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UNIDADE 1

PROBLEMATIZANDO AS
IDENTIDADES

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• destacar o conceito de identidade, problematizando sua história e desen-


volvimento;

• discutir o conceito de identidade no mundo atual, suas tensões e fronteiras


simbólicas;

• apontar a centralidade da cultura, da Teoria do Reconhecimento e das di-


nâmicas de globalização para a produção social das identidades.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. Você encontrará atividades que
visam a compreensão dos conteúdos apresentados no final de cada tópico.

TÓPICO 1 –
A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO
IDENTITÁRIO

TÓPICO 2 – IDENTIDADE E MODERNIDADE

TÓPICO 3 – IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

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UNIDADE 1
TÓPICO 1

A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS:


ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

1 INTRODUÇÃO
Aquilo que o sujeito é acompanha os acontecimentos e contextos
socialmente objetivados na forma de relações sociais e de fronteiras que se deslocam
constantemente. E muitas das atuais questões polêmicas ligadas às mudanças nos
padrões identitários – aos níveis individuais e coletivos – estão ancoradas em
afirmações nebulosas localizadas nesses passados.

A identidade não é um problema somente dos modernos. Ela se apresenta


como uma importante referência para indivíduos e sociedades em todos os tempos.
Fronteiras são demarcações históricas que existem desde muito tempo. Porém, há
uma mudança qualitativa quanto ao que se define por identidade em nossa época,
que se tornou um conceito mais polissêmico e crítico.

Neste tópico, vamos fazer uma jornada pela história. As relações entre
diferentes culturas em períodos da antiguidade até os dias de hoje e de que maneira
esses encontros promoveram identidades e diferenças. Com isso, esperamos abrir
caminhos para o aprofundamento de seus conhecimentos sobre a historicidade
dos conceitos. Como veremos a seguir, mesmo no passado as fronteiras não eram
percebidas apenas como geográficas.

Para realizar tal caracterização, discutimos a essencialização das identidades


antigas, que fundamentam muitos dos atuais discursos étnicos e nacionalistas.
Exemplificamos essa noção identitária com a análise da civilização greco-romana e
seu “legado” para a Idade Média.

Em seguida, o tópico aborda essa herança antiga sobre o essencialismo


identitário e a maneira como este se desdobrou na Idade Média, especialmente
com a conformação dos Estados nacionais, que não deixou de ser uma imposição
identitária que pretendia integrar todo o conjunto de populações num dado
território.

Para isso, sugerimos uma desconstrução da nossa imagem tradicional da


Idade Média como um período de servos e reis, cavaleiros, castelos, feudalismo,
doenças etc. Esses fenômenos são materializações de intensos processos humanos
de construção de unidade e de fronteiras.

Vamos lá?

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UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

2 O QUE É O ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO?


A identidade é um tema bastante complexo em nossos dias. Mas nem
sempre foi assim. As visões sobre a identidade acompanham os indivíduos e sua
história em cada época. Ter uma identidade, mesmo que não nesse termo – que é
um conceito recente – representava no passado “aquilo que você é”, isto é, a sua
essência.

Tal ideia tem gerado hoje críticas e novos modelos teóricos propostos para
entender como funcionam as identidades contemporâneas, articulando identidade
e diferença.

Porém, como dissemos, nem sempre foi assim. Os povos antigos e da Idade
Média tinham outra concepção identitária, autossuficiente, fechada em si mesma.
Os outros povos não tinham uma identidade específica. Eram os diferentes:
selvagens e bárbaros cujas palavras são invenção do passado.

Na filosofia grega, a discussão sobre a essência ou não essência foi inaugurada


por Heráclito e Parmênides, continuada por Platão, Aristóteles e seus discípulos.
Segundo a visão essencialista, existe uma unidade ontológica, isto é, uma essência,
uma alma única, fixa e que unifica o ser, apesar de não serem acessíveis à nossa
experiência cotidiana, conforme afirmava Platão. Essas essências existem em si
mesmas. Quando pensamos num sapato, por exemplo, não enxergamos a ideia de
sapato. Mas, quando vemos um sapato na nossa frente, estamos experimentando
um conceito materializado de sapato, mas não sua essência. A essência do sapato
é imutável, existindo não nas nossas mentes, mas como modelos atemporais
presentes no mundo inteligível. Para acessar tais ideias, somente através da Razão.
Enquanto Ser, somos a materialidade, um traço apenas da essência do “Ser”, este
eterno, imutável, perene. Vejamos a reflexão realizada por Claude Dubar:

Etimologicamente, a identidade (do latim idem: o mesmo) é aquilo que


permanece o mesmo ao longo do tempo. É o que Platão, a partir de
Parmênides, chamava a essência do que existe (os seres, étants), aquilo
que não se relaciona com sua aparência - o que se percebe pelos sentidos
-, mas sua realidade “essencial” que é invisível e imutável. A essência,
segundo Platão, não se conhece pelos sentidos, mas pelo espírito (o noos)
que «vê» as Ideias e as reconhece (teoria da “reminiscência”). Podemos
lembrar o mito da caverna: os humanos vivem em meio às sombras,
às aparências, às miragens: se quiserem ver (em grego theorein), daí
para conhecer o Real, eles devem sair da caverna, subir até o alto da
montanha e contemplar o céu das ideias (DUBAR, 2010, p. 336).

Neste sentido, a filosofia socrático-platônica inaugurou um dualismo


metafísico entre o corpo e a alma. Ele, neste sentido, formula uma metafísica
em torno do Ser. Na sua argumentação, o corpo ligava-se aos sentimentos,
àquilo que pode afastar o ser de uma existência ideal. Tal existência só poderia
ser fundamentada na alma, que é a própria Razão. Como veremos, tal tradição
filosófica foi incorporada à tradição cristã desde os primeiros anos da nova religião
monoteísta.

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TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

FIGURA 1 – IDENTIDADE: SOMOS O QUE APARENTAMOS?

FONTE: Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/-uqLbwHO4-n4/TjRSfJlO-NI/


AAAAAAAAAFs/0sZ4LILb0dM/s1600/carteirra_identidade.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

Para as identidades clássicas (aqui em oposição às contemporâneas), não era tão


claro para nós que a construção social da diferença envolve a conformação de oposições
binárias: podem indicar exemplos de binarismos em situações como homem-mulher,
masculino-feminino, escuridão-luz, quente-frio, bem-mal, cru-cozido, ou civilizado-
bárbaro, superior-inferior, nós-eles, negro-branco etc. (WOODWARD, 2015).

O que é esse binarismo? Trata-se de um modo de classificação simbólico


do mundo e da experiência individual e social a partir de dois polos opostos e
desconectados entre si. Assim, no binarismo de gênero, por exemplo, ser homem e
ser mulher são situações que nada têm a ver entre si. Estrutura, assim, uma divisão,
bem como hierarquias e papéis distintos. Se o doce não é o salgado, então, o doce
existe por si próprio. Mas a própria definição e ideia de doce só pode ser construída
em torno de outros conceitos, como amargo, salgado etc. Por mais que os discursos
identitários essencialistas invisibilizem este fato, está claro para todos. Para povos
antigos e mesmo contemporâneos, estabelece-se uma visão de senso comum em
cada um desses elementos que em oposição são independentes. A diferença era
concebida como uma entidade independente, existindo independente de outras
identidades (WOODWARD, 2015).

Neste sentido, o essencialismo identitário representaria uma ideia de que a


identidade de uma pessoa indicaria “aquilo que se é”, dando pouca ou nenhuma
ênfase ao fato de que “é na relação com o outro que me identifico como o não
outro” (OLIVEIRA, 2006, p. 24). E é exatamente essa condição relacional que o
essencialismo nega ou invisibiliza.

Para compreender a dimensão de si mesmo é preciso ter um outro parâmetro,


um outro ser humano. Então, o que podemos entender por essencialismo?
Essencialismo refere-se à necessidade de estabilizar determinados
grupos sociais enquanto sujeitos políticos. Ou seja, o processo de
essencialização procura garantir a legitimidade da representação

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UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

política de determinado grupo estabelecendo uma fronteira nítida que


torne possível distinguir seus membros na sociedade como um todo.
Esse processo engendra um grave problema: leva ao ‘congelamento’
e à descontextualização de identidades e diferenças como se fossem
entidades fixas, visto que impõe a partir da esfera política uma visão
única do que as distingue. O essencialismo dá margem, portanto, ao
surgimento de aspirações de cunho totalitário para fins de estabilização
política, pois tende a eliminar a partir da própria esfera pública
qualquer outra interpretação possível do que caracteriza a diferença ou
a identidade em questão (TOSOLD, 2010, p. 169).

Como você pode perceber, na lógica das identidades essenciais existiria um


núcleo que seja “comum” e “fixo”. Este centro orientaria o indivíduo para e na vida
social. E um dos fenômenos sociais corriqueiros em torno da identidade é que se
tende a perceber estas identidades como “naturais”. É como se sempre existissem.

E quando essa situação se torna um problema? A partir da ampliação das


relações de interdependência social entre as diversas partes do mundo, o controle
identitário baseado em lealdades tradicionais como raça, nação, gênero torna-se
mais frágil. Na velocidade das interações atuais, esse abalo pode desconcertar os
sujeitos. Muitos optam por radicalizar seu discurso em torno de fundamentalistas
religiosos, nacionais, étnicos, capitalistas etc. Numa visão radical do essencialismo
identitário, essas identidades “não contemporâneas com o seu tempo” fariam “mal
aos corpos dos que as carregam” (BURITY, 1997, p. 145).

Apesar disso, como aponta Stuart Hall (2006), essas versões serviram para
equilibrar e estabilizar o mundo social, apontando “quadros de referência que davam
aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (p. 7). Conforme o autor:
[...] A lógica do discurso identitário assume um sujeito estável, isto é, temos
assumido que há algo que nós podemos chamar de nossa identidade, o
que, em um mundo que muda rapidamente, tem a grande vantagem
de permanecer imóvel. Identidades são uma forma de garantia de que
o mundo não está se desmoronando tão rapidamente quanto algumas
vezes parece. É um tipo de ponto fixo do pensamento e do ser, uma base
de ação, um ponto parado no mundo em transformação. Este é o tipo de
garantia última que a identidade parece nos prover (HALL, 2016, p. 317).

Assim, ao contrário do que afirmam as identidades tradicionais, clássicas,


a identidade não é algo que se tem, mas é o efeito precipitado (logo, instável) de
atos de identificação social. Quer dizer, os processos de construção identitária são
marcados pela ambiguidade fundamental dos próprios fenômenos identitários.
Todas as identidades seriam contingentes às condições históricas, sociais, culturais,
políticas (BURITY, 1997, p. 139-140).

Neste sentido, essa visão essencialista estimula nos seus adeptos a ilusão de
um conjunto de características autênticas e que são partilhadas e experimentadas
por um grupo inteiro. É com este caráter que falamos, por exemplo, em identidade
brasileira. Quando nos referimos a essa identidade, todas as diferenças internas
do país são anuladas em torno de uma unidade. E nós sabemos que cada região
brasileira possui características sociais e culturais muito distintas, que tornam
complexo pensar uma unidade!

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TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

Como localizar na história o aparecimento de identidades essencialistas,


como a identidade étnica ou nacional? Essa discussão sobre essencialismo na
identidade está muito abstrata para você? Vamos exemplificar com o caso dos
gregos antigos e da identidade na Idade Média. Estes períodos são a base de duas
importantes identidades essencialistas: a étnica e a nacional.

3 OS GREGOS E UM OLHAR SOBRE A IDENTIDADE ÉTNICA


Como vimos, é óbvia a associação entre identidade e essência-unidade no
pensamento grego. Vamos agora adentrar na história desse povo. Esse exercício,
uma pessoa de hoje pensar sobre gregos que viveram há 2.400 anos, é complicado.
Corre-se o risco de muitas simplificações. Precisamos suspender algumas noções
básicas de viver em sociedade nos dias de hoje. Ou ser um estudioso familiarizado
com o pensamento mítico, filosófico dos gregos e sua vinculação a um sentido
da vida comunitária nas cidades-estados, da estreita relação entre vida pública,
palavra falada e espaço público.

Uma brevíssima história da Grécia antiga

A Grécia antiga nunca chegou a formar um Estado unificado. Costuma-


se dividir a História grega antiga segundo alguns períodos: Pré-homérico
(século XX-XII a.C.); Homérico (séculos XII-VIII a.C.); Arcaico (séculos VIII-
VI a.C.); Período Clássico (V-IV a.C.). O primeiro conjunto de populações
indicadas como gregos antigos ocupou a região da Península Balcânica por
volta de 4000 a.C. Essas populações pioneiras eram originárias do Oriente
Próximo. Como o terreno era acidentado, pouco fértil e com verões e invernos
rigorosos, esses grupos deslocavam-se constantemente pelo território,
ocupando ilhas e regiões da Ásia, como Jónia (Turquia), e da Europa.
FIGURA 2 – MAPA DO IMPÉRIO DE ALEXANDRE, O GRANDE

FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/-ddiWsqMFVPQ/VQDMeqa9GzI/


AAAAAAAADYY/RIkQqqFIzpE/s1600/o%2Bimp%C3%A9rio%2Bde%2Balexandre%2Bo%2
Bgrande.JPG>. Acesso em: 13 jun. 2017.

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UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

De maneira geral, o período clássico é, também, a “clássica” versão


que conhecemos, em torno da Polis, do pensamento filosófico, da isonomia,
da democracia ateniense (dependente da escravidão), cujo ápice deu-se no
século IV a.C.

No século V a.C. ocorreram as Guerras Médicas, quando os gregos


se uniram para conter as tropas persas que procuravam ocupar os territórios
helênicos. Com o declínio das cidades-estados gregas, surge Alexandre,
o Grande, da Macedônia, que ficou famoso por suas vastas conquistas
territoriais, espalhando alguns traços da unidade grega para estas regiões,
fundando cidades etc. Alexandre foi proclamado Rei da Macedônia e seus
domínios em 336 a.C.

FONTE: Funari (2002) e Le Roux (2010)

Então, como pensar a experiência histórica dos gregos antigos em termos


de identidade? Sugerimos observar em termos de grupo étnico. Havia condições
de uma identificação em termos de ancestralidade, de religião, de estrutura mítica,
de costumes, de língua, conforme sugere o historiador Ciro Flamarion Cardoso
(2002). E quais foram essas identificações comuns?

Para Claude Mossé (2004, p. 7), a civilização grega é, “antes de mais nada,
civilização da pólis, civilização política”. E conforme Jean-Pierre Vernant (2002), a
pólis estimulou o desenvolvimento de novas mentalidades, especialmente entre os
atenienses e suas colônias. Esta resultou em transformações materiais que foram
incorporadas à vida: a predominância da palavra no debate público, a publicidade
das suas manifestações políticas e culturais e uma ideia de interesse comum entre
os seus habitantes.

Segundo Leister (2006), os gregos destacam-se pela laicização da concepção


do mundo operada na pólis. O universo dos deuses vai cedendo lugar às ações
humanas e o destino dos homens não mais é definido pelos deuses, mas sim pela
lei. Os gregos desse período tornam os mitos em explicações sociais e filosóficas, não
relacionadas aos deuses e aos destinos das pessoas. Neste contexto, o privilégio da
cidadania era obtido por nascimento, e o grego obtinha a cidadania da pólis a que
pertenciam os seus pais: para “a identidade helênica”, a cidade-estado grega era a
única possibilidade de civilização: “fora dela, só a barbárie” (LEISTER, 2006, p. 18).

O alemão Werner Jaeger (1986), em sua obra clássica “Paideia: a formação


do homem grego”, afirma que os gregos foram originais no sentido de localizar
o problema do homem mítico, que seria fundamental na epopeia, na tragédia, na
poesia, para depois se ligar a uma preocupação filosófica, desdobrando-se numa
concepção inédita de homem. Este possui uma essência em meio ao mundo e suas
leis gerais. Tal essência não deve ser confundida com individualidade. É, antes,
como dono de uma Razão.

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TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

O que ele quer dizer com “Paideia”? Ele implica a ideia de uma formação
moral, religiosa, cívica comum reproduzida através da educação grega. E isso
quer dizer o estudo e o conhecimento em termos da poesia, filosofia, retórica,
matemática, música, astronomia, idioma, elementos essenciais da “alma” do
cidadão grego do período a partir do século V a.C. Este conjunto era ensinado
através das Academias ou por professores particulares, por filósofos nas ruas,
pelas peças teatrais. Era uma moral do dia a dia, a fim de orientar o cidadão ao bem
comum e aos valores gregos. Para Jaeger, havia uma unidade e um núcleo comum
de ideias entre os gregos (JAEGER, 1986).

Temos, então, uma civilização excepcional para aquela época. Tal conjunto
de valores era compartilhado entre os cidadãos das poleis. Escravos e estrangeiros
não eram obrigados ou educados em termos gregos, com exceções. Tal educação
de valores tinha início na infância, tanto para homens quanto para mulheres,
apesar das distinções nas formas de ensinar e no objetivo destes conhecimentos.
Vale dizer que a sociedade grega era uma sociedade de cidadãos, mas a plenitude
cidadã era reservada somente aos homens.

FIGURA 3 – A IMPORTÂNCIA DA PÓLIS

FONTE: Disponível em: <http://www.historiadigital.org/artigos/socrates-na-construcao-da-


democracia-grega/>. Acesso em: 13 jun. 2017.

Então, pensar os gregos antigos implica pensar em isolamento social?


Eram, então, os gregos antigos uma sociedade fechada em si mesma em relação
ao mundo? Nada mais longe da verdade. Os povos gregos (também chamados
de helênicos) mantiveram relações com o Egito, a Síria, o Irã, regiões da Turquia,

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UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

antes mesmo dos períodos Arcaico e Clássico. Havia interação e laços comerciais e
culturais entre os povos do Mar Mediterrâneo. Havia, sim, um sentimento de “ser
grego” compartilhado nos modos de vida e nas instituições sociais.

A construção das identidades gregas na Antiguidade não foi um fenômeno


estático. A percepção dos gregos sobre os outros povos foi se alterando. Seja pela
sua ideia de Paideia comum, pela língua ou pelas guerras com povos invasores.
Para o historiador François Hartog (2004), as Guerras Médicas foram centrais na
formação do bárbaro (bárbaroi) em oposição ao grego (héllenes). A partir deste
momento, a diferença entre gregos e não gregos torna-se política. O bárbaro é
aquele que não compartilha uma pólis ou laços comuns em torno da educação, da
língua e de costumes comuns.

Antes dessas guerras contra persas, havia, entre os séculos VII e VI a.C.,
uma fascinação pelos povos como egípcios e localizados no Oriente Próximo
(HALL, 2001). A identidade helênica vinha sendo construída de “forma agregativa
por meio da percepção de similaridades com grupos de pares” (HALL, 2001,
p. 218-219). Ao longo deste período, os bárbaros eram aqueles que não falavam
grego. Que eram incompreensíveis, portanto. Mas a partir do século VI a.C. houve
mudanças cruciais para a cristalização da identidade grega.

Estes bárbaros, selvagens, “outros”, representavam demarcações simbólicas


negativas para a definição da identidade grega. Aos poucos foi se constituindo
uma identidade centrada no discurso da defesa da autonomia, da liberdade e da
lei como valores gregos. Este é o período de consolidação de oposições a grupos
externos de bárbaros, especialmente em função das Guerras Médicas contra os
persas. Nesse jogo de alteridades, “os gregos e atenienses se tornaram plenamente
gregos, enquanto os bárbaros permaneceram bárbaros” (HARTOG, 2004, p. 95).

E num período de decadência das cidades-estados gregas, especialmente de


Atenas, surgiu um invasor ao norte de suas terras: a Macedônia, a partir do século
IV a.C. Depois das conquistas territoriais de Felipe II e de seu filho e sucessor,
Alexandre, O Grande, conformaram condições para a formação de um novo cenário
político, econômico e cultural, dominando aquilo que era a Grécia antiga. De sua
expansão, estabelece-se outro momento para a identidade grega. Durante o período
do Império Helenístico, estiveram sob domínios gregos e macedônicos parte do norte
da África e das extensões da Ásia. Em cada terra conquistada eram criadas colônias
gregas, cujo modelo de educação era aquilo que dava sentido a uma experiência de
ser grego. Mesmo que este “grego” more numa região distante da Ásia.

Assim, como pensar a experiência grega em termos de identidade étnica?


O grande autor clássico dos estudos sobre etnia é Frederik Barth (1998), em sua
obra “Grupos étnicos e suas fronteiras: a organização da cultura das diferenças
culturais”. A partir de sua reflexão, pode-se apontar um grupo étnico como um
modelo de organização social e de fixar uma identidade relacional em termos de
diferença. A continuidade de um grupo étnico não está ligada à manutenção de

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TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

uma cultura, tradição antiga. Os traços culturais podem mudar. Depende, sim, da
delimitação de limites entre os grupos e de reforçar laços de solidariedade.

“A etnicidade é um conceito de organização social que nos permite descrever


as fronteiras e as relações dos grupos sociais em termos de contrastes altamente
seletivos, que são utilizados de forma emblemática para organizar as identidades
e as interações” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p. 183).

É nessa relação que se formam os sentidos do “nós” e os “outros”, os


de “dentro” e de “fora”. É um jogo contraditório, de confronto, diferenciação e
contraste. Mas, também, um jogo de dominação e subordinação. A etnicidade
depende de relações e de contrastes para delimitar fronteiras. Dependendo de
contextos e relações de força, ele se mostra nas relações sociais. O foco então se
torna a fronteira étnica e as maneiras de pertencer ou excluir, porque a identidade
étnica implica uma série de restrições e prescrições que governam as situações de
contato.

Na visão de Barth (1998), cada indivíduo participa, consciente ou não, na


construção da etnicidade do seu grupo. Na medida em que os agentes se valem
da identidade étnica para classificar a si próprios e os outros para propósitos de
interação, eles formam grupos étnicos em seu sentido de organização.

É na medida em que os indivíduos usam essas categorias para


organizarem-se a si e aos outros que eles constituem grupos étnicos.
Nesse contexto, a cultura não desaparece da análise, mas ela só tem
importância na medida em que os atores lhe atribuem importância, não
valendo, portanto, enquanto dados objetivos na definição do fenômeno
(ARRUTI, s.d., p. 205).

Neste sentido, numa tentativa de sintetizar e fechar esta discussão, John


Hall (2001, p. 216) diz que um grupo étnico se define “não pela soma de diferenças
objetivamente observáveis”, mas por apenas “aquelas diferenças que os membros
do grupo, eles próprios, percebem como diferenças significantes”. Do ponto de
vista da experiência grega, então, temos as poleis, as guerras e a noção de Paideia e
não versões biológicas de identidade. Tratou-se de uma experiência de vida social
e comunitária.

4 RELAÇÕES ENTRE IMPÉRIO ROMANO, IDADE MÉDIA E


EUROPA: A IDENTIDADE NACIONAL
Como aponta Pedro Paulo Funari (2000, p. 77), Roma designa “uma cidade
antiga e todo um império”, um imenso conglomerado de terras que, no seu auge,
se estendia da Grã-Bretanha ao rio Eufrates, do Mar do Norte ao Egito. Sobre qual
Roma tratamos? Pela complexidade de sua história, aqui analisamos as identidades
no tempo do Império Romano.

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UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Os romanos consolidaram na antiguidade um grande e vasto império ao


longo de sua existência, subordinando aos seus domínios diversos povos, entre
eles, os próprios gregos. E a extensão das terras romanas na Antiguidade incluía
uma variedade de línguas, religiões e tradições distintas. O processo lento e
complexo da produção do social da identidade romana teve seu ápice na expansão
imperial e no culto à figura do imperador romano. Conforme o romano Cícero,
em “Da República”, a glória de Roma relaciona-se à observância dos costumes
ancestrais, de modelos de arte, arquitetura, religião e leis.

Como ponto de partida, a construção de “uma identidade romana” ao


modo que os gregos estabeleceram como padrão não foi uma preocupação do
império. O historiador Norberto Guarinello (2010) diz que o Império Romano
não foi o resultado de embates identitários. Nem que sua história se explica pelo
conflito ou acomodação de identidades.

Brevíssima história de Roma antiga

A história da Roma antiga, que inclui partes da África, Europa


e Ásia, liga-se à fundação da pequena Roma, surgida no século VIII a.C.
Todos lembramos da lenda de Rômulo e Remo, irmãos que num primeiro
momento foram criados por uma loba até serem encontrados. Segundo esta
lenda, citada por Tito Lívio, Eneias, príncipe derrotado na Guerra de Troia,
estabeleceu-se na região do Lácio, onde casou-se com uma herdeira latina,
Reia Sílvia. Rômulo e Remo eram seus filhos numa relação com o deus Marte
e por isso foram atirados no rio Tibre. Foram encontrados e amamentados
por uma loba e, depois, criados por camponeses. E, quando adultos, os dois
irmãos voltaram a Alba Longa, depuseram Amúlio e em seguida fundaram
Roma, em 753 a.C.

Conforme Paulo Funari (2000, p. 77), “Roma designa uma cidade


antiga e todo um império, um imenso conglomerado de terras que, no
seu auge, se estendia da Grã-Bretanha ao rio Eufrates, do Mar do Norte
ao Egito”. Roma e suas extensões conheceram três formas de organização
política, que influenciaram a própria estrutura social e a vida cotidiana das
pessoas. Costuma-se dividir sua história em: Monarquia (753 a.C. - 509 a.C.),
República (509 a.C. - 27 a.C.) e Império.

O Império Romano nasceu oficialmente em 27 a.C. e terminou –


dependendo do ponto de vista – com a conquista de Roma pelos godos,
chefiados por Alarico, em 410 d.C., ou em 476 d.C., data da queda do último
imperador do Ocidente, em consequência dos repetidos assaltos dos povos
germânicos (LE ROUX, 2010).

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TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

FIGURA 4 – MÁXIMA EXTENSÃO DO IMPÉRIO ROMANO – III a.C.

FONTE: Disponível em <https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/originals/e3/9d/fd/


e39dfd2db2ce90db3aa264144158c10c.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

FONTE: Funari (2002) e Le Roux (2010)

Havia um sistema de valores compartilhados, que favoreceu a integração


imperial? Na leitura de Patrick Le Roux (2010), os territórios dominados pelo
império experimentaram formas de administração hierárquica estruturada em
torno de funcionários e de leis da autoridade central. Elas visavam “controlar,
verificar, equilibrar e repartir” as atividades locais.

Além disso, existe uma visão clássica em torno de uma comunidade cultural
mediterrânea cuja potência criativa era a civilização romana. Isso levaria a destacar
um processo de assimilação da cultura romana pelos povos bárbaros dominados,
chamada de “romanização”, como apresentada. Esse termo está ligado a noções de
desenvolvimento, aculturação e à forma como os nativos adotaram e assimilaram
a cultura “romana”. A romanização tradicionalmente observada pela História
defende a ideia de difusão da cultura romana para regiões menos urbanas, mais
“bárbaras”. Tratava-se, em muitos casos, de uma “missão civilizatória romana”.
Essa crítica entende que:

A integração propiciada pelo Império não representou, assim, um


consenso, nem a paz geral que muitas vezes se propugna, mas um
sistema de exploração contra o qual as alternativas eram escassas, dada
a imensa dispersão geográfica e cultural dos insatisfeitos, dada a falta
de alternativas viáveis ao Império (GUARINELLO, 2010, p. 127).

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UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Agora, havia uma delimitação cultural que reforçou a elitização da ordem


romana por meio de duas fronteiras: a cultura e língua grega e a língua latina. Não
havia, necessariamente, a imposição dos modos de vida dos romanos ou gregos
em suas colônias. Estas eram restritas aos ‘nativos’ gregos e romanos que viviam
nessas terras coloniais.

FIGURA 5 – CASAL ROMANO

FONTE: Disponível em: <http://www.institutoandreluiz.org/1_casal_romano.JPG>. Acesso


em: 13 jun. 2017.

A identidade romana, assim, ligava-se muito à própria história de Roma


e sua elite militar e política. Pode-se dizer que entre estes indivíduos e famílias
nobres havia uma ligação identitária mais consistente. Norberto Guarinello
(2010) defende que a identidade romana não era uma imposição, mas sim, uma
característica geral de comportamentos que deveriam ser compartilhados entre os
súditos. Enquanto se é grego por ascendência e descendência, no caso romano, é
possível se tornar um, através da Lei e do Direito.

Tecendo comparação entre identidade grega e romana, a cidadania helênica


era bastante restrita aos habitantes de fora, nos “confins do mundo”, ao passo que
a romana era muito mais ampla e flexível do que a ateniense. Havia possibilidades
de ascensão social diferentes entre gregos e romanos. Ser romano era preocupação
para aqueles que tinham possibilidades de pertencer à elite romana.

Isso não quer dizer que os romanos relativizavam as culturas de seus povos
dominados ou não se sentiam superiores. Pelo contrário, queremos dizer apenas
que a identidade romana era um assunto restrito à elite econômica, política, militar
e “sagrada”, ou alguns poucos segmentos mais ricos da sociedade romana.

14
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

E o que temos de relação entre a identidade nacional e a história do Império


Romano? É a partir da Idade Média e com a reconfiguração do Império Romano
após a tradicional “Queda de Roma” para os bárbaros que esta identidade restrita
e fundamentada em memória e direito vai dar contornos à identidade nacional. Ela
fundamenta-se no pertencimento a um território imperial, a uma língua (latim), ao
conjunto de leis e direitos herdados do Império Romano.

Segundo a tradição historiográfica, a Idade Média tem início com a queda do


Império Romano tomado pelos “bárbaros”. O que foram essas invasões bárbaras?
Uma guerra do tipo Game of Thrones pelo poder real? Um processo complexo de
fatores interligados? Vamos investigar esta última alternativa.

Devido a complicadores políticos, demográficos, sociais e militares, o


poder imperial ligado a Roma foi, em 395 d.C., dividido em duas partes: o Império
Romano do Ocidente e o Império Romano do Oriente, cuja capital era Bizâncio,
atual Constantinopla (Turquia). Os estudos, pesquisas e discursos que apontam
os bárbaros deram ênfase aos aspectos externos, negligenciando os aspectos e a
desorganização interna. Essa desestruturação do poder imperial é lida a partir da
ideia do “Declínio do Império Romano” (BARROS, 2009).

UNI

O que foi viver na Idade Média?

As pessoas que viveram essa época possuíam um imaginário social bastante fértil numa
relação muito próxima de situações do universo sagrado e profano. Além disso, as populações
medievais não registravam o tempo como nós fazemos hoje. Este tinha um sentido biológico
e cíclico para a vida. É por isso que as celebrações religiosas ou não – como a celebração do
ano-novo – ressaltavam um ciclo eterno e a repetição de eventos.

Resultado de um processo social de caracterização, a Idade Média foi interpretada na Idade


Moderna como atraso, crises e trevas. A visão negativa sobre a Idade Média teve início a partir
do século XV, no período do Renascimento. Para muitos, a Idade Média foi época sombria,
“um tempo oco, caracterizado pela ausência da razão e ausência do gosto” (LE GOFF, 2005, p.
59). Porém, as grandes mudanças nas mentalidades tiveram início na Idade Média. O próprio
Renascimento não foi um acontecimento, mas um longo processo iniciado no século XII.

De uma maneira geral, apontamos a memória do Império Romano, o cristianismo e a conversão


dos povos bárbaros e combate aos infiéis, e esse imaginário social repleto de relações entre
o sagrado e o profano alimentado por uma metafísica cristã como o “ponto de partida”. Aos
poucos, tais tradições são ressignificadas em torno da ideia de Ocidente e de Europa.

Houve uma ruptura profunda entre a Antiguidade e a Idade Média naqueles


anos? Não como aprendemos na escola, onde Roma foi tomada por bárbaros e
surgiu uma nova era. O que ocorre no período de transição da Antiguidade para a
Idade Média é uma renovação, o surgimento de uma nova cultura a partir da fusão
de valores clássicos com valores cristãos.

15
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

E quem eram esses bárbaros invasores? Pode-se indicar os godos (visigodos


e ostrogodos), vândalos, os francos, os suevos, os burgúndios, os anglos, os saxões,
os alamanos, dentre outros. Dentre revoltas, golpes políticos, conflitos políticos, o
poder de Roma diminuiu.

FIGURA 6 – BÁRBAROS “INVASORES”

FONTE: Disponível em: <https://idademedia.wordpress.com/2012/03/12/povos-barbaros-


um-dos-componentes-que-a-igreja-civilizou-na-idade-media/>. Acesso em: 13 jun. 2017.

As fronteiras não se expandem mais. Pelo contrário, fragmentam-se, por


um momento. Depois, reunificam-se em movimentos diversos desses chamados
povos bárbaros. Em especial, os francos, que desde o século V foram expandindo
seus domínios. Com conversão de Clóvis ao cristianismo, poder político e poder
religioso passam a confundir-se.

[...] o golpe de mestre de Clóvis foi o de se converter, com seu povo, não
ao arianismo, como os demais reis bárbaros, mas ao catolicismo. Com
isto pôde jogar a cartada religiosa e beneficiar-se do apoio, senão do
papado ainda fraco, ao menos do poder da hierarquia católica e do não
menos poderoso monasticismo (LE GOFF, 2005, p. 32).

Nestes primeiros séculos de Idade Média, o Império Romano foi


reinventado, especialmente com a coroação de Carlos Magno no século VIII.
Segundo Hobsbawm e Ranger (1998), a importância desse imperador para a ideia
de uma identidade europeia é central. Não só por restaurar e manipular a memória
e instituições do Império Romano, mas, principalmente, pela sua imagem de
“defensor” da identidade europeia-cristã contra os “infiéis” do Islã. Foi com Carlos
Magno, coroado imperador do Império Carolíngio na noite de Natal de 800 d.C.,
que se começou o rechaço aos seguidores do Islã que ocupavam e expandiam sua
fé para a Europa. Durante o reinado de Carlos Magno, a expansão territorial e a
cristianização dos povos compunham dois grandes objetivos seus.
16
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

DICAS

Sugestões de filmes sobre a Idade Média:


“O Incrível Exército de Brancaleone”, direção de Mario Monicelli (1965).
O filme acompanha a história do cavaleiro Brancaleone, que lidera um pequeno grupo de
pobres em busca da “Terra Santa”. O filme é uma comédia que retrata a Baixa Idade Média e
seus temas, como as cruzadas e a peste negra.

“Cruzada”, com direção de Ridley Scott (2005).


O filme acompanha um jovem ferreiro francês que se desloca para a Terra Santa e experimenta
o conflito entre cristãos e muçulmanos em torno da conquista de Jerusalém, que termina
com a retomada da cidade pelos seguidores do Islã.

Por que nos interessa ligar o aparecimento da identidade nacional ao


Império Romano e à Idade Média? De acordo com José Glaydson Silva:

Justificador dos impérios modernos, o Império Romano ajuda a construir


os pertencimentos, as identidades, as nacionalidades, em universo
de empréstimos simbólicos, sentidos, construídos em interpretações
falseadas, em muitas tentativas das nações europeias de estabelecer
passados apropriados (SILVA, 2005, p. 43).

É com o declínio dos impérios que se abrigavam na memória da grandeza


romana que foram surgindo pequenos reinos, que logo mais se tornaram Estados.
Das instituições feudais surgem identificações baseadas numa definição de
território. O que é a identidade nacional?

Para Anthony Smith (1997), a identidade nacional é a manifestação da


consciência de pertencimento a uma comunidade política que estrutura a vida
nacional e individual através de instituições que medeiam os direitos e deveres
de seus membros. Essa consciência seria uma forma de memória elementar para
crescimento de uma identidade. E espaço geográfico também no sentido de
territorialização. A identidade nacional demanda uma base territorial em que os
seus membros possam identificar-se, relacionar-se, isto é, pertencer. Dela foram
derivadas noções de cidadania, nação e pátria.

Segundo Smith (1997), possuir uma identidade e uma memória nacional


é resultado de um processo que se opera em múltiplos espaços, do Estado ao
universo familiar, sendo reafirmados, aprendidos e reproduzidos em eventos,
rituais, instituições presentes no cotidiano dessas comunidades. Neste conjunto
de relações sociais de linguagem e de poder, os membros da comunidade são
estimulados à autoidentificação – pacífica ou não – voltada a delimitar a diferença
e a fronteira do grupo.

Para Stuart Hall (2006), as identidades nacionais são compostas por


símbolos e representações, indicando modos de construir sentidos que influenciam
e organizam tanto as nossas ações quanto a concepção que nós temos de nós. Elas
17
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

contribuíram para forjar sistemas nacionais e universais de serviços e políticas,


conformando uma “cultura homogênea”, mas permeada pela ambivalência.

[...] a noção de cultura nacional não é algo com um impulso moderno,


ao contrário, amparado ambiguamente entre o passado, o presente e o
futuro, retornando, sempre que for necessário, a passados inventados.
Não importa quão diferentes sejam seus integrantes, uma cultura
nacional sempre buscará unificá-los, integrá-los numa identidade
cultural. Porém, esse movimento tem como efeito anulação e
subordinação da diferença cultural interna? (HALL, 2006, p. 59).

E como articular as identidades nacionais e suas memórias, símbolos,


bandeiras, hinos, heróis a esse momento medieval? São bastante diversificados os
enfoques e entradas possíveis no tema. Aqui se discutem duas categorias que podem
contribuir na busca de uma reflexão possível. A primeira de Eric Hobsbawm e sua
noção de “invenção das tradições”. A outra é de Benedict Anderson e seu conceito
de “comunidade política imaginada”.

O conceito de “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, incluindo


“tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas,
quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado
e determinado de tempo. Essa tradição inventada tem como “combustível” de
seu movimento um conjunto de práticas reguladas por regras escritas ou não de
natureza ritual ou simbólica. O objetivo desse conjunto de sentidos é inculcar
certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. São tradições que
buscam apresentar continuidade artificial em relação ao passado através da
repetição (HOBSBAWM; RANGER, 1998).

[...] por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,


normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas;
tais práticas, de natureza natural ou simbólica, visam inculcar certos
valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um
passado histórico apropriado (HOBSBAWM; RANGER, 1997, p. 9).

Elas são, em essência, conservadoras, contrárias a inovações. Por isso


Hobsbawm e Ranger distinguem-nas dos costumes e convenções que, por sua vez,
estão ligados a tradições. O passado está sempre presente na forma de símbolos,
linguagens, rituais, entre outros.

Consideramos que a invenção de tradições é essencialmente um


processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao
passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição (p. 14). [...]
toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como
legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal (HOBSBAWM;
RANGER, 1997, p. 21).

O que queremos apontar com esta reflexão? De acordo com Hobsbawm e


Ranger, toda tradição surgiu em algum lugar do passado, sendo possível de ser
alterada em algum futuro.
18
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

As nações são entidades historicamente novas fingindo terem existido


durante muito tempo. É inevitável que a versão nacionalista de sua
História consista de anacronismo, omissão, descontextualização e, em
casos extremos, mentiras. Em um grau menor, isso é verdade para todas
as formas de História de identidade, antigas ou recentes (HOBSBAWM;
RANGER, 1998, p. 285).

Se a Idade Média é um desses passados, hoje imagens dela são manipuladas


discursiva e politicamente. Das dinâmicas do mundo medieval foram “inventadas”
e “imaginadas” as bases de uma identidade essencialista muito relevante nos dias
atuais, apesar de sua crise. A identidade nacional difundiu-se junto com os domínios
e colonialismo europeu. Nós brasileiros estamos marcados por uma identidade
nacional que se diz fixa, cuja origem está na ocupação portuguesa em 1500.

A identidade nacional reivindica uma unidade de língua e cultura. Essas


características demandam, para sua realização, um esforço coletivo de imaginação
razoavelmente coordenada e reproduzida em torno de um território e seus membros.
Benedict Anderson (1989) propôs a definição de nação como uma comunidade
política imaginada como implicitamente limitada e soberana. É imaginada porque
nem todos os membros desse grupo podem se conhecer e reconhecer, apesar
de que estejam mentalmente configurados. É limitada porque implica limites e
fronteiras. É soberana porque fundamentada no direito iluminista. E é imaginada
porque sempre definida em termos de comunidade.

“O que proponho é que o nacionalismo deve ser compreendido pondo-o


lado a lado, não com ideologias políticas abraçadas conscientemente, mas com os
sistemas culturais amplos que o precederam, a partir dos quais – bem como contra
os quais – passaram a existir” (ANDERSON, 1989, p. 20).

Neste sentido, a própria noção de Ocidente e de Europa é problemática.


Segundo Peter Johann Mainka (2011, p. 60), é difícil delimitar as fronteiras
europeias. Isto porque existem situações que tornam complexa essa definição.
Ela surge, porém, definindo-se em relação a um outro, os povos “bárbaros” da
Ásia. Podemos indicar a Europa como um continente cujas fronteiras são móveis,
deslocadas em inúmeros momentos. Já no passado, a palavra “Europa” tinha um
significado ambíguo. Ora era percebido como os povos da Grécia antiga, ora era
vista como uma referência num sentido moderno. Assim, segundo Mainka, essa
demarcação é “imprecisa” (2011, p. 58). Inclusive continua até os dias de hoje,
confundida com a União Europeia.

Para Hobsbawm e Ranger, a história europeia é uma “história curiosa”,


definida mais pelas “situações políticas do que pelas diferenças culturais, onde
a história pode ser lida como um processo”, uma construção intelectual (1998, p.
233-234). A explicação sobre o que é a Europa teria bases políticas. Até mesmo
fronteiras convencionais dos livros didáticos – como os Montes Urais – resultam
de decisões políticas e demarcações intelectuais. Segundo o autor, a definição
conceitual e geográfica da Europa é mutável e flexível, assim como os contornos de
sua identidade, ora grega, ora romana, ora europeia. Assim, ele utiliza a metáfora
do “Clube Europa”, onde o acesso é controlado.

19
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Sob esse ponto de vista, categorias como asiático, leste, Oriente falam
mais sobre a Europa do que os povos que supostamente classificam e enquadram
(HOBSBAWM; RANGER, 1998). Na leitura de Hobsbawm e Ranger, o autor aponta
para obras antigas e modernas escritas por viajantes e conquistadores visando
descrever os outros povos em termos de categorias europeias, num “denominador
comum” ao intelecto europeu. Estas estariam em oposição à identidade europeia.
Em geral, esse antagonismo estava dirigido para o Oriente e o Islã.

Vejamos o que escreve Edward Said no seu livro “Orientalismo”.


Novamente, entramos no terreno das construções sociais, científicas e intelectuais
hegemonicamente europeias que “inventam” o Oriente. O esforço dos envolvidos
nessas construções era o de “traduzir” para as mentes e costumes europeus aquilo
que foi inventado, configurado e reproduzido como sendo o Oriente. Neste sentido,
pouco se trata de questões geográficas, mas, antes de idealização, tornando o
Oriente uma criação do Ocidente. Tal concepção de Oriente – que Said encontra
em obras da literatura, trabalhos científicos, relatos de viajantes e aventureiros –
estimula uma visão exótica, misteriosa, erótica e perigosa do Oriente. Mas, para
o autor, ao debruçar-se sobre tal construção social amparada pela linguagem, é
possível encontrar mais sobre a identidade Ocidental do que a Oriental (SAID,
2007).

Toda a complexidade das centenas de sociedades distintas entre si se


torna um “Outro” exótico inventado, um estereótipo que estava relacionado aos
interesses do colonizador europeu (SAID, 2007). Sobre essa invenção de povos não
europeus:

As invenções da tradição mais abrangentes da África colonial ocorreram


quando os europeus acreditaram estar respeitando tradições africanas
antiquíssimas. O chamado direito consuetudinário, direitos territoriais
consuetudinários, estrutura política consuetudinária, e daí por diante,
havia sido, na verdade, inteiramente inventado pela codificação colonial
(RANGER, 1984, p. 257).

Sobre esse jogo de oposições relacionais com a Ásia, Boaventura de Sousa


Santos (2006) diz que o outro lado do Orientalismo foi a ideia da superioridade
intrínseca do Ocidente.

Assim, a história da Idade Média é, em geral, a história dos povos europeus


(ou de alguns deles) sob o seu ponto de vista. Porém, como dissemos, a implicação
dessa hegemonia europeia no mundo tornou nós, brasileiros, produtos diretos
desse momento. E quando falamos em identidade europeia, em Europa, precisamos
tomar algumas precauções intelectuais.

O Ocidente, que ganha imaginação na Idade Média, materializa-se durante


a Idade Moderna em instituições como o Estado unitário, a visão de cultura/
civilização filosófica, científica e cristã e no fenômeno do capitalismo. Segundo o
sociólogo português Boaventura de Souza Santos, os desdobramentos de Idade
Média e Moderna tornaram a Europa o centro do mundo. Porém, até o século XV,

20
TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO

a Europa é a periferia de um sistema-mundo cujo centro está localizado na Ásia


Central e na Índia. Só a partir de meados do milênio, com as navegações ibéricas,
é que esse sistema-mundo é substituído por outro, capitalista e planetário, cujo
centro é a Europa (2016). A marca desse domínio pode ser percebida na imposição
de modelos de ação e interpretação do ser em sociedade. Numa crítica bastante
retumbante:

Colonialismo, evangelização, neocolonialismo, imperialismo,


desenvolvimento, globalização, ajuda externa, direitos humanos,
assistência humanitária são exemplos de algumas das diretivas das
soluções eurocêntricas para os problemas do mundo. Imersa neste
pensamento que arroga superioridade e cria fechamento (SANTOS,
2016, p. 27).

Esses desdobramentos, eventos e revoluções materiais, científicas e


simbólicas em torno da sociedade e do sujeito serão objeto de discussão do próximo
tópico.

21
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• Aquilo que o sujeito é acompanha os acontecimentos e contextos socialmente


objetivados na forma de relações sociais e de fronteiras que se deslocam
constantemente. Os discursos que inauguram aquilo que se define hoje como
identidades fundamentais para a história dos povos ocidentais podem ser
localizados nas visões greco-romanas de pertencimento e reconhecimento de
uma unidade comum de características essenciais e que são compartilhadas
pelos membros do grupo.

• Que a base dessa visão identitária fundamenta-se numa filosofia e num trabalho
social de produção de sentidos com bases metafísicas. Nela, a identidade é uma
essência, uma unidade, aquilo que um povo é.

• Como somos resultados de processos europeus de ocupação e dominação dos


quatro cantos do planeta, nossa base filosófica, mental, cultural, científica,
religiosa etc. tem como origem discursos e práticas identitárias localizadas na
Europa antiga e medieval.

• A história medieval pode ser observada como o momento da “invenção de


tradições”, de mitos fundadores da identidade europeia, fundamentando o
surgimento de comunidades imaginadas na forma de nações. Que, portanto,
aquilo que seria essencialmente europeu é, na realidade, um esforço grande de
sistematização, de manipulação, de reinterpretação de identidades antigas. Na
passagem da Idade Média para a Moderna esses sentidos são ressignificados
através da imagem de uma Europa cristã, racional, secularizada e científica.

• Um grupo étnico, segundo Fredrik Barth (1998), é um modelo de organização


identitária responsável por estruturar os sentidos do “nós” e os “outros”, os de
“dentro” e de “fora”. É permeado pelo contraditório, de confronto, diferenciação
e contraste. Pela dominação e subordinação. A etnicidade depende de relações e
de contrastes para delimitar limites e fronteiras. Para Barth, a continuidade de
um grupo étnico não está ligada à manutenção de uma cultura, tradição antiga.
Os traços culturais podem mudar. Depende, sim, do estabelecimento de limites
entre os grupos e de reforçar laços de solidariedade.

• Para Anthony Smith (1997), a identidade nacional é a manifestação da consciência


de pertencimento a uma comunidade política que estrutura a vida nacional e
individual através de instituições que medeiam os direitos e deveres de seus
membros. A identidade nacional reivindica uma unidade de língua e cultura.
Segundo Stuart Hall (2006), elas contribuíram para forjar sistemas nacionais e
universais de serviços e políticas, conformando uma “cultura homogênea”, mas
permeada pela ambivalência. Vale dizer que a identidade nacional se difundiu
junto com os domínios e colonialismo europeu.
22
AUTOATIVIDADE

1 Sintetize e diferencie as formas identitárias conformadas pelos gregos e


romanos antigos, conforme discutido neste tópico.

2 Diferencie grupo étnico e identidade nacional.

3 Quais são os desafios e problemas relacionados às identidades essencialistas?


Como enxergar a identidade brasileira de um ponto de vista de uma identidade
essencial?

4 O que significa o conceito de “invenção das tradições”?

23
24
UNIDADE 1
TÓPICO 2

IDENTIDADE E MODERNIDADE

1 INTRODUÇÃO
No Tópico 1, procuramos observar o debate sobre o essencialismo
identitário. Localizamos sua origem em povos da história antiga, especialmente,
gregos e romanos. Foram importantes na medida em que serviram de base e de
legitimação para versões sobre a identidade tanto na Idade Média quanto nos
séculos seguintes.

Neste Tópico 2, investigamos os discursos e teorias sobre a identidade


resultantes da Idade Moderna e do fenômeno da Modernidade. É quando o
essencialismo começa a ser abalado ou tornado mais complexo.

Para tanto, começamos com a noção de sujeito moderno, implicado nas


discussões filosóficas de René Descartes, Immanuel Kant e Friedrich Nietzsche.
São filósofos fundamentais para entender a passagem de um olhar metafísico
sobre o Ser para um outro olhar, epistemológico. Tratou-se de um distanciamento
ou novo olhar sobre a filosofia grega antiga ou da escolástica medieval.

FIGURA 7 – INTELECTUAIS E A ILUSTRAÇÃO

FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/_qL9x59CgJrw/SeOv8Tq3CgI/


AAAAAAAAAAU/mkzpcLd7Trw/S1600-R/La+lecture+des+philosophes.jpg>. Acesso em:
13 jun. 2017.

25
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Depois, como resultado desse deslocamento do sujeito, discutimos a


construção do indivíduo a partir da sociedade, com os trabalhos da Escola de
Chicago e do Interacionismo Simbólico. Por fim, apresentamos as características
específicas da Modernidade segundo autores clássicos e contemporâneos,
observando os impactos desse fenômeno na produção social das identidades.
Fazemos essa passagem pela modernidade a partir das Ciências Sociais.

2 O SUJEITO MODERNO: O SUJEITO RACIONAL


Boaventura de Sousa Santos (2006) escreveu que o primeiro nome dado ao
fenômeno da identidade foi o de subjetividade na passagem da Idade Média para
a Moderna. O que é Subjetividade e qual sua relação com a noção de sujeito? É
uma noção antiga ou relativamente moderna? Responder a tais questões demanda
esforço de síntese. Vale dizer que as noções e categorias teóricas levam a marca de
seus campos e territórios científicos. Daí que a noção de subjetividade e de sujeito
possui variações para a Sociologia, para a Antropologia, para a Psicologia etc. São,
todavia, noções muito importantes nas Ciências Humanas.

Segundo o Dicionário de Filosofia de Nicolla Abbagnano (2007, p. 922),


subjetividade refere-se ao “caráter de todos os fenômenos psíquicos, enquanto
fenômenos de consciência (v.), que o sujeito relaciona consigo mesmo e chama de
‘meu’”. Além disso, indica o caráter do que “é subjetivo no sentido de ser aparente,
ilusório ou falível”. Da mesma forma, Abbagnano (2007, p. 929) explica que o
termo sujeito teve dois significados fundamentais, sendo que atualmente apenas o
segundo sentido abaixo é utilizado:

1° Aquilo de que se fala ou a que se atribuem qualidades ou


determinações ou a que são inerentes qualidades ou determinações;
2° o eu, o espírito ou a consciência, como princípio determinante do
mundo do conhecimento ou da ação, ou ao menos como capacidade de
iniciativa em tal mundo.

Segundo Japiassú e Marcondes (2001), o período medieval foi marcado


pelas sucessivas tentativas de conciliação entre razão e fé, entre a filosofia e os
dogmas da religião revelada, passando a filosofia a ser considerada serva da
teologia, na medida em que fornecia as bases racionais e argumentativas para a
construção de um sistema teológico, sem, contudo, poder questionar a própria fé.

A Idade Moderna, por sua vez, radicaliza as mentalidades, promovendo


uma reconfiguração e produção de novas interpretações e análises filosóficas sobre
o Ser que se transformou no sujeito. Movimentos como o Renascimento e a Ilustração,
eventos ocorridos entre aquilo que se diz o fim da Idade Média para o início da
Moderna, trouxeram novos desafios intelectuais, artísticos e filosóficos nessa parte
do mundo chamada Europa. As populações desse continente, primeiramente,

26
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

promoveram, assistiram e reproduziram novas formas de experimentar a ciência,


a arte, a política e a vida pessoal e singular.

Podemos citar como eventos fundamentais a Reforma Protestante, ocorrida


em 1517 e que resultou numa cisão no interior da Igreja Católica; a invenção e difusão
da escrita com a prensa de Johannes Gutemberg e outras inovações técnicas; a
centralização dos Estados nacionais; uma revolução científica e filosófica, que aqui
nos interessa pela sua relação com a subjetividade–identidade; e o desenvolvimento
do capitalismo como modo de produção dominante. O período que vai dos séculos
XIV-XVIII foi repleto de grandes transformações no quadro dos povos europeus –
e, por tabela, as suas regiões de domínio colonial e econômico.

Do ponto de vista filosófico, promoveu-se uma série de transformações. Para


ilustrá-las, seguimos caracterizando o pensamento de René Descartes, Immanuel
Kant e Friedrich Nietzsche. São nomes clássicos para entender a mudança do Ser
para o Sujeito.

2.1 RENÉ DESCARTES (1596-1650) E IMMANUEL KANT


(1724-1804)
Claro que os filósofos que contribuíram para essa transformação
epistemológica são vários. Hegel, por exemplo. Descartes e Kant, por sua vez, são
pontos de referência elementares. René Descartes nasceu em Haia e é apontado
como “pai da filosofia moderna”, além de ter seu nome marcado, também, na
Matemática e na Física.

O filósofo escreveu obras influentes e referenciais, como: “O Mundo


ou Tratado da Luz” (1633), “Discurso sobre o Método” (1637) ou “Meditações
Metafísicas” (1641). De suas análises filosóficas desdobra-se a expressão “sujeito
cartesiano”, um modelo de sujeito tipicamente moderno e influenciado pelo olhar
científico.

Em “Discurso sobre o Método”, Descartes apontou seu método filosófico


e científico, rompendo com a filosofia aristotélica. Sua preocupação era apontar
as bases do conhecimento verdadeiro. O filósofo deve rejeitar aquilo que é falso.
É fundamental averiguar. Essa ideia manteve-se presente na Ciência através do
método dedutivo e da corrente “Racionalista” ou na etapa da metodologia de
pesquisa. Quer dizer, o filósofo inaugurou uma versão de ceticismo metodológico.

27
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

FIGURA 8 – RENÉ DESCARTES

FONTE: Disponível em: <http://www.filosofia.com.br/figuras/biblioteca/


Descartes.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

O ato de colocar em dúvida algo que se nomeia conhecimento fundamentou


sua noção de sujeito pensante. Este sujeito não é – em essência – o sujeito da filosofia
grega ou medieval-cristã.

É clássica sua expressão latina “Cogito, ergo sum” (Penso, logo existo). Este é
o único conhecimento confiável. Aqui surge um sujeito conectado com as mudanças
sociais desse período: singular, mas capaz da dúvida e da reflexão racional. Os
sentidos, as experiências imediatas deviam ser colocadas sob suspeição.

[...] não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele [o gênio maligno]
me engana; e, por mais que me engane, não pode fazer com que eu
nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após
ter pensado bastante nisto e de ter examinado todas as coisas, cumpre
enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo,
é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a
concebo em meu espírito (DESCARTES, 1973, p. 92).

Com Descartes, ocorre um primeiro e fundamental deslocamento à posição


do sujeito moderno. O sujeito do cogito ou o sujeito cartesiano. Este ser não se
ocupa mais da imortalidade de sua alma, mas de suas capacidades cognitivas e de
percepção: o pensamento. O sujeito moderno está atado a um universo científico
de verdades baseadas em modelos físicos ou matemáticos. É um sujeito lógico.

Essa polêmica foi continuada e criticada pelo filósofo prussiano Immanuel


Kant, autor de obras clássicas como “Crítica da Razão Pura”, “Crítica da Razão
Prática” e “Crítica do Julgamento”, essenciais para a compreensão de sua visão
filosófica. Para Kant, existem limites para a razão.

28
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

Kant (2001) é também conhecido por promover um deslocamento na


filosofia: a sua “revolução copernicana”. Em sua obra “Crítica da Razão Pura”, o
filósofo alemão desloca a questão primordial da filosofia-metafísica. A questão não
é mais sobre o que é o SER e sua essência, mas, quais as bases e possibilidades de
alcançar o conhecimento seguro a respeito das coisas.

FIGURA 9 – IMMANUEL KANT

FONTE: Disponível em: <http://citacoes.in/media/authors/immanuel-kant.jpg>.


Acesso em: 13 jun. 2017.

O resultado dessa obra estabeleceu uma potente crítica aos filósofos


empiristas (Aristóteles, Thomas Hobbes, John Locke, David Hume) e racionalistas
(Platão, René Descartes, Baruch Espinosa).

Kant se ocupou de pensar os limites e contornos do conhecimento, rompendo


com a dicotomia filosófica racionalismo x empirismo sobre o papel da razão na
conformação do ser humano. É neste sentido que promoveu uma “revolução
copernicana” na Filosofia. Quer dizer, abalou aquilo que era “tradição” filosófica.

Quando estudamos a Filosofia, nos períodos que compreendem a Idade


Antiga até a Idade Moderna (não confundir com modernidade), o Ser está no
centro das reflexões. Em torno dele orbitam os outros assuntos. Kant passou a
se preocupar com as bases e possibilidades de conhecimento, de entendimento
do mundo e das coisas. O Ser ainda está presente, mas, já numa situação mais
relacional. Trata-se de uma inversão na relação entre o sujeito e objeto que conhece.
Uma “revolução copernicana” na Filosofia. Segundo Otfried Höffe (2005, p. 45):

29
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

A revolução copernicana de Kant significa que os objetos do


conhecimento não aparecem por si mesmos, eles devem ser trazidos
à luz pelo sujeito (transcendental). Por isso eles não podem mais ser
considerados como coisas que existem em si, mas como fenômenos.
Com a mudança do fundamento da objetividade, a teoria do sujeito,
de modo que não pode mais haver uma ontologia autônoma. O mesmo
vale para a teoria do conhecimento.

E quão potente foi esse deslocamento conceitual e a descoberta da


ambiguidade do Sujeito Moderno? A filosofia kantiana colocou no centro da
reflexão o sujeito em sua relação com o mundo e não em sua “essência” primordial.

Quer dizer, na medida em que a própria sociedade, relações políticas e


científicas do século XVIII modificaram-se, a filosofia de Immanuel Kant encara o
sujeito inserido nessas transformações.

Simultaneamente, deslocou a Filosofia de uma posição metafísica para uma


posição mundana. Ao invés da Filosofia se ocupar de questões que não podem ser
fundamentadas em termos de conhecimento seguro, perdendo-se em explicações
abstratas, Kant vai buscar o posicionamento da Filosofia como uma ciência capaz
de gerar conhecimento sistemático.

2.2 FRIEDRICH NIETZSCHE E A CRÍTICA AO SUJEITO


MODERNO

FIGURA 10 – FRIEDRICH NIETZSCHE

FONTE: Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/


thumb/1/1b/Nietzsche187a.jpg/200px-Nietzsche187a.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

30
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

Em suas obras, este filósofo analisa e também critica as características


da modernidade. Ele viveu num momento de transformações sucessivas nos
cenários político, econômico, social e cultural. A sua crítica é imprescindível de
sua experiência pessoal e intelectual, possível apenas no quadro da Modernidade.
Suas questões são modernas, portanto. Ainda neste espírito de crítica, a Religião,
a Filosofia, a Ciência, o Estado ou a Democracia são duramente questionados.
Nietzsche realizou, no conjunto de suas reflexões, um diagnóstico acerca da
modernidade e de seus valores centrais, assim como realizou uma poderosa crítica.
Esse período da história é chamado de Modernität pelo alemão.

O que é a Modernidade em Nietzsche? Devemos observar o sentido de


modernidade neste autor como “civilização” ligada a heranças da moral platônico-
cristã. Isto é, da filosofia metafísica de Platão e seus discípulos e da reinterpretação
desta pelos pensadores medievais cristãos.

O filósofo foi um grande admirador da Grécia Antiga no seu período pré-


socrático, anterior ao século V a.C. Ele vê a cultura dionisíaca desse momento
grego como um exemplo superior para embasar suas críticas. Esta cultura e suas
intoxicações por vinho, as paixões corporais, o prazer nas experiências culturais
e festivas são exemplos de uma cultura vigorosa, secular, eram percebidas como
um modelo de futuro diante do cenário filosófico moderno traçado por Nietzsche.
Tomando a história, essa decadência tem início a partir de Sócrates, continuando
no Cristianismo e nos valores da Modernidade. Em sua visão crítica, os valores
modernos levam o indivíduo ao desassossego. Tais valores vinculavam-se ao
status quo dominante do período em que viveu. Para Nietzsche (1986), todo o nosso
mundo moderno se encontra preso na rede da cultura alexandrina e possui como
ideal o homem teórico, equipado com as mais altas capacidades de conhecimento,
trabalhando ao serviço da ciência. Esse homem do passado, no fundo é bibliotecário
e revisor, tornando-se miseravelmente cego com a poeira dos livros e os erros de
impressão.

Quer dizer, ele percebia as bases filosóficas propostas por Sócrates ou


Platão como castradoras, limitadoras das capacidades dos indivíduos, ao passo
que apontou modelos de domínio das paixões e desejos humanos. Essas filosofias
refreavam o indivíduo, sendo que esta ideia foi apropriada e radicalizada pelo
cristianismo.

E em que sentido essas reflexões e críticas de Friedrich Nietzsche nos


auxiliam a compreender o quadro geral das mudanças identitárias? Em suas
críticas a respeito dos valores da modernidade, o filósofo apontava que o “sujeito”
era uma ilusão projetiva sua no exterior voltada à sua autopreservação. Esta ilusão
era formulada em termos de essência, de unidade, de permanência e estabilidade.
Trata-se da visão metafísica do “Ser” grego, conforme discutimos anteriormente
no Tópico 1. A metafísica tratou de dividir o mundo em dois: o real e o sensível.

E daí, claro, esta visão está articulada com suas críticas à Ciência, ao Estado, a
essa necessidade de controle e previsão dos fenômenos e dos sujeitos. A modernidade
de Nietzsche era aquela que confundia conquistas culturais com progresso geral.
31
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Estimulada pela Razão, essa modernidade fez as pessoas assimilarem esses valores
como questões de liberdade ou felicidade. A Ciência era vista como pretensiosa
e arrogante, cuja especialização levou à pobreza das epistemologias; na política,
ideologias como a socialista anulavam as bases de uma hierarquia meritocrática.
Esse contexto moderno indicado por Friedrich Nietzsche colocava o indivíduo de
joelhos, enfraquecia suas capacidades. Esse cenário levava o indivíduo à confusão, ao
equívoco intelectual. Em suma, ao invés de afirmar as potências humanas criativas, a
Modernidade “secou” o sujeito, tornando-o “rebanho”.

3 O SUJEITO É SOCIAL: O SUJEITO SOCIOLÓGICO


Stuart Hall (2015) indicou três concepções principais que podem nos dizer algo
sobre a identidade. Para Hall, a primeira concepção importante de identidade é aquela
surgida no seio do Renascimento e Iluminismo europeu, cuja estrutura era marcada
pela ideia de um sujeito centrado e dotado das capacidades da razão e da consciência,
de tipo cartesiano. É aquilo que vimos no item anterior ao abordarmos a subjetividade.

Outra concepção foi chamada de “sujeito sociológico”, onde a identidade é


formada na interação entre o eu e a sociedade, esta última cada vez mais complexa.
Essa perspectiva reafirmou o “diálogo contínuo” entre mundos culturais exteriores
e as identidades que esses mundos oferecem (2015, p. 11). E, por fim, o “sujeito pós-
moderno”, cuja identidade não é fixa, essencial ou permanente, sendo formada e
transformada continuamente. Este é o sujeito descentrado e fragmentado, onde a
identidade é algo contraditório.

FIGURA 11 – SOMOS SUJEITOS SOCIAIS

FONTE: Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/-sJ8fkyduXCw/VSwp14LyNeI/


AAAAAAAACRg/dVDU8QJ7StQ/s1600/images.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

32
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

Vamos aprofundar a compreensão sobre o Sujeito Sociológico apontado


por Stuart Hall? No ambiente de revoluções constantes iniciadas na ciência,
filosofia e outras formas modernas de vida, ganhou peso o interesse nas interações
sociais. Este debate pode ser localizado em autores da Escola de Chicago e do
Interacionismo Simbólico.

Segundo Alain Coulon (1995), a Escola de Chicago foi fundamental na


reorientação do sujeito, centrando-se na ação social do indivíduo. Procuravam
compreender os problemas sociais decorrentes da industrialização e da urbanização
do início do século XX nos EUA.

Na “Escola de Chicago” foram formadas as bases do Interacionismo


Simbólico. Tal corrente começou a se delinear entre os anos 1930 e 1940, e desenvolveu-
se no transcurso das duas décadas seguintes entre as Escolas de Chicago e de Iowa,
ambas nos EUA. O nome dessa linha de pesquisa sociopsicológica e sociológica
foi cunhado em 1937 por Herbert Blumer, que estabeleceu os pressupostos da
abordagem interacionista (CARVALHO; BORGES; RÊGO, 2010).

Como definir o que é o Interacionismo Simbólico? Como se pode perceber


pela sua designação, está orientado a refletir sobre a interação humana. Em torno da
interação, ainda, discute os seus significados, isto é, a dimensão simbólica e social
dessas interações entre indivíduos, entre grupos, entre diferentes identidades.
Para dois autores elementares dessa corrente – George Mead e Herbert Blumer
–, o significado é produto de relações e das atividades sociais desenvolvidas na
interação entre os indivíduos.

Na perspectiva interacionista, o significado da ação humana não deve vir


do pesquisador, que deve esforçar-se para ver o significado da ação segundo aquele
que age. O Interacionismo visa a compreensão de como os indivíduos interpretam
os objetos, os gestos, as pessoas nas situações em que interagem.

Após a Escola de Chicago e o Interacionismo Simbólico, argumentar,


refletir e analisar questões ligadas às identidades passam a sair do campo da
Filosofia e Metafísica, voltando-se para fenômenos materiais e subjetivos das
dinâmicas sociais. Depois dessa contribuição decisiva, conceitos como “papéis
sociais”, “trajetória”, “narrativa biográfica”, interação social se tornam recursos
teóricos disponíveis para pensar de maneira complexa a identidade. Reforçou-se a
ideia de que a identidade envolve processos e contextos sociais localizados, quer
dizer, ancorados na experiência da vida de quem se pergunta sobre a identidade.
O indivíduo moderno está “descentrado”, porém, inserido em um contexto social
dentro de um tempo e espaço. Então, neste caminho, essa visão de identidade
processual e não essencial contribui para uma visão menos “instintiva”, quer dizer,
que a identidade nasce já com a gente para ser observador como fonte de conflito,
tensão, negociação e exclusão.

Bem, mas não é só isso. Os indivíduos estão localizados em tempos e


espaços que precisam ser observados para entender os comportamentos sociais.
Não existe uma forma “única” ou padrão de respostas sociais. Existem tendências
33
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

sociais de respostas a determinadas formas de interação e que mudam ao longo


da história e da própria geografia dos povos. As interações dependem da maneira
como as sociedades se estruturam.

4 A MODERNIDADE
Como definir a Modernidade? Quais suas características e mudanças que
estimulou? E de que maneira os efeitos da Modernidade têm impactado a produção
social das identidades nas sociedades contemporâneas?

Segundo Feres Júnior (2010), o primeiro uso do termo latino “modernus”


que se conhece foi utilizado na Epistolae pontificum de Gelasius, do ano 494 da era
cristã. Mas foi apenas em 1830, com Charles Baudelaire, que o termo modernidade
passa a ser usado no sentido de tempo presente transitório, que está destinado a
ser superado por um futuro (FERES JÚNIOR, 2010). De maneira geral, a partir
da leitura do verbete “Moderno”, de Hans Ulrich Gumbrecht (1978 apud FERES
JÚNIOR, 2010, p. 31), podem ser identificados três significados básicos:

O primeiro significado é simplesmente “presente”, em oposição


a “anterior” ou “prévio”, e foi usado dentro de tradições
institucionalizadas onde tendências se sucedem temporalmente. O
segundo significado é de “novo” em oposição a “velho”: nesse caso já
se tem o embrião de uma consciência epocal onde moderno define um
espaço de experiência presente que se quer distinto do passado. Esse uso
geralmente está ligado a um esquema temporal mais ou menos explícito
de hierarquização das eras, ou seja, é fortemente valorativo. Por fim,
temos o significado de “período transitório”, em oposição ao eterno.
Nessa versão, moderno designa um presente que é experimentado
como fluxo temporal contínuo e veloz que, como tal, só pode ser oposto
ao eterno, qual inamovível.

Assim, a percepção da mudança histórica não é nova. Mas a Modernidade


aos poucos foi radicalizando essa percepção. Essa consciência foi apontada por
Charles Baudelaire (1996, p. 25), para quem a modernidade “é o transitório,
o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e
o imutável”. Baudelaire, neste sentido, escreveu que o mundo de sua época se
distinguia do antigo pelo fato de se abrir ao futuro, cujo “novo repete-se e
perpetua-se a cada momento do presente, o qual a partir de si gera o que é novo”
(BAUDELAIRE, 1996, p. 18).

Além disso, como apontou Octávio Paz, “a modernidade é um conceito


exclusivamente ocidental e não aparece em nenhuma outra civilização” (1984, p.
43). Complementando com a reflexão de Anthony Giddens (1991), essa ideia de
um contraste com a tradição antiga é intimamente ligada à ideia de modernidade.

De uma forma geral, a Modernidade produziu efeitos dramáticos ao redor


do globo, a partir de alguns aspectos centrais, apontados por Piotr Sztompka (1998):
a emancipação do indivíduo; a diferenciação social, especialmente através do
34
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

trabalho e da posse dos meios de produção; a racionalidade enquanto ampliação


da burocracia e dos métodos racionais de acumulação de capital; o economicismo,
em que a vida social passa a orientar o conjunto da sociedade, ao invés da religião,
por exemplo; e, por último, a expansão, materializada na globalização. Com isso,
acontecem modificações coletivas e individuais de base política, material e psicológica,
correlatas com a ascensão do modo de vida urbano, a degradação ambiental e a
massificação das experiências sociais. As bases culturais das sociedades sofreram
impactos desestruturantes e reestruturantes: ainda em Sztompka (1998), pode-se
indicar “a secularização das pessoas e sociedades; a democratização da educação e
ciência e o surgimento da cultura de massas” (p. 142).

FIGURA 12 – OS TEMPOS MODERNOS E A TÉCNICA

FONTE: Disponível em: <https://estudos.gospelmais.com.br/files/2015/10/tm.jpg>. Acesso


em: 13 jun. 2017.

Marshal Berman, na obra “Tudo o que é sólido desmancha no ar” (1986),


divide a Modernidade em três momentos. A primeira teve início no século XVI,
durando até o século XVIII. É quando ocorrem as descobertas da América, os
caminhos para as Índias e a Revolução Industrial. Ainda, é o momento em que
são conformados os estados modernos centralizados. O segundo período é o
desdobramento da Revolução Francesa, numa ênfase política e social. Por fim, o
terceiro momento é o da modernização, isto é, da circulação mundial da ideia e
percepção de se viver na Modernidade.

35
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

FIGURA 13 – MAX WEBER

FONTE: Disponível em: <http://www.mundociencia.com.br/wp-content/


uploads/2016/07/maxweber.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

A Modernidade acompanha as primeiras reflexões sociológicas. Max Weber


observou sua época e os efeitos da Modernidade, realizando uma grande análise
de seus impactos nas instituições. O que foi a Modernidade, segundo Weber? Para
Weber, a racionalização foi a marca original do Ocidente nesse período moderno.
Weber argumenta em torno da ideia de desencantamento e “desmagificação” do
mundo pela ciência e as engrenagens da racionalidade como características da
Modernidade Ocidental, quer dizer: “os valores do mundo foram racionalizados e
sublimados em termos de suas próprias leis” (WEBER, 1982, p. 274).

Significa principalmente, portanto, que não há forças misteriosas


incalculáveis, mas que podemos, em princípio, dominar todas as
coisas pelo cálculo. Isto significa que o mundo foi desencantado. Já não
precisamos recorrer aos meios mágicos para dominar ou implorar aos
espíritos, como fazia o selvagem, para quem esses poderes misteriosos
existiam. Os meios técnicos e os cálculos realizam o serviço (WEBER,
1982, p. 165).

A Ciência ocidental moderna teve grande papel nessa desmagnificação


do mundo. Ela tornou as explicações racionais, lógicas, possíveis de verificação
e demonstração, dando pouco lugar para as explicações místicas, sobrenaturais,
religiosas. Da mesma forma, para Weber, outra característica de Modernidade é o
Estado Moderno, isto é, burocrático, racional. Weber percebeu o Estado como um

36
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional e que procurou


monopolizar, nos limites de domínio e que, tendo esse objetivo, reuniu nas mãos
dos dirigentes os meios materiais de gestão (WEBER, 1982).

Karl Marx, apesar de não ser um sociólogo de formação, é tomado como


um de seus fundadores. Quais as características da Modernidade e como as críticas
marxistas levaram a novos olhares sobre o tema da identidade? Marx foi um
indivíduo típico de sua época e seu pensamento englobou a Política, a Economia,
Filosofia e História. Ele faz, portanto, a despeito de sua crítica, uma análise em
termos filosóficos e políticos com base na modernidade. Qual a essência da análise
feita por Karl Marx sobre a Modernidade?

FIGURA 14 – KARL MARX

FONTE: Disponível em: <http://www.infoescola.com/wp-content/


uploads/2010/07/karl_marx.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

Marx observa diversos fenômenos para sua investigação sobre a


Modernidade. Mas, num grande exercício de síntese, esta época está interligada
à ascensão da classe burguesa e do modo de produção capitalista a partir da
implosão do passado. Marx é moderno no sentido de empregar o materialismo
histórico na análise dos fenômenos sociais, inserindo as pessoas nas dinâmicas
dos processos sociais. Com o materialismo dialético, realizou uma crítica sobre as
mudanças macroestruturais através das contradições.

A explicação de Marx a partir do materialismo considera o capitalismo um


modo de produção moldado na época moderna, dando origem a uma divisão de
classes. Essa divisão, para Marx, está fundamentada na posse ou não dos meios de
37
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

produção capitalistas, quer dizer, patrão e operário. Para Marx, essas contradições
eram características da modernidade.

Sua originalidade encontra-se nas bases materiais de sua filosofia. Como


dissemos antes, a filosofia de base grega e medieval percebia o sujeito a partir
de uma cisão entre ser real e ser mental. No caso dessas perspectivas, o homem
ideal deve ser buscado nessa dimensão mental. Com Marx, as bases tornam-se
localizadas na História, através de sua definição e análise do modo de produção.
Essa sua visão deve-se, em termos, à importância de sua valorização da História.
Essa noção contemporânea de fluidez, de liquidez inerentemente moderna já
estava no pensamento de Marx. Veja o que ele escreveu – junto com Engels – no
Manifesto do Partido Comunista: “[...] tudo o que é sólido e estável se volatiliza,
tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar
com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas”
(MARX; ENGELS, 2005, p. 69).

4.1 VISÕES CONTEMPORÂNEAS SOBRE A MODERNIDADE


NAS CIÊNCIAS SOCIAIS
Como alguns autores atuais das Ciências Sociais pensam a modernidade?
Vamos comparar algumas análises de Anthony Giddens, Alain Touraine,
Boaventura de Sousa Santos e Jürgen Habermas.

4.1.1 Anthony Giddens

FIGURA 15 – ANTHONY GIDDENS

FONTE: Disponível em: <https://i.ytimg.com/vi/uT3GD0nVS3Y/hqdefault.


jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

38
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

Anthony Giddens é um sociólogo britânico nascido em Londres em 1938.


Conhecido mundialmente pela sua Teoria da Estruturação, ocupa-se da ação
social, do agente, da capacidade de agência. É renomado pelas suas análises das
mudanças institucionais da modernidade e seus impactos no agente. Autor de
obras importantes, como A Constituição da Sociedade (1984), As Consequências
da Modernidade (1990), Modernidade e Identidade (1991). Sobre a modernidade,
afirma Giddens (2002, p. 21):

[...] o termo "modernidade" num sentido muito geral para referir-me


às instituições e modos de comportamento estabelecidos pela primeira
vez na Europa depois do feudalismo, mas que no século XX se tornaram
mundiais em seu impacto. A "modernidade" pode ser entendida como
aproximadamente equivalente ao "mundo industrializado", desde que se
reconheça que o industrialismo não é sua única dimensão institucional.

Giddens discorre sobre as consequências da Modernidade, que estariam


se tornando mais radicalizadas e universais como nunca antes. Os modos de vida
estimulados pelas forças da Modernidade desvencilharam os indivíduos e grupos
sociais de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira inédita, sem
precedentes. Além disso, a modernidade produz certas formas sociais distintas,
das quais “a mais importante é o estado-nação” (2002, p. 21).

A modernidade altera radicalmente a natureza da vida social cotidiana


e afeta os aspectos mais pessoais de nossa existência. É aquela situação: a crise
econômica europeia de nossa época não afeta apenas a vida de um europeu.
Em razão da conexão entre as diversas partes do globo, lugares centrais ou
periféricos são atingidos, mesmo que em diferentes proporções. As transformações
introduzidas pelas instituições modernas se entrelaçam de maneira direta com a
vida individual e, portanto, com o eu.

[...] surgimento de novos mecanismos de autoidentidade que são


constituídos pelas instituições da modernidade, mas que também
as constituem. O eu não é uma entidade passiva, determinada por
influências externas; ao forjar suas autoidentidades, independente
de quão locais sejam os contextos específicos da ação, os indivíduos
contribuem para (e promovem diretamente) as influências sociais
que são globais em suas consequências e implicações. [...] o eu, como
os contextos institucionais mais amplos em que existe, tem que ser
construído reflexivamente (GIDDENS, 2002, p. 9-11).

Segundo Anthony Giddens (2002), a Modernidade tem produzido


descontinuidades sociais, culturais, temporais, econômicas etc. Tais
descontinuidades seriam a própria base da Modernidade. Nesses processos, ideias
como “lugar” e “espaço” são gradualmente destruídas por um cada vez maior
conceito de tempo universal. O resultado é o desencaixe do “espaço-tempo”,
representando mecanismos que deslocam as relações sociais de seus lugares
específicos, recombinando-as através de grandes distâncias no tempo e no espaço.
As interações sociais são separadas das particularidades do lugar. Quer dizer, o
local está cada vez mais subordinado às dinâmicas do global.

39
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

No caminho da reflexão de Giddens, quais os impactos da Modernidade


sobre as identidades? Nas suas obras, Giddens aponta a reflexividade da vida
social específica da modernidade, estando essa na própria base da reprodução do
sistema. Esta indicaria que “as práticas sociais são constantemente examinadas e
reformadas à luz da informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando
assim constitutivamente seu caráter”. Num sentido mais direto, a reflexividade
institucionaliza “o princípio da dúvida radical e insiste em que todo conhecimento
tome a forma de hipótese” (GIDDENS, 1991, p. 10), isto é, seja verificado,
examinado, testado.

4.1.2 Alain Touraine

FIGURA 16 – ALAIN TOURAINE

FONTE: Disponível em: <http://www.larousse.fr/encyclopedie/data/images/1005598-


Alain_Touraine.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

Alain Touraine é um sociólogo francês conhecido pela sua reflexão sobre o


sujeito e os movimentos sociais na atualidade. Pensador influente no cenário das
Ciências Sociais latino-americanas, é autor de obras importantes, como “Crítica da
Modernidade”, publicada em 1992; “Iguais e Diferentes: podemos viver juntos”,
de 1997, e “Pensar Outramente o discurso dominante”, lançado em 2007.

Para o sociólogo francês Alain Touraine (1994), a modernidade é a difusão


dos produtos da atividade racional, científica, tecnológica, administrativa. Por isso,

40
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

ela implica a crescente diferenciação dos diversos setores da vida social: política,
economia, vida familiar, religião, arte em particular, porque a racionalidade
instrumental se exerce no interior de um tipo de atividade e exclui que qualquer
um deles seja organizado do exterior. A modernidade era uma ideia, ela se torna
por acréscimo uma vontade, mas sem que seja rompido o vínculo entre a ação dos
homens e as leis da natureza e da história.

A passagem para a modernidade não é a da subjetividade para a


objetividade, da ação centrada sobre si para a ação impessoal, técnica ou
burocrática. Ela conduz, da adaptação ao mundo para a construção de
mundos novos, da razão que descobre as ideias eternas para a ação que,
racionalizando o mundo, liberta o sujeito e o recompõe (TOURAINE,
1994, p. 243)

Touraine (2006) deixa claros dois princípios da Modernidade: a crença


na razão e ação racional e o reconhecimento dos direitos individuais. Estes
princípios dão fundamentos não sociais aos fatos sociais. O que isso quer dizer?
Ao contrário de retirar o homem da escuridão, da crença, da ignorância, levou
este a novos paradoxos, ofuscando e jogando-o à multidão fragmentada, de busca
pelo lucro e consumo. Ao invés de Deus, a Ciência tornou-se novo dogma, uma
“nova metafísica”. O Taylorismo foi um exemplo. Sobre a crise da modernidade,
Touraine (2008, p. 106-107) diz:

[...] O mais visível é a dissociação entre a ordem da mudança e a


ordem do ser, associados anteriormente na ideia de modernidade
que significava ao mesmo tempo nacionalidade e individualismo.
A distância cresce entre as mudanças incessantes da produção e do
consumo e o reconhecimento de uma personalidade individual que é ao
mesmo tempo sexualidade e identidade cultural coletiva.

Desta forma, Touraine é um autor bastante crítico em relação à Modernidade


e suas promessas. Na época atual, de radicalização das mudanças no espaço e
tempo, o próprio indivíduo é afetado, perdido no consumo e numa identidade
frágil e esvaziada, enquanto o sujeito toma a forma coletiva, de movimentos.

4.1.3 Boaventura de Sousa Santos


Boaventura de Sousa Santos é um sociólogo português nascido em Coimbra
em 1940. Autor de escrita portuguesa com grande penetração nas Ciências Sociais
e no Direito na África, América Latina e Europa. Sua vasta reflexão aborda temas
variados, como a modernidade, a globalização, os Direitos Humanos, o Direito e
a Democracia.

41
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

FIGURA 17 – BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

FONTE: Disponível em: <http://nesp.pucminas.br/wp-content/uploads/2016/11/


boaventura-c04e-300x189.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

Este sociólogo desenvolveu uma crítica da Modernidade e de seus efeitos.


Aqui, novamente, temos o predomínio de uma Ciência e de uma racionalidade
instrumental que diminui a complexidade dos fenômenos sociais. A razão sempre
agiu como se fosse “neutra”, porém, ela tinha um caráter eurocêntrico. É neste
sentido que Boaventura de Sousa Santos fala em pós-modernidade, como um
novo e emergente paradigma em substituição ao paradigma técnico e científico da
Modernidade.

Essa hegemonia da técnica e da ciência trouxe impactos para as pessoas


e, consequentemente, para a produção social das identidades e da diferença.
Conforme o sociólogo, “como é que a ciência moderna, em vez de erradicar os
riscos, as opacidades, as violências e as ignorâncias, que dantes eram associadas
à pré-modernidade, está de facto [sic] a recriá-los numa forma hipermoderna?”
(SANTOS, 2005 p. 58).

Nosso modelo de Modernidade ocidental teve início, segundo Santos, entre


os séculos XVI e XVII, herdado das Ciências Naturais. As explicações sociais, assim,
tinham métodos que eram baseados na Física, na Química, na Matemática etc. Ao
longo do século XIX, esse modelo estende-se para os demais cantos do planeta,
promovendo “ambicioso e revolucionário paradigma sociocultural assente numa
tensão dinâmica entre regulação social e emancipação social” (SANTOS, 2000, p. 15).

O que é essa “tensão dinâmica” entre regulação social e emancipação


social? É que para Santos a nossa sociedade contemporânea, formada pelos
princípios da Modernidade, foi fundada em torno desses dois pilares, como o
sociólogo português os chama. Santos (2005) explica assim esta divisão. O pilar
da regulação é aquele ligado ao Estado, ao mercado e à comunidade. O pilar da
emancipação está dividido na racionalidade estético-expressiva presente na arte;

42
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

na racionalidade prática-moral da ética e do direito; e na racionalidade cognitivo-


instrumental, vinculada à ciência e à técnica. É quando ascende a visão do ser
humano como um sujeito ativo.

Para Boaventura de Sousa Santos (2005), essas duas dimensões da sociedade


moderna demandam o equilíbrio, já que elas se relacionam entre si. Porém, a nossa
época assiste ao “colapso da emancipação”, devido a “hipercientificização do pilar
da emancipação” em detrimento da regulação. Isso tem um impacto direto na
produção das nossas identidades. Um dos maiores impactos foi a consolidação do
individualismo e de um mal-estar social, com a diminuição da cidadania.

4.1.4 Jürgen Habermas


Jürgen Habermas nasceu em 1929. É um filósofo alemão pertencente à
teoria crítica e à Escola de Frankfurt. Dentre sua produção teórica destaca-se a
existência de uma esfera pública voltada ao agir comunicativo entre cidadãos, na
sua Teoria da Ação Comunicativa. É autor de obras fundamentais, como “Técnica
e ciência como ‘ideologia”, de 1968, e seu clássico “Teoria da Ação Comunicativa”,
publicado em 1981; e “O Discurso Filosófico da Modernidade”, lançado em 1985.

FIGURA 18 – JÜRGEN HABERMAS

FONTE: Disponível em: <http://gfx.dagbladet.no/pub/artikkel/4/45/450/4505


81/habermas.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

43
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Em sua obra, Habermas fala da Modernidade como um projeto. E mais,


um projeto inacabado. Para o autor, a Modernidade incorpora eventos como a
Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Esses eventos dão
início à modernidade europeia.

Abrange, assim, as transformações ocorridas no “Ocidente” nas várias


dimensões da vida em sociedade entre os séculos XVIII-XX. Com base nesses
processos, os filósofos, intelectuais e cientistas promoveram nesse período um salto
nas ciências, ao mesmo tempo em que estimularam uma noção de ética universal
e não particular de uma única sociedade (mesmo que, no fim, estas reforçavam
a visão do mundo a partir de um olhar europeu). Essa perspectiva de Aufklärung
(Iluminismo) propunha a ciência em benefício da organização racional da vida e
da liberdade (HABERMAS, 2002).

A Modernidade de Habermas refere-se às mudanças e novas formações


sociais específicas desses tempos modernos. É quando fica mais observável
a existência de uma “consciência” acerca das diferenças com o passado e sua
história, instituições e mentalidades. Mais importante, ainda, a Modernidade está
fortemente apegada à centralidade que a Razão ocupou nesses séculos passados e
a sua promessa de futuro glorioso para as civilizações.

É a Razão – racionalidade ocidental que representa a Modernidade.


Além disso, os princípios da ciência moderna estavam sendo estruturados para
servir de instrumentos conceituais voltados ao controle e domínio da natureza.
Isso resultou na ampliação do poder das forças produtivas pela via do progresso
técnico (HABERMAS, 1968).

Para compreender com mais propriedades a racionalização constante no


projeto da Modernidade, Habermas utiliza-se de dois conceitos que auxiliam na
definição e diferenciação da sociedade: “sistema” e “mundo da vida”. O sistema
indica uma complementaridade com o mundo vivido, ligando-se às maneiras e
formas de reprodução da vida material, isto é, ao trabalho, dinheiro, o poder etc.
Nele, predomina a razão instrumental, técnica. Já o mundo vivido é a maneira como
nós percebemos a realidade, a existência individual e comum. Aqui, predomina a
razão comunicativa.

Esses dois conceitos indicariam as dinâmicas de integração nos diferentes


contextos de ação social: pela via sistêmica e pela via social. A grande questão
é que a Modernidade criou uma disjunção entre sistema e mundo da vida, e é
em torno disso que Habermas constrói sua Teoria da Ação Comunicativa. Com a
predominância da economia e do Estado, ocorreu que a “razão instrumental” se
tornou hegemônica, balizando as relações sociais. Ele fala em desengate do sistema
e do mundo da vida. A eficácia torna-se um fim em si próprio, desvinculado de
qualquer contexto. Desta maneira, as forças econômicas e do Estado parecem ser
naturais. A Razão deixa de ser instrumento de crítica para se tornar um poder e
uma maneira de acumulação de capitais.

44
TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE

LEITURA COMPLEMENTAR

RESPOSTA À PERGUNTA: “QUE É O ILUMINISMO?” (1784)

Immanuel Kant (trecho)

lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio


é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a
orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não
residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em
se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te
servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.

A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte,


após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio (naturaliter maiorennes)
continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a
outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor.
Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que
em vez de mim tem consciência moral, um médico que por mim decide da dieta
etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando
posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida.
Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera
a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de
bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles. Depois de terem,
primeiro, embrutecido os seus animais domésticos e evitado cuidadosamente que
estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as
encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar
sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois acabariam por aprender
muito bem a andar. Só que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante
todas as tentativas ulteriores.

É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele


se tomou quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente
incapaz de se servir do seu próprio entendimento, porque nunca se lhe permitiu
fazer semelhante tentativa. Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso
racional, ou antes, do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma
menoridade perpétua. Mesmo quem deles se soltasse só daria um salto inseguro
sobre o mais pequeno fosso, porque não está habituado ao movimento livre. São,
pois, muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu
espírito arrancar-se à menoridade e encetar então um andamento seguro.

Mas é perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça. Mais


ainda, é quase inevitável, se para tal lhe for concedida a liberdade. Sempre haverá,
de facto, alguns que pensam por si, mesmo entre os tutores estabelecidos da grande
massa que, após terem arrojado de si o jugo da menoridade, espalharão à sua volta
o espírito de uma estimativa racional do próprio valor e da vocação de cada homem
para pensar por si mesmo. Importante aqui é que o público, antes por eles sujeito

45
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

a este jugo, os obriga doravante a permanecer sob ele quando por alguns dos seus
tutores, pessoalmente incapazes de qualquer ilustração, é a isso incitado. Semear
preconceitos é muito danoso, porque acabam por se vingar dos que pessoalmente,
ou os seus predecessores, foram os seus autores. Por conseguinte, um público só
muito lentamente consegue chegar à ilustração. Por meio de uma revolução talvez
se possa levar a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa
ou dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Novos
preconceitos, justamente como os antigos, servirão de rédeas à grande massa
destituída de pensamento.

[...]

FONTE: KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o iluminismo? In: A paz perpétua e outros
opúsculos, Lisboa, Edições 70, 1990. Disponível em: <http://www.uel.br/cch/his/arqdoc/kantPDEHIS.
pdf>. Acesso em: 20 jun. 2017.

46
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• Que a ideia de sujeito moderno está articulada e imbricada com a ideia de


um sujeito da linguagem, de discurso, que questiona. São categorias ligadas à
Modernidade e sua reflexão sobre o mundo de maneira distinta que os povos
antigos. Vimos que gregos, romanos, europeus da Idade Média constroem
suas visões de identidade a partir de fundamentações filosóficas, religiosas e
comunitárias. Não se fala em sujeito nesses períodos, e sim, em “Ser”. O sujeito
é uma invenção moderna.

• Descartes e Kant mudaram essa percepção. Ao passo que para Descartes o sujeito
é aquele que pensa (Cogito ergo sum) e que suspeita das fraudes e conhecimentos
falsos, Kant se preocupa com as bases e possibilidades de conhecimento, de
entendimento do mundo e das coisas.

• Por sua vez, Nietzsche analisa e também critica as características da modernidade.


Ele viveu num momento de transformações sucessivas nos cenários político,
econômico, social e cultural. Ainda que tenha realizado fortes críticas ao
sentido e aos valores modernos, Nietzsche não é necessariamente um filósofo
antimoderno.

• Que a percepção da mudança histórica não é nova. Mas a Modernidade aos


poucos foi radicalizando essa percepção.

• Que o sujeito passou a ser questionado pela filosofia e pelas nascentes Ciências
Sociais, promovendo análises e críticas tendo a Modernidade como um elemento
importante nas transformações. Disso, pode-se indicar a Escola de Chicago e o
Interacionismo Simbólico.

• A Sociologia e a Modernidade se confundem, pois a primeira é um resultado


direto do derretimento da ordem pós-tradicional pelo “calor” da luz da
Modernidade.

• A Modernidade tornou-se um objeto de interesse e investigação muito presente


nas Ciências Sociais. Tratamos da modernidade segundo Alain Touraine,
Anthony Giddens, Boaventura de Sousa Santos e Jürgen Habermas.

47
AUTOATIVIDADE

1 O que é etnocentrismo e eurocentrismo?

2 Qual a contribuição do Interacionismo simbólico para os estudos das relações


sociais e das identidades sociais?

3 Quais as distinções entre as análises filosóficas de Immanuel Kant e Friedrich


Nietzsche sobre a Modernidade?

48
UNIDADE 1
TÓPICO 3

IDENTIDADES NA
CONTEMPORANEIDADE

1 INTRODUÇÃO
No tópico anterior, discutimos alguns eventos de caráter social que
preenchem nosso passado e que foram relevantes num contexto de investigação
sobre a produção de identidades sociais.

Contribuíram para a precipitação da modernidade algumas revoluções


nos padrões pessoais (processo civilizador), na centralização dos poderes militar,
político e administrativo em torno do Estado e nas revoluções religiosas, científicas
e filosóficas. Tais momentos estão ali, registrados como história do século XIV até
o século XVIII. Foram intensos e puseram em destaque uma percepção de que
algo novo, moderno, como distinto de um passado, estava se desenrolando. Numa
figura de linguagem, era possível “sentir” e “enxergar” a Modernidade ocorrendo.

FIGURA 19 – IDENTIDADE E DIFERENÇA

FONTE: Disponível em: <https://sjmachado.files.wordpress.com/2013/05/21.jpg>.


Acesso em: 13 jun. 2017.

49
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

O mundo de hoje, no qual somos tanto atores quanto espectadores,


definitivamente é único. Neste sentido, uma marca de nossa época é a crítica de
conceitos herdados do século XIX ou XX. Neste cenário, a identidade se torna
uma produção social plural, conflituosa e amparada na diferença. Em seguida,
veremos o impacto da pós-modernidade ou da radicalidade da Modernidade
nos paradigmas clássicos das Ciências Sociais. Depois, discute-se os efeitos da
globalização na produção das identidades. Por fim, apresentamos a Teoria do
Reconhecimento.

Vamos lá?

2 A PRODUÇÃO SOCIAL DAS IDENTIDADES E DAS


DIFERENÇAS NA PÓS-MODERNIDADE
Quando falamos em identidade, logo vem à mente nosso documento,
também conhecido como RG. Este documento é aquele que você precisa ter
nas mãos sempre que for solicitado para abrir contas bancárias, acessar direitos
sociais, relacionar-se com seus empregadores ou fazer uma compra. De certo
ponto de vista, aquele documento, ao ser mostrado, diz que nós somos cidadãos.
E brasileiros. É dessa identidade que estamos tratando?

FIGURA 20 – AS DIFERENÇAS SÃO SOCIALMENTE CONSTRUÍDAS

FONTE: Disponível em: <https://antropomecanica.files.wordpress.com/2013/05/diferenca_


cultural.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017.

Ou será que identidade é aquilo que está “dentro” de nós, nossa essência
individual que faz sermos o que somos? Quer dizer, a nossa individualidade

50
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

e subjetividade? Aquela que a gente leva a um consultório de um psicólogo


ou psiquiatra para ser “tratada” e curada? Ainda, a identidade é aquilo que
externamente indicamos? Minha cor de pele, olhos? As roupas, objetos e marcas
que levamos?

Como, então, perceber as identidades num contexto pós-moderno? Por


nossos dias, as identidades são percebidas como diversas, mutáveis e relacionadas
ao contexto social em que são vividas em relação aos sistemas simbólicos e
classificatórios onde são encontrados sentidos para as posições sociais dos sujeitos
(HALL, 2010). Neste sentido, a identidade pós-moderna, aquela vinculada à
sua ideia de “sujeito pós-moderno”, não tem uma identidade fixa, essencial
ou permanente, sendo formada e transformada continuamente. A identidade
resultante dessa época, de um sujeito filosoficamente abalado e questionado, é a
de um sujeito descentrado e fragmentado, onde a identidade é algo contraditório.
Ao invés de uma identidade centrada, o atual contexto estimula as “posições-de-
identidade”, fontes para produção de identidades locais ou novas identidades, ao
longo de uma larga gama de outras diferenças. As polarizações entre elas também se
amplificam. Essas identidades possuem um “caráter político”, “caráter relacional”
e “caráter posicional”. A globalização tem o efeito de tornar essas “posições-de-
identidades” mais políticas, mais plurais e diversas, menos fixas, unificadas ou
trans-históricas (HALL, 2010).

Em toda parte estão emergindo identidades culturais que não são


fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições;
que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições
culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos
e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo
globalizado (HALL, 2006, p. 88).

As identidades pós-modernas não são unificadas, marcadas pelas


contradições no seu interior diariamente negociadas nas relações e interações
sociais. Em nossa época, “as pessoas assumem suas posições de identidade e se
identificam com elas” (WOODWARD, 2015, p. 14-15). Nossas identidades sociais
são construídas, assim como são artificiais as formas pelas quais nós as negociamos.
Desta forma, um conceito possível para entender as complexidades da identidade
é apresentado por Stuart Hall (2014) no artigo “Quem precisa de identidade?”:

Utilizo o termo identidade para significar o ponto de encontro, o ponto


de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam
nos ‘interpelar’, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos
lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado,
os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como
sujeitos aos quais se pode ‘falar’. As identidades são, pois, pontos de
apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas
constroem para nós (HALL, 2014, p. 111).

O que queremos dizer quando argumentamos que as identidades têm


origem em processos sociais de produção e diferenciação de sentidos? A produção
social e a percepção de identidades estão vinculadas às condições sociais, simbólicas
e materiais em que se inserem os indivíduos e grupos (WOODWARD, 2015).

51
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Segundo Hall (2014), a identidade envolve um trabalho discursivo em torno


do fechamento e da marcação de fronteiras simbólicas. Ela está ligada à produção
de ‘efeitos de fronteiras’. Para consolidar o processo, “ela requer aquilo que é
deixado de fora – o exterior que a constitui” (p. 106). Como assim? Para apontar o
que é ser brasileiro leva-se em conta tudo o que diz respeito ao não brasileiro, isto
é, o outro. Ser brasileiro é não ser argentino.

As identidades adquirem sentido “por meio de linguagem e dos sistemas


simbólicos pelos quais elas são representadas” (WOORWARD, 2015, p. 8). A
construção da identidade é tanto simbólica quanto social. Neste sentido, os
processos de construção identitários são relacionais, dependem de algo fora dela,
de outra identidade para poder existir e definir-se. Nessa relação a percepção da
diferença fornece as condições para que uma identidade possa existir.

[...] o processo de produção da identidade oscila entre dois movimentos:


de um lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e a estabilizar
a identidade; de outro, os processos que tendem a subvertê-la e a
desestabilizá-la. [...] tal como a linguagem, a tendência da identidade é
para a fixação. [...] A fixação é uma tendência e, ao mesmo tempo, uma
impossibilidade (SILVA, 2007, p. 85).

Um elemento importante nesse processo social de identidades é a diferença.


A produção social da identidade é marcada pela diferença, “sustentada pela
exclusão dos diferentes, sendo sustentada e reproduzida pela linguagem e por
meio de símbolos” (WOODWARD, 2015, p. 9). Isso é muito importante que você
entenda, porque, neste sentido, quando uma identidade, um grupo é marcado
como diferente, inimigo ou tabu, o efeito dessa percepção simbólica materializa-se
em efeitos reais no cotidiano.

O que é a diferença dentro desse jogo de produção e identificação que é a


identidade da gente?

Em geral, consideramos a diferença como um produto derivado da


identidade. Nesta perspectiva, a identidade é a referência, é o ponto
original relativamente ao qual se define a diferença. Isso reflete a
tendência a tomar aquilo que somos como sendo norma pela qual
descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos. [...]. Numa visão mais
radical [...] considerar a diferença não simplesmente como resultado de
um processo, mas como o processo mesmo pelo qual tanto a identidade
quanto a diferença são produzidas. [...] como ato ou processo de
diferenciação (SILVA, 2007, p. 76).

A diferença é reproduzida por meio de sistemas simbólicos. Mas a diferença


não é só cultural ou étnica. A complexidade da vida moderna exige que assumamos
diferentes identidades, que podem estar ou entrar em conflito. Assim, temos
uma identidade profissional, familiar, política, de bairro etc. Nem todas elas são
compatíveis entre si. Muitas vezes, as responsabilidades incorporadas na imagem
da identidade familiar podem se opor aos sacrifícios exigidos pelos mercados
profissionais. Quer dizer, nesse processo de identidade e diferença, algumas
diferenças são mais toleráveis que outras. Então, como perceber a diferença no
processo de produção social das identidades? Vejamos o que nos indica Kathryn
52
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

Woodward (2015, p. 40): “As identidades são fabricadas por meio da marcação da
diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos
de representação quanto por meio de formas de exclusão social. A identidade, pois,
não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença”.

Os sistemas classificatórios operam como mediadores e aplicadores dessas


distinções na vida social, ressaltados pela linguagem e cultura. Tais sistemas
encontram-se tanto nas dimensões simbólicas como sociais dos grupos humanos.
No caso da identidade, esses sistemas classificatórios têm uma missão: estabelecer,
distinguir, separar dois grupos opostos: nós-eles (WOODWARD, 2015). É nesta
perspectiva que alguns conceitos de cultura foram duramente criticados, como
veremos adiante. É na/pela cultura que esses sistemas de classificação se consolidam
e reproduzem socialmente.

Identidade e diferença podem ser vistos como atos de criação linguística:


“significa dizer que elas são criadas por meio de atos de linguagem” (SILVA, 2007,
p. 76). Para Tadeu Tomaz Silva (2007), existe uma contradição permanente na
linguagem. Para apontar essa sua hipótese, utiliza a obra de autores como Jacques
Derrida e discussões de Saussure. Especialmente, a de que o signo carrega sempre
não apenas o traço daquilo que ele substitui, mas também, o traço daquilo que ele
não é, ou seja, precisamente da diferença. Quando imaginamos o conceito casa
e escrevemos a palavra casa, você percebe as presenças e ausências vistas nesse
exemplo? Elas representam sentidos que são intercambiáveis dessas presenças que
não se concretizam plenamente. Quer dizer, entre o conceito e a palavra escrita
“casa” ocorre um processo de significação que é fundamentalmente indeterminado,
incerto e vacilante.

Este processo envolve, também, a representação. Segundo Kathryn


Woodward (2015), a representação inclui as práticas de significação e os sistemas
simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos
como sujeitos. É por meio dos significados produzidos pelas representações que
damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos.

A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece


identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais
ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: quem sou eu?
O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas
de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos
podem se posicionar e a partir dos quais podem falar (WOODWARD,
2015, p. 18).

Em suma, a produção social da identidade é um processo e uma relação


central na vida contemporânea e fundamentada na diferenciação. Muitas das
atuais classificações relevantes do mundo social estão localizadas em questões
identitárias.

Para entender esse processo contraditório entre a construção de uma


identidade e de suas diferenças, devemos considerar que o poder é um conceito
muito elementar nessa construção.

53
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem


o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados,
de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a
diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de poder. O
poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser
separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença
não são, nunca, inocentes (SILVA, 2007, p. 81).

Se dissemos que a produção social da identidade e da diferença é, também,


um tipo de relação de poder, é porque tal poder implica o acesso ao privilégio de
nomear, dividir e classificar o mundo segundo seu ponto de vista. Quem tem o
poder de classificar possui, também, o poder de hierarquizar em níveis superiores
e inferiores.

Normalizar significa eleger - arbitrariamente - uma identidade


específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades
são avaliadas e hierarquizadas. [...] A identidade normal é ‘natural’,
desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer
é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade
(SILVA, 2007, p. 84).

Além disso, segundo Kathryn Woodward (2015), algumas respostas podem


ser encontradas na arena global, por exemplo, onde existem preocupações com as
identidades nacionais e com as identidades étnicas; em um contexto mais ‘local’,
existem preocupações com a identidade pessoal, por exemplo, com as relações
pessoais e com a política sexual. Segundo a autora:

[...] a identidade importa porque existe uma crise da identidade,


globalmente, localmente, pessoalmente e politicamente. Os processos
históricos que, aparentemente, sustentavam a fixação de certas
identidades estão entrando em colapso e novas identidades estão
sendo forjadas, muitas vezes por meio da luta e da contestação política
(WOODWARD, 2015, p. 39).

Quer dizer, mais que uma crise subjetiva, só do eu, tipo uma depressão,
a autora afirma que se trata de um fenômeno social e histórico, radicalizado em
nosso período em que vivemos. E que, na maioria dos casos, essa crise possui uma
dimensão conflitiva em torno do reconhecimento.

UNI

O PODER

Bobbio, Matteucci e Pasquino (1997, p. 933), numa definição clássica de visão social e política
do poder, assim o definem:

Em seu significado mais geral, a palavra Poder designa a


capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos.
Tanto pode ser referida a indivíduos e a grupos humanos como

54
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

a objetos ou a fenômenos naturais [...]. Se o entendermos em


sentido especificamente social, ou seja, na sua relação com a
vida do homem em sociedade, o Poder torna-se mais preciso, e
seu espaço conceptual pode ir desde a capacidade geral de agir,
até a capacidade do homem em determinar o comportamento
do homem: Poder do homem sobre o homem. O homem é
não só o sujeito, mas também o objeto do Poder social. E Poder
social a capacidade que um pai tem para dar ordens a seus filhos
ou a capacidade de um Governo de dar ordens aos cidadãos.
Por outro lado, não é Poder social a capacidade de controle que
o homem tem sobre a natureza nem a utilização que faz dos
recursos naturais. Naturalmente existem relações significativas
entre o Poder sobre o homem e o Poder sobre a natureza ou
sobre as coisas inanimadas. Muitas vezes, o primeiro é condição
do segundo e vice-versa.

Podemos e devemos enxergar o poder como relacional, processual, dependente de contextos


localizados. Ele também tem a capacidade de ser poder simbólico, um tipo muito especial de
poder, segundo Pierre Bourdieu.

O poder simbólico é um poder de construção da realidade


que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido
imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe
aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer,
uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número,
da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências
(BOURDIEU, 2003, p. 9).

Foucault, em suas obras, sempre procurou constituir uma genealogia do poder. Dentre suas
reflexões, podemos apontar outro tipo especial do poder, característico da pós-modernidade,
o biopoder.

[...] essa série de fenômenos que me parece bastante importante,


a saber, o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que,
na espécie humana, constitui suas características biológicas
fundamentais, vai poder entrar numa política, numa estratégia
política, numa estratégia geral de poder. Em outras palavras,
como a sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir
do século XVIII, voltaram a levar em conta o fato biológico
fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana.
É em linhas gerais o que chamo, o que chamei, para lhe dar um
nome, de biopoder (FOUCAULT, 2008, p. 3).

A questão do poder é fundamental para a compreensão da maneira como as identidades são


socialmente construídas e a presença da diferença nessa relação social que se estabelece.

2.1 O QUE É A PÓS-MODERNIDADE?


Anthony Giddens (1991; 2002), nas suas análises sobre as dimensões
institucionais da modernidade, aponta para isso. Os modos de vida, as instituições
modernas, tudo isso se desvencilhou dos tipos tradicionais de ordem social. É
algo inédito, não encontrado em outros períodos. Quais as suas características,
segundo o autor? Para ele, tanto faz situar nosso período como alta modernidade,
modernidade tardia. Trata-se de uma radicalização dos princípios da modernidade.
E é por isso mesmo que não estaríamos numa pós-modernidade.

55
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Este período é indicado como global, permeado por interconexões que


impactam as dimensões da vida mais íntima da pessoa. Da mesma forma, essas
relações foram radicalizadas em termos de escopo das mudanças. Velozes e
permeadas pela insegurança. O espaço local, quer dizer, onde vivemos, chamamos
de nossa cidade, e não se pode viver mais, como outrora, em torno de si e de seus
vizinhos. É preciso submeter-se a poderes estatais, mas, cada vez mais, a poderes
econômicos, culturais ou políticos de origem externa, distante. Nossas relações
sociais dependem cada vez mais de “mecanismos de reencaixe” que independem
de nossa vontade. O dinheiro, as dinâmicas dos mercados de trabalho, por exemplo.

FIGURA 21 – A COMPLEXIDADE DAS DINÂMICAS E INTERAÇÕES SOCIAIS

FONTE: Disponível em: <https://arautodecristo777.files.wordpress.com/2010/10/deusnodiv2oj6.


jpg>. Acesso em: 14 jun. 2017.

Em outras palavras, nossas relações sociais são deslocadas em termos


de tempo e espaço. Nossa vida cotidiana está mais dependente de “fichas
simbólicas”, que seriam meios de intercâmbio que podem ser “circulados sem ter
em vista as características específicas dos indivíduos e dos grupos que lidam com
eles em qualquer conjuntura particular” (GIDDENS, 1991, p. 30). Mas, também,
de “sistemas peritos”, isto é, sistemas de excelência técnica ou competência
profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que
vivemos hoje, conhecimento perito.

Zygmunt Bauman (2001) tem sua famosa definição de modernidade líquida


para tratar do momento atual. A diferença está na intensificação do ritmo trazido
com a modernidade e pelo fato de que na época líquida não surgem novos “sólidos”
para que os indivíduos possam ancorar-se. Pelo contrário, a marca da época é
a fluidez, a desconfiança das tradições, rotinas, normas e grandes narrativas, a
individualização. Sem sólidos, o edifício corre o risco iminente de cair.

56
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos


disponíveis projetados para imediata obsolescência. Num mundo como
esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca
de roupa. O horror da nova situação é que todo diligente trabalho de
construção pode mostrar-se inútil; e o fascínio da nova situação, por
outro lado, se acha no fato de não estar comprometida por experiências
passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada, sempre “mantendo
as opções abertas” (BAUMAN, 1998, p. 112-113).

Neste sentido, a modernidade líquida impacta de crise todas as maneiras


que anteriormente o indivíduo utilizava para viver em condição de social. Apaga
seus mapas e referências, ou os põe em dúvidas. A economia e o capital se tornaram
transnacionais, ampliando seu poder e influência. Como contrapartida, o poder
dos Estados em questões como economia fica cada vez mais reduzido. Marcas e
produtos passam a ser fatores de distinção e marcação identitária. Ao invés das
tradições, formas como o consumo de roupas passam a ser orientadas pelos setores
criativos das empresas.

Da mesma forma, o trabalho e as relações de trabalho sofrem o impacto


da destruição dos sólidos. Terceirização, leis trabalhistas frouxas são os exemplos
encarnados dessas dinâmicas. O resultado é o enfraquecimento do poder e papel
dos sindicatos e dos trabalhadores frente ao poder sem rosto do capitalismo global
e líquido. Ao invés de trabalhador, você é um colaborador, um empreendedor,
discursos que escondem a exploração radicalizada do momento líquido.

2.1.1 A identidade na alta modernidade de Anthony


Giddens
Nossas vidas na alta modernidade de Giddens, também, dependem cada
vez mais de discursos transitórios e distantes de nossas vidas cotidianas e que
sugerem um “eu” reflexivo, ativo e empenhado em um estilo e projeto de vida
diante de um ambiente de risco e incerteza ampliado (GIDDENS, 1991; 2002).
Para o inglês, a produção de conhecimento sistemático sobre a vida social torna‑se
integrante da reprodução do sistema, deslocando a vida social da fixidez da
tradição.

Na ordem pós-tradicional da modernidade, e contra o pano de fundo


de novas formas de experiência mediada, a autoidentidade se torna um
empreendimento reflexivamente organizado. O projeto reflexivo do
eu, que consiste em manter narrativas biográficas coerentes, embora
continuamente revisadas, tem lugar no contexto de múltipla escolha
filtrada por sistemas abstratos. Na vida social moderna, a noção de
estilo de vida assume um significado particular. Quanto mais a tradição
perde seu domínio, e quanto mais a vida diária é reconstituída em
termos do jogo dialético entre o local e o global, tanto mais os indivíduos
são forçados a escolher um estilo de vida a partir de uma diversidade de
opções (GIDDENS, 2002, p. 12-13, grifo nosso).

57
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Outra característica para pensar a identidade em tempos de alta


modernidade refere-se ao conceito de “política-vida” de Giddens (1991). Trata-
se de uma política das decisões da vida (p. 198) em meio a um mundo de alta
reflexividade e impessoalidade de relações sociais. Reflexividade, como vimos,
refere-se à produção incessante de conhecimento sobre a vida e mundo trazido
para o cotidiano. Segundo o sociólogo, o conceito refere-se à “política de realização
do eu, no contexto da dialética do local e do global e do surgimento dos sistemas
internamente referidos da modernidade” (GIDDENS, 2002, p. 222).

E é nessa imbricação entre global, nacional e local que as identidades


são produzidas. Mas Giddens faz uma distinção. Ao passo que os discursos
sobre identidade assumem continuidade ao longo do tempo e do espaço: mas,
a autoidentidade é “essa identidade interpretada reflexivamente pelo agente”
(GIDDENS, 1991, p. 53). Você percebe? Se sou brasileiro, posso me imaginar e me
modelar como um brasileiro distinto, de valores e interesses diferentes. Continuo
brasileiro, mesmo pensando e agindo reflexivamente. Neste processo, posso
superar valores, ideias ou comportamentos que estão ligados ao Brasil.

Quando Giddens diz que as identidades ficam deslocalizadas ou


desterritorializadas é porque nossos repertórios identitários já não estão vinculados
ao território ou à memória social. Esses fenômenos estimulam identidades a
se desligar de sua origem para abrir-se a produtos, imagens, comportamentos,
símbolos ou práticas distribuídas em movimentos globais. A partir desses elementos
tradicionais (pertencimento a uma memória e um território, um lugar de origem),
podemos pensar em nossa biografia em termos de projeto e de autorrealização
pessoal. Em Giddens, a modernidade é uma ordem pós-tradicional em que a
pergunta sobre como devo viver precisa ser respondida em decisões (2002). Em
muitos casos, é uma questão que o indivíduo deve escolher:

No nível do eu, um componente fundamental da atividade do dia a


dia é simplesmente o da escolha. Obviamente nenhuma cultura elimina
inteiramente a escolha dos assuntos cotidianos, e todas as tradições
são efetivamente escolhas entre uma gama indeterminada de padrões
possíveis de comportamento. Mas, por definição, a tradição, ou os
hábitos estabelecidos, ordena a vida dentro de canais relativamente
fixos. A modernidade confronta o indivíduo com uma complexa
variedade de escolhas e ao mesmo tempo oferece pouca ajuda sobre as
opções que devem ser selecionadas (GIDDENS, 2002, p. 79).

A reflexividade aqui indica um monitoramento constante à luz de novas


informações sobre a nossa biografia ou estilo de vida. O que é saudável ou não para
comer, por exemplo, torna-se resultado de informações científicas transformadas
em conhecimento leigo, cotidiano. Na alta modernidade do sociólogo inglês, essa
reflexividade se estende de forma inédita ao “eu” que se torna dinâmico como
a própria época em que vive. Temos, neste sentido, cada vez mais a consciência
desse nosso “eu reflexivo”, rotineiramente reproduzido.

Ser uma "pessoa" não é apenas ser um ator reflexivo, mas ter o conceito
de uma pessoa (enquanto aplicável ao eu e aos outros). O que se
entende por "pessoa" certamente varia nas diferentes culturas, embora

58
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

haja elementos dessa noção que são comuns a todas elas. A capacidade
de usar "eu" em contextos diferentes, característica de toda cultura
conhecida, é o traço mais fundamental das concepções reflexivas da
pessoidade (GIDDENS, 2002, p. 54).

Toda essa reflexividade do eu é encarnada. Temos um corpo. Esse corpo


também se torna de uma vigilância reflexiva. O corpo não é mais um problema de
um Ser que se realizava apenas enquanto entidade racional. O corpo não é mais
tão somente o lugar da nossa alma, como pensavam os gregos antigos. Hoje a
permanente reflexividade e controle do corpo “é um emblema de uma existência
segura” num ambiente social (GIDDENS, 2002, p. 103).

2.1.2 A identidade na modernidade líquida


de Zygmunt Bauman
E como pensar a modernidade líquida e seus impactos identitários? Para
perceber o grau da crítica proposta por Bauman, relembramos seu “Homo eligens”,
isto é, o homem que escolhe, como metáfora da identidade pós-moderna. Escolhe,
pois permanentemente incompleto e indefinido.

A crítica do sociólogo polonês Zygmunt Bauman sobre a Modernidade é


bastante negativa, seguindo a tradição da Teoria Crítica iniciada com a Escola de
Frankfurt. O polonês dividiu a Modernidade em dois períodos: a modernidade
sólida e a famosa modernidade líquida.

FIGURA 22 – ZYGMUNT BAUMAN

FONTE: Disponível em: <http://ep01.epimg.net/cultura/imagenes/2015/12/


30/babelia/1451504427_675885_1451510007_sumario_normal.jpg>.
Acesso em: 14 jun. 2017.

59
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

A Modernidade Sólida é o período que tem início no século XV até a


metade do século passado. É o momento de instituições centralizadas, de um
sentimento de progresso e crença na ciência, da narrativa do sujeito racional. Foi
um período de expansão da instrumentalidade racional pela Ciência e pelo Estado
na redução das ambiguidades da vida social e nacional. Nesta modernidade, os
Estados surgem como os grandes estimuladores e direcionadores das identidades.
De acordo com o polonês, foi

[...] um período histórico que começou na Europa Ocidental no século


XVII com uma série de transformações socioestruturais e intelectuais
profundas e atingiu sua maturidade primeiramente como projeto
cultural, com o avanço do Iluminismo e depois como forma de vida
socialmente consumada, com o desenvolvimento da sociedade
industrial (capitalista e, mais tarde, também a comunista) (BAUMAN,
1999, p. 299-300).

Em “Modernidade Líquida” (2001) e “Modernidade e Ambivalência”


(1999), podemos encontrar as características essenciais desse período que já era
marcado pela necessidade de derreter seus “sólidos”. O projeto moderno era
centrado na ideia de controle e de domínio da natureza e das imprevisibilidades
da vida social. Neste empreendimento, Ciência e Estado foram dois motores muito
potentes. Para Bauman, a ciência moderna:

[...] nasceu da esmagadora ambição de conquistar a Natureza e


subordiná-la às necessidades humanas. A louvada curiosidade científica
que teria levado os cientistas ‘aonde nenhum homem ousou ir ainda’
nunca foi isenta da estimulante visão de controle e administração, de
fazer as coisas melhores do que são (isto é, mais flexíveis, obedientes,
desejosas de servir) (BAUMAN, 1999, p. 48).

E qual a identidade vinculada à Modernidade Sólida? Para Bauman,


aquela vinculada à Nação. Da coordenação entre Estado e Ciência, delineia-se uma
característica moderna, sua obsessão por classificar, conhecer, controlar os fatos,
objetos, fenômenos e pessoas. A grande utopia da modernidade sólida era:

[...] a crença de que há um fim do caminho em que andamos, um


télos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser
atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum tipo
de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em todos ou alguns
de seus aspectos postulados: do firme equilíbrio entre oferta e procura
e a satisfação de todas as necessidades; da ordem perfeita, em que tudo
é colocado no lugar certo, nada que esteja deslocado persiste e nenhum
lugar é posto em dúvida; das coisas humanas que se tornam totalmente
transparentes porque se sabe tudo o que deve ser sabido; do completo
domínio sobre o futuro – tão completo que põe fim a toda contingência,
disputa, ambivalência e consequências imprevistas das iniciativas
humanas (BAUMAN, 2001, p. 37).

O Estado-nação e sua identidade nacional percebia as diferenças com


desconfiança. A centralidade essencial dessa identidade está na unidade de
conduta, modos de vida e mentalidades sob a lógica da dominação da nação
(BAUMAN, 1999; 2001).

60
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

A incapacidade de constituir uma identidade fixa é produto do sentimento


de insegurança presente na esfera pós-moderna. A identidade líquida é
passageira. Disso resultam laços frouxos nas relações sociais, a substituição dos
relacionamentos humanos pelo consumo, que transforma o “eu” e os “outros” em
mercadorias; o desapego ao espaço e tempo; e o crescimento da individualização
(BAUMAN, 2005).

A “individualização” consiste em transformar a “identidade” humana de


um “dado” em uma “tarefa” e encarregar os atores da responsabilização de
realizar essa tarefa e das consequências (assim como dos efeitos colaterais)
de sua realização. Em outras palavras, consiste no estabelecimento de
uma autonomia de jure (independentemente de a autonomia de facto
também ter sido estabelecida) (BAUMAN, 2005, p. 40).

Segundo o autor, atualmente

[...] a identidade navega entre as extremidades da individualidade


descompromissada e da pertença total. A primeira é inatingível, e a
segunda, como um buraco negro, suga e engole qualquer coisa que
flutue nas suas proximidades. Quando é escolhida como destino,
inevitavelmente incita movimentos vacilantes entre as duas direções
(BAUMAN, 2007, p. 44).

Para Bauman (2001; 2005), a ausência de sólidos e os impactos da


modernidade líquida na economia, no Estado, na comunidade, no consumo e
nas tradições trouxeram profundos impactos para as identidades. Estimulada
pela ausência e desconfiança das grandes narrativas, a identidade líquida é uma
invenção, nunca uma descoberta. Identidade não é uma questão de pertencer ou
se identificar com alguém ou algum grupo, mas uma tarefa do cotidiano. Lembra
o “eu reflexivo” de Anthony Giddens.

Para a grande maioria dos habitantes do líquido mundo moderno,


atitudes como cuidar da coesão, apegar-se às regras, agir de acordo
com precedentes e manter-se fiel à lógica da continuidade, em vez de
flutuar na onda das oportunidades mutáveis e de curta duração, não
constituem opções promissoras (BAUMAN, 2005, p. 60).

Nas relações com o outro importa a supervalorização da minha identidade.


Relacionar-se é uma questão fluida, muitas vezes mediada pelo consumo e pelas
relações virtuais, pelas “redes sociais”.

Hoje em dia, nada nos faz falar de modo mais solene ou prazeroso do
que as “redes” de “conexão” ou “relacionamentos”, só porque a “coisa
concreta” — as redes firmemente entretecidas, as conexões firmes e
seguras, os relacionamentos plenamente maduros — praticamente caiu
por terra (BAUMAN, 2005, p. 100).

Essa experimentação da identidade líquida como hipervalorização do “eu”


compromete, segundo Bauman (2005), a própria realização da cidadania. Segundo
o autor, o público é colonizado pelo privado; o interesse público é reduzido
à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a arte da exposição
pública é reduzida à exposição pública (BAUMAN, 2001, p. 43).
61
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

3 CRISES DE IDENTIDADES, CRISES DE PARADIGMAS


Um dos problemas envolvendo a chamada crise de identidade é que as
lealdades políticas tradicionais têm sofrido mudanças. Antes, por exemplo, os
trabalhadores poderiam se identificar numa classe política cujo destino era a
revolução e a superação do capitalismo. Da mesma forma, os nazistas trouxeram
à tona pesadelos em nome de uma suposta raça que era o porto seguro de sua
ideologia. O discurso da heterossexualidade era dominante e inquestionável. Ou,
ainda, a luta ecológica que não tem bases fixas porque essencialmente global. São
os sólidos que se derretem apontados por Bauman (1999).

A identidade é uma produção, não se nasce com ela (HALL, 2014). Essa
é a grande mudança no paradigma dominante que pensava a identidade fixa,
imutável. Existe, nesse sentido, uma crise de identidades? De todas ou algumas
identidades? Em geral, existem formas diversas de iniciar uma resposta. Existem
novas identidades? De certa forma. Algumas emergem de processos sociais de
invisibilidades, como as etnias indígenas, a mulher, o negro – outras surgem em
razão de fenômenos contemporâneos.

Stuart Hall (2014) aponta para uma crise das “velhas identidades”. Segundo
o autor, estas identidades estabilizadoras estão em declínio, acompanhando o
deslocamento da estrutura e dos processos das sociedades modernas. As identidades
modernas estariam sendo descentradas, isto é, deslocadas ou fragmentadas, num
movimento de “duplo deslocamento”, cuja força é a descentração dos indivíduos
tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos.

[...] para aqueles teóricos que acreditam que as identidades modernas


estão entrando em colapso, [...] tipo diferente de mudança estrutural
está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso
está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade,
etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido
sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações
estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia
que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Essa perda de um
“sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou
descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento [...] constitui uma
“crise de identidade” para o indivíduo (HALL, 2005, p. 9).

Tomaz Tadeu Silva também percebe uma crise de identidades. Tais crises
se originam nas mudanças intensas promovidas pela globalização, pela migração,
pela crise de países e ideologias nos anos 1970 e 1980, que desestabilizaram,
deixaram um vazio na forma de pertencimento. Como resultado, o aparecimento
de identidades plurais, de novas afirmações étnicas, religiosas e nacionais (2014).

[...] reconhecer que a luta e a contestação concentradas na construção


cultural de identidades [...]. Enquanto nos anos 1970 e 1980, a luta
política era descrita e teorizada em termos de ideologia em conflito, ela se
caracteriza agora, mais provavelmente, pela competição e pelo conflito
entre diferentes identidades, o que tende a reforçar o argumento de que
existe uma crise de identidade no mundo contemporâneo (SILVA, 2007,
p. 26).

62
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

Além disso, um movimento de renovação das Ciências Humanas e a forma


de encarar o conhecimento de tipo europeu como de validade universal beneficiou-
se dos Estudos Culturais e Pós-colonialistas surgidos após a independência das
colônias europeias localizadas na África e na Ásia. Quer dizer, essa renovação de
teorias e metodologias não está restrita somente à História. Vejamos:

[...] o intento de descolonizar a História para projetar uma “verdadeira”


História da África segue sendo, aparentemente, um objetivo desta
geração de historiadores africanos. Este também era um desejo confesso
de muitos intelectuais estrangeiros que se dedicaram ao tema a partir
da década de 1960. Os movimentos de Independência, neste sentido,
foram, sem dúvida, os motivadores para a ampliação e difusão dos
estudos africanos em todo o mundo (BARBOSA, 2008, p. 54).

Em Boaventura de Sousa Santos o paradigma dominante da modernidade


foi o modelo de racionalidade que preside a ciência moderna e constituiu-se a
partir da revolução científica do século XVI, e foi desenvolvido nos séculos
seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. É um processo
permeado pela racionalidade, pelo determinismo e instrumentalismo da Ciência
e dos conhecimentos para diminuir ambivalências sociais, econômicas, ecológicas,
existenciais etc. Qual seria o “paradigma emergente”?

Eu falarei do paradigma de um conhecimento prudente para uma


vida decente. Com esta designação, quero significar que a natureza da
revolução científica que atravessamos é estruturalmente diferente da
que ocorreu no século XVI. Sendo uma revolução científica que ocorre
numa sociedade ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a
emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico (o paradigma
de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma
social (o paradigma de uma vida decente) (SANTOS, 2005, p. 74).

A questão é que existem bases teóricas e metodológicas capazes de investigar


as questões relacionadas à identidade, cultura, etnia, nação a partir de um ponto
de vista que assegure a complexidade necessária ao tema. Pensar a identidade de
gênero, os deslocamentos culturais, os efeitos da globalização devem ser revistos à
luz das críticas e análises realizadas, conforme vimos anteriormente. Agora, tratamos
das visões sobre a globalização e seus impactos na produção de conhecimento
no interior das Ciências Sociais. Neste sentido, num quadro de individualização
excessiva, nossa liberdade individual é cada vez menor e mais controlada.

3.1 A GLOBALIZAÇÃO E A IDENTIDADE GLOBAL


As ideias de um mundo global não são novas, antes do termo globalização
ganhar popularidade, a partir dos anos 1980 em diante, foram utilizadas de
maneira pioneira nos anos 1960 por Marshall McLuhan (Guerra e Paz na Aldeia
Global) e pelo polonês Zbigniew Brzezinski (A Revolução Tecnotrônica).

É fácil cair no equívoco de acreditar que modernidade e globalização são


categorias e fenômenos similares. Aqui parte-se da ideia de que a globalização
63
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

é uma dimensão, um efeito potencializado e radicalizado pela Modernidade. Os


efeitos sob as identidades tradicionais são consideráveis. O que é a globalização e
quais seus efeitos sobre as identidades e as culturas modernas?

FIGURA 23 – INTERDEPENDÊNCIA GLOBAL

FONTE: Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/arquivosCartaMaior/FOTO/179/29C


A5A975A685 C8377DEB584659C921FC85AC005CFF02D8A4B9070060D288BC9.jpg>.
Acesso em: 14 jun. 2017.

Enquanto fenômeno social com impacto nas identidades, a globalização


tem sido vista como propulsora de revisões metodológicas e teóricas sobre a
identidade. Como aponta o sociólogo brasileiro Octávio Ianni, as Ciências Sociais
são chamadas a discutir profundamente o que é a globalização e quais seus efeitos.
Isso porque “o paradigma clássico das ciências sociais foi constituído e continua
a desenvolver-se com base na reflexão sobre as formas e os movimentos da
sociedade nacional” (IANNI, 1994, p. 147). Quer dizer, a globalização representa
o rompimento epistemológico com seus objetos clássicos, especialmente aqueles
vinculados à unidade do Estado-nação, diante do surgimento da sociedade
global. A sociedade nacional continua vigente, mas, contraditoriamente envolvida
nos efeitos e dinâmicas da globalização. Veja o que o autor aponta sobre essa
emergência:

[...] a sociedade global é o novo objeto das ciências sociais. Ao lado da


sociedade nacional, vista como um todo e também em suas partes, as
ciências sociais começam a debruçar-se sobre a sociedade global, vista
como um todo e também em suas partes. São dois objetos presentes: um
dos quais bastante conhecido, codificado, interpretado, ao passo que o
outro ainda por se conhecer, se explicar. A sociedade nacional pode ser
vista como o emblema do paradigma clássico das ciências sociais, com o
qual elas nascem, amadurecem e continuam a se desenvolver. Enquanto
que a sociedade global pode ser vista como o emblema de um paradigma
emergente. Envolve um novo paradigma, tanto porque a sociedade global
encontra-se em constituição, em seus primórdios, como porque carece de
conceitos, categorias, interpretações (IANNI, 1994, p. 149).

64
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

Nenhum período histórico anterior teve a noção da existência de uma


sociedade global. Trata-se de uma realidade original, ainda desconhecida, carente
de interpretações teóricas mais gerais, o conhecimento acumulado sobre a sociedade
nacional não é suficiente para esclarecer as configurações e os movimentos globais.
Ianni (1994) indica algumas originalidades implicadas nas relações entre globalização
e ciências sociais. A sociedade global se constitui desde o início como uma totalidade
problemática, complexa e contraditória, aberta em movimento, dinamizando cenários
de desenvolvimento desigual, combinado e contraditório em cantos do planeta. Da
mesma forma, a constituição de uma sociedade global implicaria na possibilidade de
se criar uma história mundial. Para o autor, o que era fantasia, metáfora ou utopia,
cosmopolitismo, adquire novos significados e possibilidades (IANNI, 1994).

Para exemplificar a complexa relação entre a globalização e seus efeitos


identitários, trazemos a contribuição de Boaventura de Sousa Santos (2005). Não
podemos pensar a globalização. Devemos pensar nas muitas globalizações!

Para Santos (2005, p. 21), a globalização é o processo pelo qual “determinada


condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo,
desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade
rival”. O português fala em globalizações, no plural, indicando que existem
diferentes conjuntos de relações sociais que dão origem a relações globais. Estas
relações surgem dos conflitos presentes em cada campo social.

Para Santos (2005), o global e o local são socialmente produzidos no interior


dos processos de globalização. Nos processos acionados pelas globalizações,
tanto as entidades ou fenômenos dominantes (globalizados), como os dominados
(localizados) sofrem transformações internas. Porém, para Santos, os efeitos não
são igualmente distribuídos. Nem todos eles ligam-se à fluidez e rapidez próprias
dos discursos sobre a globalização. Porém, algumas tomam caminhos mais lentos,
mais difusos, mais ambíguos, e as suas causas mais indefinidas.

Atualmente, existem grandes desigualdades na distribuição e na


concentração dos poderes. Desta forma, Santos (2005, p. 26) percebe a globalização
como “um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas,
culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo”. Assim, o português
fala em globalizações, no plural, indicando que existem diferentes conjuntos de
relações sociais que dão origem a relações globais. Estas relações surgem dos
conflitos presentes em cada campo social.

Santos (2005) destaca algumas globalizações, dentre as inúmeras possíveis.


A globalização social em nossa época vem promovendo desigualdades em diversos
níveis das relações sociais de nosso cotidiano. Aqui, podemos verificar que através
das dinâmicas globais do capitalismo, ocorre uma concentração brutal de renda em
poucos indivíduos, produzida pelo predomínio do neoliberalismo sobre a política
e a economia. Ao mesmo tempo, globalizam-se relações precárias e terceirizadas
de trabalho, o controle e a estagnação dos salários, além da visão de que pessoas
pobres são insolventes, devendo então os investimentos concentrarem-se no topo
das camadas sociais.
65
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Santos (2002) também fala de uma globalização política, onde os países


mais ricos e suas instituições sociais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI)
ou o Banco Mundial, exercem forte pressão sobre os países em desenvolvimento e
periféricos de uma maneira sem precedentes na história. Ao mesmo tempo, assiste-
se ao surgimento de blocos e acordos comerciais. A intensificação das interações
entre os países, ainda que desigual, é recorde, bem como o fluxo de pessoas, bens,
serviços por essas áreas. Desta maneira, o Estado-nação tem perdido sua centralidade
enquanto uma unidade de iniciativa. E num ambiente de assimetrias internacionais,
alguns países perdem totalmente sua autonomia, dependendo de decisões políticas
originadas nos centros de poder. Santos chama a atenção, nesse contexto, para o
esquecimento do Hemisfério Sul, onde localizam-se os países pobres.

Uma das mais comentadas no contexto das atuais dinâmicas mundiais


é a globalização cultural. Cada vez mais fala-se de uma cultura global. Mas, a
globalização cultural teria promovido essa inédita cultura? Inédita porque somente
em nosso momento é que temos a condição de percebermos como partes de uma
cultura global. Há uma preocupação com a homogeneização cultural que pode
surgir desses fenômenos, já que o que culturalmente se globaliza são os valores,
os artefatos culturais e os universos simbólicos que se globalizam são ocidentais.
Através desses produtos, valores presentes nos países desenvolvidos tornam-se
parte da vida de países e pessoas que vivem no Sul do mundo.

De uma maneira menos crítica que os demais, Anthony Giddens percebe


as complexas relações entre identidade e globalização, contudo não vê isso
apenas como “carga pesada”, mas como fontes libertadoras. Para o sociólogo,
em razão dos processos acionados e deixados pelo caminho em seu fluxo global,
novas identidades culturais estão emergindo, a democracia difundiu-se pelos
quatro cantos e modelos de instituições, como as famílias, são mais abertas e
plurais (GIDDENS, 2007). O grande problema são as desigualdades inerentes ao
fenômeno, ao passo que somos as primeiras gerações a viver sob a globalização. O
autor não entende que haja hegemonia de algum país ou empresas, porque cada
vez mais a globalização está descentrada, isto é, atuando em todos os cantos do
planeta. Segundo essa visão do autor, a “globalização está mudando o modo como
o mundo se parece e a maneira como vemos o mundo. Ao adotar uma perspectiva
global, tornamo-nos mais conscientes de nossas ligações com os povos de outras
sociedades” (GIDDENS, 2005, p. 61).

Para Giddens, a globalização pode ser definida “como a intensificação das


relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira
que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas
de distância e vice-versa” (1991, p. 69). O impacto disso se verifica no seu conceito
de “globalização do risco”:

[…] a) no sentido de intensidade; b) expansão da quantidade de eventos


contingentes que afetam todos ou ao menos grande quantidade de
pessoas no planeta; c) derivado do meio ambiente criado/natureza
socializada; d) riscos ambientais institucionalizados (ex.: mercado de
investimentos); e) consciência do risco como risco (lacunas não podem
ser convertidas em certezas); f) a consciência bem distribuída do risco

66
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

(conhecimento da ampla maioria); g) consciência das limitações da


perícia (nenhum sistema perito é inteiramente perito) (GIDDENS, 1991,
p. 126-127).

O britânico vê a globalização não como um fenômeno simples. Para ele, a


globalização é política, tecnológica e cultural, além de econômica. Acima de tudo,
tem sido influenciada pelo progresso nos sistemas de comunicação, registrado
a partir do final da década de 1960 (GIDDENS, 2007). E as transformações na
autoidentidade e a globalização são os dois polos da dialética do local e do global
nas condições da alta modernidade. Isso implica perceber que mudanças em
aspectos íntimos da vida pessoal estão diretamente ligadas ao estabelecimento de
conexões sociais de grande amplitude. Para Giddens (2007) diante da globalização
e seus efeitos, o "eu" e "sociedade" estão inter-relacionados num meio global.

Desta maneira, a discussão sobre a globalização e seus efeitos nos paradigmas


clássicos das Ciências Sociais é bastante elementar para o tema da produção
identitária. Para Joanildo Burity (2001), essas novas perspectivas sobre categorias
básicas das Ciências Sociais com o Estado e a Sociedade apontam, também, para
nosso momento de revisão crítica das categorias herdadas dos séculos XIX e XX.
Vivemos o “descentramento do Ocidente”. A globalização introduz a lógica de
“um terceiro” nessas relações clássicas e binárias sobre o Ocidente e as Ciências
produzidas por este.

O que é esse terceiro? Trata-se da inclusão e reconhecimento na esfera da


reflexão e das práticas sociais e culturais de outras possibilidades de expressão que
foram preteridas ou derrotadas ao longo da história eurocêntrica (BURITY, 2001,
p. 11). O terceiro é o Ocidente fragmentado, onde em meio ao nacional e ao global
surgem o local, o regional.

E o impacto disso para as identidades? O impacto do surgimento do


“terceiro” nessa relação entre global e local é a “resistência da identidade”. A
identidade torna-se o “pomo da discórdia” e expressa esse terceiro da globalização.
Elas respondem e resistem às desterritorializações promovidas pela globalização,
afirmando-se e reagindo aos efeitos desestruturantes desta (BURITY, 2001).

Outra forma possível de perceber a identidade em termos de globalização


liga-se à ideia de identidade híbrida.

Nestor Gargia Canclini percebe a globalização como um fenômeno de


fracionamento articulado do mundo e de sua recomposição em partes, sendo
movimento de homogeneização e também de diferenças e desigualdades. “A
globalização supõe uma interação funcional de atividades econômicas e culturais
dispersas, bens e serviços gerados por um sistema com muitos centros, no qual é
mais importante a velocidade com que se percorre o mundo do que as posições
geográficas a partir das quais está agindo” (CANCLINI, 2005, p. 32).

Ela conforma “espaços de possibilidades para mudanças socioculturais”


nas várias dimensões da vida social e individual. Tais mudanças foram sintetizadas
em cinco: a diminuição da força e autonomia política dos Estados face às empresas

67
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

transnacionais; a reorganização dos assentamentos e das maneiras de convivência


urbanas; a forte apropriação privada do espaço urbano; as mudanças nos padrões
de pertencimento identitário, cada vez menos locais ou nacionais e cada vez mais
estimulados por dinâmicas transnacionais; e a passagem do cidadão para o de
consumidor.

Para Canclini (2005), a globalização modifica o sentido das identidades


modernas, que eram territoriais, cujo centro era o Estado-nação que tende a ocultar
as diferenças culturais internas. A globalização, ainda, seria responsável pela
intensificação dos aspectos da modernidade, levando a uma pós-modernidade.
Nesses contextos, as próprias identidades são pós-modernas que passam a ser
influenciadas por trânsitos transterritoriais e multilinguísticos. As fronteiras do
Estado-nação já não seriam suficientes para a produção social das identidades. Tais
identidades pós-modernas sofrem grande influência dos mercados, da publicidade,
muitas vezes sendo afirmadas através da distinção assegurada pelo consumo.

FIGURA 24 – IDENTIDADES HÍBRIDAS

FONTE: Disponível em: <http://beta.mericaballero.com/wp-content/uploads/hybrid1.jpg>. Acesso


em: 14 jun. 2017.

Desta maneira, a identidade na Pós-modernidade de Canclini passa a ser


concebida como repertórios fragmentados de minipapéis sociais e menos uma
“hipotética interioridade contida e definida pela família, pelo bairro, pela cidade,
pela nação ou por qualquer um desses enquadramentos em declínio” (CANCLINI,
2005, p. 48). Essa influência em potência menor das identidades essencialistas foi
entendida pelo autor como o processo de “dissolução das monoidentidades” (2005).

68
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

O que é uma cultura híbrida? Num olhar mais latino-americano, segundo


Canclini (2005, p. 19), as hibridações “são processos socioculturais nos quais
estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para
gerar novas estruturas, objetos e práticas”. Elas são produzidas especialmente em
três momentos: a queda do centro cultural e sua hegemonia, formando pluralidades;
disseminação de gêneros culturais e artísticos impuros; e na desterritorialização
do local em contato com o global (CANCLINI, 1997).

Estas transformações contemporâneas relativizam os fundamentos das


identidades nacionais. Em consequência, surgem nacionalismos, regionalismos,
etnicismos e fundamentalismos, que acabam por anular os espaços de interação,
fazendo com que as identidades não sejam mais negociadas, mas “simplesmente
afirmadas ou defendidas”. (CANCLINI, 2005, p. 197).

Stuart Hall (2006) percebe que a hibridização acontece em situações de


diáspora, onde se fazem necessários múltiplos processos de tradução cultural
experimentados na adaptação das matrizes culturais diferentes da sua origem.

O hibridismo não se refere a indivíduos híbridos, que podem ser


contrastados com os “tradicionais” e “modernos” como sujeitos
plenamente formados. Trata-se de um processo de tradução cultural,
agonístico, uma vez que nunca se completa, mas que permanece em sua
indecidibilidade (HALL, 2005, p. 74).

Essa tradução cultural é indicada como um processo de negociação entre


novas e antigas matrizes culturais, vivenciado por pessoas que migraram de sua
terra natal. Entre a identidade que ficou para trás e a que precisa ser negociada na
experiência dos deslocamentos, das migrações ou de refugiados.

3.2 IDENTIDADES E RECONHECIMENTO


O que é reconhecer e o que isso tem de ligação com o tema das identidades
em nossa época? Tem tudo a ver. Até agora, apontamos que as identidades em
nossos tempos procuram afirmar-se perante outras. Da mesma forma, as noções
identitárias essencialistas invisibilizam a diferença e, portanto, as identidades
plurais. Como dissemos antes, nenhuma identidade se constrói sozinha,
autossuficiente. É no delimitar fronteiras entre eu e outros que elas são fabricadas.

Segundo o antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira (2005),


atualmente muito se discute a respeito da identidade, mas não do aspecto do
seu reconhecimento. Ele se pergunta: o que significa a uma pessoa ou grupo ter
sua identidade reconhecida? A resposta deve ser procurada na linguagem, nas
bases filosóficas e antropológicas das sociedades. Ao explorar essas dimensões da
vida e as ideias fechadas de identidade que são formuladas cotidianamente, ao
problematizar essas dimensões e as suas naturalizações, trazemos o conhecimento
para o patamar do reconhecimento, para a dimensão pública.

69
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Desta maneira, reconhecer não tem somente a intenção de tornar o outro


“igual”, numa perspectiva de igualdade. Vai além, é um tema étnico envolvido na
produção do cotidiano e de nossas relações sociais e de poder. Por este caminho, o
tema do reconhecimento pode ser percebido do ponto de vista teórico. O cerne da
discussão pode ser localizado entre “uma visão redistributiva em oposição à ideia
de reconhecimento em nome da justiça social” (OLIVEIRA, 2005, p. 23).

Apresentamos, então, a discussão em torno da corrente teórica e


metodológica chamada “Teoria do Reconhecimento”, com boa inserção nos
espaços acadêmicos, intelectuais, sociais e políticos no nosso país. Trata-se de uma
corrente que transborda um campo transdisciplinar, que inclui a Antropologia,
a Sociologia, a Filosofia, a Política, por exemplo. Esta corrente está ligada a
alguns nomes e obras específicas. As três figuras mais importantes desse debate
são o canadense Charles Taylor, o sociólogo e filósofo alemão Axe Honneth e a
estadunidense Nancy Fraser.

A Teoria do Reconhecimento e seus autores lançam olhares para movimentos


sociais de gênero, étnicos, raciais, etários etc., repensando a posição subordinada
desses sujeitos e de suas identidades no contexto das relações econômicas e sociais.
Claro que pensam a dimensão cultural. Porém, a crítica está justamente nisso. No
reducionismo ao nível cultural.

Isso porque no cenário de nossa modernidade tardia, com os quadros sociais,


econômicos, políticos e culturais anteriormente descritos, movimentos sociais se
aproximam de questões de justiça no seio das sociedades contemporâneas. Elas
movimentam, performatizam o cultural. Estas identidades plurais se pautam mais
por reivindicações de reconhecimento cultural do que por reivindicações salariais
ou redistributivas. Vemos isso no exemplo da luta dos movimentos das mulheres
e de negros, por exemplo, em torno da igualdade salarial.

No interior da Teoria do Reconhecimento existem algumas divergências em


relação ao processo de reconhecimento. De um lado, por exemplo, podemos incluir
Taylor e Honneth. Do outro, Nancy Fraser, que está interessada no feminismo.
Além disso, existem debates intensos na forma como Honneth e Fraser percebem
os conflitos gerados pelas relações entre economia e cultura. Aqui, trataremos, por
questão de espaço, apenas destes dois. Fica o convite a pesquisar sobre a obra de
Charles Taylor.

Outra contribuição elementar na Teoria do Reconhecimento é do alemão


Axel Honneth. Para este autor:
[...] a diferença entre ‘conhecer’ (erkennen) e ‘reconhecer’ (anerkennen)
torna-se mais clara. Se por ‘conhecimento’ de uma pessoa entendemos
exprimir sua identificação enquanto indivíduo [...], por ‘reconhecimento’
entendemos um ato expressivo com o qual este conhecimento está
confirmado pelo sentido positivo de uma afirmação. Contrariamente ao
conhecimento, que é um ato cognitivo não público, o reconhecimento
depende de meios de comunicação que exprimem o fato de que outra
pessoa é considerada como detentora de um ‘valor’ social (HONNETH,
2004, p. 140 apud OLIVEIRA, 2005, p. 13).

70
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

Na discussão proposta pelo filósofo é dada condição especial à ideia de


‘injustiça’ para dar início à possibilidade de construir um movimento, uma luta
e uma moral de reconhecimento. Toda reação emocional negativa que vai de par
com a experiência de um desrespeito de pretensões de reconhecimento contém
novamente em si a possibilidade de que a injustiça infligida ao sujeito se lhe revele
em termos cognitivos e se torne o motivo da resistência política (HONNETH, 2003).

A partir da percepção da injustiça, pode-se iniciar uma luta de um grupo


politicamente organizado pelo reconhecimento de sua especificidade identitária.
Desta forma, a Teoria do Reconhecimento é uma teoria das lutas moralmente
motivadas de grupos sociais, sua tentativa de estabelecer institucional e
culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco, “aquilo por meio
do qual vem a se realizar a transformação normativamente gerida das sociedades”.
(HONNETH, 2003, p. 156).

Para Honneth (2003), interessa entender a dimensão da interação e o conflito


nas lutas por reconhecimento. Na luta contra a injustiça, os indivíduos percebem-
se como moralmente injustiçados. Para sintetizar (com riscos de simplificações),
a ideia central de Axel Honneth sobre as lutas por reconhecimento, vistas como
“gramática dos conflitos sociais” pode ser percebida como: desrespeito, luta por
reconhecimento e mudança social (HONNETH, 2003, p. 268).

DICAS

Sugerimos as leituras de:

• Luta por Reconhecimento – a gramática moral dos conflitos sociais, de Axel Honneth (2003).
• Reconhecimento sem ética? Artigo de Nancy Fraser (2007) publicado na Revista Lua Nova.

Honneth, como vimos, se interessa pelas lutas de reconhecimento.


Fraser, pela questão da justiça redistributiva.

Nancy Fraser (2002) percebe o modelo da identidade atualmente


muito discutido como profundamente problemático, produtor de reificações e
deslocamentos. Em razão do cenário global e econômico, ocorre um fenômeno
de “politização generalizada da política”, tendo como “centro de gravidade”
o reconhecimento da identidade e da diferença. Ao mesmo tempo, ocorre a
diminuição das reivindicações e lutas de classe. Assim, muitas políticas culturais
de reconhecimento de nossos dias encorajam o separatismo, o comunitarismo, a
intolerância, o patriarcalismo e autoritarismo.

Segundo Fraser, estas situações geram duas consequências: a) o


alargamento da contestação da política e um novo entendimento de justiça social
e; b) podem deslocar o foco das questões de redistribuição igualitária por políticas
71
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

de identidade. Para romper com este dilema, Fraser propõe uma concepção
bidimensional de justiça, levando em consideração as preocupações tradicionais
da justiça distributiva e igualmente abarcar as preocupações recentes salientadas
pelas filosofias do reconhecimento (FRASER, 2002).

O que Nancy Fraser (2002) quer dizer com reificação de identidades?


Seria aquela visão que se aproxima da identidade essencialista, como já vimos
anteriormente. Essa visão procura fechar-se numa unidade, limitando o diálogo
com outras culturas a partir de seus critérios. Mas, e as questões de justiça e de
status? Quer dizer, de cidadania? Porque, em geral, as desvalorizações identitárias
estariam subordinadas a relações sociais transmitidas através de padrões
institucionalizados de valor cultural: na forma de leis, de instituições sociais, de
hierarquia de valores.

Pensando na contribuição de Fraser, as lutas por reconhecimento nos


dias de hoje, com as graves desigualdades sociais e econômicas, o desemprego
e fenômenos sociais como a violência, atingem de maneiras distintas os grupos
sociais e culturais. Ao bater constantemente na ideia da identidade e das diferenças,
essas desigualdades acabam por ser menosprezadas, levando ao problema do
falso reconhecimento. Neste sentido, a falta de reconhecimento estaria reduzida
na depreciação de tal identidade pelo grupo dominante e no consequente dano
infligido ao sentido do eu dos membros do grupo.

FIGURA 25 – RECONHECER-SE A SI E AO OUTRO: QUESTÃO DE JUSTIÇA E REDISTRIBUIÇÃO

FONTE: Disponível em: <https://missaoposmoderna.files.wordpress.com/2013/04/mascaras-


1024x664.jpg>. Acesso em: 14 jun. 2017.

72
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

Assim, como finalizar esta discussão, articulando a Teoria do


Reconhecimento e as lutas identitárias dentro do olhar das Ciências Sociais?

O não reconhecimento é uma herança transgeracional, particularmente,


das classes populares e dos segmentos marginalizados moralmente.
A invisibilidade subjetiva e social é o verdadeiro estigma humano que
deflagra as lutas sociais. Intervir nesse vácuo pode significar uma revolução
silenciosa com desfecho expressivo (FUHRMANN, 2013, p. 92).

E a investigação sobre as origens do não reconhecimento pode ser um


empreendimento de pesquisadores da Antropologia, da Sociologia, da Filosofia,
da História, da Psicologia.

3.3 A CENTRALIDADE DA CULTURA


Dissemos anteriormente que entre os séculos XVIII e XIX, a Cultura foi
instrumento ideológico na expansão de fronteiras políticas e econômicas. Naquelas
épocas, junto com a cultura chegava o “Progresso” na perspectiva europeia,
em que a civilização e um tipo específico de modo de produção, o capitalismo
ainda nascente, em que o Estado e o mercado foram os agentes considerados
organizadores da sociedade, passaram a ocupar espaços além da Europa.

No século XX e XXI a discussão cultural tomou outro rumo. Desde


as contribuições dos estudos culturais e das reflexões sobre identidade, pós-
colonialismo, imigração, hibridização cultural, o papel da cultura nas sociedades
foi alçado a central. Por isso, aqui discutimos essa centralidade da cultura em
nossos dias.

Para as Ciências Sociais, a cultura sempre foi um objeto presente na


sua discussão. Vivemos hoje a expansão do cultural e sua centralidade na vida
contemporânea em todos os aspectos da vida social. Toda ação social é “cultural”,
que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado e, neste
sentido, são práticas de significação. Estes sistemas ou códigos de significado
dão sentido às nossas ações humanas, que, como lembra Weber, são sempre
significativas. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias
(HALL, 1997).

Todavia, o autor percebe mudanças em duas dimensões da relação entre


cultura e Ciências Sociais, uma de caráter substantivo, outro epistemológico. O
primeiro refere-se à centralidade da cultura nos discursos políticos e sociais, nas
buscas por desenvolvimento etc. O outro, resultado dessas utilizações culturais, é
a revisão de antigas noções culturais de viés evolucionista, funcionalista, marxista
ou estruturalista.

O que significa que a cultura está sendo percebida teórica e


metodologicamente de outras maneiras? Epistemologicamente sob crítica? Bem,
por muito tempo, cultura e civilização se confundiam. E civilização carrega o peso
73
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

da sua época evolucionista e determinista. Se existem civilizados, também existem


os incivilizados, selvagens, como eram conhecidos todos os grupos e organizações
sociais e políticas não europeias entre os séculos XIX e início do XX.

FIGURA 26 – IMAGEM TÍPICA PARA INDICAR ASPECTOS DA SOCIEDADE BRASILEIRA

FONTE: Disponível em: <http://escolakids.uol.com.br/public/images/legenda/fd16743578a981b742


c132c4938a82e1.jpg>. Acesso em: 14 jun. 2017.

Ao invés de a Sociologia e Antropologia se perderem em modelos


normativos e descritivos de cultura, tidos como científicos, existe uma abertura
maior a descrições e interpretações. Tais novas estratégias problematizam com
maior ênfase a identidade e a cultura dos pesquisadores e os grupos, pessoas,
sociedades pesquisadas. A relação fica mais complexa.

Vejamos o exemplo do pós-colonialismo. Nossas bases mentais resultam


de nosso encontro e confronto com os europeus e suas conquistas territoriais que
iniciam em 1492 com a “Descoberta” da América, indo até o presente. Várias foram
as colônias europeias. E no século XX iniciou um movimento em vários continentes
em torno da independência dessas colônias. Do resultado cultural, intelectual e
político dessa “descolonização”, surgem os Estudos Pós-coloniais.

[...] o intento de descolonizar a História para projetar uma “verdadeira”


História da África segue sendo, aparentemente, um objetivo desta
geração de historiadores africanos. Este também era um desejo confesso
de muitos intelectuais estrangeiros que se dedicaram ao tema a partir
da década de 1960. Os movimentos de independência, neste sentido,
foram, sem dúvida, os motivadores para a ampliação e difusão dos
estudos africanos em todo o mundo (BARBOSA, 2008, p. 54).

74
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

O que queremos dizer é que nossas bases mentais têm preconceitos


tipicamente europeus. Podemos citar aqui o próprio Kant, filósofo que “inaugurou”
a filosofia moderna:

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento


que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um
a citar um único exemplo em que um negro tenha mostrado talentos,
e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus
países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não
se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na
arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos,
constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa,
adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão
essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser
tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de
cores (KANT, 1993, p. 75-76).

Para Muryatan Santana Barbosa, no eurocentrismo pode ser observado


um etnocentrismo singular, entendido como uma ideologia, paradigma e/ou
discurso ou, ainda, como um paradigma qualitativamente diferente de outras
formas históricas (2008). Desta forma, os povos não europeus eram percebidos
crianças a serem educadas pelas luzes da Razão, apontando para “a crença na
excepcionalidade europeia” (p. 48). A grande problemática reside:

Apesar do que foi até aqui dito, seria um erro supor que, por serem
eivadas de eurocentrismo, a filosofia e a teoria social europeia dos
séculos XVIII e XIX em nada teriam contribuído para o desvelamento
de realidades históricas não europeias. Em verdade, pouco se escreveu
e analisou, até o início do século XX, acerca da história de outros povos
e civilizações. Há, entretanto, uma questão importante. O fato é que, ao
se expressarem como universalistas sendo, em verdade, provincialistas,
os europeus ajudaram a criar o instrumental teórico pelo qual os demais
povos poderiam, tendencialmente, ressignificar a imagem que aqueles
faziam de si (BARBOSA, 2008, p. 49)

Todavia, Barbosa (2008) indica que é muito difícil diminuir o eurocentrismo


a zero. Devido às próprias dinâmicas de um mundo que foi construído pelos
europeus. Para essa mudança, o autor indica a necessidade de se aliar disposição
científica e política.

Também podemos apontar para um efeito atual que pode ser percebido e
que exerce força para a elasticidade do termo “cultura”. O assunto é tratado por
George Yudice na obra “A Conveniência da Cultura” (2006). A tese é que diante dos
atuais problemas sociais, ambientais, culturais, políticos e econômicos, a cultura se
tornou um recurso conveniente. Veja:

[...] o conteúdo da cultura foi perdendo importância com a crescente


conveniência da diferença como garantia de legitimidade. Pode-se dizer
que as compreensões anteriores – os cânones de excelência artística; os
padrões simbólicos que dão coerência e conferem valor humano a um
grupo de pessoas ou sociedade, ou a cultura como disciplina – cedem
lugar à conveniência da cultura (YÚDICE, 2004, p. 454).

75
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

A questão é que no cenário internacional, a cultura se tornou um recurso


econômico muito importante desde pequenos grupos a grandes conglomerados de
multinacionais. É objeto de acordos de livre comércio, de legislação de propriedade
intelectual. Basta pensar na imensa riqueza econômica – para não falar de outras
questões - em torno dos filmes produzidos anualmente nos EUA. São centenas de
bilhões de dólares.

Da mesma forma, movimentos sociais, organizações da sociedade e outras


formas associativas têm utilizado a cultura para estimular novos padrões de
desenvolvimento locais, para vender produtos artesanais, para embalar lutas por
reconhecimento, e assim por diante.

Neste sentido, a Cultura aparece como elemento constitutivo dos


muitos processos sociais contemporâneos. Não foi à toa que na década de 1960
cultura relacionou-se com outros fenômenos típicos da época, como a ascensão
de reivindicações de corte identitário no impulso dos movimentos sociais de
gênero, ecológicos, pacifistas, muitas delas referindo-se a si próprias como
minorias culturais. Vale lembrar que os Estudos Culturais não representam um
esforço solitário de compreender as lógicas culturais. Se antes a Cultura era uma
dimensão habitada por autoridades políticas, intelectuais, militares e eclesiásticas
ou, então, por artistas e seus satélites, atualmente, a situação transformou-
se significativamente, potencializada pela contemporaneidade marcada pela
“reflexividade” e pelo “risco” (GIDDENS, 1991).

Já as explicações culturais que se baseiam tão somente em determinismos


biológicos ou geográficos mostram-se parciais ou superados. A cultura passou a ser,
de maneira geral, como construção histórica apreendida socialmente, carregando
hierarquias, significados, relações de poder, convenções, mentefatos e artefatos
que tornam inteligível a vida em grupo, sendo mutável, plural e carregada de
relações de poder. É construída e reconstruída socialmente, através das relações
sociais, sendo que sua transformação corresponde a um movimento complexo
entre interior e exterior de um grupo, território ou sociedade.

Essas visões rompem com a postura intelectual dos primórdios da


Modernidade, embebedada de crença no positivismo e no evolucionismo, em que
o padrão europeu e o nascente capitalismo e urbanização representariam o topo
da evolução civilizacional. Neste sentido, o trajeto político trilhado pela categoria
“cultura” vai da imposição de um modelo etnocêntrico de sociedade, de caráter
descritivo, até o presente, em que Cultura é Política, porque, acima de tudo, é
“Práxis”.  

76
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

LEITURA COMPLEMENTAR

O AVANÇO DA EXTREMA DIREITA NA EUROPA

Marcello Musto
Jornal da UNICAMP

O sexto maior país da União Europeia em número de habitantes fez uma


guinada à direita.  Depois de ter se afirmado nas presidenciais de maio, o partido
populista Lei e Justiça venceu as eleições polonesas, obtendo não apenas 39% dos
votos, mas a maioria absoluta no Parlamento.

Diferentemente dos recorrentes apelos ao nacionalismo e à palavra de


ordem “primeiro aos poloneses”, as reivindicações do Lei e Justiça no campo da
economia se concentraram na promessa de aumentar os gastos sociais, melhorar
os salários e reduzir a idade para a aposentadoria. Um programa de esquerda, em
um país onde a esquerda defendeu o neoliberalismo e ocupa, atualmente, uma
posição absolutamente marginal – situação que se repete em outros lugares do
continente.

Nos últimos vinte anos, o poder de decisão na Europa transitou em grande


parte da esfera política àquela econômica. A economia se tornou um âmbito
separado e intocável, que faz escolhas decisivas, porém fora do alcance do controle
democrático.

A uniformidade na essência das decisões tomadas pelos governos de


muitas nações e, em geral, a crescente hostilidade de grande parte da opinião
pública em relação à tecnocracia de Bruxelas, contribuíram para provocar uma
grande mudança no cenário europeu.

O VENTO POPULISTA

Os bipartidarismos instituídos, como aqueles espanhol e grego, implodiram.


O mesmo rumo parece tomar a bipolaridade dos casos italiano e francês, da qual
havia derivado uma nítida divisão de votos entre posicionamentos de centro-
direita e de centro-esquerda.

O panorama político europeu foi modificado – sem considerar a alternativa


ao neoliberalismo proposta por Syriza e Podemos, que merece uma reflexão à parte
– pelo acentuado crescimento dos índices de abstenção, o surgimento de partidos
populistas e o notável avanço das forças de extrema direita.

O primeiro fenômeno se manifestou no momento das eleições legislativas


de quase todos os Estados europeus.

O segundo, por sua vez, nasceu com a onda antieuropeísta. Nos últimos
anos, surgiram novos movimentos políticos declarados “pós-ideológicos”, que se

77
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

guiaram pela denúncia genérica contra a corrupção do sistema ou o euroceticismo.


Em 2006, com base nesses princípios, o Partido Pirata foi fundado na Suécia e na
Alemanha; em 2009, o Movimento 5 Estrelas se tornou a primeira força política
na Itália, com 25,5% dos votos. Em 2013, nasceu em Berlim o Alternativa para a
Alemanha. Em 2014 foi a vez do O Rio (TP) na Grécia e do crescimento em escala
nacional do Ciudadanos (C’s), movimento fundado na Catalunha em 2006.

No mesmo período, organizações partidárias já há tempos existentes se


afirmaram com propostas políticas parecidas. O caso mais ilustrativo é o do Partido
pela Independência do Reino Unido (UKIP), que com 26,6% dos votos se tornou a
primeira força nas últimas eleições europeias, acima do Manica.

A “NOVA” FACE DA DIREITA

O terceiro fenômeno aparece quando os efeitos da crise econômica


começaram a ser sentidos de forma mais intensa, momento em que os partidos
xenófobos, nacionalistas e neofascistas viram crescer enormemente seus votos. 

Em alguns casos, mudaram seu discurso político, substituindo a clássica


divisão entre a direita e a esquerda pelo conflito “entre os de cima e os de baixo”.
Nessa nova polarização, esses partidos se candidataram como representantes da
última parcela, o povo, contra o establishment, ou seja, as forças que se alternaram
no governo favorecendo o superpoder do mercado.

O aparato ideológico desses movimentos políticos mudou. O componente


racista foi, em muitos casos, colocado em segundo plano em relação às temáticas
econômicas. A oposição às políticas imigratórias – já cegas e restritivas – aplicadas
na União Europeia se reforçou, recorrendo antes à guerra entre os pobres que
à discriminação baseada na cor da pele ou na fé religiosa. Em um contexto de
desemprego de massa e de grave conflito social, a xenofobia inflou por meio da
propaganda que apresentava os imigrantes como os principais responsáveis pelos
problemas relativos ao emprego e aos serviços sociais.

Essa mudança de rota certamente influenciou no resultado da  Frente


Nacional na França, que alcançou 25,2% dos votos nas eleições municipais de 2015.
Na Europa, o partido de Marine Le Pen fez alianças com outras forças políticas
consolidadas que pedem, há tempos, a saída do euro, a revisão dos tratados sobre
imigração e a retomada da soberania nacional. Entre elas, as mais representativas
são a Liga Norte na Itália, cujos resultados eleitorais melhoraram, a ponto de ela se
tornar a primeira força de centro-direita nas eleições municipais de 2015; o Partido
da Liberdade austríaco, que conseguiu 20,5% dos votos nas eleições nacionais de
2013 e mais de 30% nas eleições municipais de Viena em 2015; e o Partido para
Liberdade holandês, que obteve 13,3% nas eleições europeias.

Pela primeira vez depois da Segunda Guerra Mundial, as forças de extrema


direita alcançaram resultados expressivos em outras regiões da Europa.

Na Suíça, as eleições recentes, de outubro de 2015, foram decididas com


29,4% dos votos para o Partido do Povo Suíço, organização da ultradireita xenófoba
78
TÓPICO 3 | IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE

e promotora do referendo, aprovado em 2009, para proibir a construção de novas


torres de mesquitas.

Também na Escandinávia, a extrema direita representa uma realidade bem


consolidada. Na pátria por excelência do “modelo nórdico”, o Democratas Suecos,
fundado em 1988 pela fusão de diversos grupos neonazistas, foi o terceiro partido
mais votado nas eleições legislativas de 2014, com 12,8% dos votos.

Na Dinamarca e na Finlândia, dois partidos criados em 1995 alcançaram


resultados ainda mais surpreendentes, transformando-se na segunda força política
desses países. O Partido Popular Dinamarquês foi o movimento político mais votado
nas últimas eleições europeias, com 26,6%. Esse sucesso foi confirmado nas eleições
legislativas de 2015, que na sequência lhe proporcionaram a maioria no governo.
Depois das eleições de 2015, às cadeiras do governo de Helsinki ascenderam
também os Verdadeiros Finlandeses, com 17,6% dos votos.

Por fim, na Noruega, com 16,3% dos votos, o Partido do Progresso chegou pela
primeira vez ao governo com posicionamentos políticos igualmente reacionários.

A destacada e quase uniforme afirmação desses partidos numa região onde


as organizações do movimento operário exercitaram uma indiscutível hegemonia
por longos anos foi possível também porque os partidos de extrema direita se
apropriaram de batalhas e temáticas que no passado eram caras à esquerda, tanto
a socialdemocrata, quanto a comunista.

A ascensão da direita adveio não somente fazendo apelo às clássicas


campanhas reacionárias, mas também àquelas contra a globalização, a chegada
de novos refugiados ou solicitantes de refúgio e o espectro da “islamização” da
sociedade. Na base de seu sucesso esteve, sobretudo, a reivindicação de políticas
tradicionalmente de esquerda, a favor do Estado Social. Trata-se, entretanto, de
um novo tipo de welfare. Não mais universal, inclusivo e solidário, como aquele
do passado, mas fundado em um princípio diferente: o acesso a direitos e serviços
exclusivamente aos membros da preexistente comunidade nacional.

Ao amplo apoio das zonas rurais e de província, despovoadas e com taxa de


desemprego recorde, a extrema direita escandinava reuniu, assim, aquele da classe
operária que, em grande parte, cedeu à chantagem da “imigração ou Estado Social”.

PERIGO NO LESTE

Até mesmo em diversos países do Leste europeu, a extrema direita


conseguiu se reorganizar depois do fim dos regimes pró-soviéticos. A  União
Nacional Ataque na Bulgária, o Partido Eslovaco Nacional e o Partido Grande Romênia são
algumas das forças políticas que conseguiram bons resultados eleitorais e presença
no Parlamento.

Nessa área da Europa, o caso mais alarmante é o da Hungria. Em


seguida à introdução de severas medidas de austeridade aplicadas pelo Partido
79
UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES

Socialista húngaro, em acordo com as intimações da Troika, e à grave crise


inflacionária derivada, subiu ao poder o  Partido Fidesz. Além das medidas para
purificar a magistratura e estabelecer o controle da grande mídia, em 2012, o governo
húngaro introduziu uma nova Constituição com viés fortemente autoritário.

Para compor essa realidade já ameaçadora, desde 2010, o Movimento por


uma Hungria Melhor (Jobbik) se tornou o terceiro partido do país (com 20,5% dos
votos nas eleições de 2014). Mas, diferentemente das forças presentes na Europa
ocidental e escandinava, Jobbik representa o clássico exemplo – hoje dominante no
Leste – de formações de extrema direita que continuam a se valer do ódio contra as
minorias (em particular aquela cigana), o antissemitismo e o anticomunismo como
principais instrumentos de propaganda e de ação.

Enfim, completam esse panorama as várias organizações neonazistas


espalhadas em diversas áreas da Europa. Um exemplo é o Aurora Dourada, que
com 9,4% nas eleições europeias de 2014 e 7% nas eleições de setembro de 2015
afirmou-se, em ambos os casos, como a terceira força política da Grécia.

Nesses anos, portanto, os partidos de extrema direita nitidamente ampliaram


seu apoio em quase todas as partes da Europa. Muitas vezes, conseguiram
hegemonizar o debate político e, em alguns casos, a entrar no governo.

A crescente expansão da União Europeia deslocou à direita o centro de


gravidade político do continente, como testemunharam as rígidas posições
extremistas assumidas pelos governos da Europa oriental durante a recente crise
na Grécia e diante da chegada de povos em fuga dos palcos de guerra.

Trata-se de uma epidemia muito preocupante, para a qual é impossível


pensar em uma resposta sem combater o vírus que a gerou: o mantra neoliberal
hoje ainda tão em voga em Bruxelas.
FONTE: Disponível em: <http://www.unicamp.br/unicamp/sites/default/files/jornal/paginas/ju_646_
paginacor_11_web.pdf>. Acesso em: 7 jul. 2017.

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RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Que em nossa época pós-moderna ou de alta modernidade as concepções sobre


identidade são percebidas de modo mais plural.

• Identidade e diferença passam a ser percebidas como relacionais. Elas são


concebidas como atos de criação linguística reproduzidos por meio de sistemas
simbólicos. As identidades adquirem sentido por meio de linguagem e dos
sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas.

• Que em razão dessa complexidade existe uma forte crítica de cunho


epistemológico sobre as bases que assentam identidades essenciais. Daí a
importância dos Estudos Culturais, do impacto da globalização na análise clássica
das Ciências Sociais, a centralidade da Cultura e a Teoria do Reconhecimento.

• A Teoria do Reconhecimento preocupa-se com as questões culturais. Porém,


articula esse debate a questões de injustiça e de justiça redistributiva. Quer dizer,
os fenômenos como cultura, identidade, racismo etc. têm impactos materiais.

• A globalização (ou as globalizações) tem trazido novas formas de encarar o


indivíduo dentre o global e nacional. Novas identidades locais, regionais,
híbridas têm sido trazidas ao debate.

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AUTOATIVIDADE

1 Qual a importância da Teoria do Reconhecimento para as lutas de gênero e


étnicas?

2 Sintetize a ideia de Boaventura de Sousa Santos sobre “globalizações”.

3 Segundo Anthony Giddens e Zygmunt Bauman, quais as características das


identidades na nossa época?

4 Na questão da produção social da identidade, explique o papel da diferença.

5 O que é uma identidade híbrida para Nestor Garcia Canclini e para Stuart
Hall?

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