Você está na página 1de 18

ramos escondê-las.

A possibilidade de mantermos
nossa privacidade é altamente valorizada por nós
e relacionada ao nosso desejo de sermos livres para
PRECONDIÇÕES SOCIOCULTURAIS decidir nosso destino. A experiência da solidão,
PARA O APARECIMENTO ansiada ou temida, é também altamente expressiva
DA PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA daquilo que acreditamos ser nossa individualidade.
NO SÉCULO XIX Ainda com maior frequência temos a sensa-
ção de que aquilo que estamos vivendo nunca foi
vivido antes por mais ninguém, de que a nossa
A experiência da subjetividade privatizada
vida é única, de que o que sentimos e pensamos
é totalmente original e quase incomunicável. Pois
Para que exista um interesse em conhecer
bem, historiadores e antropólogos com suas pes-
cientificamente o "psicológico" são necessárias
quisas mostram que essas formas de pensarmos e
duas condições (além, naturalmente, da crença de
sentirmos nossa própria existência não são univer-
que a ciência com seus métodos e técnicas rigoro-
sais. Essa experiência de sermos sujeitos capazes
sas é um meio insubstituível para o conhecimento):
de decisões, sentimentos e emoções privados só se
a) uma experiência muito clara da subjetividade pri-
desenvolve, se aprofunda e se difunde amplamente
vatizada; e b) a experiência da crise dessa subjetivi-
dade. Isto, à primeira vista, pode parecer muito numa sociedade com determinadas características.
obscuro, mas trataremos de clarificar essas ideias. Nossa preocupação é identificar sumariamente es-
Ter uma experiência da subjetividade priva- sas características.
tizada bem nítida é para nós muito fácil e natural: Ao lermos com atenção as obras de historia-
todos sentem que parte de suas experiências é ín- dores, veremos que as grandes irrupções da expe-
tima, que mais ninguém tem acesso a ela. É pos- riência subjetiva privatizada ocorrem em situações
sível, por exemplo, ficar um longo tempo pensando de crise social, quando uma tradição cultural (va-
se vamos ou não fazer uma coisa, quase decidir lores, normas e costumes) é contestada e surgem
por uma e, no final, acabar fazendo a outra, sem novas formas de vida. Em situações como estas,
que ninguém fique sabendo de nada. Com frequên- os homens se vêem obrigados a tomar decisões
cia sentimos alegrias e tristezas intensas e procu- para as quais não conseguem apoio na sociedade.
Nessas épocas, as artes e a literatura revelam a e do que é errado e a procurar na sua própria cons-
existência de homens mais solitários e indecisos ciência uma resposta para essa questão.
do que em épocas nas quais dominam as velhas No campo das artes, além do surgimento e
tradições e não existem graves conflitos. Quando desenvolvimento do género "tragédia", observa-se,
há uma desagregação das velhas tradições e uma na literatura, o aparecimento da poesia lírica.
proliferação de novas alternativas, cada homem se Nela o poeta expressa seus sentimentos e desejos
vê obrigado a recorrer com maior constância ao como sentimentos e desejos particulares e muitas
seu "foro íntimo" - aos seus sentimentos (que nem vezes opostos ao que a sociedade dele espera, como
sempre condizem com o sentimento geral), aos amores socialmente não recomendados ou mes-
seus critérios do que é certo e do que é errado (e mo proibidos.
na sociedade em crise há vários critérios disponí- As artes plásticas também testemunham o
veis, mas incompatíveis). A perda de referências aprofundamento da experiência subjetíva privatiza-
coletivas, como a religião, a "raça", o "povo", a da, seja realçando os traços particulares de seus mo-
família, ou uma lei confiável obriga o homem a delos, na escultura ou na pintura representativas, seja
construir referências internas. Surge um espaço expressando de forma cada vez mais individualiza-
para a experiência da subjetividade privatizada: da a subjetividade do artista, de forma que, pela
quem sou eu, como sinto, o que desejo, o que con- análise das obras, podemos identificar com muita
sidero justo e adequado? Nessa situação, o homem segurança seu autor e mesmo especular com algu-
descobre que é capaz de tomar suas próprias de- ma base sobre quem e como ele era. Finalmente,
cisões e que é responsável por elas. A consequên- não podemos deixar de mencionar que o pensa-
cia desses contextos é o desenvolvimento da mento religioso acompanha esse processo de sub-
reflexão moral e do sentido da tragédia. jetivização e individualização e que nos momentos
Uma tragédia se dá quando um indivíduo se de crise de desagregação sociocultural surgem no-
encontra numa situação de conflito entre duas obri- vos sistemas religiosos, ou variantes de antigos, e
gações igualmente fortes, mas incompatíveis. É, heresias que enfatizam a responsabilidade indivi-
também, numa situação como esta que os homens dual e atribuem à consciência e às intenções mais
são levados a se questionar acerca de que é certo valor que aos próprios atos e obras.
É preciso ter claro que esse movimento na ral, a pôr em risco nossos valores. Como se verá
direção de um aprofundamento da experiência sub- a seguir, em alguns aspectos importantes essa ima-
jetiva privatizada não foi um processo linear pelo gem é completamente ilusória, e uma das tarefas
qual tenham passado todas as sociedades humanas. da psicologia será talvez a de revelar essa ilusão.
São muito importantes os estudos de antropólogos
que se dedicaram a descrever e a analisar sociedades
Constituição e desdobramentos da noção
não ocidentais em que a subjetivização e a indivi-
de subjetividade na Modernidade
dualização da existência permaneceram em níveis
muito menos elaborados. Mesmo nas sociedades
Como foi dito acima, por estranho que pareça,
ocidentais, provenientes das tradições judaica, grega
nosso modo atual de entendermos nossa experiência
e latina, o processo foi repleto de ziguezagues. No
como indivíduos autónomos não é natural nem ne-
conjunto, porém, pode-se dizer que ao longo dos cessário, mas sim parte de um movimento de amplas
séculos as experiências da subjetividade privatiza- transformações pelas quais o homem tem passado
da foram se tornando cada vez mais determinantes em sua história, sobretudo na Modernidade.
da consciência que os homens têm da sua própria De forma simplificada, podemos dizer que nossa
existência. Ou seja, nos primórdios da nossa his- noção de subjetividade privada data aproxi-
tória eram poucos os elementos de uma sociedade madamente dos últimos três séculos: da passagem
que podiam gozar de liberdade para se reconhece- do Renascimento para a Idade Moderna. O sujeito
rem como seres moralmente autónomos, capazes moderno teria se constituído nessa passagem e sua
de iniciativas, dotados de sentimentos e desejos crise viria a se consumar no final do século XIX.
próprios. Hoje, ao contrário, esta se tornou a ima- Em A invenção do psicológico, desenvolvemos a
gem generalizada que temos de nós mesmos. Ali- ideia de que no Renascimento teria surgido uma
ás, boa parte de nós se sente bastante incomodada experiência de perda de referências. A falência do
quando essa crença é colocada em dúvida; resis- mundo medieval e a abertura do ocidente ao
timos à ideia de que não tenhamos controle de nos- restante do mundo teriam lançado o homem
sas vidas. A crença na liberdade dos homens é um europeu numa condição de desamparo.
dos elementos básicos da democracia e da socie- A experiência medieval fazia com que o ho-
dade de consumo e não estamos dispostos, em ge- mem se sentisse parte de uma ordem superior que
o amparava e constrangia ao mesmo tempo. Por A grande valorização e confiança no Ho-
um lado, a perda desse sentimento de comunhão mem, geradas pela concepção de que ele é o centro
com uma ordem superior traz uma grande sensa- do mundo e livre para seguir seu caminho, fazem
ção de Uberdade e a possibilidade de uma abertura nascer o humanismo moderno.
sem limites para o mundo, mas, por outro, deixa o O século XVI vê surgirem diversos perso-
nagens, reais ou fictícios, donos de um "mundo
homem perdido e inseguro: como escolher o que é
interno" rico e profundo. Leonardo da Vinci, Dom
certo e errado sem um ponto seguro de apoio?
Quixote, Hamlet, entre muitos. Além disto, os per-
O Renascimento foi, por tudo isto, um perí- sonagens literários contribuíam também para a
odo muito rico em variedade de formas e experi- construção da interioridade dos leitores. Segundo
ências e de produção intensa de conhecimento. O Philippe Aries, em História da vida privada (Com-
contato com a diversidade das coisas, dos homens panhia das Letras, vol. 3, 1991), o surgimento da
e das culturas impôs novos modos de ser. imprensa proporcionou uma das experiências mais
Não podendo esperar pelo conselho de uma decisivas da modernidade: a difusão da leitura si-
figura de autoridade, o homem viu-se obrigado a lenciosa. Ela possibilita que se escape ao controle
escolher seus caminhos e arcar com as consequên- da comunidade e cria um diálogo interno que de-
cias de suas opções. Nesse contexto houve uma senvolve a construção de um ponto de vista próprio.
O trabalho intelectual passa a ser progressivamente
valorização cada vez maior do "Homem", que pas-
um ato individual e mesmo a religiosidade pôde se
sou a ser pensado como centro do mundo.
tornar uma questão íntima, já que cada vez mais
A crença em Deus não desapareceu então, mas
pessoas podiam ter acesso diretamente aos textos
parece que Ele se distanciou e colocou-se "sobre" o sagrados, sem a intermediação de sacerdotes. Cer-
mundo: Ele foi o criador da ordem do mundo e cabe tamente essa experiência foi fundamental à Refor-
ao Homem admirá-la, conhecendo e controlando a ma protestante, movimento essencial na formação
natureza. Assim, o mundo passou a ser considerado do sujeito moderno.
cada vez menos como sagrado e mais como objeto O pensador francês Michel de Montaigne dá
de uso - movido por forças mecânicas - a serviço um testemunho clássico da valorização da interio-
dos homens. Essa transformação é parte essencial da ridade. Na introdução de seus Ensaios, diz ao lei-
origem da ciência moderna. tor que tomará a si mesmo como assunto, ainda
que sua vida seja comum, totalmente desprovida do desde então a vaidade do homem, que passa a
de feitos heróicos ou notáveis. O "eu" de Mon- assumir os atributos até então próprios a Deus (cf.
taigne será o assunto do livro e, enquanto o livro Santi, 1997).
vai sendo escrito (ao longo de quase vinte anos e A descrença cética somada ao grande indivi-
mais de mil páginas), esse "eu" vai se transfor- dualismo nascente acabaram por produzir uma re-
mando. O livro foi muito criticado com o argumento ação que, na verdade, assumiu duas feições bem
de que uma vida comum não mereceria ser objeto distintas: a reação racionalista e a reação empirista.
de tal obra, mas a questão que nos interessa é jus- Em ambas, contudo, tratava-se de estabelecer no-
tamente o surgimento da valorização de cada indi- vas e mais seguras bases para as crenças e para
víduo, da construção de cada individualidade única. as ações humanas, e procuravam-se essas bases no
A obra de Montaigne também foi conside- âmbito das experiências subjetivas.
rada fruto de uma extrema vaidade. Mas há aí um Já no século XVI surgiram tentativas de con-
paradoxo: ao mesmo tempo em que indubitavelmen- ter e circunscrever as ações dos homens. É como
te o autor valoriza seu "eu", ele denuncia a grande se houvesse o desejo de poder voltar ao mundo me-
ilusão do homem ao se pretender um ser privile- dieval, em que uma única ordem reinava. Mas, como
giado na natureza capaz de conhecê-la e dominá-la não é possível voltar no tempo, a ordem a ser bus-
Toda a falta de referências absolutas a que cada a partir de então tinha que levar em conside-
nos referimos mais acima fez renascer também ração uma série de novas crenças do homem,
uma escola da filosofia grega chamada ceticismo. sobretudo a recém-adquirida crença na liberdade. A
Os célicos achavam impossível que pudéssemos Igreja Católica e as novas Igrejas Protestantes (Lu-
obter algum conhecimento seguro sobre o mundo: teranos e Calvinistas) fizeram um esforço enorme
a qualquer afirmação pode ser oposta outra de em articular a crença num Deus onipotente e o
igual valor; qualquer impressão que tenhamos livre-arbítrio humano.
pode ser um engano de nossos órgãos dos sentidos. Uma solução - bastante precoce, mas cujo
Assim, podemos considerar que a consti- espírito foi muito duradouro - foi dada pelo hu-
tuição do sujeito moderno é contemporânea ao iní- manista Pico Delia Mirandola que, ainda no final
cio da crítica a este mesmo sujeito: autores como do século XV, reescrevendo a Génese, chegou à
Montaigne, Erasmo e Shakespeare vão denuncian- concepção de que a liberdade teria sido o grande
e exclusivo dom que Deus teria dado ao homem, Descartes pretende estabelecer as condições
já que este teria sido o último dos seres a ser criado de possibilidade para que obtenhamos um conhe-
e nenhuma matéria original restara para forjá-lo. cimento seguro da verdade. Ele se alinha entre aque-
Tendo o dom da liberdade, o homem pode ser re- les que quiseram superar a grande dispersão do
compensado se fizer um bom uso dela e punido Renascimento e, o que talvez é o mais importante,
caso se deixe perder do bom caminho. Essa arti- superar o ceticismo.
culação é importante na medida em que, preser- Ao lermos as primeiras páginas do Discurso
vando a crença na liberdade humana, coloca-se a do método, vemos o depoimento de um homem
imposição de dirigir essa liberdade com muita dis- nascido no limite do Renascimento em meio a uma
ciplina a um caminho reto. O sujeito deve "sujei- profusão tamanha de ideias e opiniões, que se via
tar-se", uma vez mais, a uma ordem superior, levado a desacreditar todas elas. Não querendo en-
desvalorizando seus desejos e projetos particula- tregar-se ao ceticismo, impôs-se o projeto de bus-
res. Daí surge um regime onde o corpo, sobretudo, car alguma verdade sobre a qual não pairasse a
deve ser controlado e desvalorizado, pois ele sem-
menor sombra de dúvida e pudesse, assim, tornar-
pre é fonte de desejo e dispersão (cf. "O silêncio
se o fundamento para toda a construção de conhe-
e as falas do corpo", em Figueiredo, 1995).
cimento válido. Para isto, curiosamente, utilizou o
Essa reação à dispersão surgiu, primeira-
instrumento cético: a dúvida. Sua intenção era sub-
mente, como era de se esperar, no âmbito religio-
so, embora tenha se espalhado para muito além meter toda e qualquer ideia, impressão ou crença
dele. Entre a Reforma e a Contra-Reforma vão a uma dúvida metódica: as ideias erradas seriam
nascendo tanto a individualidade quanto os modos descartadas; as incertas seriam igualmente descar-
de controle do indivíduo que conhecemos até hoje. tadas, ao menos provisoriamente; somente ideias
A maior parte dos estudos sobre a moderni- absolutamente claras e distintas poderiam ser con-
dade costuma identificar como seu marco de início sideradas verdadeiras e servir de base para a filo-
o pensamento de Descartes, o fundador do racio- sofia e as ciências. Tudo aquilo que se mostrasse
nalismo moderno. Certamente, a constituição da incerto teria que ser analisado a partir do elemento
modernidade foi altamente complexa e longa, mas, verdadeiro revelado ao final do processo.
se é preciso estabelecer um marco, Descartes se O procedimento parece conduzir Descartes
presta bem a isto. ao ceticismo. Seus mestres, os livros, as leis e os
critérios morais de cada cidade, tudo parece incer- ca a verdade num além, em algo transcendente; a
to. Seus órgãos do sentido também se mostram verdade agora significa adquirir uma representação
passíveis de enganos e seus sentimentos ainda correta do mundo. Essa representação é interna,
mais, por serem tão mutáveis. Conforme a dúvida ou seja, a verdade reside no homem, dá-se para
se aprofunda, Descartes se vê cada vez mais acua- ele. O sujeito do conhecimento (o "eu") é tornado
do, até imaginar a existência de um "génio malig- agora um elemento transcendente, "fora do mun-
no", capaz de enganá-lo em toda e qualquer ideia do", pura representação sem desejo ou corpo, e
que fizesse do mundo. Nesse ponto extremo da por isto supostamente capaz de produzir um co-
dúvida, quando parece que ela é insuperável, Des- nhecimento objetivo do mundo.
cartes inverte a questão e acredita ter superado a O filósofo Francis Bacon, contemporâneo de
dúvida e encontrado um fundamento inquestioná- Descartes, pode ser apresentado como o fundador
vel para o conhecimento. Ele diz: parece que tudo do moderno empirismo. Sua preocupação, como a
o que tomo como objeto de meu julgamento se de Descartes, era a de estabelecer bases seguras
mostra incerto, mas, no momento mesmo em que para o conhecimento válido e, também como Des-
duvido, algo se mostra como uma ideia indubitá- cartes, ele as procurava no campo das experiências
vel; enquanto duvido, existe ao menos a ação de subjetivas. A diferença era que para Bacon a razão
duvidar, e essa ação requer um sujeito. Daí nasce deixada em total liberdade pode-se tornar tão es-
peculativa e delirante que nada do que produza
a famosa frase "penso, logo existo". Todo o mo-
seja digno de crédito. É necessário dar à razão uma
vimento de duvidar traz a evidência de que, ao me-
base nas experiências dos sentidos, na percepção,
nos enquanto um ser que pensa (e duvida), eu existo.
desde que essa percepção tenha sido purificada,
Esta é minha única certeza: eu ainda não sei se os
liberada de erros e ilusões a que está submetida
outros existem e mesmo se meu próprio corpo existe.
no cotidiano. Bacon escreveu uma série de obras
A evidência primeira é a de um "eu" e ele será a
importantes, entre as quais o Novum organum, em
partir de agora o fundamento de todo o conhecimento. que elabora suas propostas de como se livrar do erro
Descartes é tomado como inaugurador da e encontrar a verdade tendo como base a experiência
modernidade no sentido em que ele marca o fim subjetiva sensória! e racional. Bacon, como Descar-
de todo um conjunto de crenças que fundamenta- tes, é um dos grandes pioneiros na preocupação
vam o conhecimento. O homem moderno não bus- com o Método na produção de conhecimentos fi-
losóficos e científicos que marcou toda a Moder- Hume, um dos grandes filósofos da época,
nidade ocidental desde o século XVII até os dias chega a negar que o "eu" seja algo estável e subs-
de hoje. tancial que permaneça idêntico a si mesmo ao lon-
go da diversidade de suas experiências: ele seria
Á crise da Modernidade muito mais o efeito de suas experiências do que o
e da subjetividade moderna senhor de suas experiências; somos, para Hume,
em algumas de suas expressões filosóficas algo que se forma e se transforma nos embates da
experiência e já não podemos nos conceber como
A crença de que o homem pode atingir a ver- base e sustentação dos conhecimentos e de nós
dade absoluta e indubitável, desde que siga estri- mesmos. Nessa medida, o conhecimento entendido
tamente os preceitos do Método correto, seja ele como domínio dos objetos por um sujeito soberano
o racional de Descartes ou o empírico de Bacon, não pode mais se sustentar.
acabou por ser criticada no século seguinte no in- Outro filósofo iluminista do século XVIII,
terior do Iluminismo, o movimento filosófico que, Emanuel Kant, procura opor-se a essas formulações
no século XVIII, representava o que havia de mais tão radicais, mas aceita a problematização da cren-
avançado e progressista no terreno das ideias. No
ça em conhecimentos absolutos. Em A crítica da
Iluminismo as grandes conquistas do racionalismo
razão pura, afirma que o homem só tem acesso
cartesiano eram articuladas com a valorização das
às coisas tais como se apresentam para ele: a isto
experiências individuais tal como promovidas pe-
ele chama "fenómeno". A única forma de produ-
los filósofos empiristas, que formavam a outra
zirmos algum conhecimento válido é nos restrin-
grande corrente da Modernidade. Por diversos ca-
minhos, no século XVIII, a quase onipotência do girmos ao campo dos fenómenos, pois as "coisas
"eu", da razão universal e do método seguro afir- em si" (independentes do sujeito) são incognoscí-
mada no século XVII foi criticada. Por um lado, veis. É verdade que, ao mesmo tempo, Kant leva
isto representou uma consciência mais profunda, ainda mais longe as pretensões do "sujeito": se,
sólida e complexa de toda a problemática do co- de um lado ele não crê na capacidade de o homem
nhecimento, mas, de toda a forma, começou a se conhecer a verdade absoluta das "coisas em si",
colocar em xeque a soberania do "eu", seja o "eu" de outro, toda a questão do conhecimento é radi-
da razão, seja o "eu" dos sentidos purificados. calmente colocada em termos subjetivos, pois tudo
que é "conhecível" repousa na subjetividade huma- (o ser pensante do Cogito) é contraposta a ideia
na Essa subjetividade, contudo, não é a subje- de que o homem é um ser passional e sensível.
tividade particular de cada indivíduo, é a Quando pensamos hoje em Romantismo,
subjetividade transcedental e universal do Homem. vem-nos à mente algo suave, delicado e ligado ao
Embora essa subjetividade universal seja mantida amor, o que também não deixa de ser verdade.
e valorizada como "condição de possibilidade" de Mas a origem do movimento na Alemanha teve
todas as experiências, as outras, as subjetividades um sentido bem distinto: uma primeira manifesta-
empíricas e particulares de cada um de nós, devem ção romântica teve o nome de "Tempestade e ím-
aprender a viver em um mundo de incertezas e peto", o que já sugere melhor a característica dessa
hipóteses nunca plenamente confirmadas, procu- sensibilidade. Trata-se de evidenciar a potência dos
rando, sempre com muita dificuldade, exercer o impulsos e forças da natureza, em muito superior à
controle racional sobre seus impulsos, seus desejos, da consciência ou do homem como um todo. A va-
suas propensões. Para Kant, a soberania do sujeito, lorização da natureza opõe-se, como algo mais ori-
sua autonomia, é uma tarefa supremamente desejá- ginal e verdadeiro, à civilização com suas regras,
vel - é a meta de todo esforço ético - e ainda pos- seus métodos e sua etiqueta.
sível, mas é sempre muito problemática porque as O Romantismo toma os mais diversos as-
necessidades, os desejos e os impulsos nunca po- pectos, o que torna muito difícil sua definição pre-
derão ser definitivamente sossegados pela razão. cisa, mas parece que ele regularmente representa
Além da autocrítica iluminista, o século XVIU uma crítica à modernidade e uma nostalgia de um
trouxe outras formas de crítica às pretensões estado anterior perdido.
totalizantes do "eu", da razão universal e do Método. Aquilo que na "fundação" da modernidade
O Romantismo nasceu no final do século XVIII deve ser excluído do "eu" ou mantido sob o férreo
exatamente como uma crítica ao Iluminismo e, controle do Método parece agora invadi-lo. A ra-
mais particularmente, à vertente racionalista do zão é destronada, o Método feito em pedaços e o
Iluminismo (com a vertente empirista, os român- "eu" racional e metódico é deslocado do centro da
ticos puderam até estabelecer uma convivência subjetividade e tomado agora como uma superfície
muito mais amistosa). Ou seja, à ideia cartesiana mais ou menos ilusória que encobre algo profundo
de que o homem é essencialmente um ser racional e obscuro.
Uma imagem clássica disto é a pintura do inglês Ao longo do século XIX, afirmou-se a partir
Turner, que frequentemente pinta tempestades no de diversas fontes a deposição do "eu" de seu lugar
mar, nas quais mal se definem os limites entre céu, privilegiado. Por exemplo: a ideia de que o com-
mar, chuva e neblina; em alguns casos aparece um portamento do homem é determinado por leis que
barco totalmente à mercê das forças naturais. O não pode controlar e que frequentemente nem mes-
barco representa o empreendimento humano de mo conhece está presente no pensamento de Marx,
controle racional e metódico do mundo, e a ima- entre outros; no mesmo sentido vai a afirmação da
gem não deixa dúvidas quanto à sua impotência. teoria da evolução de Darwin de que o homem é um
Assim, o Romantismo é um momento essencial na ser natural como os demais, não possuindo uma ori-
crise do sujeito moderno pela destituição do "eu" gem distinta (à imagem e semelhança de Deus).
de seu lugar privilegiado de senhor, de soberano. Mas talvez o ponto mais agudo dessa crise
Por outro lado, o Romantismo traz a experi- tenha sido a filosofia de Nietzsche. Nela, as ideias
ência de que o homem possui níveis de profundi- de "eu" ou "sujeito" são interpretadas como fic-
dade que ele mesmo, no entanto, desconhece. ções (no que dá continuidade à crítica de Hume à
Paradoxalmente, portanto, há uma grande valori- suposta substancialidade e estabilidade do sujeito).
zação da individualidade e da intimidade. A ideia Com seu procedimento, chamado "genealogia",
de "génio" expressa bem essa valorização: ele se- Nietzsche procura desconstruir os fundamentos de
ria um indivíduo naturalmente especial, dono de toda a filosofia ocidental desde Platão. Basicamen-
um dom único que tem a obrigação de realizar; te, trata-se de mostrar como cada elemento tomado
por outro lado, por seu mergulho em si, ele tem como fundamento absoluto ou causa primeira de
uma grande indisposição e dificuldade em sua vida tudo o que existe foi também, por sua vez, criado
prática. Trata-se de uma sensibilidade intimista e num determinado momento com uma determinada
ao mesmo tempo crente na grandiosidade de sua finalidade. Se algo foi criado ao longo do tempo,
missão. Quando pensamos no alto grau de indivi- não é eterno ou causa primeira. Assim, a "ideia"
dualismo e solidão presentes no século XX, é ine- platónica, Deus, o sujeito moderno de Descartes
vitável pensarmos na presença em nós do sujeito ou de Bacon são revelados como criações huma-
romântico. nas. Nossas crenças e valores estão comprometidos
com a perspectiva em que nos colocamos a cada
instante. A crença em algo fixo e estável seria uma dade por um outro ângulo que nos será bem útil
necessidade humana, na tentativa de crer que tem para entendermos o nascimento das psicologias.
controle sobre o devir. Nietzsche dá um passo bem
largo e radical: não só o homem é deslocado da
posição de centro do mundo, como a própria ideia Sistema mercantil e individualização
de que o mundo tenha um centro ou uma unidade
é destruída. Assim, quando Nietzsche denuncia o No início da seção anterior, estivemos relacio-
nando a importância qualitativa e quantitativa das ex-
caráter ilusório e não necessário de todo o fazer
periências da subjetividade privatizada aos períodos
humano, isto não representa a defesa do abandono
de desagregação e conflitos socioculturais (sem nos
da ilusão em favor de outro modo de ser mais le-
preocuparmos com as origens desses períodos, tarefa
gítimo ou bem fundamentado (como na crítica ca-
que compete aos historiadores). Convém assinalar-
tólica ou romântica à modernidade). A ilusão não
mos, neste momento, a existência de um sistema so-
pode ser substituída por nada melhor por que sim-
cial e económico que, talvez pela carga de conflitos
plesmente não existe nada melhor. A questão para
e transformações que carrega consigo, aprofunda e
Nietzsche é saber o quanto cada ilusão em cada
universaliza aquelas experiências: referimo-nos ao
contexto se mostra útil à expansão da vida.
sistema mercantil plenamente desenvolvido.
Não só o privilégio do "eu" na modernidade,
Em quase todas as sociedades há alguma ati-
mas toda a metafísica ocidental parece ser colocada
vidade de troca comercial, principalmente em ter-
em xeque aí. Mas, como veremos, o projeto cien-
mos de trocas entre comunidades. O produto
tífico dos séculos XIX e XX e o humanismo res- excedente de uma família, de um clã ou de uma
surgido no século XX mantêm esse projeto vivo. aldeia pode ser de tempos em tempos trocado pelo
A seguir, retomaremos o caminho da cons- produto excedente de outras famílias, clãs ou al-
tituição e dos desdobramentos da noção de "sub- deias "especializadas" em outro tipo de produção.
jetividade privada" por outro viés, o das condições Nesses casos, a produção é efetuada para atender
sócio-econômicas que deram sustentação ao pro- às necessidades de quem produz, quer dizer, cada
cesso de individualização no ocidente moderno. comunidade procura ser auto-suficiente. Até recen-
Será a partir desse outro referencial que poderemos temente, se fôssemos ao interior do Brasil, obser-
compreender as dimensões culturais da moderni- varíamos como inúmeras grandes fazendas conti-
nuavam produzindo muito daquilo que seus mora- numa sociedade mercantil plenamente desen-
dores consumiam, e esses produtos não eram pro- volvida como a nossa. Mas nem sempre foi assim,
duzidos para serem trocados. nem é preciso que sempre o seja. Enquanto for, o
Esse quadro muda quando se desenvolve uma objetivo continuará sendo, como dizia um comer-
produção para a troca, em que cada um passa a cial de televisão, "tirar vantagem".
produzir aquilo a que está mais capacitado. Já en- Porém ainda há mais a dizer. O mercado de
contramos aí um forte motivo para a experiência produtos não é tudo: há também o mercado de tra-
da subjetividade privatizada: cada um deve ser ca-
balho. Para este, vão os homens que não têm meios
paz de identificar a sua especialidade, aperfeiçoar-se
próprios para produzir e sobreviver, necessitando
nela, identificar-se com ela. Mas isso não basta.
alugar sua capacidade de trabalho para receber em
Os produtos produzidos para a troca devem ser le-
troca um salário com o qual devem comprar os
vados ao mercado. Neste, os produtores vão vender
produtos de que necessitam. Como esses homens
o que fazem e comprar aquilo que não produzem,
foram reduzidos à dependência dos proprietários
mas de que necessitam para viver. Todo mundo
dos meios de produção é uma história triste de ex-
que comprou ou vendeu conhece a situação de bar-
ganha: cada um querendo ser mais esperto, vender plorações e violências, roubos e guerras, mas que
mais caro e comprar mais barato. O mercado cria não cabe aprofundar neste momento. O importante
inevitavelmente a ideia de que o lucro de um agora é avaliarmos os efeitos da experiência do
pode ser o prejuízo do outro e que cada um deve indivíduo no mercado de trabalho, quando este se
defender seus próprios interesses. Quando o generaliza, sobre a subjetividade privatizada.
mercado toma conta de todas as relações huma- Em primeiro lugar, o que se disse sobre a cons-
nas, isto é, quando todas as relações entre os ciência de sua especialidade como produtor, de sua
homens se dão por meio de compra e venda de habilidade, destreza e rapidez aplica-se igualmente
produtos elaborados por produtores particulares, ao trabalhador assalariado, embora muitas vezes esse
universaliza-se a experiência de que os interesses trabalhador, pelo caráter da atividade que exerce, ve-
de cada produtor são para ele mais importantes do nha a ser submetido a uma atividade de tal modo
que os interesses da sociedade como um todo e padronizada que pouco lhe resta de seu. Mas isto já
assim deve ser. Ora, esta é exatamente a situação é uma outra história a que voltaremos adiante.
De forma a entender com mais profundidade Tudo isso precisa desaparecer para que surja
o significado da economia mercantil para a indi- o trabalhador livre, que pode e necessita ir ao mer-
vidualização, devemos considerar com mais atenção cado de trabalho para arranjar uma ocupação. Essa
as condições que antecedem a própria formação do liberdade, contudo, é muito ambígua. Ela é prin-
regime assalariado. Para que existam trabalhadores cipalmente uma liberdade negativa, isto é, o sujeito
necessitados de garantir a própria sobrevivência, ao ganhá-la perde uma porção de apoios e meios
alugando sua força de trabalho, é preciso que eles de sustentação. Perde a solidariedade do seu gru-
tenham perdido suas condições mais antigas de po: a família ou a aldeia deixam de ser auto-sufi-
vida e produção. Isto significa a ruptura dos vín- cientes, e cada indivíduo vai isoladamente procurar
culos que nas sociedades tradicionais pré-capita- o seu sustento. Perde a proteção de um senhor: o
listas uniam os produtores uns aos outros e todos patrão que emprega o assalariado não o manterá
aos meios de produção. A produção era sempre se ele ficar doente, por exemplo (isto hoje fica por
diretamente social: embora pudesse haver algumas conta do sistema da previdência, que é a forma de
especializações entre os membros de uma família fazer com que um assalariado pague a conta da
ou entre os membros de uma pequena comunidade, doença, da invalidez ou da aposentadoria do ou-
a existência de cada um dependia fundamental- tro). A sociedade fica, dessa forma, atomizada,
mente de sua vinculação com o grupo. Muitos dos quer dizer, em vez de comunidades produtivas, te-
meios de produção podiam ser de uso comunitário, mos indivíduos livres produzindo ou vendendo sua
força de trabalho a proprietários privados. Mas
como florestas e pastagens. E aqueles meios de
esse indivíduo livre é um desamparado. Ele pode
produção particulares eram tão rústicos que o aces-
escolher (até certo ponto), mas, mesmo que a es-
so a eles não encontrava problemas. Além dos vín-
colha seja real, ele passa a conviver com a inde-
culos com os meios de produção e da
cisão: seu destino, pelo menos teoricamente, passa
interdependência comunitária, havia relações entre
a depender dele, de sua capacidade, de sua deter-
senhores e servos ou escravos que se, por um lado minação, de sua força de vontade, de sua inteli-
continham um elemento de exploração de uns pe- gência e, também, de sua esperteza, de sua arte de
los outros, por outro lado, estabeleciam obrigações vencer, de passar por cima dos concorrentes, de
de proteção, defesa e apoio dos fortes em relação chegar primeiro - e de sua sorte. Ele tem, é ver-
aos fracos. dade, a liberdade de lutar por condições melho-
rés, de mudar de posição na sociedade (nasce po-
fraternos. Como veremos adiante, essa última su-
bre, mas pode morrer rico), o que numa sociedade
posição, infelizmente, ainda não se realizou...
mais tradicional é quase impossível. Todavia, se
pode subir, pode também descer, pode chegar à No Romantismo do início do século XIX -
miséria sem que ninguém se preocupe com ele - movimento que se expressou intensamente no
e isto numa sociedade tradicional também é muito campo das artes e da filosofia, como vimos ante-
improvável. riormente -, reconhece-se a diferença entre os in-
divíduos, e a liberdade é exatamente a liberdade
de ser diferente. Apesar de todos serem diferentes
e únicos, lá no fundo é possível buscar uma co-
Ideologia liberal iluminista, romantismo e municação entre esses seres diferentes: nas artes,
regime disciplinar na religião e no patriotismo, por exemplo, as di-
ferenças se anulam.
Nos séculos XVin e XIX desenvolveram-se na Vemos, assim, que tanto na Ideologia Liberal
cultura ocidental duas formas de pensamento que como no Romantismo se expressam os problemas
refletem muito as experiências da subjetivida-de da experiência subjetiva privatizada: segundo a
privatizada numa sociedade mercantil em pleno Ideologia Liberal, todos são iguais, mas têm inte-
processo de desenvolvimento: a ideologia Liberal resses próprios (individuais); segundo o Romantis-
Iluminista e o Romantismo. De acordo com a ide- mo, cada um é diferente, mas sente saudade do
ologia Liberal, cujas principais ideias manifesta- tempo em que todos viviam comunitariamente e
ram-se na Revolução Francesa, os homens são iguais espera pelo retorno desse tempo. Enquanto isso
em capacidade e devem ser iguais em direitos. Sendo não vem, os românticos acreditam que os grandes
assim, todos devem ser livres. Contudo, para que e intensos sentimentos podem reunir os homens,
essa liberdade não redunde em caos, todos devem apesar de suas diferenças. Já os liberais apostam
ser solidários uns com os outros, sem renunciar a na utópica fraternidade.
essa liberdade. Se todos são iguais, é natural que Parece que de fato a liberdade individual aca-
devam ser livres para defender seus interesses sem bou não sendo vivida como tão boa assim porque
limitações. Entretanto, como todos são iguais, é de um jeito ou de outro todos parecem se defender
possível supor que, em última análise, possam ser contra o desamparo, a solidão e a imensa carga de
responsabilidade que implica ser livre, ser singular, mens em relação a si mesmos. É disso, do cresci-
ter interesses particulares e ser diferente. É na busca mento das Disciplinas e de seus efeitos subjetivos
de reduzir os "inconvenientes" da liberdade, das que trataremos no próximo item.
diferenças singulares, etc. que se foi instalando e
sendo aceito entre nós ocidentais e modernos um
verdadeiro sistema de docilização, de domestica- A crise da subjetividade privatizada
ção dos indivíduos, sistema que coloca em risco ou a decepção necessária
tanto as ideias liberais como as românticas, embora
tente se disfarçar mediante algumas alianças Bem, até agora falamos principalmente de
com o Liberalismo e com o próprio Romantismo. uma das condições para que surjam projetos de
Esse sistema que envolve a elaboração e aplicação psicologia científica: uma clara ideia da experiên-
de técnicas "científicas" de controle social e indi- cia da subjetividade privatizada. Mas há outra: é
vidual será chamado de Regime Disciplinar ou, preciso que essa experiência entre em crise, e al-
mais simplesmente, "Disciplinas" e pode ser en- gumas das manifestações filosóficas dessa crise já
contrado muito facilmente nas práticas de todas as foram apontadas nos itens anteriores. Enquanto a
grandes agências sociais, como as escolas, as fá- subjetividade privatizada não está sendo contestada
bricas, as prisões, os hospitais, os órgãos adminis- (e o Liberalismo e o Romantismo não a contestam,
pelo contrário a afirmam como dado inquestioná-
trativos do Estado, os meios de comunicação de
vel), não há por que se fazer ciência psicológica.
massa, etc. Embora essas Disciplinas reduzam em
Fazer ciência é sempre ir além das aparências. Para
muito efetivamente o campo de exercício das sub-
isso, é preciso que eu desconfie delas, que elas
jetividades privatizadas, impondo padrões e con-
não sejam compreendidas facilmente. No começo
troles muito fortes às condutas, à imaginação, aos
do conhecimento há sempre uma desconfiança e
sentimentos, aos desejos e às emoções individuais,
no fim há sempre uma decepção. Mas o que terá
faz parte de seu modo de funcionamento dissimu-
levado os homens do século XIX a desconfiarem
lar-se, esconder-se, deixando-nos crer que somos
de suas próprias experiências?
cada vez mais livres, profundos e singulares. É cla-
A subjetividade privatizada entra em crise
ro, porém, que vai se instalando um certo mal-estar
quando se descobre que a liberdade e a diferença
e vão se criando condições para a suspeita dos ho- são, em grande medida, ilusões, quando se desço-
bre a presença forte, mas sempre disfarçada, das percebem que não são tão livres e tão singulares
Disciplinas em todas as esferas da vida, inclusive quanto imaginavam, ficam perplexos. Põem-se a
nas mais íntimas e profundas. A crença de que a pensar acerca das causas e do significado de tudo
fraternidade seria possível, ainda que todos defen- que fazem, sentem e pensam sobre eles mesmos.
dessem seus interesses particulares, não sobreviveu Os tempos estão ficando maduros para uma psi-
por muito tempo. Os interesses particulares levam cologia científica.
a conflitos; a liberdade para cada um tratar de seu Ao lado dessa necessidade que emerge no
negócio desencadeou crises, lutas e guerras. Os tra- contexto das existências individuais de se saber o
balhadores no século XIX foram aos poucos des- que somos, quem somos, como somos, por que
cobrindo que se defenderiam melhor unidos em agimos de uma ou outra maneira, surge para o Es-
sindicatos e partidos do que sozinhos. O Estado, a tado a necessidade de recorrer a práticas de pre-
administração pública não ficaram inertes. Para visão e controle: como lidar melhor com os
combater os movimentos operários reivindicatórios, sujeitos individuais?; como educá-los de forma
para pôr um pouco de ordem na vida social - em mais eficaz, treiná-los, selecioná-los para os diver-
que cada um defendia o que era seu sem pensar sos trabalhos? Em todas essas questões se expressa
nas consequências para todos - e para defender os o reconhecimento de que existe um sujeito indivi-
interesses dos produtores de uma nação contra os dual e a esperança de que é possível padronizá-lo
das outras, a administração pública cresceu, cres- segundo uma disciplina, normatizá-lo, colocá-lo,
ceram o Estado, a burocracia, cresceram as forças enfim, a serviço da ordem social. Surge, desse
armadas. A partir daí, como ficava aquela ideia de modo, a demanda por uma psicologia aplicada,
liberdade individual? Ainda no século XIX, conjun- principalmente nos campos da educação e do tra-
tamente com as burocracias, cresce a grande indús- balho. Ou seja, o Regime Disciplinar, em si mes-
tria baseada na produção padronizada e mecanizada, mo, exige a produção de um certo tipo de
cresce o consumo de massa para os produtos indus- conhecimento psicológico de forma a tornar mais
triais. Onde ficava, então, aquela ideia de que cada eficazes suas técnicas de controle. Mas também as
um é único e diferente dos demais? subjetividades formadas pelos modelos liberais e
Quando os homens passam pelas experiências românticos, sentindo-se contestadas e problemáti-
de uma subjetividade privatizada e ao mesmo tempo cas, são atraídas pelos estudos psicológicos.
É assim que no final do século XIX estão velam que nem sempre é assim em outras socie-
dadas as condições para a elaboração dos projetos dades e culturas.
de psicologia como ciência independente e para as 2) Outra precondição para a formulação de
tentativas de definição do papel do psicólogo como projetos de psicologia científica é a experiência de
profissional nas áreas de saúde, educação e traba- que não somos assim tão livres e tão diferentes
lho. Toda aquela vertente da filosofia moderna que, quanto imaginávamos. E a suspeita de que há ou
como estivemos vendo anteriormente, vinha pondo tras "forças invisíveis" nos controlando e de que
em questão desde o século XVIII a soberania do não conseguimos espontaneamente ver com clare
sujeito - alguns filósofos iluministas (principal- za as causas e os significados de nossas ações que
mente os empiristas) e os filósofos românticos - nos leva a investigar o que há por detrás das apa
darão subsídios importantes para a tarefa de cons- rências. Essa experiência se generaliza com o co
truir uma psicologia como área específica de pes- lapso da ideologia Liberal Iluminista e do
quisa e conhecimento. Romantismo que, cada um à sua maneira, manti
nham inquestionável a noção de subjetividade in
dividual, embora já se encaminhassem para
Síntese posições muito críticas a respeito. Esse colapso
está associado ao desenvolvimento e ao domínio
Convém, a título de síntese, recapitularmos crescente do Regime Disciplinar e se expressa em
as ideias expostas nesta seção antes de passarmos elaborações filosóficas que põem em questão a so
ao tópico seguinte. berania, a autonomia e a identidade dos indivíduos.
1) A experiência da subjetividade privatizada, 3) A suspeita de que a liberdade e a singu
em que nós nos reconhecemos como livres, dife- laridade dos indivíduos são ilusórias, que emerge
rentes, capazes de experimentar sentimentos, ter com o declínio das crenças liberais e românticas,
desejos e pensar independentemente dos demais abre espaço, finalmente, para os projetos de pre
membros da sociedade é uma precondição para visão e controle científicos do comportamento in
que se formulem projetos de psicologia científi- dividual. Este será um dos principais objetivos da
ca. Embora para nós essas experiências sejam psicologia como ciência a serviço das Disciplinas.
óbvias, os estudos históricos e antropológicos re- Mas abre espaço, também, para problematizações
teóricas e práticas das subjetividades totalmente
avessas ao regime disciplinar e que alimentarão
muitas das escolas contemporâneas do pensamento
psicológico e, principalmente, suas incidências na
clínica e na educação.

Você também pode gostar