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Cultura Brasileira EBA - UFRJ

Maria Paganelli e Ronei de Aguiar Carvalho


Professor Paulo da Costa

Aquarius​, imersão num passado presente

RONEI​: A linguagem acadêmica, impessoal e sob um esforço de objetividade, pode em muitos


casos tornar-se empecilho à manifestação de pensamentos mais sutis ou de outra natureza
comunicativa, que envolve mais afeto e poesia do que as sentenças precisas do pensamento
lógico-científico. Pode não haver justiça nessa percepção. Entretanto, tenho uma forte impressão
que a extensão de nosso imaginário engloba também o inefável, aquilo que tangencia o
simbolizável e que pode eventualmente ser pescado através da invenção e quebra da forma. Quantas
vezes não conseguimos encontrar as palavras adequadas para exprimir uma ideia1? Quantas vezes,
uma vez amarrada a ideia na escrita, essa se manifesta na imagem de modo a não nos deixar
satisfeitos? Nós que, pintores, “cavalgamos imagens e nos banhamos em seus muitos leitos”.
Quantas vezes o caminho inverso da descrição de imagens não é igualmente tortuoso? Assim como
a brincadeira de inventar neologismo mostrou-se profícua em atividades recentes, a ideia de
escrevermos esse trabalho na forma de diálogo me deixa particularmente feliz, como quem livra um
dos braços na camisa de força na qual a escrita acadêmica pode se converter. Melhor o risco da
prolixidade e do excesso do que o pequeno deserto entre o preciso e o lacônico. Os temas

1
A própria palavra ideia pode não dar conta deste ser que levita ou evolui como uma caravela no corpo líquido e
infinito da imaginação. Mesmo essa tentativa de descrição estará sujeita a revisões, conforme a ideia e a “impressão
mental” que se insinua aponte na direção de um raio que atravessa os ares ou de uma pluma que diverte o vento, ou
qualquer outra forma de aí existir. Exagero nas metáforas como você pode perceber...rs
envolvidos, os textos e o filme apresentado são especialmente cativantes nesse sentido. Vamos a
eles?

MARIA​: Realmente é interessante essa questão de construir organicamente em forma de diálogo


este trabalho em dupla. Nunca o fiz assim, mas confesso que sempre exprimi muitas ideias neste
mesmo tom de fala nos textos que escrevi para fins mais acadêmicos e acho uma ótima forma de se
fazer entender, até porque, é assim que treinamos no cotidiano hahaha. Também não considero um
problema cair num teor mais poético, aliás, o conteúdo é artístico e é impossível não deixar o olhar
sensível e a forma mais subjetiva aparecerem em nossas falas.
Pois bem, sobre o filme, eu, antes de cursar esta matéria, já o tinha assistido. Havia gostado pelo
roteiro, pela trilha sonora e pelo tanto que me identificava com a família de Clara. Antes, mesmo
estando atenta, passaram despercebidas, ou melhor, neutralizadas e invisíveis várias questões
sociológicas ali abordadas. Reconheço isso por alguns motivos, todos eles em relação ao meu olhar
pertencente à classe média brasileira. Acredito que você tenha captado essas coisas mais
rapidamente por todo o ​background da sua vida, tanto por ser professor de filosofia, quanto pela
experiência política, ainda mais pelo PSOL, né!
Bom, durante as aulas fui compreendendo melhor algo que eu já acreditava: quando nos permitimos
ler, assistir e ouvir outras perspectivas da mesma cultura, entendemos o que é específico do nosso
lugar de fala. Com isso pude perceber melhor durante esses meses de curso o sistema escravocrata
instaurado no Brasil, a dualidade do jeito brasileiro, as dinâmicas sociais, a geografia construída nas
cidades, a relação desse corpo com a sociedade e todo o folclore inventado a partir do imaginário
geral brasileiro.

RONEI​: Começamos em boa direção...rs Mencionou bem o PSOL. O desafio é fazer com que este
se estenda da classe média às periferias. Vejo avanços nesse sentido. Sua experiência de vida será
particularmente importante para lançarmos esse olhar sobre a classe média e seu Ethos, para a
protagonista do filme e seu entorno. Acho que é possível identificar no filme algumas passagens
que revelam a invisibilidade que você menciona.
A cidade e o tempo no pensamento social, à semelhança do espaço e do tempo na física, estão
imbricados de tal forma que não se concebe um sem que o outro esteja envolvido. Dentre os muitos
vetores que atravessam e conformam a psique coletiva, o terreno onde ela se conforma, o lugar onde
o físico e o humano se encontram e constituem uma totalidade parcial, o território e dentre suas
muitas formas, a cidade, é um elemento estruturante das relações entre as pessoas e classes de
pessoas e estruturado pelas mesmas. Essa “relatividade” inevitável nas relações entre espaço e
tempo transposta da física e recodificada na relação entre o espaço e o humano que se desenrola no
tempo é, de onde vejo, o principal fio condutor do filme do diretor Kleber Mendonça Filho.
Considerando-se o contexto ou a situação concreta que ensejou o seu enredo ou roteiro, isso fica
ainda mais evidente2. Mergulhemos nesse “Aquarius”, não por acaso o nome fictício do prédio que
é o centro das ações e que dá nome à película, uma alusão direta ao seu nome real, “Oceania”.
A primeira imagem que se apresenta aos nossos olhos, curiosamente antes mesmo do filme
começar, um tipo de identidade visual da produtora, é de um plano aberto do ponto de vista da
técnica cinematográfica, mas cujo conteúdo retrata um corredor de paredes altas de cada lado e ao
fundo, ainda que com alguns detalhes (janelas e um alambrado), sem limites visíveis; um ambiente
em certa medida claustrofóbico, urbano, fechado. E como um enigma dentro do enigma, do alto e
em silêncio cai uma bola de futebol, revelando o humano por trás do concreto, signo lúdico de vida
e de arenas mais vastas, mais amplas. Um paradoxo que anuncia o que está por vir. Em seguida
alguns créditos e o barulho das ondas...
As imagens que se seguem, banhadas pela música a um tempo doce e melancólica, nostálgica e
cortante de Taiguara3, retratam a praia de Boa Viagem (Recife) há décadas atrás. Tempo de sonho
(em preto e branco), de casas esparsas, generosas faixas de areia e coqueirais vastos, território em
transformação, mas ainda portador dos fortes signos que a natureza plantou e de um tipo de
convívio mais próximo, humano e em alguma medida idílico, embora já portador dos germes,
contradições e tensões que iriam se agudizar no futuro.

MARIA​: É mesmo interessante esse início do filme… A mostra de imagens da cidade desde uma
perspectiva natural, um parquinho de crianças, e a cada imagem indo para um plano superior,
mostrando um pouco mais da cidade, um pouco mais de cima… a foto da geografia da cidade ainda
podendo se ver casas, depois, foto de arranha-céus, e por último, uma foto como de, talvez, uma
reserva ecológica, mas certamente um lugar ainda não explorado pela cidade.
Tanto o recurso cinematográfico da passagem de imagens remetendo àquela projeção antiga de
fotos em carrossel, quanto a música “Hoje”, de Taiguara, esclarecem e apresentam bem a temática
central do filme, veja só: “​Hoje, trago em meu corpo as marcas do meu tempo, meu desespero, a
vida num momento. A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo. Hoje, trago no olhar imagens
distorcidas, cores, viagens, mãos desconhecidas, trazem a lua, a rua às minhas mãos. Mas hoje, as

2
​ O prédio de que serviu de locação, o edifício Oceania, estava de fato ameaçado de ir ao chão para dar lugar a um
grande empreendimento imobiliário. O filme o salvou, pois garantiu o seu almejado tombamento pelo IPHAN.
3
“Hoje”, letra e música de Taiguara, do disco homônimo “Hoje”, 1969 .
minhas mãos enfraquecidas e vazias, procuram nuas pelas luas, pelas ruas, na solidão das noites
frias por você [...]”. Reconheço esse “você” muito como esse tempo passado, toda a atmosfera da
vida antiga, a temporalidade das afetividades sempre presentes.

RONEI​: Sua observação me parece bastante pertinente e ainda enriquecida por sua descrição. Esse
“você” indica um saudosismo, uma indicação clara de ausência que permite a sua interpretação.
Não havendo outras observações, vamos adiante.

No primeiro lapso temporal, somos transportados para o início da década de 80, tendo o Aquarius
como centro da ação. É um dia de festa, comemoração do aniversário de Lúcia, tia da protagonista
Clara. Lúcia é por si só um arquétipo da mulher forte e livre, espelho para o que Clara viria a ser no
futuro e que já se manifestava em sua juventude. Esse primeiro lugar no tempo, o aniversário de tia
Lúcia e seu entorno, é ainda permeado por um universo de relações e organização espacial
humanizadas se comparado ao período posterior, ao presente do filme onde já dominam os projetos
imobiliários de grande porte. Projetos esses que a um tempo gentrificam e desumanizam a
paisagem, dilacerando laços e modos de vida, introduzindo a distância entre os próximos, a
impessoalidade, o anonimato, o individualismo e fragmentação, a superficialidade e a realização
pelo consumo; uma subjetividade mascarada pela posse e ostentação, muitas vezes mediada pelo
medo, por muros, grades, câmeras, guaritas, agentes de segurança, cães rastreadores, pitbulls e
kalashnikoves...4 Estarei sendo duro demais nessa avaliação? É possível, mas o texto de David
Harvey, dentre outros, nos dá fortes indícios ou sintomas dessa realidade, embora eventualmente,
não sendo estanques ou maniqueístas em nossas avaliações, possamos em meio a essa “selva de
pedra” identificar nichos de beleza e afetividade.
Para dar consistência ao argumento avancemos no roteiro. No tempo presente do filme encontramos
Clara, moradora solitária do Aquarius, já tendo os demais moradores cedido aos apelos pecuniários
da empresa interessada em desenvolver ali um mega projeto imobiliário, que poria ao chão o
Aquárius e que ergueria mais um espigão com o pomposo nome de ​Atlantic Plaza Residence​.
Entretanto, para se tornar mais palatável e em homenagem ao futuro defunto, o projeto foi
rebatizado de Aquarius, raciocínio este formulado pelo que seria o representante desses novos
tempos de “vazio humano” e especulação que tomou a praia de Boa Viagem, o antagonista da
história e herdeiro da construtora Bonfim, Diego. Mas esse sintoma dos tempos, este ​zeintgeist frio

4
A referência que faço aqui é ao conto “Pequenas distrações” de Gregório Bacic, interpretado por Beth
Goulart na série “Contos da Meia Noite”, TV Brasil. ​https://www.youtube.com/watch?v=bzhK9sgTjP0
e movido pelo lucro, manifestar-se-ia também no círculo familiar de Clara, nas palavras da própria
filha em favor da empresa e sua “generosa proposta”. A resposta de Clara, dada através da
composição de Lupicínio Rodrigues, “Nervos de Aço”5, foi certeira e confrontou a filha com uma
imagem nada lisonjeira de si mesma, caricatura desses novos tempos, algo que a desmontou e
demoveu da ideia de convencer a mãe a vender o imóvel desejado pela construtora. Mas o sinal dos
tempos estava ali, diante de Clara.

MARIA​: Essa tensão que o diretor apresenta na relação das duas mostra exatamente o embate de
valores e visões de mundo que mudaram de meados do século XX até os dias de hoje. A filha
representa o modo de vida do homem contemporâneo, a rapidez, a ansiedade, a frieza nos tratos e a
falta de empatia com o que lida e tem contato no cotidiano, com objetos ou mesmo com pessoas.
Fica explícito esse posicionamento pela visão que tem do apartamento da mãe, tratando aquilo tudo
somente com valores econômicos e não com afetividade, o principal valor sob o olhar de Clara. Ana
Paula também reafirma essa personagem quando entra afobada na casa da mãe e nem nota a grande
máscara que a mãe bota para fazer uma brincadeira ao abrir a porta. Neste dia, quando vai falar com
Clara, a primeira coisa que diz é que “aconteceu uma coisa meio chata, tive que mandar a Cidinha
embora”, aí continua em suas frases nos mostrando como é essa impessoalidade de seu núcleo
familiar, dizendo que talvez o ex-marido nem note que a babá mudou. Se as frases fossem ditas
acerca de um produto pifado, de uma coisa, seria até mais compreensível a descartabilidade, mas
sendo com relações que necessitam de muita confiança (alguém que vai cuidar do próprio filho) é
algo que choca Clara que logo demonstra em suas feições a desaprovação das ações.
Essa questão dos tratos entre pessoas contratantes e pessoas que prestam de serviços vem fazendo
um paralelo durante o longametragem. Em várias passagens é exposta a objetificação de pessoas e
de personificação de objetos.
Podemos perceber isso quando Clara faz um teste com o pensamento do sobrinho ao se referir
ironicamente com “delivery de namorada” ao saber que o sobrinho e Júlia tinham se conhecido
virtualmente e que ela estava indo passar um tempo com ele, assim como um produto que se vê na
internet e logo pode ser entregue e consumido em outro estado. Bom, pela felicidade de Clara, o
sobrinho acha graça e nega tal objetificação, logo mostra sua afeição à moça carioca.

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Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?/Ter loucura por uma mulher/ E depois encontrar esse amor, meu
senhor/ Nos braços de um tipo qualquer?/ Você sabe o que é ter um amor, meu senhor/ E por ele quase morrer/ E
depois encontrá-lo em um braço/ Que nem um pedaço do meu pode ser?/ ​Há pessoas de nervos de aço/ Sem
sangue nas veias e sem coração​/ Mas não sei se passando o que eu passo/ Talvez não lhes venha qualquer reação/
Eu não sei se o que trago no peito/ É ciúme, é despeito, amizade ou horror/ Eu só sei é que quando a vejo/ Me dá um
desejo de morte ou de dor
Outra passagem que joga com essa temática é quando a família está reunida vendo álbuns e
fotografias antigas, cheios de nostalgia dos tempos em preto e branco. Enquanto o carro era
entendido como um objeto com o mesmo apreço de um ente da família, posando no centro das
fotos, a empregada, que é sempre cortada ou desfocada nas fotografias, é entendida como uma
pessoa que até cozinhava maravilhosamente bem, todos gostavam dela, até o dia em que
descobriram que era uma traíra por ter roubado as jóias da família. Juvenita, com seu nome só
lembrado depois de um tempo, estava ali numa dinâmica social como um objeto, algo que não pode
emitir muitas particularidades, nenhuma identidade e nem vontades. Os anos se passaram, vimos
quão afetuosa é a relação de Clara com Ladjane, mas quando esta entra no meio da família e mostra
a foto de seu filho, só pra compartilhar um momento coletivo de recordações, é feito um silêncio
desconfortável entre todos ali. Ou seja, a estrutura é a mesma, todos gostam dela, desde que se
mantenha neutra no ambiente. Voltando ao caso de Juvenita, apesar de todo o desgosto que criaram
pela empregada, a irmã de Clara vê com uma certa naturalidade a distância na dinâmica do patrão x
empregado, de alguma forma compreende esse furto quando fala “A gente explora elas, elas roubam
a gente de vez em quando e assim vai, né?”, como uma justificativa tanto pra um lado, quanto pro
outro. Estão quites.

RONEI​: Como vemos Maria, o conflito latente não é apenas sobre o modelo de cidade. É também,
tendo em vista as observações realizadas no início deste escrito e as que você adicionou, um
conflito de valores, de projeto de sociedade e civilização. Clara se encontra cercada de espigões de
concreto, gigantescas lápides erguidas sobre os escombros do mundo apresentado no começo do
filme, em preto e branco, e também do mundo posterior, início da década de 80, época da sua
juventude. O Aquarius e sua habitante em muitos sentidos parecem “vestígios de Antiga
Civilização”6... Aí uma passagem de Robert Park, citada por David Harvey em seu texto que
ilustra bem essa construção de carne, osso, ferro e concreto que são as cidades contemporâneas,
descrição certamente mais generosa do que a que estamos compondo:

“(...) é a tentativa mais bem-sucedida do homem de refazer o mundo em que vive


mais de acordo com os desejos do seu coração. Mas, se a cidade é o mundo que
o homem criou, é também o mundo onde ele está condenado a viver daqui por
diante. Assim, indiretamente, e sem ter nenhuma noção clara da natureza da sua
tarefa, ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo.”

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Trecho da letra da música “Futuros amantes” de Chico Buarque.
A vista dessas observações, Clara e o Aquarius onde levita dançante não são apenas vestígios, mas
sobrevivências concretas e agentes da resistência. Sobre isso, falarei ou falaremos mais adiante
quando abordarmos o papel da música.
Alguma observação? Esteja à vontade.

MARIA​: Sim! Tenho! Ainda próximo ao tema da cidade, a briga por territórios é um ponto
recorrente no filme, né? Vejo isso em diversos aspectos, desde a questão do apartamento de Clara,
com ela sendo intimidada por Diego a vender sua casa à construtora, mas também de territórios
delimitados sutilmente, que expõem um imenso contraste social, político e econômico de Recife.
Em ​Aquarius há uma cena em que fica exposto o contraste de desigualdade social por uma sutileza,
desde a explicação do marco entre a praia Pina e Brasília Teimosa, seguida do propósito de estar
“atravessando a fronteira”: visitar Ladjane.
Bem, a parte rica e a parte pobre são separadas por um simples cano de esgoto na areia, e só... É
mostrada essa fronteira simbólica e, enquanto adentram Brasília Teimosa, Clara vai contando sobre
Ladjane, que trabalha com ela há 19 anos e passava um ano que seu filho havia morrido, por isso
iam cumprimentá-la do lado de lá.
Clara tem Ladjane como se fosse um cão de guarda, como uma guarda-costas mesmo. Existe muita
cumplicidade, afeto e companheirismo nessa relação, mesmo sendo uma relação de
patroa-empregada, até porque a protagonista pertence a uma classe média que, mesmo tirando
proveito de todos os privilégios que pode ter, leva consigo valores que dá a ela empatia a uma luta
de ascensão das classes mais baixas. Além disso, Ladjane a remete a uma esfera temporal que Clara
valoriza muito.
Ainda naquela cena da praia Clara lembra de um ocorrido com a família de sua amiga: “No ano
passado… cê sabe que o filho dela foi atropelado? Ele tava vindo do trabalho na moto. Foi
atropelado por um bêbado. E isso aí não deu em nada, nunca deu em nada.”, no diálogo o sobrinho
se sensibiliza e ressalta “Diga aí pô... o cara bêbado atropela ele e não acontece nada”. Então, ciente
de toda a desigualdade de trato com cada classe na justiça brasileira, Júlia termina o diálogo com
um simples “é foda”.
A morte do rapaz retrata exatamente essa injustiça, pois, no Brasil, você precisa ser uma figura
importante e conhecida para reclamar e conseguir que no mínimo seja investigado e que sejam
tomadas devidas providências a um caso de morte desses. Mas com Ladjane nunca deu em nada,
pois essa é a realidade do pobre nesse país, vira estatística, vira somente um dígito a mais pro
IBGE.
“É foda”.
Dito isso, além do diálogo terminado, também acaba a cena com a música “Sufoco”, de Alcione,
dando voz a sensação que fica neste momento: “​Não sei se vou aturar, esses seus abusos. Não sei se
vou suportar os seus absurdos. Você vai embora, por aí afora [...]“ e daí já segue a cena do
aniversário de morte… Bom, mudando um pouco de assunto... é muito interessante este recurso de
imersão do espectador que Kebler Mendonça Filho faz recorrentemente na película: a música não só
trilhando o filme e ilustrando a nossa perspectiva como espectador, mas também presente dentro da
cena sendo vivida pelos personagens. Dessa forma nos é permitido adentrar ao momento e nos
encontramos compartilhando o mesmo espaço que eles.

RONEI​: Sem dúvida “é foda” e é um “sufoco”! A música expressa bem os sentimentos por trás
dessa “dinâmica social de contatos e tensões” e que tem neste episódio uma de suas manifestações.
Assim como a fronteira física, símbolo também de degradação ambiental e mais uma contradição
dos tempos, a faixa de esgoto divisória de lugares e classes é também alusão às “mitologias ou
hierarquias imaginadas” sobre as quais deveríamos discorrer na terceira questão proposta, algo que
já antecipamos de várias maneiras. Como vemos, tratar cada ponto isoladamente pode não ser o
melhor caminho. O quarto ponto, o “papel central da música popular” também insinua-se a todo
momento como vemos. Sigamos nesse rumo em que os temas interpenetram-se e esperemos que o
destinatário deste escrito tenha essa mesma compreensão… rs.
Tendo em vista essa mixagem de temas, retomo aqui a trilha sonora do filme e o que você já
destacou. Seu papel, segundo me parece, não se restringe um componente climático que ilustra,
traduz e fortalece sentimentos. Isso já seria muito, sem dúvida, mas tenho a impressão que vai além.
O papel da música (papel?) seria também de um elemento organizador e um quase personagem que
atua desde as cenas iniciais, como um tipo de consciência por trás da “mensagem na garrafa” ou das
mensagens nas garrafas. Um encosto ou entidade que fala através de Clara simbioticamente. Estarei
viajando? Proponho um título para tratar o tema: “Música x cupins”. O que acha?

MARIA​: Ah, não está viajando não! Entendo o que você diz sobre estar tudo relacionado, o filme
traz metáforas de diversas formas para aproximar momentos distintos do enredo, de maneira a
entrelaçá-los.
A música relacionada aos cupins me remete a ideia de que os dois sempre estiveram ali presentes a
todo momento. A primeira na grande parte dos momentos dentro do filme e dentro da cena
simultaneamente, e os cupins, dentro do prédio e dentro de Clara, simbolicamente, como o câncer já
superado, deixando a memória e a cicatriz em seu peito.
A trilha sonora é muito bem abordada no filme, sempre ligando uma relação social à emoção tão
empírica de se ouvir música. Dessa forma o entendimento passa pela afetividade do espectador, até
mesmo como um recurso empático de questionar e abordar assuntos filosóficos, antropológicos e
sociais ao longo do filme.
Uma cena que mostra um exemplo lindo disso é quando são revistas as memórias da família, todos
juntos na sala e a recente namorada de Tomás, Júlia, estabelece uma proximidade não só com a tia
Clara, mas também com seus valores nostálgicos. Ela escolhe a música Pai e Mãe, do Gil, e nesse
momento é como se criasse uma memória de algo que ainda nem aconteceu, um olhar aconchegante
de quem dá um gostinho das memórias que virão com aquele vínculo familiar. Para somar a esse
pensamento, também vejo que a letra traz essa memória abstrata e atemporal pelo tema ser o filho
mandando lembranças aos pais, pedindo compreensão de seus jeitos, mas que o afeto é o mesmo e
sempre será.

RONEI​: Um dos momentos mais singelos do filme, em que a música ao fundo e o silêncio
cúmplice das duas mulheres dispensam as palavras…

MARIA​: Estou achando muito bom o andamento desse diálogo. Gosto muito dessa organicidade
dos assuntos requisitados, conteúdos, enredo do filme e nossas visões disso tudo. Mas ainda quero
abordar melhor a questão da (in)justiça no Brasil que comentei numa fala anterior.
Algumas tensões sociais retratadas em ​Aquarius ​podem ser bem entendidas a partir do texto de
Yuval Harari, “Não existe justiça na história”, em que ele afirma que depois da Revolução Agrícola
7
o homem criou uma série de hierarquias imaginadas que nunca foram nem neutras e nem justas.
Apesar disso, elas determinaram uma dinâmica estrutural na sociedade ao permitir que estranhos
saibam como tratar uns aos outros sem desperdiçar tempo e nem energia para definir uma relação de
subordinação específica. Nessas dinâmicas tudo já é entendido, os participantes não precisar refletir
sobre o assunto, bastam repetir padrões e signos aprendidos ao longo da vida apenas pela
observação diária das dinâmicas à sua volta.

7
​¹A primeira revolução agrícola ocorreu 10 mil anos a.C., no período neolítico. Nessa época da história, os homens
migraram do sistema de caça e coleta para a agricultura. ​https://www.todamateria.com.br/revolucao-agricola/
Um bom exemplo disso é o Brasil colonial, no qual brancos sempre eram vistos como senhores de
engenho ou pessoas poderosas e bem sucedidas, livres, com seus escravos negros ao seu entorno
servindo-os. Com este cenário sendo o único “estilo de vida” da época, o pensamento
não-crítico-e-reflexivo tende a neutralizar toda essa imposição de poder criada, tornando como algo
“natural” e não só “comum”. Essa não-reflexão sobre o que causou a relação de poder só reforça a
hierarquia inventada, tanto pelo grupo dominante quanto pelo grupo dominado. Bom, este foi um
exemplo, mas não são necessariamente as mesmas hierarquias em todas as sociedades. Em geral são
geradas por um fator histórico ocasional em que um grupo tem de se subordinar à outro, e daí
continua toda uma história de injustiças… Como não existe, na esmagadora maioria das vezes, um
fator biológico para justificar a inferioridade estabelecida e o grupo dominante tem interesse em ser
visto como bom, justo, piedoso e objetivo, eles criam argumentos religiosos e científicos para
explicar suas dominações.
Com essas justificativas impostas cheias de palavras bonitas, o grupo dominante tende a parecer um
tipo de “mocinho” numa narrativa histórica, como se a vida fosse um grande filme de ​cowboy e que
existisse um bem e um mal, como um Deus e um Diabo. Mas sabemos que existem milhões de
perspectivas e que a vida não tão simples assim… Sobre isso, tenho um exemplo percebido no
personagem Diego quando vai com seu tio se apresentar à Clara. Ele não só se apresenta como
também apresenta seu projeto, não mais com um nome rebuscado em inglês, agora já com um novo
título, o mesmo nome do prédio tão querido por Clara, o Aquarius. Bom, existe um jogo de sedução
aí, e só por conta deste jogo que ele modificou o título, como se com isso ele fosse conseguir
conquistar Clara.
Existe um típico caso hierárquico aí, assim como os exemplos de tensões sociais dados por Harari,
no filme, não somente de classes, mas também de tempos (novo x velho) que se identificam tanto
pelos diferentes projetos de prédio quanto pelos personagens em questão. Nisso, vemos o grupo
dominador (os relacionados à construtora imobiliária) não conseguindo impor suas vontades “por
bem” e partindo pra guerra, se utilizam da lei e de todo e qualquer tipo de argumento e pretexto para
infernizar a vida da moradora resistente. Tiram sua segurança, seu conforto e até pagam figurantes
para desrespeitar tudo o que pudesse das áreas em comum do prédio, vide a noite em que é feita
uma festa/orgia no apartamento bem acima do dela e que cagam em toda a escada.
Entendo as classes sociais sendo expostas no filme com suas determinadas hierarquias pelos
personagens Diego, Clara e Ladjane. Eles personificam, respectivamente, a classe alta, classe média
e classe baixa da sociedade brasileira do século XXI. Há um momento em que os três estão
discutindo diplomaticamente no estacionamento do prédio e Clara expõe essa posição que Diego
assume, de passivo-agressivo, e ele nega “não Clara, eu sou do tipo focado… determinado”,
diferentes nomes para essa imposição dada pela insistência e intimidação que o empresário exerce.
Considero muito simbólica a passagem posterior, em que mostra os preconceitos e dinâmicas da
visão da classe média sobre a classe alta, da classe média pela classe alta e da classe baixa, esta
última, que fica por fora de toda a discussão, só ouvindo a luta de classes acontecer, depois, emitir
sua opinião sem muito valor real, somente um imenso valor simbólico ao chamar o jovem Diego de
“senhor”. Ladjane fecha a cena: “O senhor vai me desculpar, mas o senhor não pode tratar ela desse
jeito não, viu?”.
Aqui exponho o que quis dizer no último parágrafo, Clara, revoltada com tanto desrespeito se
altera: “[...] é impressionante do que se diz, né? que falta educação. E sempre se refere à gente
pobre. Mas falta de educação não tá em gente pobre, tá em gente rica e abastada como você”, ela
segue falando da formação de ​business​, e que falta formação de caráter humano desse grupo
dominador. Bom, logo em seguida Diego fala com desdém à classe média, ali representada pela
figura de Clara, que muitas vezes se apropria de uma bandeira não tão legítima assim para se opor à
classe dominante e privilegiada. Pus ali acima a frase da protagonista, ali ela levanta a bandeira dos
pobres, que seriam mais educados do que os ricos, mas a verdade é que ela não pertence a nenhuma
dessas duas classes em questão, apenas se apropria de um discurso existente. Vejo a ironia na frase
de Diego sobre essa classe média: “olhando daqui, dá pra ver que você com certeza veio de uma
família que batalhou muito pra chegar onde chegou, né Clara? Uma família de pele mais morena,
né? que deu muito suor pra ter o que tem.” A mim, me vem uma ideia muito mais complexa do que
um simples preconceito com a “pele mais morena”, ele ironiza exatamente porque Clara não é
negra, e assim como ele, também possui muitos privilégios, não precisou dar tanto suor para ter a
vida confortável que tem. A super-mulher-empoderada do filme tem até imóveis, no plural da
palavra. Enfim, quando expus isso em sala de aula não fui muito feliz na minha explicação, acho
que não dei conta da interpretação que tenho dessa cena. Espero ter deixado mais claro o que vejo
aqui, o que você acha, Ronei?

RONEI​: Hoje o passivo-agressivo das elites abriu mão do primeiro termo, revelou-se em sua
plenitude e elegeu o presidente ...hehe. Suas reflexões dão conta plenamente dos sentidos
envolvidos naquela passagem. Sem contar o estilo agradável. De fato existem linhas tênues e uma
margem de interpretação para as palavras de Diego, afinal ele e Clara têm em comum o fato de
possuírem pessoas subalternas a eles. Mas o discurso em sua totalidade marca mais uma diferença e
uma demarcação hierárquica do que uma cumplicidade de origem entre ele e Clara. Há, pelo menos,
uma diferença de grau, o que não exclui as suas observações e a ironia identificada. E essa ironia
tem um papel nesse ínterim, revelando algo que perturba a própria Clara, algo que se manifesta
também em seu desconforto, seu incômodo diante do esquecimento do nome da antiga empregada,
Juvenita, já citada por você na cena anterior, em que Clara e seus familiares rememoram através de
um antigo álbum de família, o seu próprio passado. Aqui as hierarquias e tensões manifestam-se na
memória afetiva e seletiva, algo não deliberado, mas naturalizado e com o que Clara, afinal, não se
conforma, como se tivesse uma “farpa na consciência”8. Quando se refere à atual empregada de
Clara, Ladjane, Diego traça um linha ascendente, mesclada com a cor da pele de cada personagem
e grupos sociais aos quais pertencem, referência direta ao que descreve Darcy Ribeiro em seu
“Brasil, Brasis”:

(...) a mó da estratificação social, especialmente da escravidão. Ela é que


apodrece a dignidade humana, coisificando pessoas socialmente
categorizadas como superiores e inferiores, patrões e escravos ou
empregados.”

Tal perspectiva é confirmada por uma outra sequência do filme, no restaurante, na qual Clara
dialoga com o dono de um importante Jornal, Ronaldo Cavalcanti. O diálogo escancara o caráter
hermético e exclusivista dos laços de parentela e amizade entre as elites e que se estendem aos
lugares de poder e status, às oportunidades e privilégios garantidos para seus membros e que nada
têm a ver com mérito. Isso pode ser percebido nos sobrenomes que se repetem através dos tempos e
se são signos de fortuna e poder, algo observável em Recife ou no Rio de Janeiro, já verificado em
várias pesquisas. A cena é encerrada com uma câmera que desliza através das fotos de personagens
ilustres das famílias abastadas que ornamentam o recinto e dão ao mesmo a distinção social
reveladora de hierarquias imaginadas.

MARIA​: Sim, é total a correspondência do texto “Não existe justiça na história” com o filme.
Queria explicitar o que Harari fala de acontecimento ocasional gerando o controle de um grupo
sobre outro, leis discriminatórias, pobreza e falta de instrução, que por sua vez, geram preconceitos
culturais, que acabam por só reforçar toda esta estrutura de poder. Vemos este ciclo se fechar no
filme com o exemplo de um acontecimento ocasional, a praia de Boa Viagem estar repleta de

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Retirei essa expressão do filme “Matrix”, o primeiro da série, uma fala do personagem Morfeu. Nome este
muito apropriado ao “esquecimento”, à memória vaga que temos dos sonhos e extensível às reminiscências
lacunares de Clara e sua família.
super-independent-buildings.​ A partir desta tendência vemos o controle de empresas imobiliárias
começando a instaurar seu poder sobre uma área específica da cidade. Continuando a sequência,
não exatamente com “leis” como entendemos mais formalmente, mas com ofertas de muito dinheiro
“por esse apartamento” (citando agora Ana Paula, pois nesta cena ela vê sua mãe como maluca ao
nem se interessar a saber das propostas feitas pela construtora), a protagonista é tida como uma
lunática. Clara assume o papel de resistência à “lei natural das coisas” e sempre se posiciona diante
dessas pejoratividades que assimilam a ela por seu descompasso à vida contemporânea, que são
nada mais nada menos que preconceitos culturais. O único ponto que não existe nesse ciclo
específico é o da pobreza e a falta de instrução que Harari aponta em seu texto. Mesmo assim
fechamos este ciclo vicioso, mais e mais prédios antigos ficam obsoletos e são construídos mais
projetos como os de Diego, não só o cenário vai se modificando, como também alguns conceitos de
valores. A “segurança”, o “conforto” e o “bem estar” são alguns deles que sofrem uma
ressignificação com esses ​loopings ​pelas mitologias inventadas.

RONEI​: Muito bem observado. “Não existe justiça na história”. “É foda!” É um “sufoco!” Ontem
assisti a um vídeo sobre Sêneca no qual é afirmado que o mesmo aconselha-nos a não elevar demais
o nível de nossas expectativas e assim, preparados para as adversidades, adquirirmos uma certa
“tranquilidade de alma”, a velha e boa “ataraxia” presente em outros filósofos. Relembra um pouco
da discussão que apenas roçamos de leve em sala, acerca do pessimismo e seu papel diverso, o qual
pode levar ao desespero e imobilismo ou a uma ação mais racional diante de situações insólitas,
mas dentro dos limites de nossas expectativas9. Estou com o livro de Sêneca diante de mim, tenho
fome de lê-lo, mas nada de guloseimas antes do almoço...rs Voltemos ao nosso tema.

MARIA​: Vou procurar essa referência aí, tô precisando rsrs… Mas olha que eu nunca havia feito
um trabalho desses dialéticos assim, e fiquei feliz com o resultado! Adoro discorrer sobre os
conteúdos que vemos na faculdade... Nesses últimos períodos as questões se aprofundaram e é
interessantíssimo estar nesse espaço de troca, de debates, aí fica fácil falar tanto, nossa soma deram
incontáveis páginas!

RONEI​: Estou escrevendo com mais leveza agora...rs Você derrete um pouco a minha escrita…
Bom que seja assim. Por falar nisso, a análise de um filme tão nostálgico e ao mesmo tempo tão

9
SÊNECA, Lúcio Aneu. Da Tranquilidade da Alma. Antologia de textos. Os Pensadores, São Paulo, Nova
Cultural, 1988.
contemporâneo pode estender essa conversa indefinidamente. Nosso escrito será inevitavelmente
uma “obra aberta”, algo que se ramifica, que permite interferências, que se desdobra, volta sobre si
mesma e faz “cabriolas de volatim”10. Vou tentar aprumar o leme…
Retomando a trilha sonora e o título acima sugerido “Música x Cupins”, gostaria de estender um
pouco mais o sentido dessa oposição. Para além do câncer e dos cupins de fato. Em mais de um
momento a música assume o papel de refúgio, uma pequena utopia que resiste em Clara, nas
estantes do seu apartamento tomadas de vinis, no tipo de relação que a mesma tenta estabelecer em
seu círculo mais íntimo de amigos e familiares. Ao seu redor, domina a distopia representada pelos
recentes padrões de sociabilidade interpostos pelo redesenho dos espaços urbanos, mencionada
anteriormente. As ameaças diretas ou cifradas, as pequenas decepções e manifestações antagônicas
de sujeitos reificados e superficiais, frutos de um tempo e valores que ela renega, apertam o cerco.
Em uma das sequências, após uma noitada com as amigas de fé, regada a bebida, dança e flertes,
Clara conhece um homem que a rejeita ao saber de sua mastectomia. Em casa, ainda sob o efeito
dessa decepção, Clara põe a música “O quintal do vizinho”11. E Clara se veste da música e até dá
ares humanos ao candidato a cupim da noite a quem concedeu o privilégio de conhecê-la. Ao final,
estavam ali, Clara vestida de música e a música movimentando-se nos movimentos de Clara. Ouço
a música agora em altos decibéis e me pergunto se Clara não teria lido Sêneca? Talvez prescinda
dele, o que é mais provável.
Em outras passagens, algumas já citadas por você, outros candidatos a cupins com maior
centralidade no enredo se manifestam. Dividido entre o caráter forçoso da metáfora e o desagravo
que por justiça deve ser feito aos cupins, afinal imersos em sua faina irrefletida de cupins, lembro
aqui de outra sequência. No andar superior do Aquarius, exatamente sobre o bunker musical de
Clara, os astutos proprietários da Bonfim Engenharia providenciaram um cenário dantesco, também
já mencionado por você, uma mistura do vale dos ventos do segundo círculo infernal, onde sofrem
os impudicos e luxuriosos, e o lago de lama e dejetos em que estão imersos os glutões do terceiro
círculo. Antes de defecar nas escadarias do prédio, os promotores e participantes do filme pornô que

10
Assis, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Literatura e Arte. Século XX. Ediouro, 1969.
Expressão usada por Brás Cubas em menção aos movimentos tresloucados de uma ideia fixa em sua
mente.
11
Letra de Erasmo Carlos e Losi Jose Alexandro. Na voz de Roberto Carlos, do álbum ​Além do Horizonte,​
1975. ​Eu hoje acordei pensando/ Num sonho que eu tive a noite/ Sentei-me na cama para pensar/
No sonho que eu tive/ No sonho que eu tive/ No sonho que eu tive/ Fiquei tanto tempo pensando/
Em tudo que estive sonhando/ Que por um momento/ pensei ser verdade/ O sonho que eu tive/ O
sonho que eu tive/ Sonhei que entrei/ no quintal do vizinho/ E plantei uma flor/ No dia seguinte ele
estava sorrindo/ Dizendo que a primavera chegou/ E quando eu abri a janela/ Estava um dia tão
lindo/ No outro quintal/ O vizinho sorrindo/ Lembrei do meu sonho/ O sonho que eu tive/ O Sonho
que eu tive
ali era gravado, adentraram a madrugada com sua música alta e corrosiva para o sono de Clara. A
música em si, divertidamente sugestiva, é “Meu Som É Pau” dos ​Aviões do Forró12. Sem prejuízo
da música em si, pau na cabeça de Clara, diante das circunstâncias. Mais uma vez, na companhia da
taça de vinho, ela contragolpeia e se abriga na “sua” música. Um som erudito no primeiro
momento, mas logo “vestindo-se” de algo mais agressivo, tonitroante, “Fat Bottomed Girls”
(Queen, 1978), abafando por um momento a balbúrdia (sem trocadilho...rs) do andar superior. Os
eventos posteriores indicam que eventualmente, por motivos não muito claros, Clara é capaz de
fazer concessões a um certo hedonismo, envolvendo prazer e sexo pago, invertendo alguns valores
que poderiam parecer cristalizados à primeira vista, o que torna a personagem não menos complexa,
embaralhando nossas dicotomias e desarrumando nossa idealização da mesma.
O festim que atrapalhou o sono e aborreceu Clara, além de vandalizar o Aquárius, não seria o
último artifício de Diego e seus aliados, como viríamos saber. Outros cupins ainda entrariam em
cena a serviço do cupinzal maior representado pela Bonfim Engenharia e semelhantes, um tipo de
praga que “ergue e destrói coisas belas” na melhor e mais condescendente das hipóteses. Aqui entra
outro elemento definidor de subjetividades contrastantes. Sem enveredar por idealismos, o contraste
entre a atitude dos “cupins humanos” da construtora e a atitude dos dois serventes, Josimar e seu
amigo, que revelaram a Clara o que se escondia nas dependência do Aquarius, reforça não somente
as palavras dessa personagem dirigidas a Diego, mas também a ideia de um sentido ético que seria
mais facilmente encontrado entre os estratos menos afortunados do povo brasileiro. Claro que posso
estar fazendo uma generalização apressada, entretanto, deixo aqui uma vez mais as palavras de
Darcy Ribeiro (op. cit.):

“(...) aqui, o inferior, o ruim, não é o povo ignorante, mas a elite, rica,
educada, refinada, que sempre organizou a produção e a vida social em
próprio benefício, indiferente ao destino do povo.”

Então? Tenho ainda outras reflexões e até um relato sobre essa desumanização do espaço nos
subúrbios, nas franjas entre o urbano e o rural, muito condensadas por suas particularidades, no
lugar onde passei a maior parte de minha infância. Mas o tempo não nos é muito favorável e

12
Olha que eu tô curtindo a vibe/ Com o meu som ligado/ Chegou a patricinha descendo até embaixo/ Ela
ficou pirada com meu paredão/ Agora toda hora é descendo até o chão/ Se eu desligar o som ela faz cara
de choro,/ Se eu ligar o som ela vem dançar de novo,/ Acho que a patricinha já ficou no grau/ Só quer ouvir
meu som../ Pau, pau, pau, meu som é pau/ Pau, pau, pau, meu som é pau/ Pau, pau, pau, meu som é pau/
Pau, pau, pau, meu som é pau
Meu som é pau...
anunciar uma intenção pode fazer parte do caráter dessa obra-diálogo aberta. Finalizamos com
reticências?

MARIA: Sim...

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