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Disciplina: Ensino de História (HIS075)

Docente: Marcelo de Mello Rangel


Discente: Brissa Maria Anacleto Silva
Matrícula: 19.2.3185

A VELHICE E O TEMPO PÓS-MODERNO

O capítulo “Tempo, Atividade, História” do livro “A Velhice” de Simone de Beauvoir


aprofunda-se na complexa relação entre o envelhecimento, o tempo, a atividade, a memória e
sua história através de suas transformações ao longo do tempo da vida humana. Partindo do
pressuposto em que as diferentes fases da vida e suas perspectivas são moldadas pela cultura
e circunstâncias históricas nas quais o indivíduo está inserido, Beauvoir compreende a
memória como um elo, não material e sujeito à transformações provocadas impacto do
decorrer do tempo, entre o passado, o presente e o futuro, que pode dividir-se entre memória
sensório-motora, que corresponde às leis do hábito compreendida nos comportamentos e
códigos assimilados durante a vida; a memória autista, aquela inconsciente, que restaura no
sonho o passado; e por fim, a memória social, que instaura e reconstrói através de imagens,
sons e conhecimentos pré-adquiridos, a lembrança e os fatos ocorridos no passado. “Só essa
última, numa certa medida, narrar-nos a nossa história.”¹.

Entretanto, na velhice a memória aos poucos desfaz-se, se perde dentro do deserto que
constitui o passado onde pequenos espaços e momentos encontram-se à vista dos olhos, como
oásis distantes, dos quais pode-se aproximar para sentir uma outra vez soprar no rosto o
reflexo da brisa saudosa de outrora, não sendo, contudo, permitido revivê-la porque ela
mesma lhe escapa e se altera através das transformações da mente e do mundo nos próprios
anos vividos. O tempo está em constante mudança e é possível perceber a transformação ao
tentar voltá-lo, a “música de hoje” não é a “música do amanhã", o imediatismo da
modernidade amplia, cada vez mais, uma lacuna profunda entre o presente e o passado,
tornando o primeiro imperceptível, simultâneo, o segundo cada vez mais distante, e
consequentemente o futuro mostra-se irreconhecível. Na velhice, como destaca Beauvoir, é
perceptível a relação intrínseca entre o passado, o presente e o futuro. O idoso está sempre
evocando o passado porque para ele, evocá-lo é evocar e reafirmar a si mesmo através de sua
própria história diante de um presente que “corre”, cada vez mais rápido, em direção a
irremediável finitude humana; é por meio de seu próprio passado que projeta a si mesmo
nesse futuro que lhe soa breve, e assim o é em todas as fases da vida.

É nessa ruptura que encontra-se a angústia que abate nosso século, o século XXI, o século da
pós-modernidade, afinal, se é no passado que encontra-se a sustentação para o que se é hoje,
a ausência dele nos provoca a sensação de estarmos “perdidos”. É pelo retorno ao passado e
pela utopia de um futuro que temos capacidade de exercitar nossa imaginação e a imaginação
é o que amplia e estrutura nossos espaços de experiência e nossos horizontes de expectativas,
onde, utilizando as definições do historiador alemão Reinhart Koselleck para compreender os
conceitos de “espaço de experiência e horizonte de expectativa”, propõe-se que:

A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados


e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional
quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou que não
precisam mais estar presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada
um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é conservada uma
experiência alheia. Nesse sentido, também a história é desde sempre concebida
como conhecimento de experiências alheias.

Algo semelhante se pode dizer da expectativa: também ela é ao mesmo tempo


ligada à pessoa e ao interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje, é futuro
presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas
pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a
análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a
constituem.²

Numa realidade atravessada por crises econômicas, ambientais e sociais, a pós-modernidade


lida com a ideia de um futuro cada vez mais incerto, sombrio e perigoso, e o próprio medo
provocado por esse desconhecido, limita a expectativa; diante de um passado distante e
distorcido, que soa cada vez mais “atrasado”, não se encontram mais os caminhos que
aguçam a criatividade e fomentam a experiência. “É o futuro que decide se o passado está
vivo ou não, observa Sartre,”³ a imaginação rompe com a finitude humana e confere vazão
ao seu desejo de transpor-se ao tempo limitado em que vive.

A idade altera a relação humana com o tempo; se na infância ele se preenche de descobertas e
profundas transformações e o futuro lhe soa amplo com diferentes possibilidades, na velhice,
onde as descobertas e transformações são reduzidas, o ser humano compreende e aceita sua
irremediável finitude, o futuro não lhe soa tão distante e cada vez mostra-se mais breve em
seu “tempo contado”; por isso há no idoso o desejo e a mania de se voltar ao passado,
sobretudo à infância, guiado pelo desejo de experimentar novamente, mesmo que através de
um reflexo, essa sensação de possibilidades e incertezas.

Entretanto, a própria percepção humana sobre o tempo também altera-se com o passar dos
anos. Durante a infância a criança tem seu tempo à mercê do tempo dos adultos que a cercam,
ela não o conhece ainda, tampouco o controla; na vida adulta, através das ocupações diárias
— trabalho, estudo, interações sociais — é permitido ao indivíduo organizar seu próprio
tempo no presente onde esboça a escrita das linhas que irão compor sua história, e na velhice
encontra-se o acúmulo do prático-inerte de Sartre — descrito pelo autor, através das palavras
de Beauvoir, “o conjunto de coisas marcadas pelo selo da ação humana, e pelos homens
definidos por sua relação com essas coisas”⁴ — num futuro não mais repleto de
possibilidades do qual a finitude humana aproxima-se cada vez mais.

Na pós-modernidade, imersa em seu caos e contradição, a finitude humana põe-se em voga,


afinal, não é o tempo que parece correr em direção ao futuro, e sim o futuro que se volta
ambiguamente para nós. A aceleração do tempo apenas amplia a sensação cada vez mais
assustadora de estar "vivendo esse futuro assustador" cada vez mais distante do ontem. Não
nos encontramos mais no cronotopo historicista do século passado onde a história se
conservava em seu título de “mestra da vida”, os personagens de outrora não nos ensinam
mais como lidar com os problemas do presente e a multiplicidade das histórias e dos saberes
ampliam a complexidade da experiência humana, a própria História reinventa-se e o passado,
como para Beauvoir, torna-se revogável.

NOTAS

¹ DE BEAUVOIR, Simone. “Tempo, atividade, História”. In. A velhice. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1970. pp. 447.

² KOSELLECK, Reinhard. “Prefácio” e “Espaço de Experiência e horizonte de expectativa:


duas categorias históricas”. In. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos
históicos. Rio de Janeiro: Contraponto; Puc-Rio, 2006, pp. 309-310.
³ DE BEAUVOIR, Simone. “Tempo, atividade, História”. In. A velhice. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1970. pp. 446.

⁴ DE BEAUVOIR, Simone. “Tempo, atividade, História”. In. A velhice. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1970. pp. 459.
BIBLIOGRAFIA

1. KOSELLECK, Reinhard. “Prefácio” e “Espaço de Experiência e horizonte de


expectativa: duas categorias históricas”. In. Futuro Passado: contribuição à semântica
dos tempos históicos. Rio de Janeiro: Contraponto; Puc-Rio, 2006, pp. 305-327.

2. DE BEAUVOIR, Simone. “Tempo, atividade, História”. In. A velhice. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 1970. pp. 445-466.

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