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Para que serve a História?

(Fragmento de aula proferida pelo Prof. Dr. Durval Muniz, em 23.01.2001, para mestrandos e
doutorandos do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco.
Transcrito e revisado por Edwar de Alencar Castelo Branco)

Essa é a questão central hoje na reflexão sobre história. Ensina-se história para quê?
Essa é uma grande questão porque durante muito tempo ensinou-se história para construir o
cidadão da pátria, o cidadão burguês, cívico, patriótico, o soldado da nação. Depois ensinou-
se história para construir o revolucionário, o sujeito emancipador da humanidade. Ora, essas
duas coisas estão em descrédito, então ensina-se história para quê? Para que a história serve?
O Hayden White, num texto chamado “fardo da história”, dá uma resposta: para ele a história
tem a finalidade de nos ensinar exatamente a conviver com a diferença e com o descontínuo.
A história tem essa função de nos fazer cada vez mais perceber a própria historicidade do que
somos e exatamente pôr em questão o que somos. E é exatamente este trabalho que o Jorge
Larrosa propõe, isto é, dentro do que ele propõe o ensino de história seria fundamental para a
gente fazer uma crítica de nós mesmos, daquilo que nos constituiu, isto é, daquilo que nos fez
ser o que somos. A história seria fundamental para você desnaturalizar a sua própria figura de
sujeito. É a possibilidade de você estabelecer um laço crítico consigo mesmo.
A história teria a função de nos livrar do passado e não de nos ligar a ele. A sua função
seria dizer o que em nós é passado e fazer com que a gente se livre disso, do peso do que em
nós é passado. A história é a anulação da memória, é detonação da memória. Ela pode servir
para nos libertar do aprisionamento que a memória significa. A história é introduzir o
descontínuo em nós mesmos, pensando a possibilidade de recriar o tempo para nós mesmos,
construindo uma nova temporalidade para nós mesmos, que não tenha obrigação de ser a
continuidade desse tempo anterior, desse tempo que nos fez, que nos produziu, que nos fez
chegar até onde somos. Então a história teria essa finalidade de fazer as pessoas conviverem,
por exemplo, com o relativo da própria existência, conviver com a relatividade das coisas. A
história na verdade é um aprendizado profundamente ético. A história seria o aprendizado de
uma ética. É o saber que serviria para uma reflexão ética sobre o estar no mundo, o ser no
mundo. É o saber que me possibilita refletir sobre o tipo de laço que eu estabeleço com o
mundo e o tipo de laço que eu estabeleço com o meu semelhante. A história serviria para isso.
É certo que brincando de que volta ao passado, brincando de que utiliza sujeito do passado,
mas eles são na verdade meros pretextos para o nosso presente.
Repensar nossas relações, repensar aquilo que nos fez ser o que somos. Deve ser esse o
papel da história. A história deve ter essa capacidade fantástica de nos impor uma reflexão
sobre como chegamos a ser o que somos.
Em primeiro lugar nós devemos dizer aos alunos que a história não tem nenhuma
finalidade do ponto de vista de aprendizado de um conteúdo. Não tem a menor importância
saber em que ano aconteceu a inconfidência mineira. A história tem uma outra finalidade, que
é a relativização e a desnaturalização daquilo que é apresentado pra gente como sendo a
verdade, o bem, o justo, o belo, o bom. É você colocar as coisas no fluxo temporal e fazer
com que as pessoas se preparem para a finitude das próprias coisas do seu próprio ser. A
história tem a função de nos preparar para encarar a finitude, isto é, a morte. A história é
basicamente uma relação com a morte e, portanto, numa sociedade que nega a morte, como a
nossa, a história é um tanto quanto complicada. Porque a história é você encarar que todas as
coisas são mortais. Tudo passa. Como diz Florbela Espanca, tudo é “fumo leve que foge entre
meus dedos”. O meu amor é finito, minha relação é passageira. A história tem a finalidade de
nos preparar para o fim. Então eu acho que o saber histórico é a radicalização da própria
historicidade. É radicalizar essa convivência com a história que a modernidade nos colocou e
daí porque a modernidade já era problemática, porque ela é o momento da descoberta da
historicidade, da passagem do tempo. E agora a gente chegou ao momento em que essa
consciência chegou ao máximo, isto é, qualquer tipo de continuidade é problemático. Então
estudamos história para saber lidar com o descontínuo do nosso próprio ser. Nós somos fluxo.
A história, tal qual a praticamos, é produto da modernidade e, portanto, ela expressa um
sujeito autoreflexivo. A história nasce de uma reflexão sobre o homem, ela é humanista. Só
que hoje nós vivemos a crise do humanismo, então não é mais uma reflexão sobre este
homem em geral, mas continua sendo uma reflexão sobre sujeitos, sobre a construção da
subjetividade, sobre a construção dos laços sociais, das relações sociais. Porque nós somos
seres sociais, estão a história nos ajuda a refletir sobre que tipo de laços nós estamos
estabelecendo com os outros e com o mundo. Que tipo de sociedade estamos construindo.
Que tipo de relação a gente tem com o outro. É uma disciplina pra ajudar as pessoas a se
produzir enquanto ser. Não é utilitária do ponto de vista técnico e imediato.
A história, então, sempre foi uma disciplina voltada para a construção de sujeitos. Só
que um sujeito dado, específico. Hoje a história é apresentada como aquela que vai
proporcionar a possibilidade da construção de sujeitos variados e múltiplos. É o direito de
você se construir de forma variada, de forma diferenciada. A história, então, seria o
aprendizado da multiplicidade e da diferença. Assim como da singularidade, quer dizer, a
história que lida com o singular. Ora, a história sempre lidou com o singular, a história sempre
lidou com a coisa que é absolutamente excepcional, mas nunca nos preparou para conviver
com o singular porque sempre dissolveu o singular no geral. E sempre disse que o geral era
mais importante que o singular. Então a história também tem uma função de nos ensinar a ser
singular e a valorizar a singularidade. Esta pode ser uma justificativa de porque fazemos
história, de porque ensinamos história, de porque lemos história, etc: por uma sociedade mais
tolerante e menos autoritária. Sujeitos que convivem bem com a diferença.

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