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Autor
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Profa. Dra. Teresa Akil Revisão
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Faculdade Batista do Rio de Janeiro Tel: (21) 2107-1819
Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil www.seminariodosul.com.br
Apresentação
A filosofia, enquanto tarefa de pensamento crítico acerca da rea-
lidade, nunca andou distante do tema da religião. Embora teologia
e filosofia tenham se afastado em diversos momentos da história da
humanidade, as questões religiosas sempre estiveram presentes na
filosofia, bem como as questões acerca da racionalidade sempre per-
mearam a teologia.
Há grandes discussões sobre onde encaixar diversos nomes entre
os maiores pensadores da história. Seria Agostinho de Hipona filóso-
fo ou teólogo? E Tomás de Aquino? E Soren Kierkegaard?
Tal dificuldade na caracterização desses e de outros pensadores se
deve não somente ao fato de que teologia e filosofia compartilham te-
mas e perspectivas, mas, sobretudo, de que compartilham problemas.
A origem do ser humano, seus limites racionais, como o ser huma-
no deve se comportar no mundo, como se organiza o mundo, como
posso conhecer o mundo, o que somos nós, afinal, e o que são as coi-
sas e pessoas que nos cercam – essas são algumas das questões que
tanto filosofia quanto teologia respondem de maneiras distintas.
A divergência nas respostas, no entanto, não implica necessaria-
mente um afastamento. Antes, o que percebemos através de uma
leitura histórica, é que filósofos se valem da teologia para organizar
seus argumentos bem como teólogos utilizam a filosofia para cons-
truir suas interpretações sistemáticas.
A filosofia de Descartes, por exemplo, se baseia na existência de
Deus como eixo fundamental para a existência do homem e do mun-
do. O projeto de demitologização de Rudolf Bultmann, por outro
lado, depende da leitura existencialista do ser humano realizada por
Martin Heidegger.

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Embora a íntima relação entre filosofia e teologia não seja objeto
desse curso, a introdução às filosofias modernas e contemporâneas é
de maior importância para a compreensão dos caminhos teológicos
recentes.
O objetivo desse material, portanto, é apresentar as diversas cor-
rentes e discussões da filosofia moderna e contemporânea, com vis-
tas a salientar a importância do pensamento crítico na construção da
vida humana.
Atenciosamente,
Prof. Danilo Mendes

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Sumário
Apresentação......................................................................................... 3
Introdução............................................................................................. 7

Capítulo 1 - O Pensamento Filosófico Moderno ............................ 11


1.1 O Que É O Moderno? ..................................................................... 11
1.2. Delimitando Historicamente a Modernidade ............................. 12
1.3. Modernidade: Um Conceito Filosófico ....................................... 19
1.4. Racionalismo e Empirismo ......................................................... 23
1.4.1 René Descartes ................................................................... 24
1.4.2. Baruch Spinoza ................................................................. 30
1.4.3 G. W. Von Leibniz ................................................................ 34
1.4.4 F. Bacon ............................................................................... 38
1.4.5 D. Hume............................................................................... 43

Capítulo 2 - A Filosofia Da Modernidade Tardia 47


2.1. Idealismo Alemão ........................................................................ 47
2.1.1 Iluminismo .......................................................................... 48
2.1.1.1 I. Kant ...................................................................... 52
2.1.1.2. G. W. F. Hegel .......................................................... 61
2.2 A Crítica Moderna À Modernidade .............................................. 65
2.2.1. K. Marx ................................................................................ 66
2.2.2 S. Kierkegaard .................................................................... 71
2.2.3. F. Nietzsche ....................................................................... 77

Capítulo 3 - Filosofias Contemporâneas ........................................ 83


3.1. Escola de Frankfurt ..................................................................... 84

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3.2. Fenomenologia ............................................................................ 90
3.2.1. E. Husserl ........................................................................... 90
3.2.2. M. Heidegger ...................................................................... 95
3.2.3 M. Merleau-Ponty .............................................................. 101
3.2.4 E. Levinas .......................................................................... 104
3.3. Hermenêutica ............................................................................ 109
3.3.1. As Origens da Hermenêutica ........................................... 110
3.3.1.1 Schleiermacher ..................................................... 110
3.3.1.2 Dilthey.................................................................... 113
3.3.1.1 H. G. Gadamer ....................................................... 115
3.3.1.2 P. Ricoeur ............................................................... 120
3.3.1.3 G. Vattimo .............................................................. 124
3.4 Exitencialismo ............................................................................. 131
3.4.1. J. Sartre ............................................................................ 132
3.4.2 A. Camus ........................................................................... 139
3.5 O Existencialismo Na Teologia ................................................... 142
3.5.1 R.k.bultmann .................................................................... 143
3.5.2 K.barth ............................................................................... 144
3.5.3 P. Tillich ............................................................................. 145
3.6. Pós- Estruturalismo ................................................................... 146
3.6.1 M. Foucault ........................................................................ 148
3.6.2 J. Derrida ........................................................................... 154
3.6.3. G. Deleuze ........................................................................ 158
3.7. Filosofia Analítica ...................................................................... 162

Referências ....................................................................................... 167


Indicações Bibliográficas ................................................................. 171
Introdução
Nosso objetivo neste material de estudo é refletir sobre os cami-
nhos que o pensamento filosófico percorreu ao longo da modernida-
de e da contemporaneidade. Todavia, antes de nos depararmos com
nosso objeto de discussão, precisamos dar um passo atrás e pergun-
tar: o que é filosofia?
A pluralidade de respostas possíveis (provavelmente uma para
cada filósofo) já demonstra a dificuldade em responder essa questão.
Isso ocorre porque a questão “o que é filosofia” já é, em nosso caso,
uma questão filosófica. Assim, para responder a essa questão é preci-
so filosofar de algum modo.
A circularidade dessa questão já nos revela alguns indícios de que
a filosofia seja uma tarefa racional do ser humano em pensar sobre si
mesmo, sobre o mundo à sua volta, e sobre tudo que nos constitui.
Os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari trazem uma
interessante discussão sobre esse tema:

Simplesmente chegou a hora, para nós, de perguntar o que é a fi-


losofia. Nunca havíamos deixado de fazê-lo, e já tínhamos a res-
posta que não variou: a filosofia é a arte de formar, de inventar, de
fabricar conceitos. Mas não seria necessário somente que a res-
posta acolhesse a questão, seria necessário também que determi-
nasse uma hora, uma ocasião, circunstâncias, paisagens e perso-
nagens, condições incógnitas da questão. Seria preciso formulá-la
‘entre amigos’, como uma confidência ou uma confiança, ou então
face ao inimigo como um desafio, e ao mesmo tempo atingir esta
hora, entre o cão e o lobo, em que se desconfia mesmo do amigo
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 8).

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Há pelo menos três importantes questões que os autores respon-
dem nesse texto: 1) o que é filosofia; 2) quando está a filosofia; 3)
onde se faz filosofia. Essa estrutura tripartida sinaliza a tentativa de
localização da filosofia. Para saber o que ela é, de modo mais geral, é
preciso localizá-la na história e na geografia.
A esse ponto, não é tão importante a história antiga de seu nasci-
mento grego, mas o que se fez dessa filosofia nos períodos que fica-
ram conhecidos como modernidade e contemporaneidade. Por isso,
a resposta à primeira questão é que a filosofia é a arte de fabricar con-
ceitos. Isso não significa somente dar nomes aos fenômenos que se
analisa, mas modificar o modo como se enxerga tais fenômenos.
Um exemplo: podemos estabelecer o conceito de “cadeira” como
“objeto no qual se senta”. Isso significa que eu poderia chamar de ca-
deira inúmeros objetos que não o são: tronco de árvore, banco, sofá,
poltrona, e até mesmo escada. Ao estabelecer esse conceito, nada
mudou na série de objetos comuns do mundo enumerada acima,
mas o modo como se observa esses objetos mudou completamente.
Nesse sentido, a filosofia é a arte de criar novos conceitos que de-
vem ser estabelecidos dentro de uma teia de conceitos correlatos.
Se quisermos fazer com que o conceito de cadeira seja mais acura-
do, para seguir o exemplo, devemos especificar melhor o objeto no
qual se senta e quais outros conceitos lhe são próximos: uma ca-
deira sem encosto é um banco, uma cadeira demasiadamente acol-
choada é uma poltrona, uma cadeira coletiva se torna um banco se
não acolchoada ou um sofá se acolchoado. Banco, sofá e poltrona
não são nem iguais entre si, nem iguais à cadeira. Mas, enquanto
conceitos correlatos, eles se encontram intimamente próximos e em
conexão.
Em segundo e terceiro lugar, os autores dizem que é necessário
que, junto à conceituação da filosofia, também sejam determinados
o tempo e os locais da filosofia.

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Nesse ponto, o diálogo com a tradição antiga e medieval se acen-
tua. Na antiguidade, a vida cotidiana era o tempo e o local adequado
para a filosofia. Por isso, além das escolas e academias de filosofia,
muitos se pronunciavam nas ágoras e em locais públicos. A partir da
modernidade, os locais privilegiados para realizar a tarefa da filosofia
passam a ser as universidades e os livros.
Ao mesmo tempo em que as ocasiões, circunstâncias e condições
para fazer filosofia mudaram radicalmente de lá para cá, há algo que
continua presente: o modo de fazê-la. A fabricação de conceitos, di-
zem-nos os autores, deve se realizar por meio do diálogo. Entre ami-
gos ou inimigos, como confidência ou desafio, mas sempre em diá-
logo. Desde os primórdios, a filosofia assim se fez: nos diálogos de
Sócrates, como relatou Platão, ou na análise da teoria de Aristóteles,
como Tomás de Aquino.
A relação dialógica da filosofia se mantém na modernidade e na
contemporaneidade por meio da releitura, da crítica e da inovação
de teorias consagradas realizada por novos pensadores. Isso faz
com que a tradição filosófica se transforme numa espécie de grande
rede na qual cada nó-autor se relaciona em diálogo com uma série
de outros nós-autores que, por sua vez, também estabelecem suas
ligações.
Em nossa caminhada pelos últimos seis séculos de história da fi-
losofia, ficará claro que o modo como se faz filosofia é por meio do
diálogo, seja ele como filiação a uma tradição, ou como divergência e
crítica. Perceberemos, por exemplo, que K. Marx interpreta a dialética
de G. F. W. Hegel para pensar seu materialismo histórico, dialogando,
crítica e subversivamente, com ela. Na continuação, a teoria crítica
da Escola de Frankfurt se apropria de K. Marx para repensar os papéis
da cultura na sociedade contemporânea. Nesse ponto, o diálogo não
é mais subversivo, mas de acolhimento de um pensamento anterior
que é usado como base.

9
Com o objetivo de apresentar os principais conceitos e autores das
filosofias modernas e contemporâneas, nosso material didático se di-
vide em três capítulos:
No primeiro, trataremos especificamente do pensamento filosófi-
co moderno em sua complexidade, começando pela definição histó-
rico-conceitual do que seja a modernidade e passando às suas prin-
cipais correntes teóricas: o racionalismo e o empirismo. Nesse ponto,
conheceremos os principais aspectos do pensamento de R. Descar-
tes, B. Spinoza, G. W. Leibniz, F. Bacon e D. Hume.
No segundo capítulo, ainda no âmbito da modernidade, agora tar-
dia, temos a oportunidade de nos aprofundarmos em dois grandes
movimentos filosóficos: o Idealismo Alemão, representado por I. Kant
e G. F. W. Hegel; e a crítica moderna à modernidade, por meio de K.
Marx, S. Kierkegaard e F. Nietzsche. Diante da inegável força dessas
críticas, passamos à filosofia contemporânea, na qual, em vez de uma
construção linear, encontramos uma pluralidade de correntes filosó-
ficas com algumas características compartilhadas, como o pensa-
mento acerca da linguagem, por exemplo.
No derradeiro capítulo, abordaremos os principais movimentos
recentes da filosofia, como a Escola de Frankfurt, a Fenomenologia,
o Existencialismo, o Pós-estruturalismo, a Hermenêutica, e a Filosofia
Analítica. Por meio de seus principais representantes, exploraremos
conceitos-chave para que compreendamos a multiplicidade das re-
flexões sobre a filosofia no presente e sobre o presente na filosofia.
Nosso convite é que os leitores e leitoras se aventurem conosco
pelas estradas tortuosas do pensamento na modernidade e na con-
temporaneidade.
Se é verdade que a filosofia fabrica seus conceitos por meio do di-
álogo, também é verdade que seu conhecimento deve ser comparti-
lhado e que todos têm capacidade de acessá-lo. A mesa filosófica está
posta. Resta apreciarmos sua sinfonia de sabores.

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CAPÍTULO 1
O Pensamento Filosófico Moderno
Ao falarmos de filosofia moderna, duas coisas estão pressupos-
tas: que se sabe o que é filosofia e o que é modernidade. Mais do que
apontar duas datas, uma de começo e uma de fim, devemos refletir
pormenorizadamente sobre como a modernidade rompe com o me-
dievo, como seus pensadores se enxergavam, e quais fatos relevantes
a determinaram.
A importância dessa introdução reside no fato de que a moderni-
dade não é somente um tempo histórico, mas também um conceito
filosófico de grande relevância na história da filosofia. Por isso, é fun-
damental que comecemos pela pergunta “o que é o moderno”?
Depois das devidas explicações e conceituações sobre o termo,
passaremos à discussão acerca de uma contradição basilar da mo-
dernidade: o duelo entre racionalismo e empirismo. Por meio de seus
autores mais significativos, apresentaremos os principais conceitos
que compuseram tal debate entre os séculos XVI e XVIII.

1.1 O QUE É O MODERNO?


Antes de pensarmos o que é a modernidade, podemos afirmar
aquilo que ela não é. No senso comum, é usual que se diga que algo
é moderno como sinônimo de recente, de novo, de avanço moral ou
tecnológico. Embora tal definição diga respeito a certos aspectos do
que seja a modernidade, ela não é adequada para o estudo filosófico.
A modernidade também não é, por outro lado, o movimento mo-
dernista das artes brasileiras, que começa na Semana de Arte Moder-
na em 1922. Pelo contrário, a modernidade filosófica influenciou e de-

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terminou diversas manifestações do conhecido movimento literário.
Da mesma forma, o que se convencionou chamar de modernismo
teológico, no século XVII, não pode ser compreendido como sinôni-
mo de modernidade. De fato, aqui também a modernidade enquanto
época e conceito filosófico influenciaram a teologia na formação de
um modernismo, mas aquela não se resume a este.

1.2. DELIMITANDO HISTORICAMENTE A MODERNIDADE


Delimitar períodos históricos é sempre um risco. Isso se deve ao
fato de que, embora todo evento ocorra em uma data específica, de-
terminar quando acaba um período e outro começa não depende so-
mente de um evento, mas de um conjunto de mudanças econômicas,
sociais, culturais, políticas e até mesmo filosóficas.
Por isso, não é possível precisar com exatidão o momento em que
termina a Idade Média e começa a Idade Moderna. Ainda que elen-
quemos uma série de acontecimentos que demonstram a queda de
um período e o início de algo novo, como faremos a seguir, não há
uma passagem temporal exata entre um e outro. Ou, em outras pala-
vras, ninguém dorme medieval e acorda magicamente moderno. As
mudanças históricas fazem parte de um processo, e as transforma-
ções também fazem parte dele.
O primeiro marco que divide a história entre medievo e moderni-
dade pode ser apontado como a queda de Constantinopla.
A cidade (atualmente conhecida como Istambul), que era capital
do Império Romano do Oriente, foi invadida no ano de 1453 pelos
otomanos. Com essa invasão, o Império Romano estava completa-
mente acabado após quase quinze séculos de domínio por regiões
da Europa e da Ásia. A perda do território também significou o fim do
impedimento territorial do avanço do islamismo no continente, uma
vez que os exércitos otomanos eram mulçumanos.
Nesse sentido, a perda para o cristianismo romano foi dupla: a

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perda de seu território imperial, e a livre entrada de outra religião
crescente em seus territórios. As principais implicações da queda de
Constantinopla foram o fim da hegemonia do Império Romano, en-
quanto maior detentor de forças político-religiosas, e, a criação da
necessidade de novos modos de deslocamento para as rotas comer-
ciais.
Com o bloqueio às vias de acesso terrestres ao território asiático,
sobretudo à Índia e à China, grandes parceiras comerciais dos reinos
europeus, surge a necessidade de alternativas de transporte.
Nesse momento surgem as grandes navegações, dentre as quais
destacamos a tentativa de Cristóvão Colombo de chegar à Índia,
atravessando o Oceano pelo Oeste; e a de Pedro Álvares de Cabral
de contornar o continente africano para chegar nesse mesmo país. O
primeiro, em 1492 chegou ao continente americano, e o segundo, em
1500, ao Brasil.
A invasão europeia nesses territórios não implicou somente uma
oportunidade econômica por meio da colonização dos povos, mas
também um enorme alargamento do que era considerado o mundo
à época. Apenas para efeito de comparação: a extensão territorial de
Portugal, país de onde saiu Pedro Álvares de Cabral, equivale ao atual
estado de Pernambuco, no Brasil.
Isso significa que o mundo conhecido multiplicou de tamanho, de
modo que o domínio sobre a Europa, como no auge do Império Ro-
mano, não significava mais o controle da totalidade do mundo e dos
seres humanos que o habitam. Tal alargamento da noção de mundo
foi fundamental para a chegada da humanidade à modernidade.

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Grandes navegações

Paralelamente a esses acontecimentos políticos, os séculos XIV, XV


e XVI deram lugar a um grande movimento cultural chamado Renas-
cimento. Esse, com grande caráter humanista, tinha por objetivo um
retorno à antiguidade clássica, por isso seu nome indica o novo nas-
cimento de algo que já teve lugar entre nós anteriormente.
Após a queda de Constantinopla, uma série de escritos literários
latinos foram levados até a Itália, causando uma redescoberta da
beleza da arte grega e romana. Os artistas e pensadores humanistas
envolvidos com o Renascimento se dedicaram ao estudo de línguas
clássicas como o grego e o latim, além de apreciarem a tradução
como gesto nobre - uma vez que ela fornecia acesso aos textos clássi-
cos. Junto a esse movimento de tradução, houve também uma redes-
coberta do hebraico.
Apesar do prestígio pelo antigo, o Renascimento também levou à
Europa um novo sentimento de vida no cotidiano. Diferentemente do
período medieval, a vida passou a ser valorizada com maior sensi-
bilidade para o belo, para o corpóreo e, em geral, para a realidade
imanente e para a individualidade. Longe de refletirem somente va-

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lores seculares, o Renascimento e o Humanismo tiveram importantes
impactos em movimentos religiosos.
Outro marco importante da época de transição entre a Idade Mé-
dia e a Idade Moderna surge com grande influência humanista, acres-
cendo também a fragilização do Império Romano: as Reformas Pro-
testantes.
No início do século XVI, diversas reformas religiosas começaram
a surgir em toda a Europa: na Alemanha com M. Lutero e, posterior-
mente, T. Müntzer; na Suíça com Zwínglio e Calvino; na Inglaterra com
Henrique VIII; e nos países baixos com Guilherme de Orange.
Além de serem um fato de ordem religiosa, as Reformas Protestan-
tes tinham grande valor político. Na Inglaterra, por exemplo, estava
ligada à possibilidade de divórcio do Rei, para que ele gerasse um su-
cessor.
Ao pensarmos no contexto de transição que o mundo vivia na
época, a Reforma se instaura como um importante ponto de queda
do Império Romano que antes obtinha total controle político-reli-
gioso do território europeu e, a partir de então, fragilizava-se cada
vez mais.
É considerado como o estopim da Reforma Protestante o evento
ocorrido em 31 de outubro de 1517, no qual M. Lutero, até então mon-
ge agostiniano, pregou 95 teses na porta da catedral de Wittenberg
acusando diversas práticas da Igreja Romana, sobretudo a venda de
indulgências, de heresia.
Embora o corajoso ato de Lutero visasse uma reforma interna à
Igreja, suas condenações acabaram por inaugurar um novo movi-
mento que passou a ser conhecido como protestantismo.

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Martinho Lutero (1483-1546)
A soma desses acontecimentos, além de outros de menor impor-
tância, fez com que novos paradigmas de pensamento e ação fossem
surgindo. Se antes a fé, por meio do domínio católico romano, estava
no centro do poder político e do cotidiano dos povos, agora a raciona-
lidade passou a dar as cartas.
Em um mundo fragmentado por culturas, religiões e línguas diver-
sas, boa parte delas desconhecidas pelos europeus até o momento,
surge a necessidade de refletir com mais afinco sobre o ser humano,
o mundo que o cerca e todos os pormenores que envolvem essa re-
lação.
As reflexões medievais, apesar de serem muitas, tinham um forte
caráter dogmático-religioso. Isso não significa que elas sejam menos
importantes ou de menor qualidade, mas demonstra uma diferença
de paradigma em relação às reflexões modernas. Longe do domínio
total da religião, a ciência encontra maior campo de florescimento e a
filosofia, por conseguinte, toma outros rumos.
Se as discussões sobre o início da modernidade são diversas, mais
ainda são as questões sobre o fim da modernidade, sobretudo em
termos filosóficos. Há os que defendem que chegamos à pós-moder-
nidade, um período diferente daquele que se inaugura na época do
Renascimento, caracterizado pela recusa à univocidade da razão e
pela pluralização da legitimidade de discursos.

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Outros, pelo contrário, defendem que vivemos ainda no âmbito da
modernidade tardia, na qual novas características surgem, mas o cer-
ne moderno continua em vigência. Nesse ponto de vista, nomeia-se
nosso período como modernidade líquida ou ultramodernidade. De
toda forma, pode-se afirmar que a modernidade sucede o medievo e
é sucedida pela contemporaneidade.
Historicamente, alguns eventos apontam o fim da modernidade
enquanto época na qual a razão tornou-se critério para o pensamen-
to filosófico.
Primeiramente, é preciso recordar as grandes guerras mundiais,
entre 1914 e 1918, e entre 1939 e 1945, respectivamente. Apesar do
otimismo característico dos modernos, a saber, de que a iluminação
progressiva a partir da razão traria paz e entendimento entre os se-
res humanos, a primeira e a segunda guerra mundial se instauraram,
principalmente, dentro do continente europeu e deixam um saldo de
milhões de mortes.
A partir desse momento, a percepção de que a racionalidade eu-
ropeia não constituía um caminho seguro para o desenvolvimento
em paz da humanidade tornou-se mais latente e ganhou força entre
diversos pensadores. Os traumas causados pelos horrores e incerte-
zas de duas guerras de proporções mundiais instauraram uma fratura
irreparável na modernidade.
Outra série de fatos que demonstram a derrocada do pensamento
moderno se deu no ano de 1968. Em meio à Guerra Fria, três impor-
tantes movimentos ocuparam os jornais e deram indícios de que o
poder do racionalismo moderno estava chegando ao fim: a contra-
cultura, o movimento por direitos civis para os negros nos Estados
Unidos, e o movimento de maio na França.
A contracultura, a partir da qual surge o movimento hippie, encon-
tra grande proeminência nesse ano com protestos contra as inves-
tidas do exército estadunidense na guerra do Vietnã. O movimento,

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que tinha por lema “paz e amor”, opunha-se diretamente à guerra e
ocupou ruas e universidades protestando pelo fim do confronto no
continente asiático.
Paralelamente a esses protestos, os negros estadunidenses luta-
vam pelo fim da segregação racial no país e pela igualdade de direitos
com os brancos. Além do movimento dos Panteras Negras e do líder
Malcolm X, o ano de 1968 é marcado pelo assassinato de Martin Lu-
ther King Jr., pastor protestante e um dos líderes do movimento pelos
direitos civis dos negros.
Por fim, uma série de greves e protestos também toma conta da
França no mês de maio, primeiramente nas universidades, em nome
da liberdade sexual e contra o conservadorismo. Em pouco tempo o
movimento tornou-se também de greve dos trabalhadores e de exi-
gência de mais direitos para o povo.

Martin Luther King Jr. (1929-1968)

Outro fato notável que contribui para um melhor entendimento da


derrocada da modernidade é o fim da guerra fria, simbolizado pela
queda do muro de Berlim em 1989. O muro que separava a cidade
alemã foi derrubado após a mudança da legislação da Alemanha
Oriental sobre a política de fronteiras. Com isso, o mundo comunista
demonstrava sua fragilização e inevitável colapso frente às potências
econômicas capitalistas.

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Desse modo, o comunismo começou a perder espaço na Europa
Central e Oriental. Embora a unificação da Alemanha ainda tenha de-
morado um ano, o fim da Guerra Fria instaurou um novo período na
economia mundial - agora totalmente controlada pelo sistema capi-
talista e, não mais com foco na Europa, mas na liderança dos Estados
Unidos da América.
No âmbito da filosofia, as fronteiras entre o moderno e o contem-
porâneo se tornam ainda mais complexas.
De modo geral, pode-se estabelecer o pensamento de F. Niet-
zsche como elemento central de passagem de um período a outro.
Devido ao caráter crítico à modernidade de sua filosofia, o autor ale-
mão tornou-se peça fundamental para a recusa à confiança cega na
racionalidade humana e para a abertura da filosofia à vida imanente
dos seres humanos. Nesse sentido, sua morte em 1900 não inaugu-
ra temporalmente a filosofia contemporânea, mas é simbólica para
afirmar que aqueles que constroem suas reflexões a partir de Nietzs-
che configuram-se contemporâneos. O pensamento do filósofo ainda
pode ser considerado um pensamento da fronteira entre o moderno
e o contemporâneo. Mais à frente apresentaremos devidamente suas
principais características.

1.3. MODERNIDADE: UM CONCEITO FILOSÓFICO


Acima recordamos que, no senso comum, algo moderno tem sen-
tido de novo, avançado, recente. Embora esses adjetivos não encer-
rem o que seja a modernidade, eles ajudam a entender o que ela é
enquanto conceito filosófico.
Se concordamos com a corrente que diz que a modernidade já
teve seu fim, pelo menos filosoficamente, não há sentido algum em
dizer que um aparelho telefônico seja mais moderno que outro, por
exemplo.
Entretanto, o sentido usual dado à modernidade tem grande va-

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lor nesse caso: moderno é sinônimo de evolução. Tal sentido é uma
herança daquilo que a modernidade, em grande parte, pensava de si
mesma.
Em muitos sentidos, a modernidade fez a si mesma, isto é, no-
meou-se, conceituou-se e glorificou-se como tempo de iluminação
progressiva e maioridade intelectual. Por isso, para falar da moder-
nidade não basta apontar os acontecimentos históricos que lhe deli-
mitam, mas é necessário perceber as nuances de como os modernos
pensam em si próprios e na era que construíram.
A divisão da história, como pensamos hoje em “idades”, é fruto do
modo como a modernidade entendia a si mesma. G. W. F. Hegel, filó-
sofo alemão do séc. XIX, foi quem desenvolveu a nomenclatura que
dividia a história mundial em antiguidade, idade média e idade mo-
derna. Nesse sentido, o autor construiu não somente uma história da
filosofia, mas uma filosofia da história.
A própria divisão já indica importantes características do que o
moderno pensa de si: primeiramente há uma origem que deve ser le-
vada em conta e respeitada, posteriormente há um período de trevas
que é desimportante, e enfim a modernidade, o momento em que a
humanidade chegou à razão, ao esclarecimento e à maioridade ra-
cional.
Nesse ínterim, a antiguidade é valorizada como origem, mas deve
ser superada por conta de sua relação com os mitos. A idade média,
por outro lado, é somente um momento de passagem que se estabe-
lece entre os momentos áureos de história - por isso é média, pois fica
no meio. Por fim, a modernidade é um período de progressiva ilumi-
nação e auge do desenvolvimento humano na história.
O filósofo italiano G. Vattimo, refletindo criticamente sobre a mo-
dernidade, fornece importantes indícios para entendermos esse con-
ceito. Primeiramente, ele nos diz: “a modernidade é a época em que o
fato de ser moderno se torna um valor determinante” (VATTIMO, 1991,

20
p. 9). Isso significa que, na modernidade, ser moderno não era apenas
um fato. Uma pessoa que nasce no Brasil, por exemplo, é brasileira.
Isso é um fato da vida dela. Em alguns momentos, ser brasileiro pode
ser motivo de orgulho, em outros de vergonha. Isso é um valor sobre
o fato previamente estabelecido. O que Vattimo nos assegura é que,
na modernidade, ser moderno não era somente fato, mas era tam-
bém um valor positivo.
Desse modo, dois são os passos para a interpretação da moderni-
dade: 1) para ser moderno não basta estar na modernidade, é preci-
so cumprir uma série de requisitos; 2) o moderno se percebe como o
centro a partir do qual pode emitir juízo sobre outras épocas e mode-
los de pensamento. A partir desses dois pressupostos, podemos pen-
sar em características mais assertivas da modernidade:

A história da modernidade é, sem dúvida, a história do impor-se


de uma concepção cientificista de verdade, portanto, história de
afirmar-se progressivo do iluminismo; mas é também a história
de um processo em que se perdeu a consciência do caráter essen-
cialmente interpretativo de todo nosso conhecimento da verdade
(VATTIMO, 1999, p. 71).

Ao dizer isso, Vattimo nos informa três características fundamen-


tais da modernidade:
1) a imposição de uma noção de verdade que provém da ciência;

2) o progressivo afirmar-se do iluminismo; e

3) a perda da interpretação como mediação da verdade.

O primeiro diz respeito ao conceito de verdade desenvolvido na


modernidade e por ela estabelecido como chave fundamental de seu
modo de pensar. A verdade científica, embora seja sempre provisória
(pois outra teoria pode vir a substituí-la), pressupõe que os fatos do

21
mundo são observáveis objetivamente e totalmente acessíveis à nos-
sa compreensão.
Isso significa que, quando observamos algo e fazemos com ele
experimentos, é possível que cheguemos a uma verdade objetiva.
A essa verdade não cabem interpretações, pois ela não depende do
sujeito que observa, mas somente do objeto em si mesmo. Essa ver-
dade, porém, não é útil somente para os cientistas e trabalhadores
técnicos, mas também para os filósofos e pensadores.
Na medida em que a modernidade, portanto, elimina da equa-
ção da verdade a questão da interpretação subjetiva, ela estabelece
a possibilidade de uma verdade última sobre o que quer que o ser
humano se debruce.
A partir de um conceito científico de verdade, a modernidade se
entende como uma afirmação progressiva do iluminismo. Em outras
palavras, a humanidade chegava, para eles, ao auge de sua racionali-
dade e de seu desenvolvimento.
O período de trevas teria passado após a chegada do momento de
uma iluminação máxima causada pela razão. O período no qual se
desenvolveu a crença inquestionável na razão ficou conhecido como
Iluminismo.
Esse esclarecimento seria progressivo, isto é, iria avançando junta-
mente com os desenvolvimentos científicos e morais, de modo que a
humanidade chegaria cada vez mais perto da verdade e da perfeição,
por consequência. As possibilidades de interpretação da verdade fi-
cariam de fora desse desenvolvimento, pois, uma vez que se chega à
verdade absoluta, qualquer outro discurso concorrente deve ser ca-
talogado como falso.
Por fim, podemos indicar as seguintes características da moderni-
dade como as principais para o seu entendimento:
1) a modernidade buscou romper e superar as tradições anteriores;

22
2) valorizou e recebeu o novo como algo de grau mais avançado que
o antigo;

3) com isso, confiou no ideal de progresso;

4) rejeitou a autoridade institucional, submetendo-se ao crivo da ra-


zão; e

5) enfatizou a individualidade e a razão subjetiva contra a coletivida-


de e as normas sociais.

Essas características se fazem presentes nas mais diversas tradi-


ções e escolas filosóficas que apresentaremos a seguir. Ora uma ca-
racterística se sobressai mais, ora outra, mas em todo momento da
história moderna elas podem ser observadas.
O olhar sinóptico que apresentamos acima tem por objetivo de-
monstrar que, para além da mera soma de eventos e fatos históricos,
a modernidade deve ser pensada como um conceito filosófico que é
de suma importância para entender a filosofia construída desde o fim
do século XVI com Descartes até as filosofias contemporâneas.

1.4. RACIONALISMO E EMPIRISMO


O início da filosofia moderna se constitui a partir de um diálogo, a
saber, a controvérsia entre racionalismo e empirismo.
Veremos a seguir como os principais filósofos do início da moder-
nidade lidavam com a questão a partir dessa controvérsia. Todavia,
embora sejam lados opostos, tanto racionalistas quanto empiristas
compartilham uma série de pressupostos e são, de fato, duas respos-
tas à mesma questão.
As características modernas, como a crença na verdade objetiva,
por exemplo, são compartilhadas por empiristas e racionalistas na
busca em fornecer soluções para um problema epistemológico. Em
outras palavras, a questão a ser respondida é a questão do conhe-

23
cimento ou como é possível que o ser humano conheça a verdade
acerca dos objetos que o cercam.
Embora os métodos possam variar, a possibilidade do conheci-
mento deve se basear em uma entre duas formas. O racionalismo,
por um lado, defendia que o conhecimento verdadeiro sobre os obje-
tos da natureza se dá a partir do uso puro da razão. Isto é, a reflexão
racional sobre uma coisa permite que se chegue a verdades claras e
distintas sobre ela. Os maiores representantes dessa corrente são R.
Descartes, B. Spinoza e G. W. Leibniz.
Por outro lado, o empirismo afirmava a possibilidade de que o
conhecimento do mundo só é possível por meio da experiência com
as coisas em si mediada pelos sentidos. A verdade, nesse sentido, é
empírica porque provém da observação dos objetos da natureza e da
interação humana com eles. Os mais importantes empiristas são F.
Bacon e D. Hume.
Comecemos pelos racionalistas.
1.4.1 RENÉ DESCARTES
René Descartes (1596-1650) foi um importante filósofo francês ra-
cionalista. De certa forma, é possível dizer que, Descartes inaugura,
tanto a filosofia moderna quanto o racionalismo, uma vez que ele
propõe um fundamento a partir do qual ambos terão como base.
Conhecido por sua célebre frase “penso, logo existo”, Descartes
elaborou uma filosofia de bases sólidas que não somente fundamen-
tava a possibilidade de conhecimento do mundo, mas também forne-
cia um método racional para essa ciência.
Antes, portanto, de apresentarmos como Descartes usa a dúvida
hiperbólica para fundamentar a existência do ser humano, de Deus
e do mundo na racionalidade, vamos verificar como ele elabora um
discurso sobre o método.

24
René Descartes (1596-1650)

O projeto filosófico de Descartes estava intimamente ligado ao de-


senvolvimento científico que tomou lugar na modernidade.
As grandes descobertas sobre o funcionamento do mundo com
Galileu e Kepler, por exemplo, animavam um novo tipo de filosofia
que tentava fundamentar na racionalidade humana a possibilidade
de conhecimento do mundo. Para isso, não bastava mais somente
fomentar o uso da própria racionalidade humana, mas usá-la refle-
xivamente, isto é, para pensar sobre ela mesma. Se é de interesse do
filósofo fundamentar a racionalidade, ele precisa, primeiramente, ga-
rantir a sua existência. Para Descartes, ela é universal, como veremos
a seguir:

O bom-senso é a coisa mais bem compartilhada do mundo, pois


cada pessoa pensa estar tão bem provida dele, que mesmo as
mais difíceis de satisfazer em qualquer coisa não têm o costume
de desejá-lo mais do que o possuem. E não é provável que todas
se enganem a esse respeito: isso antes testifica que o poder de
bem-julgar e distinguir o verdadeiro do falso, qual seja propria-
mente o que denominamos bom-senso ou razão, é naturalmen-
te igual em todos os homens; e, portanto, que a diversidade de
nossas opiniões não resulta do fato de alguns serem mais razo-
áveis que outros, mas somente do fato de conduzirmos nossos
pensamentos por vias diversas, e não considerarmos as mesmas

25
coisas. Porque não é suficiente ter a mente boa, o principal é apli-
cá-la bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto
quanto as maiores virtudes; e aqueles que somente andam muito
lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o ca-
minho correto, do que aqueles que que correm e dele se afastam
(DESCARTES, 2018, p. 9).

A citação acima inicia o célebre livro de Descartes: Discurso sobre


o método. Nessa obra, sua preocupação é científica: ele deseja ela-
borar um método, isto é, um caminho a partir do qual os objetos da
natureza e do mundo podem ser conhecidos.
Embora o trecho lido acima não destaque os objetivos de sua obra,
ele demonstra com clareza os pressupostos de sua filosofia em geral
que, também, avançam como pressupostos modernos.
Ao tratar do bom-senso ou, em outras palavras, da razão, Descar-
tes declara que ele é algo compartilhado entre todos os homens (no
texto, deve-se entender “homens” como sinônimo de ser humano, e
não pessoas do gênero masculino). Esse atributo natural do ser hu-
mano é, para ele, o critério que lhe permite a distinção entre verda-
deiro e falso, e possibilita o juízo acerca do mundo em geral.
A razão e a racionalidade, nesse contexto, são atributos humanos
confiáveis para tais ações fundamentais do ser humano. Mas isso não
encerra o uso da razão: diz-nos o autor que não é suficiente possuir a
racionalidade, mas é preciso usá-la bem. Afinal, mesmo racionais, se-
res humanos podem percorrer caminhos virtuosos, saudáveis e bons,
ou optarem por caminhos viciosos e maus. A diferença está no bom
uso da razão, isto é, seu uso adequado.
Para que o ser humano possa percorrer os bons caminhos fazendo
um bom uso da razão, é necessário que ele se aproprie de um método
que também seja adequado. Para Descartes, a questão do método é
fundamental para evitar o erro do conhecimento do mundo e, conse-
quentemente, o erro moral.

26
Dessa forma, René Descartes propõe seu método analítico partin-
do da dúvida radical. Esse ponto de partida se explica em si mesmo e
no contexto histórico do qual o autor parte.
Em primeiro lugar, para não incorrer em erros, Descartes descreve
a busca por um eixo fundamental a partir do qual toda conclusão par-
cial e total seja segura. Ora, partir de um fundamento fraco, inexato
ou mesmo falso poderia levar à falsificação total de qualquer conhe-
cimento.
Em segundo lugar, faz parte do ideal moderno de pensamento
pressupor que a história que o precede seja decadente e, portanto,
menos desenvolvida do que a que se faz naquele momento. Por isso,
é parte fundamental do projeto partir de novos lugares, inaugurar no-
vas formas de pensamento e apagar o passado. Assim, partir da dúvi-
da hiperbólica é ato extremamente coerente com a filosofia moderna.
Seu método, portanto, se constitui em quatro etapas: 1) evidência;
2) análise; 3) dedução; 4) classificação (DESCARTES, 2018, p. 23-24).
Essas são regras a serem seguidas para o estudo científico de qual-
quer fenômeno da natureza e do mundo. Com essas quatro etapas,
verificamos que seu método é extremamente minucioso.
Examinemos alguns aspectos de cada uma das etapas:
1) deve-se duvidar de todas as coisas que estão pressupostas, bus-
cando partir apenas do que é evidente;
2) deve-se fragmentar o objeto de estudo no máximo de partes
possíveis de modo que fique mais simples analisá-lo através de suas
partes;
3) deve-se partir dos mais simples fragmentos em direção aos mais
complexos, por meio de uma hierarquia qualitativa;
4), por fim, deve-se enumerar cada uma das pequenas partes
e fragmentos que constituem o objeto de estudo e classificá-las de
modo mais completo possível.

27
Com esse método, Descartes visava observar com maior clareza e
distinção seus objetos de estudo.
Após a exposição do método, Descartes demonstra como utilizou
o próprio método para fornecer um fundamento seguro para a sua
filosofia em geral. Com isso, ele não buscava uma base científica para
a filosofia, mas, pelo contrário, uma base filosófica que servisse tam-
bém de fundamentação para a ciência.
O giro que Descartes imputa à filosofia ao fazê-lo é fundamental
para entendermos outras filosofias de seu tempo e a sua extensão em
nossa contemporaneidade. Se, anteriormente, o mundo estava no
centro da discussão filosófica, agora tudo deve passar pela subjetivi-
dade humana e sua racionalidade.
Vejamos uma parte de seu caminho até chegar ao fundamento que
ele considera suficiente:

Porque os nossos sentidos nos enganam à vezes, quis supor que


não houvesse coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem
imaginar; e porque há homens que se equivocam raciocinan-
do, mesmo no tocante às mais simples matérias de geometria,
e nelas fazem paralogismos, julgando que eu estava sujeito a fa-
lhar tanto quanto qualquer outro, rejeitei como falsas todas as
razões que eu havia tomado anteriormente por demonstrações;
e enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que
nós temos estando despertos nos podem também advir quan-
do dormimos, sem que haja neles nenhum, entretanto, que seja
verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que alguma vez me
entraram na mente tampouco eram mais verdadeiras do que as
ilusões de meus sonhos. Mas, imediatamente depois, constatei
que enquanto eu queria assim pensar que tudo fosse falso, era ne-
cessariamente preciso que eu, que o pensava, fosse alguma coisa;
e notando que esta verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão
segura que todas as mais extravagantes suposições dos céticos

28
não foram capazes de a abalar, julguei que podia recebê-la sem
escrúpulo como o primeiro princípio da filosofia que eu procurava
(DESCARTES, 2018, p. 35-36).

A dúvida radical de Descartes o leva a questionar a veracidade ou,


momentaneamente, a tomar como falso tudo que os sentidos lhe
apresentam, o raciocínio lógico o leva a acreditar, e os pensamentos
colocam.
O primeiro grupo ele desconsidera porque podem estar nos iludin-
do. Por exemplo, é comum que tenhamos ilusões de ótica ou mesmo
que façamos confusão entre duas palavras que alguém nos fala.
O segundo, assim como no caso do bom-senso, o autor descarta,
visto que, apesar de raciocinar, nem todos raciocinam da mesma for-
ma e, consequentemente, podem errar ao fazê-lo.
O terceiro grupo é atacado porque, assim como os sonhos nos ilu-
dem fazendo-nos acreditar estar vivendo algo que não estamos, os
pensamentos também podem criar ilusões que não permitem que
ele seja colocado como pedra fundamental para uma filosofia.
Assim, Descartes não questiona certezas específicas, mas ataca
regiões de certeza que se baseiam nos sentidos, na lógica ou mesmo
nos pensamentos.
A virada do autor se estabelece justamente nesse ponto. Se posso
questionar e desconfiar de todas essas coisas, há algo que certamen-
te existe: o eu que questiona. Isso o leva a afirmar a fórmula atômica
e célebre que, apesar de curta, marcou definitivamente a história da
filosofia: penso, logo existo.
Importante ressaltar que o termo em latim, língua em que foi escri-
ta a frase originalmente, é: cogito, ergo sum. Isso significa que o “pen-
so” tem justamente valor de questionamento, indagação, cogitação.
A partir desta fórmula, Descartes fundamenta a existência da re-
alidade e da possibilidade de seu conhecimento em Deus. Ora, diz

29
Descartes, pode existir algo (um gênio maligno) que confunda meus
sentidos e pensamentos a ponto de que o mundo externo a mim não
exista de fato, mas seja somente ilusão. Essa possibilidade, no entan-
to, não é plausível por causa da existência de Deus. Se a ideia de Deus
não é proveniente dos sentidos nem advinda de outras ideias, mas é
inata ao ser humano, ela deve ser colocada pelo próprio Deus - o que
comprova a sua existência.
Nesse sentido, Deus é o fiador da verdade na filosofia cartesiana,
uma vez que é Ele quem garante que as percepções do mundo não
sejam falsas ilusões. O critério da verdade, pelo qual o filósofo e os
seres humanos devem seguir seus caminhos longe do erro, é, para
Descartes, a clareza e a distinção. Assim, a existência do eu pensante
e de Deus fundamentam a realidade e a possibilidade de seu conhe-
cimento.
1.4.2. BARUCH SPINOZA
Baruch Spinoza ou Benedito Spinoza (1632-1677), filho de pais
portugueses, nascido em Amsterdã, na Holanda, foi um filósofo ra-
cionalista que, seguindo as bases de Descartes, se aventurou a pensar
para além do âmbito do francês. Isso se deu porque seu interesse não
era o de fundamentar filosoficamente a ciência, mas pensar temas
como a ética, a vontade, e Deus.
À teoria cartesiana Spinoza acrescenta o pensamento judaico do
qual tem sua origem. Seu pensamento, porém, foi considerado peri-
goso pelos religiosos e, por isso, foi acusado de ateísmo. Sua expul-
são da comunidade judaica holandesa foi recheada de duras palavras
que, ironicamente, maldiziam Benedito Spinoza:

Por sentença dos anjos, pelo juízo dos santos, nós, irmãos, expul-
samos, amaldiçoamos e imprecamos contra Baruch de Espinosa
com o consentimento do santo Deus e o de toda essa comunidade
[...]. Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja ao le-

30
vantar-se e maldito seja ao deitar-se, maldito seja ao sair e maldito
seja ao regressar. Que Deus nunca mais o perdoe ou o aceite; que
a ira e a cólera de Deus se inflamem contra esse homem, e que seu
nome seja riscado do céu e que Deus, para seu mal, exclua-o de
todas as tribos de Israel (FRAGOSO; ITOKAZU, 2014, p.19).

Baruch Spinoza (1632-1677)

Sua expulsão não demonstra somente a originalidade de seu pen-


samento ante a época, mas a importância de sua atitude filosófica
prática diante da vida. Por isso, diferentemente de Descartes, Spinoza
se volta ao tema da ética - e uma ética pensada desde os princípios da
filosofia, a partir do ser entendido como substância.
Essa escolha pela ética, todavia, não implica um abandono dos
pressupostos e interesses do racionalismo moderno, mas funciona
como uma aplicação destes a um campo distinto. Um exemplo disso
é o fato de que Spinoza publica um Tratado da reforma do entendi-
mento no qual desenvolve uma teoria sobre a natureza da geometria
e a natureza da verdade.
O uso da racionalidade e de suas faculdades, para o autor, é cen-
tral até mesmo para pensar a ética. Por isso, sua obra mais importan-
te tem por título Ética, demonstrada segundo a ordem geométrica.
Ao pensar sobre tal assunto, então, Spinoza não parte do ser huma-
no como agente privilegiado da ética, mas da relação entre mente e

31
corpo que, posteriormente, se desdobra na relação entre servidão e
liberdade.
Entretanto, o primeiro passo de Spinoza, antes de sua reflexão
sobre os afetos humanos, é fundamentar toda existência em Deus. A
partir de seu panteísmo, Spinoza afirma que “tudo o que existe, existe
em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido” (SPINO-
ZA, 2019, p. 22). Com outras palavras, Spinoza funda o ser humano,
tudo mais o que existe no mundo, e o próprio mundo, em Deus en-
quanto ente supremo e substância infinita e indivisível.
O posicionamento de Spinoza é caracterizado com panteísmo,
porque ele defende que tudo (pan em grego) se encontra em Deus
(théos em grego) de modo imanente. Em outras palavras, para Spino-
za, tudo é Deus.
Chega a tal conclusão a partir da ideia de substância, relida da tra-
dição filosófica antiga e medieval. Na medida em que a substância,
para Spinoza, é o que existe em si mesmo, tudo o que existe deve ser
ou participar da substância. Nesse sentido, a substância seria uma só
e toda a realidade partícipe dela - essa é a tese monista que Spinoza
defende.
Para que tudo na natureza, em sua infinita diferença, faça parte
da mesma substância, é necessário que esta tenha infinitos atributos.
Por fim, a única substância absoluta e infinita possível é Deus, logo,
Deus é tudo. Essa é a primeira parte de seu tratado sobre a ética.
Na segunda parte, Spinoza trata da natureza e da origem da men-
te. Ele passa, então, à reflexão mais própria sobre o ser humano sem,
contudo, chegar ao cerne da ética. Nesta parte, o autor articula como
o corpo e a mente do ser humano se relacionam entre si, formulando
uma verdadeira teoria do conhecimento. Para tal, ele analisa os dife-
rentes tipos de ideias que constituem a racionalidade humana pelo
aspecto do juízo, isto é, o fato de que as ideias humanas são passíveis
de afirmação ou negação.

32
Os gêneros do conhecimento, a partir de tais ideias, seriam três: a
opinião ou imaginação; a razão; e a ciência intuitiva.
Ao primeiro cabe a representação de coisas exteriores à medida
que elas afetam o ser humano de modo sensível.
Aos dois últimos cabem as ideias verdadeiras, isto é, adequadas à
razão e, por serem comuns a todos os seres humanos, seriam a fonte
de concordância entre eles.
“Da origem e da natureza dos afetos”, a terceira parte da Ética de
Spinoza diz respeito a tentativa de uma geometria dos afetos huma-
nos. Contudo, o autor não se volta para uma análise empírica de cada
um dos afetos que fazem parte da experiência humana, mas constrói
sua análise a partir de princípios do intelecto.
O centro dos afetos é, para ele, o desejo que, sendo uma espécie
de essência do ser humano, constitui a força que impulsiona a vida.
A partir dele e da noção de que o que é perdura em ser, ou seja, não
se destrói apesar de poder ser substituída, Spinoza define uma série
de afetos, tais como a alegria, a tristeza, a admiração, o desprezo, o
amor, o ódio, a atração, a aversão, a adoração, o escárnio, a esperan-
ça, entre muitos outros.
Por fim, ele define o afeto em si mesmo da seguinte forma: “O afe-
to [...] é uma ideia confusa, pela qual a mente afirma a força de existir,
maior ou menor do que antes, de seu corpo ou de uma parte dele,
ideia pela qual, se presente, a própria mente é determinada a pensar
uma coisa em vez de outra” (SPINOZA, 2019, p. 152).
As duas últimas partes da Ética de Spinoza tratam, por fim, das
problemáticas éticas em si mesmas. Após sua ontologia (a partir de
Deus e do monismo), sua teoria do conhecimento e sua teoria dos
afetos, o autor chega à pergunta sobre a força dos afetos e a servidão
humana.
Em outras palavras, ele busca entender por que o ser humano se
volta para o mal mesmo sabendo o que é melhor para si mesmo. Para

33
Spinoza, não obstante, o bem e o mal não são conceitos absolutos,
isto é, não existe algo que é por si só bom ou mau. Antes, essas pro-
priedades dependem de como algo afeta o ser humano: se é útil, é
bom. Dessa forma, a análise daquilo que é bom ou mau para o ser
humano é o que define a sua liberdade: a potência do intelecto. Na
medida em que o intelecto humano é usado (conforme a razão e a
ciência intuitiva), o ser humano atinge sua liberdade de julgamento
para saber caminhar corretamente seguindo o que é bom e, por fim,
atingir a beatitude.
Em resumo, podemos dizer que o racionalismo de Spinoza é mar-
cado pelas seguintes características:
a) monismo, isto é, tudo subsiste a partir da mesma substância,
fazendo com que tudo seja ‘Uno’;
b) panteísmo, isto é, este Uno é Deus;
c) imanentismo, ou seja, a substância que constitui o mundo não é
transcendente, mas é o mundo mesmo;
d) pensamento voltado para a ética, buscando a alegria através da
racionalidade que leva à liberdade humana.
Sobre sua caminhada, diz Spinoza: “resolvi, enfim, investigar se
existia algo que fosse um bem verdadeiro, capaz de comunicar-se,
e pelo qual unicamente, rejeitados todos os outros, o ânimo fosse
afetado; mais ainda, se existia algo que, descoberto e adquirido, me
desse eternamente o gozo de uma alegria contínua e suprema”. (SPI-
NOZA, 1983, p. 60)
1.4.3 G. W. von LEIBNIZ
Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) nasceu em Leipzig, na
Alemanha, e foi um pensador de grande importância e influência na
história mundial. Além de filósofo, foi diplomata, historiador, mate-
mático, linguista e jurista.

34
Sua filosofia, juntamente com seus intérpretes, foi lida como espé-
cie de “filosofia oficial” na Alemanha do século XVIII. Em suas outras
áreas de atuação, contribuiu diplomaticamente para o fim dos confli-
tos de religião na Europa, e descobriu, na mesma época de Newton, o
cálculo matemático infinitesimal.
Ao contrário de Descartes e Spinoza, mas ainda no âmbito raciona-
lista, Leibniz não se preocupa com a epistemologia subjetivista, isto
é, a teoria do conhecimento a partir da mente humana, mas se volta
para a lógica, como caminho seguro para a fundamentação das ciên-
cias.
Esse autor, portanto, pode ser caracterizado como um metafísico
de primeira grandeza, porque pensa o mundo e a realidade a partir de
estruturas eternas e imutáveis.

Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716)

Para fundamentar sua filosofia, em vez de partir de uma dúvida


hiperbólica, como faz Descartes, Leibniz sustenta que é necessário or-
ganizar as certezas a partir de graus de aceitação ou de discordância.
Assim, uma ideia não é verdadeira ou falsa de antemão, mas pode
ser caracterizada, segundo princípios lógicos, com maior ou menor
grau de aceitação. Tais princípios, para ele, substituem objetivamen-
te o fundamento da subjetividade humana como base que garante a
possibilidade da verdade e do conhecimento do mundo.

35
A lógica, nesse sentido, não apenas substituiria a subjetividade,
como também possibilitaria a formulação de uma linguagem única
que, em precisão e rigor, sirva tanto para os conhecimentos acerca do
ser humano quanto para a ciência. Ela promoveria, por fim, a unida-
de entre os diferentes âmbitos científicos. Em base lógica, a filosofia
teria por tarefa, para Leibniz, a unificação da totalidade dos tipos de
conhecimento humano.
A questão da unidade das ciências, em Leibniz, não implica a uni-
dade do mundo e da realidade, como o monismo de Spinoza. Para
ele, na verdade, a realidade é constituída por uma diversidade de mô-
nadas simples, isto é, indivisíveis.
Essas mônadas são unidades que são ordenadas pelo próprio
Deus e se organizam em uma harmonia também estabelecida por
Ele, de acordo com uma hierarquia: dos graus mais inferiores, os se-
res inanimados, ao grau máximo e supremo, Deus.
A organização dessas mônadas, para Leibniz, poderia se estabele-
cer de diversas outras formas e critérios hierárquicos. Nesse sentido,
duas mônadas que invertessem seu lugar, formariam um mundo to-
talmente diferente do que o que habitamos. A infinita possibilidade
de organizações diferentes forma, portanto, uma infinidade de mun-
dos possíveis. Dentre todos esses, a ordem em que vivemos, para Lei-
bniz, constitui o melhor dos mundos possíveis.
O trecho a seguir de sua Monadologia explicita este ponto:

Veem-se, aliás, no que eu acabo de referir, as razões a priori por


que as coisas não poderiam passar-se de outra maneira. Porque
Deus, ao regular o todo, teve em consideração cada parte, e par-
ticularmente cada Mônada; a natureza da qual sendo representa-
tiva, nada a poderia limitar a representar apenas uma parte das
coisas; embora seja verdade que esta representação é meramente
confusa no pormenor de todo o Universo e só possa ser distinta
numa pequena parte das coisas, isto é, naquelas que são mais

36
próximas ou maiores relativamente a cada uma das Mônadas; de
outro modo, cada Mônada seria uma Divindade. Não é no objeto,
mas na modificação do objeto que as Mônadas são limitadas. Elas
vão todas confusamente ao infinito, ao todo; mas são limitadas e
distinguidas pelos graus das percepções distintas (LEIBNIZ, 2016,
p. 55-56).

Para conhecer a verdade sobre a realidade constituída por essas


mônadas limitadas, Leibniz sugere que se distingam dois tipos dife-
rentes de verdade: as verdades da razão e as verdades de fato.
As primeiras são lógicas e necessárias. Isso garante, às verdades
da razão, três diferentes características:
1) elas provêm da razão, isto é, não estão ligadas a nenhuma expe-
riência do ser humano com o mundo, mas somente dependem de seu
próprio intelecto;

2) elas, por serem necessárias, não podem ser negadas sem que,
com isso, quem as nega se contradiga;

3) elas são inatas e, portanto, acessíveis a qualquer ser humano


por meio da lógica e do raciocínio adequado.
As verdades de fato, por outro lado, são dependentes das experi-
ências do ser humano com o mundo e, por isso, são contingentes e
mutáveis ao longo do tempo.
Mesmo que dependam de certa experiência empírica, as verdades
de fato ainda estão, em última instância, ligadas a um princípio racio-
nal que as regula e explica conforme o intelecto humano. A esse, Leib-
niz chama de Princípio da razão suficiente. O ideal do conhecimento,
ao contrário, é totalmente racional e, por isso, as verdades da razão
são superiores às verdades de fato.
Essa arraigada defesa da razão no lugar das experiências é o que
caracteriza, acima de tudo, Leibniz como um racionalista. Seja na

37
fundamentação da ciência, da realidade, ou do conhecimento, ele
sempre recorre à superioridade da racionalidade intelectual sobre as
experiências empíricas.
Por isso, também, seu interesse pela matemática pura: ela não ne-
cessita da natureza e da observação do mundo para se dar, pois suas
formas são lógicas e conhecidas pela razão de modo a priori.
A soma dessas características faz de Leibniz um grande pensador
metafísico que, com sua teoria das mônadas, marca a história da filo-
sofia e do conhecimento humano.
Relativizando a dúvida cartesiana, esse filósofo criou a ideia de
graus de confiabilidade na qual o mais alto grau pertence à razão e às
suas faculdades intelectivas das quais provêm verdades inatas neces-
sárias e inegáveis, acessíveis por meio da lógica. A exaltação da lógica
permeia toda a filosofia de Leibniz e, em certo sentido, também expli-
ca suas opções metodológicas.
1.4.4 F. BACON
Francis Bacon (1561-1626) nasceu em Londres, na Inglaterra e,
além de filósofo, chegou a ocupar altos cargos ligados à justiça de seu
país na época do rei Jaime I.
Apesar de ser contemporâneo de Descartes, Bacon funda uma cor-
rente filosófica paralela e, em muitos sentidos, adversária à do filóso-
fo francês.
Diferentemente dos três filósofos apresentados acima, Bacon não
acreditava que era possível fundamentar as ciências na racionalidade
puramente intelectual. Por isso, ele é um dos iniciadores da filosofia
moderna, não no campo do racionalismo, mas no empirismo.
Ao contrário daqueles, os empiristas acreditavam que o método
científico deveria ser empírico, isto é, realizado por meio de experi-
mentos concretos e pela observação da natureza.
Por isso, longe da fundamentação subjetiva de Descartes, ou da

38
lógica de Leibniz, Bacon fundamenta sua filosofia em dois pontos: o
pensamento crítico e o método intuitivo.

Francis Bacon (1561-1626)

Uma das mais conhecidas contribuições de Bacon para a filosofia


diz respeito à noção de pensamento crítico. Para ele, a filosofia deve-
ria encontrar um método que evitasse os possíveis erros aos quais o
ser humano está sujeito.
Nesse ponto, sua modernidade se demonstra pela semelhança de
Descartes com essa busca. Entretanto, as respostas são quase opos-
tas. Se o primeiro responde tal questão apelando para o intelecto ra-
cional, o segundo o faz voltando-se para a experiência empírica.
Para Bacon, o ser humano até a modernidade vivia sob ilusões,
preconceitos e diversas superstições que poderiam ser desfeitas a
partir de um rigoroso método filosófico-científico. A libertação dessas
amarras viria, para ele, por meio do pensamento crítico. Por isso, ele
apresenta sua teoria dos ídolos.
Essa teoria se divide em quatro partes que correspondem a tipos
de ídolo que serão atacados por Bacon. Para ele, os ídolos distorcem
a percepção humana da realidade e impedem que o ser humano se
aproxime da verdade. Nesse sentido, diz o autor, eles bloqueiam a
mente humana criando a impossibilidade do método empírico radi-
cal que, para ele, pode levar o ser humano ao conhecimento verda-
deiro.

39
O primeiro tipo são os ídolos da tribo. Estes seriam a própria natu-
reza humana (essa grande tribo) que não possui uma relação direta
com o mundo, de modo que conhecê-lo não é um processo natural.
Bacon rompe com a tradição antiga e medieval que privilegiava o
ser humano como ápice da natureza. Antes, ele aponta que o conhe-
cimento humano é sempre limitado e, mais profundamente, para que
o ser humano conheça o universo, ele deve se esforçar como alguém
que derruba um ídolo falso.
Posteriormente, Bacon trata do ídolo da caverna que, para ele, repre-
senta a soma das características individuais de cada ser humano, sejam
elas físicas, psicológicas ou provenientes do meio social em que vive e
se criou. Dessa forma, cada indivíduo seria inclinado em uma direção
diferente, de acordo com seus gostos e preferências, de modo que o co-
nhecimento objetivo seria impossível a partir dessas inclinações.
Ao terceiro tipo de ídolo, Bacon nomeia ídolo do foro, isto é, do
mercado. Esse ídolo nasce das relações entre os seres humanos e de
seus discursos. Por meio da comunicação o ser humano seria leva-
do a ideias errôneas que geram fantasias em vez de abrirem para o
conhecimento verdadeiro. Para o autor, tais discursos falaciosos per-
turbariam o intelecto humano de modo que seriam também uma es-
pécie de barreira.
O último ídolo é o ídolo do teatro. Apesar de ser o último, ele é o
mais significativo do tempo no qual Bacon viveu. A figura do teatro,
nesse ponto, representa as doutrinas filosóficas antigas e medievais,
bem como os paradigmas científicos que, para o autor, foram ilusões
teatrais sobre o mundo ou mesmo atuações falsas que afastam do
conhecimento verdadeiro.
A proposta de Bacon para superar esses ídolos é, justamente, um
novo método científico que, radicalmente empírico, leve o ser huma-
no para além das ilusões passadas em direção a um futuro de conhe-
cimento verdadeiro.

40
O primeiro passo para tal seria o ser humano se despir dos precon-
ceitos que carrega até aquele momento e se tornar como uma criança
diante da natureza. Nesse momento se instaura, com grande força, o
que o filósofo alemão contemporâneo H. G. Gadamer chama de “pre-
conceito contra os preconceitos” na modernidade. Isso significa que
o ideal científico moderno exigia certo apagamento da identidade do
sujeito em favor de uma análise mais “pura” do objeto.
Esse é o primeiro passo do método sugerido por Bacon: despir-se
dos conceitos pré-concebidos e encontrar-se nu diante da natureza.
O ataque aos preconceitos significa, principalmente, uma afronta ao
conhecimento historicamente estabelecido até ali. Bacon demonstra-
se, nesse ponto, demasiadamente moderno, já que acredita piamen-
te na progressiva iluminação da humanidade rumo à verdade científi-
ca e busca superar a ilusão dogmática dos antigos e medievais.
Com o propósito de superação da tradição que lhe precedeu, Ba-
con publica sua obra mais importante intitulada Novum Organum.
Nela, a referência a ser superada é Aristóteles, um dos mais importan-
tes filósofos da antiguidade e referência fundamental para a escolás-
tica, movimento filosófico do medievo tardio.
O Organum de Aristóteles trata da fundamentação da lógica e da
ciência sobre a base do método de silogismo. Ao publicar um novo
Organum, Bacon pretende solapar a influência aristotélica sobre a fi-
losofia e substituir a base da ciência por categorias empíricas.
Defendendo sobretudo o método indutivo, Bacon afirma que o
cientista deve iniciar o seu labor fazendo observações do mundo e
da natureza. A partir delas, deve formular uma teoria geral que as
descreva e preveja, até certo ponto, e testar essa teoria por meio de
experimentos.
Está pressuposto, nesse contexto, que há uma regularidade no
mundo observável empiricamente, isto é, os objetos observados se
comportam sempre do mesmo modo. Assim, as teorias advindas da

41
observação seriam suficientes, após experimentadas, para formular
verdades científicas confiáveis.
Essa segunda parte de verificação da teoria, para Bacon, é de suma
importância – sobretudo em relação às teorias racionalistas que eram
desenvolvidas sem nenhuma experiência e, portanto, poderiam, em
sua opinião, facilmente escapar à realidade.
O método indutivo que Bacon propunha, por fim, parte das expe-
riências singulares para a formação de leis que são generalizações in-
tuitivas. O experimento, como meio entre o singular e o geral, serve
para dar peso às afirmações. Nesse sentido, quanto mais se experi-
menta uma teoria advinda da observação, maior a chance de ela ser
confiável.
Outro ganho que o método indutivo de Bacon apresenta é o fato
de que, a partir de uma lei teórica, podemos prever acontecimentos
naturais. Por exemplo, pode-se observar que os meses de verão em
nossa localização geográfica do mundo são chuvosos.
Portanto, posso prever que ao se aproximar dezembro, mais chu-
vas acontecerão do que nos meses anteriores. A partir de um método
indutivo, passou-se da observação geral para uma lei.
Francis Bacon, por fim, inaugura o empirismo moderno de modo
bem característico: crendo no progresso humano através do desen-
volvimento de métodos adequados ao conhecimento científico; ne-
gando a vigência dos paradigmas historicamente estabelecidos; de-
fendendo a razão instrumental como modo de superação das ilusões
passadas; criticando os ídolos que prendiam a humanidade numa era
de infantilidade intelectual e inocência científica.
Bacon rompe terminantemente com a tradição filosófica anterior
e abre espaço para os métodos empíricos e, consequentemente, para
os desenvolvimentos científicos que fazem do nosso mundo como
ele é hoje.

42
1.4.5 D. HUME
David Hume (1711-1776), nascido em Edimburgo, na Inglaterra,
segue sendo um dos mais conhecidos filósofos nascidos em terras
britânicas e foi o filósofo mais radical entre os empiristas.
Esse radicalismo se revela em sua noção de causalidade que, além
de aprimorar as discussões epistemológicas entre racionalistas e em-
piristas, em muito contribuiu para o avanço dos métodos científicos
baseados na observação.
Também frutos de seu posicionamento, Hume demonstrou com
sua filosofia que, quando levados a sério, os pressupostos empiristas
se aproximam do ceticismo e do naturalismo.
Pela extensão e importância de seu pensamento, esse autor é re-
conhecido como ponto central da tradição filosófica moderna. Sobre-
tudo quando se trata de empirismo, suas contribuições são notáveis e
paradigmáticas para a história da filosofia.

David Hume (1711-1776)

Hume afirma que o critério de validade de uma ideia não é a lógi-


ca, nem mesmo a sua “pureza” intelectual, mas a percepção sensível
(dos sentidos). Quanto mais perto da percepção, mais forte seria uma
ideia, enquanto que, por outro lado, quanto mais abstrata e subjeti-
va, mais fraca ela seria.

43
Por isso a universalidade é algo quase irrealizável para o autor: se
a experiência empírica é sempre singular, torná-la universal a partir
da replicação racional de sua lei significa falseá-la ou, no mínimo, en-
fraquecê-la.
Mesmo que a experiência cotidiana me indique que todo dia de
manhã o sol “nasce”, por exemplo, nada me permite afirmar uma lei
universal de que todos os dias o sol nascerá. Nesse sentido, o futuro é
sempre empiricamente incerto. Ainda que os fenômenos da natureza
sejam previsíveis, por meio dos costumes, nada pode garantir certeza
absoluta sobre o futuro. Esse questionamento da relação entre causa
e efeito é a base do ceticismo de Hume.
Para ele, a questão da relação entre causa e efeito passa, primei-
ramente, por uma distinção entre os objetos da razão humana entre
relações de ideias e questões de fato. Se a primeira questão depende
da intuição para provar sua verdade, as questões de fato não são as-
sim. A relação entre causa e efeito é a base dos raciocínios sobre tal
questão.
Diz Hume: “o conhecimento dessa relação não é, em caso algum,
alcançado por meio de raciocínios a priori, mas origina-se inteira-
mente na experiência” (HUME, 1999, p. 55).
Isso indica um grande ceticismo por parte do autor em relação à
tradição racionalista (de Descartes, por exemplo), uma vez que ele
confia somente na experiência. Justamente essa confiança o leva a
assegurar que é na experiência que se conhece as questões de fato.
Mas o que permite a uma experiência passada, fundada numa cau-
sa e num efeito específico, afirmar sempre tal mesmo efeito para a
mesma causa?
Primeiramente, Hume diz que cabe a nós esperar efeitos seme-
lhantes de causas semelhantes, mas não podemos nos assegurar to-
talmente dessa relação. Isso se dá, principalmente, porque o curso da
natureza tem permanecido o mesmo ao longo do tempo.

44
O que diferencia e, para Hume, liga de modo mais convincente
essa passagem da experiência passada ao que se pode esperar do
futuro é o hábito, o costume. Ele se diferencia da simples crença na
medida em que se baseia em uma experiência real e factual passada,
e não somente na mera expectativa subjetiva. A regularidade da expe-
riência fundamenta, portanto, a sua noção de causalidade.
Essa importante noção é descrita por Hume abaixo:

O hábito é, assim, o grande guia da vida humana. É só esse prin-


cípio que torna nossa experiência útil para nós, e faz-nos espe-
rar, no futuro, uma cadeia de acontecimentos semelhante às que
ocorreram no passado, sem a influência do hábito seríamos intei-
ramente ignorantes de toda questão de fato que extrapole o que
está imediatamente presente à memória e aos sentidos. Jamais
saberíamos como adequar meios a fins, nem como empregar nos-
sos poderes naturais para produzir um efeito qualquer. Pôr-se-ia
de imediato um fim a toda ação, bem como à parte principal da
especulação. [...] Qual é, então, a conclusão que se pode extrair
disso tudo? É uma conclusão simples, embora consideravelmente
afastada, reconheça-se, das teorias filosóficas usuais: toda crença
relativa a fatos ou à existência efetiva de coisas deriva exclusiva-
mente de algum objeto presente à memória ou aos sentidos e de
uma conjunção habitual entre esse objeto e algum outro. Ou, em
outras palavras, tendo descoberto, em muitos casos que dois ti-
pos quaisquer de objetos - chama e calor, neve e frio - estiveram
sempre associados um ao outro, se a chama ou a neve se apre-
sentarem novamente aos sentidos, a mente é levada pelo hábito a
esperar calor ou frio, e a acreditar que tal qualidade está presente
e irá revelar-se se examinada de perto. Essa crença é o resultado
necessário da colocação da mente em tais circunstâncias. Trata-se
de uma operação da alma que, quando estamos nessa situação, é
tão inevitável quanto sentimos a paixão do amor ao recebermos
benefícios, ou a do ódio quando deparamos com injúrias. Todas

45
essas operações são uma espécie de arranjos naturais que ne-
nhum raciocínio ou processo de pensamento ou entendimento é
capaz de produzir ou de evitar. (HUME, 1999, p. 67-69)

Assim como a questão da causalidade está para a ciência, a questão


da identidade pessoal está, em Hume, para a subjetividade humana.
Nesse ponto, em confronto mais direto com a tradição racionalis-
ta, o filósofo inglês critica o modo como Descartes pensava a mente
humana a partir da racionalidade do cogito. Para ele, não é possível
caracterizar de forma puramente intelectiva a mente humana, isto é,
sem apelar para qualquer conhecimento empírico que se dê através
das experiências.
Na medida em que vive no tempo, o ser humano se transforma
a todo momento, de modo que estabelecer por meio de uma razão
pura o que ele é, seria, necessariamente, incorrer em erro.
O que permite tal definição universal é, justamente, a memória e
o hábito que possibilitam a postulação de características quase per-
manentes ao longo do tempo e que, consequentemente, constituem
aquilo que o ser humano é de fato.
Assim como na ciência, não há certeza efetiva: somente probabili-
dade baseada em costume e regularidade.
Seu ceticismo mais uma vez se mostra, já que, para ele, o conheci-
mento total é sempre impossível e, consequentemente, a verdade se
torna totalmente inacessível.
O posicionamento crítico de Hume o leva a acusar outras filosofias
como dogmáticas, uma vez que elas não estariam abertas a propo-
sições que não dizem respeito ao seu léxico oficial nem dispostas à
investigação crítica dos seus próprios pressupostos.
Tais indisposições com o pensamento meramente abstrato mar-
cam definitivamente David Hume como o maior filósofo empirista
moderno.

46
CAPÍTULO 2
A Filosofia da Modernidade tardia
O pensamento da filosofia na modernidade, embora seja iniciado
pela controvérsia entre racionalismo e empirismo, não se resumiu a
ela.
A busca pelo entendimento do conhecimento humano e do mun-
do em si, a reflexão sobre os fundamentos epistemológicos e cientí-
ficos da filosofia, o otimismo e a crença no progresso tecnológico e
moral da sociedade, quando somados, deram lugar, ainda, ao mais
importante movimento filosófico da modernidade, já em seu entar-
decer: o Idealismo alemão.
Antes de apresentarmos seus filósofos, é preciso entender o mo-
mento histórico-filosófico no qual a filosofia clássica alemã teve lu-
gar - esse será nosso ponto de partida. Posteriormente, refletiremos
sobre as críticas modernas à modernidade.
Ora, se este é um momento cheio de si, isto é, baseado na autor-
reflexividade dos próprios valores, é completamente coerente que as
críticas sobre si mesmo surjam.
Verificaremos como alguns filósofos construíram suas ideias a par-
tir dessa percepção crítica dos ideais e dos objetivos modernos.

2.1. IDEALISMO ALEMÃO


Também conhecido como filosofia clássica alemã, o idealismo
alemão foi um movimento filosófico compreendido entre os séculos
XVIII e XIX.
Não é inseguro afirmar que as maiores referências filosóficas da
modernidade surgiram desse movimento, de modo que a filosofia

47
contemporânea, embora ainda mantenha diálogos com os filósofos
do início da modernidade, se constitui a partir do idealismo alemão.
Um movimento de tamanha importância, ironicamente, compre-
ende poucos filósofos. Em sentido mais estrito, I. Kant, J. G. Fichte,
F. W. J. Schelling e G. W. F. Hegel; em sentido mais amplo, pode-se
incluir F. Schiller, F. Hölderlin, K. W. F. Schlegel e F. Schleiermacher.
Dentre esses pensadores, apresentaremos os mais importantes e
influentes: Kant e Hegel.
A partir das reflexões deles, o idealismo alemão se constitui como
um movimento que, sintetizando empirismo e racionalismo, busca
compreender o conhecimento humano, a ética, a estética e o movi-
mento da história a partir de bases idealistas.
Isso significa que, para eles, o mundo não pode ser reduzido aos
materiais empíricos e visíveis aos quais temos acesso. Antes, há tam-
bém ideias e estruturas ideais subjetivas e objetivas que atuam na
história e no mundo.
2.1.1 ILUMINISMO
O movimento social conhecido como Iluminismo, ou Esclareci-
mento ou, simplesmente, “As Luzes”, se constituiu por uma série de
acontecimentos filosóficos e científicos.
Em geral, no Iluminismo, cria-se que a humanidade havia atraves-
sado um período de trevas e imaturidade que havia chegado ao fim
com o esclarecimento obtido pelo uso instrumental da razão.
O sentido da metáfora das luzes é, justamente, a iluminação racio-
nal comparada ao período de escuridão irracional que se atribuía às
épocas anteriores.
Note-se que o otimismo do Iluminismo se baseia na falsa ideia de
que a Idade Média não deu lugar a nenhum avanço científico quando,
na verdade, muitos filósofos importantes, bem como artistas reno-
mados, se formaram naquela época.

48
O Iluminismo, por outro lado, afirmando a superação do medievo
a partir da possibilidade de uso adequado da razão, interpretava a
tradição anterior de modo demasiadamente crítico.
Uma jornada paradigmática para entender os objetivos do Ilumi-
nismo é a publicação da Enciclopédia organizada pelos pensadores
franceses Diderot e D’Alambert em 1751. O objetivo da obra era reunir
os conhecimentos até então estabelecidos sobre os mais variados te-
mas, formando um aglomerado das descobertas técnicas, científicas,
médicas, filosóficas e artísticas da humanidade. O ideal de progresso,
autonomia e racionalidade marcaram a época.
Além dos idealistas alemães, fizeram coro ao Iluminismo: Rousse-
au, Voltaire, Montesquieu, Lessing, Goethe, Adam Smith, entre outros.
Para uma palavra mais precisa sobre o Esclarecimento, devemos
refletir sobre esse acontecimento a partir de um de seus filósofos, I.
Kant.
Ele define Esclarecimento do seguinte modo: “Esclarecimento
[Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele pró-
prio é culpado” (KANT, 2019, p. 63).
Em outras palavras, a noção de Esclarecimento está ligada dire-
tamente a uma progressiva autonomização da razão humana que,
deixando a menoridade intelectual da heteronomia, assumiria uma
posição de Esclarecimento diante do mundo a partir do próprio en-
tendimento.
O caráter progressivo do Esclarecimento, para Kant, não é somen-
te um fato histórico, mas uma exigência da própria natureza humana.
Assim como é natural que o ser humano passe de bebê a criança, de
adolescente a jovem adulto, seria também natural a saída da huma-
nidade de um tempo de menoridade intelectual a fim de assumir uma
autonomia esclarecida. Essa relação de progresso fica clara quando
diz o autor que

49
uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em
um estado em que se torna impossível para esta ampliar seus co-
nhecimentos (particularmente os mais imediatos), purificar-se dos
erros e avançar mais no caminho do esclarecimento [Aufklärung].
Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação
original consiste precisamente neste avanço (KANT, 2019, p. 68).

Para ele, seria impossível que uma época de tão grande lucidez e
agudeza intelectual se estabelecesse de modo a nenhum progresso
ser possível em uma época posterior.
Nesse sentido, mais do que uma resolução técnico-científica, Kant
trata de uma percepção de purificação dos erros também morais. Isto
é, há uma relação de causa e efeito diretamente proporcional entre
progresso científico e progresso moral.
Na medida em que o homem dominasse mais e melhor as leis da
natureza, bem como as técnicas de produção a partir dessa, mais per-
to também ele estaria do cumprimento da lei moral inerente a ele. Re-
jeitando, assim, o móbile para o mal e as inclinações para o pecado,
cada vez mais o ser humano viveria em uma época em esclarecimen-
to maior, que nunca pode ser última.
O especialista no pensamento kantiano Otfried Höffe, argumen-
tando sobre a resposta de Kant ao que podemos esperar, traça de
modo semelhante a importância da relação diretamente proporcio-
nal entre progresso científico e moral na obra do autor.
Diz Höffe: “Não só a Filosofia da História de Hegel, mas também a
Filosofia da História de Kant são uma história do progresso para a li-
berdade. A História deve progredir para uma convivência dos homens
em liberdade exterior, de modo que todas as forças e disposições
possam desenvolver-se” (HÖFFE, 2005, p. 274).
Por mais que, como pontua o autor posteriormente, Kant não
compartilhasse de todo o otimismo de sua época, não se pode ne-
gar a relação que está pressuposta em seu elogio do Esclarecimento

50
e do progresso científico-moral como caráter essencial da natureza
humana.
Dessa forma, o movimento do Iluminismo, do qual faz parte o ide-
alismo alemão, se formula a partir de três pressupostos: 1) a liberda-
de; 2) o individualismo; 3) a igualdade jurídica.
Essas bandeiras que caracterizam o Iluminismo, apesar de não
terem sido exatamente levantadas como protesto social, se estabe-
leceram como pano de fundo para certos acontecimentos históricos
marcantes da época.
Dentre eles, figuram dois de maior importância: a Revolução Fran-
cesa e a Declaração de Independência dos Estados Unidos.
O primeiro evento ocorreu em 1789 e tinha por lema “Liberdade,
Igualdade, Fraternidade”. Nesse caso, o individualismo advogado
pelo liberalismo corrente estava pressuposto. Ora, só é possível afir-
mar uma fraternidade entre indivíduos livres e em posição de igual-
dade.
A Declaração, de 1776, deixava clara as mesmas perspectivas so-
bre o ser humano enquanto ser livre e ao qual não deveria ser impu-
tada nenhuma diferença de antemão, de modo que todos os homens
(e mulheres) deveriam ser percebidos como iguais perante a lei e o
Estado.
A partir desse ponto, o ser humano deveria exercer sua autonomia
de modo racional. Diferente da heteronomia, na qual outra (heteros)
pessoa/instituição estabelece as leis (nomos) pelas quais o ser huma-
no deve viver sua vida, a autonomia estabelece que as leis sejam cria-
das pela própria (autos) racionalidade humana.
Esse princípio também pressupõe a liberdade, a igualdade huma-
na e o individualismo, na medida em que postula que cada um deve
viver conforme o uso de sua própria razão.
Dessa forma, o Iluminismo criou o cenário adequado para que os
pensadores alemães do idealismo aprofundassem as querelas episte-

51
mológicas, ontológicas e científicas abertas pelo embate entre racio-
nalismo e empirismo. Para além desses, os idealistas não apenas con-
fiam na razão e buscam sua fundamentação filosófica, mas também
procuram, racionalmente, estabelecer quais são os limites da própria
razão.
2.1.1.1 I. KANT
Immanuel Kant (1724-1804) foi um dos mais influentes filósofos
modernos.
Embora tenha iniciado sua carreira como professor de geografia,
Kant marcou a história da filosofia com seu apelo à crítica enquanto
método.
Para além da fama filosófica, esse autor ficou conhecido pela vida
excêntrica que levava na cidade de Königsberg, atualmente na Rús-
sia.
Duas anedotas ilustram os costumes do ilustre puritano:
1) diz-se que os cidadãos de sua cidade ajustavam seu relógio de
acordo com a caminhada matinal de Kant, tamanha era sua pontua-
lidade e regularidade;

2) diz-se também que, apesar de sua influência filosófica, nunca


viajou para fora da região onde nasceu e nem se casou.
Embora esses fatos careçam de documentação histórica compro-
batória, eles ilustram de forma adequada o rigor e singularidade da
filosofia kantiana.
A fim de conhecermos melhor seu pensamento, é preciso passar-
mos por suas três críticas que, escritas em aprofundamento na sequ-
ência que foram publicadas, pressupõem cada qual à anterior.
Em outras palavras, a primeira crítica expõe as bases epistemoló-
gicas do ser humano, a segunda diz respeito à sua ação moral, e a
terceira, à faculdade do juízo estético que possuímos.

52
Antes, porém, é preciso entendermos o conceito de autonomia da
razão humana que está pressuposto ao longo de toda a sua obra.

Immanuel Kant (1724-1804)

Passemos ao conceito de autonomia. No prefácio à segunda edi-


ção da Crítica da Razão Pura, tal conceito está pressuposto na funda-
mentação mesma dos objetivos da obra kantiana.
A tese fundamental de sua primeira crítica, como veremos a seguir,
é de que a razão tem o primado sobre o entendimento das coisas e,
portanto, os fenômenos se adaptam à razão para o conhecimento, e
não o contrário.
Antes ainda de enunciá-la, porém, Kant faz analogia com alguns
importantes avanços científicos de seu tempo a partir de descobertas
de Galileu, Torricelli e Stahl.
Sobre esses, diz o filósofo:

Eles compreenderam que a razão só entende aquilo que ela mes-


ma produz segundo seu projeto, e que ela tem de colocar-se à
frente, com os princípios de seus juízos segundo leis constantes, e
forçar a natureza a responder às suas perguntas em vez de apenas
deixar-se conduzir por ela, como que puxada por uma corda; pois
do contrário as observações contingentes e feitas sem nenhum
plano previamente concebido, não seriam articuladas sob uma lei
necessária, algo que a razão necessita (CRP, B XIII).

53
Nesse ponto, o conceito de autonomia da razão, mesmo que impli-
citamente, está pressuposto. Ora, isso fica claro na medida em que,
nas palavras do autor, “a razão só entende aquilo que ela mesma pro-
duz segundo seu projeto”. A razão, portanto, apresenta aqui um certo
tipo de autossuficiência: ela depende de si na medida em que com-
preende o mundo externo a partir de suas próprias estruturas. Essas,
no trecho citado, não são apenas suas produções, mas também as
indicações de seu projeto de conhecimento.
Aqui, ganha significado a ideia de que “os objetos têm de regular-
se por nosso conhecimento” (CRP, B XVI). A autossuficiência da razão
só é possível enquanto ela mesma for tomada como autônoma, isto
é, reguladora de si mesma.
Por isso, apesar de não se opor ao procedimento dogmático, Kant
se coloca radicalmente contra o dogmatismo. Esse seria “[...] o pro-
cedimento dogmático da razão pura sem uma crítica prévia de sua
própria faculdade” (CRP, B XXXV).
A crítica prévia que Kant reclama para o caso é, justamente, o que
assegura à razão sua autonomia. Se essa, por outro lado, caísse no
dogmatismo, perderia sua autonomia na medida em que seria limi-
tada por uma norma advinda de outra autoridade que não si mesma.
A mesma importância fundamental ao conceito está dada em A
religião nos limites da simples razão. A investigação da natureza hu-
mana que Kant traça nessa obra está ligada à sua preocupação com
as relações entre religião e moral, de modo que é necessário, para ele,
investigar como o mal radical se estabelece no ser humano e como,
por meio do seguimento das leis morais, ele pode resistir ao mal. É
justamente nessa medida que o conceito de autonomia mais uma vez
aparece como chave para compreensão dessa opção humana entre
bem e mal.
Diz-nos Kant: “Portanto, a diferença de se o homem é bom ou mau
deve residir, não na diferença dos móbiles, que ele acolhe na sua

54
máxima (não na sua matéria), mas na subordinação (forma da máxi-
ma): de qual dos dois móbiles ele transforma em condição do outro”
(KANT, 2016, p. 42).
Mais uma vez, nesse seguimento, não está explícita a atuação do
conceito de autonomia, mas implícita e subjacente à argumentação
do autor. A atribuição de maldade ou bondade a um homem depen-
de de como ele submete os móbiles, isto é, certo impulso motivador
para eles.
Aqui, a condição necessária à razão para que o homem possa su-
bordinar as formas das máximas uma à outra é a autonomia da razão.
Não é esse o caso de uma inclinação natural para um ou outro, mas,
se fosse afirmada qualquer tipo de natureza inexorável tanto para o
bem quanto para o mal, a autonomia da razão não se faria e, conse-
quentemente, o homem cairia num ciclo de determinação e necessi-
dade que não permitiria qualquer tipo de liberdade ou, consequen-
temente, culpa.
Em Resposta à pergunta: Que é ‘Esclarecimento?’, por fim, o concei-
to de autonomia aparece nos mesmos termos, como um pressupos-
to fundamental subjacente à argumentação, mas, nesse caso, ainda
com mais força.
A resposta de Kant sobre o que é Esclarecimento é curta e objetiva,
sendo o texto posterior uma argumentação em favor e fundamenta-
ção dela. Dessa forma, desde o princípio do texto podemos perceber
a centralidade do conceito de autonomia para a obra.
Nas palavras do autor, “Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do
homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado” (KANT,
2019, p. 63).
O conceito de autonomia se encontra na negatividade da noção de
menoridade. Em outras palavras, a menoridade indica justamente o
contrário da autonomia, a saber, a heteronomia. Na medida em que
o homem estava preso a uma menoridade racional, sem decisão nem

55
coragem para assumir sua autonomia, ele se encontrava preso a um
período de “trevas” no qual era dominado por uma lei imposta sobre
ele sem, nem mesmo, refletir sobre ela.
Neste ponto também se encontra a importância do conceito de Es-
clarecimento: o momento no qual o homem decide, por meio de sua
autonomia, sair de tal menoridade.
Esse Esclarecimento, para Kant, é uma época em processo, e não
uma época esclarecida enquanto tal. Ao afirmar isso, Kant comple-
menta: “Falta ainda muito para que os homens [...] sejam capazes de
fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem diri-
gidos por outrem” (KANT, 2019, p. 69).
Vê-se que o autor estabelece, com ainda maior clarividência, a
centralidade do conceito de autonomia. Junto com o Esclarecimen-
to surge a possibilidade de fazer uso do próprio entendimento por
si mesmo, sem direção de outrem. Este é, justamente, o conceito de
autonomia: estabelecer as próprias normas a partir do uso da própria
razão nela mesma, sem dependência de normas alheias.
Dessa forma, seja nas críticas ou em suas leituras sobre religião e
Esclarecimento, o conceito de autonomia nos parece relevante, cen-
tral e fundamental para o desenvolvimento da tarefa do pensamento
kantiano.
Pressupondo a autonomia da razão humana, Kant teve por objeti-
vo construir a partir do pensamento crítico fundamentações filosófi-
cas que contemplassem epistemologicamente o ser humano.
Em outras palavras, Kant apresenta sua filosofia como uma nova
base para que o ser humano entenda melhor as suas próprias estru-
turas mentais e, a partir disso, repense a ética e a estética.
Crítica, no sentido kantiano, não pode ser entendida como o é no
senso comum. Crítica não significa “falar mal” ou “depreciar”. Antes,
é a busca pela definição dos horizontes e limites do objeto que a ela
se submete.

56
Nesse sentido, a crítica em Kant é o contrário do dogmatismo: en-
quanto esse aceita de antemão verdades estabelecidas, a crítica bus-
ca conhecer a fundo os limites de tal fato.
Apesar de voltar-se para as estruturas racionais do ser humano,
Kant não pode ser considerado um racionalista. A influência de Hume,
por exemplo, sobre ele é notória, a ponto do próprio autor afirmar
que filósofo inglês o despertou de um sonho dogmático. Não é errado
afirmar que, por meio de uma inventividade aguda, Kant reúne ele-
mentos racionalistas e empiristas para constituir sua filosofia.
Sua primeira crítica é a Crítica da Razão Pura. Nela, Kant estabele-
ce a base sobre a qual se situam as duas outras críticas.
Primeiramente, o autor propõe um giro que, para ele, é análogo
ao que Copérnico fez na física. O físico postulou que, ao contrário do
que pensavam seus pares, a terra girava em torno do sol, e não o sol
em torno da terra.
Kant, analogamente, afirmou com sua primeira crítica que não
é nossa mente que se adequa aos objetos da natureza para conhe-
cê-los, mas eles se adequam à nossa mente. Isso se dá porque, para
ele, o ser humano possui estruturas mentais inatas que determinam o
modo como ele conhece qualquer objeto. Assim, o conhecimento se
dá na relação entre como o objeto se mostra para o sujeito e como a
mente humana compreende o objeto.
Por isso Kant chama sua tarefa de filosofia transcendental: porque
ela trata do modo de conhecimento dos objetos e não deles mesmos.
Nesse sentido, sua filosofia transcende, isto é, ultrapassa a materiali-
dade dos objetos. Vejamos a construção de seu argumento:

Até hoje se assumiu que todo o nosso conhecimento teria de regu-


lar-se pelos objetos; mas todas as tentativas de descobrir algo so-
bre eles a priori, por meio de conceitos, para assim alargar nosso
conhecimento, fracassaram sob essa pressuposição. É preciso ve-
rificar pelo menos uma vez, portanto, se não nos sairemos melhor

57
se, nas tarefas da metafísica, assumindo que os objetos têm de
regular-se por nosso conhecimento, o que já se coaduna melhor
com a possibilidade, aí visada, de um conhecimento a priori dos
mesmos capaz de estabelecer algo sobre os objetos antes que nos
sejam dados (CRP, B XVI).

Como resultado dessa proposição, Kant afirma que os objetos em


si mesmo não são disponíveis objetivamente para o conhecimento
humano. Eles são números inalcançáveis. O que temos acesso são fe-
nômenos, justamente a medida que os objetos se mostram conforme
as estruturas mentais humanas podem apreendê-los.
A compreensão humana se dá, portanto, somente a partir dos juí-
zos realizados por tais estruturas. Enquanto conceitos puros (inatos)
do entendimento, Kant as chama de categorias. É interessante como,
em sua construção crítica, Kant determina uma tabela com os juízos
e as categorias do entendimento a partir da qual o ser humano po-
deria conhecer qualquer objeto que se mostre enquanto fenômeno.
Nesse sentido, o conjunto de categorias kantianas fornece um mapa
de nossa mente.
Reproduzimos a tabela de Kant abaixo conforme a organização de
Marcondes (MARCONDES, 2008, p. 215-216):
Juízos Categorias
Quantidade:
Unidade
Universal
Pluralidade
Particular
Totalidade
Singular
Qualidade:
Realidade
Afirmativo
Negação
Negativo
Limitação
Limitativo

58
Relação:
Substância e acidente
Categórico
Causalidade e dependência
Hipotético
Comunidade e interação
Disjuntivo
Modalidade:
Possibilidade
Problemático
Existência e inexistência
Assertórico
Necessidade e contingência
Apodítico

A segunda crítica de Kant não tem viés epistemológico como a an-
terior, mas trata do tema da moral. Essa é a Crítica da Razão Prática.
Sua construção ética não é, conquanto, situacionista. Isto é, sua fór-
mula não varia de acordo com as situações e contextos na qual o ser
humano vivencia concretamente em seu cotidiano.
Ela também não é individual e/ou intuitiva, mas é universal e total-
mente racional. Assim como as categorias do entendimento humano,
o princípio ético pelo qual o ser humano deve se orientar faz parte da
mente: essa é a consciência moral que é a mesma e está presente em
todos os seres humanos.
Para Kant, nesse sentido, há um imperativo categórico, um man-
damento do qual não se pode fugir, visto que é universal e diz respei-
to a todos os seres humanos: “age apenas segundo aquela máxima
pela qual ao mesmo tempo tu possas querer que se torne uma lei uni-
versal” (KANT, 2011, 4: 42).
Em outras palavras, Kant estabelece a regra de ouro (conhecida
em diversas versões) como princípio universal de prática humana.
Nesse sentido, a ética kantiana é uma ética do dever, uma vez que
toda ação deve ser realizada com base em uma fórmula que lhe é an-
terior e desconsidera sua situação.
Para entendermos melhor a seriedade da filosofia moral kantia-
na, consideremos uma situação prática. No início da Segunda Guerra

59
Mundial, o partido nazista começa a retirar todos os judeus de casa
e transportá-los. Uma família judia, sabendo que corre risco de vida,
pede para se esconder na casa de seus vizinhos que prontamente a
recebem. Alguns dias depois, um oficial do exército nazista bate à
porta e pergunta ao pai da família se há algum judeu escondido ali. O
que este homem deve responder?
Para grande parte de nós, seria justo que o homem mentisse em
favor da vida de seus vizinhos. Para Kant, por outro lado, o dever ético
desse homem é falar a verdade, pois há uma lei moral inata ao seu
entendimento que determina que mentir é um ato intrinsecamente
imoral, independentemente da situação. A moral mostra-se, nesse
ponto, demasiadamente rígida.
Por fim, a terceira crítica de Kant é a Crítica da faculdade de julgar
e trata, especificamente, do fundamento racional humano do gosto
estético. Assim como na crítica anterior, para ele há estruturas inatas
no entendimento humano que determinam universalmente o gosto.
Consequentemente, o belo não seria algo subjetivo, pessoal, nem
mesmo historicamente construído, mas seria a sensação de corres-
pondência entre uma obra de arte e as categorias mentais do ser hu-
mano que já teriam determinado, de antemão, o que é belo e o que
não o é.
A beleza, para Kant, tem características objetivas justamente por-
que corresponde a uma estrutura mental que está presente em todos
os seres humanos e é, portanto, universal. O que caracteriza a beleza,
em último grau, é a falta de uma finalidade para si. Ou, em outras pa-
lavras, a beleza é um fim em si mesma. Ela não precisa de uma moti-
vação ou objetivo exterior a ela para existir, mas existe, somente, para
ser bela.
Embora seja de grande importância para os estudos de estética,
as contribuições da terceira crítica para a filosofia em geral são limi-
tadas, sobretudo quando comparada com a primeira. Através de sua

60
filosofia crítica, Kant postulou novos fundamentos sobre os quais a
maior parte da tradição filosófica posterior considera fazer parte.
2.1.1.2. G. W. F. HEGEL
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) é, juntamente com
Kant, um dos mais importantes filósofos do idealismo e da história da
Alemanha, em geral.
Obteve grande reconhecimento de sua obra ainda em vida, tendo
sido, por muitos anos, professor na renomada Universidade de Jena.
Antes de voltar-se para a filosofia, porém, Hegel estudou teologia no
seminário de Tübingen, mas suas pretensões pastorais não prosse-
guiram por muito tempo - ainda que o tema da religião tenha feito
parte de sua vida e de seu sistema filosófico de modo marcante.
Prova disso são suas primeiras publicações, já como filósofo: A
vida de Jesus (1795) e O espírito do cristianismo e seu destino (1799).
Além da ligação com a religião, Hegel também é conhecido pelo her-
metismo de sua obra, isto é, pelo vocabulário rebuscado e pela densi-
dade lógica que tornam sua leitura de difícil acesso.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)

As pretensões de Hegel não eram meramente epistemológicas e


éticas, como Kant. Antes, seu objetivo era a formulação de um siste-
ma filosófico que, refletindo a realidade mesma, desse conta do Todo
enquanto unidade.

61
Essa pretensão enciclopédica de Hegel o levou a tratar sobre diver-
sos temas, da arquitetura à religião passando pela moral, pelo direito,
pela política e pela estética - sempre apontando para a unidade dos
temas como partes constituintes do mesmo sistema.
Para ele, por mais que todos esses fenômenos se tratassem de coi-
sas diferentes, eles poderiam ser explicados a partir das mesmas leis
que regem a Natureza e a História. Na verdade, não somente há uma
lei por meio da qual a Natureza funciona e a História ocorrem, mas há
também um direcionamento para o qual elas caminham: o Absoluto.
Ao movimento da História e da Natureza, Hegel nomeia dialética. A
problemática do movimento é uma das mais fundamentais de toda a
história da filosofia. Isso porque, se nos aprofundarmos no problema,
devemos perceber que ele envolve todos os objetos e o conceito de
espaço e tempo - categorias fundamentais para nossa percepção de
mundo.
Ora, se algo passa a ser de outra maneira, ele se movimentou de
alguma forma. Mas, qual é a constituição mesma desse movimento?
Como ele se dá? Como nasce o novo a partir do movimento?
Para Hegel, a resposta a essa questão deve ser única, de modo que
o mesmo movimento diga respeito a todo movimento. A dialética,
para ele, tem tal importância.
Diz-nos o autor que o princípio do movimento é a contradição: o
novo só pode surgir quando um segundo termo se opõe ao primeiro.
Ou, nos termos hegelianos, para haver movimento deve haver uma
tese, uma antítese que a negue de alguma forma, e uma síntese que
surja dessa negação.
A síntese é o novo que, por sua vez, se transforma na próxima tese.
Na medida em que a síntese conciliatória entre tese e antítese se
transforma em uma nova tese, podemos verificar que movimento é
incessante. Assim, a História é constituída dialeticamente, bem como
a Natureza e os fenômenos que nela estão.

62
A História e a Natureza no sistema hegeliano caminham, indefini-
damente. Mas, para onde caminham? Para a realização do Espírito
Absoluto e do Saber Absoluto. Espírito, aqui, não pode ser entendido
teologicamente como uma das pessoas da trindade, mas deve ser en-
tendido como a Ideia Infinita da unidade.
Nesse sentido, diz o autor: “a essência em-si-e-para-si-se-sente,
que ao mesmo tempo é para si efetiva como consciência, e que se
representa a si mesma para si, é o espírito” (HEGEL, 2014, p. 298).
Isso significa que o espírito é aquilo que é por si mesmo e a Histó-
ria caminha em sua direção para, no Saber Absoluto, ter sua autor-
reflexão completa. Cada momento dessa caminhada é, para Hegel,
constituído pela dialética do sistema. Quase uma obsessão, o autor
divide cada pequena parte da História em três momentos.
Um exemplo interessante desse fato, é a constituição da Filosofia
da História de Hegel. Para ele, há três momentos na História mundial,
da qual a Modernidade é a síntese.
Primeiramente há a Antiguidade, com o “milagre grego” da ilumina-
ção racional como superação dos mitos. Como antítese, a Idade Média
com as “trevas” da superstição e da irracionalidade. Daí o nome Idade
Média - aquilo que fica no meio da tese e da síntese. Por fim, a síntese
seria a Modernidade em seu auge do uso instrumental da razão.
Nesse sentido, Hegel faz coro com seus colegas modernos na per-
cepção extremamente otimista da modernidade como ponto alto do
desenvolvimento humano.
Além do otimismo, Hegel dá forma filosófica à crença de que a mo-
dernidade seria substancialmente um momento mais importante do
que os precedentes, visto que nela o Espírito Absoluto estaria mais
perto de sua realização.
Ao pressupor uma teleologia, isto é, um objetivo final para o qual
a história caminha, Hegel formula filosoficamente como a dialética
compreende esse movimento evolutivo gradual da humanidade.

63
Esse movimento também está presente na Fenomenologia do Es-
pírito, seu livro mais importante.
Nele, Hegel assim relaciona seu sistema: a primeira tese é a ideia,
na qual, internamente, há outra tese: o Ser; uma antítese: a Essência;
e a síntese: a noção. A antítese da ideia é a natureza, na qual a tese é a
mecânica; a antítese, a física; e a síntese, a orgânica. Por fim, a síntese
entre ideia e natureza é o espírito, no qual há, respectivamente, o es-
pírito subjetivo, o objetivo e o absoluto.
Dentro do espírito absoluto, suas expressões são: a arte como tese,
a religião como antítese, e a filosofia como síntese no espírito absolu-
to. Esse movimento final entre arte, religião e filosofia representa de
modo paradigmático sua relação com o espírito absoluto.
Para ele, a arte (tese) tem a forma correta para a representação do
autoconhecimento do espírito, mas não possui o conteúdo adequa-
do. A religião (antítese), por outro lado, possui o conteúdo correto,
mas sua forma não é adequada. A filosofia (síntese), por fim, reuniria
forma e conteúdo adequados para que se chegue ao Espírito Absolu-
to. Somente na filosofia o Espírito Absoluto conseguiria, para o autor,
a liberdade que necessita para que o seja.
O legado de Hegel é grandioso. Seu sistema determinou funda-
mentalmente a história da filosofia bem como da historiografia.
Tantos foram seus seguidores que se dividiram conforme as linhas
interpretativas do autor em direita e esquerda hegeliana.
Schelling, outro importante idealista alemão que já lecionava antes
de Hegel na Universidade de Jena, após a morte deste, precisou mo-
dificar o conteúdo de suas aulas para contemplar a filosofia do autor.
Dentre seus intérpretes e críticos mais famosos, figuram K. Marx,
cujo pensamento apresentaremos a seguir, e L. Feuerbach, cujo pen-
samento foi fundamental para a crítica da religião na época.
Ainda na filosofia contemporânea a importância de Hegel se de-
monstra: J. Derrida, filósofo francês, diz que a filosofia nunca cessará

64
de ler, reler, reinterpretar e criticar Hegel - tamanho o valor de sua
obra.

2.2 A CRÍTICA MODERNA À MODERNIDADE


Sem sair da modernidade propriamente dita, surgiram na Europa
posições filosóficas críticas à filosofia que vinha se constituindo no
continente. Se o desprezo pelo antigo, o livre uso da razão e o pensa-
mento crítico autoconsciente marcaram a modernidade, não é ines-
perado nem incoerente que o movimento moderno como um todo
seja enfrentado dentro desse tempo mesmo.
As críticas, sobretudo ao idealismo alemão, foram muitas e diver-
sas. Destas, destacamos as três mais importantes.
Antes de verificarmos como essas construções são erguidas, é im-
portante salientarmos uma característica compartilhada pelos três
autores.
O ponto de inflexão que K. Marx, S. Kierkegaard e F. Nietzsche
abrem no pensamento moderno tem a função de passagem. Por isso,
dois são seus atributos: tais filosofias tanto encerram o pensamento
filosófico moderno, como também inauguram o pensamento con-
temporâneo.
Verifique-se, à guisa de exemplo, as primeiras correntes de filoso-
fia contemporânea: a Escola de Frankfurt, influenciada por Marx; a
Fenomenologia, influenciada por Nietzsche; e o Existencialismo, in-
fluenciado por Kierkegaard.
As fronteiras entre o moderno e o contemporâneo, assim como
afirmamos entre o medieval e o moderno, não são rígidas e ultima-
mente estabelecidas, mas podem ser delineadas a partir de paradig-
mas e passagens referenciais. Assim, esses três críticos são posicio-
nados em uma fronteira da tradição filosófica ocidental e, por isso,
dão os primeiros passos para o que chamamos de filosofia contem-
porânea.

65
2.2.1. K. MARX
Karl Marx (1818-1883) nasceu em uma região da Prússia que, hoje,
é território alemão. Iniciou seus estudos na Universidade no curso de
Direito, porém, concluiu seu doutorado em Filosofia sobre a noção de
natureza em dois filósofos pré-socráticos, Demócrito e Epicuro.
Apesar da escolha desse tema, filósofos modernos como Kant e
Hegel foram fundamentais na construção de sua argumentação. Das
diversas influências filosóficas presentes em seu pensamento, este
último é a maior força.
A complexidade do pensamento de Marx se estende para além da
filosofia, alcançando grande importância também na história, na so-
ciologia e na economia. Sua relação com as ciências sociais, nesse
sentido, garantiu que, até os dias de hoje, sua filosofia encontre não
somente admiradores, mas seguidores de suas ideias práticas, sobre-
tudo as ligadas à formação política de uma sociedade sem classes.
Destaca-se que grande parte de sua obra foi em coautoria com F. En-
gels.
Uma nota técnica: do pensamento de Karl Marx, diz-se marxiano;
do pensamento que sofreu influência desse autor, diz-se marxista.

Karl Marx (1818-1883)

O princípio fundamental da filosofia de Marx se baseia em sua


leitura de Feuerbach, outro seguidor de Hegel: “os filósofos apenas
interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa, con-

66
tudo, é transformá-lo” (MARX, 2019, p. 91). Nessa síntese já se des-
pontam os principais objetivos de sua obra: a modificação do mundo,
e não somente a sua interpretação.
Quando localizamos o pensamento marxiano na modernidade,
esse dito do qual Marx se apropria ganha contornos ainda mais cla-
ros. Ora, o debate de racionalistas e empiristas, bem como o do idea-
lismo alemão, é, sobretudo, um debate epistemológico que, ligado à
formação das ciências naturais, visava conhecer e interpretar o mun-
do no qual o ser humano está inserido. A filosofia em Marx não pode
ser outra senão uma prática revolucionária que, ao contrário dos ide-
alistas, não se preocupa com o valor das ideias e conceitos, mas com
a materialidade das necessidades do ser humano.
Nesse sentido pode-se entender o materialismo marxiano: ele
nega o valor filosófico das ideias abstratas em favor da materialida-
de dos fatos e da história. Sua crítica a Hegel se estabelece, também,
nesse caso: enquanto o ser humano no filósofo idealista tinha os pés
na terra, mas a cabeça em abstrações “celestes”, para Marx a cabeça
do ser humano pensa a partir de onde os pés pisam, isto é, da situa-
ção material político-econômica em que se encontra.
Aprofundando esse ponto, Marx diz que a concepção hegeliana de
história não diz respeito à história de fato porque não considera a ma-
terialidade dos fatos que constituem a dialética.
Notemos que o pensamento marxiano não rompe com a noção
dialética de Hegel, mas tenta superá-la a partir da ideia de que a his-
tória se movimenta a partir de uma estrutura diferente do Espírito
Absoluto.
Nesse sentido, diz Marx:

“os homens fazem sua própria história, contudo, não a fazem de


livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as
circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram trans-
mitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações

67
passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos”
(MARX; ENGELS, 2011, p. 25).

Essa citação demonstra dois importantes aspectos do pensamen-


to de Marx.
Primeiramente, a ideia de que o ser humano constrói sua própria
história. Diferentemente de Hegel, Marx acredita que há na história
uma abertura radical, de modo que seus fins não estão determinados
de antemão, mas são construídos conforme os seres humanos trans-
formam seu mundo.
Por outro lado, essa liberdade humana não é total, como se qual-
quer atitude fosse possível nela. Antes, os seres humanos recebem
como herança um mundo social do qual não são responsáveis pela
criação, mas o são pela transformação.
A antropologia marxiana, isto é, o modo como Marx entende o ser
humano, está implicitamente contida nessa ideia de transformação
de mundo. O ser humano constrói seu mundo e, consequentemente,
o destino da história por meio do trabalho.
Este, portanto, passa a ser central para Marx em suas análises so-
ciológicas do capitalismo da época, bem como em suas análises eco-
nômicas nas propostas políticas revolucionárias.
Em sua análise do sistema do capital, Marx propõe que a desigual-
dade entre a burguesia e o proletariado são a causa de uma enorme
injustiça na sociedade.
Enquanto os donos dos meios de produção (patrões) exploram o
trabalho de seus empregados, eles sustentam um sistema que causa
o sofrimento da maioria do povo. Um exemplo disso é o cálculo da di-
ferença entre quanto o dono de uma fábrica lucra com o trabalho de
um empregado e o quanto ele paga a esse empregado. Tal diferença é
chamada por Marx de “mais valia”.
A desigualdade patente do capitalismo, para ele, é parte integran-

68
te e coerente da história da humanidade como um todo. Isso porque
há um motor da história que se faz presente em cada momento: a
luta de classes. Seja entre escravos e senhores, ou entre burguesia
e proletariado, a história se movimenta dialeticamente pela luta de
diferentes classes na configuração de um opressor e um oprimido.
Para Marx, a burguesia capitalista não detém somente os meios de
produção materiais, isto é, as obras primas com as quais o proletaria-
do trabalha. Antes, essa classe também possui as formas “espirituais”
de domínio, isto é, o modelo de pensamento que permite o controle
da sociedade. A essas formas Marx denomina ideologia.
Ideologia, primeiramente, não tem sentido amplo nesse autor. Por
isso, ela não pode ser entendida como mero “modo de pensar”, como
no senso comum. Antes, no pensamento marxiano, a ideologia deve
ser entendida como uma falsa consciência gerada e gerida pelas eli-
tes para que o proletário não perceba sua condição desfavorável na
situação social em que se encontra.
Assim, a ideologia mascara a realidade das classes baixas, de
modo que elas não se revoltem contra o sistema. Na medida em que
o ser humano não consegue compreender sua própria existência na
sociedade da qual faz parte, ele está alienado.
O conceito de alienação, é fundamental para entendermos Marx:
o ser humano é alienado de sua produção laboral na medida em que
não recebe o equivalente à própria produção, e é alienado de si mes-
mo pelas produções ideológicas da elite.
É a partir dos conceitos de ideologia e alienação que podemos en-
tender o polêmico dito de Marx no qual a religião “é o ópio do povo”
(MARX, 2010, p. 145).
Antes da célebre frase, é preciso entendermos o contexto no qual
ela se insere. Para tal, devemos voltar, na mesma página, a algumas
palavras antes: “esse Estado e essa sociedade produzem a religião,
uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo in-

69
vertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enci-
clopédico [...] sua base geral de consolação e de justificação” (MARX,
2010. p. 145).
O ser humano, diz ele, só pode ser corretamente compreendido
quando o percebemos como parte de um Estado e de uma sociedade.
Essas estruturas políticas produzem a religião a partir da alienação
que sustenta a possibilidade da desigualdade econômico-material.
A religião, nesse sentido, é uma resposta do oprimido a um mundo
do qual se sente alienado. Por isso, em Marx, a religião não precisa
ser superada: uma vez que ela é mero fruto da desigualdade, basta
superar a divisão da sociedade de classes que, consequentemente, a
religião não fará mais sentido. Assim, ela não é mero instrumento de
alucinação social, mas resposta à alienação da qual o ser humano faz
parte. Em suas próprias palavras, “a religião é o suspiro da criatura
oprimida” (MARX, 2010. p. 145).
O legado de Marx é, de fato, impressionante. Para além de seu tra-
balho filosófico, sua crítica ao capitalismo continua sendo de eficácia
contundente.
Seu Manifesto Comunista, escrito em conjunto com Engels, figura
entre os livros mais vendidos da história mundial. Sua teoria sobre
a história como movimento dialético da luta de classes figura como
prestigioso método historiográfico.
Ainda hoje Marx é considerado um dos pais fundadores da sociolo-
gia, ao lado de E. Durkheim e M. Weber. A mudança de paradigma que
propõe de uma filosofia interpretativa a uma filosofia transformado-
ra influenciou e influencia diversas correntes teóricas que, para além
da abstração típica de grande parte da tradição filosófica, volta sua
reflexão para a vida concreta do ser humano em suas mais diversas
situações de opressão e sofrimento.

70
2.2.2 S. KIERKEGAARD
Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855) foi um filósofo e teólogo di-
namarquês de grande importância para a história da filosofia. Isso
porque, embora tivesse a vida conturbada por desilusões amorosas
e polêmicas, ele foi um profícuo escritor.
Dono de um estilo único, Kierkegaard utilizava diversos pseudô-
nimos para contestar autoridades filosóficas e religiosas da época e
publicar textos (às vezes simultaneamente) com correspondência in-
direta entre si sem fazer com que o público soubesse que se tratava
do mesmo autor.
Dentre suas maiores críticas, estavam o idealismo alemão, sobre-
tudo a partir do sistema hegeliano, e o cristianismo protestante dina-
marquês que não assumia posturas coerentes diante de sua fé.
Por mesclar tais temas, Kierkegaard é até hoje considerado como
um autor que fica na fronteira entre filosofia e teologia. De um modo
geral, pode-se dizer que o objetivo de Kierkegaard era fazer com que
o ser humano tornasse a si mesmo, na subjetividade de si para além
das requisições éticas e estéticas, em favor do religioso enquanto fé
cotidiana.

Søren Kierkegaard (1813-1855)

71
A obra de Kierkegaard, apesar de complexa, pode ser entendida
como uma das obras mais bem planejadas na história do pensamen-
to ocidental. Dialogando com um dos maiores filósofos da história,
Hegel, ele ironicamente demonstrou de que forma os sistemas filosó-
ficos construídos, especialmente o idealismo, não podiam dar conta
do principal problema humano: a existência.
Por mais que esses sistemas tentassem, essa tarefa não cabe na
objetividade da racionalidade, nem nos moldes que sustentavam o
pensamento filosófico do século XIX. Kierkegaard mesmo enfrentou
essa dificuldade: como tratar de temas existenciais a partir da filo-
sofia se estes não podem ser resolvidos de maneira objetiva e, muito
menos, universal?
Ele buscou inspiração na ironia socrática que, para ele, lidava per-
feitamente bem com a tensão entre exterioridade e interioridade. Tal
qual Sócrates, seu caminho não seria de expor ou revelar a verdade
para os seus contemporâneos, mas indicar caminhos para que eles
próprios chegassem a ela.
Diz ele em franca crítica a Hegel:

Um sistema de existência não pode haver. Então não existe um


tal sistema? De modo algum! Isso não está implicado no que foi
dito. A existência mesma é um sistema - para Deus, mas não pode
sê-lo para algum espírito existente. Sistema e completude se cor-
respondem mutuamente, mas existência é justamente o contrá-
rio. Visto abstratamente, sistema e existência não se deixam pensar
conjuntamente, porque, para pensar a existência, o pensamento
sistemático precisa pensá-la como suspensa e, portanto, não como
existente. Existência é o que abre espaço, que aparta um do outro;
o sistemático é a completude reúne (KIERKEGAARD, 2013, p. 124).

É usando este método que, ainda contra Hegel e seu sistema fi-
losófico absoluto, Kierkegaard escreve suas Migalhas filosóficas.

72
Através de um pseudônimo e a todo tempo aludindo suas ideias ao
cristianismo sem citá-lo (apesar de o autor [Climacus] não se consi-
derar cristão), o pensador dinamarquês desenvolve uma categoria
essencial de seu pensamento: o paradoxo. Sustentar a existência de
um paradoxo já é, em si, uma ideia extremamente crítica à filosofia
hegeliana, que buscava dar conta de toda a realidade.
Mas o que seria esta categoria? Ora, a justaposição entre dois opos-
tos que não poderiam coexistir quando pensados a partir da raciona-
lidade. Em Migalhas, esse paradoxo é o instante: o momento funda-
mental que diferencia o modelo A (socrático-hegeliano) do modelo B
(cristão). Esse instante é uma inserção do eterno no tempo, a síntese
perfeita entre finitude e infinitude, corpóreo e anímico, necessário e
possível.
Nesse modelo B, o instante é fundamental, pois marca a passagem
da não-verdade à verdade no discípulo, visto que este não pode ter a
verdade em si, pois aí já não seria a não-verdade.
O paradoxo é fundamental em Kierkegaard pois é nele que se pode
entender os limites da racionalidade na questão da existência, isto é,
a partir da noção de que existem paradoxos, pode-se delimitar até
que ponto a razão pode ir e onde ela deve ter seu fim. Esse lugar é o
lugar do salto, a decisão fundamental existencial que não pode ser
colocada em termos puramente racionais.
É pelo paradigma do paradoxo absoluto que se coloca em relação
dois outros temas fundamentais para o entendimento do que se pode
considerar a questão última em Kierkegaard (o tornar-se cristão): o
desespero e a fé.
Kierkegaard parte da ideia de que cada indivíduo é responsável
por sua própria existência, isto é, cada um deve dar conta de realizar
a síntese entre finitude e infinitude (bem como as categorias correla-
tas) em si mesmo.
Entretanto, isto se dá a partir de um estado inicial, inserido no

73
mundo por Adão (como sujeito e como representante do gênero hu-
mano). Todavia, a decisão de Adão pelo pecado não influencia quali-
tativamente o estado em que o homem se encontra no mundo, mas
quantitativamente.
Desse modo, a decisão pelo pecado (queda) é sempre tomada
pelo homem individualmente, apesar de o mundo poder ser mais ou
menos angustiado - esta diferença quantitativa não determina a es-
colha do homem. Tendo optado pelo pecado, o homem encontra-se
com a total liberdade e, consequentemente, sua vertigem: a angústia.
A angústia não é definível, mas descritível, e é isso que Kierkega-
ard faz em O conceito de angústia: demonstra como esse fenômeno
se encontra na existência humana. A angústia nasce justamente da
liberdade: com a grande possibilidade de lidar com a própria existên-
cia, o homem encontra-se com o nada, e este passa a ser objeto de
sua angústia.
A partir dela o homem precisa tomar suas decisões existenciais
- sempre através de saltos, visto que são irredutíveis à racionalida-
de. Para nosso autor, essas decisões devem ser tomadas visando o
tornar-se a si mesmo, isto é, uma síntese entre finitude e infinitude.
Quando há a má relação dessa síntese consigo mesma, tendendo
para um ou para outro, o homem entra em desespero.
Desse modo, para Kierkegaard, o homem desesperado é aquele
que não consegue tornar a si mesmo porque estabelece mal essa sín-
tese. O homem só se torna indivíduo a partir da síntese bem estabe-
lecida.
É nesse sentido que Kierkegaard afirma que o homem é espírito
e o espírito é o si mesmo. O homem é espírito somente quando não
está em desespero, isto é, quando não relaciona bem os elementos
da síntese. Essa síntese é relação, não meramente equilíbrio entre
duas partes.
Para nosso autor, todos os homens vivem, de alguma forma e em

74
alguma medida, uma espécie de desespero. O desespero, neste sen-
tido, não impediria o homem de ser feliz, de certo modo. Entretanto,
devido à angústia, o homem vive em desespero em algum âmbito,
por conta dessa má relação.
Como sair do desespero? Kierkegaard apresenta uma saída: a fé.
A fé, simbolizada por Abraão, a quem nosso autor chama de cava-
lheiro da fé em Temor e tremor, é um duplo movimento que é realiza-
do pelo indivíduo que tornou-se a si mesmo.
Como se explica esse duplo movimento? Não se explica, por isso
é colocado junto à categoria do paradoxo. O primeiro movimento se
caracteriza por uma resignação infinita, na qual o indivíduo abre mão
do que o constitui como tal (não só o que lhe é mais precioso) diante
da infinitude. Essa relação, então, pode ser chamada de relação ab-
soluta com o absoluto.
Foi isto que Abraão fez: levou em silêncio, posto que a singulari-
dade do ato não lhe poderia ser reconhecida pelo universal, seu filho
para ser sacrificado no local em que Deus lhe indicara.
Essa decisão, de tornar-se assassino por conta de sua relação com
o Deus não pode ser baseada em termos estéticos, isto é, do ponto
de vista da exterioridade, muito menos em termos éticos, visto que
a moralidade condena qualquer espécie de assassinado, ainda mais
quando um pai atenta contra a vida de seu filho.
Essa atitude de resignação infinita, abrir mão da esperança que
sustenta sua própria vida, é um ato de fé e só pode ser entendido
como tal no âmbito da religiosidade - estágio que, para Kierkegaard
está acima da ética e da estética.
O primeiro movimento só pode ser realizado à medida em que
Abraão permaneceu em sua fé, que de maneira nenhuma pode ser
entendida como a promessa de recompensa em outra vida, mas a es-
perança de encontrar-se aqui mesmo.
O segundo movimento é o retorno à imediatidade da vida cotidia-

75
na, assim, com uma diferença fundamental: uma boa relação com a
síntese. Para Kierkegaard, não há diferença externa entre o desespe-
rado e quem realizou o duplo movimento da fé: ambos podem realizar
suas tarefas diárias do mesmo modo, mas são totalmente diferentes.
Nesse ponto, só quem entrega a si mesmo num salto de fé é quem
torna a si mesmo, e só quem torna a si mesmo pode dedicar-se à es-
tética sem que esta seja mera exterioridade. A existência, a partir de
então, é levada a partir de um princípio: a amorosidade para com o
outro.
Só quando Abraão se dispôs a perder Isaque é que ele ganhou Isa-
que de fato, não para nele estar em contato com sua esperança ou
promessa, mas para estar com o amor. Perder-se para encontrar a si
mesmo: paradoxo.
Essa experiência do duplo movimento da fé só pode ser realiza-
da na singularidade de sua relação absoluta com o absoluto. Daí di-
ferencia-se fundamentalmente o cavalheiro da fé e o herói trágico:
enquanto este está baseado numa ética universal e encontra apoio
na moralidade da comunidade que o cerca, aquele encontra-se em
silêncio, sozinho, sem apoiar-se na ética, apenas em sua relação sin-
gular com Deus. Desse modo, o indivíduo vive para além do desespe-
ro, numa boa relação com a síntese através da fé, sob o paradigma do
paradoxo absoluto.
A crítica que Kierkegaard estabelece contra Hegel e o sistema do
idealismo alemão é de grande pertinência, de modo que não somen-
te ele demonstra sua preocupação com a pretensa totalização da ver-
dade, mas se volta para o pensamento da singularidade do indivíduo
que, em um sistema totalitário, desaparece em sua infinitude.
Nesse ponto, o filósofo dinamarquês recupera o pensamento do
ser humano enquanto unicidade que, no tempo e no espaço próprios,
precisa lidar com a angústia da própria liberdade frente ao inegável
fato da existência e de seu sentido.

76
Kierkegaard se coloca como um grande pensador da existência,
embora não possa ser considerado um filósofo existencialista. A reli-
gião aparece como ponto central de seu pensamento, seja por meio
de um vocabulário próprio, seja por meio das críticas ao cristianismo
dinamarquês. Isso demonstra que, mesmo sem recorrer a qualquer
posicionamento irracionalista, a religião pode tomar o centro das dis-
cussões filosóficas na modernidade.
2.2.3. F. NIETZSCHE
Friedrich Nietzsche (1844-1900) talvez seja o mais conhecido críti-
co da modernidade.
Apesar de sua origem acadêmica não ser a filosofia, mas a filolo-
gia, Nietzsche escreveu diversas obras nas quais questionou os mais
importantes temas da modernidade e, em muitos sentidos, revolu-
cionou o modo como se faz filosofia no Ocidente.
Isso porque, além das ácidas críticas em forma e conteúdo, esse
filósofo alemão lançou os fundamentos sobre os quais grande parte
da filosofia contemporânea se conduz.
Nesse sentido, seu legado é tão alastrado quanto o de Marx, e sua
crítica, tão contundente quanto a de Kierkegaard.
Apesar da genialidade, Nietzsche passou os dez últimos anos de
sua vida em hospitais psiquiátricos após um surto em 1890.
Dentre seus conceitos principais, destacam-se o da morte de Deus,
o eterno retorno do mesmo, o amor fati, a vontade de poder e o além-
do-homem.
Grande parte de sua obra, diferentemente da maior parte da filo-
sofia moderna, não é escrita como um discurso filosófico argumen-
tativo, mas por meio de aforismos, fragmentos e narrativas literárias.
Este último é o caso de Assim falou Zaratrusta, um de seus mais
aclamados livros, no qual um profeta (Zaratrusta) dialoga com diver-
sas personagens acerca de sua doutrina filosófica. A ironia e a acidez

77
crítica são parte integrante de sua obra que, por meio de polêmicas e
provocações, desafia grande parte dos paradigmas assentados pelos
filósofos modernos.
A esse movimento Nietzsche chama de filosofar com o martelo,
quebrando os dogmas da tradição por meio de uma transvaloração
dos valores. Os valores, para ele, não são entidades eternas que, sub-
sistindo em si mesmos, pairam acima de todo julgamento humano.
Antes, diz ele, os valores são humanos, demasiadamente huma-
nos. Isto é, os valores são construídos socialmente de modo a regular
a vida e seus impulsos de modo que, se foram construídos, podem ser
destruídos. Nietzsche não deseja, entretanto, somente discordar das
consequências da filosofia moderna. Antes, ele ataca também seu
fundamento:

De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra


a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um ‘puro sujei-
to do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo’,
guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como
‘razão pura’, ‘espiritualidade absoluta’, ‘conhecimento em si’; - tudo
isso pede que se imagine um olho que não pode absolutamente ser
imaginado, um olho voltado para nenhuma direção, no qual forças
ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, de-
vem estar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo
absurdo e sem sentido (NIETZSCHE, 20009, p. 100-101).

Aqui, a crítica de Nietzsche é direcionada a Kant, mas estende-se a


Hegel, a Descartes e ao pensamento metafísico de modo geral.
A ideia de um sujeito puro é evocada por tais autores para funda-
mentar a filosofia: em Kant, ele é o sujeito do conhecimento que co-
nhece o mundo através das estruturas mentais; em Hegel, o sujeito
da história, mas que não a tem; em Descartes, o sujeito que cogita de
modo puro sobre a existência de si e do mundo.

78
Contra a absolutização abstrata de um ser humano puro (que é
inexistente), Nietzsche se revolta e conclama a ideia de que o ser hu-
mano, em sua vida real, não é assim. Exigir algo assim dele seria, en-
tão, absurdo e sem sentido.
Devemos nos atentar ao fato de que certas críticas de Marx, Kierke-
gaard e Nietzsche se aproximam neste ponto: o sujeito ideal moderno
não existe e, portanto, não pode ser o critério de validação da filoso-
fia.
Para Marx, o ser humano real é aquele que está inserido nas condi-
ções materiais de trabalho; para Kierkegaard, ele é o indivíduo subje-
tivo cuja existência deve ser resolvida por ele mesmo; para Nietzsche,
ele é, como veremos, histórico e inserido na vida a partir de seus de-
sejos, impulsos e vontades.
Um de seus conceitos mais fundamentais se faz por meio do anún-
cio da morte de Deus.
Este, apesar do peso da expressão, não pode ser interpretado
como um sinal de ateísmo. Primeiramente, por uma questão lógica:
para Deus morrer, ele, antes, deveria estar vivo. Se fosse ateu, Nietzs-
che não diria que Deus morreu, mas que nunca existiu de fato.
Em segundo lugar, e mais importante, o autor não trata, neste pon-
to, do Deus cristão. Antes, para ele, Deus é o símbolo que representa
o fundamento da estabilidade dos conceitos filosóficos e dos valores
ocidentais.
Seu anúncio, por conseguinte, indica que não é mais possível refe-
renciar em nada os julgamentos sobre o que seja verdade ou mentira,
nem mesmo o bom ou mau. O centro a partir do qual obtinha-se cri-
térios para estabelecer tais juízos se perdeu. Deus morreu.
Um de seus mais famosos aforismos trata, justamente, deste anún-
cio. Sublinhamos o fato de que as metáforas às quais Nietzsche faz
referência não tratam de aspectos religiosos, mas naturais. Vejamos
o aforismo 125 de A gaia ciência:

79
Não sentimos o cheiro da putrefação divina? — Também os deuses
apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o ma-
tamos! Como nos consolar, nós assassinos entre os assassinos? O
mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuía sangrou
inteiro sob os nossos punhais — quem nos limpará este sangue?
Com que água poderíamos nos lavar? A grandeza desse ato não
é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos
tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve
um ato maior — e quem vier depois de nós pertencerá, por causa
desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até en-
tão! (NIETZSCHE, 2012, p. 138).

A ideia de que Deus morreu e, ainda mais profundamente, nós o


matamos, indica que a modernidade, enquanto racionalização do
mundo, possibilitou o ato de transgredir a ordem moral da vida.
Mais do que isso, na medida em que estabelece diversas mentiras
para afirmar os valores inventados, a modernidade e a metafísica se
aproximam de um niilismo, isto é, de uma espécie de beco sem saída,
no qual o ser humano não possui mais fundamentos.
Nietzsche, nesse sentido, é um anti-niilista, porque busca, a todo
tempo, reafirmar o valor da vida. Se o anúncio da morte de Deus reve-
la a situação em que o ser humano se encontra depois da modernida-
de, a noção de eterno retorno do mesmo nos faz refletir sobre como
se deve viver a vida diante da desestabilidade dos valores.
Narrativamente, diz Nietzsche:

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtiva-


mente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como
você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e
por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor
e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefa-
velmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder no-
vamente, tudo na mesma sequência e ordem — e assim também

80
essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante
e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada
novamente — e você com ela, partícula de poeira”! Você não se
prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que as-
sim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual
lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina”!
(NIETZSCHE, 2012, p. 205).

A ideia de Nietzsche aparece claramente colocada acima. Ele não


afirma que o tempo e a história são estruturas cíclicas que por meio
da repetição ininterrupta se tornam infindáveis. Antes, ele faz um in-
teressante questionamento: se a vida, de fato, fosse um eterno retor-
no do mesmo, como nos sentiríamos? Essa postulação não diz respei-
to ao que veio ou ao que virá, mas a como vivemos a vida no agora.
Para Nietzsche, esse modo de viver implica não se deixar perder
em uma preocupação demasiada nem do passado, nem do futuro em
ilusões de situações que podem não ser reais. Deve-se viver a vida
real no agora, aceitando os fatos que lhe são impostos como parte
natural da vida mesma. A essa ideia, ele chama de amor fati, isto é, o
amor ao destino e à vida terrena.
Ao assumir o amor pela vida em seus caminhos e descaminhos, o
ser humano teria, para Nietzsche, uma nova atitude perante o mundo
e seu destino. No caminho inverso de uma salvação extramundana,
o ser humano teria cada vez mais desejo pela vida mesma em sua
tragédia e sua possibilidade criativa.
Por isso, ele não teria meramente vontade de sobrevivência, ou
de suprir as necessidades mais básicas. Sua vontade, diz Nietzsche,
é a vontade de poder, de autoafirmação, de criatividade, de domina-
ção, de criação de valores. A potencialidade humana de construir um
mundo que lhe seja próprio constitui, para esse filósofo, a proprieda-
de mais intrínseca ao ser humano.
Por isso, aqueles que assumem para si o amor fati e libertam a von-

81
tade de poder são seres humanos que superam a humanidade de-
cadente típica da modernidade e suas mentiras que retiram de vista
a vida mesma. Dessa forma, todo aquele que assume suas vontades
criativas e valoriza a vida está no caminho para se tornar além-do-ho-
mem.
A filosofia de Nietzsche, nesse sentido, é extremamente crítica,
mas em sentido diferente do kantiano. Se este buscava estabelecer
os horizontes do conhecimento humano, aquele tentou destruir as
bases metafísicas-abstratas desse conhecimento para, reafirmando a
vida, conceber um novo tipo de humanidade.
Nessa, não há lugar para verdades últimas e valores universais.
Não há Deus que sustente um cabedal de proposições morais infini-
tas, eternas e imutáveis. Antes, há a vida, seu destino que deve ser
amado, a criatividade humana que deve ser fomentada, e os impul-
sos vitais que devem tomar o lugar da moralidade fictícia.
A profunda acidez da crítica de Nietzsche influenciou grandes filó-
sofos do séc. XX, como veremos a seguir, como M. Heidegger e M. Fou-
cault, e continua influenciando filósofos do séc. XXI, como G. Vattimo.
A partir de seus pensamentos sobre a verdade, Nietzsche inaugu-
rou um posicionamento epistemológico na filosofia chamado pers-
pectivismo, no qual a interpretação é ponto fundamental para a cons-
trução de verdades, de modo que todo discurso deve ser reconhecido
como tendo partido de uma perspectiva.
Essa afirmação impossibilita posicionamentos unívocos sobre
qualquer assunto visto que, mesmo que seja um discurso coerente,
parte de uma perspectiva específica.

82
CAPÍTULO 3
Filosofias Contemporâneas
Não podemos dizer da filosofia o mesmo que Nietzsche disse de
Deus. Isso porque, apesar do esgotamento do paradigma moderno,
demonstrado nas duras críticas de Marx, Kierkegaard e Nietzsche, os
filósofos não pararam de pensar e repensar toda a tradição anterior
a eles.
Inclusive, a ideia nietzschiana da morte de Deus convém para en-
tendermos melhor porque falamos em filosofias contemporâneas no
plural, e não no singular como a filosofia moderna.
Quando este autor constata que não há mais fundamento seguro
sobre o qual o pensamento metafísico pode se sustentar, ele, ao mes-
mo tempo, fecha uma possibilidade e abre inúmeras outras.
A partir de Nietzsche, não há mais a possibilidade coerente de afir-
mar verdades absolutas sobre o mundo e o ser humano. Por outro
lado, há, agora, a oportunidade de afirmar as mais diferentes formas
de verdade, os mais diversos constructos intelectuais e os mais múlti-
plos modos de pensar o fazer filosófico.
Por isso, o fio condutor mais forte que perpassa as filosofias con-
temporâneas é a pluralidade interpretativa. Ainda, porém, que as filo-
sofias contemporâneas se baseiem em um alastramento de métodos
e pressupostos filosóficos, nem todas as suas correntes reconhecem
a pluralidade como um princípio seu.
Em meio a essa pluralidade, cabe-nos apresentar as mais impor-
tantes correntes contemporâneas em suas complexas argumenta-
ções sobre como a tradição filosófica pode ser reinterpretada à luz de
novas problemáticas que surgem com o avanço da história.

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São interessantes os modos como, simultaneamente, cada cor-
rente das filosofias contemporâneas se apropria de certos autores e
escolas de pensamento, por um lado e, por outro, critica uma série de
filósofos anteriores a eles.
Neste capítulo, portanto, refletiremos sobre quatro diferentes cor-
rentes filosóficas da tradição mais recente: a Escola de Frankfurt; a
Fenomenologia; a Hermenêutica; e a Filosofia analítica.
Com suas nuances próprias, essas diferentes filosofias ajudam a
formar o cenário que se apresenta hoje.
Outra possível divisão para essas correntes se dá a partir de um
critério geográfico. Embora pouco usual na história da tradição, divi-
dem-se as correntes contemporâneas em duas: filosofia continental e
filosofia analítica.
Enquanto a continental seria a de produção europeia, em geral, a
analítica seria a desenvolvida em países anglófonos: Estados Unidos
e Inglaterra.
Como veremos a seguir, a filosofia continental se elabora com
mais divisões e correntes internas e, por isso, ocupam maior espaço
em nossas reflexões.

3.1. ESCOLA DE FRANKFURT


A Escola de Frankfurt é um movimento conhecido por reunir inte-
lectuais de diversas áreas, inclusive a filosofia, no Instituto de Pesqui-
sas Sociais na cidade alemã.
Apesar de ter sido fundado em 1924, o Instituto teve sua atividade
paralisada na década de 30 devido à ascensão do nazismo na Alema-
nha. Nesse período, seus principais pesquisadores se refugiaram nos
Estados Unidos até o fim da Segunda Guerra.
De forma geral, a Escola de Frankfurt se caracteriza pelas ácidas
críticas à racionalidade instrumental moderna, ao capitalismo e à
indústria cultural – nome que deram ao movimento de cultura de

84
massas que surgia na época com o cinema, a música e os programas
televisivos.
Nesse sentido, apesar de não se envolverem em ações revolucio-
nárias, as preocupações desta corrente filosófica eram tanto políticas
quanto estéticas, na medida em que ela se construía a fim de um pro-
jeto político.
Os principais nomes da Escola de Frankfurt são Theodor Adorno
(1903-1969), Max Horkheimer (1895-1973), Hebert Marcuse (1898-
1979), Walter Benjamin (1892-1940) e Erich Fromm (1900-1980). Suas
influências são encontradas ainda hoje em pensadores como Jürgen
Habermas (1929).

Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973)

Uma das mais importantes críticas realizadas pela Escola de Frank-


furt é a crítica ao conceito de Esclarecimento na filosofia, representa-
da, sobretudo, pela filosofia idealista alemã.
A partir de uma definição específica do conceito de esclarecimen-
to, Adorno e Horkheimer tecem uma fervorosa crítica contra a razão
instrumental. Essa, apesar de datar dos mais originários mitos, en-
contra seu auge na modernidade que, com pretensões de domina-
ção, tem por interesse subjugar a natureza ao ser humano.
Dessa forma, a racionalidade instrumental, na cultura ocidental,
pretende-se como meio de dominar a natureza como um todo – inclu-
sive, os seres humanos. Essa dominação se dá, segundo os autores,
por meio da técnica.

85
Em outras palavras, por meio de um desenvolvimento cada vez
mais acurado dos modos de conhecimento e produção, sobretudo
na ciência, esse progressivo esclarecimento buscou a dominação da
natureza.
Na medida em que buscam olhar objetivamente para um aspec-
to específico da natureza e compreendê-lo totalmente e, sempre que
possível, de modo último, as ciências se colocam a serviço de tal es-
clarecimento dominador.
Ora, quanto mais e melhor se conhece um objeto (um tipo espe-
cífico de madeira, por exemplo) mais utilidades podem a ele serem
projetadas, com maior eficácia e em menor tempo. Nesse sentido, o
esclarecimento serve em muito ao capitalismo de mercado, uma vez
que, pela dominação total da natureza, aumenta a produtividade e o
lucro da mercadoria gerada pelo trabalho humano.
A racionalidade instrumental que os autores criticam é, portanto,
uma racionalidade pragmática que busca por meios adequados para
certos fins de dominação.
Para Adorno e Horkheimer, o esclarecimento, no limite, não visa
apenas a dominação da natureza enquanto tal, mas também do pró-
prio ser humano. Por isso, a potente afirmação de que “O esclareci-
mento é totalitário” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 22). Na medida
em que visa a administração científica do próprio ser humano, o es-
clarecimento se transforma em um sistema totalitário que, além do
conhecimento, domina e gerencia vidas e mortes.
Essa crítica ao regime epistemológico que serve ao capitalismo se
estende também à produção cultural da época. Walter Benjamin tece
sua crítica baseando-se no declínio da “aura” na obra de arte. Essa
“aura”, para ele, seria o que distinguiria a verdadeira obra de suas re-
produções técnicas.
É preciso ter em mente que, nessa época, começavam a surgir as
possibilidades de reprodução material de obras de arte por meio de

86
fotografias, impressões e filmagens dos originais. O declínio da aura
na obra de arte diagnosticado por Benjamin tem sua origem na repro-
dutibilidade técnica que é possível na modernidade.
Benjamin, questionando a noção de progresso (termo moderno
fundamental), pergunta-se sobre a influência da técnica moderna
nas obras de arte: ela afetaria o original da obra? Responde o autor:
não. Todavia, mesmo que o original não se altere, a reprodutibilidade
técnica modifica um importante aspecto da recepção da obra de arte
pelo público.
Essa relação entre público espectador e obra não se dá diretamen-
te com a obra mesma, mas com a sua aura. A alteração de tal relação,
prossegue Benjamin, causa um declínio na aura da obra. O conceito
de aura tem sentido quase religioso, uma vez que remete a um as-
pecto sacro da obra, mas não é um valor em si de uma pintura ou es-
cultura. A aura é a elas atribuída, primeiramente, na medida em que
remete a espaço e tempo singulares ou, em alguns casos, originários.
Com esse caráter, a tradição confere à obra de arte certo valor de
culto que, numa espécie de esquecimento de sua origem histórica,
contribui para a formação de um caráter sacro da obra – que caracte-
riza fundamentalmente sua aura.
Na medida em que os homens modernos não precisam mais da
mediação aurática na obra de arte, sua reprodutibilidade técnica
cria as condições para um declínio dessa aura. As imagens perdem
o “tempo” do valor de culto, passando à imediaticidade do valor de
troca comercial e da simples exposição e reprodução técnica.
O valor de culto, nesse sentido, é substituído pelo valor de expo-
sição e pelo valor de troca. A relação entre obra e público não é mais
mediada pela aura, mas por uma exploração meramente comercial.
Isso se demonstra, por exemplo, na ascensão de modos de produ-
ção artística que não possuem mais um original e, consequentemen-
te, são criados já sem aura: a fotografia e o cinema.

87
A experiência estética, a partir dessa importante alteração da re-
lação entre obra e público baseada na substituição do valor de culto
pelo valor de troca, sofre também uma importante modificação, a sa-
ber, ela passa de contemplação que leva a um espaço e a um tempo
singulares, a mera observação passiva da reprodução (em qualquer
espaço e qualquer tempo) de uma obra sem aura que, muitas vezes,
é assimilada e produzida pela indústria cultural em favor do capita-
lismo.
A indústria cultural de que falava a Escola de Frankfurt, todavia,
não dizia respeito somente a pinturas e esculturas, mas também à
produção massiva de entretenimento cultural para a população mun-
dial. Nisso, incluem-se não somente programas televisivos, radiofô-
nicos e de filmes de cinema, mas também jogos esportivos, shows e
exposições.
Esse entretenimento é produzido pela denominada indústria a fim
de preencher o “tempo livre” entre os ciclos do trabalho de uma pes-
soa. Tal preenchimento, entretanto, não é somente um passatempo
enquanto espécie de descanso para o trabalhador. Antes, ele preen-
che psicologicamente, em nível inconsciente, suprindo uma deman-
da causada pela alienação e pela precarização do trabalho.
Segundo Adorno e Horkheimer, as condições adversas do sistema
do capital fazem com que o trabalhador se comprometa em uma la-
buta mal remunerada, sem sentido, onerosa, desprezível, e que, no
final das contas, não foi por ele escolhida.
Tal imposição do trabalho precarizado faz com que o ego humano
fique enfraquecido. Em outras palavras, alimenta-se no ser huma-
no uma diferença muito grande entre os desejos e a realidade. Para
que o trabalhador frustrado não se revolte, é necessário que haja um
modo de extravasamento no tempo livre e, consequentemente, de
suprimento de tal diferença.
A indústria cultural age nesse sentido: criando, por meio de nar-

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rativas forjadas, a empatia entre o trabalhador e um personagem, de
modo que quando esse vence (um reality show, um jogo, ou uma luta,
por exemplo), o próprio trabalhador se sente vitorioso.
O ego enfraquecido, consequentemente, resolve-se por meio do
consumo de bens culturais que não são espontâneos, mas produzi-
dos pela indústria cultural de modo a suprir esse enfraquecimento.
Dizem os autores que, por isso, essa indústria não cria algo novo,
mas somente repete as mesmas fórmulas alterando cenários e per-
sonagens para criar, nos trabalhadores, a sensação de familiaridade,
bem como a de satisfação consigo mesmo e com o mundo em suas
condições adversas.
Nesse sentido, dizem Adorno e Horkheimer, a indústria cultural
gera a conformação dos indivíduos com as condições materiais injus-
tas do capitalismo, em uma jogada ideológica que promove a conti-
nuação do mesmo sistema de exploração.
Psicologicamente, a indústria cultural supre a fragilização do ego.
Socialmente, mantém o indivíduo conformado com as condições ma-
teriais. Politicamente, ela faz com que o capitalismo se mantenha en-
quanto sistema injusto.
Utilizando a crítica ao capitalismo de Marx e unindo-a, em mui-
tos casos, com a psicanálise de Freud, a Escola de Frankfurt não se
limitava somente à crítica filosófica abstrata dos conceitos das tra-
dições anteriores, mas voltava-se para uma análise da sociedade em
que viviam buscando revelar como ideias intrinsecamente filosóficas,
como o conceito de Esclarecimento, influenciavam na vida cotidiana
dos seres humanos.
Nesse sentido, um de seus objetivos era a construção de um pen-
samento que estivesse a serviço do povo e da sociedade, e não so-
mente das academias filosóficas e sociológicas.
O aprofundamento às críticas realizadas à modernidade marca
profundamente essa corrente filosófica que, no limite, associa os

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grandes movimentos totalitários do séc. XX (fascismo e nazismo) ao
tipo de filosofia moderna que, baseada no uso instrumental da razão,
optou pelo domínio do próprio ser humano como objeto em seu pro-
jeto de saber universal.
A extensão de suas críticas continua válida para pensarmos, em
nosso tempo, os limites éticos do conhecimento científico e a apro-
priação da arte para interesses político-econômicos.

3.2. FENOMENOLOGIA
A fenomenologia, iniciada por Husserl, cujo pensamento veremos
a seguir, é uma das principais correntes filosóficas do séc. XX com ex-
tensão e influência ainda nos pensamentos mais recentes na filosofia.
O termo fenomenologia não é novo: como vimos, Hegel o utiliza
para tratar uma ciência da consciência humana no mundo, em sua
Fenomenologia do Espírito.
A apropriação de Husserl se liga, justamente, à tradição hegeliana,
mas também possui inspiração kantiana.
Retomemos: Kant afirma que o conhecimento das coisas mesmas
não nos é possível, cabendo a nós a observação de como elas se mos-
tram para nós na conformidade de nossas estruturas mentais, isto é,
as coisas enquanto fenômenos.
A fenomenologia aceita esse pressuposto e, a partir dele, tem por
objetivo “voltar às coisas mesmas”. Nesse sentido, são diversos os fe-
nômenos que são analisados e verificados pelos fenomenólogos que
estudaremos a seguir.
Apresentaremos os principais nomes da fenomenologia: E. Hus-
serl, M. Heidegger, M. Merleau-Ponty e E. Levinas.
3.2.1. E. HUSSERL
Edmund Husserl (1859-1938), além de filósofo, foi também um im-
portante matemático alemão da virada do século XIX para o século XX.

90
Apesar de dividir-se entre duas áreas, pensava sobretudo os mo-
dos matemáticos a partir da filosofia – o que o impeliu a sua grande
criação: a fenomenologia.
Como a maior parte dos grandes filósofos, Husserl se opôs às prin-
cipais correntes filosóficas de sua época, buscando um modo de ul-
trapassar o cientificismo lógico contido, sobretudo, no positivismo,
bem como criticou o historicismo e o psicologismo.
Aos primeiros, Husserl rebateu afirmando que não deveria formu-
lar uma base epistemológica para as ciências, mas formular um novo
tipo científico que se preocupasse com a observação e a descrição
dos fenômenos mesmos. A formulação dessa ciência, por não estar
diretamente relacionada com o avanço humano universal em direção
a um saber absoluto, não poderia cumprir os requisitos positivistas
de gradual progresso e, por isso, se colocava frontalmente contra ele.
O historicismo, para Husserl, além de possuir, muitas vezes, as
mesmas bases teleológicas que o positivismo, escorava também a
noção de que era possível um ponto de vista absoluto sobre a história
– de modo que era possível, também, prever seus caminhos futuros.
Por fim, suas críticas ao psicologismo se colocam como uma tentativa
de superar o subjetivismo excessivo por meio da postulação da inter-
subjetividade como critério de verdade.
Em outras palavras, não basta somente a visão do sujeito sobre
algo para afirmar ultimamente uma verdade, mas é necessário que as
bases dessa visão estejam compartilhadas e mutuamente reconheci-
das por um grupo. Por isso ela é intersubjetiva: envolve várias subje-
tividades compartilhadas.

91
Edmund Husserl (1859-1983)

Como afirmamos acima, no meio de tais embates Husserl apresen-


tou sua maior contribuição à filosofia: a fenomenologia. A fenomeno-
logia, conforme a proposta de Husserl, é uma ciência eidética, isto é,
uma ciência de essências.
Para considerarmos com maior precisão tal definição é preciso,
antes, tratarmos daquilo que esse autor chama de ‘atitude natural’.
O ser humano se encontra em um mundo: quando nasce, já se en-
contra em uma família, isto é, cercado de pessoas que lhe acolhem;
envolto em roupas que já ali estavam independentemente dele; em
meio a uma infinidade de objetos como fralda, mamadeira, berço,
quarto, casa, carrinho, árvore que são independentes dele. Nas pa-
lavras de Husserl, as coisas e outros seres vivos já se encontram “à
disposição” do ser humano numa totalidade espaço-temporal. A isso
chama-se efetividade.
Nesse sentido, não há ninguém sem mundo, isto é, não existe a
possibilidade de alguém existir sem estar na referência de uma série
de coisas e viventes que o cercam. A “atitude natural” a que Husserl se
refere, portanto, é a percepção de tal estado: o ser humano e o mun-
do a ele disponível independentemente de seu interesse. Constitui tal
atitude, também, a extensão de que há um mundo disponível para os
outros seres humanos que me cercam.

92
A fenomenologia é uma resistência à atitude natural: na medida
em que a atitude natural é, de certa forma, a simples percepção da
efetividade circundante do homem, ela nada acrescenta sobre a exis-
tência.
Em outras palavras, enquanto naturaliza o mundo, ela não pensa
efetivamente nenhum juízo sobre o modo como o ser humano existe.
A resistência que a fenomenologia apresenta, entretanto, não se co-
loca no sentido de uma contraposição ou tentativa de falsificação da
atitude natural, mas, antes, tenta colocá-la entre parêntesis.
Husserl recorre, portanto, a uma atitude do ceticismo grego que
evocava para si como método a suspensão do juízo, chamada de epo-
ché. Aqui, Husserl abre mão, justamente, da realização de qualquer
juízo acerca da existência espaço-temporal das coisas mesmas, colo-
cando essa questão “fora de circuito”.
Esse posicionamento explica três importantes aspectos do que de-
finimos como fenomenologia:
a) o aspecto fenomenológico mesmo;
b) o idealismo que lhe é característico;
c) sua pretensão de ciência eidética.
Primeiramente, devemos observar que, na medida em que a epo-
ché fenomenológica se instaura, Husserl fundamenta a diferença, nos
rastros de Kant, entre númeno e fenômeno. O primeiro diz respeito às
coisas mesmas, de fato, que nos são impossíveis. Temos acesso so-
mente aos fenômenos, ou seja, às manifestações das coisas mesmas
apreendidas pela mente humana. Suspender o juízo sobre a existên-
cia das coisas mesmas, portanto, é um caminho bastante coerente
uma vez que se constata a impossibilidade de irmos a ela.
Essa posição perante os fenômenos explica por que a fenomeno-
logia husserliana é considerada idealista: na medida em que ela acata
o pressuposto kantiano de que o conhecimento do mundo depende
de categorias transcendentais, isto é, de estruturas inerentes à men-

93
te humana, a fenomenologia adota uma posição idealista que é, por
conseguinte, antirrealista.
Somente por meio dessa suspensão Husserl pode “voltar às coi-
sas mesmas”. Ao renunciar ao julgamento existencial dos fenômenos,
Husserl pode, por fim, fundamentar filosoficamente uma ciência de
essências que se volta à multiplicidade dos fenômenos para, em meio
a ela, delinear as coisas mesmas – o mote de sua filosofia.
Sobre o próprio trabalho fenomenológico, diz Husserl:

Pode já chamar-se teoria do conhecimento à tentativa de tomada


de posição científica perante estes problemas. Em todo o caso, a
ideia de teoria do conhecimento surge como a de uma ciência que
resolve as dificuldades aqui em discussão e nos fornece uma inte-
lecção última, clara, por conseguinte, autoconcordante, da essên-
cia do conhecimento e da possibilidade da sua efetivação. A crítica
do conhecimento é, neste sentido, a condição da possibilidade da
metafísica.
O método da crítica do conhecimento é o fenomenológico; a feno-
menologia é a doutrina universal das essências, em que se integra
a ciência da essência do conhecimento. Que método é este? Se o
conhecimento em geral se põe em questão quanto ao seu sentido
e à sua realização, como pode estabelecer-se em uma ciência do
conhecimento? Que método pode ela levar até a meta? (HUSSERL,
1993, p. 22)

A extensão e a importância da fenomenologia de Husserl são, ain-


da hoje, incalculáveis. Grande parte dos pensadores contemporâne-
os, sobretudo na tradição continental, se filiam de algum modo à ini-
ciativa husserliana de observação do mundo e das coisas como modo
de fazer filosofia.
Para ficarmos apenas em algumas correntes sobre as quais ainda
refletiremos, citamos: hermenêutica, existencialismo, e pós-estrutu-

94
ralismo em países diversos como a própria Alemanha de Husserl, mas
também a França e a Itália.
3.2.2. M. HEIDEGGER
Martin Heidegger (1889-1976) foi, seguramente, um dos filósofos
mais importantes do século XX, se não o mais importante.
Isso se deve não somente à influência posterior e à extensão de
problemáticas das quais trata - ainda que, no fundo, esteja sempre a
mesma questão. Para além desses fatos, a profundidade de seu pen-
samento e de sua proposta teórica são impressionantes e, por isso,
marcam fundamentalmente a história da filosofia contemporânea.
Proporcional à importância de seu pensamento, é o tamanho das
polêmicas que envolvem Heidegger: o pensador se filiou ao partido
nazista e usufruiu de tal ligação durante seu período como reitor da
Universidade de Friburgo no início da década de 1930.
Heidegger, além de ter nascido na Alemanha, integra em seus es-
critos e conferências forte ligação com a cultura de seu país, sobretu-
do a região da Floresta Negra, onde viveu grande parte de sua vida.
Apesar de ter se tornado um grande filósofo, curiosamente Heidegger
começou sua carreira acadêmica nos estudos católicos de teologia.

Martin Heidegger (1889-1976)

A principal obra de Heidegger, sobretudo quando consideramos a


primeira de duas grandes “fases” de seu pensamento, é Ser e Tempo.

95
Nesta, o autor retoma a relação entre ser e ente, estabelecida na filo-
sofia grega, para repensar como a tradição filosófica esqueceu-se do
ser em favor dos entes.
Acerca dessa obra houve muita celebração, confusão e deslum-
bramento desde seu lançamento (em 1927). Devido a sua densidade,
Heidegger lança mão de um vocabulário específico e único, tornando
a leitura de Ser e Tempo de um elevado grau de dificuldade ao mesmo
tempo em que veicula reflexões sobre os assuntos mais cotidianos,
como a morte e a relação do ser humano com as coisas à sua volta.
A especificidade da obra, e do pensamento de Heidegger em ge-
ral, é tamanha que, até hoje, muitos tradutores discutem a correta
utilização de seus conceitos e grande parte deles prefere não traduzir
alguns desses termos.
É o caso de Dasein, traduzido em português como “Aí-ser” (tradu-
ção mais literal), “Ser-aí”, “Estar-aí”, Presença (tradução mais literária
e controversa) e, em muitos casos, não é traduzido. O Dasein em Ser
e Tempo é um modo específico de ser do ser humano no mundo. Para
Heidegger, ele é um ente especial porque é o único que questiona a si
mesmo sobre o seu próprio ser. Por isso, uma análise do ser em geral
deve partir de uma fenomenologia da existência do Dasein.
Nesse ponto reside um importante erro cometido nos julgamentos
acerca de Heidegger: por mais que ele se volte para uma detalhada
análise da existência humana, seu objetivo geral é pensar o ser en-
quanto ser, sem reduzi-lo a ente algum.
Ter tal fato em mente evita que se chegue à conclusão de que Hei-
degger seria um pensador existencialista, isto é, que se preocupa pri-
mordialmente com a existência humana como tema filosófico. Por
mais que ele perpasse um pensamento acerca da existência em sua
obra, esse tema não é central e, por isso, não é correto dizer que Hei-
degger seja um pensador existencialista.
Contra o movimento existencialista, inclusive, Heidegger escreve

96
uma carta (publicada posteriormente como um livro) intitulada Carta
sobre o humanismo, na qual tenta deslegitimar as bases metafísicas
que constituem o existencialismo enquanto um tipo de humanismo,
conforme a afirmação de Sartre que analisaremos mais tarde.
Após Ser e Tempo, Heidegger continua pensando em geral tanto o
“sentido do ser”, quanto a “verdade do ser” analisando toda a tradi-
ção que, para ele, é primordialmente metafísica e ontológica.
Para ele, então, desde seu princípio platônico, a filosofia incorre no erro
de confundir ser e ente e esquecer-se da primordialidade do primeiro.
Para consertar esse problema, é necessário um novo início do pen-
samento, que não mais se preocupe com a verdade estaticamente
estabelecida no presente, mas se dê historicamente no tempo e no
espaço nos quais o ser vem à luz.
Para entendermos melhor essa jornada de Heidegger na releitu-
ra da tradição filosófica, vale olharmos mais atentamente para sua
Introdução à conferência “O que é metafísica”? O problema do qual
o texto trata se situa no âmago do pensamento metafísico, por isso,
antes de colocar a questão primordial, Heidegger questiona: “O que é
a metafísica vista desde o seu fundamento? O que, em última análise,
é a metafísica”? (HEIDEGGER, 2008, p. 377).
Enquanto filosofia que trata do ser, a metafísica se fundamentaria
em sua verdade mais originária, na qual o ente apareceria somente
à luz do ser, mas não é o que acontece de fato. Visando o ser, a me-
tafísica se ocupou dos entes (particulares ou de um ente supremo),
esquecendo-se de pensar o ser mesmo.
Por isso, diz Heidegger, um pensamento que se ocupa com o fun-
damento da metafísica já a abandonou – pois nem ela pensa seu
próprio fundamento, a saber, a verdade do ser. Esse pensamento se
colocaria contra a metafísica, portanto? Também não. Pensar a ver-
dade do ser é superar a metafísica sem rejeitá-la. Tal pensamento é
um pensamento rememorante.

97
Essa colocação parece ser fundamental para a construção do tex-
to: para superar a metafísica não é preciso rejeitá-la, nem excluí-la,
como na iluminação progressiva hegeliana, mas é preciso rememorar
sua história.

Aqui está, primeiramente, em jogo duas definições de verdade,


entre o medievo, sobretudo Santo Tomás de Aquino, e os gregos
antigos: “O desvelamento, porém, poderia ser algo mais originário
do que a verdade no sentido da veritas. Ἀλήθεια [Aletheia - verda-
de] talvez fosse a palavra que dá o aceno ainda não experimenta-
do para a essência impensada do esse” (HEIDEGGER, 2008, p. 381).
Para entender o fundamento da metafísica, isto é, a verdade do
ser, Heidegger olha para a tradição passada e a analisa. De Anaxi-
mandro a Nietzsche, diz ele, tal verdade permanece velada.
Mais uma vez, enfatizamos, a metafísica visa o ser, mas fala do
ente. Isso se dá, sobretudo, pela pretensão de representar o ser.
Ora, só se representa quem: a) já foi presentado, já esteve presen-
te e, por isso, b) está ausente. Se o ser já se retirou ele não pode ser
representado de maneira adequada, porque já não é mais.

Para pensar a verdade do ser, afirma Heidegger, seria necessário


meditar sobre a essência do homem (HEIDEGGER, 2008, p. 384), daí
o esforço de Ser e Tempo em construir uma analítica do Dasein e de
definir a existência como tal essência.
Por que o Dasein teria privilégio entre outros entes na pergunta
pelo ser? Seria essa uma escolha arbitrária de Heidegger? Não. Ar-
gumenta ele que “O ente que é ao modo da existência é o homem.
Somente o homem existe. [...] A frase ‘o homem existe’ significa: o
homem é aquele ente, cujo ser é assinalado pela insistência que se
encontra aberta no desvelamento do ser a partir do ser e no ser” (HEI-
DEGGER, 2008, p. 387).
Isso indica que os outros entes são, mas somente o homem existe,
isto é, somente o homem é um existente. Isso se dá porque sua es-

98
sência não é definida de antemão, como na interpretação aristotélica
do animal racional, por exemplo. Na medida em que sua essência é
a própria existência, o homem deve lidar com ela, não apenas sendo,
mas existindo.
É justamente por isso que Ser e Tempo não pode ser reduzido a
uma leitura fenomenológica que busca a essência do Dasein. Antes,
essa obra busca através da analítica do Dasein se perguntar sobre a
questão do ser mesmo.
Na medida em que coloca o Dasein como histórico, inclusive para
fugir do risco essencialista, relaciona as partes de seu título de modo
muito específico: Ser é Tempo.
A questão do tempo é primordial porque é a partir dela que os gre-
gos entenderam o ser. Quando Platão, por exemplo em seus diálo-
gos socráticos, pergunta sobre a virtude ou a justiça, não bastam os
exemplos sobre o que seriam em um caso ou foram em outros, mas,
justamente, o que a virtude ou a justiça é. O ser e sua verdade se dão
como presença. O tempo privilegiado é o presente. O ser seria, por-
tanto, um eterno presente.
Para Heidegger essa perspectiva perpassa a história da metafísica
até Nietzsche em seu conceito de eterno retorno do mesmo.
Diz Heidegger: “Durante a época da metafísica, a história do ser
está perpassada por uma essência impensada do tempo” (HEIDEG-
GER, 2008, p. 389).
Para se pensar o ser privilegiou-se um tempo, o presente, mas de
modo impensado, velado, representativo. A tentativa de Ser e Tempo,
assim, não é outra que “fornecer uma interpretação do tempo como
horizonte possível de toda compreensão de ser” (p. 390).
Por fim, Heidegger define uma ideia primordial para a conferência
da qual seu texto é uma introdução: a noção de ontoteologia.
Ao contrário do que se poderia pensar, o caráter ontoteológico da
tradição metafísica não se dá pela justaposição ocidental entre filo-

99
sofia grega e teologia judaico-cristã. Antes, ele se dá por como se con-
cebeu o ente enquanto ente desde a antiguidade. O modo como a
teologia, posteriormente, se apropriou disso, para Heidegger, é culpa
da própria antiguidade.
Apesar do autor não deixar claro, pressupomos que aqui ele trata,
sobretudo, da ideia aristotélica de Deus como motor imóvel e pensa-
mento de pensamento que seria, no limite, um ente que fundamenta-
ria o próprio ser e que, ao longo da tradição teológica, sobretudo, se
confundiu com o próprio ser.
Mas, antes disso, para pensar o fundamento da metafísica é neces-
sário voltar à sua questão fundamental: “Por que há afinal ente e não
muito antes Nada”? (HEIDEGGER, 2008, p. 393).
É necessário, para Heidegger, voltar a essa questão porque, justa-
mente, em sua conferência ele tematiza o tema do Nada. Ou melhor,
esse é seu único tema. Se o ser se retira no ente, muito mais do que
se dá, a questão da verdade do ser está muito mais próxima ao pen-
samento do Nada do que ao pensamento do ente. Nem ser nem nada
são o não-ser.
Dessa forma, o pensamento de Heidegger se coloca pensando o
fundamento mesmo das principais questões filosóficas. Por ousar e
atingir essa profundidade, o pensamento heideggeriano é coloca-
do como base para grande parte das filosofias contemporâneas, de
modo que suas críticas à violência incorrida pela metafísica e pela
ontoteologia são recorrentemente usadas como pressuposto para a
crítica contemporânea da tradição.
Ainda hoje, termos caros à filosofia como ser, ente, nada, morte,
ontologia, metafísica, e até mesmo ética são pensadas a partir da he-
rança que o pensamento heideggeriano legou à contemporaneidade.
A filosofia de Heidegger, nesse sentido, tem sido lida e relida pelos
filósofos recentes com vistas à formulação de novas ontologias e no-
vos modos de pensar.

100
Dentre tais releituras, sublinhamos as que, diferentemente do pró-
prio autor, buscam um mundo mais justo e fraterno. Partindo de Hei-
degger, tais autores ousam propor mundos nos quais totalitarismos,
como o nazismo, não sejam aceitáveis.
3.2.3 M. MERLEAU-PONTY
O principal herdeiro da fenomenologia de Husserl e Heidegger na
França é Maurice Merleau-Ponty (1908-1961).
Seu ponto de partida, diferentemente dos fenomenólogos ante-
riores, não é somente a consciência humana e sua intencionalidade
diante dos objetos do mundo, mas a percepção.
A fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty tenta, primeira-
mente, fugir à mera abstração que era possível perceber na filosofia
herdeira de Kant, da qual Husserl e Heidegger fazem parte.
Ora, não é uma subjetividade etérea que se coloca como sujeito da
fenomenologia, mas, antes de tudo e de modo mais primordial, um
corpo que pensa, fala, ama, sente, e é sempre historicamente deter-
minado e constituído. Nesse sentido, o principal objetivo de Merleau-
Ponty é fornecer carne à consciência intencional de Husserl.

Maurice Merleau-Ponty (1908-1961)

Quando consideramos a relação de Merleau-Ponty com a tradição


fenomenológica, percebemos que ele dialoga de modo crítico tanto
com Heidegger quanto com Husserl.

101
Isso não significa, porém, que das contribuições deles abdique
totalmente, e nem que se posicione como mero leitor e comentador
desses autores: antes, Merleau-Ponty estabelece outras bases para a
formulação de uma ontologia que, após Kant, só é possível enquanto
fenomenologia.
No seu caso, o diálogo mais intenso se dá quanto à relação do
ser humano com o mundo à sua volta que, antecedendo-o, já está aí
quando o ser humano tem consciência de si. A contribuição de Mer-
leau-Ponty, nesse sentido, é justamente em questionar a consciência
como chave e princípio da relação entre o ser humano e o seu mundo.
Ora, antes que tenhamos consciência do que seja nosso pai, nossa
mãe ou nossos irmãos, experimentamos uma relação com eles por
meio da percepção. Essa atividade, entretanto, não se dá primeira-
mente enquanto percepção meramente mental ou apreensão inte-
lectiva. Antes, ela é experiência da própria corporeidade com os fe-
nômenos externos.
Nesse sentido, ao contrário da fenomenologia husserliana, em
Merleau-Ponty a corporeidade e, consequentemente, a percepção
antecedem de maneira radical a consciência na experiência do mun-
do. Em outras palavras, a experiência originária de mundo do ser hu-
mano não se dá pela consciência, mas pela corporeidade.
A verdade para Merleau-Ponty, portanto, diferentemente de Kant,
não está na realidade do númeno para além do fenômeno, mas se dá
como verdade fenomenológica da percepção de mundo pré-consci-
ência do ser humano. Assim, a verdade é sempre uma verdade situa-
da no mundo das coisas e dos homens e mulheres corpóreos.
Consequentemente, o conhecimento objetivo não é possível sem
a experiência prévia que, necessariamente, passa pela percepção.
Ora, se a percepção certas vezes conduz ao erro, não é sem ela que
se pode corrigir esse erro a fim de uma verdade mais adequada ao
mostrar-se do fenômeno.

102
Merleau-Ponty se coloca frontalmente contra a dúvida cartesiana
de que os sentidos levam infalivelmente à inverdade e ao engano,
uma vez que, pela afirmação do filósofo contemporâneo, ela pode le-
var ao erro tanto quanto pode levar ao acerto. Portanto, o debate de
Merleau-Ponty com a filosofia se estabelece para além da tradição fe-
nomenológica sem excluí-la – fato que se demonstra em sua filiação à
base metodológica lançada por Husserl e solidificada por Heidegger.
Nesse sentido, os temas do corpo e da percepção fundamentam a
originalidade da filosofia de Merleau-Ponty na medida em que postu-
lam um novo modo do sujeito reconhecer a si mesmo e de se relacio-
nar com os fenômenos que o cercam.
Em sua filosofia, tanto o corpo é o sujeito da percepção quanto a
percepção é o modo como o corpo se abre para o mundo. Ainda que
seja uma dentre outras coisas, o corpo é dotado de uma reflexividade
exclusiva, pois é somente a partir dele que se pode refletir sobre ele
mesmo. Não há reflexão alguma sem corpo, nem experiência com os
fenômenos do mundo.
De modo semelhante, a percepção é, simultaneamente, o que nos
insere na natureza (isto é, há certa familiaridade entre o sujeito e a
coisa percebida), e o que nos abre ao mundo (a coisa é sempre mais
do que a minha percepção consegue dela capturar). Isso significa que
as coisas sensíveis nos aparecem (fenomenicamente) sempre parcial-
mente e precariamente – porque estão sempre submissas ao tempo
e à história. Por isso, o ser humano corpóreo é sempre aquele que
adere ao mundo por meio da percepção:

Minha adesão ao mundo me permite compensar as oscilações do


cogito, remover um cogito em benefício de um outro e ir encon-
trar a verdade de meu pensamento para além de sua aparência.
No momento mesmo da ilusão, essa correção me era dada como
possível, porque a ilusão também utiliza a mesma crença no mun-
do, só se contrai em aparência sólida graças a essa contribuição, e

103
porque assim, sempre aberta a um horizonte de verificações pre-
sumidas, ela não me separa da verdade. Mas, pela mesma razão,
não estou garantido contra o erro, já que o mundo que viso atra-
vés de cada aparência, e que lhe dá, como ou sem razão, o peso
da verdade, nunca exige necessariamente esta aparência. Existe
certeza absoluta do mundo em geral, mas não de alguma coisa
em particular. A consciência está distanciada do ser e do seu ser
próprio e ao mesmo tempo unida a eles pela espessura do mun-
do. O verdadeiro cogito não é o face-a-face do pensamento como
pensamento deste pensamento: eles só se encontram através do
mundo. A consciência do mundo não está fundada na consciên-
cia de si, mas elas são rigorosamente contemporâneas: para mim
existe um mundo porque eu não me ignoro; sou não dissimulado
a mim mesmo porque tenho um mundo (MERLEAU-PONTY, 1999,
p. 399-400).

3.2.4 E. LEVINAS
Emmanuel Levinas (1906-1995) nasceu na Lituânia, mas, como
muitos de seu tempo, viveu a maior parte de sua vida na França.
Antes dessa mudança, Levinas foi versado na Bíblia Hebraica, se-
guindo as tradições de sua família judia, e na literatura russa do séc.
XIX. Com 17 anos mudou-se para Estrasburgo, na França, onde come-
çou seus estudos de filosofia e logo se aproximou da fenomenologia,
gerando uma nova mudança.
Em 1928, Levinas foi para Friburgo ter aulas com Husserl e Heide-
gger – esse, relembramos, com a recente publicação de Ser e Tempo
que causou certo alvoroço nos debates filosóficos da época.
Em linhas gerais, podemos dizer que Husserl inicia a fenomeno-
logia, Heidegger lhe fornece a profundidade ontológica que faltava,
Merleau-Ponty dá a corporeidade e Levinas acopla à fenomenologia
o pensamento judaico, voltando-se para a questão da ética.

104
Emmanuel Levinas (1906-1995)

A primeira obra magna de Levinas é Totalidade e Infinito, publica-


da em 1961.
A compreensão dos objetivos dessa obra, embora não possam en-
globar como um todo a filosofia do autor, dão grandes indícios dos
caminhos pelos quais ele percorre para fundamentar fenomenologi-
camente uma ética e a importância da reflexão ética.
O peso dela, para Levinas, é enorme, de modo que uma de suas con-
clusões, ao fim da obra, é que “a ética, para além da visão e da certeza,
desenha a estrutura da exterioridade como tal. A moralidade não é um
ramo da filosofia, mas a filosofia primeira” (LEVINAS, 1980, p. 284).
Dá-se uma mudança de paradigma, de grande valor: desde Aristó-
teles, a metafísica e o pensamento ontológico estavam postos como
filosofia primeira, isto é, a tarefa mais importante da filosofia. Na es-
trutura do filósofo grego, havia a lógica e a retórica, a física e aquilo
que ia além dela, isto é, a metafísica, sendo esta a filosofia primeira.
Esse era um pensamento pouco questionado, isto é, o fato de que a
metafísica seria um ramo especial e de grande importância para a fi-
losofia.
Para Levinas, ao contrário, a ética deve ser pensada como a filoso-
fia primeira. “Primeira” também deve ser entendida como primordial,
fundamental. Para ele, a ética é a filosofia primeira, porque, antes de
qualquer pensamento sobre o mundo, sobre as origens, ou sobre a

105
ordenação de tudo, temos o encontro com o outro, com as pessoas
que nos cercam e seus rostos que nos são estranhos.
O princípio de Totalidade e Infinito é marcar uma diferença essen-
cial entre o Mesmo e o Outro.
Explicamos: para Levinas, desde o início da tradição filosófica con-
fundiu-se o Si Mesmo (eu) com o Outro (ele/ela) de uma forma espe-
cífica. Para que se fundamentasse a justiça ética para com o Outro,
reduz-se ele/ela a um outro de mim, isto é, do Mesmo.
Nesse sentido, postula-se uma igualdade entre todos por meio de
uma categoria geral (humanidade, por exemplo) e apagam-se as dife-
renças que nos constituem únicos. Nas palavras do filósofo francês:
“a filosofia ocidental foi, na maioria das vezes, uma ontologia: uma
redução do Outro ao Mesmo, pela intervenção de um termo médio e
neutro que assegura a inteligência do ser” (LEVINAS, 1980, p. 30).
Isso significa, em outras palavras, que quando se reduz o Outro ao
Mesmo neutraliza-se quem ele realmente é. Dessa forma, o Outro não
pode ser um Mesmo de mim. Somente enquanto totalmente Outro,
ele poderá ser base para uma ética que promova a justiça.
Eis o protesto de Levinas:

O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de


uma alteridade que não é o simples inverso da identidade, nem de
uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma alteri-
dade anterior a toda iniciativa, a todo imperialismo do Mesmo; ou-
tro de uma alteridade que constitui o próprio conteúdo do Outro;
outro de uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse
caso o Outro não seria rigorosamente o Outro: pela comunidade
da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo (LEVINAS,
1980, p. 26).

Essa citação contém, em germe, uma primorosa explicação do tí-


tulo da obra de Levinas. Para que o Outro seja de fato um Outro e não

106
mais o Mesmo, é necessário que ele seja percebido a partir de sua
infinitude.
Isso significa que o Outro é totalmente diferente de mim e, por
isso, não posso reduzir sua infinitude ao Mesmo e nem assumir uma
posição de conhecimento sobre sua totalidade. A ideia que possuo
do Outro, ou antes, qualquer ideia que eu possa formar em minha
mente sobre o Outro não contempla sua totalidade. Há sempre algo
que foge, que escapa à minha compreensão do Outro. Por isso, ele é
mais do que o Mesmo. Sua infinitude é o que o torna sempre incom-
preensível a mim.
Nesse sentido, Totalidade e Infinito são os atributos que consti-
tuem o Outro enquanto Outro: a impossibilidade de compreensão de
sua totalidade por mim devido à sua infinitude que lhe torna total-
mente diferente daquilo que sou eu Mesmo.
Esse Outro, entretanto, não se apresenta de modo abstrato, isto é,
não é meramente uma ideia que vem à cabeça de uma pessoa que é
impossível de ser perscrutada por completo. Ela é um Outro concreto,
de carne e osso, que se apresenta diante de mim através de seu rosto,
de sua face.
Esse é um importante conceito para Levinas: o rosto. É diante dele
que reconhecemos um Outro diante de nós e, posteriormente, é o
rosto que nos impõe a necessidade ética de justiça.
Diz Levinas: “O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando
a ideia do Outro em mim, chamamo-lo, de fato, rosto. [...] O rosto de
Outrem destrói em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que
ele me deixa, a ideia à minha medida e à medida do seu ideatum –
ideia adequada” (LEVINAS, 1980, p. 38).
Quando temos contato com o rosto do Outro, para Levinas, qual-
quer imagem estática dele que poderíamos ter construído até o mo-
mento é definitivamente quebrada. Isso ocorre porque, diante do
rosto, o Outro se coloca nu em sua infinitude e, a partir dela, somos

107
impelidos a reconhecer a impossibilidade de domínio sobre quem ali
está.
Em entrevista, Levinas reconhece a importância do rosto do Outro
para sua proposta de fundamentação ética:

Tenho descrito sempre o rosto do próximo como portador de uma


ordem, que impõe ao eu, diante do Outro, uma responsabilidade
gratuita – e inalienável, como se o eu fosse escolhido e único – e o
Outro homem é absolutamente Outro, isto é, ainda incomparável
e, assim, único (LEVINAS, 2014, p. 28)

Para Levinas, o rosto do outro é violento porque impõe uma res-


ponsabilidade de cuidado e de justiça com o Outro. Interessante no-
tarmos que essa responsabilidade não é meramente uma regra geral,
como se fosse um mandamento universal que se impusesse frente ao
rosto. Antes, para Levinas, o rosto do Outro nos impõe uma responsa-
bilidade ética singular, de modo que ela não recai sobre a sociedade
ou sobre o Estado nos quais estamos localizados diante de tal rosto.
Essa singularidade faz com que a responsabilidade seja sempre mi-
nha responsabilidade, intransferível e inalienável de mim. Tal ordem,
diz Levinas, é comparável à sacralidade religiosa.
Em suas palavras, “O homem é o ser que reconhece a santidade e
o esquecimento de si. [...] é o ser que já ouviu e compreendeu o man-
damento da santidade no rosto do outro homem” (LEVINAS, 2014, p.
40). Para além da responsabilidade, há uma santidade no rosto do
Outro que nos impele à ação ética de cuidado e justiça para com ele.
Dessa forma, o pensamento de Levinas é um pensamento revo-
lucionário na medida em que retira da metafísica o lugar de filosofia
primeira para dá-lo ao pensamento da ética.
A questão ética, nesse sentido, é tão radical que o autor relê a tra-
dição inteira demonstrando como a redução do Outro ao Mesmo é
prejudicial e sustenta filosoficamente injustiças ao longo da história.

108
Por isso, recuperar o pensamento da alteridade e do rosto do outro
como fundamentos de responsabilidade ética é algo tão importante
para Levinas.
No âmbito da filosofia contemporânea, Levinas atingiu grande
prestígio tanto pela profundidade de seu pensamento e de suas críti-
cas, quanto pela beleza de fornecer novos fundamentos para a ética
na contemporaneidade. O pensamento levinasiano ensina que não é
mais possível uma ética das identidades, baseada no que temos em
comum, mas demonstra a necessidade do acolhimento das diferen-
ças para que o Outro não seja reduzido ao Mesmo e todos tenham
suas identidades respeitadas e a justiça tenha lugar no trato entre os
seres humanos.

3.3. HERMENÊUTICA
A corrente filosófica contemporânea conhecida como hermenêu-
tica não tem suas origens na contemporaneidade. Apesar de algu-
mas de suas referências fundamentais datarem da modernidade, sua
constituição contemporânea se deve, sobretudo, graças aos avanços
fenomenológicos de Heidegger na questão da linguagem.
Esse tema, embora seja secundário em Ser e Tempo, foi por ele de-
senvolvido em diversas conferências e ensaios posteriores, incluindo
sua segunda grande obra Contribuições à filosofia.
O tema da linguagem, entretanto, não é tratado na hermenêutica
por si só, como acontece na filosofia analítica, mas é percebido sob o
ponto de vista da interpretação.
O termo “hermenêutica” vem do grego e significa, justamente, a
arte da interpretação ou meramente interpretação. Sua raiz linguísti-
ca remete ao deus grego Hermes: o mensageiro do Olimpo que, com
asas nos pés, transporta as mensagens dos deuses aos homens e dos
homens aos deuses.
Essa raiz já indica uma das formas como a interpretação é entendi-

109
da na hermenêutica: a tradução de mensagens entre dois grupos di-
ferentes, a leitura e a explanação dos sentidos de um texto filosófico,
literário ou bíblico.
Para apresentarmos essa corrente filosófica, passamos por uma
introdução às suas origens modernas e percorremos o pensamento
de três dos seus mais importantes autores, um alemão, um francês e
um italiano, a saber: Gadamer, Ricoeur e Vattimo.
3.3.1. AS ORIGENS DA HERMENÊUTICA
Antes ainda de dois pensadores modernos fundamentais para a
hermenêutica, Schleiermacher e Dilthey, é preciso voltar à antiguida-
de e fazer notar uma primeira obra que trata do tema: Da interpreta-
ção de Aristóteles.
Para o filósofo antigo, a interpretação seria uma espécie de opera-
ção mental na qual ocorreria um julgamento do valor de verdade da-
quilo que se interpreta. Outros tipos de juízo, para Aristóteles, seriam
secundários em relação à interpretação, que seria o mais primordial.
Entretanto, ele se ateria somente ao valor de verdade daquilo
que interpreta, sem conter em si qualquer outro tipo de julgamento,
como o estético ou mesmo o ético, por exemplo. Dessa forma, a inter-
pretação não faz parte nem da lógica, nem da retórica, nem da poéti-
ca, mas seria-lhes anterior e, consequentemente, mais fundamental.
Mesmo que Aristóteles tenha dado o pontapé inicial na questão da
interpretação enquanto objeto de estudo da filosofia, suas contribui-
ções não são tão fundamentais para a hermenêutica enquanto cor-
rente filosófica contemporânea.
3.3.1.1 SCHLEIERMACHER
A primeira referência à qual devemos recorrer para compreender a
hermenêutica filosófica em nossos dias data do idealismo alemão: F.
D. E. Schleiermacher (1768-1834).

110
Esse autor não apenas era filósofo, mas começou sua vida acadê-
mica como teólogo - carreira que aparece na maior parte de seus es-
critos, seja na temática religiosa, seja na publicação de sermões.
Com Schleiermacher, a hermenêutica se inicia na busca de uma
metodologia para a melhor compreensão de textos bíblicos. Todavia,
o propósito mesmo do autor era alargar essa visão por meio de uma
compreensão mais geral do próprio termo hermenêutica.
A filosofia abstrata não era o fim de Schleiermacher. Seus interes-
ses com a hermenêutica eram eminentemente práticos: a formulação
de um método de interpretação ajudaria na tarefa de tradução e com-
preensão de textos antigos que, na época, eram revistos pelo filósofo
e por seus pares. Portanto, para Schleiermacher, a hermenêutica se
constituía como importante passo para a decifração de expressões
linguísticas, textos e falas.
Com o objetivo de formular tal método, Schleiermacher assim dis-
se da hermenêutica:

ela é, portanto, a arte de encontrar o sentido determinado, pela


linguagem e com o auxílio da linguagem, de um determinado dis-
curso. A primeira regra é: construir a partir do inteiro valor prévio
da língua, comum ao escritor e ao leitor, e procurar somente nes-
te a possibilidade de interpretação. Nesta regra a língua apare-
ce, portanto, como algo partilhável. Isto ela também é. Ninguém
a possui inteira. Ela é divisível no tempo, e também divisível no
espaço. No tempo, por meio de acréscimo, isto é, assimilação do
estranho, composição e divisão do que lhe é próprio, e por alite-
ração. No espaço, por provincianismos e dialetos. (SCHLEIERMA-
CHER, 2012, p. 70).

Aqui, falando especificamente da interpretação gramatical,


Schleiermacher demonstra que a hermenêutica pode ser tomada
como uma arte. A arte da interpretação. A arte de encontrar os senti-

111
dos ocultos por detrás de um texto. A arte de reconstruir, entre escri-
tor e leitor, a compreensão dos sentidos do texto por meio da inter-
pretação.
Aqui, não somente o texto bíblico é contemplado, mas também
a arte, a filosofia e o direito. Por isso, até hoje é comum tratarmos
de hermenêutica do direito enquanto técnica (ou arte, seguindo
Schleiermacher) de interpretação dos códigos de leis de determina-
do país.
Nesse sentido, um pressuposto fundamental da hermenêutica é
a compartilhabilidade da linguagem: tanto escritor quanto leitor po-
dem compartilhar a mesma linguagem e, a partir disso, podem se fa-
zer compreender por meio de uma correta interpretação do texto em
questão.
Como, entretanto, se constrói a compreensão a partir da inter-
pretação? Schleiermacher começa a responder à questão com uma
noção chave de sua filosofia: o círculo hermenêutico. Para o autor, a
compreensibilidade de um texto é intimamente referencial.
Isso significa, em outras palavras, que a compreensão interpreta-
tiva se constitui a partir de referências dentro do próprio texto. Em
Schleiermacher, são dois movimentos que se complementam como
num círculo entre o todo e a parte. Sem estabelecer hierarquias, por
um lado, é necessário a compreensão do todo de um texto para que
se possa compreender a parte; e por outro lado, é necessário que se
compreenda as partes específicas para que se possa compreender o
todo.
Um exemplo: para compreendermos o diálogo entre Sócrates e
o escravo, é necessário que entendamos seu diálogo completo com
Mênon acerca da possibilidade do conhecimento. Mas não é possível
que compreendamos o texto completo se, antes, não compreende-
mos o trecho da obra na qual Sócrates dialoga com um escravo.
A compreensão do texto, nesse sentido, se coloca como um círcu-

112
lo, no qual parte e todo se interpelam e completam para que a inter-
pretação seja bem-sucedida. O objetivo de Schleiermacher, em sua
reflexão sobre a hermenêutica, foi sustentar, ainda que em pequena
escala, a possibilidade de um método interpretativo que possibilitas-
se uma melhor compreensão de textos por parte do diálogo linguísti-
co entre escritor e leitor. Por essa contribuição, Schleiermacher ficou
conhecido como pai da hermenêutica moderna.
3.3.1.2 DILTHEY
Com tantas contribuições quanto Schleiermacher, W. Dilthey
(1833-1911) também se esforçou na constituição filosófica de um
pensamento acerca da hermenêutica. Seu objetivo com isso, porém,
era ainda mais profundo e ousado:
Dilthey visava fundamentar, na hermenêutica, um método próprio
para as ciências do espírito. Esse termo é tradicionalmente usado na
Alemanha como sinônimo do que costumamos chamar de ciências
humanas. Assim como as ciências naturais e as ciências da vida (bio-
lógicas), as ciências do espírito necessitam de um quadro epistemo-
lógico-referencial que sustente sua possibilidade de, efetivamente,
serem reconhecidas como ciências válidas para o conhecimento que
a modernidade propunha.
Por isso, era imperativo, para Dilthey, que um método seguro e efi-
caz fosse apresentado como base dessa série de ciências (psicologia,
sociologia, história, geografia humana, direito, filosofia, ciência da
religião etc.) que estavam surgindo naquele momento como saberes
academicamente reconhecidos.
Sobre essas ciências, diz Dilthey:

As ciências do espírito, [...] unem em si três classes distintas de


afirmações. Dessas, umas expressam algo real, que está dado na
percepção: contém o elemento histórico do conhecimento. Outras
explicam o comportamento uniforme dos conteúdos parciais des-

113
sa realidade, que se separam por abstração: constituem seu ele-
mento teórico. As últimas expressam juízos de valor e prescrevem
normas: nelas reside o elemento prático das ciências do espírito.
Fatos, teoremas, juízos estimativos e normas: dessas três clas-
ses de proposições se compõem as ciências do espírito (DILTHEY,
2010, p. 36)

A partir dessa leitura tripartite das ciências do espírito, acerca de


fatos, teoremas e normas, Dilthey estipula o método hermenêutico a
partir de duas principais tarefas: explicar e compreender.
A primeira diz respeito à atribuição de causas aos mais diversos fe-
nômenos – sejam eles ligados às ciências humanas ou não. Por exem-
plo, pode-se explicar, por meio de uma teoria sociológica, a relação
entre o nascimento do capitalismo e o protestantismo alemão (como
o faz Max Weber em Ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo).
Nesse caso, a hermenêutica se configura como método interpre-
tativo que, na leitura do fato social, possibilita a inferência de causas
sociológicas para o desenvolvimento histórico necessário que ali ob-
teve lugar.
Por outro lado, também é função essencial da hermenêutica nas
ciências do espírito a compreensão. Essa, diferentemente, não busca
somente a lógica causal dos fenômenos e eventos que observa, mas,
sobretudo, a orientação do ser humano no seu mundo.
A atividade compreensiva é o que, para Dilthey, diferencia as ciên-
cias do espírito das ciências naturais e da vida, visto que, enquanto
essas duas somente explicam, as humanidades, por assim dizer, pos-
sibilitam um guia prático de orientação do ser humano no mundo a
partir de sua compreensibilidade. Não estão excluídas, aqui, ativida-
des explicativas, mas são essenciais as tarefas de compreensão ofere-
cidas pelas ciências do espírito.
Visto que a compreensão é uma atividade intrinsecamente huma-
na e que, por sua vez, está pressuposta na própria vida cotidiana, ela

114
é adequada enquanto objetivo último do método que fundamenta as
ciências que dizem respeito ao espírito humano, isto é, à sua ativida-
de criativa no mundo.
A partir dessa tentativa de fundamentação epistemológica das hu-
manidades, Dilthey fornece os principais pontos do que se tornou a
hermenêutica contemporânea direta e indiretamente:
Primeiramente, exercendo influência sobre seus principais teóri-
cos.
Em segundo lugar, fornecendo aspectos essenciais de fenomenó-
logos, como Heidegger, que, analisando as funções da linguagem na
vida humana, abre caminho para o pensamento da fundamentalida-
de da interpretação como base, não apenas para as ciências huma-
nas, como também para o modo de ser dos seres humanos na terra.
Por conseguinte, a interpretação deixa de ser mero assunto acadêmi-
co e passa a ser considerada atitude fundamental da vida cotidiana
do ser humano.
3.3.1.1 H. G. GADAMER
Hans Georg Gadamer (1900-2002) foi um profícuo professor e filó-
sofo alemão.
Podemos afirmar que, com ele, a hermenêutica se inicia de fato
enquanto corrente filosófica contemporânea. Sua vasta obra trata de
temas diversos como a arte, a religião, a ética, a literatura, a filosofia
antiga, entre outros, sempre do ponto de vista da hermenêutica e da
linguagem como pano de fundo das discussões filosóficas.
A longa vida que levou, falecendo aos 102 anos, permitiu que vi-
vesse grandes acontecimentos e tivesse contato com grandes autores
que, de fato, marcaram sua trajetória.
Assim, na década de 1920, Gadamer já estudava filosofia quan-
do Heidegger publica Ser e Tempo e se torna professor universitário.
Enquanto aluno de Heidegger, Gadamer se interessa pelas questões

115
linguísticas da filosofia e, sobretudo, pela hermenêutica como parte
fundamental do modo como o ser humano se posiciona no mundo
em que vive. Entretanto, o interesse de Gadamer na hermenêutica
não segue os mesmos caminhos de seu mestre.

Hans Georg Gadamer (1900-2002)

Em 1960 Gadamer lança sua mais importante obra, intitulada Ver-


dade e Método. O volume denso que publicou tinha por objetivo re-
tomar as discussões de Dilthey acerca da hermenêutica das ciências
humanas – focando, sobretudo, no conceito de verdade.
Mas, a questão da verdade, diz o autor, faz parte de um antigo
problema hermenêutico: ela foi encoberta, pelos autores modernos,
pela questão do método. Na medida em que o método toma de assal-
to o lugar principal nas reflexões sobre a hermenêutica, a verdade é
relegada a segundo plano.
Dilthey mesmo comete tal equívoco, postulando que qualquer
envolvimento da subjetividade é incompatível com a verdade nas ci-
ências humanas. O método científico moderno retira da equação da
verdade o envolvimento do sujeito que observa e experimenta cien-
tificamente. Por isso, para Gadamer, uma hermenêutica que trate da
verdade nas ciências humanas não pode ser um método, mas um ou-
tro modelo de saber.
O primeiro passo de Verdade e Método é aproximar-se da arte
como modelo privilegiado para o entendimento do que seja um “en-
contro de verdade”. Devemos perceber, nesse ponto, que a noção de

116
“verdade” com a qual Gadamer trabalha não é meramente a verdade
científica moderna, que se coloca enquanto correspondência.
Nessa, a verdade é a correspondência exata entre o que se enun-
cia (na fala ou na escrita) e o que está no mundo. Assim, se digo: “as
folhas de tal árvore são verdes”, devo olhar para a árvore e confirmar
se o que foi dito corresponde à realidade.
Ora, quando pensamos na arte, esse conceito baseado na ideia de
correspondência não tem sentido algum. Isso não significa que na
obra de arte não haja verdade alguma, mas que o conceito de verda-
de nela é diferente desse outro.
Para Gadamer, o encontro com a obra de arte e com sua verdade
se dá através de um jogo no qual o próprio espectador, isto é, aquele
que interpreta, deve se deixar levar por ela.
Isso não significa, entretanto, que a experiência artística de verda-
de seja meramente subjetiva: antes, nela o sujeito é levado para uma
realidade que, de alguma forma, o ultrapassa. Esse é o encontro com
a verdade, da qual o sujeito se torna partícipe.
É importante notar, nesse ponto, que as interpretações das obras
de arte variam com bastante frequência. Isto é, mesmo que tenham
uma linha de coerência entre as diversas interpretações, na maior
parte dos casos elas não são idênticas, mas são múltiplas e com subs-
tanciais diferenças.
Reside, nesse contexto, um importante traço do pensamento de
Gadamer e que segue com força em toda a hermenêutica contem-
porânea: a recusa à univocidade. Univocidade é o caráter no qual
somente um discurso deve ser eleito como verdade e, consequente-
mente, todos os discursos paralelos são, automaticamente, interpre-
tados como falsos.
Nela, somente uma voz (daí univocidade) deve ser ouvida e credi-
tada como verdadeira. Ao contrário dela, Gadamer afirma a verdade
como um acontecimento interpretativo da verdade, e não um méto-

117
do de interpretação pelo qual se chega a uma verdade mais “pura”
que as outras. Assim, a verdade estaria mais próxima de um aconteci-
mento do que de um método.
Para sustentar essa noção de verdade como acontecimento, Gada-
mer estabelece algumas críticas e releituras da tradição que formam,
conjuntamente, um fundamento para sua ideia.
Primeiramente, o autor afirma que a modernidade estabeleceu
um preconceito contra os pré-conceitos: para se chegar à verdade,
excluía-se todo entendimento prévio, todo senso comum, toda con-
cepção subjetiva em favor de uma pretensa objetividade científica.
Desse modo, qualquer concepção prévia sobre um assunto deveria
ser retirada do jogo para que se chegue à verdade.
Pelo contrário, Gadamer estabelece que os preconceitos são es-
senciais para a verdade porque eles são uma espécie de condição de
possibilidade do entendimento. Em termos mais concretos, o autor
diz que sem as referências prévias do que seja o mundo, as cores, as
coisas, suas escalas etc. não seria possível a interpretação de nenhum
fenômeno. Não há “pureza” possível na interpretação uma vez que o
sujeito que interpreta já é, ele mesmo, marcado por inúmeros conhe-
cimentos prévios àquele momento.
Nesse ponto, Gadamer reabilita a tradição como parte fundamen-
tal para a interpretação do mundo pelo ser humano: se não fossem
outras interpretações historicamente constituídas (tradicionais) não
poderíamos interpretar o presente como o fazemos.
Diz ele: “O que importa [...] é reconhecer o momento da tradição
no comportamento histórico e indagar pela sua produtividade her-
menêutica” (GADAMER, 1997, p. 424).
Aqui, também, o autor reafirma o papel da história no ato inter-
pretativo, já que, somente quando nos reconhecemos situados nela,
entendemos a complexidade que é a compreensão provinda da her-
menêutica.

118
Ora, a história não é constituída somente do passado, para o autor,
mas também do presente e, mais especificamente, do modo como no
presente se interpreta o passado. Por isso, a história não é estática
e imóvel, mas pode representar diferentes aspectos dependendo de
como seus fatos são recepcionados e julgados no presente. Por isso,
diz Gadamer, os preconceitos e a tradição nos legam a possibilidade
de uma fusão de horizontes.
Para ele, “o passado próprio e estranho, ao qual se volta a consci-
ência histórica, forma parte do horizonte móvel a partir do qual vive
a vida humana e que a determina como sua origem e como sua tradi-
ção” (GADAMER, 1997, p. 445).
Isso significa que o horizonte é formado pelas mensagens que a
tradição envia aos contemporâneos. Mas esses não estão fechados
e limitados por essas mensagens. É possível se libertar delas e alçar
novos voos interpretativos a partir de tais mensagens – mas de modo
algum sem elas.
Essa possibilidade de ser diferente da tradição é assegurada, jus-
tamente, pela fusão de horizontes: “na realização da compreensão
tem lugar uma verdadeira fusão horizôntica que, com o projeto do
horizonte histórico, leva a cabo simultaneamente sua suspensão”
(GADAMER, 1997, p. 458).
A compreensão interpretativa, aqui, se dá mediante a fusão de
horizontes. Nem somente a repetição da tradição, nem somente a
inovação interpretativa criada no presente: a compreensão se dá na
fusão entre as duas.
A grande contribuição de Gadamer para a filosofia e para o pensa-
mento da hermenêutica se dá na ontologização da interpretação e da
linguagem. Em certo nível, ele parece fundir Dilthey e Heidegger.
Na sua filosofia hermenêutica, Gadamer assegura que a interpre-
tação não está somente relacionada a textos e falas, mas ao próprio
cotidiano humano. Ora, quando olhamos um carro que passa na rua,

119
já interpretamos o fato como um todo: há um carro específico, com
uma cor específica, sendo conduzido adequadamente ou não, em
condições climáticas adversas ou não etc.
Assim é em cada momento: interpretamos situações cotidiana-
mente e, antes, não podemos viver sem interpretar a todo tempo os
signos que nos chegam através de falas e textos, mas, também atra-
vés de placas e situações. Nesse sentido, não há escapatória à inter-
pretação. A linguagem, portanto, se torna mais do que mero meio
de comunicação: ela é condição de necessidade da experiência que
fazemos do mundo. Só podemos experimentar o mundo através da
linguagem, na linguagem e pela linguagem.
Isso significa que, nas palavras de Gadamer, o ser que pode ser en-
tendido é a linguagem. Por isso é impossível fugir da interpretação. A
hermenêutica se torna ontologia, nesse ponto: ela determina funda-
mentalmente o modo de ser do ser humano no mundo.
3.3.1.2 P. RICOEUR
Paul Ricoeur (1913-2005) nasceu na França e, apesar de grande
influência da corrente fenomenológica, contribuiu em grande parte
para a formação da hermenêutica.
Dono de vastíssima obra, Ricoeur se dedicou ao estudo das mais
diferentes relações entre interpretação e outros fenômenos como a
ideologia, o tempo, a memória, a justiça e a ética.
Em relação a Gadamer, Ricoeur apresenta um percurso considera-
velmente mais complexo e controverso: enquanto o filósofo alemão
escreveu sistematicamente uma grande obra, a partir da qual pôde
expandir e aplicar sua teoria fundamental em diversas áreas, o fran-
cês publicou obras menores, mas não de menor impacto, e dedicou-
se ao estudo de diferentes temas tendo a linguagem e a hermenêuti-
ca como ponto de partida ou de chegada.
Além da forte influência de Heidegger, nota-se em Ricoeur a pre-
sença do psicanalista S. Freud e da filosofia existencialista. Além de

120
filósofo, o pensador francês foi destacadamente um historiador da
filosofia, indicando pontes e focos de leitura dos autores sobre os
quais se debruçou e, neles, estipulando pontos de inflexão que, ine-
gavelmente, facilitam a interpretação de grandes nomes da filosofia.
Outra importante contribuição de Ricoeur reside nas suas tentati-
vas de interlocução com os grandes nomes da filosofia analítica que,
apesar de contemporânea aos desenvolvimentos continentais, muito
pouco ou quase não se importam em construir diálogos frutíferos en-
tre os dois lados.

Paul Ricoeur (1913-2005)

Embora a complexidade de suas obras não nos permita assegurar


apenas uma linha de pensamento, podemos apontar algumas frentes
de pesquisa que Ricoeur empreendeu e frutificou com grandes con-
tribuições aos debates hermenêuticos.
Mais especificamente, Ricoeur propõe uma espécie de fenomeno-
logia hermenêutica que se oponha ao idealismo de Husserl e à onto-
logia de Heidegger.
Em relação a Gadamer, que tentou uma fenomenologização da
hermenêutica, Ricoeur promove uma hermeneutização da fenome-
nologia. Em Simbólica do mal, publicada em 1960, Ricoeur trata de
dois tipos diferentes de hermenêutica que, em seu projeto de virada
hermenêutica da fenomenologia, parecem ser tipos fundamentais do
modo como se interpreta a tradição filosófica.
Antes de tratarmos quais sejam esses tipos e quais são suas carac-

121
terísticas, é preciso verificarmos o que Ricoeur entende por herme-
nêutica:

Chamo aqui de hermenêutica a toda disciplina que proceda por


interpretação, e dou ao termo interpretação seu sentido forte: o
discernimento de um sentido oculto num sentido aparente. [...] A
tarefa da hermenêutica é de confrontar os diferentes usos do du-
plo sentido e as diferentes funções da interpretação por discipli-
nas tão diferentes como a semântica dos linguistas, a psicanálise,
a fenomenologia e a história comparada das religiões, a crítica li-
terária etc. (RICOEUR, 1978, p. 221).

Em outras palavras, a definição de Ricoeur diz que a hermenêutica


tem a função de decifrar, isto é, compreender os sentidos internos de
algo, aquilo que não está explícito ou totalmente claro nos sentidos
mais imediatos do que se interpreta.
Nesse autor, toma lugar principal de objeto a ser interpretado pela
hermenêutica, o símbolo e o mito. Importa notar, nesse ponto, que
não somente a textualidade escrita seja interessante para ele, mas
também as imagens construídas ao longo da história e a relação hu-
mana com elas.
Por isso, Simbólica do Mal não é uma exaustão lógica sobre a possi-
bilidade do Mal em Deus, por exemplo, como fazem os estudos de te-
odiceia, mas uma análise dos símbolos que representam o mal (como
o pecado e a culpa) e os mitos que tratam de inícios e fim do mal.
A opção pelo símbolo como objeto privilegiado da hermenêutica só
pode se colocar, em Ricoeur, a partir do momento em que ele afirma
que o símbolo também é uma parte da linguagem. Somente dessa
forma ele é elegível como elemento interpretável – e não somente
admirável.
A partir dessas possibilidades, Ricoeur assegura duas linhas de in-
terpretação que, juntas, constituem um Conflito das interpretações,
título de outra importante obra sua, de 1969.

122
Por um lado, o autor configura um tipo de interpretação que se faz
a fim de desmistificar e destruir as mais diferentes formas de ilusão.
Nesse tipo de hermenêutica, é importante superar as alienações e en-
ganações presentes a todo tempo na história humana e, a partir des-
sa superação reduzir os sentidos aparentes a sentidos verdadeiros.
A essa, Ricoeur dá o nome de hermenêutica da suspeita, cujos
principais nomes na tradição do pensamento ocidental são chama-
dos de “mestres da suspeita”, a saber, Freud, Nietzsche e Marx. A re-
lação deste último com a religião é bem informativa do que Ricoeur
propõe: a religião seria o ópio do povo porque é um sintoma de uma
relação material injusta entre o povo e o trabalho, gerando uma alie-
nação. Assim, é preciso desmistificar a religião para atingir algo mais
profundo: a relação de desigualdade material.
Ao lado de uma hermenêutica da suspeita, Ricoeur enxerga uma
hermenêutica do recolhimento do sentido. Se a primeira desconfia
dos sentidos imediatos dos símbolos que interpreta, a segunda con-
fia neles e percebe que a verdade se dá na revelação do sentido pro-
fundo de tais símbolos.
Não há redução de sentido nela, como se o verdadeiro significado
estivesse sempre atrás de uma máscara, mas há abertura às diversas
possibilidades de sentido que uma interpretação pode conter, bem
como uma abertura à intencionalidade da consciência. O sentido,
aqui, é revelação e não mais uma espécie de distorção. A interpreta-
ção leva à sabedoria e o símbolo “dá o que pensar”, isto é, ele causa
reflexão interna sobre a potencialidade do sentido.
Ricoeur, ao contrário do que pode parecer, não escolhe uma opção
dentre essas duas, mas afirma a possibilidade de colaboração entre
elas. Por isso, suas contribuições para o tema da hermenêutica são
tão importantes: não somente ele reabilita o símbolo como privile-
giado aspecto da linguagem para a interpretação, mas promove um
tipo de conciliação das tradições interpretativas que, por fim, cola-

123
boram mutuamente para a promoção da compreensão dos símbolos
que nos cercam.
3.3.1.3 G. VATTIMO
Gianni Vattimo (1936-) é um dos mais renomados filósofos italia-
nos da contemporaneidade.
Sua filiação ao pensamento hermenêutico é um dos mais radicais,
ainda que suas principais referências não sejam somente as habitu-
ais. Isso porque, além de Schleiermacher, Heidegger e Gadamer, so-
mam-se à reflexão de Vattimo os alemães Nietzsche e Marx.
O percurso de Vattimo na filosofia pode ser descrito em, pelo me-
nos, dois períodos: o primeiro mais voltado à hermenêutica como
uma proposta epistemológica para a pós-modernidade, e o segun-
do pensando a hermenêutica como forma de engajamento ético
-político.
A extensão de suas reflexões fez com que, ao lado do ensino e da
pesquisa em filosofia na Universidade de Turim, na Itália, Vattimo se
envolvesse na política institucional, chegando a fazer parte do Par-
lamento europeu. Além das referências filosóficas, Vattimo soma a
religiosidade católica à sua filosofia, utilizando diversas metáforas e
conceitos teológicos como fonte de inspiração para seu pensamento.

Gianni Vattimo (1936-)

Para Vattimo, a hermenêutica é um tipo de koiné do mundo con-

124
temporâneo, isto é, uma linguagem comum, corrente, básica, pressu-
posta na filosofia corrente.
Isso significa que a maior parte das filosofias contemporâneas,
ainda que tratem dos mais variados assuntos, pressupõe que seus
discursos são sempre interpretações de alguma realidade e que estão
sujeitos a um ponto de vista – queiram elas admitir ou não.
Por um lado, essa vulgarização do princípio hermenêutico de in-
terpretação é algo bom, visto que faz evitar grande parte dos discur-
sos unívocos que poderiam se colocar como absolutos e ultimamente
verdadeiros.
Por outro lado, diz Vattimo, tal pulverização é ruim porque, apesar
de estar em todo lugar, os princípios da hermenêutica não são leva-
dos às últimas consequências como deveriam. O primeiro passo para
que isso acontecesse seria reconhecer o que o autor chama de voca-
ção niilista da hermenêutica.
Baseando-se no anúncio da morte de deus nietzschiana, Vattimo
afirma que a hermenêutica tem um chamado ao enfraquecimento das
estruturas de verdade, isto é, que, ao levar a sério o princípio de que
todo discurso é interpretação (e nunca a verdade “pura”), não se pode
mais afirmar verdades últimas, inequívocas e imutáveis. Diz o autor que
“não há fatos, somente interpretações – e isto é uma interpretação”.
Dessa forma, a hermenêutica não somente seria a arte ou a técnica
da interpretação como em Schleiermacher, mas seria a base da epis-
temologia que Vattimo propõe como “pensamento fraco” (pensiero
debole no italiano).
Contra as estruturas fortes da metafísica, que afirmam verdades
violentamente impostas e últimas, ele instaura uma filosofia fraca,
que se reconhece como interpretação e que, no fim das contas, sabe
conviver com outras diferentes interpretações dos mesmos textos e
símbolos pelos quais se interessa.
A hermenêutica, nesse ponto, deixa de ser um método de apre-

125
ensão da verdade, porque essa mesma não pode ser apreendida.
Justamente na impossibilidade de afirmar grandes narrativas como
factualmente únicas e ultimamente verdadeiras, a hermenêutica se
abre para a ética.
Ora, o acolhimento de diferentes discursos como verdadeiros a
partir de uma pluralização da verdade corresponde ao princípio fun-
damentalmente democrático no qual todos têm vez, voz e possibi-
lidade de ser ouvido. Por isso, o processo pelo qual a hermenêutica
niilista e o pensamento fraco passam a ser reconhecidos como episte-
mologia própria para a pós-modernidade só pode desaguar em uma
experiência ética radicalmente democrática de reconhecimento da
pluralidade.
Essa virada se inicia, para Vattimo, tanto na luta antimetafísica de
Heidegger quanto no anúncio nietzschiano da morte de Deus. Mas,
antes, é preciso questionar o que significa essa morte e porque ela
não implica um afastamento da religião.
Para Vattimo, o anúncio nietzschiano da morte de Deus não im-
plica o fechamento absoluto da questão da religião. Em O Deus que
morreu, o filósofo italiano busca responder “a questão de se, e até
que ponto, o que Nietzsche chama de morte de Deus (ou superação
do Deus moral), e que no pensamento contemporâneo é mais bem
definida como o fim da metafísica, implica realmente o término de
qualquer possível experiência religiosa” (VATTIMO, 2004, p. 20).
A assimilação, pressuposta por Vattimo, do anúncio da morte de
Deus com o fim da metafísica é a primeira questão a ser discutida por
ele, precedida por seu problema principal: como o anúncio da morte
de Deus em Nietzsche coloca, ou não, um ponto final para a questão
da religião?
Para ele, essa ideia heideggeriana também deve ser percebida
como um anúncio, já que não pretende ter a força de uma tese ou
teoria.

126
Se assim se quisessem colocar, tanto o anúncio de Nietzsche
quanto o de Heidegger seriam incoerentes, pois, atestando o óbito de
Deus/da metafísica, estariam estabelecendo uma nova verdade com
a mesma força, o que seria, em todo caso, um novo Deus.
Os dois anúncios, afirma Vattimo, podem ser modos de tratar ge-
nericamente da mesma experiência, a do fim da modernidade. Assim,
tanto em Heidegger quanto em Nietzsche, essa temática está presen-
te e é central para o desenvolvimento do pensamento deles. É nesse
sentido que Vattimo a entende como continuidade entre Nietzsche e
Heidegger e é desse ponto que parte sua análise do Deus que morreu.
No pensamento de Nietzsche, o ato de crer em Deus foi fundamen-
tal para o desenvolvimento da sociedade enquanto superação do es-
tado selvagem primitivo. A partir da crença desenvolveram-se a razão
e a disciplina, constituiu-se a ciência e abriu-se o caminho para que a
técnica se estabelecesse. A crença, entretanto, já não é mais plausível
para o homem moderno: sua obsolescência se dá por causa da segu-
rança que a própria técnica fornece.
Por isso Nietzsche diz que Deus foi morto pelos próprios fiéis, pois
a descrença começa no próprio homem que não vê mais motivos
plausíveis para sua devoção. Para além da crença religiosa em um
deus, a hipótese de Deus se torna desnecessária por causa da disso-
lução “do peso que se impunha sobre a condição humana” (VATTIMO,
2004, p. 21).
O fim da metafísica (refletido pelos anúncios de Nietzsche e Hei-
degger) aponta para a morte do Deus moral e para o esgotamento da
crença que imperou no Ocidente desde o pensamento grego em uma
ordem objetiva do mundo.
Esta crença se revelou insustentável quando, em seu próprio ex-
tremo, a metafísica criou a possibilidade para a crítica de si mesma
do seguinte modo: a ordem objetiva de que a metafísica tratava se
torna real na sociedade tecnológica, entretanto, ela impossibilita a

127
existência do homem, pois encerra seus horizontes de futuro e liber-
dade, tornando-o escravo do presente.
Assim, afirma Vattimo que a metafísica se autodilui, no sentido de
que fornece todas as ferramentas para sua superação.
Todavia, para nosso autor, essa autodissolução não se reduz so-
mente a essa questão da inaceitabilidade de uma ordem objetiva
do mundo. O advento da técnica na sociedade moderna traz outro
importante fator para este processo, a pulverização das imagens do
mundo, o pluralismo multifacetado que se tornou uma característica
fundamental da pós-modernidade.
Diante da estabilidade e da univocidade do ser, essa pluralização
torna a crença em uma ordem única do mundo implausível. Essa é a
outra parte do que, para Vattimo, são as diversas causas que marcam
o fim da modernidade e que, de toda forma, caracteriza também um
novo início para o modo de ser do homem. À filosofia cabe fornecer
interpretações sobre este conjunto de acontecimentos e sobre a exis-
tência, não mais descrições objetivas.
A morte de Deus é, justamente, o que abre a possibilidade dessa
experiência múltipla da verdade na sociedade pós-moderna: com a
derrocada da verdade única e última, diversas verdades têm vez e voz
para falar.
O Deus moral que instituía a única voz está morto – e a partir de
sua morte a religião se torna novamente plausível. Assim, tanto afir-
mar metafisicamente quanto negar a existência de Deus é incabível:
tais atos retornariam às condições que fundaram a modernidade.
A possibilidade da experiência religiosa, então, não se dá nesses
moldes de afirmação/negação da existência de Deus, mas nasce da
libertação da metáfora: “na Babel do pluralismo de fins da moderni-
dade e do fim das metanarrativas, se multiplicam as narrativas sem
um centro ou uma hierarquia” (VATTIMO, 2004, p. 25). A experiência
religiosa se legitima, então, como mais uma dessas narrativas.

128
Qualquer hierarquia das linguagens cessa, uma vez que a libera-
ção da metáfora se dá – e ela é justamente a afirmação de que toda
linguagem é metafórica, isto é, não há uma linguagem que trata do
“real” em si e, por isso, seria mais adequada. Uma face dessa liberta-
ção da metáfora que, como destaca Vattimo, ainda não é algo gene-
ralizado na sociedade (vide os embates culturais entre conservadores
e liberais em relação a costumes), é a retomada de terminologias ti-
picamente religiosas na filosofia, na poesia e na sociedade em geral.
Para além da utilização de termos religiosos ou o interesse nesses
temas, atesta Vattimo que “Parece ter sido eliminada qualquer dis-
tinção entre escrita filosófica e escrita poética ou criativa” (VATTIMO,
2004, p. 27). Isso significa que o modo filosófico de pensar se aproxi-
ma, na pós-modernidade, do modo poético de expressão, afastando-
se do interesse em refletir verdades científicas.
Assim também, as razões teóricas para ser contra a religião não
são suficientes para sustentar essa posição na filosofia contemporâ-
nea: o positivismo, que negava Deus como uma fase infantil da hu-
manidade perde seu telos; o historicismo perde o ideal unívoco de
verdade enquanto verdade científica. Junto com a impossibilidade
de afirmar ou negar metafisicamente a existência de Deus, surgem os
discursos não ocidentais que carregam consigo suas crenças e teolo-
gias, afirmando-as como linguagens legítimas.
Em meio a esses diversos fatores, para Vattimo parece claro que
esse retorno da religião é dependente da dissolução da metafísica.
Isso se dá, todavia, diante de uma tensão: a partir da impossibilidade
de tratar de modo último da realidade, a religião é novamente possí-
vel; sendo possível, ela busca alcançar a verdade última, colocando-
se contra o pluralismo que possibilitou seu retorno.
Assim, diz Vattimo, “a pergunta que devemos nos colocar, uma vez
constatado este paradoxo, é se realmente a morte do Deus moral-me-
tafísico deva ter como resultado o renascimento dos fundamentalis-

129
mos religiosos, ou étnico-religiosos, ou comunitário-religiosos, que
vemos aumentar ao nosso redor” (VATTIMO, 2004, p. 29).
Tal paradoxo é apresentado, por Vattimo, como um grande proble-
ma a ser encarado na modernidade, pois a dissolução da metafísica
e a pluralização das linguagens não podem ser justificativas para a
instauração nem de fundamentalismos nem de relativismos.
A filosofia contemporânea, diz Vattimo, não encontra a religião
somente no reconhecimento de tal problemática, nem mesmo como
mais uma entre outras linguagens possíveis: ela estabelece o horizon-
te que condiciona a experiência do homem no mundo, nos termos de
Heidegger.
A superação da metafísica deve passar por este entendimento de
que o ser acontece por meio de uma linguagem que é anterior aos
entes, e que, no Ocidente, a religião faz parte dessa linguagem. Desse
modo, a religião não é somente mais uma entre outras narrativas por-
que é constituinte da tradição que possibilita a linguagem ocidental.
Tal superação da metafísica não passa, portanto, pelo desvencilhar-
se com essa tradição, mas pelo salto que nela se dá para dissolvê-la.
Assim, Vattimo argumenta que a morte de Deus e o renascimento
de incontáveis deuses acompanharam o fim da metafísica; e que esse
fim passa por uma dissolução da ideia de ser como estrutura – que se
dá na noção de linguagem como condição de possibilidade.
Suas conclusões, portanto, são que o retorno da religião nesta
“época” se dá devido ao parentesco entre o horizonte que a religião
constitui e a dissolução da noção de ser como estrutura (através da
kenosis); e que à filosofia é possível um critério pelo qual se pode
pensar acerca das diversas narrativas: elas devem ser coerentes com
aquilo que as constitui, a dissolução da metafísica.
A filosofia pós-metafísica, então, responde a uma vocação disso-
lutiva da hermenêutica que se dá, sobretudo, por meio da linguagem
que a religião legou: o enfraquecimento de Deus.

130
3.4 EXITENCIALISMO
O existencialismo é, tal qual a hermenêutica, mais um dos desen-
volvimentos filosóficos que se deu a partir da fenomenologia.
Embora historicamente tal ligação seja, de fato, forte, o existen-
cialismo encontra em uma fonte ainda anterior inspiração para seu
pensamento: a filosofia de S. Kierkegaard.
Apesar de, como veremos a seguir, o maior nome do existencialis-
mo contemporâneo ser assumidamente ateu, a inspiração do filósofo
cristão da Dinamarca ajuda a construir a noção de liberdade e da pri-
mazia da existência.
Isso porque um dos motes dessa corrente filosófica é a radical afir-
mação da existência como precedente da essência no ser humano.
No caso de Kierkegaard, essa reclamação nasce como protesto contra
o sistema hegeliano que, no objetivo totalitário de chegar ao saber
absoluto, esquece a individualidade dos seres humanos frente à an-
gústia na existência.
Outra influência fundamental para a formação do existencialismo
foi a leitura de Ser e Tempo de M. Heidegger. Como enfatizamos ao
tratar desse texto, interpretar a analítica existencial como existencia-
lismo é adotar uma perspectiva redutora da obra de Heidegger, visto
que seu objetivo era pensar o ser em geral a partir do ser humano, e
não pensar nesse ente em si mesmo.
Todavia, a profunda interpretação heideggeriana da vida humana
abriu caminho para que o existencialismo se colocasse enquanto modo
de interpretação menor, isto é, antissistemas (contra o hegelianismo).
Dessa forma, apesar de influências latentes, nem Kierkegaard nem
Heidegger podem adequadamente serem chamados de “pais do exis-
tencialismo”.
Como apresentaremos a seguir, o existencialismo, sobretudo na
França, carrega uma intrínseca relação com a literatura, de modo que

131
seus principais nomes, J. Sartre e A. Camus, além das reflexões filosó-
ficas, também se dedicaram à escrita de romances e peças de teatro.
3.4.1. J. SARTRE
Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi, sem dúvida, o maior entre os re-
presentantes do existencialismo. Tendo nascido na França, Sartre se
destacou como grande aluno de filosofia desde cedo.
Foi nesta época de faculdade quando conheceu Simone de Beau-
voir, que mais tarde se tornaria sua parceira amorosa em uma rela-
ção não monogâmica. Beauvoir também se tornou uma filósofa exis-
tencialista e, assim como Sartre, se dedicou à escrita tanto filosófica
quanto literária.
Sartre publicou, em filosofia, a importante conferência O existen-
cialismo é um humanismo, além de duas grandes obras sistemáticas:
O ser e o nada e Crítica da Razão Dialética.
Dentre os principais temas que perpassam tanto sua filosofia
quanto sua literatura, podemos elencar a liberdade como o mais
importante. Para Sartre, o ser humano possui uma liberdade radical
que, apesar de ser exercida sempre em situações específicas, não tem
seu caráter modificado.
O fundamento dessa liberdade, para Sartre, reside no fato de que,
no ser humano, a existência precede a essência. Isso significa, em ou-
tras palavras, que o ser humano mesmo deve decidir pelo que ele é
ou deve ser, isto é, não há nenhuma essência pré-definida para ele.
Nesse sentido, ele se encontra existindo antes de saber suas possi-
bilidades de ser no mundo. Ora, uma tesoura é construída com vistas
a um fim objetivo: cortar. O ser humano, pelo contrário, não tem um
direcionamento pré-estabelecido: ele mesmo, por meio de sua radi-
cal liberdade, precisa definir aquilo que será.

132
Jean-Paul Sartre (1905-1980)

Como clareamos acima, Sartre parte de bases fenomenológicas


para pensar sua filosofia da liberdade. Entretanto, a ontologia feno-
menológica de Sartre dá importantes passos para fora da tradição fe-
nomenológica, de modo que, por um lado, não pode ser a ela reduzi-
da e, por outro lado, não pode ser interpretada fora de seu horizonte
de pertença.
Se Heidegger voltava-se para a fenomenologia enquanto método
privilegiado para o entendimento do Dasein, o encontro de Sartre
com esse método se dá em busca de fundamentar uma filosofia da
liberdade.
Primeiramente, é importante pontuar que a liberdade não é, para
Sartre, mero conceito abstrato que, idealizado, deva ser discutido on-
tologicamente (como o foi em Kant e Schelling, por exemplo). Antes,
a fenomenologia proporciona a Sartre a possibilidade de pensar a li-
berdade a partir da situação concreta do ser humano em sua relação
com os fenômenos que o cercam, isto é, em sua situação de lidar com
o mundo já posto de antemão.
Em outras palavras, não se trata mais de lidar com a liberdade
enquanto pré-condição subjetiva humana, mas da própria situação
concreta do homem no mundo, uma vez que a separação entre ho-
mem e mundo não se demonstra na realidade, mas em abstração.
Esse ponto específico demonstra de modo adequado a relação
entre Sartre e a tradição fenomenológica: na mesma medida em

133
que ele se apoia nas elaborações anteriores, como a heideggeriana
de que o Dasein é sempre ser-no-mundo, Sartre constrói sua própria
filosofia da liberdade repensando os pontos que permaneceram im-
pensados na história da filosofia a partir de um ponto de vista feno-
menológico.
Isso significa que o apoio que o método fenomenológico fornece à
Sartre não diz respeito a uma filiação por si mesma, antes, ela possi-
bilita ao filósofo francês um voltar-se para a existência enquanto tal.
A concretude da existência é possível pela fenomenologia na me-
dida em que existir é também um fenômeno – e, em certo sentido, o
fenômeno mais originário da experiência humana de mundo. Mesmo
que não nos seja imediata a consciência do fato de existir, nossa exis-
tência é sempre prévia a qualquer outro fenômeno e, por isso, pode
ser investigada fenomenologicamente de modo adequado.
Por isso, também, à filosofia de Sartre pode ser atribuída certa vi-
rada radical, na medida em que se volta para a percepção de uma não
essencialidade da existência humana que, posteriormente, se torna
uma investigação da liberdade que, mais uma vez, só é possível em
chave fenomenológica.
Tendo por princípio essa liberdade que se constitui fenomenologi-
camente, Sartre elabora concretamente por meio da literatura como
tal conceito se relaciona com a vida humana.
Esse é o caso da peça de teatro Entre quatro paredes, da qual é
retirada a célebre frase “O inferno são os outros”. Nessa, três persona-
gens (Estelle, Inês e Garcin) estão colocados juntos numa espécie de
antessala do inferno, da qual não podem sair apesar de não suporta-
rem a presença dos outros colegas de sala. Em certo momento, uma
porta se abre para que possam fugir, mas nenhum deles ousa sair.
Com isso, Sartre indica que, mesmo que o ser humano possua
uma liberdade radical, ele necessita do outro como referência para a
própria existência. Em outras palavras, esse trecho demonstra a ne-

134
cessidade do outro como baliza para a minha própria existência.
Tão fundamental quanto a passagem da porta para a demonstra-
ção desse aspecto da filosofia de Sartre, é outro trecho da peça no
qual, sem espelhos, Estelle pede que Inês observe seus traços e diga
se ela está bem arrumada. Ora, aqui não apenas o outro é necessário
enquanto “espelho” daquilo que sou, como também faz convergir o
que penso de mim com aquilo que pensam de mim.
Nesse caso, a liberdade do ser-Para-si encontra no ser-Para-outro
um limite. Esse limite, entretanto, não retira da liberdade o seu cará-
ter absoluto, mas cria um paradoxo na minha própria existência. Em
outras palavras, minha liberdade situada está sempre condicionada
pelo olhar e pelo julgamento do outro.
Nesse ponto, Sartre é extremamente coerente consigo mesmo
uma vez que não postula a liberdade absoluta a partir da possibili-
dade de uma falta do outro. Se o fizesse, incorreria no erro idealista
de retirar da vida e das condições histórico-mundanas a existência
humana que analisa. Ora, não existe ser humano sem mundo e, con-
sequentemente, sem o outro.
Assim, o ser humano é sempre determinado pelo olhar do outro
com quem tem relação. Para Sartre, contudo, tal determinação não
retira do ser humano nem sua liberdade, ainda que situada e limita-
da pelo outro, nem o fardo de decidir sobre a própria existência que,
para esse autor, precede a essência no caso do ser humano.
Isso se demonstra, em Entre quatro paredes, quando Garcin ten-
ta se redimir através de Estelle e, posteriormente, Inês. Na medida
em que ele relata o real motivo de sua morte e expõe seu medo em
ser tomado como um covarde, ele deixa claro que, além do fardo que
ele mesmo carrega por ser responsável por suas escolhas existenciais
(demonstrando sua liberdade absoluta), faz parte de sua constituição
o olhar do outro, no caso, a interpretação que as mulheres fazem so-
bre sua atitude – e a covardia que o moveu.

135
Tal exemplo explica, também, a célebre frase “o inferno são os ou-
tros”: ainda que a minha consciência possa se conciliar com as es-
colhas de liberdade que fiz perante a minha própria existência, nada
garante que pelo olhar dos outros eu não seja condenado. Isso faz
com que a condenação, a danação, o sofrimento eterno, enfim, o in-
ferno, sejam os olhares que atravessam minha liberdade situada e me
julgam sem que eu possa os controlar de alguma forma. Por isso, o
outro se afirma na minha existência, possibilidade para que eu possa
existir e também limite de minha liberdade.
Em As moscas, outra célebre peça de teatro, Sartre elabora uma
correlação entre Argos, cidade grega na qual chega escondido Ores-
tes, herdeiro perdido de seu trono, e a França ocupada pelos nazistas
alemães na segunda guerra mundial.
Na peça, o rei de Argos havia sido morto e deposto por Egisto.
Orestes, depois de crescido, volta à cidade para vingar seu pai matan-
do Egisto. Participam da peça Electra, irmã de Orestes, Júpiter, deus
da mitologia romana, e as Erínias, espécie de demônio que simboliza
a culpa na peça.
Seja na transformação de Orestes de rapaz contido a assassino
vingativo, seja no segredo que Júpiter confidencia a Egisto, a impor-
tância que o conceito de liberdade tem na obra de Sartre se demons-
tra claramente na peça As moscas.
No primeiro caso, a mudança do personagem no início da peça
para a segunda metade é patente e paradigmática. Não apenas Ores-
tes não assumia a liberdade em suas mãos como modo de fazer jus-
tiça em Argos, como também escondia de todos quem ele era, recor-
rendo ao nome de Filebo. Ao assumir, primeiramente para Electra,
quem era, Orestes deixa que a liberdade “desabe” sobre ele. Nesse
momento, Orestes abandona a covardia e a vontade de fugir de Ar-
gos, e, enfim, decide que deveria vingar seu pai e libertar a cidade.
Há algo, entretanto, que deve ser visto com maior cuidado nesse

136
ponto: seria incoerente com a filosofia de Sartre se, como em uma
tragédia grega (apesar dos nomes latinos dos deuses), Orestes tivesse
que matar Egisto e a própria mãe como modo de cumprir um destino
predeterminado para ele.
Antes, Sartre deixa claro, em todo momento, que Orestes come-
te os assassinatos baseado em sua própria liberdade que não lhe foi
concedida por ninguém, senão por sua própria existência. Ao tomar
posse dessa liberdade, Orestes é impelido a, também, dar conta das
consequências de seus atos. Por isso, desde que entrou com Electra
no templo de Apolo, as Erínias o perseguem: elas, as deusas do re-
morso, demonstram como a liberdade de Orestes, apesar de ser ab-
soluta, também é situada, de modo que ele deve lidar com a possi-
bilidade de remorso dos seus atos. Ao assassinar os que assolavam
o trono de seu pai, Orestes dá a possibilidade ao povo de Argos de
liberdade sem remorsos, sem Erínias, e sem as moscas. Esse é o fardo
da responsabilidade pelos atos que ele tomou em sua liberdade ab-
soluta. Por fim, para manter sua liberdade, após ouvir o segredo de
Júpiter a Egisto, Orestes decide não ser rei daquele povo porque se
os “homens são livres”, como confessa Júpiter ao rei, não pode haver
domínio heterônomo sobre eles.
A relação entre a culpa de Argos e a culpa dos franceses que não
lutaram contra a ocupação nazista durante a guerra é patente de um
mau uso da liberdade, para Sartre. Quanto a isso, ele considera que
há um julgamento da história: o próprio futuro se encarrega de refle-
tir sobre o que foi feito no passado e como lidar com essa questão. O
julgamento da história, conforme Sartre, diz respeito à responsabili-
dade inerente à situação do homem enquanto projeto: sua liberdade.
Como se fosse uma segunda face da moeda, a responsabilidade é
o peso que o homem livre deve assumir. Mas, para o filósofo francês,
a simples soma entre esses dois elementos não soluciona a equação
ética de como o ser humano deve se portar no mundo à sua volta.
A liberdade humana é sempre situada, de modo que, dentro de um

137
contexto específico, sua liberdade é absoluta. Isso se demonstra com
grande clareza quando Sartre trata da universalidade-singular dos
seres humanos: ora, na mesma medida em que cada um é um singu-
lar, indivíduo único que deve responder e ser responsabilizado pelas
próprias atitudes, ele também faz parte de uma universalidade que
lhe é anterior e maior, isto é, ele está sujeito ao tempo histórico e à
influência da mentalidade de seu tempo.
O indivíduo como universal-singular aparenta ser uma soma entre
a liberdade absoluta e o “espírito do tempo” do contexto histórico-
geográfico no qual tal indivíduo se encontra. Todos os alemães, diz
a peça Os sequestrados de Altona, são culpados pelas atrocidades do
nazismo na medida em que não foram reativos a elas.
Essa responsabilidade, independentemente da universalidade à
qual esteja atrelada, recai sempre nos seres humanos do presente,
já que o passado não pode ser alterado (nem mesmo com a morte
daqueles que cometeram os crimes).
Ora, sua responsabilidade, nesse ponto, é dobrada: ela diz respei-
to tanto à construção ética de um presente que reestruture o passa-
do, quanto ao planejamento de um futuro mais adequado para os
que virão.
Assim, não há Deus para sustentar qualquer certeza sobre o futuro,
como reconhecem os personagens, apenas a mais dura responsabi-
lidade de cada ser humano livre de construir de modo justo um pre-
sente que reestruture o passado, e um futuro que seja “puro”, isto é,
afaste-se da maldade das estruturas sociais iníquas.
Nesse sentido, a filosofia da liberdade sartriana se constrói dife-
rentemente da liberdade abstrata da tradição filosófica, sobretudo
do idealismo alemão. Com o interesse de fornecer certa “concretude”
aos seus conceitos, Sartre utiliza a literatura como modo de reflexão
prática e situacional, bem como estende ao público não filósofo a
possibilidade de compreensão da tão importante mensagem de que

138
o ser humano é dono do próprio destino.
O filósofo francês, durante toda a sua vida, sustentou que a liber-
dade não serve de desculpa para uma vida egoísta: ela traz consigo a
responsabilidade de uma vida eticamente engajada e politicamente
justa. Por isso, a liberdade é uma face da moeda na qual, do outro
lado, encontra-se a responsabilidade e o julgamento da história que
deve impelir ao ser humano a luta por um futuro melhor para o mundo.
3.4.2 A. CAMUS
Albert Camus (1913-1960), além de ensaísta e profícuo escritor, foi
um dos grandes pensadores da existência. Tendo nascido na Argélia
sob o domínio da França, até então, estudou filosofia e voltou-se, ain-
da no período de sua graduação, para a atuação política, filiando-se
ao partido comunista francês.
Diferentemente de Sartre, Camus não se voltou para a filosofia em
si, mas pensou e articulou a filosofia a partir de suas obras literárias.
Sua qualidade como escritor rendeu-lhe um prêmio Nobel de literatu-
ra – também oferecido a Sartre que o rejeitou por questões políticas.
A relação entre os dois escritores era amigável, até que as críticas
de Camus ao regime stalinista incomodaram Sartre, que se indispôs e
encerrou a relação entre eles.
O pensamento de Camus, desde seus primórdios, não tinha por in-
teresse uma grande discussão com os teóricos máximos da filosofia,
mas a popularização e a difusão do pensamento existencialista.
Isso não significa que sua literatura e o pensamento que a constitui
sejam simplórios – pelo contrário: justamente pela importância em di-
vulgar o existencialismo como um novo modo de enxergar a vida huma-
na, não se pode “passar panos quentes” na mensagem que se encontra
implícita às obras. Albert Camus morreu precocemente em um acidente
de carro em 1960, apenas três anos após ter conquistado o prêmio Nobel.

139
Albert Camus (1913-1960)

Dentre suas principais obras, destacam-se O estrangeiro e A peste


como romances.
Nestes, Camus descreve situações limite, nas quais o ser humano
se encontra com problemas fundamentais de sua situação de vida.
Ora, como lidar com uma peste a partir do ponto de vista da liberdade
humana?
Camus utiliza essa imagem para confrontar o ser humano com a
possibilidade da própria liberdade, de modo que, mesmo diante de
circunstâncias específicas, como uma quarentena imposta por uma
peste que começa matando ratos, há liberdade no ser humano para
escolher e decidir sobre seu próprio destino.
Vejamos um trecho de A peste:

E justamente o que falta relatar antes de chegar ao auge da pes-


te, enquanto o flagelo reunia todas as suas forças para lançá-las
sobre a cidade e apoderar-se dela definitivamente, são os longos
esforços desesperados e monótonos que os últimos indivíduos,
como Rambert, faziam para reencontrar sua felicidade e tirar à
peste essa parte deles mesmos que defendiam contra todos os
ataques. Era essa sua maneira de recusar a servidão que os ame-
açava, e embora essa recusa, aparentemente, não fosse tão eficaz
quanto a outra, a opinião do narrador é que ela tinha efetivamen-
te um sentido e comprovava também nas suas próprias vaidades

140
e contradições o que havia então de altivez em cada um de nós.
Rambert lutava para impedir que a peste o vencesse. Tendo adqui-
rido a prova de que não poderia sair da cidade pelos meios legais,
estava decidido, dissera a Rieux, a usar de outros (CAMUS, 2013,
p. 125).

Nesse trecho, mesmo sem um conhecimento prévio sobre o ponto


da obra no qual se coloca, podemos notar os mais importantes aspec-
tos do existencialismo de Camus.
Primeiramente, o desespero humano diante das situações que a
vida impõe ao ser humano. Diante da peste e do devastador cená-
rio de morte que se impunha, personagens como Rambert e Rieux
se viam impelidos a buscar um sentido para a própria existência que
transcendesse a mera aceitação do fato de que a morte é inevitável
(seja por peste, seja por acidente ou velhice).
Nesse momento, os personagens de Camus se defrontam com
o absurdo que é a vida humana e sua determinação – ponto mais
aprofundado em outra obra, como notaremos adiante. O desespero
humano, nesse ponto, demonstra-se na luta incessante de Rambert
contra a peste, disposto, inclusive, a usar todos os meios possíveis
para fugir dela. Demonstra-se claramente a fundamentalidade da li-
berdade e da responsabilidade de ter às mãos o próprio destino de
modo radical.
Outra notável característica de Camus que se faz presente no tre-
cho apresentado é a intervenção ativa do narrador, que não apenas
apresenta sua opinião como também declara um julgamento sobre a
situação narrada e sobre a situação humana em geral.
O Mito de Sísifo, por outro lado, embora também seja uma impor-
tante obra de Camus, não é um romance ficcional, mas um ensaio
filosófico baseado em um mito grego. Devido ao seu caráter pouco
sistemático, não se diz que seja uma obra própria de filosofia – o que
não retira qualquer mérito de seu conteúdo. Antes, o ensaio de Ca-

141
mus encontra-se num limiar entre literatura e filosofia, combinando
forma e conteúdo de um modo apropriado à sua intenção de difundir
o existencialismo.
O mito grego de Sísifo diz respeito a um homem que era demasia-
damente astuto e, por isso, provocou a ira dos deuses. Tendo enga-
nado diversos deles, inclusive a própria morte por duas vezes, Sísifo
foi condenado por Zeus a um trabalho infindável. Seu dever era rolar
uma pedra de mármore até o topo de uma montanha com apenas um
empecilho: todas as vezes que estava por completar sua tarefa, uma
força inevitável empurrava-a e a pedra rolava novamente para o pé
da montanha. Nesse sentido, o trabalho de Sísifo nunca conseguia
ser completado (por isso, ainda hoje se usa a expressão “trabalho de
Sísifo” como exemplo de uma atividade sem sentido algum).
A leitura que Camus faz desse mito se coloca, justamente, na ex-
tensão do conceito do absurdo que é a vida humana. Para ele, Sísifo
é um perfeito exemplo da inutilidade da ação humana sobre a vida,
bem como o absurdo e a falta de sentido que caracterizam viver.
Entretanto, diz Camus, ainda que vida não tenha sentido em si
mesma, é preciso que os seres humanos, a partir de sua liberdade,
forneçam à vida algum tipo de sentido. Em sua obra, como em Sartre,
primeiro há a existência e posteriormente o seu sentido. Na leitura
de Camus, o que dá sentido ao trabalho de Sísifo é o seu ímpeto de
completar a tarefa que lhe foi dada. Sísifo seria feliz mesmo sem com-
pletá-la, pois, a felicidade estaria no próprio ato da busca por fazê-lo.
Camus reflete, portanto, sobre o sentido da vida de modo a, mesmo
encontrando seu absurdo, assegurar a possibilidade de felicidade na
liberdade humana – por mais que algumas vezes ela pareça impossível.

3.5 O EXISTENCIALISMO NA TEOLOGIA


Por mais que não haja um movimento unificado do qual se possa
afirmar uma teologia existencialista, é notável a influência do pensa-

142
mento sobre a existência em diversos teólogos protestantes do séc.
XX.
Embora não se possa inferir diretamente sobre eles a influência de
Sartre ou de Camus, os maiores representantes do existencialismo, a
leitura que tais teólogos fazem de outros autores – que acabam sendo
mais influentes, nesse caso – é de fundamental importância para a
construção de uma via média entre fundamentalismo e liberalismo
teológico.
Isso porque ambos os lados optaram por uma extrema racionaliza-
ção da fé cristã: seja tentando provar cientificamente a possibilidade
de milagres, seja provando que eles não poderiam existir. Por isso,
diversos teólogos, nem fundamentalistas nem liberais, recorreram ao
existencialismo como fonte filosófica de fundamentação para uma
nova interpretação das Escrituras Sagradas. Dentre esses, os mais im-
portantes são R. Bultmann, K. Barth e P. Tillich.
3.5.1 R.K.BULTMANN
A principal referência existencialista de Rudolf Karl Bultmann
(1884-1976), teólogo alemão, foi a recepção da obra Ser e Tempo de
Martin Heidegger.
Não apenas um admirador, Bultmann foi colega desse filósofo na
Universidade de Marburg onde estabeleceram diversos diálogos. O
teólogo alemão se apropria, principalmente, de dois pontos da obra
de Heidegger.
Primeiramente, é notável a presença dos princípios e desenvol-
vimentos hermenêuticos a partir da fenomenologia conforme Ser e
Tempo. Para ficarmos apenas em um ponto, Bultmann escreve um
ensaio no qual se pergunta “Será possível a exegese livre de premis-
sas”? (BULTMANN, 2001) aplicando a noção de pré-compreensão hei-
deggeriana à exegese bíblica, de modo a afirmar a impossibilidade
de uma exegese “pura”, isto é, que ouse a verdade por trás do texto

143
bíblico sem considerar o intérprete em sua contemporaneidade e a
história interpretativa de tal texto.
Em segundo lugar, a influência de Heidegger em Bultmann se de-
monstra na tentativa de uma leitura existencialista da Bíblia a partir
de seu kerygma, isto é, sua mensagem.
Investigadores brasileiros, como Frederico Pieper e Alexandre Mar-
ques Cabral, apontam que há uma relação intrínseca entre a destrui-
ção fenomenológica de Heidegger e a desmitologização bíblica de
Bultmann. O projeto do teólogo era separar, dentro da interpretação
e da exegese bíblica, o que seja mito do que seja mensagem. Uma
vez que os mitos não mais teriam utilidade na época do ser humano
moderno, eles deveriam ser descartados em favor de uma leitura que
priorizasse a mensagem existencial da bíblia.
Embora, hoje, essa proposta possa parecer demasiadamente ra-
dical, em seu contexto, Bultmann pretendia livrar a Bíblia do julga-
mento cientificista liberal no qual ela não era aprovada sob nenhum
aspecto crítico. O movimento de Bultmann, nesse sentido, visava
restabelecer a importância da Bíblia na modernidade sem recair em
nenhum dogmatismo científico.
3.5.2 K.BARTH
Podemos, ao lado de Bultmann, ressaltar a recepção existencialis-
ta na obra de Karl Barth (1886-1968). Se aquele teólogo alemão se ins-
pirou em Heidegger para as suas propostas existenciais, Barth, suíço,
apropriou-se do pensamento de Kierkegaard.
Tentando, assim como Bultmann, escapar do liberalismo e do fun-
damentalismo, Barth criou uma via por ele intitulada como “teolo-
gia dialética”. Sua referência era, justamente, aquilo que Kierkegaard
chamou de paradoxo absoluto: Deus feito carne humana.
Esse ponto estabelece uma relação dialética entre finito e infinito,
eternidade e temporalidade etc. que nunca pode ser totalmente re-
solvida – justamente porque se baseiam em um paradoxo.

144
Sua principal obra é A carta aos Romanos, um volumoso comen-
tário à epístola bíblica. Nesta, a influência de Kierkegaard e de seu
pensamento existencial é percebido a todo tempo: seja por meio do
conceito de comunicação indireta, ou do instante como conceito fun-
damental para entender o ponto de inflexão da conversão ao cristia-
nismo.
O principal conceito da obra de Barth gira em torno de uma ex-
pressão kierkegaardiana, a saber, a noção de Deus como totalmente
Outro, qualitativamente diferente do ser humano, como um polo di-
ferente da dialética.
Assim como o filósofo dinamarquês, o pensamento da teologia
não era, para Barth, mero preciosismo acadêmico. Antes, era questão
existencial do próprio teólogo. Essa radicalidade na própria fé moveu
Barth a se tornar um dos líderes da Igreja Confessante Alemã, junta-
mente com D. Bonhoeffer.
Tal organização não apenas se opunha ao luteranismo oficial do
Estado, mas fazia frente ao regime nazista dentro da Igreja Luterana.
3.5.3 P. TILLICH
Outro importante teólogo do séc. XX influenciado pelo pensamen-
to kierkegaardiano da existência é Paul Tillich (1886-1965).
Em relação a Bultmann e Barth, o pensamento de Tillich é aquele
com maior recepção em solo brasileiro, tanto na teologia quanto nos
estudos de religião em geral.
Assim como Barth, Tillich fez contundentes críticas ao regime na-
zista, palavras que o fizeram se radicar no Estados Unidos até o fim de
sua vida. A extensão do pensamento filosófico de Tillich foi tamanha
a ponto de ele ser considerado um dos maiores intelectuais alemães
de seu tempo.
A influência de Kierkegaard em seu pensamento é notável. O fato
de que Tillich orientou a tese de Adorno sobre Kierkegaard já seria

145
suficiente para sustentar a ligação entre o teólogo alemão e o filósofo
dinamarquês.
Mas, para além disso, ao longo de sua obra Tillich salienta a impor-
tância de uma interpretação existencialista da Bíblia como caminho
para a teologia no séc. XX, baseada tanto em Kierkegaard quanto em
Heidegger.
Um de seus célebres ensaios sobre o tema é intitulado “Significa-
do histórico da filosofia existencial” (TILLICH, 2009, p. 123-159). Nes-
se texto, Tillich defende que o existencialismo é um caminho seguro
para a teologia seguir, uma vez que “a filosofia existencial poderá ser
considerada a tentativa de reconquistar o sentido da vida em termos
‘místicos’ depois de se ter perdido em termos eclesiásticos e positivis-
tas” (TILLICH, 2009, p. 155-156).
Para Tillich, a religião perde terreno diante da industrialização e,
consequentemente, a vida dos trabalhadores industriais perde seu
sentido. Aqui, a filosofia existencial tenta recuperar a possibilidade
de sentido reafirmando a vida e a liberdade humanas. Tillich tece um
elogio à filosofia existencial e a confirma como parceira privilegiada
da teologia do séc. XX. A filosofia existencialista, para além de ser uma
influência, transforma-se em ponto importante de diálogo para a te-
ologia.

3.6. PÓS- ESTRUTURALISMO


Pode parecer, no mínimo, estranho falar em pós-estruturalismo
sem antes apresentar o que seja o estruturalismo.
De fato, não há como situar uma corrente filosófica sem fazer refe-
rência à sua história – sobretudo quando seu próprio nome lhe apre-
senta como movimento posterior a algo.
No caso específico com o qual nos deparamos, entretanto, a rela-
ção entre a corrente de pensamento anterior e a posterior não é tão
simples. Isso porque, embora o pós-estruturalismo seja marcada-

146
mente uma corrente filosófica, o estruturalismo não o é.
Ainda que sua vasta influência alcance a filosofia, bem como a psi-
canálise, por exemplo, o estruturalismo não é gestado em filosofia e,
por isso, não pode ser reconhecido como corrente filosófica.
Seus principais representantes são o linguista suiço Ferdinand
de Saussure (1957-1913) e o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-
2009).
De modo geral, para o estruturalismo, a língua está na base de todo
fenômeno. Isso não significa, entretanto, que as estruturas que cons-
tituem esses fenômenos sejam sempre verbais, mas são linguísticas.
Conforme Saussure em seu Curso de linguística geral, há sempre
uma relação entre significante e significado por trás de todos os fenô-
menos que nos cercam.
Para utilizarmos os termos de um filósofo pós-estruturalista, há
uma relação entre “as palavras e as coisas” na base de todo fenôme-
no. Essa relação se constitui como uma estrutura básica que deve ser
analisada para que se entenda tal fenômeno. Nesse sentido, a estru-
tura por trás de todo fenômeno contém uma espécie de essência que,
se apreendida, revela as regras e princípios que regem tal fenômeno.
O objeto do estruturalismo, aplicado às mais diferentes ciências
humanas, seria conhecer as estruturas que compõem o mundo para,
a partir delas, determinar seus métodos, regras e princípios.
Tal pretensão se repete na obra máxima de Lévi-Strauss intitulada
Antropologia estrutural. Nela, o antropólogo se preocupa em obser-
var como as estruturas se repetem em diversos grupos de nativos por
ele observados para, a partir das semelhanças e das diferenças, cons-
tatar os aspectos linguísticos essenciais do modo de vida humano.
O pós-estruturalismo se constitui, diferentemente, na filosofia,
como uma reação às pretensões estruturalistas de conhecimento ge-
ral a partir de essências. Tal reação não é causada diretamente pe-
los desenvolvimentos em departamentos vizinhos à filosofia, mas se

147
constrói a partir da chegada do estruturalismo na filosofia, sobretudo
na França com Louis Althusser e Roland Barthes.
Se o estruturalismo precisava de um foco maior na identidade en-
tre os fenômenos para identificar características básicas de sua estru-
tura fundamental, o pós-estruturalismo levará a cabo, sobretudo, a
noção de diferença como centro articulador da filosofia.
Os principais nomes dessa corrente filosófica, M. Foucault, J. Der-
rida e G. Deleuze, estiveram envolvidos com os protestos franceses
em maio de 1968, movimento marcado pela luta contra a opressão
das instituições sociais (e de suas estruturas).
3.6.1 M. FOUCAULT
Michael Foucault (1926-1984) foi um dos filósofos que recepciona-
ram as ideias estruturalistas na filosofia, mas, pouco tempo depois,
percebeu suas implicações e passou a criticar tal movimento.
Em dois pontos, primeiramente, podemos afirmar a grande con-
tribuição de Foucault. Por um lado, seus métodos filosóficos, e a dis-
cussão que tece em volta deles, em muito fizeram suas publicações
conhecidas. São eles a arqueologia e a genealogia.
Por outro, as interpretações específicas que teceu a partir desses
métodos, que contemplam desde as ciências humanas à sexualidade
e à loucura, trazem à discussão filosófica o julgamento histórico de
conceitos fundamentais para a tradição.
Se olharmos com atenção para o fato de que Foucault se volta para
situações concretas, podemos identificar um dos sintomas de sua
aproximação com o estruturalismo.
Ora, por mais que sempre fale da vida e do mundo, em geral, não é
costume filosófico analisar discursos e momentos históricos concre-
tos. Tal análise caberia, a partir de um paradigma mais tradicional, à
história, à sociologia ou à antropologia.
Nesse sentido, a filosofia de Foucault estabelece importantes pon-

148
tes de diálogo com essas áreas e com outras tantas, como a psicolo-
gia, a medicina, a linguística, a literatura e as ciências políticas. Por
isso, sua influência e sucesso, que começam nas décadas de 70 e 80,
continuam e crescem após sua morte.
A extensão do pensamento de Foucault e a pluralidade de temas
que investiga ajudaram a consagrá-lo como um dos maiores pensa-
dores em humanidades do séc. XX, além do fato de que suas contri-
buições em outras áreas auxiliaram na exposição e na divulgação de
sua obra.

Michael Foucault (1926-1984)

Dentro de sua vasta obra, podemos identificar, pelo menos, dois


momentos fundamentais em relação aos seus métodos de análise.
Como já foi dito, em Foucault o método é tão importante quanto o
conteúdo, uma vez que é parte central de suas inovações filosóficas.
A primeira parte de sua obra é caracterizada pelo método arqueo-
lógico, enquanto a segunda pela genealogia. Suas obras datadas da
década de 60 se construíram a partir de uma arqueologia, método por
ele aprimorado e que, entretanto, foi tema de discussão profunda por
ele apenas no final dessa década.
É importante não confundir arqueologia filosófica com arqueolo-
gia histórica: Foucault não se empenha no trabalho físico em sítios
arqueológicos para desenvolver sua filosofia. Mas a imagem é ilustra-
tiva: ele se volta aos fenômenos e discursos para, delicadamente, re-
tirar deles os detalhes históricos e analisá-los em formato originário.

149
Em Arqueologia do saber, publicado em 1969, Foucault se dedica a
pensar os fundamentos teórico-metodológicos dos quais partiu para
pensar os fenômenos analisados no primeiro momento de sua car-
reira.
A citação a seguir apresenta os principais pontos daquilo que o au-
tor entende por “arqueologia”:
1) A arqueologia busca definir não os pensamentos, as represen-
tações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se
manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto
práticas que obedecem a regras. Ela não trata o discurso como do-
cumento, como signo de outra coisa, como elemento que deveria
ser transparente, mas cuja opacidade importuna é preciso atra-
vessar frequentemente para reencontrar, enfim, aí onde se man-
tém à parte, a profundidade do essencial; ela se dirige ao discurso
em seu volume próprio, na qualidade de monumento. Não se trata
de uma disciplina interpretativa: não busca um “outro discurso”
mais oculto. Recusa-se a ser “alegórica”.
2) A arqueologia não procura encontrar a transição contínua e in-
sensível que liga, em declive suave, os discursos ao que os prece-
de, envolve ou segue. Não espreita o momento em que, a partir
do que ainda não eram, tornaram-se o que são; nem tampouco o
momento em que, desfazendo a solidez de sua figura, vão perder,
pouco a pouco, sua identidade. O problema dela é, pelo contrário,
definir os discursos em sua especificidade; mostrar em que senti-
do o jogo das regras que utilizam é irredutível a qualquer outro;
segui-los ao longo de suas arestas exteriores para melhor salien-
tá-los. Ela não vai, em progressão lenta, do campo confuso da
opinião à singularidade do sistema ou à estabilidade definitiva da
ciência; não é uma “doxologia”, mas uma análise diferencial das
modalidades de discurso.
3) A arqueologia não é ordenada pela figura soberana da obra;
não busca compreender o momento em que esta se destacou do

150
horizonte anônimo. Não quer reencontrar o ponto enigmático em
que o individual e o social se invertem um no outro. Ela não é nem
psicologia, nem sociologia, nem, num sentido mais geral, antro-
pologia da criação. A obra não é para ela um recorte pertinente,
mesmo se se tratasse de recolocá-la em seu contexto global ou na
rede das causalidades que a sustentam. Ela define tipos e regras
de práticas discursivas que atravessam obras individuais, às vezes
as comandam inteiramente e as dominam sem que nada lhes es-
cape; mas às vezes, também, só lhes regem uma parte. A instância
do sujeito criador, enquanto razão de ser de uma obra e princípio
de sua unidade, lhe é estranha.
4) Finalmente, a arqueologia não procura reconstituir o que pôde
ser pensado, desejado, visado, experimentado, almejado pelos
homens no próprio instante em que proferiam o discurso; ela não
se propõe a recolher esse núcleo fugidio onde autor e obra tro-
cam de identidade; onde o pensamento permanece ainda o mais
próximo de si, na forma ainda não alterada do mesmo, e onde a
linguagem não se desenvolveu ainda na dispersão espacial e su-
cessiva do discurso. Em outras palavras, não tenta repetir o que foi
dito, reencontrando-o em sua própria identidade. Não pretende
se apagar na modéstia ambígua de uma leitura que deixaria vol-
tar, em sua pureza, a luz longínqua, precária, quase extinta da ori-
gem. Não é nada além e nada diferente de uma reescrita: isto é, na
forma mantida da exterioridade, uma transformação regulada do
que já foi escrito. Não é o retorno ao próprio segredo da origem; é
a descrição sistemática de um discurso-objeto (FOUCAULT, 2008,
p. 157-158).

Neste contexto, Foucault demonstra os princípios de seu método


arqueológico no qual busca a descrição de um objeto por meio da re-
escrita de seu percurso histórico. A seu modo, é justamente isso que o
filósofo francês fez nas obras anteriores à Arqueologia do Saber.
Em História da Loucura, Foucault questiona o modo como o dis-

151
curso sobre a loucura está baseado em um conceito que se ancora em
outros como a noção de racionalidade, por exemplo. O modo como
se trata a loucura, diz o autor, influencia diretamente no modo como
se trata a razão e, consequentemente, como se constrói o saber aca-
dêmico.
Com o mesmo ímpeto arqueológico, em O nascimento da clínica, o
autor se debruça arqueologicamente sobre o saber médico e, em As
palavras e as coisas, Foucault desenvolve seu pensamento em torno
da constituição das ciências humanas e do conceito de subjetividade
que lhes é pressuposto e fundamental.
Em um segundo momento, inaugurado pela conferência A ordem
do discurso, de 1970, Foucault realiza a passagem da arqueologia à
genealogia.
Agora inspirado, sobretudo, em Nietzsche, o autor não mais tenta
reconstituir os discursos por meio de uma reescrição histórica de suas
estruturas fundamentais. Antes, tenta verificar como se comportam
as suas “gênesis” ao longo da história com um interesse específico:
a afirmação de sua constituição social e, em muitos casos, falsidade
originária.
A passagem que assinalamos corresponde, justamente, à saída
de uma fundamentação estruturalista para uma fundamentação pós
-estruturalista. Sua busca não é mais pelas estruturas básicas que
explicariam o fenômeno como um todo (por exemplo, o conceito de
loucura), mas pela desconstrução da naturalização de conceitos his-
toricamente constituídos, como o poder. Temática tal que ocupa o
centro de suas obras desse segundo momento. Eis sua concepção de
genealogia:

A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande nú-


mero de materiais acumulados, exige paciência. Ela deve construir
seus “monumentos ciclópicos” não a golpes de “grandes erros
benfazejos”, mas de “pequenas verdades inaparentes estabeleci-

152
das por um método severo”. Em suma, uma certa obstinação na
erudição. A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e
profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe,
ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações
ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa de “ori-
gem” (FOUCAULT, 1985, p. 15-16).

O interesse histórico da genealogia, portanto, não é a mera recons-


trução de fato, mas a análise das minúcias pressupostas nos discur-
sos que analisa para, por fim, identificar as absolutizações e significa-
ções arbitrárias propostas neles.
Nesse ponto, Foucault segue a máxima de Nietzsche de “fazer fi-
losofia com o martelo”. A partir dessa nova chave metodológica, Fou-
cault escreve a História da sexualidade, em três volumes, tratando
sobre como o uso dos corpos e o discurso acerca da sexualidade se
modificou ao longo do tempo priorizando uma repressão do impulso
sexual humano. Seu interesse não é apenas reconstrutivo, mas de crí-
tica aos discursos que compõem o imaginário ocidental sobre o tema.
Semelhantemente, em Vigiar e punir, Foucault elabora uma severa
crítica à sociedade de controle que, até mesmo em sua arquitetura,
fundamenta a possibilidade de um Estado que vigia ininterruptamen-
te os corpos, transformando-os através da docilidade, e pune todos
aqueles que não se adequam ao seu ideal de normalidade social. Sua
análise do sistema prisional é digna de leitura.
No fim da década de 70, Foucault especifica ainda mais sua obra
sem sair, entretanto, de uma metodologia genealógica. Essa última
fase pode ser chamada como a fase ético-política de Foucault.
Em razão de sua morte prematura, em 1984, essa parte do pensa-
mento do autor foi, quase majoritariamente, constituída de cursos,
conferências e ensaios que não chegaram a ser publicados em um vo-
lume organizado por ele.
Hoje, há quatro volumes publicados com os textos dessas confe-

153
rências, intitulado Ditos e escritos. Além desses, há cursos completos
como Hermenêutica do sujeito, e, Em defesa da sociedade. Nestes,
Foucault volta-se atentamente para o discurso sobre o político e a re-
pressão dos corpos anormais, seja juridicamente na forma da lei, seja
moralmente na forma dos dogmas e tabus.
A obra de Foucault é muito discutida ainda hoje, graças a sua
atuação nas fronteiras entre diversas ciências (humanas, naturais
e biológicas). Suas contribuições à filosofia se dão tanto no campo
específico dos conceitos e discursos que analisou, quanto no campo
metodológico e epistemológico. Foucault, nesse sentido, não apenas
fez filosofia de modo magistral, mas questionou e deixou um grande
legado sobre como se deve fazer filosofia.
3.6.2 J. DERRIDA
Jacques Derrida (1930-2004) nasceu na Argélia sob o domínio fran-
cês. Proveniente de família judia, traço que impacta diretamente a
sua filosofia, a Derrida foi dado o nome estadunidense de Jackie, que
ele mesmo torna francês posteriormente.
Sua carreira acadêmica se inicia com grandes dificuldades: expul-
são da escola por ser judeu (durante a ocupação nazista da França),
reprovações em processos seletivos e um abalo nervoso-depressivo
marcam o período de sua formação em filosofia até o concurso para
professor universitário.
Até esse período, Derrida não aparentava ser um jovem promis-
sor – opinião que se transforma imediatamente após o início de sua
carreira como professor. Com uma bolsa para estudar na prestigiada
Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Derrida começa a tra-
duzir o autor que se torna uma de suas principais referências filosófi-
cas: E. Husserl. Junto com o fenomenólogo, somam-se as referências
a Heidegger, Freud, Nietzsche e Kierkegaard.
A vida pessoal de Derrida foi marcada por um de seus conceitos

154
fundamentais: a amizade. Além de manter interessantes diálogos
com outros filósofos de seu tempo, Derrida tornou-se amigo de mui-
tos deles, como Levinas, Foucault, Althusser, Deleuze e Blanchot.
Aos dois primeiros dessa lista de notáveis franceses do séc. XX,
Derrida teceu severas críticas em um de seus primeiros livros. Apesar
delas, o sentimento de hospitalidade, tão caro a Derrida, prevaleceu.

Jacques Derrida (1930-2004)

Derrida não inicia sua carreira propriamente dita com a publica-


ção de uma obra, mas de uma tradução (de Husserl que começara em
Harvard) e de diversos artigos filosóficos que serão, posteriormente,
publicados ao longo de suas obras.
Junto à tradução de A origem da geometria, obra de Husserl, Derri-
da publica uma extensa introdução na qual diferencia o modo como
o filósofo alemão lida com a escritura e o modo como a literatura de
vanguarda o faz.
Para Derrida, o modo como Husserl lida com a linguagem é extre-
mamente redutor, porque busca nela uma transparência traduzível
em elementos simples. A literatura, por sua vez, demonstraria certa
totalidade na relação entre escritura e língua.
Como podemos perceber, a noção de escritura é primordial para o
pensamento de Derrida. Ela representa uma espécie de protesto con-
tra a primazia da fala sobre a escrita, da expressão sobre a inscrição.
A escritura, entretanto, não é representada meramente pela noção de

155
“livro”. Antes, a ideia de livro, para Derrida, representa um ideal de
totalidade, de apreensão objetiva inequívoca do objeto sobre o qual
se debruça, de modo que, sistematicamente, fundamenta uma noção
epistemologicamente violenta.
A importância do termo se demonstra, também, nas três obras que
Derrida publica em 1968: A escritura e a diferença, Da Gramatologia, e
A voz e o fenômeno.
Em meio aos protestos que tomaram as ruas da França naquele
ano, Derrida retoma a importância da discussão filosófica sobre a lin-
guagem.
Sublinhamos que grande parte dos termos escolhidos pelo autor
para compor o título de suas obras está ligada à questão da lingua-
gem: a escritura, a gramatologia (da gramática), a voz. A referência
maior, neste último caso, também é a fenomenologia e o modo como
relaciona significados e significantes.
Aqui, mais uma vez a crítica incide sobre uma espécie de estrutu-
ralismo linguístico do qual diversos filósofos se apropriaram. A crítica
supracitada de Derrida a Foucault, por exemplo, faz parte de um capí-
tulo de A escritura e a diferença, no qual a História da loucura é exami-
nada sob o ponto de vista de uma crítica à sua base estruturalista e à
apropriação que Foucault faz do conceito de razão cartesiano.
Outro importante termo que é parte fundamental do vocabulário
de Derrida é a ideia de différance. Este vocábulo, criado pelo autor,
é uma variação da palavra francesa différence, diferença. Derrida de-
senvolve essa noção para tratar de uma diferença que, ao longo da
tradição filosófica, não foi devidamente inscrita no pensamento.
Nesse sentido, é a diferença que se estabeleceu sempre às mar-
gens das identidades e diferenças postuladas pela tradição. É a dife-
rença da diferença. Com ela, Derrida não queria apenas criar um novo
vocábulo que trocasse apenas uma letra de sua composição. No fran-
cês, o som da leitura é o mesmo nos dois casos. Esse artifício é usado

156
pelo autor para marcar que a diferença só pode se dar na escritura e
não na voz, na fala.
Por isso, o termo différance tem sido traduzido para o português
como dyferença. Substituindo o i pelo y não haveria troca de som na
leitura corrida, mas a inovação derridadiana estaria marcada pela es-
critura do termo.
Mais uma vez, a referência, mesmo que indireta, ao estruturalismo
e a sua opção pela identidade frente à diferença se faz presente. Ao
optar pela dyferença, Derrida escolhe pensar nos discursos que foram
historicamente deixados às margens pela filosofia. Contrariamente à
tradição, é por lá que ele começa seu pensamento da desconstrução,
pelas Margens da filosofia, outra importante obra sua.
O pensamento de Derrida dá início a um movimento de descons-
trução. Seu objetivo não é simplesmente destruir ou declarar arrui-
nado o gigante construto filosófico até então estabelecido. Antes, ele
deseja repensar e desconstruir conceitos filosóficos já estabelecidos
para que, a partir de seu próprio movimento, outros e novos inícios
possam ter lugar no pensamento.
Sua intenção com esse movimento é, sobretudo, ética: a metafí-
sica da presença instaurou no Ocidente um modo de pensar que, no
limite, é extremamente violento. Ao apagar as diferenças epistemolo-
gicamente, a tradição também permite que se apaguem as diferenças
culturais e sociais por meio da violência da imposição unívoca de ver-
dades historicamente datadas. Desse modo, no pensamento da des-
construção, Derrida retoma importantes conceitos como a justiça, a
ética, a hospitalidade e o dom.
Por isso, o pensamento deste importante filósofo francês não é
apenas um apelo epistemológico contra os totalitarismos estrutura-
listas. Ele se coloca como um pensamento da ética, contra a violência
e pelas diferenças que são historicamente marginalizadas pela tradi-
ção. Por isso, Derrida deve ser considerado, também, um pensador
do outro e das possibilidades de existência livre do outro.

157
3.6.3. G. DELEUZE
Gilles Deleuze (1925-1995) foi um importante filósofo e pensador
francês que, juntamente com Foucault e Derrida, estabeleceu seu
pensamento de modo crítico ao estruturalismo e à tradição metafí-
sica em geral.
Grande parte de suas obras foi escrita em parceria com o filósofo F.
Guattari (1930-1992). Seu diálogo e releitura crítica da tradição filosó-
fica se dá, em relação a Derrida, em grande volume e profundidade.
Seu interesse era recuperar a noção de diferença ao longo da história
da filosofia com vistas a reabilitar noções como desejo, potência, cor-
po e sentido. Uma parcela significativa de suas obras serve tanto de
introdução a filósofos modernos quanto de discussão sobre a articu-
lação de tais conceitos no pensamento desses autores.
Podemos elencar, pelo menos, quatro principais referências para
o pensamento de Deleuze: Kant, Spinoza, Leibniz e Nietzsche. Sobre
este último: Deleuze foi, juntamente com Foucault, responsável por
um reavivamento no interesse francês por Nietzsche.
Tal fato não se deu apenas pela relação de comentador da obra do
filósofo alemão, mas pela utilização que os franceses fizeram para es-
tabelecer os paradigmas pós-estruturalistas e fomentar a elaboração
de novos modos de fazer filosofia.
A amizade entre Deleuze e Foucault, que foram colegas no depar-
tamento de filosofia da Universidade de Paris (Sorbonne), transcen-
deu o campo da vida privada, de forma que após a morte de Foucault,
em 1986, Deleuze dedicou-lhe um livro cujo título é seu nome.

158
Gilles Deleuze (1925-1995)

A opção teórica mais radical de Deleuze é a de se aventurar em um


novo modo de fazer filosofia, que não mais dependa de uma repeti-
ção excessiva da tradição e de seus dogmas pré-estabelecidos, nem
mesmo dos modelos metafísicos de pensamento.
Antes, para Deleuze, a função da filosofia é a criação de novos con-
ceitos, e a elaboração de um plano de imanência. O plano de imanên-
cia, diz Deleuze, é como uma rede de conceitos e significados intrin-
secamente inter-relacionados e formam uma fundamentação teórica
que serve como base para a elaboração das mais diversas teorias.
Nesse sentido, ele é uma atividade filosófica ainda anterior à cria-
ção de conceitos. Elaborar conceitos, ao contrário do que possa pare-
cer, não é simplesmente dar novos nomes aos fatos e fenômenos que
já foram categorizados por outrem.
Ao contrário, um conceito especifica um modo singular de enxer-
gar os fenômenos. Isso significa, em outras palavras, que o concei-
to não busca corresponder a uma realidade exterior e nomeá-la de
algum modo. O conceito serve para determinar e apontar um novo
modo de enxergar a realidade e os fenômenos que a constituem.
Todavia, a tarefa da filosofia não pode se fechar em si mesma es-
tipulando ser a única verdade possível dos fatos. Pelo contrário, um
dos objetivos do pensamento de Deleuze é implodir a identidade na
filosofia em favor da multiplicidade.

159
Por isso, o título de uma de suas célebres obras é Mil platôs: a filo-
sofia, para ele, não pode mais se constituir a partir de um único pla-
tô, isto é, de um fundamento unívoco a partir do qual uma árvore se
constituiria.
A metáfora da árvore e de seu fundamento raiz é, para Deleuze, im-
portante para entender sua proposta. Uma filosofia que se constitui
como uma árvore comum, constitui como seu fundamento uma raiz
única que comanda e controla o crescimento da árvore toda. Nesse
sentido, ela é comandada pela racionalidade do Uno e da unidade:
a árvore é uma, de uma espécie singular e dela nada pode devir dife-
rente.
A proposta de Deleuze, por outro lado, é que a filosofia deva se
constituir a partir de uma raiz rizomática: diferentemente da raiz co-
mum, o rizoma desconhece princípios e fins, se estabelece sempre
como meio. Não há centralidade no rizoma, nem hierarquia: ele é a
multiplicidade em si mesma. Sobre seu funcionamento, dizem Deleu-
ze e Guattari:

1° e 2° - Princípios de conexão e heterogeneidade: qualquer ponto


de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo.
[...]
3° - Princípio de multiplicidade: é somente quando o múltiplo é
efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele
não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como
objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e
mundo. [...]
4° - Princípio de ruptura assignificante: contra os cortes demasia-
do significantes que separam as estruturas, ou que atravessam
uma estrutura.
5° e 6° - Princípio de cartografia e de decalcomania: um rizoma não
pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo
(DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 22-29).

160
Buscando um rompimento com o pensamento identitário do Uno,
as propostas de Deleuze para a filosofia partem de uma multiplicida-
de radical, que pensa a diferença como a constituinte fundamental
do pensamento.
Por isso, além de multiplicidade, é fundamental para o pensamen-
to de Deleuze a noção de devir. Isso significa não somente a ação do
tempo nas coisas que, de fato, transforma-as – ou no mínimo, as en-
velhecem.
Devir é, sobretudo, um encontro com o outro. Nesse encontro, não
há mais como um eu continuar a ser si mesmo, nem o outro continuar
a ser o outro. Os devires se estabelecem no encontro de um e outro –
sejam eles humanos ou apenas seres vivos.
O exemplo de Deleuze em Diálogos é de uma vespa que encontra
uma orquídea e que, a partir de tal momento, modificam-se mutua-
mente. Assim, o devir é uma espécie de dupla captura, que modifica
tanto o eu quanto o outro com quem me encontro.
Ele também faz surgir o desejo que, para Deleuze, é fundamental
para o corpo humano. Outra obra fundamental, escrita em parceria
com Guattari, diz respeito justamente a essa relação entre o corpo e
o desejo.
Em uma feroz crítica à psicanálise de Freud, O anti-édipo visa cons-
truir um espaço de liberação total do desejo, contra sua repressão
clínica. Essa diversidade de temas e percursos de Deleuze reforça a
ideia de que seu pensamento defendeu e tentou se sustentar a partir
de uma multiplicidade teórica.
Outra prova disso são suas incursões no pensamento sobre o ci-
nema. A partir de um pensamento múltiplo, complexo e profundo,
Deleuze marcou a história do séc. XX como um dos mais criativos filó-
sofos pós-estruturalistas.

161
3.7. FILOSOFIA ANALÍTICA
Ao lado (e muitas vezes ao largo) de toda a tradição que abordamos
anteriormente, concentrada sobretudo na Europa, um novo modo de
fazer filosofia surge na contemporaneidade: a filosofia analítica.
Em linhas gerais, essa filosofia se concentra nas universidades
inglesas e estadunidenses e se preocupa com problemas lógicos e
linguísticos. Ainda que importantes representantes seus, como Wit-
tgenstein, não sejam de origem anglo-saxã, é notável o desenvolvi-
mento e o florescimento da filosofia analítica na Inglaterra e nos Es-
tados Unidos.
As raízes dessa relação geográfica com o tipo de filosofia datam da
Idade Média e da formação das primeiras universidades a partir de
diferentes teologias conforme as ordens monásticas.
Na Inglaterra, terra de grande influência dos franciscanos, a Uni-
versidade de Oxford se desenvolveu com grande proeminência nos
estudos das ciências naturais e na observação empírica. Por ilustra-
ção, devemos lembrar que os mais radicais filósofos empiristas, Fran-
cis Bacon e David Hume, eram ingleses.
Relacionada à ligação entre os ingleses e as ciências naturais, a
filosofia analítica surge na contemporaneidade como modo de apro-
ximação do discurso filosófico com as leis lógicas que regem a vida
humana e a natureza.
Diferentemente da filosofia continental, que opta por fazer filo-
sofia em um profundo diálogo com a história da filosofia, a filosofia
analítica nutre certo desprezo por assuntos históricos priorizando a
análise lógica de sentenças e afirmações filosóficas.
Ainda que a história da filosofia e o diálogo com a tradição não
sejam primordiais para essa corrente filosófica, seu ponto de insur-
gência, que culminou em uma ruptura com a tradição, se deve a uma
crítica contra o idealismo continental.

162
Sobretudo os herdeiros de Hegel, que absolutizaram seu idealis-
mo, foram criticados sob o ponto de vista do positivismo lógico que
começava a se reunir no Círculo de Viena.
As palavras de Marcondes sobre o tema clarificam os objetivos do
grupo reunido em Viena e os principais objetivos da filosofia analítica
que se constitui a partir dele:

O positivismo lógico caracteriza-se pela preocupação com a fun-


damentação da ciência em uma linguagem lógica e em bases em-
píricas, eliminando os elementos metafísicos (como essências e
formas) e psicológicos (como ideias e representações mentais),
considerados inverificáveis, ou seja, fora do alcance do teste empí-
rico, adotado como critério de validade das teorias científicas. Em
termos gerais, a filosofia analítica pode ser caracterizada por ter
como ideia básica a concepção de que a filosofia deve realizar-se
pela análise da linguagem. Sua questão central seria então, pelo
menos em um primeiro momento, “Como uma proposição tem
significado”? É nesse sentido que, nessa concepção de filosofia,
o problema da linguagem ocupa um lugar central (MARCONDES,
2004, p. 12)

De modo geral, a filosofia analítica se faz por meio da análise ló-


gica de proposições. As proposições são afirmações que podem ser
avaliadas quanto ao seu valor de verdade, isto é, podem ser julgadas
se são verdadeiras ou falsas. Assim, se alguém fala que “a lua é feita
de queijo”, podemos analisar as condições dessa proposição para que
julguemos se ela é verdadeira ou falsa. Nesse ponto, a análise deve
ser reconhecida como principal instrumento dessa filosofia que, de-
vemos sublinhar, se reconhece como analítica.
Há, pelo menos, duas diferentes concepções de análise que po-
dem nos auxiliar no entendimento dessa corrente.
Na primeira, a análise diz respeito à verificação da correspondên-

163
cia entre os signos linguísticos de uma proposição (em texto ou fala) e
a realidade. Assim, para analisar a proposição “a lua é feita de queijo”,
deve-se entender o que o falante entende por “lua” e por “queijo” e,
por meio de observações empíricas desses dois objetos, verificar se
realmente a lua é feita de queijo.
Na segunda concepção de análise, a correspondência com a rea-
lidade não é essencial, de modo que analisar o valor de verdade de
uma proposição não passa de verificar e clarificar o seu conteúdo e os
sentidos internos que essa proposição carrega consigo.
Outra importante característica que marca fundamentalmente a
filosofia analítica é o uso de experimentos mentais.
Como utilizamos acima, na proposição fictícia sobre a composição
geológica da lua, os experimentos mentais são situações postuladas
pelos filósofos analíticos para que, a partir do uso da imaginação e da
intuição lógica, problemas filosóficos sejam resolvidos ou clarificados.
Esse é o caso de E. Gettier, filósofo estadunidense que, em um ar-
tigo de apenas três páginas, abalou o mundo da epistemologia, que
ainda se baseava em um diálogo de Platão.
Nesse artigo, Gettier questiona o conceito de que conhecimento
seja “crença verdadeira justificada” por meio de dois experimentos
mentais nos quais demonstra que, apesar de seus personagens pos-
suírem crenças verdadeiras e justificadas, eles não possuem conheci-
mento nos moldes que a epistemologia postulava.
Ainda que nenhum dos casos narrados por Gettier tenham, de
fato, acontecido historicamente, a genialidade de seus experimentos
mentais foi suficiente para que a teoria do conhecimento de Platão
passasse a ser considerada minimamente com suspeição ou até mes-
mo refutada.
Ao contrário da filosofia continental, a densidade de grandes volu-
mes em obras não é apreciada pela filosofia analítica, de modo que
um artigo de poucas páginas é considerado tão fundamental quanto

164
longos tratados. A argumentação, na filosofia analítica, é valorizada
na medida em que apresenta com clareza e distinção as proposições
de forma lógica e direta. Essa é, para citar um exemplo, a fonte da for-
te crítica que o analítico R. Carnap realizou ao obscuro pensamento
de M. Heidegger.
Dentre os principais nomes da filosofia analítica, podemos apre-
sentar alguns fundamentais para seu desenvolvimento e reconheci-
mento no mundo filosófico.
Gottlob Frege (1848-1925) buscou formulações matemáticas e de-
fendeu o logicismo como parte fundamental do fazer filosófico. Além
de suas críticas ao idealismo, Frege realizou uma profícua discussão
sobre os sentidos do termo “significado”, fato que contribuiu grande-
mente para a formulação de uma filosofia da linguagem.
Bertrand Russell (1872-1970) teceu críticas a Frege demonstrando
como uma parte fundamental de sua teoria dos significados possuía
um paradoxo incontornável que, ao ser clarificado, abria espaço para
contribuições além do tema da linguagem, estendendo as reflexões
analíticas para a filosofia da ciência e da mente.
Ludwig Wittgenstein (1889-1951), possivelmente o mais importan-
te filósofo analítico da história dessa corrente filosófica, embora fosse
austríaco, fez sua carreira na universidade de Cambridge, na qual foi
professor até o fim da vida.
Inspirado por Frege e Russell, mas também em diálogo com a filo-
sofia crítica de Kant, Wittgenstein publica sua primeira grande obra
em 1921 sob o título de Tractatus logico-philosophicus (tratado lógico-
filosófico) na qual aborda os limites da filosofia analítica da lingua-
gem, bem como os princípios da lógica e da ontologia.
Nessa obra encontram-se as famosas citações: “Os limites de mi-
nha linguagem significam os limites do meu mundo” (WITTGENSTEIN,
2017, p. 229) e “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”
(WITTGENSTEIN, 2017, p. 261).

165
Posteriormente, em 1953, publica sua segunda principal obra, In-
vestigações filosóficas, na qual diverge em método e reavalia diversas
questões publicadas anteriormente por ele. São proeminentes ques-
tões sobre o funcionamento da linguagem e sobre o método filosó-
fico – que não é mais somente análise da linguagem, mas método
elucidativo dela.
Mais recentemente, filósofos analíticos como Richard Rorty (1931-
2007) têm se aproximado da filosofia continental com vistas a formar
pontes e estabelecer diálogos entre os dois modos de fazer filosofia.
Ainda que esse esforço seja limitado, são interessantes as tentativas
de Rorty no sentido de pensar uma ética analítica baseada na solida-
riedade, tese que o levou a um profícuo diálogo sobre filosofia e re-
ligião com Gianni Vattimo, ou mesmo de comparar noções analíticas
e continentais acerca da linguagem, como fez em um ensaio sobre
Wittgenstein e Heidegger.
Sua obra mais conhecida, A filosofia e o espelho da natureza, de
1979, criticou a noção de verdade como correspondência, tão funda-
mental à tradição analítica, dizendo que a verdade não pode mais ser
tomada como a tentativa de desenhar a natureza em um espelho.
Em geral, não é equivocado dizer que a filosofia analítica é um
mundo à parte das discussões continentais. Embora haja alguma
abertura, a filosofia analítica continua fechada em si mesma, e sem
diálogo com a história da tradição filosófica.

166
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Para conhecer melhor os filósofos apresentados, indicamos pri-
meiramente duas introduções à história da filosofia. Em segundo lu-
gar, indicamos uma coleção de livros que trata sobre autores especí-
ficos, também em caráter introdutório.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Dos pré-socrá-
ticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
PECORARO, Rossano. Os filósofos: clássicos da filosofia (v. I - de Só-
crates a Rousseau; v. II - de Kant a Popper; v. III - de Ortega y Gasset a
Vattimo). Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Vozes, 2008.
Coleção Figuras do saber, dirigida por Richard Zrehen. São Paulo:
Estação Liberdade.

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