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Entretanto, na velhice a memória aos poucos desfaz-se, se perde dentro do deserto que
constitui o passado onde pequenos espaços e momentos encontram-se à vista dos olhos, como
oásis distantes, dos quais pode-se aproximar para sentir uma outra vez soprar no rosto o
reflexo da brisa saudosa de outrora, não sendo, contudo, permitido revivê-la porque ela
mesma lhe escapa e se altera através das transformações da mente e do mundo nos próprios
anos vividos. O tempo está em constante mudança e é possível perceber a transformação ao
tentar voltá-lo, a “música de hoje” não é a “música do amanhã", o imediatismo da
modernidade amplia, cada vez mais, uma lacuna profunda entre o presente e o passado,
tornando o primeiro imperceptível, simultâneo, o segundo cada vez mais distante, e
consequentemente o futuro mostra-se irreconhecível. Na velhice, como destaca Beauvoir, é
perceptível a relação intrínseca entre o passado, o presente e o futuro. O idoso está sempre
evocando o passado porque para ele, evocá-lo é evocar e reafirmar a si mesmo através de sua
própria história diante de um presente que “corre”, cada vez mais rápido, em direção a
irremediável finitude humana; é por meio de seu próprio passado que projeta a si mesmo
nesse futuro que lhe soa breve, e assim o é em todas as fases da vida.
É nessa ruptura que encontra-se a angústia que abate nosso século, o século XXI, o século da
pós-modernidade, afinal, se é no passado que encontra-se a sustentação para o que se é hoje,
a ausência dele nos provoca a sensação de estarmos “perdidos”. É pelo retorno ao passado e
pela utopia de um futuro que temos capacidade de exercitar nossa imaginação e a imaginação
é o que amplia e estrutura nossos espaços de experiência e nossos horizontes de expectativas,
onde, utilizando as definições do historiador alemão Reinhart Koselleck para compreender os
conceitos de “espaço de experiência e horizonte de expectativa”, propõe-se que:
A idade altera a relação humana com o tempo; se na infância ele se preenche de descobertas e
profundas transformações e o futuro lhe soa amplo com diferentes possibilidades, na velhice,
onde as descobertas e transformações são reduzidas, o ser humano compreende e aceita sua
irremediável finitude, o futuro não lhe soa tão distante e cada vez mostra-se mais breve em
seu “tempo contado”; por isso há no idoso o desejo e a mania de se voltar ao passado,
sobretudo à infância, guiado pelo desejo de experimentar novamente, mesmo que através de
um reflexo, essa sensação de possibilidades e incertezas.
Entretanto, a própria percepção humana sobre o tempo também altera-se com o passar dos
anos. Durante a infância a criança tem seu tempo à mercê do tempo dos adultos que a cercam,
ela não o conhece ainda, tampouco o controla; na vida adulta, através das ocupações diárias
— trabalho, estudo, interações sociais — é permitido ao indivíduo organizar seu próprio
tempo no presente onde esboça a escrita das linhas que irão compor sua história, e na velhice
encontra-se o acúmulo do prático-inerte de Sartre — descrito pelo autor, através das palavras
de Beauvoir, “o conjunto de coisas marcadas pelo selo da ação humana, e pelos homens
definidos por sua relação com essas coisas”⁴ — num futuro não mais repleto de
possibilidades do qual a finitude humana aproxima-se cada vez mais.
NOTAS
¹ DE BEAUVOIR, Simone. “Tempo, atividade, História”. In. A velhice. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1970. pp. 447.
⁴ DE BEAUVOIR, Simone. “Tempo, atividade, História”. In. A velhice. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1970. pp. 459.
BIBLIOGRAFIA