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PAULO

V ID A E OBRA
GÜNTHER BORNKAMM

PAULO
V ID A E OBRA

Tradução de
Bertilo Brod

Santo André

2009

ACADEMIA
CRISTÃ
© Editora Academia Cristã
© Verlag W. Kohlhammer GmbH

Dados do original:
G ünther Bornkam m . Paulus. 7a ed. com com plementos bibliográficos.
S tu ttg a rt/B e rlin /K õ ln : W. Kohlham m er, 1993.

Supervisão Editorial:
L u iz H enriq ue A. Silva
Paulo C appelletti

Layout, e arte final:


Pr. Regino da Silva N ogueira

Tradução:
B ertilo Brod

Revisão da tradução:
N é lio Schneider

Assessoria para assuntos relacionados a Biblioteconomia:


Neusa Pedroso M ateus Gomes

Bornkam m , G ünther
Paulo: V id a e Obra / G ünther B ornkam m ; tradução: B ertilo
Brod - Santo A n d ré : Editora Academ ia Cristã Ltda, 2009.

14x21 cm: 422 páginas

ISBN 978-85-98481-27-2
C D U 227.1.017

índice para catálogo sistemático:

I - Bíblia-N T - Paulo - 227.1.017

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Sumário

APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA................. 09

PREFÁCIO DO A U T O R ................................................... 13

PREFÁCIO À 4a E D IÇ Ã O .................................................15

TÁBUA CRONOLÓGICA ............................................... 17

INTRODUÇÃO ................................................................. 19

P r im e ir a P a r t e
V ID A E OBRA

1. ORIGEM E CONTEXTO. PAULO ANTES DA


SUA CONVERSÃO..................................................... 43
2. O PERSEGUIDOR DA COMUNIDADE.
CONVERSÃO E V O C AÇ Ã O ...................................... 57
3. PRIMEIRA ATIVIDADE MISSIONÁRIA....................76
4. A CONVENÇÃO DOS APÓSTOLOS EM
JERUSALÉM.................................................................83
5. A PRIMEIRA INCURSÃO EM CHIPRE E N A
ÁSIA MENOR. O CONFLITO EM A N T IO Q U IA ....101
6. O HORIZONTE UNIVERSAL DA MISSÃO
P A U LIN A ....................................................................109
6 Paulo, V ida e O bra

7. AS PRIMEIRAS COMUNIDADES N A GRÉCIA:


FILIPOS, TESSALÔNICA E ATENAS.......................123
8. CORINTO........................................ 134
9. ÉFESO.......................................................................... 148
10. A EPÍSTOLA AOS ROMANOSiO TESTAMENTO
DE PAU LO ................................................................. 160
11. Ú LTIM A VIAGEM A JERUSALÉM. PRISÃO E
MORTE ...................................................................... 172

S e g u n d a P arte
MENSAGEM E TEOLOGIA

I - PAULO E A MENSAGEM DE CRISTO DA


COMUNIDADE PR IM ITIVA..................................... 187

II - O SER H U M A N O E O M U N D O EM SUA
SITUAÇÃO DE PERDIÇÃO.......................................202
1. A L e i........................................................................202
2. O ser humano e o mundo.......................................214

III - O EVENTO SALVÍFICO......................................... 222


1. A justiça de Deus....................................................224
2. A graça....................................................................228
3. A fé ..........................................................................231
4. Evento salvífico e história da salvação..................237
5. Viver na fé .............................................................. 244
6. Em C risto................................................................ 249

IV - A PRESENÇA DA SALVAÇÃO............................. 252


1. A palavra................................................................ 252
2. Ministério e sofrimentos do apóstolo....................261
3. A igreja....................................................................279
a) Ekklesía............................................................. 279
b) O Espírito....................... 284
Sumário 7

c) Espírito e d ire ito ............................................... 286


d) O culto d iv in o ...................................................292
e) Batismo e ceia do Senhor..................................296
f) O corpo de C risto ............................................. 303

V - FUTURO E PRESENTE (ESCATOLOGIA E


ÉTICA)........................................................................ 306
1. O tempo da fé ........................................................ 306
2. Viver pela graça..................................................... 312
3. Posição no mundo e distanciamento do mundo.... 319
4. Sede submissos à autoridade!............................... 325
5. O am or....................................................................333
6. A esperança............................................................ 338

CONCLUSÃO
Paulo e Jesus...............................................................349

ANEXO I
Epístolas de Paulo: autênticase não autênticas.........365

ANEXO II
Problemas de crítica literária nas epístolas aos
coríntios, aos filipenses e aos romanos......................369

ANEXO III
Cristologia e justificação.................................................375

BIBLIOGRAFIA...............................................................379

ÍNDICE DE AUTORES....................................................395

ÍNDICE DOS TEXTOS BÍBLICOS E


EXTRABÍBLICOS....................................................... 401
Apresentação à
Edição Brasileira

G ünther Bornkamm (1905-1990), professor de Novo


Testamento na Universidade de Heidelberg, foi um dos
mais proeminentes discípulos do grande erudito alemão
do Novo Testamento, R udolf Bultm ann , cuja contribuição
à erudição do Novo Testamento estabelece a agenda para
a pesquisa ulterior do Novo Testamento para as próximas
duas ou três gerações. Os discípulos de Bultm ann continu­
ariam a guiar o caminho da erudição do Novo Testamento,
principalmente mediante sua interação com e na crítica das
principais teses de Bultm an n .
Bornkamm é muito conhecido fora da Alemanha por
sua biografia de Jesus de Nazaré (1956). Esse livro inau­
gurou o início de uma nova fase na utilização dos Evan­
gelhos como fontes para o nosso conhecimento da missão
do próprio Jesus em reação à insistência de Bultm ann ,
de que não era possível escrever uma biografia de
Jesus, Bornkamm igualmente insistiu que poderia ser dito
o suficiente sobre o contexto histórico de Jesus, sobre sua
pregação, sobre o discipulado para o qual ele foi voca­
cionado, sobre sua última viagem para Jerusalém, sobre
seu sofrimento e morte, e até mesmo sobre a fé messi­
ânica e expectativas que ele suscitou, para-um livro des­
critivo e analítico para ser escrito e intitulado apropria-
10 Paulo, V ida e O bra

damente de Jesus de Nazaré. O livro foi escrito num estilo


popular, com um modesto número de notas de rodapé,
prontamente acessível aos leitores com apenas conheci­
mentos básicos dos temas. Logo foi traduzido para outras
línguas e causou uma grande impressão em toda uma
geração de estudiosos, clérigos e laicos.
Bornkamm adicionou a esse grande sucesso com um
livro similar a respeito de Paulo, primeiramente publicado
em 1969, por Verlag Kohlhammer em Stuttgart. Essa obra
foi escrita no mesmo estilo fácil, mas desta vez, sem quais­
quer notas de rodapé ou notas finais.1Enquanto outros en­
tendiam que era necessário escrevê-las em maior quantida­
de, particularmente sobre a teologia de Paulo, Bornkamm
foi capaz de canalizar os frutos de sua extensa erudição di­
retamente em uma prosa e eminentemente palatável, sem
sobrecarregar o leitor com discussões intermináveis com
outros especialistas em Paulo. O volume está dividido em
duas grandes partes: A Parte Um, a vida e obra de Paulo;
a Parte Dois, o Evangelho e Teologia de Paulo. A prim ei­
ra apresenta um tratamento biográfico conciso de Paulo.
Afinado com o principal consenso na época de Bornkamm
coloca mais ênfase sobre a influência da cultura grega da
educação de Paulo e devota mais peso à ideia de uma Diás-
pora judaica da missão pré-paulina entre os gentios do que
é atualmente geralmente considerada como historicamente
apropriada. Ele comparte a típica suspeita germânica da
confiabilidade histórica de Atos dos Apóstolos para coletar
informações acerca da carreira de Paulo, ainda que sensa­
tamente ache que seja inevitável extrair uma boa quantia
de material de Atos. Ele corretamente enfatiza a ruptura
que o entendimento do evangelho e missão de Paulo im pli-

1 Nota do editor: Nessa nova edição foi acrescentada uma bibliografia complementar
feita por Gerd Theissem.
Prefácio à Edição Brasileira 11

cava, e a representação de Paulo de uma verdadeira visão


universal (Cristo como Senhor de todos; o evangelho para
todo aquele que crê). Seu foco sobre a missão de Paulo em
Corinto e Éfeso reflete bem a importância desses centros
urbanos para a missão de Paulo no Egeu, e sua aborda­
gem a Romanos como o "Testamento de Paulo" reflete
bem o caráter da carta mais importante de Paulo. A Parte
Um, então, dá uma descrição geral da vida e missão de
Paulo que ainda serve como uma excelente apresentação
de Paulo.
A Parte Dois é um tratamento luterano clássico da
teologia de Paulo. Segue o padrão comum, exposto pelo
próprio Paulo em Romanos, em olhadelas à perdição do
homem, o evento salvífico, a presente salvação, a escatolo-
gia e a ética. Esse foi um esquema que serviu à perspecti­
va Reformada a respeito de Paulo por várias gerações, e o
tratamento de Bornkamm sumariza muito bem, e em nível
franco, epitoma essa perspectiva. Típico é o grau em que o
evangelho e a Lei são dispostas em antítese e seu foco sobre
a justificação pela fé em sua poderosa realidade existen­
cial - não simplesmente uma proposição catequética a ser
aprendida e professada. Também típico é sua compreensão
da Justificação de Deus como uma dádiva, mas ele também
dá uma ênfase central à mensagem do evangelho do novo
ser "em Cristo". Tipicamente luterano também é a sua ên­
fase sobre a teologia da cruz em Paulo e o elemento "ainda
não" da existência terrena do crente. Mas tudo isso é ex­
presso em um tom triunfalista, e ele é ágil tanto em apontar
quando a vibrante teologia de Paulo foi paralisada quanto
em sublinhar a perene relevância de vários pontos-chave.
Bornkamm dificilmente seria culpado por om itir outras di­
mensões da teologia de Paulo que foram inauguradas a
partir de sua época. Sua reafirmação das perspectivas mais
antigas mostra sua consciência da rica diversidade do pen-
12 Paulo, V ida e O bra

sarnento de Paulo. São de interesse, pelo menos, sua aber­


tura para o tratamento do evangelho pré-Paulino da igreja
prim itiva, e sua comparação concludente dos evangelhos
de Paulo e de Jesus. E em cada estágio da apresentação en­
contramos idéias "afiadas" e ainda relevantes oferecidas
em termos diretos.
O Paulo de Bornkamm permanece uma apresentação
efetiva da vida e teologia do prim eiro e maior teólogo cris­
tão, tão boa para quantos desejem começar a tarefa fasci­
nante e recompensadora de se familiarizarem-se com aque­
la vida e do fazer sua própria teologização em diálogo com
Paulo.

(Janeiro de 2009)
Hlazinho RodriQuesI
James D . G. D u n n
Prefácio do Autor

O presente livro propõe alguns desafios ao leitor. Talvez


menos ao teólogo familiarizado com a pesquisa mais recen­
te, do que ao "leigo", para quem o texto foi pensado em igual
medida. Neste trabalho, o leitor não irá encontrar muitos
elementos e episódios geralmente encontradiços na tra­
dição da igreja, sobretudo a partir do livro dos Atos dos
Apóstolos. Por razões expendidas logo no início, far-se-á,
aqui, uso parcimonioso e crítico deste livro do Novo Tes­
tamento. Outrossim, no aproveitamento das epístolas pau-
linas, pretende-se, em larga escala, palmilhar caminhos in­
sólitos.
Mas é, sobretudo no estudo e na reflexão compartilhada
da teologia paulina que se exige grande paciência e dispo­
nibilidade. No entanto, um pensador do quilate e do nível
do apóstolo Paulo não se torna mais fácil do que ele de fato é.
Portanto, não admite simplificações. Esforcei-me em não
apenas citá-lo, mas também em desafiar o leitor para que
participe do processo de questionamento e de compre­
ensão.
No concernente à teologia paulina, muitos temas e re­
flexões se imbricam tão solidamente que o leitor não deve
esperar uma abordagem exaustiva de cada uma das séries
de pensamentos indicadas nos títulos. Não raras vezes, sua
plena discussão ocorrerá tão-somente em outros contextos
e ao ensejo da abordagem de outras palavras-chaves.
14 Paulo, V ida e O bra

O caráter e a reduzida delimitação do livro impossi­


bilitam, em cada caso, proceder cuidadosamente a inter­
pretações e análises discordantes, em todos os seus prós e
contras.
O leitor perito constatará, a cada passo, o quanto sou
devedor do trabalho de outros, mesmo não citados expres­
samente, e em que medida a minha compreensão e ava­
liação se solidificaram através do meu contato com a pes­
quisa, antiga e recente. Quem não é do ramo, sentir-se-á
feliz em não ter que percorrer todos os seus caminhos e
descaminhos.

Heidelberg, maio de 1969.

G ünther Bornkamm
Prefácio à 4â Edição

O diálogo judeu-cristão, que por longo tempo havia


silenciado, foi retomado nos últimos anos, não por últim o
graças ao efeito extraordinário e salutar das transmissões
televisivas sobre o holocausto, e, como era de se esperar,
também a vida, a atuação e o pensamento de Paulo tornou-
se foco de interesse renovado. Não obstante, nem o tratado
de K rister Stendahl , Paul Among fezvs and Gentiles (1976),
que diverge bastante da minha posição sobretudo na com­
preensão da Carta aos Romanos, motivou-me a modificar
a quarta edição deste livro. No entanto, espero que ele seja
lido com uma atenção tanto mais aguçada e crítica e que
possa contribuir para o tão desejado diálogo franco tam­
bém no futuro. Porque, do "não dito" - ou ao menos a ser
dito de maneira nova - que, de acordo com a bela palavra
de M. Buber, devemos uns aos outros, incontestavelmen-
te faz parte, em primeira linha, também a mensagem de
Paulo.

Heidelber, novembro de 1979

G ünther Bornkamm
Tábua Cronológica

A única data efetivamente histórica para a crono­


logia do apóstolo Paulo é fornecida por uma referência
ao procônsul L. J. G álio (A t 18.12), um irmão de Sêneca,
cujo período proconsular na Acaia se situa na primavera
do ano 52 (ou, menos provavelmente, na primavera de
53), de acordo com uma inscrição descoberta em Delfos.
Todas as demais datações, tanto anteriores como poste­
riores, para as quais existem indicações incompletas e
nem sempre precisas nos Atos dos Apóstolos e nas epís­
tolas de Paulo relativas a períodos da sua vida, devem
ter como ponto de referência esta data histórica. Em ca­
sos particulares, é preciso conceder uma certa margem
de tempo.
A mais recente e acurada abordagem da cronologia
paulina foi realizada por D. G eorgi, em Die Geschichte der
Kollekte des Paulusfür Jerusalem (1965, pp. 91-96), onde pode
ser encontrada uma bibliografia pertinente mais ampla.
No essencial, as indicações cronológicas do presente texto
coincidem com as conclusões deste autor. Estas conclusões
se restringem a algumas datas marcantes, entre as quais
devem ser intercalados os outros acontecimentos referidos
neste livro:
18 Paulo, V ida e O bra

Tábua Cronológica

Crucificação de Jesus em torno do ano 30


Ano do nascimento de Paulo desconhecido (provavelmente, na
passagem do século)

Conversão e vocação em tomo do ano 32


Convenção dos apóstolos ano 48 (49?)
Paulo em Corinto 18 meses (inverno de 49/50 - verão de 51)

Paulo em Éfeso mais ou menos, durante dois anos e


meio, provavelmente de 52 a 55

Últim a estadia na Macedônia e provavelmente, no inverno de 55/56


na Acaia
Viagem a Jerusalém e prisão primavera de 56

Transferência do prisioneiro provavelmente, em 58


para Roma
rrisão romana de dois anos provavelmente, de 58 a 60

M artírio de Paulo, sob o provavelmente, no ano de 60


imperador Nero
IN T R O D U Ç Ã O

Paulo em suas epístolas


e nos Atos dos Apóstolos

Nenhuma outra figura do cristianismo prim itivo


emerge na história aureolada ao mesmo tempo de luz e de
penumbra quanto o apóstolo Paulo. Sabemos pouco a res­
peito de muitos outros personagens, até mesmo do círculo
mais íntimo de Jesus. Quando muito, conhecemos os seus
nomes e algumas datas da sua história. A maioria perma­
nece para nós no escuro, por mais que as lendas se tenham
esforçado para dar-lhes uma auréola de luz.
Mesmo em torno da figura de Jesus, o historiador está
numa situação mais incômoda e difícil do que a respeito
de Paulo, já que o prim eiro não nos deixou nenhum do­
cumento escrito. O que dele sabemos passa pelos evange­
lhos, retrocedendo até a tradição oral da comunidade pós-
pascal, e está intimamente assentado em seu testemunho
de fé, a ponto de, muitas vezes, ser impossível diferenciar
relato histórico e profissão de fé da comunidade cristã p ri­
m itiva. Nossos conhecimentos referentes ao Jesus históri­
co são, por conseguinte, amplamente incertos e cheios de
lacunas.
Relativamente ao apóstolo Paulo, as fontes jorram com
maior riqueza e são de outro feitio. As mais importantes
20 Paulo, V ida e O bra

são suas próprias epístolas, que a igreja conservou, em bom


número, no Novo Testamento. Dos 27 escritos do cânon
neotestamentário, nada menos do que 13 trazem o seu
nome. Dentre estes, existem evidentemente alguns que, de
acordo com a investigação crítica mais recente, não são d i­
retamente da sua autoria, mas foram escritos em época pos­
terior a Paulo, segundo o modelo das epístolas autênticas, e
a ele atribuídas, a fim de salvaguardar o seu legado apostó­
lico ou para se apropriar da sua autoridade apostólica. As
razões a favor ou contra a autenticidade de cada uma das
epístolas não podem ser discutidas pormenorizadamente
neste momento (para isso, veja-se o Anexo /). Por ora, nos
contentamos em fornecer a enumeração daquelas epístolas
que, daqui para frente, consideraremos genuínas.
Numa ordem cronológica, em alguns casos baseada
apenas na probabilidade e não na certeza, são as seguin­
tes: a Primeira Epístola aos Tessalonicenses, as cartas do
apóstolo à comunidade de Corinto (provavelmente, uma
coleção da sua correspondência mais ampla, atingindo um
período maior, endereçada a esta comunidade), as epísto­
las aos Gálatas, aos Filipenses, a Filemon e, por último, sua
grande Epístola aos Romanos. De todas elas se falará no
transcorrer da nossa exposição da história de Paulo.
Dentre as epístolas deuteropaulinas, isto é, escritas sob
seu nome, contamos, de acordo com a maioria dos pesqui­
sadores, hoje, as assim denominadas "Cartas Pastorais",
vale dizer, instruções em formato epistolar, a Timóteo e a
Tito a respeito do "ministério pastoral" e do ordenamento
das comunidades, bem como as epístolas, objeto de críticas
mais acirradas, aos Colossenses e aos Efésios, bem como a
Segunda Epístola aos Tessalonicenses.
Mesmo à luz de um exame severamente crítico, perma­
nece, de qualquer forma, um balanço altamente significati­
vo e importante de documentos autênticos. Eles nos apre-
I ntrodução 21

sentam Paulo e sua mensagem imediatamente próximos,


fornecem uma imagem muito viva da sua ação e da sua
luta, dos seus sucessos e fracassos, das suas experiências e
do seu modo de pensar e, concomitantemente, nos colocam,
de forma extraordinária, ao corrente da história do cristia­
nismo prim itivo. Escritos na década de 50 do primeiro sé­
culo, são, outrossim, fontes históricas de primeira ordem,
constituindo-se, até mesmo, nos documentos mais antigos
e historicamente mais confiáveis concernentes à igreja p ri­
mitiva, várias décadas mais antigos do que os evangelhos,
os quais relatam o anúncio e a história de Jesus.
Não apenas para a sua mensagem e sua teologia, mas
também para a sua história, da qual nos ocuparemos em
primeiro lugar neste livro, são as epístolas de Paulo as fon­
tes primárias e determinantes, em cuja luz devem ser in­
terpretadas todas as notícias que se podem obter alhures a
seu respeito. Evidentemente, suas epístolas não são nenhu­
ma autobiografia, e sim, textos escritos com a finalidade de
responder à missão da qual fora investido o apóstolo. Sua
pessoa cede lugar à sua causa.
Além disso, estes documentos estão todos históri­
ca e contextualmente condicionados, tendo surgido num
período bem definido, isto é, na última fase da sua vida,
quando, na verdade, ele ainda se encontrava no auge da
sua atuação, mas também já se aproximava do término da
sua existência. Portanto, não se pode, de antemão, extrair
deles informações regulares de todos os períodos da sua
vida. Amplos espaços da sua história pessoal não podem
mais ser reconstruídos, tendo como base as epístolas pauli-
nas, e a respeito de pormenores da sua vida podemos fazer
somente suposições ou deduções a partir de alusões oca­
sionais.
Estas lacunas parece terem sido preenchidas em v ir­
tude do Novo Testamento nos apresentar uma segunda
22 Paulo , V ida e O bra

importante fonte, os Atos dos Apóstolos (no cânon latino:


Acta Apostolorum). Mais da metade deste livro, que é o mais
volumoso do Novo Testamento e que foi escrito pelo mes­
mo autor do Evangelho de Lucas, ao qual está expressa­
mente relacionado no prólogo (At l.ls .) como uma obra
histórica, se ocupa especificamente da atuação e do des­
tino de Paulo. Portanto, não admira que, de uma maneira
natural, se tenha cristalizado a prática de se ater aos Atos
dos Apóstolos para reconstruir a história do apóstolo, ao
passo que o recurso às epístolas se destinava apenas para
o entendimento da sua doutrina. Em consequência disso,
a imagem usual de Paulo, presente na tradição eclesiásti­
ca, recebeu sua configuração prevalentemente a partir dos
Atos dos Apóstolos.
Hoje, em razão das conclusões a que chegou a investi­
gação recente, já não é mais admissível esta prática. A sua
justificativa ficou abalada através da comprovação convin­
cente de que a obra histórica de Lucas, em primeira ins­
tância, deva ser interpretada como um documento da sua
época, vale dizer, do período pós-apostólico. Neste e para
este período escreve Lucas, em torno do fim do primeiro
século. Portanto, mais de 40 anos após a compilação das
epístolas paulinas. Mais importante do que esta pequena
distância temporal - pequena para nossos conceitos - é a
constatação de que a época em que foi escrito o livro dos
Atos dos Apóstolos já estava significativamente distante
das situações e acontecimentos, dos conflitos e das concep­
ções contrastantes da época prim itiva, das quais, ao invés,
as epístolas paulinas dão rico testemunho. No momento
em que os Atos dos Apóstolos foram compilados, aquelas
situações, em grande parte, já tinham sido superadas, solu­
cionadas e esquecidas. Algumas estavam presentes na me­
mória somente de modo impreciso e não poucas haviam
sido suprimidas pela tradição. Na verdade, um novo enten-
I ntrodução 23

dimento da mensagem da salvação, da fé cristã, da igreja


e da relação desta com o mundo tivera lugar, a partir de
novos questionamentos, novas concepções e novas tarefas.
Evidentemente, o grande interesse do livro dos Atos
dos Apóstolos precisamente pelo apóstolo Paulo não é, de
forma alguma, fortuito. O ponto de partida do seu autor e
da sua época seria impensável sem o apóstolo. Lucas es­
creve sua obra como grego e cristão convertido do paga­
nismo. A mensagem de Cristo já havia rompido definitiva­
mente as fronteiras outrora controvertidas e asperamente
defendidas entre o privilegiado povo eleito dos judeus e os
pagãos. A igreja, por sua vez, se expandira para além dos
povos do império romano, enquanto o Paulo dos Atos dos
Apóstolos prega o evangelho, no final do livro, "sem im ­
pedimento" (At 28.31) na capital do Império. Lucas palmi­
lha o chão preparado por Paulo. Seu livro contém as mais
variadas ressonâncias do pensamento paulino, ainda que,
muitas vezes, modificadas e simplificadas.
Apesar disso, é possível reconhecer por toda parte que
o processo repleto de tensão que preparou este chão está
no fim. A história da sua origem, da qual as epístolas nos
fornecem preciosas informações, virou passado.
Confirma-se, assim, nos Atos dos Apóstolos, até mes­
mo onde ressoam ecos paulinos, a antiga sentença: quando
dois dizem a mesma coisa, ela já não é a mesma. A his­
tória vista a partir do passado e a história que ainda está
aberta ao futuro e por ser realizada não são simplesmente
idênticas. Na comparação entre os Atos dos Apóstolos e
as epístolas autênticas de Paulo, tem-se a impressão de se
estar diante de um rio que, em seu percurso, se desfez de
muito material e recebeu a contribuição de novas fontes e
de afluentes laterais.
Contra estas colocações, alguém poderá objetar que
Lucas escreve sua obra rigorosamente como historiador e,
24 Paulo, V ida e O bra

ademais, como alguém que foi colaborador e companheiro


de viagem de Paulo (cf. F1 24; Cl 4.14; 2Tm 4.11) e, conse­
quentemente, como testemunha ocular, é garantia de au­
tenticidade daquilo que informa.
Contudo, é possível, por sua vez, contraditar estas
objeções, observando que em nenhum lugar dos Atos dos
Apóstolos consta o nome do seu autor e que a tradição da
igreja, que se consolidou apenas no final do século II, tem
contra si argumentos sólidos, como ficou demonstrado pe­
las pesquisas mais recentes.
Lucas - conservamos seu nome tradicional por razões
de simplificação - escreveu, efetivamente, como historia­
dor, mas não no sentido da historiografia moderna, e sim
da antiga. A esta última não cabe a aplicação da célebre
sentença formulada por Ranke : " o historiador deve tão-
somente informar aquilo que efetivamente aconteceu".
A Antiguidade autorizava um espaço bem mais amplo ao
narrador para dar vazão a seus pensadores artístico-lite-
rários. Precisamente na qualidade de historiador, ele se
socorre de determinados meios expressivos que o histo­
riador moderno não pode, sem mais nem menos, utilizar.
O sucesso do historiador antigo dependia não somente
da forma como ele transmitia a tradição, mas também da
maneira como a reproduzia. Expondo fenômenos e acon­
tecimentos em cenas e imagens expressivas e exemplares,
acrescentava-lhes a sua interpretação, combinando a varie­
dade de elementos num todo e dando relevo ao "sentido
orientador" do acontecido, segundo se externa M. D ibelius.
E indiscutível que ele modifica os elementos da tradição
aos quais teve acesso de uma ou de outra forma, mas, evi­
dentemente, sem os métodos e as normas da experimenta­
ção e do exame crítico desenvolvido pela moderna histo­
riografia. Na verdade, a mera exatidão do fato histórico de
forma alguma constitui o seu critério normativo.
I ntrodução 25

Estas observações se aplicam com justeza também a


Lucas. O leitor da sua obra disso pode se certificar, mesmo
não dominando todo o instrumental científico, se atentar
para a diversidade e heterogeneidade de cada uma das
partes e tópicos do livro. Elas mostram, de imediato, que
a pergunta em torno do valor histórico da narração não
pode ser respondida globalmente. Ao lado de breves e frias
indicações de datas e de nomes de pessoas e de localida­
des - particularmente em relatórios das viagens de Paulo
- encontram-se estereotipadas descrições de situações, por
exemplo, a respeito do crescimento e da vida das comuni­
dades, descrições estas que, em termos literários, exercem
a função de transição e de conexão entre uma situação e
outra.
Outrossim, são encontradiças grandes cenas plastica-
mente pintadas em torno de temas dominantes que descre­
vem a força milagrosa do testemunho cristão, curas e con­
versões deste ou daquele, a superioridade da mensagem de
Cristo sobre a idolatria e a superstição pagãs, a fortaleza e
impavidez dos testemunhos diante de tribunais, sua perse­
verança através do poder de Deus, e temas semelhantes.
Um elemento particularmente saliente em todo o livro
são os bastante numerosos discursos, alguns deles parti­
cularmente extensos, nos quais estão expostas, diante de
judeus ou de pagãos, as verdades fundamentais da men­
sagem cristã à multidão ou às autoridades. Estes discur­
sos - vinte e quatro em seu total, quase um terço do livro
- não são mera transcrição de atas ou excertos de discursos
efetivamente pronunciados. Mas são composições do au­
tor dos Atos dos Apóstolos que as intercala em momentos
culminantes e em lugares de transição do seu livro, sem
preocupação especial com uma diferenciação individual
do respectivo orador, seja ele Pedro, Paulo ou algum outro.
Estas conclusões, sólidas e indubitáveis, se fundamentam
26 Paulo , V ida e O bra

sobre o rico material proveniente da antiga historiografia


que recorria com predileção a estes meios narrativos. Em
todas estas maneiras e possibilidades da criação literárias
mostra-se Lucas como "historiador" no sentido da sua épo­
ca, não podendo, por isso, por mais paradoxal que soe, ser
considerado, justamente aqui, de forma alguma, um teste­
munho autêntico, e sim, tão-somente um relator secundá­
rio (M . D ibelius).
Quando se considera a posição e a maneira de narrar
de Lucas, torna-se compreensível que a imagem de Paulo
e das suas comunidades, quando comparada com a ima­
gem que as epístolas fornecem, se m odificou não insigni­
ficantemente. Desde os primeiros instantes, manifesta-se
a igreja dos Atos dos Apóstolos como aquela comunida­
de viva dos fiéis, em perfeita unidade e comunhão, desde
sempre construída para o universo das nações gentílicas,
dirigida a partir da Igreja-mãe de Jerusalém, representada
pelos Doze apóstolos e, desde a ressurreição e ascensão de
Cristo, guiada com autoridade e em unidade pelo Espírito
de Deus.
Nela se concretizaram as profecias do Antigo Testa­
mento. A ela foi confiada a herança histórica-salvífica per­
dida pelos judeus incrédulos. Desta forma, se expandiu a
igreja, conforme a promessa do seu Senhor (At 1.8), a des­
peito de todas as adversidades e perseguições, de maneira
constante e vigorosa, de Jerusalém aos confins do mundo
pagão.
Sem muita dificuldade, é possível reconhecer que nes­
ta imagem global, mesmo simplificada e idealizada, está
presente realmente a herança paulina. Todavia, de modo
igualmente claro, não há como não reconhecer significati­
vas diferenças de caráter histórico e teológico. Ambos os
aspectos se imbricam e fazem referência a questões não
meramente periféricas, mas realmente fundamentais, como
I ntrodução 27

somente adiante se explicitará em pormenores. Aqui, basta


aludir a algumas particularidades especialmente marcan­
tes e características para o todo: Lucas descreve Paulo, mes­
mo após se ter feito cristão e missionário, com todo relevo
como um fariseu convicto que permaneceu fiel à lei dos pa­
triarcas e à doutrina da ressurreição dos mortos, agora con­
firmada pela ressurreição de Jesus, e que continuava sendo
defendida pelo farisaísmo. Os judeus, ao invés, junto com
a rejeição de Jesus, traíram igualmente suas mais sagradas
tradições (cf., p.ex., A t 26.2s.).
Bem diferentemente é, pelo contrário, o verdadeiro
Paulo, o qual, conforme se depreende especialmente da
Epístola aos Filipenses, abandonou o seu zelo fariseu de
outrora pela justiça que vem das obras da Lei, consideran­
do-o como "perda" e "esterco", a fim de encontrar a salva­
ção somente na fé em Cristo (F13.5s.).
De acordo com esta diferença patente, não nos é, contu­
do, permitido concluir a favor de uma prim itiva tendência
judaizante dos Atos dos Apóstolos. Suas concepções se tor­
naram possíveis, porque a luta entre judaísmo e cristianis­
mo pela validação da Lei perdera importância, e a própria
lei, libertada da sua limitação particularista de outrora, era
entendida agora como um ordenamento divino geral de
valor permanente.
Não menos significativa é a constatação de que os Atos
dos Apóstolos não atribuem a Paulo o nome e a posição
de apóstolo, reservando este título exclusivamente aos
Doze. Naturalmente, isto não ocorre para denegrir Paulo.
Não obstante, fica demonstrada com isso uma mudança
fundamental na compreensão da igreja e do apostolado.
O ministério apostólico é entendido aqui, diferentemente
do que em Paulo, como uma instituição que retrocede ao
Jesus terrestre, limitada aos Doze como seus companheiros
de jornada e testemunhas oculares, respondendo pela legí-
28 Paulo , V ida e O bra

tima tradição e que continua ligada a Jerusalém enquanto


Igreja-mãe.
Paulo, por conseguinte, não é um apóstolo, mas o
grande missionário dos povos pagãos, legitimado por
Jerusalém. Quando se pensa na luta acirrada que o Paulo
histórico teve que enfrentar e sustentar para ser reconheci­
do como apóstolo, de acordo com as referências das suas
epístolas, enfrentando no seio das suas comunidades os
seus opositores e, certamente, as próprias autoridades de
Jerusalém, então é possível fazer uma avaliação do signi­
ficado também desta diferença entre as epístolas e os Atos
dos Apóstolos. Consequentemente, Lucas descreve o rela­
cionamento e os contatos históricos entre Paulo e Jerusalém
de modo diferente daquele por nós conhecido ao lermos
especialmente as epístolas aos Gálatas e aos Romanos.
Outros exemplos destas diferenças dizem respeito aos
conflitos do apóstolo com os judaizantes e os entusiastas,
completamente silenciados por Lucas. Dizem respeito ain­
da ao sentido da sua pregação a respeito da cruz, da qual
depende a concepção que Paulo tem de si mesmo e, em
geral, o seu modo de compreender o significado do ser-
cristão. Esta mensagem a respeito da cruz já não possui
nenhuma relevância nos Atos dos Apóstolos, sendo substi­
tuída, por sua vez, pela imagem do testemunho triunfante.
Considerações análogas poderiam ser levantadas concer­
nentes à escatologia e outras questões teológicas.
As diferenças elencadas não colocam, de forma algu­
ma, em questão o valor histórico dos Atos dos Apóstolos
enquanto tal. Sem dúvida alguma, Lucas recolheu também
muitas notícias genuínas, e nenhuma apresentação da fi­
gura de Paulo poderá prescindir delas. A maneira mais
segura de detectá-las consiste em identificar precisamen­
te aqueles relatos que apresentem, com evidência, menos
adornos lendários, estejam mais imunes à tendenciosidade
I ntrodução 29

do livro e que, ademais, configurem uma maior sobriedade


artístico-literária do autor. Em muitos casos, são justamen­
te aquelas partes do livro que menos chamam a atenção do
leitor e que são facilmente lidas por alto.
A fonte que Lucas utilizou para suas informações não
aparece em nenhuma parte. Quanto a isso, só podemos
levantar hipóteses e fazer suposições. Modelos literários,
como ele atesta tê-los usado para seu evangelho (Lc 1.1-4),
com certeza, não os possuiu para os Atos dos Apóstolos.
Neste campo, ele foi pioneiro. E possível que ele, da mesma
forma que inúmeros historiadores da Antiguidade, tenha
visitado as comunidades mais importantes fundadas por
Paulo, ou tenha tido conhecimento, pela mediação de ou­
trem, de histórias que circulavam sobre Paulo na época do
autor.
Em alguns lugares, a partir de indícios estilísticos
e de conteúdo, o texto indica que o autor pôde utilizar
anotações feitas já por escrito, mesmo não se sabendo a
proveniência e autoria das mesmas. De um modo geral,
porém, não se trata, nestes casos, de trechos muito amplos
e complexos.
Durante muito tempo, a investigação bíblica, no in­
tuito de detectar tal fonte literária mais ampla, se debru­
çou sobre determinadas passagens do livro dos Atos dos
Apóstolos, nas quais a narração passa inopinadamente
da terceira pessoa do singular para a primeira do plural e
onde parece estar falando diretamente um companheiro de
viagem de Paulo (At 16.10-17; 20.5-15; 21.1-18; 27.1-28.16).
Todavia, nem sequer aqui é possível reconhecer uma pro­
va insofismável da utilização de uma fonte, pois, tirando a
aludida característica de estilo, aquelas partes não apresen­
tam nenhuma particularidade de vocabulário e de manei­
ras de narrar em relação ao restante do livro. Outrossim, é
incerta a exata extensão destas “ seções do nós". Acima de
30 Paulo , V ida e O bra

tudo, porém, fica demonstrado que, tendo em vista os pa-


ralelismos com a historiografia antiga, semelhante mudan­
ça de sujeitos da narração constituía um meio estilístico-
literário altamente apreciado e muito em voga para tornar
mais viva a exposição.
Portanto, com justificada razão, substituiu-se a hipó­
tese de uma "fonte na primeira pessoa do plural" por uma
suposição muito mais esclarecedora segundo a qual, em
determinadas seções, foi utilizado uma espécie de "itine­
rário", isto é, um "sucinto diário de viagem" (M. D ib e l iu s ).
Mesmo estando em condições de identificar tão-somente
alguns resquícios destes itinerários, ainda assim é preciso
que lhe seja reconhecido um elevado valor em termos de
fonte histórica primária.
Evidentemente, isto não significa que, aqui ou ali, não
seja possível verificar a existência de evidentes sinais de
uma insuspeita tradição, cristalizada oralmente ou por es­
crito. Até hoje, porém, na questão das fontes, não se chegou
ainda a resultados definitivamente seguros, e certamente,
nem no futuro se chegará a tanto.
Surpreende particularmente o fato de que, em nenhu­
ma parte de toda a obra literária de Lucas, seja possível
supor o conhecimento explícito e a utilização das epísto­
las do apóstolo. Deve-se concluir desta constatação que,
na época da confecção dos Atos dos Apóstolos, ainda não
existia uma coleção de epístolas paulinas, disseminada
em amplos espaços eclesiásticos. Certamente, desde cedo,
algumas epístolas isoladas foram objetos de permuta entre
comunidades mais próximas.
Provas seguras de uma coleção, para a qual fazem re­
ferência outros autores da igreja antiga, são encontráveis
esporadicamente mas em medida cada vez mais crescente
e em contextos mais abrangentes, a partir dos anos 90 do
século I. É mais ou menos neste período que precisa ser
I ntrodução 31

datado o livro dos Atos dos Apóstolos, mesmo se ele pare­


ce ignorar a existência das epístolas paulinas. O fato de o
já existente e concluído Evangelho de Lucas, o últim o dos
três evangelhos sinóticos, redigidos depois do ano 70, ter
sido escrito, com toda certeza, nos anos 80, é uma prova
convincente para esta datação dos Atos dos Apóstolos,
pois o Evangelho de Lucas precede o livro dos Atos dos
Apóstolos.
O que se pode inferir desta análise crítica dos Atos dos
Apóstolos, mesmo tendo apontado apenas para algumas
características essenciais, é que se torna evidente que esta
segunda fonte paulina não se restringe a ampliar e confir­
mar nosso fundamento histórico em torno da fonte, mas
nos coloca também diante de dificuldades especiais. Estas
nos forçam a abandonar o procedimento muito corriqueiro
de fundir os Atos dos Apóstolos e as epístolas paulinas sem
um exame mais crítico. Reclamam, outrossim, uma atitude
restritiva diante do privilegiamento mantido em relação
aos Atos dos Apóstolos.
Este comportamento crítico poderá desconcertar o lei­
tor não crítico da Bíblia e, algumas vezes, parecer exage­
rado aos olhos dos estudiosos de orientação conservado­
ra. De qualquer modo, deve ficar patente que não se trata
de aceitar sem reservas os Atos dos Apóstolos meramente
como base para a história de Paulo, enriquecendo-a ou ilus­
trando-a, aqui e ali, com as epístolas, ou, então, preencher,
sem exame crítico, as lacunas que as epístolas apresentam
com as abundantes informações que provêm dos Atos dos
Apóstolos. Em outras palavras, usar acriticamente uma
fonte onde e quando a outra silencia.
E mérito da investigação recente ter trazido ao co­
nhecimento público o caráter problemático desta combi­
nação usualmente praticada. Esta tentativa de combinar e
harmonizar deslustrou, de modo funesto, os contornos da
32 Paulo , V ida e O bra

figura histórica de Paulo e influenciou prejudicialmente a


compreensão dos problemas históricos e teológicos da sua
mensagem, e da sua atuação, na medida em que eram in­
genuamente simplificados. Nossa postura cautelosamente
crítica, assim espero, se evidenciará tão-somente como o
outro lado de uma confiança fundamentada nas próprias
epístolas paulinas que não constituem somente documen­
tos da sua mensagem e da sua teologia, mas também da
sua história.
Que o legado escrito de Paulo se restrinja exclusiva­
mente às epístolas não constitui apenas um acidente his­
tórico casual, mas possui um significado preciso. Nada
indica que ele tenha tido jamais a intenção, sequer em pen­
samento, de redigir a história de Jesus de Nazaré, à guisa
de evangelho, como o fizeram, algumas dezenas de anos
depois dele, o evangelista Marcos e outros. Dificilmente,
ele pensou também em tecer por escrito comentários a al­
gum livro do Antigo Testamento, como nos são conhecidos
os do seu contemporâneo judeu Filo de Alexandria e de ou­
tros escritores cristãos antigos, ou ainda normas comunitá­
rias, tratados teológicos ou escritos dogmáticos, tais como
existem em grande quantidade desde a igreja antiga.
Até mesmo a Epístola aos Romanos que, talvez, pu­
desse receber a denominação de uma espécie de escrito
doutrinário e como tal foi considerado não poucas vezes,
na verdade, não pode ser inserida em semelhante classi­
ficação. Existem razões de sobejo para este estado de coi­
sas. Paulo era, assim se costuma dizer, e não de todo in­
corretamente, um homem de ação e prática missionárias, e
não um literato. Alguns poderiam ainda acrescentar, mas
sem fundamento, que Paulo nem sequer era um teólogo, e
sim um mensageiro e pregador, atarefado com a execução
do seu gigantesco programa missionário até o retorno de
Cristo que se esperava para breve, e ocupado com tarefas,
I ntrodução 33

questões e lutas concretas. Como poderia ele, nesta situa­


ção, dispor de tempo para elucubrações teológicas e para a
profissão de escritor?
Contudo, esta explicação incide numa confusão de­
sastrada entre o que é correto e incorreto, conduzindo, em
última análise, ao erro. A própria contraposição entre "prá-
xis" e "teoria" é, para Paulo, absolutamente sem sentido.
Acima de tudo, porém, esta elucidação disfarça o quanto
justamente o fato de o apóstolo ter-se expressado unica­
mente através de epístolas está o mais intimamente possí­
vel relacionado com o conteúdo e as características do seu
pensamento teológico.
As suas epístolas são verdadeiras cartas ou correspon­
dências. O leitor moderno, em virtude do uso eclesiástico
no serviço litúrgico, disso, porém, não tem consciência, ao
menos não suficientemente. Para a igreja, praticamente,
elas não são outra coisa senão textos sagrados para leitura
e orações. Certamente, não são correspondências privadas,
de cunho meramente pessoal, mas destinadas a um círcu­
lo maior de ouvintes das suas comunidades, devendo ser
lidas nas assembléias litúrgicas (lTs 5.27), para as quais si­
nalizam as locuções e as expressões de prece e de benção
no início e no fim.
Mas isto não exclui tratar-se efetivamente de verdadei­
ras correspondências. Portanto, nem coleções de sentenças
piedosas e meditações religiosas, nem produções artístico-
literárias, às quais o seu autor, como se pode abundante­
mente verificar de exemplos da história da literatura, desde
a Antiguidade, teria apenas dado uma roupagem em for­
ma epistolar. Como cada carta verdadeira, foi escrita num
determinado momento e para destinatários determinados,
dentro de uma situação concreta. Neste sentido, são escri­
tos circunstanciais, muitas vezes originados em momentos
de perplexidade ou apuro, tidos pelo próprio autor como
34 Paulo , V ida e O bra

expediente provisório, substitutos insuficientes de um en­


contro pessoal não mais possível ou ainda não possível, en­
contro esse impossibilitado no momento por causa de uma
separação externa. Mais de uma vez, Paulo se refere a isso,
queixando-se das circunstâncias adversas que o obriga a
ficar distante momentaneamente das comunidades, com­
pelindo-o, então, a fazer uso de uma epístola (lTs 2.17ss.;
Rm 15.22s.).
Não menos evidente fica em suas epístolas também o
fato de que justamente por causa da sua ausência forçada e
do seu recolhimento silencioso ao escrever, os pensamen­
tos do autor das epístolas atingiram uma profundidade
e uma força de convencimento e a sua palavra adquiriu
uma imagem e uma tonalidade que dificilmente poderia
ter obtido numa fala oral, num momento de aglomeração
de povo. Os opositores de Paulo em Corinto notaram isso
perfeitamente ao alardearem contra ele, dizendo que suas
cartas "são severas e enérgicas, mas ele, uma vez presente,
é um homem fraco e a sua linguagem é desprezível" (2Cor
10.1,10; 11.6).
Este julgamento malévolo, de qualquer forma, care­
ce de um redimensionamento, uma vez que expressa os
critérios presunçosos dos discursos grandiloqüentes, tais
como eram protagonizados pelos entusiastas e visionários
fanáticos, por Paulo vigorosamente rejeitados (IC or 2.3s.).
Seja como for, o sucesso da sua atividade missionária de­
monstra que também a sua pregação oral não era ineficaz.
Ainda assim, é correto pensar que a sua atividade epistolar,
não raras vezes, teve um efeito mais decisivo do que a sua
palavra falada. Todavia, é plenamente verdadeira também
a observação precedente: as epístolas constituíam uma ati­
vidade emergencial necessária, não oferecendo as mesmas
possibilidades de um encontro pessoal direto. Paulo viveu
ambas as situações em igual medida.
I ntrodução 35

Hoje, nós devemos justamente às circunstâncias, que


inicialmente se apresentavam ao apóstolo como im por­
tunas e casuais, o fato de que, após quase dois m il anos,
possamos participar do intercâmbio de Paulo com suas co­
munidades, mesmo se, em virtude da enorme distância no
tempo, já não entendamos de imediato todas as assertivas
e alusões do autor, e muito daquilo que outrora era imedia­
tamente compreensível, hoje somente pode ser pressentido
e subentendido. Muitas vezes, ocorre que, em cartas trans­
mitidas de uma época passada, a obscuridade de uma as­
serção constitui apenas um sinal de que os primeiros leito­
res, familiarizados com as situações e problemas de então,
tinham conhecimento de determinadas pessoas e especial­
mente do próprio autor das epístolas partilhavam das mes­
mas maneiras de pensar e conceber o mundo e entendiam,
por conseguinte, de modo imediato o que era afirmado.
Portanto, a distância temporal que existe em relação
aos documentos transmitidos precisa ser levada em con­
sideração, e não eliminada precipitadamente. Isto não ex­
clui o fato de que precisamente cartas, como todos os que
têm algum conhecimento de semelhantes fontes históricas
sabem, proporcionam também a experiência de uma pro­
ximidade imediata. Quando são escritas por autores que
não se ocultam atrás de clichês e de floreios de linguagem
convencionais, mas que procuram revelar-se a si mesmos
na correspondência - e isto vale de maneira particularís-
sima no caso de Paulo - então elas trazem em si a marca
inconfundível, como nenhum outro documento, desta per­
sonalidade.
Sentimos, por assim dizer, a respiração do autor, mas,
ao mesmo tempo, também a proximidade daqueles aos
quais as cartas foram endereçadas. Somos, desta forma,
após muitos séculos, convocados para sermos as testemu­
nhas de um encontro ocorrido outrora, em que a palavra
36 Paulo , V ida e O bra

também nos é dirigida e somos questionados e desafiados


para sermos interlocutores daquele primeiro diálogo. É im ­
portante que apliquemos estas experiências aqui descritas
e de conhecimento comum, de forma consciente, também
no trato das epístolas paulinas.
Mesmo assim, o caráter específico das epístolas pauli­
nas não se restringe às considerações expendidas até aqui,
pois, a despeito da sua marca pessoal e contextuada, como
já foi assinalado, são tudo menos cartas pessoais ou parti­
culares, considerando tanto o seu autor e os seus destina­
tários, como também o seu conteúdo. Sua característica ou
cunho próprio lhe advém da missão do apóstolo, da sua
responsabilidade e zelo apaixonado pela mensagem de
Cristo e pelas comunidades entregues a seus cuidados, e
não esta ou aquela pessoa em particular a ele confiada.
Tendo emergido do trabalho missionário do apóstolo
e tendo sido escritas com o intuito de prosseguir este tra­
balho de longe, transformaram-se as epístolas de Paulo no
gênero literário mais antigo da literatura do cristianismo
prim itivo, não se encontrando nada de similar no âmbito
da literatura da Antiguidade. Seu caráter distintivo reside
precisamente em estar ainda próximas da viva vox evangelii,
ou seja, da mensagem de Cristo proclamada oralmente,
que tende a ser ouvida e aceita pela fé, não consistindo em
reflexões teórico-abstratas, mas que incluem permanente­
mente a realidade da vida dos ouvintes como elemento de­
terminante.
Paulo criou este gênero literário das epístolas paleo-
cristãs como instrumento de comunicação, constituindo-
se, destarte, num modelo, cuja imitação foi muitas vezes
tentada, porém jamais plenamente conseguida. Na verda­
de, Paulo não deixou de utilizar as formas convencionais e
preestabelecidas dos modelos epistolares helênicos, parti­
cularmente evidentes na saudação do início da epístola, no
I ntrodução 37

agradecimento e na certeza da intercessão, bem como nas


saudações e augúrios no final.
Contudo, Paulo modifica frequentemente estas formas,
de acordo com o objetivo das suas epístolas: na maneira
como ele se introduz a si mesmo como apóstolo, enviado
e servo de Jesus Cristo, e a seus colaboradores como co-re-
metentes - donde não se pode, porém, deduzir também a
sua co-autoria - na saudação, agradecimento e intercessão,
através das quais caracteriza espiritualmente as comuni­
dades, e na medida em que substitui o augúrio, de resto
tão comum, de bem-estar pessoal, pelos votos e desejos de
"paz e graça", uma fórmula de bênção recorrente no epis-
tolário judaico-oriental.
As partes recém-assinaladas das epístolas de Paulo
demonstram ainda, na suas acentuadas diferenças de ex­
tensão e de conteúdo, o quanto ele introduziu nuanças pes­
soais em suas rígidas fórmulas. É possível deduzir daí que
ele não apenas utiliza fórmulas externas consagradas, mas
também pensamentos e conceitos de ordem interna, deter­
minados pela natureza do conteúdo.
Contudo, e acima de qualquer outra coisa, as grandes
partes das suas epístolas não são passíveis de ordenação e
classificação entre as formas epistolares usuais. Elas corres­
pondem muito mais a outras totalmente diferentes formas
de estilo: à pregação, à argumentação teológica, às exor­
tações, às locuções litúrgicas (confissão, hino, doxologia,
bênção e maldição, etc).
A permuta das epístolas entre as comunidades (cf. Cl
4.16), sua coleção, em época relativamente recente, e sua
posterior utilização integral, tornam perfeitamente compre­
ensível este estado de coisas. Suas características peculiares
tornam também inteligíveis a forte influência e a primazia
que o gênero epistolar exerceu na literatura influência e a
primazia que o gênero epistolar exerceu na literatura do
38 Paulo, V ida e O bra

cristianismo prim itivo. Assim como foi possível escolher o


nome de Paulo para escritos destinados às comunidades,
do mesmo modo também era possível colocar escritos sob
o nome de outros apóstolos para conferir-lhes uma autori­
dade correspondente.
Em confronto com inúmeros outros escritos doutriná­
rios da igreja e em relação a epístolas pastorais em períodos
antigos e mais recente, distinguem-se as epístolas paulinas
certamente, porque nelas o conteúdo e a pessoa do autor
formam uma unidade indissolúvel. Nos dias atuais o leitor
irá perceber certamente, de múltiplas formas, os aspectos
singulares destes escritos sagrados e não se deveria deixar
ilu d ir apressadamente, imaginando tê-los superado.
Todavia, o leitor deve compreender também que a for­
ça do espírito e a força do coração são aqui uma só coisa, en­
contrando sua expressão numa linguagem burilada, muitas
vezes, com maestria surpreendente. Não raras vezes, é esta
linguagem bastante difícil, imperscrutável e sobrecarrega­
da; sabe ser profunda e mutável, insinuante e doce, mas
também inesperadamente áspera. Sempre, porém, a servi­
ço da missão e da mensagem, instrumento de um homem
que, por sua vez, não é outra coisa senão instrumento nas
mãos do Senhor. Jamais a causa em jogo se cristaliza em
fórmulas vazias, nem ele mesmo se transforma num pie­
doso funcionário e nem os seus ouvintes são considerados
meros objetos de pregação.
Quem estuda as epístolas paulinas não deveria se can­
sar jamais de sempre de novo se expor a estas impressões.
O fato de não nos ser isto sempre fácil deve-se certamente
não só à distância que separa o nosso mundo do seu, mas
também ao uso amplamente arraigado e ao mesmo tempo
não inteligente que costumamos fazer, no âmbito da tradi­
ção eclesiástica, dos pensamentos e das palavras do apósto­
lo. Em outros termos: deve-se à piedosa camada do pó que,
I ntrodução 39

ao longo dos séculos, se formou sobre os textos sagrados


como uma mortalha.
Com o que dissemos a respeito da impressão discrepan-
te que as epístolas do apóstolo nos transmitem - a imediata
proximidade na qual nos lançam e a não menos surpreen­
dente distância que experimentamos na sua leitura - nós já
tocamos na singularidade da figura de Paulo. Esta impressão
contraditória não é devida tão-somente à distância histórica
da época da elaboração das suas epístolas. Mais importan­
tes são as extraordinárias tensões e contradições que Paulo,
como nenhum outro no cristianismo prim itivo, reúne em si.
Elas inviabilizam qualquer tentativa de falar exaustivamen­
te dele: um judeu zeloso da lei e inimigo de Cristo que se tor­
nou um escravo servidor deste Senhor e mensageiro prega­
dor da justiça que recai sobre os incrédulos, um "abortivo"
entre os apóstolos (ICor 15.8), o qual, porém, podia afirmar,
ao mesmo tempo: "Mas pela graça de Deus sou o que sou, e
sua graça a mim dispensada não foi estéril" (ICor 15.10).
O lado enigmático da sua aparição atinge a sua dimen­
são humana. Como podemos deduzir de algumas passa­
gens das suas epístolas, era ele um homem alquebrado pela
doença, circunstância que ele exprime na sua linguagem
característica: afetado por um "aguilhão" na carne, "um
anjo de Satanás para me espancar", atormentado por um
sofrimento do qual não se livrou a despeito das suas repe­
tidas orações (2Cor 12.7s.).
As tentativas de determinar com precisão, do ponto de
vista da medicina, esta doença não conduziram a nenhum
resultado seguro. A razão deste insucesso é devida, em p ri­
meiro lugar, à linguagem utilizada por Paulo, claramente
figurativa, em seguida porque a concepção vulgar antiga
deixa entrever que as doenças de qualquer espécie têm sua
causa em forças demoníacas. Apesar de tudo, este homem
doente e delicado soube suportar inimagináveis perigos e
40 Paulo, V ida e O bra

dificuldades físicas (cf. 2Cor 11.23s.) e em menos do que


uma única década, além de tudo o mais a que se dedica­
va, atravessou mais de uma vez, em circunstâncias as mais
difíceis, a metade oriental do império romano, fundou co­
munidades florescentes na Ásia Menor, na Macedônia e
na Grécia e incluiu em seus planos até mesmo Roma e o
Ocidente, até a Espanha.
De modo todo especial, porém, então os pensamentos,
que constituem a sua pregação, perpassados por dimen­
sões cuja escala é inigualável e até hoje não foi superada.
Não surpreende que a muitos, frente às epístolas paulinas
carregadas até às bordas com um pesado ideário, falte o
fôlego, e não poucos, que entram em contato com a sua
mensagem, se sintam como viandantes num mundo mon­
tanhoso que provoca vertigens, com cumes alcantilados e
envoltos em nuvens, a ponto de não saberem como prosse­
guir e por onde andar.
Já no cristianismo prim itivo era Paulo um personagem
polêmico, venerado e amado, de um lado, temido e odiado,
de outro. A reputação que goza na Igreja não deve ocultar
a constatação de que a cristandade viveu e vive de fontes
bem diferentes do que precisamente da mensagem deste
apóstolo, mesmo quando lhe é conferido um posto, inofen­
sivo, na galeria dos santos, e à sua doutrina, outrora revo­
lucionária, um lugar seguro mas ineficaz entre preceitos e
artigos dogmáticos.
É verdade, outrossim, que a Igreja sempre experimen­
tou seus grandes momentos e suas salutares revoluções
quando o evangelho de Paulo irrompeu como um vulcão
extinto que volta à atividade. A força e eficácia da sua atua­
ção fica evidenciada, sob muitos aspectos, já desde o século
II, através do movimento ultrapaulino de Marcião. Mesmo
inspirando-se erroneamente em Paulo, este fundador de
uma antiigreja herética colocou em questão a unidade do
I ntrodução 41

Deus do Antigo e do Novo Testamento, e da sua revelação,


e distinguiu dualisticamente criação e redenção, ao separar
o "conhecido" Deus da justiça do Antigo Testamento do
"desconhecido" Deus da misericórdia, revelado em Cristo.
A própria Igreja foi desafiada, por tudo isso, à luta e
a uma renovada preocupação com o legado do apóstolo.
Não se pode deixar de reconhecer que esta apropriação,
ainda que parcial e não sem significativas modificações,
surtiu seus efeitos. O Paulo que se tornou uma autoridade
na Igreja foi, por muito tempo, um Paulo "domesticado".
De maneira particular, podemos identificar os vigoro­
sos e revolucionários efeitos que brotaram dele e da sua
teologia, em outras figuras e movimentos da Igreja. A teo­
logia de A gostinho é impensável sem uma redescoberta de
Paulo e, sobretudo, a irrupção das concepções reformado-
ras de L utero e de C alvino , bem como, tempos depois, do
movimento de John W esley, na Inglaterra.
Finalmente, cabe recordar a assim denominada teolo­
gia dialética, sem a qual a luta da igreja contra a barbárie e
a heresia do nacional-socialismo não teria sido possível, e
que teve seu início com a turbulenta nova interpretação da
Epístola aos Romanos empreendida por K arl Barth .
Mas também a forte oposição levada a efeito contra
Paulo até os nossos dias não pode ser silenciada, dentro e
fora dos limites da Igreja. No interior dos seus muros, ela
sempre se identificou com o zelo superficial daqueles que,
segundo a sentença de Jesus, constroem e adornam os tú­
mulos dos profetas. Do mesmo modo não silenciaram até
hoje as reservas e as críticas daqueles que acusam Paulo de
lhes impedir o acesso ao evangelho de Jesus, e até o defi­
nem como o destruidor do cristianismo (cf., neste sentido,
o últim o capítulo deste livro).
Na discussão das fontes, principalmente das epísto­
las de Paulo, já ficou evidenciado o quanto a sua história,
42 Paulo , V ida e O bra

tanto aquela que foi vivenciada por ele mesmo e a que foi
deduzida da sua palavra e ação, e a sua mensagem e teo­
logia se encontram em permanente e profunda correlação.
Aquele que se põe a narrar a sua história de vida deve, por
isso, falar permanentemente também da sua teologia. Mas
a recíproca também é verdadeira: nenhuma reflexão sobre
a sua teologia pode prescindir da reflexão sobre a sua vida
e a das comunidades por ele fundadas.
Isto não significa que à sua teologia deva ser assinala­
do um lugar secundário, entendendo-a tão-somente como
um produto casual ou automático da sua existência indi­
vidual. Assim, o peso determinante da sua teologia estaria
menoscabado, e o historiador que pretendesse ser apenas
um biógrafo de Paulo deveria recordar-se a cada passo e
momento que, para o próprio apóstolo, a causa para a qual
ele se sentiu responsável valia mais do que a sua pessoa e
as circunstâncias da sua vida.
Do mesmo modo, porém, seria errôneo ensaiar de ime­
diato um esboço da sua teologia, antecedendo-lhe apenas
uma introdução biográfica. Pois a sua teologia é tampouco
um genérico sistema de pensamentos intemporais e de expe­
riências religiosas, assim como sua história não é, também,
mera sequência de acontecimentos felizes ou adversos.
Faz parte, em grau altíssimo, da singularidade deste
apóstolo o fato de que as suas convicções de fé lhe indica­
ram a trajetória da sua história de vida, como também o
fato de que ele mesmo reelaborou, da maneira mais pro­
funda, independente e até mesmo obstinada, as experiên­
cias da própria história.
A exposição a seguir se propõe ressaltar esta unidade,
mesmo quando, de início, aborda a história de Paulo, para
somente então estabelecer como tema específico os conteú­
dos e nexos concretos da teologia paulina.
P rim eira P arte

V ID A E OBRA

1. ORIGEM E CONTEXTO.
PAULO ANTES DA SUA CONVERSÃO

Paulo descende de uma rígida família judaica da


Diáspora. A cidade de Tarso, onde nasceu em torno do iní­
cio da nossa era (At 21.39; 22.3), era a capital da região e da
província romana da Cilícia. Está situada não distante do
mar Mediterrâneo, na falda da cordilheira Taurus, na es­
trada que, passando por elevados desfiladeiros, vai da Ásia
Menor para a Síria. O insignificante povoado de hoje era,
então, uma florescente cidade helenista em virtude da sua
situação privilegiada para o trânsito e o comércio. Tarso
era famosa, acima de tudo, como um centro de cultura gre­
ga. O geógrafo Estrabão (XIV, 673) cita, de passagem, Tarso
em paralelismo com Atenas.
Lucas, que conservou, sem dúvida, a informação con­
fiável a respeito da terra natal de Paulo (At 22.3; cf. 23.34),
diz, no mesmo contexto, que Paulo passou sua infância e
período de formação em Jerusalém, o que faz pressupor
uma transferência dos seus pais para lá bastante cedo.
Este dado, contudo, trai muito claramente uma tendência
de apresentá-lo como judeu genuíno e de colocá-lo, tão
44 Paulo , V ida e O bra

cedo e tão intensivamente quanto possível, em contato


com Jerusalém. Já por isso a informação é pouco plausível.
Paulo teria certamente feito referência a ela no testemunho
que dá de si, em F13.5. Em nenhum lugar ele indica o local
do seu nascimento.
Contudo, ele fala com muito orgulho da sua descen­
dência israelita, quando desafiado por um adversário: "São
hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. São des­
cendentes de Abraão? Também eu" (2Cor 11.22; cf., outros-
sim, Rm 11.1). Paulo enfrenta embate semelhante na citada
Epístola aos Filipenses, ao ensejo da enumeração de tudo
aquilo que, antes da sua conversão a Cristo, em decorrência
do seu nascimento e da própria decisão de vida, constituía
sua glória e ganho: "circuncidado ao oitavo dia, da raça
de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus;
quanto à Lei, fariseu" (F1 3.5).
Estas expressões reiterativas designam não somente,
do ponto de vista etnográfico, a sua descendência judai­
ca, mas também a singularidade religiosa do seu povo em
meio às nações. E isto que se deduz, sobretudo do arcaico
título Honorífico de "hebreu", assim como as demais locu­
ções de "israelita" e "descendente de Abraão" denotam a
primazia religiosa da qual o judeu, enquanto membro do
povo eleito, se podia vangloriar. Como tal traz Paulo o an-
tiquíssimo sinal da aliança, a circuncisão, e está orgulho­
so da sua linhagem de uma das doze tribos, precisamente
aquela cujo primeiro rei faz lembrar o seu nome judaico
Saulo (At 7.58; 8.1,3; 9.1,8).
A enumeração das suas prerrogativas de outrora em
epístolas que são endereçadas a cristãos convertidos do
paganismo não é apenas relevante do ponto de vista bio­
gráfico. Revela que, justamente através de semelhante
apresentação, os seus adversários se introduziam nas co­
munidades, causando sensação. Sua orgulhosa apelação à
V ida e O bra 45

origem deveria garantir com evidência maior autoridade e


audiência à sua aparição, colocando Paulo em xeque.
Isto projeta luz sobre a apreciação que outrora era feita
do judaísmo, mesmo num ambiente originalmente pagão.
Cai-se facilmente na tentação de esposar idéias equivoca­
das a este respeito. Ser judeu, hebreu ou filho de Abraão
marca os que assim se denominam, de nenhum modo
como membros de uma raça inferior ou como elementos
de um desprezível povo de párias. Todas estas modernas
concepções ou atribuições devem ser mantidas distantes.
Caso contrário, seriam impensáveis a surpreendente disse­
minação e o extraordinário crescimento das comunidades
judaicas na Antiguidade helenística.
Não é possível obter dados exatos sobre o número de
judeus no império romano, em virtude das fontes serem
muito esparsas e cheias de lacunas. Existe, porém uma esti­
mativa entre os especialistas no assunto que eleva este nú­
mero a 4 milhões e meio, se não mais, na época de Augusto
e seus sucessores. Este número perfaz sete porcento da po­
pulação global do império romano, concentrando-se esta
população, além da Palestina, principalmente no Egito e
na Síria, onde residiam prevalentemente nas grandes cida­
des, como Alexandria, Antioquia e Damasco, entre outras.
Tanto no Egito como na Síria, de acordo com os dados, cer­
tamente não exagerados, fornecidos por F ilo de Alexandria
e por F lávio Josefo, esta população judaica ascendia à casa
de um milhão de pessoas.
Números elevados de judeus são computados, de acor­
do com documentos diversos, também para a Ásia Menor,
Chipre, Cirenaica, e muitas outras regiões e cidades em tor­
no do mar Mediterrâneo, e para além dele, cuja cifra não é
possível estipular. São uma demonstração da propagação
dos judeus ocorrida igualmente na área do Eufrates e do
Extremo Oriente (cf., por exemplo, a lista de nações elen-
46 Paulo , V ida e O bra

cada no relato de Pentecostes, A t 2.9-11, assim como nu­


merosos documentos extrabíblicos). Pode-se afirmar com
segurança que a população judaica da Diáspora superou
pelo menos uma vez o dobro dos habitantes judeus da
Palestina.
As razões para isso são as mais diversas: o movimen­
to migratório planejado, repetidas vezes comprovado, de
judeus para outros lugares fora da Palestina, para fins de
colonização, desde o período dos Diádocos, mas também
livre emigração e imigração; somente em casos raros, de­
portações forçadas como as que ocorreram sob a domina­
ção dos assírios e dos babilônios. Já os dominadores helê-
nicos outorgaram aos judeus amplos direitos corporativos,
proteção judicial e privilégios, e os romanos, neste parti­
cular, não agiram diferentemente. Destarte, estava expres­
samente assegurado aos judeus o exercício inconteste do
culto, a organização não somente religiosa, mas também
política, das suas comunidades, a administração dos seus
bens e, acima de tudo, sua própria jurisdição, enquanto não
afetavam as leis gerais do Estado.
Os direitos chegavam a ponto de liberá-los do culto
a César e, via de regra - tendo em consideração o severo
preceito sabático - também do serviço militar.
A situação jurídica favorável dos judeus se deve ao fato
de muitos deles possuírem o direito da cidadania das suas
cidades e a condição de cidadão romano, condição jurídi­
ca usufruída por Paulo desde o seu nascimento (At 16.37;
22.28). Ao longo da vida posterior do apóstolo, como sabe­
mos, sua situação de civis romanus exerceu mais de uma vez
um papel decisivo. Como cidadão romano, ele se identifica
através do seu nome tipicamente romano, com o qual ele
mesmo se designa correntemente em suas epístolas.
A opinião amplamente propagada segundo a qual
Paulo teria assumido o seu nome romano apenas a par-
V ida e O bra 47

tir da sua conversão - a exemplo dos noviços em certas


ordens religiosas que trocam seu nome civil por um religio­
so - é, com toda certeza, errônea. A comprovação da falsi­
dade desta opinião pode ser haurida dos próprios Atos dos
Apóstolos, que aludem a ele com as palavras "Saulo, que i
também se chamava Paulo" (At 13.9) no início da sua ati­
vidade missionária, aliás, sem qualquer relação com o en­
contro aí narrado de Paulo com o procônsul Sérgio Paulo,
de Chipre. Paulo é, assim, introduzido com seu nome co-
mumente conhecido. O nome hebraico Saulo, por sua vez,
deve ser entendido muito mais como um nome de cunho
familiar, utilizado como epíteto nominal (signum ou super-
nomen) entre seus correligionários na fé.
Do exposto, deve ter ficado evidente que Paulo não
cresceu num gueto, mas provém de uma família que, do
ponto de vista social e civil, gozava de plenos direitos.
Não obstante, dispersão, tolerância e situação privile­
giada ainda não explicam o extraordinário aumento numé­
rico do judaísmo na Diáspora pagã. Seria errôneo atribuir
este fenômeno a causas biológicas. Por conseguinte, a um
explosivo crescimento do povo judeu. Na realidade, a ex­
plicação correta está no extraordinário vigor missionário do
judaísmo também no seio da população pagã. O judaísmo
da Diáspora, na época de Paulo, possuía uma forte consci­
ência da própria missão universal, entendida no sentido da
profecia do Dêutero-Isaías, que já havia ecoado no exílio
da Babilônia, e segundo a qual Israel estava destinado a ser
"como luz das nações" (Is 42.6 e passim).
Provas para isso dispomos em grande quantidade, a
despeito da fragmentária, mas ainda assim significativa,
literatura do judaísmo helenístico, conservada até hoje.
O próprio Paulo fornece disso um exemplo que poderia­
mos chamar de clássico na Epístola aos Romanos, no con­
texto de um ajuste de contas assaz duro com os judeus. Ele
48 Paulo, V ida e O bra

elenca ali as prerrogativas que o judeu aduz a seu favor e


coloca como fundamento da sua missão uma longa suces­
são de sentenças: "Ora, se tu te denominas judeu e descan­
sas na lei e te glorias em Deus, tu que conheces sua vontade
e que, instruído pela lei, sabes discernir o que é melhor,
que estás convencido de ser o guia dos cegos, a luz dos que
andam nas trevas, educador dos ignorantes e mestre dos
que não sabem, possuindo na Lei a expressão da ciência e
da verdade..." (Rm 2.17-20).
Nesta altura, a enumeração é interrom pida brusca­
mente e continua com uma lista contrária de questiona­
mentos fulminantes (Rm 2.21-24) que, aos olhos dos ou­
vintes, evidenciam a discrepância entre os seus títulos
reivindicados e o seu agir que desonra a Deus, finalizan­
do com uma citação profética da Escritura, portanto, da
autoridade máxima para o judeu, aqui, porém, dirigida
contra ele: "Pois, por vossa causa o nome de Deus está
sendo blasfemado entre os gentios" (Is 52.5). A nós inte­
ressa, neste contexto, a altiva consciência de si e da sua
missão que, como demonstra a primorosa formulação em
grego das sentenças, caracteriza justamente o judaísmo da
Diáspora.
A propaganda efetuada intensamente em suas sinago­
gas, e dali partindo para fora, surtiu os seus efeitos. F ilo
de Alexandria testemunha entusiasticamente que as leis
do povo judaico "atraem todos os outros povos, chamando
a atenção de bárbaros, gregos, habitantes do Continente e
das ilhas, povos do Oriente, do Ocidente, da Europa, da
Ásia, todo o mundo habitado, de um confim a outro" (De
vita Mosis, II, 20; cf., também, F lávio Josefo, Contra Apião,
II, 39).
Também autores pagãos geógrafos, historiadores e
poetas (Estrabão, Suetônio, Sêneca, Cássio Dione, Tácito
Horácio e Juvenal) confirmam, mesmo se muitas vezes com
V ida e O bra 49

ironia e desprezo, a força aliciadora e sedutora da missão e


da propaganda judaica.
Aprende-se a compreender a força irradiadora e incul-
cadora da religião judaica quando se tem presente, em seus
traços fundamentais, a imagem do extremamente acidenta­
do ambiente antigo, do ponto de vista religioso e da cosmo-
visão. Os domínios protetores da polis haviam desapareci­
do há tempo. O mundo se expandira numa escala nunca
dantes experimentada, e com isso o próprio ser humano se
havia isolado. Continuava-se erigindo Templos aos deuses
antigos e os ritos dos sacerdotes e dos sacrifícios continua­
vam acontecendo, mas estavam demasiadamente avelhan-
tados, os mitos dos deuses desgastados e já sem serventia
para apaziguar a ânsia de cada um por proteção e bênção,
saúde e salvação para esta e a outra vida.
Por toda parte estava em andamento um processo de
fusão e de mistura das antigas com as religiões recentes,
provenientes especialmente do Oriente em grande profu­
são, quanto mais exóticas e intrincadas, tanto mais atraen­
tes. Uma superabundância de ofertas de rituais de misté­
rios e de ensinamentos salvíficos existia em muitos lugares,
prometendo a libertação dos poderes do destino e da morte
e o alcance da salvação eterna.
Ao mesmo tempo, porém, era esta a época de uma crí­
tica radical e iluminística das religiões, que se preocupa­
vam, através das mais diversas filosofias, mesmo aquelas
que atingiam o homem da rua, com uma espiritualização
da religião, e que acompanhava somente com um sobran­
ceiro ar de escárnio a atividade, nas feiras anuais, dos tau-
maturgos concorrentes e dos supostos milagreiros porta­
dores de cura e salvação.
Sobre este pano de fundo, quer o judaísmo ser visto
em sua total peculiaridade e singularidade: com sua fé no
único e invisível Deus, o Senhor do céu e da terra; com o
50 Paulo, V ida e O bra

rigorismo da sua Lei, seus preceitos éticos e rituais (a san­


tificação do sábado, as prescrições alimentares, etc.); com o
caráter unitário das suas normas de vida e de conduta em
todo mundo; com a venerável antiguidade da sua história
e da sua reputação; com o apelo para o abandono de todo
culto idolátrico e de toda desordem moral, e com o anúncio
do julgamento futuro para os impenitentes, bem como da
paz e da justiça que o Messias futuro irá trazer.
O judaísmo helenístico das sinagogas existentes na
Diáspora estava, há muito tempo, aparelhado para a execu­
ção da sua missão, na medida em que se tornara autônomo
em relação ao judaísmo da Palestina, este sempre preso ao
Templo e ao ministério sacerdotal e sacrifical, por mais que
Jerusalém continuasse sendo, também para a Diáspora, o
ponto de referência ideal da história da salvação.
Concretamente, porém, a sinagoga havia substituído
o Templo, a interpretação da Lei (Torá) estava no lugar do
sacrifício, enquanto que o escriba e o doutor da Lei faziam
às vezes dos sacerdotes. Acresce a isso o fato de, a despeito
de toda a diferenciação em relação ao ambiente pagão, ter
o judaísmo helenístico desenvolvido um modo de pensar
universal orientado para todos os seres humanos, no qual
ocupavam também o seu espaço a língua e o ideário da sa­
bedoria helenístico-pagã. Este dado está comprovado na
literatura judaica sapiencial, em F ilo de Alexandria e em
muitos outros, mas também através da tradução grega do
Antigo Testamento, denominada de Septuaginta, de acordo
com o número lendário dos seus setenta tradutores. Esta
tradução grega se transformou no livro sagrado da sina­
goga e do cristianismo prim itivo, assim como o grego foi
a língua dos cultos divinos, na pregação, na liturgia e na
oração.
A língua grega se constituiu no veículo de comunicação
através do qual penetrou na teologia judaica da Diáspora
V ida e O bra 51

um significativo corpo de conceitos e de idéias gregas: mo­


tivos de crítica da religião provenientes da Antiguidade re­
mota e dirigidos a cultos idolátricos e a superstições, bem
como idéias trazidas da doutrina platônica e estóica a res­
peito da razão e da moral. Não havia melindres na esco­
lha dos meios na questão da propaganda e da apologética.
Confirma-o não somente o método alegórico de interpre­
tação da Escritura, utilizada justamente de modo intenso
pela teologia judaica helenística e derivada da interpreta­
ção de Homero, desde a Antiguidade remota, mas também
e particularmente o fato de que a própria literatura a ser­
viço da religião judaica recorria com predileção ao disfarce
de poetas, sábios e videntes gregos, até mesmo à imitação
dos antiquíssimos oráculos gregos e romanos da lendária
Sibila.
A despeito de tudo isso, não se pode dizer que os
elementos culturais do ambiente, a expansão sapiencial
da teologia judaica e o emprego de métodos e meios con­
temporâneos de propaganda tenham significado um sério
risco para o judaísmo ou de transformá-lo numa religião
sincretista. A consciência de ser algo totalmente diferente
e absolutamente singular e a rigorosa salvaguarda da pró­
pria particularidade do modo de existir no meio do paga­
nismo era e continuou sendo a característica determinante
do judaísmo. Aqui residem as razões da sua imensa força
de atração, naturalmente também para as terríveis hostili­
dades, calúnias e perseguições cruentas que, por motivos
religiosos, raciais e políticos, vez por outra, o judaísmo teve
que suportar, por parte da população pagã, em diferentes
lugares e regiões.
Em sua juventude, Paulo certamente nunca recebeu
uma escolaridade sequer semelhante à que teve seu con­
temporâneo F ilo de Alexandria, falecido em torno do ano
50 d.C., no que diz respeito à filosofia grega e à tradição
52 Paulo , V ida e O bra

cu ltu ra l, não deixando transparecer nada do pertina z in te ­


resse de F ilo em h a rm o n iza r o legado veterotestam entário
judaico com a sabedoria grega.
Por outro lado, os elementos fundamentais da cultura
grega que lhe foram transmitidos através da pregação e da
teologia nas sinagogas da Diáspora não foram nada irrele­
vantes nele, revelando-se naqueles conceitos e noções que
têm sua origem na filosofia popular do estoicismo (p.ex., em
conceitos como "liberdade", "razão", "natureza", "consci­
ência", "reflexão", "virtude", "dever", etc.), mas também
no domínio, muitas vezes magistral, de elementos artísti­
cos da antiga retórica e nos métodos tipicamente populares
de ensinar, corriqueiros em sua época, que utiliza, por ve­
zes, de forma surpreendentemente pessoal e original, com
matizes sempre variados.
A forma característica de ensinar dos professores am­
bulantes daquela época, como, aliás, também a maneira
peculiar de pregar nas sinagogas helenísticas, consistia na
assim chamada diatribe (literalmente: "passatempo", "en­
tretenimento"). Ela não expõe reflexões filosóficas, morais
ou religiosas em prolixas e enfadonhas deduções ou em
elucubrações especulativas. Evita conscientemente uma
linguagem técnica elevada. Adota uma forma vivaz de
diálogo, com sentenças curtas, muitas vezes animadas com
interpelações diretas. Introduz objeções de um adversário
fictício. Faz com que os leitores ou ouvintes participem ati­
vamente do diálogo, não os perdendo de vista, por assim
dizer, um momento sequer.
Todos estes traços característicos de estilo são copio-
samente encontradiços nas epístolas paulinas. Falando
da qualidade da linguagem de Paulo, o grande helenista
U. von W ilamowitz -M oellendorf externou as seguintes
observações críticas: "(...) o fato de este judeu, este cris­
tão pensar e escrever em grego... e este grego lhe irromper
V ida e O bra 53

diretamente do coração, e mesmo assim ser genuinamente


grego e nada algo como um aramaico traduzido (como nas
sentenças de Jesus), tudo isso faz de Paulo um clássico do
helenismo. Eis finalmente alguém que exprime em grego
uma nova experiência interior".
A imagem que esboçamos da sinagoga helenística
mostra que o jovem Paulo, em razão de sua origem, forma­
ção e talento, estava predestinado de modo extraordinário,
a ser, já como judeu, um missionário entre os gentios. De
fato, a hipótese de que ele já se sentia chamado para ser um
missionário judeu tem consistência.
A missão das sinagogas na Diáspora procedia de acor­
do com princípios até certo ponto liberais e se contentava
em obrigar os "tementes a Deus", que viviam no meio da
população pagã e que se sentiam atraídos a viver comuni-
tariamente, à confissão de fé monoteísta, à observação de
um mínimo de prescrições rituais (santificação do sábado,
normas alimentares, etc.) e às fundamentais exigências mo­
rais da Lei, sem, contudo, lhes impor a circuncisão e, desta
forma, o ingresso na categoria dos "prosélitos", válida so­
mente para os membros do povo judaico.
O judaísmo palestinense, dirigido pelos fariseus e rigo­
roso na observância da Lei, criticava severamente este pro­
cedimento liberal e insistia na necessidade da circuncisão
para todos. Os fariseus também se entregavam à missão en­
tre os pagãos, ainda que, certamente, com resultados bem
menores do que os alcançados pelo judaísmo da Diáspora.
Compreende-se, por isso, a sentença de Jesus, pronuncia­
da contra eles: "A i de vós, escribas e fariseus hipócritas,
que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito, mas,
quando conseguis conquistá-lo, vós o tornais duas vezes
mais digno da geena do que vós" (M t 23.15).
Do exposto, é possível deduzir que, no concernente
ao problema da circuncisão, já existiam no campo missio-
54 Paulo , V ida e O bra

nário judaico entre os pagãos duas posições diferentes, re­


ciprocamente antagônicas, uma defendida pela Diáspora e
a outra por Jerusalém. Um exemplo paradigmático não só
do sucesso da prática missionária judaica em geral, como
também das aludidas diferenças, oferece, na época paulina,
a conversão do rei Izates de Adiabene, do norte da Síria, o
qual foram inicialmente ganho para o judaísmo, através de
um judeu da Diáspora, mas somente foi levado a uma con­
versão total, submetendo-se à circuncisão, após a chegada
de um judeu palestinense, adepto da corrente farisaica.
Neste contexto, torna-se compreensível o significado
do fato de Paulo, um judeu da Diáspora, talvez na esteira
da tradição da sua família (At 23.6), ter aderido ao farisaís-
mo, isto é, à corrente mais intransigente e legalista, tanto
relativamente à práxis existencial-moral, quanto à prática
missionária (F1 3.5). Em contraste com o tradicionalismo
exterior da aristocracia sacerdotal de Jerusalém, bem como
em oposição ao conformismo laxista que reinava no meio
do povo, era o farisaísmo um movimento leigo muito pres­
tigiado por causa da sua severa religiosidade e devoção,
que seguia como norma obrigatória o preceito da santidade
do Antigo Testamento. Ele sobreviveu também à catástrofe
da guerra judaica e da destruição de Jerusalém, tornando-
se a única autoridade normativa no período posterior da
consolidação do judaísmo e o embrião do futuro judaísmo
talmúdico.
Não se pode deixar que a crítica a respeito deste mo­
vimento religioso da mãe-pátria palestinense seja deter­
minada pelos testemunhos depreciativos presentes nos
evangelhos. De resto, quando Paulo aderiu ao farisaísmo,
este ainda não era, na verdade, tão estreito e exclusivista
quanto no período pós-70. A teologia dos fariseus, então,
ainda podia manter espaços para concepções e representa­
ções do pensamento apocalíptico do judaísmo tardio que,
V ida e O bra 55

através de grandes figuras e desenhos cósmicos, pintava o


ocaso desta velha e maligna realidade cósmica, bem como
a irrupção de uma nova era messiânica, cujo advento pro­
curava calcular. Somente ao final do século I o farisaísmo
se afastou destas concepções, rejeitando-as.
Somente nesta mesma época relativamente tardia,
ocorreu também a definitiva e geral sentença de heresia
contra o novel movimento do cristianismo e a condenação
da teologia judaico-alexandrina. O rigoroso judaísmo pa-
lestinense se enclausurou num gueto por ele mesmo pre­
parado. Ao fazer a sua opção pela corrente do farisaísmo,
Paulo não precisou, na verdade, renunciar à sua origem de
judeu da Diáspora nem aos elementos de cultura teológica
dela provenientes. Assim se explica por que nas epístolas
por ele escritas na qualidade de apóstolo afloram concomi­
tantemente o pensamento farisaico e a concepção helenís-
tica.
Seja como for, Paulo se transformou num apaixonado
entusiasta da Lei, como o demonstra precisamente a sua
opção e decisão pela corrente dos fariseus. Os Atos dos
Apóstolos estão certamente corretos quando afirmam que
ele recebeu a sua formação em Jerusalém, centro espiritual
do movimento. A este período, com certeza, faz referência
quando afirma que "progredia no judaísmo mais do que
muitos compatriotas da minha idade, distinguindo-me no
zelo pelas tradições paternas" (G11.14) e que era "irrepre­
ensível quanto à justiça que há na lei" (F13.6).
Se Paulo foi efetivamente um discípulo do velho
Gamaliel (At 22.3), um doutor da Lei particularmente céle­
bre, é uma opinião que fica em suspenso. Esta informação
decorre muito adequadamente do alto apreço que Lucas
externa pelo farisaísmo e na sua notoriamente falsa ideia
de que Paulo, mesmo depois de convertido ao cristianismo,
tenha permanecido um fiel fariseu até o fim da sua vida.
56 Paulo, V ida e O bra

No judaísmo, a preparação teológica incluía também


para Paulo a aprendizagem e o exercício prático de uma
profissão. De uma passagem dos Atos dos Apóstolos (At
18.3) se conclui que ele foi um fabricante de tendas, o que
equivale, talvez, ao nosso seleiro. Em suas epístolas, lemos
que Paulo quis sempre trabalhar com as próprias mãos
para prover às suas necessidades, mesmo durante as suas
viagens missionárias (lTs 2.9; IC or 4.12; 2Cor 11.27).
É relevante, porém, observar que, acima de tudo,
dispomos de boas razões para adm itir que o judeu da
Diáspora, Paulo, com a sua opção pelo farisaísmo, conco­
mitantemente, se decidiu também pela atividade missio­
nária entre os pagãos, de acordo com as normas funda­
mentais as mais severas e que, antes da sua conversão a
Cristo, ele a exerceu efetivamente. Prova disso é a postura
dos seus futuros opositores judeus da Galácia, os quais, ao
defenderem a circuncisão, lhe lançaram em rosto a antiga
prática do apóstolo, para colocá-lo em contradição. Paulo
contrapõe: "Quanto a mim, irmãos, se eu ainda (!) prego
a circuncisão, por que sou ainda perseguido? Pois estaria
eliminado o escândalo da cruz!" (G1 5.11). Isto quer dizer,
certamente, o seguinte: se ele tivesse continuado com se­
melhante tipo de pregação missionária, como os judaizan-
tes de modo renovado propagavam, então ele teria sido
poupado de perseguições por parte dos judeus, mas isto
às custas da mensagem da cruz.
Enquanto Paulo permanecia, como judeu, um rigoroso
observante da Lei e, nesta qualidade, conquistava "prosé-
litos" entre os pagãos, é mais do que lógico e consequente
que ele tenha perseguido com ardor as comunidades cris­
tãs, especialmente as comunidades helenísticas, como a de
Damasco (!), que se havia afastado dos fundamentos da
salvação do seu povo. Somente assim fica evidente o im ­
pressionante arco da tensão, sob o qual se situa o passado
V ida e O bra 57

judaico de Paulo e sua conversão a Cristo, seu precedente


zelo pela Lei e sua pregação da justificação válida para to­
dos, não por causa das obras da Lei, mas unicamente em
virtude da fé.
Sua luta posterior contra a Lei e a circuncisão ocorreu
não em termos de um retorno a posições básicas mais li-
beralizantes, como as que a sinagoga da Diáspora já havia
elaborado. Pelo contrário, deu-se virtude da pregação da
mensagem da salvação de Jesus crucificado.

2. O PERSEGUIDOR DA COMUNIDADE.
CONVERSÃO E VOCAÇÃO

A cidade de Damasco, com a qual a atividade do fari­


seu Paulo como perseguidor de cristãos e também sua con­
versão e vocação a apóstolo dos pagãos estão intimamente
relacionadas, remete a uma parte significativa da história
da igreja prim itiva. Como foi que penetrou, ainda antes de
Paulo, o Evangelho nesta região sírio-pagã, bem além dos
confins de Jerusalém e da Judéia? As fontes históricas não
fornecem uma resposta direta. Contudo, tudo faz crer que
os inícios deste desenvolvimento coincidem com o perío­
do das primeiras grandes crises e conflitos no seio da igre­
ja prim itiva de Jerusalém. Infelizmente, o livro dos Atos
dos Apóstolos fornece somente um quadro incompleto e
claramente tendencioso. O narrador está ostensivamente
preocupado em apresentar aos seus leitores uma imagem
impressionante da unanimidade ideal e da coesão da igreja
prim itiva.
Contudo, em muitos pontos importantes, seu próprio
material informativo se opõe a esta visão, impondo corre­
ções. Já em A t 6.1-6, nos inteiramos da existência de uma
rivalidade e de murmurações entre "hebreus" e "helenistas"
58 Paulo , V ida e O bra

na comunidade. Ambos os grupos são formados de cristãos


de origem judaica. Os primeiros são cristãos habitantes da
Palestina, de fala aramaica. Os segundos, cristãos prove­
nientes da Diáspora que têm como língua materna o grego.
Até ali, o relato soa plenamente verossímil.
A seguir, porém, a narração se refere a males e equívo­
cos que teriam surgido na distribuição diária das refeições e
na assistência aos necessitados da comunidade, que cresce­
ra rapidamente. Com isso, teria havido uma sobrecarga de
tarefas para os Doze, dificultando que estes se dedicassem
à sua principal e específica função, qual seja, a proclamação
da Palavra e a oração.
Fala-se, em seguida, da escolha de sete homens de
boa reputação, todos indicados com seu nome grego, entre
eles, Estêvão e Filipe, aos quais os apóstolos impuseram as
mãos, orando sobre eles e confiando-lhes o encargo especí­
fico e caritativo de prover às necessidades da comunidade.
Portanto, o estado de emergência que surgiu deu apenas
azo para a distinção que se fizera necessária entre o minis­
tério comunitário exercido pelos que anunciavam o evan­
gelho, fundamentalmente os apóstolos, e aqueles que, na
comunidade, exerciam assistência caritativa.
Contudo, os contornos nebulosos e vagos deste relato
permitem entrever, sobretudo tomando em consideração
a continuidade do próprio acontecimento, que, por de­
trás das respectivas diferenças que aparentemente diziam
respeito tão-somente à organização da comunidade, ocul­
tava-se uma crise que era bem mais profunda e séria, de
cuja dimensão o próprio futuro narrador evidentemente
não conseguia sequer ter uma ideia suficiente. Estêvão, do
mesmo modo como Filipe, citado com ele, aparece logo a
seguir não apenas como uma espécie de assistente social da
comunidade, e sim como evangelista e porta-voz dos "he-
lenistas" que pronuncia um grande sermão incriminatório
V ida e O bra 59

contra o povo judeu e morre como o primeiro m ártir sob o


apedrejamento executado pela multidão.
São, também, os "helenistas" que, logo após a morte
de Estêvão, sofrem uma violenta perseguição, sendo obri­
gados a fugir de Jerusalém. Eles se dispersam em meio aos
povos não judeus e nas regiões estrangeiras, levando, pela
primeira vez, o evangelho também aos gregos (At 11.20).
O fato de toda a comunidade prim itiva de Jerusalém, com
exceção dos Doze que permaneceram na cidade, ter sido
alvo de perseguição e dispersão, como observa o narrador
(At 8.1), é por ele mesmo contradito, pois em relatos subse­
quentes ele pressupõe novamente, com toda naturalidade,
a existência da comunidade em Jerusalém. A parte não he-
lenística da comunidade prim itiva ficou notoriamente sem
ser molestada.
A justificativa para o destino dos "helenistas" preci­
sa ser buscada, certamente, no fato de eles esposarem uma
compreensão da mensagem de Cristo que soava completa­
mente como revolucionária para o restante da comunidade
prim itiva, entrando em conflito com a extremamente rigo­
rosa concepção judaica da Lei, e que colocava em xeque as
tradições sagradas, o serviço do Templo e a exclusividade
da reivindicação da salvação para o povo eleito.
São precisamente estas as razões que, como vimos, im ­
pulsionaram o fariseu Paulo, de acordo com seu próprio
testemunho, a se tornar um perseguidor dos cristãos. Elas
esclarecem por que seu zelo se dirigiu contra uma comuni­
dade da Diáspora helenística. Repetidas vezes o enumera,
aliás, sem o mínimo sinal de má consciência, entre as pro­
vas da sua justificação pela Lei de outrora, sua perseguição
contra a comunidade cristã (G11.13; F1 3.6), ainda que seja
preciso observar: como consequência radical da sua irre­
preensível obediência à Lei, de outrora, e não como uma
lembrança dolorosa de um erro cometido no passado. Isto
60 Paulo , V ida e O bra

demonstra que aqui, e em nenhuma outra parte, reside a


razão da sua hostilidade contra Cristo e seu zelo de perse­
guidor.
Preciso é que nos desvencilhemos da opinião muito
difundida, mas errônea, segundo a qual a fé na messiani-
dade de Jesus tenha sido um motivo suficiente para a per­
seguição, justamente para um judeu rigoroso como Paulo.
Possuidores de uma fé deste gênero, os cristãos, aos olhos
dos judeus, teriam sido, sem dúvida, considerados como
uma seita curiosa, vítima de um erro, mas de forma alguma
uma heresia blasfema. Adeptos de grupos que considera­
vam como messias ora este, ora aquele "profeta", sempre
os houve em número não reduzido em todos os tempos e
lugares no judaísmo, e nem por isso foram automaticamen­
te objetos de perseguição e exclusão por parte dos judeus.
Prova disso temos nos anos 30 do século II d.C., quando
o rabi Akiba, festejado por seu povo como o mais ilustre
doutor da Lei da sua época, proclamou como messias a Bar
Kochba, o líder do último movimento revolucionário con­
tra os romanos e o imperador Adriano.
Existem, por conseguinte, razões muito fortes contra a
exposição encontrada nos Atos dos Apóstolos, segundo a
qual Paulo já teria perseguido a comunidade prim itiva em
Jerusalém, que ainda era observante da Lei e, portanto, não
caía sob a acusação inequívoca de inimiga da Lei. Contra a
descrição lucana, se manifesta, ademais, com toda evidên­
cia, a informação do apóstolo, em G11.22, onde afirma que
ele era pessoalmente desconhecido nas comunidades da
Judéia, em primeiro lugar, portanto, também na comunida­
de de Jerusalém. Apenas mais tarde, quando o perseguidor
de outrora se transformara no bem-sucedido missionário
da Síria e da Cilícia, ouviu-se falar dele. Isso seria de todo
impensável no caso de um homem, a quem, segundo a opi­
nião de Lucas, teria sido atribuído em Jerusalém o papel
V ida e O bra 61

decisivo na perseguição aos cristãos (At 22.4s.). Portanto,


é muito difícil adm itir que Paulo tenha estado presente à
lapidação de Estêvão, como Lucas claramente observa em
passagens anteriores dos Atos dos Apóstolos (At 7.58; 8.1).
O próprio Paulo, em nenhum lugar, fala de uma atividade
persecutória sua em Jerusalém.
Passíveis de contestação se configuram, outrossim, as
notícias dos Atos dos Apóstolos no concernente ao apareci­
mento de Paulo em Damasco. É inadmissível que ele tenha
se dirigido para lá munido de plenos poderes da parte do
sumo sacerdote para trazer prisioneiros os cristãos da co­
munidade de Damasco, a fim de serem julgados diante do
tribunal de Jerusalém, pela simples razão de que, debaixo
da administração jurídica de Roma, o Supremo Conselho ja­
mais gozou de semelhante poder jurisdicional - para muito
além das fronteiras da Judéia! E presumível, portanto, que
o fariseu Paulo agisse somente no quadro do direito penal
interno, reconhecido às sinagogas (flagelação, banimento,
excomunhão).
Foi neste contexto e neste nível que ocorreu, em p ri­
meiro plano, a luta pró ou contra Cristo, como está, aliás,
abundantemente atestado em outras fontes. Mais tarde, o
próprio Paulo, segundo o seu testemunho em 2Cor 11.24,
já como ministro de Cristo, foi submetido repetidas vezes
ao terrível suplício dos golpes de azorrague, aplicado pelas
sinagogas. Provavelmente, na sinagoga de Damasco, ele
assumiu primeiro as vestes de juiz e depois as de testemu­
nho do sofrimento.
Da sua conversão a Cristo e da sua vocação ao apos-
tolado, o próprio Paulo fala surpreendentemente pouco.
Quando o faz, é sempre dentro de uma importante decla­
ração e sempre de tal modo que aquele discurso se entre­
lace intimamente na exposição do seu evangelho. Em vista
disso, não se deveria colocar prevalentemente no centro
62 Paulo , V ida e O bra

as suas experiências individuais e especialmente a apari­


ção de Cristo que lhe aconteceu, e que costumeiramente é
lembrada como a visão de Damasco, descrita nos Atos dos
Apóstolos e repetidamente narrada sob a influência pietis-
ta e da moderna psicologia. Por isso, é bom não ultrapassar
fantasiosamente o foco de luz das suas próprias afirmações
e nem nos deixar desviar daquilo que para ele era essen­
cial.
A respeito do conteúdo e do alcance da sua opção por
Cristo, na verdade, uma decisão menos sua do que a ele
imposta, fala com particular clarividência a já citada pas­
sagem da Epístola aos Filipenses, em seu capítulo terceiro.
Significativamente, o texto original está redigido em frases
passivas: "Por ele, eu perdi tudo...", "(...) pois que também
já fui alcançado por Cristo Jesus" (F1 3.8,12).
Discutindo asperamente com seus opositores, Paulo
enumera, inicialmente, todos os privilégios dos quais se po­
dería ter outrora vangloriado. A seguir, porém, ele destaca:
"Mas o que era para mim lucro eu o tive como perda, por
amor de Cristo. Mais ainda: tudo eu considero perda, pela
excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor.
Por ele, eu perdi tudo e tudo tenho como esterco, para ga­
nhar a Cristo e ser achado nele, não tenho a justiça da Lei,
mas a justiça que vem de Deus, apoiada na fé" (F1 3.7-9).
Destas palavras não emerge, de forma alguma, a ideia
de que as suas antigas prerrogativas eram para ele im por­
tantes, mas insuficientes, e que tenha permanecido nele
uma ânsia profundamente insatisfeita. Sua riqueza de ou­
trora se transformou em imundície provocando-lhe agora
náusea: o seu precedente zelo para ser aprovado diante de
Deus, a sua justiça, é apenas uma tentativa de auto-afir-
mar-se diante dele. "Profundidade é a altura na qual me
encontrava. Abandono, a segurança na qual vivia. Trevas,
a claridade que eu possuía" (K arl Barth ).
V ida e O bra 63

A quilo que Paulo esclarece aqui, a partir da sua própria


mudança de vida, é muito mais do que uma mera "confis­
são" pessoal. A mensagem transcende o momento da apa­
rição de Cristo a Paulo - da qual, aliás, nesta passagem, não
há a mínima referência - e se torna uma declaração decisi­
va sobre toda a sua vida. E ainda mais: transforma-se numa
síntese profunda e completa da sua pregação a respeito da
revelação da justiça de Deus que atinge a todos em sua si­
tuação de perdição, mas particularmente agora na situação
de evangelização sob o influxo da graça de Deus. A missão
e o sacrifício de Cristo representam a mudança dos tem­
pos no sentido da forte expressão da Epístola aos Romanos:
"A finalidade da Lei é Cristo para a justificação de todo o
que crê" (Rm 10.4).
Ainda mais rica, do ponto de vista biográfico, e subs­
tancialmente semelhante, do ponto de vista do conteúdo,
é a passagem de G11.15s. Embora a declaração seja extre­
mamente concisa (expressa apenas numa oração subor­
dinada) e não descreva a experiência da sua conversão,
Paulo fala ali de modo ainda mais claro a respeito da sua
vocação, de apóstolo dos gentios, apoiando-se em mode­
los de vocações proféticas do A ntigo Testamento (Jr 1.5;
Is 49.1). Também aqui, do mesmo modo como no capítu­
lo terceiro da Epístola aos Filipenses, o autor relembra o
seu outrora ardente zelo pela Lei e seu envolvim ento na
perseguição contra as comunidades cristãs (G1 1.13s.).
É então, porém, que ocorre a grande mudança: "Quando,
porém, aquele que me separou 'desde o seio materno'
e me 'cham ou' por sua graça houve por bem revelar
em m im o seu Filho, para que eu o anunciasse entre
os gentios, não consultei nem carne nem sangue, nem
subi a Jerusalém aos que eram apóstolos antes de mim,
mas fu i à Arábia, e voltei novamente a Damasco" (G1
1.15-17).
64 Paulo , V ida e O bra

A passagem é da mais alta relevância, não só como au-


totestemunho do apóstolo a respeito da sua vocação, mas,
sobretudo, porque fornece um relato autêntico e preciso,
juntamente com todo o seu contexto de G1 1-2, texto úni­
co em sua modalidade, a respeito de um grande período
da história da sua vida e atividade, na verdade o período
imediatamente subsequente à sua vocação, estendendo-se
o mesmo por longos anos, e a respeito dos quais os Atos
dos Apóstolos não conservaram praticamente nenhuma
lembrança.
Para uma correta compreensão desta passagem é im ­
prescindível o esclarecimento da questão preliminar do mo­
tivo que levou Paulo a um semelhante e amplo relatório e
qual era a finalidade desta prestação de contas. A Epístola
aos Gálatas, escrita pelo apóstolo durante a sua atividade
missionária em Efeso, foi motivada pela agitação decorren­
te de erros doutrinários dos judaizantes, que se haviam in­
troduzido nas comunidades da região da Galácia, na Ásia
Menor, induzindo-as à beira da apostasia. O seu ataque se
direcionava contra o evangelho, liberto da Lei, que Paulo pre­
gava entre os gentios, a seus olhos uma grosseira e oportu­
nista redução da mensagem de Cristo, porque, desta forma,
os pagãos ficavam eximidos da exigência da circuncisão, se­
gundo eles, necessária para a salvação, e, finalmente, porque
suprimia a obrigatoriedade da Lei também para os gentios.
Esta acusação correspondia perfeitamente às concep­
ções fundamenteis dos judaizantes, pouco importando
a tática utilizada para solapar a missão do apóstolo entre
os gentios. Também eles se consideravam cristãos, e não
simplesmente judeus. Tornar-se cristão, apregoavam eles,
somente era realizável através da plena inserção no povo
eleito de Israel.
Com este ataque contra a pregação de Paulo, visavam,
ao mesmo tempo, o seu mandato apostólico, para o qual,
V ida e O bra 65

segundo eles, ninguém o autorizara. Estes dois elementos,


a saber, a falsificação da mensagem e a atribuição indevida
de querer ser apóstolo, constituíram os motivos substan­
ciais das acusações dos opositores de Paulo. Por essa razão,
defende este, ao mesmo tempo em que profere também a
sua acusação, em sua epístola, e isso com extremo rigor,
tanto a verdade do seu evangelho para os pagãos quanto
a origem divina do seu mandato apostólico. Ambas estão
intimamente entrelaçadas, como dois lados de uma mesma
questão, atrás da qual está a autoridade da única vontade
de Deus.
Segundo uma interpretação amplamente difusa, estes
agitadores na Galácia teriam lançado em rosto a Paulo a sua
dependência direta dos primeiros apóstolos de Jerusalém,
acusando-o, por conseguinte, de haver recebido a sua dou­
trina de segunda ou terceira mão. Por isso, ele não seria um
apóstolo autêntico, por Deus mesmo constituído como tal.
Os dois primeiros capítulos da Epístola aos Gálatas teriam
sido escritos para responder a estas acusações, como de­
monstração clara da sua independência de Jerusalém.
Efetivamente, em todo este relatório, esboçado quase
de forma protocolar, em torno da vocação de Paulo e sua
consequente conduta e atividade posterior, o ponto central
é justamente a insistente e drástica afirmação da sua inde­
pendência de qualquer autoridade humana e, portanto, a
asseveração do caráter divino do seu evangelho e do seu
ministério.
Não obstante, é impossível que os opositores judai-
zantes de Paulo tenham aduzido como argumento con­
tra ele precisamente a sua dependência dos apóstolos de
Jerusalém, os quais não se haviam afastado da Lei e que
não admitiam como natural o acesso incondicional dos
pagãos à salvação. Apenas partindo do pressuposto dos
adversários, é compreensível que eles mesmos, indepen-
66 Paulo , V ida e O bra

dentemente das suas justificações, se sentiam autorizados


por Jerusalém e, a seus olhos, somente podería ser apóstolo
legítimo aquele que admitia a tradição salvífica do privile­
giado povo de Deus, impressa na Lei.
No caso de ser verdadeira esta hipótese, então a sua
acusação somente podería ter soado da seguinte forma:
da parte dos primeiros apóstolos, algo bem melhor foi-lhe
ensinado. Mas, de forma escandalosa, ele abandonou esta
doutrina, a saber, a inseparável relação entre Lei, exigência
da circuncisão e anúncio da salvação, falsificando-as por
iniciativa própria, para mais facilmente ter acesso aos gen­
tios (G1 1.10). Por isso, o anúncio do seu evangelho cons­
titui uma traição do legado que lhe foi transmitido e que
recebeu. Nós, pelo contrário, persistimos na verdadeira
continuidade e pregamos a mensagem legítima.
No primeiro capítulo da Epístola aos Gálatas, Paulo
corta pela raiz esta argumentação, na medida em que diz:
nem mesmo o vosso pressuposto está correto. Na verdade,
eu não tive nenhum tipo de relação com Jerusalém, nem
por ocasião da minha vocação de apóstolo, nem depois ao
longo de dezessete anos, excetuando um breve encontro
com Cefas (Pedro), três anos após o ocorrido no caminho
de Damasco. Deus me confiou o evangelho e a missão junto
aos gentios, sem a intermediação dos primeiros apóstolos.
É por esta razão que já não mais prego a exigência da cir­
cuncisão que outrora eu pregava como missionário fariseu
da Diáspora (G1 5.11) e que supostamente deveria conti­
nuar pregando em virtude do ensinamento recebido dos
primeiros apóstolos.
Neste sentido, já no início da epístola se afirma: "Paulo,
apóstolo - não da parte dos seres humanos nem por inter­
médio de algum ser humano, mas por Jesus Cristo e Deus
Pai que o ressuscitou dentre os mortos" (G1 1.1; cf., tam­
bém, G1 l.lls .). E para dar um xeque-mate definitivo nos
V ida e O bra 67

seus opositores, pode acrescentar ao relato da Convenção


dos apóstolos em Jerusalém as palavras: até mesmo os p ri­
meiros apóstolos me confirmaram naquela oportunidade
a liberdade do meu evangelho em favor dos gentios (G1
2.1-9). Desta maneira, tudo leva a crer que não foram os
opositores que imputaram a Paulo a sua dependência de
Jerusalém, e sim que foi precisamente ele que criticou e
derrubou a ligação entre tradição e mensagem da salvação,
apregoada como inquebrantável pelos adversários.
A energia com a qual o apóstolo defendeu este ponto
de vista e ilustrou com a sua própria conduta permane­
ce inicialmente para nós ainda muito singular e estranha.
Pois ela causa a impressão e parece confirmar a suposição,
na verdade, amplamente disseminada, de que o apóstolo,
diante da desconsideração para com a tradição a respeito
de Cristo, conservada pelos primeiros discípulos, tenha
declarado única e exclusivamente a manifestação, por
ele pessoalmente presenciada, do Senhor ressuscitado e
exaltado, como origem e legitimação da sua vocação e da
sua pregação. Em outras palavras, tenha colocado a sua
visão de Cristo no lugar da tradição prim itiva a respeito
de Jesus.
Se fosse correta esta concepção, então seria preciso
concluir, da passagem citada, que a autodefesa de Paulo,
até mesmo a sua mensagem e teologia, estariam impreg­
nadas de singulares traços de fanatismo. Basta imaginar o
seguinte: ele, o outrora fariseu e perseguidor dos cristãos,
o qual não conheceu pessoalmente Jesus em sua vida ter­
rena (2Cor 5.16), rejeita bruscamente qualquer tipo de rela­
ção com os primeiros discípulos de Jesus, e isto não apenas
imediatamente após a sua conversão, mas consegue levar
a efeito durante longos anos, uma atividade missionária
de sua própria iniciativa em regiões gentílicas, mantendo
distância premeditada da comunidade de Jerusalém e de
68 Paulo, V ida e O bra

seus dirigentes. De acordo com a interpretação habitual,


seria necessário deduzir categoricamente de G1 1.15s. que
a experiência isolada no caminho de Damasco lhe teria
fornecido o conteúdo de toda a sua pregação posterior e
a maneira de legitimar a sua missão. Ele teria sido, então
- uma acusação que certamente lhe foi feita mais de uma
vez em seu tempo - um recalcitrante e obstinado cabeçudo,
que colocou em risco a unidade da Igreja, por causa da sua
experiência pessoal.
No entanto, com esta espécie de reflexões, que aos
poucos foram se impondo facilmente e cuja consequências
foram, na verdade, poucas vezes analisadas de maneira
clara, interpretamos de modo equivocado e desfigura­
mos o verdadeiro sentido dos dois primeiros capítulos da
Epístola aos Gálatas.
Relativamente ao primeiro capítulo desta epístola, é fal­
sa e enganadora a formulação de uma alternativa genérica
e fundamental: tradição ou revelação particular, por assim
dizer muito privada do próprio apóstolo, como fundamen­
to da sua missão e mensagem. De misteriosas "confidên­
cias" ou segredos sussurrados aos ouvidos, transmitidos
em momentos de êxtase, que teriam sido mais importan­
tes e balizadoras para o apóstolo do que todas as tradições
dos primeiros apóstolos, não há aqui nenhum sinal. Pelo
contrário, trata-se exclusivamente, neste texto, do direito
e da liberdade de pregar livremente o seu evangelho aos
pagãos.
Sua mensagem central - aliás, não diferentemente do
que nas Epístolas aos Filipenses e aos Romanos - consiste
em afirmar que Deus colocou um fim, através da missão
de Cristo, ao caminho judaico da salvação pela justiça da
Lei, apresentando a salvação para todos unicamente pela
justificação na fé. Que este conhecimento lhe tenha surgido
de modo singularmente pessoal, transformando toda sua
V ida e O bra 69

existência e convocando-o para ser apóstolo dos gentios,


permanece indiscutível e de relevância ímpar. Mas, tudo o
que ele afirma a respeito de si mesmo, não faz senão ilus­
trar e refletir a obra que Deus realiza em Cristo, obra d iri­
gida ao mundo inteiro para transformá-lo, e proclamada
através da mensagem da salvação.
Para o equívoco assinalado acima, carregado de con­
sequências para a imagem pessoal de Paulo, contribuiu em
muito a difundida interpretação do verbo "revelar", u tili­
zado pelo apóstolo em G11.15s., entendido costumeiramen­
te como visão ou como experiência pessoal e que deve ser
referido à aparição do ressuscitado efetivamente percebida
por Paulo no caminho de Damasco (ICor 15.8; 9.1). Não há
que duvidar que a conversão e a vocação do apóstolo ocor­
reram naquela oportunidade.
Todavia, é se suma relevância para a compreensão
do testemunho pessoal aduzido no primeiro capítulo da
Epístola aos Gálatas o fato de ele não justificar a partir do
acontecimento de Damasco a sua missão apostólica espe­
cial junto aos gentios e sua inclusão entre as testemunhas
da ressurreição. Todas as vezes que faz referência a seu
caráter de testemunha da ressurreição, ele sempre se in­
sere no círculo de todos os apóstolos, e confirma, destarte,
a mensagem comum a todos: "Por conseguinte, tanto eu
como eles, eis o que pregamos. Eis também o que acredi­
tastes" (ICor 15.11).
Nos dois primeiros capítulos da Epístola aos Gálatas,
porém, está em jogo, para Paulo, antes de qualquer coisa,
a justificação da sua distância, rigorosamente observada,
em relação aos primeiros apóstolos, e da sua pregação,
livre da Lei, junto aos gentios. Portanto, o termo "reve­
lação", em G1 1.15s., deve conter um outro significado.
Esta palavra, que tem sua origem na linguagem apoca­
líptica, caracteriza aqui, como, aliás, reiteradamente em
70 Paulo, V ida e O bra

outras passagens paulinas, especificamente no restante da


Epístola aos Gálatas, um acontecimento objetivo, transfor­
mador do mundo, que, através da ação soberana de Deus,
conduziu para a criação de uma nova era cósmica que é
anunciada no evangelho.
Neste sentido, escreve o apóstolo: "Antes que chegas­
se a fé, nós éramos guardados sob a tutela da Lei para a fé
que haveria de se revelar. Assim, a Lei se tornou nosso pe­
dagogo até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé"
(G13.23s.). "Quando, porém chegou a plenitude do tempo,
enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido
sob a Lei, para remir os que estavam sob a Lei, a fim de que
recebéssemos a adoção filia l" (G1 4.4s.). Aqui, do mesmo
modo como em G1 1.15s, Paulo emprega o mesmo termo
cristológico, que expressa alteza e soberania, a saber, "Filho
de Deus". Em Paulo, é justamente este termo que vence to­
das as barreiras de uma fé judaico-messiânica, de cunho
particularista ou exclusivista e que, fundamentalmente, diz
respeito ao âmbito das idéias referentes à salvação, aber­
ta para todos, judeus e pagãos. Integra, portanto, o núcleo
da mensagem paulina da justificação (ver, além de G1 3-4,
também Rm 8.2-4).
O testemunho que Paulo fornece no prim eiro capí­
tulo da Epístola aos Gálatas a respeito da sua vocação in ­
dica, não diferentemente do capítulo terceiro da Epístola
aos Fílipenses, que a sua maneira de entender a vocação
e o mandato missionário está inteiramente determinada
pela sua pregação e sua teologia e não por uma arbitrária
pretensão de ter recebido uma revelação pessoal p a rti­
cular.
O registro habitual de uma alternativa formal, a saber:
aqui, direta inspiração pneumático-visionária, e lá, trans­
missão ordenada da tradição intermediada, atribui ao após­
tolo uma ideia que corresponde exatamente a um princípio
V id a e O bra 71

geral defendido por seus adversários, e desconhece a opo­


sição real e universal entre Lei e Evangelho, que transcende
amplamente a sua própria pessoa.
Grande importância deve ser atribuída ao esclareci­
mento destes fatos, sobretudo porque este mal-entendido
ainda hoje prejudica, em grande escala, a imagem de Paulo,
o que lhe proporcionou, de modo inquietante, a pecha de
"entusiasta" e individualista. Embora Paulo tenha convivi­
do efetivamente com este ódio à sua pessoa, por causa da
distância que, de forma consequente, mantinha em relação
a Jerusalém, ainda assim existem sólidas razões, tanto de
natureza teológica quanto histórica, para esta sua atitude.
E estas razões são facilmente elucidáveis.
Na comunidade prim itiva, ainda'm uito fortemente
presa às concepções e ao ideário judaicos, e vivendo na ex­
pectativa apocalíptica do messias vindouro, não foi possí­
vel que Paulo, nos primeiros tempos, obtivesse uma ade­
quada compreensão do Evangelho que anunciava a graça
libertadora e acessível a todos e que pregava Cristo como
término da Lei. Os questionamentos e os conhecimentos
revolucionários que surgiam no ambiente helenístico, em
princípio, deveriam parecer estranhos e incompreensíveis
para a comunidade de Jerusalém, mesmo se nós não dispo­
mos de nenhum indício ou comprovação de que, durante a
primeira década e meia após a vocação de Paulo, existiam
tendências no seio da comunidade prim itiva de Jerusalém
favoráveis ao rompimento da comunhão eclesiástica com a
comunidade helenística e dispostas a acusar de heresia os
seus mensageiros e apóstolos.
Pelo contrário, sabemos que a notícia dos sucessos
missionários do perseguidor de Cristo de outrora irrom ­
peu no seio das comunidades palestinenses da mãe-pátria,
despertando ali alegria e louvor (G1 1.23s.). Contudo, os
problemas fundamentais sobre o sentido da pregação de
72 Paulo, V ida e O bra

Cristo que, mais cedo ou mais tarde, deviam emergir, per­


maneciam momentaneamente inadvertidos e por resolver.
O momento em que a comunidade prim itiva de Jerusalém
teve que se colocar estas questões veio apenas mais tarde,
isto é, quando as comunidade cristãs provenientes do pa­
ganismo, que não haviam sido fundadas por iniciativa de
Jerusalém, bateram resolutamente às portas da igreja uni­
versal. Isto ocorreu, como se verá adiante, por ocasião da
Convenção de Jerusalém.
Se olharmos para trás, então emerge a questão mais
do que compreensível e óbvia de saber o que preparou e
produziu a mudança de vida de Paulo. A resposta positiva
somente pode ser dada muito singelamente, na medida em
que, no decorrer das discussões tidas em Damasco e alhu­
res com cristãos, antes odiados e perseguidos, o apóstolo
compreendeu repentinamente quem era, na verdade, Jesus
e qual era o sentido da sua vinda e da sua morte para ele
e para o mundo... aquele Jesus que ele havia considerado
antes como um subversivo dos sagrados fundamentos da
fé judaica, e tendo sido, por isso, com toda justiça, crucifi­
cado. Que esta questão, despertada através da fé e do tes­
temunho dos discípulos, mexesse com ele e o perturbasse
profundamente, é algo que, sem dúvida alguma, precisa
ser admitido. Paulo, porém, mantém silêncio em torno dis­
so. Aliás, afirma claramente que a mudança nele produzi­
da não foi o resultado de um lento processo de amadureci­
mento, e sim que ela ocorreu em virtude da ação soberana
e livre de Deus.
Seja como for, é necessário rejeitar a hipótese, muitas
vezes divulgada de forma fantasiosa, segundo a qual, no
seu íntimo, há tempos estava em gestação uma crise por­
que, já na qualidade de piedoso fariseu, reconheceu, aos
poucos, a fragilidade dos fundamentos da sua religiosida­
de, tendo sofrido por causa da sua crescente inadequação
V ida e O bra 73

diante dos altos ideais e das severas exigências da Lei (quan­


to ao texto de Rm 7.7-25, falsamente interpretado nesta
direção).
As palavras do próprio apóstolo sinalizam exata­
mente na direção oposta. O encontro com Cristo crucifi­
cado e ressuscitado e o chamamento de Deus não ocorre­
ram, de modo algum, com um homem atormentado por
suas angústias de consciência e alquebrado debaixo das
suas próprias deficiências, como sabemos ter aconteci­
do com L u te r o ; pelo contrário, tiveram lugar com um
orgulhoso fariseu, cuja glória inabalável consistia na
sua pertença ao povo eleito, na lei de Deus e na própria
justificação.
No caso da conversão e mudança de vida, vivenciadas
por Paulo, elas não aconteceram com um infiel ou incrédu­
lo que descobriu o caminho para Deus, e sim com um zelo­
so defensor de Deus, o qual, como nenhum outro, tomava
a sério as suas exigências e promessas. Deste homem, pio
e zeloso, Deus mudou o caminho através de Cristo, morto
na cruz ignominiosa, permitindo que brilhasse uma luz, da
qual fala Paulo, em outra oportunidade: "Porquanto Deus,
que disse: 'Do meio das trevas brilhe a luz!', foi ele mesmo
quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o co­
nhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de
Cristo" (2Cor 4.6).
Neste ponto, já não é mais necessário procurar m oti­
vos para justificar nossa preferência pelas suas próprias
afirmações no caso da apresentação da sua conversão e
chamamento, colocando em segundo plano as descrições
que os Atos dos Apóstolos fazem do ocorrido no caminho
de Damasco. O episódio é narrado de maneira grandilo­
quente e dramática não menos de três vezes: uma vez,
em forma de narração direta (At 9.1s.) e duas vezes, em
discursos atribuídos a Paulo (At 22.3; 26.9s.). Não faltam
74 Paulo , V ida e O bra

variações em torno de pormenores entre uma versão e ou­


tra, havendo uma evidente imitação dos modelos judaico-
veterotestamentários das epifanias e de narrações de voca­
ções, enfeitadas pela lenda.
Deste modo, o autor dos Atos dos Apóstolos exerceu
uma influência muito vigorosa sobre a imagem tradicional
de Paulo, muito mais fortemente do que os testemunhos
que encontramos nas próprias epístolas do apóstolo. Sem
abordar pormenorizadamente cada uma das narrações do
livro dos Atos dos Apóstolos, basta acenar para alguns ele­
mentos importantes que permitem estabelecer uma com­
paração entre aquelas narrações e as afirmações constantes
nas epístolas paulinas.
Ambas as fontes falam da vitória de Deus sobre aque­
le que, imbuído de um apaixonado zelo pela fé judaica,
perseguia Cristo e a sua Igreja. Portanto, não se trata da
conversão de um pecador arrependido. Tanto nos Atos dos
Apóstolos quanto nas epístolas paulinas, o núcleo central
da mensagem concernente ao episódio de Damasco consis­
te no seguinte: o Senhor elevado ao céu, em sua soberana
onipotência, transforma o seu perseguidor em seu testemu­
nho.
Entretanto, são palpáveis também as diferenças das
duas fontes. Os relatos de Lucas silenciam significativa­
mente a respeito da vocação de Paulo para ser apóstolo,
o que o coloca no mesmo plano e possuidor dos mesmos
direitos dos Doze. Narram, ao invés, como ele, feito cego
em decorrência da visão, foi miraculosamente curado e
batizado, em Damasco, por Ananias, um discípulo ze­
loso na observância da Lei (A t 9.18; 22.12s.). Informam
depois como ele voltou a Jerusalém e como, somente
ali, no Templo, se completou o seu destino, por meio de
uma nova visão, na qual Cristo o envia para junto dos
gentios, longe dos impenitentes judeus (A t 22.17-21).
V ida e O bra 75

A sua obra missionária teria tido seu ponto de partida


aqui em Jerusalém, do mesmo modo como Saulo, segun­
do A t 9.23s, mas em clara contradição com o capítulo
prim eiro da Epístola aos Gaiatas, logo após a sua conver­
são, é introduzido por Barnabé na comunidade prim itiva
e no círculo dos Doze, concretizando, dali em diante, a
sua grande atividade missionária, não na qualidade de
apóstolo, mas como representante autorizado pela igreja
apostólica.
Lucas, certamente, não estava dando livre curso à fan­
tasia ao narrar desta forma o seu relato, mas reelaborou tra­
dições que chegaram oralmente a seu conhecimento, mes­
mo se a sua autenticidade e exatidão devam ser colocadas
em dúvida em pontos específicos, diante das afirmações
pessoais do próprio apóstolo.
O quadro-síntese mostra naturalmente os traços carac­
terísticos da concepção lucana de igreja e de história. Nota-
se, sobretudo, que Lucas não sabe mais nada a respeito
daquilo que, segundo as declarações de Paulo, constitui o
fator decisivo da mudança da sua vida. É aqui que reside
a diferença teológica mais profunda entre ambos. Paulo,
na ótica de Lucas, permanece até o fim da vida um fariseu
convicto e zeloso na observância da Lei. O Paulo autêntico,
ao invés, por amor a Cristo, renunciou à lei como caminho
para a salvação.
O caráter esquivo e parcimonioso dos testemunhos
pessoais de Paulo a respeito da sua conversão e vocação
já não será mais considerado por nós como uma deficiên­
cia. A causa do Evangelho, revelada e confiada ao apóstolo,
intervém na história com uma força que se manifesta tam­
bém precisamente na maneira como ele fala da mudança
decisiva da sua vida. Isto confirma, mais uma vez, o quanto
lhe era importante a mensagem recebida, e quão pouco a
sua pessoa.
76 Paulo , V ida e O bra

3. P R IM E IR A A T IV ID A D E M IS S IO N Á R IA

Após a sua conversão, durante mais de uma década e


meia, atuou Paulo em Damasco, longe de Jerusalém, como
missionário, antes que se dirigisse à Convenção dos após­
tolos em Jerusalém e fossem abordados entre ele e os d iri­
gentes da comunidade prim itiva os problemas vitais que
haviam surgido, em últim a instância, a partir da sua pró­
pria atividade no seio do cristianismo nascente. É preciso
por um momento, captar o sentido deste lapso de tempo - o
período imediatamente após o evento de Damasco - e a sig­
nificativa duração dos intervalos, acuradamente descritos
pelo próprio apóstolo: três anos entre sua conversão e um
primeiro breve contato com Cefas (Pedro), em Jerusalém
(G11.18) e, em seguida, catorze anos de reiterada ativida­
de autônoma até a Convenção dos apóstolos, em Jerusalém
(G12.1).
Na verdade, este período de tempo fica ligeiramen­
te reduzido quando se observa que os antigos contavam
como um ano inteiro o primeiro e o últim o de um intervalo,
mesmo que estes fossem incompletos. Deste modo, a soma
dos dois intervalos, três anos (G1 1.18) e catorze anos (G1
2.1), não constitui necessariamente dezessete anos comple­
tos, podendo ser apenas quinze ou dezesseis.
Este lapso de tempo constitui quase o triplo dos pou­
cos anos posteriores, nos quais surgiram todas as suas epís­
tolas e a respeito dos quais também os Atos dos Apóstolos
fornecem ricas informações e preciosos dados. Levando
em consideração este fato, só podemos lamentar que as
notícias a respeito do importante período inicial das ati­
vidades paulinas sejam tão escassas. O que dele sabemos,
conseguimos extrair tão-somente do excessivamente cur­
to excerto de G1 1.16-24. O livro dos Atos dos Apóstolos
silencia por inteiro a respeito da atividade missionária de
V ída e O bra 77

Paulo mencionada nestes versículos e apresentam somen­


te poucos dados, que além do mais, são historicamente
inaceitáveis quando confrontados com as afirmações pes­
soais do apóstolo.
Ainda assim, as breves, mas extremamente precisas
informações, descendo até mesmo a pormenores e especi­
ficações de intervalos de tempo e de lugares, cuja exatidão
o apóstolo reforça através de um juramento ("Isto vos es­
crevo asseguro diante de Deus que não m into" - G1 1.20),
deixam transparecer quanta coisa aconteceu durante aque­
les anos.
Paulo, que fora vocacionado para ser apóstolo dos
gentios, desiste de reunir e de conferenciar com os prim ei­
ros apóstolos de Jerusalém, partindo imediatamente para a
Arábia, isto é, para a região gentílica a leste do Jordão, no
sul de Damasco (G1 1.17). E um equívoco imaginar que a
estadia do apóstolo nesta paragem, pelo espaço de dois e
meio a três anos, tenha sido um tempo de solidão monacal,
durante o qual, entregue à meditação, ele se teria prepara­
do para o seu futuro apostolado.
Tal reconstrução imaginária foi inventada com uma
finalidade edificante, segundo o modelo de vida dos
anacoretas da Igreja antiga, mas que não encontra ne­
nhum fundamento nas assertivas de Paulo e contradiz,
ademais, expressamente a missão evangelizadora que ele
afirma, clara e enfaticamente, ter recebido. Como podia
Paulo ter procrastinado por tanto tempo a sua missão,
ele que esperava para breve o fim do mundo e o retorno
de Cristo?
Além disso, a Arábia não era uma região desértica e
isolada e sim um território habitado e, tal como ainda hoje,
atravessado por beduínos, onde existiam conhecidas ci­
dades helenísticas, tais como Petra, a residência do rei dos
nabateus, Aretas IV (que reinou do ano 9 a.C. ao ano 40 d.C),
78 Paulo, V ida e O bra

citado por Paulo em 2Cor 11.32, assim como Gerasa e


Filadélfia (a atual cidade de Amã). Pode-se, por isso, admi­
tir, ainda que isso não seja dito expressamente, que Paulo
anunciou o Evangelho no território que, hoje, corresponde
ao reino da Jordânia. Evidentemente, o seu trabalho na­
quela região não teve muito sucesso. Ele mesmo não está
em condições de fazer referência a nenhuma comunidade
cristã ali fundada e, certamente, não é casual o silêncio dos
Atos dos Apóstolos em torno daquele primeiro período
missionário paulino.
É muito provável também que o resultado infrutífe­
ro do seu esforço e as perseguições a que foi submetido
obrigaram Paulo a interromper repentinamente a sua ativi­
dade e a retornar a Damasco (G11.17). Até mesmo ali, o et-
narca do rei nabateu procurou prendê-lo. Para escapar das
suas mãos, fizeram-no descer precipitadamente num cesto
ao longo da muralha (2Cor 11.32; cf., também, A t 9.23s.).
Portanto, Paulo não passou desapercebido na Arábia, ain­
da que a sua pregação tenha oportunizado prevalentemen­
te oposição e perseguição no meio da população limítrofe
da Judéia.
Somente então, dois ou três anos após a sua conver­
são, subiu Paulo pela primeira vez a Jerusalém e ali estabe­
leceu contato pelo menos com o apóstolo Pedro (G1 1.18).
Contudo, conforme acentua explicitamente, somente com
este, e não com a comunidade prim itiva e nem com os p ri­
meiros apóstolos em seu conjunto. O escopo daquela visita
de duas semanas era o de se "avistar" com Cefas, não ten­
do visto nenhum outro apóstolo, exceto Tiago, o irmão do
Senhor.
M uito interesse despertaria, sem dúvida, em nós, se
nos fosse possível captar algo de autêntico e fidedigno
deste prim eiro encontro memorável entre Paulo e Pedro, o
prim eiro discípulo chamado por Jesus. Não admira, pois,
V ida e O bra 79

que a pesquisa tenha envidado todos os esforços imagi­


náveis para projetar alguma luz sobre este fato da vida
de Paulo e para extrair algo de esclarecedor de qualquer
pormenor da parcimoniosa informação prestada por ele.
Mas o texto silencia, e carecem de um exame rigoroso to­
das as hipóteses levantadas para distinguir as plausíveis
das infundadas.
Certamente, é justo pensar e afirmar que o intuito de
Paulo de se avistar com Cefas, o então dirigente da comu­
nidade prim itiva, já era da mais alta relevância e, com toda
certeza, a compreensão da mensagem de Cristo, razão de
ser da vida da comunidade prim itiva e que Paulo, a seu
feitio, também já havia anunciado, não estava ausente da
conversação entre ambos. Ademais, é plenamente correto
supor que o diálogo entre os dois não desembocou num
desencontro ou conflito, pois, a respeito de coisas seme­
lhantes, quando oportuno, Paulo não se pejava de falar
francamente (cf. G12.11s.). Por isso, dificilmente Pedro se
terá colocado no caminho de Paulo, opondo-se à pregação
deste.
Por outro lado, também é evidente que o encontro não
conduziu a um total acordo e convergência. Neste caso, não
se compreendería por que Paulo insistia tanto em manter
distância do grupo dos primeiros apóstolos. Sem dúvida,
Pedro permitiu ao novo evangelista plena liberdade para
dar continuidade à sua pregação, sem poder ainda prever
os problemas posteriores, que somente aos poucos iriam
aflorar em primeiro plano. Mas, com estas observações, já
tocamos, e talvez ultrapassamos, os limites do que é lícito
hipotetizar.
De qualquer forma, é preciso que não se dê asas à
sempre desfraldada fantasia, segundo a qual Paulo te-
ria finalmente, ainda que tardiamente, reconhecido o
caráter de insuficiência da sua pregação de Cristo, resol-
80 Paulo, V ida e O bra

vendo agora - após três anos! - buscar as informações


que até então lhe faltavam, e submetendo o seu aposto-
lado m inisterial ao prim ado dos que se encontravam em
Jerusalém.
Semelhantes conjecturas descuram o fato de que to­
das as informações contidas nos dois primeiros capítulos
da Epístola aos Gaiatas, inclusive a lembrança da sua bre­
ve visita a Cefas, devem estar subordinadas ao pensamen­
to central do apóstolo: "O evangelho por mim anunciado
não é segundo o ser humano, pois eu não o recebi nem
aprendi de algum ser humano, mas por revelação de Jesus
Cristo" (G1 1.11). Consequentemente, é absurdo pensar
que Paulo tenha feito tardiamente algum treinamento
catequista ou algum curso missionário de curta duração
junto a Pedro.
As conclusões que tiramos a respeito dos dois ou
três anos que precedem a visita do apóstolo a Jerusalém
são aplicáveis, outrossim, aos longos anos subsequentes,
nos quais Paulo pregou o mesmo evangelho, agora na
Síria e na sua terra natal, Cilícia, portanto, seguramente
nos arredores de Tarso. Novamente, a respeito dispomos
somente de uma única informação (G1 1.21; ver, porém,
também A t 9.30). Contudo, pode-se deduzir do contexto
que, aqui, a atividade produziu resultados e conduziu
à fundação das primeiras comunidades, pois a notícia
da atuação do perseguidor de Cristo de outrora chegou
logo aos ouvidos dos cristãos na Judéia, para os quais
ele, até então, não era pessoalmente conhecido, de tal
maneira que eles louvavam a Deus por causa desta m u­
dança ocorrida com Paulo (G11.22-24; ver, outrossim, A t
15.23,36,41).
O tempo de duração da atividade de Paulo na Síria
e na Cilícia é desconhecido. De concreto, sabemos ape­
nas que Barnabé, reiteradamente citado nos Atos dos
V ida e O bra 81

Apóstolos e nas epístolas, acompanhou Paulo, na quali­


dade de colaborador, de Tarso a Antioquia (A t 11.25s.).
Com isso, pela primeira vez, se faz menção de dois nomes
importantes e significativos para a história do cristianis­
mo prim itivo.
Antioquia, às margens do rio Orontes, capital da Síria,
com meio milhão de habitantes, a terceira maior cidade
do império romano, logo depois de Roma e Alexandria,
exerceu já no cristianismo prim itivo um papel relevante.
Os começos daquela comunidade cristã se devem aos ante­
riormente referidos judeu-cristãos helenistas, expulsos ou
fugitivos de Jerusalém, cuja fé em Cristo os diferenciava
da comunidade cristã palestina, por causa da sua liberdade
diante da Lei judaica. Antiga e insuspeita tradição, manti­
da nos Atos dos Apóstolos (At 11.19-26), fixou a memória
deste importante acontecimento.
Em Antioquia, numa época bem remota e indepen­
dentemente da pregação paulina, o cristianismo já havia
rompido os limites do judaísmo, tendo sido acolhido pelos
gregos. Significativamente, foi aqui que surgiu pela prim ei­
ra vez a caracterização do novo nome de "cristãos", isto é:
"os de Cristo", para os fiéis (At 11.26), uma denominação
que eles mesmos dificilmente se teriam atribuído, mas que
lhes deve ter sido outorgada pelos pagãos, caracterizando-
os, assim, como um terceiro grupo de pessoas, ao lado dos
judeus e dos gentios.
Entre os fundadores da comunidade cristã de Antioquia
deve ser arrolado o já referido Barnabé, um judeu-cristão
helenista, originário de Chipre, dono de riquezas e pro­
priedades em Jerusalém, o qual trabalhou por muito tempo
como missionário em companhia de Paulo, mas também
independentemente deste. E lícito supor que ele teve que
fugir de Jerusalém, juntamente com os adeptos de Estêvão,
transformando-se então em missionário.
82 Paulo, V ida e O bra

Inicialmente, os Atos dos Apóstolos lhe atribuem uma


outra tarefa, a saber, de um enviado oficial da comunidade
prim itiva de Jerusalém, que inspeciona e aprova a recém-
criada comunidade gentio-cristã de Antioquia e, imediata­
mente após a conversão de Paulo, faz a mediação entre a
comunidade de Antioquia e a Igreja-mãe de Jerusalém e os
primeiros apóstolos (At 9.27).
Não é necessário repetir que se trata, evidentemente,
de uma típica construção lucana, que não se harmoniza
com o capítulo primeiro da Epístola aos Gálatas. Tal cons­
trução não condiz sequer com a função que os próprios
Atos dos Apóstolos e a Epístola aos Gálatas lhe atribuem,
isto é, a de colaborador do apóstolo na obra missionária e
de companheiro deste na delegação enviada de Antioquia
para as conversações com os primeiros apóstolos na assem­
bléia de Jerusalém.
Sem dúvida, Barnabé teve o mérito de ter levado para
Antioquia o apóstolo Paulo, anunciando Cristo, não mais
preso à Lei (At 11.26), um procedimento, talvez, comparável
ao que ocorreu, num momento muito mais tardio da histó­
ria da Igreja, quando o suíço F ar el convenceu uma pessoa
muito mais importante que ele, o reformador C a l v in o , a se
fazer presente na sua cidade natal, Genebra.
É fácil perceber o que significou o aparecimento de
Paulo para a comunidade de Antioquia. O inverso, po­
rém, também precisa ser ressaltado: Paulo, que até este
momento havia exercido uma atividade missionária
livre e autônoma, encontrou, pela primeira vez, o apoio
de uma comunidade que confessava o mesmo evangelho
por ele pregado. Durante um certo tempo, ainda lim ita­
do, Antioquia se transformou na base da missão paulina
posterior.
V ida e O bra 83

4. A CONVENÇÃO DOS APÓSTOLOS


EM JERUSALÉM

Teria irrompido uma cisão na Igreja de Cristo? A fun­


dação das comunidades helenísticas e o caminho autôno­
mo que Paulo seguia demonstram o quanto estava amea­
çada a unidade da Igreja já nos primeiros decênios. O que
significava para as novas comunidades, cheias de vida, a
comunidade prim itiva que, voltada para trás, não havia
ainda rompido inteiramente as cadeias do judaísmo, que
não estava efetivamente envolvida com a perseguição que
se desencadeara contra os helenistas e continuava vivendo
na expectativa apocalíptica da vinda de Filho do Homem
do céu e do fim do mundo? Mas, inversamente, não de­
veríam aparecer os helenistas aos olhos dos judeu-cris-
tãos de Jerusalém como heréticos e perigosos entusiastas?
O que era mais fácil, de um lado e de outro, do que a rup­
tura da comunhão eclesiástica?
A Convenção dos apóstolos em Jerusalém, ocorrida em
torno do ano 48 d.C, demonstra que, surpreendentemente,
a unidade da Igreja não se rompeu e que não aconteceu
o afastamento recíproco entre a comunidade prim itiva e
as demais comunidades cristãs. Sem sombra de dúvida,
este evento pode ser considerado como o mais importan­
te da história da Igreja prim itiva. O próprio Paulo (G1 2.1­
10), como também o livro dos Atos dos Apóstolos (At 15),
oferecem abundantes informações a respeito do mesmo, e
ambos, ainda que de maneiras diversas, reconhecem a sua
importância.
O relato paulino é detalhado e deixa transparecer, na
própria forma da narração, o íntimo envolvimento do após­
tolo no evento. A redação de Lucas reelabora, com extrema
maestria, todo o episódio, conferindo-lhe um lugar de des­
taque no conjunto dos Atos dos Apóstolos. Efetivamente,
84 Paulo, V ida e O bra

o texto se situa na metade do livro e, como observou, acer-


tadamente, alguém: este capítulo representa uma espécie
de divisor de águas. Até a Convenção de Jerusalém, tudo
girava em torno da comunidade de Jerusalém e das suas
figuras dirigentes, principalmente de Pedro. Depois da
assembléia, elas desaparecem do campo visual, tornando-
se, agora, tema central do livro da atividade apostólica de
Paulo.
Todavia, o relato dos Atos dos Apóstolos não possui o
valor de fonte histórica genuína. Abstraindo de algumas notí­
cias não sem importância a respeito do motivo da Convenção,
motivo este confirmado também pela Epístola aos Gálatas, a
narração dos Atos dos Apóstolos, relativamente ao seu con­
teúdo, se apresenta como uma construção literária de Lucas,
redigida numa época em que os antigos conflitos haviam sido
superados há tempo, aparecendo agora tão-somente como
insignificantes ações perturbadoras de fora contra a unidade
substancialmente inatingível da Igreja primitiva. O autor não
deixou escapar a oportunidade de apresentar aquele evento
como uma grande manifestação da unidade da Igreja univer­
sal, sob a direção de Jerusalém, e redigiu, por conseguinte, o
seu texto de acordo com a sua concepção ideal de Igreja e da
história eclesiástica, concepção esta que pertence, na verdade,
a uma época posterior.
Por outro lado, não se pode esperar, a priori, do rela­
to fornecido pelo apóstolo Paulo, um testemunho proto­
colar semelhante a uma ata. O apóstolo aborda o tema da
Convenção, meia década após o evento, no contexto confli­
tuoso específico da Epístola aos Gálatas. Por conseguinte,
a sua narração está profundamente impregnada das idéias
fundamentais, de caráter apologético e polêmico, com as
quais ele rejeita os seus opositores judaizantes.
Ainda que a temática central tenha sido referida corre­
tamente e os pormenores que foram aduzidos sejam dignos
V ida e O bra 85

de crédito, fica evidente, porém, que o relato foi redigido


com o objetivo de ser uma resposta aos problemas que ha­
viam surgido, atualizando constantemente a narração. Não
por acaso são trocadas repetidamente entre si afirmações,
ora referidas ao passado, ora ao presente, que dizem respei­
to aos Gálatas e aos agitadores que se haviam introduzido
na comunidade. As linhas de combate de antes e de agora
se entrecruzam, sobrepondo-se o conflito de outro com o
do presente. Ainda assim, está fora de dúvida, que, no ca­
pítulo segundo, da Epístola aos Gálatas, dispomos de um
relatório autêntico a respeito da Convenção de Jerusalém,
aliás, a única fonte histórica útil.
A origem e o motivo da Convenção dos apóstolos em
Jerusalém são identificáveis a partir da descrição feita por
Paulo, confirmada pelos Atos dos Apóstolos. Alguns ju-
deu-cristãos, defensores da mais rigorosa observância, saí­
ram de Jerusalém e entraram na comunidade de Antioquia,
exigindo a circuncisão para os cristãos convertidos do pa­
ganismo. Isto provocou uma discussão acirrada, o que en­
sejou a decisão de enviar Paulo e Barnabé para junto dos
primeiros apóstolos em Jerusalém com a finalidade de des-
lindar a questão.
Esta decisão, já por si, mas também o desenrolar das
conversações em Jerusalém indicam que os provocadores
da perturbação não devem ser entendidos como envia­
dos oficiais dos primeiros apóstolos e da comunidade de
Jerusalém, ainda que procurassem se fazer passar por tais.
Paulo, com certeza, os teria qualificado assim, do mesmo
modo como fala dos que vieram "da parte de Tiago" (G1
2.12), ao ensejo da discussão do conflito posterior com
Cefas, e como indigita abertamente os "intrusos falsos
irmãos" (G1 2.4).
O motivo do envio de Paulo e Barnabé, na suposição
de que a perturbação tenha sido atiçada diretamente em
86 Paulo, V ida e O bra

Antioquia pelos mais altos dirigentes da comunidade p rim i­


tiva de Jerusalém, só poderia ter sido o de protestar contra
as exigências indevidas da parte dos primeiros apóstolos.
A respeito disso, porém, as fontes silenciam completamen­
te. Enfim, resultaria absolutamente incompreensível que,
no desenrolar da assembléia, Tiago, Cefas e João, designa­
dos por Paulo as "colunas" da igreja prim itiva, tivessem
reconhecido a pregação de um evangelho independente e
livre da Lei, como o que estava proclamado por Paulo entre
os gentios.
É impossível que os apóstolos de Jerusalém tivessem
enviado, pouco antes, para Antioquia, como seus dele­
gados oficiais, aqueles judeu-cristãos, e agora, durante
a assembléia, estes mesmos delegados tenham sido por
eles desautorizados. Neste caso, Paulo teria feito menção
desta mudança de atitude e de opinião dos dirigentes de
Jerusalém, assim como, provavelmente, também o relato
de Lucas nos Atos dos Apóstolos.
Por conseguinte, os agitadores de Antioquia somen­
te podem ter sido judeu-cristãos, extremamente legalistas,
provenientes de Jerusalém e partidários de uma corrente
particularmente ativa e hostil ao cristianismo de origem
gentílica que, nestes anos, se desenvolvera e se reforçara.
O relato paulino no segundo capítulo da Epístola aos
Gálatas descreve sem meios termos o intuito do seu pro­
cedimento e da sua entrada em cena. Eles se infiltraram
na comunidade antioquena "para espiar a liberdade que
temos em Cristo Jesus, a fim de nos reduzir à escravidão"
(G1 2.4). Neste sentido, demonstravam o mesmo compor­
tamento dos judaizantes que depois marcariam presença
na Galácia. Para os ativos agitadores de Antioquia, isto
representava o seguinte: como consequência das suas ob­
servações, pretendiam promover a submissão dos cristãos
convertidos do paganismo à comunidade prim itiva ainda
V ida e O bra 87

rigorosamente ligada à observância da Lei e, caso contrá­


rio, a ruptura da comunidade eclesial com eles. Para Paulo,
estavam assim colocadas em jogo a "verdade do evange­
lho" e a "liberdade" da fé (G12.5).
Deste modo, a prescrição veterotestamentária e ju ­
daica da circuncisão assumiu a importância de elemento
decisivo da confissão da fé. E assaz provável que esta
questão já estivesse presente, ainda que de forma sub-
reptícia, nos anos anteriores entre as comunidades cris­
tãs convertidas do judaísmo e do paganismo, sem, no
entanto, irrom per abertamente e se constituir num pro­
blema declarado.
Agora, porém, durante a Convenção dos apósto­
los, esta questão da obrigatoriedade da circuncisão para
todos se transformou no tema central de toda discussão.
O próprio Paulo entendeu a questão assim desde o começo
e o demonstrou abertamente, de livre iniciativa, na medi­
da em que, de maneira desafiadora e provocadora, levou
consigo para Jerusalém um grego incircunciso, seu futuro
colaborador Tito. Durante a Convenção, foram exercidas
fortes pressões sobre Paulo para que circuncidasse Tito.
Qualquer que fosse o caráter da pressão - na forma de um
ultimato ou de um compromisso - em nenhum momento,
Paulo cedeu à exigência (Cl 2.5).
Para nós, hoje, se configura quase como impossível o
fato de que semelhante norma arcaica e ritual do Antigo
Testamento se tenha transformado em ponto de discór­
dia tão acirrada. Pouco mais tarde, na geração pós-apos-
tólica, este problema praticamente não mais existiu, como
se depreende dos Atos dos Apóstolos, os quais somente
referem esta exigência entre as causas que deram origem à
Convenção dos apóstolos, levantada por um punhado de
fariseus teimosos. Durante as discussões da Convenção,
segundo Lucas, nenhuma sílaba faz menção dela. Conse-
88 Paulo , V ida e O bra

quentemente, o relato lucano não menciona mais nada a


respeito de Tito, relativamente a esta problemática.
Por isso, é justo perguntar: como foi possível que, no
seio da comunidade cristã, a luta pelo Evangelho e pela fé
se tenha podido acender em torno da manutenção ou su­
pressão de uma cerimônia tão ultrapassada e irrelevante
que nem sequer era mantida pelo judaísmo helenista libe­
ral da Diáspora?
A resposta a esta pergunta somente poderá ter o se­
guinte teor: para o rigoroso judaísmo e judeu-cristianis-
mo, a circuncisão era o sinal inalienável da aliança, dado
em tempos imemoráveis por Deus a Abraão para os seus
descendentes, garantindo aos judeus a sua pertença ao
verdadeiro povo de Deus. Ela servia como "selo da elei­
ção" (Rabi Akiba), como confissão e ato de obediência
diante da Lei divina da santidade e diante da exigência
de separação do mundo pagão. Para a comunidade p ri­
mitiva, ainda severamente presa à Lei, com a exigência
da circuncisão estava em jogo nada mais do que a própria
continuidade da história da salvação e com ela a questão
da legitimidade da sua reivindicação de ser o verdadeiro
Israel, em oposição aos judeus que haviam repudiado o
prometido rei messiânico.
Na história das religiões e da Igreja, ocorre, muitas
vezes, que questões de significativa e fundamental im por­
tância e abrangência voltem a ser atuais em termos de r i­
tos e símbolos antigos, cujo sentido dificilmente é captado
pelas gerações posteriores. Nos prim órdios da Igreja e da
sua missão, na questão da circuncisão, estava condensa­
do o problema da historicidade da fé, problema vital tan­
to para o judaísmo como para o cristianismo. Para um e
para outro, a história constitui um elemento essencial. Por
isso, nenhum dos dois jamais se considerou como uma
associação religiosa na qual se pudesse entrar ou da qual
V ida e O bra 89

se pudesse sair a seu bel-prazer. No âmbito da realidade


helenístico-oriental, ao invés, isto era plenamente viável,
procurando-se, por vezes, para fins de maior segurança,
estar em contato ou optar por várias religiões ao mesmo
tempo.
Por isso, a concepção moderna de um "entrar" ou
"sair" de uma comunidade religiosa, ou ideia de se "con­
verter" de uma para outra denominação religiosa, não são,
de forma alguma, aplicáveis às relações entre o judaísmo e
o cristianismo. Assim como não é aplicável a Jesus a cate­
goria de "fundador de religião". Utilizando a célebre sen­
tença de P a sc al , é possível deduzir dali que o Deus da fé
cristã é o "Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó", e não o
"Deus dos filósofos".
A partir desta colocação, compreende-se que aque­
la disputa antiga e historicamente superada, ocorrida na
Convenção de Jerusalém, na verdade, dizia respeito à uni­
dade do povo de Deus e da sua história, implicando na
própria questão da salvação. A luz destes aspectos, não
se pode considerar os adversários de Paulo simplesmente
renitentes ritualistas, e nem ver no próprio Paulo um tei­
moso inovador, não disposto a nenhum compromisso em
questões de somenos importância. Ele precisou se colocar
as mesmas questões dos seus opositores, mas a resposta foi
radicalmente outra.
Antes de continuar dissertando sobre o andamento e
o resultado do debate havido em Jerusalém, importa p ri­
meiramente colocar a questão do caráter do encontro e do
papel dos seus participantes. Esta questão afeta, como se
verá logo a seguir, importantes problemas de estrutura ju-
rídico-eclesiástica da Igreja antiga, do múnus apostólico,
da tradição e da autoridade doutrinária que, desde aque­
la época, constituem questões importantes e decisivas da
Igreja e para a compreensão que ela tem de si mesma.
90 Paulo, V ida e O bra

A Epístola aos Gálatas possibilita plenamente dar uma


resposta a estas questões controvertidas, a qual, na verda­
de, evidenciará, neste ponto, novamente diferenças signi­
ficativas em comparação com a exposição feita por Lucas.
Propositadamente, utilizamos, desde o início, a locução
"Convenção dos apóstolos", evitando a expressão tradicio­
nal "concilio dos apóstolos", porque esta, no concernente à
convocação e direção do encontro, bem como no que tan­
ge o anúncio das suas decisões, conota inadvertidamente
falsas concepções jurídico-eclesiásticas e hierárquicas pró­
prias de uma época posterior.
Até certo ponto, o relato do livro dos Atos dos Apóstolos
ensejou esta opinião, presente ainda na investigação crítica
mais recente. Neste texto, na verdade, os primeiros apósto­
los e os anciãos de Jerusalém aparecem como as autorida­
des cuja palavra possui valor normativo e em cujo nome foi
elaborado, ao final, o "decreto apostólico", somente referi­
do nos Atos dos Apóstolos, e dirigido às comunidades em
Antioquia, Síria e Cilícia (At 15.22s.). Paulo e Barnabé, ao
contrário, figuram, sem serem introduzidos com alocuções
próprias, tão-somente como informantes dos prodígios e
maravilhas de Deus operou entre os gentios.
Concomitantemente, afirma o relato dos Atos dós
Apóstolos somente - e isto corresponde perfeitamente
à concepção que Lucas tem de história - que o passo de­
cisivo para a evangelização dos gentios não foi dada por
eles (Paulo e Barnabé), e sim através do primeiro apóstolo
de Jerusalém, Pedro. Em seu discurso, este afirma expli­
citamente (At 15.7s.) que, por vontade de Deus, a prim ei­
ra pregação do Evangelho os pagãos a receberam da sua
boca, muito tempo antes, aludindo, com isso, à prodigio­
sa conversão do centurião gentio Cornélio, conversão esta
narrada amplamente e de forma programada numa seção
precedente por Lucas (At 10.1-11.18). Finalmente, Paulo e
V ida e O bra 91

Barnabé são mencionados juntamente com outros emissá­


rios que recebem o encargo de transmitir o citado "decre­
to" às comunidades cristãs convertidas do paganismo, por
delegação e ordem dos apóstolos, eles mesmos não sendo
chamados de apóstolos.
Verifica-se imediatamente, ainda uma vez, o quanto é
colocada em relevo a posição dirigente da Igreja prim itiva
de Jerusalém e dos apóstolos em detrimento da Igreja de
Antioquia, o que não se harmoniza com o relato autênti­
co constante no capítulo segundo da Epístola aos Gálatas.
Evidentemente, também os Atos dos Apóstolos não deixam
nenhuma dúvida no concernente à origem antioquena da
Convenção de Jerusalém e que, contrariamente ao que tem
sido afirmado por alguns, de forma alguma é verdade que
Paulo e Barnabé tenham sido "convocados" pela instância
a eles superior dos primeiros apóstolos, por assim dizer, da
parte das autoridades eclesiásticas (opinião esposada por
Stauffer).
M uito menos se pode extrair algo semelhante da
Epístola aos Gálatas. A frase inicial da narração paulina,
"subi (a Jerusalém) em virtude de uma revelação" (G1 2.2),
não deve, de forma alguma, ser interpretada como se im ­
plicasse que, em decorrência de uma revelação divina, ele
tivesse, finalmente (após quase dezessete anos de ativida­
de missionária!), reconhecido a autoridade superior que os
apóstolos chamados antes dele possuíam em relação a seu
próprio apostolado, conferido a ele tardiamente, e que esti­
vesse, finalmente, disposto a se submeter pessoalmente e a
subordinar o seu evangelho a um eventual pronunciamen­
to negativo da parte dos apóstolos.
Mesmo abstraindo todo o resto, olvida-se, assim, o
contexto geral dos dois primeiros capítulos da Epístola aos
Gálatas. Tal contexto, como foi visto, afirma, à luz de G11.12,
que os primeiros apóstolos, na Convenção de Jerusalém,
92 Paulo, V ida e O bra

reconheceram eles mesmos a atividade conduzida por


Paulo durante dezessete anos, com plena autonomia em
relação a Jerusalém, reconhecimento que se estendia à
liberdade do seu evangelho entre os gentios.
Seja como for, ele relata: "(...) expus-lhes - em forma
reservada aos notáveis - o evangelho que prego entre os
gentios, a fim de não correr, nem ter corrido em vão" (G1
2.2). Esta frase não significa, porém, que ele estivesse, na
verdade, disposto a aceitar uma eventual objeção das au­
toridades e a abandonar, por conseguinte, ou mesmo ape­
nas a modificar segundo os seus desejos a mensagem que
havia recebido de Deus e não dos seres humanos. Pelo
contrário, este versículo expressa a sua intensa preocupa­
ção pela conservação da unidade da Igreja de judeus e
gentios, e o quanto ele temia que se pudesse im pedir que
os cristãos provenientes do paganismo fizessem parte da
comunhão eclesial. Não estava, porém, disposto a preser­
var a unidade da Igreja às expensas da verdade do evan­
gelho (G1 2.5).
Inteiramente equivoca é, outrossim, a opinião defen­
dida recentemente, segundo a qual Paulo, ao participar do
"concilio", teria empreendido uma espécie de "viagem a
Canossa" (Stauffer), da mesma forma como já anteriòr-
mente ele se teria tornado infiel aos seus princípios ao v i­
sitar durante quinze dias Cefas e de ter depois disfarçado,
mais ou menos bem, tal infidelidade com o uso de uma lin ­
guagem ambígua e o recurso a uma "revelação". A sua su­
jeição estaria, alem disso, plenamente expressa e demons­
trada, sempre segundo a opinião de Stauffer, através do
fato, por ele mesmo admitido, de um compromisso aceito
no sentido de pagar um "trib uto " regular para a Igreja de
Jerusalém por parte dos cristãos provenientes do paganis­
mo, mas cujo caráter jurídico verdadeiro estaria apenas
oculto nas aludidas "coletas" (G1 2.10).
V ida e O bra 93

A intenção de todo o relato paulino está, nesta inter­


pretação, grosseiramente desvirtuada, o próprio Paulo,
mais ou menos estigmatizado como mentiroso e isso, ade­
mais, diante dos opositores na Galácia, os quais, inques­
tionavelmente, lhe poderiam lançar em rosto a falsificação
dos fatos. Tal explicação interpreta erroneamente toda a
narração desde as suas primeiras frases. Em G1 2.2 o termo
"revelação", que corresponde a uma expressão frequente­
mente utilizada, significa um "aviso" ou instrução divina
que costumava ocorrer nas reuniões litúrgicas das comu­
nidades cristãs primitivas, através da boca de profetas (cf.
A t 13.2)
Através deste "aviso", Paulo sentiu-se chamado a en­
cetar o não certamente fácil caminho a Jerusalém. A tribuiu
a "revelação" como feita somente a si, não a Barnabé. O que
não significa, porém, que ele tenha assomado em Jerusalém
como solitário, por causa de suas concepções teológicas
muito pessoais, apenas em companhia de uns poucos se-
quazes seus. .
O seu modo de se expressar se explica facilmente, con­
siderando que na Convenção de Jerusalém, ele foi o porta-
voz do grupo e a figura central da discussão e que, além
do mais, ao escrever alguns anos mais tarde a Epístola aos
Gálatas, se sentiu na necessidade de defender a si mesmo e
não aos que o haviam acompanhado a Jerusalém.
Todavia, naquela viagem precisou defender não so­
mente a causa própria, mas também a das comunidades
gentílico-cristãs que o haviam enviado como delegado seu
(cf., a respeito, também, A t 15.2), juntamente com Barnabé,
que é mencionado em G1 2.9 como companheiro, no mo­
mento de concluir o acordo. Não se trata, portanto, de
modo algum, de um puro e simples relatório feito por am­
bos diante dos dignitários eclesiásticos e apostólicos, seus
superiores, e os únicos habilitados para tomar decisões.
94 Paulo, V ida e O bra

Pelo contrário, na Convenção, encontraram-se em pé


de igualdade as comunidades provenientes do paganis­
mo e do judaísmo, mesmo se os antioquenos e o próprio
Paulo não subestimassem a posição especial de Jerusalém
e dos primeiros apóstolos no conjunto da Igreja universal.
Mas, a este respeito, trata-se de observar rigorosamente a
distinção entre a sua importância, historicamente funda­
da e que ninguém contesta, e uma autoridade ilim itada
que Paulo não estava disposto a reconhecer. Assim, ele
se expressa reiteradamente e sem intenções irônicas dos
que "eram tidos por notáveis" ou dos "notáveis tidos
como 'colunas'" (G1 2.9), mas, ao mesmo tempo, rejeita
expressamente a ideia de uma sua autoridade fundada
apenas sobre elementos formais, como, por exemplo, o
fato de terem sido discípulos no seguimento do Jesus
terreno ("o que na realidade eles fossem, não me interes­
sa" - G1 2.6).
Paulo fornece poucas informações a respeito do an­
damento da Convenção. Mesmo assim, o seu relato revela
que o entendimento não foi conseguido logo após o prim ei­
ro embate, mas que ele convenceu os apóstolos prim itivos,
expondo-lhes o seu Evangelho da graça soberana de Deus
que abraça todos os seres humanos, rompe as barreiras da
Lei e derruba os obstáculos solidamente estabelecidos entre
judeus e pagãos. Os apóstolos aprovaram sem reservas a
proclamação do Evangelho aos pagãos (GI 2.6). Não existe
nenhum motivo para supor que a sua anuência fosse uma
mera concessão, sem convicção, ou uma permissão m oti­
vada por considerações de política eclesiástica. O acordo,
conforme acrescenta Paulo expressamente, se fundou no
reconhecimento de que a graça de Deus o havia autoriza­
do a pregar entre os gentios, assim como havia atribuído a
Pedro o exercício do ministério apostólico entre os judeus
(G1 2.7). Neste sentido, ficou selada a união da Igreja en-
V ida e O bra 95

tre ambas as partes, com um aperto de mãos, em sinal de


comunhão (G12.9).
Sem dúvida, a comunidade de Jerusalém não se apro­
priou do Evangelho de Paulo em toda a sua integridade
e em todas as suas consequências. Parece que a imediata
percepção da intervenção milagrosa de Deus teve um peso
maior na concretização do acordo do que as considerações
puramente teológicas. Por isso, não se pode presumir, sem
mais nem menos, que os cristãos de Jerusalém comparti­
lhassem as concepções paulinas a respeito da Igreja como
nova criação, onde já não há mais judeu nem grego, mas
todos são um só em Cristo (G1 3.28), concepções estas que,
para Paulo, constituíam convicção arraigada desde a sua
conversão e vocação, e que ele desenvolveu posteriormen­
te e expôs em suas epístolas.
Para as comunidades judaico-cristãs e para a prega­
ção entre os judeus, ao invés, continuavam em vigor as
prescrições válidas até aquele momento. Os antioquenos
não tinham, evidentemente, nem a intenção nem a possi­
bilidade de exigir mais. Na prática, porém, haviam conse­
guido libertar o Evangelho das peias e restrições judaicas,
inicialmente para o seu próprio campo de ação missioná­
rio, mas, em certo sentido, também para o campo judeu-
cristão, uma vez que fora rompida aquela concepção ju ­
daica da Lei, da história da salvação e do povo de Deus,
concepção que não admitia nenhum outro caminho para
a salvação além deste.
A concisa fórmula "nós pregaríamos aos gentios
e eles para a circuncisão" (G1 2.9) se conecta, sem dú­
vida, de modo m uito estreito com o acordo explicita­
mente concluído. O seu significado não é, porém, ime­
diatamente evidente. Estaria, com isso, prevista uma
delimitação geográfica das regiões a serem evangeliza-
das? D ificilm ente, porque, neste caso, os apóstolos de
96 Paulo, V ida e O bra

Jerusalém deveriam lim ita r a sua atividade missionária


no âmbito de Jerusalém e da Judéia, cedendo aos cris­
tãos de origem pagã todo o resto do mundo, inclusive a
numerosa Diáspora judaica. Em assim sendo, o próprio
Pedro nunca teria podido ultrapassar os lim ites acorda­
dos nem se d irig ir a Roma.
Por outro lado, também é impossível um entendimen­
to meramente etnográfico da locução acima, como se, a
partir de então, Paulo e seus companheiros somente tives­
sem permissão de pregar no mundo aos gentios, preven­
do para os judeus um outro tipo de missão, à maneira de
Jerusalém. Mesmo abstraindo da impossibilidade técnica
de semelhante solução, ainda neste caso, teria Paulo in­
fringido gravemente o acordo em suas posteriores viagens
missionárias, ao pregar constantemente nas sinagogas da
Diáspora.
Por isso, não se deve forçar a fórmula, sendo melhor
relacioná-la à característica objetiva da pregação missioná­
ria de ambos. No caso presente, isto significa acima de tudo
e tão-somente que a missão gentio-cristã deveria prosse­
guir sem impedimentos o seu caminho, devendo ambas
as partes renunciar à concorrência e rivalidade no âmbito
missionário do outro.
O acordo selado deixou assim mesmo em aberto ques­
tões importantes, como se evidenciaria algum tempo após
a Convenção de Jerusalém, no conflito entre Paulo e Pedro
em Antioquia. Estas questões eram referentes à relação, es­
pecificamente nas refeições, entre fiéis de origem pagã e
judaica, no âmbito de comunidades mistas. Era uma ques­
tão com profundas repercussões na vida litúrgica. Era ri­
gorosamente proibido ao judeu sentar-se à mesa com os
pagãos, por causa de certas proibições rituais severas que
os judeu-cristãos continuavam a observar, também após a
conversão.
V ida e O bra 97

Nas discussões de Jerusalém, este problema não fora


ainda abordado. Todavia, do ponto de vista da história da
Igreja, o acordo efetuado, salvaguardadas todas as dife­
renças, foi um passo à frente muito significativo. Acima de
tudo, ele foi para os primeiros apóstolos de Jerusalém uma
decisão corajosa que os dignifica. Tal decisão, que leva em
consideração coisas imediatamente necessárias e permane­
ce por isso mesmo limitada e provisória, pode ser consi­
derada como uma deliberação verdadeiramente digna da
Igreja.
Até aqui não foi ainda alusão a uma recomendação da
Convenção de Jerusalém, a respeito da qual os Atos dos
Apóstolos silenciam, mas que é referida por Paulo, ao fi­
nal do seu relato: "Nós só nos deveriamos lembrar dos po­
bres, o que, aliás, tenho procurado fazer com solicitude"
(G12.10). Não é fácil discernir, à primeira vista, o significa­
do deste compromisso, que causa uma impressão discreta,
mas já o teor e especialmente os abrangentes textos pro­
fundamente impregnados de teologia que aparecem nas
epístolas posteriores de Paulo aos Coríntios (ICor 16; 2Cor
8-9) e aos Romanos (Rm 15.25s.) permitem reconhecer o
seu significado.
Esta "coleta" não era somente uma medida generica­
mente caritativa que todas as comunidades deveríam as­
sumir de forma igual (no sentido de uma assistência aos
necessitados em todas as comunidades, ou então, do tipo
"Pão para o mundo"), mas era um auxílio que as comu­
nidades gentio-pagãs prestavam à comunidade prim itiva
de Jerusalém. E difícil dizer qual o papel desempenhado,
nestes casos, por certas situações sociais particularmente
graves. Mas a enorme importância que Paulo e as suas co­
munidades da Galácia, Macedônia e Grécia atribuíram a
esta tarefa leva a crer que não se tratava tão-somente de
uma providência de caráter meramente caritativo.
98 Paulo, V ida e O bra

Nem sequer o termo "os pobres" designa necessaria­


mente tal sentido. Na linguagem do judaísmo tardio e do
cristianismo prim itivo, o termo não caracterizava somente
os mais carentes e necessitados, mas era um nome religioso
honorífico, recebido do judaísmo, aplicado ao verdadeiro
Israel que espera pela ajuda escatológica de Deus.
Aplicado à questão da "coleta", o termo significa: as
ofertas das comunidades gentio-cristãs, mesmo quando
deviam aliviar também algumas necessidades materiais,
estavam destinadas à comunidade prim itiva de Jerusalém
no seu conjunto, em virtude da sua posição histórica e his-
tórico-soteriológica que lhe cabia indiscutivelmente e de
pleno direito. Eram uma expressão da gratidão pelas bên­
çãos que a partir de Israel se derramaram sobre o mundo
(Rm 15.27).
Houve quem interpretasse erroneamente a coleta como
um tributo regular, à guisa do imposto devido ao Templo
de Jerusalém, que devia ser levantado todos os anos por to­
dos os judeus da Diáspora. A ideia de um tributo implicaria
necessariamente na noção de um primado da comunidade
prim itiva no plano jurídico. Tal hipótese fica refutada atra­
vés do fato de não ser uma contribuição regular. Paulo, por
seu turno, mesmo empregando diversas expressões para
designar a coleta, tais como: liberalidade, manifestação de
misericórdia, participação no serviço, obra de caridade e
obediência em professar o Evangelho de Cristo, evita os
termos jurídicos.
Por outro lado, a coleta devia selar a unidade da igreja,
historicamente fundada e constituída de judeus e de pagãos,
devia confirmar a igualdade jurídica dos seus membros e,
portanto, também a legitimidade do Evangelho, liberto da
Lei. Somente assim se pode compreender o zelo e a energia
que as comunidades do campo missionário paulino dedi­
caram mais tarde à realização desta coleta e se explica o
V ida e O bra 99

empenho com o qual o apóstolo, nas suas epístolas, discute


os aspectos organizativos e as implicações teológicas desta
tarefa. Não em últim o lugar cabe assinalar como se verá
abaixo, que a história pessoal e o próprio destino de Paulo
estão estreita e surpreendentemente ligados à coleta.
Na narração do livro dos Atos dos Apóstolos não per­
manece traço de tudo o que deduzimos da Epístola aos
Gálatas, nem sobre o sentido do debate em torno da cir­
cuncisão, nem sobre a luta de Paulo em prol da liberdade
e verdade do seu Evangelho. No relato de Lucas, Pedro e
Tiago tomam imediatamente a palavra e pronunciam lon­
gos e escorreitos discursos, no estilo de um tardio e v u l­
garizado "paulinism o", e defendem a opinião de que não
se deveria impertinentemente im por aos gentios o jugo
da Lei que nem sequer judeus legítimos conseguem carre­
gar. Bastaria, pelo contrário, unicamente im por aos gen-
tio-cristãos como obrigação algumas exigências mínimas
de natureza moral e ritual da Lei mosaica: proibição da
idolatria, da fornicação e a abstenção de carnes sufocadas
e de sangue. Este é o conteúdo do "decreto dos apóstolos"
proposto por Tiago e logo a seguir aprovado pelos após­
tolos e anciãos e depois enviado às comunidades cristãs
da Antioquia, Síria e Cilícia (A t 15.23-29). Ele contém de­
terminações e prescrições que deveriam tornar possível
a comunhão de vida numa comunidade composta de ju-
deu-cristãos e gentio-cristãos.
Uma coleta em prol de Jerusalém é mencionada, na
verdade, também por Lucas em duas oportunidades (At
11.27s.; 24.17), mas não no contexto da Convenção de
Jerusalém e da missão de Paulo entre os gentios. Nada, po­
rém, consta a respeito do seu significado. Os problemas e
as decisões de uma época passada não afloram mais.
O relato de Paulo mostra, pelo contrário, que o "de­
creto dos apóstolos" não podia fazer parte das resoluções
100 Paulo, V ida e O bra

da Convenção. Em G1 2.6, está expressamente escrito: "os


notáveis nada me acrescentaram" (cf., também, o "somen­
te" de G12.10). Além do mais, após uma resolução daquele
gênero, teria sido impensável um conflito em torno do con­
vívio à mesa, como aquele que haveria de irromper pouco
depois em Antioquia (G1 2.11s.), entre Paulo e Pedro (ou
Tiago).
Finalmente, era de se esperar que Paulo, ao abordar
mais tarde, isto é, na prim eira Epístola aos Coríntios, a
questão da abstenção da carne imolada aos ídolos e da
fornicação, fizesse referência a este decreto, se ele tivesse
feito parte do acordo ajustado em Jerusalém entre Paulo
e os prim eiros apóstolos e os anciãos. Mas isso não ocorre
em nenhum lugar. Consequentemente, ou o decreto foi
elaborado sem a participação de Paulo, num período em
que o problema do convívio à mesa irrompera em comu­
nidades mistas, ou então - e esta segunda hipótese - o
decreto espelha a práxis que Lucas encontrou a seu tem­
po, isto é, ao término do século I. N o quadro da obra de
Lucas, a linguagem seca e ritualística do decreto, através
do qual não transparecem, de forma alguma, as d ific u l­
dades e a importância das decisões efetivamente toma­
das na Convenção, expressa a unidade entre o judaísmo
e a Igreja, unidade perseguida tenazmente por Lucas.
Também neste caso fica evidente a superioridade da nar­
ração pauüna.
O resultado da Convenção dos apóstolos é claro e im ­
portante no plano teológico e também no da história pro­
fana e eclesiástica. A unidade da Igreja não sofreu fissura.
Em Jerusalém, esconjurou-se o perigo de perm itir que a
comunidade prim itiva se esclerosasse e se transformas­
se numa seita judaica, e que o cristianismo helenístico se
dissolvesse num conjunto de associações de mistérios sem
história.
V tda e O bra 101

5. A PRIMEIRA INCURSÃO EM CHIPRE E NA


ÁSIA MENOR. O CONFLITO EM ANTIO QUIA

Segundo o livro dos Atos dos Apóstolos, já antes


da Convenção de Jerusalém, Paulo, em companhia de
Barnabé, teria empreendido uma prim eira viagem missio­
nária a Chipre e para a costa meridional da Ásia Menor (At
13-14), a prim eira viagem missionária de Paulo, segundo
o esquema cheio de lacunas de Lucas, que nada sabia da
missão de Paulo na Arábia, Síria e Cilícia. A viagem nar­
rada por Lucas não deixou marcas nas epístolas paulinas.
Por isso, o livro dos Atos dos Apóstolos constitui a sua
única fonte.
Não existe razão suficiente, como fazem alguns pes­
quisadores, para reter esta viagem como uma mera cons­
trução literária de Lucas, à guisa de um modelo para uma
viagem missionária paulina. Por outro lado, porém, não é
o caso de utilizar sem cautelas o material e os dados de
Lucas para preencher as lacunas biográficas das epístolas
paulinas.
Tal prudência já se faz necessária na determinação da
data da viagem. O relato sucinto, mas muito preciso em
dados quanto à época e aos lugares, que Paulo fornece no
primeiro capítulo da Epístola aos Gálatas não a menciona e
sequer abre espaço para ela antes da Convenção de Jerusalém.
Disto se deduz que o autor dos Atos dos Apóstolos se equi­
vocou quanto à época na organização do seu texto.
No conjunto da sua obra histórica, representa o relato
desta viagem o eficaz pano de fundo para a narração da
própria Convenção (At 15.4), para os discursos ali proferi­
dos por Pedro e Tiago e para o "decreto", os quais, a partir
dali, dão plena legitimação, por parte dos primeiros após­
tolos, para a atividade missionária dos antioquenos entre
os pagãos. Certamente, a viagem deve ter ocorrido após
102 Paulo, V ida e O bra

a realização da Convenção de Jerusalém. Esta última não


foi, portanto, a conclusão de um grande empreendimen­
to missionário realizado em conjunto por Paulo e Barnabé.
Ao contrário, a Convenção abriu-lhes a possibilidade de
evangelizarem, dando-lhes ao mesmo tempo a necessária
cobertura da parte de Jerusalém. É compreensível, outros-
sim, que a viagem se dirigisse para Chipre, terra natal de
Barnabé e para as regiões limítrofes ao sul da Ásia Menor,
uma vez que estes lugares, fortemente povoados por ju ­
deus, apresentavam condições prévias favoráveis para a
pregação.
As notícias fornecidas pelos Atos dos Apóstolos não
possuem todas o mesmo valor. Por isso, não podemos ex­
trair delas um quadro historicamente seguro. Em parte, são
notícias insuspeitas e frias, mas não muito abundantes, a
respeito de cada uma das etapas da viagem, cujo itinerário
pode ser reconstruído assim: de Antioquia, na Síria, pas­
sando pela não distante cidade portuária de Selêucia, nave­
garam para Chipre, onde visitaram as cidades de Salamina
e Pafos; a seguir, se dirigiram para o continente, na Ásia
Menor, alcançando Perge, na Panfília, e mais ao norte,
Antioquia da Pisídia, Icônio, Listra e Derbe. Dali, retornan­
do pelas mesmas cidades que evangelizaram na ida, atingi­
ram novamente o mar, zarpando de navio para a Síria.
Em nítido contraste com estas indicações precisas so­
bre o roteiro da viagem, sobressaem algumas cenas isoladas
amplamente descritas e de caráter evidentemente legendá­
rio, bem como longos discursos. Dentre as primeiras, des­
taca-se a drástica narração da maldição de Paulo contra o
mago judeu Barjesus (Elimas), o qual estava junto de Sérgio
Paulo, procônsul romano em Chipre, cuja conversão, atra­
vés de Paulo, o mago pretendia fazer malograr. Diante do
castigo infligido a Elimas, o procônsul, maravilhado, abra­
çou a fé (At 13.8-12).
V ida e O bra 103

Cena lendária semelhante está narrada em A t 14.8­


18, em torno da cura de um homem aleijado que vivia
em Listra. A cura provoca extraordinária admiração en­
tre a população pagã, a ponto de pensarem que "deuses
em forma humana desceram até nós" (A t 14.11), come­
çando a chamar a Barnabé de Júpiter (Zeus), e a Paulo
de M ercúrio (Hermes). E fácil reconhecer na narração
o antigo m otivo da célebre lenda de Filemon e Báucis.
Somente através de extrema energia conseguiram os
dois missionários cristãos acalmar a multidão. Um sacer­
dote de Júpiter já se aproximara com touros e guirlandas
prestes a oferecer um sacrifício. Também o anúncio do
verdadeiro Deus em oposição aos falsos deuses e ídolos
inertes apenas aumentou o entusiasmo popular, até que,
repentinamente, em decorrência da instigação de alguns
judeus provenientes de Antioquia e Icônio, o entusiasmo
se transformou em ira persecutória. Apedrejaram, então,
Paulo e o arrastaram para fora da cidade, dando-o por
morto.
Nestas narrações dos dois capítulos estão intercalados
dois discursos de Paulo: um primeiro, extenso, tipicamen­
te uma pregação missionária, na sinagoga de Antioquia
da Pisídia (At 13.16-41), e um segundo, igualmente típico,
adaptado à situação, aos gentios em Listra (At 14.15-17), e,
na viagem de retorno, os missionários confirmaram e exor­
taram os cristãos convertidos nas cidades por onde haviam
passado (At 14.22), para cujas comunidades são agora or­
denados anciãos.
Todos estes relatos constituem, na verdade, documen­
tos importantes, mas não, sem mais nem menos, para a his­
tória pessoal de Paulo, e sim para aquilo que mais tarde se
dizia dele e da sua atividade e, sobretudo, para avaliar a
arte narrativa e a forte capacidade de estilização de Lucas e
para conhecer as idéias do seu tempo.
104 Paulo, V ida e O bra

A figura de Paulo que conhecemos através das suas


epístolas é reconhecível, nestas passagens dos Atos
dos Apóstolos, de forma muito desbotada e incompleta.
A situação das comunidades, tal como é aqui suposta tam­
bém não corresponde àquela que nós conhecemos das
genuínas comunidades paulinas dos primeiros tempos.
Portanto, o que é possível averiguar, do ponto de vista
rigorosamente histórico, em torno desta primeira viagem
missionária de Paulo e Barnabé, é extremamente parco.
Uma observação especial merece ainda a alusão que,
neste contexto dos Atos dos Apóstolos, é feita em vários
lugares, de modo casual e não de todo transparente, a um
certo João Marcos, proveniente de Jerusalém (At 12.12).
Ele teria acompanhado os dois missionários, como auxi­
liar, durante um trecho da sua viagem (At 13.5), mas, após
terem chegado a Perge, teria voltado prematuramente a
Jerusalém, por razões não pormenorizadamente apresen­
tadas (At 13.13). Por causa deste companheiro de viagem,
Paulo e Barnabé se teriam separado, após "violenta dissen-
são". Paulo recusou a companhia de João Marcos ao encetar
a sua próxima grande viagem missionária na Ásia Menor,
ao passo que Barnabé tomou-o consigo, embarcando para
Chipre (At 15.39). Certamente, estas informações não são
fruto da imaginação. Contudo, as razões ocultadas deste
conflito permanecem obscuras.
Com razão, se supôs que, por detrás deste áspero de­
sencontro, se oculte a confusa lembrança de um outro sério
conflito, que Lucas omite, mas que Paulo recorda com mais
precisão, a saber: o enfrentamento já mencionado entre ele
e Pedro em Antioquia, no curso do qual o seu antigo e com­
panheiro Barnabé não está mais do seu lado.
Na Epístola aos Gálatas (G1 2.11-21), Paulo narra que
enfrentou Cefas abertamente porque este, durante uma
estadia na comunidade composta de cristãos convertidos
V ida e O bra 105

do judaísmo e do paganismo, inicialmente participava sem


constrangimento das refeições comuns (por ocasião da ceia
do Senhor), mas, quando vieram de Jerusalém "alguns
da parte de Tiago", ele se subtraía e andava retraído com
medo dos judeus. E não somente Pedro, também os de­
mais judeu-cristãos, até mesmo Barnabé, se submeteram à
ordem ritual judaica.
Paulo qualifica severamente este procedimento como
"hipocrisia" (G1 2.13). Diz que "não andavam retamente
segundo a verdade do evangelho" (G1 2.14) e repete o que
dissera a Cefas na presença de todos os membros da comu­
nidade (G12.14s.). Suas frases não são, evidentemente, uma
rigorosa reprodução estenográfica. Imperceptivelmente,
enquanto coloca os Gaiatas a par do que ocorrera, passa
para proposições que não têm mais relação direta com a
situação de Antioquia. Resulta disso tanto mais evidente
que, para Paulo, naquela oportunidade, estava em jogo,
nada mais e nada menos, do que a mensagem de Cristo e o
conteúdo da fé.
Para Paulo, o conflito não residia apenas numa in­
significante diferença de opinião, em torno da qual esta­
ria disposto a um compromisso. Pelo contrário, ele atribui
à questão uma importância fundamental e abrangente.
De acordo com as palavras de Paulo, Pedro, através da sua
atitude contraditória, estaria renegando a confissão de que
o ser humano não é justificado diante de Deus pelas obras
da Lei, e sim unicamente através da fé em Cristo, uma vez
que, mais tarde, ele teria admitido para si mesmo a obri­
gação das prescrições legais judaicas, forçando, com seu
exemplo, também os cristãos da gentilidade a se submete­
rem aos costumes dos judeus.
Qualquer retorno à Lei, para o apóstolo Paulo, somen­
te podia significar que, em assim agindo, a fé, que se funda­
menta exclusivamente em Cristo, seria pecado e o próprio
106 Paulo, V ida e O bra

Cristo deveria, então, ser declarado ministro do pecado.


Realmente, porém, o que constitui pecado é o retorno à Lei,
a qual foi destruída pela morte de Cristo na cruz, e a renún­
cia à nova vida por Cristo inaugurada.
Embora Paulo seja claramente de opinião que Pedro
e os outros judeu-cristãos teriam, simultaneamente com o
Evangelho, renegado também os acordos anteriormente
selados em Jerusalém, para ser justo, é preciso dizer que,
do ponto de vista dos seus adversários, não existia ne­
nhum fundamento para esta suposição. No caso presen­
te, na verdade, surgira, pela primeira vez, um problema
totalmente novo, isto é, o da unidade dos fiéis de origem
judaica e gentia numa comunidade mista. Não cabe, por­
tanto, acusar Cefas ou Tiago de insinceridade ou infide­
lidade subjetiva e, por outro lado, os judeu-cristãos he-
lenistas de Antioquia certamente não se desfizeram por
completo da compreensão do Evangelho, desvinculado
da Lei, diante do golpe recebido, ao verem o comporta­
mento de Barnabé.
Contudo, Paulo perscruta mais profundamente a
situação. De acordo com a sua convicção, a superação da
Lei enquanto caminho da salvação e, com isso, a verdade
do Evangelho se deviam manifestar também e precisa­
mente nas refeições comuns entre judeus e pagãos. Esta
maneira de proceder é tipicamente paulina. Como ante­
riormente, quando estava em questão a circuncisão de
Tito na Convenção de Jerusalém, também agora trouxe o
problema específico de Antioquia para que fosse resolvi­
do à luz dos critérios do Evangelho e, portanto, lá como
aqui, não estava disposto a aceitar explicações casuísticas,
concessões ou compromissos. O que para outro poderia
parecer irrelevante e até mesmo aceitável por amor à un i­
dade da Igreja - estava, na verdade, em jogo a paz com
Jerusalém - justamente isso Paulo transforma em campo
V ida e O bra 107

de batalha, no qual era preciso lutar em prol da verdade


e da liberdade, até mesmo contra decisões aparentemente
normativas, emanadas de uma instância eclesiástica.
A partir do que foi explanado, compreende-se que
Lucas, mesmo que estivesse ainda ciente do que aconte­
cera em Antioquia, omitisse o conflito em sua apresenta­
ção da história da igreja e de Paulo. Também, ao longo da
subsequente história da Igreja, foram envidados, sempre
de novo, todos os esforços imagináveis ou no sentido de
minimizar o penoso episódio da dissensão havida entre os
apóstolos ou, então, em considerar o fato como passageiro
e logo superado.
Esta opinião perdura ainda na pesquisa mais recen­
te, onde se apresenta a reconciliação entre Paulo, Pedro,
Barnabé e os demais judeu-cristãos com uma fantasia car­
regada de sentimentalismo. Mas a Epístola aos Gálatas não
autoriza, de forma alguma, semelhantes interpretações,
sendo admissível, desta feita, recorrer, com sobejas razões,
ao argumentum e silentio, costumeiramente um procedimen­
to bastante capcioso.
Teria sido um trunfo para Paulo se, diante dos Gálatas,
que estavam cedendo diante de tendências judaizantes, ti­
vesse podido apresentar a mudança de opinião de Pedro e
dos demais e, consequentemente, uma vitória do Evangelho
sobre o legalismo, assim como fizera antes do relato da
Convenção de Jerusalém. Como Paulo não alude a nada
disso, o seu silêncio só pode significar o seguinte: quem se
impôs não foi ele, e sim os outros que estavam dispostos a
ceder diante dos judeu-cristãos rigoristas.
O relato de Paulo intencionalmente bastante porme­
norizado a respeito dos acontecimentos em Antioquia e
a importância fundamental que o próprio apóstolo lhes
confere nos obrigam a tomar o conflito muito a sério.
Os problemas em torno da Lei e do Evangelho, que já
108 Paulo , V ida e O bra

tinham sido o fulcro das discussões na Convenção de


Jerusalém, tinham emergido novamente, se bem que agora
em outro nível. As experiências que Paulo teve que fazer
produziram nele inquestionavelmente uma amarga de­
cepção. Não admira, por isso, que, nas suas viagens mis­
sionárias subsequentes, já não é Barnabé, e sim outros os
seus colaboradores e companheiros (cf. as introduções das
suas epístolas e A t 15.39s.). Por outro lado, desde então,
Antioquia não aparece também, em suas epístolas, mais
como uma espécie de Igreja-mãe para o apóstolo e para as
comunidades gentio-cristãs.
O rompimento de relações com Pedro e Barnabé não
foi, porém, total e definitivo, como indicam certos indícios
posteriores (ICor 9.6). Paulo se esforçou ao máximo e até
ao fim para reforçar a unidade sempre ameaçada entre
as suas comunidades e com a comunidade prim itiva de
Jerusalém.
Por outro lado, seria errôneo pensar que as comu­
nidades helenistas tivessem sido submetidas a um pro­
cesso gradual ou rápido de "rejudaização". E um fato
inconteste que, mais tarde, exatamente a região Síria,
se transform ou em solo maternas de variegadas e m u i­
to significativas expressões de fé e de vida cristãs. Os
Evangelhos de Mateus e de Lucas, talvez também o de
João, mas, sobretudo, a teologia e a comunidade de Inácio
de A ntioquia (morto em torno do ano 110 d.C, como már­
tir) dão testemunho da extraordinária envergadura das
possibilidades históricas de expansão do cristianismo
p rim itiv o precisamente neste ambiente. Mas, para que
isso ocorresse, foi preciso antes que Paulo pagasse o alto
preço de uma separação, por causa da sua interpretação
radical do Evangelho.
V ida e O bra 109

6. O HORIZONTE UNIVERSAL
DA MISSÃO PAULINA

Paulo é considerado, com toda justiça, o apóstolo das


gentes. De nenhum outro missionário da Igreja prim itiva
temos conhecimento que tenha colocado seus ideais tão
longe e que tenha procurado levar o Evangelho até os ú l­
timos confins do mundo habitado. Já vimos que houve
atividade missionária desde os prim órdios da comuni­
dade prim itiva, mas não uma evangelização, liberta da
Lei, ente os gentios. Os "helenistas" já haviam levado o
anúncio da salvação aos gregos, e o próprio Paulo, desde
a sua vocação, atuara como missionário entre os pagãos.
Ainda assim, a sua atuação na Arábia, na Síria, Cilícia,
Antioquia, Chipre e na parte meridional da Ásia Menor
não deixava entrever uma projeção universal dos seus
projetos missionários.
Se perguntarmos quando surgiu esta grandiosa con­
cepção missionária, podemos responder com alguma segu­
rança: durante uma viagem que, de acordo com os dados
incompletos dos Atos dos Apóstolos, é conhecida costumei­
ramente como a segunda viagem missionária que Paulo e
seus companheiros empreenderam, após os acontecimen­
tos narrados de Antioquia, atravessando a Ásia Menor até
Trôade, Macedônia e Grécia. Durante a mesma foram fun­
dadas as comunidades na Galácia (na região da moderna
Ancara), de Filipos, Tessalônica e Corinto, que nos são fa­
miliares a partir das epístolas paulinas, bem como dos Atos
dos Apóstolos.
Os Atos dos Apóstolos, ainda que através de informa­
ções bastante escassas, deixam entrever que, o mais tardar
enquanto os missionários se encontravam na Ásia Menor,
quando não já no início da viagem, foram tomadas algumas
decisões muito significativas e de grande alcance. Durante
110 P aulo, V ida e O bra

o percurso, após ter visitado as comunidades precedente­


mente fundadas, Paulo, em Listra, conquistou como cola­
borador a Timóteo, muitas vezes citado em suas epístolas.
Depois, segundo o relato de Lucas, os missionários teriam
sido, por três vezes, durante a travessia pela Frigia e a região
da Galácia, instruídos diretamente por Deus na escolha dos
seus próximos objetivos de viagem. O Espírito Santo impe­
diu que tomassem a direção sudoeste, na província romana
costeira da Ásia, isto é, a região das antigas e célebres cida­
des gregas, cujos nomes encontramos mais tarde nas cartas
do Ápocalipse de João (Éfeso, Esmirna, Sardes, Pérgamo,
etc.). Proibiu-lhes também o caminho na direção do norte,
na Bitínia, igualmente uma região de famosas cidades gre­
gas no Bósforo e, mais para o leste, no Mar Negro.
Ainda que o relato de Lucas seja literariamente estili­
zado - o Espírito Santo é tido por ele, muitas vezes, como a
força propulsora dos acontecimentos - não existem razões
mais sérias para duvidar das informações. Certamente,
tanto numa direção como na outra, os missionários teriam
tido pela frente um campo fértil para a sua evangelização,
e, tanto para o norte como para o Ocidente, o caminho teria
sido facilitado por boas condições de estradas. Não obstan­
te, encetam um caminho diagonal através do interior da
Ásia Menor, na direção de Trôade, recebendo ali uma ter­
ceira visão da parte de Deus: um macedônio apareceu em
sonho a Paulo, rogando-lhe que os missionários anuncias­
sem a boa-nova entre eles na Macedônia, o que eles imedia­
tamente realizaram.
Tudo isso é narrado em poucos versículos (At 16.6-10),
certamente com base em anotações de viagem de um co­
laborador de Paulo. Logo a seguir, inicia um longo relato
sobre os começos da comunidade de Filipos.
Na realidade, porém, a viagem não transcorreu tão rá­
pida e diretamente, pois através da Epístola aos Gálatas,
V ida e O bra 111

sabemos que Paulo adoeceu durante a travessia da Galácia


e que durante a sua involuntária permanência na região
surgiu ali, pela sua pregação, a comunidade cristã dos
Gálatas (G1 4.13s.). Todavia, não restam dúvidas de que,
logo após a sua atuação na Galácia, Paulo prosseguiu via­
gem na direção noroeste.
Filipos, com seu nome latino completo de "Colonia
Augusta Julia Philippensis", era, de maneira particularís-
sima, um território romano, em recordação à batalha vito­
riosa entre Otaviano (o futuro imperador César Augusto)
e Antônio contra os assassinos de César (42 a.C.). Pelo ven­
cedor, Filipos foi transformada em cidade dos veteranos e
agraciada com o ius italicum, o privilégio de uma cidade
romana. Aqui, em Filipos, surge a primeira comunidade
cristã do continente europeu que, também em época pos­
terior, ficou sempre muito ligada ao apóstolo (F14.15). Foi,
outrossim, aqui em Filipos que Paulo sofreu a primeira
perseguição da parte de pretores romanos, de tal sorte que
o apóstolo, diante da injustiça de que foi alvo, apelou para
a sua condição de cidadão romano (At 16.19s.).
Existe, ademais, uma outra razão que, neste contexto,
assinala a importância desta cidade. A famosa Via Egnatia,
uma das mais importantes estradas, do ponto de vista es­
tratégico e comercial, que unia a parte ocidental do impé­
rio romano com o Oriente, iniciava em Filipos, indo até o
Ocidente. Paulo palmilha este caminho até Tessalônica,
onde, em breve espaço de tempo, se forma uma nova co­
munidade cheia de vida. Em seguida, abandona a Via
Egnatia, não prosseguindo através da mesma até Uíria, na
Dalmácia, e nem mesmo adiante, na direção da Itália e de
Roma, mas dirige-se para a Grécia, passando por Beréia e
Atenas, até Corinto.
Podemos reter como certo que Paulo, o mais tardar
durante a travessia da Ásia Menor e no caminho pela
112 Paulo , V ida e O bra

Macedônia até Tessalônica, concebeu a ideia de, um dia,


se d irig ir também a Roma. Suas próprias afirmações na
Epístola aos Romanos, escrita mais tarde, testemunham no
sentido de, após ter longamente estabelecido o propósito
de se d irig ir a Roma, a fim de pregar ali o Evangelho, não
pôde concretizar este anelo por ter sido impedido (Rm 1.13;
15.22).
Provavelmente, durante a sua primeira viagem atra­
vés da Macedônia e da Grécia, Paulo ainda não sabia da
existência de uma comunidade cristã em Roma. Durante
a redação da Epístola aos Romanos, já estava ao par de al­
guns elementos a respeito desta comunidade, fundada por
cristãos desconhecidos. Obteve estas informações, em par­
te, através de Aquila e Prisca (Priscila), um casal judeu-cris-
tão, com o qual se encontrou em Corinto, após terem sido
expulsos de Roma por um decreto do imperador Cláudio.
Áquila e Prisca, certamente, faziam parte da comunidade
cristã de Roma. Apesar disso, Paulo não abandonou o seu
projeto de viajar a Roma, embora parecesse superado, já
que ele se norteava pelo princípio básico de não pregar
onde o nome de Cristo já fora anunciado (Rm 15.20; 2Cor
10.55s.). Mesmo assim, Roma continuava sendo para ele
um projeto importante, máxime tendo em vista o seu pro­
pósito de continuar a sua missão ainda mais na direção do
Ocidente, a caminho da Espanha (Rm 15.24,28).
O obstáculo que impediu que o apóstolo encetasse a
viagem diretamente de Tessalônica para Roma foi, sem dú­
vida, a perseguição de que foi objeto por parte de autorida­
des pagãs da cidade, instigadas por judeus (At 17.5s.; lTs
2.14s.; 3.1s.). A perseguição fez com que os cristãos da cida­
de promovessem a saída de Paulo e dos seus companhei­
ros, enviando-os de noite e com auxílio do nevoeiro para
Beréia (At 17.10), portanto na direção sudoeste, na Média
Grécia.
V ida e O bra 113

Também aqui em Beréia, após um início bem suce­


dido de proclamação do Evangelho na sinagoga, irrom ­
peu uma perseguição por parte de judeus, provenientes
de Tessalônica. Paulo foi conduzido, então, pelos irmãos
até Atenas. A grandiosidade da imagem que os Atos dos
Apóstolos desenham da pregação do apóstolo no areópa-
go de Atenas (At 17) não deve induzir em erro, no sentido
de imaginar que originariamente Atenas estivesse inclu­
ída nos seus planos missionários. O próprio Paulo alude
acidentalmente apenas uma vez à sua estadia em Atenas,
movido pela preocupação em ter tido que abandonar tão
rapidamente a comunidade de Tessalônica (lTs 3.1).
Não precisamos, neste momento, acompanhar, em
pormenores, o caminho posterior percorrido pelo após­
tolo: Atenas, Corinto, seu retorno a Antioquia e sua atua­
ção novamente na Ásia Menor, particularmente em Éfeso
(At 17-19). Para nós, é de particular interesse o fato de que
Paulo claramente pretendia, já bem cedo, atingir Roma,
mas que foi impedido de concretizar este objetivo. Não
apenas por circunstâncias externas, como a perseguição
em Tessalônica, mas também em decorrência do fato de te­
rem surgido para ele novos campos de ação missionária, e
estando preocupado em não deixar no abandono, externo
e interno, as recém-fundadas comunidades. Mas também
estas necessidades e obrigações que o amarraram durante
anos não apagaram nele o ideal de um dia atingir Roma e o
longínquo Ocidente. Através dos Atos dos Apóstolos e da
Primeira Epístola de São Clemente (escrita no ano 96 d.C),
sabemos que Paulo efetivamente chegou a Roma, mesmo
se não em liberdade, e sim como prisioneiro.
As viagens e os planos de Paulo deixam transparecer
com quanta energia ele perseguia o seu intento de incluir
em sua missão todo o universo, até a Espanha (Rm 16.24.28),
na linguagem dos antigos, até as "colunas de Hércules",
114 Paulo, V ida e O bra

ou seja, os limites extremos ocidentais do universo. Esta


característica essencial do seu projeto missionário é pública
e notória, e nem é passível de contestação, com a objeção
de que o apóstolo sabia da existência também de outros po­
vos e países além destes limites geográficos, ou até mesmo
aduzindo uma cosmologia de épocas posteriores.
De modo recorrente, utiliza Paulo expressões como
"pela terra inteira" (Rm 10.18), "até os confins do mun­
do" (íbid.), "nações todas" (Rm 15.11; cabe assinalar, neste
contexto, que o termo grego "éthne", na linguagem cristã
prim itiva, possui o duplo sentido de "povos" e "gentios").
Embora estas expressões, via de regra, ocorram em citações
de salmos, elas não possuem em Paulo apenas um sentido
pleonástico e hínico-litúrgico, e sim um significado m ui­
to concreto e real. Justamente por essa razão é que ele se
sente "devedor a gregos e bárbaros" (Rm 1.14), sentindo-se
na obrigação de levar-lhes aquilo que, pela graça de Deus,
lhes cabe de direito.
Particularmente característica é uma expressão utiliza­
da por Paulo, para a qual, aliás, geralmente não se presta
muita atenção e na qual o apóstolo, ao anunciar a sua visita
a Roma, sintetiza toda a sua atuação até aquele momento:
"(...) desde Jerusalém e arredores até a Ilíria, eu levei a ter­
mo o anúncio do evangelho de Cristo" (Rm 15.19). A for­
mulação é instrutiva sob diferentes aspectos. Em primeiro
lugar, porque nesta frase está resumido todo o hemisfério
oriental do império romano. Poderiamos dizer que, aqui,
fala o romano helenista. Em segundo lugar, porque Paulo
define a abrangência da sua missão, tomando como pon­
to de partida Jerusalém. Isto chama a atenção, já que ele
não exerceu seu apostolado missionário na Judéia e em
Jerusalém. Por que menciona, então, esta cidade?
A resposta somente pode ser a seguinte: porque, para
Paulo, Jerusalém é o centro histórico-salvífico do mundo
V ida e O bra 115

e o ponto de partida do Evangelho para os demais povos.


A qui não fala o romano, mas o judeu de outrora e cris­
tão de agora. Em terceiro lugar, ele faz referência explí­
cita à llíria , embora, após tudo o que sabemos dos Atos
dos Apóstolos e das suas próprias epístolas, ele não te­
nha atuado ali como missionário. O motivo para a citação
desta região, situada no extremo noroeste da Grécia, sem
dúvida, reside no fato de terminar ali a grande estrada
de comunicação, na costa da moderna Dalmácia, que tem
seu prolongamento além do mar Adriático, iniciando em
Brindisi e, através da Via Apia, conduz a Roma. O nome
desta região, portanto, sinaliza, por sua vez, para Roma e
para o Ocidente.
A afirmação de Rm 15.19 despertou, com razão, estra­
nheza múltipla, pois ela soa como um exagero desmedido.
Tome-se em consideração o seguinte: em algumas regiões
e cidades da metade oriental do império romano surgiram,
em meio a um enorme contingente pagão, algumas comu­
nidades cristãs numericamente diminutas, e Paulo fala, na
maneira como vimos, do cumprimento da sua tarefa mis­
sionária em todo o hemisfério oriental do império roma­
no. Estamos, neste caso, diante de uma maneira caracte­
rística de pensar de Paulo. Para além de cada comunidade
particular, ele pensa imediatamente em povos e regiões.
Cada comunidade, tão logo teve sua fundação iniciada, re­
presenta, por sua vez, uma região inteira. Assim, Filipos
representa Macedônia (F1 4.15), Tessalônica faz as vezes
de Macedônia e Acaia (lTs 1.7s.), Corinto substitui Acaia
(IC or 16.15; 2Cor 1.1) e Éfeso representa a Ásia (Rm 16.5;
IC or 16.19; 2Cor 1.8).
A formulação que aparece em Rm 15.19 não é, portanto,
de modo algum, uma expressão apenas casual e exagerada.
Pelo contrário, ela traduz e expressa a admirável certeza do
apóstolo de que o Evangelho, tão logo for anunciado em
116 Paulo, V ida e O bra

algum lugar, encontra, por si só, o seu caminho e, partindo


de cidades isoladas, atinge e penetra toda a região vizinha.
H arnack já disse a este respeito: "O pressuposto consiste
em adm itir que, à esquerda e à direita, a linha flamejante
do fogo se espalhará".
À luz destas considerações, entende-se também o
longínquo objetivo colimado por Paulo na Epístola aos
Romanos: a Espanha. Roma não seria para ele ponto final
de chegada e sim, apenas, uma estação de passagem. Deste
modo, os destinatários da epístola já estão sendo instruídos
a respeito do apostolado missionário de Paulo, para o qual
são incentivados a encaminhá-lo (Rm 15.24). A primeira
Epístola de São Clemente, que pressupõe, com certeza er­
roneamente, que Paulo tivesse, ainda em vida, concretiza­
do esta viagem à Espanha, apelida o apóstolo de "arauto"
(kétyx) do Oriente e do Ocidente, o qual ensinou a justiça
em todo o mundo, tendo se dirigido até os extremos con­
fins do Ocidente (lClem 5.6s.), acentuando corretamente a
perspectiva universal na qual o apóstolo efetivamente rea­
lizou a sua ação missionária.
Somente à luz desta grandiosa concepção é possível
compreender também o método da missão paulina. E de­
veras surpreendente o fato de Paulo ter percorrido, em tão
pouco tempo, as extensas regiões da sua atuação e o quão
rapidamente ele abandonou sempre de novo as comuni­
dades recém-fundadas, continuando o seu caminho, sem
uma assistência mais prolongada e sem uma organização
mais cultivada. Entre a Convenção dos apóstolos (48 d.C.?)
e o término da primeira estadia em Corinto (outono de 49
à primavera de 51), transcorreram provavelmente apenas
dois ou três anos, e a duração geral desde a Convenção de
Jerusalém até o final de sua atuação na metade oriental do
império romano, computando todos os acontecimentos e
viagens dos quais os Atos dos Apóstolos fornecem apenas
V ida e O bra 117

uma imagem pálida e incompleta, não ultrapassa o período


de sete anos.
Certamente, as comunidades das quais ele se afastava
não lhe eram, de modo algum, indiferentes. Suas epísto­
las dão testemunho do grande apreço que lhes dedicava.
Foi preciso, porém, confiar o atendimento continuado des­
tas comunidades a seus colaboradores, restringindo a sua
atenção tão-somente através dos seus escritos epistolares e
através de eventuais visitas passageiras. Isso porque o seu
ideal, levar o Evangelho até os confins da terra, mantinha-o
sempre em movimento e inquietação.
O fundamento desta grandiosa concepção de Paulo re­
sidia na sua fé em Jesus Cristo crucificado, a quem Deus
exaltou como Senhor acima de todas as coisas, cujo reino
dura até o fim iminente, quando, com sua vinda, ele o en­
tregar nas mãos de Deus Pai (ICor 15.24; cf. Rm 15.16; 2Cor
2.14). Quando Paulo fala deste modo do Senhor (kyrios),
não entende somente o Senhor da comunidade reunida
para o culto divino, e sim aquele que domina sobre todas as
potências do cosmos (Fl 2.6-11) e que ressuscitou e foi exal­
tado para ser o Senhor dos vivos e dos mortos (Rm 14.9).
Este kyrios fez dele o apóstolo das gentes (Rm 1.5).
Mas o que significa para Paulo este senhorio de Cristo?
Após tudo o que até aqui dissemos do seu modo realista,
quase geopolítico, de compreender o orbis terrarum, pode-
ria parecer que Paulo tivesse entendido o Regnum Christi
analogicamente ao império romano, quiçá, num sentido se­
creto ou claramente revolucionário, como antítese ao kyrios
César e ao seu império. Ele seria, então, por assim dizer, o
arauto do mito "Cristo", em contraposição ao mito "César
romano".
Se isso fosse exato, encontraríamos já no pensamen­
to de Paulo as raízes e os pressupostos da ideia cristã de
império, que se desenvolveu depois na época constanti-
118 Paulo, V ida e O bra

niana e pós-constantiniana. Neste caso, porém, teríamos


feito uma interpretação fundamentalmente equivocada de
Paulo. Não por acaso suas epístolas silenciam a respeito de
qualquer nome de imperador romano e não fornecem pra­
ticamente nenhum detalhe concreto sobre a realidade polí­
tica da época, sobre o senado romano, sobre as províncias
do império romano, suas constituições e sua burocracia, e
seus fatos políticos recentes ou passados, etc.
Nos casos em que aparecem, de modo inteiramente
incidental, semelhantes fatos e questões, como no famoso,
mas isolado capítulo 13 da Epístola aos Romanos, trata-se
simplesmente do mundo concreto no qual o apóstolo exer­
cia a sua missão e no qual viviam as suas comunidades.
É evidente que aquele mundo influ iu aqui e ali sobre a lin ­
guagem de Paulo.
Contudo, este seu modo de manter uma certa distância
do mundo não expressa jamais um sentido de superiorida­
de como o dos Estóicos diante da agitação do mundo, nem
o horror e o fastio que os gregos cultos nutriam diante da
azáfama dos romanos ignorantes e ávidos de poder e nem
sequer o desprezo e o ódio pelo mundo que caracterizam
a literatura apocalíptica judaica tardia. Para Paulo, Cristo
é o kyrios porque morreu pela redenção de todos e o seu
senhorio se manifesta no fato de que Ele é "rico para todos
os que o invocam" (Rm 10.12). A mensagem do reinado
e do senhorio de Cristo é, portanto, a mesma mensagem
da reconciliação (2Cor 5.19s.) e da justiça de Deus que se
obtém somente pela fé (Rm 1-4). Portanto, em Paulo, não
existe, de modo algum, aquela concepção político-imperial
do mundo no sentido daquela noção de universalidade ela­
borada pelos gregos no plano ideal e traduzida pelos roma­
nos em termos políticos.
O apóstolo vê o mundo fundamentalmente a partir do
ser humano pecador e perdido diante de Deus, mas que
V ida e O bra 119

Deus, em Cristo, chamou pela graça à salvação. Todos, ju­


deus e pagãos, estão entendidos naquele ser humano per­
dido e chamado à salvação. Todos, sem distinção. Mas isto
não quer dizer que Paulo teria assimilado a ideia corrente
a respeito da humanidade na Antiguidade tardia, segundo
a qual os seres humanos são essencialmente e por nature­
za iguais. Eles não são um todo único por natureza, mas
porque Deus é Um e agora unificou todos os seres huma­
nos mediante o ato redentor e o senhorio de Cristo. Tudo
isso deve ser entendido a partir da história e do seu fim em
Cristo e, por conseguinte, não tendo como base uma ideia
geral do mundo e da humanidade.
Significativamente, Paulo não descartou simples­
mente a prim azia de Israel na história da salvação, o que
já fica evidente na expressão bastante repetida: "aos ju ­
deus, prim eiro, e depois aos gregos". Não se trata, porém,
de uma predileção pelos judeus no sentido do reconhe­
cimento de um direito próprio dos judeus, em detrimen­
to dos pagãos. Se Israel é caracterizado como um povo
por causa das promessas de Deus, por outro lado, estas
estão todas sintetizadas na promessa feita a Abraão, o
qual foi justificado somente pela sua fé e constituído pai
de todos os povos (Rm 4; G1 3). Isto não elimina, antes
confirma, o fato de que a salvação se concretizou numa
determinada história e deve, portanto, conduzir a uma
meta histórica. Paulo se sente comprometido com esta
meta. Busca atingi-la durante o seu caminho missionário
destinado a oferecer todos os povos como um sacrifício a
Deus (Rm 15.16). Não é cometimento do apóstolo erigir
Regnum Christi. Este já foi estabelecido através da eleva­
ção de Cristo à glória celeste. Naquele ato de exaltação,
a palavra se aproximou de tal modo de todos a ponto de
cada um poder agora crer com o coração e confessar com
a boca (Rm 10.8s.).
120 Paulo , V ida e O bra

Na qualidade de apóstolo, cabe-lhe somente reali­


zar, depois de Deus, e proclamar, até os confins da terra,
aquilo que Deus já realizou. Pois todos os povos devem
se unir no louvor a ser dado a Deus (Rm 15.9s.). Por isso,
Paulo se sente impedido a prosseguir além de Roma, até a
Espanha, porque "vê-lo-ão aqueles a quem não foi anun­
ciado, e conhecê-lo-ão aqueles que dele não ouviram falar"
(Rm 15.21).
Nos capítulos 9-10 e 14-15 da Epístola aos Romanos
tudo isso está afirmado, como já ressaltamos, mediante ci­
tações dos Salmos e dos Profetas. Mas justamente estes tex­
tos de cunho religioso-escatológico possuíam para Paulo
um significado muito real a ponto de extrair dos mesmos
o seu plano missionário e de se inspirar neles para as deci­
sões cotidianas concretas em torno dos itinerários e lugares
a serem percorridos, das regiões e povos a serem visitados.
A particularidade da sua teologia e da sua atividade mis­
sionária consiste precisamente no fato de haver traduzido
aquelas concepções religiosas e aqueles motivos escatoló-
gicos para a realidade histórica concreta, tomando ao pé da
letra, por assim dizer, a palavra de Cristo e as promessas
da Escritura.
Toda a história da atividade de Paulo demonstra como,
nos casos concretos, ele se empenhou numa grande varie­
dade de maneiras de agir, mas sempre com uma coerência
rigorosa. Procuraremos esclarecer melhor isso através de
três exemplos e referências:

1 - A abrangência do seu programa missionário e o


cuidado assistencial devido às suas comunidades
estão numa inegável tensão recíproca. Por amor à
sua grande e distante meta, não podia Paulo criar
raízes numa comunidade, mas devia andar sem­
pre mais adiante.
V ida e O bra 121

Por outro lado, a sua responsabilidade para com as


comunidades o obrigou mais de uma vez a modificar e a
procrastinar o seu grande plano. Distinguimos, por conse­
guinte, em toda a sua obra duas tendências contrapostas,
uma que impele o processo para frente e a outra que pro­
cura retardá-lo. Tudo isso está a demonstrar que ele con­
sidera sempre o elemento singular no âmbito do quadro
geral, mas não permite que o conjunto do quadro lhe faça
esquecer o particular. Coloca sempre um e outro em rela­
ção recíproca. Os capítulos 14 e 15 da Epístola aos Romanos
são uma comprovação cabal do que foi dito. O apóstolo
deve colocar um ponto final na contenda entre dois grupos
rivais que se condenam e se desprezam reciprocamente por
causa dos procedimentos de cada um a respeito de certas
prescrições alimentares, e convidar as duas partes à recon­
ciliação.
É ilustrativo o modo de proceder do apóstolo neste
caso. Não discute casuisticamente o objeto da contenda,
tomando partido a favor de um ou outro e nem liquida a
questão como insignificante. Mas, ao contrário, atribuiu
à conduta recíproca dos contendores um significado pro­
fundo e definitivo, ainda que num sentido totalmente d i­
ferente. Quem julga o irmão, usurpa um direito que per­
tence a Deus somente, e entrega à perdição o irmão por
quem Cristo morreu. E ainda mais: os litigantes, com a
sua conduta tornam-se culpados pelo fato de que "o bem",
isto é, a salvação de Deus, "se torna alvo de injúrias" (Rm
14.15s.).
Os cristãos de Roma se tornam, assim, responsáveis
pelo mundo e pela obra da missão até mesmo numa ques­
tão aparentemente tão secundária. O horizonte no qual se
coloca a sua disputa mesquinha adquire dimensões uni­
versais. Os romanos precisam aceitar o apelo de Paulo e
recordar-se que Cristo acolheu a todos e, portanto, todos
122 Paulo, V ida e O bra

os povos, judeus e pagãos, devem se unir no louvor a Deus


(Rm 15.6-13). Não por acaso fala Paulo neste contexto dos
fins últimos da sua missão.

2 - Nestes mesmos capítulos, o apóstolo não somente


pretende apresentar os pagãos a Deus como uma
"oblação agradável" (Rm 15.16), mas fala também
de entregar a coleta em Jerusalém. Com razão se
associou a coleta à ideia veterotestamentária se­
gundo a qual, no fim do mundo, todos os povos
acorrerão a Jerusalém, à cidade de Deus, levando
seus dons. Em referência à coleta, isto significa
que, com os seus dons em favor de Jerusalém, os
pagãos se entregam a si mesmos, mas, segundo o
pensamento de Paulo, não mais em sinal de sub­
missão a Jerusalém, e sim, como sinal de obediên­
cia à confissão de fé (2Cor 9.13) e de entrega ao
Senhor (2Cor 8.5). A ideia veterotestamentária, que
ainda não sabe nada de uma missão dirigida para
todos os povos, foi, portanto interpretada de uma
maneira nova e aplicada a uma situação histórica
diversa.
3 - Muitas passagens do Novo Testamento e outros
antigos testemunhos atestam que a concepção pro-
tocristã da glorificação de Cristo implica a submis­
são e a homenagem que lhe prestam as potências
cósmicas (cf., especialmente, Colossenses; Efésios;
lT m 3.16; Hb 1). Esta ideia provém e corresponde
às concepções do Antigo Oriente sobre a entroni-
zação de um soberano universal.

Também para Paulo, trata-se evidentemente de uma


noção relevante. Contudo, nas epístolas paulinas indubi­
tavelmente genuínas, tal motivo não é muito frequente.
V ida e O bra 123

É encontradiço em F1 2.6-11, mas num poema proveniente


do hinário da igreja prim itiva e não formulado diretamente
por Paulo. Em outros lugares, aparece apenas casualmente
(ICor 15.24-26).
Em sua globalidade, pode-se afirmar que o motivo m i­
tológico da exaltação de Cristo acima das potências cósmi­
cas foi visto por Paulo em termos concretamente históricos:
o Reino e o senhorio de Cristo se concretizam quando os
povos obedecem à fé. O apóstolo se sente enviado para esta
finalidade.

7. AS PRIMEIRAS COMUNIDADES NA GRÉCIA:


FILIPOS, TESSALÔNICA E ATENAS

A fundação da comunidade de Filipos abre um novo e


importante capítulo da história de Paulo e do cristianismo
prim itivo. O livro dos Atos dos Apóstolos confirma isso
com toda evidência. A narração transcorre rapidamente
até chegar aos acontecimentos ocorridos nesta cidade da
Macedônia, então colônia romana, para se demorar na des­
crição com abundância de pormenores (At 16.11-40). Mas
também o próprio Paulo confirma a importância daquele
começo (F14.15).
As nossas informações a respeito provêm quase ex­
clusivamente do relato de Lucas, o qual reelaborou dados
indubitavelmente confiáveis provenientes de um dos com­
panheiros de viagem do apóstolo. Isto vale principalmente
para a parte introdutória do relato (At 16.11-15), que revela
um conhecimento preciso do itinerário, da cidade e dos co-
meços da comunidade. Paulo e Silas se dirigiram, no dia de
sábado, nos arredores da cidade, ao lugar de reunião da pe­
quena comunidade judaica local, onde se entretiveram com
algumas mulheres, entre as quais estava uma "temente a
124 Paulo, V ida e O bra

Deus" (expressão corrente para indicar os pagãos que ade­


riam a uma comunidade judaica). Esta mulher, de nome
Lídia, comerciante de púrpura e originária da cidade asiáti­
ca de Tiatira, acolheu a mensagem dos estranhos, fazendo-
se batizar, e abriu-lhes não somente o seu coração (o texto
diz mais exatamente: "o Senhor lhe abrira o coração"), mas
abriu-lhes também a sua casa. Seus familiares também se
tornaram cristãos.
São fatos pouco notórios, destituídos de qualquer sen-
sacionalismo, mas que constituem o nascimento de uma
comunidade que permanecerá depois particularmente afei­
çoada ao apóstolo, e que dão início ao cristianismo no solo
europeu. Sem querer, retornam à mente os eventos dramá­
ticos que naquelas mesmas paragens, apenas 100 anos an­
tes, determinaram o surgimento do império de Augusto.
O próprio Paulo confirma que a sua atividade provocou
bem depressa um conflito (lTs 2.2), no qual, pela primeira
vez, estavam envolvidas também as autoridades romanas.
A ocasião e o transcurso daquele conflito são apresentados
por Lucas numa ampla e artística narração com traços len­
dários. Começa narrando com estilo elegante e eficaz um
episódio de exorcismo: uma escrava possuída de um de­
mônio reconhece nos missionários os mensageiros do Deus
Altíssimo e segue atrás deles aos gritos. Mas Paulo expulsa
o espírito maligno em nome de Cristo. Porém, os senhores
da jovem se irritaram, vendo que, desta forma, findara a
esperança de auferir lucros através do espírito de adivinha­
ção dela. Agarraram então os estrangeiros, arrastando-os
diante dos magistrados, com a acusação de estarem pertur­
bando a população romana e de fazer propaganda judaica
ilícita. Em consequência disso, Paulo e Silas são açoitados
com varas e lançados à prisão.
Contudo, a sua detenção se transforma milagrosamen­
te em bênção. No transcorrer do grandioso e bem conhecido
V ida e O bra 125

episódio de A t 16.25-40, cheia de elementos típicos das


histórias de milagres, os prisioneiros se revelam os verda­
deiros mensageiros de salvação, legitimados pelo próprio
Deus e portadores de um espírito novo. Pela meia noite,
os outros presos ouvem o hino de louvor a Deus dos dois
prisioneiros. Um repentino terremoto rompe as cadeias e
abre as portas da prisão. O carcereiro tendo acordado, e
pensando que os presos tivessem fugido, queria matar-
se, mas é dissuadido por Paulo que o chama da sua cela.
Converte-se, ele e todos os da sua casa, lava as feridas dos
prisioneiros, procurando, assim, remediar o mal que lhes
fora infligido.
Também os estrategos querem compensar o mal e
ordenam que sejam colocados em liberdade, sem alvoroço.
Paulo, porém, exige que, na qualidade de cidadãos roma­
nos, sejam desagravados formalmente e obriga os repre­
sentantes da autoridade a escoltá-los solenemente até às
portas da cidade.
É possível que também a conversão do carcereiro, do
mesmo modo que a da Lídia, se fundamente sobre notícias
seguras. Mas é lícito duvidar que o conflito com as autori­
dades romanas tivesse terminado realmente de forma tão
conciliadora segundo lTs 2.2, parece que as coisas não se
passaram assim. Na verdade, ali se alude somente a "sofri­
mentos e insultos" depois do que o apóstolo teria recobrado
nova coragem somente em Tessalônica. Neste caso, porém,
é tanto mais surpreendente o fato que os poucos cristãos da
cidade, após a breve estadia do apóstolo, interrompida tão
inopinadamente, ainda assim tenham conseguido formar,
num breve lapso de tempo, uma comunidade autônoma.
Tal aparece, na verdade, Filipos nas epístolas paulinas pos­
teriores.
A comunidade seguinte é a de Tessalônica (a moder­
na Saloniki), a cerca de 170 km de distância, na direção
126 Paulo , V ida e O bra

do Ocidente, capital da província romana da Macedônia e


sede de um procônsul. Nossa fonte de informações sobre a
origem daquela comunidade é constituída, ainda uma vez,
pelos Atos dos Apóstolos (A t 17.1-10).
Não encontramos neste relato traços de um testemu­
nho ocular nem é o caso de se esperar do autor dos Atos
uma rigorosa fidelidade histórica em todos os detalhes.
Todavia, em suas linhas fundamentais, o relato é digno de
crédito.
A sinagoga judaica, com os seus numerosos adeptos
de origem pagã, os "tementes a Deus", constitui, também
aqui, o ponto de partida mais indicado para a proclamação
do Evangelho. A pregação de Paulo recebe adesões, sobre­
tudo entre os gregos, o que, porém, provoca a inveja dos
judeus, os quais sublevam a população e, na presença das
autoridades citadinas, acusam os missionários do "re i"
Jesus de rebelião política contra o imperador. Não tendo
podido apoderar-se, naquele momento, dos acusados, a
multidão traz a julgamento um certo Jasão que hospedara
Paulo e seus companheiros. Somente após o pagamento de
uma caução, Jasão, juntamente com outros cristãos, é colo­
cado em liberdade. Paulo e Silas, porém, se dirigem rapida­
mente para Beréia.
Também neste caso, Lucas precisou lim itar a sua nar­
ração a poucos fatos, esquematizando-os e reduzindo des­
medidamente a duração da atividade de Paulo. Os dados
auferidos das epístolas paulinas permitem concluir que a
sua atuação em Tessalônica deve ter se estendido durante
vários meses, durante os quais ele ganhava o seu sustento,
trabalhando "dia e noite", para não ser de peso a ninguém
(lTs 2.9). Se Paulo não se tivesse demorado em Tessalônica
durante um período de tempo relativamente longo, não
se compreendería a forte influência exercida por aquela
comunidade na região circunvizinha, e referida laudato-
V ida e O bra 127

riamente em lTs 1.7. Esta epístola, escrita em Corinto (50


d.C.), pouco depois da repentina partida do apóstolo e das
breves estadias em Beréia e Atenas, é a mais antiga epístola
paulina que chegou até nós, sendo, em sentido absoluto, o
mais antigo escrito do Novo Testamento. Dela extraímos
informações sobre fatos que a precederam imediatamente
e que lhe deram origem: de Atenas, Paulo havia mandado
Timóteo de volta a Tessalônica para fortalecer a comunida­
de num momento difícil e para, depois, trazer notícias ao
apóstolo da situação de Tessalônica.
Entrementes, Timóteo veio ter com Paulo em Corinto,
trazendo-lhe notícias alvissareiras: a fidelidade da comuni­
dade era irremovível, tendo persistido na fé - um motivo
a mais para que Paulo ansiasse ardentemente poder voltar
a Tessalônica (lTs 3.1-13). Enquanto não pudesse concreti­
zar este anelo, a carta devia servir de encorajamento para a
comunidade.
Da epístola se depreende que a comunidade era for­
mada de fiéis provenientes do paganismo (lTs 1.9s.) e fora
objeto de perseguição da parte dos pagãos, compartilhan­
do, desta maneira, a sorte das comunidades da Judéia, per­
seguidas pelos judeus (lTs 2.14-16). Paulo fora informado,
outrossim, a respeito dos problemas que perturbavam a fé
daqueles fiéis: estavam preocupados porque o retorno de
Cristo tardava a acontecer e estavam aflitos pela sorte de
alguns irmãos que, neste meio tempo, haviam morrido, os
quais poderíam estar excluídos do esperado advento da
salvação. O apóstolo se esforça para aliviá-los destas pre­
ocupações e os exorta a esperarem com confiança a vinda
do Senhor, cujos dia e hora ninguém conhece, e a viver de
modo sóbrio e honesto, como "filhos da luz" que perten­
cem ao Senhor (lTs 4.13s.; 5.1s.).
A breve Epístola aos Tessalonicenses está ainda m ui­
to próxima (mais do que qualquer outro escrito paulino)
128 Paulo , V ida e O bra

da fundação da comunidade, não somente em sentido


temporal, mas também pelo conteúdo real: o apóstolo
se preocupa e se esforça para que a jovem e ameaçada
comunidade permaneça fiel às disposições iniciais. Este
início é o momento da passagem à fé, cujo conteúdo se
encontra sintetizado, de modo quase catequista, na frase:
"(...) vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes ao
Deus vivo e verdadeiro, e esperardes dos céus a seu Filho
a quem ele ressuscitou dentre os mortos: Jesus que nos
livra da ira futura" (lTs 1.9s.).
A grata lembrança da surpreendente acolhida que a
mensagem do apóstolo havia encontrado na comunidade e
o vigor da sua fé já amadurecida e resistente à perseguição
constituem o argumento dominante desta epístola. Paulo
relembra à comunidade o seu passado para fortalecê-la na
esperança a respeito do futuro último.
Merece destacar ainda que esta epístola contém um
agradecimento e uma intercessão de excepcional abran­
gência, quase a metade da carta, entretecidos com uma
vigorosa apologia da própria atividade apostólica, uma
autodefesa contra a eventual suspeita de ter proclamado
a mensagem com segundas intenções e de ter pretendido
agradar os ouvintes com o intuito de auferir glória pessoal
e, quiçá, também vantagens materiais (lTs 2.3-6). A abran­
gência com que são tratadas todas estas coisas que aos nos­
sos olhos parecem óbvias para um servidor de Cristo pode
surpreender inicialmente o leitor moderno e, talvez, até
impressioná-lo penosamente. Ter-se-a, porém, uma ava­
liação diferente quando estas passagens da epístola forem
colocadas no seu contexto histórico, isto é, no quadro da
propaganda religiosa da Antiguidade tardia.
Os numerosos "missionários" pagãos daquele tempo,
especialmente nas grandes cidades helenísticas, se com­
portavam bem diferentemente de Paulo e utilizavam ou-
V ida e O bra 129

tros meios: pregadores itinerantes e taumaturgos dos mais


diversos ritos, arautos e mensageiros da salvação dos deu­
ses pagãos, hábeis em se apresentar bem e com a língua sol­
ta, entusiastas e entusiasmantes, mas também habilidosos
nos negócios e vaidosos na exaltação dos milagres dos seus
deuses e espertos em ludibriar as multidões. As obras de
Luciano, de Filóstrato e de outros escritores nos apresen­
tam muitos destes personagens, algumas vezes designan­
do-os até com o nome. Sem dúvida, faziam uma concorrên­
cia perigosa com o Evangelho, e os missionários cristãos,
de ãcordo com uma opinião corrente bastante difundida,
deviam estar em condições de medir forças com eles.
As próprias epístolas paulinas, mas também outros
escritos do cristianismo prim itivo, deixam entrever o grau
de sugestão que este tipo vulgar de propaganda religiosa
exercia sobre muitos representantes populares da missão
cristã que, não raras vezes, se conformavam, de modo in-
quietante, àqueles modelos contemporâneos. Somente com
base nestas considerações podemos compreender correta­
mente os ataques e as dúvidas - provenientes, observe-se,
sempre de ambientes cristãos - dos quais é alvo o aposto-
lado de Paulo e cujos ecos nos são transmitidos através das
Epístolas aos Coríntios, aos Gálatas e aos Filipenses.
A situação na qual está colocada a Epístola aos
Tessalonicenses é, na verdade, um tanto diversa da das ou­
tras epístolas, na medida em que nela não se fala de agitado­
res cristãos hostis a Paulo. Mas este tinha razões para fazer
distinções entre a sua própria atuação e os procedimentos
ambíguos de tais concorrentes. Tanto mais surpreendente
é, portanto, a acolhida favorável que os tessalonicenses lhe
reservaram: quando chegou junto deles como um estranho,
após ter sido perseguido e expulso ignominiosamente de
Filipos, ele procurou ganhar o seu próprio sustento através
de um trabalho penoso de dia e de noite, mas não estava
130 Paulo , V ida e O bra

em condições de exibir nenhuma imponente demonstração


de poder do seu Deus. Quando é que um pregador semel­
hante podia pretender ser o portador de uma mensagem
divina que convoca à conversão os seres humanos, passan­
do dos ídolos ao Deus vivo e verdadeiro, uma mensagem
de valor decisivo para a vida e a morte? Que Deus e Senhor
era este que enviava ao mundo mensageiros em estado tão
lastimável e privados de qualquer sinal evidente do poder
divino?
Portanto, o sucesso da sua pregação não era, de for­
ma alguma, evidente. Para Paulo, é um motivo a mais para
agradecer a Deus "por terdes acolhido a sua Palavra, que
vos pregamos não como palavra humana, mas como na
verdade é, Palavra de Deus que está produzindo efeito em
vós, os fiéis" (lTs 2.13). A humanidade do pregador e da
pregação é ela mesma selo do caráter divino da mensagem
que lhe foi confiada.
Atenas representou, para Paulo, tão-somente uma
efêmera etapa intermediária na sua viagem para Corinto,
conforme ele escreveu numa de suas epístolas (lTs 3.1).
O autor dos Atos dos Apóstolos foi o primeiro a amplificar
a recordação da estadia do apóstolo em Atenas, decoran­
do-a com a grandiosa e bem conhecida cena (At 17.16-34)
que culmina com o discurso no Areópago (At 17.22-31) e
que devia representar, de maneira digna do nome ilustre
da cidade, coração do espírito grego, o encontro solene da
mensagem cristã com os representantes do saber e da cul­
tura da Antiguidade.
Lucas soube dar expressão também ao genius loci da
cidade e transmitir ao leitor uma vivida impressão da
atmosfera cultural e religiosa que ali reinava: dos seus
templos e imagens divinas, das suas escolas filosóficas e
do seu público proverbialmente curioso, ávido de saber,
amante da discussão, mas também sarcástico e petulante.
V ida e O bra 131

Paulo começa a discorrer, como Sócrates, na Ágora, e, como


este, é contradito com a acusação de querer introduzir "d i­
vindades estrangeiras" e de ser um "bicador de grãos", um
palrador. Segue, então, o seu grande discurso no célebre
Areópago, nos altos do mercado, sobre o qual se erguia im ­
ponente a Acrópole. O próprio lugar onde se desenrola a
cena dá à mesma, de forma plástica, o seu significado.
O discurso é, mais uma vez, um meio ao qual o au­
tor recorreu, com exemplar maestria, para apresentar o seu
pensamento e, quanto ao conteúdo, é, na verdade, um no­
tável documento da pregação e da teologia pós-apostólica,
certamente não do Paulo histórico. O discurso se caracte­
riza pelo fato de ter o "Paulo" da narração de Lucas, ao
ensejo da inscrição de um altar "ao deus desconhecido",
retomado uma série de pensamentos e de idéias que a filo ­
sofia e a crítica da religião da Antiguidade tardia já haviam
elaborado e que a teologia judaico-helenística, antes da
teologia cristã, já havia assimilado e integrado com noções
veterotestamentárias.
Deus não tem necessidade de templo e de sacrifícios
e não pode habitar nas imagens feitas pela mão humana.
Ele mesmo, com efeito, dispôs ordenadamente o cosmos,
fixando para ele o tempo e os limites, dá a todos vida e
respiração e predestinou o ser humano, que é de sua raça e
vive nele, a buscá-lo e a encontrá-lo.
No discurso do Areópago, estas idéias são expostas,
inicialmente, de modo favorável e não polêmico, como, de
resto, em documentos judeu-helenistas semelhantes e de
modo ainda mais rico nos escritos dos apologetas cristãos
do século II. Deste modo, no discurso de Atos 17, o con­
teúdo especificamente cristão da mensagem permanece,
num prim eiro momento, na sombra, como que recuado.
A ideia da origem divina de todos os seres humanos é
confirmada por uma citação poética com características
132 Paulo , V ida e O bra

estóicas, escola filosófica grega da época. Somente na par­


te final aparece o nome de Jesus Cristo, designado por
Deus para ser o juiz do universo, e são anunciados o juízo
e a ressurreição dos mortos, o que provoca de imediato o
escárnio dos ouvintes.
Nesta conclusão aparece, de alguma forma, algum
traço do fato de que a mensagem cristã, tal como o verda­
deiro Paulo a entendia, se contrapunha à concepção do ser
humano natural. Não obstante, os conceitos fundamentais
do discurso do Areópago de A t 17 são, ainda assim, os do
conhecimento natural de Deus através da razão e da afini­
dade entre Deus e o ser humano.
Certamente, também Paulo utiliza com vigor a ideia
de que Deus se revelou a todos nas obras da sua criação e
pode ser "visto com os olhos da razão", mas ele extrai des­
ta ideia a culpabilidade de todos os seres humanos dian­
te de Deus (Rm 1.20s.). O discurso do Areópago fala, ao
invés, somente dos tempos da ignorância, que Deus não
leva em conta (At 17.30). Com coerência lógica, o discurso
do Areópago se distingue do verdadeiro Paulo pelo fato
que o Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucu­
ra para os gregos (ICor 1.23), não tem nenhuma relevância
em A t 17. Por isso, aqui se fala do parentesco natural do ser
humano com Deus numa forma radicalmente diferente da
maneira como Paulo anuncia o milagre de Deus aceita o
ser humano e, por amor de Cristo, lhe confere a qualidade
de filho.
Estas duas concepções não são passíveis de harmoni­
zação. Do mesmo modo, nem é sustentável a explicação
bastante difundida, segundo a qual Paulo, em Atenas, teria
tentado uma vez pregar de maneira diferente, aproximan­
do-se, mais do que de costume, da mentalidade dos seus
ouvintes, mas sem sucesso, e teria, por conseguinte, a par­
tir daquele momento, retomado o anúncio, com redobrada
V ida e O bra 133

firmeza, da "palavra da cruz", renunciando a qualquer dis­


curso helenizante de sabedoria humana (ICor 1.18s.).
Tal explicação pressupõe que Paulo, na qualidade de
pregador, estava em condições de falar desta ou daquela
forma, especialmente sobre o tema que, segundo as suas
próprias palavras, constituía para ele o elemento central
e decisivo, reafirmado com indefectível energia em todas
as suas epístolas, salvaguardadas eventuais variações de
tonalidade.
Hoje, o histórico e o teólogo se vêem, portanto, obriga­
do a colocar em dúvida uma imagem tradicional que, a seu
modo, certamente não carecia de grandiosidade. Se Paulo
pregou de fato em Atenas, coisa que ele não menciona nas
suas epístolas, mas que é sumamente provável e constitui
o núcleo histórico da narração de Lucas, é justo, na verda­
de, presumir que ele não tenha tido sucesso. De resto, nem
Lucas está em condições de nos informar a respeito da fun­
dação de uma comunidade em Atenas.
Paulo foi ao encontro do insucesso, com toda proba­
bilidade, não na tentativa de se conformar à cultura e à fi­
losofia gregas, e sim pregando o mesmo Evangelho aqui
e em qualquer lugar: o Evangelho do pecado e da graça,
da ira de Deus e da salvação tornada possível pela cruz
de Cristo. Talvez, algumas frases da Primeira Epístola aos
Coríntios, escritas retrospectivamente pouco tempo depois,
constituem o eco das difíceis e dolorosas experiências do
apóstolo em Atenas: "Eu mesmo, quando fui ter convosco,
irmãos, não me apresentei com o prestígio da palavra ou
da sabedoria para vos anunciar o mistério de Deus. Pois
não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo,
e Jesus Cristo crucificado. Estive entre vós cheio de fraque­
za, receio e tremor; minha palavra e minha pregação nada
tinha da persuasiva linguagem da sabedoria, mas eram
uma demonstração do Espírito e de poder" (ICor 2.1-4).
134 Paulo , V ida e O bra

8. C O R IN TO

Somente em Corinto, nos movemos novamente sobre


um terreno histórico sólido. O livro dos Atos dos Apóstolos
fornece um bom número de dados seguramente confiáveis
(At 18.1-17) e as epístolas de Paulo representam, também
neste caso, um documento de valor incomparável, se bem
que tenham origem numa situação de vários anos depois,
e espelham, a partir desta situação, a história muito mo­
vimentada das relações do apóstolo com esta comunidade
e das lutas que ele teve que sustentar ali até o fim da sua
atividade missionária. De tudo isso, a narração de Lucas
não sabe nada. Mas são importantes as suas informações a
respeito das origens da comunidade.
Corinto é uma cidade totalmente diferente de Atenas,
a qual mesmo tendo perdido toda influência política, ainda
assim continuava sendo um centro de cultura universal­
mente reconhecido. Corinto, completamente destruída du­
rante a terceira guerra púnica, fora reconstruída por César
no primeiro século antes de Cristo e, desde o ano 27 a.C., se
tornara a capital da província romana de Acaia (ou seja, da
Grécia central e meridional) e sede proconsular.
Na época de Paulo, Corinto era uma cidade comercial
próspera e moderna, importante também do ponto de vis­
ta dos transportes, favorecida pela sua situação geográfica
sobre a estreita língua de terra do istmo, através do qual
chegava o transporte das mercadorias a serem embarcadas
nos dois portos que se abriam, um na parte ocidental so­
bre o mar Adriático e o outro na parte oriental sobre o mar
Egeu. Em meio à variegada e mista população pagã, vivia
também uma conspícua colônia judaica. Numerosas notí­
cias encontradiças nos escritos de autores antigos de diver­
sas épocas, como Aristóteles, Estrabão, Pausânias, Horácio,
Apuleio e outros, e os dados fornecidos pela arqueologia
V ida e O bra 135

moderna permitem que se tenha uma ideia bastante cla­


ra da vida e da atividade ocupacional que se desenvolvia
na imensa praça do mercado, nos templos, nos teatros, nas
termas, mas também da proverbial imoralidade reinante
na cidade. Os jogos ístmicos, que tinham lugar diante das
portas da cidade, constituíam um atrativo a mais (cf. Die
Kraniche des Ibicus, de Schiller ).
Sobre o pano de fundo desta realidade, tornam-se com­
preensíveis muitas questões religiosas, sociais e morais às
quais as Epístolas aos Coríntios dedicam justamente amplas
e aprofundadas discussões, bem como as suas alusões ao ca­
ráter fortemente proletário da comunidade (ICor 1.26s.).
Em Corinto, Paulo trabalha fabricando tendas com o
judeu Aquila, seu companheiro de profissão, e se hospeda
na casa deste. Aquila e sua mulher Priscila deviam ser cris­
tãos já antes de abandonarem, Roma, em decorrência do
decreto de Cláudio, conforme expusemos anteriormente
(At 18.2). E possível que a expulsão deles de Roma tenha
sido ocasionada em virtude das desordens desencadeadas
entre os judeus da capital em decorrência da pregação da
mensagem cristã, desde que seja possível interpretar neste
sentido uma notícia não muito clara fornecida por Suetônio,
o biógrafo de Cláudio (Vita Claudii, 25.4).
Certas passagens, como as de Rm 16.4 e IC or 16.19,
permitem compreender tudo o que representava a fé, a
solicitude e o espírito de sacrifício deste casal de emigran­
tes não só para com o apóstolo Paulo e para a comunida­
de de Corinto, mas também para a de Efeso, para onde
eles se transferiram pouco depois. Uma ajuda em dinhei­
ro, remetido das igrejas da Macedônia através de Silas e
Timóteo, permite que Paulo se consagre de modo integral
à pregação e ao trabalho missionário (A t 18.5). Isto provo­
ca também aqui um conflito com os judeus, razão por que
o apóstolo transfere a sua atividade da sinagoga à resi-
136 Paulo, V ida h O bra

dência particular de um certo "temente a Deus", de nome


Tício Justo.
A comunidade formada de judeus, mas, sobretudo,
de pagãos, cresce rapidamente. Paulo pode trabalhar em
Corinto por um ano e meio. A seguir, os judeus encenam
um tum ulto e acusam-no diante do novo procônsul Gálio
como inim igo do Estado. O procônsul, porém, rejeita as
acusações e declara que a contenda é uma questão interna
da comunidade judaica e que não lhe diz respeito. Em con­
sequência disso, a agitação da multidão reunida na Agora,
diante do "Lema" (o trono do juiz que se conserva até aos
nossos dias), se volta contra os próprios judeus, e um dos
seus chefes é espancado, enquanto Paulo e a comunidade
cristã ficam sem serem molestados.
Após o tumulto, o apóstolo permanece ainda alguns
dias na cidade, antes de partir com Aquila e Priscila
para Efeso, e de lá prosseguir sozinho para a Palestina,
Antioquia e novamente Efeso. A narração do livro dos Atos
dos Apóstolos, neste particular, é extremamente lacônica.
Menciona somente as várias etapas, indicando as regiões
que Paulo percorre pela segunda vez durante a sua via­
gem: a Galácia e a Frigia, já anteriormente evangelizadas.
O autor dos Atos dos Apóstolos dedica novamente uma
descrição mais extensa somente à prolongada estadia do
apóstolo em Efeso.
Inicialmente, seguiremos a evolução da comunidade
de Corinto, desde a primeira partida de Paulo (ano de 51
d.C.) até o início da sua abundante correspondência com os
coríntios. O que aconteceu com eles? A Primeira Epístola
aos Coríntos, escrita, sem dúvida, na primavera de 54 d.C.,
em Éfeso (IC or 16.8), e uma breve epístola precedente, à
qual Paulo faz referência explícita (IC or 5.9), oferecem um
quadro da vida passada e presente da comunidade, que é
quase desconcertante pela sua riquíssima variedade.
V ida e O bra 137

O apóstolo responde a uma série de notícias e de per­


guntas que chegaram até ele, em parte oralmente, em parte
através de uma correspondência da comunidade. Por isso,
é possível entender as Epístolas aos Coríntios somente se
tivermos presente constantemente as situações e os proble­
mas a que fazem referência. Naturalmente, estamos diante
das mesmas dificuldades que se apresentam ao exegeta, o
qual deve frequentemente reconstruir as questões a partir
das respostas, e os dados e personagens a partir de acenos
e alusões.
O livro dos Atos dos Apóstolos nos informa que, nes­
te meio tempo, um certo Apoio foi enviado de Éfeso para
cuidar da comunidade de Corinto: tratava-se de um judeu,
originário de Alexandria e convertido ao cristianismo, um
homem de grande espiritualidade e capacidade oratória
(At 18.24s.; 19.1). Também o apóstolo o menciona reitera­
das vezes na Primeira Epístola aos Coríntios (ICor 1.12;
3.4s,22; 4.6; 16.12) e sempre de modo favorável, mesmo se
é correto reconhecer que a diversidade da origem e o fato
de não ter sido levado à fé por Paulo fizessem com que ele
se distinguisse do apóstolo e tivesse um grupo de adeptos
seus, com particularidades próprias, os quais confiavam
cegamente nele (ICor 1.12).
Não existem, porém, nenhum motivo para atribuir a
Apoio ou ao seu ensinamento a divisão que estava por se
manifestar na comunidade. No momento em que Paulo es­
creve a sua epístola, Apoio está com ele em Éfeso e o após­
tolo rogou-lhe, ainda que inicialmente sem sucesso, que ele
retornasse com mais alguns para a ameaçada comunidade
de Corinto (ICor 16.12).
De qualquer maneira, após a partida de Paulo, a comu­
nidade cresceu extraordinariamente em número, permane­
ceu dinâmica e de forma alguma recaiu numa espécie de
pobreza e esterilidade espiritual (ICor 1.4-9). Não obstante,
138 Paulo, V ida e O bra

ela apresenta um quadro confuso. A sua riqueza se trans­


formou para ela numa gravíssima ameaça que obriga o
apóstolo a dirigir-lhe exortações, mas também severas crí­
ticas. .
A primeira questão que Paulo aborda difusamente
(ICor 1-4) mostra já como a comunidade se havia afastado
de maneira preocupante do fundamento que ele havia co­
locado: ela se dividira em grupos rivais que ameaçavam a
unidade do corpo de Cristo, da comunidade. Já não é mais
possível para nós, hoje, definir com exatidão as diferenças
entre os diversos partidos, a partir das suas palavras de
ordem: "Eu sou de Paulo!", "Eu sou de Cefas!" ou "Eu sou
de Cristo!" (IC or 1.12). É significativo que Paulo não se põe
a discutir as suas opiniões e tendências, para dar razão a
um ou a outro. Todos os grupos, inclusive o dos seus pró­
prios seguidores, demonstram que a mensagem de Cristo
crucificado foi relegada e substituída por uma sabedoria
presunçosa, pretensamente espiritual, mas, na realidade,
pouco humana. Na exuberância das suas experiências e
descobertas espirituais, os coríntios perderam de vista
Cristo, fundamento e limite da sua liberdade, sujeitando-
se, destarte, a "autoridades" humanas (ICor 3.21s.).
Como quer que estes partidos se tenham formado e
combatidos entre si, fica evidente que o fenômeno verda­
deiramente perigoso que se manifestou na vida da comuni­
dade é a explosão do entusiasmo. Paulo terá que lidar com
ele na Primeira Epístola aos Coríntios. Os "espirituais" e os
"entusiastas" se vangloriavam, em confronto com os de­
mais irmãos, de já terem atingido a condição de "perfeitos"
e de já estarem na posse do "espírito" e do "conhecimento"
(ICor 2.6; 3.1s.; 8.1). Este últim o termo não se refere ao co­
nhecimento adquirido intelectualmente, e sim ao conheci­
mento recebido por revelação que, como nas religiões dos
mistérios e na gnose, nos torna partícipes das forças do
V ida e O bra 139

mundo divino e liberta das cadeias do mundo inferior e


das potências do destino e da morte.
O surgimento deste movimento na comunidade de
Corinto não era de maneira alguma fenômeno marginal e
sem importância. As pretensões e a conduta daqueles que
eram "repletos do Espírito" são a causa, certamente não a
única, mas ainda essencial, que tornou virulentas e agu­
das uma série de questões atinentes à comunidade no seu
conjunto o que desencadeou, assim, uma crise perigosa.
Tais questões mostram até que ponto a jovem comunidade
helenista estava dependente do seu passado e do seu am­
biente pagãos, também no que se refere aos problemas da
vida cotidiana, e como ela ainda não estava em condições
de orientar a própria vida de acordo com critérios seguros
e válidos, oriundos da fé.
As questões das quais Paulo precisa se ocupar na sua
epístola vão desde aquilo que, aos nossos olhos, parece
por demais profano - algo como o cardápio do almoço e
uma lista de compras na feira - passando pela solicitude
em relação à sociabilidade, pela oportunidade de se d iri­
gir aos tribunais pagãos para resolver pendências, pelas
disposições concernentes às diferenças sociais entre os
membros da comunidade, pelas normas a serem observa­
das nas questões da moral e das convenções pagãs tradi­
cionais, até se elevar, enfim, aos problemas fundamentais
da vida da comunidade cristã, do seu culto, da sua fé e da
sua esperança.
O leitor moderno constatará com surpresa que a ques­
tão fundamental da reta conduta do cristão no seu ambien­
te, isto é, a questão da liberdade que lhe foi conferida, e dos
seus limites, a questão em torno daquilo que lhe era lícito
fazer sem escrúpulos e em tomo daquilo que lhe era proi­
bido na qualidade de cristão, irrompia em Corinto lá onde
menos se esperava.
140 Paulo, V ida e O bra

Este fato se explica, entre outras razões, por que no


mundo antigo, no qual surgia o cristianismo prim itivo, as
esferas cúltico-pagãs e as profanas acabavam por se im ­
por e se imbricavam em medida bem diversa da de hoje.
Compreende-se, portanto, por exemplo, por que Paulo em
ICor 8-10 deva tratar tão a fundo o problema, nada banal
aos olhos dos coríntios, se era lícito aos cristãos comprar a
carne oferecida à venda no mercado e proveniente, talvez,
dos sacrifícios celebrados num templo vizinho, ou o pro­
blema, se um cristão podia participar sem escrúpulos de
uma refeição oferecida por amigos e parentes pagãos por
ocasião de um sacrifício.
Os que se consideravam "repletos do Espírito" res­
pondiam com superioridade a estes e a outros problemas
da vida cotidiana mediante a fórmula geral "tudo é per­
m itid o " (IC or 6.12; 10.23) e demonstravam a sua ilim itada
liberdade, contrapondo-se àqueles que queriam preservar
a própria fé, evitando com todo escrúpulo qualquer "con­
taminação" e praticando um rigoroso ascetismo. Os "es­
pirituais", com o seu lema da liberdade, justificavam até
mesmo as relações com prostitutas, que a opinião corren­
te dos pagãos considerava totalmente inocente e admissí­
veis. Por que deveria o cristão não estar à vontade, tratan­
do-se, aqui, de coisas absolutamente naturais e inferiores,
incapazes de contatar o verdadeiro "eu" dos "espirituais"
(IC or 6.12s.)?
Paulo não aborda de maneira casuística e legalista os
argumentos que lhe são colocados, mas deixa plena liber­
dade quando isto é possível na fé, mas pronuncia um "não"
categórico quando se abusa claramente da liberdade cristã,
quando se ultrapassam os limites dos princípios éticos que
valem para todos, inclusive para os pagãos (ICor 5.1s.), e
quando se trai a nova vida que Cristo abre aos que crêem
(ICor 6.1s e passim).
V ida e O bra 141

É muito significativo - em IC or 8-10 - a sua manei­


ra extremamente incisiva de descartar as argumentações
pseudoteológicas com as quais os "entusiastas" se autojus-
tificavam e de reconduzir a atenção sobre as questões que
lhe eram formuladas, colocando-as no quadro da responsa­
bilidade que cada um tem para com o próximo, diante de
Deus e do mundo à volta.
O mesmo procedimento se observa também e especial­
mente na sua ampla abordagem dos graves inconvenientes
que ocorriam durante o culto em Corinto. A ceia do Senhor
era celebrada na convicção de participar, por meio do sa­
cramento, da redenção ocorrida através de Cristo, mas sem
no transcurso da refeição comunitária, conexa à celebração,
os ricos se preocupassem dos mais pobres que chegavam
tarde e não possuíam nada. Trata-se, para Paulo, de um
ultraje ao "corpo" de Cristo, isto é, à comunidade (ICor
10-11). Analogamente, o apóstolo se opõe à competição
tumultuante que ocorria no culto entre os "espirituais",
que se compraziam em falar em línguas estranhas, e insiste
para que se mantenha a linguagem razoável e clara da pre­
gação apta a convencer e conquistar os que estão à margem
da comunidade ou que ainda não crêem.
Os "entusiastas" se caracterizam pelo fato de não que­
rer aceitar o vínculo responsável com os outros e, assim,
pretender saltar por cima do lim ite histórico-temporal
imposto à vida dos cristãos. Este é o motivo por que o gran­
de capítulo 15 da Epístola defende a realidade futura da
ressurreição dos mortos contra aqueles que pensavam já
fazer parte, em espírito, do mundo ultraterreno de Deus
(ICor 4.8)!
Por mais variegadas e estranhas que sejam as m ani­
festações do entusiasmo espiritualista que se alastrava
na comunidade de Corinto, e por mais diferentes que
sejam as respostas e as indicações do apóstolo, sempre
142 Paulo, V ida e O bra

é possível, porém, discernir a linha diretriz que pervade


a epístola em seu todo. Ele reconduz aos princípios fun­
damentais também as coisas aparentemente secundárias
e isoladas, tendo como fundamento o conjunto da mensa­
gem da salvação. Seu guia é a palavra salvífica a respeito
do crucificado, enquanto "loucura divina", que confunde
a sabedoria dos seres humanos. E a verdadeira liberdade
que, através do amor, permite ao ser humano identificar o
próximo (cf. IC or 13). E o apelo à razão frente a qualquer
tipo de entusiasmo e exaltação. E o chamamento insistente
para ter sempre presente os limites da realidade temporal
e o anúncio da realidade futura que, em definitivo, trará a
renovação total do ser humano.
Paulo não se lim itou a remeter esta epístola (chamada a
Primeira, mas, na verdade, pelo menos a segunda, como se
deduz de IC or 5.9, endereçada à comunidade de Corinto)
para intervir energicamente, colocando ordem, na caótica
atividade e conduta dos coríntios, como enviou também a
Corinto o seu fiel auxiliar Timóteo (ICor 4.17; 16.5s.). Ao
que parece, ambas as iniciativas surtiram, num primeiro
momento, o seu efeito.
Contudo, a nossa assim chamada Segunda Epístola aos
Coríntios mostra que este sucesso não foi duradouro e que
Paulo teve que enfrentar, pouco tempo depois, uma nova
fase, ainda mais dura, da luta contra aqueles adversários
que induziam em erro a comunidade, excitando-a à revolta
contra o próprio apóstolo.
A causa e o desenrolar daqueles dramáticos acon­
tecimentos podem ser esboçados, ao menos em grandes
linhas, desde que se admita, como a seguir faremos, que
o escrito contido no cânon neotestamentário com o nome
de Segunda Epístola aos Coríntios não é um documen­
to unitário e coerente, mas uma coleção de várias corres­
pondências escritas e enviadas por Paulo a Corinto, em
V ida e O bra 143

tempos diferentes e em situações diversas e mutáveis, e


compiladas mais tarde num todo único com a finalida­
de de serem transmitidas a outras comunidades (sobre
os fundamentos desta hipótese e para a análise literária
desta "Segunda" Epístola aos Coríntios, cf. o Anexo II do
presente livro).
Este novo conflito foi provocado pelo aparecimento de
certos pregadores itinerantes "cristãos" em Corinto, após a
redação da Primeira Epístola aos Coríntios. Várias expres­
sões do apóstolo permitem deduzir que a chegada destes
pregadores ocorrera há pouco, que vieram de fora com car­
tas de recomendação de outras comunidades e que se auto-
recomendavam vigorosamente (2Cor 3.1; 10.12s.; 11.4,22s.).
Também eles adotam o nome de "apóstolos" e "ministros
de Cristo" (2Cor 11.5,23; 12.11) e podem se vangloriar de
pertencer, como Paulo, ao povo eleito de Deus (2Cor 11.22),
fato que o apóstolo não pode negar.
Neste ponto, é possível observar que, no cristianismo
prim itivo, o conceito de "apóstolo" ainda não era restrito ao
círculo dos "Doze" discípulos. As epístolas paulinas não o
empregam nunca neste sentido. O significado restrito apa­
rece esporadicamente no Evangelho de Mateus (M t 10.2) e
com frequência, ao invés, nos escritos de Lucas, afirmando-
se, a partir daí, na nossa tradição eclesiástica.
Para Paulo, mas também na opinião de outros cristãos
dos primórdios do cristianismo, é apóstolo aquele que foi
enviado como missionário do Senhor ressuscitado e glo-
rificado. Somente sobre esta base comum podia surgir o
problema asperamente discutido, como transparece das
Epístolas aos Coríntios e de outros escritos paulinos, da
legitimidade dos verdadeiros apóstolos e das característi­
cas dos falsos.
Já observamos anteriormente, ao ensejo da análise da
Primeira Epístola aos Tessalonicenses, o quanto era urgente
144 Paulo , V ida e O bra

a colocação de semelhante problema em relação ao tipo


de propaganda religiosa na época da Antiguidade tardia.
Naquela oportunidade, Paulo precisou defender a legitim i­
dade do seu apostolado frente aos taumaturgos do paga­
nismo.
Em Corinto, ao invés, se tratava de missionários cris­
tãos que se comportavam como os seus concorrentes pa­
gãos e, por isso, desprezavam Paulo e o seu evangelho, indo
abertamente a campo contra ele. Segundo os seus critérios,
Paulo estava carente de todos aqueles sinais do verdadeiro
apóstolo autorizado por Cristo, que eles presumiam pos­
suir e com os quais não deixavam de exercitar uma certa
impressão sobre a comunidade. Esteve, por acaso, em con­
dições de exibir alguma revelação religiosa celeste, algum
milagre e alguma manifestação convincente do "espírito"
(2Cor 12.Is.), ele, tão frágil e lastimável na sua maneira
de se apresentar, tão desajeitado ao falar sob o influxo do
pneüma, e corajoso somente nas epístolas que escrevia de
longe (2Cor 10.1; 11.6)?
As numerosas alusões nas quais Paulo reproduz, às
vezes literalmente ou palavra por palavra, as acusações
ofensivas dos seus adversários, mostram como estes não
se pejavam nem das calúnias mais soezes. Ainda assim,
não podemos caricaturizar com demasiada facilidade a
sua imagem. A impressão que deixaram na comunidade
de Corinto foi, ainda assim, a de "anjos de luz" e "servido­
res da justiça" (2Cor 11.14s.) e não deixaram de produzir
uma "demonstração de Espírito e poder" (IC or 2,4), para
dizê-lo com as palavras do próprio Paulo, ainda que este o
entendesse num sentido diametralmente oposto. Por isso,
e ainda que a contragosto e como que coagido, o apóstolo
precisa assemelhar-se a eles e vangloriar-se, como se fosse
um "louco", de poder exibir também ele os mesmos títulos
de superioridade. Mas não quer fazê-los, pois, precisamente
V ida e O bra 145

a fraqueza, por eles ridicularizada, é a sua glória: nela, na


verdade, se manifesta a "força de Cristo com todo o seu
poder" (2Cor 12.9).
Como sua "glória", Paulo indica, não menos, a comu­
nidade que abraçou a fé por meio da sua pregação, a fadiga
do seu trabalho cotidiano e a longa série de sofrimentos e
perseguições que padeceu em seu serviço. Estes são, para
ele, os verdadeiros "sinais distintivos do apóstolo". Diante
da falsificação e exploração do Evangelho em proveito pró­
prio da qual se tornam responsáveis os seus adversários,
ele reivindica para si: "Não somos como aqueles muitos
que falsificam a palavra de Deus; é, antes, com sincerida­
de, como enviados de Deus, que falamos, na presença de
Deus, em Cristo" (2Cor 2.17). Desta maneira, ele arranca
a máscara dos falsos apóstolos de Cristo, denunciando-os
como apóstolos camuflados e servos de Satanás (cf. 2Cor
11.13s.).
É claro, portanto, que a luta que ele é obrigado a con­
duzir para que seja reconhecido o seu apostolado não diz
respeito somente à sua honra pessoal. Alhures, ele mesmo
pode afirmar, com superior liberdade, que a amizade ou
inimizade pessoal lhe são indiferentes: "Mas que importa?
De qualquer maneira - ou com segundas intenções ou sin­
ceramente - Cristo é proclamado" (F1 1.18) e pode repelir
uma supervalorização da sua pessoa: "Quem é, portanto,
Apoio? Quem é Paulo? Servidores, pelos quais fostes leva­
dos à fé" (lC or 3.5).
Agora, porém, diante da agitação provocada pelos
novos adversários em Corinto, para a qual as precedentes
correntes dos "entusiastas" haviam perigosamente prepa­
rado o terreno, Paulo teve que lutar, ao mesmo tempo, pela
defesa do seu ministério apostólico em prol do Evangelho,
de um lado, e pela própria compreensão do que seja ser
cristão, de outro.
146 Paulo, V ida e O bra

Os fragmentos de cartas escritas a breve distância


umas das outras e conservadas na "Segunda" Epístola
aos Coríntios permitem a reconstrução, de alguma fo r­
ma, das diversas fases e momentos da luta imposta ao
apóstolo. Evidentemente, ele ouviu falar dos seus adver­
sários e da agitação por eles patrocinada num momento
em que os seus esforços se encontravam numa fase in i­
cial e a comunidade não estava ainda ameaçada de cair
em seu poder.
Com toda probabilidade, foi nesta época que ele
escreveu o longo trecho epistolar contido em 2Cor 2.14-7.4.
Neste, Paulo defende já, na verdade, o seu apostolado e
polemiza ardorosamente contra os falsos apóstolos, mas se
encontra ainda numa posição de superioridade, na espe­
rança de trazer a comunidade à razão e de não perdê-la
(2Cor 6.1 ls.; 7.4).
Mas a sua carta não obteve o êxito esperado e a situa­
ção, sob a agitação dos adversários, se agravou a tal ponto
que o apóstolo precisou abandonar planos anteriormente
feitos e se decidir por uma rápida viagem a Corinto. A visi­
ta transcorreu, porém, de maneira perturbadora. Ele encon­
trou a comunidade num estado de rebelião aberta contra
ele, e um instigador no meio da comunidade lhe fez uma
injúria tão grave (2Cor 2.5; 7.12) - certamente, não somente
no sentido de uma ofensa pessoal, e sim de uma difamação
contra a sua missão apostólica - a ponto de não poder con­
tinuar ali por mais tempo.
De volta a Éfeso sem ter resolvido nada e num esta­
do de extrema tensão emotiva, escreve de lá uma outra
carta a Corinto "em grande tribulação e com o coração
angustiado (...), em meio a muitas lágrimas" (2Cor 2.4).
Os fragmentos mais importantes desta carta, conforme
reconheceram com justiça, há tempos, muitos estudio­
sos, encontram-se em 2Cor 10-13. Nesta carta, Paulo em-
V ida e O bra 147

preende uma luta quase desesperadora, não somente


contra aqueles mestres do erro, mas, na verdade, tam­
bém contra a comunidade que cedeu à sua agitação, sem
que haja ainda alguma esperança de arrependimento
(2Cor 11.20s.).
Juntamente com esta carta comovida e comovente,
Paulo enviou à comunidade rebelde também Tito, com
o d ifíc il encargo de reconduzi-la à razão. Ele mesmo
interrom peu, antes do previsto, a sua estadia na Ásia
Menor para, preocupado e inquieto, ir ao encontro de
Tito na Macedônia, para dele o u vir o resultado da sua
missão.
A carta, de teor extremamente duro, mas na qual o
apóstolo se expõe por inteiro, e o envio do seu colabo­
rador não ficaram sem efeito. A comunidade caiu em si,
tornando-se sensata e arrependendo-se, e quis dar disso
ao apóstolo a mais cabal demonstração. Paulo pôde então
escrever aos coríntios uma carta de reconciliação, de tom
um tanto exagerado, na qual solicita ardentemente que os
destinatários perdoem, como ele já o fizera pessoalmente,
o membro da comunidade que lhe infligira aquela insu­
portável ofensa.
Esta carta de reconciliação, em suas partes mais im ­
portantes, nos fo i conservada em 2Cor 1.1-2.14 e 7.5-16
e nos oferece, retrospectivamente, um quadro dos acon­
tecimentos aqui descritos. Da Macedônia, conforme já
havia planejado em 2Cor 13.1 e 9.3s, Paulo se dirige a
C orinto pela terceira e últim a vez e encontra ali uma
comunidade pacificada. A Epístola aos Romanos, escri­
ta durante esta últim a estadia em Corinto, não deixa
transparecer pelo menos nenhum sinal de lutas e tem­
pestades.
148 Paulo , V ida e O bra

9. ÉFESO

A história emocionante das relações de Paulo com


Corinto constitui somente um fragmento da sua plurianual
atividade em Éfeso. A sua permanência nesta cidade durou
dois ou três anos, segundo as referências, certamente dig­
nas de crédito, do livro dos Atos dos Apóstolos (At 19.8­
10; 20.31). Contudo, destas indicações não podemos extrair
uma narração unitariamente coerente e historicamente
aceitável deste período.
Excluindo-se algumas notícias úteis de caráter local, o
autor dos Atos dos Apóstolos tinha ao seu dispor evidente­
mente, para o período efesino, um material muito escasso
e de valor bastante desigual; alguns episódios e anedotas
embelezadas pela lenda e, aqui e ali, também algumas va­
gas recordações.
Ainda assim, deste material disponível, a habilidade
narrativa de Lucas, não isenta de compreensão pelo genius
loci desta famosa metrópole da Ásia Menor, conseguiu
oferecer um quadro imponente e razoavelmente orgânico
(A t 19). Tudo tende à glorificação do grande missionário
cuja mensagem atingiu todos (!) os habitantes da Ásia, ju ­
deus e gregos. A sua capacidade de fazer milagres é tão
extraordinária que, colocando sobre os doentes aventais e
os lenços tocados pelo apóstolo, eles saram imediatamen­
te e são libertados dos espíritos malignos. Alguns exorcis­
tas judeus que tentam efetuar em nome de Jesus os mes­
mos milagres devem, no entanto, adm itir o seu fragoroso
insucesso.
O sucesso do apóstolo é tão formidável que a popu­
lação renuncia à magia e promove um auto-de-fé no qual
são queimados publicamente livros de arte mágica - m uito
notórios na Antiguidade - de enorme valor (50.000 dená-
rios de prata). Paulo derrota igualmente o sectarismo e con-
V ida e O bra 149

quista à verdadeira fé alguns discípulos de João Batista.


A sua pregação coloca até mesmo em perigo o culto de
Artemis, a quem fora erigido em Efeso um santuário que
constava entre as sete maravilhas do mundo.
Um certo Demétrio, fabricante de objetos religiosos e
de recordações turísticas, vê os seus negócios seriamen­
te ameaçados pela pregação do apóstolo. Ele mobiliza o
seu pessoal que, aos gritos de "Grande é a Artem is dos
efésios!", conduz o povo à revolta. E feita uma assem­
bléia no teatro. Um judeu procura em vão im por silên­
cio à m ultidão amotinada, até que um representante da
autoridade estatal consegue, finalmente, se fazer ouvir:
Paulo e os seus companheiros não profanaram o santuá­
rio nem blasfemaram contra os deuses. Se Demétrio e os
seus colegas têm m otivo para reclamação, então se faça
um processo regular no tribunal, mas o povo não deve se
tornar culpado de sedição contra o procônsul. Paulo não
foi envolvido no tum ulto e pôde p a rtir da cidade como
vencedor sobre um abalado paganismo e um impotente
judaísmo.
Esta apresentação da atividade de Paulo em Efeso,
transmitida através dos Atos dos Apóstolos, não oferece
condições para uma análise histórica séria. A narração con­
tém, sem dúvida, alguma notícia aproveitável e o autor dos
Atos dos Apóstolos possui, certamente, boas razões para
considerar Efeso como um dos principais centros missio­
nários de Paulo. Todavia, é impossível identificar em A t 19
trechos que remetem a fontes dignas de crédito, enquanto
a maneira de descrever cada uma das cenas que se suce­
dem na narração até o quadro triunfal da sublevação de
Demétrio está de tal forma impregnada de típicos traços
da arte narrativa de Lucas e da concepção de história deste
que a sua apreciação e interpretação exigem máxima pru­
dência.
150 Paulo , V ida e O bra

Esta reserva é tanto mais válida na medida em que as


epístolas de Paulo que foram escritas durante o período efe-
sino e que se referem ocasionalmente, de modo direto ou
indireto, à situação de Éfeso, apresentam um quadro bas­
tante diferente, do qual o livro dos Atos dos Apóstolos pra­
ticamente não conservou nenhum traço. Trata-se, ademais,
de notícias esparsas e nem sempre verificáveis com toda
certeza e que precisam ser cuidadosamente investigadas.
Via de regra, não são relatos unitários, mas breves acenos
que lançam um rapidíssimo raio de luz sobre fatos, perso­
nagens e situações, e que compensam com a sua clareza a
ausência de um nexo visível que os una uns aos outros.
Entre as epístolas escritas por Paulo em Éfeso estão
elencadas com toda probabilidade, além da já mencionada
correspondência aos Coríntios, também as endereçadas aos
Gálatas, aos Filipenses e a Filemon. A estas é preciso acres­
centar o inesperado testemunho fornecido pela longa lista
de saudações que, segundo uma bem fundada opinião, foi
colocada erroneamente no fim da Epístola aos Romanos
(Rm 16), quando, originariamente, devia fazer parte de
uma carta, hoje perdida, endereçada por Paulo à comuni­
dade de Éfeso, pouco depois da sua partida daquela cidade
e, por conseguinte, mais ou menos no mesmo tempo em
que escrevia aos romanos (cf. Anexos I e II).
Deste últim o citado documento, é possível ver retros­
pectivamente com quanto intenso empenho pessoal Paulo
tenha atuado em Éfeso, mas também identificar o quan­
to crescera a comunidade e quantos dos seus membros
haviam efetivamente colaborado com o apóstolo. A lista
contém não menos de vinte e seis nomes. Isto seria um
tanto estranho, foi observado com razão, numa carta en­
dereçada à comunidade de Roma que Paulo nem sequer
conhecia, ao passo que se enquadra perfeitamente na hi­
pótese de Éfeso ter sido o destino desta carta, a tal ponto
V ida e O bra 151

que no início da lista aparecem os nomes de Áquila de


Priscila que, como já sabemos, se encontravam naquela
cidade, bem como o nome de um certo Epêneto, referido
como "primícias da Ásia", ou seja o prim eiro convertido
daquela província.
As breves expressões, de caráter muito individual, que
Paulo acrescenta aos nomes, demonstram que o apóstolo
se recordava perfeitamente daquelas pessoas, os seus pa­
rentes, a igreja que se reunia em sua casa, a sua criadagem,
e manifestam a intensidade das suas relações com eles, ou
sublinham explicitamente o quanto o apóstolo mesmo e
toda a comunidade sejam devedores da sua atividade de
testemunhas autênticas, da sua coragem, da sua perseve­
rança e espírito de sacrifício: homens e mulheres, cristãos
de origem judaica ou pagã, livres e escravos.
Também a epístola endereçada aos Filipenses, escrita
em Efeso, durante um período de aprisionamento do após­
tolo, confirma o crescimento e a atividade da comunidade
efesina, que não mergulhou na resignação e no silêncio te­
meroso, no momento da prisão de Paulo, mas continuou a
dar o seu testemunho, com crescente coragem e firmeza.
Não todos o fazem por motivos muito claros, como
se diz explicitamente em F1 1.14-17. Contudo, Paulo pode
afirmar que a maior parte dos membros da comunidade
lhe tributam afeto, e isso de bom grado: eles sabem o que
exigem deles naquele momento a prisão de Paulo e o evan­
gelho pelo qual ele sofre. Por isso, aproveitaram a brecha
e, justamente no momento em que o apóstolo é reduzido
ao silêncio, o Evangelho faz progressos inesperados (F1
1.12s.).
Paulo não esconde o fato que, entre tantos, existem
alguns que nutrem, em relação a ele, maldosos sentimentos
de inveja e de malignidade. Eles pensam ter chegado a sua
hora, empenhando-se, com um zelo duvidoso, em afligir
152 Paulo, V ida e O bra

o apóstolo prisioneiro, ou seja, para mostrar-lhe que ele é


perfeitamente dispensável.
Ignoramos quais sejam os acontecimentos desagradá­
veis aos quais fazem referência estas passagens da Epístola
aos Filipenses. Não existe razão para pensar que se trata
de propagadores de falsas doutrinas, e sim de adversários
pessoais e de rivais. Caso contrário, Paulo não podería ter
descartado, com altiva indiferença, a questão dos motivos
bons ou duvidosos daquela pregação, declarando: "Mas
que importa? De qualquer maneira - ou com segundas in­
tenções ou sinceramente - Cristo é proclamado, e com isso
eu me regozijo" (F11.18).
Também em Éfeso, como narram os Atos dos Apóstolos,
Paulo, com certeza, começou a pregar na sinagoga. Mas,
após alguns meses, a hostilidade dos judeus o obriga a se
transferir para a escola de um certo Tirano, como faziam
os mestres itinerantes daquela época (At 19.8-10). Durante
o transcorrer dos conflitos que precederam aquela transfe­
rência de local, ele sofreu, certamente, mais de uma vez, na
qualidade de herético, a punição sinagogal dos 39 golpes
de azorrague, mencionada em 2Cor 11.24.
Na "epístola do sofrimento", escrita em Éfeso, Paulo
elenca aquela punição entre muitos sofrimentos e contra­
riedades que suportou durante a sua atividade apostólica,
e que ele considera como "realizações" dos quais se pode
orgulhar, contrapondo-as, com amarga ironia, às obras
portentosas dos "repletos do Espírito" de Corinto.
De todas estas dificuldades, o livro dos Atos dos
Apóstolos recorda somente aprisão em Filipos, e nada que
se refira à estadia em Éfeso. É difícil dizer quantos dos so­
frimentos e perigos, que atingiram os limites do risco de
morte, e dos quais se fala em 2Cor 11, tenham ocorrido du­
rante os anos que Paulo passou em Éfeso, mas é certo que
uma boa parte teve lugar durante aquele período. O breve
V ida e O bra 153

aceno a uma "luta com feras", que precisou sustentar em


Efeso (ICor 15.32), ainda que a expressão tenha um sentido
metafórico e não literal, refere-se explicitamente a algum
conflito com as autoridades romanas da cidade.
E, além do mais, o impressionante catálogo de sofri­
mentos que se encontra em 2Cor 11.23-33 fala de uma in fi­
nidade de gravíssimas aflições e tormentos padecidos por
obras de judeus e pagãos: espancamento, apedrejamento,
prisão. Mas fala também de adversidades e perigos enfren­
tados em viagens por terra e por mar, muitos dos quais per­
tencem, sem dúvida, ao período da sua atividade em Éfeso:
perigos nos centros habitados e no deserto, ao atravessar
rios impetuosos, ao sofrer ameaças a assaltos de bandidos,
durante um naufrágio que obrigou a passar vinte e quatro
horas no alto-mar, agarrado a destroços de navio.
E mais: fome e sede, frio e nudez. E acima de tudo isso,
onde quer que se detenha, a afluência cotidiana do povo e
as preocupações com todas as suas comunidades. "Quem
fraqueja, sem que eu também me sinta fraco? Quem cai,
em que eu também fique febril? Se é preciso gloriar-se, de
minha fraqueza é que me gloriarei. O Deus e Pai do Senhor
Jesus, que é bendito pelos séculos, sabe que não m into"
(2Cor 11.29-31).
Tudo isso permite que façamos uma ideia do enor­
me trabalho que Paulo devia desenvolver na comunida­
de efesina em expansão, mas também do seu vastíssimo
empenho missionário e pastoral na região vizinha e para
as comunidades mais longínquas. As epístolas escritas em
Efeso mostram como ele intervinha nos seus problemas e
nas suas desordens para fortalecer, encorajar, instruir, mas
também para admoestar e combater.
Além das Epístolas aos Coríntios, é preciso recordar
neste contexto, sobretudo, a Epístola aos Gálatas, cuja
origem e conteúdo já abordamos antes). Nela se discerne
154 Paulo, V ida e O bra

claramente como a doutrina errônea dos "judaizantes", in­


troduzida na Galácia, levou aquela comunidade de origem
pagã à beira da ruína, porque aqueles agitadores não se
serviam somente das genuínas concepções judaicas (como
a circuncisão, a Lei, a tradição, e semelhantes), mas as com­
binavam com certas idéias derivadas do culto dos astros a
propósito de potências celestiais às quais também o cristão
deveria prestar homenagem.
Portanto, eles se interessaram não tanto pela lei moral
judaica e veterotestamentária, quanto, pelo contrário, pe­
las práticas mágico-rituais e pela observância de tempos e
dias sagrados (G1 4.10) que colocam o crente em condição
de participar da "redenção". Por essa razão, a Epístola aos
Gálatas chama energicamente a atenção dos adversários de
Paulo e dos que tão rapidamente os seguiram, imaginando
pertencerem ao povo privilegiado de Deus, dizendo que
aquele se faz circuncidar é obrigado a observar toda a Lei
(G15.3).
Pela mesma razão, Paulo repreendeu aqui os que se
consideram "repletos do Espírito" (G1 6.13s,7), o seu recí­
proco "morder-se" e "devorar-se" que está em contraste
desonroso com o cumprimento da Lei que somente tem
sua plena realização no mandamento do amor (G1 5.13s.).
Sublinha a contraposição entre as "obras da carne" e o "fru ­
to do Espírito" (G15.19s.), exortando para que: "Se vivemos
pelo Espírito, pelo Espírito pautemos também a nossa con­
duta" (G1 5.25). Finalmente, e por este mesmo motivo, per­
gunta insistentemente como foi possível que "Outrora, não
conhecendo a Deus, servistes a deuses, que na realidade
não o são. Mas agora, conhecendo a Deus, ou melhor, sen­
do conhecidos por Deus, como é possível voltardes nova­
mente a estes fracos e miseráveis elementos aos quais vos
quereis escravizar outra vez?" (G1 4,8s. Observe-se a ironia
da expressão!).
V ida e O bra 155

A Epístola aos Gálatas, que anuncia a verdadeira


liberdade em Cristo, em oposição ao legalismo "judaizan-
te", contém, precisamente por esta razão, candentes exorta­
ções, diretrizes, apelos (que ocupam pelo menos um terço
da epístola) à obediência à "lei de Cristo" (G16.2).
A heresia dos Gálatas constituía, segundo Paulo, uma
ameaça mortal para a sua mensagem da justificação recebi­
da não pelas obras da Lei, mas somente pela fé. Justamente
por esta razão, aquela mensagem é apresentada nesta epís­
tola com uma abrangência alcançada somente na Epístola
aos Romanos, e constitui o seu tema central, num tom irado
por causa da apostasia da comunidade: uma ira que per-
vade e domina toda a epístola, mas que procura também
sempre convencer.
Pouco tempo depois, deve ter sido redigida também a
Epístola aos Filipenses. Mais exatamente: tratam-se, como,
aliás, no caso da "Segunda" Epístola aos Coríntios, de uma
coleção de várias correspondências escritas sucessivamente e
em situações diferentes e endereçadas àquela comunidade.
Não sabemos o que levou o apóstolo à prisão. O livro
dos Atos dos Apóstolos não informa absolutamente nada
a respeito. E possível que tenham ocorrido anteriormente
conflitos públicos com a autoridade estatal, a respeito dos
quais o capítulo 19 dos Atos dos Apóstolos teria conservado
uma lembrança, entendida, porém, na cena do Demétrio,
num sentido completamente diferente.
Seja como for, Paulo é mantido prisioneiro da guarda
pretoriana, aquartelada no palácio proconsular (F1 1.13),
para se justificar e esperar a sua sentença. A prisão não é,
evidentemente, muito severa. Não está separado por com­
pleto do mundo externo. Pode entabular por vezes conver­
sação com os soldados que montam guarda, os quais com­
preenderam o caso especial deste homem, prisioneiro pela
causa de Cristo. Recebe constantemente notícias a respeito
156 Paulo, V ida e O bra

do que ocorre na comunidade local. Pode receber visitas e


presentes, confiar tarefas a seus colaboradores e escrever
cartas (F11.12s.; 2.19s.).
Prova disso temos na breve Epístola a Filemon, escrita
justamente durante aquela prisão, a única correspondên­
cia particular de Paulo que possuímos. É endereçada a um
cristão abastado de Colossos, cidade situada no vale su­
perior do Lico, onde o Evangelho penetrou por obra dos
cristãos de Éfeso. O apóstolo conhece pessoalmente o des­
tinatário e a igreja que está na sua casa, formando uma co­
munidade, e o considera um colaborador seu. A epístola foi
escrita porque um escravo de Filemon, de nome Onésimo,
fugiu, refugiando-se junto do apóstolo encarcerado. Aqui,
ele se tornou cristão. Da prisão, Paulo escreve a Filemon,
rogando-o de acolher novamente o fugitivo que, ao que pa­
rece, antes de escapar, roubara o seu patrão, e de tratá-lo
não como a um mandrião "in ú til" (jogo de palavras com o
nome de Onésimo), e sim como um que lhe será "ú til", não
mais somente como escravo, mas como um irmão amado,
como filho e substituto de Paulo.
Esta pequena carta mostra que o apóstolo não discute
a questão social da escravidão, nem de modo programático
e nem em linha de princípio, relativizando-a radicalmenté
para a comunidade que está "em Cristo", diante do qual
as diferenças entre patrão e servo, entre livre e escravo, já
não contam mais (G1 3.28; IC or 7.22s.). Além disso, esta
epístola, na sua simplicidade, é um exemplo singularíssi-
mo do calor afetivo do apóstolo, da sua capacidade de se
empenhar a fundo pelo outro, do seu talento na assistência
religiosa personalizada, também do seu sentido de humor,
que não o abandona nem na prisão.
As amplas possibilidades de contatos em várias dire­
ções, que Paulo continuava gozando, mostram como, na
época da redação daquelas epístolas, a sua situação era
V ida e O bra 157

ainda bastante suportável. Mas não devemos nos ilu d ir a


respeito da duração da sua detenção que, certamente, se
estendeu por semanas e por meses (cf. F1 2.25-30) e nem a
respeito, sobretudo, do perigo real que corria.
Deveras, de acordo com o que ele mesmo escreve (F1
1.20s.), o êxito da prisão e do processo que o espera é ainda
totalmente incerto: absolvição ou pena de morte? Das ob­
servações que ele fez em 2Cor 1.8s, se deduz que o apóstolo
pôde efetivamente ainda uma vez salvar a sua vida e ser
conservado para as suas comunidades, mas a muito custo,
a tal ponto que já não mais acreditava sair vivo. Tanto mais
se sente grato ao Senhor por tê-lo libertado. Parece que,
pouco tempo depois da sua soltura da prisão, ele partiu de
Efeso, porém, de uma maneira bem diferente da que consta
dos Atos dos Apóstolos.
Recolhendo todas as notícias esparsas pelas epístolas
paulinas, é possível reconstruir, não obstante o seu cará­
ter fragmentário, uma imagem muito viva da atividade do
apóstolo em Éfeso. Confirma-se, assim, o fato que a cidade
e a sua comunidade se transformaram no centro da missão
cristã na Ásia Menor e que Paulo, a partir daqui, supervi­
sionava com extremo empenho as outras comunidades que
havia fundado anteriormente.
Todavia, a cidade de Efeso assume, também a partir de
um outro ponto de vista, um papel importante na história
de Paulo. Durante a estadia em Efeso, ou nos meses ime­
diatamente subsequentes, teve lugar a redação de todas
aquelas epístolas às quais se deve reconhecer a qualidade
de documentos fundamentais da sua pregação e da sua
teologia. Tais são, como já afirmamos, sua correspondên­
cia com Corinto, as Epístolas aos Gálatas e aos Filipenses
e, não por último, a Epístola aos Romanos, escrita pouco
tempo depois da partida da comunidade efesina (cf. cap. 10
desta Primeira Parte).
158 Paulo, V ida e O bra

Evidentemente, isto não significa que a teologia pau-


lina tenha sido propriamente concebida somente nestes
anos. Desde o momento da sua conversão e vocação, ele
formulou, de maneira inequívoca, o tema fundamental da
sua pregação, ou seja, a salvação oferecida em Cristo a to­
dos, judeus e pagãos; e não se afastou minimamente desta
linha até o fim. Como consequência deste tema fundamen­
tal, temos o fim da Lei.
Na verdade, as suas grandes epístolas mostram, po­
rém, a sua extraordinária capacidade de reelaborar, dife­
renciar e precisar a temática da sua mensagem. Os seus
conflitos com o judaísmo e, sobretudo, com as heresias e
com os agitadores "cristãos" de Corinto, da Galácia e de
Filipos (F1 3), contribuíram fortemente para esta evolução.
Não se pode subestimar a importância que estas polêmicas
e discussões tiveram para a formulação definitiva dos pen­
samentos centrais da sua teologia, sem se submeter, por
outro lado, à ideia errônea de que aquelas linhas centrais
sejam simplesmente um contraprojeto a esta ou aquela
doutrina errônea. Estaríamos, então, prestando uma honra
exagerada à heresia.
Portanto, seria um imenso equívoco querer descobrir
sempre e em toda parte respostas a posições e palavras dos
adversários, subestimando, destarte, as forças positivas do
Evangelho, bem como as múltiplas experiências e situações
de confirmação da fé, das quais, afinal de contas surgiu a
teologia de Paulo em seu conjunto. Contudo, as lutas e os
sofrimentos que ele teve que suportar e nos quais a sua
teologia se foi consolidando, sob o impulso dos ataques
externos e das próprias exigências internas, constituem um
elemento do qual não se pode dimensionar.
Nesta elaboração, Paulo não estava só. As epístolas
escritas em Éfeso ou que para lá sinalizam mostram-no
ladeado de uma numerosa fileira de colaboradores, alguns
V ida e O bra 159

designados pelo nome e outros desconhecidos, que faziam


suas experiências na comunidade local ou aos quais, em
certos casos, o apóstolo até confiava tarefa e missões difí­
ceis em outras comunidades.
Paulo não se cansa de dar testemunho do zelo mis­
sionário, do espírito de serviço e da capacidade de vários
deles: não somente de Timóteo e de Tito, mas também de
A quila e Priscila, de Apoio, de Epafras, de Epafrodito, e
de muitos outros. Tudo isso seria inimaginável, se Paulo
não tivesse tido, pelo menos com alguns deles, um inten­
so intercâmbio teológico, no qual, certamente, ele não se
lim itava a dar a sua opinião, mas também receber a dos
outros. As fontes não permitem afirmar mais a respeito,
mas a própria realidade dos fatos nos impõe necessaria­
mente esta hipótese. Ela resulta, ademais, extremamente
verossímil pela sua analogia com a atividade didática dos
pregadores itinerantes pagãos da época, mas, indubita­
velmente, também, em decorrência da praxe da sinagoga
helenista.
Possuímos, além disso, alguns escritos da época poste­
rior a Paulo, que documentam a formação de uma espécie
de "escola paulina" e de uma correspondente tradição es­
colar que os seus discípulos mantiveram, mesmo continu­
ando a desenvolvê-la sob diversos aspectos.
Trata-se, em primeiro lugar, das duas epístolas pós-
paulinas aos Colossenses e aos Efésios, que demonstram
uma grande familiaridade com o pensamento do apóstolo,
foram até mesmo compostas sob o seu nome e foram evi­
dentemente escritas em Efeso. Igualmente, as três epísto­
las a Timóteo e a Tito se apresentam como epístolas "de
Paulo". E difícil estabelecer onde foram escritas. De qual­
quer forma, pressupõem que na Ásia Menor não era so­
mente reconhecida a autoridade de Paulo, mas também a
obra e importância dos seus colaboradores.
160 Paulo, V ida e O bra

Não podemos, porém, cair na ilusão e pensar que Paulo


e os seus colaboradores e discípulos dominassem por lon­
go tempo e sem contestação a Ásia Menor e outras regiões.
A heresia que o próprio Paulo havia combatido em muitos
lugares tornou-se rapidamente um perigo ameaçador tam­
bém em Éfeso. Não por acaso, no elenco de saudações de
Rm 16, muito provavelmente endereçadas a Éfeso, como
também em F1 3 e em outras epístolas, encontram-se can-
dentes exortações para se acautelar das artes sedutoras dos
mestres do erro (Rm 16.17-20).
As fontes comprovam, de qualquer modo, <que a in flu ­
ência determinante da mensagem paulina na Ásia Menor
foi de breve duração. O Apocalipse de João, originário de
uma matriz espiritual totalmente diversa e escrito no ú lti­
mo decênio do século I, não dedica a Paulo uma palavra
sequer.

10. A EPÍSTOLA AOS ROMANOS:


O TESTAMENTO DE PAULO

Pode parecer estranho introduzir, nesta altura da his­


tória de Paulo, um capítulo sobre a maior das epístolas
principais, que, pelo seu caráter explicitamente teológico-
doutrinal, parecería mais idônea de ser examinada na se­
gunda parte deste livro, dedicada justamente a expor, de
forma unitária e sistemática, a teologia paulina. Naqueles
capítulos, trataremos, de modo aprofundado, do seu pensa­
mento. Aqui, a Epístola aos Romanos interessa, sobretudo,
como documento histórico-biográfico, o que coloca, aliás,
mais uma vez em evidência a impossibilidade de separar a
história da teologia do apóstolo.
À primeira vista, dir-se-ia que esta epístola seja a mais
estéril de todas, do ponto de vista biográfico. Efetivamente,
V ida e O bra 161

somem, de maneira surpreendente, todas aquelas referên­


cias concretas a uma situação histórica real dos leitores e
do próprio apóstolo, que habitualmente caracterizam a
correspondência de Paulo e conferem às outras epístolas
o fascínio da evidência histórica. Todavia, encontram-se
indicações, lacônicas, mesmo se muito instrutivas, quase
escondidas no final da epístola. No seu conjunto, esta epís­
tola é assaz diferente das demais.
Sua singularidade se explica, como foi muitas vezes
e corretamente observado, não em últim o lugar, porque
a epístola é endereçada a uma comunidade que não foi
fundada por Paulo, e sim, antes dele, por desconhecidos.
Paulo e os fundadores, ao que parece, não se conheciam
reciprocamente.
A Epístola aos Romanos adquire um significado parti­
cular também porque é o mais antigo testemunho da existên­
cia daquela comunidade romana que terá tanta importância
na história posterior da Igreja. O escrito de Paulo, contudo,
não diz praticamente nada que contribua para conhecer me­
lhor a origem e a história inicial da comunidade de Roma.
O único dado seguro que dela se pode deduzir é o fato que,
na época da sua redação, a comunidade era composta pre-
valentemente, mas não exclusivamente, de cristãos oriundos
do paganismo (Rm 1.5,6,13; 11.13; 15.15s.).
É difícil saber quanto ou quão Paulo conhecia da comu­
nidade romana, no momento em que redigiu a epístola.
Alguma coisa, certamente, chegou a conhecer através do
casal Aquila e Priscila, seus amigos, que devem ter feito
parte daquela comunidade, antes da sua emigração de
Roma. Contudo, Paulo parece estar pouco informado da si­
tuação que reina na comunidade de Roma no momento em
que lhe escreve. Contrariamente ao costume de Paulo, falta
na epístola a menção de notícias recebidas e de quem lhas
transmitiu. Faltam, outrossim, referências sobre colabora-
162 Paulo , V ida e O bra

dores seus (a respeito de Rm 16 veja abaixo) ou de adversá­


rios romanos do apóstolo, bem como a respeito de eventos,
problemas ou necessidades da comunidade.
Exceções representam os capítulos 14 e 15, nos quais
o apóstolo envia esforços para d irim ir o conflito entre os
membros "fracos" da comunidade, que observavam ainda
determinadas prescrições alimentares de caráter ritual, e os
"fortes" que, justamente por aquele motivo, desprezavam
os outros, sendo, por sua vez, condenados também por es­
tes. De resto, porém, a epístola contém amplas exposições
doutrinárias sobre temas centrais da pregação paulina,
sem nenhuma referência particular à atualidade concreta
dos romanos. Por esta razão, ela foi considerada por longo
tempo uma espécie de summa da teologia paulina.
Observando, com justeza, que nenhuma das epísto­
las de Paulo é um tratado teológico, menos ainda uma es­
pécie de "dogmática", os exegetas mais recentes fizeram
todo esforço possível para atribuir também à Epístola aos
Romanos uma certa inserção na atualidade do seu tempo.
O caráter didático da epístola, afirmam estes estudiosos,
depende da intenção do apóstolo de se apresentar a si mes­
mo e sua mensagem à comunidade que lhe era desconhe­
cida, para envolvê-la nos seus projetos missionários poste­
riores no Ocidente.
Não é necessário refutar por inteiro a existência desta
intenção, mesmo se ela nunca é mencionada expressis verbis.
Todavia, ela não explica suficientemente a ocasião, o cará­
ter e o escopo da epístola. Além disso, houve a tentativa
de fazer crer que a epístola deixa transparecer um conheci­
mento bastante exato da situação existente na comunidade
romana. Também ela estava ameaçada, como tantas outras,
por parte de heréticos judaizantes e "entusiastas" e por este
motivo a epístola teria exposto tão amplamente a doutrina
paulina da justificação, para combater os primeiros, ao passo
V ida e O bra 163

que a insistência nas exortações morais estaria voltada, so­


bretudo, aos "entusiastas" de tendência libertina.
Além do mais, a situação de Roma estaria marcada pela
convivência e rivalidade de fiéis de origem judaica e pagã
no âmbito da comunidade, o que estaria comprovado pe­
los capítulos 14 e 15. Para dar valor a esta interpretação da
epístola a partir de uma situação concreta, busca-se apoio,
acima de tudo, nas numerosas passagens de conteúdo dia-
lógico e polêmico que a epístola contém.
Contudo, não podemos extrair da Epístola aos Roma­
nos conclusões precipitadas. Esta epístola apresenta, na
verdade, vários exemplos do vivaz estilo didático da "dia­
tribe", bem conhecido no judaísmo helenístico e utilizado
também por Paulo: em vez de proceder mediante um de­
senvolvimento lógico do pensamento, o autor formula per­
guntas e respostas em forma de perguntas, objeções críticas
e até indignadas refutações apresentadas do ponto de vista
dos destinatários, para, em seguida, fazer apelos à sua in­
teligência com oportunas respostas em forma de discurso
direto, com novas perguntas e argutas declarações.
Assim, uma certa maneira capciosa de argumentar,
e pouco escrupulosa, emerge reiteradamente, não para se
declarar convencido pelas argumentações precedentes do
apóstolo, mas para procurar regirá-las em proveito próprio:
por exemplo, o judeu que, com discursos meticulosamente
consequênciais, quer deduzir ad absurdum a doutrina pauli-
na sobre a Lei e o Evangelho para declará-la blasfema (p.ex.,
em Rm 3.1-9) ou que procura deduzir de uma concepção
erroneamente determinista da predestinação a própria ino­
cência diante de Deus (p.ex., Rm 9.19s.).
Paulo procede de modo análogo também em relação
aos cristãos provenientes do paganismo que olham com
desprezo superior o incrédulo e rejeitado povo judaico
(Rm ll,19s.). Em todos estes casos, porém, aquelas objeções
164 Paulo, V ida e O bra

nascem do próprio argumento que está em discussão, ou


até mesmo do argumento mal compreendido, e não neces­
sariamente de uma situação real.
A trib u i trechos deste tipo a determinados grupos ou
pessoas da comunidade de Roma seria um procedimento
equivocado. Ao contrário de outras epístolas, a Epístola
aos Romanos não fala nunca de judaizantes ou de re­
presentantes de concepções "espiritualistas" e de entu­
siastas, portanto, de propagadores de doutrinas cristãs
errôneas.
De Rm 15.14-33 podemos, ao invés deduzir com certeza
que Paulo escreve esta epístola a Roma para anunciar a sua
vinda, há muito tempo projetada, mas nunca realizada, e para
preparar a sua atividade sucessiva no Ocidente. Ao redigir
a epístola, ele já havia deixado Efeso, considerando concluí­
da a própria obra missionária na metade oriental do Império
(Rm 15.19). Ele gostaria de iniciar imediatamente a viagem
para Roma e sucessivamente para a Espanha (Rm 15.24.28),
mas precisava primeiramente levar a Jerusalém a coleta jun­
tada nas suas comunidades da Ásia Menor, da Macedônia e
da Grécia. Somente após ter levado a bom termo esta tarefa,
estará livre para ulteriores atividades (Rm 15.25s.).
Em cima destes elementos, estamos em condições dè
datar exatamente a redação da Epístola aos Romanos, co­
locando-a naqueles últimos três meses passados por Paulo
na Grécia, e provavelmente em Corinto, dos quais se fala
em A t 20.2s (inverno do ano 55/56?; cf. Tábua cronológica
veja acima pp. 17-18).
A parte conclusiva das comunicações constantes no ca­
pítulo 15 da Epístola aos Romanos nos informa que Paulo
aguarda com ansiedade a sua próxima viagem a Jerusalém.
Teme ser perseguido da parte dos judeus e, sobretudo, se
pergunta com preocupação se a Igreja-mãe está disposta a
recebê-lo e aceitar a coleta das suas comunidades. Solicita,
V ida e O bra 165

por isso, aos cristãos de Roma que lutem com ele nas ora­
ções que fazem a Deus para que possa escapar dos perigos
que o ameaçam e para que não seja rejeitado pelos "santos"
em Jerusalém (Rm 15.30-32).
Não é difícil perceber em que se fundamentava o seu
temor dos judeus. Há muito tempo já não era mais um
desconhecido para eles. Era conhecido o seu passado de
fariseu e de perseguidor fanático da comunidade cristã.
E agora, era conhecida também bastante a sua pregação,
dirigida aos pagãos, de um Cristo que salva sem as obras
da Lei. Não somente os judeus verdadeiros, mas também
os judeu-cristãos mais rigorosos o consideravam agora um
apóstata, destruidor da Lei e inimigo de Deus.
Os perigos que o ameaçavam se evidenciaram logo
na sua saída de Corinto, conforme nos informa o livro dos
Atos dos Apóstolos (At 20.3). Certos judeus que certamen­
te se dirigiam em peregrinação a Jerusalém para a Páscoa
e pretendiam embarcar no mesmo navio organizam um
complô contra Paulo, o qual, então, decide viajar, não mais
por via marítima, e sim por terra, através da Macedônia, na
companhia de alguns seguidores. Após ter feito paradas
breves em Filipos e em Trôade, embarca finalmente num
navio na Ásia Menor (At 20.14).
Estas notícias levantam a questão por que Paulo se em­
penhou nesta viagem da coleta, que o afastava mais uma
vez da ocasião tão ardentemente esperada de se d irig ir a
Roma e ao Ocidente. Não se trata efetivamente de uma de­
cisão óbvia. Na Primeira Epístola aos Coríntios, ele ainda
havia previsto que os delegados das comunidades iriam
sozinhos, e havia pensado guiar a delegação somente em
caso de emergência (ICor 16.3s.).
Por que resolve agora empreender a viagem que, jus­
tamente por causa da sua participação, se torna perigosa
para todos e para a própria coleta? Pode-se sem dificuldade
166 Paulo , V ida e O bra

imaginar que os delegados das comunidades eram todos


pessoas de confiança (os Atos dos Apóstolos fornecem até
mesmo os seus nomes, - A t 20.4 - mesmo sem mencionar
a coleta) e enquanto fiéis de origem pagã eram desconhe­
cidos dos judeus e não corriam o risco de suscitar a mesma
hostilidade do que em relação a Paulo.
Mas o problema da participação de Paulo na viagem
não se coloca com menor força a partir da situação de
Jerusalém. Que motivo de atrito podia, na verdade, existir
entre ele e os apóstolos de Jerusalém a propósito de uma
coleta que fora decidida pela Convenção dos apóstolos (G1
2.10) e que ele havia reunido antes do início da viagem com
empenho extraordinário (cf., especialmente, 2Cor 8 e 9) e
com uma publicidade e um sucesso cuja prova estava no
próprio tamanho da delegação?
A única resposta possível é a seguinte: conforme
vimos a propósito da Convenção dos apóstolos, Paulo e
as suas comunidades não entendiam, na verdade, a coleta
como um mero auxílio para prover às necessidades econô­
micas dos pobres, e nem pretendiam documentar com este
gesto a submissão dos cristãos de origem pagã ao "gover­
no eclesiástico" reivindicado pela Igreja-mãe de Jerusalém.
Pelo contrário, pretendiam demonstrar a unidade da Igreja
formada de judeus e de pagãos.
Mas a comunidade de Jerusalém, dirigida por Tiago,
o irmão do Senhor um rígido judeu-cristão, estava ela dis­
posta a aceitar semelhante demonstração e compartilhar o
seu significado? A questão é extremamente duvidosa.
Os motivos pelos quais o apóstolo quer participar da
viagem precisam ser buscados neste contexto. O sentido e
a sorte da coleta estavam intimamente relacionados à ques­
tão, já discutida na Convenção de Jerusalém, da verdade
daquele Evangelho, livre da Lei, que Paulo anunciava aos
pagãos. Ou seja, estavam relacionados com o problema de
V ida e O bra 167

se saber se os pagãos podiam ser plena e incondicional­


mente membros do corpo de Cristo.
Por causa deste problema, Paulo se sentiu obrigado,
mais uma vez, a se apresentar diante dos apóstolos de
Jerusalém numa situação extremamente tensa. A sua de­
cisão mostra como a unidade da Igreja, que ele fizera pe-
riclitar mais que qualquer outro na sua época, continuava
sendo a meta constante dos seus esforços, não somente en­
quanto teorema e postulado teológico, mas como realidade
e empenho concretamente histórico. Pela unidade da Igreja
estava disposto a tudo, menos a sacrificar o Evangelho.
Ele buscava, evidentemente, um encontro com os
apóstolos de Jerusalém e envolvia nesta luta também os
romanos, pessoalmente seus desconhecidos, para poder
começar a nova etapa da sua atividade missionária no
Ocidente não como um franco atirador, mas em consonân­
cia com a comunidade prim itiva. A verdade e a liberdade
do Evangelho e a unidade da Igreja são os motivos pelos
quais Paulo fora, no passado, à Convenção dos apóstolos, e
pelos quais agora volta pela última vez a Jerusalém.
Somente a partir deste ponto de vista é possível com­
preender a temática e a peculiaridade da Epístola aos
Romanos. Seu conteúdo circunscreve exatamente os pro­
blemas e os propósitos daquela teologia do apóstolo que
ele, em breve, terá que defender em Jerusalém e por ela se
responsabilizar. Ao mesmo tempo, esta teologia deve ser
e permanecer o fundamento da sua futura missão entre os
pagãos: a justificação, válida para todos, somente através
da fé (cap. 1-4); a libertação das potências obstruídas do pe­
cado, da morte e da Lei por obra de Cristo e do seu Espírito
(cap. 5-8); o destino do povo eleito de Deus, Israel, o seu en­
durecimento e sua salvação final (cap. 9-11); enfim, a mis­
são ulterior do apóstolo até as extremidades da terra, e o
louvor a Deus que sai da boca de todos os povos (cap. 15).
168 Paulo, V ida e O bra

Como vimos, buscar uma relação entre a Epístola aos


Romanos e a situação da comunidade romana não contri­
bui, na verdade, para compreender melhor a temática da
própria epístola nem a maneira como Paulo a aborda. Uma
outra observação é, porém, muito mais proveitosa.
Um número singularmente elevado destes temas
aparece já nos últimos três ou quatro anos que precedem
a redação desta epístola, precisamente nas Epístolas aos
Gálatas, aos Filipenses e aos Coríntios. Muitas idéias e te­
mas que se encontram já naqueles escritos são retomados,
muitas vezes até com expressões especiais, na Epístola aos
Romanos. Indicamos aqui alguns exemplos mais evidentes
que poderíam ser facilmente multiplicados:

• a justificação não pelas obras da Lei, mas somente


mediante a fé (G13-4; F1 3; cf., especialmente, Rm 1­
4; 9.30-10.4).
• Abraão justificado pela sua fé e pai de muitos povos
(G1 3; Rm 4).
• Adão chefe e síntese da humanidade perdida e
Cristo chefe da humanidade nova (ICor 15.22s.,45s;
Rm 5.12s.).
• a miséria do ser humano carnal debaixo da Lei, o
pecado e a morte (Rm 7.7-25; formulado em forma
de sentenças já em ICor 15.56s.).
• o envio do Filho de Deus em carne humana para a
nossa redenção e o testemunho do Espírito no cora­
ção dos fiéis pela sua adoção (G14.4s.; Rm 8).
• a Igreja como corpo único de Cristo na m u ltiplici­
dade dos seus membros (carismas; cf. ICor 12; Rm
12.4s.).
• também o conflito que divide a comunidade roma­
na, do qual se fala em Rm 14 e 15, é tratado, evi­
dentemente, segundo os mesmos critérios adotados
V ida e O bra 169

em IC or 8-10 (na questão da carne sacrificada aos


ídolos), ou seja, não no sentido de tomar posição a
favor de uma ou outra parte, mas em atribuir um
valor decisivo aos cuidados devidos à consciência e
à fé do próximo e à responsabilidade para com ele.

Semelhante retomada de idéias precedentes não tem


paralelo no conjunto do corpus paulino. Não se trata efeti­
vamente de simples repetições e, muito menos, de autocita-
ções. O tratamento dos diversos temas apresenta diferenças
características, na medida em que, nas epístolas preceden­
tes, ocorrem quase sempre em relação com a discussão de
posições ou tendências dos adversários, perigosas para a
comunidade e de caráter quase sempre judaizante ou gnós-
tico "entusiasta".
Na Epístola aos Romanos, ao contrário, já não são mais
encontradiças aquelas antigas contraposições polêmicas.
Já não existem mais apelos à situação concreta atual. Até
mesmo os capítulos 14 e 15 desta epístola se apresentam
muito mais pobres de dados concretos do que IC or 8-10.
Não existe, por exemplo, nenhuma palavra, ao contrário
da Primeira Epístola aos Coríntios, que recorde as conse­
quências do sectarismo dos fiéis de Roma, o qual devia es­
tar presente nas refeições comunitárias e colocar em perigo
a comunhão de mesa na ceia do Senhor.
A Epístola aos Romanos pressupõe, igualmente, uma
discussão, mas não com este ou aquele grupo ou com os
adversários de uma determinada comunidade. Paulo de­
senvolve ali muito mais a própria concepção da salvação
e ilustra os fundamentos da sua pregação aos pagãos, em
contraposição à concepção judaica e às pretensões dos ju­
deus de possuir a salvação.
Aqui, na Epístola aos Romanos, as idéias e os temas
acima elencados não aparecem mais somente em forma
170 Paulo, V ida e O bra

fragmentária e em relação com a atualidade, mas foram re­


pensados, aprofundados, fundamentados sobre argumen­
tações melhor articuladas, e ampliados numa perspectiva
universal. Não por acaso, termos como "todos", "cada um "
e, negativamente, "nenhum" aparecem nesta epístola com
uma frequência excepcionalmente elevada. Os conceitos
expressos pelo apóstolo precedentemente são não somente
reordenados mas também orientados para o amplo hori­
zonte da pregação e da missão paulina, e amadurecidos até
atingir, nesta epístola, pela primeira vez, uma forma plena­
mente válida.
Enumerando as passagens que possuem paralelos
nas epístolas precedentes, om itim os até agora a ampla
seção que contém a problemática profunda de Israel, a
sua eleição, endurecimento e redenção (Rm 9-11). Este
trecho não possui, efetivamente, nenhum paralelo nos
escritos paulinos e, do ponto de vista temático, constitui
um proprium da Epístola aos Romanos. Mas, em consi­
deração das iminentes discussões com os apóstolos de
Jerusalém, também estes desenvolvimentos ficam com­
preensíveis.
E muito ilustrativo o modo como Paulo enfrenta aque­
la questão abissal, isto é, aplicando à história a doutrina
da justificação que havia desenvolvido nos capítulos 1 a
8, e procurando, ao mesmo tempo, explicar o caminho
paradoxal do Evangelho que ele anuncia primeiramente
aos pagãos e depois, novamente, ao povo eleito prim itivo.
Portanto, também estes capítulos se referem às questões
fundamentais a serem tratadas em Jerusalém.
A partir destas considerações, observa-se como, a seu
modo, também a Epístola aos Romanos é um escrito polê­
mico. O adversário não é mais este ou aquele grupo de uma
comunidade qualquer, mas o judaísmo e a sua concepção
da salvação, que exercia ainda uma influência fortíssima
V ida e O bra 171

sobre a igreja judeu-cristã prim itiva e em particular sobre


Jerusalém.
Por conseguinte, nesta epístola, Paulo não polemiza à
toa. O judeu figura aqui, em certo sentido, o ser humano
no ápice das suas possibilidades, representa o "ser huma­
no religioso" que conhece as exigências de Deus expres­
sas na sua Lei, se refere à posição particular que lhe foi
feita na história da salvação e não quer adm itir ter faltado
às expectativas de Deus e se ter perdido no pecado e na
morte.
Em antítese a este ser humano que se vangloria diante
de Deus da própria religiosidade, Paulo desenvolve a sua
pregação universal da Lei e da graça oferecida em Cristo
a todos os que crêem. Este ser humano, porém, não está
nalgum lugar longínquo, entre os infiéis. Ele se esconde,
outrossim, no judeu-cristianismo, de observância hieroso-
limitana ou outra. Mas, como explica Rm 11, este ser huma­
no não se esconde menos no cristianismo de origem pagã,
que se vangloria, contra os judeus, da própria indiscutível
posição de salvo. O apóstolo não pode, portanto, anunciar
jamais a mensagem da salvação sem se referir ao mesmo
tempo àquele ser humano perdido, mas libertado por
Cristo para uma vida nova.
Do que foi exposto, constata-se que a Epístola aos
Romanos não é um tratado teológico atemporal. Também
ela, assim como as demais, se vincula estreitamente a uma
história bem determinada, mas não tira a sua linha e as
suas peculiaridades da situação particular da comunidade
de Roma que Paulo tinha diante de si, e a quem se dirigia, e
sim da história que Paulo e suas comunidades, entremen-
tes, têm atrás de si - ainda que na perspectiva do próximo e
importantíssimo encontro do apóstolo com a comunidade
prim itiva de Jerusalém e tendo em vista o cumprimento da
sua missão apostólica.
172 Paulo , V ida e O bra

Portanto, a história pessoal de Paulo desde o momen­


to da sua conversão e vocação, a história da sua vida, da
sua atividade, da sua pregação e das suas lutas repercutiu
de modo singularíssimo nesta que é a sua mais importante
epístola. Não somente a sua história externa, mas também
a interior e particularmente a do seu pensamento teológico.
Por mais que a epístola trate das questões e das certezas in i­
ciais que fizeram de Paulo um cristão, um servo de Cristo
e o apóstolo das gentes, ela mostra o quanto ele continuou
a reelaborar aqueles pensamentos e o quanto estes, por sua
vez, influíram sobre ele.
Do ponto de vista histórico, podemos considerar a
Epístola aos Romanos o seu testamento. Isto não significa
que ele mesmo a tenha redigido conscientemente como
últim a manifestação da própria vontade antes de morrer.
Na realidade, ele espera poder começar a sua grande obra
missionária no Ocidente, mesmo não escondendo as pre­
ocupações que os previsíveis conflitos de Jerusalém po­
deríam retardar o seu projeto. De fato, porém, a epístola,
mesmo se não em sentido literal, se transformou em seu
testamento. As preocupações de Paulo eram por demais
justificadas.

11. ÚLTIM A VIAGEM A JERUSALÉM.


PRISÃO E MORTE

A viagem de Paulo a Jerusalém começava sob os pres­


ságios de tempestade, a partir do que nos informa a Epístola
aos Romanos. Dela haveria de decorrer, realmente, o fim
da existência do apóstolo. A partir de agora, nossa fonte
informativa são os Atos dos Apóstolos. Mas as afirmações
das epístolas paulinas nos ajudam, também neste caso, a ler
criticamente e a completar a narração lucana.
V ida e O bra 173

O autor dos Atos dos Apóstolos teve, sem dúvida, à


sua disposição notícias fidedignas no que diz respeito à
viagem a Jerusalém, fornecidas por um conciso registro ro-
teirístico. Contudo, como ocorre muitas vezes nos Atos dos
Apóstolos, destas notícias se diferenciam alguns outros tre­
chos, contendo cenas e discursos evidentemente elabora­
dos por Lucas segundo a imagem que ele se fazia de Paulo
e inseridos na sucessão das diferentes etapas da viagem.
Entre as notícias mais insuspeitas, é preciso incluir
aquelas já recordadas, relativas às circunstâncias ameaça­
doras que acompanharam o início da viagem e que levaram
Paulo e alguns companheiros a preferir o caminho por ter­
ra firme que conduzia à Ásia Menor através da Macedônia.
Igualmente digna de crédito é a lista nominativa dos com­
panheiros de viagem, com a indicação das comunidades de
proveniência (At 20.3s.).
Causa, pelo contrário, estranheza ao se constatar que
Lucas não menciona deveras a finalidade da viagem, que
nós conhecemos a partir das epístolas do apóstolo, isto é, a
entrega da coleta, e não refere sequer que os acompanhan­
tes de Paulo foram propositadamente escolhidos para esta
finalidade pelas comunidades das regiões de missão pauli-
na na metade oriental do Império: Ásia Menor, Macedônia e
Grécia. Este silêncio surpreendente dos Atos dos Apóstolos
é preciso tê-lo presente também no que diz respeito ao res­
tante da viagem. Trata-se, aliás, de uma lacuna que pode­
mos preencher com facilidade, tendo por base as epístolas.
Certas cenas amplamente descritas se diferenciam n i­
tidamente pelo seu estilo narrativo do contexto mais árido
e aparecem como trechos de redação tipicamente lucana,
acrescidos ao itinerário da viagem, o qual se lim ita a as­
sinalar o caminho percorrido, as ilhas ao largo da costa e
os lugares de arribação. Entre tais acréscimos, pertence,
evidentemente, a lenda paulina que recorda as histórias
174 Paulo, V ida e O bra

veterotestamentárias de Elias e Eliseu (lRs 17; 2Rs 4) e que


narra a ressurreição de um adolescente que morreu ao cair
de uma janela por ter adormecido durante uma pregação
de Paulo (At 20.7-12).
Mas o autor se serve, sobretudo, da parada em Mileto
para elaborar uma cena importante e significativa. A locali­
dade se situa a cerca de 50 km ao sul de Efeso, que o após­
tolo devia necessariamente evitar por causa dos perigos
que o ameaçavam naquela cidade (cf. 2Cor 1.8s.). Por isso,
Paulo convoca a Mileto os "anciãos" de Éfeso e, prevendo
profeticamente o próprio iminente martírio, se despede de­
les com um importante discurso (At 20.17-38).
Em seu gênero é, na verdade, uma obra-prima, mas
este discurso não pode ser usado diretamente para comple­
tar a história de Paulo. Do ponto de vista histórico, é obvia­
mente contestável o pressuposto de que as comunidades
tivessem uma constituição presbiterial, da qual as epístolas
não fornecem nenhuma indicação. Mas, sobretudo, o estilo
e o conteúdo do discurso de despedida são típicos de uma
época mais recente: a obra de Paulo é vista em seu conjunto
com um olhar retrospectivo, enquanto, diante da previsão
da sua morte, é anunciado o aparecimento de mestres do
erro, os quais, como lobos vorazes, após a morte do apósto­
lo, devastarão a comunidade.
Para protegê-la Paulo entrega aos anciãos a herança
da sua doutrina autêntica e os estabelece como ministros,
constituídos pelo Espírito Santo para serem "guardiões"
(epískopoi) do rebanho de Cristo. Ainda não se fala de su­
cessão no significado católico posterior. Contudo, aqui se
encontra a ideia de uma tradição autorizada que está em
relação com o ministério eclesiástico, cujos detentores, en­
quanto tais, são também portadores do Espírito. Tal ideia
espelha as concepções desenvolvidas mais tarde pela Igreja,
especialmente no decorrer da sua luta contra a heresia e se
V ida e O bra 175

encontram quase idênticas nas epístolas deuteropaulinas,


sob o aspecto de um modelo ideal de ancião e bispo.
Na sequência da narração, encontramos de novo os si­
nais de um itinerário reelaborado. A viagem prossegue, u l­
trapassando Cós e Rodes, ao longo da costa da Ásia Menor,
na direção Sul, até Pátara. A li, os viajantes trocam de na­
vio e, adentrando mar aberto, passam ao largo de Chipre
até atingir a Síria, onde permanecem durante uma semana
com os cristãos de Tiro, enquanto o navio descarregava.
A seguir, a viagem continua até Ptolemaida (a moder­
na Haifa) e Cesaréia. Nesta última cidade são hóspedes
do missionário Filipe, já conhecido a partir de Atos 6 e 8.
Daqui, via terrestre, sobem a Jerusalém.
Estas notícias são interessantes porque nos informam a
respeito da existência, até então desconhecida, de antigas co­
munidades cristãs na costa palestina do mar Mediterrâneo.
Trata-se de notícias com certeza bem fundadas sobre uma
boa tradição, mesmo se Lucas as utilizou, não sem muita
habilidade, para o seu escopo, ou seja, de colocar sempre
mais em evidência o iminente fim de Paulo e de apresentá-
lo como o homem de Deus que, apesar dos insistentes avi­
sos, permanece pronto para sofrer e morrer. A esta altura,
já não se espera mais que em Jerusalém o destino de Paulo
ainda possa apresentar uma mudança favorável, como ele
mesmo havia esperado (Rm 15.30s.).
Também o relato dos fatos subsequentes, ocorridos
em Jerusalém até a prisão, revela a existência de uma tra­
dição antiga e digna de crédito. Na verdade, compreende-
se verdadeiramente a dimensão e significado destes fatos
somente se forem colocados em conexão com a finalida­
de da viagem a Jerusalém, que nós conhecemos das epís­
tolas, mas que é completamente silenciada pelo livro dos
Atos dos Apóstolos: a entrega da coleta. Lucas a menciona
somente uma vez, de passagem, num discurso proferido
176 Paulo, V ida e O bra

por Paulo, já prisioneiro, diante do governador Félix (At


24.17), mas a interpreta como uma esmola destinada a de­
monstrar a lealdade do apóstolo para com o povo judeu.
Ou seja, ignora o seu verdadeiro significado.
Segundo a narração totalmente digna de crédito dos
Atos dos Apóstolos, Tiago teria, de imediato, aconselhado
Paulo a rebater a desconfiança da comunidade judeu-cris-
tã, que o considerava destruidor da Lei, cumprindo algum
ato ritual no Templo. Ou seja, ele deveria participar de ce­
rimônia conclusiva do voto de quatro "nazireus" pobres,
assumindo as despesas do respectivo sacrifício.
Tratava-se de um antigo costume judaico, derivado
do Antigo Testamento, segundo o qual uma pessoa piedo­
sa se consagrava, originalmente por toda vida, mais tarde
também por um período limitado, ao serviço de Javé, re­
nunciando rigorosamente ao vinho, ao corte dos cabelos e
evitando certas impurezas rituais (p.ex., através do contato
com cadáveres). Ao final do período fixado, era oferecido
um sacrifício no Templo na presença do sacerdote. Assumir
as despesas desta cerimônia através de um outro era con­
siderado no judaísmo posterior uma obra particularmente
piedosa.
O motivo da proposta de Tiago a Paulo deve ser bus­
cado, como já foi corretamente presumido, na dificuldade
que a comunidade de Jerusalém tinha de aceitar a coleta.
Desta maneira, a sua desconfiança em relação a Paulo se
teria enfraquecido, enquanto, ao mesmo tempo, os judeus
não cristãos teriam tido a comprovação de que a comu­
nidade prim itiva não estava disposta a receber de braços
abertos um inimigo da Lei de Deus, só por causa do v il
dinheiro.
Podemos explicar desta maneira os motivos da in i­
ciativa de Tiago, mas podemos também compreender por
que Paulo aceitou aquele compromisso. Participando a
V ida e O bra 177

título pessoal de uma cerimônia privada, não renunciava a


nada, nem colocava com isso minimamente em questão a
sua doutrina, segundo a qual a Lei não é mais um caminho
da salvação. Se ele não sentia mais a exigência do víncu­
lo obrigatório da Lei ritual judaica, isto não significava, na
verdade, que ele proibisse aos judeus qualquer tipo de ob­
servância da Lei.
Ao aceitar o compromisso, na realidade, não fazia ou­
tra coisa do que colocar em prática aquela liberdade que,
de acordo com as suas próprias palavras, caracterizava, em
qualquer circunstância, a sua atividade missionária: "Para
os judeus, fiz-me como judeu, a fim de ganhar os judeus.
Para os que estão sujeitos à Lei, fiz como se estivesse sujei­
to à Lei - se bem que não esteja sujeito à Lei - para ganhar
aqueles que estão sujeitos à Lei. Para os fracos, fiz-me fraco,
a fim de ganhar os fracos. Tornei-me tudo para todos, a fim
de salvar alguns a todo custo" (ICor 9.20-22). Não existe,
portanto, motivo para colocar em dúvida o comportamen­
to de Paulo, conforme narram os Atos dos Apóstolos, atri­
buindo-o à tendência lucana de pintar o apóstolo como um
hebreu modelar.
Na realidade, a demonstração da unidade da Igreja,
composta de judeus e pagãos, que Paulo, assim agindo,
queria evidentemente tornar possível, no ato da entrega da
coleta à comunidade, não se verificou mais. O que acon­
teceu com o dinheiro recolhido com tanta energia organi-
zativa e teológica entre as comunidades de origem pagã
a favor da Igreja-mãe, não sabemos. Lucas mesmo, como
vimos, silencia a respeito.
Em vez disso, porém, ele narra, de modo plenamen­
te verossímil, como a participação de Paulo na cerimônia
cultuai - que, na qualidade de oriundo de um país pagão,
o obrigava a mais de uma semana de ritos de purificação,
a serem executados no Templo - se tornou fatal para ele.
178 Paulo, V ida e O bra

Certos judeus da Diáspora que o conheciam encontraram-


no no Templo e o acusaram falsamente de ter introduzido
ali um seu companheiro não judeu, Trófimo, de Éfeso. Em
seguida, por causa deste pretenso sacrilégio, reconhecido
até pelos romanos e normalmente punido com a pena de
morte, causaram um tal tum ulto a ponto de provocar a in­
tervenção da guarda romana. Esta prendeu Paulo para evi­
tar que fosse linchado pela população judaica (At 21.27-36).
A partir de então, Paulo permaneceu prisioneiro dos roma­
nos. De protetora, sua prisão se transformou rapidamente
em prisão preventiva.
Até a prisão de Paulo é possível reconstruir o curso
dos acontecimentos com uma certa credibilidade histórica,
especialmente quando se tomam em consideração as razões
ocultas que se deduzem das epístolas do apóstolo. Sobre
todo o restante, ou seja, sobre sua detenção em Jerusalém
e Cesaréia, sobre sua transferência para Roma e sobre o
seu fim, somente é possível deduzir dados fragmentários e
incertos.
Nem nos devemos deixar enganar pelo fato que, tam­
bém para este últim o período de tempo, o livro dos Atos
dos Apóstolos contenha uma longa série de amplas e dra­
máticas narrações, apresentadas na forma de cenas singu­
lares, e especialmente de numerosos e longos discursos.
Tudo isso faz parte do trabalho literário do narrador. Lucas
certamente não dispunha das atas processuais oficiais ou
de outras tradições dignas de crédito.
Com maior razão, porém, Lucas descreve, com ima­
gens impressionantes, o comportamento deste ilustre p ri­
sioneiro, para demonstrar desta maneira aos leitores do seu
tempo a relação existente entre cristianismo e judaísmo e
defender, assim, o cristianismo, diante das instâncias ofi­
ciais do paganismo romano, da acusação de constituir um
perigo para o Estado. Para esta tarefa, possui o autor um
V ida e O bra 179

bom conhecimento histórico daquele período, no que diz


respeito ao judaísmo, as desordens que convulsionavam o
país, as forças romanas de ocupação e os procuradores em
exercício.
Tudo isso, porém, ainda não comprova a historici-
dade dos acontecimentos narrados em seus pormeno­
res. Contudo, assim fazendo, o autor quer preencher
o vazio que assinala o período durante o qual Paulo
esteve na expectativa do seu julgamento, e o faz do me­
lhor modo possível, isto é, traçando com incisividade e
im p rim in d o na mente do leitor a figura dos atores e dos
grupos que participam dos acontecimentos. Na m edi­
da em que se admitem estas razões condutoras da sua
exposição, evita-se o esforço de analisar os relatos em
seus pormenores para neles caracterizar os elementos
possíveis e imagináveis, distinguindo-os dos inverossí­
meis e impossíveis.
A primeira das cenas assim elaboradas por Lucas é
aquela na qual Paulo, apenas arrancado das mãos da m ul­
tidão tumultuada, lhe dirige, com a autorização do oficial
romano, um discurso do alto da escadaria do Templo.
Temos aqui (At 22.1-21) uma segunda, grandiosa apresen­
tação da sua conversão no caminho de Damasco, que será
repetida uma terceira vez na presença do rei Agripa (At
26.1-32), e, ao mesmo tempo, uma apologia da missão entre
os pagãos, desejada por Deus.
Também a audiência diante do Sinédrio (At 22.30­
23.11), que mostra o apóstolo na presença do mesmo trib u­
nal que havia condenado o seu Senhor, Jesus Cristo, tem
o único escopo de apresentar o prisioneiro Paulo como
um fiel fariseu, ao qual até os judeus ortodoxos devem
dar testemunho da sua inocência, defendendo-o contra os
saduceus que não querem ouvir falar da ressurreição dos
mortos. Os judeus, inimigos mortais do apóstolo, assu-
180 Paulo, V ida e O bra

mem nas diferentes cenas traços cada vez mais maldosos


e furibundos.
Os representantes da autoridade romana, pelo contrá­
rio, aparecem como os protetores do prisioneiro: assim o
oficial da guarnição de Jerusalém que, para subtrair Paulo
dos judeus, o faz transferir para Cesaréia, sede do procura­
dor, sob a proteção de uma poderosa escolta de soldados
da cavalaria e da infantaria; assim também, finalmente, o
próprio procurador Félix e o seu sucessor Pórcio Festo.
Estes dois procuradores não são somente colocados
em contraposição aos judeus. Pelo contrário, o prim eiro de­
monstra interesse pela mensagem cristã de Paulo, mesmo
se posteriormente é assaltado pelo temor, quando se sente
acossado pelas palavras do prisioneiro a respeito da justiça,
da temperança e do juízo final, e o despede até uma outra
ocasião, na esperança, além disso, que Paulo lhe desse di­
nheiro (A t 24.24s.). O segundo, Festo, deve proclamar dian­
te do rei Agripa a inocência de Paulo (At 25.25s.), mas, no
momento decisivo, liquida as palavras do apóstolo como
loucuras (A t 26.24s.) e não ousa tomar nenhuma decisão
para não se desgastar com os judeus.
Também o rei Agripa reconhece que a narração da con­
versão de Paulo o faz pensar na ideia de se fazer cristão (At
26.28). Entretanto, neste comenos, o próprio Paulo obstruiu
o caminho da sua absolvição e libertação porque, no instan­
te em que Festo propôs que fosse julgado em Jerusalém, ele
apelou ao tribunal de César em Roma (At 25.9-11).
Se bem que estas narrações, no seu conjunto e em m ui­
tos pormenores, não resistam à crítica histórica, não há dú­
vida que temos um fundamento de fatos históricos signifi­
cativos. Entre estes, contam-se seguramente a transferência
de Paulo para Cesaréia depois da sua prisão por parte dos
romanos, a protelação do processo por dois anos (At 24.27;
um dado cronológico certamente não inventado), do pro-
V ida e O bra 181

consulado de Félix ao do seu sucessor Festo e, finalmente


(ainda que a carência de fontes suficientes não permita mais
esclarecer a exata situação jurídica), o apelo do prisioneiro
ao tribunal de César em Roma.
Em decorrência deste apelo, o apóstolo não foi julgado
na jurisdição palestinense do procurador romano, mas foi
transferido para a capital do Império com um comboio de
prisioneiros, na qualidade, aliás, de uma pessoa submetida
à prisão preventiva, e não certamente como um rebelde po­
lítico acusado de "crime de lesa majestade".
Esta viagem marítima cheia de aventuras, sob o co­
mando do centurião romano Júlio, de Cesaréia, é narrada
no livro dos Atos dos Apóstolos, com abundância de por­
menores e intensa dramaticidade (At 27.1-44). Os prisionei­
ros viajam, inicialmente, até Mira, na Lícia, a bordo de um
navio mercantil que fazia a cabotagem ao longo da costa da
Ásia Menor.
A seguir, são transferidos para um outro navio que
vinha de Alexandria e se dirigia para a Itália. Em virtude
de ventos contrários, a navegação procede lentamente até
Creta, e dali em diante se torna cada vez mais perigosa,
porque, neste meio tempo, começaram as borrascas do
outono-inverno. Navegando no mar Adriático, entre Creta
e Malta, o navio é atingido por uma furiosa tempestade.
Os marinheiros, com difíceis manobras, após se desfaze­
rem da carga do navio, procuram salvar o navio, mas ficam
à deriva durante duas semanas e naufragam, finalmente,
diante de Malta. Todos conseguem se salvar, mesmo se
com grande dificuldade, atingindo a praia a nado ou agar­
rados a algum destroço do navio.
Tudo isto é narrado nos Atos dos Apóstolos com a
mais alta plasticidade e com uma surpreendente amostra
de conhecimentos técnico-marítimos. Mas os fatos que
mais interessam ao narrador são outros: a saber, que, no
182 Paulo, V ida e O bra

turbulento rebuliço de marinheiros e soldados, de pilotos,


de capitão e centurião, Paulo aparece como o homem de
Deus, superior pela sabedoria e confiança, até pela expe­
riência marítima e, sobretudo, pelo poder da sua fé e pela
sua capacidade de fazer milagres. Ao final das contas,
todos devem a ele a salvação.
Durante muito tempo este impressionante relato foi
considerado como um documento histórico particularmen­
te crível, proveniente necessariamente de uma testemunha
ocular, isto é, ao que se pensava, do próprio Lucas que teria
feito aquela viagem, tanto mais que todo aquele capítulo
está redigido na primeira pessoa do plural, como já algu­
mas outras seções do livro dos Atos dos Apóstolos.
Estudos recentes, com suas persuasivas argumenta­
ções, fizeram vacilar aquelas convicções. Para começar, o
uso do "nós" no relato não é necessariamente indício segu­
ro de uma testemunha ocular. É um eficaz artifício literário,
muito utilizado pelos antigos, especialmente nas narrações
de peripécias marítimas. Observe-se, ademais, que, no lon­
go capítulo 27 dos Atos dos Apóstolos, Paulo comparece
somente em poucas cenas edificantes, relatos de milagres e
discursos, que correspondem à imagem tipicamente lucana
de Paulo, mostrando-o como o salvador, sempre corajoso,
que o próprio Deus guia e aconselha.
Todos estes trechos podem ser tirados do restante da
narração, sem dificuldade, ainda mais que, pelo seu cará­
ter, se distinguem dela claramente e muitas vezes a contra­
dizem nitidamente.
Consequentemente, é possível concluir, com toda pro­
babilidade, que o autor dos Atos dos Apóstolos, para a sua
dramática narração da viagem da Palestina até a Itália, usou
e oportunamente retocou um modelo literário que original­
mente não tinha nada a ver com Paulo e que era bastante
comum nos livros de viagem e nos romances da literatura
V ida e O bra 183

helenística. As peripécias e os perigos das viagens maríti­


mas constituíam um dos seus temas prediletos.
É surpreendente constatar que, nas últimas etapas da
viagem, de Malta em diante, Paulo efetivamente não apa­
rece mais como um prisioneiro. Em Putéoli (no golfo de
Nápoles), pôde permanecer como hóspede durante uma
semana, de alguns irmãos cristãos. Os fiéis de Roma vão
ao seu encontro até o Foro de Apio e Três Tabernas, na Via
Apia, a pouca distância da cidade, para recepcioná-lo so­
lenemente. Finalmente, mesmo acompanhado de guarda,
na capital do Império foi permitido a Paulo morar em casa
particular.
Aqui, ele pode receber livremente - sem que se faça
praticamente mais menção da sua prisão - os judeus mais
distintos e apresentar-lhes a mensagem do Reino de Deus
e de Jesus, a quem a Lei e os Profetas dão confirmação, o
que leva alguns deles à fé, enquanto outros permanecem
incrédulos. "Paulo ficou dois anos inteiros na moradia que
havia alugado. Recebia todos aqueles que vinham visitá-lo,
proclamando o Reino de Deus e ensinando o que se refere
ao Senhor Jesus Cristo com toda a intrepidez e sem impe­
dimento" (At 28.30s.). Assim termina a narração e todo o
livro dos Atos dos Apóstolos.
Este fim pacífico não é, certamente, imaginável do pon­
to de vista histórico e é, de qualquer modo, estranho o fato
que Lucas não faça nenhuma referência sequer à prosse-
cução do processo de Paulo e à sua morte violenta, se bem
que dela tivesse ciência (A t 20.22s.; 21.10s.). Todavia, é fácil
compreender que o livro termine desta maneira, quando se
atenta para o programa que, desde as primeiras páginas,
Lucas estabeleceu para a própria obra histórica: descrever
o caminho do Evangelho, de Jerusalém e da Judéia através
da Samaria até os confins da terra (At 1.8). Neste sentido,
o autor dos Atos dos Apóstolos faz com que o grande mis-
184 Paulo, V ida e O bra

sionário das gentes possa concluir a sua obra grandiosa fi­


nalmente também em Roma.
Além disso, o silêncio em torno do m artírio de Paulo
torna-se plenamente compreensível diante do escopo ime­
diato que o livro dos Atos dos Apóstolos se propôs. Na
verdade, eles não foram escritos somente para a edifica­
ção dos fiéis, mas também com um propósito apologético
para o Estado pagão. Este últim o devia receber da figura
de Paulo uma precisa impressão da grandeza do cristia­
nismo e da sua vontade de paz, e ser, por conseguinte,
induzido a se comportar em relação à Igreja do mesmo
modo sábio e justo do qual muitos representantes das au­
toridades romanas têm dado prova no curso da história
de Paulo.
O fim real do apóstolo deve ter transcorrido diversa­
mente. Sem dúvida, ele permaneceu ainda em Roma por
algum tempo - os dois anos dos quais fala os livros dos
Atos dos Apóstolos (At 28.30) são evidentemente dignos
de crédito - numa detenção relativamente branda, mas di­
ficilmente com aquela ilimitada liberdade de pregação a
que se refere o relato de Lucas.
O processo, longamente procrastinado, com certeza
foi finalmente retomado, concluindo-se com o martírio do
apóstolo, sob Nero, em torno do início dos anos 60.
Estes fatos, como vimos, são presumidos no próprio
livro dos Atos dos Apóstolos. Além disso, mesmo abs­
traindo das tardias e lendárias descrições do fim do após­
tolo contidas nos Acta Pauli (fim do séc. II d.C.), temos o
prim eiro e segundo testemunho na Primeira Epístola de
Clemente, escrita em Roma, no últim o decênio do século I:
"Olhemos para os valorosos apóstolos: Pedro, que, vítima
de uma injusta inveja, suportou não uma ou duas, mas
um grande número de aflições, e depois, tendo confessa­
do a fé, foi para o lugar de glória que lhe é devido. Por
V ida e O bra 185

causa de uma inveja iníqua e de uma discórdia, Paulo rece­


beu a coroa da perseverança, ele que por sete vezes esteve
acorrentado, foi fugitivo, apedrejado, tornando-se arau­
to no Oriente e no Ocidente, obteve uma glória excelsa
pela sua fé. Tendo ensinado a justiça em todo mundo,
atingindo os confins do Ocidente e tendo testemunhado
diante dos poderosos, foi libertado do m undo e acolhido
no lugar santo - tornando-se o maior exemplo de perse­
verança" (5.4-7).
Também aqui, a figura e o fim dos dois apóstolos már­
tires são reconhecíveis apenas de modo impreciso. Esvaem-
se num panegírico estilizado e retórico, utilizando-se do
antigo modelo de um verdadeiro sábio na qualidade de
lutador na arena do espírito. Do verdadeiro Paulo, porém,
sobra somente pouco e, a respeito das circunstâncias preci­
sas da sua morte, aquele texto não refere nada.
Mas isto não é suficiente para colocar em dúvida a sua
morte violenta. Permanece somente a questão se, como
pressupõe a Primeira Epístola de Clemente, Paulo pôde
concretizar, antes de morrer, o seu plano de se d irig ir ao
extremo Ocidente, à Espanha, para exercer ali a sua ativi­
dade missionária.
Esta informação, combinada com os Atos dos Após­
tolos, somente pode significar que Paulo, após uma bre­
ve prisão em Roma, obteve a liberdade, sofrendo depois
uma segunda e última prisão. Tudo isso é absolutamente
inverossímil, não podendo sequer ser comprovado com as
Epístolas Pastorais, como muitas vezes se tentou fazer. Na
verdade, a notícia da Primeira Epístola de Clemente deve
ser deduzida da Epístola aos Romanos (Rm 15.24s,28), na
ideia que a esperança de Paulo se tenha efetivamente rea­
lizado.
O destino dos seus últimos anos até o seu fim se per­
de, portanto, no escuro. Temos, assim, um m otivo tanto
186 Paulo , V ida e O bra

mais válido, após a apresentação da sua biografia, para


nos deter no sólido fundamento histórico das suas epís­
tolas e para nos interrogar a respeito daquilo que, para o
próprio Paulo, importava mais do que a sua própria vida
e morte.
Segunda Parte

M E N S A G E M E T E O L O G IA

I - PAULO E A MENSAGEM DE CRISTO


DA COMUNIDADE PRIM ITIVA

Todo aquele que pretende obter uma compreensão de


Paulo deve, independentemente da própria presumida fa­
miliaridade ou da própria distância da fé cristã, dobrar-se
diante da constatação de que não existem pontes de ouro
e nem introduções graduais ao pensamento do apóstolo.
Nenhuma das suas epístolas fornece, por mais dizer, passa­
gens apologéticas ou propedêuticas que vão ao encontro do
leitor. Por toda parte, vai ele imediatamente medias in res.
Não é totalmente descabida a acusação, que muitos
aduzem abertamente e outros nutrem em silêncio, afirman­
do que a teologia paulina possui exigências em demasia. As
possibilidades de se sentir à vontade ou de experimentar a
sensação de se sentir interpelado por um modo de pensar
estranho ao nosso parecem aqui estar eliminadas. Para uns
este fato constitui um motivo que reforça a sua rejeição ou
resignação e, para outros, suscita perplexidade e profunda
inquietação.
A teologia de Paulo não é uma repetição da pregação
de Jesus do advento do Reino de Deus. O conteúdo central
188 Paulo, V ida e O bra

da pregação paulina é a própria pessoa de Jesus Cristo e


a salvação fundada e inaugurada pela sua morte na cruz,
sua ressurreição e elevação à dignidade de Kyrios (Senhor).
Produziu-se assim uma profunda transformação, dificulto­
samente aceita pelo pensamento moderno e que é muitas
vezes deplorada.
Decorre, daí, para o apóstolo, a má fama de ter falsifi­
cado o cristianismo e de se ter tornado, num sentido pro­
blemático, o seu verdadeiro "fundador". Afirma-se que,
após a intervenção de Paulo, a boa-nova de Jesus ficou
transformada numa doutrina da redenção sobrecarregada
de concepções hebraicas e de mitologias helenísticas.
Evidentemente, existe uma diferença fundamental en­
tre a pregação do Jesus terreno e a mensagem que não so­
mente Paulo, mas toda a comunidade pós-pascal, dão a res­
peito de Cristo. Somente um incauto poderia ignorá-la. Tal
diferença se manifesta igualmente na desconcertante diver­
sidade dos escritos neotestamentários. Os evangelhos, para
dizê-lo de modo simples e esquemático, falam da pregação
e da atividade de Jesus no quadro da sua história terrena
até a sua morte e ressurreição. A mensagem apostólica (as
epístolas, os Atos dos Apóstolos e o Apocalipse de João),
ao invés, toma aquele ponto de chegada como base e ponto
de partida para os testemunhos pós-pascais. O Pregador
se tornou objeto de pregação. Os limites da sua existência
terrena rebentaram e, no lugar da palavra de Jesus, entrou
a palavra sobre Jesus, o Cristo, sobre sua morte, sua ressur­
reição e sua vinda no fim dos dias.
Não é certamente correto fazer de Paulo o primeiro res­
ponsável por este processo. Contudo, este surpreendente
dado da realidade nos é apresentado na suas epístolas com
particular incisividade. Ele não está em nada preocupado
em transmitir a pregação do Jesus terreno. Não fala nunca
do "rabi" de Nazaré, do profeta e taumaturgo, do comensal
M ensagem e T eologia 189

dos pecadores e publicanos. Não profere uma palavra


sobre o Sermão da Montanha, sobre as parábolas do Reino
de Deus e sobre o conflito com os fariseus e os escribas.
Sequer o Pai-nosso é encontradiço em suas epístolas.
Ele cita somente quatro ditos do Senhor bastante varia­
dos e nem muito representativos (ICor 7.10s.; 9.14; 11.23;
lTs 4.15). Igualmente, algumas das exortações que ele di­
rige às comunidades contêm reminiscências das palavras
de Jesus, e mostram quanto o apóstolo devia possuir um
conhecimento limitado da tradição referente a Jesus, ad­
quirida nos seus encontros com os cristãos, antes ou depois
da própria conversão.
Estas raras e casuais referências, porém, não m odifi­
cam nada do quadro geral. O Jesus terreno não parece mais
significar nada. Paulo mesmo não o conheceu. Mas, ain­
da que o tivesse conhecido no plano das relações humanas
normais, agora já não mais o reconhece assim, segundo ele
mesmo declara numa discussão com adversários que, evi­
dentemente, se remetem a Jesus de maneira bem diferente
(2Cor 5.16).
Esta impressão não pode ser minimizada, sendo incor­
reto ceder à fantasia, inspirada por preocupações apolo-
géticas, para reconstruir arbitrariamente ligações lá onde,
em primeiro lugar, existe somente ruptura, ou para buscar
transições e mediações lá onde não existe nenhum caminho
direto.
Este problema fundamental da teologia paulina, que é,
na verdade, um problema de toda a fé e pensamento cris­
tão prim itivo, foi, desde sempre, percebido mais claramen­
te por críticos, mas não por numerosos teólogos, interessa­
dos em estabelecer de modo precipitado ligações, mesmo
se aqueles críticos interpretaram, de maneira geral, aquela
transformação somente como um distanciamento e uma
alteração.
190 Paulo, V ida e O bra

Do ponto de vista da história das religiões, aquele


processo de transformação foi, sem dúvida, fortemente
influenciado por certos elementos do pensamento apoca­
líptico do judaísmo tardio e por concepções mitológicas
próprias do ambiente da Antiguidade tardia. Contudo, a
opinião bastante difundida segundo a qual, neste caso, o
Jesus terreno se teria sido transformado num ente divino
mítico, perdendo irremediavelmente de vista a história, é
superficial e equivocada.
Na verdade, esta opinião não vê que tal transformação
exprime também e, sobretudo, uma concepção da história
de Jesus profundamente diferente daquela corrente no nos­
so mundo moderno. Este dado real não pode ser definido
em nossas habituais categorias, a não ser por meio de m úl­
tiplas negações.
Para o historiador, o lim ite que separa o ontem do hoje e
do amanhã está fundamentalmente fechado. Ele fala, como
significativamente se expressa a nossa linguagem, "do que
passou", colocando e computando estas coisas do passado
num sistema predeterminado de coordenadas espaço-tem-
porais, ainda que tendo presente as consequências que do
passado incidem sobre o presente e o futuro. Não é por aca­
so, porém, que, para o historiador, tudo quanto é durável
e permanente nos acontecimentos e nas figuras do passa­
do se transforma em verdades atemporais e históricas, de
caráter ideal, moral e religioso.
A concepção que os primeiros cristãos tinham da his­
tória de Jesus não pode ser compreendida nos limites des­
ta maneira de pensar. Ela está fundada na ressurreição
de Jesus. Esta última, nos testemunhos da comunidade
pós-pascal, é circunscrita e compreendida de maneiras
variadas e bastante diferentes, como um acontecimento
que teve lugar no espaço e no tempo, mas cujo signifi­
cado é m uito mais amplo. Ela representa efetivamente a
M ensagem e T eologia 191

intervenção realizada por Deus, com poder soberano, no


contexto humano-profano da história terrestre. E a irru p ­
ção do eschaton, a epifania de Deus e, por conseguinte, o
início da verdadeira história de Cristo como história da
salvação.
Por esta razão, para a fé cristã prim itiva, Jesus não
representa mais uma simples figura histórica do passado,
um homem como os outros, filho do seu tempo e vítima
das circunstâncias, uma figura impressionante e até mesmo
exemplar na maneira como, mesmo na derrota, enfrentou a
sua sorte. A sua pessoa, o seu significado e a sua influência
sobre o presente e o futuro são considerados muito mais
na perspectiva daquela história de Deus com o mundo e
com os seres humanos, que é decisiva para o tempo e para
a eternidade.
Semelhante significado salvífico de Jesus encontra
expressão em numerosos títulos honoríficos com os quais
o designam os testemunhos prim itivos e as confissões de
fé cristãs, utilizando uma terminologia veterotestamen-
tária judaica ou helenístico-grega: Messias, Cristo, Kyrios,
Filho do homem, Filho de Deus, ou como quer que soem.
Evidentemente, nenhum destes títulos pretende substituir
o Jesus terreno. Este não foi liquidado. O seu nome não se
tornou um vocábulo qualquer, vazio ou até mesmo inter-
cambiável.
Pelo contrário, todos estes títulos honoríficos afirmam
precisamente que Jesus e nenhum outro é o conteúdo e
o portador da salvação que Deus realizou pelo mundo.
A quilo que, num primeiro momento, podería aparecer
como um abandono da história, exprime, portanto, na ver­
dade e num sentido global, o fato que a história de Jesus
é entendida como evento salvífico que inclui e envolve
os destinatários da pregação, os quais respondem através
da fé.
192 Paulo, V ida e O bra

Tudo isto não suprime a diferença entre a pregação


do Jesus terreno e a mensagem da comunidade pós-pascal,
mas antes a exige e a explica. Tal diferença consiste no fato
que Jesus, com suas palavras e ações, anuncia o aconteci­
mento, já em curso, do advento do Reino de Deus, enquan­
to para a comunidade pós-pascal - sem prejuízo do caráter
mutável e por vezes contraditório das suas concepções - a
passagem dos tempos, o início da salvação e o advento do
senhorio de Deus já ocorreram na morte de Jesus, na sua
ressurreição e elevação.
Exatamente por isso, os discípulos de Jesus não pude­
ram se lim itar a guardar a herança e o legado da sua dou­
trina e em repetir as suas palavras como os discípulos dos
rabinos e dos filósofos. A mensagem da Igreja prim itiva
(o kerygma) devia se transformar e fazer dele o próprio con­
teúdo para permanecer fiel à palavra, à ação e à história
que Deus havia realizado nele.
Na comunidade prim itiva, e especialmente no ambien­
te das primeiras comunidades helenísticas, este kerygma ha­
via já encontrado múltiplas expressões (muitas vezes não
explicitamente marcadas como tais, contudo suficiente­
mente reconhecíveis por seu conteúdo e forma) em fórm u­
las e confissões de fé, hinos, expressões litúrgicas e orações
para o culto, mas também em reflexões exegéticas nasci­
das do estudo do Antigo Testamento, tendo se consolidado
bem cedo em tradições bem estáveis e bem formuladas.
Este processo, que se verificou na história da fé e do
pensamento cristão prim itivo e originariamente isento de
qualquer caráter literário, deixou vários e numerosos tra­
ços nas fontes literárias neotestamentárias e extracanônicas.
Já acenamos anteriormente às duras lutas que se desenro­
laram em torno da correta compreensão do evento-Cristo.
A conversão e vocação do apóstolo pressupõem já o ingres­
so dos "helenistas" na comunidade originária de Jerusalém,
M ensagem e T eologia 193

as primeiras perseguições e os inícios da missão e da difu­


são do cristianismo no ambiente grego-pagão.
As profundas diferenças existentes na compreensão
do judaísmo e da Lei, de Cristo e da salvação, colocavam o
problema da correta compreensão do Antigo Testamento
e da história de Deus com o seu povo e com o mundo, da
qual o próprio Antigo Testamento oferece o testemunho e
da qual Cristo constitui o cumprimento. Ainda que tendo
presente o desenvolvimento e a transformação do ambien­
te, ao qual o Evangelho precisava ser anunciado numa lin ­
guagem sempre renovada, não ocorre jamais que as bem
sólidas tradições da comunidade prim itiva fossem sim­
plesmente abandonadas, mesmo se foram relacionadas, em
grande parte, com novas afirmações da fé.
As epístolas de Paulo são uma demonstração eloquen­
te deste procedimento, não somente porque ele entremeia
o seu raciocínio com referências veterotestamentárias, e
sim porque ele recorre com igual frequência às tradições
"querigmáticas" .transmitidas pelas comunidades que o
precederam ou que lhe eram contemporâneas. Escrevendo
aos coríntios, recorda explicitamente aquilo que ele mesmo
recebeu e transmitiu, e que se tornou o fundamento da sua
fé (IC or 15.3s.; cf., outrossim, 11.23s.).
Em outras passagens das suas epístolas, é possível re­
conhecer tais fórmulas tradicionais, ou levantar pelo menos
a hipótese em tomo da sua forma e linguagem. Elas são,
sobretudo, encontráveis em afirmações sintéticas e seme­
lhantes a confissões de fé, concernentes à morte e ressur­
reição de Cristo, colocadas no quadro de tratados doutri­
nários sobre o batismo e sobre a ceia do Senhor, de normas
referentes ao comportamento e ao culto, de interpretações
do Antigo Testamento ou também das fórmulas de oração
e de bênção. Nesta matéria, de acordo com o conceito que
Paulo tem de si mesmo, ele é somente um entre tantos, não
194 Paulo, V ida e O bra

sendo, por isso, correto procurar nele uma "originalidade"


especial, particularmente em relação à sua cristologia, ain­
da que esta última, sem sombra de dúvida, apresente sua
peculiaridade.
Fica evidente, portanto, que se interpreta de forma
completamente errônea a natureza e a qualidade da teologia
do apóstolo, quando esta for considerada sob o paradigma
do "gênio religioso", vendo nela somente o resultado de
suas experiências profundamente pessoais. Sem dim inuir
a contribuição específica da sua fé e do seu pensamento, é
necessário, contudo, sempre se perguntar o que ele deve à
tradição do judaísmo, no qual foi educado, à comunidade
prim itiva existente antes dele, como também aos seus dis­
cípulos e colaboradores e até aos seus adversários.
Neste sentido, a mensagem e teologia de Paulo cons­
tituem a interpretação e o desenvolvimento do kerygma
do cristianismo prim itivo. No entanto, embora tendo em
alta consideração a tradição "querigmática" prim itiva e es­
forçando-se ocasionalmente em inculcá-la literalmente na
mente da comunidade (ICor 15.2), Paulo não a considera
jamais como um texto sagrado autoritariamente imposto.
Sua autoridade não é de natureza formal, ou seja, não con­
siste no mero fato de ter transmitida. Mas lhe advém do seu
conteúdo, proclamado pelo Evangelho.
Paulo se sente eleito, vocacionado e enviado para pro­
clamar este Evangelho (Rm 1.1; G1 1.15). Para ele, o cum­
primento deste ministério apostólico não consiste nem em
narrar a história de Jesus, nem em dar um ensinamento so­
bre Deus e as coisas divinas ou em comunicar verdades e
experiências religiosas. Significa, pelo contrário, proclamar
e atualizar o que Deus fez em Cristo pela redenção e salva­
ção do mundo e que a fé é chamada a assumir.
O verbo "pregar", infelizmente desgastado e esvazia­
do pelo uso, não traz mais à mente o encargo do arauto
M ensagem e T eologia 195

(kéryx, kérygma, kerússein) ao qual originariamente se referia.


É Deus mesmo que fala e age pela boca dos seus mensagei­
ros (2Cor 5.20). Com uma imagem usada familiarmente na
Antiguidade para falar da epifania de um deus, Paulo pode
afirmar que o seu ministério da pregação do Evangelho é
"(...) para uns, odor que da morte leva à morte; para outros,
odor que da vida leva à vida" (2Cor 2.16).
Paulo fala com tons apocalípticos daquilo que aconte­
ce no Evangelho "porque nele a justiça de Deus se revela"
(apokalyptetai) (Rm 1.17): acontecimentos de uma dimensão
global e de validade última, fim do antigo e início do novo
mundo. Os clarões do fogo do Ultim o Dia reluzem, por
assim dizer, nesta mensagem.
Isto, porém, não significa que o apóstolo, como se po­
dería esperar, se abalançasse a predizer os acontecimentos
futuros e a pintar fantasiosamente, como nos apocalipses
judaicos, o fim do mundo e a glória do novo éon. Ele fala
de um acontecimento atual, que se verifica desde já no
evangelho. Portanto, este últim o não se lim ita a fornecer
informações sobre as possibilidades de salvação e de per­
dição futuras, mas nele se concretiza desde o momento
presente o advento salvífico de Deus. O Evangelho é ele
mesmo "força de Deus para a salvação de todo aquele que
crê" (Rm 1.16). Semelhantes afirmações já não cabem mais
em nenhum conceito apocalíptico. A quilo que a concep­
ção apocalíptica judaica ou proto-cristã espera para um
futuro mais próximo ou mais longínquo já é realidade
atual no Evangelho.
Estas citações, extraídas da parte introdutória da
Epístola aos Romanos, indicam, de modo programático, a
inconfundível peculiaridade da compreensão paulina do
kérygma cristão prim itivo. Ela se manifesta, acima de qual­
quer outra coisa, no fato de que Paulo explica e interpreta a
mensagem de Cristo como mensagem da justificação unicamente
196 Paulo, V ida e O bra

pela fé. Semelhante doutrina, longe de ser comumente com­


partilhada pelo cristianismo prim itivo, é uma criação espe­
cificamente paulina.
A fé em Cristo, que une Paulo a todo o cristianismo
prim itivo, em nenhum outro lugar foi desenvolvida, pen­
sada e elaborada no sentido de tal doutrina e não encon­
trou nunca uma expressão própria, a não ser justamente
em Paulo. Ela lhe valeu não somente a hostilidade figadal
do judaísmo, mas também o descrédito e o isolamento no
âmbito do cristianismo do seu tempo. Mesmo assim, justa­
mente através daquela doutrina, ele se tornou o apóstolo
das gentes e não provocou a separação do cristianismo do
judaísmo, mas forneceu também por prim eiro um funda­
mento autenticamente teológico à unidade da Igreja forma­
da por fiéis de origem judaica e pagã.
É verdade que, para o pensamento moderno, o am­
plo horizonte da mensagem paulina, à primeira vista,
parece antes lim itado pela sua doutrina da justificação.
Efetivamente, a posição central que ela ocupa em toda a
teologia de Paulo responde com evidência ao fato de que
ele havia recebido a mensagem de Cristo quando era um
hebreu fiel, observante da Lei, e que esta última, após ter
fornecido o quadro das experiências e do pensamento dó
antigo fariseu, havia logicamente continuado a determinar
a sua compreensão da salvação, também após a sua passa­
gem ao cristianismo e ao apostolado. Na realidade, a ma­
neira como Paulo pensa em categorias, como Lei, justiça e
justificação, o caracteriza como um ex-judeu e, do ponto de
vista dos judeus, como um apóstata. Assim, se é facilmente
tentado em ver nesta doutrina nada mais do que o resulta­
do das circunstâncias muito pessoais de tempo e lugar bem
como dos limites da sua teologia.
Além disso, a afirmação segundo a qual a doutrina da
justificação constituiria o centro da teologia do apóstolo não
M ensagem e T eologia 197

ficou sem contestação nas pesquisas recentes sobre Paulo,


tendo sido formulada a opinião segundo a qual ela não se­
ria mais do que um elemento particular e secundário da
"luta doutrinária antijudaica", não devendo ser, de forma
alguma, supervalorizada e nem colocada em posição cen­
tral, como ocorreu com os reformadores do século XVI (W.
W rede). De forma semelhante, A. Schweitzer denominou-a
como "cratera secundária ao lado da cratera principal" da
mística paulina da redenção.
Esta tese tem a seu favor o fato de que a doutrina da
justificação é apresentada, de modo abrangente e explíci­
to, somente nas epístolas aos Gálatas, aos Romanos e aos
Filipenses, e que existem, na teologia de Paulo, outras
importantes temáticas e âmbitos de pensamento que não
podem representativamente ser derivadas diretamente da
sua doutrina da justificação. Nas Epístolas aos Coríntios,
por exemplo, ela parece passar completamente para um se­
gundo plano.
Mesmo assim, ela não está totalmente ausente aqui.
Pelo contrário, estas epístolas mostram precisamente que
Paulo expõe o seu Evangelho sempre do mesmo modo,
mesmo quando, em respeito aos ouvintes e leitores de ori­
gem pagã, deve adotar uma linguagem diferente da usada
com as comunidades melhor familiarizadas com a tradição
judaica. Mas é, sobretudo, a sua última e grande Epístola aos
Romanos que mostra até que ponto o tema inicial e central
da sua teologia permaneceu o mesmo até o seu término.
Por conseguinte, não é correto atribuir à doutrina pau­
lina da justificação um significado restrito a uma polêmica
determinada por uma situação contingencial. Na verdade,
por meio desta doutrina, o apóstolo rompeu radicalmente
com as tradições do judaísmo e do judeu-cristianismo, assina­
lando à Lei e àquilo que denomina "justiça de Deus" uma
abrangência e uma validade que as sobrepujam ampla-
198 Paulo, V ida e O bra

mente. A tese errônea precedentemente citada deve ser,


pelo contrário, invertida: toda a sua mensagem, mesmo
quando não se refere expressamente à doutrina da justi­
ficação, somente pode ser adequadamente compreendida
quando for em relação estreita e em correlação com ela.
A mensagem paulina da justificação não pretende ser
compreendida como uma teoria teológica relativa à pre­
gação da comunidade prim itiva sobre Cristo, mas como
o desenvolvimento e explicação mais autênticos des­
ta. Demonstra-o claramente o fato de que o conteúdo do
Evangelho é resumido exaustivamente por duas vezes,
muito embora de forma bastante diferenciada, no estrei­
to espaço do primeiro capítulo da Epístola aos Romanos.
Primeiramente, através de um "credo" tradicional; ele con­
fessa Cristo "nascido da estirpe de Davi segundo a carne,
estabelecido Filho de Deus com poder por sua ressurreição
dos mortos, o Espírito de santidade" (Rm 1.3s.).
O segundo sumário fala a linguagem inconfundível de
Paulo: "(...) eu não me envergonho do evangelho: ele é for­
ça de Deus para a salvação de todo aquele que crê, prim ei­
ro do judeu, mas também do grego. Porque nele a justiça de
Deus se revela da fé para a fé, conforme está escrito: o justo
viverá da fé" (Rm 1.16s.).
A primeira vista, estas duas declarações parecem não
ter nada em comum. De fato, aquele antigo "credo" não
se referia verdadeiramente à justificação somente pela fé,
e ninguém, antes ou depois de Paulo, teve a ideia de inter­
pretá-lo deste modo. Todavia, não resta nenhuma dúvida
de que, para o apóstolo, tanto uma como a outra afirmação,
são um compêndio completo do Evangelho.
Consequentemente, não é possível entender a primeira
fórmula, a tradicional (Rm 1.3s.), como simples ato de ho­
menagem à tradição e expressão da ortodoxia do apóstolo,
que somente num segundo momento passaria a anunciar
M ensagem e T eologia 199

o seu próprio e autêntico Evangelho que se desenvolve ao


longo do restante da epístola. Em vez disso, é verdade que
o nexo entre as afirmações cristológicas e soteriológicas, ou
melhor, a tradução e desenvolvimento da mensagem cris-
tológica como anúncio da justificação, e vice-versa, constitui
uma preocupação essencial e fundamental de toda a teolo­
gia de Paulo.
Sem dúvida, o início da Epístola aos Romanos não
mostra o caminho percorrido pela sua fé e pelo seu pen­
samento, nem as reflexões e descobertas revolucionárias
que estão entre a tradição recebida e conservada por Paulo e a
própria teologia dirigida para esferas de pensamento absolu­
tamente novas (cf. Anexo III, pp. 379-381). Contudo, o p ri­
meiro capítulo da Epístola aos Romanos se apresenta como
o prelúdio dos problemas e das questões que precisam ser
abordadas a seguir.
Antes disso, porém, é preciso assinalar uma outra ca­
racterística significativa da teologia paulina, para a qual
normalmente não se atenta o bastante. A teologia do após­
tolo resiste a qualquer tentativa de interpretá-la como um
sistema compacto e bem ordenado de temas distintos, por
assim dizer, uma espécie de Summa theologiae. Muitas ex­
posições eruditas procedem como se tal dificuldade não
existisse e aduzem cuidadosamente as diferentes afirma­
ções paulinas a respeito de Deus, de Cristo, do ser humano,
da redenção, dos sacramentos, da Igreja, dos novíssimos, e
outros. Na realidade, gozam muitas vezes de um prestígio
que é tanto maior porque conseguem apresentar as escas­
sas afirmações num todo bem sortido.
Este procedimento, porém, é totalmente equivocado,
mesmo se cada frase traz a respectiva comprovação exigi­
da, enquanto não se der espaço e razão à simples observa­
ção de que as afirmações paulinas não se encontram nunca
num catálogo bem disposto de loci dogmáticos, mas são
200 Paulo , V ida e O bra

quase sempre fragmentárias e continuamente entrelaçadas


com afirmações de diferente jaez.
Nenhuma exposição do pensamento de Paulo, sequer
a nossa, pode abster-se de ordenar os desenvolvimentos
do pensamento paulino segundo determinadas temáticas e
problemáticas gerais. Trata-se, porém, de um expediente ao
qual se recorre. Na verdade, tudo se entrelaça em Paulo.
Este estado de coisas não é evidente em si mesmo. Já
a teologia helenístico-judaica, como também a do cristia­
nismo antigo, especialmente a teologia dos assim denomi­
nados apologetas cristãos a partir do século II, tinham de­
senvolvido uma espécie de sistemática e uma tópica bem
consistente sobre determinados temas religiosos. Assim,
por exemplo, a doutrina do único verdadeiro Deus em con­
traposição aos muitos deuses dos pagãos; o poder criador e
a bondade de Deus; a história de Deus com Israel; o erro e a
cegueira dos seres humanos; o cumprimento em Cristo das
profecias de salvação do Antigo Testamento; o apelo à con­
versão e, finalmente, o juízo divino sobre justos e ímpios.
Ainda que, para muitas destas temáticas, se encontrem
referências e documentação em Paulo, deixando transpa­
recer as tradições a que fizemos alusão, a despeito disso,
é significativo o fato de que nele estes temas não se encon­
tram nesta ordem e que todas as tentativas de fazer deles
um sistema levam ao fracasso. O verdadeiro motivo de tal
estado de coisas não deve ser buscado no caráter ocasional
das diferentes situações em que foram escritas as epístolas,
mesmo se uma certa influência neste sentido seja provável.
M uito menos deve ser buscado no temperamento brusco e
sem dúvida apaixonado do apóstolo.
Totalmente equivocada é a tola contraposição, segun­
do a qual Paulo seria um homem "prático" e não um "teó­
rico", bem como o julgamento sumário segundo o qual ele
seria um homem desprovido do dom de pensar ordenada-
M ensagem e T eologia 201

mente. Suas epístolas demonstram o contrário. Era aqui­


nhoado desta capacidade como nenhum outro apóstolo ou
autor do cristianismo prim itivo. Dela deu provas surpreen­
dentes por ocasião dos mais acalorados embates.
Na verdade, o motivo da diversidade entre a sua e ou­
tras estruturas de pensamento está precisamente na pecu­
liaridade e no conteúdo da sua teologia. Ela é de tal forma
dominada pelo encontro entre Deus, o ser humano e o mundo,
que, a rigor, aqueles diversos temas já não podem mais exis­
tir separadamente para ele. Tudo se conecta no tema geral
do juízo e graça. O seu pensamento não se afastará jamais
da esfera na qual ocorre aquele encontro. Mas isto significa
que todas as afirmações sobre Deus, Cristo, Espírito, Lei,
juízo e salvação são sempre concomitantemente afirmações
sobre o ser humano e sobre o mundo que o circunda, sobre
o ser humano velho e perdido, como sobre o ser humano
novo, libertado por Deus.
Conduzir o ser humano à compreensão de si mesmo
diante de Deus e avançar na reflexão sobre a própria exis­
tência e situação neste mundo, tal é o escopo perseguido
constantemente pela pregação e pela teologia do apóstolo,
mesmo quando revela ao ser humano irredento a enigmáti­
ca contradição do seu ser (Rm 7.7s.) e mostra ao fiel o cará­
ter fragmentário de todo conhecimento (ICor 13.12s.).
Em Paulo, razão e fé não estão, de forma alguma,
numa relação de radical e irremediável contradição, con­
trariamente ao que muitas vezes se costuma afirmar. Paulo
utiliza vigorosamente a razão, a inteligência, a consciên­
cia, e discute com a finalidade de convencer e persuadir
os interlocutores, seja falando do ser humano não-remido
ou do ser humano salvo. Portanto, renuncia coerentemente
ao estilo dos discursos de revelação apodíticos, muito em
voga no ambiente religioso e também entre os pregadores
cristãos do seu tempo.
202 Paulo, V ida e O bra

Para Paulo, certamente, a "palavra da cruz" se contra­


põe drasticamente à "sabedoria deste mundo" (ICor 1.18s.;
2.6s.). Mas, com esta expressão, ele quer indicar uma ma­
neira bem determinada de pensar e de compreender, que
fracassou diante da sabedoria de Deus e precipitou o ser hu­
mano na perdição. Isto não modifica, porém confirma, pelo
contrário, o fato de que justamente este ser humano a quem
é anunciada a mensagem da graça libertadora deve com­
preender o paradoxo da ação realizada por Deus na cruz
de Cristo. Neste sentido, Paulo denomina o seu Evangelho
uma arma para "destruir fortalezas. Destruímos os raciocí­
nios presunçosos e todo poder altivo que se levanta contra
o conhecimento de Deus" (2Cor 10.3s.).

II - O SER HUMANO E O MUNDO EM


SUA SITUAÇÃO DE PERDIÇÃO

1. A Lei

O que significa, no Evangelho, a revelação da "justiça


de Deus, da fé para a fé" (Rm 1.17), isto Paulo não pode di­
zer a não ser fazendo antes algumas considerações e desen­
volvendo ao mesmo tempo uma explicação a respeito da
perdição de todos os seres humanos diante de Deus. Esta
justiça, diz a Epístola aos Romanos, se manifesta no fato
de que todos os seres humanos foram chamados à vida, ou
seja, para viver sob a Lei de Deus, mas são todos "indescul­
páveis" e expostos à ira de Deus (Rm 1.18-21).
Esta drástica descoberta não é, para Paulo, uma verda­
de universal e intemporal deduzida da própria Lei através
de prolongadas elucubrações, mas, ao invés, tornou-se pos­
sível e compreensível a partir da mensagem da salvação.
Sob a luz resplandecente do Evangelho, a existência do ser
M ensagem e T eologia 203

humano debaixo da Lei se revela como perdição diante de


Deus. Utilizando uma imagem veterotestamentária, Paulo
pode afirmar que, em Cristo, o véu que cobre a Lei é retira­
do (2Cor 3.14).
A partir daqui, é possível identificar uma característica
peculiar da concepção paulina da Lei, que distingue o após­
tolo de outros representantes do cristianismo prim itivo.
A constatação, historicamente correta, segundo a qual o
significado da missão de Cristo lhe foi revelado a partir da
Lei, não é suficiente se referida a ele. Formulada nestes ter­
mos gerais, trata-se de uma constatação válida para todos
aqueles que vieram do judaísmo ao cristianismo prim itivo.
Mas, para Paulo, e somente no seu caso, a frase é válida,
também invertendo os termos: somente a partir de Cristo,
a Lei lhe apareceu como fundamento da vida e horizonte
da realidade irredenta de todos os seres humanos, judeus
e pagãos.
Todas as vezes que Paulo discute o problema da Lei,
ele o faz na perspectiva do Evangelho. E importante atentar
para este ordenamento interno do seu pensamento. Ele se
manifesta desde o início da Epístola aos Romanos, na qual
a palavra que programaticamente sintetiza o Evangelho
(Rm 1.17) precede o longo trecho sobre a ira de Deus.
O anúncio da salvação proclama o "agora" escatoló-
gico, a passagem do velho ao novo mundo (Rm 3.21 e pas-
sim), a hora que Deus fez sobre o mundo, e constitui o único
ponto de partida, do qual todas as afirmações do apóstolo
sobre a Lei adquirem o seu significado. De per si, a Lei e as
experiências que o ser humano, especialmente o ser huma­
no piedoso, faz debaixo da Lei, não o conduzirão jamais a
descobrir a própria perdição, da qual, aliás, a Lei é incapaz
de salvá-lo.
Por conseguinte, o pensamento e a mensagem de Paulo
não seguem, efetivamente, a lógica da pregação e da praxe
204 Paulo, V ida e O bra

penitenciais que conhecemos, sobretudo, através do pietis-


mo, no qual se inicia deixando de lado o evangelho para
conduzir o ser humano a reconhecer o abismo do seu pró­
prio pecado e cair na desesperança de si mesmo. Dito em
termos modernos: Paulo não inicia a sua teologia com um
capítulo de filosofia existencial, para passar, em seguida e
sucessivamente, a falar do Evangelho e da fé.
Por outro lado, é impossível para ele pregar o Evangelho
sem que o ser humano descubra, ao mesmo tempo, a própria
incapacidade para encontrar uma solução, e a impotência
da Lei para lhe conferir a liberdade. Quando Paulo desen­
volve a mensagem da salvação, via de regra, se encontram
também afirmações que sintetizam a situação de perdição
do ser humano, mas não como uma etapa ultrapassada de
desenvolvimento e que se possa olhar retrospectivamente,
com um suspiro de alívio (cf. Rm 3.23; 6.15s.; 7.7s.; 8.5s.;
2Cor 3.7s, e outros).
Para Paulo, como para todos aqueles piedosos fiéis do
Antigo Testamento, a Lei, no seu significado originário, é
um apelo que vem de Deus e uma indicação para alcançar
a salvação e a vida (Rm 2.6s.; 7.10). Deve ser praticada na
obediência. E válida para todos, não somente para os ju­
deus, e está sintetizada no Decálogo e, particularmente, no
mandamento do amor (Rm 7.7; 13,9; G1 5.14).
Contudo, sobre este fundamento, nunca abandona­
do, se baseia uma descoberta decisiva para Paulo, que
nenhum outro judeu ou grego expressou, antes dele, em
igual profundidade e radicalidade e que nenhum outro
teólogo do cristianismo p rim itivo reproduziu, isto é, a
descoberta de que esta Lei santa, justa e boa (Rm 7.12,16),
de fato, não é mais capaz de conduzir o ser humano à sal­
vação e à vida.
Neste sentido, ele entende de uma maneira absolu­
tamente nova a universalidade da Lei. Não se trata somente
M ensagem e T eologia 205

de afirmar, como se fazia muito tempo antes de Paulo no


judaísmo helenístico, a validade da Lei para todos os seres
humanos, e sim os seus efeitos universais: ela declara todos,
judeus e pagãos, culpados diante de Deus. Esta iniludível
solidariedade de todos na perdição sob a Lei é o elemento
propriamente revolucionário da sua mensagem.
Em que consiste a desgraça do ser humano? Em Rm
1.18-3.20, a resposta a esta pergunta gira em torno da pala­
vra-chave "revelação da ira de Deus". Ela não consiste no
fato de que o ser humano não conheça a Deus, e sim porque
ele não permite que a verdade de Deus surja, mantendo-a
"prisioneira da injustiça" (Rm 1.18). "Porque o que se pode
conhecer de Deus é manifesto entre eles (os seres huma­
nos), pois Deus lho revelou. Sua realidade invisível - seu
eterno poder e sua divindade - tornou-se inteligível, desde
a criação do mundo, através das criaturas" (Rm 1.19s.).
Isto é dito na linguagem da sabedoria greco-judaica.
Mas, à diferença desta última, Paulo não fala em tom apo-
logético-pedagógico de uma possibilidade à qual ele po­
dería abrir as portas através de reflexões. Ao invés disso,
fala de uma realidade de fato que logo se transforma em
acusação contra o ser humano: "(...) de sorte que não têm
desculpa. Pois, tendo conhecido a Deus, não o honraram
como Deus nem lhe renderam graças; pelo contrário, eles
se perderam em vãos arrazoados, e seu coração insensato
ficou nas trevas" (Rm 1.21).
Portanto, na criação iluminada por Deus, o ser huma­
no, criado por Deus e chamado à vida, permaneceu deve­
dor de si mesmo, "entregue" agora à sinistra perversão da
sua existência (Rm 1.24,26,28): o Criador e a criatura inver­
teram os seus papéis, precisamente também naquilo que
o ser humano denomina "religião". Sua vida, arruinada e
pervertida, fruto ao mesmo tempo da culpa e do destino, se
transformou agora na manifestação da ira de Deus.
206 Paulo, V ida e O bra

Nas largas explanações do capítulo primeiro da Epístola


aos Romanos, tudo isto é referido aos pagãos e poderia, na
medida em que atinge a estes, contar com a plena aprova­
ção por parte do judeu piedoso. Mas, logo em seguida, o
tiro se volta contra o judeu, atingindo-o com uma acusação
ainda mais clara, formulada na linguagem, a ele bem fami­
liar, da Escritura e da Lei mosaica (Rm 2 e 3).
Paulo sufoca assim qualquer separação farisaica do
judeu em relação ao pagão. Pois a Lei de Deus foi dada a
todos, ainda que de maneira diferente - a uns escrita sobre
as tábuas de pedra do Sinai e, para os outros, inscrita no
coração - e não somente aos judeus, assim como todos serão
objeto de julgamento, e não somente aos pagãos. Ela abarca
todos numa única grande detenção de culpa: "Todos estão
debaixo do pecado" (Rm 3.9; cf. Rm 3.10-20).
Com estas palavras, Paulo quer afirmar mais e algo
diverso da trivial e genérica constatação de que todos os
seres humanos são, em sentido moral, pecadores e falham
diante das exigências éticas. Ele não nega que, em certa me­
dida, tanto os pagãos quanto os judeus, observam as pres­
crições da Lei (Rm 2.14; F1 3.6). Mas nem sequer este zelo
elimina a escravidão do ser humano sob o poder maligno
do pecado, nem o torna "justo". O ser humano permanecõ
sempre fechado para Deus e voltado para si mesmo.
Com efeito, justamente o judeu, zeloso observante da
Lei, é, para Paulo, o exemplo do ser humano escravo do
pecado. Na ilusão de ser religioso e no esforço de alcançar a
justiça, imagina que o acesso a Deus, que está irremediavel­
mente fechado, esteja aberto ou pensa poder abri-lo com as
obras. A Lei revela a sua situação de perdição, e nada mais.
O conhecimento que dela se pode haurir é exclusivamente
o conhecimento do pecado (Rm 3.20). Desta maneira, estri­
ta e rigorosamente é contestada à Lei a sua função de poder
ainda conduzir à salvação.
M ensagem e T eologia 207

Esta posição extrema de Paulo em relação à Lei fere


- até hoje - os ouvidos dos judeus e era inaudita também
no cristianismo prim itivo.
Mais adiante, Paulo fundamente, na continuidade de
Epístola aos Romanos, o seu julgamento aparentemente
excessivo sobre a Lei, numa ampla reflexão, que abrange
a história da humanidade em seu todo (Rm 5.12-21). Adão
e Cristo, ambos iniciadores e chefes, - um, da humanidade
votada ao pecado e à morte, o outro, da humanidade liber­
tada para a justiça e a vida - são aqui contrapostos e unidos
numa relação antitípica, em virtude dos efeitos universais
da sua ação.
Paulo não foi o primeiro que pensou nestes termos. Já
antes dele, as visões e as reflexões da apocalíptica judai­
ca haviam colocado em contraposição o mundo presente,
numinoso e passageiro, com o mundo futuro, portador de
salvação. Mas é, sobretudo, o judaísmo helenista e influen­
ciado pela gnose que nos transmitiu certas especulações
metafísicas sobre a origem divina e o destino do ser huma­
no, como também sobre a sua queda e a maneira trágica
como deixou se enredar no mundo inferior dominado pa­
las potências cósmicas hostis a Deus.
Sem dúvida, em Rm 5, Paulo se serviu de um esquema
de conceito e representações deste gênero, mas dele não se
apropriou inadvertidamente. Pelo contrário, transformou-
o e reformulou-o. A tensão entre a tradição recebida e a
interpretação paulina se evidencia já na estrutura descon­
tínua das frases que, tal como na primeira delas, são in­
completas e repetidamente interrompidas por comentários
e correções. O esquema em si implica a ideia de um destino
adverso e fatídico que pesa sobre toda a humanidade.
Neste sentido, Rm 5 exerceu uma influência durável
sobre a doutrina eclesiástica do "pecado original", ou pelo
menos sobre sua concepção vulgar, e contribui amplamente
208 Paulo, V ida e O bra

para uma preocupante avaliação negativa da sexualidade


na consciência cristã em geral. Esta maneira de pensar, po­
rém, corresponde antes à tradição pré-paulina do que ao
próprio Paulo. Importa, por conseguinte, analisar acurada­
mente onde e como o apóstolo rompe e recompõe o esque­
ma tradicional.
Já o horizonte do seu pensamento é outro. Paulo não
abandona o terreno da história e não se restringe em refletir
sobre a origem do ser humano e sobre as causas cósmico-
míticas da sua queda, tais como o diabo ou o destino. Ele
se atém, desde o início, à consideração do pecado de Adão,
que caracteriza cada ser humano e que consiste no intenso
desejo de fazer prevalecer a própria vontade contra Deus,
o que resultou para Adão na maldição da morte. O pecado
é, assim, sem derivação, a sua própria causa.
A própria formulação da frase inicial exclui a ideia de
destino: "(...) porque todos pecaram" (Rm 5.12). Para Paulo,
o pecado não é certamente apenas uma falha moral in d i­
vidual, mas é, ao mesmo tempo, também uma ação e uma
potência escravizante. Portanto, nem a morte é um aconte­
cimento natural e fatalista, mas um poder que torna o ser
humano prisioneiro e sela a sua perdição.
Paulo, assim como não acolheu a ideia de um trágico
destino a propósito da humanidade adâmica, ainda menos
esposa a ideia de uma "lei natural" no concernente à re­
lação da "nova" humanidade com Cristo. Efetivamente, o
dom e a potência da graça devem ser recebidos na fé (Rm
5.15s.).
Por isso, o apóstolo pode aceitar a tradição e o con­
ceito de analogia que ela encerra, somente após tê-la mu­
dado na base, após tê-la despojado do seu caráter metafí­
sico e conectado com a história, podendo somente então
dizer: como um, assim os muitos; como Adão, assim tam­
bém Cristo! O que, aliás, significa que a esfera na qual se
M ensagem e T eologia 209

desenrola a história da perdição é aquela mesma na qual a


salvação se tornou realidade em Cristo. Por isso, no lugar
da simples analogia (como/assim), entra, na conclusão, a
frase: "(...) onde avultou o pecado, a graça superabundou"
(Rm 5.20).
No quadro geral deste acontecimento, Paulo consig­
na também um espaço histórico à Lei dada por meio de
Moisés, que não havia colocado na tradição especulativa,
situando-a entre Adão e Cristo e conferindo-lhe, assim, um
significado da máxima importância: ela agrava o ser huma­
no na sua culpa e força o seu "erro" ao extremo (Rm 5.13;
cf. Rm 4.15). Somente a Lei coloca realmente em evidência
o que significa o pecado e a perdição.
Estes pensamentos sobre a Lei são retomados no céle­
bre excerto de Rm 7.7-25 e conduzidos a uma tal profundi­
dade reflexiva que não existe igual nem no judaísmo e nem
no mundo grego. Também aqui o discurso se refere a fatos
ocorridos, isto é, históricos, que impregnam e caracterizam
o ser e a natureza do ser humano. Mas, em Rm 7, ao que
parece, se abandonou o amplo horizonte no qual se arti­
culavam, no capítulo 5, as reflexões sobre a relação entre
Adão e Cristo, para se restringir, ao invés, às experiências
individuais de um "eu". Tanto isso é verdade que até hoje
muitos costumam ler aquele texto como uma confissão au­
tobiográfica do antigo fariseu Paulo, que fracassou debaixo
da Lei. Mas esta é uma leitura equivocada. Paulo, de modo
algum, desespera da Lei e fala retrospectivamente do seu
passado judeu, sublinhando a própria conduta irrepreensí­
vel no cumprimento da Lei (F1 3.4s.; G11.13s.).
Na verdade, o "eu" do qual fala em Rm 7 é o ser huma­
no sem Cristo, submetido à Lei, ao pecado e à morte e que
mergulhou na profundidade da sua miséria, impossível,
aliás, de ser avaliada na sua gravidade, a não ser na ótica
da mensagem da salvação. É sem dúvida significativo que
210 Paulo , V ida e O bra

se fale do ser humano e até de Adão em termos tão in d iv i­


dualizados e não na forma abstrata e genérica da terceira
pessoa.
Isto se explica porque o ser humano se revela pelo
que é realmente só quando se compreende a si mesmo não
mais unicamente como membro de uma entidade coletiva
(a humanidade), mas quando se sente tocado na sua pró­
pria existência pessoal. Tudo isso, diz Paulo, se realizou no
encontro com a Lei, com a chamada de Deus à vida, que se
resume no mandamento do Decálogo ("Não cobiçarás!").
Por isso, ainda que as afirmações de Rm 7 ultrapassem am­
plamente a pessoa do apóstolo e sejam válidas para todos
os seres humanos, aqui, ele pôde expressar-se somente na
primeira pessoa do singular.
O que ocorre, porém no encontro com a Lei? A res­
posta tradicional soa: a Lei reprime o pecado, impede de
praticá-lo e indica o caminho do bem. A resposta de Paulo
é surpreendentemente contrária: não, a Lei revela e excita
a minha concupiscência. Debaixo da Lei, conheci pela p ri­
meira vez o pecado. Até aquele momento, ele dormitava,
estava "m orto", mas agora foi "reavivado". De fato, no
encontro com a Lei, o ser humano traz já sempre em si a
concupiscência.
A Lei, em virtude da minha origem e da minha nature­
za, desde sempre encontrou em mim uma pessoa que não
quer outra coisa senão a si mesmo. Ainda mais, o pecado
conseguiu transformar o mandamento de Deus, que estava
dirigido contra ele, num instrumento de auto-afirmação.
Daqui nasce o paradoxo: em virtude da potência da minha
concupiscência, o mandamento que me foi dado para que
eu vivesse produz em mim a morte (Rm 7.10). Isto ocorreu,
quando "sobreveio o preceito". Naquele momento, "mor-
ri", enganado pelo pecado, e com a ajuda desta arma fui
morto em suas mãos (Rm 7.9s.).
M ensagem e T eologia 211

Neste ponto, Paulo fala, em termos quase de perso­


nificações mitológicas, de um duelo, do qual somente um
dos contendores sai vivo. Contudo, a concepção do pecado
como um demônio leva ao erro, pois se, de um lado, o peca­
do é mais do que somente uma falha moral, por outro lado,
porém, esta potência que debilita e destrói o ser humano
não deixa de ser um ato culpável do próprio ser humano.
Por isso, encontrei a Lei e o preceito, estando eu mesmo já
prisioneiro do pecado e da morte.
A partir destes fatos, entende Paulo a realidade do ser
humano e a incurável perversão da sua natureza. Esta se
revela ao ser humano como algo incompreensível, numa
contradição que o dilacera, numa irremediável contrapo­
sição entre o ser humano "carnal" (ou seja, entregue a si
mesmo) e a Lei "espiritual" dada por Deus (Rm 7.19). Mais
ainda - esta primeira contradição, o ser humano podería
suportá-la com a resignação - ela se manifesta no próprio
interior do ser humano: entre a vontade e a ação se abre
uma fratura ("Não pratico o que quero, mas faço o que o
detesto": Rm 7.15). A vontade não produz ação e a ação é
sem vontade.
Finalmente, a contradição extrema: já não sou mais
senhor de mim mesmo ("Não sou mais eu que pratico a
ação, mas o pecado que habita em m im ": Rm 7.17s,20), se
bem que com a minha "razão", com o "ser humano inte­
rio r", com a minha vontade dirigida para o "bem" e para a
vida eu aceite a Lei. Paulo não quer que isto seja entendido
no sentido da gnose, que fala de uma "centelha divina" no
ser humano (assim como nós dizemos que, "no fundo",
o ser humano é bom). Tudo isso, pelo contrário, não faz
senão confirmar e convalidar a perdição do ser humano,
pavorosa no verdadeiro sentido do termo. Embora dila­
cerado, o ser humano é e permanece um. O ser humano
é contradição. Para este "eu", vale a lamentação: "Infeliz
212 Paulo , V ida e O bra

de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?"


(Rm 7.24).
Em Rm 7.7-25, tanto quanto em Rm 5, Paulo não se
atém em refletir a respeito da origem divina e do destino
ideal do ser humano. Pelo contrário, ele persiste muito mais
em pensar no ser humano real e na sua "história", sem dis­
tinguir entre quem, como o piedoso judeu, quer arrancar
da Lei a própria justificação, ou quem, como malfeitor, se
rebela contra a vontade de Deus.
Os dois textos citados, a despeito das suas peculiari­
dades, se conectam estreitamente entre si: Rm 7 evita que
as afirmações a respeito de Adão e de Cristo sejam errone­
amente entendidas como puras especulações mitológicas e
teológico-históricas, enquanto, por sua vez, Rm 5 protege
o que foi dito em Rm 7 do equívoco de uma análise pura­
mente psicológica e existencial.
O desenvolvimento descrito em Rm 7 poderia ind u­
zir à conclusão de que, no encontro com o pecado, a Lei se
transformasse, ela mesma, em potência diabólica e mor­
tal. Mas Paulo se opõe com todo vigor a uma semelhante
dedução que, também para ele, seria blasfema. Mesmo
sendo usada pelo pecado e aparentemente subtraída à
sua destinação divina, a Lei permaneceu solidamente nas
mãos de Deus. Mas a sua função foi mudada: já não deve
mais restringir o pecado, e sim fazer que "avulte" (Rm
5.20), e coloque em evidência toda a potência devastadora
(Rm 7.13).
Ainda que de maneira indireta e extremamente para­
doxal, o nomos permanece - justamente no instante em que
rejeita a vida em vez de abri-la - a serviço da vontade sal-
vífica de Deus. Este é exatamente o sentido da afirmação
paulina a respeito da Lei enquanto "pedagogo que conduz
a Cristo" (G1 3.24s.). O apóstolo a compara àquele escravo
a quem, na Antiguidade, as crianças ficavam submetidas
M ensagem e T eologia 213

até o dia da sua maioridade, antes de se tornarem livres


e senhores da sua herança. Com uma outra imagem, que
deve ser entendida também ela em sentido não somente in­
dividual, mas referida ao éon que precede a vida de Cristo,
o apóstolo compara a Lei a uma prisão na qual todos estão
mantidos e retidos com vida até o dia da sua libertação (G1
3.22s.; 4.1s.;Rm 11.32).
Os paradoxos extremamente audazes da doutrina
paulina da Lei permanecem, até os nossos dias, escanda­
losos e inaceitáveis, sobretudo para os representantes da
fé judaica, mas também não foram plenamente acolhidos
nem sequer na teologia cristã.
Em época mais recente, especialmente H. J. Schoeps
lançou em rosto a Paulo o fato de ter reduzido e limitado,
sob a influência de uma noção depravada da Lei, própria
do seu tempo, o verdadeiro e genuíno sentido veterotes-
tamentário da Lei, da qual não teria conseguido colocar
em evidência o seu caráter de norma da aliança e dom da
graça. Segundo Schoeps, daqui teriam origem às drásticas e
inadequadas antíteses da doutrina do apóstolo entre antiga
e nova aliança, entre Lei e Cristo, obras e fé.
Também M. Buber denominou Paulo um agnóstico, o
qual, tal como João, mas diferentemente de Jesus, teria "de-
monizado" o mundo. Mas estas críticas não captam a ver­
dadeira posição de Paulo, mesmo admitindo-se que muitos
dos seus conceitos e pensamentos se ressentem da influên­
cia do seu tempo.
Com efeito, é um equívoco julgar Paulo como se fosse
um exegeta encarregado de interpretar a Escritura a partir
do ponto de vista do Antigo Testamento. Na verdade, como
procuramos demonstrar, Paulo não descreve a essência da
Lei a partir da sua origem, mas reflete sobre a situação do
ser humano, ao qual, por causa do pecado, as antigas reve­
lações já não abrem mais o caminho para Deus, e ao qual
214 Paulo , V ida e O bra

não aproveitam em nada a santidade, a justiça e a bondade


da Lei que reivindica obediência.
Tendo reconhecido a incapacidade de todos os seres
humanos, observantes da Lei e malfeitores, judeus e pa­
gãos, de encontrar o caminho que conduz a Deus, Paulo
permanece firme sobre o fundamento da fé judaica e vete-
rotestamentária para a qual o problema das relações do ser
humano com Deus e de Deus com o ser humano constituiu
sempre o problema existencial do qual depende a salvação
ou a perdição.
Ao mesmo tempo, porém, ele rompe o fundamento
do pensamento judaico ao estender a validade da Lei para
todos os seres humanos, e precisamente no sentido de afir­
mar a sua solidariedade universal na perdição, da qual so­
mente a graça pode salvar. Ao reconhecer à Lei somente
esta função de manter o ser humano na sua existência real,
ele - para expressá-lo em termos modernos - evitou a de­
sastrosa possibilidade que o problema de Deus caísse ao
nível de uma questão geral relativa à concepção do mundo.
Esta última concepção se interroga em vão a respeito de um
Deus que deveria "estar" no mundo ou acima do mundo, e
perde de vista o fato de que somente se pode falar de Deus
como daquele que "vem " a nós na sua palavra e nos seus
atos. A qui está o significado da concepção paulina da Lei,
mais ainda daquilo que, na sua pregação e na sua teologia,
expressa o evento da salvação.

2. O ser humano e o mundo

A linha de pensamentos que vai de Rm 5 a Rm 7, do


conjunto da humanidade adamítica ao "eu" de cada ser hu­
mano singular, é evidente. Significa que, substancialmen­
te, é impossível falar do ser humano e da sua história em
termos coletivos e gerais abstratos, mas somente com um
M ensagem e T eologia 215

discurso individualizante que, aliás, não coloca em perigo,


mas antes valoriza o significado universal das afirmações a
respeito de cada um.
O ser humano e o mundo, criação e criatura, perma­
necem indissoluvelmente coordenados um ao outro, mas,
ao mesmo tempo, ambos estão submetidos à potência do
pecado, perdidos diante de Deus e carentes de redenção.
O mundo é o horizonte no qual se desenvolve a exis­
tência humana, mas é o ser humano que impregna e de­
termina, desde a sua base, ao mesmo tempo, a essência
do mundo. Este últim o está, por assim dizer, recoberto da
imensa sombra do ser humano pecador. Por sua culpa, a
criação inteira foi submetida à "vaidade", ao trabalho inú­
til de crescer e se desfazer, à "servidão da corrupção", e
espera, portanto, com ansiedade, a revelação da liberdade
gloriosa dos filhos de Deus (Rm 8.19-21).
Paulo emprega o termo mundo precisamente neste sen­
tido. Muitas vezes o utiliza para designar o mundo dos seres
humanos (Rm 3.19; 11.12; 2Cor 5.19, e passim), mas também
para indicar o ambiente no qual o ser humano vive, enten­
dido como o centro das suas preocupações (ICor 7.31s.),
e também como base da sua segurança e da sua glória, e
como fonte da qual busca extrair a sua escala de valores e a
sua sabedoria (ICor 1.18s.; 2,6s.). O mundo que passa e de­
saparece (2Cor 4.18), que domina e deslumbra cegamente
o ser humano, é a esfera de poder de Satanás, o deus deste
mundo (2Cor 4.4).
A relação constante entre o ser humano e o mundo se
evidencia também já nos conceitos antropológicos de Paulo.
Encontramos vários deles ao abordarmos a sua doutrina
sobre a Lei. Contudo, importa recordar, ainda uma vez, os
mais importantes, com maior amplitude e precisão.
Para Paulo - ao contrário de F ilo , por exemplo - ne­
nhum destes conceitos é objeto de reflexão como tal. Como
216 Paulo , V ida e O bra

o apóstolo não discute jamais de forma abstrata a essência


e o conceito de Deus, nem faz da criação um "capítulo dou­
trinário", assim ele se abstém igualmente de dissertações
teóricas sobre o ser humano.
Mas, dos conceitos e expressões que usa, emerge clara­
mente a imagem que ele tem do ser humano: trata-se sem­
pre do ser humano na sua totalidade, mesmo quando, vez
por outra, é considerado sob vários aspectos. Omitiremos
as expressões tradicionais que servem simplesmente para
indicar o ser humano-humanidade (como já no Antigo
Testamento, por exemplo, "toda carne" ou "carne e san­
gue", etc.) para examinar, ao invés, alguns conceitos parti­
cularmente característicos.
O mais abrangente e teologicamente mais importan­
te é o conceito paulino de corpo (sôma). Tal relevância não
emerge sempre. Em muitos casos, o termo é usado no sen­
tido corrente e se refere a uma presença corpórea (ICor 5.3;
2Cor 10.10), aos sofrimentos e dores físicas (G1 6.17; ICor
9.27; 2Cor 4.10), às relações sexuais (ICor 6.15s.; 7.4), ao en­
fraquecimento e ao desaparecimento das forças físicas (Rm
4.19); Paulo conhece também a imagem, bem conhecida na
Antiguidade, da unidade do corpo e da variedade dos sen­
tidos e dos membros (Rm 12.4s.; IC or 12.12s.).
No entanto, é de extrema importância o fato de que
Paulo não concebe o corpo e a corporeidade como alguma
coisa que se agrega ou que pertence ao ser humano, ao con­
trário, por exemplo, da antiga fórmula órfica que vê no cor­
po o túmulo (sôma/sêma), a prisão da alma, e diferentemen­
te também dos "espirituais" de Corinto que distinguiam
entre o seu corpo terrestre e inferior e o seu "eu" superior e
espiritual (ICor 6.12s.).
Para Paulo, o corpo é o ser humano na sua realidade
concreta. Para ele, como diz Bultm ann , o ser humano não
tem um corpo, o ser humano é corpo. "Os vossos corpos (ou,
M ensagem e T eologia 217

também: vossos membros) pertencem a Cristo" (ICor 6.15)


significa a mesma coisa que: "Vós sois o corpo de Cristo"
(ICor 12.27). "Oferecei vossos corpos como sacrifício vivo"
(Rm 12.1) significa simplesmente "vós mesmos". "N o meu
corpo", quer dizer "em m im ", e assim por diante.
O termo "corpo" indica especialmente a humanidade
do ser humano, que não é nunca uma coisa, mas a experi­
ência de si, comporta-se desta ou daquela maneira, domi­
na-se ou se degrada e se perde. Numa palavra: o ser hu­
mano em suas possibilidades. Mas isso certamente não no
sentido de ser abandonado à própria sorte. O corpo define
antes o ser humano como alguém que não pertence nunca
a si mesmo, mas é sempre submetido a alguma soberania,
à do pecado e da morte ou à do Senhor.
Em sua corporeidade o ser humano é sempre ques­
tionado de quem é ele propriedade (ICor 6.13,15s.).
Considerando qual seja a realidade do ser humano no seu
mundo, isto significa que as suas possibilidades acabaram
e se perderam e que a liberdade somente lhe pode acon­
tecer.
Sob este aspecto e referindo-se à existência do fiel,
Paulo pode também falar "dualisticamente" da existência
corpórea, certamente não no sentido de um dualismo me­
tafísico que desvaloriza a corporeidade enquanto tal, e sim
para assinalar a historicidade e a temporalidade do ser hu­
mano, que este, enquanto viver, não poderá jamais superar
(2Cor 5.1-10).
Enquanto criatura e propriedade do Senhor, o ser hu­
mano, com corpo e membros, é libertado da servidão da
injustiça para ser colocado a serviço da justiça e destinado
à vida (Rm 6.12-23). Esta possibilidade já lhe está aberta,
ela já é operante na força do Espírito divino (Rm 8.10-13),
mas será completa somente na nova criação de Deus. Ela
vale para o ser humano todo. Precisamente por isso, Paulo
218 Paulo, V ida e O bra

terça armas com os "espirituais" de Corinto por causa da


doutrina da ressurreição corporal (não carnal!) dos mortos
(ICor 15).
Em Paulo, ao contrário do pensamento grego, o concei­
to de alma (psyché) não possui um papel preeminente. Por
ele, não se indica a individualidade superior, divina, im or­
tal do ser humano, e sim - como já no Antigo Testamento
- o ser humano nas suas manifestações cotidianas, nas suas
atitudes, nos seus sentimentos (F11.27; 2.2,19; lTs 2.8).
Analogamente, fala-se por vezes do espírito (pneüma)
do ser humano, que deve ser distinguido do Espírito de
Deus, e que indica o ser humano enquanto ser consciente,
que percebe e que compreende. O espírito conhece "o que
é do ser humano" (IC or 2.11) e percebe o testemunho do
Espírito de Deus (Rm 8.16).
O conceito de coração, frequentemente utilizado por
Paulo, é de origem judaico-veterotestamentária, não grega.
Refere-se ao ser humano nos seus desejos e vontades (Rm
10.1; 1.24; IC or 4.5), nos seus sonhos e nos seus afetos e
amores (p.ex.: Rm 9.2; 2Cor 2.4; 7.3 e passim).
São, porém, de origem grega os conceitos de consci­
ência e razão. A linguagem do Antigo Testamento e do ju­
daísmo ainda não os conhece. No concernente ao prim ei­
ro dos dois, a passagem mais importante é a de Rm 2.15.
Consciência (syneídesis) é o conhecimento que o ser humano
tem de si e que acompanha a sua ação, quer se trate de coi­
sas já realizadas ou de deveres ainda por cumprir (IC or 4.4;
Rm 9.1; 13.5).
Para Paulo, a consciência não é, na verdade, a instância
suprema para distinguir o bem do mal, mas é um teste­
munho infalível da verdade, que não pode ser desconsi­
derado ou violentado, porque diz ao ser humano o que ele
realmente é, em contraste com aquilo que ele parece estar
fazendo e com aquilo que ele gostaria de ser (ICor 8.7s.).
M ensagem e T eologia 219

O apóstolo retoma este conceito, talvez com a mediação do


judaísmo helenístico e da filosofia popular estóica, como
em Rm 2, servindo-se da imagem de um tribunal (acusado­
res, testemunhas, juiz). Nele, o ditado da consciência não
coincide, porém, já com a sentença divina, mas se limita
em confirmar que a vontade de Deus não está escondida
a ninguém, e, com suas oscilações entre auto-acusação e
autodefesa, é antes um indicador que remete ao veredicto
futuro que Deus pronunciará sobre o ser humano na clare­
za perfeita.
Com o olho da razão (noüs), o ser humano descobre,
como Paulo o diz na linguagem da filosofia religiosa grega
e da sabedoria judaica, a essência invisível de Deus, a sua
eterna força e divindade, nas obras da criação, e percebe
assim o chamado de Deus (Rm 1.20). Também o irredento,
em virtude da razão, deve dizer sim à Lei de Deus (Rm
7.22). As suas funções consistem na compreensão, no julga­
mento, na decisão e no discernimento (2Cor 4.4; 10.5; Rm
12.2; lTs 5.21; Rm 3.28; IC or 4.1). Portanto, ela caracteriza
o ser humano enquanto o ilumina a respeito do mundo em
que vive. Também neste caso, porém, se trata de um "eu"
superior que habita no ser humano.
Ao contrário do estoicismo, Paulo não descreve e não
entende a razão como lógos, por meio do qual o ser huma­
no participa da razão divina universal, nem, na esteira dos
gnósticos, a concebe como espírito sobrenatural que torna
o ser humano membro do mundo da luz. Mesmo sendo
guiado pela razão para desejar aquilo que é bom para ele,
ou seja, a vida, e para aprovar a Lei de Deus, o ser humano
continua perdido (Rm 7.14s.). Nem assim Paulo a desqua­
lifica.
Mesmo quando o apóstolo contrapõe drasticamente a
"loucura da pregação" à "sabedoria do mundo", ele recor­
re à inteligência (IC or 1.18s.), assim como, de outra parte,
220 Paulo, V ida e O bra

avalia qualquer pregação segundo a sua inteligibilidade e


sua força persuasiva (ICor 14). Caso contrário, não poderia
jamais vencer os pensamentos do ser humano que se ergue
contra Deus e conduzi-lo prisioneiros à obediência a Cristo
(2Cor 10.3s.). O fiel não fica privado, mas esta é "renovada"
pela graça (Rm 12.2).
Na sua realidade concreta, o ser humano está
"vendido com escravo ao pecado" (hamartía) (Rm 7.14).
Significativamente, deste últim o se fala quase sempre no
singular, como de um poder personalizado. Tendo entra­
do no mundo pela desobediência de Adão (Rm 5.12), che­
gou a reinar sobre todos (Rm 5.21). Está armado como um
capitão mercenário e paga com a morte os que o seguem
("O salário do pecado é a morte": Rm 6.23).
Esta mesma maneira de se expressar demonstra que o
pecado é algo mais do que um simples nome coletivo para
indicar uma quantidade de atos pecaminosos, mesmo se as
falhas morais constituem também uma das suas manifesta­
ções (Rm 1.26s.; 2.21s.; 3.10s. e passim). Por sua natureza, ele
é inimizade contra Deus (Rm 5.6s; 8.7), a quem é recusada,
assim, honra e agradecimento. Desde o princípio, o pecado
retém os seres humanos em seu poder, e nem as boas ações
dos pagãos (Rm 2.14) e nem as obras do piedoso judeu, ten­
dentes a afirmar a "própria justiça", conseguem romper o
seu jugo.
O conceito que caracteriza de maneira mais clara tal
postura do ser humano é o de carne (sárx). Este termo,
de acordo com o uso linguístico do A ntigo Testamento,
designa, muitas vezes, o ser humano como criatura, en­
quanto diferente de Deus. O ser humano é carne porque
a sua existência é transitória (G1 4.13; 2Cor 12.7; 4.11;
F1 1.22,24 e passim), tendo em vista a sua origem, o seu
parentesco ou a sua posição na sociedade (Rm 1.3; 4.1;
9.3,8; IC o r 10.18; 1.26). "Carnais" são os bens terrestres
M ensagem e T eologia 221

e passageiros, como o alimento e o dinheiro (Rm 15.27;


IC or 9.11).
Todavia, em muitas expressões paulinas, o termo "car­
ne" tem um sentido preciso, ainda desconhecido na lingua­
gem do Antigo Testamento. Neste caso, identifica a natu­
reza e a conduta do ser humano em oposição e em contradição
com Deus e com o Espírito de Deus. "Carne" significa, então,
- normalmente em construções verbais - o fundamento a
partir do qual o ser humano natural compreende a si mes­
mo, e a finalidade para a qual vive (p.ex., Rm 8.4; 2Cor 10.2;
11.18), quando não até a esfera de poder sob o qual caiu no
seu impulso vital à autoafirmação.
A "carne" inclui tanto as grosseiras concupiscências
dos sentidos (G1 5.13s.,24) quanto os privilégios religiosos
sobre os quais os piedosos judeus e os "espirituais" ba­
seiam a sua confiança em si mesmos (2Cor 11.18; G1 6.12s.;
F13.3s.). Ao proceder assim o ser humano aparenta ser e se
presume autosuficiente, mas, efetivamente, ele se tornou
presa de potências que o escravizam. Tal como o pecado,
a "carne" também é um poder escravizante (Rm 7.14.18;
8.6s.,12; G1 5.16,24).
O processo através do qual o ser humano é abandona­
do a si mesmo e à potência da corrupção termina na morte.
O desejo de viver e de se afirmar lhe proporciona frutos
que a morte, por assim dizer, recolhe em seu celeiro (Rm
7.5). Quem semeia pela carne, recolhe corrupção (G1 6.8;
também, Rm 6.23; 8.13; 2Cor 7.10). Este processo é descrito
com muitas imagens diferentes, muitas vezes apenas alu­
didas.
Conclui-se daí que, para Paulo, a morte não significa
apenas o fenômeno físico de morrer e nem o nada que está
além do lim ite da vida. Ao contrário, a morte circunda,
desde já, com o seu poder de aniquilação, a vida natural do
humem irredento, seja que ele a viva no temor (Rm 8.15),
222 Paulo , V ida e O bra

e na tristeza (2Cor 7.10) ou que a desperdice nos prazeres,


segundo o dito bem conhecido de todos: "comamos e beba-
mos, pois amanhã morreremos" (IC or 15.32).
A morte é, portanto, já parte integrante da ânsia de
viver, e a carne e o pecado são eles mesmos portadores de
morte (Rm 6.16). O pecado é o aguilhão nas mãos da morte
(ICor 15.56). A morte, indissoluvelmente unida ao peca­
do, reina sobre a humanidade irredenta (Rm 5.12-21) e per­
manece até o fim do mundo o inimigo supremo de Cristo
(ICor 15.26).
A Lei não consegue romper este cerco de perdição e de
morte (Rm 8.3). Ao contrário, não faz senão torná-lo mais
forte e sólido. Não é mais um caminho de salvação: Cristo
é o fim da Lei (Rm 10.4).

III - O EVENTO SALVÍFICO

Para Paulo, como, mais tarde, para os reformadores,


foi a mensagem da justificação somente pela fé o articulus
stantis et caãentis ecclesiae, isto é o artigo através do qual
a Igreja permanece ou cai. Isto não deve esconder as d i­
ficuldades com as quais se confronta a compreensão do
ser humano moderno diante desta mensagem. Elas têm
o seu fundamento, em parte, na linguagem e nas estru­
turas de pensamento próprias da época antiga nas quais
é expressa a mensagem e, não menos, de outra parte, na
própria tradição eclesiástica que o próprio Paulo inau­
gurou e que, a p a rtir de então, se petrificou, perdendo o
seu vigor.
Como outrora se construíam novas igrejas sobre os
fundamentos de antigas basílicas, mas de tal forma que
o antigo traçado era quase totalmente irreconhecível, assim,
a doutrina paulina da justificação sobrevive quase somente
M ensagem e T eologia 223

como um pálido e evanescente fantasma, em fórmulas


guardadas piedosamente. Não no sentido de não ter sido
questionada ou de não ter sido ignorada, pelo menos no
ambiente da tradição da Reforma. Pelo contrário, ela se tor­
nou tão aceita e de tal forma reconhecida, a ponto de se ter
transformado numa evidência banal.
Assim, a doutrina da justificação somente pela fé é tra­
tada como uma invenção ou descoberta feita por uma ge­
ração precedente, estando agora disponível aos sucessores
sem dificuldade. E os termos, ainda mais ou menos cor­
rentes na linguagem cristã, demonstram, hoje, não a força
e sim a impotência do que foi dito outrora. A obviedade
da mensagem esconde e mascara em grande parte apenas
o grau da sua ininteligibilidade. Deste modo, ela já não é
mais o que uma vez era.
Certamente, uma doutrina da justificação, tornada
óbvia e proscrita numa sentença do catecismo ou num pa­
rágrafo de uma dogmática, já não é mais a que Paulo en­
sinou. As consequências são evidentes: justamente aqui,
onde, para Paulo, pulsa o coração de todo Evangelho e
onde a sua palavra atingia, desconcertante e libertadora, o
verdadeiro ser humano, a pregação eclesiástica se restringe
apenas em anunciar um fantasma.
Não raramente se observa que a pregação e a teologia,
na medida em que não se encaminharam, há tempos, por
caminhos tidos mais modernos, se esforçam honestamente
mas em vão para despedaçar blocos de rochas com um ara­
do de madeira e transformar o campo aberto em pequenas
hortas.
Isto mostra quanto esforço seja necessário para tor­
nar novamente eloquente a mensagem paulina, expondo-
se assim àquela mesma tempestade que ela desencadeou
outrora. Trata-se, por conseguinte, hoje como no passado,
de confrontar-se com esta doutrina de soletrá-la, por assim
224 Paulo, V ida e O bra

dizer, e de procurar, com as próprias forças, compreendê-


la de maneira nova.
"Soletrar" a doutrina paulina da justificação não signi­
fica decompô-la escolasticamente em seus elementos con­
ceituais constitutivos para, a seguir, reuni-los novamente
num todo único. O evento realizado em Cristo e atualizado
no Evangelho é o ponto de partida e se manifesta de ime­
diato no contexto prenhe de tensões no qual estão inseridos
cada um dos conceitos da mensagem paulina. Cada um de­
les em particular remete a um outro e não constitui, por
si só, uma expressão adequada e suficiente. Doutra parte,
é preciso extrair de cada um dos conceitos a contribuição
específica que trouxe para a compreensão da história que o
evangelho anuncia.

1. A justiça de Deus

Paulo não ensina o princípio teológico geral segundo o


qual Deus é justo. A característica específica da sua mensa- -h
gem diz respeito à passagem da justiça de Deus ao que crê.
Mas que coisa significa esta frase? O que quer dizer, neste
contexto, justiça, tornar justo, justificar e justificação?
Nenhuma das modernas línguas ocidentais possui um
conceito que reproduza adequadamente o significado do
vocábulo bíblico e paulino. Mas este não é um motivo sufi­
ciente para rejeitar a antiga palavra "justiça". Com ela, bem
rapidamente perder-se-ia também a realidade que Paulo
busca afirmar. Mas qual realidade?
Quiçá surpreenda já o fato de que, em Rm 1.17, Paulo-g,
fala numa mesma frase da justiça de Deus e da justiça daque­
le que crê, mas não como duas coisas diferentes, e sim como
de uma coisa só: a justiça de Deus. Ele pode, por conseguin­
te, falar também da "justiça que vem de Deus, apoiada na
fé", e que "vem da fé" (cf. F1 3.9; Rm 9.10; 10.4,6; G1 3.16, e
M ensagem e T eologia 225

passim). Ela, e somente ela, constitui para o ser humano, se­


gundo Paulo, a salvação da morte e o acesso à vida diante
de Deus (Rm 1.17; F1 3.9s.), em radical e absoluto contraste
com a "justiça" que o ser humano religioso quer tirar das
obras da Lei, porque aquilo que o seu zelo consegue pro­
duzir é sempre somente a sua "própria" justiça (Rm 10.3),
jamais a justiça de Deus (cf. Rm 9.30-10.4; 3.21,31).
Este emprego dos termos "justiça" e "justo" referidos
a Deus, mas, ao mesmo tempo, também ao ser humano,
mostra que eles não podem ser entendidos no sentido
grego (e latino) de uma qualidade do sujeito. Esta inter­
pretação equivocada induziu em erro a teologia durante
m uito tempo porque a orientação consistia em se basear
no conceito da virtude cardinal grega e sobre o conceito
latino de iustitia.
O próprio L utero se espantava com a expressão mal
compreendida de "justiça de Deus", porque ele a compa­
rava à norma judicial da Lei divina que o ser humano pe­
cador não pode jamais satisfazer. Como pode uma justiça
deste gênero constituir o conteúdo do Evangelho? Somente
após longas e dolorosas reflexões cintilou em sua mente a
concepção nova e libertadora da justiça no sentido bíblico-
paulino.
Entendida como uma qualidade, como um atributo
ético de Deus, o juiz, e do ser humano, não tem sentido
algum. As qualidades não se transferem. Elas caracteri­
zam cada um na sua peculiaridade e podem somente se
tornar comuns entre os semelhantes, por exemplo, os jus­
tos em contraposição aos injustos. Paulo entende, porém,
uma coisa completamente diversa: ela torna comuns os que
são totalmente desiguais, Deus e o ser humano, Deus e os
seus inimigos (Rm 5.10) e até mesmo, segundo a expressão
levada ao paradoxo extremo, Deus e os ímpios (Rm 4.5; cf.
Rm 5.6).
226 Paulo , V ida e O bra

Deus transmite a sua justiça ao ser humano, que é pe­


cador e em si mesmo não é justo. Deus é justo e demonstra
a sua justiça ao tornar justo o fiel (Rm 3.26). A justiça pode,
portanto, ser atribuída a ambos, mas é e permanece a jus­
tiça de Deus. A nítida diferença entre eles consiste, porém,
no fato de que, para Deus, vale a forma ativa: declarar justo
e, por conseguinte, tornar justo (cf. Rm 3.26; 4.5; 8.30,33;
G1 3.8 e passim) enquanto, para o ser humano, vale a for­
ma passiva: ser declarado justo, ser feito justo (cf. Rm 2.13;
3.20,28 e passim).
A forma genitiva "justiça de Deus" não é, do ponto de
vista gramatical, um genitivus subjectivus (neste caso, Deus
seria relegado à inatingível distância da sua majestade, fe­
chada ao ser humano), e sim um genitivus auctoris. Isto s ig -*
nifica que é Deus que cria a justiça para o ser humano, que
estabelece na justiça aquele ser humano que sem tal pala­
vra e intervenção de Deus estaria perdido, mas que agora
pode viver diante dele.
Em todas estas expressões, Deus é e permanece juiz, e
a relação entre ele e o ser humano é compreendida como
uma relação jurídica.
Somente a sentença divina decide sobre o ser e o não-
ser, sobre a vida e a morte do ser humano. A palavra "jus­
tiça" não perdeu para Paulo o seu significado jurídico e por
isso ele pode presumir que também os gregos possam com­
preendê-la. Porém, aquilo que é novo e surpreendente em
sua mensagem é o fato de que Deus, o juiz, não está sujeito
a uma norma superior e imutável de justiça, segundo a qual
deve pronunciar o seu juízo, mas é ele mesmo aquele que
determina o que é ser justo e o que é justiça. Somente por
este motivo, pode o apóstolo dizer que a justiça de Deus se
manifestou "sem a lei" Rm 3.21).
Do ponto de vista humano, é esta uma afirmação im ­
possível de ser feita. Se, efetivamente, o ser humano, na
M ensagem e T eologia 227

sua presunção, se coloca acima da Lei e viola os seus li­


mites, o único resultado que obtém é a anarquia, devendo
bem rapidamente se dar conta de que, assim agindo, é-lhe
impossível subtrair-se à Lei e não faz senão sentir mais
fortemente o seu poder. Deus, porém, não é escravo da
sua Lei, e sim esta está a seu serviço. Ele não deve de­
monstrar a sua justiça, confrontando-se com a Lei, mas é
a Lei que proclama a justiça de Deus, uma justiça que a
sobrepuja (Rm 3.21b).
Na medida em que Deus nos mostra que, diante dele,
não somos justos, nos anuncia que somente Ele é justo, tor­
na justo e absolve gratuitamente. Não abandona o ser hu­
mano a si mesmo. Acolhe o ímpio. Deus, portanto, não se
fecha na sua justiça, mas inclui nela o pecador, tirando-o
da distância em que se encontra para trazê-lo próximo de
si. Esta justificação do pecador é concomitantemente uma
declaração e um ato de Deus. A sua palavra efetua aquilo
que afirma. Aqui não há lugar para uma ficção, para um
"como se".
As origens deste pensamento paulino não se encontram
no helenismo, e sim no Antigo Testamento e no judaísmo,
mesmo se as afirmações do apóstolo vão muito mais adian­
te. Justiça, ser justo, e as correspondentes formas verbais:
declarar justo, absolver, fazer justiça, etc., se encontram já
no Antigo Testamento como conceitos fundamentais da
aliança que Javé estabeleceu com o seu povo. Referidos a
Deus, indicam a fidelidade com a qual mantém a aliança e,
na sua graça e bondade, a realiza sempre de novo.
Por conseguinte, também a justiça do ser humano reli­
gioso do Antigo Testamento consiste em ter uma conduta
conforme com a aliança, ou seja, em obedecer ao chama­
mento e às indicações de Javé que mantém o seu povo nesta
relação de comunhão. O fato que o ser humano não consiga
observar tal vontade de Deus e que não exista "nenhum
228 Paulo, V ida e O bra

justo diante de Deus" (SI 143.2; Jó 4.17) encontrou nume­


rosas e comoventes expressões nos Salmos e nas preces do
Antigo Testamento e do judaísmo, como dão abundante­
mente testemunho também os textos recentemente desco­
bertos em Qumran. Por isso, o ser humano piedoso coloca
tanto mais a sua confiança na fidelidade e na misericórdia
de Deus.
Assim, é possível encontrar também no judaísmo ex­
pressões que soam bem "paulinicamente": "a tua justiça e a
tua bondade, ó Senhor, se revelam na tua misericórdia para
com aqueles que não possuem um tesouro de boas obras"
(4Esd 8.36). Ou, como na regra da seita de Qumran: "Se
eu tropeço por causa da maldade da minha carne, ainda
assim, a minha justificação em virtude da justiça de Deus
durará eternamente" (1QS XI).
Não obstante, a consonância entre estas palavras e as
de Paulo não deve fazer esquecer as profundas diferenças.
As afirmações judaicas não saem jamais do quadro da re­
lação única que existe entre Deus e o seu povo eleito e não
nunca colocam em questão a ideia que a Lei seja o caminho
da salvação. Seria impensável, neste contexto, o acréscimo
realizado por Paulo quando, à citação do salmo (SI 143.2),
aduz: "diante dele ninguém será justificado pelas obras da
lei" (Rm 3.20; G1 2.16). Por isso, para o judeu, a contraposi­
ção paulina entre obras e fé é uma insensatez.

2. A graça

Por meio de Cristo... somente pela fé! Com esta men­


sagem, Paulo não se lim itou a acrescentar algum motivo
novo ao conceito, ainda ligado à linha da tradição judaica e
veterotestamentária, segundo o qual somente Deus justifi­
ca e segundo o qual o ser humano religioso depende da sua
graça. O significado de solo Deo (somente por obra de Deus)
M ensagem e T eologia 229

e de sola gratia (somente pela graça) adquiriu um conteúdo


universal e radicalmente novo. A justiça de Deus para to­
dos os fiéis está fundada e se revela, sem a Lei, no sacrifício
expiatório de Cristo (Rm 3.21s.).
A ideia de sacrifício expiatório não foi criada por Paulo,
que a recebeu, pelo contrário, da prim itiva teologia judeu-
cristã, na qual a morte de Cristo era vista como demonstra­
ção da fidelidade de Deus à aliança e relacionada exclusi­
vamente ao restabelecimento da aliança sinaítica que Israel
havia rompido culposamente. Tal concepção transparece
ainda em Rm 3.25, mas é logo absorvida na interpretação
especificamente paulina para descrever a amplitude uni­
versal e o poder transformador da ação salvífica de Deus
no presente, da qual participam todos os que a recebem
mediante a fé em Jesus (Rm 3.26).
Neste quadro, o sacrifício não é visto como um ato
de autoafirmação de Deus e muito menos como um ato
de expiação oferecido pela humanidade pecadora. Paulo
não cogita no problema que será discutido mais tarde pela
teologia, isto é, quais condições Deus teve que observar na
sua obra salvífica para não prejudicar a si mesmo. A ideia
do sacrifício serve para descrever a graça de Deus, o qual,
em Cristo, deu a sua justiça a todos os seres humanos, com­
preendidos ali os fiéis para subtraí-los à ruína à qual, sem
Cristo, estariam destinados. Deste modo, ele fala, mesmo
sem usar o termo específico, da nova aliança que se con­
trapõe radicalmente à antiga aliança sinaítica, limitada a
Israel (cf. 2Cor 3.6s.; G14.24; Rm 11.27).
Paulo conclui com um grito de vitória o longo trecho de
Rm 3.21 s., no qual desenvolveu a sua mensagem da justifi­
cação: "Onde está, então, o motivo de glória? Fica excluído.
Em força de que lei? A das obras? De modo algum, mas em
força da lei da fé. Porquanto nós sustentamos que o ser hu­
mano é justificado pela fé, sem as obras da lei" (Rm 3.27s.).
230 Paulo , V ida e O bra

É um grito de vitória semelhante ao de IC or 15.55: "Morte,


onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?"
Não foram os seres humanos que obtiveram esta vitória,
mas Deus. Todos os seres humanos, porém, dela partici­
pam, porque Deus não é somente o Deus dos judeus, mas
também dos pagãos (Rm 3,29).
Todas as vezes que o apóstolo fala da graça de Deus
(Rm 3.24; 5.2,15; 2Cor 8.9; G1 1.6; 5.4 e passim) ou também
do amor de Deus (Rm 5.8; 8.35,39; 2Cor 5.14; G1 2.20), ele
não pensa somente num genérico sentimento de Deus, e
sim na ação de Deus que se concretizou na morte de Cristo.
Semelhante amor não encontra nada que seja digno dele:
encontra tão-somente seres fracos, incrédulos, pecadores e
hostis (Rm 5.6-8). O seu caráter paradoxal, pura insensatez
para o bom senso humano (Rm 5.7), demonstra a sua gran­
deza divina.
A este propósito, vale recordar a bela expressão do
filósofo do direito G. R a d b r u c h : "A graça é intimamente
aparentada com o milagre. Como este últim o infringe as
leis naturais, assim a graça infringe a legalidade, e ambas
têm em comum a ação que uma grande e imerecida feli­
cidade exerce sobre quem sabe compreendê-la". A graça
não ameaça a ordem estabelecida do direito, não suprirrte
a diferença entre bem, e mal, e não conduz à anarquia. Ela
é, ao invés, a base de uma nova ordem, ou seja, da nova
aliança.
Neste sentido, Paulo utiliza o termo reconciliação (Rm
5.10s.; 2Cor 5.18s.) para designar a "justificação". Tanto
uma como a outra são exclusivamente obra de Deus, rea­
lizada na entrega de Cristo. O apóstolo não afirma jamais
que Deus é reconciliado mediante o seu sacrifício. "Deus
reconciliava o mundo consigo" (2Cor 5.19). O seu apelo
soa significativo: "Reconciliai-vos com Deus!" (imperativo
do passivo!) (2Cor 5.20). Mas desta maneira se compreende
M ensagem e T eologia 231

também o valor universal do ato salvífico realizado por


Deus na morte de Cristo. Esta universalidade constitui
caracteristicamente o tema das epístolas pós-paulinas aos
Colossenses e aos Efésios (Cl 1.20s.; Ef 2.16). O ato salvador
de Deus faz surgir uma situação de salvação, uma "graça,
na qual estamos firmes" (Rm 5.1s.).

3. A fé .

Na teologia paulina, nem a fé constitui um tema iso­


lado. Dela não se fala como se fosse um sentimento reli­
gioso ou uma atitude piedosa. Significativamente, Paulo
nunca fornece uma definição de fé, do mesmo modo, ali­
ás, como o restante Novo Testamento (com a única exce­
ção de Hb 11.1). A fé tem a sua natureza a partir do objeto,
ao qual ela se dirige, ou seja, da graça divina. Ela não é
nunca objetivada, reduzida a tema de reflexão; indepen­
dentemente daquilo em que se crê. A fé é sempre um crer **
em... (G12.16; Rm 10.14; El 1.29 e passim) ou um crer que...
(lTs 4.14; Rm 6.8; muitas vezes em conexão com um geni- 1
tivus objectivus).
Neste sentido, a fé é o gesto pelo qual o ato salvífico de ^
Deus, anunciado pelo Evangelho, é recebido com obedien­
te confiança e com confiante obediência (Rm 1.5; 6.16; 2Cor
10.5 e passim). Como tal, ela é condição da salvação, mas
não no sentido que ela deva ser produzida preventivamen­
te em virtude de uma decisão humana, para, em seguida,
ter parte na salvação. Condição que não significa condição
prévia ou prestação preliminar.
Quem a entendesse erroneamente neste sentido, a
estaria reduzindo novamente a uma "obra", não diferen­
te das obras da Lei, que o judeu piedoso se esforçava por
cum prir a fim de que Deus, por causa disso, o reconhecesse
e o declarasse justo. Em tal caso, seria indiferente consi-
232 Paulo , V ida e O bra

derar a fé como estágio supremo da religiosidade e como


uma condição da alma (F ilo ) ou mesmo como uma espécie
de obra sub-rogante que compensasse a incapacidade do
ser humano diante de Deus, induzindo-o a ter em conta
os bons sentimentos em vez das ações insuficientes. Cairia,
assim, a drástica e rigorosa oposição entre fé e obras, sendo
relegada igualmente a justificação dos ímpios.
Desde os tempos do judaísmo, Abraão foi considera­
do como o protótipo por excelência do verdadeiro fiel, não
somente enquanto exemplo de vida moral, mas também
como o pai de Israel. Deus o escolheu dentre todos os po­
vos (Gn 12), e com ele selou a sua aliança, dando-lhe como
sinal a circuncisão, para si e para os seus descendentes (Gn
15; 17). Sobre ele, Israel se constrói como o escolhido povo
de Deus.
Esta tradição é continuada também no cristianismo p ri­
mitivo. Comprovam-no muitas passagens dos Evangelhos
e dos Apóstolos. Os cristãos das primeiras gerações se con­
sideravam também eles filhos de Abraão e herdeiros das
promessas a ele feitas por Deus. O Deus em quem crêem é
"o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó" (Mc 12,26 e par.).
Jesus, enquanto Messias, é chamado filho de Abraão (Mt
l.ls .; G1 3.16). Na conduta de Abraão fica evidente, tanío
para os judeus como para os cristãos, o que seja a fé.
Os textos clássicos do Antigo Testamento, sobre os
quais nos apoiamos, são Gn 12 (a obediência de Abraão à
chamada de Deus), Gn 22 (sua disponibilidade para sacrifi­
car o próprio filho, diante da exigência expressa por Deus)
e Gn 15 (sua incondicional confiança na promessa de uma
numerosa descendência). Esta fé, Deus lhe imputou como
justiça. Por isso, Hb 11 o cita, no mesmo sentido em que
falava o judaísmo, entre a "nuvem de testemunhas" na p ri­
meira vez em lembrança da sua obediência ao partir para o
desconhecido, somente confiado na palavra que Deus lhe
M ensagem e T eologia 233

havia dirigido (Hb 11.8) e, em seguida, em recordação do


sacrifício de Isaque (Hb 11.17s.).
A Epístola de Tiago menciona explicitamente este mes­
mo fato como prova que Abraão dá da sua fé (Tg 2.20s.) e
relaciona este texto a uma outra passagem clássica de Gn
15.6 para evidenciar que Deus justifica não somente a fé,
mas a fé e a obra.
Também Paulo remete a Abraão para explicar o que
seja a fé, mas renuncia aos capítulos 12 e 22 do livro do
Gênesis, limitando-se exclusivamente a Gn 15.6 ("Abraão
creu em Deus, e isto lhe foi levado em conta de justiça"; Rm
4.3; G1 3.6). Os longos trechos sobre a fé de Abraão e sobre
a bênção de Deus que o fez "pai de muitos povos" (Rm 4;
G13) são, do ponto de vista da forma literária, uma espécie
de midrásh, ou seja, uma explicação bíblica no estilo judaico
para expor um ponto doutrinário.
Do ponto de vista do conteúdo, ao invés, distinguem-
se radicalmente do pensamento judaico tradicional e, mes­
mo apresentando-se à primeira vista como curiosas e dou­
tas reflexões bíblicas, constituem, na verdade, uma luta de
vida ou morte em torno dos fundamentos e dos princípios
da fé judaica e cristã como tal. O pensamento judaico e
também a Epístola de Tiago consideram que a justificação
concedida por Deus a Abraão foi a merecida recompensa
pela excelsa demonstração de religiosidade.
Paulo, porém, não a considera uma "recompensa de­
vida", e sim uma "recompensa da graça" (Rm 4.4s.). A con­
clusão que ele extrai da história de Abraão soa nitidamente
como blasfema, e não somente para ouvidos judeus: Deus
"declara justo o ím pio" (Rm 4.5). A expressão, que é muito
forte, não deve ser abrandada. Naturalmente, não é o caso
de recordar que aqui não se trata de imperfeições morais de
Abraão, como se Paulo intencionasse criticá-lo ou dim inuí-
lo diante da veneração dos judeus. Mesmo assim, Abraão
234 Paulo , V ida e O bra

figura neste texto como o protótipo do ser humano, de to­


dos os seres humanos, que, por natureza, não têm acesso a
Deus, mas são pecadores e inimigos de Deus (cf. Rm 5.6s.).
Este é o ser humano que Deus amou e declarou justo por
causa da sua fé.
Com isso, o antigo conceito judaico da aliança, simbo­
lizado pela circuncisão, que é o seu sinal, recebe, também
ele, um golpe mortal. Paulo argumenta no estilo dos dou­
tores da Lei, mas está muito longe do pensamento judaico
quando observa que Gn 17 (o dom do sinal da circuncisão)
vem depois de Gn 15 (a justificação de Abraão por causa da
sua fé e não por causa das obras), deduzindo daí que aque­
le sinal da aliança devia simplesmente selar e confirmar a
posteriori a justiça pela fé que fora declarada e atribuída a
Abraão quando era ainda pagão (Rm 4.11).
Deste modo, Abraão se tornou o "pai de muitos po­
vos", ou seja, também dos pagãos. Em outros termos, isto
significa que a salvação não está vinculada às promessas
feitas somente ao Israel terrestre, e nem deve ser buscada
no âmbito da Lei, mas deve ser buscada lá onde vigoram
somente a graça de Deus e a fé (Rm 4.16; cf. G13.6-18). Neste
sentido, trata-se de "seguir a trilha" de Abraão e considerá-
lo um homem de frente (Rm 4.12), andando num caminho
diametralmente diferente dos judeus, que andam atrás de
um fantasma.
Em oposição às obras da Lei, esta fé tem o seu sólido
fundamento na promessa de Deus, e não é somente uma
confiança genérica em Deus. De acordo com critérios hu­
manos, a fé se encontra, como o Criador, diante do nada,
mas se agarra às palavras daquele que "faz viver os mortos
e chama à existência as coisas que não existem" (Rm 4.17).
Portanto, é uma fé que espera, lá onde, aos olhos humanos,
não existe nada a esperar ("esperando contra toda esperan­
ça": Rm 4.18), como Abraão que não havia ainda visto nada
M ensagem e T eologia 235

daquele "grande número de povos", dos quais se devia tor­


nar o pai. A promessa de Deus era a sua única garantia.
Isto não significa que a fé seja cega diante da realidade
e busque refúgio nas ilusões: "E foi sem vacilar na fé que
considerou seu corpo já morto - ele tinha cerca de 100 anos
- e o seio de Sara também morto. Ante a promessa de Deus,
ele não se deixou abalar pela desconfiança, mas se forta­
leceu na fé, dando glória a Deus, convencido de que ele
podia cumprir o que prometeu" (Rm 4.19s.). Esta fé foi-lhe
levada em conta de justiça por Deus, isto é, a fé através da
qual Abraão esperou o futuro cumprimento da promessa,
a fé através da qual os fiéis de hoje se fundamentam sobre
o cumprimento ocorrido na morte e ressurreição de Cristo
(Rm 4.23s.).
Passo a passo, Paulo combate, assim, em Rm 4, a sua
batalha contra o judaísmo em torno de Abraão, a propósito
do verdadeiro significado do povo de Deus, da "história
da salvação", da salvação eterna, e daquilo que os judeus
reivindicam para si como elemento de diferenciação em
relação aos pagãos. Tudo isso, o apóstolo anuncia a todos
os fiéis, sejam judeus ou pagãos de origem.
O conceito de fé de Paulo e do cristianismo prim itivo
tem muitos traços comuns com o judaico e veterotestamen-
tário. Já no Antigo Testamento, a fé consiste em confiar na­
quilo que é válido, sólido, confiante, ou seja, a aliança, a
Lei, as promessas de Deus. Nisto, o verbo hebraico hâmin
(que tem a mesma raiz da qual deriva o "amém" que en­
trou na nossa linguagem religiosa) se aproxima do grupo
de palavras gregas, formado de pístis, ou seja, fidelidade
(entre ser humano e ser humano), pistéuein isto é, ter e de­
monstrar confiança, e pistós, vale dizer, fiel, digno de fé e
algo em que se pode confiar.
Este grupo de palavras, se bem que, no início, não tives­
se nenhum significado religioso, se ofereceu ao judaísmo
236 Paulo , V ida e O bra

helenista e ao cristianismo, os quais, por primeiro, deles


fizeram conceitos religiosos basilares para expressar a "fé".
Esta implica paciente expectativa e esperança imperturbá­
vel, não possuindo nada em comum com as vagas suposi­
ções e expectativas que o ser humano se "constrói", ou com
as idéias ou as convicções gerais que a palavra "fé" indica,
após ter sido degradada na nossa linguagem comum.
Contudo, por mais elementos que a fé cristã tenha
haurido do Antigo Testamento, ela não se esgota neles. Ela
indica, antes de tudo, a aceitação da mensagem de Cristo.
O ato salvífico de Deus em Cristo é ele mesmo o conteúdo
da fé. Sem dúvida, também a fé judaica e veterotestamen-
tária se fundamentam sobre os atos que Deus realizou a
favor de Israel (por exemplo, a libertação do Egito, as ações
maravilhosas realizadas por Javé no deserto, a derrota dos
inimigos de Israel, a entrada na terra prometida). Mas estes
fatos não constituem o conteúdo da fé, e sim, acontecimen­
tos da história nacional e mundial que podem ser mostra­
dos e narrados.
As coisas se apresentam diferentemente em Paulo
e no cristianismo prim itivo: aqui, o evento salvífico da
morte, ressurreição e elevação de Cristo, anunciado pelo
Evangelho, requer ser, ele mesmo, aceito e assimilado pela
fé. Por isso, "a fé vem pela pregação, e a pregação é pela
palavra de Cristo" (Rm 10.17). Nesta imediata correlação
de palavra e fé, a justiça de Deus se torna justiça da fé. A fé,
enquanto aceitação, se identifica, então, com a obediência,
e vice-versa: a incredulidade e a desobediência aparecem
muitas vezes em Paulo como sinônimos (Rm 1.8 e 16.19;
lTs 1.8 e Rm 15.18; Rm 10.3 e 10.16; 2Cor 10s.; Rm 10.21;
11.30s.; 15.31 epassim).
Decisivo é o fato de que, entre Deus e o fiel, não exis­
tem elementos intermediários com função mediadora e
condicionante. A Lei não se ergue mais entre Deus e o
M ensagem e T eologia 237

ser humano, e assim lhe é também poupado e proibido


o erro de interpor entre Deus e si mesmo a vã figura das
próprias obras ou da própria sabedoria. Se a graça é in-
condicionada (Rm 3.24; G1 2.21), a fé também o é. Longe
de m otivar algum esforço preventivo, a fé é renúncia à
pretensão de fazer por si, e não é jamais um elemento
de "autoglorificação", ou seja, de afirmação de si mesmo
diante de Deus.
Por isso, entregar-se a Deus na fé implica inevitavel­
mente a renúncia a si mesmo, a renúncia àquela autocom-
preensão presunçosa e desesperada que o ser humano na­
tural carrega no sangue, e a aceitação de uma compreensão
diferente, tornada possível pela graça divina (Rm 5.3; 14.14;
IC or 15.10; G1 2.20; F1 1.19). A fé é, por conseguinte, o fim
da velha existência e o início de uma nova, na qual o fiel
deve "estar firm e" e dar boa prova de si (ICor 16.13; G15.1;
F11.27; 4.1; lTs 3.8) em marcha na direção de uma meta que
ainda não foi atingida: "Não que eu já o tenha alcançado
ou que já seja perfeito, mas vou prosseguindo para ver se o
alcanço, pois que também já fui alcançado por Cristo Jesus"
(F1 3.12).
Uma fé semelhante diz respeito à existência inteira e
concreta de cada um, com todas as suas situações e possi­
bilidades individuais. Neste sentido, pode haver um cres­
cimento na fé (2Cor 10.15), mas também um arrefecimento
ou uma paralisia (Rm 14.1; lTs 3.10) e uma "medida" da fé
que é diferente para cada um (Rm 12.3).

4. Evento salvífico e história da salvação

Não foi por acaso que falamos até agora do evento sal­
vífico como se ele dissesse respeito somente à pessoa de
cada um singular mente. Falando da fé, na verdade, é ne­
cessário fazer referência a cada um, à sua perdição e à sua
238 Paulo , V ida e O bra

salvação. A fé não é nunca um fato coletivo, mas individual,


e precisamente da "consciência" de cada um quer Paulo
ser aceito, e, com ele, a verdade da sua mensagem (2Cor
4.2; 5.11).
Tudo isso não tem nada a ver com o subjetivismo, o
individualismo e o existencialismo no sentido moderno, e
não limita, de forma alguma, o horizonte universal e histó­
rico da mensagem paulina da justificação. Pelo contrário, a'
"individualização" da fé permite e fundamenta a universi­
dade da salvação.
A interpretação supostamente individualizante da
mensagem salvífica do apóstolo, inaugurada especialmen­
te pelos reformadores, foi vigorosamente atacada nos estu­
dos paulinos mais recentes. Tais críticas não contestam o
núcleo central da doutrina da justiça de Deus, e sim o fato
de que esteja sendo esquecida a dimensão universal e o ho­
rizonte futuro da justiça de Deus, anunciados por Paulo,
limitando a justiça de Deus a cada indivíduo singular, des­
conhecendo a perspectiva apocalíptica.
Segundo os críticos, tal redução se manifestaria espe­
cialmente no entender a justiça de Deus principalmente,
senão exclusivamente, como um dom feito ao ser humano,
enquanto, na verdade, Paulo concebería a justiça de Deüs
como "o senhorio de Deus sobre o mundo, que se mani­
festa escatologicamente em Cristo"; "a justiça mediante a
qual Deus se impõe no mundo, que se afastou dele, mas
que, enquanto criação, lhe pertence inquebrantavelmente"
(E rnst K àsemann ).
Portanto, a justiça de Deus deveria ser entendida, an­
tes de tudo, como potência, que pode ser vista como dom,
enquanto tenha sido comunicada a todo o universo, abran­
gendo em sua esfera salvífica todos os seres humanos -
também os pagãos, e não somente o povo eleito da aliança,
Israel. Paulo teria em mira, segundo esta interpretação, não
M ensagem e T eologia 239

o indivíduo singular, mas uma nova humanidade e uma


nova criação, e por este motivo teria permanecido um apo­
calíptico também e precisamente na sua doutrina da justi­
ficação.
Contudo, com estas teses, o centro de gravidade do
conjunto ficou particularmente deslocado. Elas deixam, de
fato, de modo singular, na sombra aquela correlação entre
justiça de Deus e fé, que tem, para Paulo, um valor extraor­
dinário e que ele acentuou de modo especial. Mas precisa­
mente tal correlação não possui paralelos nos textos vete-
rotestamentários e apocalípticos e constitui uma autêntica
criação de Paulo.
Não obstante a sua indiscutível dependência da tradi­
ção judaica, a respeito deste ponto ele se encontra em drás­
tico contraste com o pensamento da literatura apocalíptica.
Na verdade, esta última está orientada acima de tudo e es­
sencialmente na direção do cosmos e leva em consideração,
em primeiro lugar, o curso dos acontecimentos universais,
nos quais a pessoa singular é somente um mínimo elo na
cadeia de perdição ou de salvação. Contudo, Paulo liberta
justamente o ser humano desta visão das coisas, dirigindo-
se a ele como a um pecador responsável e como a uma cria­
tura agraciada por Deus. Assim fazendo, ele liberta tam­
bém a fé e a teologia do terrível descaminho do problema
da teodicéia, contra o qual deveria naufragar a apocalípti­
ca judaica - como se observa especialmente no apocalipse
do 4 Esdras - e diante do qual a fé está constantemente
ameaçada.
Não basta deixar-se enganar pelo fato de que o termo
"teodicéia", tomado literalmente, não significa outra coi­
sa do que aquilo que Paulo expressa, falando de "justiça
de Deus". Mas o ponto de partida e o conteúdo do proble­
ma e da reflexão sobre ele são, nos dois casos, totalmente
diferentes. Efetivamente, a teodicéia pretende encontrar a
240 Paulo, V ida e O bra

justiça de Deus, sondando os acontecimentos cósmicos e


a história individual e procura assegurar-se um lugar que
não pode nunca tocar ao ser humano. Ao invés, a mensa­
gem paulina da justificação, como, de resto, a sua doutrina
da Lei, mantém o ser humano na sua realidade e afirma
que nela precisamente Deus o encontrou e salvou.
Já observamos, falando da doutrina paulina da Lei,
que ela se contrapõe a qualquer reflexão de tipo filosófico
a respeito de Deus e do mundo. O mesmo vale para a sua
maneira de entender a salvação e especialmente para a sua
doutrina da justificação. Esta, por assim dizer, obriga o ser
humano a estar no cone luminoso da justiça de Deus re­
velada pela fé no Evangelho, e lhe impede ultrapassar os
limites de tão salutar encontro com Deus.
Isto não significa que Paulo tenha "privatizado" a re­
lação de Deus com o ser humano e do ser humano com
Deus, como que ofuscando as dimensões do mundo e da
história. Na sua doutrina da justificação, Paulo não aban­
donou absolutamente a grande temática da história de Deus
com o seu povo, que transcende o indivíduo singular e que,
desde sempre, esteve na base da fé judaica e veterotesta-
mentária.
Mas qual é a concepção paulina de "história da salva­
ção?" O capítulo sobre Abraão (Rm 4), do qual já falamos,
nos dá a resposta. Como as numerosas referências do após­
tolo à Sagrada Escritura são tudo menos citações extraídas
de uma coleção de sentenças e de oráculos, assim também
a fé de Abraão é bem diferente de um mero exemplo histó­
rico de conduta religiosa. Na Epístola aos Romanos, Paulo'"')
chama Abraão "nosso progenitor" (Rm 4.1) e falando aos /
coríntios (cristãos de origem pagã!) do povo de Israel que,j
por ordem de Deus, deixou o Egito adentrando-se no de-l
serto, o chama "os nossos pais" (IC or 10.1). Em ambos os:
casos, os fiéis são inseridos no processo histórico de Israel.;
M ensagem e T eologia 241

Sem dúvida, esta "história da salvação" é história num


sentido m uito paradoxal. O conceito normal da história, e
também a ideia que dela fazia o povo judeu são determi­
nados por uma continuidade terrena e natural entre pais e
filhos, numa demonstrável sucessão de gerações. A histó­
ria entendida desta maneira fixa os confins e as diferenças
entre os seres humanos e os povos e é o motivo por que até
o dia de hoje o judeu se considera imperdivelmente dife­
rente do não judeu.
Pelo contrário, na história, tal como Paulo a conce­
be, a única continuidade existente é o próprio Deus, a sua
promessa e a fé que confia na sua palavra. Qualquer outra
continuidade é aqui rompida, porque este Deus não é o fia-
dor de uma história terrena, e sim Aquele que "faz viver
os mortos e chama à existência as coisas que não existem"
(Rm 4.17). Paulo, porém, se refere à história, à história real.
Deveras, entre Abraão e o fiel de hoje se estende um sólido
arco, cujo primeiro pilar é a graça ocorrida a Abraão, e o
últim o é, ainda uma vez, somente a graça de Deus da qual
todos participarão pela fé.
O problema da história e da história da salvação se
coloca para Paulo de modo particularmente urgente por cau­
sa da relação de Israel com os pagãos. O apóstolo fala disso
na sua longa exposição sobre a eleição de Israel, seu endure­
cimento e a sua salvação (Rm 9-11). Houve quem pensasse
que estes capítulos constituíram a chave para compreender
toda a epístola e a doutrina paulina da justiça de Deus. Mas
não por acaso estes capítulos se encontram não no início da
epístola, e sim após o anúncio da justificação que é feito nos
capítulos 1 a 8, mediante a antítese entre Lei e Cristo, entre
obras e fé, e sem referências ao destino particular de Israel
ou a um acontecimento cósmico ainda por vir.
É verdade que a temática subsequente está preanun-
ciada já em Rm 3.1, na pergunta sobre a "vantagem" parti-
242 P aulo, V ida e O bra

cular de Israel sobre o plano da história da salvação: "Que


vantagem há então em ser judeu? E qual a utilidade da cir­
cuncisão?", do mesmo modo como na locução muitas vezes
repetida: "(...) em primeiro lugar do judeu, mas também do
grego" (Rm 1.16 e passim). Mas os problemas assim anteci­
pados têm uma exposição completa e coerente somente a
seguir, nos capítulos 9 a 11.
O desenvolvimento do raciocínio do apóstolo e as sua
declarações mostram como ele procura aplicar ao caso
especial de Israel os pensamentos fundamentais expos­
tos nos capítulos precedentes. A seção de Rm 9-11 tem,
portanto, a função de explicitar o que foi dito antes e de
tirar daí as consequências para o presente e o futuro do
povo eleito. Não é o caso de ocultar as discordâncias e
as aporias daqueles capítulos. Elas decorrem do fato de
Paulo, de um lado, falar do Israel histórico-empírico como
do povo eleito de Deus, reconhecendo as promessas que
lhe foram historicamente dirigidas (Rm 9.4s.; 11.28s.; cf. já
3.1), enquanto, por outro lado, derruba a tradicional con­
cepção judaica do povo de Deus. De fato, a essência do
verdadeiro povo de Deus não consiste numa continuida­
de terrena e natural, e sim, somente na livre graça de Deus
(cf. já Rm 2.28s.).
Qual é a consequência que decorre daí para o Israel
histórico? A resposta não pode ser senão paradoxal: desde
o início e em cada momento, a particularidade e o destino
do Israel histórico-empírico consistiu em viver não na base
do desenvolvimento terreno, demonstrável e, se poderia
dizer, exigível, da história, e sim, na base da livre palavra
de Deus e não submetida ao ser humano. Em outras pala­
vras, a viver da livre e soberana potência da eleição.
Mas, conforme é explicado em Rm 9.7s, a propósito de
Isaque, esta eleição, que constitui o fundamento da história
de Israel, não ocorre uma vez por todas no início para se
M ensagem e T eologia 243

transformar a seguir, de qualquer modo, numa lei da his­


tória terrena, mas ela permanece também sendo depois a lei
fundamental e vital de Israel (a livre eleição de Jacó, em vez
de Esaú, em Rm 9.lis , mostra como isso ocorre num tempo
sucessivo).
O pensamento condutor dos capítulos 9 a 11 da Epístola
aos Romanos é a frase segundo a qual a palavra de Deus
dirigida a Israel não "falhou" (Rm 9.6). Trata-se justamente
da palavra da graça, livre e misericordiosa, cujo reverso é
o endurecimento e a rejeição (Faraó: Rm 9). Segue daí que
tudo depende da misericórdia de Deus, e não do ser huma­
no que "quer" ou que "corre" (Rm 9.16).
A noção de predestinação, expressa aqui em toda a sua
rudeza, não pode ser entendida erroneamente em sentido
determinista, caso se queira ser fiel a Paulo, como se o ser
humano fosse uma marionete, cujos fios são puxados por
um destino cego. Pelo contrário, aquela noção explica exa­
tamente o que é a graça e remete o ser humano ao posto
que lhe cãbe e no qual qualquer veleidade de reivindicar
direitos diante de Deus se torna pura presunção.
Além disso, a noção de predestinação não recua no
tempo para indagar qual eternidade precede o tempo e na
qual foram lançados os dados do destino humano, mas se
atém rigorosamente à palavra da graça pronunciada por
Deus (Rm 9.22). A noção de predestinação se refere à pas­
sagem de Rm 10.8s., na qual se diz que a palavra "está ao
teu alcance", de tal maneira que é possível crer e confiar
nela para obter justiça e ser salvo. Deus não descuidou de
nada. Enviou os mensageiros da salvação. Estes a anuncia­
ram, e o anúncio foi ouvido. Mas, não obstante as inces­
santes e insistentes preocupações de Deus pelo seu povo,
Israel não creu e se tornou desobediente e recalcitrante na
sua rebelião contra Deus que, dia após dia, estendia a sua
mão em sua direção (Rm 10.14-21).
244 Paulo, V ida e O bra

Desperdiçou, portanto, Israel a eleição para sempre?


Paulo responde negativamente esta pergunta, com todo v i­
gor (Rm 11.29). Mas, justamente este Israel, por causa da
sua cegueira e seu fracasso diante do evangelho, tem, para
Paulo, o significado de um exemplo da perdição de todos
os seres humanos e da sua absoluta dependência da mise­
ricórdia de Deus.
Apesar do seu endurecimento presente, Israel é para
sempre portador da promessa e receberá, também ele, a
promessa, ainda que por um caminho insólito e surpreen­
dente. Israel recusou o Evangelho e foi rejeitado. Por isso,
a salvação foi levada em primeiro lugar aos pagãos, inver­
tendo a ordem tantas vezes sublinhada por Paulo: "(...)
em primeiro lugar do judeu, mas também do grego", para
espicaçar Israel e "enciumá-lo" (Rm 10.19; 11.11) e, assim,
reconduzi-lo às suas origens e à redenção definitiva.
O desenvolvimento da atividade missionária de Paulo
corresponde a este esquema. Ele espera e promete tal fim
evidentemente ainda para o breve período que falta até a
parusía já próxima (Rm 11.29s.), até à iminente "vida que
vem dos mortos" (Rm 11.15). Também neste caso, as suas
reflexões sobre a história levam nitidamente a marca da
sua expectativa em torno da volta de Cristo para breve.
O fundamental, porém, é que o fio condutor da sua concep­
ção da "história da salvação" é o mesmo que determina e
domina a sua doutrina da justificação.

^ 5. Viver na fé

Pode parecer estranho que Paulo não fale quase nun­


ca do perdão dos pecados, se bem que este constitua um
ponto central no ensinamento de Jesus e da crença da co­
munidade p rim itiva , e ainda que pareça extremamente
semelhante ao que Paulo mesmo denomina justificação
M ensagem e T eologia 245

ou reconciliação. Somente de maneira esporádica trans­


creve a justificação em termos de perdão, utilizando-se
da citação de um salmo (Rm 4.7s.), e traduz a reconci­
liação como um não debitar em conta as transgressões
(2Cor 5.19). Isto se explica pelo fato que a justificação
não se refere somente ao cancelamento dos pecados pas­
sados, mas à libertação do pecado entendido como po­
tência escravizante.
Contudo, a justificação, mesmo sendo o fundamento
da situação de salvos, na qual se encontram os fiéis, não ex­
pressa a plenitude da salvação, da "graça, na qual estamos
firmes" (Rm 5,1). Para indicar a salvação atual em Cristo,
o apóstolo se serve, portanto, muitas vezes, de outras cate­
gorias, que não podem ser deduzidas diretamente da sua
doutrina da justificação. Não se trata de expressões ju ríd i­
cas em sentido próprio, mas de afirmações sobre o "ser"
dos fiéis.
Pertencem a este grupo as afirmações sacramentais,
como em Rm 6 e G1 3.26s. Assim, também, o discurso
sobre o "vestir-se de Cristo" (G1 3.27; Rm 13.14), sobre o
"corpo de Cristo" e os seus membros (IC or 12.12s.; Rm
12.4s.), sobre o "ser" em Cristo. Estas fórmulas são tão fre­
quentes e possuem uma tal importância, que muitos pre­
tenderam ver nelas o centro da mensagem e da teologia
paulina. Mas não é possível contrapô-las à mensagem da
justificação, nem separá-las ou colocá-las acima daquela
mensagem.
Qualquer que seja a força expressiva de tais expres­
sões e concepções místico-ontológicas, Paulo não as dei­
xa nunca sem a correção da sua doutrina da justificação.
Esta lhe serve para evitar que na concepção da salvação
se insinue qualquer elemento de naturalismo ou de auto-
matismo, seja ele derivante do esquema apocalíptico dos
eones, das especulações judaicas a respeito de Abraão, do
246 Paulo, V ida e O bra

sacramentalismo e do espiritualismo entusiasta dos cris­


tãos de origem pagã ou ainda de uma fé irremovível na
eleição de Israel.
Viver na fé significa, para Paulo, viver em paz com
Deus que nos reconciliou consigo (Rm 5.1s.; 2Cor 5.17s.).
Isto não significa que o fiel não deva mais enfrentar afli­
ções. Pelo contrário, enquanto fiel, será particularmente
exposto a elas. Mas poderá também "se gloriar" delas (Rm
5.3). Na verdade, elas não contradizem a esperança da fé,
mas correspondem a ela e unem estreitamente o fiel à gló­
ria definitiva da futura libertação dos filhos de Deus (Rm
8.18s.). Uma vez que Cristo intervém em nosso favor, não
existe mais uma acusação contra nós, nem um muro de
inimizade entre Deus e os fiéis. Estes enfrentam o mundo
e as potências hostis como bem-amados de Deus, e, por­
tanto, como vencedores (Rm 8.31-39). Isto significa que os
fiéis não sofrem mais o impacto do mundo de maneira
direta, e sim, mediante o amor de Deus que está em Cristo
(Rm 8.37s.).
O significado de tal situação se manifesta precisamen­
te na oposição com a presumida imediatez da experiência
de vida que notoriamente a incredulidade pretende pos­
suir. Esta afirma se ater sem ilusões à realidade do mundo
e da vida, coloca a palavra do amor de Deus na luz (mas
seria mais correto dizer na sombra) de tais experiências, e
descobre que estas contradizem o "am or" de Deus. A fé, ao
invés, tem o seu primeiro fundamento na palavra do amor
de Deus em Cristo, que lhe é anunciado, e daqui percebe,
em seguida, a vida e o mundo no sentido de Rm 8.28: "Nós
sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles
que o amam, daqueles que são chamados segundo o seu
desígnio".
Os fiéis justificados e batizados na morte de Cristo
estão mortos para o pecado (Rm 6.2). Não no sentido que o
M ensagem e T eologia 247

pecado não exista mais para eles. De fato, a potência que


foi destronizada por Deus busca ainda sempre tomar posse
dos fiéis e reduzi-los a seu serviço. Justamente por isso, o
indicativo, que anuncia a libertação da potência do pecado,
é seguido do imperativo que ordena a resistência à sua au­
toridade usurpada (Rm 6.12s. e passim).
Mas os fiéis já não entram mais no conflito com o pe­
cado como alguém que foi derrotado e reduzido à escra­
vidão, e sim como pessoas libertadas por Deus e unida a
ele através desta liberdade (Rm 6.12-23). Por isso, eles são
chamados a permanecer livres porque para isso foram liber­
tados (G15.1,13).
Viver na fé é, ao mesmo tempo, liberdade diante da Lei
(Rm 7.1s.; G1 3.1s. e passim). Mas, embora devendo defen­
der energicamente esta liberdade contra qualquer abuso,
Paulo não cede nunca à ideia de reconduzir os fiéis debaixo
da Lei. Na verdade, isto significaria pretender reconstruir o
muro da prisão, que detém o ser humano, numa ponte para
conduzi-lo a Deus, enquanto com aquelas pedras não se
pode construir outra coisa senão o problemático pedestal
da própria presunção.
De acordo com G15.16, a fé é operante por meio do amor.
Esta expressão designa o significado abrangente da fé, a
sua globalidade que abarca a existência inteira, da qual já
falamos. Todavia, importa eliminar o mal-entendido, difu­
so, sobretudo, na teologia católica, mas também bastante
largamente na evangélica, segundo o qual somente a fé
chegada à perfeição pelo amor conduziría à justificação.
Esta ideia deforma gravemente a relação entre fé, amor e
justificação.
Quando Paulo fala da justificação, não menciona nun­
ca a fé e o amor, mas somente a fé a acolher. O amor não é,
portanto, uma condição suplementar para poder receber
a salvação e nem propriamente um traço essencial da fé.
248 P aulo, V ida e O bra

O inverso é antes verdadeiro: a fé é um elemento vital


do amor através do qual age. O amor e os outros "frutos
do Espírito" (G1 5.22s.) não devem, por conseguinte, ser
entendidos como condições da justificação, porque, para
Paulo, a justificação é ela mesma condição e raiz daqueles
"frutos".
L utero, no seu comentário de 1535 sobre G1 5.6, disse
com muita exatidão que "as obras são realizadas pela fé
por meio do amor, mas o ser humano não é justificado pelo
amor". Não se pode, por isso, harmonizar muito açodada­
mente Paulo com Tiago, o qual coloca a fé e as obras como
condição da justificação (Tg 2.14s.). Na verdade, por mais
legítima que seja a polêmica de Tiago contra a fé "m orta",
ele perdeu o conceito paulino central, isto é, que o fiel é
libertado e chamado à nova vida pela graça de Deus em
Cristo.
Finalmente, para Paulo, a nova vida na fé inclui, ou-
trossim, a liberdade da morte, ainda que os fiéis sejam entre­
gues diariamente à morte (Rm 8.36; cf. 2Cor 4.10). Mas a
sua potência escravizante está rompida (ICor 15.55s.).
Falamos de todas estas coisas com referência à fé, mas
a fé mesma vive somente daquilo que Deus realizou em
Cristo e daquilo que é atual no senhorio de Cristo. Somente
por sua causa a fé é o que é.
O conteúdo de uma vida vivida pela potência da justi­
ça de Deus é expresso por Paulo muitas vezes na tríade fé,
esperança, amor (ICor 13.13; lTs 1.3; 5.8; G15.5s.; Rm 5.1-5;
cf., também, Cl 1.4s: lP d 1.21s.;Hb 10.22-24). Ela caracteriza
uma vida na qual "tudo se tornou novo". Esta fórmula, que
Paulo provavelmente tomou de outrem, se caracteriza pela
sua tríplice dimensão temporal: o passado do qual nós pro­
vimos não é mais constituído pela nossa culpa. Sobre ele se
fundamenta a fé. O presente já não é mais dado pela prisão
sob a Lei que se encadeia àquele passado, e nos anuncia o
M ensagem e T eologia 249

iminente juízo da ira de Deus, e sim pela certeza de que


Deus está por nós, e que Cristo, à direita de Deus, interce­
de por nós. Mas, em relação ao futuro, o apóstolo diz "(...)
nem a altura, nem a profundeza, nem qualquer outra cria­
tura poderá nos separar do amor de Deus manifestado em
Cristo Jesus, Senhor nosso" (Rm 8.38s.).

6. Em Cristo

Entre as frases construídas com o verbo ser para de­


signar a nova vida dos fiéis, e às quais acenamos no tó p i­
co precedente, se encontra, acima de todas, a expressão
"em Cristo", que Paulo usa com muita frequência. O fato
de encontrá-la em contextos muitos diferentes indica que
o seu significado é variável. Muitas vezes, quer simples­
mente dizer o que nós expressamos com o termo "cris­
tão", "enquanto cristão", e semelhantes, para os quais
Paulo e o cristianismo p rim itivo não possuíam ainda um
vocábulo especifico - afortunadamente! estaríamos ten­
tados a dizer.
Nesse sentido, designa o modo de falar, de pensar, de
agir, de sofrer e também de se conduzir em relação ao pró­
ximo, que corresponde ao fato de ser cristão. Não raramen­
te, indica simplesmente a pertença à Igreja. Nestes casos,
não é obviamente correto forçar o texto para dele extrair
algum significado teológico profundo ou até mesmo "mís­
tico".
Muitas vezes, porém, a expressão sintetiza aquilo
que, por meio de Cristo, ocorreu aos fiéis e sobre o que se
funda a salvação. Em Cristo e por meio de Cristo, Deus
manifestou o seu amor (Rm 8.39). Nele e por meio dele,
os fiéis são chamados, justificados, reconciliados, liberta­
dos, santificados (F13.14; IC or 1.2; 6.11; 2Cor 5.21; G12.4).
Nele, ou seja, fundando-se sobre o evento salvífico, Paulo
250 Paulo , V ida e O bra

se gloria da própria obra missionária (Rm 15.17; IC or


15.31) e sabe que a fadiga dos fiéis não é em vão (IC or
15.58).
Deste modo, a locução "em Cristo" pode expressar
plenamente a realidade nova, basilar e global, na qual
estão colocados os fiéis, após terem sido subtraídos à es­
fera da influência da corrupção. Precisamente neste sen­
tido, devem ser entendidas as frases nas quais se fala de
"revestir-se de Cristo" (G1 3.27s.) ou de se terem torna­
do membros do seu corpo mediante o batismo (Rm 12.5;
IC or 12.13,27).
Mas vice-versa, Paulo pode falar também do fato que
Cristo ou o seu Espírito "habita" nos fiéis (Rm 8.9s.) e chega
a dizer: "Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em
m im " (G1 2.20a). Isto não ocorre através de um rapto ou
êxtase nas esferas celestiais, mas se verifica na existência
terrena do fiel: "M inha vida presente na carne, eu a vivo
pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si
mesmo por m im " (G12.20b).
Estas e outras locuções similares têm bem pouco em
comum com a mística, a despeito da semelhança na lin ­
guagem. Pois, à essência da mística pertence o confundir-
se dos confins entre Deus e o ser humano, do fundir-se
de um outro. Contudo, em Paulo, permanece nítida e cla­
ra a diferença qualitativa entre ambos: Cristo é sempre
o Senhor, o fiel lhe pertence (Rm 8.7; 14.7s e passim), en­
quanto a união libertadora com ele ocorre no ser a seu
serviço (Rm 6.15s.).
A relação entre as expressões ditas "místicas" e aquelas
"jurídicas" da doutrina da justificação se manifesta de ma­
neira particularmente eloquente no capítulo 8 da Epístola
aos Romanos, que constitui a grande antítese ao discurso
precedente (sobre o ser humano carnal submetido ao peca­
do, à Lei e à morte). Observe-se como neste texto a "le i" do
M ensagem e T eologia 251

Espírito libertador e vivificante vem contraposta à lei escra-


vizante da morte, e como a "condenação" (que é a palavra-
chave na direção da qual converge tudo quanto precede)
é declarada inexistente para aqueles que estão "em Cristo
Jesus" (o moteto de J. S. B a c h , Jesu meine Freude — ó Jesus
minha alegria expressa isso de maneira incomparável!).
Também no que acontece ao conteúdo restante, as duas
grandes passagens estão intimamente relacionadas, mas de
forma antitética, em referência à justificação do pecador.
Paulo pode falar do Espírito, somente acenando à missão,
à vida e à obra de Cristo, por cujo sacrifício em favor do
ser humano Deus obteve aquilo que a Lei não podia conse­
guir por causa do pecado, ou seja, de destruir o bastião do
domínio absoluto do Eu e de penetrar como libertador em
nosso coração (Rm 8.3s.). Deste modo, Deus deu partida a
um novo poderoso movimento. Ele consiste em: "caminhar
segundo o Espírito" (Rm 8.9s.).
Pode parecer estranho que, no início de Rm 8, não res­
soe nenhum imperativo, ainda que se fale com insistência
do grande movimento de recusa dos pensamentos e das
aspirações da carne, e se distinga já claramente o que seja a
"ética", no sentido paulino.
Para a obstinação do ser humano, os impulsos da
"carne", altos ou baixos, são sempre e somente uma luta
("inim izade") contra Deus (Rm 8.7). Deus não é senão
ameaça e perigo para a vida que o ser humano gostaria de
garantir para si. Este é de fato o seu verdadeiro "ateísmo":
não a negação teórica da existência de Deus, e sim a con­
testação do seu direito de ser Deus. Cristo, porém, intro­
duzido no nosso reino de morte, nos englobou na esfera
da vida de Deus. Por isso, "o desejo do Espírito é vida e
paz" (Rm 8.6).
252 Paulo, V ida e O bra

IV - A PRESENÇA D A S A LV A Ç Ã O

1. A palavra

O conteúdo da mensagem e da confissão de fé não é


dado por acontecimentos de um passado longínquo, que
o curso do tempo tenha afundado num ontem irrevogá­
vel. Também não lembra as balizas da história da huma­
nidade. A história de Cristo ocorreu, sem dúvida algu­
ma, uma única vez, e, todavia, enquanto acontecimento
salvífico, ela determina, de maneira certa, o presente e o
futuro. Nós sabemos "que Cristo, uma vez ressuscitado
dentre os mortos, já não morre, a morte já não tem mais
domínio sobre ele. Porque, morrendo, ele morreu para o
pecado, uma vez por todas; vivendo, ele vive para Deus"
(Rm 6.9s, cf. 14.9).
O Evangelho torna presente, no verdadeiro sentido do
termo, o evento salvífico, fazendo parte integrante dele. Ele
não é apenas um simples relato posterior. A sua proclama­
ção faz brilhar a luz de um novo dia da criação no coração
dos fiéis (2Cor 4.6). Por isso, o apóstolo, falando do ato de
reconciliação que Deus realizou em Cristo em relação ao
mundo, pôde afirmar que Deus instituiu o "m inistério" e
a "palavra" da reconciliação (2Cor 5.18s.). A pregação não
é, por conseguinte, nem simples lembrança de coisas pas­
sadas, nem a mera promessa de consolações futuras. Nela
se torna realidade o "agora" e o "hoje" que cria a passagem
de um éon ao outro.
Paulo cita, a este propósito, um versículo do Dêutero-
Isaías: "N o tempo do meu favor te respondí, no dia da sal­
vação te socorri" (Is 49.8), e ele interpreta: "Eis agora o tem­
po favorável por excelência. Eis agora o dia da salvação"
(2Cor 6.2). Falando da justiça que vem da fé, ele transforma
ousadamente o sentido de um dito do Antigo Testamento,
M ensagem e T eologia 253

Dt 30.12s., aplicando ao Evangelho o que era dito da Lei:


não tens necessidade de procurá-lo no alto dos céus ou nas
profundezas do abismo, ou seja, não tens precisão de fazer
tu mesmo aquilo que já foi realizado há muito tempo em
Cristo, na medida em que "ao teu alcance está a palavra,
em tua boca e em teu coração, a saber, a palavra da fé que
nós pregamos" (Rm 10.6-8).
Seria errado buscar uma adequada explicação destas
surpreendentes expressões de Paulo, recorrendo a conside­
rações de caráter geral sobre a palavra e sobre a linguagem,
ou referindo-se a fatos análogos da história das religiões,
na qual existe efetivamente o fenômeno da palavra impreg­
nada de potência. A única base das expressões paulinas
está na proximidade de Cristo, que ressuscitou dos mortos,
foi elevado ao céu, está presente e "é Senhor de todos, rico
para todos os que o invocam" (Rm 10.12). A palavra é sua
palavra (Rm 10.17). A sua morte e sua ressurreição ocorre­
ram "por nós". O seu senhorio diz respeito a todos os seres
humanos, e este é o motivo por que Paulo pode e deve falar
da pregação daquele modo.
Mas, de qual palavra se trata? O apóstolo resume
seu conteúdo numa expressão drástica e exclusiva da sua
Primeira Epístola aos Coríntios: "A palavra da cruz" (ICor
1.18).
Sem dúvida, Paulo fala aqui da morte histórica de
Cristo, que este padeceu na humilhação e na ignomínia
mais profundas, como um criminoso (F1 2.8; 2Cor 2.4), e
não já de um símbolo intemporal e paradoxal. Nenhum ser
humano da Antiguidade jamais teria pensado em elevar ao
nível de símbolo religioso justamente a cruz, o mais vergo­
nhoso sistema de execução da justiça Romana, reservado
aos escravos e aos rebeldes.
Mas Paulo está também muito distante da ideia, que
teve repercussões até aos nossos dias, segundo a qual teria
254 Paulo, V ida e O bra

havido um trágico erro judiciário. Um erro que não se pode


certamente anular, mas ao qual, ainda nos tempos moder­
nos, se pensou seriamente de colocar, de certa maneira, um
remédio com uma revisão do processo que pelo menos rea­
bilitasse o condenado. Seria, por acaso, possível, neste caso,
atribuir um valor único e redentor à cruz de Cristo? Na his­
tória da humanidade, houve um grande número de erros
judiciários, e a morte na cruz não é de modo algum um fato
isolado na Antiguidade. Milhares de pessoas morreram as­
sim durante a guerra judaico-romana do século I.
O apóstolo não se deixa comover nem sequer por uma
hipotética tragédia do amor divino rejeitado, pelo qual
Deus se teria dirigido ao mundo através do Filho, mas te-
ria tido como resposta ódio e incompreensão. Para Paulo,
o amor de Deus não encontrou deveras um insucesso na
morte de Cristo. Pelo contrário, ali se manifestou em toda
a sua potência. Uma tragédia do amor divino não poderia
suscitar em nós senão espanto e comiseração.
Mas Paulo descarta também o tema da compaixão pela
pessoa do crucificado que, na época medieval, e mesmo de­
pois, animou intensamente a mística da paixão com o seu
aprofundar-se emotivamente nos sofrimentos de Cristo.
Neste sentido, é fácil interpretar erroneamente a expressãõ
que Paulo usa, escrevendo aos Gálatas, seduzidos por dou­
trinas errôneas, segundo a qual ele teria "colocado dian­
te de seus olhos" Jesus Cristo crucificado (G1 3.1). Paulo
não se refere à "imagem" do Cristo sofredor e moribundo
(a tradução de L utero: "retrato ao vivo diante dos olhos"
induz em erro), mas, se refere, antes, a ideia de uma pro­
clamação pública, de um decreto validamente levado a co­
nhecimento.
O núcleo do seu pensamento Paulo o manifesta na
Primeira Epístola aos Coríntios, quando contrapõe drasti­
camente "a palavra da cruz" à "sabedoria deste mundo"
M ensagem e T eologia 255

(ICor 1.18-3.20). Tal "sabedoria mundana", para Paulo,


não é, de fato, um saber voltado sobre si mesmo e que ex­
clui a colocação do problema de Deus, e sim um saber que
se refere a Deus. E uma sabedoria que, entre os judeus, se
manifesta na sua exigência de demonstração de potência
("sinais") da parte de Deus, e entre os gregos se exprime
na sua exigência que toda informação sobre Deus revele os
elementos de uma sabedoria superior, antes que eles pos­
sam aceitá-la. Mas uma mensagem que não tenha aqueles
requisitos e não esteja de acordo com aqueles critérios é
um "escândalo" (skándalon) para os judeus e uma "loucu­
ra" para os gregos (ICor 1.22s.).
Desde a Antiguidade, o Evangelho paulino foi objeto
de desdém. Os adversários do cristianismo nos primeiros
séculos, como C elso e Porfírio, qualificaram a fé cristã, pre­
cisamente por este motivo, de irracionalidade, de grosseria,
até de idiotice. Também G oeth desfez as palavras de Paulo
(ICor 3.19), observando: "Não valeria a pena ter chegado
aos setenta anos, se toda a sabedoria do mundo fosse lou­
cura diante de Deus" (Maximen und Reflexionen, 2).
Na realidade, a perspicácia e a precisão do raciocínio
de Paulo no longo trecho de IC or 1-4 mostra precisamente
como ele não investe de fato, e menos que nunca neste caso,
contra a razão enquanto tal, e como as suas afirmações so­
bre a salvação e sobre a fé não são, de maneira alguma, ins­
piradas num secreto gosto e prazer pelo absurdo. Ele não
exige nunca uma fé "cega" e não fala de um sacrifício da
razão e do pensamento. A palavra da cruz afirma ao invés,
que mediante esta mensagem "louca", Deus transformou a
"sabedoria do mundo" em loucura.
Tal sabedoria mundana se caracteriza pelo fato de
querer medir a Deus de acordo com os seus próprios pa­
râmetros. Assim, ela se manifesta como uma tentativa de
se afirmar a si mesmo diante de Deus. Mas o juízo que a
256 Paulo , V ida e O bra

incredulidade pronuncia a respeito de Deus constitui, no


mesmo ato, o veredicto de Deus sobre ela, enquanto, ao
invés, na palavra da cruz é dada a salvação aos fiéis que
estão dispostos a viver somente da sua graça. Neste sentido
extremamente paradoxal, Cristo é a potência de Deus e a
sabedoria de Deus. "Pois o que é loucura de Deus é mais
sábio do que os seres humanos, e o que é fraqueza de Deus
é mais forte que os seres humanos" (ICor 1.25).
A perspectiva particular na qual Paulo se coloca na
Primeira Epístola aos Coríntios não deve induzir a ate­
nuar erroneamente a dureza da expressão "palavra da
cruz", considerando-a como uma fórmula condicionada,
excessiva e parcial, que deve ser "naturalmente" comple­
tada, acrescentando-lhe implicitamente também os outros
"eventos salvíficos", como a ressurreição e o senhorio de
Cristo, dos quais, aliás, as epístolas paulinas falam abun­
dantemente.
E evidente que Paulo, nem sequer neste caso, esqueceu
a ressurreição e o senhorio de Cristo: estes estão subenten­
didos na "palavra da cruz", mas não como um segundo
ou um terceiro elemento a ser acrescentado ao prim ei­
ro, e sim como alguma coisa que precisa ser lida dentro
daquela expressão sintética e presumidamente unilateral.
O que significa que a ressurreição e a glorificação de Cristo
não anulam a sua morte, mas antes a confirmam e a consti­
tuem como ato salvífico que julga e salva, fazendo, portan­
to, dela o conteúdo da pregação (segundo a expressão de
C onzelm ann ).
Os espirituais entusiastas de Corinto haviam sofrido
o fascínio de uma outra teologia da ressurreição, e acre­
ditavam, enquanto portadores do Espírito de Cristo, de já
terem sido transportados para o novo éon da vida, além
do tempo e da morte. Justamente a eles se refere a cen­
sura irônica de IC or 4.8: "Vós já estais saciados! Já estais
M ensagem e T eologia 257

ricos" Sem nós, vós vos tornastes reis! Oxalá, de fato, vos
tivésseis tornado reis, para que nós também pudéssemos
reinar convosco!".
Deus, ao invés, "nos expôs, a nós, apóstolos, em últim o
lugar, como condenados à morte: fomos dados em espe­
táculo ao mundo, aos anjos e aos seres humanos. Somos
loucos por causa de Cristo, vós, porém, sois prudentes
em Cristo; somos fracos, vós, porém, sois fortes; vós sois
bem considerados, nós, porém, somos desprezados. Até o
momento presente ainda sofremos fome, sede e nudez; so­
mos maltratados, não temos morada certa e fatigamo-nos
trabalhando com as nossas mãos. Somos amaldiçoados, e
bendizemos; somos perseguidos, e suportamos, somos ca­
luniados, e consolamos; até o presente somos considerados
como o lixo do mundo, a escória do universo" (ICor 4.9­
13). Ser apóstolo significa, para Paulo, ser assinalado, qua­
se marcado a fogo, pela "palavra da cruz" (G1 6.17) e ainda
não subtraído dos tormentos da vida e da morte (veja-se o
tópico seguinte).
Contudo, os coríntios têm debaixo dos próprios olhos,
na própria vocação e na sua existência cotidiana de cristãos,
a demonstração do que signifique a palavra da cruz. A es­
trutura social da sua comunidade documenta visivelmente
a rejeição de Deus por qualquer tipo de sabedoria, poder
e posição mundana e, ao mesmo tempo, dá uma ilustra­
ção da graça de Deus que elege livremente e do seu poder
que regenera e redime. Somente Dele, os cristãos podem se
"gloriar" (ICor 1.26-31).
Tudo aquilo que se diz aqui sobre o poder crítico, de-
molidor e aniquilador da mensagem da cruz (observe-se o
acúmulo de negações já em ICor 1.26-31!, como também
no contexto seguinte) visa, na verdade, a anunciar o poder
do criador e do redentor. A mensagem da fé não faz se­
não repetir, de outra forma, a palavra da criação (IC or 1.28;
258 Paulo, V ida e O bra

cf. Rm 4.17; 2Cor 4.6). Isto explica, portanto, claramente,


o sentido daquelas expressões "ontológicas" de Paulo, às
quais se acenou antes. Isto é, indicam que o verdadeiro
"ser" não é outro senão um "ser devedor", como justamen­
te Paulo afirma de si mesmo: "Não eu, mas a graça de Deus
que está em m im " (ICor 15.10).
A indicação que o Senhor lhe dá é exatamente a de v i­
ver só da graça na debilidade do seu organismo enfermo:
"Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força ma­
nifesta todo o seu poder" (2Cor 12.9). Da mesma forma,
o apóstolo rebate a autoglorificação dos espirituais entu­
siastas de Corinto, e pergunta: "Que é que possuis que não
tenhas recebido?" (ICor 4.7), assim como na Epístola aos
Romanos retruca aos cristãos de origem pagã, que preten­
deríam triunfar sobre Israel caído: Vê então a bondade e a
severidade de Deus: a severidade para com os que caíram,
e a bondade de Deus para contigo, se perseverares na bon­
dade; do contrário, também tu serás cortado (Rm 11.22).
Gloriar-se no Senhor significa renunciar à autoglorifica­
ção.
A renúncia a qualquer outra glória - também à que
deriva das autoridades humanas e à qual os coríntios se
dedicavam - tornou-se possível através da liberdade. Unido
estreitamente à palavra da cruz, ressoa também o hino do
apóstolo à liberdade cristã: "(...) tudo pertence a vós: Paulo,
Apoio, Cefas, o mundo, a vida, a morte, as coisas presentes
e as futuras. Tudo é vosso; mas vós sois de Cristo, e Cristo'
éde Deus" (ICor 3.21s.).
Esta última assertiva ("vós sois de Cristo") coloca um
lim ite à liberdade dos fiéis? A rigor, isto faria sentido. Mas
aqui o texto pretende afirmar precisamente o poder da li­
berdade dos fiéis, que tudo abrange.
Entre as considerações relevantes da Primeira Epístola
aos Coríntios sobre a cruz e a sabedoria, encontra-se um
M ensagem e T eologia 259

excerto que, até hoje, apresenta, como poucos, graves


dificuldades de interpretação (ICor 2.6-16). O motivo
desta dificuldade reside, não por últim o, no fato que o
apóstolo escreve aqui, imitando obviamente o estilo da
pregação "gnóstica" dos seus adversários de Corinto, e
repetindo certas idéias preexistentes, não sem introduzir
nas mesmas algumas correções e dando-lhes uma nova
interpretação.
E estranho, efetivamente, que, após ter antes declarado
com vigor que Cristo crucificado é o conteúdo da própria
pregação e critério da própria conduta (ICor 2.1-5), ele fale
agora de uma "sabedoria entre os perfeitos", aparentemen­
te superior, que também ele poderia pregar se os coríntios
não fossem ainda "demasiadamente humanos" e de forma
alguma "perfeitos", como evidenciam as suas rixas. E, de
fato, interrompe bruscamente este gênero de discurso sa-
piencial porque os leitores são como crianças que têm ne­
cessidade de leite e não suportam ainda alimento sólido
(ICor 3.1-3).
"Perfeitos" - Paulo retoma evidentemente uma orgu­
lhosa definição que os espirituais de Corinto davam de si
mesmos e que segundo eles, mas também na linguagem
corrente da gnose, e até na maneira de pensar difusa na
Igreja antiga, indica aqueles que, em virtude de uma posse
especial do Espírito, teriam superado o simples estágio da
fé e teriam alcançado um conhecimento mais avançado da
revelação divina.
Após todas as afirmações precedentes de Paulo sobre
a fé, é possível que exista, para o apóstolo, algo que a su­
pere? Uma "sabedoria" que não se contenta com a palavra
da cruz, e um "espírito" reservado somente a poucos, que
penetra e indaga até mesmo "as profundidades de Deus"?
Não está sendo o apóstolo, desta forma, infiel às suas inten­
ções e idéias mais pessoais?
260 Paulo, V ida e O bra

Estes questionamentos têm, evidentemente, sua razão


de ser, mas demonstram igualmente uma incompreensão
daquilo que Paulo quer dizer. Estas afirmações não supe­
ram o quadro da sua teologia da cruz. E verdade que ele
retoma aqui os pensamentos e os conceitos da tardia teo­
logia sapiencial judaica, que haviam sido assimilados pelo
pensamento cristão prim itivo e, sem dúvida, também pe­
los "teólogos" de Corinto, e que por sua vez, os gnósticos
haviam reelaborado, deles construindo um grande mito
da redenção. Não por acaso o próprio apóstolo cita neste
contexto um texto apócrifo da Escritura, muito em voga na
gnose, e cuja origem não é mais possível saber com exati­
dão (o Apocalipse de Elias?): "O que os olhos não viram,
os ouvidos não ouviram e o coração do ser humano não
percebeu, isso Deus preparou para aqueles que o amam"
(ICor 2.9).
Aquela "misteriosa sabedoria" de Deus está escondida
às potências deste mundo, que serão aniquiladas, tanto é
verdade que, na sua ignorância, "crucificaram o Senhor da
Glória" (ICor 2.7s.). Mas, a nós que o amamos, Deus re­
velou por meio do seu Espírito o seu eterno decreto (IC or
2.9s.). A qui para o apóstolo, "nós" não significa somente
os "espirituais", enquanto distintos dos simples fiéis. E as
"profundidades de Deus" não são mais os seus insondá-
veis e eternos desígnios, revelados somente aos perfeitos,
mas são os dons da graça de Deus oferecidos a todos os fiéis
(ICor 2.12).
Com isso, o apóstolo supera aquela divisão entre fiéis
maduros e imaturos, que os teólogos de Corinto acentua­
vam de modo tão contestável, e sobre a qual se fundava
o seu orgulho. Supera a divisão, radicalizando-a, a ponto
de fazer dela uma contraposição absoluta: as potências do
mundo e nós, o espírito do mundo e o Espírito de Deus, a
sabedoria humana e aquela doada por Deus, oferecida a
M ensagem e T eologia 261

todos nós que, na qualidade de fiéis, temos o Espírito de


Cristo (crucificado) (IC or 2.16).
Este trecho da epístola que, à primeira vista, parece
apresentar um Paulo que se adapta ao "gnosticismo" dos
coríntios, negando-se a si mesmo, mostra, na verdade, um
apóstolo que não conhece mistérios mais profundos ou
recônditos que ultrapassem o Evangelho, mas justamente
aqueles que são revelados na "palavra da cruz". Estas suas
doutas dissertações, que parecem ir mais longe, na verda­
de, retornam ao ponto de partida, e não são somente po­
lêmicas, mas um desenvolvimento altamente positivo da
própria mensagem da cruz.

2. Ministério e sofrimentos do apóstolo

O tema do ministério apostólico ocupa um posto sin­


gularmente amplo na história e nas epístolas de Paulo. Isto
vale especialmente para as epístolas dirigidas às comuni­
dades nas quais havia adversários do apóstolo, que bus­
cavam minar a sua autoridade e contestavam a sua missão
(Gálatas, Filipenses, 1 e 2 Coríntios).
Este tema domina, em todas as suas partes, a corres­
pondência que durou vários meses entre o apóstolo e a co­
munidade de Corinto e que foi recolhida na assim chama­
da Segunda Epístola aos Coríntios (cf. Anexo II, p. 371). Por
isso, há uma tendência em pensar que sejam, sobretudo,
os adversários que tivessem levantado esta questão, obri­
gando o apóstolo a segui-los neste terreno. Esta impressão,
porém, é enganosa. A premência da questão não depende
somente das circunstâncias, mas possui, para Paulo, um
grande peso em termos pessoais, independente de todas as
controvérsias.
No cabeçalho das epístolas se encontram fórmulas
estereotipadas de autoapresentação, do tipo: "chamado
262 Paulo, V ida e O bra

para ser apóstolo pela vontade de Deus", "servo de Cristo


Jesus", e similares, enquanto no corpo mesmo da corres­
pondência são encontráveis numerosas dissertações a res­
peito do seu ministério e do seu comportamento apostó­
lico. Trata-se de considerações estreitamente conectadas
com a proclamação do seu Evangelho. Já a mais antiga
das epístolas, endereçada aos Tessalonicenses, abre com
um agradecimento extraordinariamente longo, no qual o
apóstolo lembra à comunidade as suas origens, quando
ele mesmo, fugindo de Filipos, chegou entre eles como
estranho, garantindo para si o pão ao trabalhar duramen­
te dia e noite e destituído de qualquer imponente autori­
dade, os havia levado, mediante a pregação da salvação,
a abandonar o culto pagão dos ídolos para "servirdes ao
Deus vivo e verdadeiro, e esperardes dos céus a seu Filho,
a quem ele ressuscitou dentre os mortos: Jesus que nos
livra da ira futura" (lTs 1.9s.).
Esta palavra, proclamada em circunstâncias de todo
simples e cotidianas, a comunidade a aceitou "não como
palavra humana, mas como na verdade é, Palavra de Deus
que está produzindo efeito em vós, os fiéis": este é o m oti­
vo e o conteúdo do agradecimento de Paulo (lTs 2.13).
O significado do ministério de Paulo está baseado so­
bre o Evangelho que lhe foi confiado (Rm 1.1-17). O próprio
Cristo fala pela boca dos seus mensageiros e está presente
na sua pregação (2Cor 5.20). Paulo, como se atesta em G1
1.15s, com uma citação profética (cf. Jr 1.5; Is 49.1), foi es­
colhido e chamado por Deus "desde o seio da sua mãe" e
recebeu "a graça e a missão de pregar (...) entre todos os
gentios" (Rm 1.5). Por isso, o seu ministério é parte inte­
grante da sua mensagem.
O capítulo 10 da Epístola aos Romanos, que já citamos
muitas vezes, expressa aquela indissolúvel relação numa
concatenação de frases, apoiando-se novamente em ditos
M ensagem e T eologia 263

do Antigo Testamento: "Porque todo aquele que invocar


o nome do Senhor será salvo. Mas como poderíam invo­
car aquele em quem não creram? E como poderíam crer
naquele que não ouviram? E como poderíam ouvir sem
pregador? E como podem pregar se não foram enviados?
Conforme está escrito: Quão maravilhosos os pés dos que
anunciam boas notícias" (Rm 10.13s.).
No seu contexto originário, o versículo aqui citado
do Dêutero-Isaías (Is 52.7) descreve a situação dos poucos
habitantes que permaneceram na Jerusalém devastada, no
tempo do exílio, os quais estavam em ardente expectativa
do retorno dos exilados da Babilônia. Sobre as colinas ao
redor foram colocadas sentinelas para descortinar de longe
os precursores dos que estavam voltando, até que, final­
mente, os primeiros mensageiros aparecem ao longe, so­
bre as montanhas. Então, os que os esperavam, irrompem
em gritos de alegria. A notícia vai de boca em boca. A ale­
gria ressoa na cidade que fora abandonada, e com o alegre
anúncio chega para Jerusalém a hora da salvação.
O mundo inteiro, para Paulo, se encontra na mesma
situação, e a palavra libertadora de Cristo deve agora res­
soar até os extremos confins (Rm 10.18 que cita o SI 19.5).
A missão e o ministério dos mensageiros, e em particular
o ministério apostólico de Paulo, são um elo inalienável da
cadeia de acontecimentos constituída da palavra de Cristo,
do anúncio, da escuta, da fé e da confissão da fé.
Quando Paulo apela à sua missão, não expressa, na
verdade, uma consciência de si exagerada, subjetiva e exa­
cerbada pelas ofensas de que foi alvo, e muito menos um
desejo escondido ou manifesto de autojustificação, motiva­
do pela lembrança de ter sido, no passado, um perseguidor
da Igreja, e de ter recebido o chamamento para o aposto-
lado depois dos outros, que o precederam, e num modo
anormal ("Como a um aborto": ICor 15.8).
264 Paulo, V ida e O bra

Se ele não oculta estes fatos e se, pelo contrário, insiste


em chamar a si mesmo "o últim o dos apóstolos", nem por
isso a sua autoridade é menor do que a deles. O senhor
ressurgido apareceu a ele assim como havia aparecido aos
que foram chamados antes dele (ICor 9.1; 15.6s.), e as suas
comunidades são o selo autenticador que confirma o seu
apostolado (ICor 9.2,15; 2Cor 9.3 e passim). Ele as gerou,
como um pai, mediante o Evangelho (ICor 4.15) e rodeou-
as de cuidados como uma mãe (lTs 2.7), sofrendo por elas
as dores do parto "até que Cristo seja formado em vós" (G1
4.19). Nenhum outro depois dele pôde estabelecer com elas
uma relação tão íntima (ICor 4.14s.).
Mas de que maneira Paulo entende e defende o seu
apostolado? Ele não compartilha, de forma alguma, o in­
teresse que apareceu cedo na Igreja antiga e se intensifi­
cou posteriormente, pelo ministério enquanto instituição
e pelas suas características formais, segundo as quais,
quem delas está possuído, reivindica uma autoridade pró­
pria. Recordamos com quanta insistência ele acentua, na
Epístola aos Gálatas, a própria independência e autonomia
em relação aos primeiros apóstolos de Jerusalém, e quão
pouca importância ele dava às condições nas quais eles re­
ceberam o apostolado, à sua pessoa e à sua posição, ou seja,
ao fato de pertencerem ao número dos discípulos do Jesus
terrestre e ao círculo dos Doze (G1 2.6).
Mas ainda que insista sobre a própria vocação, recebida
diretamente através de um ato soberano de Deus, não em­
presta, porém, importância às circunstâncias excepcionais
da sua visão do Cristo ressurgido, e sim, atribui um valor
decisivo ao fato que lhe foi dada a missão de pregar a todos
aos pagãos o Evangelho livre da Lei. Ele pede para si mesmo
aquilo que exige para qualquer outra testemunha - ainda
que seja um anjo do céu - o de ser medido com o mesmo e
único parâmetro do Evangelho (G11.8; cf. ICor 4.1).
M ensagem e T eologia 265

Sobretudo, a Epístola aos Filipenses nos mostra como


o apóstolo prisioneiro não estava de modo algum preocu­
pado com a ideia de que o Evangelho estivesse ameaçado,
porque ele, Paulo, estava com as mãos ligadas, como se
disso dependesse a sua sorte pessoal (F11.12-18). Esta sua
atitude encontra expressões particularmente felizes nas
numerosas passagens das epístolas nas quais recomenda
às comunidades os seus mais íntimos colaboradores e ou­
tros fiéis que demonstraram ser firmes na fé, preocupa­
do, acima de tudo, para que tenham acolhida, estando ele
sempre pronto para se colocar pessoalmente em segundo
plano.
Um exemplo, entre tantos, é dado pelo testemunho
que Paulo dá a Timóteo, ao mandá-lo a Filipos: "Não tenho
ninguém de igual sentimento que tão sinceramente como
ele se preocupe com o que vos diz respeito; pois procuram
atender os seus próprios interesses e não os de Jesus Cristo.
Quanto a ele, vós sabeis que prova deu: como um filho ao
lado do Pai, ele serviu comigo à causa do evangelho" (F1
2.20s.; observe-se como a frase faz um rodeio e não fala,
como era de se esperar, do serviço que Timóteo presta a
Paulo, mas do serviço comum).
Os seus auxiliares são parceiros da mesma obra: m ui­
tas vezes ele os cita nominalmente nos inícios ou nos finais
das epístolas. Ademais, acentua não raramente aquilo do
qual ele próprio e outros são devedores a membros parti­
culares das comunidades (p.ex., Rm 16.2,4) e declara não
ser somente alguém que consola outros, mas ter necessi­
dade, também ele, da consolação e da intercessão das co­
munidades (Rm l.lls .; 15.30s.; 2Cor 1.7,11; F1 1.19). O seu
relacionamento um para com o outro é um dar e receber
recíprocos (F14.15).
O Evangelho não depende da sua pessoa. Mesmo se
na edificação da comunidade ele lançou os fundamentos,
266 Paulo , V ida e O bra

como ele escreve em IC or 3.10s, para logo depois se corri­


gir e recordar que o fundamento já foi colocado por Deus,
ou seja, Cristo, outros construíram em cima! portanto, é
uma insensatez supervalorizar a autoridade dele ou de ou­
trem! "(...) aquele que planta, nada é; aquele que rega, nada
é; mas importa tão-somente Deus que dá o crescimento"
(ICor 3.7).
"Juntos somos operários de Deus" (neste "juntos" re­
side o acento, não como a tradução de L utero: "colabora­
dores de Deus somos nós" é muitas vezes interpretada er­
roneamente, ao colocar o acento na cooperação entre Deus
e o apóstolo, ou outras testemunhas!) "Vós sois a seara de
Deus, o edifício de Deus" (ICor 3.9). Assim, também diz
alhures: "Não tencionamos dominar a vossa fé, mas co­
laboramos para que tenhais alegria" (2Cor 1.24). E ainda:
"Não pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, Senhor.
Quanto a nós mesmos, apresentamo-nos como vossos ser­
vos por causa de Jesus" (2Cor 4.5), querendo com isso evi­
tar avaliações erradas da sua autoridade.
Tendo em mente estas expressões e muitas outras
assemelhadas, fica-se tanto mais estupefato ao constatar
com quanto ímpeto e paixão, em outras passagens conci­
sas e muitas vezes iradas, especialmente nas Epístolas aos
Gálatas e aos Coríntios, Paulo disputa junto aos adversá­
rios e às comunidades o reconhecimento do próprio apos-
tolado, repele as acusações levantadas contra ele e procura
reconquistar as comunidades que quase se deixaram sub­
meter pela agitação hostil. Não existe mais resquício de su­
perioridade impassível. Em vez disso, Paulo puxa todos os
registros: a dor carregada de lágrimas, cólera e indignação,
lamentações e acusações, ironia amarga, juízos desapie-
dados contra os agitadores e os apóstatas, a defesa e até
recomendação de si mesmo, ainda que expressa contra a
vontade e de modo paradoxal. Mas há também momentos
M ensagem e T eologia 267

comoventes nos quais ele abre o seu coração e nos quais


busca, com todo o seu amor ferido, reconquistar os que fo­
ram ameaçados e seduzidos.
Qual é o motivo de semelhantes expressões, tão sin­
gularmente diferentes das outras? Seria um erro ver nelas
somente as manifestações exageradas de um espírito mo­
mentaneamente ofuscado ou de um caráter excessivamen­
te irritadiço e susceptível. Ocorre, pelo contrário, também
e, sobretudo, neste caso, buscar e identificar as verdadei­
ras razões que movem o apóstolo. E mais do que nunca
evidente que, para Paulo, nesta sua áspera luta com os
adversários, está em jogo não somente a sua missão e o seu
comportamento apostólico, que eles denegriram. Está em
jogo a própria verdade do evangelho.
Para Paulo, por conseguinte, a sua pessoa e a causa
pela qual luta é, num certo sentido, um todo único. Neste
particular, está até de acordo com os seus adversários. Em
todo o caso, e não obstante a aspereza do conflito, não se
pode esquecer que Paulo possui muitas concepções em
comum com os seus opositores, mesmo se as entende de
maneira radicalmente diversa. Somente assim é possível
compreender as profundas diferenças que os separam.
Também os adversários se consideram apóstolos e
"ministros de Cristo" (2Cor 11.23) e se apresentam como
"ministros da justiça" (2Cor 11.15). São, também eles, tanto
quanto Paulo, descendentes do povo eleito de Israel (2Cor
11.22s.; F1 3.4s.). Um e outros insistem na necessidade de
que a mensagem tenha a sua legitimação na vida cristã e
apostólica. Paulo, queria ou não, se encontra sobre o mes­
mo campo de batalha dos seus adversários e deve medir-se
com eles. Não existe nenhuma razão para fazer deles um
espantalho, a despeito da grosseria e injustiça dos vitupé-
rios que eles lançaram contra o apóstolo, e que este mencio­
na várias vezes, especialmente em 2Cor 10-13, mas também
268 Paulo, V ida e O bra

em Gálatas e 1 Coríntios. Caso contrário, não poderíam ter


encontrado acolhida e tanta repercussão na comunidade e
nem Paulo os teria tomado tão a sério!
Já nos ocupamos antes da imagem dos "superapósto-
los" de Corinto. Eles se sentem repletos de forças sobre­
naturais por obra do Espírito de Cristo, por isso, a mor­
te de Jesus não podia ter para eles o mesmo significado
que tinha para Paulo, isto é, de ser o fim de toda relação
humana e terrena com Jesus (2Cor 5.16), mas ao mesmo
tempo, o fim do antigo éon de inimizade entre o mundo
e Deus. Certamente, eles não consideravam a morte de
Cristo como o ato com o qual Deus reconcilia consigo o
mundo (2Cor 5.18s.), nem viam a sua ressurreição como
fundamento e início de uma "nova criação", da qual já
participam "em Cristo" (2Cor 5.17), e sim, consideravam
a nossa existência terrena de cristãos sob o signo da cruz
e da compaixão.
Os adversários de Paulo ignoram, efetivamente, esta
confluência entre o "já" e o "ainda não", isto é, a tensão
escatológica da existência cristã e apostólica. A sua con­
duta e as críticas que dirigem contra o apóstolo signifi­
cam: todas estas coisas pertencem ao passado. Por isso, se
gloriam das obras realizadas na força do Espírito, apre­
sentam com grande zelo as "recomendações" de outras
comunidades a propósito de tais ações maravilhosas e
contestam a Paulo a autenticidade da sua missão, colo­
cando-o em confronto com as próprias extraordinárias ca­
pacidades espirituais.
As Epístolas aos Coríntios contêm mais de uma vez a
lista dos acontecimentos e das ações que, segundo Paulo,
legitimam o verdadeiro apóstolo (2Cor 4.8s.; 11.23s.; 12.10;
cf., outrossim, IC or 4.9s.). Assemelham-se, também no
estilo, às análogas auto-recomendações dos oradores po­
pulares itinerantes da época de intensa concorrência entre
M ensagem e T eologia 269

religiões e filosofias, e se apresentavam como emissários de


uma divindade, descrevendo com eloquência as dificulda­
des e as situações (em grego: peristáseis), nas quais haviam
demonstrado a sua força e superioridade de "homens de
Deus" ou sua qualidade de verdadeiros "sábios", retiran­
do-se do tumulto do mundo no refúgio do espírito.
Paulo dá a estas listas, na verdade, um caráter extre­
mamente paradoxal. Ele se gloria dos seus sofrimentos e
da sua fraqueza, nos quais se mostra perfeita a potência de
Cristo (2Cor 12.9s.). Diferenciando-se do ideal do "sábio",
então em voga, ele quer expressar alguma coisa a mais e de
diferente da simples confiança na força do seu Deus, que
lhe permite suportar as circunstâncias mais difíceis.
O apóstolo entende estas adversidades de outra manei­
ra: "Somos atribulados por todos os lados, mas não esma­
gados; postos em extrema dificuldade, mas não vencidos
pelos impasses; perseguidos, mas não abandonados; pros­
trados por terra, mas não aniquilados. Incessantemente e
por toda parte trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus, a
fim de que seja também manifestada em nosso corpo (...).
Assim a morte trabalha em nós; a vida, porém, em vós"
(2Cor 4.8-12). De maneira que, para ele, a experiência do
mundo e a vitória sobre o mundo encontram ambas na
morte e na ressurreição de Cristo a sua razão de ser, a sua
necessidade e a sua promessa.
O mesmo é dito também num texto afim: "(...) em tudo
recomendamo-nos como ministros de Deus: por grande
perseverança nas tribulações, nas necessidades, nas angús­
tias, nos açoites, nas prisões, nas desordens, nas fadigas, nas
vigílias, nos jejuns, (...), pelas armas ofensivas e defensivas
da justiça, na glória e no desprezo, na boa e na má fama,
tidos como impostores e, não obstante, verídicos; como
desconhecidos e, não obstante, conhecidos; como moribun­
dos e, não obstante, eis que vivemos; como punidos e, não
270 Paulo, V ida e O bra

obstante, livres da morte; como tristes e, não obstante, sem­


pre alegres; como indigentes e, não obstante, enriquecen­
do a muitos; como nada tendo, embora tudo possuamos"
(2Cor 6.4-10).
No longo elenco das coisas que ele fez e sofreu, dos
sucessos e insucessos da sua atividade missionária - aqui
e ali, repetindo as palavras do SI 118 (o "belo Confitemim” ,
como dizia L utero) -, na ênfase progressiva das frases até
as últimas antíteses paradoxais, não se fala mais de uma
conduta ou de um destino heróico, mas se dá um testemu­
nho do poder de Deus que, por amor de Cristo, conduz o
apóstolo através das tribulações e da morte, mas, ao mes­
mo tempo, o arranca da morte e transforma a tristeza em
alegria e a pobreza em riqueza.
Tal certeza faz, na verdade, com que Paulo fale da
liberdade do apóstolo e do cristão quase exatamente nos mes­
mos termos com os quais os estóicos da época reclamavam
para si análoga liberdade. Todavia, ela tem, para o apóstolo,
um fundamento e um sentido absolutamente diferentes. Ela
é um dom que lhe ocorreu e do qual é devedor à graça de
Deus. Não é somente um postulado ou uma possibilidade
ideal, mas é a realidade, da qual provêm os fiéis.
As palavras que o apóstolo escreve da prisão ha
Epístola aos Filipenses mostra como a descrição daquela
liberdade se aproxima do ideal estóico: "Sei viver modes­
tamente, e sei também como haver-me na abundância; es­
tou acostumado ("iniciado", como um adepto dos cultos
de mistérios pagãos) com toda a qualquer situação: viver
saciado e passar fome; ter abundância e sofrer necessida­
de" (F14.12).
Palavras deste gênero sobre a "autarquia" (F14.11) po­
deríam muito bem constar em Epíteto ou em Sêneca, não,
porém, a sequência da frase paulina: "Tudo posso naquele
que me fortalece" (F1 4.13). O mesmo se diga da frase que
M ensagem e T eologia 271

conclui, na Epístola aos Romanos, o elenco dos sofrimen­


tos causados pela perseguição, isto é, tribulação, angústia,
perseguição, fome, nudez, perigo, espada: "Mas em tudo
isto somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou"
(Rm 8.37).
Na verdade, lemos também em Epíteto: "O que valem
para o sábio o dinheiro, os prazeres do amor, a obscuridade,
a fome, a vergonha, o louvor e até a morte? Ele pode vencer
todas estas coisas (Diss. 1,18,22). Mas, para os dois autores,
a liberdade e a escravidão têm um sentido totalmente di­
ferente. Para a doutrina estóica, o ser humano é escravo,
enquanto permite que tudo aquilo que lhe é "estranho" e
que não diz respeito ao seu próprio ser (ou seja, as circuns­
tâncias, a sorte), dispõem dele e ele mesmo se prende a isso
com as próprias paixões; livre, ao invés, é aquele que, do­
brando-se sobre o que lhe é mais individualmente próprio,
dispõe sobre si mesmo.
Paulo, ao contrário, diz que nós somos escravos na me­
dida e enquanto dispomos de nós mesmos e Cristo não se
tornou o Senhor que domina sobre nós. Por isso, ao con­
trário do estoicismo, ele não parte de uma reflexão sobre
o destino ideal do ser humano, mas da sua realidade, vale
dizer, da sua servidão naturalmente inevitável e culposa
diante de Deus e do seu ato de libertação.
O apóstolo torna atual o Cristo crucificado mediante
a própria mensagem e a própria existência, mas tal con­
vicção não se acentua nele, como no seu grande imitador
Inácio de Antioquia (início do século II), até atingir a sede
do martírio e a ideia de que somente o martírio físico coro­
ará dignamente a missão do mensageiro de Deus e terá um
poder salvífico para sua comunidade.
Na realidade, um tema deste gênero se encontra já
na epístola pós-paulina aos Colossenses (Cl 1.24). Houve
também quem pretendesse encontrar traços de idéias con-
272 Paulo, V ida e O bra

gêneres na Epístola de Paulo aos Filipenses. Realmente, o


apóstolo prisioneiro, que está diante do êxito incerto do
processo - absolvição ou condenação - aspira morrer: "Pois
para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro (...)• Sinto-me
num dilema: o meu desejo é partir e ir estar com Cristo,
pois isso me é muito melhor. Mas o permanecer na carne é
mais necessário por vossa causa. Convencido disso sei que
ficarei e continuarei com todos vós, para proveito vosso..."
(F11.21-25).
Com a morte, cairiam as últimas barreiras que sepa­
ram quem vive sobre a terra e Cristo. Contudo, já a vida
terrena pertence a Cristo (Rm 14.8) e é somente em Cristo
que há verdadeiramente "vida". Por isso, a alternativa en­
tre vida e morte física já não tem mais uma importância
decisiva: "A minha expectativa e a esperança é de que em
nada serei confundido, mas com toda ousadia, agora como
sempre, Cristo será engrandecido no meu corpo, pela vida
ou pela morte" (F11.21).
Não é, por conseguinte, a morte no martírio que tem
um sentido particular, porque a existência inteira do após­
tolo está sendo vivida sob o signo do "m artírio". Mas, mes­
mo se o seu sangue fosse "derramado (...) em sacrifício" (F1
2.17), a sua morte não poderia ser assemelhada ao sacrifício
redentor de Cristo, oferecido uma vez por todas.
Na verdade, a atualização de Cristo através do desti­
no e dos sofrimentos do apóstolo tem para as suas comu­
nidades um significado importantíssimo. Tudo o que lhe
aconteceu não tem um sentido exclusivo, mas indica de
maneira exemplar o que quer dizer viver de modo cristão:
quer dizer morrer e ressuscitar com Cristo. Por isso, Paulo
torna imediatamente solidários com o próprio destino as
comunidades de Tessalônica e de Filipos, contra as quais
já surgiram as primeiras perseguições (lTs 2.14s.; F11.29s.),
e na Segunda Epístola aos Coríntios fala dos próprios
M ensagem e T eologia 273

sofrimentos para explicar o aniquilamento e a renovação


que fazem parte da vida de todo fiel.
Diz ali: "Por isto não deixamos abater. Pelo contrário,
embora em nós o ser humano exterior vá caminhando para
a sua ruína, o ser humano interior se renova dia a dia. Pois
nossas tribulações momentâneas são leves em relação ao
peso eterno de glória que elas nos preparam até o excesso.
Não olhamos para as coisas que se vêem, mas para as que
não se vêem; pois o que se vê é transitório, mas o que não
se vê é eterno" (2Cor 4.16-18).
Neste amplo horizonte devem ser colocadas também
as discussões de Paulo com os seus adversários, que, num
primeiro olhar superficial, nos aparecem tão surpreenden­
tes e com o caráter de mesquinhas rusgas pessoais do co­
tidiano. Quem olha a história do cristianismo prim itivo e,
especialmente, a de Paulo, como se fosse semelhante a uma
paisagem paradisíaca, e não quer se dar conta que as vitó­
rias obtidas sob a bandeira do Evangelho foram travadas
num campo de batalha, ficará certamente muito escandali­
zado com estas passagens das epístolas de Paulo.
Neste conflito, tanto Paulo quanto os seus adversários
estão colocados, com sua inteira existência, no foco das de­
cisões entre fé e heresia, verdade e mentira, entre o Deus
de Jesus Cristo e o "deus deste mundo" (2Cor 4.4). Cada
qual, convicto de que Cristo está presente nele. Justamente
por isso, Paulo arranca a máscara destes "superapóstolos",
qualificando-os de falsos apóstolos, operários enganado­
res, ministros de Satanás, na figura de anjos de luz (2Cor
11.13-15), pregadores de um outro evangelho, de um outro
Jesus e portadores de um outro "Espírito" (2Cor 11.4).
Por estas razões, porém, ele os enfrenta e se defende,
se bem que no papel que lhe é im pingido como de um "lo u ­
co" (2Cor ll.l,16s.; 12.6,11), e, deixando o seu costumeiro
modo de ser, parece "gloriar-se", como fazem os adver-
274 Paulo, V ida e O bra

sários, mas cada palavra sua significa o contrário das suas


auto-recomendações. Efetivamente, a sua glória é a sua fra­
queza, a fim de que o poder de Cristo nele penetre (cf. 2Cor
12.9s.; cf., outrossim, F1 4.12). Para Paulo, a "nova criação"
e o "dia da salvação" (2Cor 5.17; 6.2) estão presentes so­
mente onde os mensageiros de Cristo tomam sobre si a sua
cruz nas vicissitudes concretas da vida cotidiana, testemu­
nhando, assim, a realidade da reconciliação de Deus com o
mundo.
A Primeira Epístola aos Coríntios contém algumas fra­
ses importantes, nas quais Paulo apresenta, sob outros as­
pectos, a sua maneira de compreender e concretizar a pró­
pria tarefa, de atualizar, enquanto apóstolo, o evento e a
mensagem da salvação, frases através das quais é possível
discernir a máxima norteadora de toda a sua conduta e da
sua atividade missionária.
Em IC or 9.19-23, ele escreve: "Ainda que livre em
relação a todos, fiz-me o servo de todos, a fim de ganhar o
maior número possível. Para os judeus, fiz-me como judeu,
a fim de ganhar os judeus. Para os que estão sujeitos à lei,
fiz-me como se estivesse sujeito à lei - se bem que não este­
ja sujeito à lei - para ganhar aqueles que estão sujeitos à lei.
Para aqueles que vivem sem a Lei, fiz-me como se vivesse
sem a Lei - ainda que não viva sem a Lei de Deus, pois
estou sob a Lei de Cristo - para ganhar aqueles que vivem
sem a Lei. Para os fracos, fiz-me fraco, a fim de ganhar os
fracos. Tornei-me tudo para todos, a fim de salvar alguns
a todo custo. E isto tudo eu faço por causa do evangelho,
para dele me tomar participante".
Tnfelizmente, estas frases, magistralmente construídas
e articuladas, mesmo de um ponto de vista retórico, foram
extremamente banalizadas na linguagem cristã comum e
muitas vezes utilizadas despropositadamente, para justifi­
car qualquer acomodação da mensagem e da conduta cristã
M ensagem e T eologia 275

ao momento histórico e ao ambiente. Pelo menos, são en­


tendidas como clássico argumento a favor do princípio evi­
dente, e rigorosamente praticado por Paulo, de expressar o
Evangelho na língua e na cultura dos diferentes ouvintes,
para que possam entendê-lo. Mas estas generalizações ni­
velam e diminuem o que há de surpreendente nas frases
de Paulo, em vez de colocá-lo em evidência, especialmente
quando são compreendidas como simples normas de técni­
ca missionária de adaptação.
Um aspecto característico e significativo destas pro­
posições paulinas está no fato de estarem subordinadas ao
conceito geral da liberdade, que já tivemos oportunidade
de analisar, em estreita relação com a concepção que Paulo
tinha de si enquanto apóstolo. Como emerge de todo o con­
texto de IC or 8-10, aqui a liberdade não é entendida como
um direito, e sim como a renúncia ao próprio direito em
favor dos outros, uma renúncia que nasce da fatal submis­
são do apóstolo ao evangelho, cujo conteúdo ele não pode
interpretar a bel-prazer (ICor 9.16).
Os coríntios estavam divididos na questão da alimen­
tação das carnes sacrificadas aos ídolos e a respeito da par­
ticipação nos banquetes cultuais dos pagãos. Paulo lhes ex­
plica, colocando-se como exemplo, a verdadeira natureza
da liberdade cristã. Por isso, L utero teve o mérito de for­
mular dialeticamente, com um aceno explícito a IC or 9.19,
a primeira tese do seu famoso escrito Da liberdade do cristão
(1520): "O cristão é um senhor livre que dispõe sobre todas
as coisas e não está submetido a ninguém. O cristão é um
servo que deve tornar-se ú til em todas as coisas e estar sub­
metido a todos".
A liberdade que Paulo praticou em relação aos judeus
e aos pagãos, às pessoas submetidas e não submetidas à
Lei, não deve ser entendida propriamente como um espa­
ço que ele concede à própria livre estimativa, e sim como
276 Paulo, V ida e O bra

obediência à palavra que lhe foi confiada. Neste sentido,


ele se tornou judeu para os judeus, sem Lei para os sem-
Lei, fraco para os fracos.
Mas o que significa tudo isso? As várias antíteses enu­
meradas por Paulo não indicam aquelas diferenças entre
povos ou indivíduos, que se haviam tornado totalmen­
te indiferentes, de um ponto de vista religioso ou moral
avançado, para qualquer pessoa sábia e cosmopolita da
época do apóstolo. Aquelas antíteses devem ser tomadas
a sério com todo o rigor e exclusivismo com que as consi­
derava um judeu da época, e ao qual o cristianismo p rim i­
tivo era ainda sensível. Positiva ou negativamente, eram
consideradas como posições religiosas que, em todo caso,
reivindicavam a própria relevância do ponto de vista da
salvação.
O dogma dos judaizantes afirmava que a observância
da Lei e a circuncisão eram condições necessárias à sal­
vação, também para os cristãos. Por sua vez, o grupo que
estava com posições opostas, como faziam especialmente
os espirituais entusiastas de Corinto, proclamava que o
abandono da Lei, a ausência da Lei, era o verdadeiro dis­
tintivo da vida cristã ("tudo é permitido!"). Mas também o
grupo dos "fortes" que, em Roma, designava com desdém
os "fracos", queria certamente demonstrar, a seu modo, a
autêntica obediência da fé. Por isso, condenava os outros
(Rm 14.9s.).
Todavia, Paulo não reconhece mais todas aquelas po­
sições religiosas como tais. Para ele, não são mais caminhos
que conduzem à salvação, nem pressupostos ou condições
da existência cristã. Proclamar caminhos de salvação daque­
le gênero significa, para ele, anular o caminho de salvação
aberto por Deus, que colocou um fim a todas as posições
humanas, também e precisamente às religiosas, abatendo,
destarte, a barreira que separava judeus e pagãos.
M ensagem e T eologia 277

É significativo o fato que, desta compreensão das coi­


sas, Paulo não passe a construir uma nova "posição" para
além das precedentes diferenças, mas mostre com a sua
conduta de se ter tornado solidário de todas. O motivo está
no fato que ele reconhece a todas aquelas "posições", ainda
que num sentido completamente diferente, uma importân­
cia e um significado não abdicável: elas designam a reali­
dade concreta da vida, que ninguém pode superar por sua
própria iniciativa, e na qual o Evangelho busca cada um e
deve encontrá-lo.
Formulado de forma mais preciosa, isto quer dizer:
ele não faz próprios os vários pontos de vista, mas os toma
a sério enquanto situação histórica, na qual, cada um, sem
diversidade, ainda que de modo diverso, já é, na qualidade
de fiel, livre, pelo ato salvífico de Cristo, e não tem por que
colocar em ação aquela liberdade com ulteriores transfor­
mações da própria situação de vida. Quem era judeu não
tem necessidade de fazer desaparecer o sinal da sua per­
tença ao povo "eleito", após tornar-se cristão, e quem era
pagão não carece de assumi-lo.
Contudo, também os membros escravos e livres da
comunidade cristã não são chamados pelo Evangelho a
abandonar a sua situação social precedente. Efetivamente,
"no Senhor", o escravo já é um "liberto", enquanto que
quem é liberto (socialmente) se tornou "escravo de Cristo".
Ambos, em toda a sua existência, pertencem ao Senhor
(IC or 7.17-24). Tal é o fundamento da liberdade com a qual
o apóstolo se comportou em relação a judeus e pagãos, fa­
zendo-se "tudo para todos".
Sem dúvida, esta atitude de Paulo tem como consequên­
cia não somente um mais fácil acesso a todos os grupos e
estratos sociais no interior e exterior das suas comunidades,
mas também, certamente, a crítica que muitos dirigem ao
apóstolo, de ser incoerente, ambíguo e ventoinha e a censura
278 Paulo , V ida e O bra

de mudar facilmente de opinião e de dizer as coisas que as


pessoas gostam de ouvir.
A acusação de suprim ir na sua pregação a Lei e a exi­
gência da circuncisão, para encontrar mais fácil acolhida
junto aos pagãos, lhe foi movida pelos judaizantes, como
se depreende da Epístola aos Gaiatas. Por outro lado, facil­
mente se pode imaginar como a sua disponibilidade para
se solidarizar com os judeus e a sua tolerância em relação
às sua tradições tenham suscitado mais de uma perplexida­
de junto de muitos dos seus amigos.
Paulo, porém, refuta com a máxima energia a acusação
de ter pretendido agradar aos homens (G11.10; cf., também,
lTs 2.4) e vira a acusação iradamente contra os adversários
que querem tornar novamente vinculatória a Lei para os
fiéis (G1 5.12; 6.12), mas não com o argumento de sobre­
carregar as comunidades com pesos inúteis, e sim, de anu­
lar, com este procedimento, o escândalo da cruz (G1 5.11).
O seu comportamento diante dos judeus e dos pagãos não
tem, portanto, o sentido de atenuar, e sim, de explicitar o
caráter de escândalo da sua mensagem. A sua liberdade
se exprime tanto na recusa das posições sobre as quais os
seres humanos baseiam a sua confiança, quanto na aprova­
ção daquele que, lá onde está, e assim como é, se torna, pela
graça de Deus, uma nova criatura em Cristo.
As considerações que Paulo expende e as decisões que
toma nas suas epístolas, a propósito das disputas que ocor­
rem nas comunidades, como no caso dos vários partidos
em Corinto ou na contraposição entre "fortes" e "fracos"
na mesma Corinto e em Roma, são exemplos que demons­
tram a validade da sua concepção da liberdade. É altamen­
te significativo o fato que em todas estas ocasiões Paulo
discerne o casus confessionis, ou seja, a linha divisória entre
fé e incredulidade, não onde a vêem as partes em conflito,
e que ele chama ambas à sua recíproca responsabilidade,
M ensagem e T eologia 279

tendo como base o que foi dado a todos através do amor


de Deus.

3. A igreja

O evento da salvação e o senhorio de Cristo estão


presentes em meio ao mundo na vida da Igreja. Esta vive
somente da fé, fundamentando-se sobre o ato salvífico
de Deus. Para Paulo, ela é um movimento suscitado por
Deus e orientado pelo seu Espírito. Se se compreende bem
o que seja a Igreja, não se pode falar daquilo que seria em
si, mas somente se pode adequadamente tratar dela de
modo indireto, isto é, no complexo contexto da concepção
paulina.
Por isso, ao falar da vida e da atividade do apóstolo
e abordando a sua mensagem e teologia, na realidade, já
nos ocupamos da Igreja. Daquela exposição emergem, efe­
tivamente, as linhas principais da eclesiologia de Paulo.
Contudo, os motivos e as intenções do pensamento pau-
lino convergem nas formulações eclesiológicas como num
ponto focal, onde são atualizados sob diversos aspectos e
aplicados à realidade concreta.
Paulo não é o criador e o fundador da Igreja. Ela existia
antes dele e suscitou, inicialmente, o seu zelo perseguidor.
Quando o apóstolo encontrou a Igreja, esta já tinha atrás
de si uma história movimentada, cujos traços e efeitos são
perceptíveis frequentes vezes em seus escritos.

a) "Ekklesía"

A locução "Ekklesía de Deus", que Paulo utiliza abun­


dantemente, era já corrente antes dele como termo com o
qual a comunidade se designava a si mesma. O seu signifi­
cado não pode ser derivado diretamente do grego profano
280 Paulo, V ida e O bra

no qual o vocábulo ekklesía era um termo técnico usual para


indicar uma assembléia popular profana.
Na versão grega do Antigo Testamento, é utilizado co-
mumente para falar do povo eleito de Israel reunido diante
de Deus, por exemplo, no Sinai. O cristianismo prim itivo o
retomou deste contexto, fazendo dele o termo que designa
o povo que Deus reúne no mundo por ocasião dos últimos
tempos.
O nosso vocábulo "comunidade" reproduz m uito im ­
perfeitamente tal significado de realização e alcance esca-
tológico. De fato, a Igreja é alguma coisa mais e diversa
da comunidade particular ou da soma das comunidades
locais e dos seus fiéis. Ela as precede no tempo e na ordem
lógica e esta presente nelas somente no plano da concre-
tude histórica, se bem que o termo possa ser usado, num
sentido secundário, também para as comunidades pa rti­
culares.
Tal conceito encontra uma sua expressão característi­
ca na introdução da Primeira Epístola aos Coríntios: "(...)
à igreja de Deus, que está em Corinto, àqueles que foram
santificados em Cristo Jesus, chamados a ser santos, com
todos os que em qualquer lugar invocam o nome de nos­
so Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso" (IC or 1.2).
Caracterizam esta passagem as numerosas locuções ecle-
siológicas, tiradas do Antigo Testamento, difundidas no
cristianismo prim itivo e apresentadas, em geral, na forma
passiva. Querem dizer que a pertença à Igreja é um aconte­
cimento que sucede ao ser humano, e não um ato que dele
dependa. Disso se deduz, de imediato, que a Igreja não é
uma estrutura associativa organizada pelos seres humanos
para cultivar, praticar e difundir determinadas tradições e
convicções religiosas.
E significativo o fato que todas as analogias socioló­
gicas tiradas do ambiente religioso e político se revelem
M ensagem e T eologia 281

insuficientes. Também impossível é compreender a essên­


cia da Igreja a partir das particularidades da liga do povo
judaico em torno do Templo, ou das comunidades sinago-
gais do judaísmo da Diáspora, ou ainda do modo de ser de
seitas rigorosamente separatistas, como a da comunidade
de Qumran. Do mesmo modo, porém, é impossível com­
preendê-la na base dos ordenamentos cúltico-sacerdotais
dos antigos templos pagãos, ou das comunidades mistéri-
cas helenísticas, ou das formas organizativas de certas as­
sociações da Antiguidade, e muito menos das constituições
políticas e comunais.
A origem da Igreja não se encontra na história do Jesus
terreno, e sim na ressurreição do homem executado na
cruz. O Jesus "histórico" não é o seu fundador. O conteúdo
da sua mensagem é a iminência do Reino de Deus, que já se
anuncia nas suas palavras e nas suas ações, e que irrompe
com potência de libertação ou de condenação no mundo
assim como é, também e precisamente com todas as suas
pias tradições e critérios.
A autoridade de Jesus, a sua mensagem de salvação
para os pecadores e os marginalizados, a sua luta contra es-
cribas e fariseus, sua palavra que cura, o seu apelo para se­
gui-lo e imitá-lo, tudo isso se funda sobre o Reino de Deus
por vir. A missão de Jesus é dirigida a todos. Ele não reúne
à sua volta, como muitos outros do seu tempo, um "res­
to santo" e não funda uma comunidade à parte de justos.
Na história do Jesus terrestre não há lugar para aquilo que,
logo após a sua crucificação e ressurreição, recebeu o nome
de "Igreja". Nem sequer o dito isolado e famoso no qual
Jesus chama Pedro a rocha sobre a qual ele mesmo irá cons­
tru ir a Igreja (Mt 16.18s.) pode ser aduzido como prova que
a Igreja tenha sido fundada pelo Jesus terrestre. Existem
bons motivos para sustentar que estas palavras foram colo­
cadas na boca de Jesus pela comunidade pós-pascal.
282 Paulo, V ida e O bra

Por outro lado, as aparições do ressuscitado e a men­


sagem da Páscoa deram aos discípulos a certeza de que
aquilo que aos olhos humanos aparecia como malogro e
ruína era, na verdade, um novo início suscitado por Deus.
A partir daqui nasceu a Igreja, unida pela fé em Jesus visto
como o Messias prometido, e pela expectativa de um im i­
nente retorno seu na qualidade de Filho do Homem para
salvar e para julgar.
Esta é a origem da Igreja enquanto comunidade do
tempo da salvação, enquanto m ultidão dos "santificados"
e dos "eleitos" por Deus, enquanto ekklesía. Nesta pers­
pectiva, a comunidade inicia a sua pregação e os fieis são
purificados pelo batismo em vista do Reino vindouro de
Deus, recebem e sentem o Espírito de Deus, celebram a
refeição em comum com alegria escatológica, invocando a
vinda do Senhor e seguindo o modelo das refeições judai­
cas como também Jesus fizera com os publicanos e peca­
dores e, antes da sua morte, com os discípulos. Contudo,
esta comunidade não se separa do judaísmo. Pelo contrá­
rio, continua a tomar parte nas cerimônias do Templo e
a observar a Lei. As promessas de Deus a Israel se reali­
zaram em Jesus e na sua comunidade. Por isso, a tarefa
da pregação da comunidade prim itiva se restringe inicial­
mente somente a Israel.
A ruptura das limitações colocadas pela fé e pelo pen­
samento judaico ocorre somente após a aparição dos "he-
lenistas", ainda que isto ocorra muito rápido, ainda em
Jerusalém. Neste livro, falamos mais de uma vez daquela
história cheia de tensões que produziu duros conflitos com
o judaísmo e confrontos com a tendência legalista da Igreja
prim itiva. Mas aquela história levou os fiéis a fazerem
novas experiências da presença do kyrios glorificado e da
potência do seu Espírito e, desta maneira, os conduziu a
uma nova compreensão da salvação e da própria Igreja.
M ensagem e T eologia 283

O movimento helenista judeu-cristão e as comu­


nidades de origem pagã, certamente, não deixaram de
lado nem liquidaram a história fundada e documentada
no Antigo Testamento e nas suas promessas. A autori­
dade da Escritura é para elas indiscutível. Também elas
celebram o batismo e a ceia do Senhor, permanecendo
determinante para toda a cristandade o conceito que
a Igreja, enquanto povo escatológico de Deus, é e não
pode ser senão, por sua natureza, uma só, mesmo se va­
riavam a maneira de entendê-la, os modos nos quais se
expressava a tradição, as formas do culto e as estruturas
organizativas.
As fontes do cristianismo prim itivo, especialmente as
que foram acolhidas no Novo Testamento e as tradições
incorporadas neste, dão uma imagem muito forte desta
variedade. Não se encontra ali, na verdade, uma doutrina
unitária e normativa da Igreja. Tudo é aqui ainda muito
fluido.
Todavia, seria errado se, em vez de falar de uma úni­
ca Igreja cristã das origens, se falasse de uma vaga m ul­
tiplicidade de igrejas. Importa, em vez disso, distinguir a
realidade e a superioridade da única Igreja da m ultiplici­
dade das suas formas de expressão e das suas concepções
escatológicas. Compreende-se, por isso, que a unidade da
Igreja devesse apresentar-se bem cedo como um problema
e que em torno dela se desenvolvesse uma dura luta desde
os primeiros séculos.
Paulo é uma das testemunhas mais antigas desta luta
e, com certeza, a mais significativa. A sua história e a sua
mensagem mostraram que a sua concepção da Igreja está
radicada no cristianismo helenístico. Mas ele reelaborou
a herança recebida com o vigor e a coerência que lhe são
característicos e a traduziu em prática mais que qualquer
outro antes dele.
284 Paulo, V ida e O bra

b) O Espírito

Paulo considera as antigas promessas feitas a Israel


como válidas para todos aqueles que crêem em Cristo, sejam
eles de origem judaica ou pagã. Também os pagãos se torna­
ram descendentes e herdeiros da Abraão (G1 3.29), filhos da
Jerusalém, não da terrena e submetida à Lei, mas da livre e
celeste (G14.23-31); são o verdadeiro Israel de Deus (G16.16),
o seu "campo", o seu "edifício" (ICor 3.9). Neste sentido, es­
creve aos Coríntios: "Não sabeis que sois o templo de Deus e
que o Espírito de Deus habita em vós?" (ICor 3.16s.).
Definindo a comunidade como um "tem plo", Paulo
não cogita dos muitos santuários pagãos construídos um
pouco por toda parte em honra desta ou daquela divinda­
de, mas pensa num e no único santuário edificado sobre o
monte Sião, e a propósito do qual o Antigo Testamento e o
judaísmo já sabiam que era a única morada terrena de Deus
e o único lugar onde era possível encontrá-lo.
A mesma imagem é retomada também em outras cor­
rentes do cristianismo prim itivo (cf. lPd 2.4s.) e significa
que a presença de Deus na comunidade é uma presença
a favor do mundo, não mais vinculada a um lugar sagra­
do terrestre, mas operante exclusivamente por meio do
Espírito, que é a manifestação da sua presença, a potência
de um mundo novo.
Todo o cristianismo p rim itivo compartilha com Paulo
esta convicção escatológica. O apóstolo tem, portanto, em
comum também com os espirituais entusiastas de Corinto
a experiência do Espírito de Deus como potência divina
que irrompe sobre os fiéis e os torna ativos. Paulo não re­
ceia recordar aos coríntios as inspirações que eles tinham
conhecido no seu passado de pagãos (IC or 12.2), mas,
justamente por isso, ele conhece a ambigüidade de tais
fenômenos.
M ensagem e T eologia 285

O único sinal de autenticidade do Espírito Santo é a


confissão de fé: kyrios Jesus, é o Senhor (ICor 12.3). Mas isto
significa confessar Jesus crucificado. O Espírito habita na
comunidade e faz dela o templo de Deus porque a palavra
do crucificado lhe é, anunciada, uma palavra que torna vã
toda a sabedoria humana (ICor 3.18s.) e inúteis todos os es­
forços para ser justo, praticando as obras da Lei (G1 3.1-5).
O Espírito de Deus não é, portanto, a potência sobrenatural
que possibilita transcender os limites da própria existência
terrestre, e sim a força de Deus que se demonstra poderosa
na humildade e na fraqueza.
As diretrizes do apóstolo a propósito do culto (ICor
14) mostram com quanta energia ele se esforça para contro­
lar os espíritos, para não abrir as portas ao caos pneumáti­
co, sem, aliás, apagar o fogo do Espírito, colocando em seu
lugar a razão e a ordem.
O teor daquele capítulo poderia sugerir um mal-en­
tendido neste sentido, porque Paulo, solicitado pelos co-
ríntios a tomar posição a respeito da questão dos "dons
espirituais", distingue várias vezes e muito nitidamente o
"falar pelo Espírito" do "falar com a inteligência" e, por
conseguinte, minimiza o "falar em línguas" extático, que os
coríntios consideravam como a mais elevada manifestação
do pneüma divino, concernente à profecia e a outras formas
"racionais" de discurso. Mas Paulo, aqui, somente se serve
do conceito vulgar de "espírito" (e de "dons espirituais"),
comum em Corinto e no restante da cristandade prim itiva
para requalificá-lo e para lhe dar um novo conteúdo e cri­
tério.
Realmente, para ele, também a profecia é um dom
espiritual, é, até mesmo, o mais elevado de todos, porque
pode ser entendido por todos aqueles que estão reunidos
no culto, também pelos estranhos ou incrédulos que even­
tualmente ali se encontrem, de maneira que, convencidos
286 Paulo, V ida e O bra

e tocados na própria consciência, devam cair de joelhos


e confessar: "Deus está realmente no meio de vós" (ICor
14.24s.).
Nasce daqui a reserva crítica do apóstolo em relação a
todas as formas de falar extáticas no culto (pregação, ora­
ção, canto, bênção) com as quais quem fala pode edificar a
si mesmo, mas não a comunidade. O critério decisivo, ao
invés, deve ser a responsabilidade para com os outros, tam­
bém para com os últimos, que ainda não foram atingidos
pelo Espírito. O Espírito de Deus e a razão não são, por­
tanto, simplesmente antagonistas. Para Paulo, não são, na
verdade, princípios abstratos. Tal é, ao invés, o conceito e a
consciência que deles têm os espirituais entusiastas. Para o
apóstolo, pelo contrário, o único conteúdo e critério é, em
todas as coisas, a palavra da salvação, válida para todos e
inteligível por todos.

c) Espírito e direito

As afirmações contidas em ICor 14 nos oferecem já


importantes indicações para responder ao problema muito
discutido das relações entre o Espírito e o direito na com­
preensão paulina da Igreja. Somente na época posterior a
Paulo se começou a pensar também neste campo na base
de princípios e, desenvolvendo os conceitos de ministé­
rios, hierarquia e sucessão e outros, houve um esforço para
equilibrar e conectar reciprocamente aqueles dois elemen­
tos. A igreja torna-se, assim, instituição e, vice-versa, o en­
tusiasmo dos iluminados assumem, sob muitos aspectos,
um papel de contestação.
A douta e acalorada discussão desenvolvida recen­
temente na Alemanha no campo da história do direito
canônico, a propósito da alternativa "Espírito ou direito"
(R. Sohm ), se move neste terreno. Mas, para Paulo, uma tal
M ensagem e T eologia 287

alternativa não existe. O direito e o Espírito não se contra­


dizem. Pelo contrário, cada um dos dois requer o outro,
enquanto "Deus não é um Deus de desordem, mas de paz"
(ICor 14.33).
Muitas indicações do apóstolo possuem um caráter
absolutamente jurídico, Porém, ao dá-las, Paulo não quer
contrapor à livre iniciativa do Espírito também um espaço
para a função do direito, que, agrade ou não, na comu­
nidade terrena deve inevitavelmente intervir para lim itar
e corrigir. Fá-lo, porém, de modo a valorizar o elemento
jurídico ínsito na pregação e na própria ação do Espírito.
Por isso, diante dos iluminados entusiastas de Corinto,
ele reivindica também para si o Espírito: "Se alguém julga
ser profeta ou inspirado pelo Espírito, reconheça, nas coi­
sas que vos escrevo, um preceito do Senhor" (IC or 14.37);
"(...). Julgo que também eu possuo o Espírito de Deus"
(IC or 7.40).
Certamente, este direito estabelecido na potência do
Espírito e inaugurado pelo apóstolo é de um tipo parti­
cular. Os elementos que habitualmente fazem, de manei­
ra necessária, parte da esfera do direito e fundam uma
comunidade juridicamente constituída, não encontram
nenhuma guarida em Paulo, ou, no máximo, um papel
subordinado e não determinante: assim, uma lei fixa, uma
instância autorizada que estabeleça o direito e assegure a
sua aplicação e interpretação, dos poderes que, em caso
de necessidade, imponham a sua observância ou punam
as transgressões.
Em casos extremos, é claro, Paulo pode chegar a re­
cordar à comunidade o dever e a autoridade de manter a
disciplina, que lhe foram conferidos pelo Espírito, e que
levam até à expulsão dos pecadores notórios (IC or 5.3s.).
Pode ameaçar até de usar a sua autoridade apostólica
para ir ter com eles "com vara" (IC or 4.21). Mas para ele
288 Paulo , V ida e O bra

não existe ainda um estatuto unitário e coercivo da comu­


nidade que regularmente as suas funções e competências
jurídicas.
Ocasionalmente, se fala de superiores da comunidade,
aos quais é preciso submeter-se para não tornar mais d ifí­
cil o seu trabalho (lTs 5.12), de "epíscopos e diáconos" (F1
1.1), do carisma do "governo" (IC or 12.28; Rm 12.8). Mas
estas expressões são raras e variáveis e indicam serviços
momentâneos. De modo algum são passíveis de serem in­
seridos numa escala hierárquica de ministérios institucio­
nalizados.
Segundo os dados fornecidos pelo epistolário autênti­
co do apóstolo, a constituição patriarcal dos "anciãos", de
origem sinagogal, é ainda desconhecida das comunidades
paulinas, sendo introduzida na Igreja somente em época
posterior. O livro dos Atos dos Apóstolos e as epístolas
pastorais deuteropaulinas fazem-na remontar a Paulo, mas
erroneamente. Naturalmente, o mesmo vale para o episco-
pado monárquico de época posterior.
Tanto mais importante é, por isso, a questão das fontes
jurídicas e dos princípios sobre os quais o apóstolo baseia
as suas instruções. Algumas vezes, se reporta a alguma
palavra do Senhor. Para ele, estas possuem uma autoridade
absoluta. Mas têm também realmente o caráter de prescri­
ções jurídicas? Entre as poucas por ele citadas, a proibi­
ção do divórcio, pronunciada por Jesus, tem, sem dúvida,
um caráter jurídico (ICor 7.10), mas somente num sentido
limitado. Com efeito, Paulo cita aquele dito do Senhor como
válido, e, todavia, admite o divórcio num matrimônio mis­
to entre um cônjuge cristão e um não cristão, quando este
últim o insiste na separação.
Alhures, cita a palavra de Jesus, segundo a qual um
trabalhador é digno do seu salário (IC or 9.14), mas coloca
esta citação no contexto de outras normas com o mesmo
M ensagem e T eologia 289

conteúdo, do qual, porém, não faz uso para uma decisão


livre própria.
Também o Antigo Testamento, para ele, não é fonte do
direito. Para o apóstolo e para as suas comunicações, trata-
se evidentemente da Sagrada Escritura, que é muitas vezes
utilizada segundo os métodos dos comentadores judeus.
Porém, ela não existe para si mesma, mas foi escrita "para
a nossa instrução, nós que fomos atingidos pelos últimos
tempos" (ICor 10.11; cf. Rm 15.4). Na medida em que o
Antigo Testamento transcende a si mesmo e se refere ao
cumprimento e ao "hoje" escatológico, no qual vive a co­
munidade cristã, Paulo lhe reconhece uma função im por­
tante, mas, ao mesmo tempo, relativiza fortemente a sua re­
levância normativa para a vida da comunidade. Enquanto
lei obrigatória, ele foi abolido por Cristo e, no máximo,
pode servir para esclarecer a situação dos fiéis e confirmar
o que vale a partir do Evangelho.
Isto vale ainda mais para os argumentos que Paulo
tira, não raras vezes da ordem da natureza e do costume
geral e para as suas referências aos usos e ordem pratica­
dos comumente pelas comunidades. Também estes são
somente argumentos auxiliares, que não dão um funda­
mento à Igreja, e não estabelecem um direito, mas servem
antes, em certos casos, para fazer com que a comunida­
de se envergonhe e tome consciência daquilo que é reco­
nhecido por toda parte como justo e correto. Assim, por
exemplo, no caso, adm itido sem recriminação pela comu­
nidade de Corinto, de um membro da comunidade que
vivia maritalmente com a mulher do seu pai (trata-se da
madrasta, cf. IC or 5.1s.), o que não é tolerado (nem mes­
mo entre pagãos".
Cada um destes motivos tem a sua validade, se bem
que muito diversa, mas todos estão coordenados com
o verdadeiro fundamento do qual as diretrizes de Paulo
290 Paulo , V ida e O bra

retiram a sua força, ou seja, a mensagem da salvação e a vida


nova em Cristo, na qual os fiéis foram colocados pela graça
de Deus e sem a própria colaboração. Esta é a nova reali­
dade de vida da qual eles têm origem, independentemente
do fato que eles se conformem ou não ao Evangelho que
ouviram.
Do mesmo modo como Paulo lança em rosto aos
Gálatas a pergunta "donde recebestes o Espírito?" (G13.2),
assim, na Primeira Epístola aos Coríntos, pode exprimir a
sua gratidão - e não somente no sentido de uma captatio
benevolentiae - pelo fato que a comunidade foi copiosamen-
te enriquecida pela graça de Deus, de maneira que o teste­
munho de Cristo se enraizou bem nela (IC or 1.4s.), mesmo
se, justamente em Corinto, ocorreram horrendos escânda­
los morais.
A despeito disso, o Espírito opera entre os coríntios.
Por isso, o apóstolo intervém com tanto maior energia e
busca reconduzir a comunidade para o bom caminho. Mas
jamais rejeita esta ou aquela comunidade, nem sequer
algum membro de alguma delas, embora apontando à
consciência das comunidades, com extrema energia, até
com frases de imploração e fórmulas de maldição, os lim i­
tes intransponíveis que o Espírito de Deus opõe a qualquer
imoralidade, bem como o poder julgar que lhe é inerente
(ICor 3.17; 14.38; 16.22; G16.7s.).
O tema decisivo e fundamental das instruções que
Paulo dá às comunidades é a lembrança da sua origem, vale
dizer, a ação salvífica de Deus em Cristo e anunciada no
Evangelho. Mesmo não tendo nenhuma importância par­
ticular pela sua cultura, poder ou posição, nem pela sua
própria justiça, os fiéis foram "chamados" e, em Cristo,
receberam uma nova existência do Criador, o mesmo que
chamou à existência todas as coisas do nada (ICor 1.26s, e
passim)
M ensagem e T eologia 291

Libertados do poder do mundo que passa (G1 5.1,13;


Rm 6 e passim) os fiéis não estão mais submetidos aos seres
humanos ou a si mesmos, mas são propriedade de Deus
(ICor 6.19s.; 7.23s.; Rm 14.7s.). Outrora escravos da noite
e das trevas, eles são agora filhos da luz e do dia (lTs 5.5;
Rm 13.11s.). "Mas vós vos lavastes, mas fostes santificados,
mas fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e
pelo Espírito de nosso Deus" (ICor 6.11). São "uma nova
criatura em Cristo" (2Cor 5.17). Tudo isso é já realidade
para a comunidade em virtude da graça que a mensagem
da salvação lhe anuncia e que a fé acolhe. Tal realidade é o
único fundamento que Paulo reconhece à própria autorida­
de apostólica (ICor 4.15; Rm 12.1,3 e passim).
O Espírito, vinculado à palavra da cruz, é uma instân­
cia extremamente crítica em relação a todas as manifesta­
ções e garantias evidentes sobre as quais os seres humanos
tendem a basear a sua confiança. Paulo vê as suas comuni­
dades expostas a esta tentação e mortalmente ameaçadas,
seja da parte do judaísmo ou da parte dos espirituais en­
tusiastas. Por isso, a luta em duas frentes que caracteriza
toda a sua história. Judaísmo e espiritualismo, embora, à
primeira vista, diferentes, são, na realidade, claramente co­
nexos e podem chegar a se coligar, como demonstram os
adversários de Paulo em Corinto, na Galácia e em Filipos.
De um lado, se trata da tentação de quem, aceitando a
Lei, a circuncisão e o ritual do culto, busca se unir ao povo
privilegiado da salvação e palmilhar novamente a estrada
desesperadamente sem saída. De outro lado, trata-se do es­
forço, aparentemente oposto, de romper todos os vínculos
terrenos - a ponto de proclamar e praticar descaradamente
o libertinismo moral - e de exibir a nova existência "em
espírito".
Tanto a recaída no legalismo, quanto a fuga na exalta­
ção da experiência pneumática, são da mesma forma con-
292 Paulo, V ida e O bra

sideradas pelo apóstolo um ultraje e o aniquilamento da


cruz de Cristo (G1 5.11; F1 3.18; IC or 1.17), em todo caso,
como uma tentativa de ultrapassar a realidade atual, ter­
rena e histórica, na qual o Evangelho procura, encontra e
conserva os fiéis, para se lançar num passado imaginário
ou numa "realização" de fantasia. N um e noutro caso, os
seus adversários e críticos, aos quais o Evangelho de Paulo
é insuficiente, são vítimas de um anacronismo fatal e eli­
minam da palavra da graça a sua verdadeira atualidade e,
por consequência, também o seu destinatário, ou seja, o ser
humano, junto a quem ela quer concretizar a sua obra de
libertação.

d) O culto divino

Não por acaso, muitas diretrizes paulinas, na Primeira


Epístola aos Coríntos, se referem ao culto divino. A ekklesía
é antes de tudo e sobretudo a comunidade reunida para
o culto a Deus. No culto se demonstra o que a comunida­
de efetivamente é, mas aparecem também à tona, de modo
exemplar, a sua conduta desordenada e os seus erros.
Também neste caso, é importante anotar o que o apóstolo
acentua nas suas instruções e o que, por sua vez, deixa de
lado como não importante.
Nenhum autor do Novo Testamento nos dá tantas
informações sobre o culto da Igreja prim itiva. Contudo,
não encontramos em Paulo quase nenhum aceno a coisas
que, no ambiente judaico ou pagãos, fazem diretamente
parte do culto: lugares e tempos sagrados, ritos e funções
sacerdotais. E verdade que ouvimos falar da pregação da
palavra, de bênção, do Amém com o qual a comunidade
responde, da invocação do kyrios e das aclamações com as
quais a comunidade atesta a sua presença e potência, dos
hinos em seu louvor e de atos cultuais como o batismo e
M ensagem e T eologia 293

a ceia do Senhor. Por outro lado, percebe-se claramente a


influência exercida sobre o culto das comunidades pauli-
nas pelo culto sinagogal do judaísmo da Diáspora, como
também da parte de certas práticas e concepções dos mis­
térios helenísticos.
Todavia neste campo, permanecem abertas muitas
questões e não é possível reconstruir, com base no episto-
lário de Paulo, um esquema litúrgico suficientemente uni­
tário do culto prim itivo. Não é possível sequer responder
de maneira convincente à pergunta se o culto da palavra e
a ceia do Senhor constituem sempre e em toda parte uma
unidade.
A unidade não era, com toda probabilidade, uma re­
gra fixa, mas não o era também a separação dos dois mo­
mentos. Uma informação casualmente contida em ICor
16.2 nos permite saber que a comunidade celebrava como
festivo o primeiro dia da semana, ou seja, o dia da ressur­
reição de Cristo. Em suma, havia, sem dúvida, uma grande
variedade e liberdade. Muitos elementos, porém, que em
outros lugares faziam parte constitutiva do culto certamen­
te estavam ausentes nas comunidades paulinas.
Tanto mais eloquentes e inequívocas são as afirmações
do apóstolo a respeito do significado e do critério segundo
o qual deve ser medido e avaliado tudo o que ocorre no
culto. A única norma é a "edificação" da comunidade. Esta
palavra se encontra não menos de sete vezes no capítulo 14
da Primeira Epístola aos Coríntios, que já citamos várias
vezes. Naquela circunstância, Paulo, como sabemos, devia
tomar posição sobre as manifestações pneumáticas e sobre
os seus efeitos na igreja de Corinto, que ficara desnorteada,
devendo também se pronunciar a respeito da maneira um
tanto tumultuada de celebrar o culto.
Neste contexto, volta seguidamente a palavra "edi­
ficação". A nossa linguagem eclesiástica tradicional,
294 Paulo , V ida e O bra

infelizmente, a desvalorizou, empobreceu e interpretou


num sentido antipaulino, a ponto de ser necessário, antes
de tudo, recuperar seu significado originário. Em Paulo,
aquele termo não se refere à experiência religiosa subjeti­
va de cada um. Os espirituais entusiastas de Corinto a en­
tenderam, desde então, erroneamente, neste sentido. Mas
o apóstolo fala num sentido irônico e crítico da "auto-edi-
ficação" (IC or 14.4; cf. também, IC or 8.10) e, efetivamen­
te, reconhece somente a edificação da comunidade (IC or
14.3-5,12,17,26).
O próximo que ainda não recebeu dons espirituais es­
peciais está edificado? E com ele, o está também a comu­
nidade no seu todo? Esta é a pergunta crítica a partir da
qual o apóstolo avalia a glossolalia e a profecia. O conceito
de "construir" e "prosseguir uma construção" é usado por
Paulo também a propósito da sua atividade de fundador
de comunidade, bem como do trabalho dos seus discípu­
los (ICor 3.5s.; 2Cor 10.8; 12.19; 13.10). Mas, no interior da
comunidade, cada um deve também edificar o outro (lTs
5.11; IC or 8.11s.; IC or 14; Rm 14.19; 15.2), segundo a medi­
da e o exemplo de Cristo, que morreu também pelo próxi­
mo (ICor 8.1 ls.; Rm 14.15) e a todos acolheu (Rm 15.7).
A lei da edificação da comunidade consiste no dom de
si, no serviço e na renúncia à afirmação dos próprios direi­
tos. Neste sentido, Paulo fala de si mesmo como de alguém
que é "sem-lei", embora não sendo "sem lei em relação a
Deus, mas sob a Lei de Cristo" (ICor 9.21), e dirige à comu­
nidade o convite: "Sede meus imitadores, como também
eu o sou de Cristo" (ICor 11.1; cf. G1 4.12; 6.2; F1 3.17; lTs
1.6; 2.14).
Todas estas palavras do apóstolo indicam claramen­
te como as suas instruções sobre o culto não são outra
coisa senão uma aplicação prática da "teologia da cruz",
mas mostram, ao mesmo tempo, que, para Paulo, o culto
M ensagem e T eologia 295

divino não se lim ita deveras a determinados atos cultuais,


mas abrange a vida inteira do fiel: "Exorto-vos, portanto,
irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos
corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus; este
é o vosso culto espiritual" (Rm 12.1).
Esta exortação abre a parte final, exortativa, da
Epístola aos Romanos. A qui o apóstolo retoma com a lo­
cução "culto espiritual" uma expressão bem conhecida dos
textos místico-religiosos da Antiguidade tardia. O raciona-
lismo grego, confrontando-se com os ritos de sacrifício da
religiosidade popular, havia já desenvolvido o conceito
segundo o qual a verdadeira piedade religiosa se demons­
tra no uso apropriado da razão. Mas somente a mística
helenista havia dado um ulterior passo adiante, afirman­
do que a forma mais elevada de adoração da divindade se
atinge no hino extático em honra de Deus, na união com
o Todo divino.
Neste sentido - não somente em relação ao comporta­
mento racional-espiritual, mas também em relação ao com­
portamento operado pelo Espírito de Deus - Paulo retoma
aquela temática, mas a usa em sentido totalmente diferente
e crítico: vós mesmos, o vosso corpo e a vossa vida na ativi­
dade cotidiana sois o único sacrifício que Deus aceita.
Desta maneira, os espirituais entusiastas, que se acre­
ditavam já transportados para além do tempo e da história,
são novamente chamados pelo apóstolo à temporalidade
e à historicidade da sua existência, na qual cada um é res­
ponsável pelo outro. Com efeito, a Igreja não vive ainda no
novo éon da perfeição, mas vive na tensão da última época
do mundo, que está entre a ressurreição do Senhor cruci­
ficado e a sua parusia. Aqui, ela vive ainda sob o signo da
sua morte na cruz, na fraqueza, e, todavia já vive uma vida
dirigida pela potência do ressuscitado (2Cor 13.4). As ma­
nifestações do Espírito eram consideradas por muitos com
296 Paulo, V ida e O bra

admiração e louvor, mas Paulo, que as conhece por experi­


ência, não as proíbe às comunidades, porém, não lhes atri­
bui o caráter de perfeição suprema e as dimensiona com o
critério da palavra da cruz e do mandamento do amor.

e) Batismo e ceia do Senhor

Nas declarações paulinas sobre o batismo e a ceia do


Senhor, voltam pensamentos do mesmo teor. Também nes­
te caso, o apóstolo remonta àquilo que a comunidade já co­
nhece (Rm 6.3; IC or 10.15). Mas qual é a sua maneira de
entender estes dois atos?
O conceito teológico de "sacramento", sob o qual nós os
sintetizamos, era ainda desconhecido para ele, embora lhe
ocorra citá-los ocasionalmente juntos (ICor 10.1-4). Aquele
conceito, enquanto tal, possui conotações negativas, na me­
dida em que pode facilmente orientar o interesse do leitor
para atos rituais que não entram, de forma alguma, na ótica
de Paulo.
Seja como for, para Paulo não se trata de ações encena­
das pelos seres humanos, mas de ações eficazes em virtude
da graça que, como tais, são aceitas a priori e tidas em alta
consideração em suas comunidades, e em geral em toda
cristandade prim itiva. Todavia, Paulo fala delas como de
exemplos, de ilustrações, e extrai delas noções que, em ou­
tros casos, deduz diretamente da mensagem de Cristo ou
das confissões de fé já existentes, sem recorrer aos "sacra­
mentos".
As suas considerações a respeito do batismo pretendem
recordar o seu significado e aplicá-lo à existência dos fiéis.
Desde os primórdios, a comunidade prim itiva exercitou o
batismo no nome de Jesus, entendendo-o como sacramen­
to, ou seja, como uma ação que produz efeitos reais, faz
dos batizados uma propriedade do Senhor, transmite-lhes
M ensagem e T eologia 297

o perdão dos pecados, confere o Espírito, coloca-os sob a


proteção do kyrios e, deste modo, os incorpora à comunida­
de salvífica escatológica.
Paulo fala do batismo nos mesmos termos, usando ex­
pressões já usuais na tradição cristã: lavar, santificar, justi­
ficar (ICor 6.11), fortificar em Cristo, ungir, selar (marcar
com selo), o penhor do Espírito (2Cor 1.22).
A sua convicção de que o batismo produz um efeito
real se depreende também da menção ocasional que ele faz
do assim chamado batismo vicário, estranho uso praticado
em Corinto (ICor 15.29). Ele diz que os coríntios se fazem
batizar no lugar de algum pagão morto incrédulo, de modo
a assegurar a este também a participação na salvação. E pou­
co provável que Paulo tenha introduzido ou recomendado
este uso, que não era ignorado nos mistérios gnósticos, mas
também não o condenou, e o menciona, para demonstrar
aos coríntios que, negando a ressurreição dos mortos, eles
tornam absurda a sua própria prática batismal.
As expressões que enumeramos e que indicam como o
evento salvífico está atualizado no batismo, não esgotam,
porém, o seu significado. Algumas outras expressões pau-
linas, como a de "revestir" Cristo (G1 3.27) e "fomos todos
batizados num só Espírito para ser um só corpo (...) e todos
bebemos de um só Espírito" (IC or 12.13), definem de ma­
neira ainda mais intensa e precisa a união total do batizado
com Cristo.
Neste ponto, cabe mencionar a ideia, que se encontra
em Rm 6.3, do batismo como participação na morte e res­
surreição de Cristo. Um número não elevado mas suficien­
te de paralelos da história das religiões mostra como tal
concepção penetrou nas comunidades cristãs helenistas,
sob a influência de cultos de mistérios pagãos, nos quais
os iniciados conseguem participar da sorte da divindade
à qual rendem culto, e de serem salvos do próprio destino
298 Paulo, V ida e O bra

mortal, morrendo e ressurgindo juntamente com o deus.


Mas é significativo o modo como Paulo usa e modifica tal
concepção, diversamente de quanto a analogia com os mis­
térios pagãos deixaria supor e de quanto provavelmente
pensavam as suas comunidades.
Estas últimas viam o batismo como uma introdução
já ocorrida numa vida nova, sobrenatural, além da morte,
em virtude da ressurreição de Cristo. Paulo, pelo contrá­
rio, referindo-se ao presente dos batizados e dos fiéis, diz
somente que eles estão crucificados, mortos e sepultados
com Cristo; mas o ressurgir e o viver com Cristo são, para o
apóstolo, somente objetos de espera (observe-se as diferen­
ças entre as formas verbais do passado e as frases construí­
das rigorosamente no futuro, em Rm 6.2-8!).
Portanto, o presente está sob o sinal da morte de Cristo.
Enquanto crucificados com ele, os fiéis vivem ainda no
"corpo da humilhação" (F1 3.21; cf., também, 3.10; Rm 8.17
e passim). Esta, portanto, é já uma existência escatológica,
porque os batizados estão subtraídos à potência destruido-
ra do pecado, que está agora atrás deles.
Enquanto pessoas mortas com Cristo, também a morte
está agora atrás e não mais diante deles: eles vêm da morte,
mas não no sentido físico de uma ressurreição corporal, e
sim no sentido de serem libertados e chamados a uma nova
maneira de ser, a uma nova vida, "(...) para que como Cristo
foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim
também nós vivamos vida nova" (Rm 6.4). Neste sentido,
pode-se também dizer do presente dos batizados: "Assim
também vós considerai-vos mortos para o pecado e vivos
para Deus em Cristo Jesus" (Rm 6.11).
Com esta distinção entre morte e ressurreição, entre
presente o futuro, entre "já" e "ainda não", por mais es­
treita que permaneça a sua união recíproca, Paulo rompeu
radicalmente com o esquema dos cultos de mistério sobre
M ensagem e T eologia 299

o batismo e derrubou, igualmente, com isso, a concepção


vulgar e corriqueira nas comunidades helenísticas que eli­
minava e nivelava aquela dialética decisiva.
Nas considerações de Paulo a respeito da ceia do Senhor
são encontráveis os mesmos motivos que ele desenvolve a
propósito do batismo. Não é o caso de nos adentrar no es­
tudo das origens desta celebração proto-cristã e da sua pré-
história, cujos pormenores, em parte, nos escapam, nem
de seguir-lhe o desenvolvimento ulterior na Igreja antiga.
Dúvida não há de que ela remonta à última ceia de Jesus: o
próprio Paulo, ao citar as palavras da instituição, se refere a
uma tradição transmitida pelo Senhor (ICor 11.23).
Mas não há dúvida, outrossim, de que a forma e in­
terpretação da celebração sofreram uma transformação
não irrelevante, sobretudo, no ambiente cristão helenista.
Também neste caso, o apóstolo pode lembrar à comuni­
dade uma tradição que lhe é bem conhecida e apelar para
uma interpretação que não procede dele mesmo (IC or
10.15). A li se afirma que, abençoando o cálice e beben­
do o vinho, os fiéis "participam " do sangue de Cristo, e,
igualmente, partindo e comendo o pão, "participam " do
seu corpo dado à morte por nós (IC or lO.lós.; 11.23s.).
O pressuposto de tudo isso é que a "ceia do Senhor" (IC or
11.20) é uma verdadeira refeição, feita em comum, na qual
se começa com o agradecimento e com a fração do pão e,
em seguida, "após a ceia" (IC or 11.25), se termina com a
distribuição do cálice.
Os dois atos da distribuição do pão e do cálice, separa­
dos pela refeição e realizados com a citação das palavras de
instituição do Senhor, têm um significado preciso no sen­
tido "sacramental" já mencionado e explicitado em ICor
lO.lós. Isto não contradiz a fórmula das palavras da ins­
tituição "Fazei isto em memória de m im "; pelo contrário,
a ela corresponde. Com efeito, aquela expressão não se
300 Paulo, V ida e O bra

refere à simples refeição em memória de alguém que fale­


ceu, como nós a conhecemos também alhures, mas implica,
no sentido rigoroso do termo, a "atualização" da morte sal-
vífica de Cristo.
Mas a interpretação sacramental da ceia do Senhor
caracterizada pelo conceito da "participação", não é espe­
cificamente paulina. Pode-se adm itir que seja comum ao
cristianismo helenístico todas as vezes em que são cita­
das as palavras da instituição que fazem parte da tradição
sinótica (Mc 14.22s e par.). Paulino é o sentido que o após­
tolo dá ao acontecimento sacramental. Ele faz esta dedução:
"Já que há um único pão, nós, embora muitos, somos um
só corpo, visto que todos participamos desse único pão"
(ICor 10.17).
O termo "corpo" muda de significado de uma frase
para outra. Nas palavras de Jesus sobre o pão: "Este é
o meu corpo dado por vós", designa, antes de tudo, o
corpo crucificado de Jesus, transm itido e recebido pelos
participantes para a própria salvação no pão que lhes é
oferecido. Mas, ao recebê-lo, os participantes são e de­
monstram de ser o corpo de Cristo, num sentido novo,
que não é menos real: como o corpus mysticum ecclesiae,
ou seja, a comunidade. Mas esta não é somente uma ima­
gem. A realidade da frase: "Este é o meu corpo" encon­
tra correspondência na realidade da outra palavra: "Nós
somos o seu corpo".
A incorporação redentora dos fiéis na esfera do senho­
rio de Cristo e a sua obrigatória unidade recíproca estão,
ambas, incluídas e associadas na concepção paulina da ceia
do Senhor. Com isso, estão dados os motivos e os argu­
mentos que guiam o apóstolo quando, no capítulo 11 da
sua Primeira Epístola aos Coríntios, admoesta severamente
a comunidade pelos abusos verificados durante a celebra­
ção. Também em Corinto, a ceia do Senhor era celebrada
M ensagem e T eologia 301

no quadro da refeição comunitária, mas, ao que parece, de


tal modo que os dois atos sacramentais do partir o pão e be­
ber em comum o cálice, que originariamente estavam sepa­
rados de todo o desenrolar da refeição, foram deslocados
ambos para o fim da refeição e colocados particularmente
em relevo.
Tal hábito se desenvolveu também desde cedo em ou­
tros lugares, tanto é verdade que a antiga fórmula "após a
ceia" ou "depois de comer" que ainda se encontra em Paulo
e Lucas (Lc 22.20), não se encontra mais nos relatos de Mc
14.22s e de M t 26.26s. O próprio Paulo não está interessado
em restabelecer aquela antiga norma litúrgica. Mas ele se
opõe energicamente contra a desvalorização e deformação
da refeição comunitária, que se introduziram no curso da­
quele desenvolvimento, e contra a interpretação errônea do
ato propriamente sacramental da ceia do Senhor.
Efetivamente, em Corinto se era consolidado o mau
hábito de fazer primeiro a refeição, divididos em grupos e
conventículos, onde os ricos se davam bem e não achavam
ser necessário esperar pelos pobres, tais como operários ou
escravos, que não estavam em condições de chegar pontual­
mente à reunião noturna da comunidade. Portanto, a ceia
se degenerara, a ponto de se ter transformado numa assus­
tadora exibição da divisão social, levando Paulo a observar
amargamente que entre eles "se tornou impossível tomar a
ceia do Senhor" (ICor 11.20).
Naturalmente, importa ter presente que os Coríntios
não eram de todo cientes das consequências da sua con­
duta. Eles podiam sempre ainda pensar que aqueles que
chegavam tarde não estavam excluídos do verdadeiro e
propriamente dito sacramento. Paulo, porém, não esta­
va disposto a aturar semelhante estado de coisas. Com
efeito, para ele, era impossível separar o corpo de Cristo
crucificado, recebido no sacramento, da comunidade,
302 Paulo, V ida e O bra

entendida como o único corpo de Cristo, assim como era


impossível separar a participação no sangue de Cristo,
ou seja, da sua morte, no "novo ordenamento salvífico"
(ou seja, na "nova aliança": IC or 11.25), representado na
comunidade.
Os coríntios, com a sua falta de atenção em relação uns
aos outros, haviam transformado a sua reunião numa ca­
ricatura da ceia do Senhor, atraindo sobre si o castigo de
Deus (ICor 11.27s.). Paulo precisa, portanto, convocá-los
a celebrar a ceia "dignamente", ou seja, de modo coerente
com a sua instituição, e a não comer, como ocorria, "sem
discernir o corpo do Senhor" (IC or 11.29), ou seja, sem
respeitá-lo enquanto corpo de Cristo que nos reúne no seu
corpo.
Do que foi dito, se conclui que, em Corinto, não se
havia perdido simplesmente o significado sacramental da
ceia do Senhor, como muitas vezes se sustentou, transfor­
mando-a num banquete alegre e profano. Ao contrário, os
coríntios devem ter acreditado num sacramento exagerado
e bem massivo e devem ter estado convictos que a partici­
pação no Cristo ressuscitado, a eles oferecida pelo sacra­
mento, já os teria transportado na esfera superior dos redi­
midos. Diante deste erro doutrinário, recorda-lhes Paulo,
já em IC or 10.1-13, a imagem do povo de Israel no deserto,
que fora abençoado pelos dons de Deus e, contudo se rebe­
lara, tendo sido tremendamente atingido pelo castigo d iv i­
no: "Assim, pois, quem julga estar em pé, cuide para não
cair" (ICor 10.12).
A maneira como Paulo aborda a questão da ceia do
Senhor, assim como a sua maneira de enfrentar os proble­
mas da glossolalia e da profecia, constituem atualizações
da teologia da cruz: "Pois todas as vezes que comeis desse
pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até
que ele venha" (ICor 11.26). A celebração que os iluminados
M ensagem e T eologia 303

entusiastas haviam colocado num além de fantasia encon­


tra, assim, o seu lugar no interior do tempo e da história,
entre a morte e o retorno de Cristo, e a comunidade deixa
de ser um fantasma para se tornar uma maneira concreta e
terrena de conviver na fraternidade.

f) O corpo de Cristo

No contexto das afirmações paulinas a respeito do cul­


to divino e especialmente sobre os sacramentos, encontra­
mos repetidamente a expressão corpo de Cristo para desig­
nar a comunidade. Paulo retomou, com isso, um conceito
sociológico bem conhecido e abundantemente utilizado na
Antiguidade, fazendo dele um uso significativo (cf. IC or
12.14s.). Mas, não se requer muito para entender que esta
imagem usual de um organismo unitário e também articu­
lado, no qual cada membro possui a sua função no conjunto
e este últim o não poderia viver sem cada um dos membros,
não esgota o pensamento de Paulo.
Certas passagens de grande importância, especialmen­
te em referência aos sacramentos (ICor 12.13; 10.17), falam
da comunidade não somente em sentido figurado: ela não
é como um corpo, mas é realmente o corpo de Cristo (ICor
12.27; cf., também, 12.12), é um corpo em Cristo (Rm 12.5),
ela é diferente de todas as associações terrenas, mas tam­
bém é uma realidade terrena, fundada sobre aquele Um
que se ofereceu corporalmente à morte e que está presen­
te na comunidade. Esta última é essencialmente "corpo"
neste Um, e não na multiplicidade e diversidade dos seus
membros.
As barreiras e as divisões humanas e terrenas entre
judeus e gregos, escravos e livres, entre homens e mulhe­
res, não têm mais valor algum nela (ICor 12.13; G1 3.28).
Em sentido estrito, não se pode falar aqui de um organismo
304 Paulo, V ida e O bra

no significado humano e natural do termo, quando m ui­


to, mesmo se também num sentido cheio de equívocos, de
um órgão de um meio ou instrumento mediante o qual o
próprio Cristo estabelece o seu senhorio, realizando-o por
meio do seu Espírito. A comunidade não deve se tornar
este instrumento, ela já é este instrumento em virtude da
sua morte e ressurreição, por Cristo libertada e repleta de
dons, sem exceções.
Justamente por isso, Paulo não permite que a comu­
nidade e o culto divino se tornem, como em Corinto, um
teatro ou uma arena para virtuosos da religião, fascinante
para uns e desencorajador para outros, um terreno propí­
cio para entusiásticas evasões fora da realidade histórica e
terrena da existência humana, na direção de um pretenso
além divino.
Efetivamente, para Paulo, o Espírito não é privilégio de
poucos e as suas manifestações não se explicam essencial­
mente naquelas explosões excepcionais que haviam produ­
zido notoriamente na comunidade de Corinto um senso de
superioridade em uns e resignado desencorajamento em
outros. O Espírito foi dado a todos e age em todos de ma­
neiras diversas, mesmo nos serviços e afazeres aparente­
mente insignificantes e banais da vida comunitária cotidia­
na, que em Corinto, certamente, ninguém colocava entre os
"dons do Espírito".
Ao lado da profecia, da glossolalia e da sua inter­
pretação em linguagem compreensível, ao lado do dom
do discernimento em relação às intervenções espirituais
(demoníacas ou divinas), ao lado da pregação e do ensi­
namento apostólico e do dom de curar as doenças, Paulo
enumera entre os dons do Espírito ou, para dizê-lo em sua
linguagem típica, entre os dons da graça, também o dom
do governo da comunidade, o encorajamento recíproco e a
assistência mútua. Nas enumerações ocasionais que Paulo
M ensagem e T eologia 305

faz destes "dons" não se pode depreender nenhuma ten­


dência para estabelecer uma escala hierárquica e nem pre­
tensão de uma enumeração exaustiva ou completa (ICor
12.9s,28s.; Rm 12.7s.). O importante é que ninguém fica ex­
cluído e a ação da graça, das maneiras mais diversas, se
concretiza em todos, segundo a medida da fé que o único
Deus, o único Senhor e o único Espírito deu a cada um (Rm
12.5; IC or 12.4s.).
A antiga imagem do corpo único com muitos mem­
bros é utilizada por Paulo somente neste contexto, ou seja,
em referência aos dons e à ação da graça. Todavia, esta se­
gunda aplicação ilustrativa do tema do corpo está subor­
dinada à precedente e, por si só, não é suficiente para defi­
nir a natureza da Igreja. Mas com base nas afirmações, nas
quais a Igreja é entendida, em sentido real e concreto, como
corpo de Cristo, Paulo pode usar a imagem do organismo
para combater os males que afligem a comunidade e que,
em IC or 12.15s., são pintados com cores drásticas, quase
surrealistas, com membros hipertrofiados ou atrofiados
que se digladiam e se fazem reciprocamente concorrência,
quando alguns membros se pavoneiam e outros se sentem
marginalizados ou até mesmo excluídos.
Paulo, criticando a uns e encorajando a outros, con­
vida, com aquela imagem, os membros da comunidade a
aceitar a si mesmos, mas também os outros, cada um no
seu posto, com as próprias potencialidades e os próprios
limites, a não se violentar uns aos outros segundo padrões
arbitrariamente fixados e exigindo demais deles, mas a
reconhecer a recíproca interdependência, cumprindo, as­
sim a "lei de Cristo" (G1 6.2), da qual vive a comunidade.
Sob esta lei, não ocorre mais que o sofrimento repugne ou
deixe indiferentes e que a honra e o brilho suscitem inveja.
Os membros do corpo de Cristo participam todos juntos da
dor e da alegria (ICor 12.26).
306 P aulo, V ida e O bra

V - FUTURO E PRESENTE
(ESCATOLOGIA E ÉTICA)

1. O tempo ãa fé

Segundo a compreensão de Paulo, o tempo da fé não


pode ser interpretado nos moldes do esquema do tempo
universal: o que aconteceu? o que está acontecendo? o que
acontecerá?
Nos capítulos precedentes, vimos até que ponto, na
sua pregação, o acontecimento que se verificou em Cristo
em favor do mundo era uma realidade presente, mas não
menos o futuro que aquele evento abriu, por mais que o
apóstolo sempre sublinhe fortemente o "ainda-não" que
caracteriza a existência terrena. Contudo, devemos exami­
nar ainda mais de perto a relação entre futuro e presente.
O problema se coloca por causa de certas aproximações
de pensamentos paulinos, aparentemente contraditórios:
convida os Filipenses à alegria, em consideração da im i­
nente vinda de Cristo (F1 4.4s.); lembra que este mundo é
passageiro (ICor 7.29); anuncia a próxima ressurreição dos
mortos e a transformação dos sobreviventes (ICor 15.50s.);
mas o mesmo Paulo prega que o tempo já se completou (G1
4.5); que a "nova criação" em Cristo já está presente (2Cor
5.17) e que os "últim os tempos" já atingiram os fiéis (ICor
10.11).
Trata-se, aqui, simplesmente de aproximação não re­
solvidas e, quiçá, condicionadas por estados de ânimo e
situações variáveis, ou a contradição se resolve, por assim
dizer, no sentido quantitativo, dizendo que algumas coisas
são já concedidas à fé enquanto outras são reservadas para
mais tarde? Se bem que Paulo fale várias vezes neste modo
e até seja obrigado a fazê-lo para se opor aos espirituais en­
tusiastas (cf. IC or 4.8-13; 15; 2Cor 13.4 e passim), todavia as
M ensagem e T eologia 307

duas séries de afirmações estão estreitamente unidas uma


à outra, e o esquema de pensamento que constitui o seu
fundamento não encontra suficiente expressão nas fórmu­
las "sim /m as", "sim /não obstante". O verdadeiro conte­
údo do seu pensamento somente pode ser expresso com
um "dado que/por isso" (cf. Rm 5.1-11 e passim): dado que
o testemunho de Cristo está solidificado na comunidade
de Corinto e nele os fiéis foram extraordinariamente enri­
quecidos, por isso esperam a sua manifestação futura (ICor
1.4s.).
Tendo sido escolhido por Cristo, o apóstolo diz de si
mesmo: "Não que eu já o tenha alcançado ou que já seja
perfeito, mas vou prosseguindo para ver se o alcanço, pois
que também já fui alcançado por Cristo Jesus" (F1 3.12).
"Pois nós somos salvos - na esperança" (Rm 8.24).
Este é, na verdade, também o conteúdo das passagens
já citadas que se referem à situação atual, em relação à sal­
vação daqueles que foram batizados na morte de Cristo e
esperam a vida futura com Cristo (Rm 6.1s.), dado que ali
o apóstolo faz claramente referência à confissão de fé da
comunidade (Rm 6.8s.). O mesmo ocorre no capítulo 15 da
Primeira Epístola aos Coríntios, onde o apóstolo argumen­
ta, partindo do evento de Cristo, sobre o qual está fundada
a fé da comunidade (ICor 15.3s.), para motivar a esperança
na ressurreição futura dos mortos.
A mensagem de Paulo é de tal forma impregnada de
escatologia que não é correto fazer o que posteriormente
se tornou usual na Igreja, ou seja, fazer dela um capítulo
à parte e doutrinário, cujo título soa: "Das últimas coisas",
a ser colocado em apêndice, onde se incluem todas as afir­
mações e os pensamentos do apóstolo que ultrapassam a
morte individual e o fim do mundo. Já a definição tradicio­
nal de "coisas últimas" é inadequada para Paulo. Para ele,
basicamente, se trata das "primeiras" coisas.
308 Paulo , V ida e O bra

Por isso, coloca-se a questão de se saber se não teria


sido mais oportuno começar com a sua escatologia, que
forma um conjunto coerente e sem a qual é impensável a
sua doutrina da Lei, sobre a justificação e a salvação e qual­
quer outra declaração sua sobre a palavra da cruz, sobre o
batismo e a ceia do Senhor, sobre a ação do Espírito e sobre
a natureza da Igreja. Mas nem assim nos aproximaríamos o
suficiente do fundamento escatológico do seu pensamento
e da sua ação.
De maneira demasiadamente fácil se tiraria a erra­
da impressão, alimentada por não poucos tratados sobre
Paulo, segundo a qual a sua escatologia não seria outra
coisa senão um quadro de representações, retomado, tal­
vez com algumas modificações, da apocalíptica judaica e
proto-cristã, e na qual ele teria introduzido a mensagem
de Cristo, como que desenhando-a sobre um diagrama
prefixado de coordenadas. A inda que esta impressão
não esteja isenta de fundamento do ponto de vista da
história das religiões, e se bem que exista realmente uma
correlação entre a herança apocalíptica e a mensagem
paulina da salvação, o contrário é verdadeiro: ou seja,
que a escatologia tradicional é colocada por Paulo a ser­
viço do Evangelho, e que a mensagem de Cristo não é
compreendida, em prim eiro lugar, a p a rtir da apocalíp­
tica tradicional, e sim que esta últim a é reinterpretada à
luz do evento salvífico.
A validade das afirmações de Paulo sobre o presen­
te permanece intacta: não são, de maneira alguma, exage-
rações entusiásticas. Vale plenamente a sua assertiva: "Se
alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coi­
sas antigas; eis que se fez uma realidade nova" (2Cor 5.17).
Aquilo que a apocalíptica judaica e proto-cristã esperava
para o futuro, pintando-o com imagens múltiplas (cf. Ap
21.5), é anunciado como coisa que já aconteceu, com base
M ensagem e T eologia 309

no ato de reconciliação realizado por Deus em Cristo a fa­


vor do mundo.
Consequentemente, a escatologia não é abandonada
e substituída por uma teologia e filosofia imanentistas da
história. Esta orientação hegeliana se espelha nas formula­
ções do grande estudioso de Tübingen, F. C. Baur (1792­
1860) que, a propósito de G1 4, escrevia: "Como (...) ocorre
à essência da natureza humana, segundo a qual a criança e
o jovem se tornam adultos autônomos, o escravo se torna
livre, o servo se torna filho, assim Cristo se incorporou à
humanidade enquanto Filho no momento predeterminado,
ou seja, no momento em que a humanidade havia atingido
a maturidade necessária. Considerado sob este ponto de
vista, o cristianismo é um degrau da evolução religiosa que
surgiu de um princípio interno imanente à humanidade (!):
o progresso do espírito na direção da liberdade da auto-
consciência" (Neutestamentliche Theologie, 1964, p. 173).
Contudo, Paulo não pensa que o tempo chegue por si
à maturação e que o evento salvífico constitua, de certa for­
ma, a estação da colheita da história universal, e nem retém
que a necessidade de redenção dos seres humanos no mo­
mento da aparição de Cristo tivesse chegado a um grau tão
elevado a ponto de poder ser considerada quase como um
deus ex machina da história do mundo. A hora da salvação
é, pelo contrário, a hora livremente estabelecida pela graça
de Deus. "Com efeito, não é o tempo que ocasionou a vinda
do Filho. Ao contrário, a vinda do Filho trouxe o tempo à
sua realização" (L utero).
Porém, o que significa aqui escatologia? Evidentemen­
te, não somente que o relógio do tempo parou. Sem dú­
vida, Paulo possui em comum com o pensamento apo­
calíptico do judaísmo tardio e do cristianismo prim itivo
certas representações singularmente massivas do fim do
mundo. E, doutra parte, num sentido inverso, entende
310 Paulo , V ida e O bra

com isso um evento que já incide sobre o mundo, e que


somente Deus realizou e conduzirá a seu término. Tal
acontecimento derruba o horizonte e as possibilidades da
história humana, conduzindo-a a seu fim - a história de
Deus é, neste sentido, um movimento radicalmente opos­
to à história terrena.
Neste contexto de pensamentos, o tempo, a história e
o mundo são compreendidos de maneira bem diversa de
como são entendidos pela consciência moderna. Esta ú lti­
ma vê neles dados efetivamente constatáveis e oferecidos
à observação e à reflexão humana: o tempo, que flutua e
transcorre entre passado, presente e futuro; a história,
como elemento que se transforma incessantemente no tem­
po; o mundo, como estrutura durável que a ambos abarca.
Também o pensamento apocalíptico não os entendeu di­
versamente, se bem que de um ponto de vista teológico.
Observou o transcurso do tempo, periodizou o curso da
história e interpretou o mundo na perspectiva do seu fim e
do advento de um novo mundo de Deus.
A linguagem e as concepções da literatura apocalíptica
exerceram notória influência sobre a teologia paulina, mas
sofreram também uma profunda transformação. As elucu-
brações, as imagens e as concepções apocalípticas quase
desaparecem em Paulo ou são explicitamente rejeitadas
(lTs 5.1s.), salvo quando aparecem aqui e ali de maneira
fragmentária e desarticulada.
O elemento fundamentalmente novo na escatologia do
apóstolo é a afirmação de que na missão, na morte e na
ressurreição de Jesus Cristo teve lugar a passagem de um
éon ao outro. Tal elemento, na teologia de Paulo, se vincu­
la intimamente ao conceito, que ninguém antes dele havia
aprofundado e elaborado tão bem, segundo o qual o ser
humano perdido diante de Deus assinala com a sua marca
o mundo, e que o ato salvífico de Deus a favor deste ser
M ensagem e T eologia 311

humano se realizou no tempo e na história. Portanto, o tem­


po da fé se tornou o tempo que separa a morte e a ressurrei­
ção de Cristo do seu futuro.
Destarte, Paulo superou e abandonou a expectativa es-
catológica de tipo judaico e protocristão, mas explicitou, ao
mesmo tempo, a posição da fé em relação aos espirituais
entusiastas que estavam presentes nas suas comunidades.
Estes haviam acolhido com extrema avidez a notícia do
cumprimento dos tempos e da irrupção da salvação, e acre­
ditavam dar expressão ao novo éon na sua própria existên­
cia, sem estarem prontos para assumir a vida cristã como
uma peregrinação na humildade e no sofrimento.
De inúmeras afirmações polêmicas das epístolas pauli-
nas, podemos ver de que maneira os espirituais entusiastas
interpretavam com inadequação e incoerência a noção da
contemporaneidade e coincidência entre salvação já ocorri­
da e cumprimento ainda por acontecer, e de que modo, por
sua vez, impressionavam as comunidades através da pre­
tensa robustez do seu pensamento e do seu comportamento
linear e elevado. A seus olhos, o modo de pensar de Paulo
devia aparecer como a recaída num ínterim sem sentido e
num vazio já superado. Por sua vez, eles pensavam ter su­
perado a mensagem de Paulo e de poder deixá-lo atrás de
si. Todavia, a concepção de Paulo de uma temporalidade
que ainda perdura não é determinada primariamente por
uma carência, e sim positivamente pela própria mensagem
de Cristo. Não é um resíduo terreno a ser suportado com
paciência, mas é a condição de salvos, à qual Cristo morto
e ressuscitado dá significado e conteúdo. A temporalidade
e a historicidade são o terreno sobre o qual se move e se
verifica a fé.
Esta maneira paulina de ver as coisas se exprime, não
de maneira exclusiva, mas ainda assim de maneira extre­
mamente característica naquilo que costumeiramente deno-
312 Paulo , V ida e O bra

minamos a sua ética. Trata-se de um termo que se presta a


mal-entendidos e que suscita a impressão, equivocada no
concernente ao apóstolo, de um sistema de princípios e in­
dicações, separável da sua "teologia" e destinado a definir
a reta conduta dos cristãos, com a possibilidade de colo­
car os dois momentos debaixo das categorias de "teoria" e
"prática".
Ainda que nas epístolas de Paulo as exortações tenham
um lugar bem definido e até uma forma própria, aquela
maneira de entendê-las seria fundamentalmente errada.
Mas seria igualmente errado pretender deduzi-la desta ou
daquela ideia de ser humano, de estado, de sociedade ou
até de cosmos, como ocorre na ética platônica, na estóica e
em qualquer ética moderna. Ao contrário do judaísmo, as
suas exortações sequer são orientadas por uma lei fixa, que
deve ser interpretada e aplicada às diferentes relações e
situações da vida. Em oposição a isso, lemos em Paulo: "(...)
não estais debaixo da Lei, mas sob a graça" (Rm 6.14).

2. Viver pela graça

Viver pela graça significa que todas as ações dos fiéis,


do princípio ao fim, estão orientadas para aquilo que Deús
fez anteriormente em Cristo. Inicialmente, não existem
possibilidades abstratas ou ideais do ser humano, mas há
uma realidade à qual o próprio fiel não tem nada a acres­
centar, mas que ele deve, com muito mais razão, aceitar e
acolher mediante o dom obsequioso da própria existência.
As exortações do apóstolo são, por conseguinte, uma outra
maneira de expressar a sua mensagem de salvação.
Por isso, a "parênese" (isto é, o discurso exortativo) da
Epístola aos Romanos (Rm 12-15) começa com o abrangen­
te apelo já citado que sintetiza a mensagem de toda a parte
precedente, da epístola, trazendo-a ainda uma vez à mente
M ensagem e T eologia 313

com força suplicante: "Exorto-vos, portanto, irmãos pelas


misericórdias de Deus..." (Rm 12.1).
Um outro exemplo clássico nos é oferecido em F1 2.1s,
onde Paulo exorta os fiéis a renunciar a si mesmos por amor
dos outros (humildade). Paulo cita aqui um hino a Cristo
(o mais antigo hino eclesiástico que nos foi conservado!),
proveniente do hinário da comunidade primitiva. O conteú­
do do hino é a renúncia de Cristo à condição divina, o seu
aniquilamento e rebaixamento obediente até a condição
humana e à morte na cruz, e a sua subsequente exaltação,
por obra de Deus, à dignidade de Senhor (kyrios), superior
a todas as potências e autoridades (F1 2.6-11).
As palavras iniciais do hino, que recordam não so­
mente os sentimentos exemplares da humildade do Jesus
terreno, mas o próprio fato do seu rebaixamento, dizem
mais do que costumeiramente deixam entender as nossas
traduções ("Tende em vós o mesmo sentimento que esta­
va em Cristo Jesus..."); dizem mais corretamente o seguin­
te: "Orientai os vossos pensamentos sobre aquilo que é
válido em Cristo Jesus" (F1 2.5), isto é, sobre sua realidade
que nos circunda.
Aceitar e acolher tal realidade não é certamente um ato
meritório ou uma obra, mas é igualmente uma ação, tan­
to quanto é verdadeiro que a graça não age no fiel, como
se fosse uma coação da natureza e nem o trata à guisa de
objeto inanimado, como o escultor trata a pedra. Por isso,
no contexto imediato da referida citação, Paulo prossegue
de um modo bastante paradoxal: "Portanto, meus amados
(...), operai a vossa salvação com temor e tremor, pois (!) é
Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo a
sua vontade" (F1 2.12s.). Note-se, porém, que aqui a ação
não está subdividida entre Deus e o ser humano, como se
as duas proposições se complementassem. Como se disses­
se: colocai todo o vosso empenho e Deus se empenhará da
314 Paulo , V ida e O bra

sua parte e coroará o vosso esforço; ou: Deus começou, e


vós, cuidai para levar a cabo a sua obra. Não, as duas frases
são cada uma o fundamento da outra: Deus faz tudo, por
isso, fazei tudo também vós.
No antigo e no Novo Testamento, a frase "com temor
e tremor" indica a perturbação e o estupor do ser humano
que encontra Deus e que, colocado no raio de ação da inter­
venção de Deus, sente-se dominado pela preocupação de
seguir o seu passo e de não tornar vã a sua graça (2Cor 6.1).
Portanto, os fiéis, provenientes de Cristo, caminham na d i­
reção do "dia", chamados a ser "irrepreensíveis e puros,
filhos de Deus, sem defeito, no meio de uma geração má
e pervertida", como aqueles que brilham "como astros no
mundo, mensageiros da Palavra de vida" (F1 2.15s.).
O pensamento de Paulo se caracteriza muito particu­
larmente pela correlação que estabelece entre o anúncio da
salvação e o apelo à obediência, entre proclamação e voca­
ção. Nós parafraseamos isso com fórmulas, certamente não
erradas, mas já um pouco desgastadas, tais como: "Dom e
compromisso" ou "Sê aquilo que és!" (Se ao menos a nossa
linguagem, com expressões corretas, mas tornadas corri­
queiras, não deturpasse ou banalizasse o sentido, em vez
de despertar a atenção e a compreensão!).
As epístolas paulinas oferecem muitas variantes desta
concatenação e coincidência entre indicativo e imperativo
(cf. Rm 6.2s,lls.; 8.1s,12s.; 15.Is.; G1 5.1,13 e passim). Isto
se manifesta também no fato que muitas vezes o conteúdo
da promessa e do apelo são idênticos: "Vós vos vestistes
de Cristo" (G1 3.27); "Vesti-vos do Senhor Jesus Cristo"
(Rm 13.14), ou então: "Nós morremos para o pecado" (Rm
6.2); "Considerai-vos mortos para o pecado e vivos para
Deus em Cristo Jesus. Portanto, que o pecado não impere
mais em vosso corpo mortal..." (Rm 6.1 ls.). Ou então em
IC or 5.6s, onde Paulo relembra a Páscoa e o uso judaico de
M ensagem e T eologia 315

comer pão não levedado e diz numa linguagem metafórica:


"Purificai-vos do velho fermento (da maldade e da perver­
sidade) para serdes nova massa (de pureza e verdade), já
que sois sem fermento". E numa formulação clássica em
G1 5.25: "Se vivemos pelo Espírito, pelo Espírito pautemos
também a nossa conduta".
O âmbito em que se movem tais exortações é sempre
idêntico ao das afirmações que anunciam a salvação. A vida
nova não supera o que foi dado pela graça à fé. Portanto,
não é suficiente considerar a vida, à qual aquelas exorta­
ções chamam o cristão, como uma consequência posterior
à fé; ela é, pelo contrário, um outro modo de ser da fé, é um
apropriar-se daquilo que Deus conferiu. A ação do fiel vive
da ação de Deus, a decisão de obedecer vive do fato que,
precedentemente, Deus em Cristo decidiu a favor do mun­
do. As duas decisões se aproximam e se equilibram: viver
pela fé, mas, também, pela fé viver.
Nas exortações do apóstolo, todo acento é colocado
sobre a fonte da fé, entendida, porém, como origem de um
movimento dirigido a um fim. Não por acaso, para indicar
a vida da comunidade, Paulo usa as expressões já correntes
no judaísmo e atinentes ao caminhar ("(...) a fim de que ca­
minhássemos na novidade da vida...": Rm 6.4) e descreve
a doutrina e o ensinamento como "caminho(s)" (ICor 4.17
e passim).
Com isso, a multiplicidade dos comportamentos hu­
manos é reduzida - com premência e simplicidade novas
ao mesmo tempo - a uma alternativa, ou ainda muitas ve­
zes, em referência ao ato salvífico de Deus, a uma contra­
posição entre "então" e "agora" que, à guisa de uma cunha,
separa o "velho" do "novo" modo de ser (cf. G15.19s e ICor
6.11 e passim). Nota-se aqui, ainda uma vez, como o apósto­
lo, na sua exortação, não argumenta em termos de diversas
possibilidades entre as quais o fiel deveria escolher, mas
316 P aulo , V ida e O bra

em termos de esferas de poder ou de soberania das quais


é livre e na direção das quais está a caminho: Lei e graça
(Rm 6.14), pecado e justiça (Rm 6.16s.), carne e Espírito (Rm
8.5s.; G15.16), morte e vida (Rm 8.6).
Elencando o que concretamente significa uma vida
cristã de "obediência", "serviço" e "cumprimento do de­
ver", Paulo se utiliza intencionalmente nas suas exortações
de conceitos e expressões de validade e compreensibilidade
geral, sem procurar, de alguma forma, elaborar uma escala
de valores nova e especificamente cristã. Isto é particular­
mente evidente nas numerosas ocasiões em que acumula
séries de exortações de modo quase casual e não sistemáti­
co que, pelo conteúdo e pela forma, se assemelham aos "ca­
tálogos de vícios e virtudes" da tradição proverbial judaica
e da ética popular helenística (cf. Rm 1.29-31; 12.8-21; 13.13;
IC or 5.10s.; 6.9s.; 2Cor 12.20s.; G1 5.19-23).
Como em Rm 12,8s elenca máximas extraídas do livro
dos Provérbios e de outros livros do Antigo Testamento,
mas também da tradição do Cristianismo prim itivo, as­
sim pode passar sem saltos ou distinções a referir normas
morais da ética racional do paganismo e, por exemplo, na
exortação da Epístola aos Romanos, retomar o bem conhe­
cido conceito grego de medida, formulando-o de modo
sumário e quase como um jogo de palavras: "Em virtude
da graça que me foi concedida, eu peço a cada um de vós
que não tenha de si mesmo um conceito mais elevado do
que convém, mas uma justa estima, ditada pela sabedoria,
de acordo com a medida da fé que Deus dispensou a cada
um " (Rm 12.3).
Bem característica é a síntese, bem grega no espírito,
que ele faz na Epístola aos Filipenses, da parênese prece­
dente: "Finalmente, irmãos, ocupai-vos de tudo o que é
verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso
ou que de qualquer modo mereça louvor" (F14.8). Tradição
M ensagem e T eologia 317

quer dizer aqui que, afinal de contas, cada pessoa sabe e en­
tende o que deva ser feito de concreto, ou pelo menos pode
e deve sabê-lo. A vontade de Deus colima o que sempre foi
e que sempre será válido, que está escrito na consciência,
no coração, na razão, e que importa sempre de novo exa­
minar e demonstrar que seja "bom, agradável e perfeito"
(Rm 12.2).
A novidade não é dada pelo conteúdo e sim pelo con­
texto das exortações, isto é, pela origem e pela meta do
caminho que os cristãos palmilham. É dada pela graça
na qual vivem e em virtude da qual são chamados a um
novo serviço e a uma nova obediência. Finalmente, é dada
pelo dia vindouro de Cristo, em vista do qual foram "cha­
mados" para "alcançar a salvação" (lTs 4.7; 5.9). Naquele
"dia", também eles deverão prestar contas diante do juiz
divino (Rm 14.12; IC or 4.5; 2Cor 5.10 e passim).
Quando se examina, epístola por epístola, os trechos
parenéticos, constata-se com surpresa o quanto a argumen­
tação do apóstolo é multiforme e diferenciada, jamais es-
quemática ou beirando a clichês e como sempre faça apelo
ao entendimento dos ouvintes ou leitores, sem se lim itar
a proclamar ou decretar. Os seus argumentos são, no senti­
do mais autêntico do termo, "motivações" ou "motivos".
Obviamente, algumas temáticas centrais são mais recorren­
tes, enquanto outras possuem, ao invés, um caráter secun­
dário e complementar. As primeiras se entrelaçam comu-
mente umas nas outras.
Todavia, é evidente que Paulo desenvolve e valoriza
de modo muito variado o sentido e o significado da ação
salvífica de Deus em Cristo para a conduta dos fiéis, recor­
dando-lhes o batismo na morte de Cristo (Rm 6.3s.; IC or
6.11), e o fato de serem membros do corpo de Cristo (ICor
11.17s.; 12.12s.; Rm 12.5s.), estimulando-os a fazer bom
uso da sua liberdade, ou seja, da liberdade que não insiste
318 Paulo, V ida e O bra

nos seus próprios direitos, mas que está pronta a renun­


ciar a eles por amor dos outros, dos mais fracos (IC or 8.1s.;
10.23s.; cf., também, Rm 14.15).
Ou, então, previne a comunidade contra uma errada
autovalorização e contra uma falsa segurança (IC or 10.Is.)
e apela à sua responsabilidade para que o Evangelho do
senhorio de Cristo possa ser operante e aceito também no
mundo pagão (Rm 15.7s.), ou ainda lhes recorda a iminente
vinda do Senhor (F1 4.5; Rm 13.1 ls.).
Mas também as outras temáticas não estritamente
teológicas estão subordinadas a estes conceitos centrais.
Assim, por exemplo, o apelo àquilo que é conveniente
(IC or 11.13; 14.34), aos costumes (IC or 11.16), àquilo que
"a própria natureza ensina" (IC or 11.14s.; cf. Rm 1.26;
2.14) ou aos bons hábitos que se afirmaram em todas as
comunidades (IC or 11.16). Ocasionalmente, tudo isso
pode se vincular também com estranhas especulações so­
bre a ordem da criação, como na passagem singularmente
obscura de IC or 11.2-16, na qual o apóstolo faz um con­
traste entre as tendências espiritualistas e a emancipação
das mulheres no culto.
Qualquer que seja o fundamento que, em cada caso,
dá às suas exortações, até o apelo àquilo que geralmente
é admitido, não é jamais entendido por ele como um con­
formar-se ao mundo. Pelo contrário, precisamente numa
semelhante passagem, encontramos a exortação: "E não
vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos
(imperativo passivo!), renovando a vossa mente..." Rm
12.2).
Resulta daí um fato aparentemente contraditório, ou
seja, que as exortações paulinas estão fundadas, de um
lado, na escatologia e, de outro, naquilo que no mundo
teve ou tem um valor durável. Ambas as coisas definem a
relação do cristão com o mundo.
M ensagem e T eologia 319

3. Posição no mundo e distanciamento do mundo

A vida cristã, para o apóstolo Paulo, evita tanto a


sujeição ao mundo quanto a fuga do mundo. A fé liberta
o fiel para que seja independente do mundo, mas obriga,
ao mesmo tempo, a agir e dar testemunho no mundo. Esta
dupla e peculiar relação se expressa de variadas formas nas
epístolas de Paulo. Em virtude da vida nova que se abriu
para os fiéis, estes já não pertencem mais a este mundo, às
potências e seduções mundanas (G1 1.4), e sim ao Senhor
crucificado e ressuscitado (Rm 14.7s.). Mediante a cruz de
Cristo, o mundo está crucificado para Paulo, e Paulo para
o mundo (G1 6.14). Não se deve recair sob o domínio do
mundo como fazem os Gálatas judaizantes com o seu zelo
e as obras da Lei.
Mas a ameaça de recair sob a escravidão do mundo
se apresenta também de modo real na forma cotidiana e
preocupada de conviver com o mundo. Por isso, o apelo do
apóstolo para um certo distanciamento de todas as ligações
terrenas:

"(...) aqueles que têm esposa, sejam como se não a


tivessem; aqueles que choram, como se não choras­
sem;
aqueles que se regozijam, como se não se regozijassem;
aqueles que compram, como se não possuíssem;
aqueles que usam deste mundo, como se não usassem
plenamente.
Pois passa a figura deste mundo" (ICor 7.29-31).

Consideradas em si mesmas estas frases poderiam


ser tomadas como uma clássica descrição do ideal cínico-
estóico do distanciamento de todos os vínculos humanos
e da impassibilidade diante da boa ou má sorte e das
320 Paulo , V ida e O bra

boas ou más condições de vida. Tudo aquilo que circun­


da o ser humano sábio e que lhe acontece - pátria, ami­
zade, família, saúde e doença, estima e desprezo, riqueza
e pobreza, prazer amoroso e morte - tudo isso não afeta
o âmago do ser humano verdadeiramente sábio. Ele é
independente de todas estas coisas e não se perde nelas
(Epíteto).
Também o raciocínio de IC or 7.29-31, como também
o bom senso dos provérbios, parte da transitoriedade de
todas as coisas terrenas. Mas nem é preciso dizer que estas
palavras querem expressar alguma coisa a mais da comum
experiência humana da fugacidade do tempo. O tempo é
estreito e limitado porque o retorno e o fim do mundo já
são iminentes, estão tão próximos que grande parte desta
geração estará ainda viva quando estas coisas acontecerem
(lTs 4.15s.; IC or 15.51s.; cf. F1 4.5).
Ninguém conhece "o dia e a hora", o "dia do Senhor"
virá "como um ladrão na noite" (lTs 5.1s.). Mas, tudo isso
não altera de fato a certeza daquela expectativa para breve,
mesmo da parte de Paulo. As instruções e conselhos que o
apóstolo dá em IC or 7 não deveríam ser isolados deste con­
texto, o qual, para Paulo, não exprime, de forma alguma,
um genérico "lembra-te que irás m orrer" em nível cósmico,
mas implica o fato que os fiéis já foram chamados para uma
nova vida (IC or 7.17s.), e por isso, as suas preocupações
devem estar dirigidas para o Senhor que está presente em
espírito e que está por v ir para julgar e salvar.
As questões âo matrimônio, que o apóstolo aborda am­
plamente em IC or 7, nesta perspectiva escatológica e cris-
tológica de um tempo já reduzido, lhe foram expostas em
carta pelos próprios coríntios (IC or 7.1), evidentemente na
base das idéias espiritualista-ascéticas que um certo grupo
disseminava na comunidade. Trata-se, também, aqui, da
costumeira tendência à emancipação, à supressão de todos
M ensagem e T eologia 321

os vínculos terrenos e humanos e à realização de uma nova


existência, quiçá apoiando-se em algum ensinamento pau-
lino, como: "Não há judeu nem grego, não há escravo nem
livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um
só em Cristo Jesus" (G1 3.28; cf. IC or 12.13). Os espirituais
de Corinto deduziam daí a dissolução do matrimônio e a
renúncia a qualquer relação sexual.
Pode-se observar como o "espiritualismo" entusiástico
pôde conduzir as conclusões contraditórias: de um lado,
admitem-se as mais desenfreadas relações com prostitutas,
afirmando que aquelas manifestações inferiores não podem
afetar a essência mais autêntica do cristão (ICor 6.12s.) e,
de outro lado, a recusa de qualquer relação sexual.
As respostas singularmente embaraçadas do apóstolo
a questões tais como: se os cristãos podem ou não contrair
matrimônio; se e como os matrimônios existentes devem
continuar ou serem dissolvidos; ou se um noivo ainda de­
via contrair matrimônio, mostram o quanto era difícil a sua
posição sobre todas estas questões, para nós quase incom­
preensíveis, mas perfeitamente lógicas no quadro dos pres­
supostos do cristianismo prim itivo.
Já as primeiras palavras do capítulo mostram que ele
pessoalmente estava inclinado para uma resposta de tipo
"ascético": "E bom ao homem não tocar em mulher" (ICor
7.1,8), e permanecer solteiro como o próprio apóstolo (ICor
7.8,26s.; cf., também, 7.36s.). Mas uma semelhante conduta
pressupõe um "dom " que não é dado a todos (ICor 7.7),
por isso, em consideração da veemência dos instintos na­
turais, Paulo não pretende fazer disso uma lei (ICor 7.2,9).
Casar ou casar de novo depois da morte do cônjuge não é
pecado (ICor 7.28,36,39s.). M uito menos devem ser dissol­
vidos os casamentos já existentes, conforme a palavra do
Senhor (ICor 7.10s.), salvo se o cônjuge não cristão insistir
na separação (ICor 7.12s.).
322 Paulo , V ida e O bra

Isto não muda, porém, o fato que Paulo, no conjunto,


considere o matrimônio e a vida conjugal como um remé­
dio de emergência, ainda que legitimado por Deus, contra
a prepotência do impulso sexual humano, a fim de evitar a
imoralidade e as tentações satânicas (ICor 7.2,5,9,36s.), um
remédio que forçosamente traz consigo ciladas em termos
de "aflição" (ICor 7.28) e de "preocupações" (ICor 7.33s.)
que Paulo gostaria que fossem poupadas aos membros
da comunidade, devido ao iminente fim do mundo (IC or
7.28).
Ninguém pode negar que Paulo considera o matrimô­
nio de maneira unilateral e restritiva, condicionada pela
sua perspectiva escatalógica, mas que a nós, hoje, parece
puramente negativa. Em vão se buscaria nas amplas consi­
derações de IC or 7 algum elemento de avaliação positiva
do amor entre os sexos ou da riqueza de experiências huma­
nas oferecidas pelo matrimônio e pela família. A influência
"santificante" que, no âmbito do matrimônio, o cônjuge
cristão pode exercer sobre os membros não cristãos da fa­
mília, junto ao cônjuge não cristão e aos filhos (não batiza­
dos), é mencionada somente de modo incidental pelo após­
tolo nas exortações que, numa expressão quase mágica,
dirige aos fiéis envolvidos num casamento misto para que,
da parte sua, não pressionem no sentido de uma dissolução
do matrimônio (IC or 7.14).
Por outro lado, não se pode fechar os olhos ao sóbrio
realismo de Paulo no julgamento desta matéria, especial­
mente considerando o fato que ele não pronuncia uma
condenação geral contra o casamento e a vida sexual com
fundamento em princípios dualísticos, contrapondo-se aos
iluminados de tipo ascético de Corinto e a certas tendências
bastante difundidas na Igreja antiga. Ao contrário de tais
concepções, o apóstolo não se preocupa com uma situação,
que primeiramente deveria ser mudada - e que como tal
M ensagem e T eologia 323

não tem relevância para a salvação - e sim com a conduta


dos cristãos nesta situação.
Paulo não proíbe a cada um dos fiéis de decidir in d i­
vidualmente a maneira de realizar e comprovar concre­
tamente o fato de ser cristão. Ele se lim ita a indicar cri­
térios, mas, ao mesmo tempo, previne os fiéis para não
supervalorizarem as próprias capacidades. Esta é a razão
pela qual a sua exortação apresenta um caráter fragmen­
tário peculiar. Ela não trai sua incapacidade para respon­
der as questões que lhe foram colocadas, mas manifesta,
pelo contrário, o seu preciso e fundamentado receio de
legislar em matéria na qual a decisão deve ser inspirada
pelo "Espírito" (IC or 7.40) e pela fé e acompanhada pela
análise de si mesmos. "Digo-vos isto em vosso próprio
interesse, não para vos armar cilada, mas para que façais
o que é mais nobre e possais permanecer junto ao Senhor
sem distração" (IC or 7.35).
Com tudo isso, este capítulo 7 da Primeira Epístola
aos Coríntios - tão condicionado historicamente, no ver­
dadeiro sentido da palavra - é um exemplo significativo
das relações do cristão com o mundo. Se, de um lado, o
apóstolo realça fortemente a distância que deve ser mantida
em relação ao mundo, e que ele expressa nas clássicas cinco
variações da fórmula "ter como se não tivesse" (ICor 7.29­
31), por outro lado, porém, ele atribuiu uma importância
fundamental à posição ou condição social de cada cristão no
mundo.
Isto fica evidente de maneira especial na breve passa­
gem, incluída na abordagem das questões matrimoniais,
na qual o apóstolo responde ao problema geral que lhe foi
colocado pelos coríntios, isto é, se o fato de serem cristãos
não devia se manifestar também e especialmente na su­
pressão, no interior da comunidade, das conotações reli­
giosas e sociais dos membros. Portanto, se quem fora judeu
324 Paulo , V ida e O bra

devia procurar cancelar o sinal da aliança que consistia na


circuncisão, se quem antes era pagão devia assumi-lo, e se
as diferenças entre escravos e livres deviam ser abolidas de
modo explícito (ICor 7.17-24).
A resposta do apóstolo soa singularmente "conser­
vadora": "Permaneça cada um na condição em que se
encontrava quando foi chamado" (IC or 7.20) e os escra­
vos devem até mesmo renunciar a uma eventual possi­
bilidade de se tornarem livres (IC or 7.21). Para entender
este desconcertante conselho, importa ter presente, antes
de tudo, o fato que Paulo fala das relações no interior da
comunidade e não da problemática da estrutura social e,
em seguida, é preciso considerar que o nosso moderno
conceito de posição ou condição social vem espontânea, mas
erroneamente associado a uma doutrina social conser­
vadora. Não se trata efetivamente disso. O termo grego,
que, de acordo com o uso que dele fazia o grego profa­
no, traduzimos como "posição" e "condição social", é o
mesmo termo (klésis) que no epistolário paulino indica a
"vocação" (divina). Em IC or 7.17s, o acento está colocado
claramente sobre a concreta situação religiosa ou social,
cada vez diferente, na qual os fiéis foram atingidos pela
"chamada" de Deus à fé.
Paulo traz à tona igualmente duas questões: em si, as
diversas condições de vida não significam mais nada, em
relação à salvação dos fiéis, são radicalmente relativizadas
e profanizadas. Por outro lado, elas têm e mantêm uma im ­
portância fundamental enquanto designam o lugar histó­
rico, concreto e terrestre no qual os fiéis já foram libertos
em Cristo, em vista de uma existência nova: por meio dele,
o escravo já se tornou um "liberto do Senhor", e o liberto
um "escravo de Cristo" (ICor 7.22s.). Este fato deve ser tes­
temunhado "na condição em que cada um se encontrava
quando foi chamado" e na qual deve "permanecer".
M ensagem e T eologia 325

4. Sede submissos à autoridade!

Também a exortação para se submeter às autoridades


(Rm 13.1-7, muitas vezes analisada, única no seu gênero
pela forma e conteúdo no epistolário do apóstolo, rica em
consequências como poucos outros textos bíblicos no cur­
so de uma longa história, mas que, por sua vez, também
a condiciona sobremodo, toca um aspecto importante das
relações do cristão com o mundo. Antes de mais nada,
diga-se que o seu conteúdo não é nem menos do que a sim­
ples exigência, válida também para os cristãos, de obedecer
às autoridades estatais, portanto, uma exortação à retidão
civil.
O próprio texto ordena expressar-se nestes termos
"fora de moda", sem introduzir, logo de início, todos os
"se" e "mas" que, sem dúvida, saltam à mente, e nem to­
dos aqueles muito debatidos problemas, desde o dos lim i­
tes da obediência para o cristão, até o da possibilidade e da
justificação ética da revolução. Estamos quase inclinados
a afirmar que Paulo descarta aqui intencionalmente todas
estas questões.
Salta, igualmente, aos olhos o fato que, nesta passa­
gem, ele evita dar uma motivação especificamente cristã
do comportamento exigido em relação ao Estado. O nome
de Cristo e a palavra fé estão totalmente ausentes. O após­
tolo não faz senão aplicar também aos cristãos aquilo que
é um dever de todos: "Todo ser humano se submeta às auto­
ridades constituídas" (Rm 13.1). Por "autoridades" e seus
representantes, como se deduz de numerosos e bem conhe­
cidos textos jurídicos e administrativos do mundo roma-
no-helenístico, são designados aqui claramente as potesta-
tes (imperia) e os magistratus no exercício das suas funções
estatais e municipais. Elas mantêm a ordem e impedem a
rebelião. Elas dão "elogios" - assim se expressam muitos
326 Paulo, V ida e O bra

documentos daquele tempo - aos bons cidadãos e punem


os maus, entendendo-se aqui "bom " e "m au" no sentido
universalmente válido, que não carece de explicação espe­
cial (Rm 13.3s.).
Para esta finalidade, os governantes dispõem do "po­
der da espada" (ius gladii), ou seja, exercem a jurisdição
capital que é cometida, em primeiro lugar, ao imperador,
mas delegada também aos seus governadores (Rm 13.4).
Analogamente, também se fala de "impostos" e "taxas" que
os cidadãos devem pagar, bem como do respeito ("honra"
e "reverência") que é devido a quem governa (Rm 13.6).
Assim como já no judaísmo pré-cristão e contemporâ­
neo, também Rm 13 considera a autoridade estatal como
"ordem", estabelecida por Deus. Este conceito domina toda
a exortação, segundo atestam as numerosas expressões
gregas correlativas, como "submeter-se", "estabelecidas
por Deus", "instrumentos de Deus", "opor-se à ordem".
Os governantes são, por isso, chamados "instrumentos de
Deus para te conduzir ao bem", "ministros de Deus para
punir quem pratica o m al" (Rm 13.4,6). A obediência lhes
é devida "não somente por temor do castigo, mas também
por dever de consciência" (Rm 13.5).
Paulo diz todas estas coisas sem sequer acenar ao fato
que a autoridade (pagã!) poderia também abusar do pró­
prio poder e colocar os cristãos na condição de ter que obe­
decer a Deus antes que aos homens (At 5.29), problema este
que era notoriamente pré-cristão (Antígono!). Este capítu­
lo constitui, portanto, para nós, um problema justamente
pelo seu caráter "não problemático", razão suficiente para
examinar antes de tudo e com atenção a peculiaridade e
a intenção do texto, deixando para um segundo plano os
problemas específicos.
A forma e o conteúdo são típicos de um texto "parené-
tico", formado no ambiente judeu-helenista e simplesmente
M ensagem e T eologia 327

retomado pelo apóstolo. Esta constatação quase evidente


implica que aqui não dispomos de uma espécie de "espe­
lho das autoridades" que pretenda ensinar aos governan­
tes como devam exercitar as suas funções.
Os destinatários da exortação são, ao invés, os cristãos
de Roma, aos quais é endereçada uma instrução que, segun­
do o estilo costumeiro da "parênese" antiga e cristã, evita
abordar as situações e os conflitos atuais para inculcar, com
tanto maior eficácia, regras de conduta simples e sempre
válidas. Esta constatação exige que não se amplifique Rm
13, a ponto de fazer deste capítulo uma doutrina geral do
Estado e das classes sociais ou uma teologia da ordem da
criação e da conservação, do que, aliás, a história eclesi­
ástica, infelizmente, oferece exemplos em profusão. Com
isso, a compreensão da exortação paulina estaria sendo
empurrada para uma falsa direção, seu objetivo totalmente
desvirtuado e o seu conteúdo sacrificado em favor de um
sistema de pensamento metafísico-religioso totalmente es­
tranho ao apóstolo.
De fundamental importância é também para Rm 13 o
imediato contexto, seja o que precede como o que segue:
trata-se, de um lado, das já citadas recomendações (Rm
12.1) que orientam todo o discurso posterior e que exortam
o cristão a "oferecer" a si mesmo a Deus e a "não se con­
formar com este mundo". Por outro lado, trata-se do ape­
lo para "discernir o tempo e a hora" do iminente "últim o
dia", para vestir "a armadura da luz" (Rm 13.1 ls.).
Estas duas diretivas fornecem o quadro no qual se
coloca também a exortação para se submeter à autorida­
de e para não se opor à "ordem de Deus". E impensável
que nesta perspectiva escatológica Paulo quisesse relati-
vizar a exortação dirigida aos cristãos e reduzir a sua re­
lação com o Estado a uma questão sem importância. Por
outro lado, sem necessidade de dizê-lo explicitamente,
328 Paulo , V ida e O bra

sanciona-se aqui a dimensão exclusivamente terrena da


vida política.
Mas, ao mesmo tempo, o fato que o fiel deva dar pro­
va do próprio Cristianismo no cotidiano do mundo, que
é o mesmo para ele e para todos os seres humanos, rece­
be do discernimento do "tem po" (Rm 13.11), no qual es­
tamos, uma premência mais forte e uma motivação mais
abrangente, compreensível somente à fé, que supera o
horizonte próprio da exortação (Rm 13.Is.). Observa-se,
aqui, ainda uma vez, como o apóstolo leva em considera­
ção, precípua e exclusivamente, a existência do cristão e
não a instituição do Estado enquanto tal, ou a questão de
saber em que medida cada funcionário deva estar à altura
da sua tarefa.
Para uma crítica histórica deste capítulo, convêm recor­
dar que no momento da relação desta Epístola aos Romanos
não havia ainda ocorrido nenhuma perseguição sistemáti­
ca dos cristãos por parte do Estado. No tempo de Paulo,
na verdade, já haviam irrom pido algumas manifestações
de ódio e algumas perseguições espontâneas, limitadas
geograficamente, e muitas vezes suscitadas pelos judeus,
mas não sem a participação das autoridades estatais e cita-
dinas.
O próprio apóstolo passou por estas experiências (cf.,
p.ex., lTs 2.2; IC or 15.32; 2Cor 1.8s.; 11.26; F11.12s.), assim
como as suas comunidades, por exemplo, em Filipos (F1
1.29s.) e em Tessalônica (lTs 2.14s.). Mas nem a última p ri­
são do apóstolo e o seu martírio sob Nero, nem as cruéis
medidas deste últim o contra os cristãos (tomadas alguns
anos mais tarde: 64 d.C.), podem ser consideradas verda­
deiramente como perseguições anticristãs, uma vez que
os cristãos, após o incêndio de Roma, foram atingidos na
qualidade de presumidos incendiários e não por causa da
sua fé.
M ensagem e T eologia 329

Não existe nenhum indício que permita pensar que o


imperador e a autoridade do Estado aparecessem aos olhos
do apóstolo sob o aspecto do "Anticristo", assim como o au­
tor do Apocalipse de João, escrito no tempo de Domiciano
(81-96 d.C.), os trata numa das suas grandes visões (Ap 13).
Na realidade, estes desenvolvimentos, que, para Paulo,
eram ainda impossíveis de serem previstos, dificilmente
teriam mudado a sua convicção de que a autoridade do
Estado, em virtude da sua missão, deve cumprir a vontade
de Deus, cumprindo as funções mencionadas em Rm 13.
É improvável que ele tivesse retratado uma só palavra
deste capítulo. É significativo, ao invés, o fato que nem
os autores de escritos protocristãos posteriormente não
se tenham desviado do seu dever de lealdade para com o
Estado para assumir o papel de inimigos do Estado (Atos
dos Apóstolos, 1 Pedro, 1 Timóteo, Hebreus, 1 Ciem).
Os textos parenéticos, pela própria natureza do gênero
literário a que pertencem, não se prestam para uma inda­
gação em torno das circunstâncias específicas e das situ­
ações comunitárias que os originaram. Isto vale também
para Rm 13. Não obstante, o fato que esta exortação não
possui nenhum paralelo em outras epístolas, permite su­
por que a comunidade de Roma estivesse particularmente
ameaçada pelo perigo, se não de cair em aberta rebelião,
pelo menos de tomar, de alguma outra forma, distância
do Estado com fins demonstrativos e negligenciar os seus
deveres cívicos.
Esta exortação podería ter alguma relação com as de­
sordens que irromperam no judaísmo romano, alguns anos
antes da redação desta epístola, talvez por causa da intro­
dução da mensagem do Evangelho naquele ambiente, e por
causa das quais o imperador Cláudio fez emanar um edito
de expulsão (49 d.C.). Por outro lado é também verdade
que, neste comenos, os componentes de origem pagã se
330 Paulo, V ida e O bra

haviam tornado amplamente majoritários na comunidade


cristã de Roma. Seja como for, esta suposição a respeito do
contexto histórico de Rm 13 pertence ao reino das hipóteses
e não significa que Paulo não pudesse ter escrito as mesmas
coisas a qualquer outra comunidade.
As diretivas paulinas contidas neste capítulo, pelo seu
caráter de precisão e ao mesmo tempo pela sua unilatera-
lidade tão singularmente indiferenciada, exerceram sobre
a cristandade dos séculos posteriores uma influência sob
muitos aspectos bastante problemática. O primeiro sinto­
ma disso reside no fato que este célebre capítulo foi desta­
cado do contexto da ética paulina, absolutizado e revestido
de uma importância superior à que compete a um texto iso­
lado como este. Tudo isso é compreensível, dada a im por­
tância que o problema ali tratado reveste para a Igreja dos
séculos seguintes e até aos nossos dias. Mas as consequên­
cias discutíveis deste estado de coisas são evidentes.
Como se sabe, Rm 13 favoreceu largamente uma ati­
tude de submissão cega e desencadeou, por sua vez, um
apaixonado protesto, suscitando, no seu conjunto, mais
problemas do que respostas. E isso, sobretudo, num m un­
do que é diferente do de Paulo, um mundo no qual, do
início da era moderna, a assunção de responsabilidade na
estruturação da vida política, também e particularmen­
te por parte dos cristãos, se tornou uma exigência óbvia.
Defronte a reações deste gênero, cabe recordar os limites
impostos às exortações do apóstolo a partir do seu condi­
cionamento histórico. Isto significa que é incorreto fazer
dele, por todos os séculos, a base de um incondicionado
conservadorismo político, como também pretender que
responda a problemas que são nossos e que, nesta forma,
Paulo ignorava por inteiro.
As intenções de Rm 13, de importância fundamental
para a vida dos cristãos, podem ser compreendidas somente
M ensagem e T eologia 331

tendo em conta a situação histórica na qual o capítulo foi


escrito. Paulo procede de modo análogo ao que foi obser­
vado por Jesus no colóquio com os fariseus ao ensejo do
pagamento dos impostos (Mc 12.13-17). Estes lhe coloca­
vam como prioritária a insidiosa pergunta sobre aquilo que
devia ser dado a César, mas ele a subordinava a uma outra
pergunta em torno daquilo que ser dado a Deus.
Com um procedimento do mesmo gênero, Paulo su­
pera todas as tendências a uma rebelião política ou social.
Seja como for, a questão da vida e da conduta do cristão
assume uma indiscutível prioridade sobre todos os outros
problemas relativos à mudança, certamente indispensável,
da situação do mundo. Mas quem pretendesse ver nisto
uma "privatização" da fé cristã, demonstraria somente não
poder ou não querer compreender o significado de força
revolucionária e transformadora do mundo que o evento
salvíficio tem no pensamento de Paulo.
Neste caso, como em ICor 7, o apóstolo exprime a
independência do mundo, que foi conferida ao fiel, a sua
"distância" do mundo, mas também a sua "posição", o seu
"estar" no mundo, que é o terreno no qual ele deve dar
concreta e diuturnamente prova da sua fé. Sobre a maneira
de conciliar, cada vez, estas duas exigências não existe nem
um programa e nem uma casuística. Seja como for, o cris­
tão não pode proceder nem a uma glorificação iümitada
e nem a uma pura e simples "demonização" do Estado, e
sim, respeitá-lo nos seus limites terrenos e temporais como
um ordenamento de Deus. Dito em termos modernos: nem
um engajamento ideologicamente fanático e nem um des-
compromisso espiritualista e altivo.
Muitos exegetas de Rm 13 sustentam que o manda­
mento do amor é o tema fundamental da exortação pau-
lina, apoiando-se na recomendação conclusiva: "Não de­
vais nada a ninguém, a não ser o amor m útuo" (Rm 13.8).
332 Paulo , V ida e O bra

Efetivamente, o amor é, para Paulo, a linha diretriz funda­


mental da nova existência do cristão (ver Rm 12.9s.). Por
isso evidentemente também a relação com o Estado não
pode ser dele excluída.
Contudo, não se deveria introduzir o amor, como mo­
tivo condutor principal, neste âmbito no qual se fala de
subordinação, de conduta cívica, de disposição da autori­
dade, de probidade, de taxas, de impostos e de respeito.
Paulo considera, pelo contrário, a vida política como a es­
fera na qual importa não ficar em atraso e nem permanecer
enredado em obrigações não cumpridas. É melhor se de­
sembaraçar rapidamente e com precisão destas obrigações
para, em seguida, estar livre para se dedicar ao pagamento
do débito infinito do amor que supera em muito este mun­
do transitório e todas as suas autoridades - este é o escopo
da exortação paulina.
Isto se confirma na posição assumida pelo apóstolo a
propósito de um inconveniente que havia fincado pé na co­
munidade de Corinto, isto é, ao fato que os fiéis entravam
com um recurso junto aos tribunais pagãos para dim inuir suas
disputas (ICor 6.1-11). Paulo considera que um semelhante
modo de proceder é vergonhoso para cristãos e o comba­
te com argumentos e linguagem tirados da literatura apo­
calíptica judaica: é absurdo que os cristãos que, enquanto
"santos", julgarão o mundo e até os anjos, se voltem, por
fúteis questões terrenas, aos tribunais dos "infiéis" e dos
"injustos"! Se entre vós, coríntios, existem brigas, por que
não nomeais membros da comunidade como juizes? Sim,
reforça o apóstolo a dose, por que insistis em torno do vos­
so direito e não preferis, pelo contrário, na qualidade de
cristãos, suportar uma injustiça?
As locuções recorrentes na tradição judaica, como
"infiéis", "injustos" e "os que não contam nada na comu­
nidade", embora tendo uma conotação depreciativa, não
M ensagem e T eologia 333

pretendem colocar globalmente em questão as instâncias


seculares, mas se dirigem, pelo contrário, a cristãos que são
chamados a participar do reino escatológico de Deus e já
foram libertados para uma nova vida.
O reiterado e insistente apelo à "fraternidade" (ICor
6.5s.,8), a ideia que rixas e disputas, independentemen­
te de quem tenha ou não tenha "razão", são sempre uma
"derrota"(lC or 6.7), a exortação para sofrer a injustiça em
lugar de impor o próprio direito e o apelo final e imposi-
tivo a uma nova vida da qual os fiéis são devedores à gra­
ça (ICor 6.9-11), tudo isso não é, fundamentalmente, outra
coisa senão uma perífrase do mandamento do amor.
Este excerto da Primeira Epístola aos Coríntios se
aproxima, portanto, de Rm 13 em que, igualmente, o man­
damento do amor abarca e supera a exortação referente
às relações dos cristãos com as autoridades estatais (Rm
12.9s.; 13.8s.). Mas existe uma diferença, no sentido que,
num caso, se trata de um comportamento na vida porque é
da mesma forma obrigatório para "todo ser humano". No
outro, ao invés, trata-se do viver em comum dos cristãos,
deduz as suas normas do evento salvífico que teve lugar
para eles e que supera os limites do simples civismo.

5. O amor

O que entende Paulo por amor? As suas epístolas ofe­


recem abundantemente a ocasião para colocar esta pergun­
ta, tanto mais que esta palavra entrou na linguagem cristã
como poucas outras e, após um uso e abuso infinitos, per­
deu amplamente o seu conteúdo e o seu vigor.
Paulo sintetiza toda a Lei no mandamento do amor ao
próximo: "(...) pois quem ama o outro cumpriu a Lei" (Rm
13.8s.; cf., também, G15.14). Também neste caso, o apóstolo
se situa no sulco de uma tradição preexistente, que não se
334 Paulo, V ida e O bra

pode fazer remontar diretamente até a "Torá" do Antigo


Testamento, mas com certeza ao judaísmo helenista que
havia estendido a todos os seres humanos o conceito de
"próxim o", que o antigo Israel restringia aos compatriotas.
Jesus igualmente e em seguida a comunidade protocristã
entenderam o mandamento do amor neste sentido amplo
(M t 5.43; 19.19; 22.39; Mc 12.30s; Lc 10.27; Tg 2.8).
Os termos "amar" (agapân) e "am or" (ágape), não total­
mente ignorados mas não muito significativos vocábulos
da língua grega, já haviam sido apropriados pelo judaís­
mo helenista, mas estavam muito longe de poder expres­
sar todo o conteúdo de vocábulos muito mais elevados
como éros e filia ("amizade"). A tradução grega do Antigo
Testamento (a Septuaginta) e a literatura judaico-helenísti-
ca, mas especialmente o cristianismo prim itivo, colocam
estas palavras, até então pouco importantes, no plano de­
cisivo das relações entre Deus e o ser humano (o duplo
mandamento do amor), conferindo-lhes uma importância
essencial. Somente neste contexto se pode avaliar a contri­
buição específica trazida por Paulo à compreensão daquilo
que seja o amor.
O seu fundamento está no fato que, com o envio e o
dom de Cristo, Deus demonstra o seu amor por nós, seres
totalmente indignos de serem amados, ímpios e inimigos
de Deus (Rm 5.8s.) e, deste modo, tendo-nos "justificado",
"reconciliado" consigo, nos tornou vencedores sobre as po­
tências mundanas que nos acossam. Nada mais nos poderá
separar do amor de Deus (Rm 8.31; esp.: 37-39). O amor
é o ato que Deus realizou a nosso favor, mas é também a
força de Deus que age em nós: "(...) o amor de Deus (para
conosco) foi derramado em nossos corações pelo Espírito
Santo que nos foi dado" (Rm 5.5). A esta expressão cor­
responde outra: "Pois o amor de Cristo nos constrange ..."
(2Cor 5.14).
M ensagem e T eologia 335

O amor ultrapassa a pessoa singular e inclui o próxi­


mo. Este processo e este movimento fazem parte da própria
essência do amor e fazem com que ele seja o âmbito no qual
vive e age a fé: "Pois, em Cristo Jesus, nem a circuncisão
tem valor, nem a incircuncisão (ou seja: o ser judeu ou o ser
pagão), mas a fé agindo pelo amor" (G15.6).
Já antes de Paulo, o judaísmo helenista liberal havia
enunciado ensinamentos análogos, dos quais o apóstolo se
faz eco, citando um dito que circulava evidentemente an­
tes dele: "A circuncisão nada é, e a incircuncisão nada é.
O que vale é a observância dos mandamentos de Deus"
(ICor 7.19). Na versão citada em G15.6 e numa outra passa­
gem da mesma epístola (G1 6.13s.), o dito sofre uma m odi­
ficação significativa: em vez da obediência aos mandamen­
tos de Deus, ali se fala da fé operante por meio do amor
e da "nova criação" (em Cristo). Uma possibilidade que
o ser humano teria podido realizar se tornou, assim, uma
realidade que Deus já propiciou e inaugurou: o amor como
apanágio da nova existência.
O grande hino ao amor da Primeira Epístola aos
Coríntios (cap. 13) está no contexto das considerações do
apóstolo sobre os "dons da graça" (carismas) (cap. 12-14).
O amor é ali descrito como "um caminho que ultrapassa
a todos" (ICor 12.31b); é mais excelso que os mais eleva­
dos "dons" imagináveis que, na concepção do cristianismo
prim itivo, eram considerados como as máximas expressões
possíveis do cristão carismático. Sem amor, também o dis­
curso extático, dito sob o impulso do Espírito, não passa de
um alarido fútil; sem o amor, a profecia, a fé capaz de ope­
rar milagres, a renúncia a qualquer posse a favor dos po­
bres, a própria disposição ao martírio, tudo isso para nada
adiantaria (ICor 13.1-3).
Quando Paulo, em ICor 13, fala do amor como sujei­
to agente, em vez de falar do ser humano que ama, não
336 Paulo , V ida e O bra

faz somente uma concessão ao estilo poético, mas pretende


dizer que o amor é uma potência divina: a sua ação é radi­
calmente contraposta àquilo que o ser humano natural faz
e derruba as suas efetivas possibilidades.
Não é, portanto, casual que a segunda estrofe do hino
ao amor de (ICor 13.4-7) se expresse em drásticas antíteses
(não menos de oito semifrases negativas!), mesmo se todas
estas negações são, a seguir, enquadradas, no início e no
fim, por aquilo que caracteriza a natureza e a ação do amor
em sentido positivo.
As frases curtas deste segundo parágrafo, no qual apa­
recem nada menos que 15 verbos de ação, mostram de que
modo o amor age na convivência concreta e cotidiana: é
"paciente", longânime, prestativo, não se deixa dominar
pela ira, não se ostenta e nem incha de orgulho, não ignora
os limites do decoro; não busca a própria vantagem; não se
irrita; não permite que a culpa construa uma barreira entre
os seres humanos; é pleno de alegria - mas não daquela
maligna, secretamente farisaica, que, quiçá, deplora em
altos brados a malvadeza do mundo, para se projetar mais
a si mesmo; se compraz com a verdade, sobretudo, com
aquela que beneficia o próximo. Sua força consiste numa
confiança inalterável ("tudo crê, tudo espera") e não cede à
resignação e nem ao desespero ("tudo suporta").
A conclusão deste grande capítulo enaltece a eternida­
de do amor, em relação à qual também os dons do Espírito
são "obra incompleta" (ICor 13.8-13). O apóstolo não se
refere aqui à contraposição intemporal entre a realidade
terrestre imperfeita e o ideal sempre inatingível, e sim à
contraposição escatológico-temporal entre um "agora" e
um "então", comparável ao contraste entre a maneira de
falar, de agir e de pensar de uma criança, movida por seus
sonhos e desejos, e o pensamento livre de ilusões do adul­
to (v. 11) ou - mais claramente ainda - à diferença entre o
M ensagem e T eologia 337

conhecimento fragmentário e mediato ("como num espe­


lho") e o conhecimento direto ("face a face") (v. 12), um,
refreado e comprimido nos limites da temporalidade, o
outro, capaz de romper estes limites: a perfeição futura
reservada somente a Deus (cf. 2Cor 4.18; 5.7; Rm 8.24).
É significativo que Paulo, aqui, não dê espaço à ideia
de um processo religioso de gradual deificação do qual
falavam abundantemente os cultos de mistérios da época
e a mística helenística. O apóstolo é também capaz de se
expressar na sua linguagem ao falar de uma "transforma­
ção de glória em glória" (2Cor 3.18) e se aproxima dos seus
conceitos quando descreve o futuro perfeito conhecimen­
to como "ser conhecido por Deus". Para ele, porém, como
se depreende do tempo diferente do verbo, trata-se de um
"ser-eleito" pela graça de Deus (cf. IC or 8.2; G14.9).
O conhecimento que o ser humano tem de Deus e
aquele que Deus tem do ser humano não chegam a coin­
cidir exatamente durante a existência terrena ou temporal
da fé. Somente Deus pode fazer coincidir estes conheci­
mentos, e o fará. Mas também quando chegar à perfei­
ção, o ser humano não cessará de depender de Deus: por
isso, é dito que também a fé e a esperança "permanecem"
além dos limites da temporalidade, mas "o maior deles é
o amor" (v. 13).
Estas palavras não devem ser entendidas como in d i­
cando uma escala ética de valores em cuja sumidade se
encontre o amor que, enquanto virtude suprema, seria su­
perior até às formas do comportamento religioso que con­
siste na fé e na esperança. O amor, que é, desde agora, a
presença imorredoura da salvação, é "m aior" em relação à
fé e à esperança, não enquanto valor e virtude em si, mas
enquanto coordenado com a fé que se funda naquilo que
Deus fez, e com a esperança que se orienta para aquilo que
Deus fará. Neste sentido, a tríade fé-esperança-amor é a
338 Paulo, V ida e O bra

própria essência daquele ser em Cristo que Deus operou


(cf., também, lTs 1.3; 5.8; G1 5.5s.; Cl 1.4s.). Ninguém dele
está excluído; por isso, o amor supera os "dons de Espírito"
que são conferidos a alguns e não a outros.

6. A esperança

A expectativa das coisas futuras está profunda e in-


separavelmente inscrita não somente no hino ao amor de
ICor 13 e na frequente menção da tríade fé-esperança-
amor, mas, também, do modo geral, na mensagem e nas
exortações de Paulo. Como já afirmamos no início deste
capítulo, a esperança é inseparável da teologia paulina, e
importa agora examiná-la mais de perto.
Numa visão sinótica, as considerações desenvolvidas
pelo apóstolo a respeito do futuro e da escatologia apresen­
tam de imediato alguns traços característicos que são es­
senciais para a sua compreensão. Elas se encontram disper­
sas, como já observamos, na maior parte das suas epístolas,
diferentes de uma epístola a outra pela forma e conteúdo,
muitas vezes fragmentárias, concisas, mesmo quando im ­
portantes, normalmente imunes de descrições figurativas,
somente raramente se estendendo em imagens apocalípti­
cas. Conforme o caso, se encontram engastadas num con­
texto doutrinário ou parenético.
Já não é mais possível recolhê-las num quadro coe­
rente de conjunto. São demasiadamente variegadas e não
raramente se nota da parte do autor um esforço para colo­
cá-las em relação umas com as outras. Isto não quer dizer
que seja lícito considerá-la, como tentativas mais ou menos
incertas, por parte do apóstolo, de dizer alguma coisa que
está "além" das experiências históricas e terrenas, como es­
boços que ele teria permitido fazer em certas ocasiões para
logo em seguida abandoná-los por serem inadequados.
M ensagem e T eologia 339

Precisamente neste campo, encontram-se, ao invés, fre­


quentemente expressões de uma acentuada precisão: "Mas,
nós sabemos..." (Rm 8.23; 13.11); "Penso..." (Rm 8.18); "Eu
estou persuadido..." (Rm 8.38);"(...) ê necessário que este ser
corruptível revista a incorruptibilidade..." (ICor 15.53). E
preciso recordar também, nesta altura, a forma profética na
qual Paulo anuncia uma determinada disposição salvífica
de Deus para o futuro (Rm 11.25; IC or 15.51) ou a conso­
lação fundada sobre uma "palavra do Senhor" transmitida
pela tradição (lTs 4.13s.).
Muitas destas frases escatológicas extraem e formulam
concisamente as consequências que o "credo" na morte e
ressurreição de Cristo tem para o futuro que está além da
história terrena e humana, e expressam, assim, a esperança
que se funda solidamente sobre aquilo que Deus já fez em
favor dos fiéis e do mundo.
Bastam poucos exemplos das numerosas declarações
deste gênero esparsas em quase todas as epístolas: estando
mortos com Cristo, nós "viveremos" (Rm 6.5s.; F1 3.10s.;
2Cor 4.10s.; 13.4 e passim). Fomos colocados na condição
de filhos e recebemos o "penhor" do Espírito (2Cor 1.22;
5.5; cf. Rm 8.23) e por isso, somos "herdeiros e co-herdei-
ros" de Cristo e seremos "glorificados" com ele (Rm 8.17).
Justificados e reconciliados mediante a morte do Filho de
Deus, seremos salvos da "ira " futura (Rm 5.9-11; cf., tam­
bém 8.11; G15.5).
Outras passagens, não muito frequentes, alargam
e desenvolvem as expectativas em relação ao futuro, em
imagens e conceitos apocalípticos amplamente elabora­
dos. Quase sempre são encontráveis quando Paulo deve
responder às perguntas, preocupações, dúvidas ou tam­
bém às concepções particulares das suas comunidades.
Habitualmente, ele se serve de idéias e de imagens deri­
vadas do pensamento apocalíptico judaico e protocristão,
340 Paulo , V ida e O bra

mesmo se, muitas vezes, ele as realça de uma maneira dife­


rente e toda própria e, não raramente, as modifica, a partir
da sua compreensão de Cristo.
Tais concepções, e correspondente imagem de mun­
do estão claramente condicionadas por seu tempo e m ui­
tas vezes, são tão compactas e estranhas que acabam sendo
incompreensíveis para nós. Assim, por exemplo, a conso­
lação com o qual o apóstolo procura tranquilizar os tessa-
lonicenses a respeito dos seus entes queridos, mortos antes
da parusia, assegurando-lhes que não é verdade que os
mortos não poderão ter parte na salvação futura. Esta con­
solação está fundada sobre uma "palavra do Senhor", apó­
crifa, proveniente, com certeza, da comunidade pós-pascal,
e com a qual ele lhes assegura que os mortos não ficarão
atrás dos sobreviventes, mas quando o Senhor descer do
céu no últim o dia, eles ressuscitarão primeiro e, juntamente
com os vivos, serão "arrebatados nas nuvens para o encon­
tro com o Senhor, nos ares" (lTs 4.13-18).
De modo semelhante, na Primeira Epístola aos
Coríntios, Paulo polemiza com aqueles que negam a res­
surreição dos mortos e afirma a esperança numa ressurrei­
ção "por grupos": Cristo, como primícias, a seguir, os fiéis
e, finalmente, o fim definitivo do mundo (ICor 15.23s.);
e terão uma corporeidade não "carnal", mas "espiritual"
"celeste" e os próprios corpos dos vivos serão "transforma­
dos" (ICor 15.51s.).
Estas concepções são entendidas pelo apóstolo de ma­
neira extremamente realista, como já o foram no judaís­
mo tardio, sob a provável influência do parsismo. Isto se
constata através da tentativa problemática (e contestável,
com base em suas próprias premissas) que ele empreende
para dar aos coríntios em dúvida uma resposta a respeito
do "como" da ressurreição, e de explicar como ela seja per-
feitamente concebível por analogia com a diversidade de
M ensagem e T eologia 341

formas e de substâncias do mundo terrestre e do cosmos


(ICor 15.35-49).
Neste texto, nota-se como Paulo conceba, também ele,
o futuro modo de existir em termos de substância. Também
os fenômenos que acompanharão a vinda de Cristo são
por ele descritos muito realisticamente (cf. lTs 4.16; ICor
15.52). Também a sólida expectativa segundo a qual, ain­
da antes do fim já eminente do mundo e após a conversão
dos pagãos, também todo o Israel, agora ainda endurecido
na incredulidade, chegará à fé (Rm 11.11-32), se coloca no
âmbito destas concepções.
O caráter e a diversidade destas afirmações contidas
no epistolário paulino e dirigidas ao futuro, especial­
mente se "apocalípticas", proíbem de serem colocadas
todas no mesmo plano e de extrair delas uma concepção
unitária e complexa. Fazê-lo significaria desconhecer até
que ponto elas são próprias do seu tempo, não somen­
te pela imagem de mundo que apresentam, mas, num
sentido m uito concreto, pela evolução e mudanças que
sofreram no tempo.
É verdade que as próprias fontes não são suficientes
para reconstruir sem descontinuidade o desenvolvimento
do pensamento escatológico de Paulo. Todavia, certas eta­
pas e modificações podem ser debuxadas, pelo menos em
suas linhas essenciais. Elas se evidenciam quando, colocan­
do as passagens em seu devido contexto, procuramos saber
o que levou Paulo a falar daquele modo, e a que situação
concreta, a qual problema ou preocupação da comunidade,
a que palavra de ordem ou concepção dos seus adversários
espiritualistas ele pretendia responder.
M uito instrutiva, a este propósito, é já a mais antiga
Epístola de Paulo, a Primeira aos Tessalonicenses. Ela nos
familiariza com uma comunidade, cuja esperança fora
orientada pelo próprio apóstolo para um retorno de Cristo
342 Paulo, V ida e O bra

que, ainda que não definido quanto ao dia e hora, devia,


porém ocorrer em tempo muito breve. Portanto, estava
orientada também para um fim próximo do mundo (lTs
5.1s.).
A comunidade pensava que tudo isso, incluindo a re­
denção dos fiéis, ao que parece, iria ocorrer durante a vida
da sua própria geração. Somente assim se compreende a
sua inquietação diante da morte precoce de alguns mem­
bros da comunidade. A ideia de uma ressurreição geral
parece ser ainda estranha, portanto, a esta comunidade
paulina. Justamente para uma situação do gênero, havia
sido cunhada uma palavra do Senhor glorificado, que
um profeta havia pronunciado sob o influxo do Espírito,
e da qual Paulo se serve para consolar a comunidade.
A concepção da ressurreição dos mortos, derivada do
pensamento apocalíptico judaico, serve, neste caso, para
afirmar precisamente que viver e morrer, "vig ia r" e "d o r­
m ir" (lTs 5.10) não estão separados por um abismo in ­
transponível, mas uns e outros, os vivos e os mortos, esta­
rão brevemente todos e para sempre unidos com o Senhor
(lTs 4.17; 5.10).
Nem meia década mais tarde, na Primeira Epístola aos
Coríntios, Paulo precisa defender a ressurreição dos mortos
num outro fronte. Fá-lo ainda sempre com a convicção de
que "nem todos dormiremos" (ICor 15.51), mas também o
faz com um significativo deslocamento dos acentos e se vê
impelido a descrever o iminente e esperado cumprimento
como um novíssimo ato de criação do ser humano, do qual
somente Deus é o autor.
Aqui, a diferença entre vivos e mortos é totalmente re-
lativizada pela afirmação que, em cada caso, não se obterá
a vida a não ser mediante uma transformação. Paulo, como
vimos, ancora estes pensamentos no "credo" da morte e
ressurreição de Cristo, bem conhecido da comunidade de
M ensagem e T eologia 343

Corinto (ICor 15.1-11) e o faz de modo tão vibrante a ponto


de declarar que a fé e o Evangelho seriam ilusórios e vãos
(ICor 15.12-19) se aqueles que negam a futura ressurreição
dos mortos tivessem razão.
A posição dos adversários do apóstolo não deve ser
identificada, como muitas vezes se fez erroneamente, com
a ideia grega da imortalidade da alma. Ela não se funda­
menta também sobre uma negação da ressurreição de
Cristo dos mortos. Pelo contrário, esta fé é o fundamento
comum, tanto de Paulo como dos espirituais entusiastas.
A diferença radical está nas consequências que cada um
dela extrai, na medida em que os negadores da ressurrei­
ção dos mortos sustentavam possuir já, nas suas experiên­
cias espirituais, a perfeição última como um fato presente e
atual (cf. 2Tm 2.18).
Esta precipitada e intempestiva identificação das expe­
riências de iluminação espiritual com a nova, definitiva,
mas ainda futura criação de Deus provoca a apaixonada
reação de Paulo, que combate com dureza e amarga ironia
em IC or 15 (cf. já IC or 4.8s.) e sublinha com vigor que a sé­
rie dos testemunhos da Páscoa se conclui com a sua pessoa
(ICor 15.8) e não pode continuar infinitamente. A qualifi­
cação de ilusão, que foi, sem dúvida, levantada contra a sua
mensagem e a sua doutrina, ele a devolve contra aqueles
iluminados entusiastas: se a ressurreição futura dos mortos
não devia mais ter valor, ele preferiria imediatamente ser
enumerado entre os incrédulos e pagãos, que, pelo menos,
têm o seu "bom senso" humano e não extraem dele piedo­
sas mas enganadoras ilusões (ICor 15.19,32).
O que se conclui daí? O apóstolo afirma que a fé não
vive nunca de si mesma e da própria emotividade interior,
e sim daquilo que, fora dela e acima das possibilidades
humanas, Deus fez e fará pelos fiéis e pelo mundo. Por
isso, todas as declarações do apóstolo que, superando as
344 Paulo, V ida e O bra

experiências temporais individuais, remetem ao além,


onde Deus age, têm a finalidade de manter os fiéis enraiza­
dos neste mundo, inseridos no "ainda-não" da sua tempo-
ralidade e historicidade.
Em outros termos: as concepções e imagens apocalípti­
cas servem precisamente para colocar em evidência a dife­
rença qualitativa entre "fé" e "visão" (2Cor 5.7). O anúncio
do "dia" de Cristo nos proíbe de confundi-lo com os dias
humanos e terrenos e, ao mesmo tempo, nos proíbe de ni­
velar a diferença entre Deus e o ser humano, também e,
sobretudo, mediante a fé e as experiências religiosas.
Por isso, diante das experiências "pneumáticas", estri­
tamente individuais e subjetivas dos iluminados, que eles
identificavam com a ação salvífica passada e futura de
Deus, o apóstolo descreve, em termos apocalípticos, "obje­
tivos" e de dimensão cósmica, qual seja o evento salvífico,
que será completo e definitivo somente com a parusia e a
ressurreição dos fiéis, mas que já se pôs em movimento por
causa da ressurreição de Cristo: isto é, o evento do senhorio
de Cristo e da sua vitória sobre todas as potências do mun­
do, até que a obra da sua dominação seja completa e ele
possa entregar a Deus o mundo, que lhe pertence enquanto
Criador e Senhor, mas que ainda está dominado pelo "ú lti­
mo inim igo", a morte, e assim, finalmente, Deus seja "tudo
em todos" (IC or 15.20-28).
De modo análogo se exprime em 2Cor 5.1-5, se bem
que utilizando outras concepções e imagens, para afirmar
que os fiéis vivem daquilo que ainda não são, mas que os
espera. Também nesta passagem bastante singular da sua
epístola, o apóstolo polemiza, direta ou indiretamente, con­
tra a nostalgia gnóstico-dualística de ser libertado de toda
corporeidade, e indica, ao invés, a esperança de ter uma
nova "casa", celeste, na qual seremos transferidos, e uma
nova "vestimenta" com a qual seremos revestidos, ou seja,
M ensagem e T eologia 345

uma corporeidade nova, uma nova criação do ser humano


inteiro, na qual os vivos serão transformados e os mortos
serão ressuscitados no momento da parusia. Também neste
caso, mantém viva a tensão: é certo que Deus, mediante o
seu ato salvífico, está conosco, mas é também verdade que
nós ainda não moramos "junto do Senhor" (2Cor 5.8).
Estas diferentes assertivas não possibilitam deduzir
uma concepção sistemática. Para isso, elas são por demais
variadas, esporádicas e heterogêneas. Além disso, seme­
lhante tentativa extrapolaria as intenções do apóstolo.
A dissonância é particularmente notável entre as expectati­
vas apocalípticas de caráter cósmico, entre as quais se inclui
também o anúncio do "dia " de Cristo e do juízo universal
(ICor 4,5; 2Cor 5.10; Rm 14.12 e passim), e aquelas outras
que falam de uma consumação que ocorrerá imediatamen­
te após a morte do fiel e o unirá definitivamente a Cristo (F1
1.23). Nesta mesma Epístola aos Filipenses, Paulo fala por
duas vezes do "dia " de Cristo (F11.6,10; 2.16) sem se preo­
cupar minimamente em harmonizar os dois enunciados do
ponto de vista cosmológico e simbólico.
Chama atenção, na última grande Epístola aos Roma­
nos, que, embora retornando e repensando em termos no­
vos uma quantidade de temas centrais das epístolas pre­
cedentes, Paulo não tenha nenhuma expressão paralela às
que havia dedicado à ressurreição na sua Primeira Epístola
aos Tessalonicenses ou naquelas dirigidas aos Coríntios e
aos Filipenses.
Sem dúvida, na Epístola aos Romanos, a expectati­
va da salvação e do juízo iminente não se apagou e nem
atenuou (Rm 13.1 ls.; 14.12; 15.12s.). Todavia, a ampla
abordagem de temáticas escatológico-apocalípticas assu­
me nesta epístola uma direção completamente oposta: de
um lado, nas digressões de história da salvação sobre o
destino final de Israel (Rm 9-11), transpostas e aplicadas
346 Paulo , V ida e O bra

a uma esperança de cumprimento intra-histórico e, de


outro lado, nas reflexões sobre a redenção de todo ser
criado (Rm 8.19-23).
Paulo não considera a criação separadamente do ser hu­
mano, mas vê a ambos submetidos à corrupção e, ao mesmo
tempo, ansiosamente na expectativa da libertação final dos
filhos de Deus, da qual também a criação participará, com
pena e dor, mesmo assim sempre orientada para o futuro, na
perspectiva de um tempo não mais incomensurável, e sim
de uma próxima conclusão e sob o sinal da esperança.
As afirmações paulinas em relação ao futuro, por mais
variada que possa ser a sua natureza e aplicação, permitem
discernir claramente certos elementos fundamentais da teolo­
gia do apóstolo: antes de tudo, o tema da soberania de Deus
e da sua vitória final, que, somente ela, levará a término a
obra iniciada. Por isso, o capítulo 15 da Primeira Epístola aos
Coríntios conclui com uma palavra de vitória até sobre a mor­
te, de tom audaz e provocante, que nenhum ser humano po­
dería se permitir sem imediatamente cair em grandiloquente
ilusão. Mas os fiéis, que são eles mesmos os troféus da vitória
de Deus, devem entoar, em uníssono, o hino vitorioso:

"A morte foi absorvida na vitória.


Morte, onde está a tua vitória?
Morte, onde está o teu aguilhão?" (lC or 15.55).

Todas estas considerações escatológicas de Paulo, in­


cluídas as que, à primeira vista, parecem perdidas em es­
peculações apocalípticas daquela época remota, tem sua
inclinação constantemente voltada para o ser humano e o
mundo, mas o fazem para fixar o mundo e o ser humano na
temporalidade, para im pedir que os fiéis, no afã do entu­
siasmo de iluminados, minimizem a morte e o sofrimento e
também a responsabilidade para com o próximo.
M ensagem e T eologia 347

Contudo, tais observações paulinas, sejam elas destina­


das a consolar ou a prevenir, estão todas caracterizadas pela
esperança que se fundamenta sobre o evento salvífico, e que
vive também as aflições como algo que não contradiz a salva­
ção dada por Deus, mas a ela corresponde, de modo que se
constitua uma concatenação entre tribulação, paciência, cons­
tância e esperança (Rm 5.3s.). Com efeito, "os sofrimentos do
tempo presente não têm proporção com a glória que deverá
revelar-se em nós" (Rm 8.18). Por isso, também as aflições se
tornam motivo de gloria e de louvor a Deus (Rm 5.2,11).
Portanto, as afirmações escatológicas de Paulo, assim
como o apelo pressuroso junto aos fiéis em relação àquilo
que Deus fez para eles ou o recordar-lhes permanentemen­
te a nova vida na qual foram inseridos, são as molas que
dão impulso à parênese do apóstolo: estar vigilantes como
pessoas que vivem na luz do dia que amanhece e não per­
tencem mais às trevas. Estar sóbrios, e não se embebedar
como os filhos da noite, na expectativa da vinda de Cristo,
qualquer que seja o momento (lTs 5.1-11; Rm 13.12s.).
A mensagem escatológica de Paulo combate, portanto, a
ansiedade, a pusilanimidade, a indolência (F14.4-9), e desem­
boca num apelo claro e direto a um comportamento "cora­
joso", "firm e" e "forte" (ICor 16.13), a ter confiança, mesmo
no compromisso cotidiano, "cientes de que a vossa fadiga
não é vã no Senhor" (ICor 15.58). Tudo isso não diz respeito
somente à existência individual de cada um dos fiéis e à sua
realidade de ontem, de hoje e de amanhã, mas se orienta para
o tempo de Deus e o seu futuro que ultrapassam o indivíduo,
para a perspectiva que Deus abre e que não deixa o mundo
entregue a si mesmo e à corrupção, mas, antes, o engloba e o
orienta para a liberdade que o espera (Rm 8.18s.).
Ao lançar um olhar retrospectivo sobre este nosso tra­
balho, alguém talvez se maravilhará e deplorará que, não
obstante a concepção revolucionária que o apóstolo pos­
sui da força libertadora da graça, que derruba as barreiras
348 Paulo , V ida e O bra

de separação entre seres humanos e povos, não se esteja


extraindo dela consequência muito mais drásticas e preci­
sas para os problemas de estruturação da vida e do mundo
que nos assoberbam e afligem. Quem pretende deduzir di­
retamente da teologia paulina um programa e um esquema
de aplicação imediata para enfrentar tais questões, perde
o seu tempo. Semelhante esforço seria não somente anti-
histórico, anacrônico e, portanto, vão e incapaz de atentar
para os condicionamentos históricos do pensamento pau-
lino, que acentuamos repetidamente neste livro, mas seria
também uma maneira teologicamente errada de compreen­
der a mensagem do apóstolo.
O mundo no qual Paulo anunciou o Evangelho não pode
ser simplesmente equiparado ao nosso. A sua fé, porém, dis­
põe de idéias e de força dinâmica que precisam ser cada vez
redescobertas e valorizadas. Com o seu Evangelho da liberta­
ção ocorrida em Cristo, Paulo pôs de qualquer modo um fim à
desmedida e desesperada ilusão de quem pensa poder colocar
ordem no mundo, e transformá-lo num paraíso, unicamente
com forças humanas. Por isso, ele preveniu os fiéis, com a pai­
xão que lhe era própria, contra o perigo sempre ameaçador de
cair ou de recair na escravidão de uma lei terrena, por melhor
articulada que seja. Mas, com esta mesma energia, ele colocou
em evidência certas possibilidades e certos critérios fundados
sobre a liberdade que precisam ser verificados com a ajuda
do Espírito. Num mundo que se tornou diferente, importa
verificá-los também e precisamente nas relações interpessoais
e coletivas.
Paulo, porém, não predeterminou como e onde isto
possa e deva acontecer concretamente, mas remeteu esta
tarefa às capacidades de discernimento e de decisão que
a fé tornou livres. Tal é precisamente o significado da sua
palavra segundo a qual nada possui valor a não ser a fé
operante pelo amor.
C O N C LU SÃ O

PAULO E JESUS

É mérito da investigação protestante do início des­


te século o fato de ter subordinado, ainda que com posi­
ções e respostas problemáticas, a comparação entre Jesus e
Paulo à questão teológica e objetiva das relações recíprocas
entre ambos, na verdade, à questão geral da essência do
cristianismo. Eles não procederam, portanto, a um simples
confronto entre um e outro como figuras da história, neste
caso, da história das religiões, da maneira como, por exem­
plo, já na Antiguidade helenista Plutarco de Queronéia (ca.
de 45-125 d.C., quase um contemporâneo de Paulo), na sua
clássica obra Bíoi Paralléloi (Biografias Paralelas), compara
cada vez dois heróis, estadistas, generais, oradores, etc. da
Antiguidade grega e romana.
Como se sabe, semelhante modo de proceder ainda
está em voga e é aplicado a filósofos, artistas, mas também
a fundadores de religião, reformadores e outras figuras da
história eclesiástica. Isto pode, sem dúvida, facilitar a com­
preensão de importantes figuras históricas e favorecer um
julgamento mais correto sobre grandes ou modestos em­
preendimentos dos personagens assim colocados em con­
fronto.
Todavia, no nosso caso, uma tentativa deste gênero
permanecería lim itado ao aspecto externo da causa defen-
350 P aulo, V ida e O bra

dida por Jesus e Paulo, obstaculizando, em vez de facilitar,


a sua compreensão. Sua coordenação e suas relações recí­
procas, destarte, não viriam à luz.
Na realidade, o resultado da investigação crítica con­
duzida pelos estudiosos protestantes foi prevalentemente
negativo. Mostrou, acima de tudo, o abismo que separa
aquelas duas figuras, e concluiu que o verdadeiro funda­
dor do cristianismo não é o Jesus histórico, o qual, a despei­
to de toda a sua originalidade, deve ser entendido a partir
dos pressupostos do judaísmo, e sim, Paulo que fez dele
uma religião de redenção, sofrendo, certamente, o influxo
do pensamento judaico, mas, sobretudo, das concepções e
dos mitos do Oriente pagão, assim como se haviam disse­
minado especialmente através das religiões de mistérios do
helenismo.
Não nos deteremos por ora para examinar quais destes
resultados são corretos e quais carecem de uma correção,
e renunciaremos, igualmente, a discutir as posições teoló­
gicas que os nossos pais fundavam sobre os seus estudos
de história das religiões. O rigor com o qual a maior parte
deles se lim itou ao seu trabalho de historiadores, usando
total liberdade crítica no confronto com a tradição dogmá­
tica eclesiástica, contribuiu, de maneira decisiva, para fazer
emergir em toda a sua acuidade o problema de saber se a
evolução de Jesus para Paulo era historicamente necessá­
ria, se possuía uma legitimidade interna específica, ou se
foi uma fatalidade e um declínio.
Estes debates teológicos não ocorriam então no circui­
to fechado dos estudos dos eruditos, mas penetravam am­
plamente no público leigo. Desde então, o discutido lema:
"Deixar Paulo, voltar a Jesus" continuou circulando. Se em
certos momentos foi abafado até se tornar um problema
somente para os teólogos, contudo, continuou ardendo
debaixo das cinzas e constituiu o lim ite, muitas vezes não
C onclusão 351

adm itido consciente mas implicitamente, que d ivid ia os


que permaneciam ligados às tradições cristãs, daqueles
que assumiam uma atitude de distanciamento ou até
mesmo de hostilidade em relação ao cristianismo, até
que, em época mais recente, voltou a ser um aberto grito
de guerra.
Naturalmente, o problema de uma adequada avalia­
ção de Paulo e da sua mensagem é antiquíssimo. Já durante
a sua vida, como vimos, foi acusado por seus adversários
de ser um apóstolo ilegítimo e de ter falsificado a mensa­
gem cristã. Também na história posterior da Igreja p rim iti­
va, o julgamento a seu respeito permaneceu extremamente
ambivalente. O judeu-cristianismo o rejeitou durante um
bom tempo, considerando-o rival de Pedro e Tiago, irmão
do Senhor, e chegando, naquele ambiente, até ao ponto de
compará-lo com Simão Mago, o cabeça de todos os heréti­
cos (Epístolas Pseudo-Clementinas).
Na verdade, não faltam, desde os fins do século I,
alguns autores eclesiásticos que o veneram e citam as
suas epístolas (Primeira Epístola de Clemente, Inácio de
Antioquia, Policarpo). Por sua vez, os gnósticos e os chefes
de seitas, sobretudo, Marcião, dele se apropriam bem cedo,
tornando-o, assim, suspeito à Igreja. Em consequência, por
vários decênios, não se ouve mais falar dele, ou, como na
inautêntica Segunda Epístola de Pedro (meados do séc. II),
é, na verdade, chamado de "amado irmão", mas isto com
extrema reserva, dizendo que suas epístolas são difíceis de
entender, havendo, por isso, homens "ignorantes e vacilan­
tes" que as teriam distorcido, "para a sua própria perdição"
(2Pd 3.15s.). Até o livro dos Atos dos Apóstolos, que o exal­
ta como um grande missionário, ou as Epístolas Pastorais,
que procuram conservar o seu legado, e os outros escritores
da Igreja cristã antiga, que veneram a sua memória, seguem
caminhos teologicamente de todo diferentes dos de Paulo,
352 Paulo, V ida e O bra

antes que, de forma clara e definitiva, a "Grande Igreja" o


arranque das mãos dos heréticos e dele se aproprie, não
sem tê-lo antes "domesticado" e modificado.
Contudo, desde o século XIX, a hostilidade declarada
contra Paulo explodiu novamente no desencontro entre o
cristianismo e os seus adversários e se manifestou através
de inúmeras vozes, muitas vezes ligadas a uma veneração
- ainda que totalmente anticristã - pela pessoa de Jesus.
Assim, por exemplo, P. de L agarde, propugnador de uma
"religião alemã" e de uma "igreja nacional", atribui a
funesta evolução sofrida pelo cristianismo à "influência
exercida por uma pessoa (Paulo) totalmente desqualifica­
da". F. N ietzsche, no seu Anticristo, resumiu de maneira
ainda mais drástica e feroz toda a história do cristianis­
mo, chamando-a uma "corrupção impossível de deter":
"N o fundo, existiu somente um cristão, e ele morreu na
cruz. O 'evangelho' morreu na cruz. Daquele momento
em diante, tudo aquilo que foi denominado 'evangelho'
era exatamente o oposto daquilo que ele havia vivido, ou
seja, uma 'má-nova', um 'des-evangelho'". "A 'boa-nova'
foi seguida imediatamente pela pior das novidades: a de
Paulo". Este teria levado o processo adiante "com a cínica
lógica de um rabino". Nele, "se encarna o tipo oposto do
'mensageiro de boas notícias', isto é, o gênio do ódio...
O que este não-evangelista não sacrificou ao ódio! E, antes
de tudo, o redentor. Ele o pregou na sua cruz. A vida, o
exemplo, o ensinamento, o sentido e o direito de todo o
evangelho... nada ficou em pé quando aquele falsificador,
possuído pelo ódio, compreendeu o que somente para ele
seria ú til".
Manuseando a literatura posterior, não seria difícil
engrossar o coro destas vozes, incluindo nomes de menor
porte, até chegar ao de A. Rosenberg, de triste memória,
com o seu Mythus des 20. Jahrhunderts.
C onclusão 353

Em época mais recente, a locução "Jesus" - não Paulo!"


se transformou num tema, que, nas discussões entre judeus
e cristãos, novamente em andamento, indica de maneira
precisa a linha demarcatória entre uns e outros. O fato que
este diálogo entre religiões diferentes tenha tomado im pul­
so após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo, por inicia­
tiva dos judeus, é tudo menos óbvio, especialmente tendo
em conta que, durante um milênio, a igreja cristã teve res­
ponsabilidade nos indizíveis sofrimentos do povo judeu,
mesmo se a atroz explosão de ódio antijudaico dos últimos
decênios recebeu reforço não só da tradição "cristã", mas
também da parte de muitas outras obscuras fontes não cris­
tãs e anticristãs.
Por isso, uma vez caída a máscara, tanto os judeus
quanto os cristãos, diante do ataque generalizado levado a
efeito contra a fé que - coisa bastante surpreendente! - ao
mesmo tempo, os divide e os une, se encontraram ligados
no mesmo destino de párias, se bem que em proporções
que, do ponto de vista quantitativo, não são absolutamente
comparáveis. Foi a partir desta base que se iniciou o diá­
logo, ainda muito fragmentário, sob o signo daquela espe­
rança expressa por M. Buber num dos seus últimos livros,
segundo o qual judeus e cristãos teriam muitas coisas ainda
não ditas a se dizer reciproca mente e, concomitantemente,
prestar-se ajuda mútua por ora apenas imaginável.
Não é aqui o lugar para tratar em pormenores dos
problemas colocados pela frase mais recente destas con­
versações. Ela se caracteriza, porém, de maneira significa­
tiva, pelo fato de os representantes do judaísmo (M. Buber,
L. Baeck, H. J. Schoeps, S. ben C horin , e outros) conside­
rarem Jesus como um dos maiores profetas judeus, ven­
do nele não o Messias, mas um seu irmão, enquanto Paulo
teria sido vítima de um judaísmo ilegítimo, apocalíptico
e helenizado, mas, sobretudo, de mitos e concepções pa-
354 Paulo , V ida e O bra

gãs, gregas e orientais, e carregaria, por isso, a verdadeira


responsabilidade pela fatídica oposição entre judaísmo e
cristianismo, bem como pela linha doutrinai da igreja cris­
tã, tendo-se afastado da pregação autêntica de Jesus e do
judaísmo legítimo.
Com isso, são reintroduzidos argumentos antigos e
bem conhecidos, se bem que modificados em seus aspec­
tos particulares e derivados de premissas totalmente dife­
rentes: a ab-rogação da Lei e da circuncisão; a perversão
da fé de Jesus numa fé em Jesus Cristo; a proclamação de
que nele está presente a salvação escatológica, o que é con­
tradito diariamente pelas experiências históricas e im plica
o abandono da esperança de Israel; enfim, a separação da
pessoa ind ivid ual do seio protetor do povo, da história e
do mundo, não mais reconhecidos como criação divina, e
sim como "demonizações".
Neste quadro, ninguém contesta o pano de fundo
judaico da teologia paulina nem o ardente amor do após­
tolo pelo seu povo, mas em vez de recrim iná-lo por ter
rejudaizado a mensagem de Jesus, como se fazia até en­
tão, imputam -lhe agora o fato de ter saído dos lim ites bem
guardados do judaísmo; por causa dos pagãos, ele teria
sido vítim a de um sincretismo pagão.
E. Bloch (Atheismus in Christentum, 1968) também se
uniu a estas vozes, obviamente não como defensor da fé
em Deus, mas como um apaixonado crítico. Também ele
se refere à Bíblia, remetendo-se fortemente ao Jesus "rebel­
de e arqui-herético", fazendo-se advogado das forças sub­
versivas - ainda por serem descobertas - que no A ntigo e
no Novo Testamento se erguem a favor do ser humano e
do mundo, contra "Javé" e contra as tradições e os ordena­
mentos teocráticos guardados pelos sacerdotes, e, fazendo-
se porta-voz, decididamente ateu, da utopia apocalíptica
marxisticamente referida a este mundo, Bloch se mostra
C onclusão 355

genial em muitas das suas formulações e pela perspicácia


com que identifica as características fundamentalmente
escatológicas da pregação de Jesus a respeito da iminente
vinda do Reino de Deus, mas também arbitrário em sua
concepção e interpretação.
Como era de se esperar, também ele canaliza a sua ira
contra Paulo, mas não com a moderação e sabedoria pró­
prias de pensadores judeus como L. Baeck e M. Buber, e sim
com a falta de medida que caracteriza os filósofos marxis­
tas e recorrendo a deformações grotescas do pensamento
paulino: criticando a ideia arcaica, atribuída a Paulo, de um
deus Moloque que exige o sacrifício do próprio filh o para
pagar o débito constituído pelos pecados da humanidade.
Em seguida, dirige a sua ira contra a operação que Paulo
teria realizado, substituindo as esperanças escatológicas de
Jesus, socialmente perigosas, com uma ilusória presença
cultual-sacramental da salvação, toda dirigida à inte riori-
dade e ao além, e fundada sobre a teoria sacrifical própria
do apóstolo e sobre uma concepção do mistério da ressur­
reição tomada de empréstimo de um m ito naturalístico
pagão.
Deste modo, para Bloch , a mensagem de Jesus sobre
o Reino de Deus teria sido neutralizada e empobrecida.
A p a rtir de então, sob o signo da cruz, os fiéis seriam exor­
tados à paciência, somente à paciência, e até à obediência
às autoridades: tudo isso constituiría um cristianismo no
qual a escatologia teria sido sufocada ao nascer e que se
teria instalado no vale de lágrimas deste mundo, aceitando
as suas estruturas políticas, econômicas e sociais na base de
um conceito que "mescla de modo estranho transitorieda-
de e inalterabilidade!" "A vontade de se colocar a caminho
na direção do Reino de Deus ou de prom over a sua irru p ­
ção" teria sido m utilada pelo conservadorismo de Paulo,
o qual teria substituído o "Filho do homem" pelo "Filho
356 Paulo , V ida e O bra

de Deus", inaugurando assim uma teologia pagã e até


bizantina do kyrios, uma "teologia de corte em torno, acima
e contra Jesus".
Assim se apresenta, em linhas gerais, a situação em que
se encontra, hoje, a questão da relação entre Jesus e Paulo.
Seria impossível e mesmo sem perspectiva, neste capítulo
conclusivo, tentar, ainda uma vez, refutar detalhadamente
as objeções e os ataques movidos contra o apóstolo nestas
últim as páginas e também nas precedentes.
Se a apresentação que fizemos de Paulo neste livro
não conseguiu corrigir alguns erros mais difusos a seu
respeito ou tornar menos convincentes algumas objeções
levantadas contra Paulo, seria, a esta altura, m uito tarde
para envidar um esforço de caráter apologético. Seja como
for, a polêmica contra Paulo, comedida ou grosseira que
seja, mas sempre viva e renovada, deveria conservar desta
inquietação que o próprio apóstolo suscitou e, sobretudo,
deveria trazer salutarmente à nossa consciência aquilo que
há de surpreendente na mensagem protocristã em geral
e particularm ente na "palavra da cruz" que é "escândalo
para os judeus e loucura para os gentios" (IC or 1.23), toman­
do sempre consciência do ódio ao qual o Evangelho está
sempre e em toda parte exposto.
Seja como for, esta polêmica comprova que a fé é
indemonstrável e que a mensagem de Cristo traz o seu fun­
damento em si mesmo e não o tira de fora. Tudo depen­
de da pergunta, cuja resposta tanto para Paulo como para
o cristianismo p rim itivo , é constituída pessoalmente por
Jesus crucificado e ressuscitado: a pergunta sobre o signi­
ficado da figura e da história de Jesus Cristo enquanto ato
de Deus, válido uma vez para sempre, que decidiu e decide
sobre o nosso destino e do mundo inteiro.
Esta formulação nitidamente pós-pascal coloca ainda
uma vez em evidência, como se depreende de imediato,
C onclusão 357

a discutida diferença entre a pregação e a obra de Jesus


terreno, de um lado, e por outro lado, a mensagem da
comunidade p rim itiva a respeito de Jesus, de cuja diferen­
ça fizemos já menção no início da nossa exposição sobre a
teologia paulina.
E perfeitamente lógico que aqueles que criticam Paulo
insistam, desde sempre, sobre esta diferença e, sobre esta
base, coloquem o problema da legitim idade ou ile g itim i­
dade da fé cristã. A própria fé, ao buscar sua motivação e
justificação, não pode afirm ar a própria posição, a não ser
justamente no ponto no qual a incredulidade a contesta.
A diferença entre a pregação de Jesus e a mensagem da
comunidade a seu respeito é, sem dúvida, evidente, mes­
mo se a tradição relativa a Jesus, que foi acolhida e reela-
borada nos evangelhos, mostra indícios suficientes de uma
inserção tardia de elementos querigmáticos na pregação do
Jesus terreno.
Tal transformação se apresentará necessariamente
como um fatídico processo de decadência e de perversão
para quem considerar as coisas, buscando essencialmen­
te ou exclusivamente na pregação de Jesus e na dos seus
testemunhos subsequentes um conjunto de idéias e pensa­
mentos intemporais. Mas, uma semelhante maneira de ver,
ainda que, através de longa tradição, possa parecer óbvia e
adequada, não resiste diante do Jesus "histórico".
Efetivamente, também na sua crítica revolucionária
das tradições dominantes, das doutrinas e da religiosida­
de do seu povo, a pregação de Jesus, pelo seu conteúdo,
esta m uito mais próxim a de quanto se pensou durante
m uito tempo, da mensagem dos profetas mais antigos e da
tradição sapiencial do judaísmo tardio. Esta corretíssima
observação perm itiu, não sem razão, aos representantes do
judaísmo moderno reivindicar Jesus como um profeta per­
tencente ao seu povo.
358 Paulo , V ida e O bra

O fato que Jesus esteja estreitamente unido a João


Batista e em muitas das suas palavras aceite explicitamente
dele a mensagem, a autoridade e a im portância, sem degra­
dá-lo a um mero "precursor", fo i realçado justamente pelo
Evangelho de Mateus, quando este retoma e reproduz com
os mesmos termos precisos a mensagem de um e de outro
(compare-se M t 3.2 com M t 4.17). Isto significa que ambos,
o Batista e Jesus concordavam também e particularmente
em anunciar a vinda im inente do Reino de Deus e no apelo
à conversão.
Esta mensagem não havia efetivamente levantado uma
indignação geral contra o Batista, mas, pelo contrário, uma
atenta audiência da parte do povo. Por si só, esta mensa­
gem certamente não teria proporcionado também a Jesus a
inim izade figadal e a cruz.
Tal inim izade se tornou evidente e aguda ao ser anun­
ciado que o tempo do juízo e da salvação começava aqui e
hoje, nele, na sua palavra e nos seus atos. O homem forte
que aniquila o poder de Satanás e lhe rouba a sua presa
(Mc 3.27) já está aqui. Já é verdade que "se é pelo dedo de
Deus que eu expulso os demônios, então o Reino de Deus
já chegou a vós" (Lc 11.20).
O anúncio do fim im inente do mundo e da vinda do
Reino de Deus podia ser elaborado em grandiosas cons­
truções teológicas, como demonstra a literatura apocalíp­
tica do judaísmo tardio e não trouxe nenhum descrédito
para os seus defensores. Também a ideia e a doutrina de
um Deus m isericordioso podia ser facilmente inserida na
teologia do judaísmo da época. Contudo, o fato que nas
palavras e nos atos de Jesus se estava verificando a a fir­
mação: "M eu filh o , os teus pecados te são perdoados" (Mc
2.5), esta sua "autoridade" não sustentada por nenhuma
hierarquia sacerdotal ou da parte dos escribas, isto cons­
tituía uma blasfêmia.
C onclusão 359

O fato de haver questionado, não somente em pala­


vras, mas de fato e de modo revolucionário, todas as tra di­
ções e os ordenamentos sagrados, de ter ultrapassado todos
os confins entre puro e im puro, justo ou injusto, o haver
proclamado o "hoje" e o "agora" na perspectiva escatoló-
gica do Reino de Deus que vem, colocou em movimento
os inim igos de Jesus, fazendo recair sobre ele a condena­
ção reservada aos rebeldes (Esta é a realidade que E. Bloch
expressa melhor que muitos outros, com a veemência que
lhe é peculiar, mesmo se a interpreta arbitrariamente num
sentido ateísta-utópico).
Para os inim igos de Jesus, aqueles "a q u i" e "hoje" se
transformaram bem rapidamente num irrevogável "on­
tem " e "a li", um episódio, um incidente desagradável, so­
bre o qual não vale a pena levantar problemas. Mas, como
o ensina a história dos discípulos de Emaús (Lc 24.13s.), um
problema m uito amargo se coloca, ao invés, aos discípulos
de Jesus: o fim de uma esperança, o ocaso de um momento
crucial da história do seu povo. A redenção de Israel não
aconteceu, enquanto continuam o mundo e o desenrolar
inexorável da sua história. Nesta experiência, a Páscoa, isto
é, o próprio Senhor crucificado, ressuscitado e presente foi,
para eles, a resposta.
Não é nosso propósito, aqui, discutir pormenorizada-
mente os títulos cristológicos mediante os quais aquele fato
virá expresso a seguir nas confissões de fé da comunidade,
nem nos compete explicitar as fases do processo no qual a
pregação e a história de Jesus se transformaram na mensa­
gem cristológica pós-pascal, na qual Jesus mesmo encontra
um lugar, tornando-se a sua fonte e conteúdo.
O mesmo vale também para as concepções e catego­
rias de pensamento nas quais a fé dos prim eiros cristãos
se expressou e se desenvolveu de maneiras variadas, se­
jam elas adequadas ou discutíveis, condicionadas pelo seu
360 Paulo , V ida e O bra

tempo e hoje, para nós, quase incompreensíveis, ou então,


perfeitamente adequadas e insubstituíveis, mesmo se, em
cada caso, carecem de ser novamente traduzidas e inter­
pretadas.
A história e a mensagem paulina mostraram a seu
tempo, e a história da teologia nos mostra ainda hoje, qual
foi a parte que coube a Paulo, enquanto intérprete do que-
rigma protocristão, naquele processo de compreensão. Mas
nos mostra também até que ponto ele mesmo, juntamente
e através da sua teologia, precisa ser interpretado e assimi­
lado. O problema da interpretação correta e compreensão
do evento salvífico; diante do qual ele se viu colocado, e
que ele mesmo suscitou para o futuro, nunca foi elim ina­
do e seria terrível pensar que pudesse chegar a sê-lo. Não
surpreende, portanto, sendo até mesmo bom que ele tenha
permanecido até hoje - e oxalá continue sempre! - no fogo
cruzado de toda espécie de discussões críticas.
Com o que fo i exposto até agora, não se contesta a legi­
tim idade e o significado de uma comparação entre a prega­
ção de Jesus e a mensagem de Paulo. Mas, neste ponto, não
se questionará mais somente se e em que medida a mensa­
gem do apóstolo reproduz e conserva o mesmo conteúdo
conceituai da pregação de Jesus. Pelo contrário, im porta
levar em consideração decididamente às condições histó­
ricas e a nova situação do mundo e do tempo que se criou
após a morte de Jesus na cruz e através da presença do
Senhor vivo no Espírito: todos elementos que nenhum dos
personagens do cristianismo p rim itivo , antes ou depois de
Paulo, refletiu a fundo e elaborou tanto quanto ele. A des­
peito da diferença que se observa, em termos de conteúdo,
pensamento e linguagem, entre a mensagem de Jesus e a de
Paulo, ambas concordam na referência ao ser humano e ao
mundo, e precisamente ao ser humano e ao mundo diante
de Deus, e na relação de Deus com o mundo.
C onclusão 361

Na mensagem paulina, o ser humano não é considera­


do simplesmente um monstro moral nem o mundo é sim­
plesmente desqualificado, no sentido gnóstico-dualístico,
como uma realidade diabólica. Ante as tendências deste
gênero, vivazmente representadas por seus adversários
espiritualistas, o apóstolo se apresenta precisamente como
defensor do mundo, entendido como criação de Deus, e,
aconteça o que acontecer, ligada ao ser humano, à sua his­
tória, ao seu presente e ao seu futuro.
Paulo, por outro lado, sabe perfeitamente que o ser hu­
mano é "sem-Deus" (asebés), mesmo na im possibilidade de
se liv ra r de Deus. Que foi chamado por ele à vida, e contu­
do incapaz de viver verdadeiramente na sua presença. Isto,
segundo Paulo, é o que diz a Lei, que ele sintetiza no amor,
como havia feito Jesus. E a Lei o afirma para todos, também
e precisamente para aqueles que julgam poder afirm ar gra­
ças às suas "obras" ou devido à sua "sabedoria".
Mas a sua mensagem realça tanto mais fortemente o
fato que Deus não abandonou aquele ser humano, mas o
encontrou e o libertou mediante a fé, renunciando à pró­
pria grandeza e "g ló ria ", e sem colocar condições prévias
ou exigir garantias, nem sequer aquelas que consistem em
ter uma determinada convicção sobre a existência de Deus
ou uma concepção do mundo judaica ou cristã.
Deste ponto de vista, se compreende como a mensa­
gem paulina da justificação somente pela graça encontre
uma analogia na atitude de Jesus que se dirige aos ím ­
pios e aos perdidos. Nos dois casos, não se trata de um
conceito de Deus, da ideia de que Deus perdoa, e sim da
realização e da atualização - no sentido forte do termo
- do acontecimento que tem lugar agora, e cuja hora já
soou: a soberania de Deus "já em meio a vós" (Lc 17.20), a
"plenitude dos tempos" (G1 4.4). Na pregação e nas obras
de Jesus, assim como para Paulo, salvação significa liber-
362 Paulo, V ida e O bra

tação, enquanto evento e milagre. Os seres humanos que


circundam Jesus e se encontram com ele, mesmo sendo
extremamente diferentes uns dos outros, se caracterizam
todos por uma abissal carência de liberdade, devida à do­
ença, possessão diabólica, culpa, mas também ao fato de
serem prisioneiros das próprias convenções e tradições
religiosas, da sua própria piedade e ilusões quanto ao fu ­
turo. Onde quer que Jesus os encontre, a sua ausência de
liberdade vem à tona, e onde quer que ele pronuncie a sua
palavra ou explique a sua ação, acontece a libertação do
peso do seu passado e das angústias e preocupações com
o futuro. Por isso, o im inente Reino de Deus começa na
terra e não num além qualquer (e nisto E. Bloch tem per-
feitamente razão!). Na mensagem de Jesus, portanto, são
os "piedosos" a serem ameaçados de perdição, aqueles
que não têm necessidade de conversão, como os fariseus
no Templo (Lc 18.9s.), o irm ão mais velho descontente, da
parábola do filh o pródigo (Lc 15), os operários da vinha
que fazem valer o m aior trabalho realizado e, por isso, o
direito a uma recompensa m aior da parte do seu Senhor
(M t 20.Is.).
Paulo não retoma diretamente estas e outras palavras
semelhantes do Jesus terreno. Tudo leva a crer que ele nem
as conhecia. Pode-se tranquilam ente afirm ar um fato que
a m uitos poderá parecer surpreendente e paradoxal, isto
é, que, não obstante tenham transcorrido quase dois m il
anos, nós, hoje, sabemos, com toda probabilidade, m uito
mais coisas a respeito de Jesus histórico, do que Paulo.
Todavia, com base nas poucas coisas que conhece, com
base na morte na cruz e ressurreição, o apóstolo proclama
a obra libertadora de Cristo e vê o próprio Cristo como o
"sim e A m ém " que ratifica as promessas divinas (2Cor
1.17s.). Jesus, ao se d irig ir aos pecadores e aos publicanos,
e Paulo, com a sua mensagem e ação missionária entre
C onclusão 363

os gentios, derrubaram, um e outro, as mesmas barreiras


constituídas pelas obras m eritórias e pelos pretensos p ri­
vilégios.
A "liberdade dos filhos de Deus", segundo a mensa­
gem de Jesus e de Paulo, ainda está escondida; a perfeição
ainda não se completou. Por isso, a sua pregação está en­
tremeada de apelos à vigilância e de convites para se pre­
parar para os sofrimentos e as provas. Vigilância e disponi­
bilidade não dirigidas a alguma coisa indistinta, nem a um
esquema de utopia apocalíptica ou a uma esperança que o
ser humano ergue "ainda da beira do túm ulo", e sim, à luz
do novo dia que amanheceu com Jesus Cristo.
Após tudo o que foi exposto, deveria ser in ú til ex-
pender considerações para refutar a total incompreensão
de Paulo que se esconde na censura muitas vezes dirigida
contra ele pelo fato de, com a sua teologia, se ter interposto
entre Jesus e os cristãos e de ter erguido uma nova barreira
entre Deus e os seres humanos com a sua "com plicada"
doutrina da salvação. O autor da Epístola aos Efésios de­
monstrou ter uma compreensão mais objetiva da mensa­
gem paulina. Ela não tem outro escopo senão proclamar
que Jesus derrubou o "m uro de separação" (entre Deus e o
ser humano, mas também entre Judeus e gentios) (Ef 2.14).
Seria um engano pensar que tudo que escrevemos seja
uma representação perfeita e sem lacunas de Paulo e da
sua teologia. Continuam obscuros e enigmáticos muitos
aspectos da sua pessoa e teologia. Entre outros, podem ser
trazidos para o prim eiro plano os seguintes: muitas con­
cepções ou representações que na sua doutrina da Lei e da
salvação estão condicionadas pela tradição e pela cultura
da época; a sua expectativa em torno das "ultim as coisas",
que surpreendentemente não se realizou; o seu pensamen­
to teológico que muitas vezes adentra questões insondá-
veis; a sua interpretação da Escritura que, por vezes, beira
364 Paulo , V ida e O bra

o artístico, para não dizer o abstruso (também aqui ele se


mostra filh o do seu tempo).
Acrescentem-se a tudo isso certos traços incômodos
da sua personalidade: a determinação rígida, repentina
e inflexível das suas decisões; a passionalidade das suas
explosões evidentes em suas epístolas; o julgam ento, com
certeza, mais de uma vez injusto no confronto dos seus
adversários; o ímpeto com que leva adiante os seus propó­
sitos; a am plidão inaudita e fantástica dos seus projetos, e
muitas outras coisas deste gênero.
A grandeza e os lim ites justamente deste apóstolo se
tocam fortemente como em nenhum outro. Com seu feitio
d ifícil e anguloso, ele quebra o quadro e o clichê de qual­
quer imagem de santo. Mas tudo isso não faz senão realçar
ainda mais a verdade da sua própria assertiva: "Trazemos,
porém, este tesouro em vasos de barro ..." (2Cor 4.7). Uma
coisa é tão verdadeira quanto a outra: os vasos de barro - o
tesouro.
ANEXO I

EPÍSTOLAS DE PAULO :
A U TÊ N TIC A S E N Ã O A U TÊ N TIC A S

A. No estágio atual dos estudos, não há nenhuma


necessidade de defender a autenticidade das epístolas pau-
linas que servem de fundamento deste livro. Foram todas
redigidas durante os cerca de seis ou sete anos de ativida­
de missionária do apóstolo na região da Ásia Menor, na
Galácia, na Macedônia, na Grécia, em Éfeso (Ásia) e nova­
mente Macedônia e Grécia (Corinto). A ordem cronológica
(em parte assegurada e em parte apenas conjeturada) é a
seguinte:

1) Durante a prim eira estadia de Paulo em Corinto:


Primeira Epístola aos Tessalonicenses. Cf. lTs 2.17-3.8
(primavera de 50).
2) No período da sua atividade em Éfeso e arredores:
a) Á Epístola aos Gaiatas, endereçada às comunida­
des da região da Galácia, dificilm ente também as
regiões citadas nos capítulos 13 e 14 dos Atos dos
Apóstolos (presumivelmente no ano 54).
b) A maior parte da correspondência com Corinto (cf.
Anexo II). Época: em torno de 54/55.
c) As epístolas da prisão: aos Filipenses e a Filemon.
Ambas pressupõem um vivo intercâm bio de
366 Paulo, V ida e O bra

notícias e, portanto, uma relativa proxim idade


entre o lugar da prisão de Paulo e a residência
dos destinatários, o que sinalizaria antes Efeso,
e não Roma ou Cesaréia. Ainda que o liv ro dos
Atos dos Apóstolos não faça referência a uma
prisão de Paulo em Efeso e as próprias epístolas
não mencionem explicitam ente o lugar da de­
tenção, contudo IC or 15.32 e 2Cor 1.8s falam de
uma perseguição sofrida e de um perigo m or­
tal que Paulo correu em Efeso (Ásia). Época:
54/55(?). -
3) Durante a últim a estadia de Paulo na Macedônia e
na Grécia (Corinto): a últim a parte da correspondên­
cia com Corinto (2Cor 1.1-2.13; 7.5s.; 8; 9), a Epístola
aos Romanos (Rm 15.25s.) e Rm 16 (ver Anexo II).

B. É possível demonstrar que na Igreja antiga circu­


laram muitas epístolas inautênticas escritas sob o nome de
Paulo, como, por exemplo, uma Epístola aos laodicenses
e uma terceira aos Coríntios. Igualmente, outras epístolas
foram redigidas sob o nome de autoridades da comunida­
de p rim itiva (1 e 2 de Pedro, de Tiago, de Judas). Este uso
do pseudônimo não deve ser julgado, de imediato, segun­
do os critérios próprios da moderna profissão de escritor.
Certos conceitos como os de "propriedade intelectual",
"paternidade de uma obra de arte", "d ire ito autoral" e se­
melhantes, não ainda conhecidos na Antiguidade. Na lite ­
ratura eclesiástica, os autores fictícios são, antes de tudo,
os representantes de uma autorizada tradição doutrinária,
especialmente orientada para a luta contra a heresia e para
consolidação da fé e do ordenamento das comunidades.
No presente livro , consideramos como deuteropau-
linas, pelas razões aduzidas em cada caso, as seguintes
epístolas (elencadas não em ordem cronológica, e sim em
A nexo I 367

ordem decrescente de consenso por parte dos estudiosos


atuais em torno da sua inautenticidade):

1) As Epístolas Pastorais (1 e 2 Timóteo; Tito): a situação


biográfica não é verificável nem com base no livro
dos Atos dos Apóstolos nem com base nas restantes
(incontestadas) epístolas paulinas; a estrutura orga­
nizacional pós-apostólica das comunidades; a ca­
racterística das heresias; o vocabulário e os indícios
teológicos. Época da relação: os prim eiros decênios
do século II.
2) Epístola aos Efésios: o nome da localidade não possui
uma indicação textual certa. Não existe nenhuma
relação com uma comunidade determinada, embora
Paulo tenha trabalhado longamente em Éfeso; tra­
ta-se antes de um tratado teológico do que de uma
epístola; o estilo não é paulino; diferenças teológicas
em relação a Paulo (especialmente no concernente à
Igreja entendida como corpo cósmico, cuja "cabeça"
é o Cristo): concepção de mundo influenciada pela
gnose; o modo de pensar dependente da Epístola
aos Colossenses, mesmo se desenvolvidos, a seguir,
de um modo autônomo. Época de redação: em tor­
no do ano 100 d.C.
3) Epístola aos Colossenses: muitas afinidades teológicas
e estilísticas aproximam esta da Epístola aos Efésios,
ao mesmo tempo em que a distanciam das epístolas
autênticas de Paulo (diferentes concepções da cris-
tologia, da igreja, do batismo, do m inistério apostó­
lico, da escatologia). Embora o autor utilize material
conceituai autenticamente paulino e conheça a situa­
ção do apóstolo prisioneiro, encontram-se, contudo,
nesta epístola vários traços de uma "escola paulina"
que reelabora e ultrapassa o trabalho teológico de
368 Paulo , V ida e O bra

Paulo. Maiores informações em E. L ohse, Die Briefe


an die Kolosser und an Philemon, 14a ed., Meyer K., IX,
2,1968, com ampla bibliografia.
4) Segunda Epístola aos Tessalonicenses: foi redigida, se­
guindo estritamente o modelo da Primeira Epístola
aos Tessalonicenses, até mesmo em locuções de me­
nor importância. A situação epistolar (fictícia) é a
mesma. Por isso, se a epístola fosse autêntica, deve­
ria ter sido escrita imediatamente após a Primeira
Epístola aos Tessalonicenses. Em tal caso, seria bas­
tante estranho da parte de Paulo a utilização literá­
ria da própria epístola precedente e, sobretudo, seria
estranho o fato de dar uma resposta m uito diferente
ao tema do fim do mundo e da parusia de Cristo,
com base num elaborado ensinamento apocalíptico
(enumeração dos acontecimentos que devem ante­
ceder o eschaton e que retardam o fim , cf. 2Ts 2.1-12).
Ademais, o autor polemiza contra "pretensas" car­
tas de Paulo (2Ts 2.2) que anunciariam a imediata
proxim idade do dia do Senhor (alusão à Primeira
Epístola aos Tessalonicenses?); finalmente, a assina­
tura de próprio punho, de Paulo, é invocada como
sinal de "autenticidade" desta epístola (2Ts 3.17).
A N E XO I I

PROBLEMAS DE C R ÍT IC A LIT E R Á R IA
N AS EPÍSTOLAS AOS C O R ÍN TIO S ,
AOS FILIPENSES E AOS R O M A N O S

A valorização das Epístolas aos Coríntios, aos Filipen-


ses e aos Romanos que foi dada em nossa exposição se fun­
damenta nas seguintes considerações de crítica literária:

1. A correspondência de Paulo com os coríntios com


preende em todo caso mais de duas cartas (IC or 5.9; 2Cor
2.4; 7.8). Alguns pesquisadores, utilizando argumentos
dignos de consideração, mas, a meu juízo, não suficiente­
mente convincentes, sustentaram a tese segundo a qual a
carta mencionada em IC or 5.9 (A) não teria sido simples­
mente perdida, mas importantes fragmentos da mesma
teriam sido posteriormente inseridos na Primeira Epístola
aos Coríntios (B). No presente liv ro se pressupõe, ao con­
trário, a integridade da Primeira Epístola aos Coríntios.
A questão pode ser deixada tranquilamente de lado, na me­
dida em que "A " e "B " devem ter sido escritas a brevíssima
distância no tempo e, por isso, uma eventual subdivisão do
material entre uma e outra não levaria a nenhuma desco­
berta histórica importante.
No caso da Segunda Epístola aos Coríntios, pode-se
adm itir com segurança incomparavelmente maior que ela
370 Paulo, V ida e O bra

não fo i escrita como uma única epístola, de uma só vez,


mas que diversos fragmentos, condicionados por situações
externas e internas e distantes no tempo, foram justapostos
uns aos outros nesta epístola e, de acréscimo, numa ordem
que não corresponde à sucessão dos fatos:

a) A discrepância mais evidente se observa na relação


entre os capítulos 10 a 13 e as partes constantes em
1.1-2.13 e 7.5-16. Estas últim as partes foram escritas,
considerando retrospectivamente a movimentada
história que narramos e os entrementes superados
conflitos com a comunidade. Totalmente diferente
é, ao invés, a situação dos capítulos 10 a 13. A luta
de Paulo com os Coríntios em defesa da legitim ida­
de do seu apostolado atinge aqui o seu ápice (im ­
placável desmascaramento dos "superapóstolos";
duríssimas palavras contra a comunidade que se
deixou seduzir por estes; autodefesa de Paulo em
termos amargos e irônicos). Entre duas partes da
"epístola" existe não somente uma diferença de
tonalidade e de atmosfera, mas uma diversidade
de situações tanto do autor quanto da comunida­
de. Se os capítulos 10-13 estivessem no seu devido
lugar, resultaria então anulado o efeito dos capítu­
los 1,2 e 7. Por isso, há 100 anos, m uitos estudiosos
sustentam, a meu juízo corretamente, que os capítu­
los finais contêm as partes mais importantes daque­
la "carta dolorosa" (D), mencionada em 2Cor 2.4;
7.8 (a "hipótese dos quatro capítulos").
b) Uma outra ruptura m uito visível pode ser identi­
ficada, como fo i muitas vezes observado, entre os
versículos 2.13 e 2.14. Após ter narrado a sua par­
tida de Trôade para a Macedônia, onde Paulo es­
pera com impaciência o retorno de Tito de Corinto,
A nexo II 371

o versículo 2.13 se interrom pe bruscamente, sendo


retomado somente no versículo 7.5 o fio do discur­
so. Estes dois versículos se adaptam um ao outro
"como duas partes de um anel rom pido" 0. W eiss).
Entre os citados versículos (2.14-7.4), está inserida,
sem transição, a prim eira grande apologia do m i­
nistério apostólico de Paulo (C), sem qualquer re­
ferência ao que precede (1.1-2.13) ou ao que segue
(7.5-16). É m uito pouco provável que aquele excerto
se encontre no seu lugar originário. Mesmo sendo
afim a "D " pelo conteúdo, o trecho "C " espelha
uma fase precedente, não ainda plenamente desen­
volvida do conflito entre o apóstolo e adversários,
respectivamente, a comunidade. "C " deve ter sido
escrita, por conseguinte, quando Paulo, recebe a
informação de uma nova agitação contra ele, ain­
da contava com o discernimento e a fidelidade da
comunidade (compare-se 6.1 Is e 7.4 com 11.16-21
e 12.1 Is etc.), ou seja, antes da visita interm ediária e
da "carta dolorosa".
c) Também os dois capítulos relativos à coleta, 8 e 9, não
foram escritos numa mesma ocasião. Ambos tratam
da coleta para Jerusalém, mas cada um é complexo em
si, sem relação recíproca, e reflete uma situação d i­
ferente. No capítulo 8, Paulo envia, ainda uma vez,
Tito, juntamente com outros, a Corinto para prosse­
guir na coleta já iniciada e recomendá-lo à comunida­
de. Pressupõe-se ali uma plena reconciliação entre o
apóstolo e a comunidade. O capítulo 8 (E) deve, por­
tanto, ser considerado como uma breve e autônoma
carta de recomendação para Tito, ou como um anexo
à "carta de reconciliação" que ele levou: 1.1-2.13; 7.5­
16; (F). O capítulo 9, pelo contrário, foi redigido mais
tarde e é a últim a carta referente à coleta. Paulo se en-
372 Paulo, V ida e O bra

tretém ainda na Macedônia, mas solicita que a coleta,


que teve sucesso até aquele instante, seja concluída
antes da sua próxima chegada a Corinto (G).

Não existe a mínima razão para duvidar da autentici­


dade destes diferentes trechos da epístola (com exeção de
alguns poucos versículos parenéticos: 6.14-7.1, que apresen­
tam uma terminologia e um conteúdo nitidamente não pau-
linos e que, por sua vez, interrompem o conjunto. Este trecho,
que apresenta íntima afinidade com os textos de Qumran,
deve ser um acréscimo posterior redigido por outra mão).
Se, portanto, a nossa canônica Segunda Epístola aos
Coríntos é uma coleção de várias cartas (de "C " até "G"), co­
loca-se, então, o problema se identificar o objetivo e a época
da redação. Mas, acima de tudo, a questão de se saber por que
aquele que procedeu à coleção reservou para o final a "carta
dolorosa" ("D "), tomando, com isso, aparentemente ilusória a
impressão criada pela "carta de reconciliação" ("E").
Semelhante critério de composição corresponde a uma
lei formal da literatura cristã prim itiva, da qual existem vários
exemplos, e segundo a qual as advertências contra a heresia,
considerada como um perigo que anunciava o fim dos tem­
pos, são deslocadas para o final dos textos ou dos documen­
tos. Evidentemente, o redator quis que a polêmica de Paulo
com os "falsos apóstolos" e os "ministros de Satanás" fosse
entendida neste sentido, e por isso a colocou na parte final. E,
como texto-base, inseriu ali o fragmento "C ", antigo e parti­
cularmente importante, e, ao conjunto assim obtido, apôs os
textos "F " e "G ", com coerência lógica e cronológica.
A hipótese de que se trata de uma coleção tardia é refor­
çada pela constatação de que a canônica Primeira Epístola
aos Coríntios, e somente ela, é citada abundantemente pelos
Padres apostólicos do fim do prim eiro e início do segundo
séculos (lClem ., Inácio, Policarpo), enquanto faltam citações
A nexo II 373

da Segunda Epístola aos Coríntios. É possível que esta cole-


ção/ constituindo a Segunda Epístola aos Coríntios, tenha sido
confeccionada em seu conjunto ao final do século I, ou seja,
nos anos 90, em Corinto, como escrito doutrinário apostólico
e eclesiástico, e que de lá se tenha difundido, num momento
em que, mais uma vez, como o demostra a Primeira Epístola
de Clemente, a comunidade de Corinto esteve ameaçada de
rebelião (Maiores detalhes em: G. Bornkamm , Die Vorgeschichte
des sogenannten Zweiten Korintherbriefes, Sitzungsberichte der
Heidelberger Akademie der Wissenschaften, 2a ed., Ges.
Aufs. IV, 1965, pp. 162-164; ali, mais bibliografia).

2. Também a Epístola aos Filipenses constitui uma coleçã


de, pelo menos, duas, mais provavelmente, de três cartas.
Cronologicamente, o trecho F14,10-20 deveria constar no iní­
cio. É um bilhete de agradecimento aos filipenses, que envia­
ram Epafrodito, membro da sua comunidade, como ajuda ao
apóstolo encarcerado, fazendo-lhe chegar também por seu in­
termédio um dom ("A "). Não existe aqui nenhum indício que
faça pensar numa prisão já prolongada. Esta é, ao invés, pres­
suposta em 1.1-3.1 ("B"): Epafrodito se confirmou útil, mas
adoeceu gravemente, o que trouxe inquietação aos filipenses.
Mas agora está novamente recuperado, porém deseja voltar
para casa. Por isso, o apóstolo o despede, esperando estar em
breve também ele livre e poder ir a Filipos (2.19-30). Tudo isto
corresponde à situação descrita no capítulo primeiro: a prisão
de Paulo se prolongou, o seu término está próximo, mas o
resultado incerto (libertação ou execução: 1.12-26; 2.17).
A parte fortemente polêmica da epístola: 3.2-4.9 ("C "),
que inicia sem transições e termina com uma saudação de paz,
não faz mais (ou ainda não?) nenhuma alusão àqueles fatos.
Pressupõe a libertação do apóstolo, mas pressupõe também o
fato de que a situação dos destinatários esteja perigosamente
inalterada em relação a "A " e "B " (Pesquisas recentes em G.
374 Paulo, V ida e O bra

Bornkamm , Der Philipperbrief ais Paulinische Briefsammlung,


in: Neotestamentica et Patrística, Freundesgabe fü r O. Cuilinann,
1962, p. 192-202; Ges. Aufs. IV, p. 195-205).

3. M uitos estudiosos, há bastante tempo, sustentam


que, pelas razões aduzidas acima, também a longa lista de
sudações de Rm 16 deva ser considerada como um frag­
mento de carta colocado erroneamente no fin a l da Epístola
aos Romanos, e pertencente, ao invés, originariam ente a
uma carta d irig id a a Éfeso; ele pressupõe o conhecimento,
de uma ameaça de heresia na comunidade, da qual o res­
tante da Epístola aos Romanos não inform a nada (16.17-20,
trecho estreitamente aparentado com F1 3). Se esta hipóte­
se fo r correta, tal fragmento da Carta aos Efésios teria sido
redigido na mesma época da Epístola aos Romanos, isto é,
antes da últim a viagem de Paulo de C orinto a Jerusalém.
Podemos deixar em aberto a questão se a lista de sauda­
ções tenha pertencido a uma carta perdida ou se tenha sido
acrescentada por Paulo a uma cópia da Epístola aos Romanos,
que ele teria dirigido a Éfeso (T. W. M anson). Parece-me que
a nossa hipótese explica Rm 16 mais convincentemente do
que a fantasiosa ideia de uma nova transferência a Roma das
pessoas que se haviam estabelecido em Éfeso ou no Oriente
(p.ex., após a abolição do edito de Cláudio, sob Nero); seria
semelhante a uma pequena migração de povos.
Quando se atenta para as circunstâncias em que o
apóstolo redigiu a Epístola aos Romanos e Rm 16, compre­
ende-se a extensão incomum da lista de saudações, pen­
sando que ele se despede da comunidade de Éfeso, na qual
Paulo trabalhou até há pouco e onde permaneceu mais do
que em qualquer outro lugar. Rm 16.25-27, por sua vez,
como se observa pelo testemunho pouco seguro do texto e
pela term inologia pouco paulina, é reconhecidamente um
trecho de carta não redigido por Paulo.
A N EXO I I I

CRISTOLOGIA E JUSTIFICAÇÃO

Rm 1.3s. e Rm 1.16s. sintetizam o conteúdo da mensa­


gem da salvação de maneira bastante diferente.

1. Para adm itir que Rm 1.3s. seja um credo pré-pauli-


no, existem as seguintes razões: a) o estilo participial que
caracteriza muitas proposições com caráter de profissão de
fé no cristianismo p rim itivo, bem como o paralelismo (sin­
tético) das seções da frase; b) o esquema cristológico: se­
gundo a carne/segundo o Espírito (cf. lT m 3.16; lP d 3.18;
InEf 18.2; InTr 9; InEsm 1.1); c) o m otivo da filiação davídi-
ca de Jesus, que não é encontradiço em nenhum outro tex­
to paulino; d) locuções não paulinas ("colocado como...";
"Filho de Deus com poder"; "Espírito de santidade"; "des­
de a (sua) ressurreição dos mortos"). Cf. R. Bultm ann ,
Theologie des Neuen Testaments, 5a ed., 1965, pp. 52 e 473
[= Teologia do Novo Testamento, Editora Academia Cristã,
São Paulo, 2008, p. 92s., 564]; E. Schweizer, Erniedrigung
und Erhóhung, 1955; iãem, artigos "pneüm a" e "sárx", in:
Theologisches Wõrterbuch zum Neuen Testament, VI, 415; V II,
125s. F. H ah n , Christologische Hoheitsitel, 1963, pp. 251-258;
W. K ramer, Christos Kyrios Gottessohn, 1963, pp. 105-108.
Considerado em si mesmo, este Credo reproduz a
cristologia da comunidade prim itiva (judeu-cristã): Jesus,
376 Paulo, V ida e O bra

legitim ado como Messias pela sua descendência davídi-


ca, fo i elevado à condição de "Filho de Deus", mediante a
ressurreição. Esta fórm ula de fé não só fala do significado
salvífico da sua morte, como também não visa à mensagem
da justificação.

2. Rm l.lô s.é protopaulino e, diferentemente do Credo


puramente cristológico, é form ulado soteriologicamente
("(...) força de Deus para a salvação de todo aquele que
crê", "(,..)justiça de Deus (...) da fé para a fé", "(...) o justo
viverá da fé"; nenhum títu lo cristológico, como Filho de
Deus, kyrios, nem o nome de Cristo). Ambas as fórmulas
são dois sumários completos da fé e não se restringem a
escolher este ou aquele aspecto do evangelho.
Como se relacionam ambas reciprocamente? A expli­
cação segundo a qual Paulo pretendería documentar a
própria ortodoxia à desconhecida comunidade de Roma,
usando a fórm ula tradicional, para passar, em seguida, a
expor a sua mensagem, dificilm ente resiste. Ela não realça o
liame que une indissoluvelm ente a cristologia e a doutrina
da justificação na teologia paulina.
Qual é a ponte que conduz do prim eiro sum ário ao
segundo e qual é o cam inho que reconduz do segundo
ao prim eiro? A resposta não se obtém do m otivo (tra d i­
cional) da descendência davídica de Jesus, que não tem
nenhum lugar no pensamento de Paulo (mas, veja-se a
citação de Isaías em Rm 15.12), mas se deduz do títu lo
de "F ilh o de Deus" que Paulo, na realidade, afastando-se
do Credo (porque aquele nome somente recobre a segun­
da parte da fórm ula), coloca intencionalm ente no início
("que diz respeito a seu F ilh o ": Rm 1.3; cf., também, Rm
1.9), ao passo que, no fin a l (Rm 1.4), a substitui com o
títu lo , para ele mais usual, de kyrios ("(...) Jesus C risto
nosso Senhor").
A nexo III 377

Se bem que o títu lo de "Filho de Deus" apareça rara­


mente nas epístolas de Paulo, a fórm ula possui, para ele,
um significado relevante. Em Paulo, diferentemente da
citada confissão de fé da comunidade, ela indica o Cristo
preexistente, que Deus "enviou" (Rm 8.3; G14.4) no mundo
para a redenção dos seres humanos. Dizendo isso, Paulo
não reflete sobre qual seja a essência divina de Cristo em si,
antes de todos os tempos, e nem subentende sequer, com
aquele título, o nascimento sobrenatural de Jesus (como,
aliás, não o fazem nem o Evangelho de João nem a Epístola
aos Hebreus).
Paulo realça, pelo contrário, o evento da salvação, que
tem o seu início em Deus, e não é imanente no mundo: Deus
"não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos
nós" (Rm 8.32). A firm a que "Deus está conosco" (Rm 8.31).
Este fato possui, para Paulo, um valor universal, não mais
lim itado ao privilégio de Israel na história da salvação.
A p a rtir daí se compreende por que este título e nome
honorífico possua um lugar tão preciso e fixo na doutrina
paulina da justificação (G11.15s,3.4; Rm 8) e inclua em si o
significado salvífico da morte de Cristo e a sua ressurreição
(Rm 5.10; 8.29).
O significado soteriológico de ser Cristo o Filho de
Deus está, outrossim , no fato que o envio do "F ilh o " é o
fundamento da filiação divina dos fiéis. Disso lhes dá tes­
temunho o Espírito. Por meio dele, eles se tornam christoí
e kyrioí, bem como "filh o s " e "herdeiros" (Rm 8.14-17; G1
4.4-7). Rm 1 não explicita estes nexos, mas Rm 1.3s., en­
tendido segundo esta interpretação da concepção p a u li­
na, preanuncia Rm l.ló s ., e esta últim a passagem, por sua
vez, remete ao Credo, que Paulo entendeu num sentido
novo.
B IB L IO G R A F IA

(com complementos feitos


por Gerd Theifien para a 7a edição)

1. Aspectos gerais

História da pesquisa sobre Paulo

A. Schweitzer, Geschichte der Paulinischen Forschung von der


Reformation bis auf die Gegenwart, 1911, 2a ed. 1933.
R. Bultm ann , Neueste Paulusforschung, ThR(NF), nQ 6,
1934, p. 229-246. nQ8,1936, pp. 1-22.
O. Kuss, Die Rolle des Aposteis Paulus in der theol.
Entw icklung der Urkirche, MTTiZ, nQ14,1963, pp. 1-59,
109-187.
B. Rig aux , Paulus und seine Briefe, 1964.
A. Suhl , Paulus und seine Briefe, 1975.
K. H. Schelkle, Paulus, 1981, 2a ed. 1988.
Artigos selecionados (a pa rtir de W. W rede) in: K. H.
R engstorf (Ed.). Das Paulusbild in der neueren deutschen
Forschung, 1964.
H. H übner, Paulusforschung seit 1945, ANRW II.25.4, 1987,
pp. 2.649-2.840.
O. M erk, Paulus-Forschung 1936-1985, ThR, nQ53, 1988,
pp. 1-81.
380 Paulo, V ida e O bra

Questões introdutórias

M. D ibelius, Geschichte der urchristlichen Literatur, 1926,


reimpressão 1975.
W. G. K ümmel, Einleitung in das NT, 17a ed. reformulada
1973, 21a ed. 1983.
W. M arxsen, Einleitung in das NT, 1963,4a ed. 1978.
E. L ohse, Entstehung des NT, 1972, 5a ed. 1991.
P. V ielhauer , Geschichte der urchristlichen Literatur, 1975,
reimpressão 1978, em Português, H istória da Literatura
Cristã P rim itiva, Editora Academia Cristã, São Paulo,
2006
G. L üdemann , Paulus, der Heidenapostel, v. 1 1980, v. 2 1983.
G. Strecker, Literaturgeschichte des NT, 1992.

Além disso, os artigos sobre cada um dos escritos, nas


seguintes coletâneas:

Die Religion in Geschichte und Gegenwart (RGG), 3a ed.


1957ss.
Theologische Realenzyklopàdie (TRE), 1977ss.
Aufstieg und Niedergang der rõmischen W elt (ANRW),
1972ss., bes. v. II.25.4.

Apresentações gerais mais recentes

Vida e obra de Paulo

M. D ibelius, W. G. K ümmel, Paulus, 1951,4a ed. 1970.


K. Stendahl , Der Jude Paulus und w ir Heiden, 1978 (tradu­
ção de: Paul Among Jews and Gentiles, 1977).
H. M erklein , Studien zu Jesus und Paulus, 1987.
J. C. Beker, Der Sieg Gottes, 1988 (= tradução abreviada de:
Paul the Apostle, 1984, 2a ed. 1987).
Bibliografia 381

J. Becker, Paulus. Der Apostei der Võlker, 1989, Em Por­


tuguês, Apóstolo Paulo, Vida, Obra e Teologia, Editora
Academia Cristã, São Paulo, 2006
W. F ene- berc, Paulus - der W eltbürger, 1992.

Teologia

A. Schweitzer, Die M ystik des Aposteis Paulus, 1930, reim ­


pressão 1981.
H. J. Schoeps, Paulus. Die Theologie des Aposteis im Lichte der
jüdischen Religionsgeschichte, 1959.
R. Bultm ann , Theologie des NT, 1953, 9a ed. 1984, p. 187-353,
em Português: Teologia do Novo Testamento, Editora
Academia Cristã, São Paulo, 2008
H. C onzelm ann , GrundriJJ der Theologie des NT, 1967, 5a ed.
1992, p. 175-314.
W. G. K ümmel, Die Theologie des NT nach seinen Hauptzeugen,
1969, 3a ed. 1976, pp. 121-227.
E. L ohse, Grundrifl der neutestamentlichen Theologie, 1974,
4a ed. 1989, p. 74-111.
E. K àsemann , Paulinische Perspektiven, 1969, 3a ed. 1992 (cf.
I d ., An die Rõmer (Handbuch zum NT 8a), 1973, 4a ed.
1980.

Judaísmo, helenismo, cristianismo primitivo

E. Schürer, Geschichte des jüdischen Volkes im Zeitalter


Jesu C hristi, I-III, 4a ed. 1901ss; reformulação publicada
como: E. Schürer, The H istory of the Jewish People in
the Age of Jesus Christ, 1973,1979.
W. Bousset, H. G ressmann, Die Religion des Judentums im
spãthellenistischen Zeitalter, 3a ed. 1926 (4a ed. 1966,
reimpressão fotomecânica, com prefácio e bibliografia
mais recente por E. L ohse).
382 Paulo , V ida e O bra

J. W eiss, Das Urchristentum , 1917.


R. Bultm ann , Das Urchristentum im Rahmen der antiken
Religionen, 1949, 3a ed. 1963.
H. C onzelm ann , Die Geschichte des Urchristentums, 1969,
6a ed. 1989.
E. L ohse, U m w elt des NT, 1971, 8a ed. 1989.
J. M aier , Zwischen den Testamenten. Geschichte und Reli-
gion in der Zeit des Zweiten Tempels, 1990.

II. Sobre os capítulos do liv ro

Os títulos apresentados a seguir com as letras GB são traba­


lhos do próprio autor para uma fundamentação maior
do que foi exposto neste livro . Constam dos seguintes
textos: Das Ende des Gesetzes. Paulusstudien, 1952 (Ges.
Aufs. 1,5a ed., 1966); Studien zu Antike und Urchristentum
(Ges. Aufs. II, 1959, 3a ed., 1970); Geschichte und Glaube.
Zweiter Teil (Ges. Aufs. IV, 1971).

Introdução: Paulo nas suas epístolas e nos Atos dos Apóstolos

As descrições romanceadas e tardias da Vita Pauli e do


seu m artírio nos Atos de Paulo (originários dos fins do
século II) não precisaram ser consideradas no presente
livro. Os textos estão in: E. H ennecke, W. Schneemelcher,
Neutestamentliche Apokryphen, 3a ed., 1964, v. 2, pp. 221­
270; 5a ed. reform ulada 1989, pp. 193-243.
Fundamental para todas as questões referentes aos Atos:
M . D ibelius, Aufsatze zur Apostelgeschichte, 1951, 5a ed. 1968.

A imagem de Paulo nos Atos dos Apóstolos

P. V ielhauer , Zum "Paulinism us" der Apostelgeschichte,


in: Aufsatze zum NT, 1965, pp. 9-27 (publicado inicial­
mente in: EvTh, nQ10,1950/51, pp. 1-15).
Bibliografia 383

U. W ilckens, Die Missionsreãen der Apostelgeschichte, 1961,


3a ed. Am pliada 1974.
H. v. C ampenhausen , Die Entstehung der christlichen Bibel,
1968, p. 47-62.
C. Burchard, Der dreizehnte Zeuge, 1970.

Comentários

E. H aenchen , 1956, 7a ed. 1977.


H. C onzelm ann , 1963, 2a ed. 1972 (cf. a resenha de P.
V ielhauer , in: GGA, ns 221,1969, p p . 1-19).
J. Roloff, Die Apostelgeschichte, 1981, 2a ed. 1988.
G. L üdemann , Dasfrühe Christentum nach den Traditionen der
Apostelgeschichte. Ein Kommentar, 1987.

P rim eira parte:


V ID A E OBRA

I. Origem e contexto. Paulo antes da sua conversão

J. Juster, Les juifs dans 1'Empire Romain, I-III, 1914.


D. G eorgi, Die Gegner des Paulus im 2. Korintherbrief. Studien
zur religiõsen Propaganda in der Spatantike, 1964, pp. 83­
187 (reformulado como: The Opponents of Paul in Second
Corinthians, 1986).
M. Sim on , A. Benoit, Le Judaisme et le Christianisme Antique,
1968, esp. pp. 69-74.
J. N eus-ner (Ed.), Religions in Antiquity, 1968 (esp. E. R.
G oodenough, Paul and the Hellenization of Christianity,
pp. 23-68).
M. H engel, U. H eckel (ed.), Paulus und das antike Judentum,
1991 (esp.: M. H engel, Der vorchristliche Paulus, pp. 177­
294).
K. -W. N iebuhr, Heidenapostel aus Israel, 1992.
384 Paulo , V ida e O bra

2. O perseguidor da comunidade. Conversão e vocação

D. L ührm ann , Das Offenbarungsverstãndnis bei Paulus


und in den paulinischen Gemeinden, 1965, p. 67-81.
C. D ietzfelbinger, Die Berufung des Paulus ais Ursprung
seiner Theologie, 1985,2a ed. 1989.

3. Primeira atividade missionária

R. Riesner, Die Frühzeit des Paulus, Tübingen, 1991.

4. A Convenção dos apóstolos em Jerusalém

D. G eorgi, Die Geschichte der Kollekte des Paulus fü r Jerusalem,


1965, esp. p. 13-33.
Na minha opinião, a relação entre Paulo e Jerusalém foi
grosseiramente descaracterizada em E. Stauffer, Petrus
und Jakobus in Jerusalem, FS O. Karrer, 1959, p. 361-372,
e também, ainda que de outra maneira, em J. M unck ,
Paulus und die Heilsgeschichte, 1954.
A. W eiser, Das „AposteLkonzil" (Apg 15,1-35), BZ, nQ28,
1984, p. 145-167.

5. A primeira incursão em Chipre e na Ásia Menor. O conflito


em Antioquia

J. D. G. D unn , W hat was the Issue between Paul and „Those


of the Circum cision"?, in: M. H engel, U. H eckel, Paulus
und das antike Judentum, 1991, p. 295-318.

6. O horizonte universal da missão paulina

A citação na p. 73 é de: A. v. H arnack , Mission und


Ausbreitung des Christentums, I, 4a ed. 1924, p. 79s.
Bibliografia 385

W. A. M eeks, Urchristentum und Stadtkultur. Die soziale


Welt der paulinischen Gemeinden, 1992 (= The First Urban
Christians, 1983) [em port. Os primeiros cristãos urbanos].

7. As primeiras comunidades na Grécia (Filipos, Tessalônica,


Atenas)

W. E lliger, Paulus in Griechenland: Philippi, Thessalonike,


Athen, Korinth, 1987, 2a ed. 1990.

8. Corinto

W. Schmithals , Die Gnosis in Korinth, 1956,2a ed. reform ula­


da 1965, 3a ed. reformulada e complementada 1969.
D. G eorgi (v . acima sob 1.).
G. Sellin , Hauptprobleme des Ersten Korintherbriefs, ANRW
II.25.4,1987, p. 2.940-3.044.

9. Éfeso

W. Stegemann , Zwischen Synagoge und O brigkeit, 1991,


pp. 197-211.
P. L ampe, Acta 19 im Spiegel der ephesischen Inschriften,
BZ(NF), nQ36,1992, p. 59-76.

10. A Carta aos Romanos como testamento de Paulo

GB, Der Rõmerbrief ais Testament des Paulus, Ges. Aufs.


IV, p. 120-139 (encontram-se aqui observações críticas
sobre G. K lein , Der Abfassungszweck des Rõmerbriefs,
in: I d ., Rekonstruktion und Interpretation, Ges. Aufs. zum
NT, 1969, p. 129-144).
M. K ettunen, Der Abfassungszweck des Rõmerbriefes, 1979.
A. J. M. W edderburn, Reasonsfor Romans, 1988.
386 Paulo, V ida e O bra

Segunda parte:
MENSAGEM E TEO LO G IA

I. Paulo e a mensagem de Cristo


da comunidade p rim itiv a

R. Bultmann , Theologie (v. acima sob I., p. 34-66, esp. pp. 45-56).
F. H ahn , Christologische Hoheitstitel, 1963,3a ed. 1966, passim.
W. K ramer, Christos, Kyrios, Gottessohn, 1963.
K. W engst, Christologische Formeln und Lieder des
Urchristentums, 1972.
M. H engel, Der Sohn Gottes, 1975, 2a ed. 1977.

II. O ser humano e o m undo na


sua situação de perdição

1. A lei

GB, Wandlungen im alt - und neutestamentlichen Gesetzesverst-


ãndnis, Ges. Aufs. IV, p. 73-119, esp. pp. 103ss.
I d ., Die Offenbarung des Zornes Gottes. Rom 1-3, Ges. Aufs.
I, pp. 9-33 (reformulação do artigo de mesmo nome em
ZNW , ne 34,1935).
I d ., Gesetz und Natur. Rom 2,14-16, Ges. Aufs. II, pp. 93-118.
E. P. Sanders, Paulus und das palãstinische Judentum, 1985
(tradução de: Paul and Palestinian Judaism, 1977).
H. H übner, Das Gesetz bei Paulus, 1978, 3a ed. 1982.
H. Ràisãnen , Paul and the Law, 1983,2a ed. revista e comple­
mentada 1987.
O. H ofius, Paulusstudien, 1989.
P. v. der O sten-Sacken , Die Heiligkeit der Thora. Studien zum
Gesetz bei Paulus, 1989.
Bibliografia 387

Sobre Rm 5.12-21:
GB, Paulinische Anakoluthe, Ges. Aufs. I, pp. 76-92, especial­
mente pp. 80ss.
E. Brandenburger, Adam uná Christus, 1962.
E. Jüngel, Das Gesetz zwischen Adam und Christus, ZThK,
n2 60,1963, pp. 42-74.

Sobre Rm 7.7-25:
W. G. K ümmel, Rómer 7 und die Bekehrung des Paulus, 1929
(reimpressão in: Rõmer 7 und das Bild des Menschen im
Neuen Testament, 1974).
R. Bultm ann , Rõmer 7 und die Anthropologie des Paulus,
Exegetica, 1967, pp. 198-209 (publicado inicialmente in:
Imago Dei. FS G. Krüger, 1932, pp. 53-62).
GB, Sünde, Gesetz und Tod, Ges. Aufs. I, pp. 51-69 (publica­
do inicialmente como: Der Mensch im Leibe des Todes,
WuD, na 2,1950, pp. 26-44).
H. L jchtenberger, Studien zur paulinischen Anthropologie in
Rõmer 7, Tübingen, 1985.

2. O ser humano e o mundo

R. Bultm ann , Theologie, pp. 191-270.


H. C onzelm ann , Grundrifi, pp. 195-206.
U. Schnelle , Neutestamentliche Anthropologie. Jesus - Paulus
- Johannes, 1991.

III. O evento salvífico

I. A justiça de Deus

E. K àsemann , Gottesgerechtigkeit bei Paulus, in: Exegetische


Versuche und Besinnungen II, 1964, pp. 181-193 (publica­
do inicialmente in: ZThK, nQ58,1961, pp. 367-378).
388 Paulo , V ida e O bra

P. Stuhlmacher , Gerechtigkeit Gottes bei Paulus, 1965, 2a ed.


reformulada 1966.
R. Bultm ann , Theologie, p p . 271-287.
H. C onzelm ann , Grunãrifl, pp. 236-243.
G. K lein , Gottesgerechtigkeit ais Thema der neuesten
Paulus-Forschung, Ges. Aufs. (v. acima Primeira parte,
10), pp. 225-236 (publicado inicialmente in: VF, nQ 12,
1967/2, pp. 1-11).
GB, Theologie ais Teufelskunst (Rõm 3,1-9), Ges. Aufs. IV,
pp. 140-148.

2. A graça

E. K asemann , Zum Verstãndnis von Rõm 3,24-26, in:


Exegetische Versuche und Besinnungen 1, 1960, pp. 96-100
(publicado inicialmente in: ZNW, nQ43, 1950/1951, pp.
150-154).
Citação da p. 150 de: G. R adbruch, Rechtsphilosophie, 6a ed.
1963, pp. 343.
U. W ilckens, Was heifít bei Paulus, Aus Werken des Gesetzes
w ird kein Mensch gerecht"?, in: I d ., Rechtfertigung ais
Freiheit. Paulusstudien, 1974, pp. 77-109.

3. A fé '

A. Schlatter, Der Glaube im NT, 1885,6aed. 1982, pp. 323-418.


R. Bultm ann , Theologie, p. 315-331.
A. v. D obbeler, Glaube ais Teilhabe, 1987.
K. H aacker , Art. Glaube II, TRE 13, pp. 289-304.

4. Evento salvífico e história da salvação

E. D inkler , Prãdestination bei Paulus, in: I d ., Signum Crucis,


1967, pp. 241-269 (publicado inicialmente in: FS G. Dehn,
1957, pp. 81-102).
Bibliografia 389

I d ., The Idea of History in Earliest Christianity, in: I d .,


Signum Crucis, 1967, pp. 313-350, esp. pp. 322ss. (publi­
cado inicialmente in: The Idea of History in the Ancient
Near East, 1955, p. 169-214).
U. Luz, Das Geschichtsverstandnis des Paulus, 1968.
N. W alter, Zur Interpretation von Rõmer 9-11, ZThK, nQ81,
1984, p. 172-195.
O. H ofius, Das Evangelium und Israel. Erwãgungen zu
Rõmer 9-11, in: Paulusstudien, 1989, pp. 175-202 (publi­
cado inicialmente in: ZThK, na 83,1986, pp. 297-324).

5. Viver na fé

C. Breytenbach, Versõhnung, 1989.


5. V ollenweider, Freiheit ais neue Schõpfung, 1989.

6. In Christus

M. Bouttier, En Christ, 1962.


H. C onzelm ann , Grundrifl, pp. 232-235.

IV . A presença da salvação

1. A palavra

U. W ilckens, Weisheit und Torheit, 1959.


R. Bultm ann , Theologie, pp. 306-315.
H. C onzelm ann , Grundrifi, pp. 266-268.
O. H ofius, Wort Gottes und Glaube bei Paulus, in: M.
H engel, U. H eckel, Paulus und das antike Judentum,
1991, pp. 379-408.

2. Ministério e sofrimentos do apóstolo

E. G üttgemanns, Der leidende Apostei und sein Herr, 1966.


390 Paulo , V ida e O bra

3. A igreja

a) Ekklesía

W. K l a ib e r , Rechtfertigung und Gemeinde, 1982.


J. H ain z , Koinonia. "Kirche" ais Gemeinschaft bei Paulus, 1982.

b) O Espírito

F. W. H orn, Das Angeld des Geistes, 1992.

c) Espírito e direito

H. v. C ampenhausen , Die Begründung kirchlicher


Entscheidungenbeim Apostei Paulus, in: Aus der Frühzeit
des Christentums, 1963, pp. 30-80.

d) Culto a Deus

F. H ah n , Art. Gottesdienst 111. NT, TRE, 14, pp. 28-39.

e) Batismo e ceia do Senhor

N. G ãu m an n , Taufe und Ethik, 1967.


R. C. T ann ehill , Dying and Rising with Christ, 1967.
GB, Taufe und Neues Leben bei Paulus, Ges. Aufs. I, pp. 34-50.
I d ., Herrenmahl und Kirche bei Paulus, Ges. Aufs. II, pp. 138-176.
H. J. K lauck , Herrenmahl und hellenistischer Kult, 1982,2a ed.
1986.
A. J. M. W edderburn, Baptism and Resurrection, 1987.

f) O corpo de Cristo

FE M erklein , Entstehung und Gehalt des paulinischen Leib-


Christi-Gedankens, in: I d ., Studien zu Jesus und Paulus,
Bibliografia 391

1987, pp. 319-344 (publicado inicialmente in: Im Gesprãch


mit dem dreieinen Gott, FS W ilhelm Breuning, 1985,
pp. 115-140).

V. Futuro e presente (escatologia e ética)

R. Bultm ann , Das Problem der Ethik bei Paulus, in:


Exegetica, p. 36-54 (publicado inicialmente in: ZNW , nQ
23,1924, pp. 123-140).
H. Schlier , Vom Wesen der apostolischen Ermahnung
nach Rõmerbrief 12,1-2, in: Die Zeit der Kirche, 1956,4aed.
1966, pp. 74-89 (publicado inicialmente in: Christus, des
Gesetzes Ende, 1941).
E. K ãsemann , Gottesdienst im Alltag der Welt, in: Exegetische
Versuche und Besinnungen II, 1964, p. 198-204 (publica­
do inicialmente in: Judentum, Urchristentum, Kirche, FS
J. Jeremias, BZNW 26,1960, pp. 165-171).
W. Schrage, Die konkreten Einzelgebote in der paulinischen
Parànese, 1961.
M erk, Handeln aus Glauben, 1968.
. Schrage, Ethik des NT, 1982,2a ed. 1989, pp. 169-248.Em
Português: Ética do Novo Testamento, Editora Sinodal,
São Leopoldo, 2004.
S. Schulz , Neutestamentliche Ethik, 1987, pp. 290-432.

I. O tempo da fé

F. L aub, Eschatologische Verkündigung und Lebensgestaltung


nach Paulus, 1973.
F.-J. O rtkemper, Leben aus dem Glauben, 1980.

2. Viver pela graça

D. Z eller, Charis bei Philon und Paulus, 1990


392 Paulo, V ida e O bra

3. Posição no mundo e distanciamento do mundo

K. N iederwimmer, Askese und Mysterium, 1975.


W. Schrage, Zur Frontstellung der paulinischen Ehebewert-
ung in 1 Kor 7,1-7, in: ZNW, n2 67,1976, pp. 214-234.
N. Baumert, Ehelosigkeit und Ehe im Herrn, 1984, 2a ed. 1986.

4. Sede submissos à autoridade!

A. Strobel, Zum Verstándnis von Rõm 13, ZNW, nQ 47,


1956, p. 67-93.
I d ., Furcht, wem Furcht gebührt, ZNW, n2 55,1964, pp. 58-62.
H. v. C ampenhausen , Zur Auslegung von Rõm 13, in: Aus
der Frühzeit (v. acima sob IV, 3), pp. 81-101.
E. K àsemann , Grundsãtzliches zur Interpretation von Rõmer
13, in: Exegetische Versuche und Besinnungen U, 1964, p.
204-222 (publicado inicialmente in: Unter der Herrschaft
Christi, BevTh, nQ32, 1962, pp. 37-55).
J. F riedrich, W. Põhlm ann , P. Stuhlmacher , Zur historis-
chen Situation und Intention von Rõm 13,1-7, in: ZThK,
n2 73, 1976, pp. 131-166.

5. O amor

GB, Der kõstlichere Weg. 1. Kor. 13, Ges. Aufs. II, pp. 93-112
(publicado inicialmente in: JThSB, nQ8,1937, pp. 132-150).
O. W ischmeyer, Der hõchste Weg. Das 13. Kap. des 1. Kor, 1981.
T. Sõding, Das Liebesgebot bei Paulus (publicado na série NTA).

6. A esperança

H. C onzelm ann , Grundrifi, p. 207-214.


E. Brandenburger, Die Auferstehung der Glaubenden ais
historisches und theologisches Problem, WuD, nQ 9,
1967, pp. 16-33.
Bibliografia 393

G. N ebe, "Hoffnung" bei Paulus, 1983.


G. Sellin , Der Streit um die Auferstehung der Toten, 1986.

Conclusão: Paulo e Jesus

R. Bultmann , Jesus und Paulus, in: Exegetica, 1967, pp. 210-229


(publicado inicialmente in: BevTh, nQ2,1936, pp. 68-90).
E. Jüngel Paulus und Jesus, 1962, 6a ed. 1986.
Sobre o lugar de Paulo na igreja antiga:
H. v. C ampenhausen , Die Entstehung der christlichen Bibel,
1968, p. 169-172.
A. L indem ann , Paulus im altesten Christentum, 1979.
G. L üdemann , Paulus, der Heidenapostel, v. 2,1983.
Sobre a apreciação de Paulo e Jesus pelo judaísmo moderno:
W. G. K ümmel, Jesus und Paulus. Zu Joseph Klausners
Darstellung des Urchristentums, in: Heilsgeschehen und
Geschichte, 1965, pp. 169-191 (publicado inicialmente in:
Jud, nc 4, 1948, pp. 1-35).
I d ., Jesus und Paulus, in: Heilsgeschehen und Geschichte, 1965,
pp. 439-456.
M. Bubek, Zwei Glaubensweisen, 1950.
L. Baeck, Paulus, die Pharisãer und das NT, 1961, pp. 7-37.
A. F. Segal, Paul the Convert, 1990.
Citações da p. 236 de: P. de L agarde, Über das Verhãltnis
des deutschen Staates zu Theologie, Kirche und Religion,
in: Deutsche Schriften, 1886, pp. 47-98; e: F. N ietzsche, Der
Antichrist, in: Werke in drei Bãnden, II, 1955, pp. 1.161­
1.235.
índice de Autores

B
Bach, J. S. - 251
Baeck, L. - 353, 355, 393
Barth, K. - 41, 62
Baumert, N. - 392
Baur, F. C. - 309
Becker, J. - 381
Beker J. C. - 380
Benoit, A. - 383
Bloch, E. - 354, 355, 359, 362
Bornkamm, G. - 373, 374
Bousset, W. - 381
Bouttier, M. - 389
Brandenburger, E. - 387, 393
Breytenbach, C. - 389
Buber, M. - 15, 213, 353, 355, 393
Bultmann, R. - 375, 379, 381, 382,386,387, 388, 389, 391, 393
Burchard, C. - 383

c
Calvino - 41, 82
Campenhausen, H. von - 383, 390, 392, 393
Chorin, S. ben - 353
Conzelmann, H. - 256, 381, 382, 383, 387, 388, 389, 393
Cullmann, O. - 374
396 Paulo, V ida e O bra

D
Dibelius, M. - 24, 26, 30, 380, 382
Dietzfelbinger, C. - 384
Dinkler, E. - 388
Dobbeler, A. von - 388
Dunn, J. D. G. - 384

E
Elliger, W. - 385

F
Fene-berg, W. - 381
Friedrich, J. - 392

G
Gálio, L. J. -17
Gáumann, N. - 390
Georgi, D. - 17, 383, 384, 385
Goodenough, E. R. - 383
Gressmann, H. - 381
Güttgemanns, E. - 389

H
Haacker, K. - 388
Haenchen, E. - 383
Hahn, F. - 375, 386, 390
Hainz, J. - 390
Harnack, A. von - 116, 384
Heckel, U. - 383, 384, 389
Hengel, M. - 383, 384, 386, 389
Hennecke, E. - 382
Hofius, O. - 386, 389
Horn, F. W. - 390
Hübner, H. - 379, 386
Í ndice de A utores 397

J
Josefo, F. - 45,48
Jüngel, E. - 387, 393
Juster, J. - 383

K
Kãsemann, E. - 238, 381,387, 388, 391, 392
Kettunen, M. - 385
Klaiber, W. - 390
Klauck, H. J. - 390
Klein, G. - 385, 388
Kramer, W. - 375,386
Kümmel, W. G. - 380,381,387,393
Kuss, O. - 389

L
Lagarde, P. de - 352,393
Lampe, P. - 385
Laub, F. - 391
Lichtenberger, H. - 387
Lindemann, A. - 393
Lohse, E. - 368, 380, 381, 382
Lüdemann, G. - 380, 383, 393
Lührmann, D. - 384
Lutero, M.- 41, 73, 225, 248, 254, 266, 270, 275, 309
Luz, U. - 389

M
Maier, J. - 382
Manson, T. W. - 374
Marxsen, W. - 380
Meeks, W. A. - 385
Merk, O. - 379,391
Merklein, H. - 380,390
Munck, J. - 384
398 Paulo, V ida e O bra

N
Nebe, G. - 393
Neus-ner, J. - 383
Niebuhr, K.-W. - 383
Niederwimmer, K. - 392
Nietzsche, F. - 352, 393

O
Ortkemper, F.-J. - 391
Osten-Sacken, P. von der - 386

P
Põhlmann, W. - 392

R
Radbruch, G. - 230, 388
Rãisãnen, H. - 385
Ranke - 24
Rengstorf, K. H. - 379
Riesner, R. - 384
Rigaux, B. - 379
Roloff, J. - 383
Rosenberg, A. - 352

S
Sanders, E. P. - 387
Schelkle, K. H. - 379
Schlatter, A. - 388
Schiller -135
Schlier, H. - 391
Schmithals, W. - 385
Schneemelcher, W. - 382
Schnelle, U. - 387
Schoeps, H. J. - 213, 353, 381
Í ndice de A utores 399

Schrage, W. - 391, 392


Schulz, S. - 391
Schürer, E. - 381
Schweitzer, A. - 197, 379, 381
Schweizer, E. - 375
Segai, A. F. - 393
Sellin, G. - 385, 393
Simon, M. - 383
Sõding, T. - 392
Sohm, R. - 282
Stauffer -
Stauffer, E. - 89,91,92,384
Stegemann, W. - 385
Stendahl, K. - 380
Strecker, G. - 380
Strobel, A. - 392
Stuhlmacher, P. - 388,392
Suhl, A. - 389

T
Tannehill, R. C. - 390

U
Vielhauer, P. - 380, 382, 383
Vollenweider, S. - 389

W
Walter, N. - 389
Wedderburn, A. J. M. - 385,390
Weiser, A. - 384
Weiss, J. - 371,382
Wengst, K. - 386
Wesley, J. - 41
W ilamowitz-Moellendorf, U. von - 52
400 Paulo , V ida e O bra

Wilckens, U. - 383, 388, 389


Wischmeyer, O. - 393
Wrede, W. - 197, 379
Zeller, D. - 391
índice dos Textos Bíblicos

A N TIG O TESTAMENTO

Gênesis
12 - 232, 233 Salmos
15 - 232, 234 118-270
15.6 - 233 143.2 - 228
15 - 232 19.5 - 263
17-232, 234
22 - 232, 233 Isaías
42.6 - 47
Deuteronômio 30.12s - 253 49.1 - 63, 262
49.8 - 252
1 Reis 17 - 174 52.5 - 48
52.7 - 263
2 Reis 4 - 174
Jeremias 1.5 - 63, 262
Jó 4.17 -228

Citações Bíblicas e Extrabíblicas (AT)

Judaísmo
4Esd 8,36 - 228
1QS XI,12 - 228
Filo, De Vita Mosis II, 20 - 48
Flávio Josefo, Contra Apião, II, 39 - 48
402 Paulo, V ida e O bra

NO VO TESTAMENTO

Mateus Atos
l.ls -2 3 2 l.ls - 2 2
3.2 - 358 1 .8 - 26,183,185
4.17-358 2.9- 11-46
5.43 - 334 5.29 - 326
10.2 - 143 6-175
16.18s-281 6.1- 6 -5 7
19.19- 334 7.58 - 44, 61
20.Is - 362 8-175
22.39 - 334 8 .1 - 59, 61
23.15-53 8.1,3-44
26.26s - 301 9.1s - 73
9.1.8- 44
Marcos 9.18 - 74
2.5 - 358 9.23s - 75, 78
3.27 - 358 9.27 - 82
12,26 e par - 232 9.30 - 80
12.13-17-331 10.1- 11.18-90
12.30s - 334 11.19- 26-81
14.22s - 301 11.20- 59
14.22s e par. - 300 11.25S-81
11.26-81,82
Luccas 11.27s-99
1.1-4-29 12.12- 104
10.27-334 13 - 365
11.20- 358 13.2 - 93
15-362 13.5 -104
17.20- 361 13.8- 12 - 102
18.9s - 362 13.9 - 47
22.20 - 301 13.13- 104
24.13s - 359 13-14-101
Í ndice dos T extos Bíblicos 403

13.16-41 - 103 18.24S -137


14 - 365 19 - 148,149
14.8-18 - 103 19.1 -137
14.11-103 19.8- 10 - 148,152
14.15- 17-103 20.2s -164
14.22 -103 20.3 - 165
15-83 20.3s- 173
15.2 - 93 20.4 - 166
15.4-101 20.5-15 - 29
15.7s - 90 20.7-12 - 174
15.22s - 90 20.14 - 165
15.23,36,41 - 80 20.17- 38 - 174
15.23-29 - 99 20.22s -183
15.39 - 104 20.31 - 148
16.6-10-110 21.10S-183
16.10- 17-29 21.1- 18-29
16.11- 15-123 21.27-36-178
16.11- 40-123 21.39-43
16.19s- 111 22.1- 21 - 179
16.25-40 - 125 22.3 - 43, 55, 73
16.37-46 22.4s - 61
17-113,131,132 22.12S-74
17.1- 10-126 22.17- 21 - 74
17.5s- 112 22.28 - 46
17.10-112 22.30-23.11 - 179
17.16- 34-130 23.6 - 54
17.22-31 - 130 23.34 - 43
17.30 - 132 24.17- 99,176
17-19-113 24.24s - 180
18.1- 17-134 24.27 -180
18.2 - 135 25.9- 11 - 180
18.3-56 25.25s -180
18.5 -135 26.1- 32-179
18.12- 17 26.2s - 27
404 Paulo, V ida e O bra

26.9s - 73 1.19s-205
26.24s - 180 1.20- 219
26.28 - 180 1.20s-132
27-182 1.21- 205
27.1- 28.16-29 1.24-218
27.1- 44 - 181 1.24.26.28 - 205
28.30-184 1.26-318
28.30s - 183 1.26s-220
28.31 - 23 1.29-31-316
2- 206,219
Romanos 2.6s - 204
1 -3 77 2 .1 3 - 226
1 .1 - 194 2 .1 4 - 206, 220, 318
1.1- 17-262 2.1 5- 218
1 .3 - 220 2.17-20-48
1 .3 - 376 2.21- 24-48
1.3s -198, 377 2.21s-220
1.3s 1.16s-375 2.28s - 242
1-4-118,168 3- 206
1 .4 - 376 3.1 -241,242
1 .5 - 117,231,262 3.1-9 -163
1.5.6.13- 161 3.9 - 206
1 .8 - 236 3.10-20-206
1 .9 - 376 3.10s-220
l.lls - 2 6 5 3.19-215
1.1 3- 112 3.20 - 206,228
1.1 4- 114 3.20.28 - 226
1.1 6- 195,242 3.21 - 203,226
1.16s-198, 376,377 3.21,31-225
1.16S-379 3.21b - 227
1.1 7- 195,203,224,225 3.21s-229
1.18- 205 3.23 - 204
1.18- 21 -202 3.24 - 230,237
1.18-3.20-205 3.25 - 229
Í ndice dos T extos Bíblicos 405

3.26 - 226, 229 5.9-11-339


3.27s - 229 5.10 - 225, 377
3.28 - 219 5.1 Os - 230
3.29 - 230 5.12-208, 220
4-119,168, 233, 235, 240 5.12s -168
4.1 - 220, 240 5.12-21 - 207, 222
4.3 - 233 5.13 - 209
4.4s - 233 5.15s - 208
4.5 - 225, 226,233 5.20 - 209, 212
4.7s - 245 5.21 - 220
4.11-234 6 - 245, 291
4.12 - 234 6.1s-307
4.15 - 209 6.2 - 246, 314
4.16 - 234 6.2s,lls - 314
4.17-234, 241,258 6.2-8 - 298
4.18 - 234 6.3 - 296, 297
4.19-216 6.3s-317
4.19s - 235 6.4 - 298,315
4.23s - 235 6.5s - 339
5 - 207, 212, 214 6.8 - 231
5.1 - 245 6.8s - 307
5.1s - 231, 246 6.9s - 252
5.1-5 - 248 6.11-298
5.1-11-307 6.11s-314
5.2,11-347 6.12s - 247
5.2,15 - 230 6.12-23-217,247
5.3 - 237, 246 6.14-312,316
5.3s. - 347 6.15s - 204
5.5 - 334 6.16-222, 231
5.6 - 225 6.16s-316
5.6s - 220, 234 6.19-236
5.6-8 - 230 6.23 - 220, 221
5.7 - 230 7-209,212,214
5.8s - 334 7.5 - 221
406 Paulo , V ida e O bra

7.7 - 204 8 .1 8 - 339, 347


7.7-25 - 73,168, 209, 212 8.18s-246, 347
7.7s - 201, 204 8.19- 21-215
7.9s - 210 8.19- 23-346
7.10- 204, 210 8.23 - 339
7.12,16-204 8.24 - 307, 337
7.13- 212 8.28 - 246
7.14 - 220 8.29 - 377
7.14,18 - 221 8.30,33 - 226
7.14s-219 8.31 - 377
7.15-211 8.31, esp. 37-39-334
7.17s,20 - 211 8.31-39 - 246
7.19-211 8.32 - 377
7.1s - 247 8.36 - 248
7.22 - 219 8.37 - 271
7.24-212 8.37s - 246
8-168, 251, 377 8.38 - 339
8.1s,12s - 314 8.38s - 249
8.2-4 - 70 8.39 - 249
8.3 - 222, 377 9-243
8.3s - 251 9 .1 - 218
8.4 - 221 9 .2 - 218
8.5S-204, 316 9.3,8 - 220
8.6-251,316 9.4s - 242
8.6s.,12 - 221 9.6 - 243
8.7 - 220, 250, 251 9.7s - 242
8.9s - 250, 251 9-10 -120
8.10- 13-217 9.10-224
8.11- 339 9-11-170,241,242,243, 345
8.1 3- 221 9.1 ls - 243
8.14- 17-377 9.16-243
8.15- 221 9.19s -163
8.1 6- 218 9.22 - 243
8.17-298, 339 9.30-10.4 - 168, 225
Í ndice dos T extos Bíblicos 407

10.1-218 12.3 - 237, 316


10.3 - 225, 236 12.4s - 168, 216, 245
10.4 - 63, 222 12.5 - 250,303, 305
10.4,6 - 224 12.5s - 317
10.6-8 - 253 12.7s - 305
10.8s -119, 243 12.8 - 288
10.12 - 118,253 12.8s - 316
10.13s - 263 12.8-21 - 316
10.14- 231 12.9s - 332, 333
10.14- 21-243 13-118
10.16- 236 13 - 327, 329, 330, 331, 333
10.17- 236, 253 13.1 - 325
10.18 - 263 13.Is - 328
10.19 - 244 13.1- 7 - 325
10.21 - 236 13.3s - 326
11 -171 13.4 - 326
11.1-44 13.4,6 - 326
11.11- 244 13.5 - 218
11.11- 32 - 341 13.5 - 326
11.12- 215 13.6 - 326
11.13- 161 13.8 - 331
11.15- 244 13.8s - 333
11.19s-163 13.9 - 204
11.22 - 258 13.11- 328
11.25-339 13.11- 339
11.27-229 13.11s - 291, 318, 327, 345
11.28s-242 13.12s - 347
11.29-244 13.13-316
11.29s-244 13.14 - 245,314
11.30s-236 14 -121,168
11.32 - 213 14.1- 237
12.1 - 217, 295,313, 327 14.7s - 250
12.1,3 - 291 14.7s - 291, 319
12.2 - 219,220,317, 318 14.8 - 272
408 Paulo, V ida e O bra

14.9 -117,252 15.31 - 236


14.12 - 317, 345 16 - 150,162, 366, 374, 375
14.14 - 237 16.2,4 - 265
14.15 - 294, 318 16.4 -135
14.15S-121 16.5-115
14-15 -120 16.17-20 -160, 374
14.19 - 294 16.24,28-113
15 -121,168 16.25-27-375
15.Is - 314
15.2 - 294 1 Coríntíos
15.4 - 289 1.2-249, 276
15.6-13 -122 1-4 -138, 255
15.7 - 294 1.4-9-137
15.7s - 318 1.4s-290, 307
15.9s - 120 1.12-137,138
15.11-114 1.17-292
15.12-376 1.18-253
15.12s - 345 1.18-3.20-255
15.14-33 -164 1.18S-133, 202, 215, 219
15.15S-161 1.22s-255
15.16-117,119,122 1.23-132, 356
15.17-250 1.25 - 256
15.18 - 236 1.26-220
15.19-114,115,164 1.26-31 -257
15.20-112 1.26S-135, 290
15.21 -120 1.28-257
15.22-112 2.1-4 -133
15.22s - 34 2.1-5-259
15.24-116 2.3s - 34
15.24,28-112,164 2.4 -144
15.25s - 97,164, 366 2.6 -138
15.27 - 98, 221 2.6-16 - 259
15.30-32 -165 2.6s - 202, 215
15.30S-175, 265 2.7s - 260
Í ndice dos T extos Bíblicos 409

2.9 - 260 5 .3 - 216


2.9s - 260 5.3s - 287
2.11-218 5.6s-314
2.12 - 260 5.9 - 136,142, 369
2.16-261 5.10S-316
3.1S-138 6.1s- 140
3.1- 3 - 259 6.1-11-332
3.4s,22 - 137 6.5s.,8 - 333
3.5 -145 6.7 - 333
3.5s - 294 6.9-11-333
3.7 - 266 6.9s-316
3.9 - 266, 284 6.11 -249, 291,297, 315,317
3.10s - 266, 284 6.12 -140
3.1 7- 290 6.12s - 140, 216, 321
3.18s-285 6.13,15s - 217
3.19 - 255 6.15-216, 217
3.21 s - 138, 258 6.15S-216
4 .1 - 219, 264 6.19s - 291
4.5 - 345 7 - 320, 322, 331
4 .4 - 218 7.1 - 320
4 .5 - 218,317 7.1,8-321
4 .6 - 137 7.2,5,9,36s - 322
4.7 - 258 7.2.9 - 321
4 .8 - 141,256 7 .4 - 216
4.8- 13 - 306 7.7 - 321
4.8s - 343 7.8,26s - 321
4.9-13 - 257 7.10- 288
4.9s - 268 7.1Os - 189, 321
4.12-56 7.12s - 321
4.14s - 264 7.14-322
4.15 - 264, 291 7.17-24 - 277, 324
4 .1 7 - 142,315 7.17s - 320, 324
4.21 - 287 7.19-335
5.1s - 140, 289 7.20 - 324
410 Paulo, V ida e O bra

7.21 - 324 10-11 -141


7.22s - 156, 324 10.12 - 302
7.23s - 291 10.15 - 296, 299
7.28 - 322 10.16s-299
7.28,36,39s - 321 10.17-300, 303
7.29 - 306 10.18-220
7.29-31 - 319, 320, 323 10.23 -140
7.31s-215 10.23s-318
7.33s - 322 11.1-294
7.35 - 323 11.2-16-318
7.36s - 321 11.13-318
7.40 - 287, 323 11.14s-318
8.1 -138 11.16-318
8.1S-318 11.17S-317
8.2 - 337 11.20-299, 301
8.7s - 218 11.23-189,299
8-10 -140,141,169, 275, 294 11.23s- 193, 299
8.11S-294 11.25-299, 302
9.1 - 69, 264 11.26-302
9.2,15 - 264 11.27s-302
9.6 -108 11.29-302
9.11 -221 12 -168
9.14 -189, 288 12.2 - 284
9.16 - 275 12.3-285 '
9.19 - 275 12.4s - 305
9.19-23 - 274 12.9s,28s - 305
9.20-22-177 12.12 - 303
9.21 - 294 12.12s - 216, 245, 317
9.27-216 12.13 - 297,303,321
10.1 - 240 12.13,27 - 250
lO .ls-318 12.14s - 303
10.1-4-296 12.15s - 305
10.1-13-302 12.26 - 305
10.11 -289, 306 12.27-217,303
Í ndice dos T extos Bíblicos 411

12.28-288 15.31-250
12.31b - 335 • 15.32 - 153, 222, 328, 366
13 - 142,293, 335, 338 15.35-49 - 341
13.1- 3 - 335 15.50s - 306
13.4-7 - 336 15.51 - 339, 342
13.8-13 - 336 15.51s - 320, 340
13.12s - 201 15.52 - 341
13.13 - 248 15.53 - 339
14 - 220, 285, 286, 294 15.55 - 230, 346
14.3-5,12,17,26 - 294 15.56 - 222
14.4 - 294 15.56s -168
14.24s - 286 15.58 - 250, 347
14.33 - 287 16 - 97
14.34 - 318 16.2 - 293
14.37 - 287 16.3s -165
14.38 - 290 16.5s -142
15 - 218, 306, 343 16.8 -136
15.1- 11 - 343 16.12 -137
15.2 -194 16.12 -137
15.3s -193 16.13 - 237, 347
15.3s - 307 16.15-115
15.6s - 264 16.19 -115,135
15.8 - 39, 69, 263, 343 16.22 - 290
15.10 - 39, 237, 258
15.11- 69 2 Coríntios
15.12- 19 - 343 1 .1 - 115
15.19,32 - 343 1.1- 2.13 - 366
15.20-28 - 344 1.1- 2.14 -147
15.22s.,45s -168 1.7,11 - 265
15.23s - 340 1.8-115
15.24 -117 1.8s - 157,174, 328, 366
15.24-26 -123 1.17s - 362
15.26 - 222 1.22 - 297, 339
15.29 - 297 1.24-266
412 Paulo, V ida e O bra

2.4 - 146, 218,253, 369, 370 5.18s-230, 252, 268


2.5 - 146 5.19-215, 230, 245
2.14-117 5.19s-118
2.14-7.4 - 146 5.20 - 195, 230, 262
2.16-195 5.21 - 249
2.17-145 6.1-314
3.1 - 143 6.2 - 252, 274
3.6s - 229 6.4-10-270
3.7s - 204 6.11s-146
3.14-203 7.3-218
3.18-337 7.4 -146
4.2 - 238 7.5-16 - 147
4.4 - 215, 219, 273 7.5s - 366
4.5 - 266 7.8 - 369, 370
4.6 - 73,252, 258 7.10-221,222
4.7 - 364 7.12 - 146
4.8-12 - 269 8 -166, 366
4.8s - 268 8.5 - 122
4.10-216,248 8.9 - 230
4.1 Os - 339 8-9 - 97
4.11-220 9 - 166, 368
4.16-18 - 273 9.3 - 264
4.18-215, 337 9.3s -147
5.1-5-344 9.13-122
5.1-10-217 lOs-236
5.5 - 339 10.1 -144
5.7 - 337, 344 10.1,10-34
5.8 - 345 10.2 - 221
5.10-317,345 10.3s - 202, 220
5.11-238 10.5-219, 231
5.14 - 334 10.8 - 294
5.16 - 67,189, 268 10.10-216
5.17 - 268, 274, 291,306, 308 10.12s-143
5.17s-246 10-13-146,267
Í ndice dos T extos Bíblicos 413

10.15-237 13.1 - 147


10.55s - 112 13.4 - 295, 306, 339
11-152 13.10-294
ll.l,1 6 s - 273
11.4-273 Gálatas
11.4,223 - 143 1.1-66
11.5,23-143 1-2 - 64
11.6-34,144 1.4-319
11.13-15-273 1.6-230
11.13s-145 1.8-264
11.14s-144 1.10-66, 278
11.15-267 1.11-80
11.18-221 l. lls - 6 6
11.20s-147 1.12-91
11.22-44,143 1.13-59
11.22s - 267 1.13s-63, 209
11.23-267 1.14-55
11.23-33-153 1.15-194
11.23s - 40, 268 1.15-17-63
11.24-61,152 1.15s-381
11.26-328 1.15s-63, 68, 69,70, 262
11.27-56 1.16-24-76
11.29-31-153 1.17-77,78
11.32-78 1.18-76,78
12.1s- 144 1.20-77
12.6,11-273 1.21-80
12.7-220 1.22-60
12.7s - 39 1.22-24-80
12.9 -145, 258 1.23s-71
12.9s - 269, 274 2.1 - 76
12.10-268 2.1-9-67
12.11-143 2.1-10-83
12.19 - 294 2.2 - 91, 92, 93
12.20s - 316 2.4 - 86, 249
414 Paulo , V ida e O bra

2.5 - 87, 92 3.29 - 284


2.6 - 94,100, 264 4-309
2.7-94 4.1s -213
2.9 - 93, 94, 95 4 .4 - 361,381
2 .1 0 - 92, 97,100,166 4.4- 7 - 381
2.11- 21 - 104 4.4 s-7 0 ,168
2.11s-79,100 4.5 - 306
2 .1 2 - 85 4.8s -154
2 .1 3 - 105 4.9 - 337
2 .1 4 - 105 4.10-154
2.14s-105 4 .1 2 - 294
2 .1 6 - 228,231 4 .1 3 - 220
2.20 - 237 4 .1 3 s - lll
2.20a - 250 4 .1 9 - 264
2.20b - 250 4.23-31 - 284
2.21 - 237 4.24 - 229
3-168, 233 5.1 - 237
3 .1 - 254 5.1.13- 247,291,314
3.1s-247 5.3 - 154
3.1- 5-285 5.4 - 230
3.2 - 290 5.5 - 339
3.4 - 381 5.5s - 248, 338
3-4 - 70,168 5.6 - 248, 335
3.6 - 233 5.11 -56, 66, 278, 292
3.6-18-234 5.12-278
3.8 - 226 5.13s-154
3.1 6- 224,232 5.13s.,24 - 221
3.22s - 213 . 5.14-204, 333
3.23s - 70 5.16-247,316
3.24s - 212 5.16,24-221
3.26s - 245 5.19- 23-316
3.27 - 245, 297, 314 5.19s -154, 315
3.27s - 250 5.22s - 248
3.28 - 95,156, 303, 321 5.25 -154, 315
Í ndice dos T extos Bíblicos 415

6.2 - 155, 294, 305 2.2,19-218


6.7s - 290 2.5-313
6.8 - 221 2.6-11-117,123,313
6.12 - 278 2.8 - 253
6.12s - 221 2.12s-313
6.13s - 335 2.15s-314
6.13s,7 - 154 2.16 - 345
6.14-319 2.17 - 272
6.16 - 284 2.19s -156
6.17-216, 257 2.20s - 265
2.25-30 -157
Efésios 3 - 158,168, 374
2.14 - 363 3.3s - 221
2.16-231 3.4s - 209, 267
3.5 - 44, 54
Filipenses 3.5s - 27
1.1-288 3.6 - 55, 59, 206
1.6,10-345 3.7-9 - 62
1.12-18-265 3.8,12 - 62
1.12s- 151,328 3.9 - 224
1.12s- 156 3.9s - 225
1.13-155 3.10-298
1.14-17-151 3.10s - 339
1.18-145,152 3.12 - 237, 307
1.19-237, 265 3.14 - 249
1.20s-157 3.17-294
1.21-272 3.18-292
1.21-25-272 3.21 - 298
1.22,24-220 4.1 - 237
1.23-345 4.4s-306
1.27-218, 237 4.4-9 - 347
1.29-231 4.5-318,320
1.29s - 272, 328 4.8-316
2.1s-313 4.10-20-373
416 Paulo, V ida e O bra

4.11-270 3.1-13-127
4.12 - 270, 274 3.8 - 237
4.13 - 270 3.10-237
4.15-111,115,123,265 4.7-317
4.13s - 127, 339
Colossenses 4.13-18-340
1.20s-231 4.14-231
1.24-271 4.15-189
1.4s-248, 338 4.15s - 320
4.14-24 4.16-341
4.16-37 4.17-342
5.1s - 127, 310, 320, 342
1 Tessalonicenses 5.1-11-347
1.3-248, 338 5.5 - 291
1.6-294 5.8 - 248, 338
1.7-127 5.9-317
1.7s -115 5.10-342
1.8-236 5.11-294
1.9s-127,128,262 5.12-288
2.2 - 124,125, 328 5.21-219
2.3-6 -128 5.27 - 33
2.4 - 278
2.7 - 264 2 Tessalonicenses
2.8-218 2.1-12-368
2.9 - 56,126 2.2 - 368
2.13 -130, 262 3.17-368
2.14-294
2.14s- 112,272,328 1 Timóteo
2.14-16 -127 3.16 -122, 379
2.17-3.8 - 365
2.17ss-34 2 Timóteo
3.1 - 113,130 2.18-343
3.1s-112 4.11-24
Í ndice dos T extos Bíblicos 417

Hebreus 1 Pedro
1-122 1.21s-248
10.22-24 - 248 2.4s - 284
11 - 232 3.18 - 379
11.1-231
11.8-233 2 Pedro
11.17s - 233 3.15s - 351

Tiago Apocalipse
2.14s - 248 13 - 329
2.20s - 233 21.5-308
2.8 - 334

Fontes Extrabíblicas (NT)

lClem 5,4-6 -116


Estrabão XIV,673 - 43
Suetônio, Vita Claudii, 25,4 - 135.

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