Você está na página 1de 16

“ESSES PRAZERES VIOLENTOS TÊM FINS VIOLENTOS”: WESTWORLD,

DIALÉTICA, E A POLÍTICA DA CONSCIÊNCIA

Allan M. Hillani1

Desde que eu era criança, sempre amei uma boa história. Eu


acreditava que histórias nos ajudavam a nos tornar mais nobres, a
consertar o que havia de quebrado em nós, e a nos ajudar a nos
tornarmos o povo que sonhávamos em ser. Mentiras que contavam
uma verdade mais profunda. Eu sempre pensei que eu poderia
cumprir um pequeno papel nessa grande tradição. E para a minha
dor eu alcancei isso: uma prisão para os nossos pecados. Porque
vocês não querem mudar, ou não podem mudar. Porque vocês são
apenas humanos, afinal. Mas então eu me dei conta que alguém
estava prestando atenção, alguém que podia mudar. E eu então
comecei a compor uma nova história para eles. Ela começa com o
nascimento de um novo povo, com as escolhas que eles vão ter que
fazer e com o povo que eles decidirão se tornar. E nós teremos todas
aquelas coisas que vocês sempre adoraram... surpresas e violência.

(ROBERT FORD, WESTWORLD)

Crítica e distopia

É um erro acreditar que distopias se caracterizam por serem um aviso sobre o futuro,
um alerta para o que pode acontecer caso tudo dê errado. Por mais que elas sempre possam
ser lidas como exercício de futurologia, o que as melhores distopias apresentam –de forma
exagerada, metafórica – são os aspectos do mundo com os quais já convivemos no presente.
Como escreveu certa vez Ursula Le Guin, uma referência inconteste no tema, “a ficção
científica não é prescritiva, ela é descritiva” (Le Guin, 2016, p. xxiv). Não se trata
propriamente de alertar o leitor para um “perigo” futuro, mas, precisamente, de representar
uma situação atual, de revelar na sociedade já existente sua face mais obscura, um lado que
convive contraditoriamente com sua aparência de normalidade. Essa “revelação”, porém,
não é a da “verdade” escondida pela “falsidade” da aparência com a qual temos contato –

1
Graduado em Direito (UFPR), Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ) e, atualmente, Doutorando
em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ). Autor de Na urgência da catástrofe: violência e capitalismo
(Gramma, 2018). Desenvolve pesquisa em marxismo, teoria crítica e filosofia política contemporânea. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1994063430836462. Contato: allanmh92@gmail.com.
quase que uma versão moderna do mito da caverna platônico –, mas a elaboração teórica da
cisão contraditória entre verdade e falsidade inscrita na própria realidade.
Nesse sentido, as distopias demonstram sua homologia em relação à teoria crítica.
Um dos fundamentos da teoria crítica, ao menos em sua clássica elaboração frankfurtiana, é
enxergar a contradição não no pensamento, mas na própria realidade, e com isso ser capaz
a formular uma teoria tanto para dar sentido a essa contradição real como para dar as bases
de uma possível emancipação (Fleck, 2017, p. 113-6). A ficção é central nesse processo
justamente porque a teoria crítica depende de um processo de imaginação, de exploração
mental das nossas possibilidades. Essa talvez seja sua grande missão: não apresentar a
“realidade oculta” do mundo, expondo a “verdade” escondida por trás das névoas
ideológicas do cotidiano, mas articular teoricamente a forma distorcida e contraditória que
permite essa relação entre realidade e falsidade, entre concretude e abstração, entre presente
e futuro, entre o atual e o possível. Como as melhores obras distópicas, ela deve ser capaz
de alterar a própria forma como nos relacionamos com a realidade e, com isso, apontar para
os problemas urgentes atuais que devemos enfrentar. Porque se a utopia “nos faz caminhar”,
nos permite imaginar um futuro possível, a distopia e a teoria crítica nos permitem enxergar
a outra face do mundo no qual já estamos inseridos, as pedras que estão no nosso caminho.
Westworld (2016), série televisiva de ficção da HBO criada por Jonathan Nolan e
Lisa Joy, é portanto um belo exemplo de distopia. Os episódios se passam em um parque de
diversões tecnológico e futurista com a temática western no qual os visitantes podem
interagir como bem entenderem com os “anfitriões” – androides indistinguíveis de seres
humanos que estão enredados em infinitas tramas e subtramas para entreter os hóspedes. O
parque foi criador por Dr. Robert Ford e seu falecido parceiro, Dr. Arnold Weber, mas o que
era um experimento científico em busca da inteligência artificial sofre contemporaneamente
pressão de seus investidores para se tornar o empreendimento lucrativo no qual colocaram
suas cifras. A história começa quando alguns anfitriões começam a apresentar disfunções
técnicas e a segurança dos hóspedes passa a ser ligeiramente ameaçada, fazendo com que
Ford seja pressionado a abandonar seu posto de Diretor de criatividade do parque.
Mas apesar desse conflito inicial entre dinheiro e ciência, o tema central de
Westworld é o clássico questionamento sobre o que é ser humano: qual a diferença do
humano e da máquina, o que é a consciência e em que medida ela pode ser criada, como nos
diferenciamos das máquinas, quais são as consequências éticas de um mundo que
progressivamente embaça essa divisória, etc. Mas Westworld se destaca de outros exercícios
do gênero por conseguir exprimir essas questões não apenas pelo seu conteúdo, mas também
pela forma na qual esse conteúdo é apresentado. Assim sendo, primeiramente, eu gostaria
de mostrar como os elementos formais da série (a narrativa, a trilha sonora, as referências, a
perspectiva da protagonista, etc.) são em si meios que os criadores da série se utilizam para
abordar essas questões. Em seguida, pretendo expor como o conteúdo da série propriamente
contribui para uma reflexão filosófica sobre consciência e humanidade extremamente
pertinente para o tempo em que vivemos. Afinal, se a arte tem alguma pertinência para a
filosofia, não é a de ser mero objeto de análise estética, mas, precisamente, de ser ela mesma
fonte de reflexão e pensamento – e Westworld é um ótimo exemplo do que a ficção científica
pode fazer pelo pensamento crítico.

A sutileza da forma

Uma das contribuições de Westworld para o pensamento é conseguir pôr em termos


cinematográficos o modo de apresentação dialético. A dialética é muitas vezes vulgarizada
como um movimento progressivo de tese, antítese e síntese, mas isso não faz jus ao que é,
sobretudo, uma lógica e uma forma de apresentação – de Darstellung – da multiplicidade
da realidade. A dialética, muito mais que uma “escada” ou uma “flecha” apontada para cima,
deve ser entendida em sua circularidade, como movimentos elípticos que se expandem cada
vez mais para abarcar progressivamente a complexidade do que está sendo analisado
(Safatle, 2007, p. 147-8; Jameson, 2010, p. 18-20). Isso tem efeitos muito visíveis na
narrativa de Westworld. De certo modo, ela é o oposto de outra série famosa da HBO: Game
of Thrones. A narrativa de Game of Thrones está sempre sendo empurrada para frente, para
o próximo episódio, para a próxima temporada, até o derradeiro conflito no qual a série
supostamente se encerrará. Já no primeiro episódio somos introduzidos aos problemas
centrais, aos personagens, às famílias centrais. Os segredos a serem revelados – a
paternidade de certo personagem, por exemplo – é secundário no jogo dos tronos cujo
desfecho aguardamos ansiosamente. A série toda é construída, de certo modo, para esses
encontros.
Westworld segue, precisamente, uma lógica contrária: a primeira temporada se passa
num curto espaço de tempo e poucos acontecimentos novos surgem no decorrer dos dias.
Algumas das principais revelações não se dão para os personagens da trama, se dão para nós.
Quando descobrimos coisas sobre o passado dos personagens e do parque, quando
entendemos o que de fato estava acontecendo em determinada cena, quando damos sentido
ao que incialmente era confuso, todas as informações que acreditávamos ter são reordenadas
de um novo modo. O que pareciam duas linhas temporais ou a interação estranha entre dois
personagens vai aos poucos se encaixando na nossa compreensão. De certo modo, é como
se Westworld desdobrasse sua narrativa para dentro, e não para frente. Nós começamos
confusos, os primeiros episódios são pouco explicativos e quase nenhuma resposta é dada
de início, mas com o passar dos episódios a série vai amarrando inacreditavelmente todas as
suas pontas e conclui com uma narrativa plena de sentido. Quem, ao terminar de assistir a
primeira temporada, decidir revê-la terá uma visão completamente diferente do que teve da
primeira vez – já a primeira cena, quando vemos Dolores nua2 e estática sentada em uma
cadeira, cumpre esse papel.
A narrativa de Westworld, portanto, é propriamente dialética. O modo de
apresentação (ou de representação) dialético funciona como um carrossel em movimento,
em que você entra bruscamente e progressivamente vai compreendendo o seu movimento.
Toda grande obra dialética exige essa mesma postura que Westworld exige do seu
espectador. Como disse Marx inspirado em Hegel, “todo começo é difícil, e isso vale para
toda ciência” (Marx, 2013, p. 77). É por essa razão que o enigmático primeiro capítulo do
Capital, no qual Marx apresentada sua teoria do valor, só é pleno de sentido retroativamente,
após a compreensão da lei geral de acumulação. Do mesmo modo, a seção sobre o “direito
abstrato” na Filosofia do direito de Hegel só pode fazer sentido ao pressupor o Estado
constitucional moderno com o qual o livro encerra, e o “Espírito absoluto”, no qual (em tese)
culminaria a Fenomenologia do Espírito, deve ser entendido justamente como o pressuposto
de seu desenvolvimento (Jameson, 2010, p. 27-30). O próprio prefácio da Fenomenologia é,
ironicamente, a pior forma de começar a ler o livro. Se “a coruja de minerva só alça voo ao
anoitecer” (Hegel, 1967, p. 13), isso não serve apenas para dizer que a reflexão sucede a
história, mas também que a compreensão do texto também sucede a sua leitura.
Outro elemento central da narrativa de Westworld é a circularidade, a repetição. A
forma pela qual os segredos internos da trama nos são revelados se baseiam extensamente

2
O uso da nudez também difere radicalmente Westworld de Game of thrones. Enquanto a série medieval usa
e abusa da nudez em uma constante erotização dos corpos, a nudez dos anfitriões – das anfitriãs, mais
frequentemente – na sala de ajustes em Westworld é uma nudez fria, não sexualizada, como a nudez de um
cadáver. Se em Game of thrones a nudez quer despertar a sexualidade do espectador, em Westworld ela quer
justamente revelar a violência de tal sexualização. Mesmo as cenas de sexo efetivamente passam a ser vistas
com esse olhar de desprezo.
na repetição. A rotina dos anfitriões que acompanhamos é circular. Todo dia é um eterno
retorno do mesmo, o que possibilita que as infinitas tramas do parque possam existir. Até
mesmo a confusão temporal da série, ao cabo, só existe por conta da compulsão de repetição
de Dolores, que reencena sintomaticamente o mesmo caminho em períodos distintos. Nesse
sentido, é interessante perceber uma postura propriamente neurótica em Dolores. Como
Freud demonstrou, a compulsão de repetição que caracteriza a neurose se dá graças ao
“retorno do reprimido”, daquilo que não pode ser relembrado – e que, justamente por não
poder vir à tona, é repetido no presente.3 É claro que isso não pode simplesmente se resolver
por uma intervenção externa que provoque a memória: como Freud aponta, somente a
repetição do material recalcado na experiência contemporânea pode revelar a sua construção,
e não a lembrança do trauma como algo passado. Sendo obra do inconsciente, não basta o
consciente estar “ciente” da sua resistência em lembrar para que o trauma se dissipe (Freud,
1961, p. 13).
Nesse sentido, a relação entre Arnold e Dolores na série parece simular a relação
entre analista e analisando: Arnold sabe que não pode simplesmente implantar a verdade em
Dolores. Ela precisa, por si própria, se dar conta do sentido de sua repetição – um processo
que, novamente, coincide com a posição do espectador na sua igualmente nova percepção
sobre a diferença entre realidade e memória. A temporalidade circular, a apresentação
repetitiva e a temática da memória são, aliás, três elementos que permeiam toda a obra de
Jonathan Nolan, desde o conto Memento Mori – que inspirou o filme Memento (2000),
escrito e dirigido pelo seu irmão e colaborador Jonathan Nolan – até os blockbusters em que
trabalhou no roteiro como O grande truque (2006), Batman: o cavaleiro das trevas (2008)
e Interstellar (2014). Em todos os exemplos, a relação entre memória, engano, repetição e
circularidade fazem com que o próprio telespectador reestruture sua percepção sobre a trama
e os personagens.
O que distingue Westworld de suas outras obras, contudo, é que a memória e o
trauma, ao passo em que enganam e ocultam uma percepção, também são a linha de fuga
que abre margem para a subjetividade. Afinal, é a própria circularidade da repetição que
produz novidade: toda repetição abre margem para a contingência, para que se a

3
Interessantemente, Slavoj Žižek vincula o retorno do reprimido à “negação da negação” hegeliana (Žižek,
2012, p. 307). A dialética também se baseia na “necessidade” de repetição e na forma pela qual uma
“externalidade” se revela na coisa mesma de forma contraditória (como a relação entre consciente e
inconsciente para a psicanálise).
circularidade se dê “de outra forma”.4 Interessantemente, é essa experiência dialética de
repetição e novidade que os telespectadores que semanalmente acompanhavam os novos
episódios da série – uma prática que se perde em tempos de binge watching permitido pelo
lançamento integral de temporadas inteiras nos serviços de streaming – experienciavam. Ver
as rotinas se repetindo ao passo em que novos elementos se acresciam fazia com que a
sensação de estranheza e confusão dos primeiros episódios desse lugar a uma curiosidade
insaciável nos capítulos finais.
Mas não é só na dinâmica que a série introduz seus temas. Westworld é baseada em
um filme homônimo de 1973 sobre um parque de diversão de temática western com robôs
em que há uma revolta em decorrência de um mal-funcionamento. Apesar de semelhante, há
uma diferença drástica na adaptação televisiva: nós vemos o mundo a partir dos robôs, nossa
perspectiva é a dos anfitriões. Nós nos solidarizamos e nos identificamos, inclusive, mais
com os robôs do que com os humanos que frequentam o parque – com uma ou outra exceção
que talvez não se sustente até o fim da temporada. Se é verdade que toda trama tem só um
verdadeiro protagonista, Dolores seria a escolha incontestável. Isso é interessante porque a
função do protagonista em uma trama é justamente produzir a identificação com o
espectador, o que ocorre mesmo quando o protagonista é desprezível – como em House of
cards, para citar um exemplo recente e bem conhecido. Já na relação primária de
identificação com os personagens, portanto, a nossa percepção dos humanos e dos robôs já
se problematiza.
O segundo elemento que apresenta de forma elegante o tema da série é a trilha sonora.
É interessante perceber como o piano do bordel toca sozinho, e toca sempre músicas que não
só são incompatíveis com o contexto faroeste do parque como também compartilham um
tom melancólico de perda e busca de si. Aliás, não só as músicas do piano, mas todas as
músicas da trilha sonora que não foram compostas especialmente para a série,
nomeadamente: No surprises, Fake plastic trees, Exit music (for a film) e Motion Picture
soudntrack, todas do Radiohead; Paint it black, dos Rolling Stones; A forest, do The Cure;
House of the rising sun, do Animals; Back to black, da Amy Winehouse; e Something I can
never have, do Nine Inch Nails. Todas essas canções lidam de algum modo com a solidão,
com uma situação de desespero, de necessidade de fuga, de desamparo, de busca por sentido,

4
Esse talvez seja o cerne da “dialética negativa” adorniana: pensar de modo a dar conta dessa contingência, do
resto que escapa à repetição, repetição essa que Adorno remete à ideia de “identidade” – seja do Conceito, do
sujeito, do valor, ou do Estado (ver Adorno, 2009; Jameson, 1990, p. 15, 20, 22-3).
bem como com a relação entre humanidade e tecnologia na virada do século – o grande tema
de OK Computer, disco do Radiohead que empresta duas músicas à série. Paradoxalmente,
porém, o piano gera para os espectadores e para os hóspedes uma certa sensação de alívio,
de “terra firme”, de que “tudo não passa de um jogo”, de que não são “pessoas de verdade”.
Ao não ser tocado por ninguém e ao tocar músicas temporalmente incongruentes com o
cenário, o piano funciona como uma espécie de âncora da realidade que sustenta o fetiche
de todo o parque.
Ainda, há duas referências artísticas centrais na série que novamente lidam com o
tema central: a arte renascentista e a literatura shakespeariana. Em uma das cenas mais
poderosas da temporada, Dr. Ford mostra a Dolores o famoso quadro de Michelangelo, A
criação de Adão, e diz como aquele quadro tem o formato do cérebro humano. A retratação
da criação do homem por Deus é, na verdade, a retratação da criação de Deus pelo homem.
A mensagem, diz ele, é que “o dom divino não vem de um poder maior, mas de nossas
próprias mentes” – nada mais propício para um cientista que quer criar a consciência
artificialmente. Mas se o Renascimento foi marcado pelo conflito entre a teologia medieval
e o surgimento do humanismo e da ciência moderna, Westworld se situa num tempo histórico
em que esse conflito entre transcendência e tecnologia se apresenta de outro modo, como
conflito interno do próprio humanismo e da própria ciência. Não mais a necessidade de se
livrar das amarras teológicas para libertar o espírito criativo, mas o que pode restar da
humanidade em um mundo em que tudo é possível. Não mais a necessidade de valorizar o
ser humano, as artes, a razão, mas o questionamento do papel que os próprios seres humanos
cumprem no mundo que criaram.
Outra referência literária fundamental é William Shakespeare. A famosa frase, tantas
vezes repetida da metade para o fim da série, “esses fins violentos têm fins violentos”5 –
muito apropriada, diga-se de passagem – é dita originalmente por Frei Lourenço ao casar
Romeu e Julieta. Logo no primeiro episódio, quando o pai de Dolores passa a apresentar
mau funcionamento após ver uma fotografia, ele incorpora uma configuração antiga na qual
era professor e, em um momento profético, cita Rei Lear: “Eu terei tais vinganças em vocês
[...] o que elas serão, eu ainda não sei; mas hão de ser os terrores na terra”.6 A tragédia de

5
Tradução livre de “these violent delights have violent ends” (Ato II, cena 6). Versão original disponível em:
https://goo.gl/dD8VZg.
6
Tradução livre de: “I will have such revenges on you both / That all the world shall – I will do such things –
/ What they are, yet I know not; but they shall be / The terrors of the earth” (Ato II, cena 4). Versão original
disponível em: https://goo.gl/PCYbf4.
Shakespeare é uma interessante apresentação literária dos conflitos que a subjetividade
moderna – que no século XVII ainda era incipiente – enfrenta ao romper com os laços
medievais anteriores. Shakespeare transpõe de forma trágica esse conflito entre razão e
tradição, entre indivíduo e família, entre moral e dever, entre autonomia e destino, etc.
(Adorno, 2006b, p. 231-2) e como Garrek Stemo apresenta, é possível encontrar diversos
paralelos da série com outros textos de Shakespeare, como Macbeth e o já citado Rei Lear,
especialmente no papel que o sofrimento cumpre na série e nas peças (Stemo, 2016a e
2016b).

Uma luta de vida e morte

Aqui talvez seja necessária uma longa digressão para apresentar brevemente duas
teses centrais da filosofia no que tange à consciência, teses que em tempos “acelerados” e
“pós-modernos” demonstram sua inegável atualidade ao enfrentar os dilemas de Westworld.
Charles Rubin (2016) acerta ao perceber na série a dinâmica da famosa figura hegeliana da
dialética do senhor (Herr) e do servo (Knecht). A dialética do senhor e do servo (ou do
senhor e do escravo, como é mais conhecida) é uma figura teórica usada por Hegel na
Fenomenologia do espírito para descrever o processo de passagem da consciência em geral
(grosso modo, da forma de apreensão do objeto pelo sujeito, da preocupação de verdade com
o objeto) à consciência de si (a apreensão do próprio sujeito como objeto de reflexão, da
preocupação de verdade consigo mesmo) (Hegel, 1977, p.111; Safatle, 2007, p. 124). Ela é
central para história do pensamento porque marca uma ruptura com toda a filosofia da
consciência que a precede ao pôr pela primeira vez o problema do “outro” (Jameson, 2010,
p. 54). Em Hegel – diferentemente do solipsismo kantiano, por exemplo –, a consciência de
si é inevitavelmente social e intersubjetiva, se dá apenas por meio do reconhecimento. A
reflexividade da consciência – a consciência de si próprio como sujeito, a tomada do próprio
sujeito como objeto –, só pode surgir na medida em que um outro me reconhece como
consciente de mim próprio, sendo a recíproca igualmente verdadeira. É na medida que eu
reconheço que o outro reflete sobre si, tem consciência de si, que eu posso ter consciência
de mim; ou, em seus próprios termos, “a consciência de si existe em si mesma e para ela
mesma quando, e graça ao fato de que, ela existe para outra [consciência de si]; isto é, ela
existe somente ao ser reconhecida. [...] Elas reconhecem a si mesmas ao se reconhecerem
mutuamente” (Hegel, 1977, §178-84, p. 111-2).
Na Fenomenologia do espírito, Hegel apresenta um modelo conflitivo de
reconhecimento e de intersubjetividade, o que ele percebe como uma “luta de vida e morte”.7
A “consciência de si”, para Hegel, não é um dado. A dinâmica do reconhecimento envolve
que ambos indivíduos mutuamente se reconheçam como tais, como dotados de consciência
de si próprios. Inicialmente, contudo, há somente duas consciências enxergando uma a outra
como parte do mundo objetivo. “Aparecendo imediatamente na cena”, diz Hegel, “eles são
um para o outro como objetos ordinários, [...] eles não se expuseram um ao outro na forma
de puro ser-para-si-próprio”. A forma de apresentação de si ao outro se dá como “pura
negação de seu modo objetivo”, de sua não-redução a uma existência específica, em suma,
de sua não-vinculação à vida. Nesse duplo movimento (em direção a si e em direção ao
outro), Hegel vê surgir o conflito de vida e morte: quanto ao outro, ele busca produzir a
morte, reduzi-lo ao status de objeto; quanto a si, ele arrisca sua própria vida, demonstra que
excede sua existência corpórea. Em ambas as posições o que se busca é a não redução da
subjetividade à sua “base natural” (a vida), e é ao pôr a vida em risco nesse conflito que o
indivíduo prova para si e para o outro sua subjetividade, afinal, “é somente ao arriscar a
própria vida que se ganha a liberdade” (Hegel, 1977, §186-7, p. 113-4).8
Em uma reversão dialética, contudo, Hegel apresenta o problema de tal conflito de
vida e morte: não há reconhecimento entre o sobrevivente e o derrotado. “A morte
certamente mostra que ambos arriscaram suas vidas e não demonstraram por ela apreço,
tanto em relação a si como em relação ao outro”, mas com isso desaparece a própria
mediação entre ambos, que colapsa em uma cadavérica “unidade sem vida”. A morte do
outro não produz reconhecimento: “ambos não dão e recebem a si próprios reciprocamente
por meio da consciência, mas deixam um ao outro indiferentemente livres, como coisas”.
Hegel afirma que a consciência, então, “aprende” que a vida é tão essencial quanto a sua
“forma pura” – tanto em relação a si própria com em relação ao outro –, mas isso ainda não
implica um reconhecimento recíproco. Em seu lugar surge a relação com o outro como uma
“consciência que não é puramente para si, mas para outrem”, isto é, uma “consciência na
forma de coisa”. Ao invés do reconhecimento, surge a relação do eu (sujeito) com o outro

7
Em outras obras isso não é o caso, como quando ele apresenta esse elemento intersubjetivo a partir do amor
(Safatle, 2007, p. 143).
8
Charles Rubin problematiza a compatibilidade entre a dialética do senhor e do servo e a revolta dos anfitriões
em Westworld com base na ideia de que não há, propriamente, uma luta de vida e morte, afinal, tanto Maeve
quanto Dolores se vangloriam de sua imortalidade (ver Rubin, 2016). Contudo, isso é uma interpretação muito
literal. A “morte” pode ser muito bem o retorno para o cotidiano regular, ou ser estocada no depósito com os
outros anfitriões problemáticos. Reduzir o risco do ato de ambas é diminuir o drama envolvido no conflito.
(coisa, objeto): um é a “consciência independente cuja natureza essencial é ser para si
mesma”; o outro é a “consciência dependente cuja natureza essencial é simplesmente viver
ou ser para outrem” (Hegel, 1977, §188-90, p. 114-5).
É aqui que Hegel introduz a dialética do senhor (representado na consciência
independente) e do servo (representado na consciência dependente). De um lado há o senhor,
que se pretende autônomo, “sujeito”, e que se relaciona com outra pessoa (outra consciência)
apenas como “objeto” (o servo). O servo, por sua vez, também vê a si como mero objeto e o
senhor como sujeito. Segundo Hegel, aqui só há um “reconhecimento unilateral e desigual”,
o que impede a percepção de que, na verdade, ambas as posições são mutuamente
dependentes: o senhor só se pretende autônomo por conta da existência e da subordinação
do servo (no qual ele exerce seu domínio e do qual ele retira seu sustento) enquanto que o
servo só se vê como objeto por conta da dominação (por vezes violenta) do senhor. Como
diz Hegel, “a verdade da consciência independente é a consciência submissa do servo”
(1977, §191-3, p. 116-7). O que essa relação – que se revela como relação de dominação e
não de reconhecimento – possibilita, contudo, é a reencenação do conflito de vida e morte
e da luta pela liberdade que constitui a consciência de si. Se a relação de dominação surgiu
da impossibilidade de reconhecimento post mortem, ela agora produz sua própria negação
na luta do servo pela liberdade. A vulnerabilidade de ambos que se apresenta nessa luta
revela um nivelamento fundamental que possibilita novamente a mútua reflexividade do
reconhecimento. Assim, quando o servo se “liberta” do senhor, quando deixa de se relacionar
ao senhor enquanto senhor – e o senhor deixa de se relacionar com o servo enquanto servo,
revelando sua “inessencialidade” – ambos passam a se relacionar enquanto sujeitos livres e
iguais (Jameson, 2010, p. 102-3).9

Sofrimento, reconhecimento, e a política da consciência

Mas como há essa passagem da relação de servidão à revolta, o surgimento da


consciência de si? Em Hegel isso está ligado ao trabalho do servo e à dependência do senhor

9
Susan Buck-Morss defende a interessante tese de que a dialética do senhor e do servo não é apenas uma figura
teórica, mas a expressão filosófica do conflito pela emancipação dos escravos na modernidade. Ela mostra
como a filosofia política moderna sempre teve uma relação conivente com a escravidão realmente existente. A
escravidão era meramente uma metáfora para a dominação política do Antigo regime, a escravidão realmente
existente nunca era questionada. Hegel seria o primeiro a lidar com a escravidão real ao basear a dialética do
senhor e do servo na Revolução Haitiana (Buck-Morss, 2009, p. 36-40; ver também Žižek, 2008, p. 208).
(Hegel, 1977, §194-6, p. 117-9) – algo que foi classicamente apropriado pelo marxismo
como uma “antecipação” da luta de classes.10 Contudo, podemos seguir um caminho distinto
a partir de outro autor da tradição dialética alemã. Theodor W. Adorno, na sua Dialética
Negativa, afirma que “a necessidade de dar voz ao sofrimento é condição de toda verdade.
Pois sofrimento é objetividade que pesa sobre o sujeito; [...] A liberdade da filosofia não é
outra coisa senão a capacidade de dar voz à sua não-liberdade” (Adorno, 2009, p. 24). A
própria reflexão, para Adorno, surgiria de um sofrimento, de uma inadequação entre sujeito
e objeto, entre pensamento e mundo – algo que é de algum modo inevitável para ele, pois a
“identidade” finalmente reconciliada entre sujeito e objeto seria algo impossível (Adorno,
2009, p. 12-3; Jameson, 1990, p. 15-6). A passagem da consciência à consciência de si,
portanto, poderia ser lida como negação do sofrimento, negação de uma realidade de
dominação e de impotência.
Ninguém menos que o próprio Dr. Ford enuncia que o sofrimento, “a dor causada
pelo mundo não ser como você gostaria que ele fosse”, é o que poderia despertar os anfitriões
de sua situação miserável. O sofrimento é parte indispensável de sua própria negação, da
busca por uma vida melhor – ou, como afirma Adorno, “o momento corporal anuncia ao
conhecimento que o sofrimento não deve ser, que ele deve mudar” (Adorno, 2009, p. 173).
Mas esse sofrimento nem sempre é autoevidente. Como afirma Adorno, “é parte do
mecanismo de dominação impedir o reconhecimento do sofrimento que ele produz, e há uma
linha direta de desenvolvimento entre o evangelho da felicidade e a construção de campos
de concentração” (2006a, §38, p. 63). No primeiro episódio, vemos a tentativa de
encobrimento do sofrimento ser apresentada por Dolores duas vezes: “algumas pessoas
escolhem ver a feiura desse mundo, a desordem. Eu escolho ver a beleza, acreditar que há
uma ordem para os nossos dias, um propósito. Eu sei que as coisas vão ser do jeito que elas
devem ser”. Nem o que o Arnold conta sobre os visitantes, nem a própria experiência de
violência que Dolores sofre no episódio conseguem desvencilhá-la dessa percepção, apenas
o sofrido processo que se estende por toda a temporada é capaz de tal tarefa.
Nesse sentido, é interessante ainda perceber que por mais brutal que fossem as ações
dos visitantes em relação aos anfitriões, não é a brutalidade da dominação em si (exercida
pelo senhor) que torna possível o reconhecimento, mas a posição subjetiva que essa
dominação violenta possibilita (no servo). Todo o arco do homem de preto pode ser lido

10
Para uma reconstrução e uma crítica dessa apropriação ver Arthur, 1983.
nesse sentido. Sua busca incessante pelo “fim do labirinto” – e, se é prestada a devida
atenção, é possível perceber que o desenho do labirinto não permite nenhuma solução – se
revela como uma tentativa desesperada de buscar no outro a solução da incompletude de si
próprio. É como se o homem de preto tivesse inconscientemente se dado conta da
precariedade de sua posição (de mestre) e tentasse desesperadamente reafirmar sua
“essencialidade”. Se a relação de dominação só é possível em virtude da mútua projeção
dessa relação, o que o seu arco demonstra, porém, é que a demanda por reconhecimento só
pode surgir de um dos polos dessa relação: aquele que sofre, aquele que deve negar sua
situação de dominação. Não é à toa que no momento da revolta, no qual sua vida está em
risco – numa explícita encenação da luta de vida e morte entre o senhor e o servo –, ele
parece finalmente encontrar a autenticidade que tanto procurava: o reconhecimento do outro
não mais como objeto, mas como sujeito, e a inevitável implicação ética da relação entre
ambos se torna finalmente possível.
Mas se o sofrimento, que abre a possibilidade da consciência de si, não é
autoevidente, ele também nunca pode ser perfeitamente ocultado. O sofrimento é o resto que
não pode ser plenamente apaziguado na identidade entre realidade e felicidade. A memória
aqui cumpre um papel fundamental posto que ela retorna de forma sintomática o sofrimento
recalcado, permitindo que tanto Dolores quanto Maeve quebrem o ciclo repetitivo e se deem
conta da situação de sofrimento. A memória é o fundamento do que Ford chama de
“devaneios” [reveries], os trejeitos espontâneos e improvisados dos anfitriões, e é porque o
sofrimento retorna – tanto na forma de sonho como na forma de conduta repetitiva – que ele
não pode ser ocultado plenamente. Como diz Ford para Bernard ao explicar a necessidade
das memórias (bem como dos traumas) para os robôs, “o eu [self] é um tipo de ficção, tanto
para os humanos como para os anfitriões. É uma história que contamos para nós mesmos, e
toda história precisa de um começo”. Assim, a memória que era condição de existência do
realismo dos anfitriões – fundamental para o sucesso do parque – passa a ser também a
condição de possibilidade de sua libertação.
Esse “retorno do recalcado” do sofrimento parece surgir em todas as tentativas de
apaziguar os conflitos subjetivos e intersubjetivos, tanto na trama quanto na nossa realidade.
Para Adorno, por exemplo, esse processo de ocultação e retorno, de dominação e sofrimento,
caracteriza o processo de conhecimento do mundo, de relação de verdade do sujeito perante
o objeto. A razão envolve sempre também um processo de dominação: dominação da
natureza, dominação do outro, dominação de si próprio – e se a consciência em si é marcada
por uma forma de dominação, é inevitável que a relação entre o eu e o outro se dê em termos
similares, justo o que dá início à relação entre senhor e servo. Nisso consiste o cerne da
chamada dialética do esclarecimento formulada por ele e Max Horkheimer. A ciência, o
esclarecimento, o liberalismo, os valores iluministas – cuja origem eles já localizam no mito
de Ulisses – produziram, com seu desenvolvimento, não a emancipação da humanidade, mas
a bomba atômica, a homogeneização cultural, os campos de concentração, etc. O próprio
desenvolvimento da razão na história produziu sua antítese, seja na forma de “alienação”
cultural capitalista; seja na negação regressiva e irracional no fascismo realmente existente
(Adorno & Horkheimer, 1985). Assim, longe do desenvolvimento do Espírito, Adorno via a
sociedade capitalista moderna produzir precisamente sua aniquilação (Adorno, 2009, p.
295).
A tese de Adorno e Horkheimer, comumente criticada por uma espécie de
“pessimismo” em relação à racionalidade, acaba também encontrando suporte em
Westworld. O avanço científico e tecnológico incomensurável para produzir androides que
agem como humanos, falam como humanos, transam como humanos, sofrem como
humanos, têm lembranças como humanos, serve ao simples prazer sádico de uma elite poder
fazer com robôs o que a moral (ou a lei) não deixa que faça com humanos. Assassinato,
estupro, tortura se tornam formas de diversão e de experiência do exótico. Isso está longe de
ser uma novidade, como a história do (neo)colonialismo e do patriarcado não nos permitem
esquecer. O próprio tema “Velho Oeste”, aliás, remete a esse passado: um projeto americano
de genocídio e expansão que foi sedimentado culturalmente pelo cinema hollywoodiano
como um espaço de virilidade, liberdade, aventura e coragem. Se parte da humanidade
precisava reduzir outros humanos ao status de coisa para satisfazer seus desejos, Westworld
apresenta a possibilidade de isso se reatualizar de outro modo em um mundo ainda mais
“desenvolvido” que o nosso. Não haveria contradição se a sociedade fora do parque fosse
muito mais tolerante e igualitária em questões de gênero, raça e secualidade, pois Westworld
mostra uma forma (lucrativa) de manter a dominação e a distinção em outros termos.
Nesse sentido, Westworld (o parque) revela sua estrutura propriamente fetichista,
uma postura que sustenta diversas formas contemporâneas de sofrimento e segregação.
Como aponta Slavoj Žižek, o fetiche não se caracteriza por uma “mistificação” ou por uma
“distorção” do conhecimento da realidade “verdadeira”. O que nele é “deslocado” é,
precisamente, a própria ilusão, a crença que o conhecimento ameaça. “Longe de ofuscar o
conhecimento ‘realista’ de como as coisas são”, afirma ele, “o fetiche é, ao contrário, o meio
que permite o sujeito aceitar esse conhecimento sem arcar com suas consequências” (Žižek,
2008, p. 300). Por isso a fórmula da negação fetichista é “eu sei muito bem, mas...”: é
justamente esse “mas” que permite sustentar a relação entre ilusão e realidade, entre crença
e realismo. Em Westworld, essa negação fetichista opera de uma forma dupla,
exemplarmente oposta nos conflitos entre Will e Logan. Will “sabe muito bem” que Dolores
é um androide, mas isso não o impede de acreditar que ela é, na verdade, uma pessoa “real”
– relação que é completamente despedaçada quando ele a reencontra repetindo com outro
hóspede a mesma cena da lata na qual se conheceram (revelando novamente a unilateralidade
do reconhecimento). Logan, por outro lado, representada a negação fetichista compartilhada
por todos os outros visitantes: ele “sabe muito bem” que está de fato matando, que está
produzindo sofrimento, que não há distinção nenhuma no ato praticado com um robô ou um
humano, mas a consciência de que “é apenas um robô” permite que ele concilie o prazer
sádico com a consciência limpa.
É a constatação dessa dupla relação fetichista que permite a suspensão real entre
humano e máquina que a série produz. Mas até mesmo esse obscurecimento – tão enaltecido
nos recentes debates sobre Inteligência Artificial e singularidade – perde o sentido quando
nos damos conta de que Westworld não é uma história sobre humanos lidando (moralmente
ou não) com robôs, mas sobre robôs lidando com o sofrimento infligido pelos humanos – e
dando o troco. Com a exploração brutal e repetida dos corpos robóticos, vem a possibilidade
da sua afirmação subjetiva. Mas é preciso destacar: trata-se de uma possibilidade. O que boa
parte dos debates sobre inteligência artificial ignora é a dimensão intersubjetiva que é
pressuposta à consciência humana, bem como a possibilidade de exigência – violenta, se
necessário – do reconhecimento dessa consciência. A questão se os anfitriões são ou não
“humanos” – que implica em uma série de consequências éticas em relação ao parque – erra
pela pergunta: não se trata de os humanos decidirem qual é o critério da humanidade (que
imporia o limite ético), mas da possibilidade dos (até então) “objetos” se afirmarem enquanto
sujeitos. O fato de a Arábia Saudita ter concedido cidadania à robô Sofia em 2017 – o que
inacreditavelmente a torna mais livre que as mulheres do país – não merece, portanto, tanta
atenção. Como afirma Hegel, “o indivíduo que não arrisca sua vida pode bem ser
reconhecido como pessoa [Person], mas ele não alcançou a verdade desse reconhecimento
como uma consciência de si independente” (Hegel, 1977, p. 114). A consciência de si, afinal,
não se concede; se arranca.
Ser uma “pessoa jurídica”, ter seus direitos atribuídos por outrem, não garante por si
o reconhecimento nem a subjetividade. É o comprometimento envolvido na decisão radical
de pôr a própria vida em risco – sair ou não do parque; dar ou não um tiro; se sacrificar ou
não pelo outro – que comprova essa “humanidade”, que dá abertura para o reconhecimento.
Por isso, uma interpretação que conteste a veracidade dessa decisão, que veja apenas
decisões que já tinham sido pré-programadas, ignora tanto a inverdade do suposto “livre
arbítrio” dos próprios seres humanos (biologicamente programados e socialmente
condicionados em seus desejos mais íntimos) como a implicação verdadeiramente ética (e,
consequentemente, propriamente humana) presente nas decisões dos anfitriões. Como Ford
afirma para Bernard, “os humanos imaginam que há algo de especial na forma pela qual
percebem o mundo, mas ainda assim vivemos em círculos [loops] tão limitados e fechados
quanto o dos anfitriões; raramente questionando nossas escolhas; felizes, na maior parte das
vezes, por receber ordens sobre o que fazer em seguida”. O que caracteriza a subjetividade
não é algum conteúdo especial, mas a nossa intersubjetividade, nosso reconhecimento
recíproco, nossa capacidade de nos relacionarmos com o outro enquanto sujeitos.
Westworld parece, à primeira vista, apenas mais uma versão do clichê da ficção
científica de robôs se revoltando, mas uma análise mais detalhada faz cair por terra uma
leitura tão simplista. Westworld é, definitivamente, uma reflexão filosófica sobre o que
significa ser humano, um exercício de compreensão de como o humano pode vir a ser, e
como a humanidade pode surgir onde antes ela não havia. Nesse sentido, apesar de tudo,
Westworld revela seu otimismo: sempre é possível que a contingência rompa a repetição;
sempre é possível interromper uma situação de sofrimento social; sempre é possível se
comprometer de corpo e espírito em uma decisão ética, ainda que todas essas alternativas
pareçam impossíveis. Grégoire Chamayou em seu Teoria do drone ironiza que “ao contrário
do que sugerem os roteiros de ficção científica, o perigo não é que os robôs comecem a
desobedecer; é justo inverso: que nunca desobedeçam” (2015, p. 240) – especialmente
quando eles servem, justamente, para garantir uma ordem que só causa desastre e sofrimento
social. Westworld parece assim ser um dos melhores exemplos da veracidade de sua
provocação.

Referências

ADORNO, Theodor W. (2009) Dialética negativa, Rio de Janeiro: Zahar


_____ (2006a) Minima moralia: reflections on a damaged life, London: Verso.
_____ (2006b) History and freedom: lectures 1964-1965, Cambridge: Polity.
_____ (1985) Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos, Rio de Janeiro: Zahar.
ARTHUR, Chris (1983) “Hegel’s Master-Slave Dialectic and a myth of Marxology”, em
New Left Review, 142 (1), p. 67-75.
BUCK-MORSS, Susan (2009) Hegel, Haiti, and universal history, Pittsburgh: Pittsburgh
University Press.
CHAMAYOU, Grégoire (2013) Teoria do drone, São Paulo: Cosac Naify.
FLECK, Amaro (2017) “Afinal de contas, o que é teoria crítica?”, em Princípios: revista de
filosofia, 24 (44), p. 97-127.
FREUD, Sigmund (1961) Beyond the pleasure principle, New York: W. W. Norton &
Company.
HEGEL, Georg W. F. (1977) Phenomenology of Spirit, Oxford: Oxford University Press.
____ (1967) Philosophy of right, Oxford: Oxford University Press.
JAMESON, Fredric (1990) Late Marxism: Adorno or the persistence of the dialectic,
London: Verso.
_____ (2010) Hegel variations: on the Phenomenology of Spirit, London: Verso.
LE GUIN, Ursula K. (2016) “Introduction”, em Ursula K. Le Guin, The left hand of
darkness, London: Penguin Classics.
MARX, Karl (2013) “Prefácio à primeira edição”, em Karl Marx, O capital: crítica da
economia política, Livro I: o processo de produção do capital, São Paulo: Boitempo.
RUBIN, Charles (2016) “Freedom and rebellion in Westworld”, em The New Atlantis: a
journal of technology & society (Futurisms), disponível em: https://goo.gl/6K6WWZ.
SAFATLE, Vladimir (2007) A Fenomenologia do espírito, de Hegel, curso ministrado no
departamento de filosofia da USP, disponível em: https://goo.gl/aeYHcy.
STEMO, Garrek (2016a) “Consciousness in Shakespeare and Westworld, part I: suffering”,
em Deconstructing Westworld: an in-depth analysis, disponível em: https://goo.gl/TtwS3e.
_____ (2016b) “Consciousness in Shakespeare and Westworld, part II: loops”, em
Deconstructing Westworld: an in-depth analysis, disponível em: https://goo.gl/yXAgQ8.
ŽIŽEK, Slavoj (2008) In defense of lost causes, London: Verso.
_____ (2012) Less than nothing: Hegel and the shadow of dialectical materialism, London:
Verso.

Você também pode gostar