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Infância e Contemporaneidade
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Professora do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ. Doutora em
Educação pela UERJ (2008). Pesquisa com financiamento da Faperj.
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Segundo José Hernandez em seu famoso poema épico “Martin Fierro”, o tempo é “a
tardança do que está por vir”. Ancorando-se nas poesias “O tempo”, de Fernando Pessoa, e
“Cortar o tempo”, de Carlos Drummond de Andrade, trazemos a reflexão sobre o tempo
histórico que se faz simultaneamente com o tempo contínuo e o tempo descontínuo.
Cortar o tempo
Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e
outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente (Drummond, ano).
O tempo
O poema “Cortar o tempo” apresenta a ideia genial de que o tempo cortado em fatias,
em fases,faz com que a vida de cada sujeito ou a história da humanidadeganhe sentido por
trazer o porvir através da possibilidade da renovação, a qual é afirmada no poema “O tempo”.
remete ao seu sentido cronológico, que traz a situação do nascimento à morte, e como
descontínuo, quando nos remete ao sentido da vida humana enquanto modo e lugar da
existência.
O “tempo” é trazido para o centro da reflexão na pesquisa com crianças para interpelar
o presente, fortalecendo a reflexão sobre as culturas emudecidas na contemporaneidade
quando a cultura infantil é tematizada a partir das conversas entre adulto e criança associadas
à experiência do tempo, uma concepção de história.
Assim, a teoria da infância com sentido de incompletude trata a diferença dos modos
de ser criança a partir da lembrança de que os discursos dos sabereshumanos têm a dimensão
de incompletude e de singularidade: há “uma retomada sem fim, um caminhar sempre
reiniciado, uma multiplicidade de percursos” (Gagnebin, 2006:45). A vida no presente nos
convida a pensá-la fora das amarras que nos fixam ao passado, mas ouvindo o seu apelo para
estarmos atentos ao seu chamamento de felicidade. Isto significa a transformação do presente
para que a história cumpra a exigência da transmissão no tempoagora.
aos adultos que se servem dos fantasmas do passado apenas como espantalho para
impedir que as próprias crianças se tornem adultos, e que se servem das crianças
apenas como álibi para encobrir a própria incapacidade de enterrar os fantasmas
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Estas palavras convidam a pensar sobre o sentido da história que tem como seu motor
a luta, para reconhecer o entrelaçamento entre tempo presente, passado e futuro. Este
entrelaçamento serve para lembrar ao adulto que o presente exige relação com o amortecido e
o vivo para realizar a experiência do tempo pleno, descontínuo e finito. Defender-se do
passado amortecido por meio do esquecimento da história e entregá-lo às crianças sem
relacioná-lo com o presente significa condená-las à amnésia histórica. Sem conexão com o
tempo, o passado retorna sem ajudá-las a reconquistar o sentido das possibilidades de
mudança, ou elas mesmas destroem o próprio sentido da história pela impossibilidade de
remontar o passado.
Supõe-se, assim, que a preocupação com o tempo da vida expressa o desafio de nos
livrar da compreensão das mudanças do mundo atual como se fossem a repetição do passado.
Esta visão do presente como repetição do passado sugere fechar os olhos para os movimentos
e as experiências instituintes e fixar os olhos no passado para compreender o presente como
expressão histórica do tempo linear. Abrir os olhos para os movimentos e as experiências
instituintes é fundamental para pensar a pesquisa com as crianças com o sentido de portas e
janelas entreabertas capazes de nos ajudar a manter a relação com a experiência, a história e a
memória na atualidade.
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contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber
não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta
contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver
essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do
presente. Mas o que significa ver as “trevas”, “perceber o escuro”? (Agamben:
2009:62)
Não se pode falar em retorno às condições perdidas na história, mas que somente
nos é possível entrever em meio às luzes do presente o escuro que lhe é inerente,
uma origem que não está fora da história, mas que garante um olhar não saudosista
para o passado e um mirar o futuro sem esperanças outras que não a própria
capacidade de repensar o presente (Agamben,2009:21-22).
Ser contemporâneo significa “receber em pleno rosto o facho de trevas que provém de
seu tempo” (Agamben, 2009:64) para “voltar a um presente em que jamais estivemos” (:71).
Desta maneira, entendemos que a relação entre a teoria da infância com sentido de
incompletude e o contemporâneo com sentido de buscar ver o obscurso do presente se dá no
tempo descontínuo. Esta relação pensa a produção de conhecimentos como verdades-meio
porque investiga indícios do vir a ser, que é a possibilidade de situar a vida humana como
experiência capaz de mudar o tempo finito num mundo que muda.
Para Agamben,
Dessa forma, Benjamin sugere que se deve “dar uma atenção precisa ao presente, em
particular a essas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de
não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente”. A fidelidade ao passado,
não sendo um fim em si, visa à transformação do presente(Gagnebin, 2006:55).
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Compreender o obscuro do mundo de hoje por meio das pesquisas com crianças
significa concebê-las como potência de vida, como a possibilidade de “poder transformar tudo
em brincadeira, com muita emoção; que não tem mais fim. “Salamêminguê, Nanã
Boroquê.Faça de conta que...”. A transformação expressa que se algo morre com os grandes
mitos, as grandes utopias, as grandes ideologias, algo vive quando se investe na potência de
vida para combater a melancolia do coração.
Nesta perspectiva, a pesquisa se une à palavra intervenção para produzir outra relação
entre teoria e prática, assim como entre sujeito e objeto, como nos falam Passos e Benevides.
catalisa fluxos, que produz análise, que decompõe. Eles analisam as múltiplas
relações que compõem o campo tanto em seu nível de intervenção quanto em seu
nível de análise (Passos & Benevides, 2000:73).
Referênciasbibliográficas
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas. As infâncias de Manoel de Barros. SãoPaulo: Editora
Planeta do Brasil, 2008.
BARROS, Regina Benevides & PASSOS, Eduardo. A Construção do Plano da Clínica e o Conceito
de Transdisciplinaridade. Psicologia: Teoria e Pesquisa vol. 16, n.1, p. 71-79, jan.-abr. 2000.
FERREIRA, Marcelo Santanaet. al. Ensaios sobre o pensamento contemporâneo. Proclama, 2006.
Disponível em:proclama.editora@uol.com.br.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.
LOBO, Lilia Ferreira. Pesquisar: A genealogia de Michel Foucault in Pesquisar na diferença (org.
Fonseca, T.M.G.; Nascimento, M.L. do; Maraschin, C. Porto Alegre: Sulina, 2012.
PELBART, Peter Pál. Vida capital. Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.