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PIVA
VIDA POÉTICA
RICARDO
MATTOS
Roberto Piva: Vida Poética
Ricardo Mendes Mattos
ISBN: 978-85-913155-3-6
Criação: Flagrante Delito
São Paulo
2015
Índice
7. - 83
Este livro reúne ensaios publicados e inéditos em torno da verve seminal da aventura poética
de Roberto Piva: a fusão entre arte e vida. Em conjunto com minha tese de doutorado (Roberto
Piva: derivas políticas, devires eróticos & delírios místicos1) este livro reúne as reverberações de
minha intensa vivência da poesia de Piva. A experiência do êxtase me levou a outras expressões
da poesia mágica: nas rodas de jongo, nos desafios do calango e no ermo da mata, incorporo o
mundo indômito que Piva me fez penetrar.
1
Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
i
O leitor de Piva
Claudio Willer
No prefácio das obras completas de Gérard de Nerval pela coleção Pléiade, seu
organizador, Claude Pichois, fez observações sobre a demora na percepção da dimensão do
autor de Aurélia. Faltaram críticos, observou, como aqueles que teve Baudelaire. De fato, não
há como separar a leitura da poesia, prosa poética e crítica de Baudelaire do modo como foi lido
por Walter Benjamin, Edmund Wilson, Octavio Paz, Georges Bataille, Erich Auerbach e outros
colossos da crítica moderna.
Após décadas recebendo uma atenção restrita a leitores que compunham uma espécie
de círculo iniciático, felizmente agora Roberto Piva é um poeta não apenas lido, porém
lo de um de seus manifestos
de 1985. De fato, a partir de 2000, com as reedições de Paranóia, a publicação de Obras
reunidas, de entrevistas e depoimentos, além dos documentários, mais a correlata difusão no
meio digital, foi ganhando novos ensaios, dissertações e teses. Essa produção relativiza uma de
suas idiossincrasias: verberava universidades
e,
mesmo dispondo-se a dar entrevistas para jornalistas, evitava os pesquisadores. Sua reação à
notícia das teses e dissertações examinando sua obra era de desconfiança.
cabem: afinal, uma tese sobre poesia na Psicologia da USP, sem invocar nenhum dos quadros
de referência tipicamente curriculares embora haja, na tese e nos ensaios, bastante psicologia,
porém do tipo marginal, associada a uma espécie de insurreição anarco-psicanalítico-poética
que propúnhamos, fundamentada em Freud, Sandor Ferenczi, Wilhelm Reich, Herbert Marcuse
e Norman Brown isso, além dos compêndios de psicopatologia sexual, a exemplo daqueles de
Stekel, que Piva fruía como se fossem prosas poéticas. Mas o trabalho de Mattos também seria
estranho se apresentado em cursos de Letras, pois, assim como estes ensaios, parece dispensar
teorias literárias, embora ambos, tese e ensaios, sejam Literatura Comparada e tratem, de modo
sistemático e consistente, daquilo que importa: a poesia.
Sua principal contribuição é nos mostrar Piva como poeta leitor; como autor culto.
Alguém que foi constituindo uma identidade e adquirindo uma voz ao desenvolver uma
extraordinária capacidade de leitura, desencadeada pela identificação com autores que ia
descobrindo, nos quais via expressadas sua própria inquietação e inconformismo. Da paixão pela
leitura resultaram a varredura obsessiva de livrarias e as constantes recomendações de leituras
e indicações de obras, das quais eu e outros amigos nos beneficiamos. Observei em outra
ocasião que destacar o Piva leitor é importante em face desse aspecto preocupante da realidade
brasileira: sermos um país com 70% de analfabetos funcionais, com índices tão baixos de leitura
ii
Ensaios como estes ajudam a deixar para trás o tempo em que, citando Mattos,
replica um procedimento do próprio Piva. A leitura atenta e informada vai mostrando que o
magma imagético sempre é significativo, que as alusões, menções e citações de outros autores
são precisas, desde que examinadas pelo crítico sensível, atento e informado. Destituindo o
chavão reacionário da qualifi
os escritos iniciais, havia formulado uma poética, indissociável de uma visão de mundo; que
reflexão e criação sempre caminharam juntas. Cito-
uma poética posta em ação em Paranóia, da mesma forma que materiais como Manifesto da
Poesia Xamânica & Bio-Alquímica (1992) ou poesia = xamanismo = técnicas arcaicas do êxtase
(1997), por exemplo, dialogam com Ciclones.
interte
vinha fazendo, como poeta-pensador ou poeta-crítico, contribuindo para uma leitura melhor
Piva vivencia os versos alheios em sua visceral
pederastia. Não é uma relação apenas com o poema, mas uma experimentação na carne. Antes
tema da sexualidade presente em Mário de Andrade, o faz por via da plena realização sem
outras inflorescências na poesia de Mário, Allen Ginsberg e García Lorca, entre outros, que vá
procurá-lo em Piva e nas leituras empreendidas por Mattos.
iii
A poesia deve ser feita por todos, havia proclamado Lautréamont mas, pode-se acrescentar
Talvez também prevalecesse sobre a obra, seu conceito de livro, como meio de sedução
e combate de preferência, algo bem portátil, que ele pudesse retirar dos depósitos de editores
para sair por aí, distribuindo aos jovens leitores em potencial que o agradassem. Seu modelo de
publicação é representado por 20 poemas com Brócoli, livro minimalista, contrastando com as
edições em um formato enorme que Massao Ohno fazia naquele período. Tanto é que reclamou
do tamanho de Ciclones, livro mais extenso por haver acumulado material à espera de editores
é de 1997, mas com poemas que vinham sendo escritos desde 1982 , como testemunhado
por Sergio Cohn, que digitou os originais, em seu livro sobre Piva.
2
Interlocutores de Goethe, Samuel Johnson e William Blake que publicaram suas conversações com eles.
iv
Tudo isso, aspectos do movimento, do trânsito vertiginoso, para citar um dos títulos a
típicas do bom leitor de Baudelaire, que Piva entendeu plenamente, como tão bem exposto
aqui, nestes ensaios que, pelo valor não só como guias para a leitura do autor de Paranóia, mas
da poesia de qualidade em geral, merecem a mais ampla difusão.
1
É uma relação erótica com o autor de Girassol da Madrugada. Uma relação escandalosa.
Paulicéia Desvairada pulula aqui e ali, numa vivência da cidade cravada em seus locais mais
conhecidos. No entanto, ninguém ousava tocar nessa faceta homoerótica da poesia de Mário
de Andrade - muito menos da maneira visceral como faz Roberto Piva. Daí o estarrecimento.
Há dois motivos para o espanto. Por um lado, como aponta Eliane Robert de Moraes4, a
tradição literária brasileira dava pouca vazão à expressão do erotismo tão presente nas
conversas populares o que vai ocorrer especialmente a partir dos modernistas de 22. Por
outro lado, a questão da sexualidade em Mário de Andrade é uma polêmica. A mesma Eliane
Moraes observa o conflito moral que fez o autor de Macunaíma retirar alguns trechos
pornográficos na reedição do livro. Assim, apenas muito atualmente se fala na sexualidade do
poeta, pairando aí um clima proibitivo que certamente era ainda mais forte no início dos anos
Daí o escândalo do poeta pederasta tal como aparece em Roberto Piva. Essa retomada
enfrenta a repressão sexual de toda uma cultura justamente em um dos maiores autores
nacionais. Dessa forma, Piva consegue levar adiante a incorporação literária da sacanagem
popular, iniciada com os primeiros modernistas, com a ousadia que lhe é peculiar.
É desta retomada homoerótica da poesia de Mário de Andrade que irei tratar. Para
tanto, centrarei fogo nas primeiras publicações de Roberto Piva, nomeadamente os poemas San
(1961), Ode a Fernando Pessoa (1961) e No Parque Ibirapuera (1963).
A estreia de Roberto Piva nas letras se dá na famosa Antologia dos Novíssimos (1961).
Já neste momento se estabelece interessante diálogo com Mário de Andrade. Vejamos o trecho
inicial do último poema:
De um bar qualquer
Do Largo do Arouche
assisto São Paulo passar dentro de mim
Imerso na paisagem cinza-úmida
-
3
Publicado originalmente na Agulha: revista de cultura, edição n. 08, março de 2014.
4
MORAES, Eliane Robert. Essa sacanagem. São Paulo, Ide, v. 1, pp. 75-79, 2005.
2
-
-
de Mário de Andrade que Roberto Piva incorpora: a toponímia do Largo do Arouche, a fusão
entre poeta e cidade, e a crítica aos costumes conservadores. O poeta modernista empresta
Roberto Piva vê aí outra mania deliciosa. De quem seria? Mário de Andrade, em seu
Prefácio Interessantíssimo, utiliza a seguinte imagem para abordar a desordem da lírica e seus
influxos do inconsciente:
Existe a ordem dos colegiais infantes que saem das escolas de mãos dadas,
dois a dois. Existe uma ordem nos estudantes das escolas superiores que
descem uma escada de quatro em quatro degraus, chocando-se lindamente.
Existe uma ordem, inda mais alta, na fúria desencadeada dos elementos8.
Seria exagerado dizer que Piva mescla ambas passagens de Paulicéia Desvairada, numa
junção do verso sobre Oswald mariscando gênios com a passagem de Mário observando
5
Em: OHNO, Massao (org.) Antologia dos Novíssimos (Coleção
dos Novíssimos, vol.09). São Paulo: Massao Ohno, 1961. pp. 97.
6
ANDRADE, Mário de. Lira paulistana. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins; Brasília; INL,
1946/1972. p. 283.
7
Ibidem, p. 44.
8
Ibidem, p. 21.
3
colegiais saindo de mãos dadas? No poema de Roberto Piva, estaria Mário de Andrade entre os
pederastas mariscando colegiais?
À luz do dia, a cidade bate na cadência repetitiva de suas fábricas; na monotonia moral
da burguesia; no metro beletrista de seus poetas. São as sempiternas mesmices convencionais,
como pondera Mário de Andrade. A luz do dia e suas capturas pelo trabalho, escola e família. É
a cidade sem asas, sem poesia, sem alegria.
Em Ode a Fernando Pessoa (1961), Roberto Piva utiliza a mesma expressão das
Ó maior
9
parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti? . Com tom ora satírico, ora
cáustico, Roberto Piva rechaça as reconhecidas instituições de ensino (Faculdade de Direito do
Largo São Francisco), as igrejas, o governo e até resistência dos comunistas.
Mas a madrugada oferece outras luzes, como aquelas do poema Noturno, de Paulicéia
Desvairada. Ali a cidade ganha asas:
[...]
Luzes do Cambuci pelas noites de crime...
Calor!... E as nuvens baixas muito grossas,
feitas de corpos de mariposas,
Rumorejando na epiderme das árvores...
[...]
9
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, op. cit., p. 25.
4
tem aí uma sensação ambígua de prazer e tristeza: a liberdade sexual do lugar contrasta com as
grades que o aprisionam. Diante dos delírios carnais, o poeta experimenta a tristeza das
lágrimas. É nessa teia de contradições que a sexualidade em Mário de Andrade fica explícita: o
gozo ao lado do interdito. É um conflito sexual que não encontra correspondência em Roberto
Piva.
Na Ode a Fernando Pessoa, Piva retoma esse Mário de Andrade de Noturno. O poeta
caminha com Álvaro de Campos e os tenebrosos vagabundos de São Paulo numa vida
radicalmente subversiva. Bebedeiras, assaltos, violações e orgias. A loucura sensacionista de
experimentar tudo ao mesmo tempo agora. Caminham pelos becos e encruzilhadas do lado
obscuro da cidade, recheado de putas e adolescentes que abandonaram o sono das famílias. É
Se Piva retoma o tema da sexualidade presente em Mário de Andrade, o faz por via da
plena realização sem grilhões e sem remorsos. Frequenta os mesmos inferninhos da cidade,
mas adiciona à sua vagabundagem um tom violento e mesmo criminoso. Se Mário de Andrade
10
ANDRADE, Mário de. Paulicéia desvairada, op. cit., p. 44-5.
11
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, op. cit., p. 23.
5
mostra certa frustração e pudor, Roberto Piva é só furor: viola a menina-moça. O poeta
paranoico carrega em si toda o vigor dos piratas da Ode Marítima
crimes! Ser todos os elementos componentes dos assaltos aos barcos e das chacinas e das
violações! [...] Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres que foram violadas,
12
Na Ode, Roberto Piva novamente fala do sexo de Mário de Andrade, agora num tom
Lira Paulistana nos
14
. Mas tudo o que Roberto
Piva faz é acordar o sexo de Mário de Andrade. E não só o sexo. É um Mário de Andrade em
meio a pederastas e maconheiros!
12
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. (Teresa Rita Lopes, org.). São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. p. 117
13
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, op. cit., p. 22.
14
ANDRADE, Mário de. Lira Paulistana, op. cit., p. 300
15
PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas volume I
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 30.
16
Baudelaire, Charles. Les paradis artificiels. Paris: Baudinière, 1860, (Collection Les chefs-d
français). p. 14.
17
GAUTIER, Théophile. Charles Baudelaire. In: BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. Paris: Calmann
Lévy Éditeur, 1896. p. 61. Passagem na íntegra: Il en est de même pour les extases olfactives qui vous
transportent en des paradis de parfums où des fleurs merveilleuses, balançant leurs urnes comme des
encensoirs, vous envoient des senteurs d'aromates, des odeurs innomées d'une subtilité pénétrante,
rappelant le souvenir de vies antérieures, de plages balsamiques et lointaines et d'amours primitives dans
quelque O'Taïti du rêve. Il n'est pas besoin de chercher bien loin pour trouver dans la chambre un pot
d'héliotrope ou de tubéreuse, un sachet de peau d'Espagne ou un châle de cachemire imprégné de
patchouli négligemment jeté sur un fauteuil
6
Mário de Andrade! Além de uma referência clara à grande obra do poeta francês, seria a flor-
do-mal uma referência à cannabis sativa
menção ao efeito do consumo de maconha, tal como as de que nos
fala Baudelaire? Não me parece estranho pensar no consumo dessa erva na região barra-pesada
do Cambuci.
sem o conhecimento das memórias de viagens e cartas em que Mário de Andrade relata suas
experiências com alucinógenos.
No Parque Ibirapuera
cooptação pelo Estado. Ao contrário dessa retomada oficial da tradição modernista, Piva
encontra naquele parque outra relação com Mário de Andrade.
São versos que rebentam na noite e estão imanentes em todos os movimentos do poeta
na cidade. Uma encarnação poética que se dá distante dos holofotes, distante das
conclama Piva, mencionando versos de Mário de Andrade
em Meditação sôbre o Tietê. Sob a ponte, contemplando o rio, Mário de Andrade associa a noite
anha-
19
. Roberto Piva retoma esse poeta noturno:
o homem com suas paixões fluindo inconscientemente. Mais próximo do rio e do ambiente
natural; distante da civilização e sua vida corrupta.
SONETO
(Dezembro de 1937)
18
PIVA, Roberto. Paranóia. op. cit., pp. 64-5.
19
ANDRADE, Mário de. A Meditação sobre o Tietê. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins;
Brasília; INL, 1946/1972. p. 305.
8
poetas saem de mãos dadas noite afora. Roberto Piva, sem dúvida, aceita o amor do modernista
como este o encara!
Duma certa perspectiva, a Paulicéia Desvairada faz uma crítica da cidade atrelando os
aspectos político-econômicos, morais e estéticos. A moral conservadora é tão aprisionadora
quanto a economia burguesa e o metro poético. As Enfibraturas do Ipiranga dão inúmeros
exemplos de crítica à regularidade do metro em poesia, colocado no mesmo patamar que o
trabalho assalariado e o matrimônio. O poeta bom moço, conservador na vida e na poesia, é
aquele do poema com ênfase formal. O antípoda do desvairado caminhando ao ar livre na ruas
mal afamadas da cidade, nas carnagens de luz e na maconha na simultaneidade desordenada
de versos livres. Em sua época, a crítica de Mário de Andrade certamente dirigia aos
20
ANDRADE, Mário. A costela do Grã Cão. Em: Poesias completas. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Editora da USP, 1987. pp. 320-1.
21
WEINTRAUB, Fabio. Conversa com Roberto Piva. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2000/2009. pp. 124-135.
22
CÁMARA, Mario. Sexualidad y ciudad em la poesia de Roberto Piva. Revista Anclajes, Santa Rosa
(Argentina), n. 14, dezembro 2010, p. 35.
23
HOLLANDA, Sergio Buarque de. Retórica e Poesia. Em: O espírito e a letra. São Paulo: Companhia das
Letras, 1950/1996, pp. 165-9.
24
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira III. Modernismo. 5.
ed. São Paulo / Rio de Janeiro: Difel, 1975. 374 p.
9
Como bem observou Claudio Willer25, o poema No Parque Ibirapuera mantém forte
intertexto não apenas com Mário de Andrade, mas também com Garcia Lorca e Allen Ginsberg.
Acrescento a importância de Álvaro de Campos, que em sua Saudação a Walt Whitman,
Andrade em seu quarto um símbolo forte de admiração juvenil. Mas Whitman era o poeta da
fusão com todo o universo, aquele que se tornava os outros homens e penetrava em todos
objetos. Seu próprio livro o trazia vivo e vibrante em cada página:
27
livro / quem toca neste livro, toca num homem [...] Eu salto de .
É assim que Álvaro de Campos encarna Whitman e, como o faz Piva com Mário, caminha com
ele de mãos dadas. É a poesia como força que flui para além do espaço e tempo, como queria
Whitman, impregnando a tudo com sua vibração imanente: em cada pedra, em cada homem,
etc como surge em ambos poemas. Mas para além dessa imanência poética, Piva, como
Campos, se pergunta também onde estará agora, mesclando a sensação da presença com a
angústia da busca.
Piva retoma a Mário de Andrade tal como Álvaro de Campos a Walt Whitman. Mas não
só. Os fios das longas barbas do bardo foram vistos também em Um Supermercado da Califórnia.
25
WILLER, Claudio. Roberto Piva e a poesia. Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências, n. 2, 2010.
Disponível em: http://novaserie.revista.triplov.com/numero_02/claudio_willer/index.html
26
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos, op. cit., p. 149.
27
WHITMAN, Walt. Leaves of Grass. (2ª ed.), 1860. Disponível em:
whitmanarchive.org/published/LG/1860/ Data da consulta: 12/05/2008.
10
28
costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo? . Os poetas provam tudo
da caminhada de mãos dadas, etc. Mas se Ginsberg, após todas essas imaginações, se sente
a paquera com os garotos angélicos,
os brasileiros vão além.
E os versos de Ginsberg, como bem sabia Roberto Piva, também são variações da
seguinte passagem de Garcia Lorca, em sua Ode a Walt Whitman ¿Qué ángel llevas oculto en
la mejilla? / ¿Qué voz perfecta dirá las verdades del trigo? / ¿Quién el sueño terrible de tus
anémonas manchadas? 29.
Roberto Piva consegue mesclar uma escrita radicalmente delirante e espontânea com
cuidadosos estudos dos poetas que menciona. Pois Roberto Piva era um leitor bem atento. A
aproximação de Mário de Andrade com a pederastia e a drogadição não são meros exageros
delirantes, mas fruto de análise bem criteriosa. Se o delírio poético e a transgressão radical são
feições muito mencionadas para se referir à Piva, falta ainda dizer algo sobre sua argúcia crítica.
Aqui chegados, concluímos uma parte da caminhada. Ainda resta fazer uma leitura
atenta das semelhanças entre Macunaíma e Coxas: sex fiction & delírios. Tal leitura ampliaria o
-revolucionária
que inclui outros heróis sem caráter.
Eis o Mário de Andrade de Roberto Piva. Nem o bom moço dos cânones acadêmicos,
nem o capturado pelo Estado das comemorações oficiais, nem arauto venerado nas escolinhas
literárias. Poeta pederasta, vadiando nos inferninhos da cidade e experimentando drogas. É
com esse que Roberto Piva caminha de mãos dadas.
28
GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 2005. p.
49. (Coleção LP&M Pocket, vol. 188).
29
LORCA, Frederico García. Poet in New York: a bilingual edition. Grove Press, 2008. p. 148.
13
Por onde passa a alucinação poética de Roberto Piva devassa. Seu pulsar em fúria
ejacula desordem. As convenções sociais se prostram definhadas. Os deveres suicidam-se
aturdidos. As autoridades masturbam-se convulsionadas. Os relógios ventilam e olhares
sedentos devaneiam em rodopios maravilhados.
No quinquagésimo ano da estreia de Piva, com sua Ode a Fernando Pessoa (1961), este
ensaio celebra a sua vida.
Sua poética, qual meteoro incandescente desgovernado, ganha virilidade a cada ano,
explode em gerações de novos poetas e transgressores nele inspirados, abre crateras no bom
mocismo ainda predominante na poesia.
A publicação individual de estreia de Roberto Piva foi impressa em longa tira de papel
similar à forma de Bomb beat
era publicada em San Francisco. O poema era distribuído nos bares da cidade de São Paulo,
tendo sido escrito no mesmo ano de sua participação na Antologia dos Novíssimos (Massao
Ohno, 1961).
A Ode já abriga o germe da poesia piviana, com toda sua força subversiva e anárquica.
Já aqui a poética da irresponsabilidade, das sensações em detrimento das obrigações. Apologia
do ilegal. Poesia da orgia, cujo erotismo toma o poder de assalto. Blasfêmia, sarcasmo e
ridicularização do mundo oficial. Poesia sustentada pela loucura e pelo delírio.
30
Publicado originalmente no Projeto Editorial Banda Lusófona, em maio de 2011.
14
Versos livres e longos. Ode a Fernando Pessoa à maneira das grandes odes de Álvaro
Campos. Versos no ritmo voraz do pseudônimo que tomava o poeta lisboeta de assalto em
acessos de possessão, de escrita febril, compulsiva e convulsiva. O virulento tremular da pena
violenta, arrebentando em Pessoa um ente-de-letras incontrolável, impulsivo que destronava
até seu próprio criador. Inventivas noites insones.
versos, ou no meio deles, com expressões iguais a de Campos em suas odes. Construção similar
Poesia de ruptura, com raízes bem conhecidas. Barbas longas e livres do velho Whitman,
com o vento da liberdade a soprar em seu corpo nu deitado sobre folhas de relva. Verso criado
em estado de transe, a livre associação de ideias em pensamento veloz, com ritmo definido pelo
pulsar do corpo e na medida da respiração.
decadente e pessimista, em seus despudorados balanços de vida, com todas suas vilezas e
fracassos. São solilóquios loquazes em carne viva.... deixando as vísceras ali espalhadas no rés-
do-chão, em qualquer vão, para todos verem. Esse Campos dos longos exames de consciência,
beirando a culpa e despertando amiúde a piedade, não é o poeta apropriado por Piva, mas sim
31
WILLER, Cláudio. Uma introdução à leitura de Roberto Piva. Em: Um estrangeiro na legião, Obras
reunidas volume 1. (organizador Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005. p. 144-183.
15
[sequência] / Sempre, sempre, sempre / Esta angústia excessiva do espírito por coisa
32
.
A mesma busca desesperada observada em várias passagens de Campos, como por exemplo:
O elemento do excesso é a fúria. Em sua Ode Marítima, Campos leva ao extremo essa
violência em sua adoração aos piratas. Aqui a fúria se traduz em transgressão, criminalidade,
facetas bastantes características da poética delinquente de Piva, cuja erupção passa ao largo
indisciplinador
A figura do pirata ilustra bem a figura de sujeitos selvagens que vivem matando,
roubando, torturando, proliferando uma série de crueldades. Os Césares com quem Campos
34
.
oética sensacionista,
irresponsável, embriagada pela ferocidade selvagem e vomitando atrocidades.
32
Todas as citações da poesia de Álvaro de Campos são extraídas de: PESSOA, Fernando. Poesia completa
de Álvaro de Campos. (edição Teresa Rita Lopes). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 312.
33
Ibidem, p. 177.
34
Ibidem, p. 120.
35
Idem, p. 148-9.
16
36
. A relação de Ginsberg
com Whitman, que remete a uma genealogia poética e de vida subversiva, é parafraseada por
Assim, a Ode é uma constante conversa com Whitman. Sua barba prefigura aqui e ali,
enroscando os fios nas páginas.
A Ode está recheada de orgias e bacanais, alusões ao sexo como expressão da liberdade.
Numa sociedade moralista e crivada p
segundo o próprio Piva, a liberdade sexual é bastante fronteiriça do proibido, do criminoso:
Whitman e sua fusão com as pessoas comuns, personagens urbanos.... suas gírias,
Vozes dos sexos e luxúrias.... vozes veladas, e eu removo o véu, / Vozes indecentes esclarecidas
37
.
38
acompanhe .
fora da lei e todos os desajustados, / Não existe um gangster juvenil preso por roubo e nenhum
36
GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. (tradução, seleção e notas de Cláudio Willer). Porto
Alegre: L&PM, 2006. p. 49.
37
WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. (tradução Rodrigo Garcia Lopes). São Paulo: Iluminuras, 1855/2008.
p. 77.
38
Ibidem, p. 105.
17
criminal. Uma poesia cuja transgressão aponta, em última instância, para o crime, e para a
anarquia generalizada 39
Na Ode, o poeta gangster vivencia e poetiza diversas situações subversivas, muitas vezes
com aberta alusão a atos delinquentes. São crimes, fugas, assaltos, estupros, que lembram em
- .
Tal tom subversivo/criminoso tem ojeriza a qualquer forma de controle. Daí frases como
-te daqui para fora, policiamento familiar da alma dos fortes: eu quero ser como um raio
Poesia arejada, impregnada dos burburinhos das grandes metrópoles. O estado de vida
poético como a fusão da poesia e vida..... como uma existência sempre em movimento, no
turbilhão urbano caótico.
asas,
ouvem bossa-nova deitados na palma da mão do Cristo.... o maxixe na Bahia com seus becos e
40
porres. Como bem lembra Ricardo Rizzo, trata- .
39
MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. Em: O começo da busca: o surrealismo na
poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Tranversais). p. 241 e 246.
40
Revista Agulha, n. 49, 2006.
18
Se ainda hoje tais versos soam sublevadores, o que dirá na época em que foram escritos.
É Willer quem relata o espanto e repúdio com que as primeiras poesias de Piva foram recebidas
pela provinciana cidade de São Paulo, uma cidade moralista, fechada, regrada, puritana. O
espanto intercalado ao silêncio da imprensa, pois era impensável uma literatura excitada pelo
erotismo, transpirando palavrões. Havia pouco, o Uivo de Ginsberg foi recolhido das prateleiras,
o gerente da livraria preso e a obra perseguida em longo processo judicial
O pai do racionalismo tecnicista tem sua célebre frase ridicularizada em cômica paródia:
-
A universidade, instituição do saber oficial, com seu academicismo tão odiado pelo poeta,
recebe uma imagem que denota o quanto reprime os desejos em prol de uma lógica racional
rbação /
41
Revista Agulha, n. 69, 2009.
19
Uma poética do amor livre, da orgia, da liberdade sexual. Uma poética subversiva,
vivenciada na desobediência sistemática das instituições sociais de controle. Uma rebelião
poética furiosa, que estilhaça todas as formas de disciplina e domesticação.
Uma poética dionisíaca, pagã, que faz delirar na embriaguez estética da afirmação da vida,
da vida em sua diversidade. Poética ditirâmbica, do batuque irracional sentido no ritmo do
corpo.
Se cabe ao poeta chegar ao desconhecido de seu tempo, eis aqui um poeta vidente,
visionário, que abre brechas na realidade e potencializa em cada um outras vidas a serem
vividas.
42
PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça. Em: Um estrangeiro na legião, Obras reunidas volume 1.
(organizador Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1962/2005. p. 132-141.
43
Ibidem, p. 58.
21
1. Roberto Piva é direto: a palavra criminal é um princípio básico para se entender sua poesia.
Sua poética exala o crime. Por ela ferve um turbilhão assaltos, assassinatos, estupros,
incêndios... ora com feições cruéis, em que cabeças são decepadas, em meio a flagelações....
ora como perversões sexuais, à exemplo do oblato com sexo arrancado.... ou mesmo em rituais
com feições pagãs, no qual garotos são castrados. Seus personagens são vadios, delinquentes,
45
.
Não é apenas a poesia que relata o crime, é poesia feita por criminoso!
adolescente, eu era um delinquente. Era uma pessoa que vivia absolutamente dedicada às
46
.
O poeta-
consegui ser gângster. Então acabei escrevendo poesia, que é uma forma de incentivar o
47
.
Ora, aqui temos uma relação indissociável entre poesia e crime. É poesia sobre crime,
escrita por um delinquente, cuja força é de apologia ao crime, incitação à transgressão de
qualquer ordem, lei ou convenção social. A poesia mesma é crime. Não se trata de exagero, pois
44
Publicado originalmente na Revista Zunai, no Portal de Poesia Ibero Americana e no Projeto Editorial
Banda Lusófona, entre abril e maio de 2011.
45
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócolis (vol. II, p. 104). Todas as citações da poesia de Piva são extraídas
de suas obras reunidas, em três volumes, por Alcir Pécora, publicadas em 2005, 2006 e 2008
respectivamente, pela Editora Globo. Indico a obra, volume e o número da página.
46
COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. O agitador da
transgressão. Entrevista concedida a Paulo Mohylovski, em maio de 1987.
47
MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. Em: O começo da busca: o surrealismo na
poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Tranversais). p. 241-258.
22
48
.
Quais os sentidos do crime na poética de Piva? Com tal enigma tento aliciar o leitor para
fazer-se cúmplice e percorrer o emaranhado de vielas e becos, onde viceja a vida transgressora
na poética de Roberto Piva. Nesses subterrâneos encontraremos outros comparsas com os quais
Piva foi iniciado na poética criminosa. Encontrando leitores tão audaciosos quanto o poeta,
podemos ser até enquadrados no crime de formação de quadrilha!
3. Poesia e possessão. O impacto da poética de Dante Aliguieri (1265-1321) foi tão grande em
Inferno de
49
.
Poesia, blasfêmia, roubo e vidência. Heresia e magia. Crime como manifestação política.
Mimetismo. Piva se apropria do personagem: toma-o para si, assalta sua identidade. Se o poeta
começa sua trajetória como louco possuído por deuses, aqui age como possuidor, usurpador de
personagens.
48
Idem.
49
Idem.
50
PIVA, Roberto. O jogo gratuito da poesia (vol. III, p. 187).
23
Eis aqui a diferença crucial entre os poetas. Se Dante caminha por amor, rumo ao
Paraíso, se apiedando dos personagens do Inferno, Piva encarna-os: se faz um deles. Se Dante
conduziu Piva ao centro do turbilhão de criminosos, deixou-o lá, solitário e desesperado. Ele não
continua a trajetória do florentino ao Purgatório e Paraíso. Sua Beatriz foi esfaqueada num beco
escuro. Piva faz poesia para o crime, não sobre ele. Nesse movimento, o próprio poeta faz-se
criminoso. É com Villon que ele faz conluio.
4. Vilanias de Villon. François Villon (1431-1463?): primeiro poeta maldito. Órfão entregue aos
cuidados eclesiásticos, filho de prostituta. Rasgou com seu punhal as vísceras dos poetas-bobos-
da-corte e marionetes dos mecenas. Perdeu todas as proteções eclesiásticas e régias, em virtude
de seu modo de vida transgressor, traduzido em uma poesia satírica. A partir daí Villon não mais
vende sua arte ao mecenas: bate sua carteira!
Posso vê-lo, ferido nos lábios pela adaga do inimigo, vagabundeando errante nas
tabernas, prostíbulos, a procura de uma trapaça qualquer que lhe renda algum trocado.
Envolvendo-se em brigas, como aquela na qual matou um sacerdote. Manipulava a pena com
tanta habilidade como seu punhal, praticando a poesia e o crime com a mesma vivacidade. Ao
poeta a prisão, a tortura, o desterro, a condenação à forca. Poesia como sinônimo de perigo
social.
Suas baladas ridicularizam as autoridades civis e religiosas, com tanto sarcasmo quanto
descrevem cenas eróticas com sugestivas devassidões. Poesia aqui tem ares de um crime dos
mais audaciosos e refinados. Mas as Baladas do bandido ainda são devotas, com pedidos de
perdão a Deus e demais rebanhices cristãs mesmo considerando a época em que foram
escritas, sem qualquer anacronismo. Perto da poesia de Piva, as Baladas de Villon são
arrependimentos em confessionário. O crime em Piva é essencialmente blasfemo. É no fervor
da carne orgiástica que Piva prefere inscrever sua delinquência. É uma poética erótica. Crime,
poesia e erotismo: elementos bolinados pelo sádico Marquês.
5. Poesia e apologia ao crime. Coxas pode ser lido como um diálogo com Marquês de Sade
(1740-1814). Ou melhor: uma orgia com Sade. Nele, a transgressão é indissociável da livre
expressão sexual. Liberdade total dos instintos mais selvagens, culminando em crueldades
exibi
Tal visão é marcada pelo extremo desprezo pela vida humana, especialmente pela
prepotência do homem em ser o senhor do Universo, quando não passa de um elemento
bastante dispensável diante da força da Natureza. Essa crítica severa ao antropocentrismo e
toda a tradição humanista influenciou Piva, também por intermédio de Lautreamont e
Nietzsche, como veremos adiante.
Distante do antropocentrismo, da moral cristã e das leis sociais, sua poética junta
sexualidade e violência como cerne da relação humana que busca exprimir toda sua vitalidade:
XUAL, isto é, numa AGRESSÃO cujo
52
.
6. Crime como obra de arte. Ainda em Coxas o poeta-selvagem cita a célebre publicação do
comedor de ópio Thomas de Quincey (1785-1859): O assassinato considerado como uma das
belas-artes (1827). O grande deambulador vagabundo observa que os registros da imprensa
sobre homicídios revelam a enorme criatividade dos assassinos, comparada a de grandes
pintores e poetas. Com características de seguidores de Sade, havia um clube de aristocratas
dedicados ao prazer do crime. Reunidos se extasiavam em narrar os crimes que cometeram,
com suas circunstâncias e premeditações, gerando grande efusão quando os mais originais eram
considerados como obra de arte.
Se poesia e vida são parte de um mesmo ato subversivo de amor e liberdade, aqui a
beleza do crime prescinde da poesia. O próprio delito é belo. A poesia como crime mostra seu
avesso: o crime é poético.
51
COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. A poesia
selvagem e de possessão de Roberto Piva. Entrevista concedida a Ademir Assunção, em abril de 1991.
52
PIVA, Roberto. Piazzas (vol. I, p. 129).
25
8. Corpo elétrico possuído por todos os fora da lei. O jovem pederasta gingando seu corpo ágil
em meio à multidão citadina. A fusão com todos os desvalidos, rejeitados e criminosos. Ao final
da perambulação, deita suas barbas longas nas folhas de relva, dissolvido na natureza, com seu
corpo elétrico entregue ao amor com qualquer desconhecido. Whitman (1819-1892) e sua
cumplicidade com os marginais:
53
.
A poesia aberta às vozes proibidas, como receptáculo de toda sorte de sujeitos que a
sociedade se esforça por esconder e eliminar. Esta mesma cumplicidade se torna aguda em Piva:
fora da lei e todos os desajustados, / Não existe um gangster juvenil preso por roubo e nenhum
54
louco sexual que eu / não acompanhe para ser julgado e .
Percebam: trata-se de Piva em sua primeira publicação individual, uma longa tira de
papel distribuída nos bares de São Paulo, intitulada Ode a Fernando Pessoa (1961). Aqui, antes
de manifestações similares da arte e criminalidade/marginalidade, característica da década de
1960, o poeta já tem delineadas as linhas orientadoras de sua poética de desorientação.
Além de Whitman, a Ode embarca Piva no cruel convés dos piratas de Álvaro de
Campos-Fernando Pessoa (1888-1935). Sua cópula criminal, na batida violenta de espuma e
fúria, esparrama saques, estupros, violações e demais atrocidades. O poeta-pirata desbravou
humanidade e sua moral. A poética criminosa que atrela criação, loucura e maldade de maneira
inaudita. É possuído por Isidore Ducasse (1846-187
53
WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. (tradução Rodrigo Garcia Lopes). São Paulo: Iluminuras, 1855/2008.
p. 105.
54
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa (vol. I, p. 24)
26
nuvens coçavam os bigodes enquanto masturbavas colérico sobre o / cadáver ainda quente de
55
.
10. Vidência do grande criminoso: tempo dos assassinos. O grande vagabundo do Oriente,
aventureiro do paradoxo, caminhando em andrajos no meio de mendigos, entre abissais porres
de absinto. O multiplicador do desconhecido, em seu elemento mais natural: o escândalo
como aquele em que recebe tiro de Verlaine, em uma de suas discussões amorosas.
Há poucos poetas como Rimbaud (1854-1891) que conseguiram criar uma poesia tão
original e sistematizá-la em método/sistema tão explícito. Em sua famosa passagem sobre o
11. Poética pagã: ave de rapina que semeia discórdia. O jovem Piva precipitado no abismo.
Estupefato e febril. Esta é sua descrição da leitura de Genealogia da Moral. A tresvaloração de
55
PIVA, Roberto. Paranóia (vol. I, p. 48)
56
COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. A quizumba
poética de Roberto Piva. Entrevista concedida a Pepe Escobar, em outubro de 1983.
27
todos os valores, enxergando com desconfiança tudo o que se considerava bom e enobrecendo
instintos dantes tidos como malditos. Piva foi acometido por um profundo impacto: os duros
golpes da filosofia do martelo consolidaram no abrasado poeta sua força e intensidade. Sua
vontade de poder, o paganismo para além do bem e do mal, sua poética do prazer no destruir.
Aqui também a infração no centro da criação, o assassinato necessário para o nascimento do
ietzsche.
vergonhoso e desprezível: é a moral do escravo, da negação da vida, que reduz o homem ao ser
domesticado e civilizado.
57
criminoso são artistas o bastante para reverte .
Certa feita, Piva perguntou ao filósofo e amigo Vicente Ferreira da Silva sobre quais os resquícios
atuais do mundo pagão, dada nossa dificuldade em sequer olhar de soslaio para esse universo.
Vicente respondeu: o erotismo e o carnaval, ao que Piva acrescentou: no candomblé (vide filme
Assombração Urbana, direção de Valesca Dios). Hoje podemos sem dúvida colocar na lista a
58
semeado .
57
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. (tradução Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia
das Letras, 1886/2005. p. 66.
58
PIVA, Roberto. Coxas sex fiction & delírios (vol. II, p. 67).
59
BRETON, André. Segundo Manifesto do Surrealismo (1930). Em: BRETON, André. Manifestos do
Surrealismo. (tradução Sergio Pachá). Rio de Janeiro: Nau, 2001. p. 155.
60
PIVA, Roberto. Ciclones (vol. III, p. 75).
28
Mas,
61
. É assim que a poesia criminal de Piva só
pode ser entendida como uma revolta pessoal não vinculada a qualquer movimento coletivo,
seja artístico ou político. Mas há estilhaços da explosão surrealista na furiosa poesia de Piva,
similar ao que ocorreu na g - do surrealismo português, tal como
denominada por Antonio José Forte. Veja a poesia criminal que arde nos dedos queimados de
Herberto Helder: poesia contra todos: abriu ele fogo contra o surrealismo?
13. Poética da transgressão: elogio à lei? A presença de Bataille (1897-1962) na poesia de Piva
remete à transgressão, à poesia fora da lei. Essa feição de subversão inerente à poesia exala o
suor efervescente da liberdade, do desfilar sarcástico do elemento caótico. Liberdade e
desordem que dependem, paradoxalmente, da lei e da ordem. O avesso do interdito. O par
necessário da proibição: a violação. A existência da lei se justifica pelo prazer da transgressão.
Em outras palavras, a lei é apenas um artifício malicioso arquitetado pelo crime para
amplificar seu gozo. O crime mais violento, o assassínio e a morte, tudo o que põe a vida em
perigo, traz consigo o prazer mais intenso. A vida é tão mais intensa quanto mais rigorosa é a lei
que transgrede.
contraste com a virtude, o Bem. Pois este último, com sua moral, lógica e formalismo, não abarca
o humano. A aventura humana não prescinde do crime, do irracional, do imoral. Aí está o cerne
da poesia: o transe originado do arrebatamento das paixões irresponsáveis. A vivência do
crime/transgressão alimenta o jogo da vida como luta e contraste. Se a lei impõe o limite, o
crime em Piva é esse movimento de gozar do (com o) limite. Não a vida ilimitada, o que não
seria possível, mas levar a vida no limite mesmo do impossível.
14. Tesão pelo crime. Órfão aos cuidados do Estado, rifado em reformatórios e crivado pelas
torturas de diversas prisões. O Diário de um Ladrão remonta os vazios da fome, a face indigesta
da miséria, o vadiar a esmo do mendigo em andrajos. Piedade? Compaixão?
Jean Genet (1910-1986) não as tem para nós. Sua carreira na bandidagem é seu caminho
para a perfeição moral, a santidade. Suas peripécias no roubo, na prostituição ou no tráfico, são
seus sinais de grandeza. São magia. São poesia.
A vivência no mundo do crime por puro tesão. Pois o crime alcança a ignomínia e a
turbulência de sentimentos somente similar ao estado que o amor precipita os homens. O
erotismo e a vibração trazidos pelo perigo, o gozo que advém audácia, a excitação dos corpos
tudo o que
tinha de mais precioso: sua homossexualidade e traição.
A poética do crime que nos deixa espreitar é criação de um mundo, uma moral e uma estética
como Genet se refere. Aquilo que a sociedade despreza é
motivo de orgulho. Uma moral inversa, ébria de abjeção. Todos os sinais de sordidez, os atos
61
COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. Autobiografia,
publicada em 1985.
29
62
.
Genet, grande criminoso e vítima de criminosos, toda uma vida e arte que alcançam no
O gosto pela pederastia e traição, já presente na Ode; o tesão pelos garotos dos
subúrbios, seja os roqueiros que o poeta revelou quando era promotor de shows, seja os jovens
alunos que aliciava em sua época de professor nas periferias da cidade, passando pelos seus
famosos relatos da sauna gay que frequentava. Como Jean Genet, Piva também não se
entregava apenas à poética do crime, mas ao próprio criminoso.
15. Hipsters com cabeça de anjo. Piva e sua transa com a Geração Beat. Perigoso coquetel:
juventude, poesia, erotismo e delinquência. A crítica burra aos beats
medo. A puritana sociedade norte-americana cagava nas calças em pensar na virulência desse
modo de vida transgressor, tachando rapidamente a beat como sinônimo de delinquência
juvenil. Ledo engano. Tal associação apenas incentivou mais a juventude ávida da grande
aventura, do gozo sem limites, estampado nas vestimentas e comportamentos. O hino desta
geração, o grande Uivo, versa as extremas situações sublevadoras: as detenções por porte de
drogas; as internações manicomiais; a cabeça estilhaçada no pilar do metrô ao colocar a cabeça
para fora do vagão, triste fim de William Cannastra, o mesmo que se gabava de ter mordido um
policial na orelha; entre tantas outras.
Herói da Beat, Neal Cassady, ninfomaníaco tremulando por sexo a quinhentos por hora.
Gaba-se de roubar o primeiro carro aos 14 anos e ter acumulado mais de 500 com pouco mais
de 20 anos. A brincadeira de Guilherme Tell, com qual William Burroughs matou sua
companheira. A própria expressão beat, atribuída ao delinquente e traficante Herbert Huncke.
A poética beat tecida com os fios fortes do crime.
Veja Gregory Corso, delinquente criado em orfanatos. Menino de rua que entrou em
cana por roubo. Na prisão identificou seu modo de ser com a poesia, decidindo ser poeta. O
mesmo Corso que, ministrando oficinas na Jack Kerouac School of Disembodied Poetics, na
Naropa University
16. Crime e criação. Crime e poesia em Piva: diversidade de sentidos. Poesia sobre o crime, para
o crime e pelo crime. O próprio crime e o criminoso como poéticos. A criação poética como
crime autoral: assassinato do autor. A espontaneidade criadora levada à intensidade no perigo,
na contravenção.
Resta ainda dizer algo sobre o crime e a poesia. Vadiar pelos sentidos do crime na poesia
de Piva é trilhar alguns caminhos e desconhecer outros tantos. Nesse jogo gratuito daquilo que
se revela e do que se oculta, a face do enigma permanece fabulosa, embora com outros traços.
Encarar estupefato a esfinge. É disso que se trata. Ser devorado pelo monstruoso leão e
alimentar em suas entranhas a beleza do Mistério.
62
GENET, JEAN. Diário de um ladrão. (tradução Jacqueline Laurence e Roberto Lacerda). Rio de Janeiro:
Nova Fronteira: 1949/2005). p. 16.
30
Pense nas figuras subversivas do Cinema Novo com seu elogio ao banditismo no cerne da
formação cultural brasileira. O tremor da terra em transe ou a transa de Deus e o Diabo na terra
do sol. Ou mesmo os anjos do cinema da Boca do Lixo, ambiente que Piva frequentou e sobre o
qual escreveu, com seu elogio ao sexo, crime e malandragem. Já no final de 60 vemos, como
Nas artes plásticas o marginal e anárquico Hélio Oiticica alia de maneira explícita o
de Ruth Escobar.
Até no âmbito da luta política: veja a proliferação das guerrilhas de esquerda durante essa
década. A gênese do próprio Comando Vermelho tributário dos manuais de guerrilha urbana.
E o que podemos dizer do momento atual, em que Piva via a massificação da criminalidade
em torno dos valores burgueses?
Se Piva não foi marginal, mas marginalizado, tendo sua poética criminalizada pela
sociedade de então, fez dessa criminalização o combustível de sua criação poética. Mas sua
poética do crime não possui apenas esse lado reativo, de contra-golpe: Delinquência sagrada
dos que vivem situações-limite / É do Caos, da Anarquia Social que nasce a luz enlouquecedora
31
da Poesia / Criar novas religiões, novas formas físicas, novos anti-sistemas políticos, novas
63
.
Não apenas o crime como criação artística, mas como invenção de novas formas de vida.
PS: Alcir Pécora entende que a poesia de Piva precisa de mais estudo e menos torcida,
mesmo tendo o próprio poeta incentivado o leitor a verter em sangue sua poesia, além de
entender que uma pesquisa acadêmica mataria sua virulência. Dilacerar a pena no próprio corpo
e escrever com a tintura do sangue ainda fresco das experiências pessoais subversivas, como
fazia Sade, talvez seja um caminho.
63
PIVA, Roberto. Manifesto da selva mais próxima (vol. II, p. 149).
33
Roberto Piva experimenta uma vida poética radical. Seja pela insurreição constante
contra toda e qualquer autoridade, seja afirmação da vida subversiva encharcada de sexo,
drogas e crimes, é essa poética o vórtice seminal de sua criação. É essa poética transgressora
que encantou jovens gerações de novos poetas e foi responsável pela boa recepção da poesia
rebeldes & malditos em torno da editora L&PM, nos anos ´80; seja pelos selvagens da Revista
Azougue, na década de 1990.
arte e vida que irradia especialmente para os aspectos eróticos, políticos e místicos. Em todos
eles, os volteios de uma verve criativa enraizada numa constante re-criação do fazer poético.
Re-criação esta advinda de uma leitura crítica do contexto histórico e atenta ao papel do poeta
na sociedade contemporânea.
Daí ser a poética subversiva dos temas mais contagiantes em Roberto Piva. O marginal
65
. É o mesmo aspecto ressaltado na apresentação da Antologia Poética de
66
. Neste mesmo ano, Bonvicino diz que Piva
a própria poesia. Da poesia libertadora, que sai do papel para
67
ter existência real no dia-a- .
Além da recepção criativa por gerações de poetas mais jovens, elementos da poética de
Roberto Piva também serão dos mais estudados em pesquisas científicas, a exemplo de Carlos
Felipe Moisés68, em seu Vida Experimental, e da recente pesquisa de Fabrício Clemente69,
Estilhaços de visões .
64
Publicado originalmente no Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, 13. ed., jun. 2015, pp.
139-177.
65
COHN, Sergio. Nuvem Cigana: poesia e delírio no Rio dos anos 70. Rio de Janeiro: Beco do Azougue,
2007. p. 102.
66
L&PM. O profeta da desordem. Em: PIVA, Roberto. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM, 1985.
67
BONVICINO, Régis. O boêmio Piva não tem papas na língua. Folha de São Paulo, 02.06.1985.
68
MOISÉS, Carlos Felipe. Vida experimental. Em: ______. O desconcerto do mundo: do renascimento ao
surrealismo. São Paulo: Escrituras, 2001. pp. 301-320.
69
CLEMENTE, Fabrício Carlos. Estilhaços de visões: poesia e poética em Roberto Piva e Claudio Willer.
Dissertação de Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
34
Na Carta do Vidente,
vidência como atributo daquele que leva uma vida experimental e maldita:
Digo que é preciso ser vidente, se fazer vidente. O Poeta se faz vidente através
de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos. Todas
as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura ele mesmo, ele
esgota nele todos os venenos, para só guardar as quintessências. Indizível
tortura onde ele precisa de toda fé, de toda força sobrehumana, onde ele se
torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito e
o supremo Sábio!71
70
PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 137.
71
RIMBAUD, Arthur. Carta dita do Vidente. Em: _____. Rimbaud por ele mesmo. (Daniel Fresnot, trad.).
São Paulo: Martin Claret, 1871/s.d. p. 109.
35
ao crime; é chamando para si a esfera do Mal que conquista a sabedoria. É o poeta maldito.
Num momento em que todos apregoavam a consciência de classe via razão crítica e
compromisso coletivo, falar em conhecimento pelo delírio e o desregramento de todos os
sentidos?
novamente a Rimbaud, mas não só ele. É frase similar àquela que encerra o Manifesto
73
Surrealista de . A partir dela, Breton e
companhia travam sua batalha contra a captura do real pelo naturalismo racionalista. O além
da vida, seu outro lado, não é fora da vida, mas uma outra possibilidade de viver: a imaginação,
o sonho, o suspiro desconcertante do sagrado. É a vida em estado poético, na fusão do real e do
imaginário, a verter surrealidades. É a vida como devir do maravilhoso. Daí a rebeldia furiosa.
Repudia-se o mundo frio da consciência atolada na razão e na moral que já não vê a eclosão do
misteriosas me tinham seduzido. Esqueci qualquer dever humano para segui-lo. Que vida! A
74
verdadeira vida está ausente. N
aí o lema do
surrealismo, junto ao transformar a sociedade de Karl Marx. A Viúva fala que está morta para o
mundo. Deve-se entender bem essa morte: é esquecer todo dever humano, as leis e costumes
ditadura desta única possibilidade de realidade e mudar a vida. Daí o inferno, a morte para o
mundo. É a morte do cidadão membro da comunidade e todos seus papéis sociais e obrigações
72
Ibidem, p. 113.
73
BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. (Sergio Pachá, trad.) Rio de Janeiro: Nau, 2001. p. 64.
74
RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no inferno. 2. ed. (Paulo Hecker Filho, trad.). Porto Alegre: LP&M,
1873/2007. p. 51.
36
morais. Com a morte desse sujeito social surge a mudança da vida. É a morte com feições
iniciáticas, pois pare o novo homem e o novo mundo.
rituais arcaicos de incisões no corpo e do sangue sorvido. É assim que evade do mundo com sua
Se fica clara a influência de Rimbaud e do surrealismo, deixar fluir a Alma Fecal retoma
a dissidência de Antonin Artaud. Aquele mesmo que rompeu com o surrealismo oficial após
adesão deste ao Partido Comunista. Aquele mesmo que, na própria opinião de Breton, levou a
aventura surrealista às últimas consequências.
A alma fecal e a poesia fecal são temas de carta escrita por Artaud no manicômio de
Rodez, datada de 6 de outubro de 1945. Trata-se de correspondência com Henri Parisot, sobre
os preparativos para a publicação de Viajem ao país dos Tarahumaras, em que Artaud fala de
Sou poeta ou ator não por escrever ou declamar poesias, mas por vivê-las.
Quando recito um poema não é para ser aplaudido, mas para sentir os corpos
de homens e mulheres, disse corpos, agitarem-se e girarem em uníssono com
o meu, transformarem-se como se transforma da obtusa contemplação do
buda sentado com pernas cruzadas e sexo livre, à alma, isto é, à
materialização corporal e real de um ser integral de poesia [...] Este século
não compreende a poesia fecal, o intestino miserável, aquilo que, Madame
Morte, desde o século dos séculos sonda as colunas da morte, sua coluna anal
da morte, no excremento de uma sobrevivência abolida, cadáver também de
seus eus abolidos, e que pelo crime de não ter podido ser um ser, tem que
cair para se sondar melhor o ser, neste abismo da matéria imunda e, aliás, tão
gentilmente imunda onde o cadáver da Madame Morte, da madame uterina
fecal, madame ânus [...] O corpo diz, enterrado de ser: a alma cai, fecal como
um excremento, e se amontoa em seu excremento. [...] Eu sou cu, disse o
homem da vida para significar o que está no fundo de sua morte, que o
prateado do espelho de sua alma é um abismo atravessado por ele. [...] Viver
75
-se me entregando à justiça. Nunca fui deste povo, nunca fui
cristão; sou da espécie que cantava no suplício; não conheço as leis; não tenho senso moral; sou um
Uma Temporada no inferno, op. cit., p. 31.
37
Em primeiro lugar: ser poeta é viver poesia. Senti-la contagiar os corpos e liberar toda a
energia sexual e mágica. Essa poesia corporal é interditada pela sociedade e morta. É a poesia
sexual descartada como excremento, defecada pela alma; o devir do corpo em morte rejeitado
pelos séculos a fio. A rejeição do corpo o torna matéria imunda do excremento, a alma fecal; a
rejeição da poesia vivida sexualmente a torna poesia fecal; e a rejeição do poeta o torna louco
trancafiado em manicômio. A poesia corporal lida com essa matéria rejeitada: poesia fecal. O
poeta se lança nessa matéria imunda, nos devires do corpo, e daí sonda melhor a vida. A
passagem pela morte é via mágica de renascer para nova vida. Artaud aceita o peso do corpo, o
poesia.
Roberto Piva e seus amigos experimentam essa poesia vivida como contágio sexual dos
corpos. Sem o medo das pulações do corpo, sem medo da repressão social, sem medo da
maldição ao poeta.
de anarquia. Ou seja, ao refutar as bases políticas da revolução social colocam-se as coisas sob
modo anárquico. Anárquico, não anarquista. Desorganizados e livres. Aqui a tacada final.
Desorganizados: sem participar da instituição do partido, do movimento social, do movimento
artístico. Combate-se, assim, outra base importante dos partidários da luta de classes: a
organização popular. Se o caminho marxista da consciência de classe e organização popular é
criticado, o objetivo moderno da Liberdade é mantido. Alguma semelhança com o lema
e orgia (ou entre gozo e vidência), que forma o ponto seminal da poética de Roberto Piva em
Piazzas e sua
Chama atenção no texto sua composição plagiária a partir de colagens. Cada frase se
abre a presença de intertextos, num verso ventilado por outras leituras. É característica
marcante não apenas dos Manifestos de 1962, mas de toda produção poética de Roberto Piva:
radicalmente vivida e abertamente erudita.
Exatamente por fincar raízes radicais na poesia como forma de viver, manifesta-se uma
visão de mundo e um modo de ser. Um modo de ser dissidente no âmbito do contexto político
da época, em especial com relação às formas mais comuns de enfrentamento dos dilemas do
contexto histórico. A partir da leitura crítica da realidade, se aposta no delírio; a partir da crítica
à consciência, se aposta no desregramento; a partir da crítica às instituições políticas, se aposta
na desorganização deliciosa.
76
ARTAUD, Antonin. Lettres de Rodez. Em: Oeuvres completes, v. IX. Paris: Gallimard, 1945/1979. p. 161-
163.
38
Minotauro dos minutos traz a imagem mítica do monstro associado ao tempo que
escorre. A um tempo que escorre e nos assalta, nos devora, naqueles penicos estreitos da Lógica.
Nos devora nas responsabilidades, no trabalho, na família. As instituições de sequestro que
linearizam um tempo a ser destinado à conservação da ordem estabelecida.
79
. Em seu Diário de um ladrão, o poeta e bandido enaltece a traição como valor
fundamental na vida do crime, pois concretiza a autonomia de cada ladrão e sua insubmissão a
-
80
ainda reencontrar- . A traição é o ponto da liberdade de amar a partir da
81
transgressão da moral que se impõe ao amor o romper .
77
PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça, op. cit., p. 135.
78
MARINETTI, Fillippo Tommaso. Manifesto futurista (1909). Em: BERNARDINI, Aurora Fornoni (org.). O
futurismo italiano: manifestos. São Paulo: Perspectiva, 1980. p. 32.
79
GENET, Jean. Diário de um ladrão. (Jacqueline Laurence e Roberto Lacerda, trad.). Rio de Janeiro: Nova
Fronteira: 1949/2005. p. 151.
80
Ibidem, p. 26.
81
Ibidem, p. 133.
39
82
. Aqui Roberto Piva e comparsas se propõem ao movimento violento do Totem que
Senhores Reitores,
82
ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropofágico. Em: ______. A utopia antropofágica: antropofagia ao
alcance de todos (vol. 6, Obras Completas). São Paulo: Globo livros, 1928/1990. p. 48.
83
ARTAUD, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 27-
28.
84
RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no inferno, op. cit., p. 25.
40
A partir daí, Piva lança mão de expediente comum aos manifestos Dada de Tzara e ao
Manifesto Antropófago de Oswald: contra algo por outro. São séries de oposições que
tura intransigente com a tradição,
que se faz valer mais da sátira e da cólera que da precisão. Se por um lado tal procedimento
acaba por criar uma dicotomia insuperável, refletindo o maniqueísmo presente naqueles
tempos; por outro, ressalta a necessidade desesperada de distanciar-se de valores estabelecidos
como via de acesso a novas formas de vida e expressão. É nessa ruptura temporal (contra a
tradição do passado) e espacial (contra os modos de vida convencionais do presente) que o
manifesto beira aspirações vanguardistas daí seu diálogo com manifestos das vanguardas do
início do século XX.
85
. Essa arte das obras encarceradas pelos muros da
contemplação no extremo oposto da poesia vivida em Artaud ou do lema surrealista de
e da produção da poesia
brasileira da época, especialmente a metafísica epifânica dos rilkeanos. Bem diferente do êxtase
dionisíaco, por exemplo, cravado na dissolução do eu, no terror, no violento, no grotesco.
A imagem dos cães com sede do infinito vai nesta mesma linha em diálogo com
Lautreamont. Infinito como abstração, como aspiração metafísica de iluminação contrária a
elementos terrenos -
No primeiro Canto de Maldoror, o clarão da lua assiste cães furiosos que rompem suas
correntes e caminham enlouquecidos pelos campos. Exaustos, na soleira da morte, passam a
86
. E voltam a correr tomados pela raiva, espalhando o medo em todos outros
precipitam-se uns sobre os outros, sem saber o que fazem, e se estraçalham em mil pedaços,
87
com uma rapidez incrí . É então que Lautreamont apresenta a seguinte passagem:
tua cama, e ouvires os uivos dos cães no campo, esconde-te sob teu cobertor,
não aches graça no que fazem: eles têm a sede insaciável do infinito, como
tu, como eu, como o resto dos humanos de rosto pálido e comprido. Até
mesmo permito que fiques diante da janela para contemplar esse espetáculo,
85
MARINETTI, Fillippo Tommaso. Manifesto futurista, op. cit, p. 32.
86
LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror. 2. ed. (Claudio Willer, trad.). São Paulo: Iluminuras,
2008. p. 81.
87
Ibidem, p. 82.
88
Ibidem, p. 82-3.
41
Periscópio
A espada está atolada no lodo tatuado no monte da toupeira casa feita às
cegas com a ajuda do violino após o solstício a morte dos cantores das moitas
e dos molhos catedrais secas pelas canções
Vi e compreendi o erro de toda uma doutrina a mensagem lírica do mimo e a
noite se prolonga alegre e eternal nos olhos dos pássaros viajantes
Quando as bebidas dos cabarés passam com suas lanternas pela floresta os
pássaros roubaram os pedaços de luz e os ocultaram em seus ninhos
Indigestão de estrelas intoxicação lunar e festa começa sob o campanário que
atravessa o relâmpago em surdina Todos os ninhos eram inflamados e nos
olhos se morria o último raio da espontaneidade
Enlouquecidos gafanhotos peregrinos se colocavam aos três na borda do
crescimento da lua descendo pela simpatia sobre os seios de Argine
Ah o mimo falou à espada atolada nas palavras do solstício risonho que vem
nascer -
O basílisco tombou fulminado por seu próprio olhar 89
na opinião da poeta, ainda encontra eco nas criações Dada. E o poema prossegue com os Dadas
de Zurique roubando pedaços de luz e guardando em seu ninho. Esses pedaços de luz trouxeram
89
ARNAULD, Céline. Périscope. 391, n. 14, novembro de 1920. p. 6. Disponível em:
http://sdrc.lib.uiowa.edu/dada/391/14/index.htm. Acesso em: 12 març. 2010.
42
serpente mágica) que morre fulminado pelo seu próprio olhar. Morta a espontaneidade, morre
o espírito do movimento, ficando apenas a instituição entendida como a organização regional
dos dadaístas no pós-guerra, assim como a instituição poética da lírica mimada.
Roberto Piva lança mão tanto da violenta espontaneidade Dada, quanto da crítica de
Arnauld à poesia metafísica e seus
Aqui é fundamental ressaltar: Piva traz para seu manifesto Arnauld e Artaud, figuras
extremamente escandalosas que tiveram a proeza de causar alvoroço em movimentos por si só
desorientadores como Dada e Surrealismo. A menção a estes heréticos é sinal bem evidente de
que se prefere quebrar vidraças, fazer escândalos e criar dissoluções que construir algo
organizado.
uma tensão nos termos, ao qualificar com expressões contrastantes signos da loucura. A
esquizofrenia, cravada na cisão e no corte, qualificada como perfeita? A paranoia, normalmente
entendida como deturpação do real, como ciente? Nesta época Piva estava criando sua grande
obra, Paranóia: poesia sob o signo da loucura e da vidência, do delírio e da crítica. É a loucura
em Rimbaud ou Dali com seu método paranoico-crítico como uma experiência mais aguda
da realidade.
90
Os detalhes da crítica de Roberto Piva ao Concretismo como produto da ideologia desenvolvimentista
urbano-industrial podem ser visto em: VERONESE, Marcelo Antonio Milaré. Manifestos do poeta Roberto
Piva. Fólio Revista de Vitória da Conquista, vol 5, n. 1, jan./jun. 2013, pp. 81-105.
43
-
salões e participantes de recitais em nigth-clubs, de autênticas bordadeiras
Pau
Manifestos de 1962, embora redigidos e assinados exclusivamente por Roberto Piva, trariam as
91
WILLER, Claudio. As fronteiras e dimensões do grito. Em: ______. Dias Circulares. São Paulo: Massao
Ohno, 1964/1976. p. 104.
92
PIVA, Roberto. Introdução. Em: WILLER, Claudio. Dias circulares. São Paulo: Massao Ohno, 1964/1976.
p. 75.
44
opiniões estéticas e políticas desse grupo em gestação. O que dizem aqueles que defendem a
Álvaro Alves de Faria e Carlos Felipe Moisés, poetas e amigos de Roberto Piva neste
93
. Os dois poetas organizaram uma
antologia dessa geração adotando como critério o fato de terem sido todos poetas jovens que
publicaram na mesma cidade de São Paulo do início dos anos 1960. O foco no conceito de
geração advém de Pedro Lyra -
critérios de data e local de nascimento, salientando a vivência coletiva nas mesmas condições
históricas como plano de fundo sobre o qual se desenrola a vivência individual. A diferença é
a primeira geração verdadeiramente nacional da poesia
94
brasileira , tendo representantes espalhados por quase todo o país. Além dessa dispersão
geográfica, Pedro Lyra qualifica a geração pelo sincretismo, pela variedade dos estilos e
tendências95. Também Álvaro e Carlos são enfáticos ao afirmar que com o termo geração não
designam um movimento organizado em torno de um programa em comum, mas as
ressonâncias entre criações poéticas que partilhavam o mesmo contexto paulistano e, em
partes, terem sido publicados pelo mesmo editor (Massao Ohno).
O fato é que diversos poetas deste período concordam com a existência da Geração 60
ou Geração dos Novíssimos. Antonio Fernando Franceschi, por exemplo, é enfático em falar em
96
características , assim como Claudio Willer menciona a importância de
97
. Carlos Felipe
Moisés, no entanto, tende a criticar a Antologia dos Novíssimos exatamente por não possuir um
critério claro de inclusão dos poetas e deixar de lado diversos escritores da época. Massao Ohno
não tinha a pretensão de criar uma geração literária, tampouco reunir todos os novos poetas
paulistanos daquele período. Na entrevista à revista Visão, publicada a 11 de novembro de 1960
(Lugar ao sol para os novos), Massao destaca que selecionava as publicações da coleção
Mas nem todos concordam com a existência de tal geração. Roberto Piva (sempre ele!)
discorda fervorosamente de ter participado de qualquer geração. E vai além. Na entrevista
93
FARIA, Álvaro Alves de ; MOISÉS, Carlos Felipe. Antologia poética da geração 60. São Paulo: Nankin,
2000.
94
LYRA, Pedro. Sincretismo: a poesia da geração-60. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. p. 96.
95
É interessante notar que Roberto Piva não é mencionado como integrante dessa geração, embora se
-55 e estreado entre 1955-
75.
96
COHN, Sergio. Altero todo um ser pois que me movo. Em: ______. Azougue 10 anos. Rio de Janeiro:
Azougue, 2004. p. 35.
97
WILLER, Claudio. Teve a ousadia de criar uma geração literária. O Estado de São Paulo, 15 de junho, de
2010. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,teve-a-ousadia-de-criar-uma-geracao-
literaria-imp-,566617. Acesso em: 20 nov. 2011.
98
Lugar ao sol para os novos. Revista Visão, vol. 17, n. 20, 11 de novembro de 1960.
45
concedida exatamente a Álvaro Alves de Faria, pela rádio Jovem Pan, na ocasião do lançamento
do livro 20 poemas com brócolis, quando perguntado sobre a atualidade da geração de 60 de
99
FARIA, Álvaro Alves de. Entrevista de Roberto Piva para a Jovem Pan. 1981. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=4HOD3dNCCK4. Acesso em: 10 jan. 2013.
100
PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça, op. cit., p. 139.
101
ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Em: ______. A utopia antropofágica: antropofagia
ao alcance de todos (vol. 6, Obras Completas). São Paulo: Globo livros, 1924/1990. p. 42.
102
GINSBERG, Allen. Kaddish e outros poemas. Em: ______. Uivo, Kaddish e outros poemas. (Claudio
Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1961/2005. p. 59.
46
Piva retoma o tema do fecal, mas agora na cintilação do excremento. Piva era leitor de
Swift à época e com certeza havia lido os comentários de Norman Brown sobre a importância
dos excrementos em sua obra. Para Brown, a visão excremental de Swift expunha a expressão
de um corpo instintivo e selvagem para
103
auto- . O autor de Vida contra morte aponta que esta expressão
corporal do excremento é o oposto de toda sublimação: a expressão mais espiritualizada e
embelezada. A sublimação, fonte de toda a cultura, cria um desvio à satisfação mais imediata
do desejo sexual, direcionando o instinto às formas socialmente permitidas de satisfação como
a arte.
O conteúdo cintilante das latrinas pode ser referência a uma poesia visceral e agressiva,
direta e sexual, no extremo oposto da poesia empolada criticada no manifesto. Esta mesma
experiência surge no Postfácio de Piazzas
Brasileira a serviço do instinto de morte (repressão), minha poesia sempre constituiu num
104
4. Desordem
A catedral da desordem
A nossa batalha foi iniciada por Nero e se inspira nas palavras
103
BROWN, Norman O. Vida contra morte: o sentido psicanalítico da história. (Nathanael C. Caixeiro,
trad.). Petrópolis: Vozes, 1959/1972. p. 225.
104
PIVA, Roberto. Piazzas. São Paulo: Kairós, 1964/1980. p. 55.
47
Há um clima de batalha. Batalha iniciada pelo incendiário. Depois vem a menção à frase
. Socialmente. Economicamente.
106
. Mais que intertexto, Piva parece expor um contraponto. Coloca a desordem
no lugar da antropofagia, como um valor mais fundamental. Uma desordem que nos une pelo
ceticismo, pela descrença, pela falta de ilusão. Não nos une a partir da captura do real pelo
pensamento sociológico, econômico ou filosófico, mas por uma via selvagem mais visceral
(barbárie) e erótica. Em outras palavras, a desordem nos une não na perspectiva douta e
europeia com sua política-econômica e filosofia, mas pela via corporal e sexual. Ironicamente,
pela visão de Pindorama não como matriarcado pacífico do comunismo primitivo, mas como
estado anárquico de guerra sem a ilusão conciliatória das contradições.
E logo a seguir vem menção ao Manifesto Dada de Tzara, com sua premente necessidade
de dissolução de tudo:
Existe uma literatura que não atinge as massas vorazes. Obra de criadores,
produto de uma verdadeira necessidade do autor, e para ele. Consciência de
um supremo egoísmo, ou a madeira se estiolando. Cada página deve explodir,
seja pela seriedade profunda e pesada, o turbilhão, a vertigem, o novo, o
eterno, pelo absurdo desconcertante, pelo entusiasmo dos princípios ou pela
forma como está impressa. Eis um mundo vacilante que foge, noivo dos
guizos da escala infernal, eis do outro lado: os homens novos. Rudes,
saltantes, cavalgantes de soluços. Eis um mundo mutilado e os medicastros
literários precisando de aperfeiçoamento.
Eu lhes asseguro: não existe começo e nós não trememos, nós não somos
sentimentais. Nós rasgamos, qual vento furioso, a roupa branca das nuvens e
das preces, e preparamos o grande espetáculo do desastre, o incêndio, a
decomposição107.
Aí o elogio de uma arte violenta e desorganizadora não aquela arte produzida para as
massas, com cafunés sentimentais nos representantes da ordem estabelecida. Uma expressão
artística que cria novos homens. São estes homens que desmoralizam o mundo e, tirando dele
essa roupagem moral, retomam uma roda fecunda de criação. Criação originada pela destruição:
o grande espetáculo do desastre,
retoma a crítica ao sentimentalismo e lirismo em poesia, também sob feições Dada. Ao
pedantismo sentimental, Roberto Piva, como Tzara, contrapõe imagens agressivas; às
aspirações celestes e pacíficas, esparramam as chamas do incêndio (tal como Nero) e o
A partir daí Piva retoma a série de oposições. Muitas são vivenciais, simples e unívocas:
ntra a
105
PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça, op. cit., p. 141.
106
ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropofágico, op. cit., p. 47.
107
TZARA, Tristan. Manifeste dada 1918. Em: ______. Sept manifestes Dada; lampisteries. Paris: Pauvert,
1918/1979. p. 26.
48
H.
aplicação das oposições vivenciais à esfera artística: contra as formas geométricas de Mondrian,
pelas paisagens oníricas de Di Chirico; ou contra o pudor anglicano de Eliot pela devassidão pagã
de Sade; e assim por diante. Com figuras como Sade e D.H. Lawrence, Roberto Piva parece
salientar uma experiência erótica arraigada no corpo aberto às forças naturais mais tenebrosas.
Tal pendor às paixões desregradas enc
É esse furor bárbaro e sexual que os Manifestos de Roberto Piva encarnam, junto à
vontade de atear fogo nas instituições morais, escolas literárias e pretensões metafísicas; de
quebrar as vidraças das convicções políticas revolucionárias, por uma efervescência anárquica
da desordem e do desastre.
108
. Breton parodiava a bravata
-1675), dos mais importantes
levarei A frase remete à reprimenda do guerreiro ao corpo que treme diante do perigo,
retomando sua intrepidez e destemor.
rmitiria vencer os
adversários. A guerra por estados de distração, momentos de irrupção da imaginação,
flutuações da atenção que permitiriam aquele ponto
sonho cessariam de contradizer-se: o advento da surrealidade. Os que viram a carcaça seriam
guerreiros int
pensamento lógico e à consciência moral.
108
BRETON, André. Manifestos do Surrealismo, op. cit., p. 64.
49
As interpretações podem ser diversas: carcaça como signo de um tempo que morre e
pare de suas entranhas a renovação; ou a carcaça como o corpo em mutação de um iniciado
que atravessa a morte ritual e sente o fluxo da vida no seu criar e destruir. De qualquer forma,
a carcaça é símbolo da morte e renascimento.
Não só Baudelaire e sua amante viram a carcaça. Antonin Artaud, na mesma carta em
que formula a poesia fecal, dá como exemplo exatamente este poema de Baudelaire. Também
em seus Poemas, como exemplo da associação do amor
com a morte, numa poesia cravada no mal. Lautreamont chega mesmo a tornar carcaça um
conotação mais simples: a carcaça como signo de um momento histórico que se decompõe. Seja
qual for o sentido da expressão no título dos manifestos de 1962, Roberto Piva e seus amigos
cheiro putrefato; seja na companhia de Baudelaire e sua amante, na de Artaud e sua poesia fecal
ou na batalha surrealista contra a ditadura lógica do real; seja, com certeza, na perturbação anti-
humanista de Lautreamont.
Roberto Piva foi grande criador de manifestos. Como vimos, também foi grande leitor
de manifestos. O poeta faz uso desse gênero de escrita de forma apaixonante. Linguagem solta,
verborrágica, tiradas engraçadas, paródias e um tom delirante. Feições comuns em sua poesia.
distinção nítida entre manifesto e poema. Em entrevista feita em 2005, Ricardo Lima pergunta
exatamente sobre o lugar dos manifestos em sua produção poética e se poderiam ser
Não os considero poemas, era uma outra maneira de me
110
expressar, eram ma .
Assim, se tomarmos como exemplos materiais que o próprio poeta nomeia como
algumas diferenças em relação aos poemas. A primeira e mais fundamental é que nos
manifestos Roberto Piva se dedica a uma leitura crítica da realidade, com especial acento às
questões políticas, delineando posicionamentos que, em seu caso de uma poesia vivida,
redunda em uma reflexão sobre sua poética. Daí um linguajar mais referencial e menos
imagético; daí um tom mais ácido que extático.
Em sua poesia a partir da década de 1980, centrada nas técnicas arcaicas do êxtase, há
uma distinção clara entre poema e manifesto. Em linhas gerais, os poemas remetem a
experiências mágicas vivenciadas pelo poeta, ao passo que manifestos como Manifesto utópico-
ecológico em defesa da poesia & do delírio (1983) se debruçam sobre as questões ecológicas na
109
LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror, op, cit., p. 284.
110
LIMA, Ricardo. Poeta em pele de tigre. (Entrevista) 2005. Disponível em:
http://www.germinaliteratura.com.br/literatura_out05_robertopiva1htm Acesso em: 16 set. 2006.
50
sociedade contemporânea ou, em textos como Manifesto da Poesia Xamânica & Bio-Alquímica
(1992), reflexões sobre o desenvolvimento de sua poética nesse contexto. De qualquer forma,
há uma complementação importante entre a criação de poemas e a redação de manifestos,
como peças indissociáveis de sua vida poética. Neste sentido, os Manifestos de 1962
fundamentam uma poética posta em ação em Paranóia, da mesma forma que materiais como
Manifesto da Poesia Xamânica & Bio-Alquímica (1992) ou poesia = xamanismo = técnicas
arcaicas do êxtase (1997), por exemplo, dialogam com Ciclones. Esta complementariedade é tão
111
:
111
PIVA, Roberto. Estranhos sinais de Saturno. Em: PIVA, Roberto. Estranhos sinais de Saturno obras
reunidas volume III (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2008. p. 138-9.
51
O poema se inicia e conclui com versos começados por artigos, versos estes
interrompidos por texto numa linguagem mais cotidiana, sobre a crítica de Roberto Piva ao
governo Lula e ao marxismo. Tudo acontece como se o poeta tivesse iniciado a redação de
versos que desencadearam um comentário sobre a política atual. Assim, Roberto Piva incorpora
esse comentário no texto, na condição de manifesto, e continua o fluxo de associações que
dispararam a redação. É um exercício leal de escrita automática que não descarta os
comentários mais cotidianos que, às vezes, invadem uma associação.
Era uma tarde de 1966 quando dois jovens desciam a rua Augusta, desfilando gestos
soltos à moda dos italianos. Um deles, sujeito bem alto, falava com entusiasmo de sua teoria
sobre o ar comestível, para o entusiasmo do segundo, baixinho, que apontou para o número
2192 daquela rua. Pela varanda do primeiro andar do pequeno edifício desce uma inusitada
escada de cordas, pela qual o pequeno Roberto Piva e o grandalhão Roberto Bicelli sobem ao
excêntrico ateliê decorado ao estilo japonês. Na subida já se sentia o cheiro de terebintina e
eram recebidos por Wesley Duke Lee nos momentos de criação de sua série Zona. Chapado de
ácido
Naquele mesmo número da rua Augusta, os Robertos fizeram uma parada na badalada
loja de discos Hi-fi, para garimparem algum disco de rock. Roberto Piva era grande entusiasta
da nascente música pop e frequentador daquela rua por onde se viam bandos de jovens
No final dos anos 1960, os poetas Roberto Piva e Roberto Bicelli também eram vistos na
Serra da Cantareira, em meio a seções de LSD. De calça jeans norte-americana e cocar indígena,
Piva se travestia em cacique eletrônico, mesclando música contemporânea com rituais
ancestrais em torno do êxtase.
Roberto Piva está impossível! Avança como um misto de crítico de arte, entrevistador,
agitador cultural e poeta. São faces até então desconhecidas do poeta que se expressam com
exuberância: como entrevistador, mostra-se um profundo conhecedor do tema abordado, com
questões certeiras e instigantes; como crítico de arte consegue a proeza de casar sua vivência
visceral do rock e das artes plásticas, com boa dose de lucidez, sempre salientando a crítica ao
cotidiano careta e apontando as novas possibilidades de vida que a arte cria. Versa também
sobre uma variedade de matérias, como a literatura, artes plásticas e música. Por fim, seus
ensaios em prosa demonstram uma escrita fluida e delirante, comunicativa e desconcertante,
revelando tanta ousadia na escrita em prosa quanto sua já conhecida potência nos poemas.
112
Publicado originalmente em Linguagens Revista de Letras, Artes e Comunicação, Blumenau, vol. 9,
n. 1, p. 12-31, jan./abr. 2015.
54
É um poema importante por diversos motivos. Primeiramente por ser das raras criações do
poeta publicadas neste período. Também por trazer experimentações formais na linguagem
poética que seriam tônicas de produções posteriores, especialmente em seu livro Quizumba
(1983). O tom fortemente b
pelo poeta. E, por fim, traz diálogos pioneiros com a poética de Michael McClure, com o qual
Piva se correspondia.
Eis o convite: enveredar pelas colaborações de Roberto Piva na revista Artes: durante os
anos de 1970 a 1973, com especial acento à proeminência do poeta na nascente cena da música
pop paulistana.
O Ligasom
113
,
escrito apaixonadamente por um en
Plataforma 7 e o
a mesma metáfora da alucinação poética que Roberto Piva utiliza no Póstfácio de Piazzas (1964)
como centro de seu fazer poético. Exalta-se a percepção delirante da realidade como a fenda
por onde jorram novas cores e experiências místicas; o delírio que torna sagrada a desordem do
espírito.
O sarcasmo do poeta está muito bem afiado, como na passagem em que faz piada
-não-dá-pé-
no-
Ao contrário desses moralistas, Piva via naquela atmosfera alucinada e seus jogos de
Mas em se tratando de música, Piva põe na roda ninguém menos que John Cage, na
113
PIVA, Roberto. Ligasom. Revista Artes:, São Paulo, Ano V, n. 24, , p. 8, 1970.
114
PESSOA, Fernando (Álvaro de Campos). Ultimatum. Portugal Futurista, n. 1, Lisboa, 1917 (edição fac-
símile, Lisboa, Editora Contexto, 1981).
55
-se
logo que os diálogos intertextuais, as imagens, as tiradas e o ritmo são da verve poética de
Roberto Piva.
115
É ainda sob o signo da loucura que Roberto Piva .
Além de crítico e entusiasta, o poeta ataca de entrevistador. Neste mesmo número 25, do início
de 1971, o poeta publica um ensaio sobre a morte de Jimi Hendrix e entrevista Claudio Willer. É
interessante notar a sintonia das matérias de Roberto Piva tanto quanto a diversidade de
assuntos que versa. Na entrevista a Willer, por exemplo, se discute as interfaces da poética de
Lautreamont e Rimbaud exatamente no tema da loucura, tema que surge no texto Ligasom e se
falava Blake. Tôdas essas pessoas rígidas estão sendo muito mal-amadas. Elas
deveriam ouvir um pouco mais de música, sentir a beleza & o prazer carnal
com uma nova sensibilidade & decorar o verso de André Breton: O QUE EU
CONHEÇO DE MAIS BELO É A VERTIGEM. São Paulo não pode parar. Os
Gracias, Señor (1972), uma criação coletiva do Teatro Oficina como, por exemplo, em seu
poema A Política Poética116
no instante denominado Aula de Esquizofrenia, apresentam-se repolhos como cérebros
submetidos à lobotomia prática médica comum até meados do século para o tratamento de
115
PIVA, Roberto. O embalo é o sinal. Revista Artes:, São Paulo, Ano VI, n. 25, p. 8, 1971.
116
PIVA, Roberto. A política poética. Singular & Plural, São Paulo, n. 4, março, p. 76, 1979.
56
discurso médico e a intervenção violenta que tentava corrigir qualquer diferença. É certo que a
peça seria apresentada apenas em fevereiro de 1972, portanto, depois do texto de Piva
publicado. Porém, a amizade entre Piva e Zé Celso permite pressupor que ambos conversaram
sobre o assunto ou até que o poeta tenha participado dos ensaios anteriores à apresentação.
grupos de rock paulistano. Basta lembrar que neste período o poeta era estudante universitário
de sociologia e estudos sociais, o que talvez explique esse seu entusiasmo por escrever um
arautos do bom comportamento deveriam aprender. Que estado é este? No poema Infant Joy
(Alegria Infantil), de Canções de Inocência, o poeta inglês tematiza de forma muito simples a
infância: uma criança com apenas dois dias que não tem nome, mas esbanja alegria. O riso
constante da criança leva seu interlocutor a chamá-
joy, but tw
117
. É este renascimento para o estado infantil calcado na simples alegria que Roberto
Piva experimenta nesses rituais.
Além de Blake, Roberto Piva sugere aos conservadores decorarem um verso de André
Breton, do poema Il y aura
mim a rota hipnótica com uma mulher / sombriamente alegre / Além disso, a moral vai mudar
muito / o grande interdito será levantado / uma libélula correrá para me ouvir em 1950 / nesta
118
.
Sabe-se lá da libélula de 1950, mas certamente Piva o ouviu naquele ano de 1971. Breton
sombriamente alegre. Esta experiência amorosa vem associada à suspensão do grande interdito,
aquele referente ao sexo. O poeta coloca no porvir (1950) o entendimento de seu verso que se
conclui com a exaltação da vertigem, talvez aquele mesmo estado decorrente do sexo despido
de interdito. A interdição da vertigem amorosa bem cabe a est
117
BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno; O livro de Thel. (José Antônio Arantes, trad.) 4ªed.
São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 46.
118
moeurs vont beaucoup changer / Le grand interdit sera levé / Une libellule on courra pour m'entendre en
1950 / A cet embranc BRETON, André. Oeuvres
complètes (Volume 3). Paris: Gallimard, 1999. p. 28.
57
mal-
alegria inocente da criança em Blake, e os giros da vertigem em Breton. Não é demais repetir:
com Blake e Breton, Roberto Piva escreve novamente com as mesmas referências que compõem
o cerne de sua poética.
Em seguida, a matéria apresenta uma entrevista feita por Roberto Piva com diversos
jovens integrantes das bandas pop. No centro da conversa está a problemática do
reconhecimento da música pop e as dificuldades enfrentadas pelos jovens para mantê-la viva.
Neste mesmo período, além de crítico e entusiasta, Roberto Piva se tornava importante
Roberto Piva conhecia a cidade inteira, desde técnicos de som a pessoas ligadas a
diretoria de museus; de garotos escondidos em garagens suburbanas a editores de revistas. Os
shows aconteciam em diversos lugares frequentados por Piva, como o Teatro Oficina, o Colégio
Equipe, a Faculdade Getúlio Vargas e mesmo a Escola de Sociologia e Política em que estudava.
Os mais famosos foram aqueles organizados no Museu de Arte de São Paulo (MASP), pois o
auditório estava lotado com mais de mil pessoas.
O poeta não era mero aglutinador de bandas, nem tinha semelhanças quaisquer com
um empresário, mas grande amigo de seus integrantes. Convivia com os jovens, trocava ideias
119
Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma
trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. p. 112.
58
Profeta do rock
120
, texto de 1971, Roberto Piva alça voos proféticos e
extremamente lúcidos sobre a importância desse movimento artístico para a juventude. Aqui
aquele alucinado organizador de shows alcança a passagem para a vidência:
e
ilimitado da nova saúde. O homem vai embarcar na exigência dionisíaca: vêr
tôdas as coisas enfeitiçadas, livres dos rótulos, mais sôltas que os símbolos,
para curtir. Tudo indica que a vida vai vencer esta parada. Uma tarde de
inverno paulista, daquelas de céu azul sem nuvem, sol & roupas de lã, basta
para religarmos à festa do mundo. Estamos em férias perpétuas, a luta pela
via é premissa de nossa respiração. Nós somos um cosmo: turbulentos,
sensuais & oráculos do furação ROBERTO PIVA.
120
PIVA, Roberto. A cidade sob o relâmpago. Revista Artes:, São Paulo, Ano VI, n. 28, p. 7, 1971.
121
NIETZSCHE, Friedrich W. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. (J. Guinsburg, trad.).
São Paulo: Companhia das Letras, 1872/1992. 179 p.
59
tragédia grega a partir do embate entre Dionísio e Apolo. As orgias asiáticas dionisíacas invadiam
o solo grego com o cortejo embriagado, urrando em festa, dançando extasiado. Ali eram
suspensas as regras sociais, as divisões em classes e todos curtiam a mesma volúpia, cantando,
dançando e bebendo com toda licença sexual. Em Dionísio, o homem celebrava sua unidade
com a natureza a partir do despedaçamento de sua individualidade. O indivíduo como limite e
medida, com toda sua civilidade e moral, evadia de si em devires animais e vegetais. Irrompe o
selvagem onde antes havia o civilizado. O homem dissolvido no mundo enfeitiçado pela magia
dionisíaca.
Essa força dionisíaca invadiu a Grécia apolínea, terra da arte da beleza e da exaltação da
forma. Ali as duas divindades travaram seu combate: o selvagem e o civilizado; o divino e a
beleza; a verdade e a aparência; o ilimitado da desmedida e o limite do indivíduo. Esse combate
é o parto da tragédia grega. Ali a força instintiva de Dionísio surge com a bela roupagem artística
de Apolo. E o culto as belas formas da aparência serve agora como símbolo da verdade
dionisíaca, da natureza como devir encantado. Para Nietzsche, é o espírito da música que torna
o espectador grego capaz de ver se abrir o reino do milagre dionisíaco. Nas palavras do filósofo:
O poeta celebra a música pop como a força que lança o homem de volta a essas
correntes cósmicas, ao mundo encantado de Dionísio. Lançar-se ao êxtase da música, ao livre
jogo do amor. Sentir corporalmente toda experiência do mundo, sem a intromissão da razão
que rotula, classifica e bloqueia a vivência espontânea. É uma arte irradiada na vida, como um
modo de ser, muito distinta da neutralidade da arte burguesa posta como distração e
nos trancafiam em estreitas cavernas. O verso lembra a famosa passagem de Blake: ao abrirmos
as portas da percepção veremos que tudo é infinito123. Essas portas que dão nome à banda The
122
NIETZSCHE, Friedrich W. A visão dionisíaca de mundo. Em: NIETZSCHE, Friedrich W. A visão dionisíaca
de mundo e outros textos de juventude. (Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Maria Cristina dos Santos
de Souza, trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1870/2005. p. 31.
123
BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno; O livro de Thel. (José Antônio Arantes, trad.) 4ªed.
São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 46.
60
Doors, mencionada por Roberto Piva adiante. Esta percepção do infinito aberta pelo
Piva carrega a tinta contra os caretas, os cerebrais, os moralistas. Nas entrelinhas, Piva
deixa claro a relação da música pop com o reaparecimento do espírito dionisíaco como grande
mudança histórica, atualizando a proposta de Nietzsche.
A proeminência de Roberto Piva como agitador cultural lhe rendeu a famosa entrevista
à revista Rolling Stone, concedida a ninguém menos que Ezequiel Neves125. Nela Roberto Piva é
apresentado como pessoa explosiva e de grande vibração na aglutinação da juventude. Sua
mencionando ainda sua trajetória poética com a publicação de Paranóia e Piazzas. A entrevista
transcorre sobre os shows organizados por Piva desde o final do ano de 1970 (como era feita
sua divulgação, em que locais ocorriam e como eram escolhidas as bandas).
Novamente o poeta deixa claro o profundo relacionamento que tinha com os jovens
músicos das bandas. Conhece cada músico, sua trajetória e visão de mundo. É também um
momento em que o poeta traz muitos elementos sobre sua formação cultural, seja com o que
a Vico e
Cecco Angiolieri) seja com o rock dos anos 50 (especialmente Elvis Presley). Na música pop de
então, Piva salienta a figura de Jim Morrison associada à poesia de Walt Whitman, ambos com
entra sua visão de mundo
124
WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. (tradução Rodrigo Garcia Lopes). São Paulo: Iluminuras, 1855/2008.
p. 77.
125
NEVES, Ezequiel. Roberto Piva: um paulistano desvairado. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.).
Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1972/2009. pp. 18-27.
61
Como em seus ensaios na revista Artes:, Roberto Piva concebe aquele momento de
efervescência da música jovem como uma manifestação do sagrado, mas de um sagrado arcaico
em uma convivência tribal. São várias as reminiscências ao universo tribal e arcaico como
referência para falar dos jovens e seus rituais festivos na música. É essa verve do sagrado
selvagem que une a sua trajetória em poesia com aquela na música, uma vez que nos rituais
arcaicos não havia distinção entre poesia, música, dança, artes plásticas, etc. É a palavra
cantada. É assim que quando indagado sobre como começou sua relação com os conjuntos de
vida poética. A imagem do mergulho nas próprias águas, agora na maré da música pop, o traz
os versos finais da seguinte passagem da Ode Triunfal (1915), de Álvaro de Campos:
Ao trazer esta passagem na entrevista, Roberto Piva extravasa uma relação similar com
os garotos suburbanos que compunham o ambiente underground do rock. Não são poucos os
textos em que o poeta exaltaria a vida nas periferias, as ações imorais e os atos delinquentes de
jovens marginais. Novamente é no livro Coxas (1979) que surgem esses jovens em meio a orgias
ou assassinatos. Jovens que têm em Macunaíma o ancestral mítico encarnado na vida selvagem
para usar expressões de
Piva o poeta encerra a entrevista com caudalosa prosa poética, em uma primeira menção à
126
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. (edição Teresa Rita Lopes). São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. p. 83-84.
62
Aqui uma primeira menção do que viria a ser o ponto nevrálgico da poética de Piva a
partir de 1980: poesia de linha de fuga da civilização ocidental e sua história, pela experiência
arcaica do êxtase. Neste momento, contudo, o poeta profetiza um grupo de rock com estas
A série de participações de Roberto Piva na revista Artes: se finaliza com um poema. Ele
é importantíssimo não apenas por ser um dos raros registros poéticos de Piva neste período,
mas por trazer suas vivências desta época ligadas a uma entusiástica visão de mundo. Tudo isso
encorpado por experimentações na força de criação e na distribuição do verso. Ali estão suas
visões, vivências, leituras, músicas, amizades e amores. Vejamos.
Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre
estas mesas & lindos rostos pagãos me observam viver?
Estou no Chivas da Haddock Lôbo / são 3 horas da tarde / quinta-feira /
fevereiro / 1972 / tomo um Milk Shake enquanto espero um Anjo entre as
mesinhas & as árvores que cercam este pedaço de mundo batido pelo vento
paulista & o sol universal / as fôlhas arrastando atrás de si o sonho dos
duendes & eu estou com vontade de ouvir Changelling do Doors na voz de
trovão-machucado de Jim Morrison da última fase & gostaria de ver
Baudelaire aparecer por aqui / com os cabelos compridos pintados de verde
& sua tartaruguinha prêsa numa coleira de cachorro / recitando les jornaux
127
Neves, Ezequiel. Roberto Piva: um paulistano desvairado, op. cit., p. 27.
63
Isto me faz pensar que existem muitos deuses & que a verdade nunca pendeu
do braço do Absoluto & estamos vivendo ou morrendo nesta bola colorida
chamada terra. Quem já ouviu Live de Johnny Winter num dia de muita
alegria? Quantos amigos você fêz hoje? O que você sonhou esta noite? Você
já viu o pôr-do-sol em Eldorado ou na Riviera paulista? Você está amando? As
flores pensam / os músculos são invadidos pelo músculo elétrico / eu me sinto
muito feliz / meu coração zumbe / eu percebo as estrêlas lilases na tarde
vermelha / minha mente está sendo povoada pelos meus amores / a música
desce até meu estômago / até a última gôta de alegria / meus pulmões são
jovens & perfeitos / um deus acaba de nascer numa fôlha de plátano trazida
pelo vento / os telefones do mundo começam transmitir mensagens eróticas
/ as janelas explodem em sinfonia o mundo é um maravilhoso lugar para se
nascer / o espaço é esplêndido / eu vejo / eu acredito como Whitman no
corpo & nos seus apetites / eu sinto a vida nos intestinos / eu tenho muitas
verdades dentro do meu coração de carne / há um girassol abandonado nos
teus olhos, Paulo? Que correnteza nos levará à deriva hoje? Sandwiches /
ostras / latas de cerveja / enxurrada maravilhosa saída da guitarra de Johnny
Winter numa tarde de sol de fevereiro em São Paulo! Pequenos monges
hippies de olhos azuis como laranjas transam agora na Haddock Lôbo
esperando cair a noite com seu vestido de mistério. A locomotiva do
escorpião vai levando meu amigo Ivan para que cômetas? Onde estará você
sonhando agora / enquanto as nuvens lançam sombras loucas sôbre estas
mesas & lindos rostos pagãos me observam viver? Um sol hippy azula minha
cabeça sou sacudido pela visão da Eternidade. Estranhas galáxias brilham nos
olhos do garôto da mesa em frente & ele quer falar de uma praia cheia de
mistério onde ursos & pinguins sentariam ao redor do fôgo perto de sua
barraca azul & fariam juntos uma oração à alma do mundo / perdidos / longe
/ numa ilha de fumaça coroada pelo arco-íris! O centro da carne & três mil
vivas à Mick Jagger que tem jôgo de cintura & três mil vivas à Roberto Bicelli
que descolou isso & três mil vivas ao meu amigo Sérgio Mamberti que é um
gênio & tem uma alma linda nos olhos & três mil vivas aos meus novos amigos
Pablo, Berin, Paulo, Paulinho, Margareth, Marcia, Cecília, Victor, Leli, Vova,
Antônio que acreditam nas cores nos vulcões na natureza tremendo de
felicidade. Os deuses começam ficar alucinados às seis horas da tarde quando
o sol se dispõe a guiá-los nos sonhos & criar na nossa imaginação a loucura
da lembrança a saudade da pirataria dos mares de antigamente onde
Fernando Pessoa foi buscar a sua Odisséia & soprou sôbre nossas cabeças o
furacão de sua Ode Marítima. A POESIA É UM PRINCÍPIO MUSCULAR (Michael
McClure)128.
Roberto Piva inicia o poema num tom de diário, expondo o local e a data em que
escreve. É com os pés cravados em sua realidade que o poeta é tomado pela enxurrada de
associações livres. Misturam-se aí sensações daquele instante, imaginações sobre o que
conversavam as pessoas da mesa em frente e delírios de Baudelaire levando sua tartaruga para
passear na coleira. As associações prosseguem com a vontade de ouvir uma música, a lembrança
de um poema intercalada com uma reflexão mística. Os amigos chegam e começam a beber e
conversar. O poema extravasa as novas amizades numa transbordante alegria associada a um
comentário do amigo Bicelli sobre o jeito de Mick Jagger dançar.
128
PIVA, Roberto. Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas
& lindos rostos pagãos me observam viver?. Revista Artes:, São Paulo, Ano VII, n. 35, p. 3, 1972.
64
& o mundo seria uma eterna festa num ciclo cósmico infinito & o ser humano seria o Anjo
Universal c -se: fusão do sonho e da realidade, das
efusões imaginárias mergulhadas no princípio do prazer com a percepção sensorial da realidade.
É uma dinâmica parecida com aquela compreensão de Piva sobre a criatividade de Wesley Duke
Lee. A percepção da realidade indissociável do fluxo imaginário como ocorre com todos nós,
com mais ou menos intensidade. Piva deixa claros exemplos dessa percepção delirante da
realidade: o vento sopra balançando as folhas numa sensação associada ao delírio, pois arrasta
delírio vontade de ouvir uma música.
Ou a imagem dos dois garotos conversando na mesa em frente, percepção à qual o poeta
m disco voador / tripulado por estranhas aranhas
Essa forma de criação pelo fluxo veloz da atividade consciente assaltada pelo imaginário
exige versos poéticos que escorrem no papel sem interrupção, apenas separados por barras ( /
). A versificação ganha, assim, o formato do texto corrido da prosa, sem perder separação em
versos. É uma força de composição que Piva iria experimentar na década seguinte, em Quizumba
(1983). Ali também a fluência de sensações, lembranças, músicas, amizades e leituras, é
sobreposta em associações das mais inusitadas.
pública moderna, como aqueles dos quadros parisienses. São diários íntimos em que o poeta
discorre livremente sobre os mais variados assuntos, incluindo o modo de ser do dândi mesclado
a reflexões filosófico-teológicas, em meio a desabafos contra a política ou a religião; aí juntam-
se híbridos de crítica literária com memórias da infância, ou passagens biográficas sobre suas
obras intercaladas por notas para não se esquecer de algo. É um diário pessoal em que se diz
tudo sem censura. Há o elogio à loucura, à volúpia e ao amor natural pelo crime (amour naturel
du crime) temas frequentes na poesia de Piva.
129
BAUDELAIRE, Charles. Journaux intimes: fusées, mon coeur mis à nu, carnet. Paris: Librairie José Corti,
1949. p. 18.
65
130.Mais
adiante, Baudelaire aponta que o Belo acompanha a Alegria apenas como ornamento mais
panheiro ilustre, ao ponto de não conceber
nenhum tipo de Beleza onde não h 131 . Eis a definição do belo em Baudelaire. A
beleza melancólica e desgraçada do poeta decadente parece contraposta na forma engraçada
com que surge no poema: com cabelos verdes levando uma tartaruga para passear. Exceto a
semelhança na forma de criação, não há traços evidentes desse teor de beleza no poema. Ao
contrário, Roberto Piva exala grande otimismo e alegria muito longe da melancolia do dândi.
É um poema de extração estadunidense a começar pelo milk-shake.
temática do poeta mesclando-se nos outros, nas coisas, no mundo inclusive no leitor. E imerso
nesse fluxo do universo, o poeta muda e faz tudo ganhar essa metamorfose: não apenas ele
torna-se nós que o lemos, mas nesse movimento nos tornamos outros. É a temática típica de
Walt Whitman.
É sobretudo a grande alegria de Whitman que o poema exala muito longe da bela
melancolia do dândi. É dos poemas mais afirmativos de Piva, mais otimistas. Nada de crítica ou
de imagens destrutivas. É o poema mais a la Whitman de Piva. O bardo americano ama o mundo
como fluxo perpétuo do diverso, com todos problemas e alegrias, com todo bem e todo mal,
uma vez que não há nada para se julgar ou corrigir, mas vivenciar todas essas sensações com
felicidade e prazer. Com seu tom de oralidade, Whitman tem como característica dirigir
perguntas aos leitores, estabelecer um franco diálogo ou incitá-los a sentir o prazer com as
relações:
meu coração zumbe [...] meus pulmões são jovens e perfeitos [...] o mundo é um maravilhoso
u da mente do
poeta rachada de encontro a uma calota, com sua alma desconjuntada (imagens fortemente
destrutivas que se acumulam em Paranóia
A sequência do poema menciona explicitamente Whitman com sua vivência do corpo e seus
130
Ibidem, p. 21.
131
Ibidem, p. 22.
132
The Doors. L.A. Woman. Elektra Records, 1971. 1 disco.
133
WHITMAN, Walt. Folhas de Relva, op. cit., p. 153.
66
de vamos, Walt Whitman? [...] Que caminhos aponta tua barba esta
Um Supermercado da Califórnia134 já presente na Ode a Fernando Pessoa de
símile
Até T.S. Eliot aquele mesmo rechaçado nos Manifestos de Roberto Piva de 1962 vem
compor o elenco estadunidense com seu místico Quatro Quartetos. Ao início do poema
transcrito por Roberto Piva segue-se a captura do rio selvagem com a construção de uma ponte,
139
. No entanto, em
épocas de cheia, a vazante do deus indomável transborda com fúria e rememora sua força. Essa
fulgurante do deus-
140
dentro de nós, o mar está a toda .
Certamente este deus indômito está presente também naquela mesa de bar na rua
Haddock Lobo, de onde Roberto Piva escreve. Certamente o rio flui em suas associações e na
maré vazante de seus versos. Em suas águas, Roberto Piva experimenta a proliferação de deuses
134
GINSBERG, Allen. Uivo e outros poemas. Em: GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas.
(Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1956/2005. pp. 19-65 (Coleção LP&M Pocket, vol. 188). p. 49.
135
PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas volume I
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 64.
136
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos, op. cit., p. 149.
137
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 20.
138
PIVA, Roberto. Paranóia, op. cit., p. 64.
139
ELIOT, T.S. Quatro quartetos p. 57.
140
Ibidem, p. 57.
67
num mundo que vibra forças encantadas. São estes rios indômitos que trespassam as ruas da
cidade, como aquela em que o poeta vê o nascimento de deuses pagãos nos rostos dos garotos.
Por um lado, o poema pulsa aquela mesma Grande Vida cavalgada em sensações, do
início de sua produção poética. Por outro, incorpora as forças dessa juventude roqueira com o
qual flertou durante este período. Mas agora, além de Whitman-Campos-Ginsberg, Roberto Piva
lança mão de Michael McClure, este outro grande poeta do rock por sua influência no The Doors
ou por composições como Mercedes Benz, consagrada na voz de Janis Joplin.
poesia considerada um organismo vivo e pulsante capaz de proliferar as sensações que o próprio
poeta nela inscreveu com seu punho. São as bases da poesia na biologia, pois poeta, poema e
leitor são tomados por organismos em crescimento natural e, inclusive, em combate comum
ambiente que entrave este processo. Daí sua feição política anárquica, a partir da rejeição de
qualquer norma social ou
EZA,
Ao trazer essa verve corporal do verso de McClure, Roberto Piva encerra o poema como
um convite para se reverberar na carne sua potência. Mas também revela a relação do poeta
paulistano com o estadunidense, pois em meados desta década Roberto Piva recebe,
Poesia é um princípio muscular. No entanto, como o poema de Piva data de fevereiro de 1972,
o poeta tinha acesso a materiais ainda antes de sua grande repercussão pública nos EUA. A aura
do rock colocara Roberto Piva novamente na proa das produções musicais e literárias mundiais,
continuando sua característica cosmopolita e pioneira.
Assim, o poema é emblemático das vivências de Roberto Piva deste momento. No corte
biográfico fundamental em sua poesia, ressalta as convivências do poeta, os locais que
frequentava, suas amizades e a exaltação da vida num otimismo contagiante. No plano de sua
formação cultural, revela suas influências literárias e musicais, com acento a sua antena que
capta todas as novidades. Na experimentação poética, o poema traz o disparo de versos velozes
separados por traços que marquem seu ritmo sem perder seu pique experiência que seria
repetida em Quizumba (1983). No que diz respeito ao processo criativo, Roberto Piva vivencia a
percepção delirante da realidade com os assaltos do imaginário e suas associações livres, de
inspiração surrealista. Também a fusão entre arte e vida, ou criação a partir da experiência
141
MCCLURE, Michael. Poetry is a muscular principle and a revolution for the body-spirit and intellect
and ear. 1965. Disponível em: http://library.brown.edu/find/Record/dc1304011886265627. Acesso em:
4 set. 2013.
68
vivida, coloca o poema em sintonia com surrealistas e, inclusive, sua retomada visceral pela
geração beat. Por fim, o poema é emblemático das vivências de Roberto Piva no cenário do rock
paulistano e de sua proeminência como agitador cultural, crítico de artes, poeta e profeta.
71
Publicado poucos meses após o golpe militar de 1964, Piazzas traz a audaciosa denúncia
de torturas sofridas por jovens, além de associar o Estado brasileiro e suas instituições policiais
ao fascismo e ao nazismo. Após Piazzas, Roberto Piva fica mais de uma década sem lançar livros,
acompanhando a interrupção das atividades de seu editor e amigo, Massao Ohno, visado pela
ditadura.
Combina bem com a vida poética de Roberto Piva a afirmação de Alcir Pécora sobre sua
do contexto histórico em que sua obra foi produzida. Após Piazzas, por exemplo, Roberto Piva
não mais publica livros em virtude da censura, e tão logo Massao Ohno reinicia sua atividade
editorial, o poeta lança seu Abra os olhos e diga ah!. Sua obra Ciclones, publicada em 1997, tinha
já uma versão pronta em 1991, que não veio a público por falta de interesse editorial. Sergio
Cohn, que acompanhou de perto a preparação de Ciclones, observa que o poeta tinha amplo
material, acumulado após anos de escrita, decidindo por publicar em um único livro,
143
da dificuldade que poderia haver em ter outro convite p .
Poderíamos citar, ainda, o inédito Corações Hotdog (que reúne poemas das décadas de
1970 e 1980) e foi recusado pela editora Brasiliense após convite prévio, por preconceito em
relação a seu conteúdo licencioso. Ou ainda, Animais de Néon, obra que Roberto Piva dá como
pronta em sua publicação na revista argentina Cerdos & Peces (1989), mas que permanece
inédita. Assim, a produção contínua do poeta nem sempre encontrou meios de diálogo com seu
público, seja por censura da direita militar ou por moralismo da esquerda.
Porém, eis mais uma transgressão disparada pela poesia de Roberto Piva: se
destaca Alcir Pécora, a poesia de Roberto Piva tem muitos torcedores e poucos críticos, pode
tornar críticos seus torcedores do mesmo modo como arranca surtos dos críticos.
1. Potência erótica
142
PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005. p. 09.
143
COHN, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. p. 59.
72
a parede do mundo
Abra os olhos e diga Ah! canta o amor por garotos. Amor sob o signo do mal. Os poemas
amealham imagens da potência do amor em vibrar na verve da vida. A erótica, nesse primeiro
lampejo, encarna a intensidade do corpo.
As imagens do que parece ser a refeição de uma manhã após o amor, com espinafre e
-esportivas
apresentam um imaginário olímpico, com os membros musculosos,
apimentados com a insinuante flor nos dentes. É nessa atmosfera libertina que a laranja do
poeta se abre, como porta, e os amantes rasgam a parede do mundo. Esse teor agressivo e
subversivo do amor coloca os amantes na ebulição da vida.
2. Amor Maldito
Mas o amor é maldito também por ser amoral: por ser atravessado por outras forças
distintas dos bons costumes. Mal dito pela moral conservadora. É sob o signo do mal que o amor
permite viver numa veia instintiva e corporal, no avesso da humanidade e da moral.
se apresentaria dessa forma anos mais tarde: Eu Roberto Piva Animal de Rapina
nietzschiana se pode dizer que a expressão simboliza o homem anterior ao estágio comunitário
144
PIVA, Roberto. Abra os olhos e diga Ah!. Em: PIVA, Roberto. Mala na mão & asas pretas obras
reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1976/2006. p. 27.
73
Assim, identificado a si e seus amantes como animais de rapina, Roberto Piva exalta a
vida visceral dos instintos, além de se colocar como antípoda da moral cristã dominante.
Em Abra os olhos e diga Ah!, Roberto Piva lança mão de figura não menos cruel:
Lautreamont. A epígrafe da obra remete ao famoso trecho de Cantos de Maldoror dedicado à
pederastia.
Eu sempre experimentei uma atração infame pela juventude pálida dos
colégios, e pelas crianças estioladas das fábricas! Minhas palavras não são
reminiscências de um sonho, e eu teria muitas lembranças a desfiar, se me
houvesse sido imposta a obrigação de fazer passar diante de vossos olhos os
acontecimentos que poderiam confirmar, como seu testemunho, a
veracidade da minha dolorosa afirmação. A justiça humana ainda não me
pegou em flagrante delito, apesar de incontestável habilidade de seus
agentes. Até mesmo assassinei (não faz muito tempo!) um pederasta que não
se prestava suficientemente a minha paixão; joguei seu cadáver em um poço
abandonado, e não há provas decisivas contra mim. Por que estremeceis de
medo adolescentes que me ledes? Acreditais que eu queira fazer o mesmo
convosco? Vós vos mostrais soberanamente injusto... Tendes razão:
desconfiais de mim, principalmente se fordes belo 146.
da empreitada de Maldoror pela destruição da família, Roberto Piva incorpora essa força em sua
3. Poema na cama
O amor pederástico surge como mote do vínculo do amor e do mal, ponto seminal do
modo de vida do poeta. Da mesma forma, o ato sexual é similar ao próprio ato de criação
145
NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma polêmica. (Paulo César de Souza, trad.). São
Paulo: Companhia das Letras, 1887/2009. p. 69.
146
LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror. 2. ed. (Claudio Willer, trad.). São Paulo:
Iluminuras, 2008. p. 232-233.
74
O ato da escrita enleva o poeta aos influxos das sensações e fluxos do inconsciente,
tanto quanto o ato sexual. Em ambos, está-se entregue a forças instintivas e associações
delirantes, a despeito da consciência e da moral vigente; em ambos, as dicotomias entre eu-
outro, passado-presente-futuro, ser-expressão se desvão, numa espécie de caos originário que
guarda o sentido profundo da orgia. Se em Piazzas o poeta dialoga com passagens de Breton
(seja àquela da poesia como orgia, ou a afirmação de que as palavras fazem amor) e formula o
Abra os Olhos e Diga Ah! a coisa aparece
crua, com o poeta literalmente escrevendo após o amor, com seu amante dormindo ao lado:
Contudo, mais do que semelhança, Roberto Piva traz nessa obra um contraponto em
relação às ideias do arauto do surrealismo oficial. Vejamos.
Numa primeira olhada, a intensidade do amor maldito parece similar aos poemas
anteriores. A partir do amor a vida ganha vibração e o poeta nasce para a madrugada (da mesma
O amor que lança ao devir, também devém. É maldito não somente pelas delícias
selvagens que experimenta, mas, não sendo amparado por qualquer instituição social (como o
matrimônio), é também mais volátil e fugaz. É o amor maldito como êxtase: maravilhoso e
terrível. Daí a tristeza e as lágrimas acompanharem os tambores do amor.
147
PIVA, Roberto. Abra os olhos e diga Ah!, op. cit., p. 35.
75
for Joanna
but stuf
and smile
AND SMILE
AND SMILE
in song that is a pouring Nile
of bubbling slumberous grins
and elfin mumbles
on the pillow of delight;
Uma característica dessa obra de McClure é a presença de versos iniciais em caixa alta,
mesmo procedimento utilizado para ressaltar algumas passagens no interior do poema. Muitos
dos poemas de Abra os olhos e diga Ah! fazem uso desse mesmo expediente, como na passagem
acima, em que a caixa alta ressalta versos apropriados de André Breton, de forma similar aos
versos de McClure ao mencionar Robert Duncan. O ritmo de alguns versos repetidos também
assemelha ambos os
148
McCLURE, Michael. Jaguar skies. New York: New Directions Books, 1975. pp. 49. Em tradução literal:
SORRISO / na canção que é uma enchente do Nilo / borbulhando risos sonolentos / e murmúrios de elfos
/ no travesseiro do prazer; / Eu / quebraria a partir da inconsciência / com o riso, / encarando minha
mortalidade, / e / então cairia de novo / na soneca dentro da fatalidade / com gente rato-orelhas num
sonho / dançando ao redor de uma torre de ouro / enquanto meu ombro / toca sua mão.
76
Sont incompatibles
Avec la lecture du journal à haute voix
O verso inicial do poema foi mencionado por Roberto Piva na Introdução a Anotações
para um Apocalipse (1964), do amigo Claudio Willer. Naquele contexto, o poeta salienta a
identificação do ato do amor com a poesia, em detrimento da poesia cerebral e idealizada, típica
da época.
Em sua Rota, André Breton toma o amor, como a poesia, em um sentido mais geral. O
possivelmente alusão à sua caminhada na mencionada estrada. Seja porque o amor lança à
com a
realidade corriqueira (leitura de jornal) ou com os acampamentos de batalha, é, como a poesia,
um refúgio à miséria do mundo. Ou seja, por alçar a prazeres, delírios e viagens cósmicas, torna
o poeta um fugitivo do mundo, amparado em seu abraço.
149
BRETON, André. Sur la route de San Romano. Em: ______. Oeuvres Complètes, vol. III. Paris: Gallimard,
1948/1988. pp. 421. Em tradução literal: Na Rota de San Romano: A poesia se faz na cama como o amor
/ Seus lençóis desarrumados são a aurora das coisas / A poesia se faz nos bosques [...] O ato do amor e o
ato da poesia / São incompatíveis / Com a leitura do jornal em voz alta [...] O quarto aos delírios / Não
senhores, não é a oitava Carta / Nem os vapores do quarto de campanha num domingo a tarde / O abraço
77
madrugada e seus prazeres. Mas é cacto de veludo: prazerosa e espinhenta; feri e acaricia; traz
gozo e dor.
Roberto Piva faz questão de marcar outra diferença importante. Em sua paródia do
Caminho de San Romano, escrito durante a Segunda Guerra, é refúgio contra o mundo;
Abra os Olhos e Diga Ah!, escrito durante a ditadura militar, é campo de batalha.
KAPITALISTA150
Temos falado no amor em estado de guerra. Sensação de uma confusão pela efusão das
paixões. Este poema traz os contrastes nos versos, onde se intercala passagens amorosas com
150
PIVA, Roberto. Abra os olhos e diga Ah!, op. cit., p. 31.
78
to
nacional. É a merda gentil. O choro no bronze da tirania. O sexo em ruínas. Violência gratuita,
sem qualquer criação. É o TOTEM KAPITALISTA.
rondas noturnas,
policiamento moral cristão, policiamento via entretenimento. Vigiar e punir. A este poder
disciplinar que se espalha por toda a sociedade não há como fugir. Não há como se esquivar, se
ireto no front
fogo.
Que fazer? A aposta piviana são linhas de fuga: os porões da vida, os espaços livres da
disciplina dos corpo, as estradas e os subterrâneos urbanos. Espaços flutuantes e movediços
percorridos pelas veredas do amor. São vários os versos que trazem o amor atrelado a imagens
o corpo no amor prenuncia experimentações também fluidas. Abra os Olhos e Diga Ah! celebra
o devir.
5. Porões da vida
HEGEL MUDOU TECNÓPOLIS MUDA & MUDAMOS CADA DIA MAIS PARA O
o dragão
A busca por espaços onde verter a vida subversiva. A busca por mudanças tão urgentes
Rimbaud e a África: recusa do mundo ocidental e a busca da sabedoria primeira entre as culturas
tradicionais. Artaud entre os Tarahumaras: mesma ruptura com o modo de vida europeu que
redunda nas andanças do corpo em cataclismo, rumo aos rituais xamânicos. Macunaíma e a vida
preguiçosa na mata, entre brincadeiras, perversões sexuais e magias, sem responsabilidades ou
caráter (nacional ou moral). Piva antecipa aqui a ruptura com a civilização ocidental atrelada a
busca por rituais arcaicos. Está a bombordo da corveta caraíba, na proa do movimento
antropofágico de Oswald de Andrade.
A busca por espaços movediços coincide com a aposta em rituais arcaicos logo eles
como, aliás,
já fizera no Póstfacio de Piazzas151.
que legitimam a negação do instante em prol do distante; a negação da terra pela eternidade.
Uma das expressões dessa negação da vida presente, para Nietzsche, eram as utopias
políticas, como o comunismo. A sociedade sem luta de classes é símile da paz inerte da
eternidade. Se, desde sua primeira publicação individual (Ode a Fernando Pessoa), Piva era
grande crítico do comunismo pelo seu conservadorismo, em Abra os Olhos e Diga Ah! o poeta
simpatiza com movimentos de esquerda e com algumas personalidades revolucionárias. O
poema traz Rosa Luxemburgo ao lado de Artaud e Rimbaud, que o poeta tinha como suas
principais influências. Se a aposta do poeta eram os porões da vida, deles não se descarta a
possibilidade revolucionária da esquerda. Em outras palavras: Roberto Piva, o consagrado
anticomunista das últimas décadas, está, nesse momento, enamorado das teorias
revolucionárias de extração marxista.
151
stava certo & lúcido ao afirmar que o homem moderno é
Piazzas, p. 55.
152
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra, op. cit, p. 36.
80
A ênfase na política do corpo é dos temas mais excitantes em Abra os Olhos e diga Ah!,
novidade no interior da poesia de Roberto Piva. Basta lembrar que a primeira formulação mais
consistente de sua poética,
apropriação bem particular da passagem de Breton que pudemos analisar. No mesmo
Postfácio de Piazzas, fica claro que tal poética deriva de u
153
está relacionado à livre expressão do corpo e à .
Escrito no mesmo mês de agosto de 1964 e em extrema sintonia com o texto de Piva, o
manifesto As fronteiras e dimensões do grito, de Claudio Willer154, cita as fontes dos dois poetas,
em suas ênfases no c
Life Against Death obra que Piva conhecera em 1962, a partir do amigo Wesley Duke Lee
destaca o grande desafio contemporâneo na experiência corporal, especialmente na descoberta
de suas possibilidades sexuais. Trata-se de um embate contra toda a negação da vida e da morte,
como expressão de um além da vida que recusa seu devir passagem crítica ao cristianismo em
que Brown deixa nítida a inspiração em Nietzsche.
155
ressu . Tal
como Norman Brown e também Piva e Willer Paz destaca o movimento romântico como
156
. Essa poética de
ressurreição do corpo em chamas passa pela rebelião romântica, o barroco espanhol e chega à
poesia contemporânea, em poetas como Cernuda:
Cernuda foi uma das figuras espanholas que me interessou mais, justamente
porque me pareceu, desde o princípio, um escritor perigoso, um escritor no
qual os valores poéticos não se podiam dissociar da subversão. Para mim a
subversão poética é subversão corporal. Em Cernuda, o corpo, finalmente, se
põe a falar em língua espanhola e se põe a falar e diz palavras escandalosas 157.
153
PIVA, Roberto. Piazzas, op. cit, p. 55.
154
WILLER, Claudio. As fronteiras e dimensões do grito. Em: ______. Dias Circulares. São Paulo: Massao
Ohno, 1964/1976
155
PAZ, Octavio; RIOS, Julián. Solo a dos vozes. (Olga Savary, trad.). São Paulo: Roswitha Kempf,
1972/1987. p. 20.
156
Ibidem, p. 24.
157
Ibidem, p. 32.
81
corpo, porém com outros contornos. Há também aqui a transfiguração do corpo em chamas
como observa Paz em relação ao barroco espanhol.
Tal como em Coxas, nesta obra Roberto Piva denuncia a centralidade do corpo na
política contemporânea conforme também salienta Otávio Paz. O corpo em chamas é aquele
que arde no desejo dos amantes, numa afirmação da vida em sua potência erótica, mas também
o corpo cravejado de balas pela repressão violenta do Estado militar.
Como Sade, Bataille e Burroughs, Roberto Piva afirma o potencial erótico sem
julgamento moral e bons mocismos, numa genuína expressão do corpo como campo de batalha.
s
científicas e soluções mercadológicas, a vida poética de Roberto Piva pode bem ser inspiração,
com a intensidade de um corpo em devir, um corpo como campo de batalha, atento aos agentes
disciplinadores, mas com força para pulsar sua veia subversiva.
158
PIVA, Roberto. Piazzas, op. cit, p. 55.
159
Idem.
83
R - 160
apresentava-
161
presos políticos do Brasil. Contra a tortura, . Eram os recitais
de 1977, organizados por Claudio Willer e Ruth Escobar em homenagem a poetas ligados ao
comunismo, como Pablo Neruda, ou vítimas de Estados Totalitários, como Federico García
Lorca. Tais atividades políticas foram pioneiras nas manifestações para a redemocratização do
país.
Roberto Piva participava ativamente dos recitais, das passeatas e de alguns meios da
esquerda, como a Libelu (Liberdade e Luta) grupo trotskista atuante no movimento estudantil
e ligado à Organização Socialista Internacionalista. Em sua atuação no movimento gay, Roberto
de São Paulo.
Suas duras críticas ao comunismo e aos movimentos de luta por direitos sociais
acabaram lhe rendendo a pecha de reacionário ou conservador, como se houvesse se eximido
da atuação política durante o período da ditadura militar.
Um estrangeiro na legião
O ano de 1977 viu pulular as primeiras passeatas na cidade de São Paulo após o AI-5 de
1968. Em uníssono, o coro dos manifestantes entoava palavras de ordem pelo fim da ditadura.
Mas havia uma voz dissonante
conhece o operário e sabe o que ele quer! Sabe nada! Eu trepo com operário e eles não estão
162
. Era Roberto Piva, frequentador de uma sauna na periferia
da cidade ond
plantão mantinham um vínculo com o operariado por meio do teórico pertencimento a uma
160
Artigo originalmente publicado em O Guari: revista eletrônica de literatura, em janeiro de 2015.
161
PIVA, Roberto. O hino do futuro é paradisíaco. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 23,
julho/agosto, 1978, p. 36.
162
PERES JUNIOR, Marrey. Longa vida à rebeldia! Uma homenagem a Roberto Piva. Disponível em:
http://pga.com.br/atolivreportal/?p=38. Data da consulta: 20/02/2011.
84
classe social, o poeta tinha vivência bem mais corporal. Não por meio da abstração dos sujeitos
da história e sua consciência de classe, mas por penetração erótica sentida na carne. Não no
palanque, mas na cama! Não no chão de fábrica, mas na sauna! Para Roberto Piva não há
fronteira entre o erótico e o político.
lobotomizada. Foi arrancada uma parte do cérebro da população e eles estão tentando repor
esta parte do cérebro. A única forma de repô-la é através da palavra e da palavra poética, que
163
. É inusitada, pois o lugar comum era a
conclamação pelos direitos civis e políticos por meio do reestabelecimento do Estado
Democrático de Direito. Daí o estranhamento da imagem delirante da lobotomia.
Provavelmente, o poeta a retira do espetáculo Gracias, Señor (1972), uma criação coletiva do
Teatro Oficina de que gostava muito especialmente. No momento intitulado Aula de
Esquizofrenia são exibidos cérebros submetidos à lobotomia, prática cirúrgica comum no
tratamento da esquizofrenia até meados do século. Uma imagem que faz jus às intervenções
brasileiro calcado em torturas físicas. O enfretamento dessa realidade repressora não é pela via
partidária ou por meio das inst
Martin Heidegger164, em seu famoso ensaio sobre Friedrich Hölderlin, por exemplo. A palavra
poética, para o filósofo alemão, funda o real à medida que nomeia e atribui sentido ao que
existe. Essa nomeação ocorre sempre no interior de um contexto histórico que passa a fazer
sentido exatamente a partir de sua fundação poética. Assim, no limite, a palavra poética funda
a própria história do homem. Não uma história instaurada de uma vez por todas, pronta e
acabada, mas, ao contrário, uma história reinventada a cada momento em que é nomeada. A
palavra poética para Heidegger tem o poder de fundar um começo a cada momento. Roberto
Piva acredita nessa possibilidade fundadora da palavra poética e sua potência de (re)começar a
história.
Nessas passeatas uma questão fica muito clara: Roberto Piva participava das
manifestações pela redemocratização, mas como dissidência. Fazia-se presente como rebelde,
ora destruindo convicções consensuais, ora criando novas possibilidades de compreensão e
atuação. Participava não como militante de partido ou movimento, mas como poeta
instaurando o potencial transformador da poesia. Qual a produção poética de Roberto Piva
durante este período? Que novas possibilidades de vida sua palavra poética funda?
Meditações de Emergência
Os recitais políticos de Claudio Willer e Ruth Escobar deram o que falar. Sua força
mobilizadora atraiu simpatias da esquerda e logo foram classificados como subversivos pelo
Estado. Baixou a repressão. O delegado Romeu Tuma chegou a proibir a realização de uma
dessas leituras de poesia. O jornal Versus, de Marcos Faerman, interessou-se pelo fato e o
163
Assombração Urbana Roberto Piva. Produção de Valesca Dios. São Paulo: SP filmes / TV Cultura,
2004. (55 min.).
164
HEIDEGGER, Martin. A linguagem na poesia uma colocação a partir da poesia de Georg Trakl. Em: A
caminho da Linguagem. (Marcia Sá Cavalcante Schuback, trad.) 4. Ed. Petrópolis, Vozes; Bragança
Paulista, Editora Universitária São Francisco, 2008. pp. 27-70.
85
noticiou. O amor pela poesia trouxe grande afinidade entre ambos, que redundou na
contribuição de Willer como responsável por sua seção de poesia. Por seu intermédio, Roberto
Piva contribuiu regularmente com o jornal Versus durante quase todo o ano de 1978. Vejamos
seus poemas.
O MISSISSIPI NO AMAZONAS
filmado em tecnocolor
A cidade & sua estrutura de navio japonês qualquer coisa como bambú &
cheiro de sangue no ar de São Paulo antes de ir prá Moóca dar aula até o saco
virar de cansaço & gostaria de ver aquela tribo maravilhosa de adolescentes
proletários se dependurarem nos cipós do Ocidente & aterrorizarem nos
salões de banquetes como Tarzans enquanto o Burguês-Inseto recolhe as
asas & faz cocô branco de susto-Impotência & úlceras pépticas na
cristalização de química imperfeita-purgatório-fêmea & bicha de boite & até
que os atores criem vergonha & re-apresentem Gracias Señor antes do circo
pegar fogo sem o torcicolo culposo de uma certa esquerda que adora chorar
na sopa pobre sua emoção masoquista chamada realismo-socialista
(invenção dos anos de caduquice de Gorki) & por isso mesmo eu sou pela re-
volição do nosso quotidiano em profundidade sem a larva telenovela cagando
problemas de pequeno-burguês nos nossos olhos & corações AMAR É BOM
SEXO É BOM TRANSFORMAR O MUNDO É BOM nada mais saco que a lógica
irracional-formal codificadora da febre amarela chamada CRISE consumismo
de grilos de pessoas de energia que ninguém de alma bailarina aguenta tem
saco ou curte esse tipo de polícia superficial hippie que se apossou em nível
ideológico & corporal do país165.
conceitual bem típica dos marxismos. Esses adolescentes surgem numa figura ao mesmo tempo
erótica e selvagem, o Tarzan, cuja força aterrorizadora é contraposta à classe social antagônica:
, mas de um conflito social que atribui aos garotos a condição ativa e viril de
transformar o Ocidente, enquanto aos burgueses é reservado o medo de quem quer conservar
a realidade como está. É uma luta de classes, a partir de uma visão dialética da história?
165
PIVA, Roberto. O Mississipi no Amazonas. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 20,
abril/maio, p. 30, 1978.
86
contraste à atividade dos adolescentes, o burguês é associado à fêmea com sua postura passiva,
além de estar associado às amenas figuras do purgatório como diria Piva sobre esta parte da
Divina Comédia, de Dante Alighieri, parte preterida em relação ao Inferno com suas figuras
potentes e
homossexual frequentador de casas noturnas que o poeta vincula à burguesia. A imagem dos
garotos ativos e burgueses passivos é a um só tempo política e erótica. Responde ao espectro
político e à posição na cama.
Como signo da ação política revoltada, Piva coloca a criação Gracias, Señor, do Teatro
Oficina, proibida pela censura durante sua temporada paulista de 1972. A atuação provocativa
combativa e corporal. É esta forma de atuação política que o poeta vivencia, em contraposição
aminga e masoquista. A imagem é ácida e muito
bem humorada. Torcicolo como símbolo de um corpo travado, mas também com dificuldade de
olhar para os lados e ampliar os horizontes. É um corpo travado pela moral: a culpa e a piedade
de quem se compraz com a pobreza alheia. Roberto Piva talvez esteja salientando a atração
cristã pelos espoliados como impulso de negação da vida como se vê nas críticas de Nietzsche
ao comunismo como rebento do cristianismo. Uma vez mais Roberto Piva faz uma crítica política
psicanálise, como Roberto Piva, o masoquismo pode ser entendido como aquele laço entre a
energia sexual e a agressividade voltado passivamente para dentro. É um sujeito novamente
ligado à passividade que se autoflagela moralmente e tem com isso prazer.
a Revolução de 1917 por obras encomendadas pelo Estado para a formação ideológica do país
socialista. É um símbolo forte da arte manipulada por interesses partidários e estatais,
subjugada a mero instrumento de formação política. É o símbolo do poeta obrigado a escrever
o que determinava o Partido Comunista. Não se pretendia exterminar apenas os homossexuais,
mas qualquer espontaneidade criativa. É a esse comunismo obediente à moral e ao partido que
Piva rejeita. Mas o que o poeta propõe?
Não bastassem essas tensões com a esquerda e os hippies, Roberto Piva lança mão de
fundamental por dois motivos. Primeiro porque é um filósofo muito crítico ao comunismo e, por
87
isso, execrado pela esquerda. Segundo porque a crítica ao moralismo da esquerda e sua negação
do corpo acompanha as ideias deste Anticristo.
A imagem da dança é abundante e bastante aberta na obra deste filósofo e poeta. Seu
Zaratustra andava como bailarino e a dança aparece ora como o exercício do livre pensar do
filósofo ou como qualificativo de sua própria filosofia, ora como o próprio devir da vida num
fluxo vário sem qualquer finalidade. Dionísio figura também como um deus que sabe dançar,
especialmente quanto encarnado corporalmente nas almas bailarinas das bacantes em êxtase.
Pode-
nos pensamentos com força e flexibilidade; com a leveza de variar os ritmos e se enlevar com
impulsos diversos. O movimento bailarino é o extremo oposto daquela fixação moral do mundo
dotado de uma finalidade como, por exemplo, o determinismo dialético de uma revolução como
superação dos antagonismos. A alma bailarina é o avesso do torcicolo culposo, pois é a ação de
um corpo em gozo em uma orgia para além do bem e do mal. É essa possibilidade de dançar
através de várias perspectivas e paixões, típicas do politeísmo, que o poeta contrapõe à ditadura
da conduta única do Moneyteísmo:
As desgraças do Moneyteísmo
para o Eg
PIEDADE ALGUMA digo eu & amem a pessoa amada até oxidarem os planetas
& leiam Apollinaire bebendo uma cervejinha gelada num caneco gelado &
Fourier deveria andar de boca em boca em forma de beijo postal sem que
nossas minas de urânio (oh beijo de urânio!) sejam debulhadas meus olhos
desaparecem nas manhãs de inverno quando a gravitação deixa de existir
para um tênue sol se insinuar entre as páginas de Raymond Lulle
magia amorosa boa para esses tempos de hippilândia made in New York City
Que passa New York ? assim como os babosos bichos bichanas & cocotas
fortalecedores das circulações moneytárias do Sistema Capitalista Periférico
AH AH AH na dose certa na cara certa na dimensão certa de vossas
covardias166.
166
PIVA, Roberto. As desgraças do Moneyteísmo. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 21,
maio/junho, 1978. p. 31.
88
Intercala versos de amor a um garoto com o contexto da cidade de São Paulo, cidade associada
aqui
mais uma imagem da situação violenta daquele tempo.
Roberto Piva passa a criticar os liberais e sua participação no golpe militar. O fascismo
da direita é associado aos ideais integralistas de Plínio Salgado, materializados na disciplina de
obrigatória a partir de 1969. É o culto à Deus, Pátria e Família como
tripé do conservadorismo moral que pretende adestrar os jovens.
e alçá-
Roberto Piva associa esse vitalismo ao apetite sexual dos adolescentes e sua força para amar
sem qualquer piedade. Essas recomendações do poeta surgem num tom mais panfletário e
assumem uma feição hedonista, como na cerveja gelada bebida durante uma leitura do poeta
francês Guillaume Apollinaire.
A aposta de Roberto Piva em uma transformação social por meio do amor sexual torna
fundamental a presença do profeta francês Charles Fourier. O erotismo da imagem também é
importante, pois Fourier e sua obra seriam disseminados na forma de beijo uma linguagem
corporal e sexual. Qual a importância de Fourier nas ideias de Roberto Piva?
A mudança social proposta pelo pensador francês coloca em primeiro plano a questão
da Paixão168. Os sistemas político, econômico e moral das sociedades civilizadas estariam
pautados no controle repressivo das paixões, consideradas como um mal a ser extirpado. A
partir desse denominador comum, Fourier faz a crítica da captura dos prazeres sexuais na
monotonia matrimonial da família burguesa, ou na hierarquização da produção econômica.
Assim, sua utopia revolucionária coloca os prazeres sensuais como fundamentais para o
desenvolvimento da sociedade e do indivíduo, estando indissociáveis da autogestão econômica.
Ou seja, ao lado da organização da produção pela via associativa e igualitária, sua utopia sugere
a criação de corporações amorosas que salientem inclusive a esfera pública e festiva do amor
-
Roberto Piva.
atreladas não apenas à burguesia, mas aos modismos da ideologia capitalista estadunidense.
167
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Mário da Silva,
trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1883-85/2010. 381 p.
168
FOURIER, Charles. Ouevres Complètes, Tomo I, Théorie des Quatre Mouvements. Paris: Librairie
Sociétaire, 1846. 336 p.
89
mercadorias e ideias sem qualquer crítica. O poeta se ri dessa atitude conformista qualificada
dinheiro como um deus, mas também atrela o capitalismo ao monoteísmo como tentativa de
impor um único modo de vida. É uma expressão aberta que contém, a um só tempo, as críticas
de Roberto Piva ao capital e ao cristianismo.
mortikultura
êxtase-orgasmo estrelas
escorrendo da boca vermelha aberta para os cometas do sexo oh manhã das
manhãs molhadas com amêndoas verdes renascer para esta opulência eu sou
sua beleza eu sou seu rei Davi deus adolescente da luz da manhã chovendo
cravos vermelhos rumo à LIBERTAÇÃO.
P.S . Em qualquer horário da manhã tarde ou noite os passageiros sentados
nos ônibus estão dormindo esmagados pelo capitalismo selvagem que lhes
tira o sangue e pele & a energia sexual um bagaço generalizado
testemunhando este período de barbárie e sexualidade infantil sendo usada
para movimentar a engrenagem capitalista (ver Eros & Civilização H.
ara
ajudar a derrubada169.
169
PIVA, Roberto. Mortikultura. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 22, junho/julho, 1978,
p. 36.
170
PIVA, Roberto. Poema do caos externo. Versus jornal de política, cultura e idéias, n. 19, março/abril,
1978, p. 37.
90
quanto à referência psicanalítica dessas ideias. A menção a Hebert Marcuse ganha importância
exatamente por esse cruzamento da teoria psicanalítica das pulsões com as aspirações
revolucionárias de inspiração marxista. A menção a Nietzsche em sua crítica à moral cristã
compõe esse quadro analítico, bastante representativo das referências de Roberto Piva para
pensar as contradições de seu contexto histórico.
ainda se fazem sentir em todo ideal ascético da religião, da ciência, da arte e outras expressões
da vida.
entendido, resumidamente, como a instância psíquica que opera as convenções sociais e suas
repressões desde o interior do sujeito. A partir dessa inserção na cultura o sujeito passa a ser
atravessado pelas convenções na satisfação imediata de seus impulsos. Os impulsos sexuais
mais suscetíveis à repressão e impedidos de uma descarga imediata vão encontrando espécies
de objetos substitutivos, especialmente em atividades produtivas, em um processo que se
àquela de Nietzsche. Roberto Piva considera que nesta cultura do instinto de morte
(mortikultura), as possibilidades de descarga das pulsões sexuais se dão em atividades de
potência do corpo e o apetite sexual vão se atrofiando e tornam a vida sem tesão.
homossexualidade. Tal como Narciso, êle rejeita o Eros normal, não por um ideal ascético, mas
171
NIETZSCHE, Friedrich W. O Anticristo: maldição ao cristianismo. Em: NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo:
maldição ao cristianismo / Ditirambos de Dionísio. (Paulo César de Souza, trad.) São Paulo: Companhia
das Letras, 1888/2007. pp. 07-81.
91
172.
Ou seja, na homossexualidade simbolizada por Orfeu, Marcuse vê
uma ruptura à domesticação do sexo na instituição da família e sua restrição à procriação. Este
sexo produtivo é símbolo da captura da atividade sexual pelo princípio de utilidade social,
deixando o prazer restrito ao lazer (como espécie de parceiro da canalização das energias
sexuais para o trabalho). Marcuse considera a exploração dos prazeres do corpo para além da
polimórfica pré-
essa transformação era a própria superação do trabalho alienado a partir de uma perspectiva
sexual e erótica. É essa uma possibilidade de articulação das ideias de Eros e a Civilização com o
É nesse tom político, artístico e mítico que o poeta aposta em todas as formas de amor,
-
em todas as suas possibilidades que se vale lutar e morrer. É por essa vivência amorosa que se
Em suma, Roberto Piva parece desenvolver à sua maneira diversas das propostas de
Charles Fourier e Hebert Marcuse mas também Wilhelm Reich e Norman Brown. É nesse
desenvolvimento da psicanálise em diálogo com a economia-política, da questão do trabalho
atrelado à vida sexual, que Piva adentra em diversos de seus textos do período. É por ai que
172
MARCUSE, Hebert. Eros e a civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 5. ed.
(Álvaro Cabral, trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 1955/1972. p. 155.
173
Ibidem, p. p. 177.
174
Frente de Liberácion Homosexual de Castilla (FLHOC). Madrid, Orientaciones revista de
homossexualidade, pp. 141-146. Disponível em: http://issuu.com/triangulo/docs/orientaciones2. Data
da Consulta: 10/11/2012.
92
continuará a caminhar, mesmo quando romper com uma orientação próxima dos socialismos
175.
Pois bem. Aqui chegados talvez seja sugestiva uma pequena digressão. Surpreende
quanto as ideias de Roberto Piva crítico ao comunismo são similares às suas ideias de quando
era mais abertamente anticomunista. Vejamos.
A produção poética de Roberto Piva no início dos anos 1960 movia-se por um ímpeto
imoral e erótico que o distanciavam das várias expressões do moralismo provinciano da cidade:
176. Essa mesma associação do comunismo com a moral cristã era tema
das conversas de Roberto Piva com o filósofo Vicente Ferreira da Silva, em 1962 ambos muito
influenciados pelas críticas de Nietzsche à compaixão com os pobres e o messianismo comunista
Ou seja, Roberto Piva mantém uma coerência em sua crítica a algumas expressões da
esquerda. O fato de publicar em órgão revolucionário não o priva de retomar essas ideias. O
poeta participa das discussões da esquerda, mas sempre como voz dissidente, sempre com a
rebeldia que lhe é peculiar. Não é tanto um poeta comunista, mas um poeta em estado de guerra
com o comunismo, sustentando sempre uma tensão revoltada.
Mas não é só. Se dermos uma olhada no registro maior de sua poética no início dos anos
1960, o postfácio de Piazzas (1964), veremos o quanto sua visão de mundo permanece com
igual coerência. Este texto audacioso vincula o estado militarista brasileiro ao fascismo e
-de-
militar! Nele, Roberto Piva faz uma análise da realidade baseada exatamente em Nietzsche e
Freud, com enfoque no corpo e na sexualid
do Pai (que se estende a toda ordem autoritária) e a crítica de Nietzsche sobre o cristianismo
como desprezador do
auto- 178. É a mesma base dos textos que acabamos de ver,
179.
Pode-se ainda dizer
que a crítica ao realismo-socialista de Máximo Gorki lembra a menção do postfácio a Octavio
175
PIVA, Roberto. O erotismo dará o golpe de estado. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção
Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1987/2009. pp. 82-87.
176
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 24.
177
PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas volume I
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 41.
178
PIVA, Roberto. Piazzas. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas volume I
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1964/2005. p. 128.
179
Ibidem, p. 129.
93
atitude fascista disseminada em diversas instituições sociais. É um título bastante irônico tendo
em vista a trajetória posterior de Roberto Piva: anticomunista e sempre de barriga vazia.
No dia 8 de fevereiro de 1979, na Universidade de São Paulo, foi organizada uma semana
homossexual era composta por Glauco Mattoso, João Silvério Trevisan e Roberto Piva, dentre
outros. Uma reportagem sobre o evento foi publicada no jornal Lampião da Esquina, pioneiro
na reflexão sobre as questões sexuais e políticas a partir da perspectiva homoerótica. Lá pelas
tantas, o encontro debatia o posicionamento do movimento gay no maniqueísmo político da
época, apontando a discriminação dos homossexuais pela direita conservadora e pela esquerda
-
como Cuba, Moçambique e Leste Europeu há
181. O poeta proletário acreditava na liberdade sexual nos países
comunistas!
e como professor
suas próprias vivências do período. A exemplo do famoso sequestro do embaixador americano
que o fez lig
180
PIVA, Roberto. Anticomunismo não enche barriga. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n.
23, julho/agosto, 1978, p. 28.
181
DANTAS, Eduardo. Negros, mulheres, homossexuais e índios nos debates da USP. Jornal Lampião da
Esquina, Ano 1, n. 10, março de 1979, p. 09
182
Jornal Lampião da Esquina,. Ano 2, n. 15, agosto de 1979, p. 17.
183
Jornal Lampião da Esquina, Ano 2, n. 18, novembro de 1979,
p. 16.
94
al-
os feitos mais radicais das guerrilhas revolucionárias e a divulgação de sua poesia como o melhor
exemplo de uma literatura homossexual.
É a sombra de Roberto Piva. Em seu livro Coxas, o personagem Pólen fazia amor com
Luizinho, um adolescente vestido com uma camiseta com o punho fechado socialista no peito.
Luizinho é morto por guarda que atira de um helicóptero do Citibank num símbolo da
participação estadunidense na ditadura brasileira e na matança dos comunistas. Pólen fica
poliniza e polemiza, traz as sementes de uma nova vida encharcada de rebeldia. Pólen traz
também o nome da revista inaugural do romantismo alemão, com todo seu ímpeto revoltado.
Como este personagem, Roberto Piva flertou com o comunismo e assistiu sua morte, como uma
sombra no coração anarquista. Foi justamente o fim da utopia revolucionária que levou Pólen à
Neste mesmo ano de 1979, quando foram escritos os versos de 20 poemas com brócoli,
Roberto Piva rompe com todas suas esperanças ligadas à atuação política em meios da esquerda
e participações no movimento gay
da década de 70 / sou um navio lançado ao / alto- 184. Não é à
toa que é o livro da anarquia como um modo de vida. Durante a década de 1980, Roberto Piva
se lançou nessa anarquia que pode ser acompanhada a partir de algumas publicações nas
revistas Artes: e Cerdos & Peces. Também é a década da ecologia na experiência poética de
Roberto Piva: seus manifestos publicados no Boletim Arte e Pensamento Ecológico e na seção
Chiclete com Banana permitem acompanhar
essa atuação política.
184
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. Em: PIVA, Roberto. Mala na mão & asas pretas obras
reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1981/2006. p. 115.
185
SILVA, Claudio Roberto da. Reinventando o sonho história oral de vida política e homossexualidade
no Brasil contemporâneo. 674 f. Dissertação de Mestrado em História Social, na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. p. 301.
95
autoridade, o poeta acreditava que a experimentação sexual deve ser batalhada pela pessoa e
por ela conquistada não consentida como regra imposta por força alheia. Além disso, o poeta
considera a libido como algo flutuante e aberta a diversas expressões. Nesse sentido:
medicina poderia assim exercer seu poder nefasto e o desejo seria o único qualificativo viável
186. Em outras palavras, Roberto Piva observa na
medicina e do Estado.
No depoimento do amigo Sergio Cohn187 podemos ver a angústia de Roberto Piva ao ser
convidado para uma homenagem na passeata do Orgulho Gay. O poeta achava absurdo, por
exemplo, as reivindicações pelo casamento gay, entendidas por ele como forma de reprodução
do matrimônio patriarcal e repressor. Roberto Piva declinou do convite.
É interessante notar o quanto Roberto Piva antecipa algumas das questões atualmente
presentes nos movimentos ligados à diversidade sexual: dentre elas exatamente o atual
questionamento queer às políticas identitárias.
Nessa mesma narrativa de 1994 estão todas as principais críticas de Roberto Piva ao
comunismo: moralista como o cristianismo, totalitário como o fascismo; ou retrógrado como
enta quanto a pederastia é rejeitada pelos comunistas e quão
essa perseguição.
É essa fluidez nas questões políticas que caracteriza Roberto Piva: sempre rebelde,
as contradições. É aquele garoto que em 1957 fundou o Movimento Niilista, com Jorge Mautner
e João Quartim de Moraes, influenciado por personagens de Fiódor Dostoiévsky, por uma leitura
186
Ibidem, p. 326.
187
COHN, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. p. 61.
188
SILVA, Claudio Roberto da. Reinventando o sonho, op. cit., p. 321.
97
A epígrafe do livro anuncia as delícias dos caminhos que trilharemos e suas angústias.
É !: a carne dilacerada pelo gozo, vazando o vazio terrível. Lá onde a mais aguda agonia
e a mais intensa alegria deixam de se contradizer. É o catecismo de Diane, abrindo as portas da
volúpia para além da moral, para além das ilusões do amor. A disposição insana para viver a
luxúria no jogo do prazer e do sofrimento. O deleite no fogo da paixão sem medo de queimar-
se. Mas, é preciso nudez: despir-se de todas as morais e de todas as obrigações. É preciso a
entrega total e gratuita: a ingenuidade da criança.
do inferno ou, se preferir, da infância). Piva abre o livro com esta frase de Diane, no final de
Aleluia reza do inferno ou da criança] não fará
promessa em troca e nem te exigirá obrigação. Você ouvirá, vindo de si mesmo, uma voz que te
189
guia em seu destino: é a voz do desejo e não a dos se .
Não se prender ao objeto do desejo, ao ser desejado, à pessoa finita que se apresenta:
sua particularidade limitada, demasiado humana, com suas promessas de um amor ilusório que
traria só prazer e felicidade. Mas ouvir a voz do desejo e sua potência de nos abrir aos fluxos do
ilimitado:
190
. Essa é a nudez obscena: a alegria inocente da criança. Pois a
entrega ao desejo nos arranca dos limites habituais. E nos arranca a partir do dilaceramento do
eu, do despedaçamento do ser finito que somos. Dilacerar, despedaçar, destruir. Só se alcança
essa potência da vida através desse sacrifício. É a morte. É o vazio, a angústia, o desespero. É
gozar o infinito, ali onde a mais exuberante vida é indissociável da morte onde os gemidos de
prazer são acompanhados pelos gritos de desespero.
Nesta epígrafe se coloca o erotismo no centro da poesia, mas não aquele do prazer fácil.
É erotismo mágico; sem promessas. Estamos na vibração ilimitada da carne, ali por onde passam
forças mais potentes que as humanas.
189
catéchisme de dianus. Em: Le coupable - . Paris:
Gallimard, 1944. p. 208.
190
Ibidem, p. 206.
98
Mas não apenas o sexo alça o poeta ao infinito: o êxtase também advém da vivência de
poemas. O primeiro poema dá o recado. Gregos de Homero no chapéu de palha. Chamada para
um diálogo poético, contextualizado em leituras vividas. Uma cena de amor, depois o sono,
-se a brecha.
II
contorção do gozo. Na prece de um pagão, o poeta canta os prazeres no sofrimento. Estão sob
o signo da morte. O
momentos em que a tortura vem junto à calentura, esse delírio febril que conduz os amantes
como anjos na miragem. Ali na paisagem azul, no paraíso dos sonhos.
Sim, da volúpia desabrocha a flor. A tortura da luxúria traz a lucidez. A flor, a luz, o
sagrado. Dos abismos da morte voa o renascido. Iniciado nas trevas, no mal. E o poeta traz suas
flores. Flores que roem a realidade, que abrem brechas no universo, por onde escorrem
epifanias.
Roberto Piva faz um poema como leitura de Baudelaire. Poema sobre poema:
expediente incomum em Piva, mas abundante em 20 poemas. Da iniciação no mal, na volúpia,
no amor. A tortura, o abismo, a lucidez, a flor: são temas de Baudelaire. E em ambos os poetas
há essa viagem iniciática, tratada pelo
A música
No abismo infinito
Me embalam. Ou então, mar calmo, espelho austero
De meu desespero!192
No êxtase disparado pela música se alça a pálida estrela. A vibração de todas as paixões
Droga, música, amor: êxtase, através dos abismos. E o poeta extático penetra no caroço
da verdade! E é preciso cortar a superfície para chegar ao caroço. É preciso morder a fruta.
Assim, a realidade superficial jorra o suco do mágico.
191
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. (Ivan Junqueira, trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1857/2006. p. 217.
192
Ibidem, p. 279.
100
experiência estética com poemas: é a vivência de leituras que faz a realidade ruir e permite viver
o êxtase, como superação da condição histórica específica.
Um vento que fende, corta, fere. Que abre novas possibilidades. E não mais gorilas tântricos ou
-leopardo deslizando entre
poemas? Mas não eram quaisquer poemas, eram poemas de McClure. O que escorria pelas
coxas do amante era o rugido selvagem de um animal de rapina.
conhecimento. É o momento em que a forma literária passa a ser um problema: começa sua
tragédia. Passam a manuseá-la, a experimentá-la, a tortura-la. Houve quem assassinasse a
escritura. Barthes nomeia o assassino: Mallarmé. Da escritura se faz o vazio, o silêncio. O escritor
prescinde da Literatura: a degola. O passo seguinte era cantar o sacrifício. É a dança da ausência.
O grau zero da escritura como o momento em que o poeta se coloca na liberdade da ausência
de julgamentos. Lugar neutro, pois não capturado pelo já conhecido. Lugar de solidão. Um novo
nascimento após o sacrifício. O sonho de um escritor sem literatura e sua parafernália
normativa. Os versos de Piva cantam o assassínio, a mudez, o grau zero da escritura.
Havia um homem com pata de leão, em meio a pessoas falando uma linguagem
estranha. Foi o sonho de Michael McClure que deu origem à linguagem selvagem, encenada na
peça The Feast! (1960). Urros que ora pareciam rugidos de animais, ora vocalização de crianças.
Posteriormente, em 1962, quand
Vieram do silêncio ou do sonho, mas seu urro foi estrondoso: Ghraaaaaaahrr!. E McClure
estava lá, em frente a jaula dos leões, trocando rosnares. O poeta-leão e o leão poeta, rugindo
simultaneamente na mesma intensidade e estabelecendo uma comunicação selvagem para
-le :
101
São poemas dessa natureza que roçaram as coxas do amante de Piva. Piva urra de forma
selvagem nas coxas do amante. Está possuído pelo instinto mamífero. Seu urro celebra, a um só
tempo, a virulência da poesia vivida no sexo e sua morte como convenção literária abstrata.
Celebra o silêncio da literatura assassinada e os rugidos da vida poética. Poeta sem Literatura
mas não sem orgia.
A seu modo, o poeta faz as vezes de crítico literário, ao associar a linguagem selvagem
de McClure com o contexto de poesia sem literatura: como se os gritos indômitos do poeta beat
surgissem no vazio da página em branco de Mallarmé.
Novamente o amante associado a Macunaíma & Alice, assim como o caralho do poeta
ligado à Cobra Grande. O sexo mesclado ao literário. A seguir, um comentário crítico sobre a
semelhança entre as obras Macunaíma (Mário de Andrade), Alice no País das Maravilhas (Lewis
Carrol) e Cobra Grande Norato (Raul Bopp). Ficaria horas falando das semelhanças e diferenças
dessas obras, ambas mágicas com seus personagens perfazendo caminhos de iniciação.
Dialoga então com Murilo Mendes, imaginando como o poeta veria a cena. É outra
passagem emblemática: na observação de um ato cotidiano, Roberto Piva solicita o anteparo da
literatura para tomar contato com a realidade. Sua experiência está encharcada da presença de
personagens, poetas e elucubrações literárias. E garotos, com toda a pungência transgressora
da juventude:
IX
193
MCCLURE, Michael. A nova visão de Blake aos Beats. (Daniel Bueno, Luiza Leite & Sergio Cohn, trad.)
Rio de Janeiro: Azougue, 1982/2005. p, 218.
194
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli, op. cit., p. 101.
102
(dedicado a todos
os garotos
rebeldes & depravados)
XII
Num Bar, rodeado de adolescentes revoltados. Bem à moda de Piva, ressaltando sua
força política e erótica. O mundo gira no coração. Contra a ordem Kareta, atrelada ao corpo
prostrado na poltrona; ao desejo blindado pelo mercado.
O trecho, presente na epígrafe do poema de Piva, traz a metáfora dos sodomitas que
olham o mundo com dificuldade, franzindo a testa para tentar ver na escuridão como um velho
sapateiro para fincar a agulha em pequeno buraco.
Numa primeira olhada, Piva ambienta o poema no clima devasso dos sodomitas no
inferno. O Inferno dantesco adentrado por uma fresta do Bar Jeca. Faz jus à associação dos
adolescentes da sauna com os círculos infernais. A sauna, o calor, a névoa, o sexo. É o inferno
com todas suas delícias. Se em 20 poemas a realidade é vista pela brecha da experiência
poemática, aqui a realidade penetra na obra de Dante, numa similar fusão entre o lido e o vivido.
Pode hav
alma do bando de sodomitas] se envolvia como se faz ao crepúsculo / olhando o outro sob a lua
lo.
Sob a lua nova, ainda por cima. São símbolos místicos muito ricos. A orgia era ritual. O lado
escuro da lua: onde o fogo do desejo está envolto em névoas. Em Piazzas é exatamente esse
instante do crepúsculo (a tarde) que abre a manifestação do sagrado um crepúsculo bem ao
modo de Baudelaire e Trakl196. O outro lado da vida (o mistério, o desconhecido) visto apenas
por sodomitas em orgia: a mesma iluminação mágica a partir do sexo: o caroço da verdade.
Dante é retomado no posfácio do livro. Para Roberto Piva, 20 poemas estava associada
195
ALIGHIERI, Dante. Divina Comedia. (Cristiano Martins, trad.). São Paulo/Belo Hrizonte: Edusp/Itatiaia,
1979, p. 230.
196
vide: MATTOS, Ricardo Mendes. Roberto Piva: derivas políticas, devires eróticos & delírios místicos.
250 fl. Tese (Doutorado em Psicologia da Arte), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2015. p. 50 e seguintes.
104
elemento novo nesse amor efebo. A violência do poeta com o amante, violência proveniente do
197
skate das i . Esse amor místico que
desconcerta e vira a cabeça de Piva. Os instintos mais agressivos do amor. O desabafo, ainda no
calor do amor, naquela vontade de matar o amante.
XIV
para o Carlinhos
LUMIÈRE
Midi
La glace brille
Le soleil à la main
Une femme regarde
ses yeux
Et son chagrin
Un nuage passé
La pluie
LUZ
Meio-dia
O gelo brilha
O sol à mão
Uma mulher olha
teus olhos
197
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócolis, op. cit., p. 106.
105
E sua aflição
A parede em frente é fosca
As rugas ao vento na cortina da cama
O que treme
Se pode olhar no quarto
E a imagem desaparece
Uma nuvem passa
A chuva
trabalha bem as rimas (o que torna seus poemas difíceis de traduzir), comuns entre as palavras
terminais dos versos ou no interior de cada verso. Piva utiliza pouco este procedimento.
Retomemos o fio da meada. O poema dilacerado do fim do amor vira a cabeça de Piva
e o livro parece ganhar novos ares, novos ambientes. A obra também muda de direção e deixa
entrever uma grande virada na poesia de Piva.
O poema seguinte tematiza a cidade. A cidade vista do alto, de certa distância. Vertigens,
cabeças decepadas. Últimos centauros, últimos amores. Há um tom de distanciamento e
despedida. Em seguida:
XVI
Ai o marco. Toda a poesia de Piva até sua morte persegue este sonho. Mas, primeiro,
mandar tudo a merda. Tocar o foda-se. Cair na estrada, conhecer praias e amores. Estradas e
acampamentos. Abandonar este verbo com importância seminal na poesia de Piva durante a
década de 1980.
Numa primeira aproximação, o poeta abandona a vida urbana. Assim, afirma a Pepe
estou abandonando São Paulo, que está presente em todos meus livros,
106
198
; ou para o amigo Carlos Von Schmidt:
199
Bucólicas, d .
É exatamente o novo rumo que 20 poemas toma. O ambiente mencionado nos poemas
-
no poem
espaços rurais recheados de presenças epifânicas. É mesmo uma boa aproximação com a poesia
de Virgílio: não apenas com um paganismo pungente nas expressões da natureza, mas também
com um tom pederástico comum entre os romanos200.
Aquele que faz da anarquia um modo de vida, passa a ser lido a partir desse viés, como
fica claro na apresentação do poeta na antologia da L&PM de 1985: o poeta é apresentado como
XX
198
ESCOBAR, Pepe. A quizumba poética de Roberto Piva. Em: COHN, Sergio. Roberto Piva. (Coleção
Encontros). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 1983/2009. p. 40
199
VON SCHMIDT, Carlos. Amor, loucura, drogas (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1985/2009.
200
-
versa sobre o Império Romano e cita um tal garoto que Virgílio teria ganhado de Octávio Augusto.
107
O mesmo tom ácido do manifesto O século XXI me dará razão, com a crítica aos cidadãos
201
. Agora,
é um canto de desterrado.
A menção à temporada no inferno e o tema da fuga levam a pensar num diálogo com
Rimbaud. Após sua temporada no inferno, o poeta vidente anuncia sua evasão do ocidente, suas
práticas e seus saberes. O fim da temporada é um adeus à Europa rumo às praias virgens e à
sabedoria ancestral ema da fuga está presente em Iluminuras,
201
PIVA, Roberto. Eu Roberto Piva animal de rapina. Escrita revista mensal de literatura, n. 33, 1983, p.
17.
109
Neste magma, cuja metáfora fora utilizada pelo próprio Roberto Piva como verve
seminal de sua poética, pretendo enveredar. Nessa deriva, apresento o livro Quizumba como
experiência de escrita automática, recheada da imagética futurista, com suas palavras em
liberdade e encontros entre realidades distintas. Trata-se da obra de Roberto Piva mais afeita à
202
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. Em: PIVA, Roberto. Mala na mão & asas pretas obras
reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1981/2006. p. 115.
110
Hendrix & movimento submarino / Algas / flores no Cio de Metal / Gulash &
Cristais / garotos na Rural Wyllis tocando bongô pra Lua / olho-laser
estocando minhas células servicais / flores canoras nos canteiros de
borrachudos / total motores / eixo desmanchado em partículas de poeira
pulverizadas em Sonho / Morte do pêssego pródigo / só nós dois no coração
da canção / desenhos animados em câmera lenta no cartaz do ônibus /
punhais das sessões Zig-Zags / festa pagã do troca-troca religião da infância /
Hotel na plataforma espacial do largo do Paissandu / plantando quiabos nos
jardins da praça Clóvis / misturando as mídias / Plátanos via satélite com
folhas de amianto / Coaxando na TV programa Antunes Filho em 63 / Ode
Marítima em ritmo de Spansule / Jorge de Lima no Vulcão-Memória /
bombordo do Bateau Ivre / Kelene Geral congelado na alquimia / Carnaval de
Genghis Khan / vinho branco / hora da lasanha com perfume / Wesley
inventando o bicho que quebrou o pescoço / nos quintais tudo bem do
Planeta / vou por aí o chão de estrelas onde a borboleta caga assassinato
nuclear / Foi assim o fim sem fim do Serafim Ponte Grande? / sem maiores /
pra lá de Bagdá & da quadra de basquete / no azul daquela serra onde nasceu
Iracema & Oswald Spengler / decadência do tango argentino visto na
televisão ocidental / ócio & tal / Cobra Norato graças a Deus era tarado /
esporte do fim do mundo / Cruz Credo como diria Pedro II / Você ia à deriva
no rio do meu amor cabeludo / mostrando as coxas na estação como um
garoto canalha / baganas aos sóis da constelação / nos meus braços você foi
deus & puta203.
tomou seu primeiro ácido lisérgico. Sua vida em estado poético encarna leituras e músicas,
teatro e artes plásticas, numa miscelânea em que está a bombordo do barco bêbado de
Rimbaud; ou pensando em Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, em meio a afirmação
sobre o forte erotismo de Raul Bopp. Nesse lago azul da memória, nascem juntos Iracema e
Oswald Spengler, num carnaval do imperador mongol Gengis Cão, seguido de supostos ditos de
Pedro II.
Para o processo criativo de Quizumba, vale bem a seguinte formulação de Roberto Piva:
A minha poesia não tem meio caminho. É uma vivência profunda dos
acontecimentos, da experiência vivida, transportada para a poesia. Mas isso
203
PIVA, Roberto. Quizumba. São Paulo: Global, 1983. p. 10.
204
MONTEIRO, Danilo; CESARINO, Pedro; COHN, Sergio. O renascimento do maravilhoso. (Entrevista). Em:
COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2007/2009. pp. 162-185.
111
frequente crítica do poeta a esse meio de comunicação. No poema Mortikultura, por exemplo,
num canto escuro da casa em meio aos cheiros familiares & se dispersando em pequenas coisas
205
. Em Mississipi no Amazonas
206
telenovela cagando problemas de pequeno- . É o
veneno do conservadorismo moral a modelar os comportamentos e prostrar o corpo na
poltrona; é o meio de comunicação a serviço da mercantilização da vida e da massificação dos
modos de ser. É este veneno que lambuza as antenas de TV.
Tal verso é seguido pela crítica de Roberto Piva ao desmatamento originado pela
indústria papeleira, a partir da derrubada de mata nativa para plantio do eucalipto. As toras do
vegetal são transportadas em extensos caminhões, que surgem na imagem despencando das
altas árvores de eucalipto. Na época de fabulação de Quizumba, Roberto Piva era ativista ligado
ao Movimento Arte e Pensamento Ecológico pioneiro no debate das questões ambientais no
Brasil. Durante aquela década, o poeta participaria de inúmeras passeatas contra
desmatamento da Juréia, além de manter importante coluna de debates ecológicos
na revista Chiclete com Banana. A feição violenta e apocalíptica da imagem
reflete bem as preocupações ambientais do poeta.
A seguir, numa manhã entediada, o poeta descreve o uso de anfetaminas, droga cujo
,
anuncia a interlocução do poeta com um amante, num teor homoerótico característico da
produção de Roberto Piva. Tal como o próprio poeta recluso no interior do Estado, seu amante
Era 1969. Piva toma uma stone do LSD 25, purple haze, e se manda com amigos para a
vi como se fosse uma grande tangerina gotejando amor para o universo. (...) E, depois... ouvi
Jimi Hendrix na casa de um amigo e percebi que era um músico que tentou musicar o movimento
207
das plantas
205
PIVA, Roberto. Mortikultura. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 22, junho/julho, 1978,
p. 36.
206
PIVA, Roberto. O Mississipi no Amazonas. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 20,
abril/maio, p. 30, 1978.
207
VON SCHMIDT, Carlos. Amor, loucura, drogas (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1985/2009. p. 66-7.
112
Nesse primeiro lampejo, Quizumba reflete um processo criativo a partir das volições do
caos operando desde dentro, no intempestivo fluxo do pensamento. A escrita automática, como
forma de criação poética inspirada na associação livre de ideais proposta por Freud, é marca
registrada do surrealismo. Certamente Roberto Piva lança mão dessa forma de criação
utilizada já no Poema Automático, escrito com o amigo Claudio Willer, cujo título alude à escrita
automática. O caos de Quizumba certamente se inspira no surrealismo. Mas não só nele.
quelque
separando mais o sonho & a realidade-limitadora colorindo as ruas / os
prédios / as casas / numa visão psicodélica dos Paraísos Artificiais & o mundo
seria uma eterna festa num ciclo cósmico infinito208
O poema se inicia como uma anotação em diário pessoal: com detalhes do local e data.
Tal referencialidade é logo assaltada pela percepção delirante da realidade. Como na escrita
- . O vento bate e as folhas
de uma árvore arrastam os sonhos de duendes. O poeta parece mesclar sensações do instante
com rompantes delirantes, entremeados com o desejo de ouvir uma música ou a lembrança de
uma passagem de Charles Baudelaire.
Além desse estado delirante, às vezes estimulado pela ingestão de substâncias, Charles
Baudelaire também comparece com um trecho extraído de Fusées (Foguetes). Esta obra, junto
com (Meu coração posto nu), forma espécies de diários íntimos (jornaux
intimes) do poeta francês. Nestes diários, há textos fragmentados e inacabados, escritos em
rompantes abruptos entre 1855 e 1862. O próprio Baudelaire relata a proposta: escrever dia a
dia, não importa onde ou como, seguindo
208
PIVA, Roberto. Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas &
lindos rostos pagãos me observam viver?. revista Artes:, São Paulo, Ano VII, n. 35, p. 3, 1972.
113
parisienses. São diários íntimos em que o poeta discorre livremente sobre os mais variados
assuntos, incluindo o modo de ser do dândi, mesclado a reflexões filosófico-teológicas, em meio
a desabafos contra a política ou a religião; aí juntam-se híbridos de crítica literária com memórias
da infância, ou passagens biográficas sobre suas obras intercaladas por notas para não se
esquecer de algo. É um diário pessoal em que se diz tudo, sem censura.
Mas não apenas no horizonte da criação poética o poema de 1972 mantém um paralelo
com Quizumba. Em ambos poemas, os versos se sucedem com grande velocidade, expressa
-se um verso a outro sem
qualquer pausa, acompanhando o ritmo da escrita automática.
Não há como não lembrar da forma de redação de On the Road, em que Jack Kerouac,
chapado de anfetamina, escrevia suas aventuras biográficas sem parar, em grande rolo de papel
que não interrompia o rápido fluxo dos dedos na máquina de escrever.
imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da
aproximação de duas realidades mais ou menos afas 210. O trecho, publicado por Pierre
surrealistas inspiraram-
mesa de dissecação de uma máquina de costura e um guarda- 211. Como grande leitor de
Lautreamont, Roberto Piva também tinha essas influências em mente, mesmo que
inconscientemente.
209
BAUDELAIRE, Charles. Journaux intimes: fusées, mon coeur mis à nu, carnet. Paris: Librairie José Corti,
1949. p. 18
210
BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. (Sergio Pachá, trad.) Rio de Janeiro: Nau, 2001. p. 35
211
LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror. 2. ed. (Claudio Willer, trad.). São Paulo: Iluminuras,
2008. p. 252.
114
Mas Roberto Piva convida outra vanguarda para ver suas imagens. No verso inicial do
Marinetti era uma rã no aeroplano / todo alumínio
Manifesto Técnico da Literatura Futurista,
publicado por Marinetti em 11 de maio de 1912. Foi exatamente em um aeroplano, sentado no
tanque de gasolina, que o italiano sentiu a necessidade furiosa de arrebentar com a velha sintaxe
e criar suas palavras em liberdade. O ritmo sobreposto, veloz e frenético de Quizumba bem
image 212. Imagens estas que procuram abarcar todas as volições da vida, a partir da
diferentes e hostis. Somente por meio de analogias vastíssimas pode um estilo orquestral, a um
mesmo tempo policromo, polifônico e polimorfo, ab 213.
As imagens de Roberto Piva utilizam também outros artifícios do Manifesto Técnico. Por
exemplo, a imagem formada por dois substantivos unidos por analogia e aproximados com
hífen. O Manifesto traz alguns exemplos (mulher-baía, multidão-ressaca, etc.). Quizumba traz
- - -
escaravelh - - -
São as palavras em liberdade numa apropriação de Roberto Piva com toda sua
velocidade, analogia, desordem e ilógica. No entanto, após a menção a Marinetti que vimos
uma poética pessoal, que transborda lirismo e vivências biográficas, Roberto Piva marca essa
diferença com relação às pretensões do futurismo italiano.
212
Com suas imagens a ligar coisas distantes, muitas vezes unidas por hífen e referidas a
termos científicos, a verve imagética de Quizumba é nitidamente futurista. Se considerarmos a
velocidade dos versos dispostos em desordem, poderemos ampliar ainda mais a influência das
palavras em liberdade nesta obra de Roberto Piva.
4. Vox Voluptas
Papè Satan, papè Satan aleppe / Stradivus cordis meus / formavulva falastros
/ ripus Nicomedis / fla-flu Kricotomba / cantus Servilius / Baudelaire-Maxixe
/ Fontana efó luzes pardoin / farofa extravivax vox voluptas / moqueca /
cachimbando cullus puer / Monte Branco belladona / Montagu / Pasolini-
panqueca / formas tuas in natura / pour toi / Plebiscito Bakunin sin nombre
ni substancia / tus pecados / dans le salon de danse / Mon grosse Lewis Carroll
/ suchiando le bambine / na calçada / na porta do hospício / eu você nós dois
aqui neste bagaço à beira-mar / Curiango / tiger / milhafres / sai de baixo218.
Veja como o título do poema reúne um poeta brasileiro com um inglês, além do músico
brasileiro todos observados pelo poeta florentino. Somados pelo sinal matemático como
poeta francês associado a expressão popular brasileira, além de cineasta italiano, escritor inglês,
político russo, de diferentes épocas.
217
PIVA, Roberto. Piazzas. São Paulo: Kairós, 1964/1980. (Coleção A Ciência da Abelha). p. 23.
218
PIVA, Roberto, Quizumba, op. cit., p. 23.
116
Contudo, leitor de James Joyce, tendo inclusive citado seu Fennigans Wake em epígrafe
de poema de Coxas (1979), Roberto Piva pode ter suas invenções influenciadas por este outro
grande desordeiro das línguas. O fluxo ininterrupto da escrita de Joyce, a forte presença
mitológica de diversas culturas e o tom onírico podem facilitar as semelhanças entre Fennigans
Wake e Quizumba.
do Canto VII do Inferno uma frase irada dita por Pluto. O significado obscuro da passagem dá
pano pra manga. Sem um sentido preciso, em virtude da utilização de palavras ininteligíveis
(exceto Satan), especula-se muito. Pode ser uma expressão de raiva e insulto de Pluto utilizando
espécie de gíria. Podem ter sido palavras inventadas por Dante a partir de línguas perdidas ou,
que o poeta florentino teria ouvido em sua visita à Paris. Por fim, Dante pode ter
usado uma invocação mágica à Satanás, dita em linguagem hermética. Mas do que pensar a
criação de Dante, nos cabe pensar a apropriação que Piva faz da frase. Para o poeta, a expressão
significava uma associação que Dante fazia entre o papa e o diabo. O que importa no texto, no
entanto, é o quanto a expressão do florentino dispara a experimentação linguística de Piva.
Seja como for, não deixa de ser curioso que para compreender a fusão linguística do
poema recorramos às influências de um poeta medieval florentino, um poeta modernista
irlandês e um movimento de vanguarda russo.
Liquidificador é uma boa denominação, pois, ao mesmo tempo em que mistura todos os
ingredientes num caos indiferenciado, os torna fluídos a escorrer informes. Em outro poema do
220.
219
PIVA, Roberto. A política poética. Singular & Plural, n. 4, 1979, p. 76.
220
PIVA, Roberto. Relatório pra ninguém fingir que esqueceu. Singular & Plural, n. 1, 1978, p. 87.
117
Essa dentição selvagem do poeta, cujo tom arcaico contrasta com o eletrodoméstico
contemporâneo, está muito presente em Quizumba como se vê no título do poema transcrito
acima.
seguinte
uma floricultura onde um cão esquimó, uma codorna e um ratão do banhado repartiam geleias
eados de gírias populares, bem
lembra O Santeiro do Mangue, obra em que Oswald de Andrade lança mão de poesia também
desbocada e gozoza, humorística e crítica.
-
o tom rapsódico de Macunaíma, na ilha mítica de Jorge de Lima em mais uma liquefação
presente nessa recitação de 1977.
Essas mesmas características estão presentes em Quizumba, obra de Piva em que sua
relação com as diversas faces do modernismo brasileiro fica mais explícita. O nome do livro,
Quizumba, figura no início da obra como em um dicionário popular. Ali, Roberto Piva define a
-
-se de estudo sobre as expressões populares como forte legado modernista.
Da mesma forma, a epígrafe do livro traz passagens de Jorge de Lima e Guimaraens Rosa, além
de outras tantas referências no decorrer do livro. Qual a retomada de Roberto Piva do
modernismo brasileiro?
transnacional, mas agora com o ingrediente subversivo mais picante. O jagunço sertanejo, o
pistoleiro justiceiro e o poeta francês acrescentado ao bando talvez por suas atividades ilegais
ligadas ao tráfico de armas. Em ambos a aura do crime, a força da juventude e o teor erótico.
te Giovanni sabendo
metralhadora.
trouxe muito do imaginário ligado, a partir de então, à pirataria, como o tom brutal de um ser
robusto coxeando. Piva também menciona um ta
Ao abandonar tudo em 1979, ano em que foram escritos os versos de 20 poemas com
brócoli
o vínculo entre a anarquia, o crime, os garotos delinquentes e o futurismo, presente em
Quizumba, será frequente na produção daquele período. Em Eu, Roberto Piva, animal de rapina
221.
Eis os ingredientes picantes da poesia de Roberto Piva neste período: anarquia, crime e
futurismo. Eis Quizumba.
7. Historiografia do Inconsciente
Com esta noção, Walter Benjamin reflete o encontro entre os pensamentos de Freud e
Karl Marx, como prática comum entre os frankfurtianos. Amplia-se o entendimento do sujeito
Benjamin, como Marcuse, à prática poética surrealista, que atrela exatamente o fluxo imaginário
do inconsciente com um processo revolucionário de extração marxista. Roberto Piva, sociólogo
formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e pela Faculdade Farias Brito, conhecia
bem o pensamento político dos freudo-marxistas e lera, já no começo da década de 1960, obras
de Hebert Marcuse, Norman Brown e Reich.
221
PIVA, Roberto. Eu Roberto Piva animal de rapina. Escrita revista mensal de literatura, n.33, p. 17,
1983.
222
PIVA, Roberto. Queima supermercado, queima. Em: Cohn, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro,
EdUERJ, 2012. p. 75.
120
8. Quizumba -
A crise presente em Quizumba não é somente pessoal e não revela apenas o abandono
da esperança do poeta. Quizumba registra o colapso da modernidade e a deriva do mundo.
Sociólogo ligado aos movimentos ecológico e pela diversidade sexual, Roberto Piva
participa de recitais e passeatas pela redemocratização do país, além da mencionada
frequentação de meios revolucionários. A crise que desencadeia Quizumba é aquela do fim das
utopias e consolidação do capitalismo com feições neoliberais.
Se Quizumba é a obra de Roberto Piva com diálogo mais acentuado com o modernismo
brasileiro, é também a obra com traços do que alguns pensadores daquele período
-
-
artística que reúne diversas manifestações do passado, de forma fragmentária. Essa reprodução
do passado reflete a relação contemporânea com a temporalidade, qual seja, a ausência de
Uma crítica das expressões da poesia brasileira contemporânea como Iumna Simon225
observa exatamente a frequência do uso de intertextos descontextualizados como marca da
poesia contemporânea, especialmente em uma retomada da tradição modernista brasileira.
Trata-
modernismo literário brasileiro de maneira acrítica, meramente funcional, pairando de forma
abstrata e atemporal para um poeta que usa o passado como forma de fugir do próprio
presente. Tal expediente, caracterizaria a produção poética brasileira a partir da década de
1980, com acento especial aos poetas influenciados por Haroldo de Campos que, em 1984,
, de uma poesia pós-utópica da agoridade.
223
JAMESON, F. Pós-modernidade e sociedade de consumo. (Vinicius Dantas, trad.). Novos Estudos
CEBRAP, São Paulo, n. 12, jul. 1985. p. 21
224
Ibidem, p. 22
225
SIMON, Iumna Maria. Condenados à tradição. Revista Piauí, n. 61, out. 2011, p. 82-86.
123
Duas vias se abrem na poesia de Roberto Piva durante a década de 1980. A experiência
mágica nas matas do interior de São Paulo, em torno das manifestações arcaicas do êxtase; e a
vivência transgressora nas ruas da cidade, em torno dos garotos delinquentes. A primeira via foi
publicada como parte de Ciclones (1997); a segunda permanece dispersa.
No final dos anos 1970, Roberto Piva anuncia um novo momento de sua vida poética:
226
lançado ao / alto- . Certamente se referia às esperanças de sua
atuação política em órgãos ligados à esquerda e ao nascente movimento homossexual. Se o
prefácio de 20 poemas com brócolis foi assinado no último dia do ano de 1980, a 4 de janeiro do
ano seguinte o poeta já estava fora da cidade de São Paulo, passando uma temporada em Águas
de Lindóia onde escreveria Quizumba (1983). O alto-mar das futuras combinações o levou a
experiências mágicas nas matas da Jureia, ao catimbó em meio a garotos dourados na Ilha
Comprida, às viagens com cogumelo ou vinho de jurema na Serra da Cantareira ou em Juquitiba,
ou aos banquetes pagãos em Jarinu. Em meados da década, Roberto Piva foi iniciado no
xamanismo e encontrou no êxtase seus devires selvagens em plantas, animais e astros. Esta
verve xamânica da poesia de Roberto Piva reverberou em excelente crítica, como nas visões de
José Juva227.
Mas o selvagem não estava só na floresta, e o erotismo sagrado pulula também nos
corpos de garotos suburbanos. É assim que entre os devires em seu animal xamânico (gavião)
há também as derivas nos animais de rapina do centro da cidade. Poemas como Belle leçon aux
enfants perdus (1980), Eu Roberto Piva animal de rapina (1983) ou Fragmentos Anárquicos
(1987), dentre outros, tematizam exatamente o ambiente urbano e toda sua fauna subversiva.
Mas é principalmente na lendária revista argentina Cerdos & Peces que essa via ganha corpo. O
poema Animales Miserables (1989) é apresentado como parte de certo livro a ser publicado:
-se que tal livro não veio a público e sequer temos indícios para
confirmar sua existência.
Poesia e pederastia
A vida poética de Roberto Piva é atravessada de ponta a ponta pela presença erótica de
garotos. Já em sua estreia, na famosa Antologia dos Novíssimos, o poeta aparece em meio a
pederastas, mariscando colegiais num bar do Largo do Arouche. Na Ode a Fernando Pessoa
(1961) os pederastas surgem como amantes, em meio a insinuações de amor livre com
adolescentes. Paranóia está repleta de anjos e são mencionados também os amigos pederastas
sem nenhuma piedade. Piazzas (1964) transforma o singelo robô de Isaac Asimov em
226
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. Em: ___. Mala na mão & asas pretas obras reunidas volume
II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1981/2006p. 115.
227
SILVA JUNIOR, José Juvino. Deixe a visão chegar: a poética xamânica de Roberto Piva. 2011. 113 fl.
Dissertação (Mestrado em Letras e Teoria da Literatura), Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
124
cantor de rock / pé de sapo / desmunheca desde cedo / com seu sex appeal de menino
228
.
A menção ao poeta e cineasta italiano é importante. Pier Paolo Pasolini havia filmado,
em 1975, seu Salò o le 120 giornate di Sodoma, num diálogo com a obra homônima do Marquês
de Sade. Entretanto, Pasolini ambienta as orgias e crueldades com os jovens na República de
Salò em 1944, durante o regime fascista italiano. É uma forma de denunciar quanto a violência
totalitária está estreitamente relacionada ao prazer sexual dos algozes que tornam o outro
objeto de destruição. Em Coxas: sex fiction & delírios, Roberto Piva utiliza exatamente este
procedimento, em diálogo com Pasolini e Marquês de Sade:
Apavoramento n. 2
O poeta também coloca como central a experiência erótica da juventude, mas não
procurando reprimi-la. Em seu poema intitulado A política poética
sou por uma poesia que fale... dos pivetes maravilhosos que se viram nas avenidas Ipiranga &
231
. São os garotos que vivem na aura criminosa e são vistos pelo poeta como
228
GLOBO LIVROS. Entrevista com Roberto Piva - 2008. Disponível em:
http://www.globolivros.globo.com/downloads/pdf/Pivafala.pdf. Acesso em: 04 nov. 2011.
229
PIVA, Roberto. Ano XV do capitalismo selvagem. Singular & Plural, São Paulo, n. 2, janeiro, 1979, p. 73.
230
PIVA, Roberto. Coxas: sex-fiction & delírios. São Paulo: Feira de Poesia, 1979.
231
PIVA, Roberto. A política poética. Singular & Plural, São Paulo, n. 4, março, 1979, p. 76.
125
Villon
garoto amante este musgo te devora
esta sede de omoplatas e cazzos mais doidos que a capoeira dos
deuses
olhaqui! o tambor gira 2 vezes e lambe as coxas que se vão
para a Freguesia do Ó às 18:30 /4/80
vida é isso! apaixonar-se e escolher
senão o tempo passa e você não avança
Mate a mãe
Mate o pai
Mate a sombra deles todos232
compõe toda a cena erótica que se repetiu em sua vida e obra poéticas: centralidade do sexo
pederástico ligado às manifestações do sagrado.
e
escolher entre a paixão ou as tradições familiares. Ou seja, vive-se esse amor subversivo ou se
obedece aos deveres sociais. Daí a exortação a matar pai e mãe número que coincide com as
vezes que o tambor do revólver giraria. Uma morte que opera também no plano simbólico das
sombras, ou seja, livrar-se da influência da educação patriarcal e a interiorização das convenções
sociais. O parricídio pode ser estendido, nessa acepção, dos pais à pátria, ao patrão e ao padre
figuras que representam a obrigação à ordem.
Aqui todos os elementos que veremos repetidos nessa via da poética de Roberto Piva:
garoto, sexo, crime, sagrado. E o poeta é aquele mais velho que corrompe o menor e o
aconselha, num diálogo com o poema homônimo do francês François Villon (1431-1463?)
associado, desde Piazzas, aos garotos subversivos.
232
PIVA, Roberto. Belle leçon aux enfants perdus. Os dentes da
memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 1980/2011. p. 197.
126
Seu tom é de um malandro mais velho que aconselha acólitos como o de Piva. Villon dá um
toque aos meninos perdidos, espécie de trombadinhas da época, que fiquem espertos com os
233
Tradução livre do original: Belle leçon aux enfants perdus. Beaulx enfans, vous perdez la plus / Belle
rose de vo chapeau; / Mes clers pres prenans comme glus, / Se vous allez a Montpipeau / Ou a Rueil,
acquest ne prouffite. VILLON, François. Testamento. (Afonso Felix de Sousa, trad.) Belo Horizonte: Editora
Itatiaia, 1987. p. 143-4.
127
clérigos. Pede cuidado quando forem surrupiar em Montpipeau e Rueil, locais em que os
menores iam praticar seus delitos, pois ali Collin de Cayeux foi preso grande arrombador e
integrante do bando de Villon na ocasião do roubo do colégio. Villon usa sua balada para
aconselhar marginais.
Na segunda estrofe há uma lição àqueles que arriscam seu corpo e alma, ficando sujeitos
à difamação numa provável referência aos garotos que se prostituíam. Pois não se pode ter ao
mesmo tempo o amante e o dinheiro numa alusão à rainha Dido, fundadora de Cartago, cujo
drama era sempre perder o amante e ficar com a riqueza, num sofrimento que a levou ao
suicídio. Ou seja, Villon parece dizer para não se preocupar tanto com a riqueza, um ganho
desprezível diante das delícias do amor. Aí vem a passagem da epígrafe de Piva: o homem é
louco e infame se se deixar pagar por tão pouco (por dinheiro) diante da grandeza do amor.
professor do ensino médio, em escolas públicas e particulares. Fora expulso de algumas delas
por um comportamento pouco convencional: convidava seus alunos para visitarem seu
apartamento e mantinha com eles relações das mais íntimas. Se como amante tomava ares de
professor, como professor se tornava amante. Como entre os adolescentes de seu sex fiction
Coxas (1979), experiment
Eros adolescente:
um panorama da importância das relações entre homens adultos e adolescentes na educação
grega. Tais relações eram símbolo do amor mais verdadeiro que rendia culto à coragem, à beleza
e ao saber234. A homossexualidade, no entanto, não era aceita com menos preconceito que nos
dias atuais, na opinião do autor, reservando o prestígio à pederastia pela formação cultural dos
jovens. Para Mircea Eliade, referindo-se às diversas manifestações religiosas da Grécia arcaica,
235
. Assim, essas relações
pederásticas deitam raízes bem profundas na história ocidental, seja no âmbito da iniciação
mística ou da educação do cidadão da polis.
234
BUFFIÈRE, Félix. Eros adolescent: La pédérastie dans La Grèce antique. Paris: Les Belles Lettres, 1980.
703 p.
235
ELIADE, Mircea. Iniciation, rites, sociétés secretes: naissances mystiques. Paris: Gallimard, 1959. p.
238.
128
e pederasta como Roberto Piva enfrenta contradições milenares e repressões morais bastante
arraigadas na cultura ocidental.
Garotos da Febem estirados na grama num devir vegetal, com seus sexos confundidos
vida pela metade como num banho de sol no pátio da prisão, repartindo a pouca luz que entra
e o pouco de tesão que surge.
O garoto, o crime, o sexo, o sagrado eis aqui novamente esses elementos. Mas o
poema inclui uma fusão dos jovens com a vegetação, num contraste entre um fluxo natural e
outro fluxo semi-morto na prisão. Essas fusões dos garotos com vegetais, animais e
manifestações religiosas arcaicas são importantes na poesia de Piva como veremos. Mas o
criminoso, aqui, é também associado, no tumulto do coração, ao futurismo e à anarquia. Que
ligação seria esta?
todo alumínio de Zung Tumb / minha morte gula do céu azul / meu amor buldogue de pólvora
[...] Jorginho Jane Birkin / 16 anos & 3 de crime / tártaros na pradaria / anarquistas de Bonnot
238
esperando a guilhotina [...] cabelos cacheados do Exu Erva- . A referência ao aeroplano
remete ao famoso Manifesto Técnico da Literatura Futurista que sugere o encontro de imagens
contrastantes, dispostas Desordem . É a feição anárquica, como o furor futurista de
destruição das tradições linguísticas. Mas Roberto Piva, leitor de Mafarka, o futurista239,
provavelmente associava os garotos da Febem a este personagem ícone dos futuristas. Mafarka
e sua virilidade guerreira que deixa atrás de si o rastro de crimes e estupros; que atrela essa
virilidade a uma insaciável sede sexual, ostentando seu priapismo com um falo de mais de dez
metros de comprimento; que entre uma batalha e outra faz uma parada para amar dois jovens,
Habibi e Luba, num homoerotismo levado até o extremo da misoginia. Exatamente o gosto pelo
atroz e grotesco em termos de sexualidade faria o livro de Marinnetti enfrentar um processo
judicial sob acusação de atentado ao pudor. As estrelas futuristas de Roberto Piva certamente
têm esse ímpeto guerreiro, criminoso e sexual.
Como esses criminosos que denunciavam com ações as repressões do estado burguês,
os garotos da Febem assumem ares revolucionários. Mas a aposta de Roberto Piva neste
potencial criativo não se restringe ao campo político. Em seu Manifesto em defesa da poesia &
do delírio 2 - Distribuir
obras dos poetas brasileiros entre os garotos (as) da Febem, únicos (as) capazes de transformar
240
.
Enquanto a delinquência juvenil é vista como perigo social e o jovem como alguém que
se deve trancafiar para castigar e normatizar nas casas de correção, Roberto Piva enfatiza
quanto exatamente a angústia e a violência poderiam ser canalizadas para uma criação poética
de qualidade.
238
PIVA, Roberto. Quizumba. Em:____. Mala na mão & asas pretas obras reunidas volume II
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1983/2006, p. 123.
239
MARINETTI, Filippo Tommaso. Mafarka, le futuriste - roman africain. Paris: E. Sansot & cie,1909. 306p.
240
PIVA, Roberto. Manifesto utópico-ecológico em defesa da poesia & do delírio. Boletim Arte e
Pensamento Ecológico, São Paulo, n. 18, abril 1983, p. 06.
130
Aqui se fecha um ciclo: o poeta criminoso quer tornar o criminoso um poeta. E houve
um criminoso que se tornou grande poeta, e influenciará bastante as produções de Roberto Piva
neste período.
Mas nos deteremos em outras influências. A presença do criminoso e poeta francês Jean
Genet é fundamental. Ele também cheio de tesão pelos criminosos e pelo crime. Ele também
fazendo elogio à crueldade, ao mal e ao potencial viril do crime contra a moral cotidiana. Ele
também um criminoso inveterado que conviveu com toda sorte de bandidos e sofreu toda sorte
de torturas nas prisões.
241
PIVA, Roberto. Eu Roberto Piva animal de rapina. Escrita revista mensal de literatura, São Paulo, n.
33, 1983, p. 17.
131
Trazendo esta frase para sua epígrafe, Roberto Piva fala também não apenas sobre o
criminoso, mas como um criminoso ao menos
como em Genet. Assim, em torno do ato criminoso dos
garotos e do artista gira toda uma poética. Uma poética feita por criminoso e endereçada aos
garotos criminosos. Uma poesia como força do mal que constrói novas formas de vida a partir
da anarquia geral e da desordem dos valores morais convencionais.
O criminoso como animal de rapina coloca em primeiro plano a imagem dos garotos
distintos dos deveres dos homens civilizados. A poesia xamânica de Roberto Piva descreve
garotos incorporando jaguar ou divindades pagãs, num erotismo epifânico, muito similar a esta
sua criação urbana.
242
Ouvres Complètes, V. Paris: Gallimard, 1949/1979. p. 390.
243
fût-
132
9. Roberto Bicelli quer ver frango ciscando na Avenida São João. Flavinho (16
anos) quer rolo de sucuri no tanque da Sé. Eu quero o Jardim Europa invadido
por onças. Tribos de garotos nus dançando em torno da fogueira-Tatuapé. O
Brasil precisa de bacantes244.
-eco
enfatiza a imagem da onça no ambiente urbano. O manifesto, aliás, é material preciosíssimo
para se pensar a ecologia do poeta, pois amplia as intervenções ambientais para a cidade,
entendendo que especialmente ali a relação dos seres vivos com seu meio ambiente deteriora
todo impulso vital. A ideia da onça no Jardim Europa retoma a leitura de Roberto Piva do
ecologista catalão Ramón Margalef i López, especialmente quando aponta que todo ecossistema
está deteriorado na ausência dos grandes predadores. A onça e os animais de rapina
representariam essa potência temida e afastada pela moral cristã. Como em Nietzsche, a
proliferação do animal domesticado (o civilizado) faz a vida perder em força. Assim, podem-se
associar os garotos criminosos e a própria poesia de Piva a esta retomada de uma vontade de
potência para além do bem e do mal.
Está por ser escrita uma afinidade dessas ideias de Piva sobre o selvagem com alguns
textos do amigo e filósofo Vicente Ferreira da Silva com o qual o poeta teve importante
formação no início dos anos 60. Pois o filósofo aponta, já em 1954, que o ímpeto de retorno às
origens naturais do homem era indício do ocaso do humanismo: é a vontade do selvagem em
nós, de tudo aquilo que não é feito pelo homem diferente da visão idílica da natureza como
mera contemplação de plantas e animais. Não há como não relacionar essa experiência do
selvático, com forte teor corporal e pagão, com as ideias de Piva especialmente se
observarmos que o filósofo publica no mesmo número da revista Diálogo, artigo sobre a
religiosidade dos povos arcaicos em extrema sintonia com o xamanismo de Roberto Piva.
São exatamente os garotos nesse devir selvagem que surgem na periferia (Tatuapé) em
tribo, dançando nus em torno da fogueira. É como outra manifestação desse selvático da onça,
as servidoras de Dionísio este deus selvagem e andrógino, com viris chifres de bode, coberto
de cachos de uva e peles de animais. Deus da fertilidade, do vinho, da orgia. Este Deus que em
As Bacas, de Eurípedes, retira as mulheres de suas obrigações rotineiras e as incita à orgia nas
matas vizinhas. Descabeladas, amamentando lobos e fazendo sair leite da terra num simples
roçar dos dedos, estas bacantes viviam uma reconciliação com as forças da natureza de acordo
com Nietzsche245. Porém, Penteu, o governante da cidade, fica furioso com este deus que cria a
desordem e decide ir até as montanhas para sondar o que acontece. Assim, o déspota é vítima
de sua própria mãe: tomada pela loucura dionisíaca, dilacera o corpo do filho e arremessa seus
pedaços ao vento.
É essa fúria orgiástica e criminosa, daquele que incorpora um deus pagão em seu delírio,
que Roberto Piva quer ver. É essa fúria que encontra nos garotos.
Neste mesmo ano de 1986, Roberto Piva é entrevistado por Floriano Martins, num
episódio curioso. Piva perdeu as perguntas e, como não havia cópia, retomou-as de memória
244
PIVA, Roberto. Fragmentos Anárquicos. Revista Artes:, São Paulo, Ano XXII, n. 63, abril-junho 1987, p.
08.
245
NIETZSCHE, Friedrich W. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. (J. Guinsburg, trad.).
São Paulo: Companhia das Letras, 1872/1992. 179 p.
133
246
escreven - .O
247
, publicado na revista argentina Cerdos & Peces, que tinha interesse especial na
criação de Piva:
Não creio no anarquismo, creio na anarquia. Desordem total, sabotagem em
regra, insurreição absoluta. Como disse Léo Ferré, a anarquia é a crítica
desesperada, o desespero da solidão.
Creio também, como Nietzsche, na reaparição gradual do espírito dionisíaco
no mundo contemporâneo. Apesar da caretice generalizada desta década de
1980, creio na grande explosão de Dionísio, deus do vinho, deus das bacanais.
Aqui em São Paulo, a polícia fechou uma sauna gay de garotos do subúrbio, e
chamou os pais dos adolescentes para humilhá-los e depois libertá-los. Foi só
a sauna reabrir e ali estavam outra vez os garotos desafiando a autoridade
policial, paternal e moral. Nada pode controlar o desejo. William Blake dizia
que um desejo que se deixa reprimir não é um desejo suficientemente forte.
No Brasil, neste momento, vemos a Igreja Católica estender suas teias
venenosas de moral castradora sobre a nação. Mas Cristo é Dionísio de
ressaca. Debaixo dessa cruz dormem com um olho aberto todos os deuses
pagãos. O golpe de estado erótico há de se suceder.
O golpe darão os poetas, que são os que exploram o verdadeiro ventre do
pântano. Podem ser também os outsiders, os loucos, os adolescentes
rebeldes, os bruxos, os amantes fora da lei, os anárquicos (não os
anarquistas), os drogados, os desordenados, os visionários.
Roberto Piva acredita que a captura do corpo numa sociedade burguesa não deve se
restringir às questões da economia-política ou à alienação do trabalho. Para Piva é o sexo o
motor da história. Logo, abre-se o flanco para se criticar o prazer tornado utilidade social: a
atividade criativa cerceada pelo trabalho assalariado; o prazer erótico engessado na família
246
MARTINS, Floriano. Roberto Piva no miolo do furacão. Agulha revista de cultura. n. 53, 2006.
Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/ag53piva.htm. Acesso em: 17 fev. 2009.
247
PIVA, Roberto. O erotismo dará o golpe de estado. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção
Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1987a/2009. pp. 82-87.
248
patriarcal; a expressão política subjugada pelo Estado. Essa maneira de entender a sociedade
civilizada a partir da moral que reprime a paixão é tributária de Charles Fourier, que forma linda
imagem em poema de Roberto Piva:
249
.
É bem similar à ideia de Piva sobre o golpe de estado via experiência sexual. Em outro
poema do mesmo período, denominado Mortikultura, o poeta traz a seguinte nota:
P.S . Em qualquer horário da manhã tarde ou noite os passageiros sentados
nos ônibus estão dormindo esmagados pelo capitalismo selvagem que lhes
tira o sangue e pele & a energia sexual um bagaço generalizado
testemunhando este período de barbárie e sexualidade infantil sendo usada
para movimentar a engrenagem capitalista (ver Eros & Civilização H.
a derrubada251.
movimento trotskista ligado à Organização Socialista Internacionalista, cujo espaço cultural era
frequentado por Roberto Piva e Claudio Willer no final dos anos 70. Roberto Piva articula esta
ideia com o mencionado livro de Hebert Marcuse, no qual o autor parte exatamente da
civilização como empreitada de repressão dos instintos sexuais muito similar a Fourier. Se
também quer chegar a uma sociedade sem repressão, Marcuse parte do pressuposto otimista
daquela década de 1950 de que o grau de desenvolvimento das forças produtivas com sua
automação liberaria o trabalhador a investir seus instintos vitais em atividades distintas da
produtividade do trabalho alienado. Daí a posta do filósofo em atividades nas quais o princípio
da produtividade é substituído pelo prazer. Marcuse enfatiza sobretudo o prazer, o jogo, a
imaginação, num devir sensual de Eros que cria um outro modo de viver. São atividades da
esfera estética, na qual o prazer, a sensualidade, a beleza e a verdade caminham juntos. Ao
contrário do mito de Prometeu e a ênfase na produtividade, Marcuse busca respaldo mítico no
mito de Orfeu e de Narciso para fundamentar esse novo modo de vida. Aí vem a parte que mais
Narciso, êle rejeita o Eros normal, não por um ideal ascético, mas por um Eros mais pleno. Tal
249
PIVA, Roberto. As desgraças do Moneyteísmo. Versus um jornal de política, cultura e idéias, São
Paulo, n. 2, maio/junho, 1978, p. 31.
250
FOURIER, Charles. Ouevres Complètes, Tomo I, Théorie des Quatre Mouvements. Paris: Librairie
Sociétaire, 1846. 336 p.
251
PIVA, Roberto. Mortikultura. Versus um jornal de política, cultura e idéias, São Paulo, n. 22, 1978, p.
36.
135
252
como Narciso, protesta contra a ordem repressiva da sexuali . Ou seja, na
homossexualidade simbolizada por Orfeu, Marcuse vê uma ruptura à domesticação do sexo na
instituição da família e sua restrição à procriação. O sexo produtivo é a captura da atividade
sexual pelo princípio de utilidade social, ou seja, o prazer restrito ao lazer como parceiro da
canalização das energias sexuais para o trabalho. Marcuse considera a exploração dos prazeres
essa transformação era a própria superação do trabalho alienado a partir de uma perspectiva
É este mesmo conjunto de ideias que aparece no golpe de estado erótico. Porém, aí
Roberto Piva faz uma importante inversão: o golpe de estado é dado pela escória. Como bem
lembra Claudio Willer (2005), o poeta torna o lúmpen o agente revolucionário. No pensamento
degradada da
sociedade que se prestava a toda sorte de manipulações políticas quando recrutada. É famosa
254
desintegrada... que os franceses chama la bohème .
É a famosa boemia. Retomando o texto de Piva, são exatamente figuras da escória que
dariam o golpe de estado erótico. A transformação social viria não pela inserção no mundo do
trabalho, mas exatamente por estarem fora dele e experimentarem novos prazeres e novas
formas de vida.
única vida, e provém do Corpo [...] 3. Energia é Deleite Eterno. Quem refreia o desejo assim o
faz porque o seu é fraco o suficiente para ser refreado; e o refreador, ou razão, usurpa-lhe o
255
. É essa vida potente que vibra nos corpos dos garotos que dá
ensejo à formulação do golpe de estado erótico. E os garotos surgem no final do texto,
prefigurando o futuro:
252
MARCUSE, Hebert. Eros e a civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 5. ed.
(Álvaro Cabral, trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 1955/1972. p. 155.
253
Ibidem, p. 177.
254
MARX, Karl. O 18 brumário e cartas a Kugelmann. (Leandro Konder, trad.) Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1885/1969. p. 70.
255
BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno; O livro de Thel. (José Antônio Arantes, trad.) 4ªed.
São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 18.
136
É um devir selvagem dos garotos espalhando o terror, similar à tal onça no Jardim
Europa. A imagem dos garotos suburbanos encarna as experiências de Roberto Piva em relação
à anarquia, à ecologia, às manifestações arcaicas do êxtase e ao erotismo. São garotos-animais
Animales Miserables
Ni el cerdo, ni la rata, ni la cucaracha, belos hermanos hambrientos de
hambre, desesperados de sentido, babeados de miedo. No, miserables son
las hormigas que arrastran el futuro sobre sus hombros, y las abejas atascadas
em uma pesadilla social y todo lo que ordeña, domina, utiliza y, por sobre
todos, el hombre enorme que sostiene el mundo sobre sus hombros,
sonriendo com dignidade, com su cara de idiota que sólo la nada observa; y
el pequeno que va amontonando piedritos sobre la estúpida mole de miles
de siglos y que sube y baja los pisos contando el mismo aburrido chiste hace
miles de años.
Miserables todos estos rieles y escaleras y calles y ascensores y barcos que
matan a millones de hombres sin que nunca nadie llegue a ninguna parte y ni
siquiera pueda volver. Miserables estos ojos que ya no vem más que lo que
se les ordena, estas manos que tocan lo que ya saben.
Pero no los muchachos que arrastran sus navajas por las calles, ni las
muchachas que salen a vender bien caro su sexo, ni nadie que ando por ahi
sin saber por qué diablos anda257.
tornar os garotos selvagens com garras de leopardo. Agora, é toda a rede social tomada por
figuras animais. O trabalho e a obediência das formigas e das abelhas é relacionado ao trabalho
do homem. Tanto aqueles que acumulam com monotonia suas pequenas mentiras por séculos,
como aqueles messiânicos que pretendem carregar o futuro da humanidade nos ombros.
Alguma semelhança com o trabalhador assalariado e o revolucionário socialista?
Esses homens miseráveis assemelham-se a máquinas que matam por fazerem aquilo
que estava programado por ordem de outrem, sem ver além do ordenado, sem experimentar
nada além do já sabido.
256
PIVA, Roberto. O erotismo dará o golpe de estado. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção
Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1987/2009. p. 87.
257
PIVA, Roberto. Animales Miserables. Cerdos & Peces, Buenos Aires, n. 19, outubro de 1989, p. 27.
137
mesmos garotos selvagens com garras de leopardo ao sol de néon? Aqueles tribais dançando
como bacantes em torno da fogueira?
Desde o início de sua criação poética, o paulistano Roberto Piva identifica poesia e vida.
Ora suas leituras se transformam em vivências concretas, como forma de verter em vida os
versos: realizar os poemas, ora os próprios poetas irrompem nas cenas urbanas como presença
física no imaginário de Piva pululando Mário de Andrade na solidão de um comboio de
maconha ou encontrando Lorca num hospital da Lapa. A encarnação da poesia leva Piva a
alvez não seja nada mais
do que um personagem do Inferno de Dante, que saltou fora da obra para deixar a realidade em
259. Possessão da potência poética? Encarnação da letra na vida? Piva
parafraseia Nietzsche em seu grande poema filosófico, Zaratustra, quando propunha tornar
sangue a leitura. Ou seja, realizar o poema, tornar presença a representação, estar possesso das
figuras literárias ou verter no sangue os versos é uma forma de vivenciar a poesia.
Mas a relação entre poesia e vida não para por aí. Além da poesia tornada vida há a vida
tornada poesia. É assim que Piva atrela toda sua criação poética a experiências vividas. É poesia
inscrita primeiro no corpo e depois escrita em versos.
Focarei este momento final da poética de Roberto Piva, mas a partir de um encontro no
momento inicial de sua criação poética. Pois sua poesia foi bastante influenciada pela
convivência com o amigo Vicente Ferreira da Silva considerado o filósofo mais original do
Brasil, por Oswald de Andrade. As recordações de Piva sobre essa amizade, do início dos anos
1960, acompanharão toda a sua trajetória. Em diversas entrevistas, o poeta menciona suas
afinidades com o filósofo na perspectiva pagã e anti-humanista da vida, na crítica ao cristianismo
e comunismo, e nas brechas para a reaparição do espírito dionisíaco no mundo contemporâneo.
Piva estudou com Ferreira da Silva, durante um ano, o clássico Ser e Tempo, de Martin
Heidegger, além de descobrir com ele os estudos de Mircea Eliade. Na casa do filósofo
paulistano, Roberto Piva também conheceu e conversou com o português Eudoro de Sousa,
sobre a fascinação de ambos por Fernando Pessoa.
De certa forma, Roberto Piva encarna as potências míticas originárias tal como
presentes nos estudos de Vicente Ferreira da Silva, Eudoro de Sousa e Mircea Eliade. Por essas
258
Publicado originalmente na Revista dEsEnrEdos, ano VII, número 23, Teresina/Piauí, maio de 2015.
259
MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. In: MARTINS, Floriano. O começo da busca: o
surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Transversais). p.
241-242
140
Em entrevista a Ademir Assunção, concedida em 1991, Roberto Piva faz alusão a seu
livro Ciclones publicado apenas em 1997
origens da poesia. Os primeiros poetas foram xamãs, foram profetas, faziam poesias que
relatavam os seus relacionamentos com espíritos tutelares, com os totens, com as forças
260
grandes xamãs, foram pessoas que incorporavam espíritos, que eram possessos de uma força
A poesia xamânica é feita por poetas que incorporavam forças míticas e relataram suas
aventuras extáticas por meio da poesia. Piva faz jus a suas leituras de Mircea Eliade,
especialmente que o poeta lera já em
1961. Após abrangente abordagem sobre as diversas expressões do xamanismo no mundo
arcaico, Eliade (1968) pondera que no êxtase xamânico estão as raízes da poesia: as narrativas
das aventuras extáticas do xamã dariam origem à épica, ao passo que o arrebatamento lírico
-
Piva crava a origem da poesia em rituais ancestrais, mas como narração posterior à
experiência espiritual.
O filósofo Eudoro de Sousa salienta que a poesia surge como relato externo à cena mítica
primordial, em uma narrativa que congela em palavras seu fluxo visceral. A expressão verbal
acaba por permitir ao intelecto se debruçar sobre o mito no sentido de decifrá-lo. O mito
entendido como relato ou narração, não como a expressão da sensibilidade de quem viveu o
êxtase, acaba por redundar em mito-logia ou seja, em interpretação do mito pelo Logos. Nesse
contexto, a poesia antecede a captura do vivido pelo pensado que está na aurora da filosofia
ocidental. Assim, a poesia mata o mito.
Ora, como Eudoro de Sousa entende o mítico e, mais especialmente, qual seria a
expressão mítica que não o relato verbal (oral ou escrito)?
Para o filósofo, o m -
homem-mundo, numa unidade primordial. O êxtase possui seu fluir apenas no ambiente cultual.
O mito é a presença dos deuses no homem e no mundo. Assim, sua expressão é vivenciada.
Foquemos esta expressão.
261.
Mito é mistério que se expressa no corpo, como acontecimento pleno de sentido
262. É o
homem como sensibilidade, como corpo possesso por deus uma experiência que não provém
260
ASSUNÇÃO, Ademir. A poesia selvagem e de possessão de Roberto Piva. (Entrevista). In: COHN, Sérgio
(org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1991/2009. p. 98.
261
SOUSA, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2 ed. Brasília: Editora UNB, 1988. p. 48.
262
Ibidem, p. 69.
141
Por aí se entende como a linguagem verbal mata a experiência mítica originária, pois
impõe um elemento extrínseco à sua expressão corporal que pretende dizer a verdade sobre o
mítico que está no mito e em todos os mitos é a linguagem verbal, falada ou escrita, na exata
medida em que, muito mais do que as outras, se ressente de um compromisso da sensibilidade
com a inteligibilidade, assumido por esta, em vantagem sua, em desvantagem da
265
viagem extática do xamã, como experiência com as palavras, mas ela própria se identifica com
o drama ritual originário. A po
267.
Ao que o poeta responde
afirmativamente. Ou seja, outra possibilidade seria pensar nos cantos do xamã como poesia
cantada que desencadeia o êxtase. A poesia, assim, não seria posterior à viagem extática, mas,
ao contrário, seu detonador. Mas a resposta de Piva é indubitável. Logo, o que significaria a
263
Idem.
264
SOUSA, Eudoro de. Mitologia I: mistério e surgimento do mundo. 2 ed. Brasília: Editora UNB, 1988. p.
97.
265
SOUSA, Eudoro de. Mitologia II, op. cit., p. 59.
266
PIVA, Roberto. poesia = xamanismo = técnicas arcaicas do êxtase. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto
Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1997/2009.
267
MONTEIRO, Danilo; CESARINO, Pedro; COHN, Sergio. O renascimento do maravilhoso. (Entrevista). Em:
COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2007/2009. p. 173.
268
ELIADE, Mircea. . 2 ed. Paris: Payot, 1968.
142
De acordo com Eudoro de Sousa269, no entanto, essa visão do êxtase reflete uma
ek-stasis
-fora-de-
lidade ou a própria condição humana:
No fundo, tanto Eliade como Eudoro entendem o êxtase como um processo similar: o
estar fora de si, no sentido de evadir da condição humana cotidiana para um outro modo de ser
que permite o devir do homem na força dos
no lugar do dever.
3. Poesia e anti-humanismo
Comecemos por pensar no humano. Nesta sua última fase da poesia extática, Piva
menciona várias vezes sua crítica ao antropocentrismo, concomitante ao entendimento da
poesia para além do humano. Em entrevista a Miguel de Almeida, por exemplo, o poeta afirma
que a realidade humana [...] O antropocentrismo subsiste ainda apenas nesse túmulo caiado por
fora que é a Igreja Católica e nos partidos de esquerda [....] Os tambores do irracional, graças
272.
269
SOUSA, Eudoro de. Mitologia II, op. cit., p. 77.
270
Ibidem, p. 78.
271
WEINTRAUB, Fabio. Conversa com Roberto Piva. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2000/2009.
272
ALMEIDA, Miguel. Epifanias do erotismo sagrado. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1993/2009. p. 109.
143
A cisão começa no próprio ser-homem. Como coadjuvante no drama ritual dos deuses,
na origem mítica do mundo, ele encarnava as vibrações divinas em sua sensibilidade, de maneira
totalmente exterior (gestos, dança, canto). A esse corpo em devir, o humanismo opõe uma alma
imutável. À proliferação das sensações objetivas, a subjetividade impõe uma -
273. A relação com as coisas é transferida do corpo para a intelecção tal como alerta
Eudoro na relação racional com o mítico. Assim, o homem interior buscou se construir como
- 274.
externo e sua independência em relação ao homem. O fora como uma extensão do dentro é
forma de dominar forças intempestivas e imprevisíveis por uma ideia de estabilidade e
previsibilidade.
dominado pela consciência. Logo, esse mundo dessacralizado, posto pela cisão sujeito-objeto,
está no cerne de sua captura científica como pura fisicalidade e, por conseguinte, como
suscetível à manipulação humana: a coisificação do mundo como mera mecanicidade. Daí a
natureza manipulável e utilitária, cujos efeitos na degradação do meio-ambiente conhecemos
bem.
273
SILVA, Vicente Ferreira da. A natureza do simbolismo. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros
ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1962/2002. p. 460.
274
SILVA, Vicente Ferreira da. Raça e mito. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios.
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1959/2002. p. 431.
275
-Fusivo. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios.
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1956/2002. p. 392.
144
Pensemos agora no divino. Expulsando o sagrado das coisas, o homem chama para si a
totalidade do sagrado monopoliza o divino. É um Deus apenas para o homem. Não apenas um
Deus do homem, é também um Deus humanizado. Em outras palavras, essa identificação de
Deus com o homem interior, não apenas torna o homem central na criação à imagem e
semelhança de Deus -
como afirma Vicente Ferreira da Silva. Isto significa que é um deus na medida do humano cristão,
também uma divindade meramente interior e sem materialidade, como pura alma que paira
-
os valores -
Para Vicente, assim como para Piva, esta sabedoria advém do homem fora-de-si
(êxtase), na negação da condição humana pela experiência mítica do culto arcaico. Ao negar o
humano como centro do universo, todo o processo civilizatório, a cidade como espaço do
Daí se ente
-humanismo radical será visto como: fuga espacial, com a crítica ao
ambiente urbano; e temporal, com a negação da temporalidade linear por um tempo mítico de
eterno retorno à origem.
Roberto Piva já foi considerado um poeta da cidade, tendo seu Paranóia (1963) sido
comparado por várias vezes com a Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade. E certamente
276
SILVA, Vicente Ferreira da. A natureza do simbolismo. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros
ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1962/2002. p. 459.
277
SILVA, Vicente Ferreira da. A fé nas origens. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios.
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1955/2002. p. 383.
145
Piva buscou a força de sua poesia nas vivências subversivas do ambiente urbano. Os diálogos
intertextuais de Paranóia, além da Paulicéia de Mário de Andrade, trazem Nova York cantada
por Walt Whitman, García Lorca, Allen Ginsberg; a Paris de Baudelaire e Apollinaire; e a Londres
das Iluminações de Rimbaud.
ordenada.
Tal postura se intensifica em Paranóia. O locus louco do poeta fendido, tomado por
alucinações, delírios e narcóticos é o avesso da sobriedade citadina. A cidade erotizada, como
palco aberto de todos os prazeres, não condiz com a visão utilitária do corpo adestrado para o
trabalho. E os paralelos são inúmeros: a amizade como fonte de sociabilidade libertária distante
da captura pela instituição de controle da família; a vadiagem pelos becos, submundos,
periferias, como avesso dos espaços oficiais controlados; a noite e suas obscuridades contra o
dia e suas luzes; e por aí em diante. Tudo isso no frenesi de uma linguagem poética em versos
longos e quebradiços, com imagens sobrepostas na velocidade e fragmentação da cidade.
Dessa perspectiva, Piva vivencia São Paulo como uma anticidade, pois é o ambiente
urbano assaltado por forças pagãs e mágicas. É uma cidade habitada por vibrações pagãs e
Assim, Piva foi poeta contra a cidade: inicialmente contra ela escancarando suas tensões
em suas próprias estranhas; e, depois, transferindo suas experiências mágico-pagãs da cidade
para o
278
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 24-25.
279
HERÓIS da decadensia. Direção de Tadeu Jungle e Walter Silveira. São Paulo, 1987.
146
seus poemas com os nomes das cidades em que vivenciava seu ritual xamânico (Ilha Comprida,
Jarinu, Mairiporã, etc.). A saída da cidade-sucata não é a perda de uma espacialidade física da
poesia. Piva buscava um espaço que não fosse controlado pelo humano, mas sim pela irradiação
de hierofanias, tão características de sua poética xamânica.
Ferreira da Silva vê nesse impulso de volta às origens o contato com o selvagem em nós,
distante do humanismo da sociedade e da civilização. É interessante notar que ele vivencia esse
281
. Ou seja, associa essa experiência com uma forma de fazer poesia que não se compraz
com o humano, mas exalta as realidades não-humanas.
Já se pode antever onde quero chegar. Piva também propõe a volta às origens da poesia
na experiência mítica arcaica do xamanismo, vivenciando uma poesia que lida com as
-
282
selva . Seria exagerado supervalorizar a influência da convivência com
Vicente no futuro da poesia de Piva? Tal influência é ainda maior se observamos que no mesmo
número da revista Diálogo em que foi publicado o ensaio Fé nas Origens, também está A
experiência do divino nos povos aurorais, como veremos a seguir.
280
SILVA, Vicente Ferreira da. A fé nas origens. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios.
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1955/2002. p. 386.
281
Idem.
282
ASSUNÇÃO, Ademir. A poesia selvagem e de possessão de Roberto Piva, op. cit., p. 100.
283
PIVA, Roberto. Cinema em pânico. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de
Janeiro: Azougue, 1986/2009. p. 73.
147
Aqui o retorno às origens é um plano de fuga daquilo que a civilização chama de história.
E é a ela que nos voltaremos.
A busca pela experiência de uma poesia como êxtase nos conduziu para as realidades
Em seu ensaio intitulado História e Meta-história, Vicente Ferreira da Silva inicia suas
Diante desse fluir sempre renovado das forças numinosas, a história como
temporalização linear representa a domesticação do fluxo em uma sequência engessada de
causalidade: passado-presente-futuro. É nesse processo de uniformização do tempo que se
insere a história humana.
Se, de um lado, o pensamento humanista propala uma história como palco das ações do
homem em uma temporalidade fixada cronologicamente, por outro lado a experiência mítica
propaga uma trans-história como palco das hierofanias divinas na atemporalidade do fluxo
originário.
286.
É o mesmo Eliade
284
SILVA, Vicente Ferreira da. História e meta-história. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros
ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1959/2002. p. 436.
285
Ibidem, p. 438.
286
SOUSA, Eudoro de. Mitologia I, op. cit., p. 86.
287
ELIADE, Mircea. Le chamanisme et , op. cit., p. 12.
148
Toda poesia extática de Piva reconduz à experiência xamânica dos povos arcaicos,
especialmente em sua relação com o sagrado. É interessante notar que Piva acredita que a
descoberta da cultura xamânica será a grande característica do século XXI. Seu caminho parece
ser da crise do antropocentrismo à (re)vivência da experiência arcaica. Daí o paradoxo do futuro
do homem ser colocado em seu passado mais remoto em mais uma demonstração de uma
temporalidade de eterno retorno.
fechamento de um ciclo histórico, o que significa uma nova abertura para a fascinação divina. O
filósofo inicia assim seu ensaio:
Chamamos povos aurorais ou originários àqueles que viveram e ainda vivem
o mito como a única e absoluta forma de realidade. Nesta fase da história não
se recortou ainda uma natureza, como sistema legal de factos físicos, diante
de uma esfera sobrenatural e imaterial, refúgio dos valores sagrados. Para
essa espécie de consciência não existe uma dualidade entre o humano e o
divino, abrangendo as forças numinosas todo o âmbito das manifestações
fenomênicas. Não existindo ainda, portanto, uma experiência da natureza
que, como um anteparo, possa proteger ou resguardar a consciência da
gravitação candente da experiência religiosa, todas as manifestações da vida
transmitem a exuberância da lei mítica289.
Veja que a ênfase do filósofo recai sobre uma experiência mítica originária em que o
homem encontra-se fundido com o mundo, ambos expressando a manifestação numinosa dos
deuses. O vegetal, o animal, a vida dos astros, tal como depois designaríamos, formavam um
ifuso, pois não há uma localização
espacial dos elementos. Em outra ocasião, Ferreira da Silva tomará o exemplo da Lua vivenciada
como emanação de forças cósmicas ligadas ao lado noturno da vida, esparsas em todo impulso
vital. Ou seja, não era um astro fixado astronomicamente em determinado ponto do céu: não
sendo regida pelo princípio de identidade e substância, a Lua fluía no homem e em todos os
elementos.
288
ELIADE, Mircea. Paris: Gallimard, 1962. (Collection Idées). p. 139.
289
SILVA, Vicente Ferreira da. A experiência do divino nos povos aurorais. Em: ______. Dialéctica das
consciências e outros ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1955/2002. p. 362.
149
Essa mesma fluidez permitia aos homens fundirem-se nas demais manifestações
míticas. O homem também sem o claustro da substância e identidade possuía um corpo poroso,
aberto às forças numinosas como na incorporação de um vegetal ou animal. Trata-se de uma
- -
canguru - 290. Aqui o homem em devir-animal ou vegetal vivencia a potência
mítica como abertura às diversas possibilidades de ser. Registra também um momento em que
não há cisão ou hierarquia entre homem e o mundo, apenas o fluir disperso dos seres em uma
pulsação amorfa. Falar aqui em união deus-homem-mundo é ainda antropocêntrico, pois não
se pode integrar o que não é cindido.
Por fim, essa experiência teofânica era originária no sentido de estar ligada à Origem.
Não havendo uma localização temporal dos fenômenos de acordo com uma escala linear, cada
epifania iniciava o homem. Em outras palavras, o mítico suspendia todas as representações
humanas e fazia ascender uma nova possibilidade de ser-homem para além das condições
profanas que lhe garantiam a sobrevivência. É exatamente o êxtase como esse mergulho nas
como presença fulgurante dos deuses no rito. Aqui, Deus é devir. É o conjunto de suas
manifestações epifânicas. Na cena mítica originária, o homem se livra de ser ente finito e se abre
para o devir das potências míticas. Em outras palavras, todas as representações do homem
sobre si, mundo, Deus, não o acompanham nessa viagem. Assim, a experiência epifânica é
terrível. A criação a partir do estar-fora-de-si suspende o humano habitual e coloca em risco sua
própria existência.
290
Ibidem, p. 367.
291
BORGES, Paulo A. E. Imaginário e mitologia. Em: ARAÚJO, Alberto Felipe; BAPTISTA, Fernando Paulo
(Coords.). Variações sobre o imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. p. 49.
292
SILVA, Vicente Ferreira da. A fé nas origens, op. cit., p. 375.
150
Mas estando fora-de-si e fluindo nos seres, o ser-homem acessa as realidades além do
homem, tendo, momentaneamente, o poder mesmo de criar novas possibilidades de ser além
do já determinado. A viagem extática do xamã é o devir-homem no fluido do ser. Daí seu fluir
nas plantas, animais, astros, etc. Pode-se tocar o sol e fazer surgir o dia ou trazer um arco-íris no
pescoço. Poesia é epifania.
Abre-se novo campo de possibilidades de ser. O poeta entra em contato com as forças
de criação das próprias coisas e ele mesmo, ser-homem, entra em variação, devir. A poesia
epifânica abre novas veredas para o devir humano, expressando a vida como vontade de
potência, como força que expande a vida para além de seus limites conhecidos.
primeira vez, as revela como existentes e assim passam a existir. O re-velar deve ser tomado em
duas acepções: de pôr a descoberto, mas também de velar novamente, pois a palavra no mesmo
momento em que nomeia, encerra um conteúdo e o abre como mistério.
8. Da potência do nome
A narrativa mítica ou relato verbal ficou em segundo plano, mais como aquilo que mata
o mito que uma forma de (re)vivê-lo. É o próprio Piva, quando conclui que a poesia é corpo, que
293
HEIDEGGER, Martin. Origen de la obra de arte. Em: ______. Arte y poesia. 2. ed. (Samuel Ramos, trad.).
México: FCE, 1952/2006.
294
A influência do texto de Heidegger e sua palavra fundadora se faz sentir no primeiro registro
audiovisual de Roberto Piva, durante uma passeata pela redemocratização do país, em 1977, quando
arte do cérebro
da população e eles estão tentando repor esta parte do cérebro. A única forma de repô-la é através da
palavra . Vide filme Assombração
Urbana.
295
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin y la esencia de la poesía. Em: ______. Arte y poesia. 2. ed. (Samuel
Ramos, trad.). México: FCE, 1937/2006.
151
Vimos no início do texto que a vivência de Piva como leitor era muito distinta da leitura
como entretenimento ou volteios intelectuais, como muito se pratica atualmente. Ler é (re)viver
o vivido subjacente ao escrito. É detonar a experiência originária.
Ciclones (1997) tem o título inspirado nos versos do poeta visionário Malcolm de Chazal:
Essa poesia como magia está longe de ser um produto humano, ou seja, literatura.
Defrontar-nos com o poema como literatura, com a postura moderna de decifração, é perdê-lo
como epifania. Se o poeta propõe a crítica ao mundo utilitário e dessacralizado em prol de sua
vivência mítica, como a experiência dos povos aurorais, o leitor pode seguir o mesmo caminho.
A palavra cantada surge como presença e não representação, como entre os povos aurorais.
Em sua viagem ao país dos Tarahumaras, Antonin Artaud de cuja leitura Piva sentiu
pela primeira vez a força do xamanismo comenta uma situação surpreendente. Não se podia
296
CHAZAL, Malcolm de. Ma révolution: lettre à Alexandrian. Paris: Le Temps Quíl Fait, 1983. p. 65. Do
297
Ibidem, p. 60.
152
pronunciar o nome da divindade desse povo, Ciguri, pois a nomeação era o próprio deus
presente. Artaud ficou estarrecido com as feições de terror em um índio ao ouvi-
pois o nome trazia em seu corpo o 298.
uma relação quase mágica entre o nome e a coisa nomeada, pela qual o nome traz consigo, uma
vez pronunciado, a presen 299.
E ao ouvir essa palavra cantada, o homem arcaico tinha uma experiência mítica
originária, com as características que temos aqui apresentado:
Mas sobretudo a palavra cantada tinha o poder de fazer o mundo e o tempo
retornarem à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e
opulência de vida com que vieram à luz pela primeira vez. A recitação de
cantos cosmogônicos tinha o poder de pôr os doentes que os ouvissem em
contato com as fontes originárias da Vida e restabelecer-lhes a saúde, tal o
poder e impacto que a força da palavra tinha sobre seus ouvintes 300.
Parece esse nume-nome que surge a Piva como leitor, como vimos no início deste texto.
A palavra como presença, fazendo encontrar poetas e personagens em suas andanças,
realizando poemas (tornando-os reais) sendo, ele próprio, um personagem que entorna da
página para transformar o cotidiano.
Aqui a poesia é magia, não meramente literatura. Daí a ênfase dos poetas que praticam
a poesia étnica ou xamânica na performance, como forma de trazer a totalidade da presença do
301
poeta- -como- . Trata-se, em suma, de
re-criar a cena mítica originária do xamã, com seus gestos, vozes, danças e toda expressão
corporal.
Considerações finais
A poesia extática é acessar realidades não humanas por meio da epifania ritual
encarnada. É, portanto, suspensão do humano, sua história, sua civilização, seu espaço citadino,
298
ARTAUD, Antonin. Les Tarahumaras. Em: ______. Ouvres Complètes, vol. IX. Paris: Gallimard, 1971.p.
14.
299
TORRANO, Jaa. O mundo como função de musas. Em: HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses.
(estudo e tradução Jaa Torrano). São Paulo: Iluminuras, 2007. p. 17.
300
Ibidem, p. 19.
301
ROTHENBERG, Jerome. Pré-Face para um simpósio sobre Etnopoética. Em: ______. Etnopoesia do
milênio (Sergio Cohn, org.; Luci Collin, trad.). Rio de Janeiro: Azougue, 1975/2006. p. 93.
153
seu subjetivismo. É devir novas possibilidades de ser, além do homem. Neste contexto, o além
do homem é necessariamente superação do humanismo.
Floriano Martins, um dos principais comentadores de Piva, tem razão ao observar que
302
, por exemplo, permito-me dizer exatamente o contrário. Roberto Piva
encarna, antes, um anti-humanismo radical.
Carlos Felipe Moisés, amigo e autor de um importante texto sobre Piva, Vida
Experimental, acerta em cheio quando atrela sua poética à vida, àquela vida em plenitude das
303
. Ora, a plenitude da vida dionisíaca em Piva é extremamente tópica,
vivida em eterno retorno no instante. O além humano de Piva não é o humano do além (uma
utopia a ser vivida coletivamente no futuro).
Coda
da experiência extática
a vivência do nume
&
a potência do nome
302
MARTINS, Floriano. Surrealismo e América Latina. Em: ______. O começo da busca: o surrealismo na
poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Transversais). p. 45.
303
MOISÉS, Carlos Felipe. Vida experimental. Em: ______. O desconcerto do mundo: do renascimento ao
surrealismo. São Paulo: Escrituras, 2001.
155
Paulinho Paiakan304
Piva recorre a tradição pagã para exaltar Paiakan. O poema se inicia com a proximidade
rege a chegada da madrugada, com toda sua aura
sombria. É o momento em que as energias mais obscuras do homem se libertam, com toda sua
vibração incontrolável. É o avesso da Luz do dia e a captura dos instintos pelo cotidiano regulado,
pelas instituições sociais e pela pretensa clareza do conhecimento. A noite é a entrega ao lado
mais visceral e selvagem do humano bem retratado na figura do homem que se faz lobo
(lobisomem). Essa vivência selvagem também tem lugar no sonho, reflexo da ponta mais
imprevisível do homem - que alguns denominam inconsciente.
304
Poema escrito em 1992, publicado originalmente na Revista Azougue em 1996. O texto consultado
Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi,
Bicelli e uma trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.
156
Mas esse contato com nosso lobo não se dá de forma harmoniosa, mas terrível. Não
apenas sonho, mas pesadelo. É a Hora do Lobo (1968), de Igmar Bergman, filme no qual o pintor
Johan é tomado por loucuras repentinas, como naquela em que mata, abruptamente, um garoto
e lança seu corpo ao mar. Atordoado, o personagem passa as noites em claro, dormindo apenas
ao romper da aurora. Em uma dessas noites, afirma:
Ouça o silêncio...Houve um tempo em que as noites eram para se dormir
profundamente, sem sonhos. Dormir e acordar sem medo (...) Fiquemos
acordados até a aurora, todas as noites. Mas esta hora é a pior. Você conhece
ligados ao Sul trazem o fogo, que simboliza mudanças rápidas, assustadoras, tomadas por
paixões turbulentas. A sexualidade ligada ao fogo e sua intempestividade, associada geralmente
à Juventude.
em Piva é bastante comum, especialmente a partir de Quizumba (1983). Sabe-se que participava
de rituais do candomblé, sendo amigo de Marco Antônio de Ossaim, a quem dedica um poema.
Exu como orixá errante, sem paradeiro, como acesso aos outros orixás, com suas oferendas
sangrentas. A força de Exu naqueles seres comunicativos, amigos, extrovertidos e também
cruéis, impulsivos. Exu representado sempre com falo ereto, símbolo da fertilidade conforme
menciona Piva em entrevista306. Exú das confusões, das discórdias. Piva coloca o orixá como
criador das coisas selvagens e livres, em clara aproximação ao índio.
orixá ligado à Justiça. Fogo do orixá simboliza seu caráter viril, atrevido e violento, com o qual
fazia justiça cruel aos malfeitores. Xangô representa o poder de fazer justiça, mas certamente
muito distinta da justiça cristã e seu aparato jurídico. Piva entendia o candomblé, e as formas
pagãs de maneira geral, como religiões que colocavam os deuses em primeiro lugar, não os
humanos307. Ou seja, importa a manifestação dos deuses por meio dos humanos, não estes
últimos. Um tapa na cara dos humanistas ecológicos que certamente colocam Letícia no lugar
da vítima com toda sua piedade e Paiakan no lugar do algoz criminoso que
305
A hora do lobo. Direção: Igmar Bergman. 1968.
306
Entrevista com Roberto Piva. Globolivros.2 008. Disponível em:
http://www.globolivros.globo.com/downloads/pdf/Pivafala.pdfData da consulta: 04/11/2011.
307
Assombração Urbana Roberto Piva. Produção de Valesca Dios. São Paulo: SP filmes / TV Cultura,
2004. (55 min.).
157
deve ser punido exemplarmente (com grande misericórdia, é claro!). O bem e o mal tão afeitos
ao maniqueísmo monoteísta. Mas o mundo pagão não conhece essa dicotomia e sua justiça
certamente não favorece o mais fraco.
Com a menção a Xangô queimando o humanismo, Piva pode ter querido ressaltar uma
moral pagã contra a moral cristã humanista. Uma moral em que é exaltada a força, a virilidade,
a vontade de potência, em detrimento do elogio ao mais fraco, ao inofensivo, ou àquele que
teme a força como se verá a seguir.
solar simboliza a mudança das estações, a renovação, a vida nova. Na tradição do misticismo
nórdico, cada mudança de estação era festejada em sabbats, rituais pagãos em que se celebra
a força da natureza - em meio a orgias, ingestão de alucinógenos, dança, canto e sacrifícios.
É bem sabido que Paiakan e sua mulher buscavam ter um filho homem para suceder o
pai na liderança dos caiapós. No entanto, tiveram três filhas e um problema de saúde os fez
perder o filho homem, problema que redundou em uma cirurgia de colação das trompas de
Irekran o casal chegou a processar o médico pelo procedimento. O relato de Letícia é incisivo:
a mulher do cacique penetrou a mão em seu ventre como que para arrancá-lo, lambuzando de
sangue a si e a seu marido; depois passou a mordê-la por todo o corpo, em canibalismo que a
deixou com seios dilacerados. Ritual de canibalismo com fins de fertilidade?
Está claro: num automóvel, fora do contexto tribal, com fins bastante individuais de um
índio milionário que fugiu dirigindo seu avião particular. Cuidemos em falar em ritual nessas
circunstâncias tão aculturadas. Mas se pese a antropofagia evidente para a fertilidade de um
futuro cacique, do qual poderia se esperar o saber de uma pessoa que ensina o idioma branco
na tribo caiapó (como fazia Letícia).
O fato é que Piva vê em Paiakan a quebra com uma visão idílica do selvagem, pois com
selvagem. A imagem ideal do índio que povoa a moral do rebanho se liga ao ideal de pureza e
inocência, de um ser inofensivo pronto à catequese desde Pero Vaz Caminha. Em vertente
política se fala mesmo em uma harmonia da vida regida por um comunismo primitivo. Ou seja,
o índio despido de seu espírito guerreiro, voraz, violento; de sua relação com a natureza que
308
MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. In: MARTINS, Floriano. O começo da busca: o
surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001.
158
inclui suas forças predatórias; de sua real organização social ligada ao exercício de poder, ao
reinado. O índio despido, enfim, de todo elemento selvagem.
as / A ave de rapina
aguarda A oposição entre animal de rapina e ovelhas é originária de Nietzsche,
especialmente da primeira dissertação de sua Genealogia da Moral. Trata-se de uma noção tão
importante para Piva, que chegou a publicar, em 1983,
primórdios de toda estirpe nobre: sua plenitude de força, prazer no destruir, virilidade, violência
309
para com o inimigo deixando .
Para o filósofo dionisíaco, os nobres mantêm entre si relações de respeito, lealdade e amizade,
mas, quando diante de inimigos, são abominados pela sua fúria. O rebanho seria uma metáfora
da moral cristã e sua exaltação dos mansos, humildes, misericordiosos. Estes últimos temem
exatamente a expressão de força viril, tomando a ave de rapina como símbolo do mal.
309
NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma polêmica. (Paulo César de Souza, trad.). São Paulo:
Companhia das Letras, 1887/2009. p. 29.
159
De sorte que a poesia selvagem de Piva coloca em movimento justamente essas forças
viscerais do corpo possuído por seus instintos mais intempestivos além do humano. Em
Paiakan, Piva viu exatamente isso: a beleza da ave de rapina que faz modificar nossa visão de
mundo a partir de um ato violento.
161
O ano de 2000 selou a consagração da poesia de Roberto Piva com a reedição de sua
obra Paranóia (1963), pelo Instituto Moreira Salles. Logo viria a organização de suas obras
reunidas e a aceitação da ideia de que sua poesia precisou de décadas para ser realmente lida.
De fato, tomando como exemplo o espaço midiático e a proliferação de entrevistas na edição
de 2000, há um contraste evidente com o silêncio em torno de Paranóia em 1963.
Contudo, o silêncio da crítica na década de 1960 esteve lado a lado com o sonoro
contágio de Paranóia em meios avançados da criação artística. Da mesma forma, na década de
1970, sua poesia escorreu clandestinamente nos meios jovens da contra-cultura, com acento na
311
, exaltação similar à da revista argentina Cerdos &
312
Peces . Por fim, ainda antes de 2000,
os meados de 1990 viram o furor dos jovens transgressores da revista Azougue em torno de
Piva, em mais uma ressonância de sua poesia e modo de vida em gerações de novos poetas.
Dessa forma, pode-se afirmar que a poesia de Roberto Piva contou com forte recepção
em seu contexto de produção, inclusive com constante contágio entre gerações de jovens
poetas que reverberaram toda sua verve subversiva. Eis o intento deste estudo: acompanhar a
recepção da poesia de Roberto Piva no arco temporal das décadas de 1960 a 1990.
A primeira recepção do que viria a ser Paranóia foi desconcertante. Ainda antes de sua
publicação, o artista plástico Wesley Duke Lee, recém chegado de uma temporada em Paris, leu
os manuscritos da obra e saiu alucinado fotografando aquela nova cidade que se descortinava
nos delírios de Roberto Piva.
310
Publicado originalmente na Nau Literária: crítica e teoria de literaturas, Porto Alegre, vol. 11, n. 02,
jul/dez 2015.
311
L&PM. O profeta da desordem. Em: PIVA, Roberto. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM 1985.
312
PIVA, Roberto. Animales Miserables. Cerdos & Peces, n.19, 1989, p. 27.
313
COSTA, Cacilda Teixeira da. Wesley Duke Lee: um salmão na corrente taciturna. São Paulo: Alameda
Edusp, 2005. p. 56-58.
162
Veja como Paranóia transfigura em Wesley uma outra experiência da cidade: seja a
erotização de seus locais mais conhecidos, seja pela descoberta de novos espaços subversivos.
Assim, a primeira recepção da obra levou à criação, criação que inclusive é parte importante do
livro publicado com o ensaio fotográfico do artista.
Após o lançamento de Paranóia, Roberto Piva foi procurado por Sergio Lima autor de
Amore, publicado no mesmo período pela editora de Massao Ohno. Sergio Lima retornara de
uma temporada de participação no surrealismo francês, ao lado de André Breton, e tinha o
objetivo de formar uma sucursal do movimento no Brasil. Roberto Piva e seus amigos, por sua
vez, acompanhavam instantaneamente as publicações francesas e tinham amplo conhecimento
das obras e autores ligados ao surrealismo. Desse encontro, derivado da leitura de Paranóia,
Além de Sérgio Lima, Roberto Piva e Cláudio Willer, do grupo inicial participaram
Antonio Fernando de Franceschi, Décio Bar, Roberto Rugiero, Regastein Rocha, Guilherme Faria
e Ralph Camargo. Encontravam-se semanalmente num bar e realizavam leituras coletivas ou
jogos surrealistas como o cadáver esquix, em que os participantes escreviam versos
sucessivamente ao acaso, resultando em combinações das mais inusitadas. Havia também
pequenos delitos como pegar uma bebida de um mercado e sair sem pagar: atos considerados
surrealistas por excelência.
os quais o grupo divergia. As atividades do grupo foram intensas e duraram alguns meses. No
início de 1964, o grupo estava dissolvido. Por quê? Para Piva não havia grupo surrealista: eles
saíam, bebiam e liam como sempre fizeram. Para Sérgio Lima, no entanto, a dispersão se deu
por divergência: o grupo trazia outras discussões relacionadas à geração beat ou manifestações
314
. Claramente, Sérgio Lima queria um grupo que discutisse
especificamente o surrealismo de forma sistemática, proposta muito distante da turma
anárquica e dispersiva de Roberto Piva e cia. Mas essa já é uma outra história.
A contrapartida dessa calorosa recepção de Paranóia por Wesley Duke Lee e Sergio Lima
foi a frígida reação da crítica que, simplesmente, silenciou numa época em que se dava grande
destaque aos novos poetas. O silêncio pode ser visto como espanto, pois a verborragia e audácia
do livro criaram grande ruptura com a produção literária brasileira até aquele momento. Mas
também calou-se por preconceito. Thomaz Souto Corrêa, jornalista ligado à crítica literária do
período, é direto: jamais dariam espaço na imprensa para um livro lançado no meio dos
vagabundos do Teatro Oficina, por um rapaz homossexual315. Mas se o silêncio preponderou nos
meios públicos de comunicação, no ambiente privado muito se cochichou. Ali se falou pelos
cotovelos, no velho ti-ti-ti do chá das cinco. Durante um jantar, Emy, esposa de Paulo Bonfim,
comenta com Willer quão estarrecida ficou com a linguagem baixa do livro que insultaria o
314
LIMA, Sergio. Notas acerca do movimento surrealista no Brasil (da década de 20 aos dias de hoje).
2002. Disponível em: http://www.triplov.com/surreal/sergio_lima.html . Acesso em: 04 jul 2010.
315
Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma
trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. 255 p.
163
316
.
317
, o texto apresenta uma contextualização política do Brasil,
de Vargas ao golpe militar. Posteriormente, dedica-se a dados da aventura surrealista no país,
com acento às estadias de Benjamin Péret em São Paulo e Rio de Janeiro, bem como a
interlocução entre Murilo Mendes e Fr
aponta-
318
historiadores e cr . Tal conjuntura faz com que o surrealismo seja reivindicado
Paranóia)
Sergio Lima (com Amore) e Claudio Willer (com Anotações para um Apocalipse
primeira vez que o Brasil dispõe de obras em que os autores reclamam abertamente pelo
surrealismo . Assim, as três obras são resenhadas brevemente, a exemplo de Paranóia:
Paranóia é o primeiro livro de poesia delirante publicado no Brasil. Piva, cuja formação
intelectual é profundamente marcada pela cultura italiana, inspira-se nos grandes
clássicos da decadência, de onde provém a exuberância de imagens própria dos povos
latinos. Freud e Lautreamont têm para ele grande importância. Enfim, a mais moderna
literatura beat norte-americana lhe transmitiu a fascinação dos neons e a alucinação
pela metrópole metálica evocada pelas fotografias de São Paulo inseridas e seu livro 319.
destas obras das vitrines das livrarias. Por fim, fala de certa tentativa de organização de poetas
A curta aventura do Grupo Surrealista de São Paulo parece ser essa tentativa de
organização grupal, feita por poetas que abertamente reivindicaram pelo surrealismo no Brasil.
Daí Roberto Piva ser um dos únicos poetas brasileiros a constar no Dicionário Geral do
Surrealismo, publicado na França em 1982. Daí a recepção da poesia de Piva estar muito
associada nesta década de 1960 ao seu viés surrealista, especialmente aquele da poesia como
um modo de vida subversivo. Daí ser uma poesia que encontrará caminhos alternativos de
divulgação, distantes da grande mídia e dos órgãos literários de maior repercussão pública.
316
Ibidem, p. 60.
317
La Brèche: action surréaliste. n. 8, novembro de 1965. Disponível em: http://melusine.univ-
paris3.fr/LaBreche/La_Breche_8.htm. Acesso em: 09 jan 2011.
p. 126.
318
Ibidem, p. 127.
319
Idem.
164
2. -
No início da década de 1970, a produção poética de Roberto Piva encontra público nos
meios ligados à juventude roqueira. Em seus textos publicados na revista Artes:, o poeta faz as
vezes de crítico literário, entrevistador e agitador cultural, versando também sobre uma
variedade de matérias (artes plásticas, música e literatura). Como profeta do rock, redigiu
materiais de afirmação de suma importância histórica para a juventude, em um contexto em
que ainda se questionava a legitimidade artística da música pop no Brasil. Como poeta, publica
(...) um deus acaba de nascer numa fôlha de plátano trazida pelo vento / os telefones
do mundo começam transmitir mensagens eróticas / as janelas explodem em sinfonia o
mundo é um maravilhoso lugar para se nascer / o espaço é esplêndido / eu vejo / eu
acredito como Whitman no corpo & nos seus apetites / eu sinto a vida nos intestinos /
eu tenho muitas verdades dentro do meu coração de carne / há um girassol abandonado
nos teus olhos, Paulo? Que correnteza nos levará à deriva hoje? Sandwiches / ostras /
latas de cerveja / enxurrada maravilhosa saída da guitarra de Johnny Winter numa tarde
de sol de fevereiro em São Paulo!321
O poema retrata o entusiasmo diante da cena musical jovem, com fortes rompantes
beats e diálogos com Walt Whitman e Allen Ginsberg. Este último comparece implícito em
assóis, e explicitamente na interrogação:
320
PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. Em: PIVA, Roberto. Mala na mão & asas pretas obras reunidas
volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2006. p. 9.
321
PIVA, Roberto. Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas &
lindos rostos pagãos me observam viver?. Revista Artes:, São Paulo, Ano VII, n. 35, 1972, p. 3.
322
GINSBERG, Allen. Uivo e outros poemas. Em: GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas.
(Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1956/2005. p. 49.
323
PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras
reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 21.
165
324
. A proximidade com a contracultura beat
fica evidente também no final do poema, em menções pioneiras à poesia corporal de Michael
McClure com o qual se corresponderia nesta mesma década.
De forma clandestina e underground, Roberto Piva atinge grande penetração nos meios
jovens ligados à contracultura, como entre os leitores de fanzines alternativos como a revista
Patata na qual o poeta colabora no ano de 1973. Por essas vias subterrâneas, a poesia de
Roberto Piva encontrou grande recepção entre os jovens subversivos do que se convencionou
Com poemas de seu livro Paranóia, o poeta paira como presença estranha na antologia
26 poetas hoje (1976), cujo material foi selecionado por Heloisa Buarque de Holanda, Chico
Alvim e Cacaso. Isto porque Roberto Piva não compunha o grande movimento artístico em torno
da Nuvem Cigana, tampouco comparece com materiais daquela década de 1970. É obscuro o
motivo da participação de Piva na antologia. Da perspectiva política, o argumento de Heloisa é
de que tais poetas constituem vozes dissonantes no contexto repressivo da ditadura como
325
. Não é o caso de Roberto Piva, poeta pertencente aos
Novíssimos de 1960, cuja produção de Paranóia responde a um contexto histórico anterior à
ditadura muito embora também denuncie a seu modo os policiamentos morais e afirme a via
transgressora. Sob o aspecto literário, não há qualquer confluência da dicção poética de
Paranóia com seus volteios surreais, com aquela busca de poetas marginais por um
coloquialismo típico do modernismo brasileiro especialmente o instantaneísmo oswaldiano.
Assim, não havendo diálogo de movimento artístico, literário e político, qual o motivo da
participação de Roberto Piva na antologia?
326
Chac . É na
poesia como modo de vida subversivo que tais poéticas se identificam. O que Roberto Piva
chamou de poesia experimental amalgamada à vida experimental, ou aquilo que Heloisa
B
327
.
A opinião de Franchetti
por não se enquadrar em nenhuma das correntes literária
328
. Por contraditório
-lo da marginalização. Piva recusa o
rótulo, mas reconhece a importância da boa recepção entre poetas jovens da geração seguinte
que tinham uma vida poética potente.
E lá estava Roberto Piva no Parque Lage, no dia 14 de julho de 1976, para o lançamento
o ao que foi aquela
324
PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas volume I
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005.
325
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Posfácio. Em: ______. 26 poetas hoje. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2007. p. 261.
326
COHN, Sergio. Nuvem Cigana: poesia e delírio no Rio dos anos 70. Rio de Janeiro: Beco do Azougue,
2007. p. 102.
327
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Apresentação. Em: ______. 26 poetas hoje. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 1975/2007. p. 11.
328
FRANCHETTI, Paulo. Estudos de literatura brasileira e portuguesa. Cotia: Ateliê editorial, 2007. p.
286.
166
noite329. Uma juventude alucinada ao som de guitarras distorcidas e uma névoa de fumaça de
estranhos cigarros. No vídeo, Piva faz uma aparição chistosa: nitidamente inebriado, sobe ao
palco atrapalhado procurando onde havia deixado os poemas para sua leitura.
O fato é que o rótulo de Piva como poeta marginal se impõe a partir de meados de 1970,
e permanece em alguns meios até hoje
Gabriel Fabri ressivos nomes da poesia marginal no
330
.
Quanto à recusa da designação, a questão de Piva não é com os poetas marginais, mas
com a crítica literária. Piva leva uma vida que pode bem ser compreendida como marginal. Mas
o poeta salienta quão marginalizado foi referindo ao boicote da crítica. Assim, afirma que não
331
.
O fato é que o grande furor em torno dos marginais reacendeu o mercado editorial e
Massao Ohno retomou sua atividade a pleno vapor. O número de publicações foi tão grande
que convidou Claudio Willer para organizar um lançamento coletivo que, insuflado com os
ventos da juventude açoitada pela repressão militar, tomou o vulto da Feira de Poesia evento
com grande significado político nas manifestações pela redemocratização do país. Na Feira,
Roberto Piva lança seu Abra os Olhos e Diga Ah!, obra que reflete uma forte guinada política em
332
sua criação poética. A expressão aponta o centro da política
contemporânea no corpo, seja aquele crivado de balas pela repressão ou ardendo nas chamas
do amor, em resistência erótica à sociedade disciplinar.
A repercussão da Feira de Poesia foi tão grande que Claudio Willer continuou seu ímpeto
na organização de recitais, juntamente com Ruth Escobar, sobre poetas revolucionários (como
Pablo Neruda) ou vítimas de estados totalitários (como Garcia Lorca). Nesses recitais, Roberto
329
ALPHONSUS, Luiz. Noite Acesa. 1976. Super-8.
330
FABRI, Gabriel. Evento promove imersão ao imaginário de Roberto Piva. Em Cartaz, n. 72, outubro de
2013, pp. 55.
331
A voz da transgressão. Entrevista concedida à Revista Época. 2005. Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG72087-6011-389,00.html. Acesso em: 16 out 2006.
332
PIVA, Roberto. Abra os olhos e diga Ah!. Em: ______. Mala na mão & asas pretas obras reunidas
volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1976/2006. p. 28.
167
333
. Em diálogo (dissidente, por sinal) com meios ligados à esquerda, o poeta
encontra público entre os cidadãos em luta por direitos sociais.
Além do público da Versus, a poesia de Roberto Piva teve grande penetração nos meios
revolucionários jovens, especialmente na Libelu (Liberdade e Luta) grupo trotskista atuante no
movimento estudantil e ligado à Organização Socialista Internacionalista. Ali, Roberto Piva era
poeta reconhecido e considerado ativista da área cultural. Dessa recepção na Libelu derivou a
publicação da segunda edição de Piazzas, em 1981, pela Kairós editora do movimento, com
coleções voltadas ao pensamento socialista (em especial de Trotsky).
Naquele mesmo ano de 1978, o poeta teve ainda poemas publicados no número
inaugural da Caderneta de Poesia, da combativa editora Brasiliense
aos movimentos de libertação nacional dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde, São Tomé e
Porém, foi no interior do movimento de luta pelos direitos sexuais que Roberto Piva teve
maior repercussão. No órgão gay Lampião da Esquina, a obra recém publicada do poeta (Coxas,
nossa
335
. Não é para menos, Coxas começa com a descrição de sexo entre garotos no Alto do
Copan: -se abriu a braguilha da calça de Pólen & começou a chupar 336.
333
PIVA, Roberto. O hino do futuro é paradisíaco. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 23,
julho/agosto, 1978, p. 36.
334
PIVA, Roberto. O Mississipi no Amazonas. Versus um jornal de política, cultura e idéias, n. 20,
abril/maio, p. 30, 1978b.
335
Jornal Lampião da Esquina. Ano 2, n. 15, agosto de 1979, p. 17.
336
PIVA, Roberto. Coxas: sex fiction & delírios. São Paulo: Feira de Poesia, 1979.
168
A obra recebe ainda resenha de Glauco Mattoso337, salientando o tom homoerótico do poeta
maldito ligado à contracultura.
Com o próprio Glauco Mattoso, além de João Silvério Trevisan, Roberto Piva participou
de uma mesa de debates sobre o movimento gay no dia 8 de fevereiro de 1979, na
-
338
como Cuba, Moçambique e Leste Europeu - .
O poeta roqueiro que inicia a década divulgando suas produções em meios juvenis de
música pop, passa a ser vinculado ao movimento da poesia marginal e finda o período flertando
com os meios de esque -
3.
Outro
década de 1980: o ambiente beat e anárquico da editora L&PM. Em meio à Coleção Rebeldes &
para lançar
da Rua340. Nesta coleção, Roberto Piva tem sua primeira antologia de poemas publicada de
forma entusiasmada por mais uma nova geração de grandes poetas, tradutores e editores.
O Roberto Piva dessa metade da década de 1980 é aquele mesmo que abandonou todas
337
MATTOSO, Glauco. O poeta das coxas. Jornal Lampião da Esquina, Ano II, n. 16, setembro 1979, p. 17.
338
DANTAS, Eduardo. Negros, mulheres, homossexuais e índios nos debates da USP. Jornal Lampião da
Esquina, Ano 1, n. 10, março de 1979, p. 09.
339
PIVA, Roberto. Manifesto utópico-ecológico em defesa da poesia & do delírio. Boletim Arte e
Pensamento Ecológico, n. 18, março 1983, pp. 12-13. p. 12.
340
L&PM. Era uma vez... uma editora. 2011. Disponível em: http://www.lpm-blog.com.br/?tag=colecao-
olho-da-rua. Acesso em: 22 dez 2012.
341
PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. Em: ______. Mala na mão & asas pretas obras reunidas
volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1981/2006. p. 115.
342
Ibidem, p. 111.
169
verdade antes dele ninguém ousava escrever poesia dessa forma no Brasil. Ninguém rompera
brasileiros das
, 1985) já
há uma crítica ao eq
beat
que veio para reinaugurar a utopia da própria poesia. Da poesia libertadora, que sai do papel
344
para ter existência real no dia-a- . Com a entrevista a Carlos von Schmidt345 há
comentários fundamentais de Piva sobre toda sua obra poética. Com a aproximação de Floriano
Martins, abrem-se as brechas para o papel de Piva no interior das manifestações surrealistas na
América Latina.
No mesmo período da Cerdos & Peces, Roberto Piva também ganha grande projeção
nacional em suas contribuições na Revista Chiclete com Banana ao lado do mesmo Angeli com
o qual publicara na Revista Patata. Angeli e Toninho Mendes seriam outros artistas jovens
343
L&PM. O profeta da desordem. Em: PIVA, Roberto. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM 1985.
344
BONVICINO, Régis. O boêmio Piva não tem papas na língua. Folha de São Paulo, 02.06.1985.
345
VON SCHMIDT, Carlos. Amor, loucura, drogas (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1985/2009. pp. 54-69.
346
PIVA, Roberto. Animales Miserables. Cerdos & Peces, n.19, 1989, p. 27.
170
347
.
Nest
em veículos ousados: o jornal
Verve, editado no Rio de Janeiro por Claudia Roquette-Pinto. É um período em que a poesia de
Piva também encontra ressonâncias em poetas como Rodrigo Garcia Lopes, com o qual mantém
relações amistosas a partir do interesse de ambos em poetas beat estadunidenses.
Assim, durante a década de 1980, a poesia de Roberto Piva expande suas fronteiras para
todo o país (com a L&PM ou Chiclete com Banana) e mesmo para a América Latina. A recepção
de sua poesia ganha um tom crítico de reconhecimento da produção do poeta no âmbito da
literatura nacional. Por influência dos próprios temas de sua poesia, Roberto Piva passa a ser
vinculado à Ecologia e à Anarquia.
4. O xamã
Após a boa maré de 1980, a recepção da poesia de Roberto Piva entra em refluxo no
início dos anos 1990. Desde 1982, o poeta acumulava poemas de suas experiências mágicas nas
matas do interior do Estado de São Paulo. Nas entrevistas concedidas a Ademir Assunção e
Miguel de Almeida, em 1991 e 1993, respectivamente, o poeta menciona a existência de um
livro pronto, Ciclones, que aguardava oportunidade de publicação.
Prefiro viver os poemas do que escrevê-los... porque dá muito trabalho. Eu não sei
escrever à máquina e preciso chamar alguém que fica três horas para bater os poemas.
347
Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma
trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. p. 159.
348
PIVA, Roberto. Sindicato da Natureza. Chiclete com Banana, n. 19, julho 1989, p. 26.
171
Tenho uma máquina quebrada e não tenho dinheiro para mandar consertar, assim ficam
elas por elas. Estou com dois livros parados por causa desses problemas...349
Nos vários depoimentos de Sergio Cohn, especialmente no livro Roberto Piva, publicado
na coleção Ciranda de Poesia351, pode-se observar a importância do autor de Paranóia na
formação dessa nova geração de poetas e editores. Nas longas tardes que passavam juntos,
Roberto Piva lia e traduzia simultaneamente uma variedade de poetas franceses e italianos,
além de comentar detalhadamente obras como Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima. Sergio
Roberto Piva lia e comentava os poemas de Cohn, Danilo Monteiro e cia., chegando mesmo a
mencionar seu entusiasmo em organizar uma antologia da poesia jovem, com o nome
352
.
As relações entre este encontro com Roberto Piva e a revista Azougue já foi tema de
pesquisa científica353. Foi a principal recepção da poesia desse xamã durante a década de 1990.
No ano de 1996, a revista traz um especial com Roberto Piva com ampla antologia e materiais
inéditos -
publicação que Roberto Piva finalmente encontrou editora para sua obra Ciclones, a partir de
seu impacto em outro importante poeta contemporâneo, Fabio Weintraub.
Aos toques do tambor mágico e cercado por jovens criativos, o poeta se afirma como
xamã, seja na performance na Funarte (1996), ainda antes da publicação de Ciclones, seja nos
recitais para a divulgação do livro. As participações de Roberto Piva na Poesia Sempre revista
semestral de poesia, em meados de 1997, selam o reconhecimento de sua poesia.
349
SILVA, Claudio Roberto da. Reinventando o sonho história oral de vida política e homossexualidade
no Brasil contemporâneo. 1998. 674fs. Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1998. p. 319-320.
350
PASSETTI, Edson. Das fumeries ao narcotráfico. São Paulo: EDUC, 1991. 154 p.
351
COHN, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. 81 p. (Coleção Ciranda da Poesia).
352
COHN, Sergio. O capitão loucura. Folha de São Paulo, 1996. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2006201008.htm. Acesso em: 03 fev 2013.
353
BERLANDA, Ibriela Bianca. A revista Azougue e o poeta Roberto Piva: o saque e a dádiva. 2011. 284 fs.
Dissertação (Mestrado em Literatura) Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011.
172
Ao final desta mesma década, Roberto Piva escreveria textos no lançamento do livro do
amigo Zé Celso (Zé Celso Primeiro Ato, 1998) ou de Glauco Mattoso (na orelha de Geléia Rococó
sonetos barrocos, 1999).
Paranóia (1963), livro de estreia de Piva, é um verdadeiro passeio pela cidade de São
Paulo, acompanhado por seus amigo , presentes desde Ode a
Fernando Pessoa (1961). Além desses amigos, no entanto, surgem em suas andanças poetas de
diversas épocas que saltam das páginas para a vivência concreta. Marcelo Veronese354, por
exemplo, destaca dezenas de intertextos com Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Allen
Ginsberg, Pablo Neruda, Murilo Mendes e Jorge de Lima.
357
Ó, mãe / adeus / [...] com seus olhos de ovários arrancados .
Vê-se que Piva vivencia uma imagem em suas alucinações de 1961 que quase funde os
manequins de Apollinaire com os olhos paranoicos da mãe de Ginsberg olhos de ovários
arrancados.
Óbvio que não se trata de procedimento simples. Pouco importa aqui se Piva quis
sacanear, fazer um jogo com versos. Ou se as imagens operaram suas associações em nível
inconsciente. Quando observamos que Piva viu em suas alucinações os costureiros que
arrancavam os ovários dos manequins, os viu a partir dos olhos paranoicos de Naomi (mãe de
Ginsberg, a quem dedica o longo poema), e a partir das experiências de Apollinaire na graça da
rua industrial. Falamos então em um procedimento estético de criação, ou em uma vivência
concreta da realidade, fundida às imagens que saltam das frias páginas e são vistas nas andanças
do poeta pela cidade?
354
VERONESE, Marcelo Antonio Milaré. A intertextualidade na primeira poesia de Roberto Piva. 252 fl.
Dissertação (mestrado) Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas
Campinas, 2009.
355
PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas volume I
(organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 30.
356
APOLLINAIRE, Guillaume. Àlcoois e outros poemas. (Daniel Fresnot, trad.) São Paulo: Martin Claret,
.
357
GINSBERG, Allen. Kaddish e outros poemas. Em: GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas.
(Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1961/2005. p. 103.
176
Outras imagens cruzadas surgem. É sabido o quanto o poeta Walt Whitman influenciou
a poesia moderna. O bronco abria seu corpo para a multidão, se fundia às pessoas, animais,
cores, situações perdendo os contornos precisos de um Eu que agora era palco dissolvido nos
outros. Há diversos intertextos de Piva com Whitman em Ode a Fernando Pessoa, ali incluindo
outro poeta bastante influenciado por Whitman, Fernando Pessoa / Álvaro de Campos como
observei em outra oportunidade358. Mas o poeta cosmos não era referência apenas de Piva.
Em Nova York, Garcia Lorca (1929-30) escreve uma série de poemas em que os pelos da
Piva, referindo-
358
MATTOS, Ricardo Mendes. 50 anos de rebelião poética em Roberto Piva. Banda Lusófona, 2011.
Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/BLBLrobertopiva03.htm
359
360
questions of each: Who killed the pork
.
361
PIVA, Roberto. Paranóia, op. cit., p. 65.
177
Whitman retratado por Lorca, que é parafraseado por Ginsberg, que é parafraseado por
Agora, mais do que dissecar os versos, expediente tão desprezado por Piva, cabe saber
o que se cria com esse procedimento. É óbvio que a menção a um ou outro poeta remete a uma
afinidade entre as vidas poéticas no caso apreciado, especialmente da homossexualidade.
Explicita a relação entre poetas que se inscrevem, às vezes, na ordem de pertencimento a uma
genealogia poética. Não puramente uma filiação a esta ou aquela escola literária o que era
repugnante para Piva, que sempre criticou as
exatamente uma dica de atualização, ou re-criação a partir de diálogos vividos-poéticos. No tão
estudado diálogo intertextual com Mário de Andrade, por exemplo, fica clara uma proposta de
diálogo com o modernismo brasileiro, o que permite a Willer falar que Paranóia
362
com a rebelião surrealista; ou enfoca aspectos da obra de Mário
(sexualidade) e de Oswald (primitivismo e antropofagia) de maneira distinta da apropriação
desses autores feita pelos concretistas (conforme enfatiza Cámara363).
Por outro lado, o diálogo intertextual pode ser avaliado como um procedimento da
própria criação literária como uma forma técnica na composição de versos. Nessa perspectiva,
a intertextualidade não implica em mera reprodução de conteúdo, mas o amplia, conferindo
sentidos inusitados ou novos à relação estabelecida como parece ser a opinião de Veronese.
No entanto, uma proposta mais ousada, já mencionada em texto sobre crime e poesia
em Piva364, parece ser aquela influenciada por Lautréamont em seus poemas com inversões
de orações e preceitos morais, especialmente de Pascal, mudando-lhes completamente o
por plágio, crime autoral, de forma deliberada, com o intuito de assassinar o autor. Poesia feita
por todos, como uma força que atravessa os corpos, sem reproduzir o Ego/Eu (autor). Como a
virulência pagã dos deuses como forças estrangeiras que atravessam os corpos, justamente para
despedaçar os suspiros do ego convalescente. Essa vivência pagã e anti-moderna, anti-
humanista, cabe bem aos dois poetas.
362
WILLER, Claudio. Uma introdução à leitura de Roberto Piva. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na
legião obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005. p. 153.
363
CÁMARA, Mario. Sexualidad y ciudad em la poesia de Roberto Piva. Revista Anclajes, Santa Rosa
(Argentina), n. 14, dezembro 2010, pp. 25-37.
364
MATTOS, Ricardo Mendes. Roberto Piva: poesia e crime ou blasfêmias eróticas heroicas & assassinas.
Zunái Revista de Poesia & Debates, ano VI, edição XXIII, setembro de 2011. Disponível em:
http://www.revistazunai.com/ensaios/ricardo_mendes_mattos_robertopiva.htm
365
MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. In: MARTINS, Floriano. O começo da busca: o
surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001.
178
Dessas últimas reflexões podemos falar que em Piva não há mais intertextualidade, mais
intervivências. O poeta :
368
. Para Piva vivenciamos o fim da poesia enquanto literatura. Trata-se de poesia que
corre no sangue: poesia vivida. Veja o que o próprio poeta fala, em entrevista a Carlos Roque:
não é a literatura em si, uma vez que a literatura é importante apenas enquanto
serve a vida e expande esse conceito de vida até o limite de seu absurdo369
literatura, mas o poder da vida!
Muito se fala sobre síntese entre vida e poesia (de extração romântica, surrealista, beat,
etc.). É a vivência visceral do que
que o autor passava. Ambos são intensamente vivenciados pelo poeta. Os comerciantes que
arrancam as cabeças dos manequins, os olhos de ovários arrancados da mãe de Ginsberg ou om
como quaisquer desses que vemos nas vitrines, fazendo careta para a eternidade.
Mas essa síntese normalmente se refere à vida do poeta que comparece em sua poesia
a poesia experimental com vida experimental de Piva. Ou seja, a vida poetizada: escrever sobre
o que se vive. No entanto, a síntese também inclui a poesia vivida: viver o que se lê. É aí que se
pode pensar a intertextualidade em Piva, como forma de vivenciar a criação de outrem. Como
366
MOHYLOVSKI, Paulo. O agitador da transgressão. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva
(Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1987/2009. p. 92.
367
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Mário da
Silva, trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1883-85/2010. p. 66.
368
PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005. p. 14.
369
ROQUE, Carlos. O mascate da paixão (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção
Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1986/2009. p. 78.
Ricardo Mendes Mattos é poeta, autor de Acaso Subversivo (2012), Derivas Etílicas &
Sacos Sarcásticos (2012) com o poeta amazonense Kissinger Cândido de Barros e
Espraiar (2014). Possui o título de doutor em Psicologia da Arte pela Universidade de
São Paulo, com a tese Roberto Piva: derivas políticas, devires eróticos & delírios
místicos (2015).
Contato: ricardomendesmattos@ig.com.br