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​Módulo 2

Aula 1

Criação de Personagens

1. O que mostrar?

Essa é uma dificuldade enfrentada por muitos escritores, e um problema presente em muitas
obras. Mostra coisas desnecessárias a narrativa. Gastar tempo narrativo com o que não serve
para a história que está sendo contada. Muitas vezes esse é o tipo de problema que uma
segunda e terceira e escrita do texto podem resolver, mas apenas se o escritor tiver ferramentas
para perceber esse tipo de erro.

Destaco aqui que narrativas longas, costumam ter mais espaço para características que não
necessariamente ajudam na construção da história. Isso acontece por uma simples questão de
ter tempo. Mas isso não significa que isso também não seja objeto de crítica dentro desse tipo
de narrativa.

No processo de criar as ideias, e estruturar a narrativa construímos um pedaço importante dos


nossos personagens e seus conflitos. E é a partir desse pedaço que vamos expandir a
construção dos nossos personagens, mas é sempre bom ter em mente essas características,
pois elas são a base onde trabalharemos.

Primeiro ato estabelece características base para o personagem e depois poderemos explorar
outras facetas dessas características, seja aprofundando-as ou quebrando-as.

A relação entre personagem, problemática e tempo vão ser o guia do que deve ser escolhido
para ser mostrado dentro da narrativa.

2. Tridimensionalidade
Quando assistimos narrativas e um personagem é apresentado a história, de certa forma eles
costumam possuir um arquétipo, ou característica que é recorrente. Sempre temos os heróis e
vilões, mocinhos e bandidos, o bobo, o velho sábio, o mentor, a sedutora, o atleta, o intelectual,
a bela, o feio, a mulher guerreira todos que citei são alguns dos arquétipos muito comuns em
narrativas. Outra coisa muito comum também são os personagens nunca escaparem do
arquétipo. Isso faz deles Personagens estereótipos ou que apenas mostram um lado de suas
personalidades dentro na narrativa.

Ter tridimensionalidade significa construir personagens complexos. Essa é talvez uma das
exigências na construção de personagens em narrativas hoje em dia. Quando os personagens
são apenas uma coisa, o público percebe que falta algo e esse incômodo se traduz em uma
experiência ruim. Especialmente se o personagem viver muitas coisas durante a narrativa e
esse processo não ser transformador.

Quando conversamos sobre estrutura narrativa, falamos em circularidade narrativa. E essa


tendência natural da história retornar ao seu ponto de origem. Para que isso aconteça de
maneira satisfatória, o personagem deve voltar para a origem transformado, ou muitas vezes
você vai matar o senso de recompensa do leitor. Quando não há mudança ou transformação,
seja no personagem ou no ambiente, a impressão que temos é que nada aconteceu, ou que não
valeu a pena.

3. Bidimensionalidade

Eu gosto de brincar que pela natureza curta do conto, fica difícil alcançar uma
tridimensionalidade no personagem. Mas podemos encontrar o que eu chamo de
Bidimensionalidade, ver duas facetas do personagem a sua natural e a sua lidando com o
conflito.

Obviamente isso é uma brincadeira, um jogo com palavras e você pode sim desenvolver
personagens em conto, especialmente se esse for o foco da sua narrativa. Se você manter o
foco, e conseguir fazer as escolhas acertadas sobre o que vai contar do personagem, não vai ter
preocupações no que diz respeito ao seu personagem se tornar raso.
Mas tenha isso em mente, se você conseguir construir bem o personagem no primeiro ato, e
trabalhar os impactos do conflito no segundo ato, o caminho natural da resolução no terceiro ato
é acontecer mudanças, sejam para o mal ou para o bem.

Além disso, na nossa aula de arcos de personagem eu vou falar sobre um tipo de personagem
que não se transforma, e como você pode construir histórias com ele.

4. Exemplos de Tridimensionalidade:

Literatura:

Sherlock Holmes: Apesar de dedicado a resolver mistério, o personagem parece muito mais
interessado nos enigmas do que nas pessoas. Apesar de ser um dos “mocinho” é viciado em
drogas, anti social e sempre que possível evita as pessoas.

Katniss Everdeen (Jogos Vorazes): Apesar de dentro da sua narrativa a personagem pouco
se transformar, Katniss é uma personagem curiosas. Apesar da coragem em se oferecer para
morrer no lugar da irmã, a todo momento da narrativa vemos seu medo. Longe de ser a donzela
indefesa a vida dura construiu uma personalidade forte e capacidade de se defender.

Santiago (O velho e o Mar): O Velho é um ótimo exemplo de como uma figura simples pode
impressionar. Além de sua monstruosa força física e resistência, o contrário do que se espera de
um homem velho, as reflexões profunda sobre a vida mostram que apesar de ser apenas um
pescador não o impede de ter uma inteligência singular.

Lizzie Bennett (Orgulho e Preconceito): Contrariando o que se espera de uma mulher de sua
época Elizabeth é bem resolvida, provocadora e não hesita em dizer o que vem em sua cabeça.
A personagem de Jane Austin é uma quebra aos estereótipos femininos, apesar de ser dentro
de uma narrativa de romance.

Ozob (Ozob de Leonel Caldela): Ozob é um replicante, um humano engenhado


geneticamente, de vida curta, usado para trabalhar em lugares onde a humanidade não
conseguiria. Porém seu criador era um homem louco, que o fez com a aparência monstruosa de
um palhaço. E apesar dessa caricatura ambulante Ozob é apenas alguém que busca seu lugar
no mundo em sua curta vida.

Cinema:

Roy Batty(Blade Runner): O replicante de Blade Runner veio a terra em busca de estender a
sua vida. Ao descobrir que não seria possível fazer isso mata seu criador. Porém mais que um
assassino vingativo, Roy apenas não quer que suas experiências e aquilo que ele é ser perca.
Grande busca do personagem é para ser lembrado.

Lunga: Apesar de ser um bandido procurado pela justiça, Lunga não hesita em se colocar em
perigo para proteger a população local. Além disso Lunga é um travesti, contrariando o
arquétipo do bandido machão.

Imperatriz Furiosa: Apesar de ser um dos braços direitos de Immortan Joe, ela não hesita em o
trair para tentar fazer escapar às suas concubinas, que são escravas sexuais parideiras. Furiosa
é a grande guerreira do filme, com isso contrariando o que se espera de personagens femininas.
Apesar da aparência forte, a fragilidade também faz parte da personagem, e a narrativa faz uso
disso para construir uma personagem tão complexa e interessante, que rouba o protagonismo
da narrativa.

Stephen (Django Livre): Stephen é um escravo que serve a Calvin Candy. Aparece para as
pessoas como um bufão, mas na verdade é extremamente inteligente e o responsável por gerir
a Plantation pelo patrão. Além disso um outro ponto de complexidade é o escravo que ama seu
senhor, uma situação criada pela posição de privilégio do escravo.

Mulan: Mulan é uma moça que não consegue se enquadrar no lugar social das mulheres de sua
época, e parte para guerra para salvar seu pai. Não só ela tem um papel importante como se
destaca no meio dos homens, subvertendo a noção antiquada que mulheres não podem lutar.

Quadrinhos:

Dr. Manhattan(Watchmen): Dr. Jonathan Osterman é transformando em Dr. Manhattan após


um acidente em uma câmara de testes. Isso faz com que ele ganhe poderes quase divinos.
Lentamente o personagem entra num processo de afastamento de sua natureza humana, a
forma com a qual o personagem lida com a situação é muito interessante, vemos um conflito de
alguém que fica dividido entre manter e perder a humanidade.

Doutor Xavier (X-Men): Charles Xavier é dotado de poderes psíquicos, ele pode entrar na
mente de quem quiser, e obrigar a pessoas a fazer o que desejar. Além disso ele é um ativista
do direito dos mutantes e apesar de ter o poder para entrar na mente das pessoas e acabar com
o preconceito que a humanidade tem em relação aos mutantes ele opta por não fazer isso, e
tenta educar a humanidade para um caminho de paz. Além disso ele é paraplégico, o que é uma
contradição em relação ao que se entende como figura de poder. O personagem lidera a equipe
dos X-Men e muitas vezes coloca os mutantes em risco no intuito de proteger a humanidade. É
um personagem cheio de fraquezas e contradições, e as narrativas do quadrinho sabem
explorar bem isso.

Viuva-Negra(Vingadores): Treinada desde a infância para ser uma assassina, Natasha


Romanoff se juntou aos vingadores após deixar a organização que pertencia para lutar
protegendo a humanidade. A personagem é ao mesmo tempo a imagem de uma bela mulher e
uma assassina letal. A profundidade da personagem vem de ter que lidar com esse passado
obscuro, e ela vive numa tentativa de compensar os erros cometidos.

Batman: Bruce Wayne é um playboy bilionário que se veste de morcego para combater o crime.
Para além disso, ele é assombrado por medos e traumas, e se colocar em risco para salvar as
pessoas é a sua forma de lidar com esses temores. Ao contrário da maioria dos super-heróis
que tem habilidade sobre humanas para fazer seus feitos, o maior poder de Bruce é ser rico.
Uma das coisas interessantes e contraditórias sobre o personagem é justamente a razão pela
qual faz o que faz apesar de sua posição social privilegiada.

Homem-Aranha: Com grandes poderes vem grandes responsabilidades. Essa á frase que
define Peter Parker, num universo de personagens que parecem heróis da mitologia, Peter é
alguém que sofre para pagar as contas. Essa dicotomia entre uma vida simples e heroica, foi a
fórmula que alçou o personagem para a posição de número um em popularidade.

Séries:
Daenerys Targaryen(A guerra dos tronos): Daenerys Targaryen é a sobrevivente de um trono
usurpado, ela vai de princesa vendida e casa com um líder bárbaro, para a rainha de milhares
de pessoas ao libertar uma população gigante de escravos. Tudo em Daenerys é dual, ela é ao
mesmo inteligente, mas conhece pouco do mundo, ela é intempestiva mas teme se tornar tirana,
ela quer tomar o reino para si mas não quer ser odiada no processo. É alguém jovem, jogada
em uma posição de imenso poder, e tem que aprender como lidar com a situação enquanto vive
ela.

Spock(Star Trek): Metade humano e metade Vulcano, uma raça que valoriza a racionalidade
acima de tudo, Spock é um sujeito dividido entre dois mundos. Seu conflito é se deve ou não,
abdicar da parte que lhe faz humano e abraçar sua origem vulcana. É um personagem
fantástico e a natureza dual de sua personalidade fez da narrativa da série muito rica.

Dr. House: Gregory House é um espelho narrativo de Shelock Holmes. É um homem brilhante e
dedicado a curar seus pacientes de qualquer forma. Em contrapartida é rude, e mal educado.
Está sempre diminuindo as pessoas ao seu redor. É viciado em remédios para dor. E faz tudo
isso para mascarar a depressão de uma vida miserável e solitária. É um dos personagens mais
interessantes e complexos dos últimos anos.

Jesse Pinkman (Breaking Bad:) Enquanto temos uma jornada de um sujeito querendo entrar
no mundo do crime em Walter White. Temos a jornada de alguém que tenta desesperadamente
sair, mas continua sendo tragado de volta para dentro. Jesse é um jovem que tomou decisões
erradas, impulsionadas pela juventude e as consequências desses erros transformaram sua
vida numa espiral de autodestruição. Jesse é gentil e leal. E sua lealdade é tamanha que é
capaz de gestos hediondos para não quebrá-la. Assim como tudo em Breaking Bad esse
personagem é um abismo de contradições.

Exercícios:

1 – Identificar na ficção, personagens que tenham essa tridimensionalidade e como ela


faz deles bons personagens.

2 – Identificar na ficção, personagens que NÃO tenham essa tridimensionalidade e como


ela faz deles personagens ruins.
3 – Identificar nos seus personagens se eles alcançam essa tridimensionalidade ou, pelo
menos, uma bidimensionalidade como eu expliquei.

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