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31º Encontro Anual da ANPOCS, de 22 a 26 de outubro de 2007,

Caxambu, MG.

Dilemas da Modernidade Periférica

ST - 13

Modernidade e Identidade: algumas reflexões sobre o caso


Brasileiro

Priscila Elisabete da Silva


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara.
Modernidade e Identidade: algumas reflexões sobre o caso Brasileiro

Introdução

Este texto tem por objetivo refletir o elemento Identidade dentro do processo histórico
denominado Modernidade Ocidental. Procuraremos demonstrar como a Modernidade trabalhou o
elemento Identidade a ponto de elaborar uma nova compreensão sobre tal fenômeno; seja no que
diz respeito ao processo histórico, seja para os sujeitos deste processo.
Muitas mudanças se processaram do Projeto de Modernidade, elaborado nos século XVI à
Modernidade contemporânea. Entre as principais propostas presentes no Projeto de Modernidade,
a racionalidade foi das que mais desdobramento apresentou. Entretanto, é fato que em diferentes
medidas, as concepções “modernas” foram reelaboradas e redirecionadas neste percurso. Não só
a ideologia política por detrás da concepção de Modernidade se modificou, mas também – e
talvez principalmente – houve um forte desdobramento científico-tecnológico, este, por sua vez,
produto direto da experiência racionalmente direcionada.
Desde a expansão comercial onde se iniciava, de forma mais sistemática, a aproximação
entre conhecimento científico e acumulação econômica, vimos nascer uma característica cruel da
Modernidade, qual seja, a exploração e coisificação do “outro”, sendo este todos aqueles
diferentes do explorador colonizador.
Aquela mesma racionalidade construída da negação às “Trevas”, não foi capaz de
iluminar o “espírito humano” – como assim previa – não distribuiu nem mesmo um trêmulo feixe
de luz que fosse capaz de mostrar o quão irracional era explorar outros seres humanos em nome
de bens materiais. Este momento foi marcado por genocídios que geralmente não são vistos como
tal, já que não reconhecemos tratar-se de seres humanos aqueles homens, mulheres e crianças
indígenas e africanas que foram exploradas até a morte em terras americanas. Processo que não
arbitrariamente é esquecido, tamanho grau de irracionalidade.
A construção do modelo de “civilização moderna” (hoje recodificada e reconhecida por
“países de primeiro mundo”) – não devemos esquecer – esteve respaldada pela idéia de
hierarquização humana onde só se reconhecia a humanidade do explorador vindo do “Velho
Mundo” europeu. A partir do século XVII, vemos solidificar-se uma ideologia que procurava

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justificar a exploração do “outro”. Dentro de uma concepção científica, tal ideologia apontava
para a associação entre racionalidade e biologia, em outras palavras, afirmava ser possível medir
o grau de humanidade das diferentes “raças” humanas a partir de suas características visíveis,
geográficas e culturais. A capacidade racional estava, assim, inscrita no corpo e nas ações destes
povos que foram entendidos como inferiores em relação ao explorador (SANTOS, 2002).
Vemos que foi a partir de bases iluministas, construída na negação à irracionalidade
teológica que a Modernidade é construída por e para determinado grupo social (uma pequena
elite), todavia, é justificada como sendo a emancipação da humanidade. Sob tal ideologia, o
modelo de progresso e de identidade foi moldado e espraiou-se no ritmo da expansão colonial.
“Sigam o nosso exemplo!” pareciam anunciar os colonizadores. Todavia, por mais que se
tentasse – e muito se tentou – nunca era possível chegar próximo deste modelo, pois ele nunca se
permitiria “copiar”.
Das tentativas de aproximação, elaborou-se o que entendemos ser as diferentes versões de
Modernidades espalhadas pelo mundo. Modernidades “periféricas” (SOUZA, 200), se tomadas
em relação ao modelo europeu, mas que nem por isso, deixam de serem elaboradas por uma
constante necessidade de aproximação – o mais possível – do modelo aceito. Entendemos que a
Modernidade traz em si contradições inerentes, uma destas é esta imposição a um determinado
modelo de compreensão do mundo. Como “guardiã” dos valores modernos, a Europa se colocou
como modelo de civilização.
O Brasil emerge mundialmente, dentro deste contexto. Fruto deste processo de expansão
comercial procurou desde cedo seguir os passos da modernidade européia, seja quando ainda era
colônia, seja posteriormente. Fato que marca sua identidade nacional sendo constituída dentro da
ambigüidade: ser um país multiétnico, mas querer ser homogêneo. A estrutura social presente no
período colonial (senhor/escravo) permanece estruturando a modernidade brasileira. Durante a
história brasileira vimos essa dicotomia ser assegurada por um grupo particular detentor de poder
econômico e intelectual que, construiu o imaginário da nação brasileira negando sua imensa
porção indígena e negra em detrimento de um ideal de europeização. Para assegurar a estrutura
onde uma pequena elite de descendência européia detinha os bens sociais, criou-se identidades
marginalizadas como o inverso que afirma a superioridade de uma elite branca de descendência
européia.

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No bojo das mudanças sociais empreendidas pela Modernidade Contemporânea1, onde se
faz sentir uma intensa crítica ao modelo de identidade imposto pela Modernidade, é possível
ouvirmos as vozes de grupos marginalizados que buscam afirmar visões de mundo diferentes a
partir, sobretudo, da afirmação de identidades que fogem do modelo até então aceito e desejado.
No caso do Brasil estes movimentos – sobretudo os étnicos – ganham impulso com os
acontecimentos globais e buscam questionar a imagem de um Brasil construído na
homogeneidade étnica. Na nossa visão tais grupos elaboram um momento muito especial, pois ao
questionarem a concepção de nacionalidade brasileira evidenciam uma possível ruptura entre os
dois planos ideológicos específicos da modernidade brasileira, quais sejam, o “plano ideal” –
onde a idéia de democracia racial funda o povo brasileiro – e o “plano real”, ou seja, as relações
sociais cotidianas, onde impera uma diferenciação construída sob a idéia de hierarquia racial2,
onde mais de cinqüenta por cento da população vive sob o estigma de uma identidade mal quista
por sua descendência não européia.
Em nosso entender estes grupos lançam mão das possibilidades apresentadas pela
modernidade contemporânea para questionar a própria concepção de modernidade, mais
especificamente a partir do questionamento de suas bases estruturais, onde temos como exemplo,
a concepção de racionalidade e de visão de mundo tal qual empregada pelo Ocidente. Estas vozes
que por séculos foram institucionalmente silenciadas, hoje encontram no desgaste da
Modernidade o contexto favorável para não só emergirem a cena, mas propor novo roteiro.

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O conceito de Modernidade Contemporânea será mais trabalhado no decorrer do texto, todavia, já neste momento
adiantamos que o conceito diz respeito ao momento atual da Modernidade, este marcado por experiências
radicalizadas ao mesmo tempo em que fragilizadas num movimento de desconstruir as bases que formava o homem
moderno. Ainda sobre este conceito é interessante ressaltar que existem diferentes interpretações sobre o período
contemporâneo da Modernidade, há autores que o classifica de “Modernidade líquida”, outros de “Modernidade
radicalizada” e outros ainda trabalham o conceito de “Pós-modernidade”. Quando nos referirmos a este conceito,
estaremos entendendo-o como o período marcado pela radicalização das experiências trazidas pela Modernidade, ou
seja, entendemos haver um momento em que a Modernidade passa a extrapolar os limites traçados em seu projeto.
As experiências sociais que surgem principalmente após a segunda metade do século XX, marcariam este momento
de transição entre a Modernidade e a Modernidade contemporânea.
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Este que aqui chamamos de “plano real” abarca um grande contingente de indivíduos que vivenciam as
experiências sociais a partir da condição de identidade estigmatizada, como é o caso dos negros. Segundo pesquisa
recente da Pnad (IBGE) o percentual desta população chega a 50%, ou seja, estamos falando de metade dos
brasileiros. (FOLHA DE SÃO PAULO, 15 de Setembro de 2007).

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Algumas considerações sobre o conceito de Identidade

O tema da identidade – podemos afirmar – sempre se fez presente na reflexão humana. Os


achados arqueológicos há muito nos mostram este fato, as pinturas rupestres, as cerâmicas
datadas de diferentes épocas cujos símbolos muitas vezes denunciam a necessidade de
representação de si e da vida em “grupo”, são exemplos que nos permitem inferir tal proposição.
Em nossa interpretação, a identidade é, antes de tudo, uma construção subjetiva que o
humano se vale para simbolizar o mundo e sua participação dentro deste; um exercício de
reflexão que proporciona a cognição, esta elemento necessário à sobrevivência. Na compreensão
de um estudioso da identidade, Ferreira (2000), a identidade é um processo em construção.

Nesse processo, a experiência psicológica encerra um caráter de construção


permanente, em que as especificidades das experiências pessoais determinam a
maneira como o indivíduo constrói suas referências de mundo, incluindo aquelas
através das quais ele pode reconhecer-se como um determinado indivíduo – sua
identidade. São referências em torno das quais ele organiza a si mesmo e a sua
relação com o mundo, coletivamente compartilhadas, tanto no nível consciente
quanto inconsciente. [...] A identidade não se reduz somente a uma
representação do indivíduo a distingui-lo de outros e, ao mesmo tempo,
indicando uma semelhança sua em relação a determinado grupo de referência,
porém, mais do que isso [...] a identidade é uma referência em torno da qual a
pessoa se constitui (FERREIRA, 2000, p. 46-7).

Desta forma, devemos reconhecer que a identidade é uma relação entre estas duas
dimensões: a dimensão subjetiva e a dimensão social. Ser aceito, pertencer a um determinado
grupo social significa ter a identidade reconhecida. Dito de outra maneira, a relação entre a
criação (dimensão subjetiva) e o reconhecimento desta (dimensão coletiva) é o movimento que
aqui denominamos de construção da identidade.
Há, todavia, outro conceito de extrema importância à identidade, qual seja, o conceito de
classificação. Ao construir uma identidade estamos classificando (a nós, aos outros e/ou a
ambos), classificar torna-se – nesse sentido – um instrumento fundamental para a construção da
diferença (ou seja, das características específicas que me diferenciam de outros e que, por sua
vez, me conferirão identidade).
Na era moderna, mais especificamente a partir do final da Idade Média, a relação entre
identidade e classificação é pensada de forma nova, podemos dizer que entra em jogo um
“terceiro elemento”, qual seja a hierarquização. Dentro deste novo quadro, conhecido como o

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período moderno, a identidade (a diferença) passa a ser relacionada com hierarquização. Tal
pensamento construiu-se de forma polar, se por um lado reconheceu uma positividade (a
racionalidade, o novo, a mudança), por outro, delineou seu oposto, a negatividade (o irracional, o
tradicional, o antigo) que deveria ser abandonado.
Para compreender como se deu tal processo e, mais ainda, quais suas conseqüências para
a realidade brasileira entendemos ser necessário refletir sobre o processo de Modernidade
Ocidental e seus desdobramentos atuais. Análise que nos permitirá tecer algumas considerações
sobre o conceito de identidade para a realidade brasileira.

Modernidade: algumas interpretações sobre o conceito

Delinear as principais características que compõem a interpretação (sociológica) sobre o


conceito de Modernidade será nosso foco nesta seção. Partiremos, para tanto, da interpretação de
alguns teóricos que, em determinado momento de sua produção intelectual, voltaram-se à
compreensão deste que, no limite, podemos chamar de “momento histórico”: a Modernidade.
Trabalharemos aqui com três conceitos derivados: o Projeto de Modernidade, onde procuramos
delinear as bases dos elementos que compuseram a(s) diferentes Modernidades; a Modernidade
(ou Modernidades), ou seja, as diferentes versões ou interpretações decorrentes da leitura deste
projeto e, enfim, o conceito de Modernidade contemporânea que é entendida como o período a
partir do século XX e que expressa a versão mais “atual” do processo da Modernidade.
De antemão explicamos que ao refletirmos “momentos históricos” de um processo maior,
qual seja, a Modernidade, não temos a intenção de desenhar – a partir destes “fragmentos” – um
movimento linear que expressaria o processo em si, nem tão pouco procuramos afirmar que o
Projeto de Modernidade engendrou um processo único de Modernidade para todos os países, ao
contrário, concordamos com a interpretação de Souza (2000), quanto enfatiza que houve em cada
país, diferentes assimilações das bases expressas no “Projeto de Modernidade Ocidental”.
Em linhas gerais podemos dizer que a Modernidade – enquanto fenômeno histórico –
nasce entre o Humanismo Renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII. Sendo
um projeto da sociedade ocidental, constitui-se como negação à época das Trevas, onde o homem
era “prisioneiro” de uma crença transcendental. O projeto de modernidade trazia assim, uma nova

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maneira de significar o mundo. Sob a idéia de uma nova “vontade de saber” nasce o homem
artífice que se entende como detentor da razão.
Este projeto formou-se a partir da negação ao passado e da construção de uma narrativa
histórica linear, marcada por um tempo mecânico cujo ponto de partida produzia uma ruptura
crucial com o passado, entendido como “tradicional”, arcaico, visto que se ligava à natureza, à
mística, aos dogmas religiosos que na Idade Média entorpeceu a razão humana. É nesta “Grande
Divisão”, ou seja, a polaridade moderna entre natureza e cultura, arcaicos e modernos, que se
forja o Homem Moderno. Um sujeito unificado cuja identidade era construída a partir do “sujeito
iluminista” (HALL, 2001), ou seja, um sujeito masculino, baseado numa concepção de pessoa
humana, um indivíduo centrado, unificado, dotado da capacidade de razão, de consciência e ação,
cujo centro consistia num núcleo interior ao sujeito, o centro essencial do eu era a identidade da
pessoa.
O projeto moderno legitimou-se, sobretudo, através da busca do conhecimento – fator
explicitado pelo Iluminismo –; do surgimento de instituição como o Estado-Nação, bem como do
capitalismo – este, segundo Giddens (1991), foi um dos grandes elementos institucionais a
promover a aceleração e a expansão das instituições modernas. Por um lado, o capitalismo
nascente da época expansionista levava consigo os novos valores que calçavam esta concepção
nova de mundo: a Modernidade Ocidental. Esses valores pressupunham a criação de instituições
fortes e centralizadoras que, no limite, construíssem uma unidade a partir de uma identidade que
se constituía na necessidade de homogeneidade territorial, cultural e ideológica. Em outras
palavras, tratava-se da constituição do Estado-Nação dentro de um território delimitado, habitado
por um povo de mesma língua e cultura que fosse capaz de desenvolver um “sentimento
nacional”, ou seja, que fosse capaz de reconhecer-se dentro de uma identidade ao mesmo tempo
nacional e individual.
Outro ponto central para entendermos como a Modernidade foi construída encontra-se na
concepção de racionalidade. Afastar-se do mundo mágico teológico da “Idade das Trevas” foi
uma das balizas presente no Projeto de Modernidade. O “desencantamento do mundo”
significava a liberdade do espírito e a capacidade de conhecimento centrada – agora – no homem
e não em um ser externo a este.
Como já nos mostrou Max Weber (1967), o homem moderno nasce ao desencantar-se da
explicação mágica (holística) de mundo, passando a mover-se por uma racionalidade outra, onde

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imperou o cálculo entre meios e fins. Buscando entender as ações sociais, Weber identifica na
sociedade moderna a preponderância da racionalidade instrumental. Fator que ao mesmo tempo
em que se torna apropriado para uma melhor eficácia – tendo em vista a complexidade da
sociedade – também a limitaria no momento em que contrapõe vocação (beruf) a especialidade.
Para nós Weber foi um autor que teve a sensibilidade de localizar a grande ruptura que
estrutura a identidade da modernidade, qual seja, a polarização entre o racional e o irracional que,
por sua vez, marcaram tantas outras polaridades das quais citamos: o moderno e o tradicional, o
civilizado e o bárbaro. Está cisão torna-se central também para explicar o investimento que foi
dado à racionalidade, seja no âmbito econômico, seja no âmbito do Estado e o surgimento da
burocratização que, por sua vez, é identificada como o elemento que marcaria o Estado-nacional
do século XX, impondo a todos uma “jaula de ferro”.
Tendo como base estes elementos (racionalidade, oposição ao mundo teológico,
experiência científica como forma de conhecer o homem e seu universo), aquilo que era o Projeto
de Modernidade se tornou o modelo de Modernidade a ser seguido. Suas diferentes interpretações
geraram o que aqui denominamos “Modernidades”. No que diz respeito à identidade
visualizamos a partir destas novas instituições, o surgimento de dois pontos centrais, quais sejam,
primeiramente a construção de uma identidade centrada na oposição velho/novo
(tradicional/moderno) que, por sua vez, encarregava-se de construir uma identidade para este
novo momento histórico. Por outro lado, e de maneira imbricada, formulava-se, a partir deste
primeiro processo, a identidade do homem moderno que Stuart Hall (2001) nos apresentou
acima.
Este processo – visto assim tão panoramicamente – não se deu de maneira tão delineada,
antes, foi constituindo-se a partir das “necessidades históricas” e da reação dos sujeitos de poder3.
Outra mudança fundamental posta pela Modernidade no seu desenvolvimento foi à alteração
radical entre as dimensões de tempo e espaço, que, como analisa Anthony Giddens (1991),
tornam-se “tempo-espacial”. Essa separação entre tempo e espaço tornou-se crucial para o

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Para lembrar a interpretação de Michel Foucault sobre as relações de poder na sociedade moderna. Foucault
entende – na contramão da maioria das interpretações correntes sobre a modernidade – que a transição entre o
período clássico, o “tradicional”, para o período moderno foi um processo que ocorreu a partir das “necessidades”
postas por este novo contexto. Contexto que sempre foi (e é) marcado por relações de poder não centralizadas, não
de uma classe ideológica, mas “capilarizadas”, presente em dispositivos (estruturas heterogêneas) presente nas
sociedades ocidentais e que exercem poder. Ou seja, para este autor, as relações que marcam a Modernidade são
relações que expressam resultados da ação/reação tanto de indivíduos quanto de instituições no que diz respeito às
necessidades contextuais. Cf. FOUCAULT, 1984.

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dinamismo da modernidade. Essa nova dimensão “tempo-espacial” promoveu o “esvaziamento”
das experiências sociais outrora locais e temporalmente experimentadas. Por outro lado, surgiram
novas formas de relações sociais e, de maneira paradoxal, essa dimensão tempo-espacial é capaz
de conectar o “local” e o “global”, todavia, essas relações são marcadas por deslocamentos e pela
efemeridade.
Para Giddens (1991), o que há de fundamental na Modernidade é o seu caráter de
“reflexividade indiscriminada”, o que lhe possibilita refletir sobre a natureza da própria reflexão.
Este seria o ponto de partida e, também, sua maior problemática, pois a reflexividade
indiscriminada abre brechas para as incertezas, fato que demarcaria certo limite ao projeto de
Modernidade, pois quando não se tem mais certeza do caminho a ser seguido, abre-se um
labirinto de possibilidades.
Em artigo denominado “Modernidade e Revolução”, Perry Anderson (1986) ao discutir o
livro “All that is Solid Melts into Air” de Marshell Berman (1982), também lança luz à
interpretação sobre o processo de Modernidade. Traremos alguns apontamentos desde artigo para
nos ajudar a caracterizar, sob diferentes ângulos, a Modernidade, vista como processo.
Berman (1982), partindo de Marx, expõe e analisa as expressões contemporâneas do
processo de Modernidade. Para este autor, esta é vivida como uma “experiência” que atinge a
todos de maneira turbulenta. Em suas palavras:
Ser moderno é encontrarmo-nos em um meio-ambiente que nos promete
aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de nós mesmos e do mundo
– e que, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que
conhecemos, tudo o que somos. (BERMAN apud ANDERSON, 1986, p. 2).

Para Berman ser moderno é fazer parte de um universo marcado pela volatização, por
uma multidão de processos sociais dos quais cita: as descobertas científicas, as revoluções da
indústria, as transformações demográficas, as formas de expansão urbana, os Estados nacionais,
os movimentos de massa. Todos estes, dentro do contexto da Modernidade estariam, em última
instância, impulsionados pelo mercado mundial capitalista “em perpétua expansão e
drasticamente flutuante”, tais processos são denominados “modernização” – no caso,
modernização sócio-econômica. Da experiência nascida da modernização surgiu o que Berman
descreve como:

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[...] a espantosa variedade de visões e idéias que visam a fazer de homens e
mulheres os sujeitos ao mesmo tempo em que os objetos da modernização, a
dar-lhes o poder de mudar o mundo que os está mudando, a abrir-lhes caminha
em meio ao turbilhão e apropriar-se dele – visões e valores que acabaram por ser
agrupados frouxamente sob o nome de modernismo. (BERMAN, apud
ANDERSON, 1986, p. 3).

Segundo entende Berman, a Modernidade seria o termo-médio chave, nem processo


econômico nem visão cultural, mas a “experiência histórica” que faz a mediação entre um e
outro.
Seja em Giddens (1991) ou em Berman (1982) percebemos que o processo denominado
Modernidade elaborou o homem moderno capaz de produzir e ser produzido dentro desta nova
visão de mundo.
Esta mudança radical processou-se primeiramente no Ocidente, mas num movimento
contínuo de expansão, se alastrou pelo mundo fazendo com que sua estrutura elementar – aqui já
delineada – reverberasse de maneira imperativa aos diferentes cantos do mundo. Havia, contudo,
um sentimento de inovação que justificava, sobretudo a partir da ciência (ou seja, da
racionalidade), uma visão de necessidade deste movimento expansionista, que se colocava como
um bem “civilizador”. Movidos tanto pelo interesse econômico quanto pela ânsia de
conhecimento presente já no Iluminismo, podemos dizer que essa expansão produziu um rastro
paradoxal, pois por um lado proporcionava o desenvolvimento da racionalidade, mas por outro,
desencadeava, a partir desta mesma racionalidade um processo de subjugação que destruía as
diferenças em nome de uma identidade homogênea, vista como o modelo de civilização.
Os séculos que se seguiram à implantação deste projeto, sobretudo o século XIX, foi
marcado por uma radicalização deste processo. Com o crescimento demográfico e a maximização
da racionalidade, surgem “problemas de percurso” e que já apontavam para a ineficácia do
projeto como o fora primeiramente delineado. O século XX foi, neste sentido, fulcral, pois
evidenciou, de forma radical, as fissuras da potencialidade racional. A primeira e a segunda
Guerra mundiais podem ser citadas como símbolos deste movimento.
Na tentativa de “salvar” o projeto de Modernidade uma das ações realizadas foi atribuir
maior força a algumas instituições modernas. O Mercado e o Estado-Nação foram instituições
que receberam novo impulso. Apostou-se nelas como meio para fazer com que o projeto de
modernidade perpetuasse como paradigma inconteste. Porém, neste processo, enquanto o
Mercado capitalista encontrou impulso na globalização da segunda metade do século XX, o

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Estado-Nação, por sua vez, perde seu poder consensual, processo que esteve diretamente
relacionado com um acontecimento muito particular que marca o século XX, qual seja, a
radicalização da globalização. Sobre este fenômeno nos mostra Giddens:

A globalização pode ser assim definida como a intensificação das relações


sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que
acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de
distância e vice-versa. Esse é um processo dialético porque tais acontecimentos
locais podem se deslocar numa direção anversa a relações distanciadas que os
modelam. (GIDDENS, 1991, p.70).

Fruto da nova compreensão sobre o espaço e o tempo, a globalização significou a


intensificação das relações sociais em escala mundial. Ligando localidades distantes, influenciou
diretamente as relações sociais tornando-as “esticadas”, fragmentadas e deslocadas. Contudo, a
globalização não é um processo novo, pois já se encontrava presente, de forma embrionária, na
exploração, na conquista e na colonização européia. Mas foi a partir da segunda metade do século
XX que este fenômeno se intensifica perpassando transversalmente pelos elementos da
Modernidade. Ao radicalizar-se, a Modernidade potencializa este fenômeno (globalização), é
neste contexto que surge a proposição “tempo-espacial” (GIDDENS, 1991), ou seja, há um novo
modo de vivenciar as relações e entender os valores sociais. A esfera econômica toma impulso
com esta possibilidade de deslocamento, no entendimento de alguns autores este fenômeno
acentua as diferenças constituídas pela modernidade já que fica latente a desigual distribuição dos
bens sociais trazidos pela Modernidade. Lendo este fenômeno a partir de sua vertente capitalista
Bruno Latour (1994), nos lembra que paira sobre a esfera social um ar que denuncia os
“vencedores” e os “perdedores”, mais que isto, o capitalismo intensifica tanto a exploração do
homem sobre o homem como a exploração da natureza pelo homem.
É decorrente deste processo, o aprofundamento da crise do Estado-Providência, o que
promove um agravamento das desigualdades sociais e do processo de exclusão social. Tal crise
põe em evidência o caráter restritivo das promessas da Modernidade. Diante da idéia de
homogeneidade, liberdade, prosperidade e cidadania, fica a realidade de submissão das
identidades culturais ao modelo ocidental, bem como a exclusão econômica e social dos
indivíduos portadores destas identidades estigmatizadas.
A despeito de todas as novas experiências trazidas pelo Projeto de Modernidade, uma vez
implantada, sua estrutura parece ganhar dinâmica própria. A Modernidade contemporânea traz

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consigo um turbilhão de possibilidades, que por sua vez produzem conseqüências nem sempre
conhecidas. Já nos anos finais do século XX, as reações ao modelo de Modernidade Ocidental –
implantado em diferentes locais do mundo – vem sendo fortemente questionado. Esse movimento
de crítica é fruto imediato da própria racionalidade elaborada pela modernidade visto que a alta
reflexividade que a Modernidade produziu repercutiu em todos os elementos que compuseram o
projeto moderno.
Para alguns autores, foi a partir da segunda metade do século XX – tanto pelo Pós-Guerra,
quanto pela queda do Muro de Berlin – que esta veia crítica manifestou-se intensificando um
sentimento de descontentamento já sinalizado em contexto anteriores. Deste descontentamento –
vindo de atores sociais que não só não faziam parte das promessas colocadas pela Modernidade,
mas também sentiam as agruras de ser o pólo negativo deste processo, ou seja, viam-se como
identidades marginalizadas o que refletia tanto no plano econômico, quanto na cidadania – não
era difícil perceber as lacunas deixadas pela Modernidade e, ao mesmo tempo, o produto deste
processo. Viu-se que a idéia de homogeneidade significava a submissão de tradições culturais de
valores milenares, em nome de um homem pensado não como modelo expressivo da
Humanidade em suas diferenças, mas a partir do modelo europeu ocidental. Em outras palavras é
a própria idéia de Identidade imposta pelo modelo de Modernidade que é colocada sob análise.
Esse sentimento de “revolta” social foi agravado pelo novo cenário que se delineava. Um
cenário marcado, sobretudo, pelas conseqüências da globalização. Sobre este momento
destacamos as palavras de Giddens (1991),

Ao mesmo tempo em que as relações sociais se tornam lateralmente esticadas e


como parte do mesmo processo, vemos o fortalecimento de pressões para
autonomia local e identidade cultural regional. (Idem, p.70).

Na mesma medida em que a globalização construiu-se como um dos principais “frutos”


da Modernidade, paradoxalmente foi também elemento de peso na desarticulação/rearticulação
de sua espinha dorsal, pois de uma só vez demonstra tanto suas potencialidades quanto suas
fraquezas e promove, como resultado mais expressivo deste processo, a reflexividade acentuada.

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Giddens (1991) aponta para uma problemática central presente no período contemporâneo
da Modernidade, qual seja, a relação entre identidade e globalização. Ora, se partimos do
pressuposto de que o fenômeno denominado globalização foi o principal detonador das mudanças
da Modernidade, entenderemos como este adentra as esferas sociais modificando-as por
completo. Em nossa compreensão a globalização teve por si só a autoridade para desarticular
todas as bases que compunha o projeto de Modernidade.
Procurando compreender como o indivíduo moderno constituiu sua identidade, Stuart
Hall (2001) identifica três concepções distintas de identidade presente dentro da Modernidade. A
primeira seria o sujeito do Iluminismo, a segunda o sujeito sociológico e a terceira a identidade
que surge no sujeito pós-moderno4. Segundo Hall (2001), a identidade do sujeito do Iluminismo
era masculina, estava baseada numa concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente
centrado, unificado, dotado de razão, consciência e de ação. O centro essencial do “eu” consistia
num núcleo interior que nascia com o indivíduo e o acompanhava pela vida, esse centro era a
identidade da pessoa.
A noção de sujeito sociológico surge no contexto da crescente complexidade do mundo
moderno. Esta leitura questiona o núcleo interior do sujeito iluminista, sua auto-suficiência e sua
autonomia entendendo que era fundamental para a formação deste a relação com outras pessoas.
Essas pessoas mediariam para o sujeito a cultura do mundo que ele habitava. Em suma, de acordo
com a visão da sociologia interacionista, a identidade era formada na interação entre o eu e a
sociedade. O sujeito ainda teria um “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo
contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que estes mundos oferecem. A
identidade nesta concepção sociológica preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre
o mundo pessoal e o mundo público (HALL, 2001), “costurando” o indivíduo à estrutura
promovendo uma maior reciprocidade entre eles, tornando-os mais unificados e previsíveis.
Neste sentido,

[...] projetamos a ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo


em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte de nós’,

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É importante acentuar que Hall denomina este momento contemporâneo da Modernidade como a “pós-
modernidade”. Dentre vários intelectuais do século XXI, há a idéia de que este século marcou um rompimento em
relação à Modernidade. A discussão é longa, para alguns a cisão seria tão profunda que estaríamos vivenciando um
período que classificam de “Pós-Modernidade” (Hall, 2001).

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contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos
que ocupamos no mundo social e cultural. (HALL, 2001, p.12).

Dentre as concepções apresentadas encontramos a construção de uma identidade que


deveria ser estável, unificada. Essa característica explica-se pela necessidade de promover a
conformidade entre sujeitos e instituições ou “conformidades subjetivas com ‘necessidades’
objetivas da cultura”. Segundo Hall (2001, p. 12) é exatamente esta característica da identidade
moderna: a confiança numa estrutura sólida, que, no ápice da Modernidade é fraturada, tornando
o indivíduo um sujeito fragmentado “composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não resolvidas”.
Uma vez que as esferas estruturais e institucionais entram em colapso (no que aqui
identificamos como o período contemporâneo da Modernidade), quebram-se as balizas que
estruturavam a identidade do sujeito moderno. Como resultado, Hall (2001) nos diz que “o
próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades
culturais, se torna mais provisório, variável e problemático”. Na visão do autor este é o processo
que está produzindo o sujeito pós-moderno, caracterizado por não ter uma identidade fixa, mas
sim uma identidade que se torna “celebração móvel”, ou seja, formada e transformada
dependendo como somos interpelados nos sistemas culturais que nos cercam. Estas novas
identidades são definidas historicamente e não biologicamente5.
Este autor nos diz que todas as identidades a partir de então estão localizadas em espaço e
tempo simbólicos (HALL, 2001, p.71). Se até agora vimos que uma das principais mudanças da
Modernidade foi justamente à mudança nas dimensões de tempo e espaço transformando-os em
coordenadas novas capaz de conectar realidades e “locais” extremamente distintos entre si, e,
como nos demonstra Hall, a identidade como sistema de representação se apóia nas coordenadas
tempo e espaço, logo, ela é influenciada por estes processos de deslocamento e realocamento de
experiências. O “lugar”, outrora específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado, o ponto de
práticas sociais específicas que nos moldam e nos formam e com os quais nossas identidades
estão ligadas torna-se abstrato, fazendo de nossas vivências experiências sociais incompletas
(HALL, 2001, p.72), pelo sentimento de insatisfação que estas experiências (incompletas) nos
provocam. Hall ainda afirma que quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado
global; pelos estilos; lugares; imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente

5
Como foi o caso da identidade Moderna, que tem como fundamento uma identidade enfatizada biologicamente, ou
seja, o que Mônica Grin (2002) chamou de “obsessão racial”.

14
interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas, desalojadas de tempo, lugares,
histórias e tradições específicas e parecem “flutuar livremente”.
A preocupação com este tema toma muitos estudiosos contemporâneos. Várias são as
linhas abordadas na tentativa de compreensão das conseqüências da globalização para a formação
das identidades. Mais especificamente no século XX, este problema deixou de ser assunto para
antropólogos e passou a envolver as ciências sociais como um todo. É preciso lembrar que as
novas identidades são “flutuantes” não só como conceito, mas também geograficamente. Basta
pensarmos nas ondas de imigração de pessoas que provêem de países ditos de “terceiro mundo”
para países que “melhor” conseguiram desenvolver o projeto de Modernidade. Essas migrações
demonstram uma reação material (física) de agentes sociais que, descontentes com seu lugar na
Modernidade, decidem almejar novos patamares. Este movimento marcado pela “facilidade”
trazida pela globalização e pela própria Modernidade (tecnologicamente falando), repercute não
só na elaboração de novas identidades e no conflito que possa existir entre identidades “novas” e
“identidades tradicionais”, mas também abala as fronteiras internacionais, fazendo-nos refletir
sobre a condição desses “novos cidadãos”.
Segundo Eduardo Bittar (2006), autor que pensa a relação entre identidade e globalização
na perspectiva das relações internacionais, mais especificamente dos Direitos Humanos, a
sociedade moderna é marcada pelo que denominou “sociedade espetáculo”. Paradoxalmente a
uma alta capacidade tecnológica, científica e reflexiva, encontramos uma sociedade com muita
circulação de informações que, no seu entender, é o motivo principal da baixa presença reflexiva
por parte dos cidadãos. Confuso? Nem tanto, Bittar nos explica que é exatamente por estarmos
numa sociedade de intensa troca de informações que atravessa o globo a partir do fenômeno da
globalização, é que nos habituamos a conhecer fragmentos de culturas, de lugares, etc., mas não
suas realidades complexas. Segundo o autor os jogos de imagens criados por uma nova esfera
social fortíssima, a mídia, acaba por definir a essência do conhecimento globalizado.
A mídia internacional (particularmente européia e norte-americana) é guiada por suas
táticas já convencionais e por interesses econômicos que, no limite, produz “o relato da verdade”
que é parcial, mas se torna a fonte de formação de opiniões e de deliberações governamentais.
Com tais direcionamentos, torna-se protagonista de um processo de acentuação das diferenças
culturais entre povos e civilizações de valores e diferenças históricas. Em outras palavras, a mídia
corrobora para a perpetuação dos valores que pontuaram o projeto de modernidade.

15
Bittar (2006) não esta sozinho neste pensamento, o pesquisador Martin Jacques (2006),
em entrevista à Folha de São Paulo, destaque que a globalização promoveu, no Ocidente, atitudes
menos respeitosa e mais intolerante, certamente por parte dos Estados Unidos em relação a outras
culturas, regiões e sociedades. A suposição implícita na globalização é que o mundo inteiro
caminha na mesma direção, rumo ao mesmo destino. Acrescenta que a globalização trouxe
consigo um novo tipo de presunção ocidental: a de que os valores e sistemas do Ocidente
deveriam ser os do mundo; de que eles têm aplicação e método universais. “No âmago da
globalização esta um novo tipo de intolerância ocidental em relação a outras culturas, tradições e
valores, menos brutal que na era do colonialismo, mas mais abrangente e totalitário (s/p).”
Segundo o autor, a globalização não suprime só a distância física, mas também – e de um modo
mais perigoso – atinge a noção de distância mentalmente quando cria uma ilusão de intimidade
quando na verdade as distâncias mentais pouco mudaram.
Estes estudos nos possibilitam pensar que a globalização acaba por reatualizar o projeto
de modernidade, todavia, vai além da proposta inicial quando “brinca” com a capacidade de
“experienciação” do homem.

Pensando a Modernidade Brasileira a partir do conceito de identidade.

Como vimos, a Modernidade foi um processo que se espalhou rasteiramente pelo mundo
levando consigo um ideal de “sociedade civilizada” que apresentava determinado parâmetro de
identidade. Todavia, sua absorção não se deu de maneira homogênea por todos os países,
contrariamente, a cada cultura ela moldou-se ressaltando, em cada caso particular, uma
característica específica do projeto moderno. Esse processo é denominado por Jessé de Souza
(2000) como “modernização seletiva”, ou seja, houve conforme os diferentes contextos sócio-
culturais, uma “escolha”, ou melhor, uma seleção de fatores “inscritos” no projeto de
modernidade que, no limite, compuseram diferente(s) modernidade(s) a partir das bases da
modernidade ocidental.
A Modernidade ocidental chega ao Brasil através do processo de expansão comercial
européia. Portugal marcou sua presença na colônia brasileira impondo-se como o explorador
europeu que traz consigo a humanidade característica das civilizações do Velho Mundo. A
primeira intenção era a de exploração econômica propriamente dita, todavia, num segundo

16
momento o Brasil passa a ser motivo de ações “civilizatórias”. A história brasileira desde então é
marcada por uma tênue, mais sempre presente, necessidade de europeização. Nossas elites rurais
entendiam-se sendo extensão de Portugal, só reconheciam a civilidade em si mesma e, no limite
buscaram civilizar os nativos brasileiros (indígenas), já aos negros trazidos à força da África a
imagem que se construía era a de não humanos.
Para Souza (2002) o Brasil representa uma variação singular do desenvolvimento
específico da modernidade ocidental. Nossa singularidade fora delineada pela relação entre os
valores tradicionais de herança escravocrata e o embate com o novo – o moderno – que é trazido
primeiramente com a abertura dos portos e, posteriormente com a vinda da família real para o
Brasil.
A modernidade chega ao país de navio, [...] e põe de ponta cabeça seja no seu
aspecto material, seja no seu aspecto simbólico, toda a sociedade vigente. Com
relação a estes novos valores que chegam, não havia diferença de fundo entre
“brancos”, mestiços ou negros. Esses valores são estranhos a todos igualmente e
põem, portanto, a questão do status relativo sob novos padrões [...]. A própria
“elite” do patriarcalismo rural teve de se curvar a mudanças que afetavam sua
própria vida cotidiana e doméstica. (SOUZA, 2000, p. 245).

Eis o momento em que ocorre o choque entre valores “tradicionais” – de herança colonial
em que predominava uma hierarquia social pautada na distinção “racial” – e novos valores
engendrados pela possibilidade de inserção no mercado capitalista e pela construção de um
aparelho de Estado tendencialmente racional, que fora construído com a vinda da família real.
Seriam estes valores “que iriam presidir a institucionalização incipiente de formas
extremamente eficazes de condução da vida cotidiana: o Estado e o mercado capitalistas.”
(SOUZA, 2000, p. 245). Estado e Mercado pressupõem uma mudança estrutural, uma revolução
social, econômica, valorativa e moral. Este momento remarca os papéis sociais até então vigentes
abrindo uma nova configuração social brasileira onde o mestiço ganha visibilidade.
Procurando compreender a dinâmica da sociedade brasileira e pensando no processo de
modernização, Souza (2000), ressalta que é fundamental entender o momento em que a
modernidade chega ao Brasil, pois os novos valores que ela enseja articularam nossa cultura
delineando classes sociais, “capacitadas” ou não de participação nas “benesses” trazidas por esta
nova realidade. Segundo aponta, estes novos valores permitem ver que “branco” ou “negro” não
é uma categoria biológica, mas cultural. Seguir este raciocínio significa:

17
[...] perceber a temática racial desse período por referência ao processo de
‘europeização’ que tomava o país. Assim, ser considerado ‘branco’ era ser
considerado útil ao esforço de modernização do país, daí a possibilidade mesma
de ser ‘embranquecer’, fechada em outros sistemas com outras características.
(SOUZA, 2000, p. 248-49).

Ser “branco”, afirma Souza, era indicador de atributos morais e culturais, mais do que
significava a própria cor. Nesse sentido, “embranquecer” significava compartilhar os valores
dominantes da cultura européia.
De maneira ambígua, a sociedade brasileira vai construindo sua modernidade, em termos
paradoxais, se levado em conta o modelo que respaldava este período, ou seja, o modelo europeu.
Nossa sociedade articulou valores da modernidade européia como a igualdade (valor básico da
modernidade Ocidental) com uma herança hierárquica onde se partia da distinção entre “negros”
e “brancos”, ou seja, no limite, a igualdade era vista como direito dos civilizados, ou seja,
europeus.
O caminho do “embranquecimento” é um caminho viciado porque o “branco” já
é, desde o começo, “superior”, ou “mais igual” que o não - “branco”. Nenhuma
possibilidade real de “embranquecimento” elimina essa realidade prévia e
fundamental. (SOUZA, 2000, p. 250).

Este autor nos ajuda a entender que no processo de modernização brasileira a questão
racial foi sobredeterminada pela revolução valorativa causada pela instituição do Mercado e do
Estado, ou seja, das principais instituições modernas. Se por um lado à europeização vinda a
partir de 1808 foi a real revolução modernizadora e burguesa brasileira ao colocar os valores
europeus modernos, por outro lado, ela permitiu a ascensão de amplas camadas sociais segundo
critérios impessoais – a despeito da vontade de burocratização. Ao mesmo tempo condenou uma
grande parcela da população a condição de párias rurais e urbanos. Desta forma, a posse de
valores europeus individualistas vai distinguir e legitimar a dominação social de um estrato social
sobre o outro, naturalizando desigualdades. Dito de outra forma, o fato se estar mais próximo de
tudo o que lembra ser branco, influenciou (e influência) as relações sociais no Brasil.
A seletividade do nosso processo de modernização esteve marcada pelo choque cultural
que os valores da modernidade européia nos causou desarticulando a polaridade presente na
relação entre senhor e escravo, bem como as posições personalistas baseadas nesta. O senhor
perde sua autoridade, também o escravo perde seu lugar no novo sistema produtivo e transformá-
se no pária urbano.

18
Sobre como a sociedade brasileira absorveu os valores da modernidade ocidental nos
mostra Souza:
O Brasil não é um país moderno e ocidental no sentido comparativo de afluência
material e desenvolvimento das instituições democráticas. Mas o Brasil é
certamente um país moderno no sentido ocidental do termo, se levarmos em
conta que os valores modernos e ocidentais são os únicos aceitos como
legítimos. Esses são os nossos valores dominantes e é isso que explica o fascínio
do tema da modernização entre nós. (SOUZA, 2000, p. 267).

Valores que serão expressos na sociabilidade das relações no Brasil, marcadas por uma
singularidade criada pela tentativa de assimilação do modelo de modernidade européia. Ao negar
suas características culturais o Brasil – a partir de uma elite que se via européia – formula duas
realidades distintas, de um lado está o Brasil que se quer branco, por outro a realidade cotidiana
formada por um grande contingente de descendentes de africanos e indígenas. Processo que
evidencia uma ambigüidade entre uma identidade nacional – criada com o intuito de inserir o
Brasil no quadro de sociedades modernas – que ganha maior intensidade na década de 1930 a
partir da aceitação institucional da idéia de que somos um país onde impera a “democracia
racial”, e a realidade cotidiana de milhões de indivíduos que – neste processo – tiveram sua
identidade marginalizada, e, também por isso, não se reconhecem pertencentes à modernidade
brasileira.
Falando do ponto de vista das relações étnico-raciais, Antônio Sérgio Guimarães (2002)
nos mostra ainda outras conseqüências do projeto de modernidade para nossa formação. Para este
autor, a modernidade brasileira é produto dos últimos setenta anos, fruto e articulação entre elite
econômica e intelectual.
Os sociólogos e cientistas políticos demarcam, geralmente, tal modernidade com
a Revolução de 1930, que pôs fim à Primeira República (1889-1929). Se em
relação ao Império (1823-1889), a Primeira República procurou modernizar o
Brasil através da adoção de novas instituições, da europeização dos costumes
(Freyre, 1936) e do incentivo à imigração européia (Seyferth, 1990; Schwarcz,
1993), em continuidade com aquele, manteve uma nacionalidade ostensivamente
polarizada, marcada pela enorme distância entre brancos e pretos, civilizados e
matutos. Foi apenas a partir de 1930, principalmente com o Estado Novo (1937-
1945) e a Segunda República (1945-1964) que o Brasil ganhou definitivamente
um ‘povo’, ou seja, inventou para si uma tradição e uma origem (GUIMARÃES,
2002, p. 117)6.

6
O autor ainda enfatiza que o povo brasileiro como concebemos hoje é uma criação modernista.

19
Tratava-se de solucionar o “problema” que marcou a reflexão dos nossos intelectuais do
século XX, ou seja, superar a visão pessimista que entendia que, devido a sua formação étnico-
racial, o Brasil estava fadado a não participar da plenitude das civilizações modernas européias.
A solução para tal questionamento surge com uma mudança radical no paradigma racial, que
passa da explicação biológica para a cultural. Transição que teve Gilberto Freyre como principal
teórico e a legitimação política de Getúlio Vargas, além de um contexto favorável desenhado
pelos anos de 1922.

Vargas, na política; Freyre, nas ciências sociais; os artistas e literatos


modernistas e regionalistas, nas artes; esses serão os principais responsáveis pela
‘solução’ da questão racial, diluída na matriz luso-brasileira e mestiça de base
popular, formada por séculos de colonização e de mestiçagem biológica e
cultural, em que o predomínio demográfico e civilizatório dos europeus nunca
fora completo a ponto de impor a segregação dos negros e mestiços. Ao
contrário, a estratégia dominante sempre fora de ‘transformismo’ e de
‘embranquecimento’, ou seja, de incorporação dos mestiços socialmente bem-
sucedidos ao grupo dominante ‘branco’ (GUIMARÃES, 2002, p.120).

Como acentua Guimarães, ocorre na década de 1930, no Brasil, a criação da identidade


nacional brasileira, para tanto foi necessário criar uma história comum para explicar a origem
tanto desta nação quanto de seu povo. Este povo brasileiro surgiu, então, da mistura entre as três
bases étnicas presentes no Brasil: a européia, a africana e a indígena. Todavia, no contexto dos
anos de 1930, entendia-se ser necessário o afastamento destas três matrizes, já que o brasileiro
deveria ser aquele que deixava para trás sua herança “externa” e se reconhecia portador dos
valores criados a partir da mistura cultural destas três matrizes.
Guimarães demonstra que este processo ganha força com a criação da idéia de
“democracia racial”, a partir da leitura que Roger Bastide teve do conceito freyriano de
“democracia social” luso-brasileira. Bastide teria alargado o conceito de democracia expressa por
Freyre “realçando-lhe o caráter propriamente universalista de ‘contribuição brasileira à
humanidade’”. (GUIMARÃES, 2000, p. 168).
O fato é que dentro de uma simbologia universalista de democracia o Brasil apresentava
ao mundo sua peculiaridade e civilidade ao conviver de maneira “harmônica” com todas as

20
raças7. Por outro lado, no cotidiano das relações, não se deixou de acreditar numa hierarquia
pautada pela diferença racial, mas agora esta era entendida através da explicação social e não
biológica. Em outras palavras, a “democracia racial” expressava uma democracia cultural, mas
não atingia – e nem tinha a pretensão disso – a esfera política e de direitos.
A lógica da política republicana em relação à população negra (de origem africana) foi
balizada por três construções simbólicas: primeiro o reconhecimento da escravidão como um
sistema inumano e aviltante; segundo o reconhecimento da dívida cultural que a nação brasileira
tem em relação aos negros – Gilberto Freyre, nesse sentido, reconhece o negro como o verdadeiro
colonizador; e terceiro, a idéia de que, enquanto povo, os brasileiros “ultrapassaram” os
elementos formadores da nação para se constituir numa meta-raça, num povo, o povo brasileiro.
Somos uma nação e não uma raça, assim, qualquer dos três pólos se reivindicado sem
mestiçagem seria estranho à nação. (GUIMARÃES, 2002, p. 121).
Por outro lado, foi também no período republicano que as instituições que conhecemos
hoje se consolidaram. Não arbitrariamente conseguimos visualizar que a ideologia que orientava
a criação de instituições como a escola pública, por exemplo, era devedora de teorias racistas
européias que, em contexto brasileiro, remete à cor da pele para classificar e diferenciar o tipo de
ensino voltado aos “cidadãos” brasileiros8. A política imigrantista empreendida pelo governo é
outro exemplo contundente.
Os anos de 1930 marcam, para Guimarães (2002) a nossa modernidade a partir de uma
sólida cultura nacional de bases mestiças e populares, de origens principalmente nordestinas,
baianas, cariocas e mineiras, que engenhosamente, foram capazes de desarmar a bomba étnica
que se formava em São Paulo devido à concentração de imigração européia e a conseqüente
competição no mercado de trabalho. Contudo, esta construção não foi capaz de dissolver o
preconceito racial e regional e as crescentes desigualdades raciais.
Refletindo sobre a identidade concebida pelo processo de modernidade ocidental, Mônica
Grin (2002) sugere um contraste entre os dilemas da identidade da modernidade no contexto
europeu e os dilemas da identidade da modernidade brasileira. A autora entende que na
modernidade européia a noção de identidade étnica está intrinsecamente ligada a noção de

7
É importante lembrar que o contexto mundial deste momento fora marcado pela Segunda Guerra Mundial onde a
questão central era a convivência racial. A partir da idéia de “democracia racial”, o Brasil mostra ao mundo sua
civilidade. Posição que só foi questionada a partir dos anos de 1950 com as pesquisas do Projeto UNESCO.
8
O trabalho de Dávila (2006) demonstra com precisão como se deu este processo na área de educação pública.

21
identidade racial, sendo que a primeira é subordinada à segunda. Sua argumentação nos mostra
que a Modernidade Ocidental construiu as bases do que seria, principalmente no século XX,
conhecido como expressões máximas do que a autora chama de “obsessão racial”, que
fundamentou o nazismo e o facismo, por exemplo.
Grin (2002, p. 206), chama a atenção para o que identifica ser “marcas identitárias”
criadas pela modernidade ocidental e absorvidas, de diferente forma, por diferentes países.
Exemplifica em sua análise a identidade criada para o “judeu” pelo nazismo, e, no caso brasileiro,
a identidade do “mulato”. Identidades ao mesmo tempo simbólicas e materiais, que criam um
“outro” para legitimar o seu oposto, ou seja, as identidades entendidas e reconhecidas como
“legítimas”, “apolíneas”, cujo valor fundamental repousa na sentença da superioridade racial.
No caso brasileiro, a autora identifica uma especificidade em relação ao modelo europeu
que não admitia o “híbrido”, ou seja, a ambivalência racial. No Brasil ocorre exatamente o
contrário, a identidade nacional é composta – como vimos acima – pela idéia de mestiçagem, de
“hibridação”, onde o “mestiço” é o símbolo do povo brasileiro, ou seja, da nação brasileira. A
autora concorda com Guimarães quando demarca a criação deste processo nos anos de 1930,
momento em que os intelectuais brasileiros promovem um contra-discurso alternativo ao
puritanismo racialista presente nos contextos europeus e norte-americanos. Todavia, ressalva a
autora, esta ambivalência brasileira ressalta uma dimensão sociológica perversa observável no
caso do suicídio do sociólogo “mulato” Eduardo de Oliveira e Oliveira na década de 1980. “No
país da ‘mestiçagem’, da ‘ambivalência’ racial, da ‘mulatice’, não haveria lugar para os que
desejam a solidez de uma identidade pura, definida e diferenciada” (GRIN, 2002, p. 204).
Eduardo de Oliveira e Oliveira (sociólogo) entendia estar na ambivalência do “mulato” a
legitimação da hierarquia racial vigente no Brasil, já que, o mulato é o “obstáculo
epistemológico”, a barreira simbólica que impede a clareza de um mundo social cuja história da
escravidão e opressão dos “não-brancos” deveria revelar-se determinada por critérios de
pertencimento ‘racial’ (OLIVEIRA, 1974, p. 205). Para Eduardo – ativo militante de uma
identidade verdadeiramente “negra”, ou seja, da valorização positiva em todas as esferas sociais
de uma identidade diferenciada, mas igualmente valorada – a criação do “mulato” servia para
amenizar, diluir a consciência e os conflitos raciais que, se bem articulados, modificariam o papel
que o negro tem na sociedade brasileira.

22
Como vimos com Guimarães (2002) e em Souza (2000) a idéia de mestiço expressa no
mulato foi o que caracterizou nossa modernidade, mas o que não podemos deixar de ressaltar é
que esta mesma construção não foi tomada ao pé da letra, ou seja, o mulato quando em posição
de embate, como nos mostrou Florestan Fernandes (1965)9, é colocado no seu lugar, em outras
palavras, é associado ao pólo “negro” e não ao pólo “branco”, sendo – na qualidade de brasileiro
– colocado à margem social.

Manipulação de identidades estigmatizadas: construção de novos paradigmas.

A imagem de democracia racial, ou seja, esta “acolhedora ambivalência” característica da


sociedade brasileira passa, a partir dos anos de 1950 a ser questionada tanto por intelectuais
quanto pela sociedade civil organizada, expressa nas diversas agremiações do movimento negro.
No bojo destas ações, o “Projeto Unesco” de 1950 apresentou como uma de suas
principais conclusões, a percepção empírica da vigência do preconceito racial no mesmo Brasil
que se entendia como uma “democracia racial”. Posteriormente, outros estudos (Hasenbalg,
1979; Valle e Silva, 1980) com abordagem estatística demonstram o imenso abismo entre os
diferentes grupos éticos no Brasil. A explicação para tal situação só era possível ao assumir o
peso das relações raciais no Brasil, que tinha (e tem) como principal norteador a cor da pele dos
indivíduos.
Guimarães (2002) observa que o contexto da década de 1980 no Brasil foi marcado por
estagnação econômica, pela crise financeira e a falta de direcionamento político claro. No bojo
das mudanças mundiais, onde ocorre um terremoto que abala as bases da modernidade pelo
mundo, o Brasil vivencia grande dificuldade de reconversão e de reinserção na nova ordem
mundial. Este processo foi agravado pela crise de governabilidade e teve como resultado um forte
abalo à idéia de identidade nacional. A resultante desta crise é enumerada por Guimarães (2002):
1. O ressurgimento, ainda que por breve período, de movimentos separatistas,
principalmente no Sul do país;
2. Surgimento de movimentos racistas voltados contra nordestinos e negros, principalmente
no Sudeste, exemplo temos os “Carecas do ABC”;

9
Florestan observou em A integração do negro na sociedade de classes que em situação de competição o
preconceito racial, nossa herança arcaica, emergia em nossa sociedade como instrumento para assegurar o status quo
da classe dominante.

23
3. Pela primeira vez em sua história o Brasil passa a ser uma origem importante na
emigração internacional;
4. O fato de um grande número de brasileiros de segunda, terceira e quarta geração
buscarem uma dupla nacionalidade;
5. O movimento de “reafricanização” dos costumes negros no Brasil, gerenciado
politicamente pela construção da identidade negra;
6. O movimento de reetnização dos povos indígenas brasileiros, dados com desaparecidos,
no Nordeste, Sudeste e Sul do país.

Estes elementos de mudança apontam para um processo que se apresenta, de alguma


forma mundialmente, qual seja, as críticas ao “projeto de modernidade ocidental” tal qual inscrito
pelo Projeto de Modernidade.
No que concerne à identidade dos sujeitos “modernos” estaria ocorrendo, nas sociedades
modernas contemporâneas, ou seja, nas sociedades complexas, como afirma Velho (1994), um
processo que engendra novas e diversas possibilidades de construção e manipulação da
identidade que passa a ser orientada – segundo este autor – por duas vertentes, de um lado o que
o ele chamou de “campo de possibilidades” que é orientado por dinâmicas do processo sócio-
histórico e com o potencial interpretativo do mundo simbólico da cultura, por outro lado, é
também orientado pela idéia de “projeto”, este um processo construído no plano individual que
lida com as interpretações que o indivíduo faz da realidade a partir de suas experiências
particulares.
Uma outra leitura, já apontada por Bittar (2006) sobre este momento é articulada pelos
teóricos que vêem na tese do multiculturalismo um possível caminho à compreensão dos
fenômenos atuais. O Movimento Negro – em sua representação intelectual – tem trabalhado esta
vertente teórica como alternativa ao modelo de visão de mundo empregado pelo Ocidente
(individualista, homogenizador, materialista, predatório). Para estes intelectuais, falar de
multiculturalismo é falar do manejo da diferença em nossas sociedades. O que não é apenas um
discurso em defesa da diversidade de formas de vida existentes nas sociedades contemporâneas,
mas um conjunto de aspectos ligados entre si, dos quais destacamos: (a) o reconhecimento da
não-homogeneidade étnica e cultural dessas sociedades; (b) o reconhecimento da não–integração
dos grupos que carregam e defendem as diferenças étnicas e culturais à matriz dominante do
nation-building nessas sociedades – após o fracasso seja de políticas assimilacionistas, seja de

24
políticas diferencialistas (baseadas na restrição de acesso ou mesmo na idéia de
“desenvolvimentos separados”); (c) a mobilização dos próprios recursos políticos e ideológicos
da tradição dominante nos países ocidentais - o liberalismo - contra os efeitos desta não-
integração; (d) a demanda por inclusão e por pluralidade por esferas de valor e práticas
institucionais no sentido da reparação de exclusões históricas; (e) a demanda por reorientação das
políticas públicas no sentido de assegurar a diversidade/pluralidade de grupos e tradições
(BITTAR, 1999).
Mas o multiculturalismo vai além das demandas lançadas ao Estado, ele elabora
identidades coletivas que buscam, no retorno ao passado, um modo de auto-afirmarem-se além de
promover cobranças por definições de padrões societários. A vinculação das demandas
multiculturais com a problemática dos direitos, fala Burity (1999), é um modo de “pacificar o
caráter mais truculento da emergência destes novos atores sociais, nesta disputa por poder”.
O multiculturalismo faz a crítica tanto da identidade moderna – individual e a nacional –
quanto do papel do Estado e do Mercado no que diz respeito à promoção e a legitimação de
identidades diferenciadas e valorizadas positivamente. Se por um lado o multiculturalismo
apresenta-se como um “perigo” à identidade da nação – visto que esta se coloca como
homogênea, por outro lado, ele pode engendrar uma nova lógica nacional pautada pelo convívio
respeitoso das diversas culturas e etnias.
É preciso notar a especificidade deste processo social. Durante muitos séculos no Brasil
negros e indígenas tiveram suas identidades marginalizadas’, pois comparadas à identidade
européia elas pouco – ou nada – valiam. A marginalização destas identidades tornou-se práticas
institucionalizadas pelo Estado, foram ressignificadas e transmitidas por gerações pela sociedade
civil. Tanto no plano simbólico quanto no plano material, os valores que compunham as
identidades dos negros descendentes dos africanos retirados da África e escravizados no Brasil,
bem como os de indígenas massacrados pelo colonizador, estiveram, no limite, escondidos sob o
rótulo de “brasileiro”, como se tal rótulo fosse a solução para todos os males nacionais, como se
nele não estivesse explícito – mesmo que sublimarmente – a idealização europeizante de nossas
elites.
O que estamos presenciando no momento através destes movimentos de cunho étnico –
como o Movimento Negro – não é apenas a manipulação através da positivação de uma
identidade que por séculos foi estigmatizada, mais que isto, vemos surgir uma concepção de

25
identidade pautada num misto entre valores modernos e valores culturais tradicionais. Não é sem
motivo que a positivação da identidade do negro brasileiro tem como principal foco a valorização
da imagem do negro a partir da “estética negra”. Podemos perceber uma escolha não aleatória de
elementos diacríticos que remetem a uma herança africana sendo manipulados dentro do ideal de
desconstrução de esteriótipos que negam os valores e especificidades de ser negro.

Nossa herança européia sob olhar crítico

Parece haver certo consenso entre nossos intelectuais que se dispõem a pensar o Brasil –
os quais geralmente estão sob a rubrica de “Pensamento Social Brasileiro” – no qual o Brasil é
visto sob o signo da falta, da ausência em relação à Modernidade Ocidental. As explicações
convergem sempre para o sentido de explicar o caminho que devemos seguir para chegar ao
modelo desejado – hoje não só o europeu, mas também o norte-americano.
Este pensamento social ainda está permeado por uma tradição intelectual que trabalha
com os valores oriundos do pensamento do colonizador europeu que aqui se implantou. Esta elite
tentou justificar a criação de uma estrutura social marcada pela relação de dominação e
exploração de seres humanos (como foi a escravização dos negros e indígenas). Tal estrutura
apresentava dois pólos principais: o senhor e o escravo. O primeiro detinha todos os poderes
(cultural e econômico) e se auto-reconhecia como representante da civilização humana. Já ao
segundo, coube ser o pólo oposto do primeiro, todavia necessário para a legitimação daquele.
A Modernidade chega ao Brasil neste contexto de estrutura dual e hierárquica. As
inovações que ela trouxe, mesmo perpassando por toda a estrutura, não conseguiu romper com a
hierarquia presente, ao contrário, intensificou ainda mais a imagem da Europa como modelo de
civilização humana.
No Brasil do século XIX, principalmente após a abolição, vimos a identidade nacional ser
construída. Tal movimento novamente seguiu o rastro europeu, como este apontasse para a
homogeneização cultural, nossa elite novamente marginalizou parte da população (negros e
índios). Em nome desta homogeneidade, buscavam aquilo que deveria ser o “povo brasileiro”. A
década de 1930 escancarou ao mundo a identidade do povo brasileiro, de pele “morena” e de
cultura europeizada. Neste sentido, presenciamos não raramente a construção de políticas
públicas de alijamento dos grupos sociais distintos deste projeto de nacionalidade.

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Segundo entendemos, reafirmou-se, principalmente neste período, duas diferentes
realidades identitárias no Brasil. Por um lado vemos se solidificar um velho sonho de nossas
elites, qual seja, a europeização do país. O principal instrumento utilizado para tanto foi à
concepção do imaginário de democracia racial, que no limite funcionou como artimanha para
diluir o forte movimento de crítica engendrado por movimentos sociais como a Frente Negra
Brasileira. Por outro lado, vemos identidades marginalizadas destituídas de poder político, mas
enganadas pela idéia de fazer parte de uma nação moderna.
Longe da harmonia imaginada e a despeito da concepção de democracia racial,
encontramos já na década de 1950, fortes ondas de crítica a este modelo de identidade nacional
que em seu bojo molda a identidade do ser brasileiro (a). No contexto da radicalização da
modernidade, processo mundial, cresce as resistências aos modelos de identidades fechadas. Nas
décadas seguintes, o Movimento Negro brasileiro utilizou-se deste contexto para recolocar na
esfera pública a discussão sobre o que é ser brasileiro a partir de identidades estigmatizadas.
Não é por acaso que este caminho foi traçado pela manipulação identitária. Ao
positivarem a identidade étnica, os movimentos identitários atacam o cerne da idéia do que é ser
brasileiro fazendo rachar a parede que demarca o “plano ideal” e o “plano real”. Em outras
palavras, os movimentos identirários tocam exatamente na concepção de homogeneidade, tão
necessária ao projeto de modernidade brasileira.
Ao lançarem-se às experiências identitárias, entendemos que estes grupos formulam
novas possibilidades de interpretar e vivenciar a Modernidade. Importante percebermos que
elaborar a crítica – como fazem estes grupos – não está necessariamente ligado a negar o
processo de Modernidade em si. Ao contrário, vemos que estes grupos partem de certas
conquistas modernas para formular propostas que tem como norte a idéia de igualdade de
condições e respeito pelas diferenças.

Conclusão

A intenção deste artigo foi a de problematizar o conceito de identidade gerado pela


Modernidade ocidental. Mais que isto, procuramos entender como este modelo foi absorvido pelo
Brasil. Podemos concluir, a partir da reflexão apresentada, que ao buscar seguir o modelo de

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Modernidade imposta pela Europa, o Brasil negou aquilo que lhe conferia singularidade, sua
multiculturalidade.
O processo de fabricação de uma identidade brasileira homogênea sufocou durante muito
tempo grande parte da população brasileira de origem não européia, já que homogeneidade esteve
relacionada a ser europeu. Contudo, o momento atual favorece a crítica a este modelo identitário,
fato que vem sendo elaborado por movimentos ditos “marginais”, mas que na realidade são o
mais nítido reflexo do que é a identidade brasileira, ou seja, vontade de vivenciar a pertença e o
reconhecimento étnico em detrimento de uma identidade homogênea que falsamente diz-se
respeitosa, em uma palavra, pluralidade.
Segundo entendemos este processo tem potencial para re-escrever um projeto de
Modernidade para o Brasil, só que desta vez, escrito por múltiplos sujeitos e não por uma
pequena elite que tem o olhar viciado naquilo que acreditam ser a expressão de potencial
humano, ou seja, a cultura européia e norte-americana.

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