malditos. Piva foi acometido por um profundo impacto: os duros
golpes da filosofia do martelo consolidaram no abrasado poeta sua força e intensidade. Sua
vontade de poder, o paganismo para além do bem e do mal, sua poética do prazer no destruir.
Aqui também a infração no centro da criação, o assassinato necessário para o nascimento do
ietzsche.

A perspectiva histórica de Nietzsche (1844-1900) a tudo vira do avesso. O bem-estar, a

vergonhoso e desprezível: é a moral do escravo, da negação da vida, que reduz o homem ao ser
domesticado e civilizado.

Em detrimento da moral do escravo, Nietzsche afirma a moral do senhor: o guerreiro,


ativo, audacioso e violento. Seu símbolo é a ave de rapina, que vadia selvagem, rebelde, livre e
nômade. Por onde passava de

intensidade e volúpia, dedicando-se a festas e danças, venerando os deuses pagãos que


fortaleciam
advinda desse instinto de liberdade.

57
criminoso são artistas o bastante para reverte .

Certa feita, Piva perguntou ao filósofo e amigo Vicente Ferreira da Silva sobre quais os resquícios
atuais do mundo pagão, dada nossa dificuldade em sequer olhar de soslaio para esse universo.
Vicente respondeu: o erotismo e o carnaval, ao que Piva acrescentou: no candomblé (vide filme
Assombração Urbana, direção de Valesca Dios). Hoje podemos sem dúvida colocar na lista a

58
semeado .

12. Metralhadora em estado de graça.


simples consiste em sair à rua empunhando revólveres e atirar a esmo, tanto quanto for possível,
59 60
. .

Se não é o medo da loucura que fará o surrealista hastear a meio-pau a bandeira da


imaginação Artaud que o diga! não é o medo da prisão que o fará hastear a bandeira da
agressividade a meio-pau. Roberto Piva respondeu à altura a incitação surrealista da intensidade
da vida sob a forma da violência. Sua bandeira não mais tremulou no mastro, mas extrapolou-
o, vadeando solta pelo ar tal como aquele papagaio empinado pelo adolescente moreno e
antropofágico.

57
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. (tradução Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia
das Letras, 1886/2005. p. 66.
58
PIVA, Roberto. Coxas sex fiction & delírios (vol. II, p. 67).
59
BRETON, André. Segundo Manifesto do Surrealismo (1930). Em: BRETON, André. Manifestos do
Surrealismo. (tradução Sergio Pachá). Rio de Janeiro: Nau, 2001. p. 155.
60
PIVA, Roberto. Ciclones (vol. III, p. 75).
28

Mas,
61
. É assim que a poesia criminal de Piva só
pode ser entendida como uma revolta pessoal não vinculada a qualquer movimento coletivo,
seja artístico ou político. Mas há estilhaços da explosão surrealista na furiosa poesia de Piva,
similar ao que ocorreu na g - do surrealismo português, tal como
denominada por Antonio José Forte. Veja a poesia criminal que arde nos dedos queimados de
Herberto Helder: poesia contra todos: abriu ele fogo contra o surrealismo?

13. Poética da transgressão: elogio à lei? A presença de Bataille (1897-1962) na poesia de Piva
remete à transgressão, à poesia fora da lei. Essa feição de subversão inerente à poesia exala o
suor efervescente da liberdade, do desfilar sarcástico do elemento caótico. Liberdade e
desordem que dependem, paradoxalmente, da lei e da ordem. O avesso do interdito. O par
necessário da proibição: a violação. A existência da lei se justifica pelo prazer da transgressão.

Em outras palavras, a lei é apenas um artifício malicioso arquitetado pelo crime para
amplificar seu gozo. O crime mais violento, o assassínio e a morte, tudo o que põe a vida em
perigo, traz consigo o prazer mais intenso. A vida é tão mais intensa quanto mais rigorosa é a lei
que transgrede.

contraste com a virtude, o Bem. Pois este último, com sua moral, lógica e formalismo, não abarca
o humano. A aventura humana não prescinde do crime, do irracional, do imoral. Aí está o cerne
da poesia: o transe originado do arrebatamento das paixões irresponsáveis. A vivência do
crime/transgressão alimenta o jogo da vida como luta e contraste. Se a lei impõe o limite, o
crime em Piva é esse movimento de gozar do (com o) limite. Não a vida ilimitada, o que não
seria possível, mas levar a vida no limite mesmo do impossível.

14. Tesão pelo crime. Órfão aos cuidados do Estado, rifado em reformatórios e crivado pelas
torturas de diversas prisões. O Diário de um Ladrão remonta os vazios da fome, a face indigesta
da miséria, o vadiar a esmo do mendigo em andrajos. Piedade? Compaixão?

Jean Genet (1910-1986) não as tem para nós. Sua carreira na bandidagem é seu caminho
para a perfeição moral, a santidade. Suas peripécias no roubo, na prostituição ou no tráfico, são
seus sinais de grandeza. São magia. São poesia.

A vivência no mundo do crime por puro tesão. Pois o crime alcança a ignomínia e a
turbulência de sentimentos somente similar ao estado que o amor precipita os homens. O
erotismo e a vibração trazidos pelo perigo, o gozo que advém audácia, a excitação dos corpos
tudo o que
tinha de mais precioso: sua homossexualidade e traição.

A poética do crime que nos deixa espreitar é criação de um mundo, uma moral e uma estética
como Genet se refere. Aquilo que a sociedade despreza é
motivo de orgulho. Uma moral inversa, ébria de abjeção. Todos os sinais de sordidez, os atos

61
COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. Autobiografia,
publicada em 1985.
29

62
.

Genet, grande criminoso e vítima de criminosos, toda uma vida e arte que alcançam no

O gosto pela pederastia e traição, já presente na Ode; o tesão pelos garotos dos
subúrbios, seja os roqueiros que o poeta revelou quando era promotor de shows, seja os jovens
alunos que aliciava em sua época de professor nas periferias da cidade, passando pelos seus
famosos relatos da sauna gay que frequentava. Como Jean Genet, Piva também não se
entregava apenas à poética do crime, mas ao próprio criminoso.

15. Hipsters com cabeça de anjo. Piva e sua transa com a Geração Beat. Perigoso coquetel:
juventude, poesia, erotismo e delinquência. A crítica burra aos beats
medo. A puritana sociedade norte-americana cagava nas calças em pensar na virulência desse
modo de vida transgressor, tachando rapidamente a beat como sinônimo de delinquência
juvenil. Ledo engano. Tal associação apenas incentivou mais a juventude ávida da grande
aventura, do gozo sem limites, estampado nas vestimentas e comportamentos. O hino desta
geração, o grande Uivo, versa as extremas situações sublevadoras: as detenções por porte de
drogas; as internações manicomiais; a cabeça estilhaçada no pilar do metrô ao colocar a cabeça
para fora do vagão, triste fim de William Cannastra, o mesmo que se gabava de ter mordido um
policial na orelha; entre tantas outras.

Herói da Beat, Neal Cassady, ninfomaníaco tremulando por sexo a quinhentos por hora.
Gaba-se de roubar o primeiro carro aos 14 anos e ter acumulado mais de 500 com pouco mais
de 20 anos. A brincadeira de Guilherme Tell, com qual William Burroughs matou sua
companheira. A própria expressão beat, atribuída ao delinquente e traficante Herbert Huncke.
A poética beat tecida com os fios fortes do crime.

Veja Gregory Corso, delinquente criado em orfanatos. Menino de rua que entrou em
cana por roubo. Na prisão identificou seu modo de ser com a poesia, decidindo ser poeta. O
mesmo Corso que, ministrando oficinas na Jack Kerouac School of Disembodied Poetics, na
Naropa University

16. Crime e criação. Crime e poesia em Piva: diversidade de sentidos. Poesia sobre o crime, para
o crime e pelo crime. O próprio crime e o criminoso como poéticos. A criação poética como
crime autoral: assassinato do autor. A espontaneidade criadora levada à intensidade no perigo,
na contravenção.

Resta ainda dizer algo sobre o crime e a poesia. Vadiar pelos sentidos do crime na poesia
de Piva é trilhar alguns caminhos e desconhecer outros tantos. Nesse jogo gratuito daquilo que
se revela e do que se oculta, a face do enigma permanece fabulosa, embora com outros traços.
Encarar estupefato a esfinge. É disso que se trata. Ser devorado pelo monstruoso leão e
alimentar em suas entranhas a beleza do Mistério.

62
GENET, JEAN. Diário de um ladrão. (tradução Jacqueline Laurence e Roberto Lacerda). Rio de Janeiro:
Nova Fronteira: 1949/2005). p. 16.
30

Aos viajantes vagabundos, alguns enigmas.

Que relação há entre as investidas de Piva e as figuras anti heróicas do modernismo

O que dizer da década de 1960, que teve na criminalidade/marginalidade seu espaço


transgressor de experimentação e criação de uma arte que espancou furiosamente os valores
burgueses e a primazia do mercado?

Pense nas figuras subversivas do Cinema Novo com seu elogio ao banditismo no cerne da
formação cultural brasileira. O tremor da terra em transe ou a transa de Deus e o Diabo na terra
do sol. Ou mesmo os anjos do cinema da Boca do Lixo, ambiente que Piva frequentou e sobre o
qual escreveu, com seu elogio ao sexo, crime e malandragem. Já no final de 60 vemos, como

cinema: Lúcio Flávio (1977) ou Madame Satã (2002).

Nas artes plásticas o marginal e anárquico Hélio Oiticica alia de maneira explícita o

autêntica, em contraposição aos falsos valores sociais

de Ruth Escobar.

A presença da malandragem na música brasileira é sacanagem. Tal como o ambiente de


libertação do jazz norte-americano (penso em sua relação com os beats), o samba e suas
ramificações dão conta de traços de criminalidade inerentes à nossa tradição musical. Veja, por
exemplo, os audaciosos versos de Wilson Batista (Le
lado / Tamanco arrastando / Lenço no pescoço / Navalha no bolso / Eu passo gingando / Provoco

por Chico Buarque, na música e no teatro, e por aí em diante.

Até no âmbito da luta política: veja a proliferação das guerrilhas de esquerda durante essa
década. A gênese do próprio Comando Vermelho tributário dos manuais de guerrilha urbana.

Na poesia, literatura, cinema, teatro, música e artes plásticas, especialmente na década


de 1960, crime e criação artística são cúmplices inveterados. Se Piva não teve um papel pioneiro
nessa cumplicidade, pelo menos participou ativamente do processo. Seria a década de 60 o

Piva nesse contexto?

E o que podemos dizer do momento atual, em que Piva via a massificação da criminalidade
em torno dos valores burgueses?

Se Piva não foi marginal, mas marginalizado, tendo sua poética criminalizada pela
sociedade de então, fez dessa criminalização o combustível de sua criação poética. Mas sua
poética do crime não possui apenas esse lado reativo, de contra-golpe: Delinquência sagrada
dos que vivem situações-limite / É do Caos, da Anarquia Social que nasce a luz enlouquecedora
31

da Poesia / Criar novas religiões, novas formas físicas, novos anti-sistemas políticos, novas
63
.

Não apenas o crime como criação artística, mas como invenção de novas formas de vida.

PS: Alcir Pécora entende que a poesia de Piva precisa de mais estudo e menos torcida,
mesmo tendo o próprio poeta incentivado o leitor a verter em sangue sua poesia, além de
entender que uma pesquisa acadêmica mataria sua virulência. Dilacerar a pena no próprio corpo
e escrever com a tintura do sangue ainda fresco das experiências pessoais subversivas, como
fazia Sade, talvez seja um caminho.

63
PIVA, Roberto. Manifesto da selva mais próxima (vol. II, p. 149).
33

A poética de Roberto Piva nos Manifestos de 196264

Roberto Piva experimenta uma vida poética radical. Seja pela insurreição constante
contra toda e qualquer autoridade, seja afirmação da vida subversiva encharcada de sexo,
drogas e crimes, é essa poética o vórtice seminal de sua criação. É essa poética transgressora
que encantou jovens gerações de novos poetas e foi responsável pela boa recepção da poesia

rebeldes & malditos em torno da editora L&PM, nos anos ´80; seja pelos selvagens da Revista
Azougue, na década de 1990.

Em diversos momentos de sua produção literária, o próprio Roberto Piva se debruçou


sobre sua poética. Materiais como Postfácio de Piazzas (1964), A Política Poética (1979),
Posfácio de 20 poemas com brócoli
utópico-

arte e vida que irradia especialmente para os aspectos eróticos, políticos e místicos. Em todos
eles, os volteios de uma verve criativa enraizada numa constante re-criação do fazer poético.
Re-criação esta advinda de uma leitura crítica do contexto histórico e atenta ao papel do poeta
na sociedade contemporânea.

Daí ser a poética subversiva dos temas mais contagiantes em Roberto Piva. O marginal

65
. É o mesmo aspecto ressaltado na apresentação da Antologia Poética de

66
. Neste mesmo ano, Bonvicino diz que Piva
a própria poesia. Da poesia libertadora, que sai do papel para
67
ter existência real no dia-a- .

Além da recepção criativa por gerações de poetas mais jovens, elementos da poética de
Roberto Piva também serão dos mais estudados em pesquisas científicas, a exemplo de Carlos
Felipe Moisés68, em seu Vida Experimental, e da recente pesquisa de Fabrício Clemente69,
Estilhaços de visões .

poética. Eis o convite: percorrer os Manifestos de 1962 no contexto do primeiro esboço da


poética de Roberto Piva. Para tanto, utilizarei as próprias referências que o poeta evoca em

64
Publicado originalmente no Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, 13. ed., jun. 2015, pp.
139-177.
65
COHN, Sergio. Nuvem Cigana: poesia e delírio no Rio dos anos 70. Rio de Janeiro: Beco do Azougue,
2007. p. 102.
66
L&PM. O profeta da desordem. Em: PIVA, Roberto. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM, 1985.
67
BONVICINO, Régis. O boêmio Piva não tem papas na língua. Folha de São Paulo, 02.06.1985.
68
MOISÉS, Carlos Felipe. Vida experimental. Em: ______. O desconcerto do mundo: do renascimento ao
surrealismo. São Paulo: Escrituras, 2001. pp. 301-320.
69
CLEMENTE, Fabrício Carlos. Estilhaços de visões: poesia e poética em Roberto Piva e Claudio Willer.
Dissertação de Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
34

como gênero literário, bem como seus ecos coletivos

1. Bílis, bules & bolas

O Teatro de Arena era um dos pontos de encontro da juventude paulistana no início da


década de 1960. Havia um espaço no teatro para debate de ideias, recitação de poemas e
demais manifestações culturais. O jovem Piva toma a palavra. Esbraveja extasiado Bílis, Bules &
Bolas, sob aplausos. O manifesto forma um conjunto com textos de março de 1962 que foram

nizada pela L&PM, em 1985.

Bílis, bules & bolas


Nós convidamos todos a se entregarem à dissolução e ao desregramento. A
Vida não pode sucumbir no torniquete da Consciência. A Vida explode sempre
no mais além. Abaixo as Faculdades e que triunfem os maconheiros. É preciso
não ter medo de deixar irromper a nossa Alma Fecal. Metodistas, psicólogos,
advogados, engenheiros, estudantes, patrões, operários, químicos, cientistas,
contra vós deve estar o espírito da juventude. Abaixo a Segurança Pública,
quem precisa disso? Somos deliciosamente desorganizados e usualmente nos
associamos com a Liberdade70.

O manifesto traz a visão de mundo de um grupo. Não trata apenas de questões


artísticas, mas eminentemente políticas. A dissolução e o desregramento contra a consciência.
Em dois importantes balanços de sua poesia, os posfácios de Piazzas e 20 poemas com brócoli,
Piva irá utilizar a expressão da famosa passagem de Arthur
Rimbaud. É a vidência a partir do êxtase; a sagração da desordem do espírito despido de
consciência disperso em forças estrangeiras.

Na Carta do Vidente,

, como entre os gregos; e uma poesia


ornamental, como m
e outra como entretenimento cerebral.

vidência como atributo daquele que leva uma vida experimental e maldita:
Digo que é preciso ser vidente, se fazer vidente. O Poeta se faz vidente através
de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos. Todas
as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura ele mesmo, ele
esgota nele todos os venenos, para só guardar as quintessências. Indizível
tortura onde ele precisa de toda fé, de toda força sobrehumana, onde ele se
torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito e
o supremo Sábio!71

70
PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 137.
71
RIMBAUD, Arthur. Carta dita do Vidente. Em: _____. Rimbaud por ele mesmo. (Daniel Fresnot, trad.).
São Paulo: Martin Claret, 1871/s.d. p. 109.
35

O poeta-vidente se lança a uma experimentação de todas as forças da vida em seu

ao crime; é chamando para si a esfera do Mal que conquista a sabedoria. É o poeta maldito.

A partir da experiência do desregramento, o poeta consegue mudar a vida de sua época,

dos novos modos de


72
estará na frente . Em outras palavras,
o poeta-vidente se arrisca a experimentar novas possibilidades de viver até então desconhecidas
e, exatamente esta experiência, o coloca numa posição subversiva em relação aos seus
contemporâneos, mas também à frente de seu tempo. O poeta vive e vê além da moral de sua
época. Daí a vidência.

A via política da maldição é ousada. No manifesto de Roberto Piva, o desregramento e


a dissolução são con numa época imersa na política de esquerda
basead star consciente das contradições
econômicas e políticas do modo de produção capitalista e agir a favor de uma revolução social
era o pensamento em prática. Inclusive aquele de Boal, Guarnieri, Eduardo Alves da Costa e os
jovens comunistas do Teatro de Arena.

Num momento em que todos apregoavam a consciência de classe via razão crítica e
compromisso coletivo, falar em conhecimento pelo delírio e o desregramento de todos os
sentidos?

novamente a Rimbaud, mas não só ele. É frase similar àquela que encerra o Manifesto
73
Surrealista de . A partir dela, Breton e
companhia travam sua batalha contra a captura do real pelo naturalismo racionalista. O além
da vida, seu outro lado, não é fora da vida, mas uma outra possibilidade de viver: a imaginação,
o sonho, o suspiro desconcertante do sagrado. É a vida em estado poético, na fusão do real e do
imaginário, a verter surrealidades. É a vida como devir do maravilhoso. Daí a rebeldia furiosa.
Repudia-se o mundo frio da consciência atolada na razão e na moral que já não vê a eclosão do

associação livre de experiências que não cabe na lógica do princípio de realidade.

Mas a frase de Breton se refere à Rimbaud e sua Temporada no Inferno

misteriosas me tinham seduzido. Esqueci qualquer dever humano para segui-lo. Que vida! A
74
verdadeira vida está ausente. N
aí o lema do
surrealismo, junto ao transformar a sociedade de Karl Marx. A Viúva fala que está morta para o
mundo. Deve-se entender bem essa morte: é esquecer todo dever humano, as leis e costumes

ditadura desta única possibilidade de realidade e mudar a vida. Daí o inferno, a morte para o
mundo. É a morte do cidadão membro da comunidade e todos seus papéis sociais e obrigações

72
Ibidem, p. 113.
73
BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. (Sergio Pachá, trad.) Rio de Janeiro: Nau, 2001. p. 64.
74
RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no inferno. 2. ed. (Paulo Hecker Filho, trad.). Porto Alegre: LP&M,
1873/2007. p. 51.
36

morais. Com a morte desse sujeito social surge a mudança da vida. É a morte com feições
iniciáticas, pois pare o novo homem e o novo mundo.

rituais arcaicos de incisões no corpo e do sangue sorvido. É assim que evade do mundo com sua

Os esquerdistas de plantão dirão: esteticismo! Escapismo! Estão cobertos de razão.


Razão: quem se importa com ela? O quebra-quebra dos surrealistas nas organizações
revolucionárias dão a medida da dificuldade de conciliar os desregramentos de Rimbaud com a
revolução inspirada em Marx. Mas essa é outra questão...

O manifesto segue-se com um sarro às instituições oficiais de ensino e suas respeitáveis


profissões. -oficial, no ilegal, no
subversiv
pressionada pelos controles da educação e do trabalho.

Refuta-se não apenas diversas profissões em passagem que também lembra


75
Rimbaud mas a categoria econômico-política do operariado: o agente da revolução social.
com reconhecida mobilização
revolucionária. Roberto Piva aposta na Juventude, mas não aquela universitária ou ligada às
instituições políticas sejam partidos ou movimentos sociais.

Se fica clara a influência de Rimbaud e do surrealismo, deixar fluir a Alma Fecal retoma
a dissidência de Antonin Artaud. Aquele mesmo que rompeu com o surrealismo oficial após
adesão deste ao Partido Comunista. Aquele mesmo que, na própria opinião de Breton, levou a
aventura surrealista às últimas consequências.

A alma fecal e a poesia fecal são temas de carta escrita por Artaud no manicômio de
Rodez, datada de 6 de outubro de 1945. Trata-se de correspondência com Henri Parisot, sobre
os preparativos para a publicação de Viajem ao país dos Tarahumaras, em que Artaud fala de

Sou poeta ou ator não por escrever ou declamar poesias, mas por vivê-las.
Quando recito um poema não é para ser aplaudido, mas para sentir os corpos
de homens e mulheres, disse corpos, agitarem-se e girarem em uníssono com
o meu, transformarem-se como se transforma da obtusa contemplação do
buda sentado com pernas cruzadas e sexo livre, à alma, isto é, à
materialização corporal e real de um ser integral de poesia [...] Este século
não compreende a poesia fecal, o intestino miserável, aquilo que, Madame
Morte, desde o século dos séculos sonda as colunas da morte, sua coluna anal
da morte, no excremento de uma sobrevivência abolida, cadáver também de
seus eus abolidos, e que pelo crime de não ter podido ser um ser, tem que
cair para se sondar melhor o ser, neste abismo da matéria imunda e, aliás, tão
gentilmente imunda onde o cadáver da Madame Morte, da madame uterina
fecal, madame ânus [...] O corpo diz, enterrado de ser: a alma cai, fecal como
um excremento, e se amontoa em seu excremento. [...] Eu sou cu, disse o
homem da vida para significar o que está no fundo de sua morte, que o
prateado do espelho de sua alma é um abismo atravessado por ele. [...] Viver

75
-se me entregando à justiça. Nunca fui deste povo, nunca fui
cristão; sou da espécie que cantava no suplício; não conheço as leis; não tenho senso moral; sou um
Uma Temporada no inferno, op. cit., p. 31.
37

é eternamente sobreviver remoendo seu eu de excremento, sem nenhum


medo de sua alma fecal, esta força faminta de sepultamento 76.

Bílis, Bules & Bolas. O que vem a

Em primeiro lugar: ser poeta é viver poesia. Senti-la contagiar os corpos e liberar toda a
energia sexual e mágica. Essa poesia corporal é interditada pela sociedade e morta. É a poesia
sexual descartada como excremento, defecada pela alma; o devir do corpo em morte rejeitado
pelos séculos a fio. A rejeição do corpo o torna matéria imunda do excremento, a alma fecal; a
rejeição da poesia vivida sexualmente a torna poesia fecal; e a rejeição do poeta o torna louco
trancafiado em manicômio. A poesia corporal lida com essa matéria rejeitada: poesia fecal. O
poeta se lança nessa matéria imunda, nos devires do corpo, e daí sonda melhor a vida. A
passagem pela morte é via mágica de renascer para nova vida. Artaud aceita o peso do corpo, o

poesia.

Roberto Piva e seus amigos experimentam essa poesia vivida como contágio sexual dos
corpos. Sem o medo das pulações do corpo, sem medo da repressão social, sem medo da
maldição ao poeta.

de anarquia. Ou seja, ao refutar as bases políticas da revolução social colocam-se as coisas sob
modo anárquico. Anárquico, não anarquista. Desorganizados e livres. Aqui a tacada final.
Desorganizados: sem participar da instituição do partido, do movimento social, do movimento
artístico. Combate-se, assim, outra base importante dos partidários da luta de classes: a
organização popular. Se o caminho marxista da consciência de classe e organização popular é
criticado, o objetivo moderno da Liberdade é mantido. Alguma semelhança com o lema

e orgia (ou entre gozo e vidência), que forma o ponto seminal da poética de Roberto Piva em
Piazzas e sua

Chama atenção no texto sua composição plagiária a partir de colagens. Cada frase se
abre a presença de intertextos, num verso ventilado por outras leituras. É característica
marcante não apenas dos Manifestos de 1962, mas de toda produção poética de Roberto Piva:
radicalmente vivida e abertamente erudita.

Exatamente por fincar raízes radicais na poesia como forma de viver, manifesta-se uma
visão de mundo e um modo de ser. Um modo de ser dissidente no âmbito do contexto político
da época, em especial com relação às formas mais comuns de enfrentamento dos dilemas do
contexto histórico. A partir da leitura crítica da realidade, se aposta no delírio; a partir da crítica
à consciência, se aposta no desregramento; a partir da crítica às instituições políticas, se aposta
na desorganização deliciosa.

76
ARTAUD, Antonin. Lettres de Rodez. Em: Oeuvres completes, v. IX. Paris: Gallimard, 1945/1979. p. 161-
163.
38

Minotauro dos minutos


Os pontos cardeais dos nossos elementos são: a traição, a não-compreensão
da utilidade das vidraças, a violência montanha-russa do Totem, o
rompimento com os labirintos e nervuras do penico estreito da Lógica, contra
o vosso êxtase açucarado, vós como os cães sentis necessidade do infinito,
nós o curto-circuito, a escuridão e o choque somos contra a mensagem lírica
do Mimo, contra as lantejoulas pelos caracóis, contra a vagina pelo ânus,
contra os espectros pelos fantasmas, contra as escadas pelas ferrovias, contra
Eliot pelo Marquês de Sade, contra a polenta pelo ragu, nós estamos
perfeitamente esquizofrênicos, paranoicamente cientes de que devemos nos
afastar da Bandeira das Treze Listas cujos representantes são as bordadeiras
de poesia que estão espalhadas por toda a cidade77.

Minotauro dos minutos traz a imagem mítica do monstro associado ao tempo que
escorre. A um tempo que escorre e nos assalta, nos devora, naqueles penicos estreitos da Lógica.
Nos devora nas responsabilidades, no trabalho, na família. As instituições de sequestro que
linearizam um tempo a ser destinado à conservação da ordem estabelecida.

Trata-se de um manifesto que enfoca a questão artístico-literária, em especial a crítica

ão os elementos essenciais de nossa


78
. Os futuristas e seu ímpeto furioso de destruição das velhas instituições. Mas os pontos
cardeais dos paulistanos destroem de início o vínculo a um projeto estético comum: a traição.
Colocam de cara um elemento imoral, também presente na Ode
simples prazer de traí- e criminosos

79
. Em seu Diário de um ladrão, o poeta e bandido enaltece a traição como valor
fundamental na vida do crime, pois concretiza a autonomia de cada ladrão e sua insubmissão a

-
80
ainda reencontrar- . A traição é o ponto da liberdade de amar a partir da
81
transgressão da moral que se impõe ao amor o romper .

Como ponto cardeal de um grupo, a traição enfoca a insubmissão individual e a criação


de um modo de vida particular. Novamente aqui o manifesto repudia a organização coletiva em
nome do individualismo, mas agora associado a uma característica de ladrões. É no bando de
criminosos que o grupo encontra o exemplo para sua deliciosa desorganização.

77
PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça, op. cit., p. 135.
78
MARINETTI, Fillippo Tommaso. Manifesto futurista (1909). Em: BERNARDINI, Aurora Fornoni (org.). O
futurismo italiano: manifestos. São Paulo: Perspectiva, 1980. p. 32.
79
GENET, Jean. Diário de um ladrão. (Jacqueline Laurence e Roberto Lacerda, trad.). Rio de Janeiro: Nova
Fronteira: 1949/2005. p. 151.
80
Ibidem, p. 26.
81
Ibidem, p. 133.
39

Se trai e se quebram vidraças, atitude tipicamente subversiva de esculhambação. Mas


também se quebram as redomas de vidro que encarceram as pessoas e suas ideias. Se quebram
vidraças para ventilar os espaços.

82
. Aqui Roberto Piva e comparsas se propõem ao movimento violento do Totem que

trabalho e demais apanágios da civilização, a favor do totem, do matriarcado, do ócio, da


liberdade sexual similar às comunidades tribais que viviam em Pindorama antes da colonização
nunca
diz o mesmo manifesto de Oswald.

É o próximo elemento de Minotauro dos Minutos


em
no contexto de crítica à lógica pelo movimento antropofágico, os termos trazem semelhanças
es das
publicada no terceiro número de 1925 da revista La Révolution
Surréaliste:

Senhores Reitores,

apodrecem como palha.


Chega de jogos da linguagem, de artifícios da sintaxe, de prestidigitações com
fórmulas, agora é preciso encontrar a grande Lei do coração, a Lei que não
seja uma lei, uma prisão, mas um guia para o Espírito perdido no seu próprio
labirinto. Além daquilo que a ciência jamais conseguirá alcançar, lá onde os
feixes da razão se partem contra as nuvens, existe esse labirinto, núcleo
central para o qual convergem todas as forças do ser, as nervuras últimas do
Espírito. Nesse dédalo de muralhas móveis e sempre removidas, fora de todas
as formas conhecidas do pensamento, nosso Espírito se agita, espreitando
seus movimentos mais secretos e espontâneos, aqueles com caráter de
revelação, essa ária vinda de longe, caída do céu [...] Em nome da vossa
própria lógica, voz dizemos: a vida fede, Senhores. Olhem para seus rostos,
considerem seus produtos. Pelo crivo dos vossos diplomas passa uma
juventude abatida, perdida83.

A universidade, a ciência e sua lógica contra o Espírito, a juventude passagem similar


Bílis, Bules & Bolas. A estreita cisterna (citerne étroite)
do pensamento que não alcança o labirinto do espírito e suas nervuras. Roberto Piva utiliza as
mesmas palavras com significado similar: romper com os volteios falsificadores e superficiais da
s números.
Vamos ao Espírito 84.

82
ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropofágico. Em: ______. A utopia antropofágica: antropofagia ao
alcance de todos (vol. 6, Obras Completas). São Paulo: Globo livros, 1928/1990. p. 48.
83
ARTAUD, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 27-
28.
84
RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no inferno, op. cit., p. 25.
40

A partir daí, Piva lança mão de expediente comum aos manifestos Dada de Tzara e ao
Manifesto Antropófago de Oswald: contra algo por outro. São séries de oposições que
tura intransigente com a tradição,
que se faz valer mais da sátira e da cólera que da precisão. Se por um lado tal procedimento
acaba por criar uma dicotomia insuperável, refletindo o maniqueísmo presente naqueles
tempos; por outro, ressalta a necessidade desesperada de distanciar-se de valores estabelecidos
como via de acesso a novas formas de vida e expressão. É nessa ruptura temporal (contra a
tradição do passado) e espacial (contra os modos de vida convencionais do presente) que o
manifesto beira aspirações vanguardistas daí seu diálogo com manifestos das vanguardas do
início do século XX.

85
. Essa arte das obras encarceradas pelos muros da
contemplação no extremo oposto da poesia vivida em Artaud ou do lema surrealista de
e da produção da poesia
brasileira da época, especialmente a metafísica epifânica dos rilkeanos. Bem diferente do êxtase
dionisíaco, por exemplo, cravado na dissolução do eu, no terror, no violento, no grotesco.

A imagem dos cães com sede do infinito vai nesta mesma linha em diálogo com
Lautreamont. Infinito como abstração, como aspiração metafísica de iluminação contrária a
elementos terrenos -

No primeiro Canto de Maldoror, o clarão da lua assiste cães furiosos que rompem suas
correntes e caminham enlouquecidos pelos campos. Exaustos, na soleira da morte, passam a

86
. E voltam a correr tomados pela raiva, espalhando o medo em todos outros

precipitam-se uns sobre os outros, sem saber o que fazem, e se estraçalham em mil pedaços,
87
com uma rapidez incrí . É então que Lautreamont apresenta a seguinte passagem:

tua cama, e ouvires os uivos dos cães no campo, esconde-te sob teu cobertor,
não aches graça no que fazem: eles têm a sede insaciável do infinito, como
tu, como eu, como o resto dos humanos de rosto pálido e comprido. Até
mesmo permito que fiques diante da janela para contemplar esse espetáculo,

como os cães, sinto a necessidade do infinito... Não posso, não posso


satisfazer essa necessidade! Sou filho do homem e da mulher, ao que me
dizem. Isso me espanta... acreditava ser mais! De resto, que me importa de
onde venho? Se dependesse da minha vontade, teria preferido ser antes o
filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre,
cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau88.

85
MARINETTI, Fillippo Tommaso. Manifesto futurista, op. cit, p. 32.
86
LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror. 2. ed. (Claudio Willer, trad.). São Paulo: Iluminuras,
2008. p. 81.
87
Ibidem, p. 82.
88
Ibidem, p. 82-3.
41

Há o contraste dos cães famintos e furiosos da primeira passagem em relação àqueles


com sede do infinito em sublime espetáculo. Uma das interpretações desta passagem é pensá-
la como crítica ao humanismo bem ao modo de Ducasse. Os lobos selvagens se matam
mutuamente tamanha selvageria que os incita, passam a ser vistos idealmente com uma sede
abstrata do infinito? A negação das necessidades viscerais pelos anseios sublimes. Lautreamont
não deixa dúvida: a passagem se conclui com a recusa da filiação humana, da sede do infinito,
pela filiação animal e selvagem, aliada a fúria das tempestades ou crueldade dos predadores.
Esfacela o ideal sublime pelo apetite carnal mais imediato. Nesses desejos selvagens o lado
obscuro do homem. A escuridão, o curto-circuito e o choque.

se refira ao Mimo como gênero marginal que se desenvolveu na Grécia e em Roma. A


popularidade do Mimo estava vinculada a extrema licenciosidade e sarcasmo de apresentações
teatrais que ressaltavam os gestos grosseiros do corpo. Não é o tipo da coisa que Piva repudiava.
Minha hipótese é que o poeta mencionava o Mimo num sentido mais vulgar: a poesia oficial
como seccional de pequeno-
no poema Periscópio, publicado na
Revista 391, n. 14, novembro de 1920.

Periscópio
A espada está atolada no lodo tatuado no monte da toupeira casa feita às
cegas com a ajuda do violino após o solstício a morte dos cantores das moitas
e dos molhos catedrais secas pelas canções
Vi e compreendi o erro de toda uma doutrina a mensagem lírica do mimo e a
noite se prolonga alegre e eternal nos olhos dos pássaros viajantes
Quando as bebidas dos cabarés passam com suas lanternas pela floresta os
pássaros roubaram os pedaços de luz e os ocultaram em seus ninhos
Indigestão de estrelas intoxicação lunar e festa começa sob o campanário que
atravessa o relâmpago em surdina Todos os ninhos eram inflamados e nos
olhos se morria o último raio da espontaneidade
Enlouquecidos gafanhotos peregrinos se colocavam aos três na borda do
crescimento da lua descendo pela simpatia sobre os seios de Argine
Ah o mimo falou à espada atolada nas palavras do solstício risonho que vem
nascer -
O basílisco tombou fulminado por seu próprio olhar 89

O poema acompanha os destinos do movimento Dada. Os pássaros viajantes (Dadas de


Zurique) a beber nos cabarés parecem se assemelhar aos cantores que secam as catedrais. É
imagem que pode ser interpretada como a insurreição Dada em seu emprenho satírico de

na opinião da poeta, ainda encontra eco nas criações Dada. E o poema prossegue com os Dadas
de Zurique roubando pedaços de luz e guardando em seu ninho. Esses pedaços de luz trouxeram

, espontaneidade que era a fonte da


insurreição Dada vide o lugar do espontâneo nos manifestos de Tzara. Essa vontade de
eternidade, de iluminação (luz) e elementos celestes (lua), parece ter destruído a
otagonista quem fala do brasílico (a

89
ARNAULD, Céline. Périscope. 391, n. 14, novembro de 1920. p. 6. Disponível em:
http://sdrc.lib.uiowa.edu/dada/391/14/index.htm. Acesso em: 12 març. 2010.
42

serpente mágica) que morre fulminado pelo seu próprio olhar. Morta a espontaneidade, morre
o espírito do movimento, ficando apenas a instituição entendida como a organização regional
dos dadaístas no pós-guerra, assim como a instituição poética da lírica mimada.

Roberto Piva lança mão tanto da violenta espontaneidade Dada, quanto da crítica de
Arnauld à poesia metafísica e seus

Aqui é fundamental ressaltar: Piva traz para seu manifesto Arnauld e Artaud, figuras
extremamente escandalosas que tiveram a proeza de causar alvoroço em movimentos por si só
desorientadores como Dada e Surrealismo. A menção a estes heréticos é sinal bem evidente de
que se prefere quebrar vidraças, fazer escândalos e criar dissoluções que construir algo
organizado.

E os opostos continuam: ora criticando o verso floreado, formal, todo enfeitadinho de


lantejoulas, ora com provocação homoerótica: contra vagina pelo ânus. Contra as escadas que
levam ao alto, à ascese vertical; pelas ferrovias que conduzem a viagem a outras partes da terra
como a vagabundagem beat. A oposição também toma forma de personalidades: contra Eliot
por Sade. Provavelmente o declarado anglo-catolicismo de Eliot esteja em oposição à
libertinagem criminosa do devasso francês.

uma tensão nos termos, ao qualificar com expressões contrastantes signos da loucura. A
esquizofrenia, cravada na cisão e no corte, qualificada como perfeita? A paranoia, normalmente
entendida como deturpação do real, como ciente? Nesta época Piva estava criando sua grande
obra, Paranóia: poesia sob o signo da loucura e da vidência, do delírio e da crítica. É a loucura
em Rimbaud ou Dali com seu método paranoico-crítico como uma experiência mais aguda
da realidade.

Por fim, há importante vinculação da bandeira do E


exto literário da
época. Inicialmente, parece se referir a poetas do mundo oficial, representantes do Estado.
Certamente menção ao constitucionalista Guilherme de Almeida, consagrado com poemas de
exaltação do Estado, inclusive aquele lido nas então recentes comemorações do quarto
similar àquele de Oswald ao

outras características do contexto literár


daquele período. Mas
também o bordado como um trabalho manual que remete a uma maneira formal de trabalhar
o poema como uma mercadoria na fábrica tal era a proposta dos concretistas90.

É nessa conotação mais ampla que a expressão surge no manifesto As Fronteiras e


Dimensões do Grito, escrito por Claudio Willer em seu Anotações para um Apocalipse (1964). Ao

90
Os detalhes da crítica de Roberto Piva ao Concretismo como produto da ideologia desenvolvimentista
urbano-industrial podem ser visto em: VERONESE, Marcelo Antonio Milaré. Manifestos do poeta Roberto
Piva. Fólio Revista de Vitória da Conquista, vol 5, n. 1, jan./jun. 2013, pp. 81-105.
43

-
salões e participantes de recitais em nigth-clubs, de autênticas bordadeiras

cronistas sociais, representantes da imprensa mundana e todos aqueles que


lhes possam oferecer possibilidades de promoção, de sucesso, de satisfação
de um narcisismo menor, deste mesmo tipo de promoção e popularidade que
constitui a aspiração máxima e a base de toda a atividade dos poetas cívicos
e patrióticos à la [Paulo] Bonfim & [Guilherme de] Almeida e, disfarçada por
um verbalismo teórico inconsequente, de grupos como o Praxismo e o
Concretismo91.

popularidade, incluindo os representantes da poesia oficial patriótica os mesmos que Roberto


Piva atrela à bandeira paulista. No próprio Anotações para um Apocalipse, Roberto Piva escreve
a Introdução, na q
poesia oficial brasileira, todo êste acêrvo pernicioso-futil de neo-parnasianos, concretistas,
marxistas de salão, rilkeanos-lacrimonosos, representa um desejo insaciável de autoridade, de
impotência mística, de resignação artificial & patológica diante de uma Sociedade patriarcal &
92
.

Eis a resignação a autoridades e as convenções poéticas como cerne das principais


vertentes da criação poética da época. É sob esta mesma d
Postfácio de Piazzas, irá criticar os poetas subservientes ao
E
numa longa citação de Octávio Paz em seu ensaio Poesia, sociedade e Estado.

Em síntese, Minotauro dos Minutos recoloca um modo de vida no centro da criação

rechaçada, ainda, a poesia meta


enfeitados com lantejoulas.

O tom permanece sarrista e raivoso, trazendo dissidências de movimentos estéticos


como fortalecimento da ruptura com qualquer forma de organização coletiva. Sustenta-se uma
tensão entre o tom programático afirmativo e impossibilidade de movimento organizado. O
manifesto se inspira em movimentos de vanguardas, ao mesmo tempo em que critica a
possibilidade de vanguarda.

No entanto, a escrita na terceira pessoa do plural dá ensejo para se pensar na feição


grupal dos manifestos. Ainda mais porque a recusa as escolas literárias da época é característica
s
qual Roberto Piva faria parte. O coletivo formado por Roberto Piva, Claudio Willer, Antonio
Fernando de Franceschi, Décio Bar, dentre outros, seria espécie de subgrupo pertencente a tal

Pau
Manifestos de 1962, embora redigidos e assinados exclusivamente por Roberto Piva, trariam as

91
WILLER, Claudio. As fronteiras e dimensões do grito. Em: ______. Dias Circulares. São Paulo: Massao
Ohno, 1964/1976. p. 104.
92
PIVA, Roberto. Introdução. Em: WILLER, Claudio. Dias circulares. São Paulo: Massao Ohno, 1964/1976.
p. 75.
44

opiniões estéticas e políticas desse grupo em gestação. O que dizem aqueles que defendem a

Álvaro Alves de Faria e Carlos Felipe Moisés, poetas e amigos de Roberto Piva neste
93
. Os dois poetas organizaram uma
antologia dessa geração adotando como critério o fato de terem sido todos poetas jovens que
publicaram na mesma cidade de São Paulo do início dos anos 1960. O foco no conceito de
geração advém de Pedro Lyra -
critérios de data e local de nascimento, salientando a vivência coletiva nas mesmas condições
históricas como plano de fundo sobre o qual se desenrola a vivência individual. A diferença é
a primeira geração verdadeiramente nacional da poesia
94
brasileira , tendo representantes espalhados por quase todo o país. Além dessa dispersão
geográfica, Pedro Lyra qualifica a geração pelo sincretismo, pela variedade dos estilos e
tendências95. Também Álvaro e Carlos são enfáticos ao afirmar que com o termo geração não
designam um movimento organizado em torno de um programa em comum, mas as
ressonâncias entre criações poéticas que partilhavam o mesmo contexto paulistano e, em
partes, terem sido publicados pelo mesmo editor (Massao Ohno).

O fato é que diversos poetas deste período concordam com a existência da Geração 60
ou Geração dos Novíssimos. Antonio Fernando Franceschi, por exemplo, é enfático em falar em
96
características , assim como Claudio Willer menciona a importância de
97
. Carlos Felipe
Moisés, no entanto, tende a criticar a Antologia dos Novíssimos exatamente por não possuir um
critério claro de inclusão dos poetas e deixar de lado diversos escritores da época. Massao Ohno
não tinha a pretensão de criar uma geração literária, tampouco reunir todos os novos poetas
paulistanos daquele período. Na entrevista à revista Visão, publicada a 11 de novembro de 1960
(Lugar ao sol para os novos), Massao destaca que selecionava as publicações da coleção

posição em face da realidade brasileira, e, na medida do possível, explorem as possibilidades


nacionais não só no campo da poesia como no da prosa o que representa uma característica
98
. A pretensão do editor é política, não
meramente literária. Não o interessava organizar uma geração literária, mas contribuir com a
organização política da juventude. Porém, a importância de seu trabalho editorial no
lançamento de jovens poetas reunidos sob a pecha de Novíssimos, contribuiu para se pensar em
geração literária.

Mas nem todos concordam com a existência de tal geração. Roberto Piva (sempre ele!)
discorda fervorosamente de ter participado de qualquer geração. E vai além. Na entrevista

93
FARIA, Álvaro Alves de ; MOISÉS, Carlos Felipe. Antologia poética da geração 60. São Paulo: Nankin,
2000.
94
LYRA, Pedro. Sincretismo: a poesia da geração-60. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. p. 96.
95
É interessante notar que Roberto Piva não é mencionado como integrante dessa geração, embora se
-55 e estreado entre 1955-
75.
96
COHN, Sergio. Altero todo um ser pois que me movo. Em: ______. Azougue 10 anos. Rio de Janeiro:
Azougue, 2004. p. 35.
97
WILLER, Claudio. Teve a ousadia de criar uma geração literária. O Estado de São Paulo, 15 de junho, de
2010. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,teve-a-ousadia-de-criar-uma-geracao-
literaria-imp-,566617. Acesso em: 20 nov. 2011.
98
Lugar ao sol para os novos. Revista Visão, vol. 17, n. 20, 11 de novembro de 1960.
45

concedida exatamente a Álvaro Alves de Faria, pela rádio Jovem Pan, na ocasião do lançamento
do livro 20 poemas com brócolis, quando perguntado sobre a atualidade da geração de 60 de

o poeta como integrante


de um movimento99
as escolinhas literárias e demais agremiações em torno dos chás das cinco.

Paradoxalmente, esta controvérsia dá um ponto aos teóricos da geração 60. Ou seja, de


tão heterogêneos e plurais discordam até sobre a existência ou não de tal geração. Roberto Piva
não pertence a nenhuma geração literária, como afirma. Willer e Franceschi, pertencem. Com
etas ousados que frequentaram os mesmos
bares, livrarias e bibliotecas; fizeram leituras coletivas em ambientes públicos e tiveram um
editor em comum. Essas vivências reverberaram em cada um deles e potencializaram suas
criações poéticas fortemente particulares. Os Manifestos de 1962 trazem esse traço: denotam

marcas indeléveis da poesia e poética bastante particulares de Roberto Piva.

3. Gabinetismo versus poesia fecal

A máquina de matar o tempo


Aqui nós investimos contra a alma imortal dos gabinetes. Procuramos amigos
que não sejam sérios: os macumbeiros, os loucos confidentes, imperadores
desterrados, freiras surdas, cafajestes com hemorroidas e todos que
detestam os sonhos incolores da poesia das Arcadas. Nós sabemos muito bem
que a ternura de lacinhos é um luxo protozoário. Sede violentos como uma
gastrite. Abaixo as borboletas douradas. Olhai o cintilante conteúdo das
latrinas100.

novamente crítica à poesia de gabinete, expressão


muito usada na época: poesia no escritório, com o rabo afundado no acento em frente à estante
coberta de livros. Poesia cerebral, sem sangue, sem riscos. Imortal, sem perecimento, sem vida.
Poesia de gente séria, careta, cafona. Aqui também há continuidades em relação ao Manifesto
101
Pau- .

Times Magazine] Está


sempre me falando de responsabilidades. Os homens de negócios são sérios. Os produtores de
102
. São versos do poema América, de Allen
Ginsberg. E no lugar de toda gente séria, Roberto Piva enumera uma corja bem humorada de
personagens avessos ao mundo oficial. Todos os que detestam a poesia da Arcadas referência
aos poetas formados no Largo São Francisco, como Paulo Bomfim. É a poesia enfeitada de
e voam tais borboletas em
versos de Casemiro de Abreu ou Olavo Bilac. Com outras expressões, Roberto Piva retoma a tal

99
FARIA, Álvaro Alves de. Entrevista de Roberto Piva para a Jovem Pan. 1981. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=4HOD3dNCCK4. Acesso em: 10 jan. 2013.
100
PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça, op. cit., p. 139.
101
ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Em: ______. A utopia antropofágica: antropofagia
ao alcance de todos (vol. 6, Obras Completas). São Paulo: Globo livros, 1924/1990. p. 42.
102
GINSBERG, Allen. Kaddish e outros poemas. Em: ______. Uivo, Kaddish e outros poemas. (Claudio
Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1961/2005. p. 59.
46

o conteúdo das latrinas.

Piva retoma o tema do fecal, mas agora na cintilação do excremento. Piva era leitor de
Swift à época e com certeza havia lido os comentários de Norman Brown sobre a importância
dos excrementos em sua obra. Para Brown, a visão excremental de Swift expunha a expressão
de um corpo instintivo e selvagem para
103
auto- . O autor de Vida contra morte aponta que esta expressão
corporal do excremento é o oposto de toda sublimação: a expressão mais espiritualizada e
embelezada. A sublimação, fonte de toda a cultura, cria um desvio à satisfação mais imediata
do desejo sexual, direcionando o instinto às formas socialmente permitidas de satisfação como
a arte.

O conteúdo cintilante das latrinas pode ser referência a uma poesia visceral e agressiva,
direta e sexual, no extremo oposto da poesia empolada criticada no manifesto. Esta mesma
experiência surge no Postfácio de Piazzas
Brasileira a serviço do instinto de morte (repressão), minha poesia sempre constituiu num
104

sublimações abstratas e crava sua verve na carne.

4. Desordem

A catedral da desordem
A nossa batalha foi iniciada por Nero e se inspira nas palavras

nos une. Ceticamente, Barbaramente, Sexualmente. A nossa Catedral


está impregnada do grande espetáculo do Desastre. Nós nos
manifestamos contra a aurora pelo crepúsculo, contra a lambreta pela
motocicleta, contra o licor pela maconha, contra o tênis pelo box,
contra a rádio patrulha pela Dama das Camélias, contra Valéry por D.
H. Lawrence, contra as cegonhas pelos gambás, contra o futuro pelo
presente, contra o poço pela fossa, contra Eliot pelo Marquês de Sade,
contra a bomba de gás dos funcionários públicos pelos chicletes dos
eunucos e suas concubinas, contra Hegel por Antonin Artaud, contra o
violão pela bateria, contra as responsabilidades pelas sensações,
contra as trajetórias nos negócios pelas faces pálidas e visões
noturnas, contra Mondrian por Di Chirico, contra a mecânica pelo
Sonho, contra as libélulas pelos caranguejos, contra os ovos
cartesianos pelo óleo de Rícino, contra o filho natural pelo bastardo,
contra o governo por uma convenção de cozinheiros, contra os
arcanjos pelos querubins homossexuais, contra a invasão de
borboletas pela invasão de gafanhotos, contra a mente pelo corpo,
contra o Jardim Europa pela Praça da República, contra o céu pela
terra, contra Virgílio por Catulo, contra a lógica pela Magia, contra as
magnólias pelos girassóis, contra o cordeiro pelo lobo, contra o
regulamento pela Compulsão, contra os postes pelos luminosos,
contra Cristo por Barrabás, contra os professores pelos pajés, contra o

103
BROWN, Norman O. Vida contra morte: o sentido psicanalítico da história. (Nathanael C. Caixeiro,
trad.). Petrópolis: Vozes, 1959/1972. p. 225.
104
PIVA, Roberto. Piazzas. São Paulo: Kairós, 1964/1980. p. 55.
47

meio-dia pela meia-noite, contra a religião pelo sexo, contra


Tchaikovsky por Carl Orff, contra tudo por Lautreamont105.

Há um clima de batalha. Batalha iniciada pelo incendiário. Depois vem a menção à frase
. Socialmente. Economicamente.
106
. Mais que intertexto, Piva parece expor um contraponto. Coloca a desordem
no lugar da antropofagia, como um valor mais fundamental. Uma desordem que nos une pelo
ceticismo, pela descrença, pela falta de ilusão. Não nos une a partir da captura do real pelo
pensamento sociológico, econômico ou filosófico, mas por uma via selvagem mais visceral
(barbárie) e erótica. Em outras palavras, a desordem nos une não na perspectiva douta e
europeia com sua política-econômica e filosofia, mas pela via corporal e sexual. Ironicamente,

pela visão de Pindorama não como matriarcado pacífico do comunismo primitivo, mas como
estado anárquico de guerra sem a ilusão conciliatória das contradições.

E logo a seguir vem menção ao Manifesto Dada de Tzara, com sua premente necessidade
de dissolução de tudo:

Existe uma literatura que não atinge as massas vorazes. Obra de criadores,
produto de uma verdadeira necessidade do autor, e para ele. Consciência de
um supremo egoísmo, ou a madeira se estiolando. Cada página deve explodir,
seja pela seriedade profunda e pesada, o turbilhão, a vertigem, o novo, o
eterno, pelo absurdo desconcertante, pelo entusiasmo dos princípios ou pela
forma como está impressa. Eis um mundo vacilante que foge, noivo dos
guizos da escala infernal, eis do outro lado: os homens novos. Rudes,
saltantes, cavalgantes de soluços. Eis um mundo mutilado e os medicastros
literários precisando de aperfeiçoamento.
Eu lhes asseguro: não existe começo e nós não trememos, nós não somos
sentimentais. Nós rasgamos, qual vento furioso, a roupa branca das nuvens e
das preces, e preparamos o grande espetáculo do desastre, o incêndio, a
decomposição107.

Aí o elogio de uma arte violenta e desorganizadora não aquela arte produzida para as
massas, com cafunés sentimentais nos representantes da ordem estabelecida. Uma expressão
artística que cria novos homens. São estes homens que desmoralizam o mundo e, tirando dele
essa roupagem moral, retomam uma roda fecunda de criação. Criação originada pela destruição:
o grande espetáculo do desastre,
retoma a crítica ao sentimentalismo e lirismo em poesia, também sob feições Dada. Ao
pedantismo sentimental, Roberto Piva, como Tzara, contrapõe imagens agressivas; às
aspirações celestes e pacíficas, esparramam as chamas do incêndio (tal como Nero) e o

A partir daí Piva retoma a série de oposições. Muitas são vivenciais, simples e unívocas:
ntra a

105
PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça, op. cit., p. 141.
106
ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropofágico, op. cit., p. 47.
107
TZARA, Tristan. Manifeste dada 1918. Em: ______. Sept manifestes Dada; lampisteries. Paris: Pauvert,
1918/1979. p. 26.
48

de gás dos funcionários públicos pelos chicle

H.

aplicação das oposições vivenciais à esfera artística: contra as formas geométricas de Mondrian,
pelas paisagens oníricas de Di Chirico; ou contra o pudor anglicano de Eliot pela devassidão pagã
de Sade; e assim por diante. Com figuras como Sade e D.H. Lawrence, Roberto Piva parece
salientar uma experiência erótica arraigada no corpo aberto às forças naturais mais tenebrosas.
Tal pendor às paixões desregradas enc

desmoralização de todas as instituições sociais; desmoralização na forma mais visceral,


recheada de perversões sexuais e devires selvagens em metamorfoses do homem com animais.

É esse furor bárbaro e sexual que os Manifestos de Roberto Piva encarnam, junto à
vontade de atear fogo nas instituições morais, escolas literárias e pretensões metafísicas; de
quebrar as vidraças das convicções políticas revolucionárias, por uma efervescência anárquica
da desordem e do desastre.

108
. Breton parodiava a bravata
-1675), dos mais importantes

levarei A frase remete à reprimenda do guerreiro ao corpo que treme diante do perigo,
retomando sua intrepidez e destemor.
rmitiria vencer os
adversários. A guerra por estados de distração, momentos de irrupção da imaginação,
flutuações da atenção que permitiriam aquele ponto
sonho cessariam de contradizer-se: o advento da surrealidade. Os que viram a carcaça seriam
guerreiros int
pensamento lógico e à consciência moral.

Mas há também um poema de Baudelaire, em Flores do Mal


(Carcaça - m que Baudelaire e sua
amante viram uma carcaça em decomposição numa curva do caminho. A carcaça é associada à
morte e à mulher, mas no sentido daquilo que morre para fazer algo novo nascer. Daí
escorrerem larvas do ventre da carcaça como uma flor desabrochando ou como um corpo se
multiplicando. O poeta pede à amada que se assemelhe à carcaça: a mutação da vida em morte
e renovação.

108
BRETON, André. Manifestos do Surrealismo, op. cit., p. 64.
49

As interpretações podem ser diversas: carcaça como signo de um tempo que morre e
pare de suas entranhas a renovação; ou a carcaça como o corpo em mutação de um iniciado
que atravessa a morte ritual e sente o fluxo da vida no seu criar e destruir. De qualquer forma,
a carcaça é símbolo da morte e renascimento.

Não só Baudelaire e sua amante viram a carcaça. Antonin Artaud, na mesma carta em
que formula a poesia fecal, dá como exemplo exatamente este poema de Baudelaire. Também
em seus Poemas, como exemplo da associação do amor
com a morte, numa poesia cravada no mal. Lautreamont chega mesmo a tornar carcaça um

impressionaram na época de seus estudos colegiais o trecho de Rolla em que o pelicano


oferece a seus filhotes o sangue do peito aberto; e a desgraça do camponês que chega à sua
casa e a encontra incendiada com sua esposa morta109. Sabe-se o quanto carcaças similares
povoam os Cantos de Maldoror.

conotação mais simples: a carcaça como signo de um momento histórico que se decompõe. Seja
qual for o sentido da expressão no título dos manifestos de 1962, Roberto Piva e seus amigos

cheiro putrefato; seja na companhia de Baudelaire e sua amante, na de Artaud e sua poesia fecal
ou na batalha surrealista contra a ditadura lógica do real; seja, com certeza, na perturbação anti-
humanista de Lautreamont.

6. Os manifestos no conjunto da obra de Roberto Piva

Roberto Piva foi grande criador de manifestos. Como vimos, também foi grande leitor
de manifestos. O poeta faz uso desse gênero de escrita de forma apaixonante. Linguagem solta,
verborrágica, tiradas engraçadas, paródias e um tom delirante. Feições comuns em sua poesia.

distinção nítida entre manifesto e poema. Em entrevista feita em 2005, Ricardo Lima pergunta
exatamente sobre o lugar dos manifestos em sua produção poética e se poderiam ser
Não os considero poemas, era uma outra maneira de me
110
expressar, eram ma .

Assim, se tomarmos como exemplos materiais que o próprio poeta nomeia como

algumas diferenças em relação aos poemas. A primeira e mais fundamental é que nos
manifestos Roberto Piva se dedica a uma leitura crítica da realidade, com especial acento às
questões políticas, delineando posicionamentos que, em seu caso de uma poesia vivida,
redunda em uma reflexão sobre sua poética. Daí um linguajar mais referencial e menos
imagético; daí um tom mais ácido que extático.

Em sua poesia a partir da década de 1980, centrada nas técnicas arcaicas do êxtase, há
uma distinção clara entre poema e manifesto. Em linhas gerais, os poemas remetem a
experiências mágicas vivenciadas pelo poeta, ao passo que manifestos como Manifesto utópico-
ecológico em defesa da poesia & do delírio (1983) se debruçam sobre as questões ecológicas na

109
LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror, op, cit., p. 284.
110
LIMA, Ricardo. Poeta em pele de tigre. (Entrevista) 2005. Disponível em:
http://www.germinaliteratura.com.br/literatura_out05_robertopiva1htm Acesso em: 16 set. 2006.
50

sociedade contemporânea ou, em textos como Manifesto da Poesia Xamânica & Bio-Alquímica
(1992), reflexões sobre o desenvolvimento de sua poética nesse contexto. De qualquer forma,
há uma complementação importante entre a criação de poemas e a redação de manifestos,
como peças indissociáveis de sua vida poética. Neste sentido, os Manifestos de 1962
fundamentam uma poética posta em ação em Paranóia, da mesma forma que materiais como
Manifesto da Poesia Xamânica & Bio-Alquímica (1992) ou poesia = xamanismo = técnicas
arcaicas do êxtase (1997), por exemplo, dialogam com Ciclones. Esta complementariedade é tão
111
:

A bengala alienígena de Artaud

O mamute sem pátria


O professor membrana
O pica-pau pica tora
O orgônio letal da sociedade industrial
O presidente stanilista chefe de quadrilha
O fantasma de Stalin de Jean-Paul Sartre
Budapesteanos 50-séc. XX:
Secretário-geral do PC húngaro
manda cavar o solo para construir
o metrô de Budapeste. Subsolo muito
duro. Então, não eram os técnicos marxistas
que estavam errados, mas o subsolo
de Budapeste que era contra-revolucionário.
Brasil 2004-séc. XXI:
Programa Fome Zero: contrariando
o governo, o IBGE provou que os
mais pobres nem sempre são os mais
mal-nutridos & os obesos são mais
numerosos entre os mais pobres.
O governo se apressou em desmentir o
IBGE. Taí: não são os padrecos
Assessores que estão errados, mas
o IBGE & os gordos que são
contra-revolucionários
Conclusão de Sartre: O marxismo é uma
violência idealista às coisas
O bucho do mangusto
O furor uterino da Pomba
A Lazanha emplumada
O bofetão on the road
As ancas do navio
O carcará sem fio

meio poema meio manifesto


Templo ZU LAI
Rodovia Raposo Tavares
2004

111
PIVA, Roberto. Estranhos sinais de Saturno. Em: PIVA, Roberto. Estranhos sinais de Saturno obras
reunidas volume III (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2008. p. 138-9.
51

O poema se inicia e conclui com versos começados por artigos, versos estes
interrompidos por texto numa linguagem mais cotidiana, sobre a crítica de Roberto Piva ao
governo Lula e ao marxismo. Tudo acontece como se o poeta tivesse iniciado a redação de
versos que desencadearam um comentário sobre a política atual. Assim, Roberto Piva incorpora
esse comentário no texto, na condição de manifesto, e continua o fluxo de associações que
dispararam a redação. É um exercício leal de escrita automática que não descarta os
comentários mais cotidianos que, às vezes, invadem uma associação.

Nesse poema/manifesto ficam claras as distinções de tema e linguagem entre ambos,


assim como seu profundo entrosamento na vida poética de Roberto Piva.
53

Roberto Piva na revista Artes: - o poeta do rock, o profeta do rock...112

Era uma tarde de 1966 quando dois jovens desciam a rua Augusta, desfilando gestos
soltos à moda dos italianos. Um deles, sujeito bem alto, falava com entusiasmo de sua teoria
sobre o ar comestível, para o entusiasmo do segundo, baixinho, que apontou para o número
2192 daquela rua. Pela varanda do primeiro andar do pequeno edifício desce uma inusitada
escada de cordas, pela qual o pequeno Roberto Piva e o grandalhão Roberto Bicelli sobem ao
excêntrico ateliê decorado ao estilo japonês. Na subida já se sentia o cheiro de terebintina e
eram recebidos por Wesley Duke Lee nos momentos de criação de sua série Zona. Chapado de
ácido

Naquele mesmo número da rua Augusta, os Robertos fizeram uma parada na badalada
loja de discos Hi-fi, para garimparem algum disco de rock. Roberto Piva era grande entusiasta
da nascente música pop e frequentador daquela rua por onde se viam bandos de jovens

ra a guitarra elétrica, o poeta cosmopolita


estava antenado a todas experimentações contemporâneas. Inclusive as alucinógenas.

No final dos anos 1960, os poetas Roberto Piva e Roberto Bicelli também eram vistos na
Serra da Cantareira, em meio a seções de LSD. De calça jeans norte-americana e cocar indígena,
Piva se travestia em cacique eletrônico, mesclando música contemporânea com rituais
ancestrais em torno do êxtase.

As publicações de Roberto Piva na revista Artes:, no início da década de 1970, são


importantes veredas para se adentrar em sua vida poética do período. Nas páginas da edição
24, por exemplo, o poeta escreve sobre a criação artística do amigo Wesley Duke Lee, na ocasião
Camargo. No mesmo
número da revista, exalta a efervescência do ambiente do rock nos shows realizados no Teatro
Vereda: o Ligasom. Na edição seguinte, já de 1971, Roberto Piva faz as vezes de entrevistador e
conversa com o poeta e amigo Claudio Willer no ensejo do lançamento da tradução de Cantos
de Maldoror, em comemoração ao centenário de Lautreamont. Neste mesmo número 25 da
revista há, ainda, um texto sobre Jimi Hendrix, além de uma entrevista com inúmeros jovens
integrantes dos grupos pop paulistanos.

Roberto Piva está impossível! Avança como um misto de crítico de arte, entrevistador,
agitador cultural e poeta. São faces até então desconhecidas do poeta que se expressam com
exuberância: como entrevistador, mostra-se um profundo conhecedor do tema abordado, com
questões certeiras e instigantes; como crítico de arte consegue a proeza de casar sua vivência
visceral do rock e das artes plásticas, com boa dose de lucidez, sempre salientando a crítica ao
cotidiano careta e apontando as novas possibilidades de vida que a arte cria. Versa também
sobre uma variedade de matérias, como a literatura, artes plásticas e música. Por fim, seus
ensaios em prosa demonstram uma escrita fluida e delirante, comunicativa e desconcertante,
revelando tanta ousadia na escrita em prosa quanto sua já conhecida potência nos poemas.

112
Publicado originalmente em Linguagens Revista de Letras, Artes e Comunicação, Blumenau, vol. 9,
n. 1, p. 12-31, jan./abr. 2015.
54

Suas participações na Artes:

É um poema importante por diversos motivos. Primeiramente por ser das raras criações do
poeta publicadas neste período. Também por trazer experimentações formais na linguagem
poética que seriam tônicas de produções posteriores, especialmente em seu livro Quizumba
(1983). O tom fortemente b
pelo poeta. E, por fim, traz diálogos pioneiros com a poética de Michael McClure, com o qual
Piva se correspondia.

Eis o convite: enveredar pelas colaborações de Roberto Piva na revista Artes: durante os
anos de 1970 a 1973, com especial acento à proeminência do poeta na nascente cena da música
pop paulistana.

O Ligasom
113
,
escrito apaixonadamente por um en

Plataforma 7 e o

a mesma metáfora da alucinação poética que Roberto Piva utiliza no Póstfácio de Piazzas (1964)
como centro de seu fazer poético. Exalta-se a percepção delirante da realidade como a fenda
por onde jorram novas cores e experiências místicas; o delírio que torna sagrada a desordem do
espírito.

O sarcasmo do poeta está muito bem afiado, como na passagem em que faz piada
-não-dá-pé-
no-

Roberto Piva de 1962 em extrema sintonia com o Ultimatum, de Álvaro de Campos114.

Ao contrário desses moralistas, Piva via naquela atmosfera alucinada e seus jogos de

verdadeira festa de Dion


analogia das festas de rock com manifestações pagãs, especialmente com a orgia dionisíaca,
ocupa importante lugar na experiência do poeta. Por ora, basta ressaltar que Roberto Piva vivia
nessas apresentações uma experiência ritual e mítica. Uma experiência na qual o místico e o
artístico não estão apartados, nem estão fragmentadas as diversas manifestações artísticas
como entidades estanques (música, dança, literatura, etc.). É a própria vida uma obra de arte
em autogestação, como queria Nietzsche e como experimentava Piva.

Mas em se tratando de música, Piva põe na roda ninguém menos que John Cage, na

113
PIVA, Roberto. Ligasom. Revista Artes:, São Paulo, Ano V, n. 24, , p. 8, 1970.
114
PESSOA, Fernando (Álvaro de Campos). Ultimatum. Portugal Futurista, n. 1, Lisboa, 1917 (edição fac-
símile, Lisboa, Editora Contexto, 1981).
55

Essa ligação de coisas aparentemente distantes, como a relação de rituais arcaicos a


um deus pagão com a música eletrônica contemporânea, passa a se fundir num lapso do tempo
para o intemporal: um tempo mítico e reversível, numa espécie de caos originário no qual há
forte correspondência entre todas as coisas.

-se
logo que os diálogos intertextuais, as imagens, as tiradas e o ritmo são da verve poética de
Roberto Piva.
115
É ainda sob o signo da loucura que Roberto Piva .
Além de crítico e entusiasta, o poeta ataca de entrevistador. Neste mesmo número 25, do início
de 1971, o poeta publica um ensaio sobre a morte de Jimi Hendrix e entrevista Claudio Willer. É
interessante notar a sintonia das matérias de Roberto Piva tanto quanto a diversidade de
assuntos que versa. Na entrevista a Willer, por exemplo, se discute as interfaces da poética de
Lautreamont e Rimbaud exatamente no tema da loucura, tema que surge no texto Ligasom e se

Eu acredito que o Teatro Vereda está sofrendo um ataque epilético. Ninguém

Vereda são um sintoma de epilepsia dos mais saudáveis & restauradores.


Epilepsia versus esquizofrenia, esta última sendo a verdadeira racionalização
burguesa criadora de gordura na alma. Epilepsia para mim é = intuição
imediata do élan vital. Intuição. Isto tudo na livre atmosfera do convívio com
o pessoal quente da música Pop em São Paulo: suas esperanças, frustrações,
desejos, ansiedades. Eu poderia escrever um tratado sôbre o problema dos
conjuntos de música Pop em São Paulo, mas vou me limitar a uma visão
panorâmica, deixando o papo cair também para os representantes de alguns
conjuntos. Podemos compreender então, os grandes tam-tams de nossa
África interior & colher um pouco de sabedoria eletrônica capaz de nos levar
ao transe coletivo. A música Pop é um dos meios de comunicação mais
poderosos atualmente. Capaz mesmo de arrancar dos gonzos os mais rígidos
representantes do bom comportamento. Uma verdadeira declaração de

falava Blake. Tôdas essas pessoas rígidas estão sendo muito mal-amadas. Elas
deveriam ouvir um pouco mais de música, sentir a beleza & o prazer carnal
com uma nova sensibilidade & decorar o verso de André Breton: O QUE EU
CONHEÇO DE MAIS BELO É A VERTIGEM. São Paulo não pode parar. Os

ascendente. Estamos numa verdadeira reunião tribal para aprender uma


nova mensagem.

Novamente os devires da loucura dão o tom da efervescência da juventude roqueira.

Gracias, Señor (1972), uma criação coletiva do Teatro Oficina como, por exemplo, em seu
poema A Política Poética116
no instante denominado Aula de Esquizofrenia, apresentam-se repolhos como cérebros
submetidos à lobotomia prática médica comum até meados do século para o tratamento de

115
PIVA, Roberto. O embalo é o sinal. Revista Artes:, São Paulo, Ano VI, n. 25, p. 8, 1971.
116
PIVA, Roberto. A política poética. Singular & Plural, São Paulo, n. 4, março, p. 76, 1979.
56

discurso médico e a intervenção violenta que tentava corrigir qualquer diferença. É certo que a
peça seria apresentada apenas em fevereiro de 1972, portanto, depois do texto de Piva
publicado. Porém, a amizade entre Piva e Zé Celso permite pressupor que ambos conversaram
sobre o assunto ou até que o poeta tenha participado dos ensaios anteriores à apresentação.

Esta empreitada normatizadora da esquizofrenia é contraposta à epilepsia, numa


apropriação bem particular de Roberto Piva, pois revela a leitura do filósofo francês Henri
Bergson, para o qual a intuição era uma das expressões do élan vital. Talvez seja com tal intuição

grupos de rock paulistano. Basta lembrar que neste período o poeta era estudante universitário
de sociologia e estudos sociais, o que talvez explique esse seu entusiasmo por escrever um

desconsertar o bom comportamento e conduzir ao transe. Roberto Piva parece salientar o


-tams de

ancestrais. É um ponto seminal da experiência do poeta: durante toda a década os traços


arcaicos vão invadindo a experiência contemporânea num tempo mítico que mescla passado e
futuro. O ápice dessas associações é Coxas: sex-fiction & delírios (1979), obra em torno de uma
tribo urbana de jovens suburbanos e roqueiros que praticavam orgias rituais de androginização.

arautos do bom comportamento deveriam aprender. Que estado é este? No poema Infant Joy
(Alegria Infantil), de Canções de Inocência, o poeta inglês tematiza de forma muito simples a
infância: uma criança com apenas dois dias que não tem nome, mas esbanja alegria. O riso
constante da criança leva seu interlocutor a chamá-
joy, but tw
117
. É este renascimento para o estado infantil calcado na simples alegria que Roberto
Piva experimenta nesses rituais.

Além de Blake, Roberto Piva sugere aos conservadores decorarem um verso de André
Breton, do poema Il y aura
mim a rota hipnótica com uma mulher / sombriamente alegre / Além disso, a moral vai mudar
muito / o grande interdito será levantado / uma libélula correrá para me ouvir em 1950 / nesta
118
.

Sabe-se lá da libélula de 1950, mas certamente Piva o ouviu naquele ano de 1971. Breton

sombriamente alegre. Esta experiência amorosa vem associada à suspensão do grande interdito,
aquele referente ao sexo. O poeta coloca no porvir (1950) o entendimento de seu verso que se
conclui com a exaltação da vertigem, talvez aquele mesmo estado decorrente do sexo despido
de interdito. A interdição da vertigem amorosa bem cabe a est

117
BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno; O livro de Thel. (José Antônio Arantes, trad.) 4ªed.
São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 46.
118

moeurs vont beaucoup changer / Le grand interdit sera levé / Une libellule on courra pour m'entendre en
1950 / A cet embranc BRETON, André. Oeuvres
complètes (Volume 3). Paris: Gallimard, 1999. p. 28.
57

mal-
alegria inocente da criança em Blake, e os giros da vertigem em Breton. Não é demais repetir:
com Blake e Breton, Roberto Piva escreve novamente com as mesmas referências que compõem
o cerne de sua poética.

Em seguida, a matéria apresenta uma entrevista feita por Roberto Piva com diversos
jovens integrantes das bandas pop. No centro da conversa está a problemática do
reconhecimento da música pop e as dificuldades enfrentadas pelos jovens para mantê-la viva.
Neste mesmo período, além de crítico e entusiasta, Roberto Piva se tornava importante

um verso de seu livro Piazzas (1964).

Agitador cultural e organizador de shows de rock

Roberto Piva conhecia a cidade inteira, desde técnicos de som a pessoas ligadas a
diretoria de museus; de garotos escondidos em garagens suburbanas a editores de revistas. Os
shows aconteciam em diversos lugares frequentados por Piva, como o Teatro Oficina, o Colégio
Equipe, a Faculdade Getúlio Vargas e mesmo a Escola de Sociologia e Política em que estudava.
Os mais famosos foram aqueles organizados no Museu de Arte de São Paulo (MASP), pois o
auditório estava lotado com mais de mil pessoas.

No decorrer das apresentações, além das bandas já conhecidas do cenário underground,


como a Made In Brazil e Distorção Neurótica, foram surgindo novas bandas. Roberto Piva
frequentava muito os subúrbios, seja devido à sua atividade como professor em escolas
públicas, seja para a divulgação das apresentações. E ali conheceu e deu oportunidade a bandas
novas, como o Spectral Zoo e o Zarphus.

O poeta não era mero aglutinador de bandas, nem tinha semelhanças quaisquer com
um empresário, mas grande amigo de seus integrantes. Convivia com os jovens, trocava ideias

parecia manter forte amizade com muitos deles.

O ambiente do rock também era bastante inovador. Os jovens experimentavam ali


novas formas de vida, com a invenção de jeitos de se vestir, de falar, de se relacionar. Era
também ambiente devasso, com grande experimentação sexual, inclusive orgias coletivas. Piva
excitava-se, sobretudo, com essas possibilidades eróticas. Roberto Bicelli lembra de um caso
interessante: Ruth Escobar perguntou a Roberto Piva num dos shows como conseguia mobilizar
nsei com metade das pessoas daqui e hoje
119
.

Piva tornou-se um grande agitador cultural da juventude underground. Numa época em


que se colocava em discussão a própria existência de uma música pop, Roberto Piva não apenas
apostou todas as fichas em sua potência como foi seu profeta.

119
Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma
trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. p. 112.
58

Profeta do rock
120
, texto de 1971, Roberto Piva alça voos proféticos e
extremamente lúcidos sobre a importância desse movimento artístico para a juventude. Aqui
aquele alucinado organizador de shows alcança a passagem para a vidência:

A música pop é internacional assim como a eletricidade. O suco instilado no


cérebro pelo envolvimento eletrônico, provocou em todo o mundo novas
vibrações cósmicas. Todo o detrito da velha consciência bidimensional,
escorre pelo esgôto da raison, forma arrivista da caretice francêsa espalhada
pelos quatro cantos do mundo. Isto fêz com que o ser humano limitasse a sua
vida, sua aventura, para estar seguro de si. Afastar-se da maravilhosa loucura
do universo (ou poliverso?) e negar o infinito que mora em nós. Estamos em
plena corrente cósmica, novamente. Os astros indicam que o barco de nossa
aventura mudou vertiginosamente de rumo. E que o dono do barco é
Dionísio, deus da embriaguês, do amor e da morte, o deus do jôgo. E o
formador informe, o próprio jôgo do mundo. A música pop além de música é
um comportamento, uma filosofia, um estilo de vida. Numa noite mágica, Luiz
fome

cortá-lo? Perguntam em côro os magnatas da caretice. O cabelo comprido, as


roupas coloridas, os colares, representam as modificações de nosso corpo,
como resposta ao ambiente eletrônico. São complementações dêsse
ambiente. Isto para não falar do simbolismo mágico-erótico que os cabelos
compridos representam. Mudando de rumo: O eterno retôrno de certos
insight. Estou num pasto na Cantareira & escrevo enquanto as árvore estão
sendo envolvidas pelo pólen lilás do crepúsculo & os morcêgos passam a 180
quilômetros por hora. A natureza flutua e rodopia ao som de Grand Funk &
eu penso na epopeia do homem, da caverna à lua. Lembro de Tino & Franklin,
baixista do Distorção Neurótica o primeiro, baterista do Made in Brazil o

e
ilimitado da nova saúde. O homem vai embarcar na exigência dionisíaca: vêr
tôdas as coisas enfeitiçadas, livres dos rótulos, mais sôltas que os símbolos,

para curtir. Tudo indica que a vida vai vencer esta parada. Uma tarde de
inverno paulista, daquelas de céu azul sem nuvem, sol & roupas de lã, basta
para religarmos à festa do mundo. Estamos em férias perpétuas, a luta pela
via é premissa de nossa respiração. Nós somos um cosmo: turbulentos,
sensuais & oráculos do furação ROBERTO PIVA.

Contemplando um crepúsculo na Cantareira, ouvindo a banda Grand Funk Railroad &


escrevendo com o caderninho na mão. A natureza rodopia com o som eletrônico. Sinergia das
vibrações cósmicas arcaicas com a eletricidade contemporânea; da música pop com o espírito
dionisíaco.

A relação da música pop com o a vertiginosa mudança de rumo da cultura atualiza a


famosa aposta do jovem Nietzsche: o reaparecimento do espírito dionisíaco no mundo
contemporâneo, a partir da música de Richard Wagner121. O filósofo entendia o nascimento da

120
PIVA, Roberto. A cidade sob o relâmpago. Revista Artes:, São Paulo, Ano VI, n. 28, p. 7, 1971.
121
NIETZSCHE, Friedrich W. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. (J. Guinsburg, trad.).
São Paulo: Companhia das Letras, 1872/1992. 179 p.
59

tragédia grega a partir do embate entre Dionísio e Apolo. As orgias asiáticas dionisíacas invadiam
o solo grego com o cortejo embriagado, urrando em festa, dançando extasiado. Ali eram
suspensas as regras sociais, as divisões em classes e todos curtiam a mesma volúpia, cantando,
dançando e bebendo com toda licença sexual. Em Dionísio, o homem celebrava sua unidade
com a natureza a partir do despedaçamento de sua individualidade. O indivíduo como limite e
medida, com toda sua civilidade e moral, evadia de si em devires animais e vegetais. Irrompe o
selvagem onde antes havia o civilizado. O homem dissolvido no mundo enfeitiçado pela magia
dionisíaca.

Essa força dionisíaca invadiu a Grécia apolínea, terra da arte da beleza e da exaltação da
forma. Ali as duas divindades travaram seu combate: o selvagem e o civilizado; o divino e a
beleza; a verdade e a aparência; o ilimitado da desmedida e o limite do indivíduo. Esse combate
é o parto da tragédia grega. Ali a força instintiva de Dionísio surge com a bela roupagem artística
de Apolo. E o culto as belas formas da aparência serve agora como símbolo da verdade
dionisíaca, da natureza como devir encantado. Para Nietzsche, é o espírito da música que torna
o espectador grego capaz de ver se abrir o reino do milagre dionisíaco. Nas palavras do filósofo:

Ao espectador é feita, portanto, a exigência dionisíaca de que a ele tudo se


represente sob encantamento, de que ele sempre veja mais do que o símbolo,
de que o mundo inteiro visível da cena e da orquestra seja o reino do milagre.
Onde, todavia, está o poder que o transporta à disposição de crer em milagre,
por meio do qual ele vê tudo sob encantamento? Trata-se da música122.

A tragédia grega padeceu com o surgimento do homem teórico, racional e moral. A


união do belo-bom-justo-verdadeiro que tornou o homem blindado ao contágio do êxtase.
Aquele que dançava fora de si no cortejo dionisíaco agora está sentado passivamente em um
auditório, ouvindo a música de forma crítica e cerebral.

passagem de Nietzsche transcrita acima: enlevado pela música a pessoa experimenta os


movimentos de um mundo todo encantado. Em outra passagem, Nietzsche lança mão de As
Bacas para exemplificar esse encantamento: mulheres amamentando lobos e tirando mel de
pedras, num encantamento que é a própria reconciliação do homem em devires nas forças da
natureza.

O poeta celebra a música pop como a força que lança o homem de volta a essas
correntes cósmicas, ao mundo encantado de Dionísio. Lançar-se ao êxtase da música, ao livre
jogo do amor. Sentir corporalmente toda experiência do mundo, sem a intromissão da razão
que rotula, classifica e bloqueia a vivência espontânea. É uma arte irradiada na vida, como um
modo de ser, muito distinta da neutralidade da arte burguesa posta como distração e

nos trancafiam em estreitas cavernas. O verso lembra a famosa passagem de Blake: ao abrirmos
as portas da percepção veremos que tudo é infinito123. Essas portas que dão nome à banda The

122
NIETZSCHE, Friedrich W. A visão dionisíaca de mundo. Em: NIETZSCHE, Friedrich W. A visão dionisíaca
de mundo e outros textos de juventude. (Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Maria Cristina dos Santos
de Souza, trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1870/2005. p. 31.
123
BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno; O livro de Thel. (José Antônio Arantes, trad.) 4ªed.
São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 46.
60

Doors, mencionada por Roberto Piva adiante. Esta percepção do infinito aberta pelo

Piva carrega a tinta contra os caretas, os cerebrais, os moralistas. Nas entrelinhas, Piva
deixa claro a relação da música pop com o reaparecimento do espírito dionisíaco como grande
mudança histórica, atualizando a proposta de Nietzsche.

Mas, pera aí. A música pop e


-se lembrar que nesta época se fazia

rela às modificações corporais dessa vibração, capaz de nos lançar às correntes


cósmicas. Houve um poeta que exaltou a eletricidade como grande metáfora poética. Em Walt
body electric), a eletricidade era uma bela analogia do
fluxo constante das forças do universo que atravessavam os corpos. Na eletricidade, os limites
sociais e individuais explodiam e davam espaço à fusão (merge) das pessoas. O corpo elétrico é
o corpo difuso nos outros corpos, nas paisagens naturais, nas cores, no epicentro da vida. O
toque e o sexo são os maiores símbolos dessa fusão elétrica dos corpos. E, assim, lançado ao
fluxo do universo, o poeta é ele mesmo o cosmos, uma espécie de microssomo da potência da
vida cósmica. Daí o conhecido cartão d
124
bronco, um cosmos, / Agitado corpulento e sensual . . . . comendo e bebendo e proc .
Roberto Piva finaliza com este intertexto, mas na terceira pessoa: os corpos elétricos dos
roqueiros no curto-circuito de um novo momento histórico.

Entrevista à revista Rolling Stone

A proeminência de Roberto Piva como agitador cultural lhe rendeu a famosa entrevista
à revista Rolling Stone, concedida a ninguém menos que Ezequiel Neves125. Nela Roberto Piva é
apresentado como pessoa explosiva e de grande vibração na aglutinação da juventude. Sua

mencionando ainda sua trajetória poética com a publicação de Paranóia e Piazzas. A entrevista
transcorre sobre os shows organizados por Piva desde o final do ano de 1970 (como era feita
sua divulgação, em que locais ocorriam e como eram escolhidas as bandas).

Novamente o poeta deixa claro o profundo relacionamento que tinha com os jovens
músicos das bandas. Conhece cada músico, sua trajetória e visão de mundo. É também um
momento em que o poeta traz muitos elementos sobre sua formação cultural, seja com o que
a Vico e
Cecco Angiolieri) seja com o rock dos anos 50 (especialmente Elvis Presley). Na música pop de
então, Piva salienta a figura de Jim Morrison associada à poesia de Walt Whitman, ambos com
entra sua visão de mundo

Rubin, Norman Brown e Paul Goodman.

124
WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. (tradução Rodrigo Garcia Lopes). São Paulo: Iluminuras, 1855/2008.
p. 77.
125
NEVES, Ezequiel. Roberto Piva: um paulistano desvairado. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.).
Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1972/2009. pp. 18-27.
61

Como em seus ensaios na revista Artes:, Roberto Piva concebe aquele momento de
efervescência da música jovem como uma manifestação do sagrado, mas de um sagrado arcaico
em uma convivência tribal. São várias as reminiscências ao universo tribal e arcaico como
referência para falar dos jovens e seus rituais festivos na música. É essa verve do sagrado
selvagem que une a sua trajetória em poesia com aquela na música, uma vez que nos rituais
arcaicos não havia distinção entre poesia, música, dança, artes plásticas, etc. É a palavra
cantada. É assim que quando indagado sobre como começou sua relação com os conjuntos de

vida poética. A imagem do mergulho nas próprias águas, agora na maré da música pop, o traz
os versos finais da seguinte passagem da Ode Triunfal (1915), de Álvaro de Campos:

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,


Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos e eu acho isto belo e amo-o!
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!126

É uma associação ilustrativa para se pensar o envolvimento de Piva com aquela


rapaziada. Álvaro de Campos discorre sobre a escória: suas gírias, seus atos delinquentes, seus
itinerários marginais, enfim, seu modo de vida subversivo que passa ao largo dos controles
morais e institucionais da sociedade e seu progresso. Campos celebra seu amor por esta fauna

Ao trazer esta passagem na entrevista, Roberto Piva extravasa uma relação similar com
os garotos suburbanos que compunham o ambiente underground do rock. Não são poucos os
textos em que o poeta exaltaria a vida nas periferias, as ações imorais e os atos delinquentes de
jovens marginais. Novamente é no livro Coxas (1979) que surgem esses jovens em meio a orgias
ou assassinatos. Jovens que têm em Macunaíma o ancestral mítico encarnado na vida selvagem
para usar expressões de
Piva o poeta encerra a entrevista com caudalosa prosa poética, em uma primeira menção à

O que estamos precisando agora é de uma música que ressuscite todos os


nossos pesadelos, um grupo com a noção perfeita da cloaca primitiva, que
varra da consciência nossos sonhos medíocres, que nos liberte dessa última
hipnose chamada civilização. Um conjunto e uma música que sejam o

126
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. (edição Teresa Rita Lopes). São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. p. 83-84.
62

entrechoque de aços implacáveis, gritos nas cavernas da alma, gigante


soluçante, anão em chamas, pedaço de sol na tribo, som perfurando a crosta
dos sentidos, uivo de paz, guerra de amor no veludo da goela. Tamanduá-
Flutuante seria o nome ideal para este conjunto que faria nascer a Hora
Cósmica, o Gavião Amarelo & o Lince da Montanha Sonora. O tempo está
127
claro .

Aqui uma primeira menção do que viria a ser o ponto nevrálgico da poética de Piva a
partir de 1980: poesia de linha de fuga da civilização ocidental e sua história, pela experiência
arcaica do êxtase. Neste momento, contudo, o poeta profetiza um grupo de rock com estas

juventude a hipnose do processo civilizatório.

O tom profético arrepia. E a profecia se confirma. Tamanduás flutuantes passeariam


entre os orgasmos coletivos da tribo Osso & Liberdade, de Coxas. E a década de 1980 conheceu
o poeta bruxo que assombrou toda a civilização urbano-industrial com estrondoso grito
selvagem na Hora Cósmica do Gavião.

O mundo é uma eterna festa num ciclo cósmico infinito

A série de participações de Roberto Piva na revista Artes: se finaliza com um poema. Ele
é importantíssimo não apenas por ser um dos raros registros poéticos de Piva neste período,
mas por trazer suas vivências desta época ligadas a uma entusiástica visão de mundo. Tudo isso
encorpado por experimentações na força de criação e na distribuição do verso. Ali estão suas
visões, vivências, leituras, músicas, amizades e amores. Vejamos.

Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre
estas mesas & lindos rostos pagãos me observam viver?
Estou no Chivas da Haddock Lôbo / são 3 horas da tarde / quinta-feira /
fevereiro / 1972 / tomo um Milk Shake enquanto espero um Anjo entre as
mesinhas & as árvores que cercam este pedaço de mundo batido pelo vento
paulista & o sol universal / as fôlhas arrastando atrás de si o sonho dos
duendes & eu estou com vontade de ouvir Changelling do Doors na voz de
trovão-machucado de Jim Morrison da última fase & gostaria de ver
Baudelaire aparecer por aqui / com os cabelos compridos pintados de verde
& sua tartaruguinha prêsa numa coleira de cachorro / recitando les jornaux

separando mais o sonho & a realidade-limitadora colorindo as ruas / os


prédios / as casas / numa visão psicodélica dos Paraísos Artificiais & o mundo
seria uma eterna festa num ciclo cósmico infinito & o ser humano seria o Anjo
Universal cheio de amôr como eu estou agora. Dois garotos conversam sôbre
alguma coisa bem louca na mesa em frente & um deles gostaria de viajar num
disco voador / tripulado por estranhas aranhas elétricas / olhando a lua cheia.
Às vêzes quando entro num supermercado eu me sinto absurdo & percebo as
caixas coloridas / os pêssegos / as batatas / olhando para mim com seus olhos
doces e interrogativos / como se quisessem ensinar alguma coisa bem terrível
para minha consciência tranquila de ser humano. Lembro de uma poesia de
mas creio
que o rio / É um poderoso deus castanho-

127
Neves, Ezequiel. Roberto Piva: um paulistano desvairado, op. cit., p. 27.
63

Isto me faz pensar que existem muitos deuses & que a verdade nunca pendeu
do braço do Absoluto & estamos vivendo ou morrendo nesta bola colorida
chamada terra. Quem já ouviu Live de Johnny Winter num dia de muita
alegria? Quantos amigos você fêz hoje? O que você sonhou esta noite? Você
já viu o pôr-do-sol em Eldorado ou na Riviera paulista? Você está amando? As
flores pensam / os músculos são invadidos pelo músculo elétrico / eu me sinto
muito feliz / meu coração zumbe / eu percebo as estrêlas lilases na tarde
vermelha / minha mente está sendo povoada pelos meus amores / a música
desce até meu estômago / até a última gôta de alegria / meus pulmões são
jovens & perfeitos / um deus acaba de nascer numa fôlha de plátano trazida
pelo vento / os telefones do mundo começam transmitir mensagens eróticas
/ as janelas explodem em sinfonia o mundo é um maravilhoso lugar para se
nascer / o espaço é esplêndido / eu vejo / eu acredito como Whitman no
corpo & nos seus apetites / eu sinto a vida nos intestinos / eu tenho muitas
verdades dentro do meu coração de carne / há um girassol abandonado nos
teus olhos, Paulo? Que correnteza nos levará à deriva hoje? Sandwiches /
ostras / latas de cerveja / enxurrada maravilhosa saída da guitarra de Johnny
Winter numa tarde de sol de fevereiro em São Paulo! Pequenos monges
hippies de olhos azuis como laranjas transam agora na Haddock Lôbo
esperando cair a noite com seu vestido de mistério. A locomotiva do
escorpião vai levando meu amigo Ivan para que cômetas? Onde estará você
sonhando agora / enquanto as nuvens lançam sombras loucas sôbre estas
mesas & lindos rostos pagãos me observam viver? Um sol hippy azula minha
cabeça sou sacudido pela visão da Eternidade. Estranhas galáxias brilham nos
olhos do garôto da mesa em frente & ele quer falar de uma praia cheia de
mistério onde ursos & pinguins sentariam ao redor do fôgo perto de sua
barraca azul & fariam juntos uma oração à alma do mundo / perdidos / longe
/ numa ilha de fumaça coroada pelo arco-íris! O centro da carne & três mil
vivas à Mick Jagger que tem jôgo de cintura & três mil vivas à Roberto Bicelli
que descolou isso & três mil vivas ao meu amigo Sérgio Mamberti que é um
gênio & tem uma alma linda nos olhos & três mil vivas aos meus novos amigos
Pablo, Berin, Paulo, Paulinho, Margareth, Marcia, Cecília, Victor, Leli, Vova,
Antônio que acreditam nas cores nos vulcões na natureza tremendo de
felicidade. Os deuses começam ficar alucinados às seis horas da tarde quando
o sol se dispõe a guiá-los nos sonhos & criar na nossa imaginação a loucura
da lembrança a saudade da pirataria dos mares de antigamente onde
Fernando Pessoa foi buscar a sua Odisséia & soprou sôbre nossas cabeças o
furacão de sua Ode Marítima. A POESIA É UM PRINCÍPIO MUSCULAR (Michael
McClure)128.

Roberto Piva inicia o poema num tom de diário, expondo o local e a data em que
escreve. É com os pés cravados em sua realidade que o poeta é tomado pela enxurrada de
associações livres. Misturam-se aí sensações daquele instante, imaginações sobre o que
conversavam as pessoas da mesa em frente e delírios de Baudelaire levando sua tartaruga para
passear na coleira. As associações prosseguem com a vontade de ouvir uma música, a lembrança
de um poema intercalada com uma reflexão mística. Os amigos chegam e começam a beber e
conversar. O poema extravasa as novas amizades numa transbordante alegria associada a um
comentário do amigo Bicelli sobre o jeito de Mick Jagger dançar.

Roberto Piva dá a dica s


sonho & a realidade-limitadora colorindo as ruas / numa visão psicodélica dos paraísos artificiais

128
PIVA, Roberto. Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas
& lindos rostos pagãos me observam viver?. Revista Artes:, São Paulo, Ano VII, n. 35, p. 3, 1972.
64

& o mundo seria uma eterna festa num ciclo cósmico infinito & o ser humano seria o Anjo
Universal c -se: fusão do sonho e da realidade, das
efusões imaginárias mergulhadas no princípio do prazer com a percepção sensorial da realidade.
É uma dinâmica parecida com aquela compreensão de Piva sobre a criatividade de Wesley Duke
Lee. A percepção da realidade indissociável do fluxo imaginário como ocorre com todos nós,
com mais ou menos intensidade. Piva deixa claros exemplos dessa percepção delirante da
realidade: o vento sopra balançando as folhas numa sensação associada ao delírio, pois arrasta
delírio vontade de ouvir uma música.
Ou a imagem dos dois garotos conversando na mesa em frente, percepção à qual o poeta
m disco voador / tripulado por estranhas aranhas

de quando está no supermercado. É uma associação mais que livre.

paraíso: um êxtase e plena alegria do m


com um ser humano transbordando amor.

Essa forma de criação pelo fluxo veloz da atividade consciente assaltada pelo imaginário
exige versos poéticos que escorrem no papel sem interrupção, apenas separados por barras ( /
). A versificação ganha, assim, o formato do texto corrido da prosa, sem perder separação em
versos. É uma força de composição que Piva iria experimentar na década seguinte, em Quizumba
(1983). Ali também a fluência de sensações, lembranças, músicas, amizades e leituras, é
sobreposta em associações das mais inusitadas.

A menção a Charles Baudelaire também é indicativa dessa forma de criação. O texto é


extraído de Fusées (Foguetes) que junto com (Meu coração posto nu)
formam espécies de diários íntimos (jornaux intimes) do poeta francês. Nestes diários há textos
fragmentados, inacabados, escritos em rompantes abruptos entre 1855 e 1862. O próprio
Baudelaire escreve sobre esta proposta: escrever dia a dia, não importa onde ou como, seguindo

pública moderna, como aqueles dos quadros parisienses. São diários íntimos em que o poeta
discorre livremente sobre os mais variados assuntos, incluindo o modo de ser do dândi mesclado
a reflexões filosófico-teológicas, em meio a desabafos contra a política ou a religião; aí juntam-
se híbridos de crítica literária com memórias da infância, ou passagens biográficas sobre suas
obras intercaladas por notas para não se esquecer de algo. É um diário pessoal em que se diz
tudo sem censura. Há o elogio à loucura, à volúpia e ao amor natural pelo crime (amour naturel
du crime) temas frequentes na poesia de Piva.

A passagem transcrita por Piva é o trecho de número XVI de Foguetes


definição do Belo, do meu Belo. É qualquer coisa de ardente e triste, qualquer coisa um pouco
129. Baudelaire persegue sua definição em um exemplo

forma do belo expressar-se leva o poeta francês a toma-


tem uma idéia de melancolia, de lassidão, mesmo de saciedade, ou uma idéia contrária, qual
seja um ardor, um desejo de viver, associados a uma amargura recorrente, como aquela da

129
BAUDELAIRE, Charles. Journaux intimes: fusées, mon coeur mis à nu, carnet. Paris: Librairie José Corti,
1949. p. 18.
65

130.Mais
adiante, Baudelaire aponta que o Belo acompanha a Alegria apenas como ornamento mais
panheiro ilustre, ao ponto de não conceber
nenhum tipo de Beleza onde não h 131 . Eis a definição do belo em Baudelaire. A
beleza melancólica e desgraçada do poeta decadente parece contraposta na forma engraçada
com que surge no poema: com cabelos verdes levando uma tartaruga para passear. Exceto a
semelhança na forma de criação, não há traços evidentes desse teor de beleza no poema. Ao
contrário, Roberto Piva exala grande otimismo e alegria muito longe da melancolia do dândi.
É um poema de extração estadunidense a começar pelo milk-shake.

O primeiro poeta norte-americano a aparecer é Jim Morrison aquele mesmo que


Roberto Piva coloca ao lado de Whitman na expressão do amor angelical e selvagem, na
entrevista à Rolling Stone. Na mesa de um bar,
O Mutante), do The Doors (1971132 -
composição canta o Mutante que pede para o vermos mudar; uma metamorfose em que ele se
torna nós próprios e com is Eu sou o ar que você respira / O
alimento que você come / Os amigos que você cumprimenta / Na rua movimentada [...] Me veja

temática do poeta mesclando-se nos outros, nas coisas, no mundo inclusive no leitor. E imerso
nesse fluxo do universo, o poeta muda e faz tudo ganhar essa metamorfose: não apenas ele
torna-se nós que o lemos, mas nesse movimento nos tornamos outros. É a temática típica de
Walt Whitman.

É sobretudo a grande alegria de Whitman que o poema exala muito longe da bela
melancolia do dândi. É dos poemas mais afirmativos de Piva, mais otimistas. Nada de crítica ou
de imagens destrutivas. É o poema mais a la Whitman de Piva. O bardo americano ama o mundo
como fluxo perpétuo do diverso, com todos problemas e alegrias, com todo bem e todo mal,
uma vez que não há nada para se julgar ou corrigir, mas vivenciar todas essas sensações com
felicidade e prazer. Com seu tom de oralidade, Whitman tem como característica dirigir
perguntas aos leitores, estabelecer um franco diálogo ou incitá-los a sentir o prazer com as
relações:

Pensar em quanto prazer existe!


Você sente prazer quando olha pro céu? Sente prazer com poemas?
Você se diverte na cidade? ou metido em negócios? ou armando uma
indicação e
133
eleição? ou com sua

meu coração zumbe [...] meus pulmões são jovens e perfeitos [...] o mundo é um maravilhoso
u da mente do
poeta rachada de encontro a uma calota, com sua alma desconjuntada (imagens fortemente
destrutivas que se acumulam em Paranóia
A sequência do poema menciona explicitamente Whitman com sua vivência do corpo e seus

130
Ibidem, p. 21.
131
Ibidem, p. 22.
132
The Doors. L.A. Woman. Elektra Records, 1971. 1 disco.
133
WHITMAN, Walt. Folhas de Relva, op. cit., p. 153.
66

esta noite? Você já viu o pôr-do-


São interrogações de Walt provocando para viver as coisas boas da vida. O poeta questiona com
entusiasmo, sem julgamento moral ou agressividade, incitando o leitor para viver intensamente.

Esse entusiasmo de Whitman sempre vem acompanhado de Ginsberg aquele mesmo


Supermercado na Califórnia. Piva também
tem suas iluminações nesse mesmo lugar, entre as batatas. Um sanduíche aqui, um girassol

de vamos, Walt Whitman? [...] Que caminhos aponta tua barba esta
Um Supermercado da Califórnia134 já presente na Ode a Fernando Pessoa de

ou em Paranóia, referindo- Que novo pensamento, que sonho


135
).

De certa forma, Piva retoma a tríade Whitman-Álvaro de Campos-Ginsberg de sua Ode


a Fernando Pessoa (1961). Esta última interrogação se repete do intertexto de Ginsberg, assim

símile

a Walt Whitman de Campos136, também já presente em Ode 137


)
138
e Paranóia Onde exercitas o ). Mas aqui nada do tédio do
poeta lisboeta, nada da melancolia do dândi francês, nada da crítica à cidade de São Paulo pelo
seu moralismo; mas sempre intenso prazer e entusiasmo. Sempre o sorriso aberto emoldurado
por longas barbas do bardo cosmos. O poeta de 1972 revisita muitas de suas referências do
início da década anterior vestindo-as com cores mais quentes e empolgadas.

Até T.S. Eliot aquele mesmo rechaçado nos Manifestos de Roberto Piva de 1962 vem
compor o elenco estadunidense com seu místico Quatro Quartetos. Ao início do poema
transcrito por Roberto Piva segue-se a captura do rio selvagem com a construção de uma ponte,
139
. No entanto, em
épocas de cheia, a vazante do deus indomável transborda com fúria e rememora sua força. Essa

fulgurante do deus-
140
dentro de nós, o mar está a toda .

Certamente este deus indômito está presente também naquela mesa de bar na rua
Haddock Lobo, de onde Roberto Piva escreve. Certamente o rio flui em suas associações e na
maré vazante de seus versos. Em suas águas, Roberto Piva experimenta a proliferação de deuses

134
GINSBERG, Allen. Uivo e outros poemas. Em: GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas.
(Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1956/2005. pp. 19-65 (Coleção LP&M Pocket, vol. 188). p. 49.
135
PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas volume I
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 64.
136
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos, op. cit., p. 149.
137
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 20.
138
PIVA, Roberto. Paranóia, op. cit., p. 64.
139
ELIOT, T.S. Quatro quartetos p. 57.
140
Ibidem, p. 57.
67

num mundo que vibra forças encantadas. São estes rios indômitos que trespassam as ruas da
cidade, como aquela em que o poeta vê o nascimento de deuses pagãos nos rostos dos garotos.

Por um lado, o poema pulsa aquela mesma Grande Vida cavalgada em sensações, do
início de sua produção poética. Por outro, incorpora as forças dessa juventude roqueira com o
qual flertou durante este período. Mas agora, além de Whitman-Campos-Ginsberg, Roberto Piva
lança mão de Michael McClure, este outro grande poeta do rock por sua influência no The Doors
ou por composições como Mercedes Benz, consagrada na voz de Janis Joplin.

em caixa alta, bem ao modo do poeta


americano. A frase é característica de McClure e aparece em diversos momentos de sua criação.
Em uma divulgação de recital do ano de 1960, por exemplo, o poeta apresenta texto que se
inicia da segui -
141
. O poeta prossegue dizendo que imagens e melodias no poema
não são suficientes, mas sua potência sensível com em uma experiência religiosa ou um toque
amoroso. McClure experimenta a poesia em sua fisicalidade, como urro de leões ou sussurro de
amantes. Importa sua potência de vibrar a carne e retesar o músculo. Esse corpo aberto ao devir
s dedos pode se tornar um grito

poesia considerada um organismo vivo e pulsante capaz de proliferar as sensações que o próprio
poeta nela inscreveu com seu punho. São as bases da poesia na biologia, pois poeta, poema e
leitor são tomados por organismos em crescimento natural e, inclusive, em combate comum
ambiente que entrave este processo. Daí sua feição política anárquica, a partir da rejeição de
qualquer norma social ou
EZA,

Ao trazer essa verve corporal do verso de McClure, Roberto Piva encerra o poema como
um convite para se reverberar na carne sua potência. Mas também revela a relação do poeta
paulistano com o estadunidense, pois em meados desta década Roberto Piva recebe,

Poesia é um princípio muscular. No entanto, como o poema de Piva data de fevereiro de 1972,
o poeta tinha acesso a materiais ainda antes de sua grande repercussão pública nos EUA. A aura
do rock colocara Roberto Piva novamente na proa das produções musicais e literárias mundiais,
continuando sua característica cosmopolita e pioneira.

Assim, o poema é emblemático das vivências de Roberto Piva deste momento. No corte
biográfico fundamental em sua poesia, ressalta as convivências do poeta, os locais que
frequentava, suas amizades e a exaltação da vida num otimismo contagiante. No plano de sua
formação cultural, revela suas influências literárias e musicais, com acento a sua antena que
capta todas as novidades. Na experimentação poética, o poema traz o disparo de versos velozes
separados por traços que marquem seu ritmo sem perder seu pique experiência que seria
repetida em Quizumba (1983). No que diz respeito ao processo criativo, Roberto Piva vivencia a
percepção delirante da realidade com os assaltos do imaginário e suas associações livres, de
inspiração surrealista. Também a fusão entre arte e vida, ou criação a partir da experiência

141
MCCLURE, Michael. Poetry is a muscular principle and a revolution for the body-spirit and intellect
and ear. 1965. Disponível em: http://library.brown.edu/find/Record/dc1304011886265627. Acesso em:
4 set. 2013.
68

vivida, coloca o poema em sintonia com surrealistas e, inclusive, sua retomada visceral pela
geração beat. Por fim, o poema é emblemático das vivências de Roberto Piva no cenário do rock
paulistano e de sua proeminência como agitador cultural, crítico de artes, poeta e profeta.
71

Abra os olhos e diga Ah!: a política do corpo em chamas

Publicado poucos meses após o golpe militar de 1964, Piazzas traz a audaciosa denúncia
de torturas sofridas por jovens, além de associar o Estado brasileiro e suas instituições policiais
ao fascismo e ao nazismo. Após Piazzas, Roberto Piva fica mais de uma década sem lançar livros,
acompanhando a interrupção das atividades de seu editor e amigo, Massao Ohno, visado pela
ditadura.

Combina bem com a vida poética de Roberto Piva a afirmação de Alcir Pécora sobre sua

regulares de 12 anos aquele do começo da década de 1960, outro de meados de 1970 ao


começo da década seguinte e um último momento a partir do final dos anos 90142. Contudo, a

do contexto histórico em que sua obra foi produzida. Após Piazzas, por exemplo, Roberto Piva
não mais publica livros em virtude da censura, e tão logo Massao Ohno reinicia sua atividade
editorial, o poeta lança seu Abra os olhos e diga ah!. Sua obra Ciclones, publicada em 1997, tinha
já uma versão pronta em 1991, que não veio a público por falta de interesse editorial. Sergio
Cohn, que acompanhou de perto a preparação de Ciclones, observa que o poeta tinha amplo
material, acumulado após anos de escrita, decidindo por publicar em um único livro,
143
da dificuldade que poderia haver em ter outro convite p .

Poderíamos citar, ainda, o inédito Corações Hotdog (que reúne poemas das décadas de
1970 e 1980) e foi recusado pela editora Brasiliense após convite prévio, por preconceito em
relação a seu conteúdo licencioso. Ou ainda, Animais de Néon, obra que Roberto Piva dá como
pronta em sua publicação na revista argentina Cerdos & Peces (1989), mas que permanece
inédita. Assim, a produção contínua do poeta nem sempre encontrou meios de diálogo com seu
público, seja por censura da direita militar ou por moralismo da esquerda.

Porém, eis mais uma transgressão disparada pela poesia de Roberto Piva: se

destaca Alcir Pécora, a poesia de Roberto Piva tem muitos torcedores e poucos críticos, pode
tornar críticos seus torcedores do mesmo modo como arranca surtos dos críticos.

1. Potência erótica

eu sou o jet set do amor maldito

DENTRO DA NOITE & SUAS CÓLICAS ILUMINADAS

os papagaios da morte com Aristóteles na proa do trovão

DISPOSIÇÃO DE IR À DERIVA NOS DADOS DO AMOR

espinafre pela manhã & queijo em pasta

142
PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005. p. 09.
143
COHN, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. p. 59.
72

almas-esportivas com flores entre os dentes

minha laranja se abrindo como uma porta

TUA VOZ É ETERNA eu vejo a mão cinzenta rasgar

a parede do mundo

ESTAMOS DEFINITIVAMENTE NA VIDA144

Abra os olhos e diga Ah! canta o amor por garotos. Amor sob o signo do mal. Os poemas
amealham imagens da potência do amor em vibrar na verve da vida. A erótica, nesse primeiro
lampejo, encarna a intensidade do corpo.

a dois. Nessa intimidade, o poeta exalt

O amor é o movimento da vida. A partir do amor, tudo anoitece cheio de energia, ou a

jet set, cujo amor maldito faz decolar.


Pois o movimento do amor é lançar ao devir: à deriva nos dados do amor. Os dados como
símbolo do acaso, a entrega amorosa tomada por deriva e a urgência de se deixar levar sem
controle.

As imagens do que parece ser a refeição de uma manhã após o amor, com espinafre e
-esportivas
apresentam um imaginário olímpico, com os membros musculosos,
apimentados com a insinuante flor nos dentes. É nessa atmosfera libertina que a laranja do
poeta se abre, como porta, e os amantes rasgam a parede do mundo. Esse teor agressivo e
subversivo do amor coloca os amantes na ebulição da vida.

2. Amor Maldito

Mas o amor é maldito também por ser amoral: por ser atravessado por outras forças
distintas dos bons costumes. Mal dito pela moral conservadora. É sob o signo do mal que o amor
permite viver numa veia instintiva e corporal, no avesso da humanidade e da moral.

se apresentaria dessa forma anos mais tarde: Eu Roberto Piva Animal de Rapina

particular da noção de Friedrich Nietzsche.

nietzschiana se pode dizer que a expressão simboliza o homem anterior ao estágio comunitário

144
PIVA, Roberto. Abra os olhos e diga Ah!. Em: PIVA, Roberto. Mala na mão & asas pretas obras
reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1976/2006. p. 27.
73

ou a experiência de um estado selvagem. Antes do civil, a selva. O monstruoso fluxo dos


impulsos selvagens, para além do bem e do mal. O homem como devir da vida natural. Ali onde
tudo exala a força, a ação, o impulso, a necessidade. O sentido predatório do homem ávido de
presa, intenso no prazer de destruir. Mas também intenso na inocência e alegria de criar. Nesses
145
animais de rapina, Nietzsche vê . O animal de
rapina está também na raiz de toda moral cristã. Agora não como exaltação, mas como temor.
Trata-se de uma moral criada a partir do medo ou de um afeto reativo de negação. Amansar o
animal de rapina que existe em cada ser, torná-lo manso, inofensivo, obediente: eis o animal de
rebanho. Para Nietzsche, muito do que a moral do rebanho considera força do mal, advém desse
temor ao vigor do animal de rapina.

Assim, identificado a si e seus amantes como animais de rapina, Roberto Piva exalta a
vida visceral dos instintos, além de se colocar como antípoda da moral cristã dominante.

Em Abra os olhos e diga Ah!, Roberto Piva lança mão de figura não menos cruel:
Lautreamont. A epígrafe da obra remete ao famoso trecho de Cantos de Maldoror dedicado à
pederastia.
Eu sempre experimentei uma atração infame pela juventude pálida dos
colégios, e pelas crianças estioladas das fábricas! Minhas palavras não são
reminiscências de um sonho, e eu teria muitas lembranças a desfiar, se me
houvesse sido imposta a obrigação de fazer passar diante de vossos olhos os
acontecimentos que poderiam confirmar, como seu testemunho, a
veracidade da minha dolorosa afirmação. A justiça humana ainda não me
pegou em flagrante delito, apesar de incontestável habilidade de seus
agentes. Até mesmo assassinei (não faz muito tempo!) um pederasta que não
se prestava suficientemente a minha paixão; joguei seu cadáver em um poço
abandonado, e não há provas decisivas contra mim. Por que estremeceis de
medo adolescentes que me ledes? Acreditais que eu queira fazer o mesmo
convosco? Vós vos mostrais soberanamente injusto... Tendes razão:
desconfiais de mim, principalmente se fordes belo 146.

A primeira frase da passagem é exatamente aquela da epígrafe de Abra os Olhos e Diga


Ah!. Nela, o amor por garotos é maldito não apenas pela reprovação social, mas por se
comprazer com as paixões inconsequentes. É essa a intensidade da vida que passa ao largo da
stintos
animais, como quer Nietzsche. Se o animal de rapina convoca a intensidade do devir contra a

da empreitada de Maldoror pela destruição da família, Roberto Piva incorpora essa força em sua

3. Poema na cama

O amor pederástico surge como mote do vínculo do amor e do mal, ponto seminal do
modo de vida do poeta. Da mesma forma, o ato sexual é similar ao próprio ato de criação

145
NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma polêmica. (Paulo César de Souza, trad.). São
Paulo: Companhia das Letras, 1887/2009. p. 69.
146
LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror. 2. ed. (Claudio Willer, trad.). São Paulo:
Iluminuras, 2008. p. 232-233.
74

poética. Desde o Postfacio de Piazzas


à

O ato da escrita enleva o poeta aos influxos das sensações e fluxos do inconsciente,
tanto quanto o ato sexual. Em ambos, está-se entregue a forças instintivas e associações
delirantes, a despeito da consciência e da moral vigente; em ambos, as dicotomias entre eu-
outro, passado-presente-futuro, ser-expressão se desvão, numa espécie de caos originário que
guarda o sentido profundo da orgia. Se em Piazzas o poeta dialoga com passagens de Breton
(seja àquela da poesia como orgia, ou a afirmação de que as palavras fazem amor) e formula o
Abra os Olhos e Diga Ah! a coisa aparece
crua, com o poeta literalmente escrevendo após o amor, com seu amante dormindo ao lado:

Contudo, mais do que semelhança, Roberto Piva traz nessa obra um contraponto em
relação às ideias do arauto do surrealismo oficial. Vejamos.

(A EPOPÉIA DO AMOR COMEÇA NA CAMA COM OS LENÇÓIS


DESARRUMADOS FEITO UM CAMPO DE BATALHA)
é ali que eu começo a nascer para a madrugada & suas
vertigens onde você meu amor se enrosca em
meu coração de veludo verde & as delícias de continentes
alaranjados dormem em seu rosto de pérolas turvas oh tambores do amor
sem parar rumo às tempestades PLANETÁRIAS & suas
cachoeiras tristes & pesadas como lágrimas
gosto de gostar & a tv da alma amanhece bêbada & tenta
dizer alguma coisa147

Numa primeira olhada, a intensidade do amor maldito parece similar aos poemas
anteriores. A partir do amor a vida ganha vibração e o poeta nasce para a madrugada (da mesma

, antes respirado em suas tripas, agora se enrosca no coração do poeta,


em simbiose similar. O amante com a voz eterna num, e o rosto de pérolas noutro. Porém, a

suas cachoeiras tristes & pesadas como

O amor que lança ao devir, também devém. É maldito não somente pelas delícias
selvagens que experimenta, mas, não sendo amparado por qualquer instituição social (como o
matrimônio), é também mais volátil e fugaz. É o amor maldito como êxtase: maravilhoso e
terrível. Daí a tristeza e as lágrimas acompanharem os tambores do amor.

147
PIVA, Roberto. Abra os olhos e diga Ah!, op. cit., p. 35.
75

Um parêntese: Sergio Cohn, amigo de Roberto Piva e grande conhecedor da poesia de


Michael McClure, apontou as semelhanças entre os versos dos dois poetas. Na época de
composição de Abra os olhos e diga Ah!, ambos se correspondiam e o poeta paulistano recebera,
inclusive, a obra Jaguar Skies (1973) autografada. Vejamos um poema desta obra:

BEGINNING WHIT LINES BY ROBERT DUNCAN

for Joanna

but stuf

and smile
AND SMILE
AND SMILE
in song that is a pouring Nile
of bubbling slumberous grins
and elfin mumbles
on the pillow of delight;

break from unconsciousness


with laugh,
facing my mortality,
and
then fall back again
to snooze into fatality
and dream of mouse-eared people
dancing round a golden steeple
while my shoulder
touched your hand148.

Uma característica dessa obra de McClure é a presença de versos iniciais em caixa alta,
mesmo procedimento utilizado para ressaltar algumas passagens no interior do poema. Muitos
dos poemas de Abra os olhos e diga Ah! fazem uso desse mesmo expediente, como na passagem
acima, em que a caixa alta ressalta versos apropriados de André Breton, de forma similar aos
versos de McClure ao mencionar Robert Duncan. O ritmo de alguns versos repetidos também
assemelha ambos os

tende a centralizar o poema na página, o brasileiro utiliza o recuo tradicional à esquerda.


Enquanto o primeiro tende a versos curtos, o ritmo do segundo se sustenta em versos longos,
embora ambos utilizem frequentes quebras de uma mesma frase dividida em versos distintos.

148
McCLURE, Michael. Jaguar skies. New York: New Directions Books, 1975. pp. 49. Em tradução literal:

SORRISO / na canção que é uma enchente do Nilo / borbulhando risos sonolentos / e murmúrios de elfos
/ no travesseiro do prazer; / Eu / quebraria a partir da inconsciência / com o riso, / encarando minha
mortalidade, / e / então cairia de novo / na soneca dentro da fatalidade / com gente rato-orelhas num
sonho / dançando ao redor de uma torre de ouro / enquanto meu ombro / toca sua mão.
76

Além do aspecto formal, o tema de McClure também comparece em Piva: poemas


escritos após o amor, com os amantes emaranhados na cama; numa sequência de êxtase
amoroso, adormecimento dos amantes e imersão no mundo dos sonhos.

Mas não apenas McClure e Piva fazem poesia após o amor:

Sur la route de San Romano

ore des choses


La poésie se fait dans les bois

Sont incompatibles
Avec la lecture du journal à haute voix

La chambre aux prestiges

Ni les vapeurs de la chambree un dimanche soir

Défend toute échappée sur la misère du monde 149

O verso inicial do poema foi mencionado por Roberto Piva na Introdução a Anotações
para um Apocalipse (1964), do amigo Claudio Willer. Naquele contexto, o poeta salienta a
identificação do ato do amor com a poesia, em detrimento da poesia cerebral e idealizada, típica
da época.

Em sua Rota, André Breton toma o amor, como a poesia, em um sentido mais geral. O

possivelmente alusão à sua caminhada na mencionada estrada. Seja porque o amor lança à
com a
realidade corriqueira (leitura de jornal) ou com os acampamentos de batalha, é, como a poesia,
um refúgio à miséria do mundo. Ou seja, por alçar a prazeres, delírios e viagens cósmicas, torna
o poeta um fugitivo do mundo, amparado em seu abraço.

A epopeia do amor de Roberto Piva é referencial: transfigura uma experiência vivida,


repleta de feições do amante e seus gestos. Não é o amor em sentido geral ou abstrato, mas
uma experiência sexual em particular. O amor em Roberto Piva tem feições selvagens e esbanja
-nascer para a

149
BRETON, André. Sur la route de San Romano. Em: ______. Oeuvres Complètes, vol. III. Paris: Gallimard,
1948/1988. pp. 421. Em tradução literal: Na Rota de San Romano: A poesia se faz na cama como o amor
/ Seus lençóis desarrumados são a aurora das coisas / A poesia se faz nos bosques [...] O ato do amor e o
ato da poesia / São incompatíveis / Com a leitura do jornal em voz alta [...] O quarto aos delírios / Não
senhores, não é a oitava Carta / Nem os vapores do quarto de campanha num domingo a tarde / O abraço
77

madrugada e seus prazeres. Mas é cacto de veludo: prazerosa e espinhenta; feri e acaricia; traz
gozo e dor.

O amor maldito é pederástico. Descreve-se um encontro com garoto feito anjo, no


poema intitulado Ganimedes 76. Adriano e Antinous vem em seguida para compor o imaginário
greco-

Roberto Piva faz questão de marcar outra diferença importante. Em sua paródia do

por Breton, pois descarta os vapores do quarto de campanha ou do acampamento militar.


Roberto Piva, ao salientar a batalha, conduz a um confronto com Breton. Pois a epopeia do amor
em Roberto Piva, e sua poesia, não protegem contra a miséria do mundo, mas, ao contrário
encarnam as contradições de seu tempo.

Caminho de San Romano, escrito durante a Segunda Guerra, é refúgio contra o mundo;
Abra os Olhos e Diga Ah!, escrito durante a ditadura militar, é campo de batalha.

4. política do corpo em chamas

(O SEXO DA MEIA-LUA LANÇA SUA NOTA METÁLICA & SEUS

GATOS SELVAGENS) onde dançamos com gorilas tântricos

cérebros eletrônicos fazendo xixi na cama vermelha

GRITOS MARAVILHOSOS NA JANELA política do esquecimento

sistemático ESTAMOS NA MERDA GENTIL

rosto de beterraba & sexo em ruínas

espelho bilíngue minhas esporas & olhos sorridentes

TODOS CHORAM AO MESMO TEMPO NO BRONZE DA TIRANIA

& COMEM SUAS MENINAS o vento da vida os braços

dependurados maxilares estourados ao amanhecer

TOTEM KAPITALISTA TOTEM KAPITALISTA TOTEM

KAPITALISTA150

Temos falado no amor em estado de guerra. Sensação de uma confusão pela efusão das
paixões. Este poema traz os contrastes nos versos, onde se intercala passagens amorosas com

150
PIVA, Roberto. Abra os olhos e diga Ah!, op. cit., p. 31.
78

to

nacional. É a merda gentil. O choro no bronze da tirania. O sexo em ruínas. Violência gratuita,
sem qualquer criação. É o TOTEM KAPITALISTA.

Interessante notar como


-política é interessante.
Guarda semelhanças com a virada antropológica de Bataille e demais integrantes do Collège de
Sociologie de Paris. As noções de Totem ou Tabu são centrais na antropologia ocidental e na
psicanálise para os estudos dos povos
uso dessas noções para problematizar a realidade de países ocidentais desenvolvidos (não
primitivos ) tal como a tradição modernista da antropofagia. Piva faz essa virada que
contrasta com a velha forma de compreender o capitalismo como modo de produção da vida
social, via marxismos. E o TOTEM KAPITALISTA é esse: repressão sexual, necessidade de tirania

rondas noturnas,
policiamento moral cristão, policiamento via entretenimento. Vigiar e punir. A este poder
disciplinar que se espalha por toda a sociedade não há como fugir. Não há como se esquivar, se
ireto no front
fogo.

Que fazer? A aposta piviana são linhas de fuga: os porões da vida, os espaços livres da
disciplina dos corpo, as estradas e os subterrâneos urbanos. Espaços flutuantes e movediços
percorridos pelas veredas do amor. São vários os versos que trazem o amor atrelado a imagens

o corpo no amor prenuncia experimentações também fluidas. Abra os Olhos e Diga Ah! celebra
o devir.

5. Porões da vida

(O MUNDO MUDA A COR DA JABUTICABA MUDA TEU CU MUDA O CHAPÉU

DO VIZINHO MUDA TEU SEXO MUDA O ÍNDIO MUDA HOLDERLIN MUDOU

HEGEL MUDOU TECNÓPOLIS MUDA & MUDAMOS CADA DIA MAIS PARA O

PORÃO DA VIDA COMO RIMBAUD ARTAUD MACUNAÍMA ROSA LUXEMBURGO)

o dragão

corre na corveta caraíba as coxas têm febre eu nem planta nem

fantasma o verdadeiro veneno MODESTA CRIATURA CIDADÃO DE UM MUNDO

EM CHAMAS eu faço esta advertência: A PERFEITA MÚSICA ESTÁ NO AÇO

canteiros folhudos cheios de silêncio

espaço cósmico samba-canção do nada


79

A busca por espaços onde verter a vida subversiva. A busca por mudanças tão urgentes

Rimbaud e a África: recusa do mundo ocidental e a busca da sabedoria primeira entre as culturas
tradicionais. Artaud entre os Tarahumaras: mesma ruptura com o modo de vida europeu que
redunda nas andanças do corpo em cataclismo, rumo aos rituais xamânicos. Macunaíma e a vida
preguiçosa na mata, entre brincadeiras, perversões sexuais e magias, sem responsabilidades ou
caráter (nacional ou moral). Piva antecipa aqui a ruptura com a civilização ocidental atrelada a
busca por rituais arcaicos. Está a bombordo da corveta caraíba, na proa do movimento
antropofágico de Oswald de Andrade.

A busca por espaços movediços coincide com a aposta em rituais arcaicos logo eles

como, aliás,
já fizera no Póstfacio de Piazzas151.

Zaratustra desce a montanha após anos de reclusão e encontra um ermitão,


considerado o mais sábio entre os homens. O sacerdote se dedica a cantos e a orações, além de
152
um
símbolo da vida ascética. É uma metáfora do homem que nega a vida, seja ele um religioso, um
artista ou um filósofo. A imagem da planta se relaciona com a técnica ascética do jejum ou da
alimentação vegetariana. Para Nietzsche, é a vontade de nada a partir do corpo, privando-o de
alimentação e devotando-o ao definhamento. O corpo é negado por uma vida além da Terra,

que legitimam a negação do instante em prol do distante; a negação da terra pela eternidade.

Uma das expressões dessa negação da vida presente, para Nietzsche, eram as utopias
políticas, como o comunismo. A sociedade sem luta de classes é símile da paz inerte da
eternidade. Se, desde sua primeira publicação individual (Ode a Fernando Pessoa), Piva era
grande crítico do comunismo pelo seu conservadorismo, em Abra os Olhos e Diga Ah! o poeta
simpatiza com movimentos de esquerda e com algumas personalidades revolucionárias. O
poema traz Rosa Luxemburgo ao lado de Artaud e Rimbaud, que o poeta tinha como suas
principais influências. Se a aposta do poeta eram os porões da vida, deles não se descarta a
possibilidade revolucionária da esquerda. Em outras palavras: Roberto Piva, o consagrado
anticomunista das últimas décadas, está, nesse momento, enamorado das teorias
revolucionárias de extração marxista.

Na organização de suas Obras Reunidas, Roberto Piva substituí o nome de Rosa


Luxemburgo por Dino Campana o poeta italiano conhecido por seus surtos deambulatórios e
vida subversiva (que bem compõe o elenco de linha de fuga da civilização, ao lado de Rimbaud
e Artaud). Com isso, exclui as alternativas revolucionárias por apostas anárquicas e
individualistas.

151
stava certo & lúcido ao afirmar que o homem moderno é
Piazzas, p. 55.
152
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra, op. cit, p. 36.
80

6. entralidade do corpo na política contemporânea

A ênfase na política do corpo é dos temas mais excitantes em Abra os Olhos e diga Ah!,

novidade no interior da poesia de Roberto Piva. Basta lembrar que a primeira formulação mais
consistente de sua poética,
apropriação bem particular da passagem de Breton que pudemos analisar. No mesmo
Postfácio de Piazzas, fica claro que tal poética deriva de u

153
está relacionado à livre expressão do corpo e à .

Escrito no mesmo mês de agosto de 1964 e em extrema sintonia com o texto de Piva, o
manifesto As fronteiras e dimensões do grito, de Claudio Willer154, cita as fontes dos dois poetas,
em suas ênfases no c
Life Against Death obra que Piva conhecera em 1962, a partir do amigo Wesley Duke Lee
destaca o grande desafio contemporâneo na experiência corporal, especialmente na descoberta
de suas possibilidades sexuais. Trata-se de um embate contra toda a negação da vida e da morte,
como expressão de um além da vida que recusa seu devir passagem crítica ao cristianismo em
que Brown deixa nítida a inspiração em Nietzsche.

Por outro lado, é ex


Octavio Paz chega a uma definição de poesia bastante cara a Roberto Piva. Diz o poeta mexicano:

155
ressu . Tal
como Norman Brown e também Piva e Willer Paz destaca o movimento romântico como

156
. Essa poética de
ressurreição do corpo em chamas passa pela rebelião romântica, o barroco espanhol e chega à
poesia contemporânea, em poetas como Cernuda:
Cernuda foi uma das figuras espanholas que me interessou mais, justamente
porque me pareceu, desde o princípio, um escritor perigoso, um escritor no
qual os valores poéticos não se podiam dissociar da subversão. Para mim a
subversão poética é subversão corporal. Em Cernuda, o corpo, finalmente, se
põe a falar em língua espanhola e se põe a falar e diz palavras escandalosas 157.

erto Piva para se


referir à sua poética, tão transgressora e fogosa como aquela de Cernuda. Em Abra os olhos e
diga Ah!, Roberto Piva dá continuidade à sua poética como ato sexual e como ressurreição do

153
PIVA, Roberto. Piazzas, op. cit, p. 55.
154
WILLER, Claudio. As fronteiras e dimensões do grito. Em: ______. Dias Circulares. São Paulo: Massao
Ohno, 1964/1976
155
PAZ, Octavio; RIOS, Julián. Solo a dos vozes. (Olga Savary, trad.). São Paulo: Roswitha Kempf,
1972/1987. p. 20.
156
Ibidem, p. 24.
157
Ibidem, p. 32.
81

corpo, porém com outros contornos. Há também aqui a transfiguração do corpo em chamas
como observa Paz em relação ao barroco espanhol.

Tal como em Coxas, nesta obra Roberto Piva denuncia a centralidade do corpo na
política contemporânea conforme também salienta Otávio Paz. O corpo em chamas é aquele
que arde no desejo dos amantes, numa afirmação da vida em sua potência erótica, mas também
o corpo cravejado de balas pela repressão violenta do Estado militar.

É o mesmo poeta que finaliza o Posfácio de Piazzas com a exaltação de Marquês de


Sexual Absoluta em suas mais extremadas variações levando em conta a
158
.
Diferente de Paz e Brown, ambos críticos ferrenhos da obra de Sade, Roberto Piva afirma o devir
em sua pluralidade de expressões, para além do bem e do mal. A política do corpo em chamas
destaca o prazer do algoz na tortura de sua vítima, como desejo sexual tão forte quanto aquele
dos amantes. Daí um mesmo verso aproximar cenas de amor com atos de tortura; daí diversas
passagens de Coxas
159
. Roberto Piva assemelha o contexto da Ditadura Brasileira ao
Grande Terror francês experimentado pelo Marquês de Sade. E mais: observa o quanto esse
clima violento contagia os jovens
em que afloram os instintos mais viscerais e violentos como no sexo. No amor e na guerra, o
homem é posto nu com todos seus instintos em carne viva.

Como Sade, Bataille e Burroughs, Roberto Piva afirma o potencial erótico sem
julgamento moral e bons mocismos, numa genuína expressão do corpo como campo de batalha.

s
científicas e soluções mercadológicas, a vida poética de Roberto Piva pode bem ser inspiração,
com a intensidade de um corpo em devir, um corpo como campo de batalha, atento aos agentes
disciplinadores, mas com força para pulsar sua veia subversiva.

158
PIVA, Roberto. Piazzas, op. cit, p. 55.
159
Idem.
83

R - 160

apresentava-
161
presos políticos do Brasil. Contra a tortura, . Eram os recitais
de 1977, organizados por Claudio Willer e Ruth Escobar em homenagem a poetas ligados ao
comunismo, como Pablo Neruda, ou vítimas de Estados Totalitários, como Federico García
Lorca. Tais atividades políticas foram pioneiras nas manifestações para a redemocratização do
país.

Roberto Piva participava ativamente dos recitais, das passeatas e de alguns meios da
esquerda, como a Libelu (Liberdade e Luta) grupo trotskista atuante no movimento estudantil
e ligado à Organização Socialista Internacionalista. Em sua atuação no movimento gay, Roberto

de São Paulo.

Os poemas publicados nesse período apresentam um Roberto Piva muito diferente


daquele das últimas décadas, com cortantes bravatas anticomunistas e críticas ao movimento
homossexual. Certamente o poeta não quis ser lembrado por esse momento de sua produção,
pois não inclui nenhum desses poemas em suas Obras reunidas e chega mesmo a alterar
materiais que explicitassem essa relação com a esquerda. É o caso de um poema do livro Abra
os Olhos e Diga Ah! (1976), em que o nome da revolucionária Rosa Luxemburgo, como consta
na primeira edição do livro e mesmo na antologia publicada pela editora L&PM (1985), é
substituído pelo do poeta italiano Dino Campana. Os poemas em que se apresentava como

Suas duras críticas ao comunismo e aos movimentos de luta por direitos sociais
acabaram lhe rendendo a pecha de reacionário ou conservador, como se houvesse se eximido
da atuação política durante o período da ditadura militar.

Daí a importância de apresentar a poesia engajada de Roberto Piva em sintonia com a


crítica de esquerda e o nascente movimento homossexual nesse importante momento da vida
política brasileira. Para tanto, centrarei fogo nas publicações do poeta no jornal revolucionário
Versus e no órgão gay Lampião da Esquina, nos anos de 1978 e 1979, respectivamente.

Um estrangeiro na legião

O ano de 1977 viu pulular as primeiras passeatas na cidade de São Paulo após o AI-5 de
1968. Em uníssono, o coro dos manifestantes entoava palavras de ordem pelo fim da ditadura.
Mas havia uma voz dissonante
conhece o operário e sabe o que ele quer! Sabe nada! Eu trepo com operário e eles não estão
162
. Era Roberto Piva, frequentador de uma sauna na periferia
da cidade ond
plantão mantinham um vínculo com o operariado por meio do teórico pertencimento a uma

160
Artigo originalmente publicado em O Guari: revista eletrônica de literatura, em janeiro de 2015.
161
PIVA, Roberto. O hino do futuro é paradisíaco. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 23,
julho/agosto, 1978, p. 36.
162
PERES JUNIOR, Marrey. Longa vida à rebeldia! Uma homenagem a Roberto Piva. Disponível em:
http://pga.com.br/atolivreportal/?p=38. Data da consulta: 20/02/2011.
84

classe social, o poeta tinha vivência bem mais corporal. Não por meio da abstração dos sujeitos
da história e sua consciência de classe, mas por penetração erótica sentida na carne. Não no
palanque, mas na cama! Não no chão de fábrica, mas na sauna! Para Roberto Piva não há
fronteira entre o erótico e o político.

Justamente numa dessas passeatas de 1977 se fez o primeiro registro audiovisual do

lobotomizada. Foi arrancada uma parte do cérebro da população e eles estão tentando repor
esta parte do cérebro. A única forma de repô-la é através da palavra e da palavra poética, que
163
. É inusitada, pois o lugar comum era a
conclamação pelos direitos civis e políticos por meio do reestabelecimento do Estado
Democrático de Direito. Daí o estranhamento da imagem delirante da lobotomia.
Provavelmente, o poeta a retira do espetáculo Gracias, Señor (1972), uma criação coletiva do
Teatro Oficina de que gostava muito especialmente. No momento intitulado Aula de
Esquizofrenia são exibidos cérebros submetidos à lobotomia, prática cirúrgica comum no
tratamento da esquizofrenia até meados do século. Uma imagem que faz jus às intervenções

brasileiro calcado em torturas físicas. O enfretamento dessa realidade repressora não é pela via
partidária ou por meio das inst

Martin Heidegger164, em seu famoso ensaio sobre Friedrich Hölderlin, por exemplo. A palavra
poética, para o filósofo alemão, funda o real à medida que nomeia e atribui sentido ao que
existe. Essa nomeação ocorre sempre no interior de um contexto histórico que passa a fazer
sentido exatamente a partir de sua fundação poética. Assim, no limite, a palavra poética funda
a própria história do homem. Não uma história instaurada de uma vez por todas, pronta e
acabada, mas, ao contrário, uma história reinventada a cada momento em que é nomeada. A
palavra poética para Heidegger tem o poder de fundar um começo a cada momento. Roberto
Piva acredita nessa possibilidade fundadora da palavra poética e sua potência de (re)começar a
história.

Nessas passeatas uma questão fica muito clara: Roberto Piva participava das
manifestações pela redemocratização, mas como dissidência. Fazia-se presente como rebelde,
ora destruindo convicções consensuais, ora criando novas possibilidades de compreensão e
atuação. Participava não como militante de partido ou movimento, mas como poeta
instaurando o potencial transformador da poesia. Qual a produção poética de Roberto Piva
durante este período? Que novas possibilidades de vida sua palavra poética funda?

Meditações de Emergência

Os recitais políticos de Claudio Willer e Ruth Escobar deram o que falar. Sua força
mobilizadora atraiu simpatias da esquerda e logo foram classificados como subversivos pelo
Estado. Baixou a repressão. O delegado Romeu Tuma chegou a proibir a realização de uma
dessas leituras de poesia. O jornal Versus, de Marcos Faerman, interessou-se pelo fato e o

163
Assombração Urbana Roberto Piva. Produção de Valesca Dios. São Paulo: SP filmes / TV Cultura,
2004. (55 min.).
164
HEIDEGGER, Martin. A linguagem na poesia uma colocação a partir da poesia de Georg Trakl. Em: A
caminho da Linguagem. (Marcia Sá Cavalcante Schuback, trad.) 4. Ed. Petrópolis, Vozes; Bragança
Paulista, Editora Universitária São Francisco, 2008. pp. 27-70.
85

noticiou. O amor pela poesia trouxe grande afinidade entre ambos, que redundou na
contribuição de Willer como responsável por sua seção de poesia. Por seu intermédio, Roberto
Piva contribuiu regularmente com o jornal Versus durante quase todo o ano de 1978. Vejamos
seus poemas.

O MISSISSIPI NO AMAZONAS
filmado em tecnocolor

A cidade & sua estrutura de navio japonês qualquer coisa como bambú &
cheiro de sangue no ar de São Paulo antes de ir prá Moóca dar aula até o saco
virar de cansaço & gostaria de ver aquela tribo maravilhosa de adolescentes
proletários se dependurarem nos cipós do Ocidente & aterrorizarem nos
salões de banquetes como Tarzans enquanto o Burguês-Inseto recolhe as
asas & faz cocô branco de susto-Impotência & úlceras pépticas na
cristalização de química imperfeita-purgatório-fêmea & bicha de boite & até
que os atores criem vergonha & re-apresentem Gracias Señor antes do circo
pegar fogo sem o torcicolo culposo de uma certa esquerda que adora chorar
na sopa pobre sua emoção masoquista chamada realismo-socialista
(invenção dos anos de caduquice de Gorki) & por isso mesmo eu sou pela re-
volição do nosso quotidiano em profundidade sem a larva telenovela cagando
problemas de pequeno-burguês nos nossos olhos & corações AMAR É BOM
SEXO É BOM TRANSFORMAR O MUNDO É BOM nada mais saco que a lógica
irracional-formal codificadora da febre amarela chamada CRISE consumismo
de grilos de pessoas de energia que ninguém de alma bailarina aguenta tem
saco ou curte esse tipo de polícia superficial hippie que se apossou em nível
ideológico & corporal do país165.

É um poema característico da atuação política de Piva. O poeta se apresenta como


professor secundarista das escolas públicas da periferia da cidade. Um trabalhador que utiliza o
transporte público e se queixa do extremo cansaço. O tom biográfico ainda deixa entrever as
relações de Roberto Piva no período, seja com o amigo Zé Celso e a influência das criações do
Teatro Oficina, seja pela presença do cinema (no subtítulo do poema), pois tinha como amigos
os cineastas Jairo Ferreira e Julio Bressane ligados ao melhor cinema de invenção do período
conhecido como

maravilhosa de adolescentes p Coxas


sex fiction & delírios (1979), composto neste período. Oriundos dos subúrbios da cidade, esses
jovens aparecem num tom heroico, em contraste com o cansaço do professor ou com a
atmosfera violenta da cidade.

conceitual bem típica dos marxismos. Esses adolescentes surgem numa figura ao mesmo tempo
erótica e selvagem, o Tarzan, cuja força aterrorizadora é contraposta à classe social antagônica:

, mas de um conflito social que atribui aos garotos a condição ativa e viril de
transformar o Ocidente, enquanto aos burgueses é reservado o medo de quem quer conservar
a realidade como está. É uma luta de classes, a partir de uma visão dialética da história?

165
PIVA, Roberto. O Mississipi no Amazonas. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 20,
abril/maio, p. 30, 1978.
86

contraste à atividade dos adolescentes, o burguês é associado à fêmea com sua postura passiva,
além de estar associado às amenas figuras do purgatório como diria Piva sobre esta parte da
Divina Comédia, de Dante Alighieri, parte preterida em relação ao Inferno com suas figuras
potentes e

homossexual frequentador de casas noturnas que o poeta vincula à burguesia. A imagem dos
garotos ativos e burgueses passivos é a um só tempo política e erótica. Responde ao espectro
político e à posição na cama.

Como signo da ação política revoltada, Piva coloca a criação Gracias, Señor, do Teatro
Oficina, proibida pela censura durante sua temporada paulista de 1972. A atuação provocativa

combativa e corporal. É esta forma de atuação política que o poeta vivencia, em contraposição
aminga e masoquista. A imagem é ácida e muito
bem humorada. Torcicolo como símbolo de um corpo travado, mas também com dificuldade de
olhar para os lados e ampliar os horizontes. É um corpo travado pela moral: a culpa e a piedade
de quem se compraz com a pobreza alheia. Roberto Piva talvez esteja salientando a atração
cristã pelos espoliados como impulso de negação da vida como se vê nas críticas de Nietzsche
ao comunismo como rebento do cristianismo. Uma vez mais Roberto Piva faz uma crítica política

psicanálise, como Roberto Piva, o masoquismo pode ser entendido como aquele laço entre a
energia sexual e a agressividade voltado passivamente para dentro. É um sujeito novamente
ligado à passividade que se autoflagela moralmente e tem com isso prazer.

de moralismo que atrofia


o corpo. E está ligada ao realismo-socialista e a Máximo Gorki o mesmo autor da bravata

a Revolução de 1917 por obras encomendadas pelo Estado para a formação ideológica do país
socialista. É um símbolo forte da arte manipulada por interesses partidários e estatais,
subjugada a mero instrumento de formação política. É o símbolo do poeta obrigado a escrever
o que determinava o Partido Comunista. Não se pretendia exterminar apenas os homossexuais,
mas qualquer espontaneidade criativa. É a esse comunismo obediente à moral e ao partido que
Piva rejeita. Mas o que o poeta propõe?

- aqui uma vontade de mudança que diverg


-
elemento do amor sexual parece ser a via de transformação social - diferente da revolução,
restrita aos aspectos da economia-política.

Além do realismo-socialista, Roberto Piva rechaça a telenovela como proliferadora de


valores pequeno-burgueses e manipuladora dos comportamentos. O poeta, considerado um
- hippie
que teria se apossado do país. Veremos como tal crítica faz parte de uma postura fortemente
anti-imperialista de Roberto Piva, postura que talvez esteja relacionada ao título do poema: as
águas do grande rio estadunidense desaguando no rio brasileiro.

Não bastassem essas tensões com a esquerda e os hippies, Roberto Piva lança mão de

fundamental por dois motivos. Primeiro porque é um filósofo muito crítico ao comunismo e, por
87

isso, execrado pela esquerda. Segundo porque a crítica ao moralismo da esquerda e sua negação
do corpo acompanha as ideias deste Anticristo.

A imagem da dança é abundante e bastante aberta na obra deste filósofo e poeta. Seu
Zaratustra andava como bailarino e a dança aparece ora como o exercício do livre pensar do
filósofo ou como qualificativo de sua própria filosofia, ora como o próprio devir da vida num
fluxo vário sem qualquer finalidade. Dionísio figura também como um deus que sabe dançar,
especialmente quanto encarnado corporalmente nas almas bailarinas das bacantes em êxtase.
Pode-
nos pensamentos com força e flexibilidade; com a leveza de variar os ritmos e se enlevar com
impulsos diversos. O movimento bailarino é o extremo oposto daquela fixação moral do mundo
dotado de uma finalidade como, por exemplo, o determinismo dialético de uma revolução como
superação dos antagonismos. A alma bailarina é o avesso do torcicolo culposo, pois é a ação de
um corpo em gozo em uma orgia para além do bem e do mal. É essa possibilidade de dançar
através de várias perspectivas e paixões, típicas do politeísmo, que o poeta contrapõe à ditadura
da conduta única do Moneyteísmo:

As desgraças do Moneyteísmo
para o Eg

o coração é um meio meu coração frágil pássaro de vidro a roda do coração


enroscou nas veias & eu me transformo em boomerang meu amor ferido anjo
diante de vocês distribuindo panfletos & baixaremos todos na Tumba Eterna
mesmo que no alto de Santana São Paulo cidade & periferia cacarejem na
solidão das fábricas & o rio Tiête seja uma veia do corpo do meu amor uma
ducha na aurora de sorriso de chumbo & os liberais são fascistas em férias
(obrigado pela imagem Nando Ramos) que agora não tem nada a perder mas
em 64 tinham & apelaram & foram hipnotizados por Plínio Salgado que foi
guindado ao posto de ratazana cinzenta no Ministério da Educação ?
engendrou a Moral & Cívica (Civismo rima com Fascismo) Deus Pátria &
Família redivivos para contrariar os rabos loucos dos adolescentes prontos

PIEDADE ALGUMA digo eu & amem a pessoa amada até oxidarem os planetas
& leiam Apollinaire bebendo uma cervejinha gelada num caneco gelado &
Fourier deveria andar de boca em boca em forma de beijo postal sem que
nossas minas de urânio (oh beijo de urânio!) sejam debulhadas meus olhos
desaparecem nas manhãs de inverno quando a gravitação deixa de existir
para um tênue sol se insinuar entre as páginas de Raymond Lulle

magia amorosa boa para esses tempos de hippilândia made in New York City
Que passa New York ? assim como os babosos bichos bichanas & cocotas
fortalecedores das circulações moneytárias do Sistema Capitalista Periférico
AH AH AH na dose certa na cara certa na dimensão certa de vossas
covardias166.

O início do poema traz um imaginário do amor ferido repleto de simbologia mística,


largamente utilizada pelo poeta em seu livro Piazzas (1964). Roberto Piva toma a palavra da

166
PIVA, Roberto. As desgraças do Moneyteísmo. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 21,
maio/junho, 1978. p. 31.
88

Intercala versos de amor a um garoto com o contexto da cidade de São Paulo, cidade associada

aqui
mais uma imagem da situação violenta daquele tempo.

Roberto Piva passa a criticar os liberais e sua participação no golpe militar. O fascismo
da direita é associado aos ideais integralistas de Plínio Salgado, materializados na disciplina de
obrigatória a partir de 1969. É o culto à Deus, Pátria e Família como
tripé do conservadorismo moral que pretende adestrar os jovens.

derradeiro livro de Zaratustra, intitulado


167, o sacrifício é feito para retirar os humanos da negra angústia

e alçá-
Roberto Piva associa esse vitalismo ao apetite sexual dos adolescentes e sua força para amar
sem qualquer piedade. Essas recomendações do poeta surgem num tom mais panfletário e
assumem uma feição hedonista, como na cerveja gelada bebida durante uma leitura do poeta
francês Guillaume Apollinaire.

A aposta de Roberto Piva em uma transformação social por meio do amor sexual torna
fundamental a presença do profeta francês Charles Fourier. O erotismo da imagem também é
importante, pois Fourier e sua obra seriam disseminados na forma de beijo uma linguagem
corporal e sexual. Qual a importância de Fourier nas ideias de Roberto Piva?

A mudança social proposta pelo pensador francês coloca em primeiro plano a questão
da Paixão168. Os sistemas político, econômico e moral das sociedades civilizadas estariam
pautados no controle repressivo das paixões, consideradas como um mal a ser extirpado. A
partir desse denominador comum, Fourier faz a crítica da captura dos prazeres sexuais na
monotonia matrimonial da família burguesa, ou na hierarquização da produção econômica.
Assim, sua utopia revolucionária coloca os prazeres sensuais como fundamentais para o
desenvolvimento da sociedade e do indivíduo, estando indissociáveis da autogestão econômica.
Ou seja, ao lado da organização da produção pela via associativa e igualitária, sua utopia sugere
a criação de corporações amorosas que salientem inclusive a esfera pública e festiva do amor
-
Roberto Piva.

alquimista catalão Raimundo Lúlio (1232-1315). Se a referência a Fourier destaca o potencial


transformador do sexo, a presença de Lúlio enfatiza essa relação mística com o amor. São esses

Novamente o tom anti-imperialista atrela parte dos homossexuais à burguesia, sob as

atreladas não apenas à burguesia, mas aos modismos da ideologia capitalista estadunidense.

167
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Mário da Silva,
trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1883-85/2010. 381 p.
168
FOURIER, Charles. Ouevres Complètes, Tomo I, Théorie des Quatre Mouvements. Paris: Librairie
Sociétaire, 1846. 336 p.
89

mercadorias e ideias sem qualquer crítica. O poeta se ri dessa atitude conformista qualificada

dinheiro como um deus, mas também atrela o capitalismo ao monoteísmo como tentativa de
impor um único modo de vida. É uma expressão aberta que contém, a um só tempo, as críticas
de Roberto Piva ao capital e ao cristianismo.

Versus e na revista Singular & Plural. Na


edição seguinte, de julho de 1978, surge o seguinte poema:

mortikultura

O adolescente que se liberta de 2.000 anos de superego bíblico-cristão & cai


na vida já é alguma coisa mas falta muito para dar a porrada no alvo certo no
inimigo exato & nietzsche tinha razão ao dizer que os homens não acreditam
mais em deus mas se comportam como se acreditassem & o futebol & a tv
globo estão aí para não deixar nietzsche mentir & esvaziar os bagos na
sublimação morta da perda de tempo a morte em vida adolescentes adultos
crianças morrendo num canto escuro da casa em meio aos cheiros familiares
& se dispersando em pequenas coisas ridículas & se drogando no vazio da
negação do CORPO até cagar pedra & perder o tesão de viver é preciso

êxtase-orgasmo estrelas
escorrendo da boca vermelha aberta para os cometas do sexo oh manhã das
manhãs molhadas com amêndoas verdes renascer para esta opulência eu sou
sua beleza eu sou seu rei Davi deus adolescente da luz da manhã chovendo
cravos vermelhos rumo à LIBERTAÇÃO.
P.S . Em qualquer horário da manhã tarde ou noite os passageiros sentados
nos ônibus estão dormindo esmagados pelo capitalismo selvagem que lhes
tira o sangue e pele & a energia sexual um bagaço generalizado
testemunhando este período de barbárie e sexualidade infantil sendo usada
para movimentar a engrenagem capitalista (ver Eros & Civilização H.

ara
ajudar a derrubada169.

A juventude permanece como a preocupação do poema, exaltando os garotos que se

considera uma cultura do instinto de morte, a mortikultura


tura calcada exatamente no superego cristão, incubado no claustro
privado da família nuclear burguesa. Ali a TV, agora nomeada com uma emissora, novamente
ocupa lugar de alienação na veiculação dos valores burgueses e cristãos. Também o futebol se
presta a este serviço, numa alusão reincidente nesses poemas de Piva da Versus a exemplo de
170.

169
PIVA, Roberto. Mortikultura. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 22, junho/julho, 1978,
p. 36.
170
PIVA, Roberto. Poema do caos externo. Versus jornal de política, cultura e idéias, n. 19, março/abril,
1978, p. 37.
90

quanto à referência psicanalítica dessas ideias. A menção a Hebert Marcuse ganha importância
exatamente por esse cruzamento da teoria psicanalítica das pulsões com as aspirações
revolucionárias de inspiração marxista. A menção a Nietzsche em sua crítica à moral cristã
compõe esse quadro analítico, bastante representativo das referências de Roberto Piva para
pensar as contradições de seu contexto histórico.

A morte em vida se dá pela captura do corpo e seu potencial erótico. A moralidade de


costumes é colocada como uma primeira forma de captura e se desenvolve na crítica de
Nietzsche ao cristianismo171. Em linhas gerais, o filósofo alemão associa o cristianismo à negação
da vida terrena em prol de ideais ou ídolos prostrados num porvir abstrato. É a negação do corpo
e de todo o devir por uma vontade de nada, ou seja, uma quietude inerte sem vida. Rejeita-se o
rdenação moral

ainda se fazem sentir em todo ideal ascético da religião, da ciência, da arte e outras expressões
da vida.

entendido, resumidamente, como a instância psíquica que opera as convenções sociais e suas
repressões desde o interior do sujeito. A partir dessa inserção na cultura o sujeito passa a ser
atravessado pelas convenções na satisfação imediata de seus impulsos. Os impulsos sexuais
mais suscetíveis à repressão e impedidos de uma descarga imediata vão encontrando espécies
de objetos substitutivos, especialmente em atividades produtivas, em um processo que se

àquela de Nietzsche. Roberto Piva considera que nesta cultura do instinto de morte
(mortikultura), as possibilidades de descarga das pulsões sexuais se dão em atividades de

potência do corpo e o apetite sexual vão se atrofiando e tornam a vida sem tesão.

Herbert Marcuse, em seu clássico Eros e a Civilização, procura exatamente desenvolver


a teoria freudiana das pulsões em um plano político-revolucionário de superação da sociedade
capitalista repressiva. Este ousado frankfurtiano partia de uma crítica ao trabalho alienado como
forma de captura da energia sexual do indivíduo e atrofia de seu potencial erótico como
aponta Roberto Piva em sua nota ao final do texto. No entanto, diferente de Freud, Marcuse
acreditava no trabalho alienado como condicionado historicamente. Assim, o grau de
desenvolvimento das forças produtivas com sua automação liberaria o trabalhador a investir
seus instintos vitais em atividades distintas da alienação do trabalho capitalista. Daí a aposta do
filósofo em atividades nas quais o princípio da produtividade é substituído pelo princípio do

vida em Novalis ou da proposta de praticar a poesia no surrealismo. São atividades ligadas ao


prazer e ao jogo, devir sensual de Eros que cria um outro modo de viver. São atividades da esfera
estética, na qual o prazer, a sensualidade, a beleza e a verdade caminham juntos. Ao contrário
do mito de Prometeu e a ênfase na produtividade, Marcuse busca respaldo mítico no mito de
Orfeu e de Narciso para fundamentar esse novo modo de vida. Aí vem a parte que mais nos

homossexualidade. Tal como Narciso, êle rejeita o Eros normal, não por um ideal ascético, mas

171
NIETZSCHE, Friedrich W. O Anticristo: maldição ao cristianismo. Em: NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo:
maldição ao cristianismo / Ditirambos de Dionísio. (Paulo César de Souza, trad.) São Paulo: Companhia
das Letras, 1888/2007. pp. 07-81.
91

172.
Ou seja, na homossexualidade simbolizada por Orfeu, Marcuse vê
uma ruptura à domesticação do sexo na instituição da família e sua restrição à procriação. Este
sexo produtivo é símbolo da captura da atividade sexual pelo princípio de utilidade social,
deixando o prazer restrito ao lazer (como espécie de parceiro da canalização das energias
sexuais para o trabalho). Marcuse considera a exploração dos prazeres do corpo para além da

polimórfica pré-

instituições em que foram organizadas as relações privadas interpessoais, particularmente a


famí 173.

Em outras palavras, a experiência de prazer do corpo, para além da ditadura genital e


matrimonial, é parte de uma liberação dos instintos vitais que Marcuse considera, em última

essa transformação era a própria superação do trabalho alienado a partir de uma perspectiva
sexual e erótica. É essa uma possibilidade de articulação das ideias de Eros e a Civilização com o

sinônimo de homossexualismo. Mais o coito anal, mesmo quando em relações denominadas


heterossexuais, é uma das formas de experimentação dos prazeres do corpo para além de uma

É nesse tom político, artístico e mítico que o poeta aposta em todas as formas de amor,
-
em todas as suas possibilidades que se vale lutar e morrer. É por essa vivência amorosa que se

É interessante notar como Roberto Piva se inspira no movimento homossexual espanhol


para desenvolver suas ideais sobre essa re-volição sexual. O poeta não estava atento apenas às
discussões da esquerda, mas também àquela parte da esquerda ligada e este movimento
específico. E mais, Roberto Piva se apoia naquela parte do movimento homossexual que,
diferentes das tendências norte-americanas e mesmo brasileiras daquele período, entendia a
revolução sexual como indissociável da superação da sociedade burguesa. O manifesto da
Frente de Liberácion Homosexual de Castilla (FLHOC) de janeiro de 1978, por exemplo, coloca

las actuales estructuras económicas 174.

Em suma, Roberto Piva parece desenvolver à sua maneira diversas das propostas de
Charles Fourier e Hebert Marcuse mas também Wilhelm Reich e Norman Brown. É nesse
desenvolvimento da psicanálise em diálogo com a economia-política, da questão do trabalho
atrelado à vida sexual, que Piva adentra em diversos de seus textos do período. É por ai que

172
MARCUSE, Hebert. Eros e a civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 5. ed.
(Álvaro Cabral, trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 1955/1972. p. 155.
173
Ibidem, p. p. 177.
174
Frente de Liberácion Homosexual de Castilla (FLHOC). Madrid, Orientaciones revista de
homossexualidade, pp. 141-146. Disponível em: http://issuu.com/triangulo/docs/orientaciones2. Data
da Consulta: 10/11/2012.
92

continuará a caminhar, mesmo quando romper com uma orientação próxima dos socialismos
175.

Pois bem. Aqui chegados talvez seja sugestiva uma pequena digressão. Surpreende
quanto as ideias de Roberto Piva crítico ao comunismo são similares às suas ideias de quando
era mais abertamente anticomunista. Vejamos.

A produção poética de Roberto Piva no início dos anos 1960 movia-se por um ímpeto
imoral e erótico que o distanciavam das várias expressões do moralismo provinciano da cidade:

176. Essa mesma associação do comunismo com a moral cristã era tema

das conversas de Roberto Piva com o filósofo Vicente Ferreira da Silva, em 1962 ambos muito
influenciados pelas críticas de Nietzsche à compaixão com os pobres e o messianismo comunista

une, novamente, cristãos e comunistas, em poema de Paranóia


são piedosas / os comunistas são piedosos / os comerciantes são piedosos / só eu não sou
177. Aqui a tensão: a crítica

Ou seja, Roberto Piva mantém uma coerência em sua crítica a algumas expressões da
esquerda. O fato de publicar em órgão revolucionário não o priva de retomar essas ideias. O
poeta participa das discussões da esquerda, mas sempre como voz dissidente, sempre com a
rebeldia que lhe é peculiar. Não é tanto um poeta comunista, mas um poeta em estado de guerra
com o comunismo, sustentando sempre uma tensão revoltada.

Mas não é só. Se dermos uma olhada no registro maior de sua poética no início dos anos
1960, o postfácio de Piazzas (1964), veremos o quanto sua visão de mundo permanece com
igual coerência. Este texto audacioso vincula o estado militarista brasileiro ao fascismo e
-de-
militar! Nele, Roberto Piva faz uma análise da realidade baseada exatamente em Nietzsche e
Freud, com enfoque no corpo e na sexualid

do Pai (que se estende a toda ordem autoritária) e a crítica de Nietzsche sobre o cristianismo
como desprezador do
auto- 178. É a mesma base dos textos que acabamos de ver,

coincidindo até algumas expressões.

179.
Pode-se ainda dizer
que a crítica ao realismo-socialista de Máximo Gorki lembra a menção do postfácio a Octavio

175
PIVA, Roberto. O erotismo dará o golpe de estado. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção
Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1987/2009. pp. 82-87.
176
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 24.
177
PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas volume I
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 41.
178
PIVA, Roberto. Piazzas. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas volume I
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1964/2005. p. 128.
179
Ibidem, p. 129.
93

Também as manifestações da direita integralista em sua veneração a Deus, Pátria e Família


encontram eco na crítica de 1964 ao moviment

Enfim, Roberto Piva participou ativamente do processo de denúncia do totalitarismo da


ditadura brasileira, assim como das manifestações pela redemocratização do país. No entanto,
sempre com sua força subversiva e rebelde, erótica e escandalosa força que sustenta desde o
início dos anos 1960.

As colaborações de Roberto Piva no Versus finalizam com o sugestivo texto


180. O poeta ambienta uma narrativa delirante em torno do

atitude fascista disseminada em diversas instituições sociais. É um título bastante irônico tendo
em vista a trajetória posterior de Roberto Piva: anticomunista e sempre de barriga vazia.

Mas em suas participações no movimento homossexual no período, o poeta era

No dia 8 de fevereiro de 1979, na Universidade de São Paulo, foi organizada uma semana

homossexual era composta por Glauco Mattoso, João Silvério Trevisan e Roberto Piva, dentre
outros. Uma reportagem sobre o evento foi publicada no jornal Lampião da Esquina, pioneiro
na reflexão sobre as questões sexuais e políticas a partir da perspectiva homoerótica. Lá pelas
tantas, o encontro debatia o posicionamento do movimento gay no maniqueísmo político da
época, apontando a discriminação dos homossexuais pela direita conservadora e pela esquerda
-
como Cuba, Moçambique e Leste Europeu há
181. O poeta proletário acreditava na liberdade sexual nos países

comunistas!

a tem exaustivamente divulgado seu livro Coxas no


mesmo órgão182, nossa grifo
meu. O próprio poeta assina uma resenha sobre o recém-
183. Na edição de novembro, escreve como entusiasta do comunismo

e como professor
suas próprias vivências do período. A exemplo do famoso sequestro do embaixador americano
que o fez lig

180
PIVA, Roberto. Anticomunismo não enche barriga. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n.
23, julho/agosto, 1978, p. 28.
181
DANTAS, Eduardo. Negros, mulheres, homossexuais e índios nos debates da USP. Jornal Lampião da
Esquina, Ano 1, n. 10, março de 1979, p. 09
182
Jornal Lampião da Esquina,. Ano 2, n. 15, agosto de 1979, p. 17.
183
Jornal Lampião da Esquina, Ano 2, n. 18, novembro de 1979,
p. 16.
94

al-

os feitos mais radicais das guerrilhas revolucionárias e a divulgação de sua poesia como o melhor
exemplo de uma literatura homossexual.

É a sombra de Roberto Piva. Em seu livro Coxas, o personagem Pólen fazia amor com
Luizinho, um adolescente vestido com uma camiseta com o punho fechado socialista no peito.
Luizinho é morto por guarda que atira de um helicóptero do Citibank num símbolo da
participação estadunidense na ditadura brasileira e na matança dos comunistas. Pólen fica

poliniza e polemiza, traz as sementes de uma nova vida encharcada de rebeldia. Pólen traz
também o nome da revista inaugural do romantismo alemão, com todo seu ímpeto revoltado.
Como este personagem, Roberto Piva flertou com o comunismo e assistiu sua morte, como uma
sombra no coração anarquista. Foi justamente o fim da utopia revolucionária que levou Pólen à

Neste mesmo ano de 1979, quando foram escritos os versos de 20 poemas com brócoli,
Roberto Piva rompe com todas suas esperanças ligadas à atuação política em meios da esquerda
e participações no movimento gay
da década de 70 / sou um navio lançado ao / alto- 184. Não é à

toa que é o livro da anarquia como um modo de vida. Durante a década de 1980, Roberto Piva
se lançou nessa anarquia que pode ser acompanhada a partir de algumas publicações nas
revistas Artes: e Cerdos & Peces. Também é a década da ecologia na experiência poética de
Roberto Piva: seus manifestos publicados no Boletim Arte e Pensamento Ecológico e na seção
Chiclete com Banana permitem acompanhar
essa atuação política.

Mas é em um material pouco estudado de Roberto Piva que podemos observar as


críticas ao movimento gay e ao comunismo. No dia 21 de fevereiro de 1994, Roberto Piva recebe
em seu apartamento o historiador Claudio Roberto da Silva, que estudava o movimento
homossexual a partir da narrativa de histórias de vida de alguns ativistas. Entre eles, o poeta foi
escolhido pelas suas colaborações no Lampião da Esquina e, durante algumas horas, falou sem
parar sobre sua história de vida. Neste material ficam claras as críticas de Roberto Piva ao termo

para usar sua expressão. O poeta destaca que a


gays, não permitindo a experiência sexual como
alteridade invenção do modelo gay caracterizou o estilo americano da

185.Vê-se como a crítica à identidade também tem


reflexos no campo político. Roberto Piva rejeitava a postura subserviente de solicitar
autorização do estado, via direitos civis, para o exercício livre da sexualidade

184
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. Em: PIVA, Roberto. Mala na mão & asas pretas obras
reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1981/2006. p. 115.
185
SILVA, Claudio Roberto da. Reinventando o sonho história oral de vida política e homossexualidade
no Brasil contemporâneo. 674 f. Dissertação de Mestrado em História Social, na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. p. 301.
95

autoridade, o poeta acreditava que a experimentação sexual deve ser batalhada pela pessoa e
por ela conquistada não consentida como regra imposta por força alheia. Além disso, o poeta
considera a libido como algo flutuante e aberta a diversas expressões. Nesse sentido:

medicina poderia assim exercer seu poder nefasto e o desejo seria o único qualificativo viável
186. Em outras palavras, Roberto Piva observa na

medicina e do Estado.

No depoimento do amigo Sergio Cohn187 podemos ver a angústia de Roberto Piva ao ser
convidado para uma homenagem na passeata do Orgulho Gay. O poeta achava absurdo, por
exemplo, as reivindicações pelo casamento gay, entendidas por ele como forma de reprodução
do matrimônio patriarcal e repressor. Roberto Piva declinou do convite.

É interessante notar o quanto Roberto Piva antecipa algumas das questões atualmente
presentes nos movimentos ligados à diversidade sexual: dentre elas exatamente o atual
questionamento queer às políticas identitárias.

Nessa mesma narrativa de 1994 estão todas as principais críticas de Roberto Piva ao
comunismo: moralista como o cristianismo, totalitário como o fascismo; ou retrógrado como
enta quanto a pederastia é rejeitada pelos comunistas e quão

essa perseguição.

Sou um cara ligado na direita


188.
Sua direita sagrada incluiria
Mircea Eliade, Carl Gustav Jung, Julius Evola, Dante Alighieri e D. H. Lawrence, personalidades
que estariam ligadas à eclosão do sagrado em uma perspectiva aristocrática. A rejeição dos
políticos de direita mantém o ímpeto rebelde e contestador que o acompanhou em toda sua
trajetória.

É essa fluidez nas questões políticas que caracteriza Roberto Piva: sempre rebelde,

as contradições. É aquele garoto que em 1957 fundou o Movimento Niilista, com Jorge Mautner
e João Quartim de Moraes, influenciado por personagens de Fiódor Dostoiévsky, por uma leitura

reaparição do espírito dionisíaco no mundo contemporâneo de 1970, que iria se formar em


sociologia e desenvolver ligações com as ideias comunistas no final da década. Aquele poeta da

mesmo poeta que a p -monarquia, desde

186
Ibidem, p. 326.
187
COHN, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. p. 61.
188
SILVA, Claudio Roberto da. Reinventando o sonho, op. cit., p. 321.
97

20 poemas com brócoli: o abandono da civilização

20 poemas anuncia uma grande virada na poesia de Roberto Piva. O poeta


homossexual-proletário da década de 1970, com suas esperanças em torno da reabertura
democrática, joga tudo pro alto e cai na estrada. A aposta é abandonar a civilização e fluir à
deriva no rio da vida.

No fôlego pederástico de Abra os olhos, os 20 poemas cantam o amor maldito por


garotos. O acento no contexto cruel de meados da década de 70 dá lugar a traços de metapoesia,
raros na produção poética de Piva. O ativismo em meios da esquerda dá lugar à anarquia. Escrito
em momento turbulento da vida do poeta, a obra encarna as tensões e incertezas de um
contexto histórico, mescladas a estórias amorosas. O fim da ditadura militar, entremeada com
o fim de um caso amoroso, leva o poeta a trilhar as veredas do desejo, sem utopia de portos
seguros nos quais repousar.

A epígrafe do livro anuncia as delícias dos caminhos que trilharemos e suas angústias.
É !: a carne dilacerada pelo gozo, vazando o vazio terrível. Lá onde a mais aguda agonia
e a mais intensa alegria deixam de se contradizer. É o catecismo de Diane, abrindo as portas da
volúpia para além da moral, para além das ilusões do amor. A disposição insana para viver a
luxúria no jogo do prazer e do sofrimento. O deleite no fogo da paixão sem medo de queimar-
se. Mas, é preciso nudez: despir-se de todas as morais e de todas as obrigações. É preciso a
entrega total e gratuita: a ingenuidade da criança.

do inferno ou, se preferir, da infância). Piva abre o livro com esta frase de Diane, no final de
Aleluia reza do inferno ou da criança] não fará
promessa em troca e nem te exigirá obrigação. Você ouvirá, vindo de si mesmo, uma voz que te
189
guia em seu destino: é a voz do desejo e não a dos se .

Não se prender ao objeto do desejo, ao ser desejado, à pessoa finita que se apresenta:
sua particularidade limitada, demasiado humana, com suas promessas de um amor ilusório que
traria só prazer e felicidade. Mas ouvir a voz do desejo e sua potência de nos abrir aos fluxos do
ilimitado:
190
. Essa é a nudez obscena: a alegria inocente da criança. Pois a
entrega ao desejo nos arranca dos limites habituais. E nos arranca a partir do dilaceramento do
eu, do despedaçamento do ser finito que somos. Dilacerar, despedaçar, destruir. Só se alcança
essa potência da vida através desse sacrifício. É a morte. É o vazio, a angústia, o desespero. É
gozar o infinito, ali onde a mais exuberante vida é indissociável da morte onde os gemidos de
prazer são acompanhados pelos gritos de desespero.

Nesta epígrafe se coloca o erotismo no centro da poesia, mas não aquele do prazer fácil.
É erotismo mágico; sem promessas. Estamos na vibração ilimitada da carne, ali por onde passam
forças mais potentes que as humanas.

189
catéchisme de dianus. Em: Le coupable - . Paris:
Gallimard, 1944. p. 208.
190
Ibidem, p. 206.
98

Mas não apenas o sexo alça o poeta ao infinito: o êxtase também advém da vivência de
poemas. O primeiro poema dá o recado. Gregos de Homero no chapéu de palha. Chamada para
um diálogo poético, contextualizado em leituras vividas. Uma cena de amor, depois o sono,

Penetração no garoto revela uma verdade

-se a brecha.

II

Baudelaire sangrou na ponte negra do Sena.


molécula procurando a brecha do
universo & suas trezentas flores.
assim é a lucidez
o swing das Fleurs du Mal.
completa tortura roendo a
realidade
&
l'immense gouffre.
todas as paixões / convulsões no
espelho. Baudelaire & ses fatigues
rumo à pálida estrela.

É muito forte a presença de Charles Baudelaire na poesia de Piva seja diretamente ou


por tabela, dada a influência deste primeiro maldito na poesia de Rimbaud, Lautreamont, Artaud
e entre os surrealistas. Mas 20 poemas é a obra em que Baudelaire comparece com mais
importância. Roberto Piva se extasia nas flores do mal do poeta francês. O poeta que sangra, o
poeta em completa tortura. A fatiga, o cansaço. Abismos. Morte. O Mal.

contorção do gozo. Na prece de um pagão, o poeta canta os prazeres no sofrimento. Estão sob
o signo da morte. O
momentos em que a tortura vem junto à calentura, esse delírio febril que conduz os amantes
como anjos na miragem. Ali na paisagem azul, no paraíso dos sonhos.

Sim, da volúpia desabrocha a flor. A tortura da luxúria traz a lucidez. A flor, a luz, o
sagrado. Dos abismos da morte voa o renascido. Iniciado nas trevas, no mal. E o poeta traz suas
flores. Flores que roem a realidade, que abrem brechas no universo, por onde escorrem
epifanias.

Roberto Piva faz um poema como leitura de Baudelaire. Poema sobre poema:
expediente incomum em Piva, mas abundante em 20 poemas. Da iniciação no mal, na volúpia,
no amor. A tortura, o abismo, a lucidez, a flor: são temas de Baudelaire. E em ambos os poetas
há essa viagem iniciática, tratada pelo

Dos Céus Espirituais o azul inacessível,


Para o homem que padece e sonha em paroxismo,
Se entreabre e se aprofunda em fascinante abismo.
Assim, graciosa Deusa, lúcida e sensível,
99

Sobre os despojos fumegantes das orgias


Tua imagem mais clara, mais rósea, mais cheia
Ante meus olhos pasmos sem cessar volteia 191.

Orgia e seus abismos: a plenitude e lucidez de quem se lança. O poema de Piva


menciona em especial dois poemas de Baudelaire.

A música

A música me arrasta às vezes como o mar!


No encalço de um astro,
Sob um teto de bruma ou dissolvido no ar,
Iço a vela ao mastro;

O peito para frente e os pulmões enfunados


Tal qual uma tela,
Escalo o dorso aos vagalhões entrelaçados
Que a noite me vela;

Sinto que em mim ecoam todas as paixões


De um navio aflito;
O vento, a tempestade e suas convulsões

No abismo infinito
Me embalam. Ou então, mar calmo, espelho austero
De meu desespero!192

No êxtase disparado pela música se alça a pálida estrela. A vibração de todas as paixões

(l'immense gouffre). No abismo está o grande espelho que reflete os desesperos.

Da mesma forma que a lucidez advém da tortura, o abismo do desespero é via de


acesso ao vasto éter da estrela.

Piva menciona, ainda, ses fatigues


cachimbo. Em Pipe, o poeta está magoado, fatigado, pitando seu cachimbo, um cachimbo da
abissínia que traz calma ao coração e cura ao espírito.

Droga, música, amor: êxtase, através dos abismos. E o poeta extático penetra no caroço
da verdade! E é preciso cortar a superfície para chegar ao caroço. É preciso morder a fruta.
Assim, a realidade superficial jorra o suco do mágico.

Ao abandonar as esperanças em seu contexto histórico, a realidade cotidiana dá lugar à

191
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. (Ivan Junqueira, trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1857/2006. p. 217.
192
Ibidem, p. 279.
100

experiência estética com poemas: é a vivência de leituras que faz a realidade ruir e permite viver
o êxtase, como superação da condição histórica específica.

Gregos no chapéu de palha. Cachimbo de Baudelaire. A desordem dos expressionistas.


É a vida poética que enleva os amantes. A mesma cama, o mesmo êxtase. Aqui se sangra, mas
não há maxilares estourados ao amanhecer. Permanecem as cenas de sexo a dois, presentes em
Abra os olhos e diga Ah!, mas os amantes não estão no meio da merda gentil, nem são baleados
por helicópteros. O contexto político sanguinário presente em Abra os olhos e diga Ah! e Coxas
parece dar lugar aos amantes envolvidos por brechas na realidade. Brechas que interrompem o
fluxo político profano e permitem alçar voos cósmicos. A linguagem mais metafórica e mística
lembra muito Piazzas. A forte presença de Baudelaire, Rimbaud e Trakl realça este clima: o poeta
busca a vidência (caroço da verdade) a partir do êxtase amoroso.

Um vento que fende, corta, fere. Que abre novas possibilidades. E não mais gorilas tântricos ou
-leopardo deslizando entre

poemas? Mas não eram quaisquer poemas, eram poemas de McClure. O que escorria pelas
coxas do amante era o rugido selvagem de um animal de rapina.

mudo da voz estrangulada / no décimo degrau. grau ze


em que gasta tinta dos poemas com questões literárias. É mais comum a poesia vivida encarnada
na experiência, não colocada em questão. Mas é o que o poeta faz. E deixa seus rastros. O grau
zero da escritura, título de famoso ensaio de Roland Barthes escrito nos últimos anos de 1940.
O crítico literário perfazia no ensaio a própria história da escritura. Sem me deter em todos os

conhecimento. É o momento em que a forma literária passa a ser um problema: começa sua
tragédia. Passam a manuseá-la, a experimentá-la, a tortura-la. Houve quem assassinasse a
escritura. Barthes nomeia o assassino: Mallarmé. Da escritura se faz o vazio, o silêncio. O escritor
prescinde da Literatura: a degola. O passo seguinte era cantar o sacrifício. É a dança da ausência.
O grau zero da escritura como o momento em que o poeta se coloca na liberdade da ausência
de julgamentos. Lugar neutro, pois não capturado pelo já conhecido. Lugar de solidão. Um novo
nascimento após o sacrifício. O sonho de um escritor sem literatura e sua parafernália
normativa. Os versos de Piva cantam o assassínio, a mudez, o grau zero da escritura.

Havia um homem com pata de leão, em meio a pessoas falando uma linguagem
estranha. Foi o sonho de Michael McClure que deu origem à linguagem selvagem, encenada na
peça The Feast! (1960). Urros que ora pareciam rugidos de animais, ora vocalização de crianças.
Posteriormente, em 1962, quand

Ghost Tantras (1964).

Vieram do silêncio ou do sonho, mas seu urro foi estrondoso: Ghraaaaaaahrr!. E McClure
estava lá, em frente a jaula dos leões, trocando rosnares. O poeta-leão e o leão poeta, rugindo
simultaneamente na mesma intensidade e estabelecendo uma comunicação selvagem para
-le :
101

As máquinas são tolas demais quando

nos tornamos poemas-leões que se movem & respiram

QUANDO NOS GRUUUUUUUUUUUUUUUR193

São poemas dessa natureza que roçaram as coxas do amante de Piva. Piva urra de forma
selvagem nas coxas do amante. Está possuído pelo instinto mamífero. Seu urro celebra, a um só
tempo, a virulência da poesia vivida no sexo e sua morte como convenção literária abstrata.
Celebra o silêncio da literatura assassinada e os rugidos da vida poética. Poeta sem Literatura
mas não sem orgia.

A seu modo, o poeta faz as vezes de crítico literário, ao associar a linguagem selvagem
de McClure com o contexto de poesia sem literatura: como se os gritos indômitos do poeta beat
surgissem no vazio da página em branco de Mallarmé.

Há vários poemas em que há reflexos dessa mudança na criação de Piva: das


preocupações eminentemente políticas de seu contexto, para uma vivência por dentro da
poesia. Permanece o entrelaçamento do sexo com o amante e menções com feições críticas
sobre assuntos literários.
/ você brincava com meu caralho / Macunaíma & Alice no país da / Cobra Grande. / mesma
194
estrutura narra- .

Novamente o amante associado a Macunaíma & Alice, assim como o caralho do poeta
ligado à Cobra Grande. O sexo mesclado ao literário. A seguir, um comentário crítico sobre a
semelhança entre as obras Macunaíma (Mário de Andrade), Alice no País das Maravilhas (Lewis
Carrol) e Cobra Grande Norato (Raul Bopp). Ficaria horas falando das semelhanças e diferenças
dessas obras, ambas mágicas com seus personagens perfazendo caminhos de iniciação.

Dialoga então com Murilo Mendes, imaginando como o poeta veria a cena. É outra
passagem emblemática: na observação de um ato cotidiano, Roberto Piva solicita o anteparo da
literatura para tomar contato com a realidade. Sua experiência está encharcada da presença de
personagens, poetas e elucubrações literárias. E garotos, com toda a pungência transgressora
da juventude:

IX

corra como se você fosse o ÚNICO de


Max Stirner.
Sem Deus Nem Senhor.
rubi dos muros cobertos
de musgo & caranguejos.
nenhuma luz. a esquina sangra.
múmia surda em chamas ladeira
abaixo.
o mundo virou do avesso.

193
MCCLURE, Michael. A nova visão de Blake aos Beats. (Daniel Bueno, Luiza Leite & Sergio Cohn, trad.)
Rio de Janeiro: Azougue, 1982/2005. p, 218.
194
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli, op. cit., p. 101.
102

(dedicado a todos
os garotos
rebeldes & depravados)

Depravados, rebeldes, anárquicos e individualistas. Correm como o Único: destroçando


todas as autoridades e instituições, na busca libertária do gozo pessoal. Correm deixando o
rastro de todas leis, morais, religiões e utopias populares (como o comunismo) destruídas pelo
poder individual de criar artisticamente sua própria existência.

Nos corpos dos garotos passeiam a epifania e a anarquia. A presença do pronome

/ maneira brejeira de agradecer / o misto-

Entre o anárquico e o sagrado há uma relação íntima. Em ambos, a suspensão de todos


os costumes e a irrupção da desordem. Escreveria um tratado sobre o crime na poesia de Piva,
passando pelo crime como experiência da potência da vida, em Sade, e o crime como certificado
de acesso ao sagrado - ou sua importância na poesia
sagrada de Jules Monnerot. Transgredido, o mundo vira do avesso e clama por recriação
constante.

XII

adolescentes violetas na porta do cinema


Bar Jeca esquina da São João/
Ipiranga.
revoada de revoltados. maravilhosos. jamais capitular.
pijamas, família, tv doméstica: a
ordem Kareta se representa
a si mesma.
corpo doce-delicado-quente na manhã alaranjada.
o planeta entra na órbita do
coração.

Num Bar, rodeado de adolescentes revoltados. Bem à moda de Piva, ressaltando sua
força política e erótica. O mundo gira no coração. Contra a ordem Kareta, atrelada ao corpo
prostrado na poltrona; ao desejo blindado pelo mercado.

Os adolescentes são um inferno. Lá no sétimo círculo, Dante passa por um bando de


almas sodomitas. No fogo ardente, ergue-se densa névoa. Chama a atenção do poeta o olhar
dos sodomitas:
Eis que de almas um bando, que avançava,
Vimos, e cada qual, mais perto, então,
103

Lançava a nós o olhar, e o olhar forçava,

como quem busca ver na escuridão,


à lua nova, e fixa atentamente,
tal sobre a agulha um velho remendão 195.

O trecho, presente na epígrafe do poema de Piva, traz a metáfora dos sodomitas que
olham o mundo com dificuldade, franzindo a testa para tentar ver na escuridão como um velho
sapateiro para fincar a agulha em pequeno buraco.

Numa primeira olhada, Piva ambienta o poema no clima devasso dos sodomitas no
inferno. O Inferno dantesco adentrado por uma fresta do Bar Jeca. Faz jus à associação dos
adolescentes da sauna com os círculos infernais. A sauna, o calor, a névoa, o sexo. É o inferno
com todas suas delícias. Se em 20 poemas a realidade é vista pela brecha da experiência
poemática, aqui a realidade penetra na obra de Dante, numa similar fusão entre o lido e o vivido.

Pode hav
alma do bando de sodomitas] se envolvia como se faz ao crepúsculo / olhando o outro sob a lua
lo.
Sob a lua nova, ainda por cima. São símbolos místicos muito ricos. A orgia era ritual. O lado
escuro da lua: onde o fogo do desejo está envolto em névoas. Em Piazzas é exatamente esse
instante do crepúsculo (a tarde) que abre a manifestação do sagrado um crepúsculo bem ao
modo de Baudelaire e Trakl196. O outro lado da vida (o mistério, o desconhecido) visto apenas
por sodomitas em orgia: a mesma iluminação mágica a partir do sexo: o caroço da verdade.

Se pudermos viajar um pouco mais quem me acompanha? , vemos que Dante


encontra ali seu mestre da juventude, Brunetto Latini. Autor de o Tesouro, o mestre é bastante
associado a heresias medievais que tinham na orgia ritual a expressão do sagrado. Mais adiante,
no diálogo com Dante, Latini chega a mencionar que grandes poetas também figuram como
sodomitas. A mim, Brunetto e Piva têm muito em comum: mestres, sodomitas, místicos, poetas.
Recortando esta passagem em epígrafe, o poeta parece chamar atenção a esta faceta de sua
poética, indissociável do elemento transgressor do sexo como vivência mística.

Dante é retomado no posfácio do livro. Para Roberto Piva, 20 poemas estava associada

demoníacos, paraísos infernais. A sodomia como presença concomitante do inferno e paraíso.


É assim que o livro se encerra com a saída do Inferno, nos últimos versos desse livro da Divina

mais bela / a porta do céu, por uma fresta re A travessia


infernal do amor alça para a visão celestial de estrelas sublimes, salpicadas de anjos suburbanos.

Em poema posterior, o mesmo ambiente mágico do medievo herético vem atrelado a


- udo, em vez de presença
potente, tais garotos trazem buquês que agonizam. Neste XI poema com brócoli surge um

195
ALIGHIERI, Dante. Divina Comedia. (Cristiano Martins, trad.). São Paulo/Belo Hrizonte: Edusp/Itatiaia,
1979, p. 230.
196
vide: MATTOS, Ricardo Mendes. Roberto Piva: derivas políticas, devires eróticos & delírios místicos.
250 fl. Tese (Doutorado em Psicologia da Arte), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2015. p. 50 e seguintes.
104

elemento novo nesse amor efebo. A violência do poeta com o amante, violência proveniente do
197
skate das i . Esse amor místico que
desconcerta e vira a cabeça de Piva. Os instintos mais agressivos do amor. O desabafo, ainda no
calor do amor, naquela vontade de matar o amante.

XIV

para o Carlinhos

vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas


coxas imberbes & brancas.
vou dilapidar a riqueza de tua
adolescência. vou queimar teus
olhos com ferro em brasa.
vou incinerar teu coração de carne &
de tuas cinzas vou fabricar a
substância enlouquecida das
cartas de amor.
(música de
Bach ao fundo)

É um poema de arrepiar! Se falta ar para comentar (precisa?), vou mudar o rumo da


prosa e falar sobre o ritmo. No Pósfacio do livro, Piva comenta a influência de Pierre Reverdy
sob o ritmo. É uma influência que vem de longa data, desde a produção de Piazzas. Vejamos um
poema deste escritor que tanto influenciou os surrealistas:

LUMIÈRE

Midi
La glace brille
Le soleil à la main
Une femme regarde
ses yeux
Et son chagrin

Les rides que le vent fait aux rideaux du lit


Ce qui tremble
On peut regarder dans la chamber

Un nuage passé
La pluie

LUZ

Meio-dia
O gelo brilha
O sol à mão
Uma mulher olha
teus olhos

197
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócolis, op. cit., p. 106.
105

E sua aflição
A parede em frente é fosca
As rugas ao vento na cortina da cama
O que treme
Se pode olhar no quarto
E a imagem desaparece
Uma nuvem passa
A chuva

Piva experimenta essa mesma disposição espacial do poema na página. Versos de


tamanhos irregulares são dispostos com recuos distintos, ora em escadas de forma a acelerar a
leitura, ora no contrapé, retardando o fluxo. Esta espacialidade cria o ritmo, pois determina a
velocidade da leitura. Em ambos os poemas, alguns versos são entrecortados, às vezes mudando

trabalha bem as rimas (o que torna seus poemas difíceis de traduzir), comuns entre as palavras
terminais dos versos ou no interior de cada verso. Piva utiliza pouco este procedimento.

O que chama atenção em Piva é o uso da pontuação, especialmente o ponto final. É a


grande característica formal de 20 poemas: Com essa
técnica, o poeta imprime um ritmo vário e entrecortado no verso, às vezes reforçando a mesma
nota musical, como ocorre no jazz.

Retomemos o fio da meada. O poema dilacerado do fim do amor vira a cabeça de Piva
e o livro parece ganhar novos ares, novos ambientes. A obra também muda de direção e deixa
entrever uma grande virada na poesia de Piva.

O poema seguinte tematiza a cidade. A cidade vista do alto, de certa distância. Vertigens,
cabeças decepadas. Últimos centauros, últimos amores. Há um tom de distanciamento e
despedida. Em seguida:

XVI

abandonar tudo. conhecer praias. amores novos.


poesia em cascatas floridas com aranhas
azuladas nas samambaias.
todo trabalhador é escravo. toda autoridade
é cômica. fazer da anarquia um
método & modo de vida. estradas.
bocas perfumadas. cervejas tomadas.
nos acampamentos. Sonhar Alto.

Ai o marco. Toda a poesia de Piva até sua morte persegue este sonho. Mas, primeiro,
mandar tudo a merda. Tocar o foda-se. Cair na estrada, conhecer praias e amores. Estradas e
acampamentos. Abandonar este verbo com importância seminal na poesia de Piva durante a
década de 1980.

Numa primeira aproximação, o poeta abandona a vida urbana. Assim, afirma a Pepe
estou abandonando São Paulo, que está presente em todos meus livros,
106

198
; ou para o amigo Carlos Von Schmidt:

199
Bucólicas, d .

É exatamente o novo rumo que 20 poemas toma. O ambiente mencionado nos poemas
-
no poem

espaços rurais recheados de presenças epifânicas. É mesmo uma boa aproximação com a poesia
de Virgílio: não apenas com um paganismo pungente nas expressões da natureza, mas também
com um tom pederástico comum entre os romanos200.

abandonar na linguagem & O


século XXI me dará razão, publicado em primeira mão na antologia da L&PM, e posteriormente
na revista Chiclete com Banana, amealha as razões desse abandono, jogando merda no
ventilador com todas as questões ecológicas, econômicas e artísticas das civilizações modernas.

Aquele que faz da anarquia um modo de vida, passa a ser lido a partir desse viés, como
fica claro na apresentação do poeta na antologia da L&PM de 1985: o poeta é apresentado como

termo anarquia para


se referir à sua poesia e modo de vida. Os poemas da própria antologia, que reúnem aquilo que

XX

vocês estão cegos graças ao temor


olhares mortos sugando-me o sangue
não serei vossa sobremesa nesta curta
temporada no inferno
eu quero que seus rostos cantem
eu quero que seus corações explodam em
línguas de fogo
meu silêncio é um galope de búfalos
meu amor cometa nômade de
riso indomável
façam seus orifícios cantarem o hino
à estrela da manhã
torres & cabanas onde foi flechado o
arco-íris
eu abandonei o passado a esperança
a memória o vazio da década de 70

198
ESCOBAR, Pepe. A quizumba poética de Roberto Piva. Em: COHN, Sergio. Roberto Piva. (Coleção
Encontros). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 1983/2009. p. 40
199
VON SCHMIDT, Carlos. Amor, loucura, drogas (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1985/2009.
200
-
versa sobre o Império Romano e cita um tal garoto que Virgílio teria ganhado de Octávio Augusto.
107

sou um navio lançado ao


alto-mar das futuras
combinações

O mesmo tom ácido do manifesto O século XXI me dará razão, com a crítica aos cidadãos

201
. Agora,

é um canto de desterrado.

A menção à temporada no inferno e o tema da fuga levam a pensar num diálogo com
Rimbaud. Após sua temporada no inferno, o poeta vidente anuncia sua evasão do ocidente, suas
práticas e seus saberes. O fim da temporada é um adeus à Europa rumo às praias virgens e à
sabedoria ancestral ema da fuga está presente em Iluminuras,

a. Sua vida poética esparramou passos e nenhum verso.

A fuga de Roberto Piva de sua temporada no inferno, contudo, inaugura um momento


muito criativo de sua produção poética: no alto-mar das futuras combinações, mergulha em
rituais arcaicos do êxtase, nas matas do interior do Estado de São Paulo. Entre rituais de
candomblé, catimbó, jurema, cogumelos e garotos dourados em praias paradisíacas, Roberto
Piva acumula poemas que viriam a compor parte de seu livro Ciclones. No final da década de
1980, Roberto Piva seria iniciado no xamanismo por Carminha Levy que participara de cursos
ministrados por Michael Harner. O poema inédito Jornada Xamânica, de 1989, marca o
momento em que Roberto Piva irá se utilizar da expressão xamanismo como ponto seminal de
sua poesia. Nos rituais arcaicos do êxtase, o poeta encontra a potência da vida, para além da
civilização ocidental e sua história.

201
PIVA, Roberto. Eu Roberto Piva animal de rapina. Escrita revista mensal de literatura, n. 33, 1983, p.
17.
109

A Quizumba de Roberto Piva

No final da década de 1970, o poeta Roberto Piva participa ativamente do nascente


movimento pela diversidade sexual, além de meios ligados à esquerda revolucionária a
exemplo de suas publicações no aguerrido jornal de política, cultura e idéias
diálogo com a Libelu (Liberdade e Luta), grupo trotskista vinculado à Organização Socialista
Internacionalista. Tais esperanças políticas em torno do processo de redemocratização do país
cessam em 1979, quando o poeta escreve o seguinte trecho de seu 20 poemas com brócoli
abandonei o passado a esperança / a memória o vazio da década de 70 / sou um navio lançado
202
ao / alto- .

O poeta experimenta profunda crise. Copos se quebram na cozinha de seu apartamento,


no que considerou manifestação de sete demônios a atormentar sua vida. Esse momento de
grande conturbação anunciava tempestades e, com elas, a grande fertilidade da terra.

Se o posfácio de 20 poemas foi escrito no último dia do ano de 1980, em 04 de janeiro


de 1981 o poeta se manda para Águas de Lindóia, no interior de São Paulo. Passagem só de ida.
Durante os meses de janeiro e fevereiro, nesta cidade, o poeta transborda a confusão de sua
vida em versos velozes em debandada, naquilo que chamaria de Quizumba: um grande caos
criativo.

Quizumba é enxurrada de versos a mesclar elementos dos mais diversos: embaralha o


tempo, ao fundir lembranças da infância, com fatos da juventude e encontros recentes; desfila
recordações pessoais entrecortadas por leituras feitas sob efeito de anfetaminas; jorra frases
em diversos idiomas e neologismos saltados da trombada entre línguas; apresenta cenas de
amor entre poeiras de acostamentos, em meio a fatos históricos se projetando ao fundo. É o
- como se lê em um poema. Um vulcão em erupção.

Neste magma, cuja metáfora fora utilizada pelo próprio Roberto Piva como verve
seminal de sua poética, pretendo enveredar. Nessa deriva, apresento o livro Quizumba como
experiência de escrita automática, recheada da imagética futurista, com suas palavras em
liberdade e encontros entre realidades distintas. Trata-se da obra de Roberto Piva mais afeita à

compreensão de sua criação. Contudo, a crise pessoal do poeta é encarnação da crise de um


momento histórico específico, pautada no colapso da modernidade.

Eis o poema de abertura da obra:


1. Chovia na merda do teu coração

antenas de tv lambuzadas de veneno / caminhões despencando dos


eucaliptos / doze picadas de sal de anfeta na manhã embolorada da alma /
você assava pulmão de abutre / partia pra Pensão Estrada / eu vi a amora
gotejante do Sol depois do primeiro Purple Haze / fazia calor na Cantareira /
garotas apodreciam / guinchos dentro do mato anunciavam Alguma Coisa /

202
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. Em: PIVA, Roberto. Mala na mão & asas pretas obras
reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1981/2006. p. 115.
110

Hendrix & movimento submarino / Algas / flores no Cio de Metal / Gulash &
Cristais / garotos na Rural Wyllis tocando bongô pra Lua / olho-laser
estocando minhas células servicais / flores canoras nos canteiros de
borrachudos / total motores / eixo desmanchado em partículas de poeira
pulverizadas em Sonho / Morte do pêssego pródigo / só nós dois no coração
da canção / desenhos animados em câmera lenta no cartaz do ônibus /
punhais das sessões Zig-Zags / festa pagã do troca-troca religião da infância /
Hotel na plataforma espacial do largo do Paissandu / plantando quiabos nos
jardins da praça Clóvis / misturando as mídias / Plátanos via satélite com
folhas de amianto / Coaxando na TV programa Antunes Filho em 63 / Ode
Marítima em ritmo de Spansule / Jorge de Lima no Vulcão-Memória /
bombordo do Bateau Ivre / Kelene Geral congelado na alquimia / Carnaval de
Genghis Khan / vinho branco / hora da lasanha com perfume / Wesley
inventando o bicho que quebrou o pescoço / nos quintais tudo bem do
Planeta / vou por aí o chão de estrelas onde a borboleta caga assassinato
nuclear / Foi assim o fim sem fim do Serafim Ponte Grande? / sem maiores /
pra lá de Bagdá & da quadra de basquete / no azul daquela serra onde nasceu
Iracema & Oswald Spengler / decadência do tango argentino visto na
televisão ocidental / ócio & tal / Cobra Norato graças a Deus era tarado /
esporte do fim do mundo / Cruz Credo como diria Pedro II / Você ia à deriva
no rio do meu amor cabeludo / mostrando as coxas na estação como um
garoto canalha / baganas aos sóis da constelação / nos meus braços você foi
deus & puta203.

Quizumba é associação incontrolável de imagens, ideias, sensações e lembranças.


Associação mais que livre, na vida transvestida em versos. Tudo ali é choque insólito de
realidades distantes. Um conluio de contrastes. Sob determinado ângulo, Quizumba é o texto
mais autobiográfico do poeta: o fluxo da escrita permite captar seus delírios tanto quanto suas
recordações do troca-troca da infância; suas leituras de Álvaro de Campos na juventude,
chapado de anfetamina; o primeiro encontro com Wesley Duke Lee, no momento dos estudos

tomou seu primeiro ácido lisérgico. Sua vida em estado poético encarna leituras e músicas,
teatro e artes plásticas, numa miscelânea em que está a bombordo do barco bêbado de
Rimbaud; ou pensando em Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, em meio a afirmação
sobre o forte erotismo de Raul Bopp. Nesse lago azul da memória, nascem juntos Iracema e
Oswald Spengler, num carnaval do imperador mongol Gengis Cão, seguido de supostos ditos de
Pedro II.

Para o processo criativo de Quizumba, vale bem a seguinte formulação de Roberto Piva:
A minha poesia não tem meio caminho. É uma vivência profunda dos
acontecimentos, da experiência vivida, transportada para a poesia. Mas isso

experiência vem da infância, de relatos, de filmes, da cultura, da natureza. E


tudo isso transforma-se num magma, como diz o Pasolini. Vem aquela coisa
abrupta do fundo do vulcão, aquela lava incandescente, e se solidifica em
poesia204.

203
PIVA, Roberto. Quizumba. São Paulo: Global, 1983. p. 10.
204
MONTEIRO, Danilo; CESARINO, Pedro; COHN, Sergio. O renascimento do maravilhoso. (Entrevista). Em:
COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2007/2009. pp. 162-185.
111

frequente crítica do poeta a esse meio de comunicação. No poema Mortikultura, por exemplo,

num canto escuro da casa em meio aos cheiros familiares & se dispersando em pequenas coisas
205
. Em Mississipi no Amazonas
206
telenovela cagando problemas de pequeno- . É o
veneno do conservadorismo moral a modelar os comportamentos e prostrar o corpo na
poltrona; é o meio de comunicação a serviço da mercantilização da vida e da massificação dos
modos de ser. É este veneno que lambuza as antenas de TV.

Tal verso é seguido pela crítica de Roberto Piva ao desmatamento originado pela
indústria papeleira, a partir da derrubada de mata nativa para plantio do eucalipto. As toras do
vegetal são transportadas em extensos caminhões, que surgem na imagem despencando das
altas árvores de eucalipto. Na época de fabulação de Quizumba, Roberto Piva era ativista ligado
ao Movimento Arte e Pensamento Ecológico pioneiro no debate das questões ambientais no
Brasil. Durante aquela década, o poeta participaria de inúmeras passeatas contra
desmatamento da Juréia, além de manter importante coluna de debates ecológicos
na revista Chiclete com Banana. A feição violenta e apocalíptica da imagem
reflete bem as preocupações ambientais do poeta.

A seguir, numa manhã entediada, o poeta descreve o uso de anfetaminas, droga cujo
,
anuncia a interlocução do poeta com um amante, num teor homoerótico característico da
produção de Roberto Piva. Tal como o próprio poeta recluso no interior do Estado, seu amante

A crítica aos meios de comunicação de massa e à degradação ambiental, seguida de


lembranças amorosas é emendada à memória de quando o poeta experimentou seu primeiro
ácido lisérgico.

Era 1969. Piva toma uma stone do LSD 25, purple haze, e se manda com amigos para a

vi como se fosse uma grande tangerina gotejando amor para o universo. (...) E, depois... ouvi
Jimi Hendrix na casa de um amigo e percebi que era um músico que tentou musicar o movimento
207
das plantas

E assim ocorre em todos os versos de Quizumba. Incandescente, o Vulcão-Memória


escorre as imprevisíveis combinações do inconsciente, em genuíno exercício de escrita
automática. Nela se mesclam diferentes momentos da vida do poeta, mas também se
encontram distintas culturas e diversos momentos históricos.

205
PIVA, Roberto. Mortikultura. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 22, junho/julho, 1978,
p. 36.
206
PIVA, Roberto. O Mississipi no Amazonas. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 20,
abril/maio, p. 30, 1978.
207
VON SCHMIDT, Carlos. Amor, loucura, drogas (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1985/2009. p. 66-7.
112

Nesse primeiro lampejo, Quizumba reflete um processo criativo a partir das volições do
caos operando desde dentro, no intempestivo fluxo do pensamento. A escrita automática, como
forma de criação poética inspirada na associação livre de ideais proposta por Freud, é marca
registrada do surrealismo. Certamente Roberto Piva lança mão dessa forma de criação
utilizada já no Poema Automático, escrito com o amigo Claudio Willer, cujo título alude à escrita
automática. O caos de Quizumba certamente se inspira no surrealismo. Mas não só nele.

Estou no Chivas da Haddock Lôbo / são 3 horas da tarde / quinta-feira /


fevereiro / 1972 / tomo um milk Shake enquanto espero um Anjo entre as
mesinhas & as árvores que cercam este pedaço de mundo batido pelo vento
paulista & o sol universal / as fôlhas arrastando atrás de si o sonho dos
duendes & eu estou com vontade de ouvir Changelling do Doors na voz de
trovão-machucado de Jim Morrison da última fase & gostaria de ver
Baudelaire aparecer por aqui / com os cabelos compridos pintados de verde
& sua tartaruguinha prêsa numa coleira de cachorro / recitando les jornaux

quelque
separando mais o sonho & a realidade-limitadora colorindo as ruas / os
prédios / as casas / numa visão psicodélica dos Paraísos Artificiais & o mundo
seria uma eterna festa num ciclo cósmico infinito208

O poema se inicia como uma anotação em diário pessoal: com detalhes do local e data.
Tal referencialidade é logo assaltada pela percepção delirante da realidade. Como na escrita
- . O vento bate e as folhas
de uma árvore arrastam os sonhos de duendes. O poeta parece mesclar sensações do instante
com rompantes delirantes, entremeados com o desejo de ouvir uma música ou a lembrança de
uma passagem de Charles Baudelaire.

É emblemática a presença do poeta francês nessa outra quizumba de Roberto Piva. A


começar pela menção à obra Os Paraísos Artificiais, na qual Charles Baudelaire relata suas
experiências com o haxixe e o ópio. Roberto Piva, contudo, nomeia a experiências com essas
subst Quizumba. Trata-se de uma forma de
fusão entre o
lo cósmico

Além desse estado delirante, às vezes estimulado pela ingestão de substâncias, Charles
Baudelaire também comparece com um trecho extraído de Fusées (Foguetes). Esta obra, junto
com (Meu coração posto nu), forma espécies de diários íntimos (jornaux
intimes) do poeta francês. Nestes diários, há textos fragmentados e inacabados, escritos em
rompantes abruptos entre 1855 e 1862. O próprio Baudelaire relata a proposta: escrever dia a
dia, não importa onde ou como, seguindo

208
PIVA, Roberto. Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas &
lindos rostos pagãos me observam viver?. revista Artes:, São Paulo, Ano VII, n. 35, p. 3, 1972.
113

parisienses. São diários íntimos em que o poeta discorre livremente sobre os mais variados
assuntos, incluindo o modo de ser do dândi, mesclado a reflexões filosófico-teológicas, em meio
a desabafos contra a política ou a religião; aí juntam-se híbridos de crítica literária com memórias
da infância, ou passagens biográficas sobre suas obras intercaladas por notas para não se
esquecer de algo. É um diário pessoal em que se diz tudo, sem censura.

É um processo de escrita em tudo semelhante àquele de Quizumba. Sua presença neste


poema de 1972 revela o quanto Roberto Piva o experimentava já desde essa época. Assim como

se associa Jim Morrison à definição do belo em Baudelaire. A passagem mencionada no poema


é aquela do trecho de número XVI dos Foguetes
É qualquer coisa de ardente e triste, qualquer coisa um pouco vaga, dando corda à
209. Baudelaire se demora na relação entre a Beleza e a Melancolia (seu

Mas não apenas no horizonte da criação poética o poema de 1972 mantém um paralelo
com Quizumba. Em ambos poemas, os versos se sucedem com grande velocidade, expressa
-se um verso a outro sem
qualquer pausa, acompanhando o ritmo da escrita automática.

Não há como não lembrar da forma de redação de On the Road, em que Jack Kerouac,
chapado de anfetamina, escrevia suas aventuras biográficas sem parar, em grande rolo de papel
que não interrompia o rápido fluxo dos dedos na máquina de escrever.

A associação livre do pensamento opera no fluxo do inconsciente, encadeando


misteriosamente realidades das mais inusitadas, em estranha causalidade do desejo. Sob o
ponto de vista imagético, a composição de Quizumba pode bem ser entendida na esteira
surrealista. No Manifesto do Surrealismo de 1924, André Breton empresta passagem de Pierre

imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da
aproximação de duas realidades mais ou menos afas 210. O trecho, publicado por Pierre

Reverdy originalmente em sua revista Nort-Sud, em março de 1918, segue conclamando a

surrealistas inspiraram-
mesa de dissecação de uma máquina de costura e um guarda- 211. Como grande leitor de

Lautreamont, Roberto Piva também tinha essas influências em mente, mesmo que
inconscientemente.

209
BAUDELAIRE, Charles. Journaux intimes: fusées, mon coeur mis à nu, carnet. Paris: Librairie José Corti,
1949. p. 18
210
BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. (Sergio Pachá, trad.) Rio de Janeiro: Nau, 2001. p. 35
211
LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror. 2. ed. (Claudio Willer, trad.). São Paulo: Iluminuras,
2008. p. 252.
114

Mas Roberto Piva convida outra vanguarda para ver suas imagens. No verso inicial do
Marinetti era uma rã no aeroplano / todo alumínio
Manifesto Técnico da Literatura Futurista,
publicado por Marinetti em 11 de maio de 1912. Foi exatamente em um aeroplano, sentado no
tanque de gasolina, que o italiano sentiu a necessidade furiosa de arrebentar com a velha sintaxe
e criar suas palavras em liberdade. O ritmo sobreposto, veloz e frenético de Quizumba bem

image 212. Imagens estas que procuram abarcar todas as volições da vida, a partir da

associação de movimentos mais estranhos da matéria. Criticando as analogias mais simples e


ciações mais vastas:

diferentes e hostis. Somente por meio de analogias vastíssimas pode um estilo orquestral, a um
mesmo tempo policromo, polifônico e polimorfo, ab 213.

Um ritmo rápido, pautado na sequência de imagens em choque, esparramadas a partir


de uma analogia inusitada: é uma boa descrição de Quizumba. E mais: Marinetti sugere
214
-as de acordo com um MAXIMUM DE , a partir
215. Não é

uma boa pedida para se aproximar de Quizumba?

As imagens de Roberto Piva utilizam também outros artifícios do Manifesto Técnico. Por
exemplo, a imagem formada por dois substantivos unidos por analogia e aproximados com
hífen. O Manifesto traz alguns exemplos (mulher-baía, multidão-ressaca, etc.). Quizumba traz
- - -
escaravelh - - -

A exaltação futurista das tecnologias traz diversos termos técnico-científicos acoplados


às imagens, neste mesmo ímpeto de ligar coisas distantes. Muitas imagens em Quizumba
-
-

mecânica, química, física e astronomia.

São as palavras em liberdade numa apropriação de Roberto Piva com toda sua
velocidade, analogia, desordem e ilógica. No entanto, após a menção a Marinetti que vimos

morte gula do céu az


216. Com

uma poética pessoal, que transborda lirismo e vivências biográficas, Roberto Piva marca essa
diferença com relação às pretensões do futurismo italiano.

212

O futurismo italiano manifestos. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 83.


213
Ibidem, p. 82.
214
Ibidem, p. 84
215
Ibidem, p. 86.
216
Ibidem, 84.
115

Com suas imagens a ligar coisas distantes, muitas vezes unidas por hífen e referidas a
termos científicos, a verve imagética de Quizumba é nitidamente futurista. Se considerarmos a
velocidade dos versos dispostos em desordem, poderemos ampliar ainda mais a influência das
palavras em liberdade nesta obra de Roberto Piva.

4. Vox Voluptas

Outra experiência de Roberto Piva em Quizumba é a mescla de diversos idiomas outro


eco da polifonia futurista mencionada por Marinetti. Os exemplos aqui também abundam, tais
-
próximos, Piva traz expressões do francês, italiano e inglês este último na versão
aportuguesada. Belle époque é expressão proposital que associa o poema a um período
considerado bastante cosmopolita, recheado de inovações tecnológicas e artísticas que
modificaram substancialmente ta
uma apropriação erótica das expressões. Esse mesmo ar cosmopolita, polifônico e erótico está
presente na poesia de Roberto Piva desde sua obra Piazzas
grave pátio / onde garòfani milk-shake & Claude / obcecado com anjos 217. A nomeação do
cravo em italiano mesclado com a bebida norte-americana e um amigo francês. Em Piazzas,
como em Quizumba, a miscelânea de idiomas é reflexo do tom onírico que mistura realidades
distintas. Em ambos, a soberania do princípio do prazer, presente no universo onírico, afirma-se
como atmosfera erótica.

Quizumba, contudo, aprofunda a experiência. Além de caos na vida pessoal, na


versificação e na composição de imagens, Quizumba é também confusão linguística, em que o
alto latim e a gíria mais baixa se encontram:

Jorge de Lima + William Blake + Tom Jobim. Dante observa

Papè Satan, papè Satan aleppe / Stradivus cordis meus / formavulva falastros
/ ripus Nicomedis / fla-flu Kricotomba / cantus Servilius / Baudelaire-Maxixe
/ Fontana efó luzes pardoin / farofa extravivax vox voluptas / moqueca /
cachimbando cullus puer / Monte Branco belladona / Montagu / Pasolini-
panqueca / formas tuas in natura / pour toi / Plebiscito Bakunin sin nombre
ni substancia / tus pecados / dans le salon de danse / Mon grosse Lewis Carroll
/ suchiando le bambine / na calçada / na porta do hospício / eu você nós dois
aqui neste bagaço à beira-mar / Curiango / tiger / milhafres / sai de baixo218.

Veja como o título do poema reúne um poeta brasileiro com um inglês, além do músico
brasileiro todos observados pelo poeta florentino. Somados pelo sinal matemático como

ortuguês com o latim

poeta francês associado a expressão popular brasileira, além de cineasta italiano, escritor inglês,
político russo, de diferentes épocas.

217
PIVA, Roberto. Piazzas. São Paulo: Kairós, 1964/1980. (Coleção A Ciência da Abelha). p. 23.
218
PIVA, Roberto, Quizumba, op. cit., p. 23.
116

Na época de composição de Quizumba, Roberto Piva preparava um estudo sobre o


imperador romano Nero, aprofundando leituras em latim e italiano moderno. Talvez estes
versos tragam essa atmosfera de leituras do poeta, imerso em materiais das mais diversas
línguas.

Contudo, leitor de James Joyce, tendo inclusive citado seu Fennigans Wake em epígrafe
de poema de Coxas (1979), Roberto Piva pode ter suas invenções influenciadas por este outro
grande desordeiro das línguas. O fluxo ininterrupto da escrita de Joyce, a forte presença
mitológica de diversas culturas e o tom onírico podem facilitar as semelhanças entre Fennigans
Wake e Quizumba.

Há também a predileção de Roberto Piva pelas expressões do futurismo russo como


outra possível influência. Manifestos como A Palavra como Tal (1913) de Vielímir Khliébnikov e
Aleksiei Krutchônikh, levam as propostas do futurismo italiano às últimas consequências, com a
invenção de novas palavras para exprimir uma nova maneira de sentir o mundo.

Mas é principalmente e inusitadamente ao observador do título, Dante Alighieri, que


Roberto Piva se refere.

do Canto VII do Inferno uma frase irada dita por Pluto. O significado obscuro da passagem dá
pano pra manga. Sem um sentido preciso, em virtude da utilização de palavras ininteligíveis
(exceto Satan), especula-se muito. Pode ser uma expressão de raiva e insulto de Pluto utilizando
espécie de gíria. Podem ter sido palavras inventadas por Dante a partir de línguas perdidas ou,

que o poeta florentino teria ouvido em sua visita à Paris. Por fim, Dante pode ter
usado uma invocação mágica à Satanás, dita em linguagem hermética. Mas do que pensar a
criação de Dante, nos cabe pensar a apropriação que Piva faz da frase. Para o poeta, a expressão
significava uma associação que Dante fazia entre o papa e o diabo. O que importa no texto, no
entanto, é o quanto a expressão do florentino dispara a experimentação linguística de Piva.

Seja como for, não deixa de ser curioso que para compreender a fusão linguística do
poema recorramos às influências de um poeta medieval florentino, um poeta modernista
irlandês e um movimento de vanguarda russo.

5. Liquidificador poético simultâneo

Em poema publicado no ano de 1979, na Revista Singular & Plural, denominado A


política poética
poético simultâneo Reverdy + Fourier + Oswald + Soffici + Cravan + personagens do sítio do
Picapau Amarelo + Peret + Murilo Mendes + Artaud + Gregório de Matos + Raul Bo 219.

Liquidificador é uma boa denominação, pois, ao mesmo tempo em que mistura todos os
ingredientes num caos indiferenciado, os torna fluídos a escorrer informes. Em outro poema do
220.

219
PIVA, Roberto. A política poética. Singular & Plural, n. 4, 1979, p. 76.
220
PIVA, Roberto. Relatório pra ninguém fingir que esqueceu. Singular & Plural, n. 1, 1978, p. 87.
117

Essa dentição selvagem do poeta, cujo tom arcaico contrasta com o eletrodoméstico
contemporâneo, está muito presente em Quizumba como se vê no título do poema transcrito
acima.

Na noite de 29 de dezembro de 1977 na ocasião do lançamento de Antes que eu me


esqueça, de Roberto Bicelli, no Teatro Célia Helena , Roberto Piva lê uma série de poemas
registrados em um curta-metragem de Jairo Ferreira. É a primeira vez que o tal liquidificador
entra em ação. Nestes poemas inéditos, temos traços importantes de Quizumba.

seguinte

uma floricultura onde um cão esquimó, uma codorna e um ratão do banhado repartiam geleias
eados de gírias populares, bem
lembra O Santeiro do Mangue, obra em que Oswald de Andrade lança mão de poesia também
desbocada e gozoza, humorística e crítica.

-
o tom rapsódico de Macunaíma, na ilha mítica de Jorge de Lima em mais uma liquefação
presente nessa recitação de 1977.

Essas mesmas características estão presentes em Quizumba, obra de Piva em que sua
relação com as diversas faces do modernismo brasileiro fica mais explícita. O nome do livro,
Quizumba, figura no início da obra como em um dicionário popular. Ali, Roberto Piva define a

-
-se de estudo sobre as expressões populares como forte legado modernista.
Da mesma forma, a epígrafe do livro traz passagens de Jorge de Lima e Guimaraens Rosa, além
de outras tantas referências no decorrer do livro. Qual a retomada de Roberto Piva do
modernismo brasileiro?

Quizumba é explícito: permite a


devoração de diversas épocas e culturas num prato apimentado à moda da casa. Essa afirmação
dionisíaca de todas as referências estrangeiras, contudo, não guarda qualquer zelo pela coisa
nossa. Em outras palavras, Roberto Piva utiliza procedimento inspirado na antropofagia
oswaldiana, mas desprovido de qualquer preocupação modernista com a nacionalidade e as
expressões genuinamente brasileiras. Ao contrário, Roberto Piva não finca raízes em qualquer
pátria, preferindo o fluxo multinacional sem quaisquer fronteiras.

Um similar tratamento da tradição modernista pode ser observado na menção a outro


antropófago. No poema Batuque I
havia feito, aliás, em relação à obra de Mário de Andrade em Coxas -
beat norte-americana que,
por sua vez, traz a musicalidade do jazz Bebop que tanto influenciou o modo de vida e a dicção
beat. Roberto Piva toma a tradição modernista sempre em sintonia com manifestações artísticas
contemporâneas como a música pop e o Bebop. Macunaíma com o pop aqui, Raul Bopp com
o Bebop acolá e o poeta novamente está longe de se deter a um projeto moderno de busca das
especificidades brasileiras. Antes, conflagra um momento histórico do país penetrado pela
cultura globalizada.
118

6. Anarquia, pederastia e crime

Enquanto o projeto moderno pressupunha o desenvolvimento social e econômico


conduzido pelo Estado de Direitos a contemplar todos seus cidadãos, Roberto Piva denuncia, já
desde a Ode à Fernando Pessoa (1961), a falácia da apologia ao progresso. No lugar de um
projeto coletivo de cunho universalista, o poeta aposta em figuras marginais envolvidas em
atividades ilegais.

transnacional, mas agora com o ingrediente subversivo mais picante. O jagunço sertanejo, o
pistoleiro justiceiro e o poeta francês acrescentado ao bando talvez por suas atividades ilegais
ligadas ao tráfico de armas. Em ambos a aura do crime, a força da juventude e o teor erótico.

A apologia da criminalidade é tônica constante de Quizumba


Jane Birkin / 16 anos & 3 de crime / tártaros na pradaria / anarquistas de Bonnot esperando a

te Giovanni sabendo

tempo imperador, delinquente, trabalhador, angelical e artista...

A menção ao bando Bonnot é fundamental. Jules Bonnot (1876-1912) é um lendário


anarquista francês conhecido exatamente pela série de ações criminosas na França entre 1911-
1913, ao lado de comparsas que conheceu nos encontros em torno da Revista .O
bando Bonnot desenvolvia assaltos como ações políticas anarquistas, dentro da experiência do
crime como modo de vida. Os chamados anarcoilegalistas não submetiam suas ações
revolucionárias aos marcos legais e morais da sociedade burguesa o que os distingue dos
ripécias do Bando Bonnot
tiveram fim com o conhecido cerco à Bonnot e seu assassinato em 27 de abril de 1912. Um ano
depois 03 integrantes da gangue foram guilhotinados. O verso de Roberto Piva explicita sua
exaltação do crime como atividade política de revolta contra a sociedade ocidental burguesa.

Se a exaltação de um modo de vida guerreiro incorpora ilegalistas, imperadores (como

-1920) migrou da Itália para os EUA aos 10


anos, intercalando a atividade de engraxate com a de batedor de carteiras. Aos 18 anos
trabalhava como varredor de ruas, ao mesmo tempo em que se torna cafetão. Logo, ganhou
popularidade nas redes de prostituição e passou a atuar junto a vereadores cobrando pequenas
,
em 1910, um café frequentado por ricos e famosos. Ganhou dinheiro ainda com o tráfico de
bebidas após a lei seca e foi assassinado em 1920, em circunstâncias obscuras. Roberto Piva

metralhadora.

Para completar a lista, Roberto Piva convida a fúria dos piratas, co

trouxe muito do imaginário ligado, a partir de então, à pirataria, como o tom brutal de um ser
robusto coxeando. Piva também menciona um ta

integra bem o elenco subversivo de Piva.


119

Por fim, há o jogo entre a intensidade da transgressão e a do sexo. A agressividade


desenfreada, em que se perde a cabeça e se ganha o corpo todo em gozo. Há encruzilhada

Diadorim: heróis-escaravelhos / com quantos punhais construiremos o quarteirão

Ao abandonar tudo em 1979, ano em que foram escritos os versos de 20 poemas com
brócoli
o vínculo entre a anarquia, o crime, os garotos delinquentes e o futurismo, presente em
Quizumba, será frequente na produção daquele período. Em Eu, Roberto Piva, animal de rapina

perseguido por todas as religiões &


dos garotos são a última faísca de religiosidade pagã. Deuses do Subúrbio. Garotos da Febem
cujo crime foi lesar uma sociedade criminosa. Já Walter Benjamin sacava que "em Kafka, a beleza
aflora apenas nos lugares mais secretos: por exemplo, nos acusados . A este elogio erótico dos

221.

Em Queima, supermercado, queima (1985), dedicado a


Piva delira sobre a situação de jovens criminosos encarcerados, concluindo com os versos:
222.

Eis os ingredientes picantes da poesia de Roberto Piva neste período: anarquia, crime e
futurismo. Eis Quizumba.

7. Historiografia do Inconsciente

de sua poesia, Quizumba é o exemplo mais emblemático.

Com esta noção, Walter Benjamin reflete o encontro entre os pensamentos de Freud e
Karl Marx, como prática comum entre os frankfurtianos. Amplia-se o entendimento do sujeito

Benjamin, como Marcuse, à prática poética surrealista, que atrela exatamente o fluxo imaginário
do inconsciente com um processo revolucionário de extração marxista. Roberto Piva, sociólogo
formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e pela Faculdade Farias Brito, conhecia
bem o pensamento político dos freudo-marxistas e lera, já no começo da década de 1960, obras
de Hebert Marcuse, Norman Brown e Reich.

Walter Benjamin recorre ao inconsciente como palco privilegiado de manifestação das


contradições da modernidade, em detrimento da consciência, assaltada pela mercadoria e
assombrada pelo conformismo. Nos labirintos do inconsciente, do sonho e da memória,
Benjamin vê florescer uma temporalidade não linear que embaralha passado e futuro em um
agora instantâneo. Daí seu apreço pela historiografia do inconsciente.

221
PIVA, Roberto. Eu Roberto Piva animal de rapina. Escrita revista mensal de literatura, n.33, p. 17,
1983.
222
PIVA, Roberto. Queima supermercado, queima. Em: Cohn, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro,
EdUERJ, 2012. p. 75.
120

Como escrita inconsciente e temporalidade reversível, o Vulcão-Memória de Roberto


Piva pode ter sido, inclusive, inspirado na noção do filósofo. De fato, a imersão no universo
inconsciente se traveste em elementos da memória, cuja agoridade atualiza e recria um passado
a luz do instante em que se manifesta. Neste sentido, como ação individual e coletiva, dum

presente em Quizumba permite perceber de forma vívida as tensões da modernidade, naquele


início da década de 1980.

Contudo, embora os surrealistas ofereçam farto material inconsciente recheado de


tensões sociais, Walter Benjamin faz a crítica à imersão no sonho despida de um despertar
histórico.

A historiografia do inconsciente, ao revelar as contradições da modernidade, dispara um


despertar histórico exatamente por esgarçar as tensões daquele contexto histórico. A Quizumba
de Roberto Piva poderia nos conduzir da imersão no inconsciente ao despertar crítico?

8. Quizumba -

A crise presente em Quizumba não é somente pessoal e não revela apenas o abandono
da esperança do poeta. Quizumba registra o colapso da modernidade e a deriva do mundo.

Sociólogo ligado aos movimentos ecológico e pela diversidade sexual, Roberto Piva
participa de recitais e passeatas pela redemocratização do país, além da mencionada
frequentação de meios revolucionários. A crise que desencadeia Quizumba é aquela do fim das
utopias e consolidação do capitalismo com feições neoliberais.

A quizumba é global. Os versos velozes de Roberto Piva, atravessando diversas culturas


em combinações multinacionais, é um incrível paralelo da rapidez dos fluxos financeiros no
mundo globalizado. A ebulição tecnológica de suas imagens futuristas, com laser e satélites,
mantém estranha relação com a terceira revolução industrial. A crítica de Roberto Piva a
modelação das subjetividades pelos meios de comunicação de massa e a degradação ambiental
movida por empresas multinacionais, reflete um contexto de crítica à indústria de massa e início
das preocupações ambientalistas. Há semelhanças, inclusive, entre sua aposta no caos e na
deriva e a falta de rumo do mundo com o colapso da modernidade pois a crise dos valores
modernos põe fim a qualquer referência firme na qual fincar raízes. Por fim, até sua postura
anárquica desmorona os Estados Nacionais de maneira similar aos apologistas do Estado
mínimo.

Se Quizumba é a obra de Roberto Piva com diálogo mais acentuado com o modernismo
brasileiro, é também a obra com traços do que alguns pensadores daquele período
-

A expressão foi consagrada por Jean-François Lyotard, no clássico A condição pós-


moderna (1979), para descrever o fim das meta-narrativas modernas e a proliferação de formas
fragmentárias de atribuição de sentido à realidade.

No período de publicação de Quizumba -


-modernidade e
Jameson.
121

-
artística que reúne diversas manifestações do passado, de forma fragmentária. Essa reprodução
do passado reflete a relação contemporânea com a temporalidade, qual seja, a ausência de

223.Ou seja, trata-


se da vivência de um instante eterno isolado do passado (ou da construção histórica) e desolado
em relação ao futuro
não consegue encadear-se em uma sequência 224.

Quizumba é atravessada pelo encontro de realidades distantes espacialmente, mas


-Brasília d
espaço geográfico brasileiro no interior da obra clássica grega. Exemplos assim abundam na

reflexo de um mundo em estilhaços a amealhar imagens de diferentes culturas e momentos


históricos de forma fragmentada.

Uma crítica das expressões da poesia brasileira contemporânea como Iumna Simon225
observa exatamente a frequência do uso de intertextos descontextualizados como marca da
poesia contemporânea, especialmente em uma retomada da tradição modernista brasileira.
Trata-
modernismo literário brasileiro de maneira acrítica, meramente funcional, pairando de forma
abstrata e atemporal para um poeta que usa o passado como forma de fugir do próprio
presente. Tal expediente, caracterizaria a produção poética brasileira a partir da década de
1980, com acento especial aos poetas influenciados por Haroldo de Campos que, em 1984,
, de uma poesia pós-utópica da agoridade.

Neste mesmo contexto, Quizumba antecipa esta tendência pós-utópica dos


concretistas, muito embora sem seu pendor programático de movimento literário. E mais: tanto
Piva quanto Haroldo de Campos, com a historiografia do inconsciente ou a agoridade, fazem
menções a filosofia histórica de Walter Benjamin. É de se pensar esta retomada da tradição
a ela um despertar histórico?

223
JAMESON, F. Pós-modernidade e sociedade de consumo. (Vinicius Dantas, trad.). Novos Estudos
CEBRAP, São Paulo, n. 12, jul. 1985. p. 21
224
Ibidem, p. 22
225
SIMON, Iumna Maria. Condenados à tradição. Revista Piauí, n. 61, out. 2011, p. 82-86.
123

Duas vias se abrem na poesia de Roberto Piva durante a década de 1980. A experiência
mágica nas matas do interior de São Paulo, em torno das manifestações arcaicas do êxtase; e a
vivência transgressora nas ruas da cidade, em torno dos garotos delinquentes. A primeira via foi
publicada como parte de Ciclones (1997); a segunda permanece dispersa.

No final dos anos 1970, Roberto Piva anuncia um novo momento de sua vida poética:

226
lançado ao / alto- . Certamente se referia às esperanças de sua
atuação política em órgãos ligados à esquerda e ao nascente movimento homossexual. Se o
prefácio de 20 poemas com brócolis foi assinado no último dia do ano de 1980, a 4 de janeiro do
ano seguinte o poeta já estava fora da cidade de São Paulo, passando uma temporada em Águas
de Lindóia onde escreveria Quizumba (1983). O alto-mar das futuras combinações o levou a
experiências mágicas nas matas da Jureia, ao catimbó em meio a garotos dourados na Ilha
Comprida, às viagens com cogumelo ou vinho de jurema na Serra da Cantareira ou em Juquitiba,
ou aos banquetes pagãos em Jarinu. Em meados da década, Roberto Piva foi iniciado no
xamanismo e encontrou no êxtase seus devires selvagens em plantas, animais e astros. Esta
verve xamânica da poesia de Roberto Piva reverberou em excelente crítica, como nas visões de
José Juva227.

Mas o selvagem não estava só na floresta, e o erotismo sagrado pulula também nos
corpos de garotos suburbanos. É assim que entre os devires em seu animal xamânico (gavião)
há também as derivas nos animais de rapina do centro da cidade. Poemas como Belle leçon aux
enfants perdus (1980), Eu Roberto Piva animal de rapina (1983) ou Fragmentos Anárquicos
(1987), dentre outros, tematizam exatamente o ambiente urbano e toda sua fauna subversiva.
Mas é principalmente na lendária revista argentina Cerdos & Peces que essa via ganha corpo. O
poema Animales Miserables (1989) é apresentado como parte de certo livro a ser publicado:
-se que tal livro não veio a público e sequer temos indícios para
confirmar sua existência.

A partir dessa sugestão de livro é possível recompor materiais publicados naquela


década que tematizavam exatamente o selvático no ambiente urbano. Esses textos têm como
eixo a experiência erótica e anárquica com garotos criminosos.

Poesia e pederastia

A vida poética de Roberto Piva é atravessada de ponta a ponta pela presença erótica de
garotos. Já em sua estreia, na famosa Antologia dos Novíssimos, o poeta aparece em meio a
pederastas, mariscando colegiais num bar do Largo do Arouche. Na Ode a Fernando Pessoa
(1961) os pederastas surgem como amantes, em meio a insinuações de amor livre com
adolescentes. Paranóia está repleta de anjos e são mencionados também os amigos pederastas
sem nenhuma piedade. Piazzas (1964) transforma o singelo robô de Isaac Asimov em

226
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. Em: ___. Mala na mão & asas pretas obras reunidas volume
II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1981/2006p. 115.
227
SILVA JUNIOR, José Juvino. Deixe a visão chegar: a poética xamânica de Roberto Piva. 2011. 113 fl.
Dissertação (Mestrado em Letras e Teoria da Literatura), Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
124

Abra os olhos e diga Ah! (1976) e 20 poemas com brócoli (1981) a


experiência sexual homoerótica toma o eixo central, bem como Coxas fabula um clube de orgias
composto por garotos da periferia da cidade. Assim se dá até o último poema de Roberto Piva
de que temos notícia, apresentado por ele como parte integrante de outro livro que permanece

cantor de rock / pé de sapo / desmunheca desde cedo / com seu sex appeal de menino
228
.

O interesse de Roberto Piva pelos garotos está relacionado à explosão subversiva da


juventude. É um poeta que convivia com adolescentes envolvidos com a criminalidade. Durante
o período da ditadura militar brasileira, Roberto Piva foi bastante audacioso nas denúncias
contra as torturas que os jovens sofriam no Recolhimento Provisório de Menores (RPM), numa
associação clara do Estado militar brasileiro com o fascismo.

bárie no 8: garoto travesti de 15 anos, office-boy


durante o dia, estuprado & morto a pauladas na Vila Brasilândia por policiais. Pasolini, desperta!
229
.

A menção ao poeta e cineasta italiano é importante. Pier Paolo Pasolini havia filmado,
em 1975, seu Salò o le 120 giornate di Sodoma, num diálogo com a obra homônima do Marquês
de Sade. Entretanto, Pasolini ambienta as orgias e crueldades com os jovens na República de
Salò em 1944, durante o regime fascista italiano. É uma forma de denunciar quanto a violência
totalitária está estreitamente relacionada ao prazer sexual dos algozes que tornam o outro
objeto de destruição. Em Coxas: sex fiction & delírios, Roberto Piva utiliza exatamente este
procedimento, em diálogo com Pasolini e Marquês de Sade:

Apavoramento n. 2

Quinze adolescentes de ambos os sexos foram chicoteados na bunda por


batalhões da TFP que os insultavam enquanto trezentos rapazes & moças de
seita imperialista Hare Krishna cortavam rodelas de cebola & colavam em
seus olhos230.

Em Roberto Piva as feições fascistas se encontram nas crueldades movidas por


instituições religiosas. São as autoridades puritanas, exatamente aquelas que abraçam ideais
para afastarem as sensações corporais mais pungentes, que se entregam ao prazer das torturas.

O poeta também coloca como central a experiência erótica da juventude, mas não
procurando reprimi-la. Em seu poema intitulado A política poética
sou por uma poesia que fale... dos pivetes maravilhosos que se viram nas avenidas Ipiranga &
231
. São os garotos que vivem na aura criminosa e são vistos pelo poeta como

corporal e erótico dos garotos, que política poética seria esta?

228
GLOBO LIVROS. Entrevista com Roberto Piva - 2008. Disponível em:
http://www.globolivros.globo.com/downloads/pdf/Pivafala.pdf. Acesso em: 04 nov. 2011.
229
PIVA, Roberto. Ano XV do capitalismo selvagem. Singular & Plural, São Paulo, n. 2, janeiro, 1979, p. 73.
230
PIVA, Roberto. Coxas: sex-fiction & delírios. São Paulo: Feira de Poesia, 1979.
231
PIVA, Roberto. A política poética. Singular & Plural, São Paulo, n. 4, março, 1979, p. 76.
125

Belle leçon aux enfants perdus

Villon
garoto amante este musgo te devora
esta sede de omoplatas e cazzos mais doidos que a capoeira dos
deuses
olhaqui! o tambor gira 2 vezes e lambe as coxas que se vão
para a Freguesia do Ó às 18:30 /4/80
vida é isso! apaixonar-se e escolher
senão o tempo passa e você não avança
Mate a mãe
Mate o pai
Mate a sombra deles todos232

compõe toda a cena erótica que se repetiu em sua vida e obra poéticas: centralidade do sexo
pederástico ligado às manifestações do sagrado.

A partir daí o poema assume um ar de aconselhamento, num tom muito próximo ao


coloquial. Roberto Piva menciona o local da periferia da cidade onde o garoto iria (Freguesia do
Ó), a hora e data, reforçando o teor de realidade da conversa descrita. O tambor que gira parece
se referir ao depósito de balas de um revólver, com suas várias culatras que se movem após
cada disparo, para dispor a próxima munição na agulha. Tal tambor giraria duas vezes.

e
escolher entre a paixão ou as tradições familiares. Ou seja, vive-se esse amor subversivo ou se
obedece aos deveres sociais. Daí a exortação a matar pai e mãe número que coincide com as
vezes que o tambor do revólver giraria. Uma morte que opera também no plano simbólico das
sombras, ou seja, livrar-se da influência da educação patriarcal e a interiorização das convenções
sociais. O parricídio pode ser estendido, nessa acepção, dos pais à pátria, ao patrão e ao padre
figuras que representam a obrigação à ordem.

Aqui todos os elementos que veremos repetidos nessa via da poética de Roberto Piva:
garoto, sexo, crime, sagrado. E o poeta é aquele mais velho que corrompe o menor e o
aconselha, num diálogo com o poema homônimo do francês François Villon (1431-1463?)
associado, desde Piazzas, aos garotos subversivos.

232
PIVA, Roberto. Belle leçon aux enfants perdus. Os dentes da
memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 1980/2011. p. 197.
126

Bela lição aos pivetes perdidos233

Belos garotos, vocês perderam a mais


Bela rosa de vosso chapéu;
Clérigos perto pegam como cola,
Se vocês forem a Montpipeau
Ou a Rueil, salvem a pele:
Pois, ao se distrair nestes dois lugares
Arriscando uma segunda jogada,
Colin de Cayeux se perdeu

Não é um jogo de três moedinhas,


Em que vai o corpo, e talvez a alma.
Quem perde, nada tem senão remorsos
E se não morre tem vergonha e difamação;
E quem ganha não tem a mulher
A Rainha Dido de Cartago.
O homem é então muito louco e infame
Se, por tão pouco, arrisca tal ganho

Que cada um me escute!


Se diz, e com toda verdade,
Que o barril se bebe todo,
No fogo o inverno, no bosque o verão:
Se tens dinheiro, não o guarde,
Mas o gaste de qualquer jeito
Quem ficará com vossa herança?
Mal ganho não traz outro proveito

Villon encarna o poeta bandido. Em suas baladas, encharcadas de gírias e de um tom


sarcástico, desfilam afrontas aos padres e às famílias em contraste com toda exaltação da vida
subversiva. O poeta foi abandonado pela família após a morte do pai e confiado a um capelão.
Em sua juventude, Villon trazia na adaga as vísceras frescas de um padre morto por ele em uma
briga de bar. O poeta era um ladrão profissional e possível integrante da tenebrosa confraria de
criminosos Coquillard ou Cavalheiros do Punhal. Trata-se de um bando sobre o qual se especula
o desenvolvimento de atividades ilegais relacionadas à sodomia, especialmente à prostituição
masculina. Villon foi preso após assaltar com sua quadrilha os tesouros de um colégio. Por
intervenção de seu protetor, o poeta se safa da condenação de morte e é expulso da cidade,
levando uma vida errante, fugindo de problemas com a lei e vadiando sabe-se lá onde.

Seu tom é de um malandro mais velho que aconselha acólitos como o de Piva. Villon dá um
toque aos meninos perdidos, espécie de trombadinhas da época, que fiquem espertos com os

233
Tradução livre do original: Belle leçon aux enfants perdus. Beaulx enfans, vous perdez la plus / Belle
rose de vo chapeau; / Mes clers pres prenans comme glus, / Se vous allez a Montpipeau / Ou a Rueil,

acquest ne prouffite. VILLON, François. Testamento. (Afonso Felix de Sousa, trad.) Belo Horizonte: Editora
Itatiaia, 1987. p. 143-4.
127

clérigos. Pede cuidado quando forem surrupiar em Montpipeau e Rueil, locais em que os
menores iam praticar seus delitos, pois ali Collin de Cayeux foi preso grande arrombador e
integrante do bando de Villon na ocasião do roubo do colégio. Villon usa sua balada para
aconselhar marginais.

Na segunda estrofe há uma lição àqueles que arriscam seu corpo e alma, ficando sujeitos
à difamação numa provável referência aos garotos que se prostituíam. Pois não se pode ter ao
mesmo tempo o amante e o dinheiro numa alusão à rainha Dido, fundadora de Cartago, cujo
drama era sempre perder o amante e ficar com a riqueza, num sofrimento que a levou ao
suicídio. Ou seja, Villon parece dizer para não se preocupar tanto com a riqueza, um ganho
desprezível diante das delícias do amor. Aí vem a passagem da epígrafe de Piva: o homem é
louco e infame se se deixar pagar por tão pouco (por dinheiro) diante da grandeza do amor.

A dicção de conselho, com exclamativa e tudo, é similar à de Piva. O recado é parecido.


Diz o francês: entregue-se à vida, gaste tudo, beba tudo, não deixe nada para depois. Diz Piva:
apaixone-se e entregue-se, mate a tradição, a honra, a responsabilidade. Nas figuras da família
ou do dinheiro, ambos poetas sugerem a vida na maré alta do amor, em detrimento do status
social. Eis a bela lição aos garotos.

Se a presença de Villon deixa claro o ímpeto criminoso de Roberto Piva, a lição ao

professor do ensino médio, em escolas públicas e particulares. Fora expulso de algumas delas
por um comportamento pouco convencional: convidava seus alunos para visitarem seu
apartamento e mantinha com eles relações das mais íntimas. Se como amante tomava ares de
professor, como professor se tornava amante. Como entre os adolescentes de seu sex fiction
Coxas (1979), experiment

Eros adolescente:
um panorama da importância das relações entre homens adultos e adolescentes na educação
grega. Tais relações eram símbolo do amor mais verdadeiro que rendia culto à coragem, à beleza
e ao saber234. A homossexualidade, no entanto, não era aceita com menos preconceito que nos
dias atuais, na opinião do autor, reservando o prestígio à pederastia pela formação cultural dos
jovens. Para Mircea Eliade, referindo-se às diversas manifestações religiosas da Grécia arcaica,

235
. Assim, essas relações
pederásticas deitam raízes bem profundas na história ocidental, seja no âmbito da iniciação
mística ou da educação do cidadão da polis.

É interessante notar que a pederastia entre os gregos coincide com a centralidade da


poesia na educação. É mais interessante ainda pensar que a mesma moral que dissociou a
relação entre mestre e aprendiz do teor erótico, também apartou corpo e alma, e a educação
da poesia. Na relação entre Sócrates e Platão estão os germes de uma filosofia moral que
expulsa o corpo da educação, o delírio do conhecimento e o poeta da república. É essa
ordenação moral do mundo que se prolifera com o cristianismo e reserva ao poeta o lugar do
desterro, ao sexo o repúdio e à pederastia o crime. É assim que um poeta criminoso, delirante

234
BUFFIÈRE, Félix. Eros adolescent: La pédérastie dans La Grèce antique. Paris: Les Belles Lettres, 1980.
703 p.
235
ELIADE, Mircea. Iniciation, rites, sociétés secretes: naissances mystiques. Paris: Gallimard, 1959. p.
238.
128

e pederasta como Roberto Piva enfrenta contradições milenares e repressões morais bastante
arraigadas na cultura ocidental.

A convite da Editora Brasiliense, que havia publicado alguns de seus poemas


homoeróticos na revista Caderneta de Poesia (1978), Roberto Piva organiza materiais escritos
entre 1974 até aquele ano de 1982. Era Corações de Hot-Dog, livro de inéditos que começa agora
a ser estudado236. Para ira do poeta, a obra foi recusada e o convite declinado, possivelmente
pelo forte preconceito em relação a seu conteúdo erótico. Um dos poemas que compunham o
livro foi publicado em 1985, na revista Ímã:

Queima, supermercado, queima


para os garotos da febem

eles estavam estirados na grama recobertos


de samambaias
eles estavam lá no meio do tambor do dia
com exus adolescentes cantando em suas
orelhas
& sexos em semiereção confundidos com
caules ternos
eles se abriam ao sol com olhos semicerrados
& sangue acorrentado
eles repartiam as facas da luz
lascas de tesão fios de náilon do orvalho
& ninhos de andorinha
corações em tumulto estrelas futuristas do
cometa da anarquia237

Garotos da Febem estirados na grama num devir vegetal, com seus sexos confundidos

orixá da traquinagem e também da crueldade, representado sempre com o falo ereto. A


vegetação que cresce ao redor e cobre o corpo dá uma sensação de tempo fluindo, comum nos
garotos encarcerados; um tempo natural que flui enquanto estamos parados. Uma sensação de

vida pela metade como num banho de sol no pátio da prisão, repartindo a pouca luz que entra
e o pouco de tesão que surge.

O garoto, o crime, o sexo, o sagrado eis aqui novamente esses elementos. Mas o
poema inclui uma fusão dos jovens com a vegetação, num contraste entre um fluxo natural e
outro fluxo semi-morto na prisão. Essas fusões dos garotos com vegetais, animais e
manifestações religiosas arcaicas são importantes na poesia de Piva como veremos. Mas o
criminoso, aqui, é também associado, no tumulto do coração, ao futurismo e à anarquia. Que
ligação seria esta?

Quizumba, escrito nesta

todo alumínio de Zung Tumb / minha morte gula do céu azul / meu amor buldogue de pólvora
[...] Jorginho Jane Birkin / 16 anos & 3 de crime / tártaros na pradaria / anarquistas de Bonnot

Refiro-me ao doutorado em andamento de Ibriela Bianca Berlanda.


236
237
PIVA, Roberto. Queima supermercado, queima. Em: Cohn, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro,
EdUERJ, 2012. p. 75.
129

238
esperando a guilhotina [...] cabelos cacheados do Exu Erva- . A referência ao aeroplano
remete ao famoso Manifesto Técnico da Literatura Futurista que sugere o encontro de imagens
contrastantes, dispostas Desordem . É a feição anárquica, como o furor futurista de
destruição das tradições linguísticas. Mas Roberto Piva, leitor de Mafarka, o futurista239,
provavelmente associava os garotos da Febem a este personagem ícone dos futuristas. Mafarka
e sua virilidade guerreira que deixa atrás de si o rastro de crimes e estupros; que atrela essa
virilidade a uma insaciável sede sexual, ostentando seu priapismo com um falo de mais de dez
metros de comprimento; que entre uma batalha e outra faz uma parada para amar dois jovens,
Habibi e Luba, num homoerotismo levado até o extremo da misoginia. Exatamente o gosto pelo
atroz e grotesco em termos de sexualidade faria o livro de Marinnetti enfrentar um processo
judicial sob acusação de atentado ao pudor. As estrelas futuristas de Roberto Piva certamente
têm esse ímpeto guerreiro, criminoso e sexual.

Já a relação entre o crime e a anarquia remontam à juventude de Roberto Piva e a


formação do Movimento Niilista, junto a Jorge Mautner e João Quartim de Moraes, em 1958.
Como leitor de Mikhail Bakunin, Piva radicaliza suas
defendiam a legitimidade de atos violentos diante da tirania dos agentes repressores. Este
mesmo Bakunin serviu de referência ao movimento niilista russo, inspirando Fiódor Dostoiévski
em seu personagem Nicolai Stavroguin, de Os demônios: niilista brutal e perverso sexual que
defendia o crime como algo necessário e até prazeroso. O mesmo Stravroguin surge ao lado de
Fragmentos Anárquicos.

A associação do futurismo e dos garotos criminosos ao bando de Bonnot é inequívoca.


Jules Bonnot (1876-1912) é um lendário anarquista francês conhecido exatamente pela série de
ações criminosas na França entre 1911-1913, ao lado de comparsas que conheceu nos encontros
em torno da revista . O bando Bonnot desenvolvia assaltos como ações políticas
anarquistas, dentro da experiência do crime como modo de vida. Os chamados anarcoilegalistas
não submetiam suas ações revolucionárias aos marcos legais e morais da sociedade burguesa
diferente ligados ao sindicalismo. As peripécias do
bando tiveram fim com o conhecido cerco à Bonnot e seu assassinato em 27 de abril de 1912.
Um ano depois, três integrantes da gangue foram guilhotinados.

Como esses criminosos que denunciavam com ações as repressões do estado burguês,
os garotos da Febem assumem ares revolucionários. Mas a aposta de Roberto Piva neste
potencial criativo não se restringe ao campo político. Em seu Manifesto em defesa da poesia &
do delírio 2 - Distribuir
obras dos poetas brasileiros entre os garotos (as) da Febem, únicos (as) capazes de transformar
240
.

Enquanto a delinquência juvenil é vista como perigo social e o jovem como alguém que
se deve trancafiar para castigar e normatizar nas casas de correção, Roberto Piva enfatiza
quanto exatamente a angústia e a violência poderiam ser canalizadas para uma criação poética
de qualidade.

238
PIVA, Roberto. Quizumba. Em:____. Mala na mão & asas pretas obras reunidas volume II
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1983/2006, p. 123.
239
MARINETTI, Filippo Tommaso. Mafarka, le futuriste - roman africain. Paris: E. Sansot & cie,1909. 306p.
240
PIVA, Roberto. Manifesto utópico-ecológico em defesa da poesia & do delírio. Boletim Arte e
Pensamento Ecológico, São Paulo, n. 18, abril 1983, p. 06.
130

Aqui se fecha um ciclo: o poeta criminoso quer tornar o criminoso um poeta. E houve
um criminoso que se tornou grande poeta, e influenciará bastante as produções de Roberto Piva
neste período.

Eu Roberto Piva Animal de Rapina


Je parle dans le vide e dans le noir
Jean Genet
Eu vivo num rio de imagens, sou o cordeiro do Raio Laser da Poesia.
Minha vida de duro, drogado, homossexual perseguido por todas as
religiões políticas & maior parte da inteligentzia brasileira, minhas paixões
desordenadas fazem de mim um íntimo da Poesia.
Se a poesia é o pão dos desterrados do mundo burguês-proletário, ela é
meu alimento cotidiano. Vivemos numa Idade-Nédia sem fogueiras.
Medievo da escrotidão, não da escuridão.
Onde os corpos dos garotos são a última faísca de religiosidade pagã.
Deuses do Subúrbio. Garotos da Febem cujo crime foi lesar uma sociedade
criminosa.
Já Walter Benjamin sacava que "em Kafka, a beleza aflora apenas nos
lugares mais secretos: por exemplo, nos acusados."
Só lido com a beleza alucinada dos marginais.
Trombadinhas com dedos de neon & veludo.
Coxas nas tardes de vinho & rosas. Bocas enlouquecidas.
Garotos com olhos de Romy Schneider boiando ao nível do gin.
Preso muitas vezes apenas por estar vivo, conheci nas galeras da triagem o
mistério rebelde destes anos da periferia.
Se os bandidos, diz Jean Genet, os cruéis, representam a força contra a qual
vocês lutam, nós queremos ser esta força do mal. Nós seremos esta matéria
que resiste e sem a qual não existiriam artistas.
A poesia, como em Lou Reed, é o alimento lisérgico dos garotos criminosos.
Poesia=Rajadas Futuristas rumo à Anarquia Geral
[...]
Quero o cometa da Anarquia passando rápido em direção às pradarias
sexuais241.

Publicado na edição de número 33 de 1983, da Escrita Revista Mensal de Literatura, o


texto apresenta o poeta como desterrado, duro, drogado, homossexual, perseguido e
presidiário. É desse caldo criminoso que surge sua intimidade com a poesia e também com os
corpos dos garotos. Eles surgem novamente como divindades, atrelados às manifestações

Poesia esta que novamente traz a dobradinha futurismo e anarquia.

Mas nos deteremos em outras influências. A presença do criminoso e poeta francês Jean
Genet é fundamental. Ele também cheio de tesão pelos criminosos e pelo crime. Ele também
fazendo elogio à crueldade, ao mal e ao potencial viril do crime contra a moral cotidiana. Ele
também um criminoso inveterado que conviveu com toda sorte de bandidos e sofreu toda sorte
de torturas nas prisões.

A começar pela epígrafe, o texto de Piva estabelece diálogo com .A


estória do texto é interessante. Jean Genet foi convidado a escrevê-

241
PIVA, Roberto. Eu Roberto Piva animal de rapina. Escrita revista mensal de literatura, São Paulo, n.
33, 1983, p. 17.
131

vangloriava por deixar os interlocutores falarem sobre


-o a
seus amigos da bandidagem, com o intuito de fazê-los entender pela sociedade. Como se não
bastasse, propõe ao programa realizar questões e debates com um juiz, um diretor de
penitenciária e um psiquiatra. O texto é recusado. As autoridades sequer respondem ao convite.
A carta não era tão branca assim... e o texto é negro.

Em meio a recordações biográficas de suas passagens por casas de correção, Genet


relata suas crueldades e torturas. O poeta enfatiza quanto a experiência terrível é buscada pelos
jovens delinquentes como símbolo de sua força, de sua virilidade, de seu heroísmo. Nas casas
de correção se alimenta o furor dos jovens pelo Mal: a audácia da insurreição contra todas as
convenções sociais e a busca de uma vida cheia de perigos e aventuras. Há lirismo no crime, há
heroísmo no crime. O crime é poético. Genet ressalta como a sociedade francesa exalta na
literatura e nas artes esse ar glorioso do crime. Toda arte fermenta na beleza romântica do
transgressor, do revoltado, daquele que frui na torrente das emoções. Nas palavras do poeta
al que na vida vocês
242
. Admira-se o criminoso na arte e o rejeita na carne. Mas o dramaturgo é claro:

Eu não tenho ilusões. Eu falo


no vazio e no escuro, contudo, mesmo que apenas para mim, quero ainda insultar os
243
.

Trazendo esta frase para sua epígrafe, Roberto Piva fala também não apenas sobre o
criminoso, mas como um criminoso ao menos
como em Genet. Assim, em torno do ato criminoso dos
garotos e do artista gira toda uma poética. Uma poética feita por criminoso e endereçada aos
garotos criminosos. Uma poesia como força do mal que constrói novas formas de vida a partir
da anarquia geral e da desordem dos valores morais convencionais.

Roberto Piva identifica-


mas também relacionado ao roubo como forma de vida. Essa associação do criminoso às paixões
desordenadas e à forma de animais também é elemento importante. No mais, a produção

apropriação bem particular dessa expressão importante na filosofia de Friedrich Nietzsche.

O criminoso como animal de rapina coloca em primeiro plano a imagem dos garotos

distintos dos deveres dos homens civilizados. A poesia xamânica de Roberto Piva descreve
garotos incorporando jaguar ou divindades pagãs, num erotismo epifânico, muito similar a esta
sua criação urbana.

Fragmentos Anárquicos publicado na edição de número 63, de abril/junho de 1987 da


traz o cruzamento das ideias de Roberto Piva sobre a anarquia e a ecologia,
além de aprofundar a questão da pederastia em poetas latinos como Catulo, Virgílio e Horácio.
Vejamos um dos fragmentos:

242
Ouvres Complètes, V. Paris: Gallimard, 1949/1979. p. 390.
243

fût-
132

9. Roberto Bicelli quer ver frango ciscando na Avenida São João. Flavinho (16
anos) quer rolo de sucuri no tanque da Sé. Eu quero o Jardim Europa invadido
por onças. Tribos de garotos nus dançando em torno da fogueira-Tatuapé. O
Brasil precisa de bacantes244.

-eco
enfatiza a imagem da onça no ambiente urbano. O manifesto, aliás, é material preciosíssimo
para se pensar a ecologia do poeta, pois amplia as intervenções ambientais para a cidade,
entendendo que especialmente ali a relação dos seres vivos com seu meio ambiente deteriora
todo impulso vital. A ideia da onça no Jardim Europa retoma a leitura de Roberto Piva do
ecologista catalão Ramón Margalef i López, especialmente quando aponta que todo ecossistema
está deteriorado na ausência dos grandes predadores. A onça e os animais de rapina
representariam essa potência temida e afastada pela moral cristã. Como em Nietzsche, a
proliferação do animal domesticado (o civilizado) faz a vida perder em força. Assim, podem-se
associar os garotos criminosos e a própria poesia de Piva a esta retomada de uma vontade de
potência para além do bem e do mal.

Está por ser escrita uma afinidade dessas ideias de Piva sobre o selvagem com alguns
textos do amigo e filósofo Vicente Ferreira da Silva com o qual o poeta teve importante
formação no início dos anos 60. Pois o filósofo aponta, já em 1954, que o ímpeto de retorno às
origens naturais do homem era indício do ocaso do humanismo: é a vontade do selvagem em
nós, de tudo aquilo que não é feito pelo homem diferente da visão idílica da natureza como
mera contemplação de plantas e animais. Não há como não relacionar essa experiência do
selvático, com forte teor corporal e pagão, com as ideias de Piva especialmente se
observarmos que o filósofo publica no mesmo número da revista Diálogo, artigo sobre a
religiosidade dos povos arcaicos em extrema sintonia com o xamanismo de Roberto Piva.

São exatamente os garotos nesse devir selvagem que surgem na periferia (Tatuapé) em
tribo, dançando nus em torno da fogueira. É como outra manifestação desse selvático da onça,

as servidoras de Dionísio este deus selvagem e andrógino, com viris chifres de bode, coberto
de cachos de uva e peles de animais. Deus da fertilidade, do vinho, da orgia. Este Deus que em
As Bacas, de Eurípedes, retira as mulheres de suas obrigações rotineiras e as incita à orgia nas
matas vizinhas. Descabeladas, amamentando lobos e fazendo sair leite da terra num simples
roçar dos dedos, estas bacantes viviam uma reconciliação com as forças da natureza de acordo
com Nietzsche245. Porém, Penteu, o governante da cidade, fica furioso com este deus que cria a
desordem e decide ir até as montanhas para sondar o que acontece. Assim, o déspota é vítima
de sua própria mãe: tomada pela loucura dionisíaca, dilacera o corpo do filho e arremessa seus
pedaços ao vento.

É essa fúria orgiástica e criminosa, daquele que incorpora um deus pagão em seu delírio,
que Roberto Piva quer ver. É essa fúria que encontra nos garotos.

Neste mesmo ano de 1986, Roberto Piva é entrevistado por Floriano Martins, num
episódio curioso. Piva perdeu as perguntas e, como não havia cópia, retomou-as de memória

244
PIVA, Roberto. Fragmentos Anárquicos. Revista Artes:, São Paulo, Ano XXII, n. 63, abril-junho 1987, p.
08.
245
NIETZSCHE, Friedrich W. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. (J. Guinsburg, trad.).
São Paulo: Companhia das Letras, 1872/1992. 179 p.
133

246
escreven - .O

247
, publicado na revista argentina Cerdos & Peces, que tinha interesse especial na
criação de Piva:
Não creio no anarquismo, creio na anarquia. Desordem total, sabotagem em
regra, insurreição absoluta. Como disse Léo Ferré, a anarquia é a crítica
desesperada, o desespero da solidão.
Creio também, como Nietzsche, na reaparição gradual do espírito dionisíaco
no mundo contemporâneo. Apesar da caretice generalizada desta década de
1980, creio na grande explosão de Dionísio, deus do vinho, deus das bacanais.
Aqui em São Paulo, a polícia fechou uma sauna gay de garotos do subúrbio, e
chamou os pais dos adolescentes para humilhá-los e depois libertá-los. Foi só
a sauna reabrir e ali estavam outra vez os garotos desafiando a autoridade
policial, paternal e moral. Nada pode controlar o desejo. William Blake dizia
que um desejo que se deixa reprimir não é um desejo suficientemente forte.
No Brasil, neste momento, vemos a Igreja Católica estender suas teias
venenosas de moral castradora sobre a nação. Mas Cristo é Dionísio de
ressaca. Debaixo dessa cruz dormem com um olho aberto todos os deuses
pagãos. O golpe de estado erótico há de se suceder.
O golpe darão os poetas, que são os que exploram o verdadeiro ventre do
pântano. Podem ser também os outsiders, os loucos, os adolescentes
rebeldes, os bruxos, os amantes fora da lei, os anárquicos (não os
anarquistas), os drogados, os desordenados, os visionários.

É um texto recheado de citações que abrem diversas chaves de reflexão: a vivência da


anarquia segundo o poeta e músico Léo Ferré; a noção de reaparecimento do espírito dionisíaco
em Nietzsche; e a identificação do poeta com o pássaro e o bárbaro dos poemas de Aime
Cesaire248. O manifesto também prossegue com uma crítica à constituição da sociedade policial,
articulada às noções de Pasolini sobre a universalização dos valores da classe média. Roberto
Piva também desenvolve importante noção sobre uma nova feição do Estado, inclusive aquele
defendido pela esquerda e por parte do movimento ecológico, com uma atuação que passa da
repressão escancarada para uma sutil normalização da subjetividade. Fiquemos com o ponto
nevrálgico do texto: o golpe de estado via erotismo, erotismo levado a cabo pela escória. É um
mote que o poeta desenvolve desde o final da década de 1970, tendo como referências o profeta
francês Charles Fourier (1772-1837) e autores que fazem uma interface do marxismo com a
psicanálise especialmente W. Reich e H. Marcuse.

Roberto Piva acredita que a captura do corpo numa sociedade burguesa não deve se
restringir às questões da economia-política ou à alienação do trabalho. Para Piva é o sexo o
motor da história. Logo, abre-se o flanco para se criticar o prazer tornado utilidade social: a
atividade criativa cerceada pelo trabalho assalariado; o prazer erótico engessado na família

246
MARTINS, Floriano. Roberto Piva no miolo do furacão. Agulha revista de cultura. n. 53, 2006.
Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/ag53piva.htm. Acesso em: 17 fev. 2009.
247
PIVA, Roberto. O erotismo dará o golpe de estado. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção
Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1987a/2009. pp. 82-87.
248

do pântano e o peito do chefe do poente) do poema A hurler


do poema Barbare. CÉSAIRE,
Aimé. Soleil cou coupe. In: Aimé Césaire, the Collected Poetry. University California Press, 1983. p. 222 e
212.
134

patriarcal; a expressão política subjugada pelo Estado. Essa maneira de entender a sociedade
civilizada a partir da moral que reprime a paixão é tributária de Charles Fourier, que forma linda
imagem em poema de Roberto Piva:
249
.

De maneira geral, Fourier


humana, mas de todo o movimento universal que abrange a vida orgânica e material250. Daí sua
ideia de que os sistemas político, econômico e moral das sociedades civilizadas têm por base
tomar as Paixões como sinônimo de um mal a ser extirpado, adquirindo uma feição
como se vê nas instituições contratuais do trabalho e da família.

reprimi-las, entendendo que o desenvolvimento das paixões colocaria novamente o homem em


harmonia com as forças do universo. Na prática de seu Falastério, isso significa a gradual
extinção da família e do trabalho por corporações pautadas no desenvolvimento das paixões e
prazeres, . Ou seja, Fourier já

É bem similar à ideia de Piva sobre o golpe de estado via experiência sexual. Em outro
poema do mesmo período, denominado Mortikultura, o poeta traz a seguinte nota:
P.S . Em qualquer horário da manhã tarde ou noite os passageiros sentados
nos ônibus estão dormindo esmagados pelo capitalismo selvagem que lhes
tira o sangue e pele & a energia sexual um bagaço generalizado
testemunhando este período de barbárie e sexualidade infantil sendo usada
para movimentar a engrenagem capitalista (ver Eros & Civilização H.

a derrubada251.

movimento trotskista ligado à Organização Socialista Internacionalista, cujo espaço cultural era
frequentado por Roberto Piva e Claudio Willer no final dos anos 70. Roberto Piva articula esta
ideia com o mencionado livro de Hebert Marcuse, no qual o autor parte exatamente da
civilização como empreitada de repressão dos instintos sexuais muito similar a Fourier. Se
também quer chegar a uma sociedade sem repressão, Marcuse parte do pressuposto otimista
daquela década de 1950 de que o grau de desenvolvimento das forças produtivas com sua
automação liberaria o trabalhador a investir seus instintos vitais em atividades distintas da
produtividade do trabalho alienado. Daí a posta do filósofo em atividades nas quais o princípio
da produtividade é substituído pelo prazer. Marcuse enfatiza sobretudo o prazer, o jogo, a
imaginação, num devir sensual de Eros que cria um outro modo de viver. São atividades da
esfera estética, na qual o prazer, a sensualidade, a beleza e a verdade caminham juntos. Ao
contrário do mito de Prometeu e a ênfase na produtividade, Marcuse busca respaldo mítico no
mito de Orfeu e de Narciso para fundamentar esse novo modo de vida. Aí vem a parte que mais

Narciso, êle rejeita o Eros normal, não por um ideal ascético, mas por um Eros mais pleno. Tal

249
PIVA, Roberto. As desgraças do Moneyteísmo. Versus um jornal de política, cultura e idéias, São
Paulo, n. 2, maio/junho, 1978, p. 31.
250
FOURIER, Charles. Ouevres Complètes, Tomo I, Théorie des Quatre Mouvements. Paris: Librairie
Sociétaire, 1846. 336 p.
251
PIVA, Roberto. Mortikultura. Versus um jornal de política, cultura e idéias, São Paulo, n. 22, 1978, p.
36.
135

252
como Narciso, protesta contra a ordem repressiva da sexuali . Ou seja, na
homossexualidade simbolizada por Orfeu, Marcuse vê uma ruptura à domesticação do sexo na
instituição da família e sua restrição à procriação. O sexo produtivo é a captura da atividade
sexual pelo princípio de utilidade social, ou seja, o prazer restrito ao lazer como parceiro da
canalização das energias sexuais para o trabalho. Marcuse considera a exploração dos prazeres

da sexualidade polimórfica pré-genital e num declínio da supremacia genital. Todo o corpo se


converteria em objeto de catexe, uma coisa a ser desfrutada um instrumento de prazer. Essa
mudança no valor e extensão das relações libidinais levaria a uma desintegração das instituições
em que foram organizadas as relações privadas interpessoais, particularmente a família
253
.

Em outras palavras, a experiência de prazer do corpo, para além da ditadura genital e


matrimonial, é parte de uma liberação dos instintos vitais que Marcuse considera, em última

essa transformação era a própria superação do trabalho alienado a partir de uma perspectiva

É este mesmo conjunto de ideias que aparece no golpe de estado erótico. Porém, aí
Roberto Piva faz uma importante inversão: o golpe de estado é dado pela escória. Como bem
lembra Claudio Willer (2005), o poeta torna o lúmpen o agente revolucionário. No pensamento

degradada da
sociedade que se prestava a toda sorte de manipulações políticas quando recrutada. É famosa

254
desintegrada... que os franceses chama la bohème .

É a famosa boemia. Retomando o texto de Piva, são exatamente figuras da escória que
dariam o golpe de estado erótico. A transformação social viria não pela inserção no mundo do
trabalho, mas exatamente por estarem fora dele e experimentarem novos prazeres e novas
formas de vida.

única vida, e provém do Corpo [...] 3. Energia é Deleite Eterno. Quem refreia o desejo assim o
faz porque o seu é fraco o suficiente para ser refreado; e o refreador, ou razão, usurpa-lhe o
255
. É essa vida potente que vibra nos corpos dos garotos que dá
ensejo à formulação do golpe de estado erótico. E os garotos surgem no final do texto,
prefigurando o futuro:

252
MARCUSE, Hebert. Eros e a civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 5. ed.
(Álvaro Cabral, trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 1955/1972. p. 155.
253
Ibidem, p. 177.
254
MARX, Karl. O 18 brumário e cartas a Kugelmann. (Leandro Konder, trad.) Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1885/1969. p. 70.
255
BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno; O livro de Thel. (José Antônio Arantes, trad.) 4ªed.
São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 18.
136

Talvez o futuro seja garotos suburbanos com corpos pintados e máscaras de


folhas, esparramando um saudável terror com suas garras de leopardo
envenenadas. Entrarão depois em cena os acadêmicos da morte, imitações
supersônicas e agentes biológicos da inanição.
Tudo debaixo de um sol luminoso de néon. E ao final: uma procissão
saturniana roxa fará sua aparição no cortejo dos entediados com nervos feitos
de imagens televisivas e bactérias infecciosas 256.

É um devir selvagem dos garotos espalhando o terror, similar à tal onça no Jardim
Europa. A imagem dos garotos suburbanos encarna as experiências de Roberto Piva em relação
à anarquia, à ecologia, às manifestações arcaicas do êxtase e ao erotismo. São garotos-animais

Na edição número 19 da revista argentina Cerdos & Peces, publicada em outubro de

Animales Miserables
Ni el cerdo, ni la rata, ni la cucaracha, belos hermanos hambrientos de
hambre, desesperados de sentido, babeados de miedo. No, miserables son
las hormigas que arrastran el futuro sobre sus hombros, y las abejas atascadas
em uma pesadilla social y todo lo que ordeña, domina, utiliza y, por sobre
todos, el hombre enorme que sostiene el mundo sobre sus hombros,
sonriendo com dignidade, com su cara de idiota que sólo la nada observa; y
el pequeno que va amontonando piedritos sobre la estúpida mole de miles
de siglos y que sube y baja los pisos contando el mismo aburrido chiste hace
miles de años.
Miserables todos estos rieles y escaleras y calles y ascensores y barcos que
matan a millones de hombres sin que nunca nadie llegue a ninguna parte y ni
siquiera pueda volver. Miserables estos ojos que ya no vem más que lo que
se les ordena, estas manos que tocan lo que ya saben.
Pero no los muchachos que arrastran sus navajas por las calles, ni las
muchachas que salen a vender bien caro su sexo, ni nadie que ando por ahi
sin saber por qué diablos anda257.

tornar os garotos selvagens com garras de leopardo. Agora, é toda a rede social tomada por
figuras animais. O trabalho e a obediência das formigas e das abelhas é relacionado ao trabalho
do homem. Tanto aqueles que acumulam com monotonia suas pequenas mentiras por séculos,
como aqueles messiânicos que pretendem carregar o futuro da humanidade nos ombros.
Alguma semelhança com o trabalhador assalariado e o revolucionário socialista?

Esses homens miseráveis assemelham-se a máquinas que matam por fazerem aquilo
que estava programado por ordem de outrem, sem ver além do ordenado, sem experimentar
nada além do já sabido.

A esses animais miseráveis, Roberto Piva contrapõe os garotos e garotas ligados ao


crime ou à prostituição, que se arrastam pelas ruas. Seriam esses os Animais de Néon? Aqueles

256
PIVA, Roberto. O erotismo dará o golpe de estado. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção
Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1987/2009. p. 87.
257
PIVA, Roberto. Animales Miserables. Cerdos & Peces, Buenos Aires, n. 19, outubro de 1989, p. 27.
137

mesmos garotos selvagens com garras de leopardo ao sol de néon? Aqueles tribais dançando
como bacantes em torno da fogueira?

Como imagem irradiadora da sexualidade, criminalidade, anarquia e sagrado, estes


animais de néon estariam no extremo opostos desses animais miseráveis, demasiado
domesticados, demasiado civilizados. São animais de rapina, predadores que avançam com sua
vontade de potência sem qualquer pudor nas matas, ou com suas navalhas na rapina citadina.
Sob o signo do néon: à luz dos luminosos das ruas enquanto caminham incautos na madrugada;
mais iluminados também pela aura pagã que os envolve. Talvez néon também faça alusão
àqueles garotos do futuro, que forjam novas formas de vida pela via subversiva.
139

Poesia e êxtase em Roberto Piva:


eterno retorno da experiência mítica originária258

Desde o início de sua criação poética, o paulistano Roberto Piva identifica poesia e vida.
Ora suas leituras se transformam em vivências concretas, como forma de verter em vida os
versos: realizar os poemas, ora os próprios poetas irrompem nas cenas urbanas como presença
física no imaginário de Piva pululando Mário de Andrade na solidão de um comboio de
maconha ou encontrando Lorca num hospital da Lapa. A encarnação da poesia leva Piva a
alvez não seja nada mais
do que um personagem do Inferno de Dante, que saltou fora da obra para deixar a realidade em
259. Possessão da potência poética? Encarnação da letra na vida? Piva

parafraseia Nietzsche em seu grande poema filosófico, Zaratustra, quando propunha tornar
sangue a leitura. Ou seja, realizar o poema, tornar presença a representação, estar possesso das
figuras literárias ou verter no sangue os versos é uma forma de vivenciar a poesia.

Mas a relação entre poesia e vida não para por aí. Além da poesia tornada vida há a vida
tornada poesia. É assim que Piva atrela toda sua criação poética a experiências vividas. É poesia
inscrita primeiro no corpo e depois escrita em versos.

Nesta perspectiva, Piva acredita no fim da poesia como literatura, experimentando-a


como devir da vida. E desde suas primeiras publicações, no início dos anos 1960, moveu-se por
um imaginário visceralmente vivido em suas andanças pela metrópole paulistana. Contudo, a
partir da década de 1990 há uma nova formulação de sua criação poética, com um rearranjo das
relações entre poesia e vida. Trata-se da afirmação de que poesia é o êxtase xamânico. Sua obra
Ciclones (1997) marca essa mudança.

Focarei este momento final da poética de Roberto Piva, mas a partir de um encontro no
momento inicial de sua criação poética. Pois sua poesia foi bastante influenciada pela
convivência com o amigo Vicente Ferreira da Silva considerado o filósofo mais original do
Brasil, por Oswald de Andrade. As recordações de Piva sobre essa amizade, do início dos anos
1960, acompanharão toda a sua trajetória. Em diversas entrevistas, o poeta menciona suas
afinidades com o filósofo na perspectiva pagã e anti-humanista da vida, na crítica ao cristianismo
e comunismo, e nas brechas para a reaparição do espírito dionisíaco no mundo contemporâneo.
Piva estudou com Ferreira da Silva, durante um ano, o clássico Ser e Tempo, de Martin
Heidegger, além de descobrir com ele os estudos de Mircea Eliade. Na casa do filósofo
paulistano, Roberto Piva também conheceu e conversou com o português Eudoro de Sousa,
sobre a fascinação de ambos por Fernando Pessoa.

De certa forma, Roberto Piva encarna as potências míticas originárias tal como
presentes nos estudos de Vicente Ferreira da Silva, Eudoro de Sousa e Mircea Eliade. Por essas

delinear alguns de seus traços seminais.

258
Publicado originalmente na Revista dEsEnrEdos, ano VII, número 23, Teresina/Piauí, maio de 2015.
259
MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. In: MARTINS, Floriano. O começo da busca: o
surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Transversais). p.
241-242
140

1. Experiência xamânica com as palavras: relato das vivências extáticas

Em entrevista a Ademir Assunção, concedida em 1991, Roberto Piva faz alusão a seu
livro Ciclones publicado apenas em 1997

origens da poesia. Os primeiros poetas foram xamãs, foram profetas, faziam poesias que
relatavam os seus relacionamentos com espíritos tutelares, com os totens, com as forças
260

grandes xamãs, foram pessoas que incorporavam espíritos, que eram possessos de uma força

A poesia xamânica é feita por poetas que incorporavam forças míticas e relataram suas
aventuras extáticas por meio da poesia. Piva faz jus a suas leituras de Mircea Eliade,
especialmente que o poeta lera já em
1961. Após abrangente abordagem sobre as diversas expressões do xamanismo no mundo
arcaico, Eliade (1968) pondera que no êxtase xamânico estão as raízes da poesia: as narrativas
das aventuras extáticas do xamã dariam origem à épica, ao passo que o arrebatamento lírico
-

Piva crava a origem da poesia em rituais ancestrais, mas como narração posterior à
experiência espiritual.

O filósofo Eudoro de Sousa salienta que a poesia surge como relato externo à cena mítica
primordial, em uma narrativa que congela em palavras seu fluxo visceral. A expressão verbal
acaba por permitir ao intelecto se debruçar sobre o mito no sentido de decifrá-lo. O mito
entendido como relato ou narração, não como a expressão da sensibilidade de quem viveu o
êxtase, acaba por redundar em mito-logia ou seja, em interpretação do mito pelo Logos. Nesse
contexto, a poesia antecede a captura do vivido pelo pensado que está na aurora da filosofia
ocidental. Assim, a poesia mata o mito.

Ora, como Eudoro de Sousa entende o mítico e, mais especialmente, qual seria a
expressão mítica que não o relato verbal (oral ou escrito)?

Para o filósofo, o m -
homem-mundo, numa unidade primordial. O êxtase possui seu fluir apenas no ambiente cultual.
O mito é a presença dos deuses no homem e no mundo. Assim, sua expressão é vivenciada.
Foquemos esta expressão.

261.
Mito é mistério que se expressa no corpo, como acontecimento pleno de sentido
262. É o

homem como sensibilidade, como corpo possesso por deus uma experiência que não provém

260
ASSUNÇÃO, Ademir. A poesia selvagem e de possessão de Roberto Piva. (Entrevista). In: COHN, Sérgio
(org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1991/2009. p. 98.
261
SOUSA, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2 ed. Brasília: Editora UNB, 1988. p. 48.
262
Ibidem, p. 69.
141

se expressa d 263. Dessa expressão advém gestos, cantos,


264.

Por aí se entende como a linguagem verbal mata a experiência mítica originária, pois
impõe um elemento extrínseco à sua expressão corporal que pretende dizer a verdade sobre o

mítico que está no mito e em todos os mitos é a linguagem verbal, falada ou escrita, na exata
medida em que, muito mais do que as outras, se ressente de um compromisso da sensibilidade
com a inteligibilidade, assumido por esta, em vantagem sua, em desvantagem da
265

a coisa diferente da experiência mítica.

Essa renovação da Filosofia da Mitologia, operada por Eudoro de Sousa e Vicente


Ferreira da Silva (como veremos mais adiante), traz ideias muito similares às de Piva. Para ambos
o foco é a experiência corporal concreta, a importância do vivido pela sensibilidade, em
detrimento da interpretação, da atividade cerebral do intelecto e sua comitiva de conceitos.

É nessa linha que Piva266, em depoimento publicado no mesmo ano do surgimento de


Ciclones, modifica substancialmente a relação entre poesia e xamanismo:

viagem extática do xamã, como experiência com as palavras, mas ela própria se identifica com
o drama ritual originário. A po

detrimento do pensado. O que seria o êxtase?

2. Poesia extática: o estar-fora-de-si

Uma das possibilidades interpretativas da poesia=êxtase foi suscitada por Monteiro,

267.
Ao que o poeta responde
afirmativamente. Ou seja, outra possibilidade seria pensar nos cantos do xamã como poesia
cantada que desencadeia o êxtase. A poesia, assim, não seria posterior à viagem extática, mas,
ao contrário, seu detonador. Mas a resposta de Piva é indubitável. Logo, o que significaria a

Comecemos pelo êxtase. Para Eliade268, a principal referência de Piva no xamanismo, o


êxtase está ligado à alma do xamã que se desprende de seu corpo, possibilitando suas viagens
por vários espaços cósmicos, relação com espíritos tutelares, incorporação de animais, etc. De

263
Idem.
264
SOUSA, Eudoro de. Mitologia I: mistério e surgimento do mundo. 2 ed. Brasília: Editora UNB, 1988. p.
97.
265
SOUSA, Eudoro de. Mitologia II, op. cit., p. 59.
266
PIVA, Roberto. poesia = xamanismo = técnicas arcaicas do êxtase. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto
Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1997/2009.
267
MONTEIRO, Danilo; CESARINO, Pedro; COHN, Sergio. O renascimento do maravilhoso. (Entrevista). Em:
COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2007/2009. p. 173.
268
ELIADE, Mircea. . 2 ed. Paris: Payot, 1968.
142

uma condição espiritual de acesso ao sagrado.

De acordo com Eudoro de Sousa269, no entanto, essa visão do êxtase reflete uma
ek-stasis
-fora-de-
lidade ou a própria condição humana:

mas a personalidade, ou antes, a personagem cujo papel se representa em outro drama,


ritualizado pelo rito da vida quotidiana, da vida presa ao 270.

No fundo, tanto Eliade como Eudoro entendem o êxtase como um processo similar: o
estar fora de si, no sentido de evadir da condição humana cotidiana para um outro modo de ser
que permite o devir do homem na força dos

no lugar do dever.

Aqui se esclarece um ponto importante da criação poética de Roberto Piva. Há o


momento do êxtase, n
ou transmutação verbal da vivência, como a experiência xamânica com as palavras: o poema. É
isso que Roberto Piva diz a Weintraub
271.

Mas voltemos ao êxtase. Se o êxtase é estar-fora-de-si enquanto humano, o que se


entende aí por humano? E, ainda, qual o devir do ser-homem fora da condição humana?

3. Poesia e anti-humanismo

Comecemos por pensar no humano. Nesta sua última fase da poesia extática, Piva
menciona várias vezes sua crítica ao antropocentrismo, concomitante ao entendimento da
poesia para além do humano. Em entrevista a Miguel de Almeida, por exemplo, o poeta afirma

que a realidade humana [...] O antropocentrismo subsiste ainda apenas nesse túmulo caiado por
fora que é a Igreja Católica e nos partidos de esquerda [....] Os tambores do irracional, graças
272.

Tendo como referência a integração deuses-homens-mundo, típica da cena mítica


originária, o processo de hominização se opera na divisão desses elementos. O que era integrado
surge como cindido, a fluidez se torna fixação e o originário, cronológico. O ser homem poroso,
aberto às forças naturais, aparece como enclausurado, impermeável. A exterioridade da ação
no frenesi da sensibilidade torna-se interioridade da consciência no solilóquio da intelecção. A
cena mítica originária no centro do sentido da realidade dá lugar ao humano como centro do

269
SOUSA, Eudoro de. Mitologia II, op. cit., p. 77.
270
Ibidem, p. 78.
271
WEINTRAUB, Fabio. Conversa com Roberto Piva. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2000/2009.
272
ALMEIDA, Miguel. Epifanias do erotismo sagrado. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1993/2009. p. 109.
143

Universo. O homem, demasiado humano, transforma o outro em objeto, surgindo a noção de


natureza e deuses, como projeções da subjetividade humana. O eterno retorno do mito
originário, palco da ação dos deuses no homem e no mundo, torna-se história como palco das
realizações humanas. Observemos melhor esse processo e os impactos dessas mudanças.

É o filósofo Vicente Ferreira da Silva quem leva a postura anti-humanista às últimas


consequências. Retirando-se da cena mítica primordial, o ser-homem dá início a um
antropocentrismo subjetivista, um processo de hominização de todas as expressões do ser. A
constituição do humano se dá concomitante à consolidação do cristianismo, reduzindo as forças
míticas hierofânicas dos deuses pagãos à manifestação humana. O humano em si como medida
de todas as coisas, cindido de toda expressão que lhe é externa.

A cisão começa no próprio ser-homem. Como coadjuvante no drama ritual dos deuses,
na origem mítica do mundo, ele encarnava as vibrações divinas em sua sensibilidade, de maneira
totalmente exterior (gestos, dança, canto). A esse corpo em devir, o humanismo opõe uma alma
imutável. À proliferação das sensações objetivas, a subjetividade impõe uma -
273. A relação com as coisas é transferida do corpo para a intelecção tal como alerta

Eudoro na relação racional com o mítico. Assim, o homem interior buscou se construir como
- 274.

Eis o advento da alma, apartada do corpo.

Porém, só se pode pensar um sujeito cindido quando este é colocado em oposição ao


-

acaba por tornar-se a projeção de sua subjetividade. A subjetivação do objetivo é também a


objetivação do subjetivo. O exterior ao homem é negado em sua diversidade à medida que se

simplesmente uma cisão ou duplicação do igual, da consciência, ou melhor, da nossa consciência


275. O humano é a negação da alteridade do mundo

externo e sua independência em relação ao homem. O fora como uma extensão do dentro é
forma de dominar forças intempestivas e imprevisíveis por uma ideia de estabilidade e
previsibilidade.

Essa captura do exterior como projeção do humano se deu na construção do conceito


de natureza. Ao contrário do que se pensa à primeira vista, trata-se de uma noção bastante
recente. À medida que a consciência humana se constitui enquanto centro, todo o externo é

dominado pela consciência. Logo, esse mundo dessacralizado, posto pela cisão sujeito-objeto,
está no cerne de sua captura científica como pura fisicalidade e, por conseguinte, como
suscetível à manipulação humana: a coisificação do mundo como mera mecanicidade. Daí a
natureza manipulável e utilitária, cujos efeitos na degradação do meio-ambiente conhecemos
bem.

273
SILVA, Vicente Ferreira da. A natureza do simbolismo. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros
ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1962/2002. p. 460.
274
SILVA, Vicente Ferreira da. Raça e mito. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios.
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1959/2002. p. 431.
275
-Fusivo. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios.
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1956/2002. p. 392.
144

Quão diferente é essa noção de natureza se comparada com o mundo epifânico de


outrora, palco das forças pagãs incontroláveis e dispersas. Sua fluidez sagrada ganha agora uma
-temporal, fixa e 276.

Pensemos agora no divino. Expulsando o sagrado das coisas, o homem chama para si a
totalidade do sagrado monopoliza o divino. É um Deus apenas para o homem. Não apenas um
Deus do homem, é também um Deus humanizado. Em outras palavras, essa identificação de
Deus com o homem interior, não apenas torna o homem central na criação à imagem e
semelhança de Deus -
como afirma Vicente Ferreira da Silva. Isto significa que é um deus na medida do humano cristão,
também uma divindade meramente interior e sem materialidade, como pura alma que paira
-
os valores -

prometido no além mundo.

Essa retomada dos traços principais do processo de hominização, bastante pretensiosa


por sinal, talvez tenha auxiliado a compreender as afirmações do início deste subcapítulo. Tendo
como referência a tríade da cena mítica primordial (deus-mundo-homem), a antropogênese se
operou na fixação do fluxo, localização do disperso, enfim, na humanização do mundo e dos
deuses.

Outrossim, Vicente Ferreira da Silva sempre pensa a constituição do humano como


negação do mundo pagão da experiência mítica originária. Daí advém a vivência, central tanto
para o filósofo como para Roberto Piva, de que a expressão da vida em sua potência depende
de uma superação da condição humana. Tal como o poeta vociferava contra o antropocentrismo
pelas realidades não-
teúrgica do pensamento tem, como exigência primordial, uma superação do princípio ocludente
do hominismo e consequente formação de uma sabedoria do não-humano, do trans-humano
ou do meta- 277.

Para Vicente, assim como para Piva, esta sabedoria advém do homem fora-de-si
(êxtase), na negação da condição humana pela experiência mítica do culto arcaico. Ao negar o
humano como centro do universo, todo o processo civilizatório, a cidade como espaço do

Daí se ente
-humanismo radical será visto como: fuga espacial, com a crítica ao
ambiente urbano; e temporal, com a negação da temporalidade linear por um tempo mítico de
eterno retorno à origem.

4. Linhas de fuga da cidade-sucata

Roberto Piva já foi considerado um poeta da cidade, tendo seu Paranóia (1963) sido
comparado por várias vezes com a Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade. E certamente

276
SILVA, Vicente Ferreira da. A natureza do simbolismo. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros
ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1962/2002. p. 459.
277
SILVA, Vicente Ferreira da. A fé nas origens. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios.
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1955/2002. p. 383.
145

Piva buscou a força de sua poesia nas vivências subversivas do ambiente urbano. Os diálogos
intertextuais de Paranóia, além da Paulicéia de Mário de Andrade, trazem Nova York cantada
por Walt Whitman, García Lorca, Allen Ginsberg; a Paris de Baudelaire e Apollinaire; e a Londres
das Iluminações de Rimbaud.

Porém, enquanto se celebrava o IV centenário da cidade de São Paulo, em meio ao


entusiasmo pelo progresso industrial, Piva vivia outra cidade. Em Ode a Fernando Pessoa (1961),
substitui-se a visão entusiasta daquele período por afiada sátira da moral provinciana da cidade

Brasil, quando limparei 278. Em

contrapartida, aposta nas vadiagens por entre os subterrâneos da cidade, na companhia de

ordenada.

Tal postura se intensifica em Paranóia. O locus louco do poeta fendido, tomado por
alucinações, delírios e narcóticos é o avesso da sobriedade citadina. A cidade erotizada, como
palco aberto de todos os prazeres, não condiz com a visão utilitária do corpo adestrado para o
trabalho. E os paralelos são inúmeros: a amizade como fonte de sociabilidade libertária distante
da captura pela instituição de controle da família; a vadiagem pelos becos, submundos,
periferias, como avesso dos espaços oficiais controlados; a noite e suas obscuridades contra o
dia e suas luzes; e por aí em diante. Tudo isso no frenesi de uma linguagem poética em versos
longos e quebradiços, com imagens sobrepostas na velocidade e fragmentação da cidade.

Dessa perspectiva, Piva vivencia São Paulo como uma anticidade, pois é o ambiente
urbano assaltado por forças pagãs e mágicas. É uma cidade habitada por vibrações pagãs e

própria constituição das cidades como espaço humano, em contraposição às incontroláveis


forças da natureza. A organização do espaço em vias que controlam os fluxos no marasmo do
trajeto ou o enclausuramento dos cidadãos em habitações seguras. A cidade é o espaço do
humano. Símbolo de sujeitos apartados da natureza que constroem sua civilização e
humanismo, com todas as implicações dantes discutidas.

Assim, Piva foi poeta contra a cidade: inicialmente contra ela escancarando suas tensões
em suas próprias estranhas; e, depois, transferindo suas experiências mágico-pagãs da cidade
para o

É essa fuga do urbano que coincide com o período da poesia xamânica. Já no


documentário Heróis da Decadensia [sic], de Tadeu Jungle279, Piva menciona Lewis Mumford
locais não policiados.
E as críticas vão se multiplicando: a cidade cimentada que solapa a presença dos elementos

A fuga do ambiente urbano é a fuga do humano. Em outras palavras, Piva busca a


incorporação de outras forças diferentes do humanismo. É por esse motivo que,
paradoxalmente, quando passa a escrever fora da cidade de São Paulo, começa a assinar todos

278
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 24-25.
279
HERÓIS da decadensia. Direção de Tadeu Jungle e Walter Silveira. São Paulo, 1987.
146

seus poemas com os nomes das cidades em que vivenciava seu ritual xamânico (Ilha Comprida,
Jarinu, Mairiporã, etc.). A saída da cidade-sucata não é a perda de uma espacialidade física da
poesia. Piva buscava um espaço que não fosse controlado pelo humano, mas sim pela irradiação
de hierofanias, tão características de sua poética xamânica.

Vicente Ferreira da Silva, em ensaio intitulado Fé nas Origens, discute exatamente os

que buscam na natureza a representação humanista de ambiente bucólico, na proximidade das


plantas e animais, com a visão ingênua de uma nostalgia do paraíso perdido. Vicente rechaça
essa posição de levar o humano para a natureza, acompanhado do utilitarismo que degrada o
meio ambiente.

Para o filósofo pagão, o retorno à natureza marca uma modificação fundamental na


-homem
integrado com o mundo e os deuses, na mesma pulsação hierofânica dos povos ditos
-homem para além do humano:
A selva ou o elemento selvático não devem ser entendidos aqui como um
estar-aí físico e perceptivo de plantas, fontes e animais, mas é mais do que
isso: é uma presença envolvente, omnicompreensiva e tangível do não-feito-
pelo-homem; é a selva em nós e a adoração desse aspecto quase sempre
encoberto por uma personalidade ou máscara fictícia e que constitui essa
possibilidade a qual podemos retornar 280.

Ferreira da Silva vê nesse impulso de volta às origens o contato com o selvagem em nós,
distante do humanismo da sociedade e da civilização. É interessante notar que ele vivencia esse

281
. Ou seja, associa essa experiência com uma forma de fazer poesia que não se compraz
com o humano, mas exalta as realidades não-humanas.

Já se pode antever onde quero chegar. Piva também propõe a volta às origens da poesia
na experiência mítica arcaica do xamanismo, vivenciando uma poesia que lida com as
-

282
selva . Seria exagerado supervalorizar a influência da convivência com
Vicente no futuro da poesia de Piva? Tal influência é ainda maior se observamos que no mesmo
número da revista Diálogo em que foi publicado o ensaio Fé nas Origens, também está A
experiência do divino nos povos aurorais, como veremos a seguir.

Pois bem, a bravata de Piva, repetida por diversas vezes, é a seguinte:


Tudo aquilo que vocês chamam de história não é senão o nosso plano de fuga
da civilização de vocês.
Vão pro diabo que os carregue.
Eu vou pra praia283

280
SILVA, Vicente Ferreira da. A fé nas origens. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios.
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1955/2002. p. 386.
281
Idem.
282
ASSUNÇÃO, Ademir. A poesia selvagem e de possessão de Roberto Piva, op. cit., p. 100.
283
PIVA, Roberto. Cinema em pânico. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de
Janeiro: Azougue, 1986/2009. p. 73.
147

Aqui o retorno às origens é um plano de fuga daquilo que a civilização chama de história.
E é a ela que nos voltaremos.

5. Origem: tempo mítico do eterno retorno

A busca pela experiência de uma poesia como êxtase nos conduziu para as realidades

Em seu ensaio intitulado História e Meta-história, Vicente Ferreira da Silva inicia suas

o da história, compreendida como o campo de realização dos projectos e desígnios da


284. A história estaria ligada à antropogênese e à constituição do humano como

centro no qual se desenrola toda existência. Contraposta a essa pretensão antropocêntrica,


Vicente coloca uma -se do
- 285.

Diante desse fluir sempre renovado das forças numinosas, a história como
temporalização linear representa a domesticação do fluxo em uma sequência engessada de
causalidade: passado-presente-futuro. É nesse processo de uniformização do tempo que se
insere a história humana.

Se, de um lado, o pensamento humanista propala uma história como palco das ações do
homem em uma temporalidade fixada cronologicamente, por outro lado a experiência mítica
propaga uma trans-história como palco das hierofanias divinas na atemporalidade do fluxo
originário.

Partindo dessa experiência originária, o passado e o futuro perdem qualquer ligação


casual, o que permite a Eudoro, por exemplo, dizer que a perspectiva de uma trans-história
-hitórica da

286.

- ão ocorre fora do horizonte da história humana.


O histórico e o transhistórico não são estanques, como se um anulasse o outro. Ao contrário,
este último representa a força dos deuses míticos e sua proeminência diante da criatura finita e
suas ações. O histórico do homem é apenas um pequeno lapso no fluxo trans-histórico dos
deuses. Assim, Eliade -
originário do fenômeno religioso na temporalidade da história humana287.

É o mesmo Eliade

284
SILVA, Vicente Ferreira da. História e meta-história. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros
ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1959/2002. p. 436.
285
Ibidem, p. 438.
286
SOUSA, Eudoro de. Mitologia I, op. cit., p. 86.
287
ELIADE, Mircea. Le chamanisme et , op. cit., p. 12.
148

da escolha pelo sagrado/transcendente e a recusa aos condicionamentos do que chamamos de


288.

Esse tipo de recusa nos auxilia a compreender a afirmação de Piva. A experiência do


êxtase como ir além do humano é reviver a trans-história na história, posto que é o homem
contemporâneo vivendo em seu corpo essas forças originárias. Assim, o ta
que a civilização chama de história é a negação da ação humana histórica em prol de uma volta
às origens epifânicas e atemporais. É, em suma, a negação da história humana pela vivência de
experiências arcaicas e atuais (ou atuantes). É um retorno às origens. Como seria essa
experiência de origem nos povos arcaicos, referências do xamanismo de Piva?

6. A experiência mítica originária dos povos aurorais

Toda poesia extática de Piva reconduz à experiência xamânica dos povos arcaicos,
especialmente em sua relação com o sagrado. É interessante notar que Piva acredita que a
descoberta da cultura xamânica será a grande característica do século XXI. Seu caminho parece
ser da crise do antropocentrismo à (re)vivência da experiência arcaica. Daí o paradoxo do futuro
do homem ser colocado em seu passado mais remoto em mais uma demonstração de uma
temporalidade de eterno retorno.

O mesmo paradoxo permeia o ensaio de Vicente Ferreira da Silva, A experiência do


divino nos povos aurorais (1955) sua poética denominação ao que outros entendem como

fechamento de um ciclo histórico, o que significa uma nova abertura para a fascinação divina. O
filósofo inicia assim seu ensaio:
Chamamos povos aurorais ou originários àqueles que viveram e ainda vivem
o mito como a única e absoluta forma de realidade. Nesta fase da história não
se recortou ainda uma natureza, como sistema legal de factos físicos, diante
de uma esfera sobrenatural e imaterial, refúgio dos valores sagrados. Para
essa espécie de consciência não existe uma dualidade entre o humano e o
divino, abrangendo as forças numinosas todo o âmbito das manifestações
fenomênicas. Não existindo ainda, portanto, uma experiência da natureza
que, como um anteparo, possa proteger ou resguardar a consciência da
gravitação candente da experiência religiosa, todas as manifestações da vida
transmitem a exuberância da lei mítica289.

Veja que a ênfase do filósofo recai sobre uma experiência mítica originária em que o
homem encontra-se fundido com o mundo, ambos expressando a manifestação numinosa dos
deuses. O vegetal, o animal, a vida dos astros, tal como depois designaríamos, formavam um
ifuso, pois não há uma localização
espacial dos elementos. Em outra ocasião, Ferreira da Silva tomará o exemplo da Lua vivenciada
como emanação de forças cósmicas ligadas ao lado noturno da vida, esparsas em todo impulso
vital. Ou seja, não era um astro fixado astronomicamente em determinado ponto do céu: não
sendo regida pelo princípio de identidade e substância, a Lua fluía no homem e em todos os
elementos.

288
ELIADE, Mircea. Paris: Gallimard, 1962. (Collection Idées). p. 139.
289
SILVA, Vicente Ferreira da. A experiência do divino nos povos aurorais. Em: ______. Dialéctica das
consciências e outros ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1955/2002. p. 362.
149

Essa mesma fluidez permitia aos homens fundirem-se nas demais manifestações
míticas. O homem também sem o claustro da substância e identidade possuía um corpo poroso,
aberto às forças numinosas como na incorporação de um vegetal ou animal. Trata-se de uma
- -
canguru - 290. Aqui o homem em devir-animal ou vegetal vivencia a potência
mítica como abertura às diversas possibilidades de ser. Registra também um momento em que
não há cisão ou hierarquia entre homem e o mundo, apenas o fluir disperso dos seres em uma
pulsação amorfa. Falar aqui em união deus-homem-mundo é ainda antropocêntrico, pois não
se pode integrar o que não é cindido.

Se essa experiência mítica originária implica em um ser-homem diluído nas forças


epifânicas, também as fragmentações impostas ao homem no processo de hominização se
volatizam. É Paulo Borges quem enfatiza:
imediatamente do homem a forma e a linguagem da sua expressão, na unitária integralidade
das suas energias e faculdades, sem qualquer distinção e oposição entre corpo e espírito,
sensível e inteligível291. Esse homem expressivo em si, vale ressaltar, exterioriza-se sem

Por fim, essa experiência teofânica era originária no sentido de estar ligada à Origem.
Não havendo uma localização temporal dos fenômenos de acordo com uma escala linear, cada
epifania iniciava o homem. Em outras palavras, o mítico suspendia todas as representações
humanas e fazia ascender uma nova possibilidade de ser-homem para além das condições
profanas que lhe garantiam a sobrevivência. É exatamente o êxtase como esse mergulho nas

7. Devir de novas possibilidades de ser

Como êxtase, a poesia se afasta do sentido restrito à expressão literária, colocando-a no


centro da experiência mítica. Sem lograr equivaler a vivência poética de Piva com a filosofia
especulativa heideggeriana de Vicente, há incríveis semelhanças entre ambas.

Pensemos no ser-homem na presença do divino. Homem e deuses sem o claustro da


identidade e substância, diluídos e se interpenetrando com todo o mundo. Essa abertura do Ser
(Deus, Mito) ao ente finito, como fascinação, como o pôr-se em obra da própria origem do
mundo, é o que Vicente Ferreira da Silva considera Poesia, em sentido amplo
292. Trata-se da poesia como mito,

como presença fulgurante dos deuses no rito. Aqui, Deus é devir. É o conjunto de suas
manifestações epifânicas. Na cena mítica originária, o homem se livra de ser ente finito e se abre
para o devir das potências míticas. Em outras palavras, todas as representações do homem
sobre si, mundo, Deus, não o acompanham nessa viagem. Assim, a experiência epifânica é
terrível. A criação a partir do estar-fora-de-si suspende o humano habitual e coloca em risco sua
própria existência.

290
Ibidem, p. 367.
291
BORGES, Paulo A. E. Imaginário e mitologia. Em: ARAÚJO, Alberto Felipe; BAPTISTA, Fernando Paulo
(Coords.). Variações sobre o imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. p. 49.
292
SILVA, Vicente Ferreira da. A fé nas origens, op. cit., p. 375.
150

Mas estando fora-de-si e fluindo nos seres, o ser-homem acessa as realidades além do
homem, tendo, momentaneamente, o poder mesmo de criar novas possibilidades de ser além
do já determinado. A viagem extática do xamã é o devir-homem no fluido do ser. Daí seu fluir
nas plantas, animais, astros, etc. Pode-se tocar o sol e fazer surgir o dia ou trazer um arco-íris no
pescoço. Poesia é epifania.

Abre-se novo campo de possibilidades de ser. O poeta entra em contato com as forças
de criação das próprias coisas e ele mesmo, ser-homem, entra em variação, devir. A poesia
epifânica abre novas veredas para o devir humano, expressando a vida como vontade de
potência, como força que expande a vida para além de seus limites conhecidos.

Agora, se chegamos até aqui a partir do pressuposto de que a poesia=êxtase é anterior


à palavra, devemos a ela retornar. Pois se a epifania faz variar o ser homem por meio da
sensibilidade, de suas paixões, a palavra sofre também uma variação. É certo que a epifania é
erótica, se expressa no corpo e põe a dançar e cantar. Viver mais que a pensar.

No entanto, também se expressa na palavra, palavra que Heidegger, por exemplo,


coloca como cerne da poesia, em seu sentido estrito, que instaura a realidade293. A instaura à
medida que descobre um novo sentido à vida, um sentido que funda um povo e surge como um
começo ou origem a partir da relação do homem com os deuses294
295. Ou seja, o poeta nomeia os deuses e as coisas pela

primeira vez, as revela como existentes e assim passam a existir. O re-velar deve ser tomado em
duas acepções: de pôr a descoberto, mas também de velar novamente, pois a palavra no mesmo
momento em que nomeia, encerra um conteúdo e o abre como mistério.

A palavra de que falo não é o vocabulário habitual, da linguagem restrita à


funcionalidade da comunicação. É preciso que encontremos uma palavra instauradora, nos
mesmos contornos das expressões do ser na cena mítica original. Uma palavra que dance, cante,
enfim, que seja corpo. Uma palavra ela mesma como epifania, como presença do devir do mito
no mundo.

8. Da potência do nome

A narrativa mítica ou relato verbal ficou em segundo plano, mais como aquilo que mata
o mito que uma forma de (re)vivê-lo. É o próprio Piva, quando conclui que a poesia é corpo, que

293
HEIDEGGER, Martin. Origen de la obra de arte. Em: ______. Arte y poesia. 2. ed. (Samuel Ramos, trad.).
México: FCE, 1952/2006.
294
A influência do texto de Heidegger e sua palavra fundadora se faz sentir no primeiro registro
audiovisual de Roberto Piva, durante uma passeata pela redemocratização do país, em 1977, quando
arte do cérebro
da população e eles estão tentando repor esta parte do cérebro. A única forma de repô-la é através da
palavra . Vide filme Assombração
Urbana.
295
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin y la esencia de la poesía. Em: ______. Arte y poesia. 2. ed. (Samuel
Ramos, trad.). México: FCE, 1937/2006.
151

Vimos no início do texto que a vivência de Piva como leitor era muito distinta da leitura
como entretenimento ou volteios intelectuais, como muito se pratica atualmente. Ler é (re)viver
o vivido subjacente ao escrito. É detonar a experiência originária.

E aqui pareço ter me equivocado com a aproximação da poesia como experiência


originária da qual advém o poema como narrativa mítica. Sem o querer, como humano
demasiado humano, estabeleci ali um vínculo linear de causa e efeito: vivência do poeta em
êxtase, como experiência anterior (causa); e o poema vindo posteriormente como consequência
(efeito).

Abdicando de uma causalidade típica da temporalidade linear (primeiro poesia, depois


poema) por um tempo de eterno retorno, a coisa muda de figura. Muda porque o tempo da
experiência mítica como tempo de origem, como re-criação da fusão primordial homem-deus-
natureza, é o presente da presença, sem a linearidade passado-presente-futuro como sucessão
cronológica. Logo, o devir da poesia atravessa uma temporalidade na qual importa o florescer
do êxtase, como estar-fora-de-si e suspender o tempo. É certo que o poema pode matar o mito,
especialmente nessas letras frias dispostas nos papéis; especialmente quando dá ensejo à
interpretação operada pela inteligibilidade. Mas e quando vivido pela sensibilidade e
imaginação do leitor? Poderia o poema ser o detonador da epifania? Se Piva conclama o leitor
a sentir o êxtase e não dissecar o verso, se solicita a verter em sangue e não acumular saber, se,
em uma palavra, convoca a sensibilidade e imaginação, não a decifração, não seria essa
exatamente sua proposta ao escrever? Aqui o poema longe de ser o fim da experiência mítica,
pode ser o começo de seu eterno retorno.

Ciclones (1997) tem o título inspirado nos versos do poeta visionário Malcolm de Chazal:

hazal ainda comparece na epígrafe de um poema com a seguinte

296. Trata-se de trecho das cartas trocadas entre Chazal e o


místico-surr
297.

A potência da palavra é a de transportar os seres a espaços distintos (de cima a baixo,


do visível ao invisível). É a palavra mágica da tradição iniciática: uma vez entoada tem o poder
de concretizar instantaneamente a força que evoca. É a palavra vivida no corpo, como surge na
poética de Roberto Piva.

Essa poesia como magia está longe de ser um produto humano, ou seja, literatura.
Defrontar-nos com o poema como literatura, com a postura moderna de decifração, é perdê-lo
como epifania. Se o poeta propõe a crítica ao mundo utilitário e dessacralizado em prol de sua
vivência mítica, como a experiência dos povos aurorais, o leitor pode seguir o mesmo caminho.
A palavra cantada surge como presença e não representação, como entre os povos aurorais.

Em sua viagem ao país dos Tarahumaras, Antonin Artaud de cuja leitura Piva sentiu
pela primeira vez a força do xamanismo comenta uma situação surpreendente. Não se podia

296
CHAZAL, Malcolm de. Ma révolution: lettre à Alexandrian. Paris: Le Temps Quíl Fait, 1983. p. 65. Do

297
Ibidem, p. 60.
152

pronunciar o nome da divindade desse povo, Ciguri, pois a nomeação era o próprio deus
presente. Artaud ficou estarrecido com as feições de terror em um índio ao ouvi-
pois o nome trazia em seu corpo o 298.

Ao refletir sobre o contexto arcaico no qual se originou a poesia de Hesíodo, Torrano


descreve a experiência numinosa da linguagem. Ao cantar o poema, o poeta tinha o poder de
tornar presentes, audíveis e visíveis os deuses, tal como parece ter ocorrido ao índio tarahumara

uma relação quase mágica entre o nome e a coisa nomeada, pela qual o nome traz consigo, uma
vez pronunciado, a presen 299.

E ao ouvir essa palavra cantada, o homem arcaico tinha uma experiência mítica
originária, com as características que temos aqui apresentado:
Mas sobretudo a palavra cantada tinha o poder de fazer o mundo e o tempo
retornarem à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e
opulência de vida com que vieram à luz pela primeira vez. A recitação de
cantos cosmogônicos tinha o poder de pôr os doentes que os ouvissem em
contato com as fontes originárias da Vida e restabelecer-lhes a saúde, tal o
poder e impacto que a força da palavra tinha sobre seus ouvintes 300.

Parece esse nume-nome que surge a Piva como leitor, como vimos no início deste texto.
A palavra como presença, fazendo encontrar poetas e personagens em suas andanças,
realizando poemas (tornando-os reais) sendo, ele próprio, um personagem que entorna da
página para transformar o cotidiano.

Aqui a poesia é magia, não meramente literatura. Daí a ênfase dos poetas que praticam
a poesia étnica ou xamânica na performance, como forma de trazer a totalidade da presença do
301
poeta- -como- . Trata-se, em suma, de
re-criar a cena mítica originária do xamã, com seus gestos, vozes, danças e toda expressão
corporal.

Assim, se a volta às origens da poesia propõe o êxtase e a experiência numinosa, não


parece ser apenas ao poeta. O leitor poderá também retornar às origens da poesia em que
ler/ouvir o relato mítico é vivê-lo. A leitura transforma-se em mais uma expressão no conjunto
das epifanias que permitem ao homem incorporar as forças dos deuses como diversas
possibilidades de devir.

Considerações finais

A poesia extática é acessar realidades não humanas por meio da epifania ritual
encarnada. É, portanto, suspensão do humano, sua história, sua civilização, seu espaço citadino,

298
ARTAUD, Antonin. Les Tarahumaras. Em: ______. Ouvres Complètes, vol. IX. Paris: Gallimard, 1971.p.
14.
299
TORRANO, Jaa. O mundo como função de musas. Em: HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses.
(estudo e tradução Jaa Torrano). São Paulo: Iluminuras, 2007. p. 17.
300
Ibidem, p. 19.
301
ROTHENBERG, Jerome. Pré-Face para um simpósio sobre Etnopoética. Em: ______. Etnopoesia do
milênio (Sergio Cohn, org.; Luci Collin, trad.). Rio de Janeiro: Azougue, 1975/2006. p. 93.
153

seu subjetivismo. É devir novas possibilidades de ser, além do homem. Neste contexto, o além
do homem é necessariamente superação do humanismo.

Floriano Martins, um dos principais comentadores de Piva, tem razão ao observar que

302
, por exemplo, permito-me dizer exatamente o contrário. Roberto Piva
encarna, antes, um anti-humanismo radical.

Carlos Felipe Moisés, amigo e autor de um importante texto sobre Piva, Vida
Experimental, acerta em cheio quando atrela sua poética à vida, àquela vida em plenitude das

303
. Ora, a plenitude da vida dionisíaca em Piva é extremamente tópica,
vivida em eterno retorno no instante. O além humano de Piva não é o humano do além (uma
utopia a ser vivida coletivamente no futuro).

Ao conhecimento também é feito o convite de explorar novas possibilidades de


experiência da obra poética de Piva. E o saber, quando vivenciado, também não permite uma
dicotomia corpo-alma (viver-pensar). Assim, pode o conhecimento surgir, como para Nietzsche,
qual potência que expande a vida para além dos limites conhecidos.

Coda

poema: expressão estática

da experiência extática

das sensações inscritas no corpo

aos sentidos escritos no verso

a vivência do nume

&

a potência do nome

302
MARTINS, Floriano. Surrealismo e América Latina. Em: ______. O começo da busca: o surrealismo na
poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Transversais). p. 45.
303
MOISÉS, Carlos Felipe. Vida experimental. Em: ______. O desconcerto do mundo: do renascimento ao
surrealismo. São Paulo: Escrituras, 2001.
155

O selvagem em Roberto Piva: caso Paulinho Paiakan

Os relatos são chocantes. No final da tarde de 31 de maio de 1992, Paulinho Paiakan


um cacique caiapó e sua mulher, Irekran, estupram e torturam a estudante Silvia Letícia, na
presença da filha mais velha do casal, com cinco anos de idade. Seio dilacerado a mordidas feitas
por Irekran, que penetrava sua mão na boceta da menina e espalhava o sangue em seu próprio
corpo e no corpo de seu marido.

A imprensa e os ecologistas aguardavam o premiado Paiakan na Eco-92, como um


cidadão condecorado pela defesa dos direitos humanos e ambientais. A distância entre o índio
idealizado e o fato consumado causava estupefação.

No mesmo ano, Rob


poeta exalta a potência de forças naturais, presentes em manifestações sagradas da tradição
mística. O Paiakan de Piva não é o bom selvagem, vestido com o ideal de pureza e inocência,
nem tampouco o militante político dos direitos, como cidadão exemplar. Essas roupagens
civilizacionais não se encaixam no selvagem visto pelo poeta: o índio nu, com o corpo aberto as
furiosas vibrações cósmicas:

Paulinho Paiakan304

A hora do lobo está próxima


Garotos entregam-se ao Pesadelo
Reis elementais do Sul dançam na névoa
Laroiê Exu criador de todas
as coisas selvagens & livres
Fogo sagrado de Xangô queima
a paisagem humanista
A grande roda solar girou novamente
Com você, Paiakan, o índio deixou de
ser platônico
Nesta época de ovelhas
A ave de rapina aguarda no deserto
Os belos matizes da Violência

Monte Alegre do Sul, 1992

Piva recorre a tradição pagã para exaltar Paiakan. O poema se inicia com a proximidade
rege a chegada da madrugada, com toda sua aura
sombria. É o momento em que as energias mais obscuras do homem se libertam, com toda sua
vibração incontrolável. É o avesso da Luz do dia e a captura dos instintos pelo cotidiano regulado,
pelas instituições sociais e pela pretensa clareza do conhecimento. A noite é a entrega ao lado
mais visceral e selvagem do humano bem retratado na figura do homem que se faz lobo
(lobisomem). Essa vivência selvagem também tem lugar no sonho, reflexo da ponta mais
imprevisível do homem - que alguns denominam inconsciente.

304
Poema escrito em 1992, publicado originalmente na Revista Azougue em 1996. O texto consultado
Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi,
Bicelli e uma trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.
156

Mas esse contato com nosso lobo não se dá de forma harmoniosa, mas terrível. Não
apenas sonho, mas pesadelo. É a Hora do Lobo (1968), de Igmar Bergman, filme no qual o pintor
Johan é tomado por loucuras repentinas, como naquela em que mata, abruptamente, um garoto
e lança seu corpo ao mar. Atordoado, o personagem passa as noites em claro, dormindo apenas
ao romper da aurora. Em uma dessas noites, afirma:
Ouça o silêncio...Houve um tempo em que as noites eram para se dormir
profundamente, sem sonhos. Dormir e acordar sem medo (...) Fiquemos
acordados até a aurora, todas as noites. Mas esta hora é a pior. Você conhece

maioria das pessoas morrem... e a maioria nasce. Nesta hora, os pesadelos


nos invadem. E quando acordamos, ficamos assustados 305.

É desse pesadelo que Roberto Piva fala no verso seguinte: -se ao


nos anjos de
Paranoia (1963), na tribo adolescente de Coxas (1979), ou no garoto iniciado de Ciclones (1997)
e Estranhos Sinais de Saturno (2008). Garotos e seu erotismo sagrado, sua inconsequência.
Entregues ao Pesadelo: a hora do lobo como o encontro terrível com nossos instintos mais
viscerais, bastante excitados no ímpeto juvenil de todas as idades.

O poema prossegue com a evocação de forças mística

ligados ao Sul trazem o fogo, que simboliza mudanças rápidas, assustadoras, tomadas por
paixões turbulentas. A sexualidade ligada ao fogo e sua intempestividade, associada geralmente
à Juventude.

em Piva é bastante comum, especialmente a partir de Quizumba (1983). Sabe-se que participava
de rituais do candomblé, sendo amigo de Marco Antônio de Ossaim, a quem dedica um poema.
Exu como orixá errante, sem paradeiro, como acesso aos outros orixás, com suas oferendas
sangrentas. A força de Exu naqueles seres comunicativos, amigos, extrovertidos e também
cruéis, impulsivos. Exu representado sempre com falo ereto, símbolo da fertilidade conforme
menciona Piva em entrevista306. Exú das confusões, das discórdias. Piva coloca o orixá como
criador das coisas selvagens e livres, em clara aproximação ao índio.

orixá ligado à Justiça. Fogo do orixá simboliza seu caráter viril, atrevido e violento, com o qual
fazia justiça cruel aos malfeitores. Xangô representa o poder de fazer justiça, mas certamente
muito distinta da justiça cristã e seu aparato jurídico. Piva entendia o candomblé, e as formas
pagãs de maneira geral, como religiões que colocavam os deuses em primeiro lugar, não os
humanos307. Ou seja, importa a manifestação dos deuses por meio dos humanos, não estes
últimos. Um tapa na cara dos humanistas ecológicos que certamente colocam Letícia no lugar
da vítima com toda sua piedade e Paiakan no lugar do algoz criminoso que

305
A hora do lobo. Direção: Igmar Bergman. 1968.
306
Entrevista com Roberto Piva. Globolivros.2 008. Disponível em:
http://www.globolivros.globo.com/downloads/pdf/Pivafala.pdfData da consulta: 04/11/2011.
307
Assombração Urbana Roberto Piva. Produção de Valesca Dios. São Paulo: SP filmes / TV Cultura,
2004. (55 min.).
157

deve ser punido exemplarmente (com grande misericórdia, é claro!). O bem e o mal tão afeitos
ao maniqueísmo monoteísta. Mas o mundo pagão não conhece essa dicotomia e sua justiça
certamente não favorece o mais fraco.

Com a menção a Xangô queimando o humanismo, Piva pode ter querido ressaltar uma
moral pagã contra a moral cristã humanista. Uma moral em que é exaltada a força, a virilidade,
a vontade de potência, em detrimento do elogio ao mais fraco, ao inofensivo, ou àquele que
teme a força como se verá a seguir.

solar simboliza a mudança das estações, a renovação, a vida nova. Na tradição do misticismo
nórdico, cada mudança de estação era festejada em sabbats, rituais pagãos em que se celebra
a força da natureza - em meio a orgias, ingestão de alucinógenos, dança, canto e sacrifícios.

Curiosamente, Paiakan aparece apenas ao final do poema, após todas as evocações. O


cacique simboliza essas forças, as encarna. É tomado pelos instintos selvagens da hora do lobo
que ele e sua mulher agem, com toda a entrega da juventude. Paiakan possuído pelo fogo de
Djin ou Xangô, com sua virilidade e intempestividade, com o falo ereto de Exu. Piva parece ver
na irrupção dessas forças um elemento ritual, quando afirma que Paiakan fez girar novamente

É bem sabido que Paiakan e sua mulher buscavam ter um filho homem para suceder o
pai na liderança dos caiapós. No entanto, tiveram três filhas e um problema de saúde os fez
perder o filho homem, problema que redundou em uma cirurgia de colação das trompas de
Irekran o casal chegou a processar o médico pelo procedimento. O relato de Letícia é incisivo:
a mulher do cacique penetrou a mão em seu ventre como que para arrancá-lo, lambuzando de
sangue a si e a seu marido; depois passou a mordê-la por todo o corpo, em canibalismo que a
deixou com seios dilacerados. Ritual de canibalismo com fins de fertilidade?

Está claro: num automóvel, fora do contexto tribal, com fins bastante individuais de um
índio milionário que fugiu dirigindo seu avião particular. Cuidemos em falar em ritual nessas
circunstâncias tão aculturadas. Mas se pese a antropofagia evidente para a fertilidade de um
futuro cacique, do qual poderia se esperar o saber de uma pessoa que ensina o idioma branco
na tribo caiapó (como fazia Letícia).

Piva, como o filósofo dionisíaco Vicente Ferreira da Silva, entendia a antropofagia em


sentido bruto, não apenas um procedimento artístico ou cultural. É o próprio Piva quem
pondera:
matar e comer. Ele achava que isso era fundamental porque ele era um filósofo dionisíaco,
filósofo do delírio. Como as Bacantes, tem que chegar lá e arrancar, matar os Penteus e
308
.

O fato é que Piva vê em Paiakan a quebra com uma visão idílica do selvagem, pois com

selvagem. A imagem ideal do índio que povoa a moral do rebanho se liga ao ideal de pureza e
inocência, de um ser inofensivo pronto à catequese desde Pero Vaz Caminha. Em vertente
política se fala mesmo em uma harmonia da vida regida por um comunismo primitivo. Ou seja,
o índio despido de seu espírito guerreiro, voraz, violento; de sua relação com a natureza que

308
MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. In: MARTINS, Floriano. O começo da busca: o
surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001.
158

inclui suas forças predatórias; de sua real organização social ligada ao exercício de poder, ao
reinado. O índio despido, enfim, de todo elemento selvagem.

O selvagem de Piva é o feiticeiro, o xamã, o bruxo. É aquele que encarna as energias


naturais, às vezes terríveis, imprevisíveis e violentas. Essa relação com forças que pulsam no seu
sangue. Não uma ação mediada pela consciência humanista, mas a possessão imediata por
vibrações estrangeiras para além do bem e do mal.

as / A ave de rapina
aguarda A oposição entre animal de rapina e ovelhas é originária de Nietzsche,
especialmente da primeira dissertação de sua Genealogia da Moral. Trata-se de uma noção tão
importante para Piva, que chegou a publicar, em 1983,

primórdios de toda estirpe nobre: sua plenitude de força, prazer no destruir, virilidade, violência
309
para com o inimigo deixando .
Para o filósofo dionisíaco, os nobres mantêm entre si relações de respeito, lealdade e amizade,
mas, quando diante de inimigos, são abominados pela sua fúria. O rebanho seria uma metáfora
da moral cristã e sua exaltação dos mansos, humildes, misericordiosos. Estes últimos temem
exatamente a expressão de força viril, tomando a ave de rapina como símbolo do mal.

Nessa referência a ave de rapina fica


be Essa relação entre beleza e violência daria pano pra manga. O
próprio Piva já mencionou Thomas De Quincey e sua obra O assassinato como uma das belas
artes; além da presença constante do Marquês de Sade e Lautreamont. Se tomarmos a relação
da violência com a manifestação do sagrado, como o faz René Girard, iríamos ainda mais longe.
O belo aqui está distante do sentido clássico de harmonia, perfeição, pureza. Quando são belos
os matizes da Violência, com Piva a beleza deixa de ser platônica no equilíbrio do belo, bom e
justo. Lembrando que o poeta foi expulso da República justamente por uma relação com os
deuses que não supunha apenas o bom.

Aqui é importante reiterar que a violência, crueldade, brutalidade, terror e congêneres


são elementos extremamente repudiados por uma moral de rebanho. Não é nesse registro que
opera o poema. Aí a violência é tanto bela quanto sagrada. É a justiça de Xangô, que não tem
dicotomia com o exercício de crueldades. É a força do lobo, dos reis elementais do sul, de Exu -
que exercem a ira divina por meio dos corpos. Para ficar com o universo de Piva, basta dizer suas
referências: bacante em êxtase que esquarteja o próprio filho, Penteu; sacerdotes eunucos de
Cibele que se castram, com afiada porcelana, em ritos de iniciação; e daí em diante. O sangue é
espírito, é via de acesso ao sagrado. E a experiência sagrada não é harmonia, equilíbrio,
serenidade e responsabilidade, como querem as ovelhas. É também terrível.

E Piva soube compreender. Os humanistas entenderam que Paiakan praticava um crime


contra o humano, com requintes de crueldade, e que devia pagar pelo que fez (alguém duvida
que seja uma visão cristã e etnocêntrica?). Piva, ao contrário, compreendeu a experiência
mágica, ritual, de possessão. A vivência do selvagem sem reduzi-la a moral ocidental. Não se
trata de apologia ao mal, mas de relação com o diverso, de alteridade por estranho que isso
possa soar.

309
NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma polêmica. (Paulo César de Souza, trad.). São Paulo:
Companhia das Letras, 1887/2009. p. 29.
159

De sorte que a poesia selvagem de Piva coloca em movimento justamente essas forças
viscerais do corpo possuído por seus instintos mais intempestivos além do humano. Em
Paiakan, Piva viu exatamente isso: a beleza da ave de rapina que faz modificar nossa visão de
mundo a partir de um ato violento.
161

Recepção da poesia de Roberto Piva de 1960 a 1990310.

O ano de 2000 selou a consagração da poesia de Roberto Piva com a reedição de sua
obra Paranóia (1963), pelo Instituto Moreira Salles. Logo viria a organização de suas obras
reunidas e a aceitação da ideia de que sua poesia precisou de décadas para ser realmente lida.
De fato, tomando como exemplo o espaço midiático e a proliferação de entrevistas na edição
de 2000, há um contraste evidente com o silêncio em torno de Paranóia em 1963.

Contudo, o silêncio da crítica na década de 1960 esteve lado a lado com o sonoro
contágio de Paranóia em meios avançados da criação artística. Da mesma forma, na década de
1970, sua poesia escorreu clandestinamente nos meios jovens da contra-cultura, com acento na

lido pelos meios políticos da esquerda e considerado exemplo emblemático da literatura


homoerótica pelos movimentos de luta pela diversidade sexual. Durante a década de 1980, os
manifestos do poeta deram o que falar no nascente movimento ambientalista brasileiro, além
da importante recepção por mais uma jovem geração de escritores vinculados à editora L&PM.

311
, exaltação similar à da revista argentina Cerdos &
312
Peces . Por fim, ainda antes de 2000,
os meados de 1990 viram o furor dos jovens transgressores da revista Azougue em torno de
Piva, em mais uma ressonância de sua poesia e modo de vida em gerações de novos poetas.

Dessa forma, pode-se afirmar que a poesia de Roberto Piva contou com forte recepção
em seu contexto de produção, inclusive com constante contágio entre gerações de jovens
poetas que reverberaram toda sua verve subversiva. Eis o intento deste estudo: acompanhar a
recepção da poesia de Roberto Piva no arco temporal das décadas de 1960 a 1990.

1. O poeta surrealista subversivo

A primeira recepção do que viria a ser Paranóia foi desconcertante. Ainda antes de sua
publicação, o artista plástico Wesley Duke Lee, recém chegado de uma temporada em Paris, leu
os manuscritos da obra e saiu alucinado fotografando aquela nova cidade que se descortinava
nos delírios de Roberto Piva.

A estudiosa do artista plástico, Cacilda Teixeira da Costa, narra da seguinte forma a


produção das fotos:
[Wesley] Passou sete meses percorrendo ruas, praças, becos, parques de diversão e o
mundo homossexual de São Paulo em companhia do poeta [Roberto Piva], à procura de
imagens. O que tentava encontrar era a imagem de um grito de Piva, a expressão visual
do desespero do poeta com quem mergulhou no mundo-tabu da pederastia, aspecto da
sexualidade que nunca havia enfrentado, mas que sempre o assustava 313.

310
Publicado originalmente na Nau Literária: crítica e teoria de literaturas, Porto Alegre, vol. 11, n. 02,
jul/dez 2015.
311
L&PM. O profeta da desordem. Em: PIVA, Roberto. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM 1985.
312
PIVA, Roberto. Animales Miserables. Cerdos & Peces, n.19, 1989, p. 27.
313
COSTA, Cacilda Teixeira da. Wesley Duke Lee: um salmão na corrente taciturna. São Paulo: Alameda
Edusp, 2005. p. 56-58.
162

Veja como Paranóia transfigura em Wesley uma outra experiência da cidade: seja a
erotização de seus locais mais conhecidos, seja pela descoberta de novos espaços subversivos.
Assim, a primeira recepção da obra levou à criação, criação que inclusive é parte importante do
livro publicado com o ensaio fotográfico do artista.

Após o lançamento de Paranóia, Roberto Piva foi procurado por Sergio Lima autor de
Amore, publicado no mesmo período pela editora de Massao Ohno. Sergio Lima retornara de
uma temporada de participação no surrealismo francês, ao lado de André Breton, e tinha o
objetivo de formar uma sucursal do movimento no Brasil. Roberto Piva e seus amigos, por sua
vez, acompanhavam instantaneamente as publicações francesas e tinham amplo conhecimento
das obras e autores ligados ao surrealismo. Desse encontro, derivado da leitura de Paranóia,

Além de Sérgio Lima, Roberto Piva e Cláudio Willer, do grupo inicial participaram
Antonio Fernando de Franceschi, Décio Bar, Roberto Rugiero, Regastein Rocha, Guilherme Faria
e Ralph Camargo. Encontravam-se semanalmente num bar e realizavam leituras coletivas ou
jogos surrealistas como o cadáver esquix, em que os participantes escreviam versos
sucessivamente ao acaso, resultando em combinações das mais inusitadas. Havia também
pequenos delitos como pegar uma bebida de um mercado e sair sem pagar: atos considerados
surrealistas por excelência.

Havia também atentados. Na tarde de 28 de setembro de 1963, o grupo fulminou alguns

os quais o grupo divergia. As atividades do grupo foram intensas e duraram alguns meses. No
início de 1964, o grupo estava dissolvido. Por quê? Para Piva não havia grupo surrealista: eles
saíam, bebiam e liam como sempre fizeram. Para Sérgio Lima, no entanto, a dispersão se deu
por divergência: o grupo trazia outras discussões relacionadas à geração beat ou manifestações

314
. Claramente, Sérgio Lima queria um grupo que discutisse
especificamente o surrealismo de forma sistemática, proposta muito distante da turma
anárquica e dispersiva de Roberto Piva e cia. Mas essa já é uma outra história.

A contrapartida dessa calorosa recepção de Paranóia por Wesley Duke Lee e Sergio Lima
foi a frígida reação da crítica que, simplesmente, silenciou numa época em que se dava grande
destaque aos novos poetas. O silêncio pode ser visto como espanto, pois a verborragia e audácia
do livro criaram grande ruptura com a produção literária brasileira até aquele momento. Mas
também calou-se por preconceito. Thomaz Souto Corrêa, jornalista ligado à crítica literária do
período, é direto: jamais dariam espaço na imprensa para um livro lançado no meio dos
vagabundos do Teatro Oficina, por um rapaz homossexual315. Mas se o silêncio preponderou nos
meios públicos de comunicação, no ambiente privado muito se cochichou. Ali se falou pelos
cotovelos, no velho ti-ti-ti do chá das cinco. Durante um jantar, Emy, esposa de Paulo Bonfim,
comenta com Willer quão estarrecida ficou com a linguagem baixa do livro que insultaria o

314
LIMA, Sergio. Notas acerca do movimento surrealista no Brasil (da década de 20 aos dias de hoje).
2002. Disponível em: http://www.triplov.com/surreal/sergio_lima.html . Acesso em: 04 jul 2010.
315
Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma
trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. 255 p.
163

316
.

A subversão na vida e na poesia dificultaram a recepção pelos meios conservadores.


Porém, se a crítica literária brasileira se calou, os ecos de Paranóia foram ouvidos na explosiva
revista venezuelana El techo de la ballena, pelas mãos de Juan Calzadilla, e nada menos que a
revista oficial do surrealismo francês La brèche: action surréaliste

317
, o texto apresenta uma contextualização política do Brasil,
de Vargas ao golpe militar. Posteriormente, dedica-se a dados da aventura surrealista no país,
com acento às estadias de Benjamin Péret em São Paulo e Rio de Janeiro, bem como a
interlocução entre Murilo Mendes e Fr
aponta-

318
historiadores e cr . Tal conjuntura faz com que o surrealismo seja reivindicado
Paranóia)
Sergio Lima (com Amore) e Claudio Willer (com Anotações para um Apocalipse
primeira vez que o Brasil dispõe de obras em que os autores reclamam abertamente pelo
surrealismo . Assim, as três obras são resenhadas brevemente, a exemplo de Paranóia:
Paranóia é o primeiro livro de poesia delirante publicado no Brasil. Piva, cuja formação
intelectual é profundamente marcada pela cultura italiana, inspira-se nos grandes
clássicos da decadência, de onde provém a exuberância de imagens própria dos povos
latinos. Freud e Lautreamont têm para ele grande importância. Enfim, a mais moderna
literatura beat norte-americana lhe transmitiu a fascinação dos neons e a alucinação
pela metrópole metálica evocada pelas fotografias de São Paulo inseridas e seu livro 319.

destas obras das vitrines das livrarias. Por fim, fala de certa tentativa de organização de poetas

A curta aventura do Grupo Surrealista de São Paulo parece ser essa tentativa de
organização grupal, feita por poetas que abertamente reivindicaram pelo surrealismo no Brasil.
Daí Roberto Piva ser um dos únicos poetas brasileiros a constar no Dicionário Geral do
Surrealismo, publicado na França em 1982. Daí a recepção da poesia de Piva estar muito
associada nesta década de 1960 ao seu viés surrealista, especialmente aquele da poesia como
um modo de vida subversivo. Daí ser uma poesia que encontrará caminhos alternativos de
divulgação, distantes da grande mídia e dos órgãos literários de maior repercussão pública.

316
Ibidem, p. 60.
317
La Brèche: action surréaliste. n. 8, novembro de 1965. Disponível em: http://melusine.univ-
paris3.fr/LaBreche/La_Breche_8.htm. Acesso em: 09 jan 2011.
p. 126.
318
Ibidem, p. 127.
319
Idem.
164

2. -

Após a publicação de Piazzas, de Roberto Piva, e Anotações para um Apocalipse, de


Claudio Willer, em 1964, Massao Ohno interrompe o grande ciclo de lançamento de novos
poetas. O próprio editor menciona quão visado estava sendo pela censura e temia represálias.
Não é por menos, ambas as obras denunciam de forma audaz as práticas de torturas em
instituições governamentais nos primeiros descalabros da ditadura brasileira. Deriva desse clima
de censura um recesso nas publicações literárias que explica este primeiro grande intervalo na
publicação de Piva cujo próximo livro sairia apenas em 1976. Aliás, aceita-se com muita
facilidade a ideia de que Roberto Piva pr como afirma Alcir Pécora320. Tal
ideia negligencia as intempéries do contexto político e literário da época, que se impunham aos
intempestivos surtos do poeta. Veremos quanto a produção de Roberto Piva foi constante e
ininterrupta. Contudo, a comunicação com o grande público não dependia da vontade do poeta,
mas do sistema literário que, como na época de ditadura, não oferecia oportunidades de
publicação a criações extremamente subversivas.

No início da década de 1970, a produção poética de Roberto Piva encontra público nos
meios ligados à juventude roqueira. Em seus textos publicados na revista Artes:, o poeta faz as
vezes de crítico literário, entrevistador e agitador cultural, versando também sobre uma
variedade de matérias (artes plásticas, música e literatura). Como profeta do rock, redigiu
materiais de afirmação de suma importância histórica para a juventude, em um contexto em
que ainda se questionava a legitimidade artística da música pop no Brasil. Como poeta, publica

Vejamos um trecho do poema:

(...) um deus acaba de nascer numa fôlha de plátano trazida pelo vento / os telefones
do mundo começam transmitir mensagens eróticas / as janelas explodem em sinfonia o
mundo é um maravilhoso lugar para se nascer / o espaço é esplêndido / eu vejo / eu
acredito como Whitman no corpo & nos seus apetites / eu sinto a vida nos intestinos /
eu tenho muitas verdades dentro do meu coração de carne / há um girassol abandonado
nos teus olhos, Paulo? Que correnteza nos levará à deriva hoje? Sandwiches / ostras /
latas de cerveja / enxurrada maravilhosa saída da guitarra de Johnny Winter numa tarde
de sol de fevereiro em São Paulo!321

O poema retrata o entusiasmo diante da cena musical jovem, com fortes rompantes
beats e diálogos com Walt Whitman e Allen Ginsberg. Este último comparece implícito em
assóis, e explicitamente na interrogação:

Um Supermercado da Califórnia322. O mesmo intertexto já estava presente na


Ode a Fernando Pessoa
323
ou em Paranóia, referindo- Que novo

320
PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. Em: PIVA, Roberto. Mala na mão & asas pretas obras reunidas
volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2006. p. 9.
321
PIVA, Roberto. Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas &
lindos rostos pagãos me observam viver?. Revista Artes:, São Paulo, Ano VII, n. 35, 1972, p. 3.
322
GINSBERG, Allen. Uivo e outros poemas. Em: GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas.
(Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1956/2005. p. 49.
323
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras
reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 21.
165

324
. A proximidade com a contracultura beat
fica evidente também no final do poema, em menções pioneiras à poesia corporal de Michael
McClure com o qual se corresponderia nesta mesma década.

De forma clandestina e underground, Roberto Piva atinge grande penetração nos meios
jovens ligados à contracultura, como entre os leitores de fanzines alternativos como a revista
Patata na qual o poeta colabora no ano de 1973. Por essas vias subterrâneas, a poesia de
Roberto Piva encontrou grande recepção entre os jovens subversivos do que se convencionou

Com poemas de seu livro Paranóia, o poeta paira como presença estranha na antologia
26 poetas hoje (1976), cujo material foi selecionado por Heloisa Buarque de Holanda, Chico
Alvim e Cacaso. Isto porque Roberto Piva não compunha o grande movimento artístico em torno
da Nuvem Cigana, tampouco comparece com materiais daquela década de 1970. É obscuro o
motivo da participação de Piva na antologia. Da perspectiva política, o argumento de Heloisa é
de que tais poetas constituem vozes dissonantes no contexto repressivo da ditadura como
325
. Não é o caso de Roberto Piva, poeta pertencente aos
Novíssimos de 1960, cuja produção de Paranóia responde a um contexto histórico anterior à
ditadura muito embora também denuncie a seu modo os policiamentos morais e afirme a via
transgressora. Sob o aspecto literário, não há qualquer confluência da dicção poética de
Paranóia com seus volteios surreais, com aquela busca de poetas marginais por um
coloquialismo típico do modernismo brasileiro especialmente o instantaneísmo oswaldiano.
Assim, não havendo diálogo de movimento artístico, literário e político, qual o motivo da
participação de Roberto Piva na antologia?
326
Chac . É na
poesia como modo de vida subversivo que tais poéticas se identificam. O que Roberto Piva
chamou de poesia experimental amalgamada à vida experimental, ou aquilo que Heloisa
B
327
.

A opinião de Franchetti
por não se enquadrar em nenhuma das correntes literária
328
. Por contraditório
-lo da marginalização. Piva recusa o
rótulo, mas reconhece a importância da boa recepção entre poetas jovens da geração seguinte
que tinham uma vida poética potente.

E lá estava Roberto Piva no Parque Lage, no dia 14 de julho de 1976, para o lançamento
o ao que foi aquela

324
PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas volume I
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005.
325
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Posfácio. Em: ______. 26 poetas hoje. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2007. p. 261.
326
COHN, Sergio. Nuvem Cigana: poesia e delírio no Rio dos anos 70. Rio de Janeiro: Beco do Azougue,
2007. p. 102.
327
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Apresentação. Em: ______. 26 poetas hoje. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 1975/2007. p. 11.
328
FRANCHETTI, Paulo. Estudos de literatura brasileira e portuguesa. Cotia: Ateliê editorial, 2007. p.
286.
166

noite329. Uma juventude alucinada ao som de guitarras distorcidas e uma névoa de fumaça de
estranhos cigarros. No vídeo, Piva faz uma aparição chistosa: nitidamente inebriado, sobe ao
palco atrapalhado procurando onde havia deixado os poemas para sua leitura.

O fato é que o rótulo de Piva como poeta marginal se impõe a partir de meados de 1970,
e permanece em alguns meios até hoje
Gabriel Fabri ressivos nomes da poesia marginal no
330
.

Quanto à recusa da designação, a questão de Piva não é com os poetas marginais, mas
com a crítica literária. Piva leva uma vida que pode bem ser compreendida como marginal. Mas
o poeta salienta quão marginalizado foi referindo ao boicote da crítica. Assim, afirma que não
331
.

De novo em vórtice paradoxal, a relação entre Roberto Piva e o movimento carioca

número 11 da revista, de abril de 1976, publica- s

talvez porque a linha editorial quisesse ressaltar seu


incentivo a criações do interior do Estado. Esta posição marginal de Roberto Piva contrasta com
o grande destaque dado à vinda dos poetas marginais cariocas na capa da edição de abril de
oberto Piva sequer é mencionado. O poeta
não tem vez entre os marginais.

O fato é que o grande furor em torno dos marginais reacendeu o mercado editorial e
Massao Ohno retomou sua atividade a pleno vapor. O número de publicações foi tão grande
que convidou Claudio Willer para organizar um lançamento coletivo que, insuflado com os
ventos da juventude açoitada pela repressão militar, tomou o vulto da Feira de Poesia evento
com grande significado político nas manifestações pela redemocratização do país. Na Feira,
Roberto Piva lança seu Abra os Olhos e Diga Ah!, obra que reflete uma forte guinada política em
332
sua criação poética. A expressão aponta o centro da política
contemporânea no corpo, seja aquele crivado de balas pela repressão ou ardendo nas chamas
do amor, em resistência erótica à sociedade disciplinar.

A repercussão da Feira de Poesia foi tão grande que Claudio Willer continuou seu ímpeto
na organização de recitais, juntamente com Ruth Escobar, sobre poetas revolucionários (como
Pablo Neruda) ou vítimas de estados totalitários (como Garcia Lorca). Nesses recitais, Roberto

329
ALPHONSUS, Luiz. Noite Acesa. 1976. Super-8.
330
FABRI, Gabriel. Evento promove imersão ao imaginário de Roberto Piva. Em Cartaz, n. 72, outubro de
2013, pp. 55.
331
A voz da transgressão. Entrevista concedida à Revista Época. 2005. Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG72087-6011-389,00.html. Acesso em: 16 out 2006.
332
PIVA, Roberto. Abra os olhos e diga Ah!. Em: ______. Mala na mão & asas pretas obras reunidas
volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1976/2006. p. 28.
167

333
. Em diálogo (dissidente, por sinal) com meios ligados à esquerda, o poeta
encontra público entre os cidadãos em luta por direitos sociais.

A convite de Willer, editor de sua seção de poesia, Roberto Piva contribui no


revolucionário 1978 e depois,
em continuidade a sua coluna Meditações de Emergência, à revista Singular & Plural. Em suas
páginas, Roberto Piva produz poemas com temas e vocabulário típicos da esquerda, ao que o
E
exemplo:

(...) gostaria de ver aquela tribo maravilhosa de adolescentes proletários se


dependurarem nos cipós do Ocidente & aterrorizarem nos salões de banquetes como
Tarzans enquanto o Burguês-Inseto recolhe as asas & faz cocô branco de susto-
Impotência & úlceras pépticas na cristalização de química imperfeita-purgatório-fêmea
& bicha de boite334.

, Piva introduz expressão conceitual típica dos marxismos.


Esses adolescentes surgem como força ativa da transformação social numa figura ao mesmo
tempo erótica e selvagem, o Tarzan em contradição com a burguesia como classe social
conservadora (simbolizada pelo público homossexual frequentador de casas noturnas
especializadas). A atividade de uns e a passividade de outros responde ao espectro político e à
posição na cama, em uma junção entre o erótico e o político. Com as
figurando uma luta de classes, estaria Roberto Piva lançando mão de uma visão
dialética da história?

Além do público da Versus, a poesia de Roberto Piva teve grande penetração nos meios
revolucionários jovens, especialmente na Libelu (Liberdade e Luta) grupo trotskista atuante no
movimento estudantil e ligado à Organização Socialista Internacionalista. Ali, Roberto Piva era
poeta reconhecido e considerado ativista da área cultural. Dessa recepção na Libelu derivou a
publicação da segunda edição de Piazzas, em 1981, pela Kairós editora do movimento, com
coleções voltadas ao pensamento socialista (em especial de Trotsky).

Naquele mesmo ano de 1978, o poeta teve ainda poemas publicados no número
inaugural da Caderneta de Poesia, da combativa editora Brasiliense
aos movimentos de libertação nacional dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde, São Tomé e

Porém, foi no interior do movimento de luta pelos direitos sexuais que Roberto Piva teve
maior repercussão. No órgão gay Lampião da Esquina, a obra recém publicada do poeta (Coxas,
nossa
335
. Não é para menos, Coxas começa com a descrição de sexo entre garotos no Alto do
Copan: -se abriu a braguilha da calça de Pólen & começou a chupar 336.

333
PIVA, Roberto. O hino do futuro é paradisíaco. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 23,
julho/agosto, 1978, p. 36.
334
PIVA, Roberto. O Mississipi no Amazonas. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 20,
abril/maio, p. 30, 1978b.
335
Jornal Lampião da Esquina. Ano 2, n. 15, agosto de 1979, p. 17.
336
PIVA, Roberto. Coxas: sex fiction & delírios. São Paulo: Feira de Poesia, 1979.
168

A obra recebe ainda resenha de Glauco Mattoso337, salientando o tom homoerótico do poeta
maldito ligado à contracultura.

Com o próprio Glauco Mattoso, além de João Silvério Trevisan, Roberto Piva participou
de uma mesa de debates sobre o movimento gay no dia 8 de fevereiro de 1979, na

-
338
como Cuba, Moçambique e Leste Europeu - .

O poeta roqueiro que inicia a década divulgando suas produções em meios juvenis de
música pop, passa a ser vinculado ao movimento da poesia marginal e finda o período flertando
com os meios de esque -

3.

A atividade política de Roberto Piva teve ainda ressonâncias no nascente ativismo


ambientalista brasileiro, em torno do Movimento Arte e Pensamento Ecológico. Fortemente
marcado pela interface entre ecologia e estética como as performances impactantes de Miguel
Abellá , o movimento publicou em seu boletim diversos manifestos de Roberto Piva, desde
ou ópico-ecológico em
dão conta dessa pegada que atrela o ecológico ao poético e ao
selvático. Este Eu defendo o direito de todo ser Humano
ao Pão & à Poesia. Estamos sendo destruídos em nosso núcleo biológico, nosso espaço vital &
339
. No vórtice de sua poética se emaranham a
esfera estética e uma utopia enfatizada em termos ecológicos.

Outro

década de 1980: o ambiente beat e anárquico da editora L&PM. Em meio à Coleção Rebeldes &

para lançar

da Rua340. Nesta coleção, Roberto Piva tem sua primeira antologia de poemas publicada de
forma entusiasmada por mais uma nova geração de grandes poetas, tradutores e editores.

O Roberto Piva dessa metade da década de 1980 é aquele mesmo que abandonou todas

memória o vazio da década de 70 / sou um navio lançado ao / alto-mar das futuras /


341
. No mesmo 20 poemas com brócoli, o poeta aponta onde sua deriva em alto-
342
. Os poemas da antologia são

337
MATTOSO, Glauco. O poeta das coxas. Jornal Lampião da Esquina, Ano II, n. 16, setembro 1979, p. 17.
338
DANTAS, Eduardo. Negros, mulheres, homossexuais e índios nos debates da USP. Jornal Lampião da
Esquina, Ano 1, n. 10, março de 1979, p. 09.
339
PIVA, Roberto. Manifesto utópico-ecológico em defesa da poesia & do delírio. Boletim Arte e
Pensamento Ecológico, n. 18, março 1983, pp. 12-13. p. 12.
340
L&PM. Era uma vez... uma editora. 2011. Disponível em: http://www.lpm-blog.com.br/?tag=colecao-
olho-da-rua. Acesso em: 22 dez 2012.
341
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. Em: ______. Mala na mão & asas pretas obras reunidas
volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1981/2006. p. 115.
342
Ibidem, p. 111.
169

tação dos editores, intitulada


343
. Nela, Roberto Piva surge como personagem anárquico (em

permanente, LSD e cogumelos sagrados, jazz & rock, paix

verdade antes dele ninguém ousava escrever poesia dessa forma no Brasil. Ninguém rompera

brasileiros das

Falta ainda a valorização da importância axial dessa antologia no reconhecimento da


poesia de Roberto Piva. Seja pela reunião de materiais feita pelo próprio poeta, seja pela crítica
consistente que apresenta, a antologia é dos principais cartões de visita de Roberto Piva. Sua
publicação proliferou a poesia de Piva pelos meios libertários e abriu novas picadas para sua
poética selvagem.

, 1985) já
há uma crítica ao eq
beat
que veio para reinaugurar a utopia da própria poesia. Da poesia libertadora, que sai do papel
344
para ter existência real no dia-a- . Com a entrevista a Carlos von Schmidt345 há
comentários fundamentais de Piva sobre toda sua obra poética. Com a aproximação de Floriano
Martins, abrem-se as brechas para o papel de Piva no interior das manifestações surrealistas na
América Latina.

E foi exatamente um poeta latino-americano quem ajudou a disseminar poesia de


Roberto Piva em outros países do continente. No exemplar autografado a Nestor Perlongher,
raço anárquico & antológico do Roberto Piva. Irmão em

O virulento anarquista argentino também daria grande importância à poesia de Piva, em


especial no tratamento transgressor da sexualidade. Perlongher vivia no Brasil desde 1982 e
dava aqui prosseguimento à sua aguerrida militância nos movimentos homossexuais, com sua
pesquisa sobre os michês. Por intermédio desse poeta e de outros mais, a antologia levaria a
poesia de Piva para publicações alternativas argentinas, como o caso da mitológica revista
Cerdos & Peces.

Além do manifesto anárquico e libertino O Erotismo dará o golpe de estado (1987), ou


da entrevista O agitador da transgressão (1987), basta dizer que Roberto Piva é apresentado na
346

No mesmo período da Cerdos & Peces, Roberto Piva também ganha grande projeção
nacional em suas contribuições na Revista Chiclete com Banana ao lado do mesmo Angeli com
o qual publicara na Revista Patata. Angeli e Toninho Mendes seriam outros artistas jovens

343
L&PM. O profeta da desordem. Em: PIVA, Roberto. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM 1985.
344
BONVICINO, Régis. O boêmio Piva não tem papas na língua. Folha de São Paulo, 02.06.1985.
345
VON SCHMIDT, Carlos. Amor, loucura, drogas (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1985/2009. pp. 54-69.
346
PIVA, Roberto. Animales Miserables. Cerdos & Peces, n.19, 1989, p. 27.
170

347
.

Em sua estreia na revista, na edição 15, republica-

Na edição de número 19, de


de ter sempre presente na memória: Na fase avançada da produção em massa, uma sociedade
348
. O poeta está irreconhecível: adota uma linguagem
discursiva (sem imagens ou cores) e um tom programático, com receituários do comportamento
ecologicamente correto.

Ainda na década de 1980, pode-se mencionar a participação de Roberto Piva no filme


Heróis da decadensia (1987), do jovem cineasta Tadeu Jungle. O poeta surge bebendo cerveja
na Serra da Cantareira, falando em orgias e LSD, além de esbravejar blasfêmias contra o
cristianismo. Tais cenas são entrecortadas com falas de Dom Paulo Evaristo Arms, reforçando a

Nest
em veículos ousados: o jornal
Verve, editado no Rio de Janeiro por Claudia Roquette-Pinto. É um período em que a poesia de
Piva também encontra ressonâncias em poetas como Rodrigo Garcia Lopes, com o qual mantém
relações amistosas a partir do interesse de ambos em poetas beat estadunidenses.

Assim, durante a década de 1980, a poesia de Roberto Piva expande suas fronteiras para
todo o país (com a L&PM ou Chiclete com Banana) e mesmo para a América Latina. A recepção
de sua poesia ganha um tom crítico de reconhecimento da produção do poeta no âmbito da
literatura nacional. Por influência dos próprios temas de sua poesia, Roberto Piva passa a ser
vinculado à Ecologia e à Anarquia.

4. O xamã

Após a boa maré de 1980, a recepção da poesia de Roberto Piva entra em refluxo no
início dos anos 1990. Desde 1982, o poeta acumulava poemas de suas experiências mágicas nas
matas do interior do Estado de São Paulo. Nas entrevistas concedidas a Ademir Assunção e
Miguel de Almeida, em 1991 e 1993, respectivamente, o poeta menciona a existência de um
livro pronto, Ciclones, que aguardava oportunidade de publicação.

No dia 21 de fevereiro de 1994, Roberto Piva recebe o pesquisador Claudio Roberto da


Silva em seu apartamento. O historiador desenvolvia um estudo sobre a atuação política do
movimento homossexual, a partir da narrativa de histórias de vida de alguns ativistas. Entre eles,
o poeta foi escolhido por suas colaborações no Lampião da Esquina. Roberto Piva desabafa:

Prefiro viver os poemas do que escrevê-los... porque dá muito trabalho. Eu não sei
escrever à máquina e preciso chamar alguém que fica três horas para bater os poemas.

347
Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma
trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. p. 159.
348
PIVA, Roberto. Sindicato da Natureza. Chiclete com Banana, n. 19, julho 1989, p. 26.
171

Tenho uma máquina quebrada e não tenho dinheiro para mandar consertar, assim ficam
elas por elas. Estou com dois livros parados por causa desses problemas...349

A poesia de Roberto Piva, porém, constava em breve antologia do anarquista Edson


Passetti, em Das fumeries ao narcotráfico350, como exemplos de expressões artísticas sob efeito
de alucinógenos. Este mesmo livro foi lido por jovens rebeldes como Sergio Cohn, que correu a
cidade à procura de Paranóia. Numa noite de setembro de 1993, os jovens poetas criadores da
revista Azougue encontram pessoalmente com Roberto Piva, iniciando com ele profunda
amizade.

Nos vários depoimentos de Sergio Cohn, especialmente no livro Roberto Piva, publicado
na coleção Ciranda de Poesia351, pode-se observar a importância do autor de Paranóia na
formação dessa nova geração de poetas e editores. Nas longas tardes que passavam juntos,
Roberto Piva lia e traduzia simultaneamente uma variedade de poetas franceses e italianos,
além de comentar detalhadamente obras como Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima. Sergio

Roberto Piva lia e comentava os poemas de Cohn, Danilo Monteiro e cia., chegando mesmo a
mencionar seu entusiasmo em organizar uma antologia da poesia jovem, com o nome
352
.

As relações entre este encontro com Roberto Piva e a revista Azougue já foi tema de
pesquisa científica353. Foi a principal recepção da poesia desse xamã durante a década de 1990.
No ano de 1996, a revista traz um especial com Roberto Piva com ampla antologia e materiais
inéditos -
publicação que Roberto Piva finalmente encontrou editora para sua obra Ciclones, a partir de
seu impacto em outro importante poeta contemporâneo, Fabio Weintraub.

Os meandros da organização do material para o livro são elucidativos. Sergio Cohn os


digitou com Roberto Piva e participou mesmo da seleção de materiais e concepção do livro. A
constatação foi drástica: o amplo material que havia crescido muito desde a primeira menção
à obra então concluída, na entrevista de 1991 a Ademir Assunção daria para três livros
distintos. No entanto, temendo não haver outra oportunidade de publicação, Roberto Piva
decide uni-los no mesmo livro.

Aos toques do tambor mágico e cercado por jovens criativos, o poeta se afirma como
xamã, seja na performance na Funarte (1996), ainda antes da publicação de Ciclones, seja nos
recitais para a divulgação do livro. As participações de Roberto Piva na Poesia Sempre revista
semestral de poesia, em meados de 1997, selam o reconhecimento de sua poesia.

349
SILVA, Claudio Roberto da. Reinventando o sonho história oral de vida política e homossexualidade
no Brasil contemporâneo. 1998. 674fs. Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1998. p. 319-320.
350
PASSETTI, Edson. Das fumeries ao narcotráfico. São Paulo: EDUC, 1991. 154 p.
351
COHN, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. 81 p. (Coleção Ciranda da Poesia).
352
COHN, Sergio. O capitão loucura. Folha de São Paulo, 1996. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2006201008.htm. Acesso em: 03 fev 2013.
353
BERLANDA, Ibriela Bianca. A revista Azougue e o poeta Roberto Piva: o saque e a dádiva. 2011. 284 fs.
Dissertação (Mestrado em Literatura) Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011.
172

Ao final desta mesma década, Roberto Piva escreveria textos no lançamento do livro do
amigo Zé Celso (Zé Celso Primeiro Ato, 1998) ou de Glauco Mattoso (na orelha de Geléia Rococó
sonetos barrocos, 1999).

São os momentos que antecedem o estouro em torno da reedição de Paranóia, em


2000, cujos efeitos ainda se fazer sentir na multiplicação de pesquisas científicas, ensaios
críticos, documentários cinematográficos, materiais inéditos e depoimentos disseminados na
internet.

Em síntese, o breve sobrevoo na recepção da obra poética de Roberto Piva observou o


acento da década de 1960 em sua relação com a aventura surrealista. Na década de 1970 foi

carioca. Os contornos políticos mais evidenciados em sua produção poética redundaram na


recepção por meios revolucionários e de luta por direitos sociais no final de 1970 (especialmente
nos movimentos gay e ecológico). Na década de 1980, a poesia de Piva irradiou para diversas
direções, com acento na antologia da editora L&PM e nas revistas Chiclete com Banana e Cerdos
& Peces. Após breve refluxo, os meados da década de 1990 viram o impacto da poesia de
Roberto Piva em mais uma nova geração de poetas (azougueiros), além da afirmação de sua
poesia xamânica.
175

Poesia da experiência vivida & a experiência vivida da poesia

Já foi dito que a tal intertextualidade é um procedimento abundantemente utilizado


pelo poeta Roberto Piva em epígrafes, citações, alusões, etc. Seus poemas estão recheados de
figuras encarnadas, sejam de poetas, filósofos ou místicos. O presente ensaio versa sobre essa
faceta da criação poética de Piva, aventando a possibilidade de não ser um recurso de criação
literária, mas um modo de vivenciar a poesia. Não um encontro frio e fortuito de letras escritas,
mas um toque inscrito nos corpos.

Paranóia (1963), livro de estreia de Piva, é um verdadeiro passeio pela cidade de São
Paulo, acompanhado por seus amigo , presentes desde Ode a
Fernando Pessoa (1961). Além desses amigos, no entanto, surgem em suas andanças poetas de
diversas épocas que saltam das páginas para a vivência concreta. Marcelo Veronese354, por
exemplo, destaca dezenas de intertextos com Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Allen
Ginsberg, Pablo Neruda, Murilo Mendes e Jorge de Lima.

No entanto, o intertexto de Piva frequentemente vai além da relação com apenas um


autor. São referências cruzadas, com a vivência de imagens a partir da fusão de poéticas de
épocas distintas. Vejamos a bela imagem de Paranóia, em que se encontram Ginsberg e
Apollinaire:
355
costureiros arrancavam os ovários dos manequins .

Este comerciante tinha cortado algumas cabeças / De manequins vestidos como


um dia me vestirei 356.

357
Ó, mãe / adeus / [...] com seus olhos de ovários arrancados .

Vê-se que Piva vivencia uma imagem em suas alucinações de 1961 que quase funde os
manequins de Apollinaire com os olhos paranoicos da mãe de Ginsberg olhos de ovários
arrancados.
Óbvio que não se trata de procedimento simples. Pouco importa aqui se Piva quis
sacanear, fazer um jogo com versos. Ou se as imagens operaram suas associações em nível
inconsciente. Quando observamos que Piva viu em suas alucinações os costureiros que
arrancavam os ovários dos manequins, os viu a partir dos olhos paranoicos de Naomi (mãe de
Ginsberg, a quem dedica o longo poema), e a partir das experiências de Apollinaire na graça da
rua industrial. Falamos então em um procedimento estético de criação, ou em uma vivência
concreta da realidade, fundida às imagens que saltam das frias páginas e são vistas nas andanças
do poeta pela cidade?

354
VERONESE, Marcelo Antonio Milaré. A intertextualidade na primeira poesia de Roberto Piva. 252 fl.
Dissertação (mestrado) Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas
Campinas, 2009.
355
PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas volume I
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 30.
356
APOLLINAIRE, Guillaume. Àlcoois e outros poemas. (Daniel Fresnot, trad.) São Paulo: Martin Claret,

.
357
GINSBERG, Allen. Kaddish e outros poemas. Em: GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas.
(Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1961/2005. p. 103.
176

Outras imagens cruzadas surgem. É sabido o quanto o poeta Walt Whitman influenciou
a poesia moderna. O bronco abria seu corpo para a multidão, se fundia às pessoas, animais,
cores, situações perdendo os contornos precisos de um Eu que agora era palco dissolvido nos
outros. Há diversos intertextos de Piva com Whitman em Ode a Fernando Pessoa, ali incluindo
outro poeta bastante influenciado por Whitman, Fernando Pessoa / Álvaro de Campos como
observei em outra oportunidade358. Mas o poeta cosmos não era referência apenas de Piva.
Em Nova York, Garcia Lorca (1929-30) escreve uma série de poemas em que os pelos da

Lorca escreve sobre o poeta americano:

Que anjo leva oculto na bochecha?


Que voz perfeita dirá a verdade do trigo?
Quem, o sonho terrível de tuas anêmonas manchadas?359

Em Ginsberg, Whitman aparece em um supermercado da Califórnia lançando olhares


aos garotos da mercearia:

Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles: Quem matou as


costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo?360

Piva, referindo-

Eu te imagino perguntando a eles:


onde fica o pavilhão da Bahia?
qual é o preço do amendoim?
é você meu girassol?361

Os versos de Piva dialogam mais exatamente com os de Ginsberg. Mais do que


brincadeira entre versos, Piva coloca sua poesia na esteira de Mário de Andrade, da mesma
forma que Ginsberg a Whitman. O elo parece ser a sexualidade ou a pansexualidade forte nos
dois poetas norte-americanos, enrustida em Mário e escancarada em Piva. Mas ao colocar-se
nessa linhagem poética de Mário, inclui também Whitman (que influencia também a Mário,
Ginsberg e o próprio Lorca).

Poderíamos divagar ainda bastante: o anjo presente em Lorca, e replicado em Ginsberg,


é transformado em girassol em Piva, seja por ser signo da pederastia de Mário de Andrade, seja
pela importância da flor na poesia de Ginsberg que, por sua vez, dialoga com as anêmonas de
Lorca (outro vegetal que simboliza o sagrado em tradições místicas). Há um jogo entre trigo-
banana-amendoim, especialmente a questão dos 5 milhões de porcos que Lorca fala serem
consumidos diariamente em Nova York. A relação entre as margens do Rio Hudson, o
Supermercado na Califórnia e o Parque do Ibirapuera, daria pano pra maga.

358
MATTOS, Ricardo Mendes. 50 anos de rebelião poética em Roberto Piva. Banda Lusófona, 2011.
Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/BLBLrobertopiva03.htm
359

360
questions of each: Who killed the pork
.
361
PIVA, Roberto. Paranóia, op. cit., p. 65.
177

Whitman retratado por Lorca, que é parafraseado por Ginsberg, que é parafraseado por

Agora, mais do que dissecar os versos, expediente tão desprezado por Piva, cabe saber
o que se cria com esse procedimento. É óbvio que a menção a um ou outro poeta remete a uma
afinidade entre as vidas poéticas no caso apreciado, especialmente da homossexualidade.
Explicita a relação entre poetas que se inscrevem, às vezes, na ordem de pertencimento a uma
genealogia poética. Não puramente uma filiação a esta ou aquela escola literária o que era
repugnante para Piva, que sempre criticou as
exatamente uma dica de atualização, ou re-criação a partir de diálogos vividos-poéticos. No tão
estudado diálogo intertextual com Mário de Andrade, por exemplo, fica clara uma proposta de
diálogo com o modernismo brasileiro, o que permite a Willer falar que Paranóia
362
com a rebelião surrealista; ou enfoca aspectos da obra de Mário
(sexualidade) e de Oswald (primitivismo e antropofagia) de maneira distinta da apropriação
desses autores feita pelos concretistas (conforme enfatiza Cámara363).

Por outro lado, o diálogo intertextual pode ser avaliado como um procedimento da
própria criação literária como uma forma técnica na composição de versos. Nessa perspectiva,
a intertextualidade não implica em mera reprodução de conteúdo, mas o amplia, conferindo
sentidos inusitados ou novos à relação estabelecida como parece ser a opinião de Veronese.

No entanto, uma proposta mais ousada, já mencionada em texto sobre crime e poesia
em Piva364, parece ser aquela influenciada por Lautréamont em seus poemas com inversões
de orações e preceitos morais, especialmente de Pascal, mudando-lhes completamente o

por plágio, crime autoral, de forma deliberada, com o intuito de assassinar o autor. Poesia feita
por todos, como uma força que atravessa os corpos, sem reproduzir o Ego/Eu (autor). Como a
virulência pagã dos deuses como forças estrangeiras que atravessam os corpos, justamente para
despedaçar os suspiros do ego convalescente. Essa vivência pagã e anti-moderna, anti-
humanista, cabe bem aos dois poetas.

Neste mesmo texto, no entanto, fizemos pequena menção à outra possibilidade.


Quando Piva ressalta em entrevista a Floriano Martins sobre a influência de Dante em sua
criação, não fala de Dante enquanto poeta, ou menciona processos estilísticos ou literários. Fala
que ele, Piva, era um personagem de Dante saltou fora da obra para deixar a realidade em
365
completa de . Aqui não há mera menção a personagens do Inferno, mas uma espécie
de possessão real da figura literária. Como o exemplo de Ginsberg que, em poema que
homenageia Whitman, vê Lorca em um supermercado na Califórnia, o mesmo Lorca que Piva
encontrou em um hospital da Lapa, ou que espera seu dentista na Praça da República.
Novamente, não é qualquer procedimento literário de Lorca, mas o próprio poeta que surge
como presença (viva) - não representação (literária).

362
WILLER, Claudio. Uma introdução à leitura de Roberto Piva. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na
legião obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005. p. 153.
363
CÁMARA, Mario. Sexualidad y ciudad em la poesia de Roberto Piva. Revista Anclajes, Santa Rosa
(Argentina), n. 14, dezembro 2010, pp. 25-37.
364
MATTOS, Ricardo Mendes. Roberto Piva: poesia e crime ou blasfêmias eróticas heroicas & assassinas.
Zunái Revista de Poesia & Debates, ano VI, edição XXIII, setembro de 2011. Disponível em:
http://www.revistazunai.com/ensaios/ricardo_mendes_mattos_robertopiva.htm
365
MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. In: MARTINS, Floriano. O começo da busca: o
surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001.
178

de leitores: um que acumula, enciclopedicamente,


conhecimento na cabeça, e isso não serve para nada. E o outro, que transforma aquilo que lê
em seu sangue. Eu sou um leitor desse segundo exemplo. Tudo aquilo que li transformei em
em entrevista a Paulo Mohylovski366. Aqui também um intertexto com
367
Zaratrusta . Ou seja, Piva como leitor transformava em vida o que lia, em uma fusão do que se
lê e vive. Transformar em sangue é alcançar o espírito de quem escreve.

Dessas últimas reflexões podemos falar que em Piva não há mais intertextualidade, mais
intervivências. O poeta :

368
. Para Piva vivenciamos o fim da poesia enquanto literatura. Trata-se de poesia que
corre no sangue: poesia vivida. Veja o que o próprio poeta fala, em entrevista a Carlos Roque:
não é a literatura em si, uma vez que a literatura é importante apenas enquanto
serve a vida e expande esse conceito de vida até o limite de seu absurdo369
literatura, mas o poder da vida!

Muito se fala sobre síntese entre vida e poesia (de extração romântica, surrealista, beat,
etc.). É a vivência visceral do que

que o autor passava. Ambos são intensamente vivenciados pelo poeta. Os comerciantes que
arrancam as cabeças dos manequins, os olhos de ovários arrancados da mãe de Ginsberg ou om

como quaisquer desses que vemos nas vitrines, fazendo careta para a eternidade.

Mas essa síntese normalmente se refere à vida do poeta que comparece em sua poesia
a poesia experimental com vida experimental de Piva. Ou seja, a vida poetizada: escrever sobre
o que se vive. No entanto, a síntese também inclui a poesia vivida: viver o que se lê. É aí que se
pode pensar a intertextualidade em Piva, como forma de vivenciar a criação de outrem. Como

versos tanto quanto os versos vertem vida.

366
MOHYLOVSKI, Paulo. O agitador da transgressão. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1987/2009. p. 92.
367
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Mário da
Silva, trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1883-85/2010. p. 66.
368
PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005. p. 14.
369
ROQUE, Carlos. O mascate da paixão (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção
Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1986/2009. p. 78.
Ricardo Mendes Mattos é poeta, autor de Acaso Subversivo (2012), Derivas Etílicas &
Sacos Sarcásticos (2012) com o poeta amazonense Kissinger Cândido de Barros e
Espraiar (2014). Possui o título de doutor em Psicologia da Arte pela Universidade de
São Paulo, com a tese Roberto Piva: derivas políticas, devires eróticos & delírios
místicos (2015).

Contato: ricardomendesmattos@ig.com.br

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