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Russell P. Shedd
Alan Pieratt
editores
IMORTALIDADE

Russell P. Shedd
Alan Pieratt
editores
Copyright © 1992 Edições Vida Nova

I a edição: 1992
2a edição: 2000

Todos os direitos reservados por


S ociedade R eligiosa E dições V ida N ova
Caixa Postal 21486, São Paulo-SP
04602-970

Proibida a reprodução por quaisquer


meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos,
fotográficos, gravação, estocagem em banco de
dados, etc.), a não ser em citações breves,
com indicação de fonte.

Printed in Brazil / Impresso no Brasil

ISBN 85-275-0178-3

Revisões • R obinson M alkomes


V aléria F ontana
L ucy Y amakami
Cordenação de produção • E ber C ocareli
Capa • S érgio S iqueira M oura
CONTEÚDO

Prefácio dos e d ito re s ................................................................... 7


In tro d u ção .................................................................................... 9
1. Leon Morris: A Doutrina do Julgamento na B íb lia ..................... 17
2. R. V G. Tasker: A Ira de Deus .....................................................65
3. James I. Packer. Nem Todos os Homens Serão S a lv o s............. 103
4. James I. Packer. A Morte ............................................................115
5. Vemon C. Grounds: O Estado Final dos ímpios ...................... 131
6. Jacques Ellul: Yahweh-Shammah — O Senhor Está Ali . . . .151
7. Donald Guthrie: A Vida Após a M o r te ....................................... 183
8. Alan B. Pieratt: Pensando no C é u ................................................227
9. Oswald J. Smith: Testemunhos no Leito de M o r t e ...................249
PREFÁCIO DOS EDITORES

H á mais de trinta anos Edições Vida Nova lançou o livro intitulado


Imortalidade, de Lorraine Boettner. Apenas mil exemplares foram
impressos em Portugal, e logo a edição se esgotou.
Finalm ente sai do prelo a nova coleção de ensaios sobre a
escatologia pessoal, também intitulada Imortalidade. Há muito tempo
sentíamos falta de um livro que reunisse informações sobre os temas
aqui tratados. Sobre alguns deles, como por exemplo o estado
intermediário, a Bíblia lança pouca luz. Mesmo assim, são as Escrituras
que fornecem o fundamento sobre o qual os autores (na maioria muito
conhecidos e respeitados) construíram sua visão da morte e da vida do
além.
Certamente haverá perguntas que não serão respondidas. A Bíblia,
nossa única fonte de revelação sobre a existência pessoal após a morte,
mantém silêncio em algumas áreas sobre as quais gostaríamos muito de
saber. Mas, diante do imenso desafio das freqüentes reivindicações de
“profetas” e “visionários” que divulgam “revelações” do céu, do inferno
e do estado intermediário, com o mínimo de conteúdo bíblico ou
mesmo nenhum, somos gratos a Deus pelo privilégio de oferecer aos
estimados leitores uma coletânea tão equilibrada e bíblica.
O incontestável valor de conhecer e meditar na esperança do futuro
que todos aguardamos tem sua confirmação nas palavras de Paulo: “Por
isso não desanimamos: pelo contrário, mesmo que o nosso homem
exterior se corrompa, contudo o nosso homem interior se renova de dia
em dia... não atentando nós nas cousas que se vêem ... são temporais, e
as que se não vêem são eternas” (2 Co 4.16,18).
Homens grandemente usados por Deus, em especial Richard
Baxter (autor de O Pastor Aprovado), meditavam com regularidade na
8 • IMORTALIDADE

vida além desta na carne, encontrando grande conforto e ânimo para


continuar em seu labor prodigioso e também escrever seu famoso livro
The Saints’Everlasting Rest (“O Descanso Eterno dos Santos”).
É nosso desejo e petição a Deus que o prezado leitor seja edificado
pela leitura de Imortalidade.

A Deus seja toda a glória!


Russell P. Shedd, Ph. D.
INTRODUÇÃO

Entramos em águas profundas quando estudamos a natureza da


imortalidade e da vida após a morte, pois estamos esquadrinhando além
do final do mundo presente e o início de uma nova ordem. Somos como
os judeus piedosos da época do Antigo Testamento, que estudavam
com cuidado as visões de seus grandes profetas, tentando entender as
promessas a respeito do Messias e de Seu Reino (cf. 1 Pe 1.10). Quando
consideramos o fim dos tempos a partir de nossa própria época na
história, nossa posição aproxima-se muito da deles. Vivemos antes do
cumprimento daqueles grandes eventos preditos para o fim e, portanto,
não entendemos o significado de tudo o que está escrito. Estudamos as
promessas com afinco, mas sabemos que, em algumas partes, nosso
entendimento é obscuro e incerto. Como disse Paulo, vemos o reino
vindouro como que por um espelho escuro e distorcido (1 Co 13.12).
Mas, assim como os homens fiéis de antigamente, nós cremos,
esperamos e estudamos.
Em outro sentido, nossa posição não é igual à dos judeus da época
do Antigo Testamento, porque podemos olhar para trás e ver de que
forma se cumpriram aquelas profecias acerca da vinda de Cristo como
o “servo sofredor” (Is 53.11). Essas profecias cumpridas chegam a
centenas e oferecem um forte incentivo para que se estude com muito
mais cuidado as que ainda se encontram no futuro, pois certamente elas
também se cumprirão de forma literal. Todas as profecias, sejam
aquelas cujo cumprimento está hoje no passado ou as que ainda não se
concretizaram , fazem p a rte de um plano divino que está se
desenvolvendo no tempo. Aqueles eventos que pareciam tão distantes
para os judeus do Antigo T estam ento surgiram no horizonte,
aconteceram no devido tempo e então transformaram-se em passado.
10 • IMORTALIDADE

Aquilo que eles aceitaram como promessa acerca do Messias, nós


conhecemos por história. O que lhes parecia estar no futuro tão distante
agora repousa em nosso passado remoto. O mesmo acontecerá com as
profecias cujo cumprimento ainda permanece em nosso futuro:
surgirão no horizonte, acontecerão no devido tempo e repousarão no
passado. Algum dia, os fiéis estudiosos das Escrituras examinarão como
história as profecias a respeito das últimas coisas, e tudo o que o texto
diz e sugere estará perfeitamente claro, pois eles poderão comparar o
que foi escrito com o fato real.
Portanto, a própria natureza do tempo é essencial para nosso
estudo. Todas as crenças cristãs acerca do futuro e do mundo vindouro
estão fundamentadas na pressuposição de que Deus está conduzindo a
história para cumprir um plano predeterminado dentro da história. Isso
é essencial para se entender a Bíblia. Obviamente, há desacordos
quanto aos detalhes sobre como algumas profecias bíblicas devem ser
entendidas. Nem todos concordam em questões como o momento do
arrebatam ento, a natureza do milênio, a condição do hom em
convertido durante o estado intermediário, ou a maneira como Deus
irá cumprir as promessas feitas a Israel. Mas todos os teólogos
evangélicos concordam em que o tempo está avançando rumo ao clímax
do plano de Deus para os séculos. As passagens proféticas da Bíblia
provam que esse plano está estabelecido na mente de Deus. Dentro dos
eventos da história da salvação, nada é aleatório (cf. Rm 5.6). O próprio
fato de as predições feitas na Bíblia ocorrerem mais tarde, exatamente
como haviam sido profetizadas, demonstra esse ponto com precisão.
Não admira, portanto, que as três características centrais do plano
de Deus para os séculos sejam todas ligadas ao tempo. O plano de Deus
é, antes de tudo, histórico. Isto significa que os eventos que o compõem,
tais como a cruz e a ressurreição de Cristo, não são mitos que ocorrem
apenas no âmbito mágico ou imaginário do eterno. São eventos reais
que acontecem no tempo real. Em segundo lugar, o plano de Deus é
direcional, ou seja, avança no tempo, com os eventos se cumprindo uns
após os outros, na devida ordem. Os eventos anteriores fornecem o
fundamento para os que vêm depois. Por exemplo: Cristo teve de sofrer
antes de poder levar “cativo o cativeiro” e “conceder dons aos homens”
(Ef 4.8). Por fim, o plano é teleológico, isto é, está avançando para um
fim determinado em que se julgará o mundo presente e se criará uma
nova ordem.
INTRODUÇÃO • 11

Estes três aspectos da história da salvação podem ser visualizados


em um quadro negro, traçando-se uma linha simples com uma seta na
extremidade direita. A linha representa o tempo e seu movimento em
direção ao futuro. Os acontecimentos bíblicos que fazem parte desse
plano podem ser colocados em certos pontos da linha, para representar
o momento em que ocorreram dentro da história. Pode-se incluir
q u alq u er q u a n tid a d e de eventos, de acordo com o grau de
detalhamento a que se deseja chegar. No mínimo, devem-se incluir a
criação, o chamado de Abraão, o êxodo, a cruz, a volta futura de Cristo
e o clímax final, no dia do julgamento e da criação de um novo céu e
uma nova terra. A cruz no centro da linha é vital para se compreender
o sentido do todo. Os que viveram antes de Cristo olhavam para a cruz,
à frente, buscando a resposta para sua necessidade de salvação. Os que
vivem depois da cruz voltam-se para trás, e nela buscam a resposta que
foi graciosamente proporcionada por Deus. Ela é o padrão pelo qual
se julga toda a história e quem dá significado ao processo todo.
Deve-se ressaltar aqui que o tempo é o veículo do plano de Deus
para as eras e que existe uma forma correta e uma forma incorreta de
encará-lo. A Bíblia não contém nenhuma indicação de que algum
evento ali registrado não seja plenamente temporal e histórico. Apesar
disso, ultimamente tem sido comum pensar o contrário em relação a
muitos deles, como se não tivessem ocorrido ou não fossem ocorrer
dentro do tempo real; como se fossem lendas ou mitos; ou um misto de
memória e imaginação. Em parte, esse erro ocorre por causa da
tendência de conceber o tempo como algo que se contrapõe à
eternidade. Desde as primeiras décadas da Igreja, há os que têm uma
inclinação para entender o tempo e a eternidade como se fossem
opostos entre si, como se a eternidade fosse uma condição em que não
existe tempo. Mas essa é uma concepção grega e não cristã do mundo.
Os gregos pensavam que o cosmos possuía duas dimensões: uma
superior e outra inferior. Imaginavam que a dimensão maior era
atemporal, eterna e perfeita. A dimensão menor seria o mundo das
mudanças, em que a natureza se movia em círculos intermináveis de
recorrências. Por essa razão, o bom e o perfeito só poderíam ser
encontrados no âmbito da eternidade, pois aquilo que é perfeito não
pode mudar com o tempo, devendo permanecer imutável. Isto se
aplicava também a Deus. Em sua perfeição estática, Ele não podia
modificar nem adentrar o mundo mutante do tempo real. Portanto, o
12 • IMORTALIDADE

alvo e a sina do homem seria escapar do tempo e encontrar a realização


na eternidade.
Essa maneira de pensar tem sido muito influente na teologia cristã
desde a igreja primitiva. Foi a razão principal de os teólogos da Idade
M édia não terem nenhum interesse pelo aspecto histórico do
cristianismo. Eles se concentraram nos ensinos cristãos, em detrimento
dos eventos, pois entendiam que só os ensinos eram eternos e, portanto,
essenciais. Para verificar isso, basta considerar o fato de que não se
escreveu nem um texto sobre a vida de Jesus durante todo o período de
mil anos da era medieval. Hoje, o protestantismo liberal adota um
ponto de vista semelhante. O aspecto temporal do cristianismo é
minimizado porque tudo o que é histórico é considerado relativo. Todo
e qualquer valor do cristianismo deve ser buscado em seus ensinos
formais, pois seus eventos históricos não podem ter importância
universal.
Basta aqui levantar apenas dois pontos à guisa de resposta. Antes
de mais nada, na Bíblia, os acontecimentos do passado sempre são
retratados como eventos concretos, assim como as profecias acerca do
futuro sempre são descritas como histórias reais que ainda vão ocorrer.
A Bíblia nunca insinua outra coisa, senão que um dia Cristo virá em Sua
glória, de um modo tão real e literal quanto foram Seus sofrimentos no
passado. Portanto, qualquer tentativa de interpretar as profecias
bíblicas de forma atemporal, como se representassem algum tipo de
cumprimento ou bênção espiritual é alheia à Bíblia. Em segundo lugar,
a idéia de eternidade não deve ser entendida em contraste com o tempo.
A idéia bíblica de eternidade não é de ausência de tempo, mas de
extensão ilimitada de tempo, uma sucessão infinita de eras (cf Ef 2.7 e
1Tm 6.19). A era presente é limitada em sua duração, tendo um começo
e um fim. A era futura só é limitada em um extremo, tendo um começo,
mas não tendo, pelo que sabemos, um fim; ao menos, não há limites
estabelecidos para ela. Por conseguinte, quando a Bíblia fala do
“presente século” e da “era vindoura”, isso não quer dizer que o tempo
dará lugar a um período atemporal em que nada acontece e tudo
permanece como está. A Bíblia desconhece um Deus atemporal ou um
céu sem acontecimentos. A era vindoura está sendo preparada agora,
chegará em algum determinado ponto do futuro e será repleta de
atividades significativas.
Portanto, apresentamos os artigos deste livro enfatizando que a
INTRODUÇÃO • 13

Bíblia contém sua própria filosofia de história, em que o aspecto-chave


é o cumprimento dos eventos predeterminados dentro do tempo. Esse
é o pensamento que une os acontecimentos que serão tratados aqui,
incluindo a própria morte, a ressurreição dos mortos, o estado
intermediário, o dia do julgamento, a ira de Deus, a chegada da nova
cidade de Jerusalém e a natureza da vida com Deus. Tudo ocorre como
parte de um plano que existe desde o início. Esses grandes eventos e
mudanças virão a nós do futuro e ocorrerão com toda certeza, da mesma
forma como o Messias prometido veio. Como o último de nossos artigos
salienta, também não são eventos distantes, que não têm relação direta
com nossa vida. Todos nós avistamos as “últimas coisas” quando
contemplamos a morte, seja ela a nossa ou a de algum ente querido,
pois a morte de uma pessoa a conduz diretamente à presença de Deus
e à existência do mundo vindouro. Portanto, essas coisas que chamamos
de “últimas” são dignas “hoje” de um estudo cuidadoso.
1 A lan B. Pieratt

INTRODUÇÃO

Em uma coletânea de artigos sobre as últimas coisas, como a que


se encontra neste livro, os assuntos poderíam muito bem ser ordenados
de acordo com a cronologia. Nesse caso, primeiro consideraríamos a
morte em si, então o estado intermediário, depois o dia do julgamento,
depois o céu e o inferno e, por fim, o novo céu e a nova terra.
Escolhemos uma seqüência um tanto diferente, começando com dois
artigos que, primeiro, discutem o dia do juízo e, depois, a ira de Deus.
Esses artigos básicos são, então, seguidos por outros, que descrevem as
conseqüências do julgamento (condenação ou salvação) e, finalmente,
alguns artigos acerca de outros aspectos da vida após a morte, tais como
a ressurreição, o estado intermediário e o céu propriamente dito.
De certa forma, este primeiro artigo escrito por Morris é a nau
capitânia ou a pedra angular desta coleção, pois a doutrina do dia do
juízo é o ponto de mudança das eras. Ele está situado tanto no final da
era presente como no início da vindoura. Além disso, quase todas as
doutrinas estão ligadas de alguma forma à promessa de um julgamento
final, quer tratemos da eleição, do livre arbítrio, do pecado original, do
alcance da expiação etc. Todos os conceitos teológicos encontram seu
ponto final lógico nessa noção singular de um julgamento absoluto. O
que emerge do outro lado é uma ordem diferente, em que a tensão entre
o “é ” e o “deve ser” desapareceu para sempre.
A perspectiva de Morris acerca do dia do julgamento é exegética e
não teológica. Ele examina com zelo, tanto no Antigo como no Novo
Testamento, cada uma das palavras que fazem parte do grupo vocabular
em torno da idéia do julgamento. Ele só tira suas conclusões depois de
analisar inúmeros textos cuidadosamente. Duas delas merecem ênfase
aqui na introdução. A primeira é que a promessa de um dia final de
16 • IMORTALIDADE

julgamento une os testamentos. No Antigo Testamento, a idéia de que


o ato de julgar faz parte da natureza de Deus é repetida várias e várias
vezes como um ponto fundamental. No Novo Testamento, é um ensino
dado por certo. Não é algo que precise ser defendido, mas uma doutrina
que serve como base para outras defesas. É tida como ponto pacífico
para todos os cristãos, algo que não se discute (Hb 6.2). Em segundo
lugar, Morris mostra que a idéia de que todos os nossos atos serão
examinados, a ponto de se verificar se demos ou negamos um copo de
água (Mt 10.42), é uma espada de dois gumes que pode amedrontar ou
motivar. Ela amedronta porque é totalmente minuciosa, e o padrão de
conduta é muito alto. Mas ela também motiva, porque imprime
dignidade até nos atos aparentemente insignificantes realizados no
serviço de Cristo.
Publicado originalmente como The Biblical Doctrine o f Judgment por The Tyndale
Press, na Inglaterra, em 1960. Tomamos a liberdade de eliminar as notas de rodapé
para possibilitar a reprodução do texto completo. Traduzido por Gérson Dudus e Lucy
Yamakami.
1 Leon Morris

A DOUTRINA DO
JULGAMENTO NA BÍBLIA

I. O JULGAMENTO NO ANTIGO TESTAMENTO: SHAPHAT

No Antigo Testamento, a idéia básica de julgamento pode ser


resumida de uma forma bem simples nas palavras de Deuteronômio
1.17: "... o juízo é de Deus”. Isto não nega que haja, no Antigo
Testamento, muitas referências ao julgamento do homem tanto quanto
aos de Deus. Na verdade, é provável que, se pudéssemos reconstituir a
história da palavra até sua mais remota origem, poderiamos descobrir
que, em seu primeiro uso, referia-se ao julgamento que os homens
exercem. Então, quando sua própria prática lhes deu o conceito de
julgamento, eles começaram a aplicá-lo aos poderosos atos de Deus e
a pensar nEle como alguém ativo no julgamento. Mesmo assim,
precisamos ter em mente que, pelo que sabemos, o julgamento (ou
“justiça”, “juízo”, dependendo da tradução adotada) nunca foi um
processo puramente secular. Desde os tempos mais antigos, era uma
atividade religiosa. Moisés podia dizer: “... o povo me vem a mim para
consultar a Deus... para que eu julgue entre um e outro” (Êx 18.15,16).
O julgamento era uma atividade de um “homem de Deus”.
Seja qual for a ordem cronológica correta, não pode haver dúvida
de que, em qualquer caso, em termos teológicos, o elemento divino
ocupa o lugar de maior importância na religião evoluída do Antigo
Testamento. O julgamento, como os hebreus vieram a entendê-lo, é,
antes de mais nada, uma atividade de Deus. Javé é “um Deus de justiça”
(Is 30.18) ou ainda “o Deus do juízo” (Ml 2.17). O julgamento é a Sua
própria atividade, porque ninguém “lhe instruiu na vereda do juízo” (Is
18 • IMORTALIDADE

40.14). Ele “faz” o julgamento e é confiável quando assim age (Gn


18.25). Ele ama o juízo (Is 61.8). O julgamento Lhe é tão natural quanto
os movimentos para os pássaros (Jr 8.7). “Todos os seus caminhos são
juízo” (Dt 32.4). O julgamento (juntamente com a justiça) é “a base do
seu trono” (SI 97.2). Paralelamente, por nove vezes Javé é denominado
“Juiz”. Abraão chama-O de “Juiz de toda a terra” e apela a Ele,
confiando nessa característica: “Não fará justiça o Juiz de toda a terra?”
(Gn 18.25). De maneira semelhante, Jefté pôde dizer: “... o Senhor, que
é juiz, julgue hoje entre os filhos de Israel e os filhos de Amom” (Jz
11.27). O salmista ora corajosamente: “Exalta-te, ó juiz da terra; dá o
pago aos soberbos” (SI 94.2).
Passagens como essas não deixam dúvida de que o Antigo
Testamento associa intimamente o julgamento com o Senhor. É Sua
função. Ele se envolve no julgamento, e os homens sabem que Ele o
faz. Podem apelar a Ele em sua condição de juiz. Sua atividade judicial
não está limitada a Israel. Ele é “o Juiz de toda a terra”. Mas, como
poderiamos esperar, são suas atividades em relação ao Seu próprio
povo que recebem mais atenção.

1 • A idéia fundamental: algumas sugestões

Tudo isso não nos diz exatamente o que os hebreus do Antigo


Testamento entendiam por julgar. Considerando que estava associado
ao Senhor e ao serviço que os homens deveríam oferecer-Lhe, qual era
o entendimento exato que os hebreus tinham do termo? Não se pode
dizer que os estudiosos alcançaram um consenso nesse ponto.
Podem-se discernir três linhas principais de abordagem, aquelas que
vêem como idéia principal o governo, o costume e o discernimento.
Examinaremos uma por vez.

A. Julgamento e governo

Não há dúvida de que “julgar” não está muito longe de “governar”.


Isto impressionou tanto certos estudiosos que eles concluíram que
“governar” é a idéia básica de shaphat e que a idéia de julgar é
secundária. H. W. Hertzberg e V. Herntrich podem ser citados como
aqueles que sustentam esse ponto de vista. C. H. Dodd parece aceitar
isso como algo axiomático. O fundamento para tal é encontrado nas
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 19

passagens bíblicas que ligam intimamente as duas idéias. Desse modo,


quando o povo queria que Samuel lhe desse um rei, disse:
constitui-nos... um rei sobre nóspara que ele nosjulgue, como o têm todas
as nações” (1 Sm 8.5 ARC). Novamente, no início de seu reinado,
Salomão orou: “Dá, pois, ao teu servo coração compreensivo para
julgar a teu povo” (1 Rs 3.9; çf. 2 Cr 1.11: “para poderes julgar a meu
povo, sobre o qual te constituí rei”).
Mas é possível que a prova mais importante desse ponto de vista
seja encontrada no livro de Juizes. A função das pessoas cujo título dá
nome ao livro não era basicamente legal. Apesar de não haver razão
para duvidar de que aqueles homens, em algumas ocasiões, exerciam
funções que reconheceriamos como a de um juiz, a função principal era
outra. Acima de tudo, eles eram libertadores, homens levantados por
Deus para atender necessidades específicas e libertar a nação em certas
épocas de opressão. Como resultado de seus sucessos militares, foram
aceitos como líderes e governantes do povo. Quando se diz que tal
homem “julgou” a Israel, isto significa, para todos os efeitos, que ele
governou a nação.
Entretanto, mesmo aqui, o termo “juiz” não é exatamente sinônimo
de “governante”. Daniel-Rops define-o como “aquele que protege por
meio da justiça”. Isso quer dizer que a palavra carrega uma conotação
muito forte de “direito”. Não denota poder sem fundamento nem
restrições, mas poder voltado para fins corretos. A idéia de governo se
faz presente; não há controvérsias quanto a isso. Mas, mesmo quando
a idéia de governo está presente e é dominante, a noção de justiça
também aparece como uma ênfase secundária, mas fundamental. O
“juiz” é mais do que um mero governante; é alguém cuja atividade é
devidamente descrita em termos de lei e justiça.
Não podemos menosprezar o aspecto religioso. Os juizes não
escolhiam a si mesmos, nem era o povo que os escolhia. O Senhor os
levantava (Jz 2.16, 18). A iniciativa divina reforça nossa convicção de
que há uma relação básica com a justiça, porque Suas ações são
consideradas justas. Desse modo, quando Débora cantou Seus triunfos,
não estava pensando simplesmente em Seu poder e Sua força, mas nos
“atos de justiça do Senhor” (Jz 5.11). Javé age de acordo com o direito
fundamental. E, daqueles que Ele escolhe, espera-se que façam o
mesmo.
Não há dúvida de que o grupo de palavras referentes ao julgamento
20 • IMORTALIDADE

era aplicado tanto a atividades legais como governamentais. Um


argumento contra a primazia desta última é o fato de não ser tão fácil
ver como isso podería ter dado origem à idéia de julgamento, como no
caso do processo inverso. Estabelecida a prática de dispensar um
julgamento legal, normalmente os líderes da comunidade exerciam essa
função. Sob a monarquia, o rei era o juiz par excellence. Ele constituía
a última corte de apelação. Apenas ele podia ser chamado “o juiz de
Israel”. Outros podiam julgar numa esfera mais limitada. Além do mais,
o rei podia impor suas decisões judiciais, o que lhe permitia julgar de
maneira especial. Desse modo, não é tão difícil ver como a idéia de
“governar” podería ter origem na de “julgar”. Mas não é tão fácil ver
como uma palavra que significa “governar” podería vir a significar
“julgar”. Um rei faz muitas coisas, e não há uma razão realmente boa
pela qual governar possa ser equiparada a uma delas, a saber, julgar.
Também contra a idéia de precedência do conceito de “governar”
está o uso disseminado das palavras derivadas dessa raiz no sentido de
“discernimento”. Elas são encontradas em toda parte no Antigo
Testamento, enquanto a idéia de governo se acha principalmente no
livro de Juizes e em relação a Salomão (há pouquíssimas referências ao
governo em outros lugares). Essa distribuição seria improvável se o
governo fosse prioritário e o julgamento nada mais do que um conceito
derivado.

B. Julgamento e costume

A segunda interpretação da raiz vê a idéia básica no costume. A lei


adapta-se ao precedente, e este ao costume estabelecido. Sem dúvida,
o substantivo mishpat é usado dessa maneira com freqüência. Assim,
lemos no Salmo 119.132: “... tem piedade de mim, segundo costumas
fazer (lit. “de acordo com mishpat”) aos que amam o teu nome”. Em
Jerico, os israelitas “da mesma sorte” (mishpat) rodearam a cidade sete
vezes” (Js 6.15). Há um mishpat “para todo propósito” (Ec 8.6). Esse
mishpat não se limita a Israel. Os sacerdotes de Baal em sua competição
com Elias “se retalhavam com facas e com lancetas, segundo o seu
mishpat” (1 Rs 18.28). 1 Samuel 8.11-17 dá uma explanação detalhada
do mishpat contra o qual Samuel adverte o povo. É instrutivo tanto em
si mesmo quanto como sinal de que Israel não devia seguir todos os
mishpat. Seu mishpat era o que fluía da relação entre Javé e a nação.
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 21

Todos os outros mishpat deveríam ser evitados.


N. Snaith é um dos que vêem, nessa associação com os costumes, a
idéia básica de todo esse grupo vocabular: “A idéia principal, de acordo
com o uso, é de julgamento pelo costume, pois a função de um juiz é
decidir de acordo com os costumes ou precedentes”. Ele diferencia o
mishpat torah, dizendo que o primeiro é uma decisão em que há um
precedente a seguir, enquanto o outro é revelado “por sacrifícios ou
oferta sagrada se for um sacerdote, por sonho, êxtase ou visão, se for
um profeta cultuai. Mas Snaith não desenvolve esta idéia até sua
conclusão lógica. Ele teria de dizer que “nenhum juiz, fosse sacerdote
ou profeta, podería proferir qualquer julgamento que não fosse
considerado a palavra de D eus au tên tica”. Essa concessão é
importantíssima. Para os homens do Antigo Testamento, a ligação com
Deus era primordial. O costume é importante e, muitas vezes, não há
uma boa razão para subverter a maneira estabelecida de fazer as coisas.
Mas a idéia básica é a do relacionamento com Deus e não a de
conformidade com os costumes humanos. É isto que invalida J.
Pedersen em sua afirmação de que a vontade de Javé “era determinada
pelo conjunto total dos costumes israelitas, mishpat, e estava expressa
nas leis”. Por certo, isso é colocar o carro na frente dos bois. Não é a
nação e seus métodos que têm primazia no Antigo Testamento; é Deus.
O primeiro dever da nação é obedecer a Seus mandamentos. O mishpat
deve ser exercido dentro dessa estrutura.
Aqueles que tanto enfatizam o costume ignoram a dinâmica
revolucionária que caracteriza a religião do Antigo Testamento e
encontra expressão no conceito de “julgamento”. Na Bíblia, não há
nenhum indício da aceitação passiva do status quo tão característico das
religiões politeístas. G. Ernest Wright, por exemplo, apontou que, na
literatura de sabedoria egípcia, faz-se um contraste entre o “homem
passional” e o “homem silente”. “O último é o bem-sucedido, pois está
sempre calmo e nunca perturba a ordem estabelecida.” O outro
“destrói aquela integração harmoniosa na ordem existente, que é a
única efetiva”. Uma situação semelhante predominava em outros
lugares. No mundo antigo em geral, havia uma preocupação de manter
a ordem estabelecida, e tal preocupação era sustentada pela religião
oficial.
Em Israel, entretanto, o contraste está entre o justo e o ímpio.
Quando o justo “julga” ele não preserva necessariamente a ordem
24 • IMORTALIDADE

de Judá, a beleza te extraviou e o desejo perverteu o teu coração” (v.


56). A seu depoimento, Daniel responde: “Mentiste perfeitamente, tu
também, contra a tua própria cabeça. Pois o anjo de Deus está
esperando, com a espada na mão, para te cortar pelo meio, a fim de
acabar convosco” (v. 59). O resultado do interrogatório de Daniel é que
a falsa testemunha é revelada e Susana inocentada.
Essa história vivida mostra-nos um juiz nomeando a si mesmo,
ainda que com a anuência da assembléia. Aparentemente, ele não tinha
qualificações especiais. Ele não esperou passivamente que as provas
lhe fossem trazidas, mas saiu atrás delas. Seu principal interesse não era
perseguir algum conceito abstrato de justiça, mas livrar o fraco de uma
condenação injusta. O fato de isso não ser uma atividade ética, mas
religiosa, é indicado pela conclusão, quando a assembléia “prorrompeu
num clamor em alta voz, bendizendo ao Deus que salva os que nele
esperam” (v. 60).
Isto é julgamento, como entendiam os hebreus. Há uma atividade
básica de discernimento. Daniel discerniu entre os anciãos e Susana,
entre as palavras dos anciãos e a verdadeira questão. Esse ato de
discernimento é fundamental ao significado de shaphat.
Mas julgar não significava apenas uma atividade mental de pesar
evidências, de separar o falso do verdadeiro. O ato de julgar era
essencialmente dinâmico. Um israelita pôde dizer a Moisés: “Quem te
pôs por príncipe e juiz sobre nós? pensas matar-me como mataste o
egípcio?” (Êx 2.14). Ao assassinar o egípcio, Moisés tomou uma atitude
que dificilmente consideraríamos digna de um juiz. Mas essa atitude
indicava uma paixão pelo direito, uma preocupação existencial com a
execução da justiça. O juiz não apenas descobria o que era correto, mas
agia para tal. Se não surgissem todas as provas, ele saía até encontrar o
que faltava, para que fosse feita justiça, a verdadeira justiça. Desse
modo, o mesmo verbo pode significar “punir” e “libertar”. Quando Jeú
exterminou a casa de Acabe, diz-se que ele executou “juízo contra a
casa de Acabe” (2 Cr 22.8); por outro lado, o fiel pode orar: “Viste,
Senhor, a injustiça que me fizeram; julga a minha causa” (Lm 3.59).
“Julgar” e “julgamento”, nestes dois sentidos, são freqüentes no Antigo
Testamento.
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 25

2 • Julgamento e ação

É preciso enfatizar que, venha de Deus ou dos homens, o


julgamento é fundamentalmente dinâmico. Em sua base é um processo
pelo qual alguém discerne entre o certo e o errado e age em função
disso. Há uma disputa entre dois, uma determinação do que é direito e,
então, a ação. O caráter dinâmico da palavra precisa ser realçado. Não
é uma atividade intelectual executada com imparcialidade acadêmica.
Não é exercício de pesar evidências. É uma atividade de discernimento
e vindicação. Aquele que faz mishpat procura o ímpio para puni-lo e o
reto para defender sua causa.
O julgamento não se limita aos assuntos legais. Na verdade, até
podemos dizer que o uso realmente significativo do julgamento começa
quando ele é separado de todas as funções legais e governamentais,
sendo aplicado à conduta em geral. Ele é uma qualidade de ação. Várias
vezes, os homens são conclamados a “praticar a justiça e o juízo”, a
“julgar com justiça” e assim por diante. Estas não são exortações para
que se abrace a profissão jurídica. São meios de inculcar a verdade de
que, no cotidiano de suas vidas comuns, os homens precisam exercer a
virtude do julgamento, do discernimento. Isso não significa que
simplesmente devem discernir entre o certo e o errado. Devem fazê-lo,
mas “praticar a justiça” significa que também devem seguir ativamente
o direito. Mishpat denota um “bem-agir” dinâmico. Não é uma ação
correta qualquer, mas uma ação correta específica que tenha resultado
de um discernimento. Sempre existe uma idéia básica de distinguir
entre o certo e o errado. Mas há também a idéia adicional de ação
decisiva como resultado de discernimento.
Isso deve ser visto especialmente na ajuda aos fracos, pobres e
indefesos. O julgamento tem um aspecto salvífico. “Aprendei a fazer o
bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do
órfão, pleiteai a causa das viúvas” (Is 1.17). Passagens como essa levam
Kõhler a dizer:"... em hebraico, ‘julgar’ e ‘ajudar’ são idéias paralelas”.
Zacarias apresenta assim as obrigações do homem: “Eis as coisas que
deveis fazer: Falai verdade cada um com o seu próximo, executai juízo
nas vossas portas segundo a verdade, em favor da paz; nenhum de vós
pense mal no seu coração contra o seu próximo, nem ame o juramento
falso” (Zc 8.16, 17). O famoso resumo de Miquéias também inclui o
julgamento: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que o
26 • IMORTALIDADE

Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça (lit. “exerça o


julgamento”) e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu
Deus?” (Mq 6.8).
Essas passagens demonstram que praticar o julgamento é uma das
exigências básicas de Javé em relação a Seu povo. E Ele a coloca sobre
Seu povo, porque Ele é essencialmente justo, justo no íntimo do Seu
ser. A justiça não é um assunto indiferente, mas de interesse passional.
Por despertar um interesse tão intenso em Javé, o julgamento é
essencial para a vida religiosa daqueles que chamam a si mesmos por
Seu nome. O homem que julga tem a devida consideração pela lei, não
pela lei em geral, não por algum conceito abstrato de retidão ética, mas
pela lei de Javé. O julgamento representa o desempenho de sua
obrigação para com Deus. Isso ocorre necessariamente dentro da
comunidade da aliança, e desse modo está intimamente ligado com toda
a idéia de aliança. De fato, G. Pidoux sustenta que, na Bíblia, “julgar é
inseparável do conceito de aliança. Quando duas pessoas entram em
aliança, têm direitos e deveres mútuos. Elas são justas na medida em
que observam as obrigações impostas pela aliança. Julgar é, acima de
tudo, agir de forma a manter a aliança”. O indivíduo israelita estava
ligado a Deus e aos outros israelitas pelos laços da aliança. O
julgamento deve ser exercido nesse contexto. Não é por acaso que, com
freqüência, ele aparece associado a palavras como chesed e tsedeq, que
são fundamentais para todo o conceito de aliança. “Manter a ‘lei’ e a
‘justiça’ é, portanto, cuidar para que as verdadeiras relações não sejam
perturbadas (mishpat) e que a integridade de cada hom em da
comunidade seja pleriamente mantida (sedaqah). Apenas desse modo
se faz plena justiça à demanda do chesed e continua existindo a relação
de aliança entre as pessoas.”
Deus não deixa os homens para que estes produzam o mishpat por
suas próprias forças. Ele lhes dá a ajuda que necessitam, para que possa
ser visto como o Autor do mishpat entre os homens. Desse modo, no
caso específico de Salomão, o povo viu “que havia nele a sabedoria de
Deus, para fazer justiça” (1 Rs 3.28). Josafá pôde dizer a seus juizes: “...
não julgais da parte do homem, e, sim, da parte do Senhor, e no julgar­
des ele está convosco” (2 Cr 19.6). O princípio geral é este: “Muitos
buscam o favor do que governa, mas para o homem a justiça vem do
Senhor” (Pv 29.26). É bastante claro que o mishpat não é só resultado
do esforço humano. Quando aparece entre os homens, é dom de Deus.
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 27

As leis devem ser vistas sob esse ângulo. Com freqüência, traz o sentido
de “lei”, sendo, então, geralmente traduzido como “ordenança”. Estas
não são decretos arbitrários de um governante cheio de caprichos, nem
a expressão concreta de alguma lei abstrata. São a providência
misericordiosa de um Deus que ama Seu povo, para lhe mostrar o
caminho certo e lhe dar a orientação que necessita quando procura
viver em Seu serviço. São o auxílio proporcionado por um Deus que
ama o mishpat e o faz para que Seu povo, por sua vez, possa também
praticá-lo.

3 • O julgamento do Senhor

Os escritores do Antigo Testamento insistem em que o Senhor está


julgando ativamente. Repetidas vezes, usam as várias palavras que
significam julgam ento para descrever Suas atividades passadas,
presentes e futuras. Hoje, poucos usariam espontaneamente uma
fraseologia legal para descrever suas relações com Deus. Há uma
aversão ao “legalismo” e suspeita-se das categorias legais como meio
de explicar o relacionamento de Deus com Seu povo. Os hebreus não
tinham tais inibições. Exultavam com figuras legais e eram
especialmente admiradores de ilustrações de ações judiciais em que
Deus e Seu povo estivessem em lados opostos (e. g. Is 41.1; Jr 12.1; Mq
ó.lss.). Eles faziam distinção entre o julgamento de Deus e o dos
homens, pelo fato de o prim eiro ser com pletam ente justo. O
julgamento humano era por demais falível. Todos acolhiam a idéia de
que os ricos e bem-relacionados não eram julgados como os pobres e
os de classe baixa. Havia, na verdade, uma lei para os ricos e outra para
os pobres; às vezes, isso era inscrito nos estatutos. Mas o julgamento de
Javé era realizado com perfeita justiça. “Ele mesmo julga o mundo com
justiça; administra os povos com retidão” (SI 9.8). Isso traz uma ameaça
contra os ímpios, pois certamente serão punidos. “Segundo o seu
caminho lhes farei, e com os seus próprios juízos os julgarei; e saberão
que eu sou o Senhor” (Ez 7.27).
Mas, mesmo que o julgamento de Deus seja justo, não dando aos
ímpios nenhum motivo para se queixar, não se deve pensar nele como
uma pesagem cega de méritos e deméritos. O mishpat pode ter sua
origem em uma matriz legal, mas convive com qualidades como
bondade, fidelidade, retidão, misericórdia, caridade, verdade e glória
28 • IMORTALIDADE

(veja SI 36.5, 6; 89.14; Ez 39.21; Os 2.19 etc.). Várias vezes, ele é


associado a qualidades desse tipo. É uma mistura de confiabilidade e
clemência, de lei e amor. É um amor pelos homens e um amor pelo
direito. Não um ou outro, mas ambos. Para nós, o legalismo adquiriu
uma noção de aplicação rígida e desumana da letra da lei, em
detrimento dos valores humanos. Não era assim que os hebreus
entendiam o julgamento. Para eles, a lei era uma muralha contra a
opressão. Os pobres e fracos contavam com ela para salvá-los do
domínio dos ricos e poderosos. “Ó Deus, salva-me, pelo teu nome, e
faze-me justiça pelo teu poder”, diz o salmista” (SI 94.1), e pedidos
como esse eram comuns. Podemos fazer distinção entre bondade e
processos legais, mas precisamos ver claramente que os hebreus não
faziam isso.
O julgamento de Javé deve ser encarado como resultado de Sua
misericórdia e ira. Isso, para nós, parece contraditório. Mas, no Antigo
Testamento era o resultado de um propósito claro e coerente. Deus não
muda de atitude quando mostra misericórdia numa ocasião e ira em
outra, não mais que um pai dos dias de hoje, que recompensa o filho
pelo bom comportamento e o pune pelas travessuras. Os propósitos de
Deus são coerentemente retos.
Com freqüência isso significa libertação. O Senhor “faz justiça ao
órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e vestes” (Dt 10.18).
“Guia os humildes na justiça e ensina aos mansos o seu caminho” (SI
25.9). Como resultado disso, há constantes apelos para que o Senhor
julgue, quando alguém está sendo oprimido, e a fórmula: “o Senhor
julgue entre mim e ti” era um modo de protestar inocência. Por outro
lado, indica-se um estado de completa desesperança quando não se
pode buscar nenhum julgam ento. D esse m odo, Jó exclam a,
desesperado: “Eis que eu clamo: Violência, mas não sou ouvido; grito:
Socorro! porém não há justiça” (Jó 19.7).
Mas o julgamento do Senhor significa perdição para os malfeitores.
Isaías pode imaginar Jerusalém sendo purgada “com o Espírito de
justiça e com o Espírito purificador” (Is 4.4). Jeremias fala de Javé
proferindo Seus julgamentos (Jr 1.16; 4.12) — uma palavra do Senhor
é suficiente para trazer aos ímpios a punição que merecem. E Ele
profere uma palavra surpreendente em Deuteronômio 32.41: “Se eu
afiar a minha espada reluzente, e a minha mão exercitar o juízo, tomarei
vingança contra meus adversários, e retribuirei aos que me odeiam”. O
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 29

substantivo plural shephatim, “julgamento”, ocorre dezesseis vezes e


sempre indica uma punição infligida pelo Senhor (e.g., Êx 6.6; Nm 33.4).
O uso em Ezequiel é especialmente notável. A palavra ocorre dez vezes
em sua profecia, nove vezes nos discursos de Javé, quando Ele anuncia
os castigos que irá infligir. A maior parte refere-se a Israel (5.10), mas
estão também incluídos Moabe (25.11), Sidom (28.22), Egito (30.14) e
os que “tratam com desprezo” a Jacó (28.26). A escolha dessa palavra
mostra que os castigos não são arbitrários. São a devida penalidade
contra as más obras.
Às vezes, os homens são agentes de Javé no julgamento. Desse
modo, em Ezequiel 23.24 Ele diz: “Virão contra ti do Norte com carros
e carretas e com multidão de povos; pôr-se-ão contra ti em redor com
paveses e escudos, e capacetes; e porei diante deles o juízo, e
julgar-te-âo segundo os seus direitos”. Isso é importante para se
entender muito do que o Antigo Testamento ensina sobre julgamento.
Os babilônios e os outros nem imaginavam que estavam cumprindo o
propósito de Deus. Pensavam estar fazendo sua própria vontade,
executando seus próprios julgamentos. Mas o profeta teve uma visão
mais profunda. Ele percebeu que aqueles soldados pagãos eram meros
instrumentos de Javé. Eram ferramentas que Ele usava para levar Seu
julgamento aos homens.
Seja ou não através da ação de homens, o julgamento de Javé é um
processo que peneira os homens. O julgamento separa os retos dos
ímpios e, desse modo, faz aparecer o “remanescente”. Isso nos aponta
um elemento criativo no julgamento. Não devemos pensar nele como
algo apenas negativo e destrutivo. O julgamento, por certo, tem
aspectos negativos e punitivos. Mas o que emerge como resultado do
julgamento é, por assim dizer, uma vantagem clara. É a comunidade
amada, e não conseguimos imaginar como ela podería surgir se não
fosse pelo julgamento.
Mas o ponto central com que Javé e o julgamento estão ocupados
é o futuro. Na grande maioria dos textos em que o verbo shaphat ocorre,
existe uma referência direta ou indireta ao julgamento do Senhor. Na
maior parte dos casos, diz respeito ao futuro. Embora alguns deles
façam referência a julgamentos temporais como o exílio, não se pode
escapar da conclusão de que, para os homens do Antigo Testamento, o
fator mais significativo naquilo era o julgamento escatológico do
Senhor. A princípio, pode parecer que os ímpios triunfam. A injustiça
30 • IMORTALIDADE

e a desigualdade podem abundar. Os maus podem crescer como o


cedro. Mas isso só acontece porque Javé, no exercício de Sua vontade
soberana, o permite. No final dos tempos, Ele estenderá Seu forte braço
e julgará. Por vezes, enfatiza-se a idéia de que Ele julgará Seu povo (Ez
7.8) ou mesmo uma parte deste (Ez 34.20). Todavia, é mais comum a
idéia de um julgamento geral das nações. “Porque vem, vem julgar a
terra; julgará o mundo com justiça, e os povos consoante sua fidelidade”
(SI 96.13). A freqüência de exemplos desse uso futuro do termo,
comparada à escassez de exemplos em que se diz que Javé de fato julgou
os homens, mostra que os hebreus reconheciam o julgamento do
Senhor, não tanto no que Ele fez, mas no que fará. É uma expressão de
fé e não de visão.
É também expressão de uma profunda convicção de que “o mundo
está fora dos eixos”. Os politeístas do mundo antigo eram, em geral,
pessoas to le ra n te s e acom odadas. Em algum lugar, e n tre a
multiplicidade de deuses, haviam encontrado um mestre complacente
e estavam satisfeitos em vaguear com ele. Não os hebreus; para eles,
cada obra do homem está sob o julgamento de Deus. Não se pode
aceitar nenhuma situação no mundo que não se conforme à Sua
vontade. Isso significa que o mundo deve ser purgado de cada coisa
maligna, e os hebreus esperavam por isso apenas no final dos tempos,
porque só então o julgamento de Deus seria visto em sua totalidade.
Como afirma G. Ernest Wright: “Há uma profunda desarmonia entre
a vontade de Deus e a ordem social vigente. Deus, em Seu trabalho
redentor, continua julgando os homens pelos seus pecados, e a
afirmação alarmante é que o homem e sua sociedade só podem ser
redimidos através do fogo purificador do julgamento divino”.
Essa insatisfação incessante em relação ao mundo como ele se
encontra no presente é muitas vezes desprezada, mas ela tem uma
importância fundamental para o pensamento do Antigo Testamento. O
hebreu piedoso sempre tinha diante de si a tarefa do “julgamento”. Ele
devia corrigir os erros, libertar os oprimidos e derrubar o opressor. Mas,
realisticamente, percebia que homem nenhum podería completar.essa
tarefa de forma perfeita. Assim, pela fé esperava e ansiava pelo tempo
em que Deus interviria e cumpriría com perfeição o fim desejado.
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 31

II. O JULGAMENTO NO ANTIGO TESTAMENTO:


OUTRAS PALAVRAS ALÉM D E SHAPHAT

Das palavras do Antigo Testamento usadas para expressar a idéia


de julgam ento, shaphat e seus cognatos são de longe as mais
importantes e freqüentes. Por isso, nós as examinamos com certa
minúcia. Mas várias outras palavras reforçam shaphat, e precisamos
estudar as que são traduzidas por “julgar” ou alguma expressão
semelhante.

1 • Dyn

Brown, Driver e Briggs atribuem a esse verbo o significado de


“julgar” e o consideram sinônimo de shaphat. Quando passam a
classificar os usos da palavra, alistam em primeiro lugar “atuar como
juiz, ministrar julgamento”. Sem dúvida, existe um cunho legal nesse
grupo vocabular, exatamente como no caso de shaphat e afins. Mas, no
uso, ele pende para alguma ênfase na idéia de socorro ou livramento.
Dyn quase significa “defender”. Isso não nega que haja outros usos,
incluindo legais, como sustentam Brown, Driver e Briggs, que podem
muito bem nos aproximar mais do significado original. Mas se
estivermos tentando descobrir o significado exato da palavra como era
usada no Antigo Testamento, não devemos desprezar essa ênfase.
Podemos classificar os usos do grupo vocabular da seguinte maneira
(tomando tanto o substantivo dyn como o verbo):

A. Livramento

Esse é o uso encontrado em dez das vinte e três ocorrências do


verbo e em dez das vinte do substantivo. A palavra pode ser usada em
relação a um livramento real concedido pelo Senhor no passado, como
quando Raquel exclamou, depois que sua serva teve um filho, Dã:
“Deus me julgou e também me ouviu a voz e me deu um filho” (Gn
30.6). Obviamente, o nome da criança é um reflexo disso. Ou pode ser
usada numa oração em que se pede livramento, como no caso do
salmista: “Ó Deus, salva-me, pelo teu nome, e faze-me justiça pelo teu
poder” (SI 54.1). O paralelismo com o verbo “salvar” faz com que o
32 • IMORTALIDADE

significado de dyn fique aqui bastante claro. A palavra também é usada


em relação aos homens, às vezes para os que “julgam” e às vezes para
os que “não julgam” dessa maneira. Josias “julgou a causa do aflito e
do necessitado” (Jr 22.16; tanto o verbo como o substantivo são usados
em relação a ele), enquanto, em contraste, os perversos a quem Josias
castiga “não defendem a causa, a causa dos órfãos, para que prospere;
nem julgam o direito dos necessitados” (Jr 5.28; novamente o verbo e
o substantivo).

B. Punição

Esse uso não é freqüente (duas vezes o verbo, e três o substantivo),


mas ocorre. Assim, Eliú assegura a Jó: “... tu te enches do juízo do
perverso, e, por isso o juízo e a justiça te alcançarão” (Jó 36.17), em que
seu significado é que os sofrimentos do patriarca são o julgamento de
Deus sobre ele, por sua perversidade.

C. Um chamado para prestação de contas

H á ocasiões em que se diz que Deus julga Seu povo, mas não fica
claro se Ele está punindo ou libertando. Se isso pode ser determinado,
então esta modalidade desaparece, sendo absorvida pelas anteriores.
Se não pode, então é um lembrete de que o julgamento, embora possa
ser distribuído em recom pensa e livramento, ou em castigo e
condenação, ainda é a execução de um propósito divino coerente. Se
pudermos citar Eliú novamente, ele prossegue, informando a Jó que
Deus “por estas coisas (L e., chuva etc.) julga os povos e lhes dá
mantimento em abundância. Enche as mãos de relâmpagos e os dardeja
contra o adversário” (Jó 36.31, 32). O julgamento, aqui, é a atividade
de Deus em controlar as condições climáticas. Ele não o faz ao acaso,
mas envia determinado clima para proporcionar um suprimento
abundante de alimentos para os justos, enquanto lança seus raios contra
os ímpios.
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 33

D. Envolvimento numa ação judicial, contenda

“O Senhor se dispõe para pleitear, e se apresenta para julgar os


povos” (Is 3.13; dyn = “julgar”) é linguagem de uma corte judicial. Isso
está de acordo com uma tendência persistente no Antigo Testamento
de ilustrar as relações entre Deus e Seu povo pelo uso de linguagem
legal. Entretanto, com freqüência, os processos legais implicam
conflitos amargos e, assim, às vezes a palavra dyn é usada para indicar
contenda, mesmo quando a questão não envolve um problema legal.
Portanto, lemos em 2 Samuel 19.9 que, após o assassinato de Absalão,
“todo o povo, em todas as tribos de Israel, andava altercando entre si”,
e novamente somos alertados: “Lança fora o escarnecedor, e com ele
se irá a contenda; cessarão as demandas e a ignomínia” (Pv 22.10).

E. Governo

Em paralelo com um aspecto de shaphat, às vezes este grupo


vocabular também pode significar “governo”. Assim, o profeta diz a
palavra do Senhor a Josué: “Se andares nos meus caminhos, e
observares os meus preceitos, também tu julgarás a minha casa...” (Zc
3.7). Em relação ao substantivo, usado sem possibilidade de erro quanto
ao significado, vamos observar a expressão: “Assentando-se o rei no
trono do juízo” (Pv 20.8). Embora esse uso seja encontrado, não existe
evidência real para se pensar que, aqui, assim como no caso d q shaphat,
a idéia de “governo” esteja dando o significado básico para a palavra.
Podemos resumir o uso deste grupo de palavras, dizendo que ele
reforça e ressalta um pouco do que já vimos ser o significado
transmitido por shaphat. Talvez ele empreste uma nova ênfase ao
aspecto salvífico do julgamento. Com certeza, ele nos relembra de que
o conceito veterotestamentário de julgamento possui uma sólida base
legal, uma vez que surge daquela atividade judicial que discrimina, de
acordo com o direito que separa os justos dos perversos e age em função
disso.
34 • IMORTALIDADE

2 • PU

Este verbo interessante é usado no piei, com o sentido de “julgar”,


e no hithpael, com o sentido de “orar”. Ambas as formas são usadas em
1 Samuel 2.25, e se observarmos rapidamente a passagem, poderemos
entender melhor o sentido da palavra. Eli diz a seus filhos: “Pecando o
homem contra o próximo, Deus lhe será o árbitro (wuphiflo); pecando,
porém, contra o Senhor, quem intercederá (yithpallel) por ele?”
Provavelmente, nesse versículo, devemos entender ’elohim como “o
árbitro” (RV, nota marginal) ou “os árbitros”. Se a palavra é entendida
como uma referência a Deus, Ele estará, pelo menos, agindo através
dos juizes. Eli está dizendo que, se um homem peca contra outro, existe
uma possibilidade de reparação por meio dos canais competentes. Mas
para o tipo de pecado que seus filhos estavam cometendo, contra o
próprio Deus, não há possibilidade de alguém se tornar mediador.
Nesse caso, nenhuma intercessão resolve.
O significado básico da raiz é, provavelmente, algo como “intervir,
interpor-se”. Essa intervenção pode ocorrer quando há uma disputa
entre os homens. Nesse caso, o objetivo será decidir a questão. Embora
teoricamente isso pudesse fazer com que a palavra fosse usada tanto
para defesa como para condenação (ambas ocorrem: uma das partes é
justificada e a outra, condenada), na prática, a palavra sempre é usada
para indicar punição. Algum outro verbo é usado para expressar a idéia
de defesa. Se a disputa é entre Deus e os homens, então nenhum ser
humano está em condições de atuar como mediador. O homem sempre
estará errado, pois, por definição, Deus é perfeitam ente justo,
perfeitamente reto. Só existe um recurso para um pretenso mediador:
orar. S. R. Driver interpreta a passagem de 1 Samuel exatamente da
mesma forma. Ele entende que o piei significa “mediar” e cita como
exemplo a mediação que vemos no Salmo 106.30 (“então se levantou
Finéias e executou o juízo”). Uma vez que Finéias “executou o juízo”,
matando Zimri e Cosbi, o tipo de “mediação” indicada aqui por
wayephallel é um castigo por ações erradas. Driver pensa que o hithpael
significa “interpor-se como mediador, especialmente por meio de
súplica”, e cita Gênesis 20.17 (“e, orando Abraão, sarou Deus
Abimeleque, sua mulher, e...”).
Portanto, pelo uso deste verbo, parece que podemos encontrar dois
fatores im portantes para nosso propósito. O prim eiro é que o
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 35

significado básico está ligado à intervenção. Isso quer dizer que a


iniciativa vem de fora. Por si, os homens nunca passariam por um
julgamento, pelo menos por um julgamento final. Mas eles não são
deixados à vontade. Haverá uma intervenção, uma intervenção do
próprio Deus. O segundo ponto é que o verbo sempre é aplicado a um
tipo de intervenção que resulta na punição do transgressor. Muitas
vezes afirma-se que o sentido da palavra indica arbitragem ou algo
parecido, mas o uso sempre indica uma punição do ímpio. Somos
lembrados da seriedade do pecado.

3 • Ykh

Brown, Driver e Briggs dão como significado desse verbo: “decidir,


sentenciar, provar (discutir com)”, enquanto Kõhler alista oito signifi­
cados, começando com “ 1. reprovar... 2. discutir na presença de...” A
palavra denota um processo um pouco mais argumentative do que
aquelas com que viemos lidando até aqui. É freqüente a idéia de
discussão ou debate, embora com algum toque condenatório, pois um
mostra para o outro que ele não tem razão. É possível perder-se na
multiplicidade de significados; portanto, escolheremos três pontos
importantes para nossa pesquisa.

A. A palavra significa “julgar”

H á passagens inquestionáveis em que a palavra significa “julgar”,


mesmo que esse não seja o significado básico deste grupo vocabular.
Mas elas nos mostram que tal acepção nos dá uma parte da idéia
veterotestamentária de julgamento e que, portanto, não se pode deixar
passar o seu universo de significado. Por exemplo, vamos ver o
incidente em que, depois de ter seus pertences vasculhados por Labão,
que procurava os terafins que lhe faltavam, Jacó é levado a responder:
“Havendo apalpado todos os meus utensílios, que achaste de todos os
utensílios de tua casa? Põe-nos aqui diante de meus irmãos e de teus
irmãos para que julguem entre mim e ti” (Gn 31.37). Aqu, percebemos
o verdadeiro sentido de “julgar”. Jacó está convidando Labão a se
submeter a um processo em que seus “irmãos” e os “irmãos” de Jacó
arbitrarão entre um e outro.
36 • IMORTALIDADE

B. A palavra tem o sentido predominante de “reprovar”

Mas se há passagens em que o sentido de “julgar” não pode ser


contestado, também é verdade que o sentido predominante não é esse.
Uma concordância mostra que a palavra é mais usada no sentido de
“repreender” do que em qualquer outro. A tendência é de salientar a
má recom pensa do transgressor. Assim, A braão “repreendeu a
Abimeleque por causa de um poço de água que os servos deste lhe
haviam tomado à força” (Gn 21.25). O salmista caracteriza Javé como
“quem repreende as nações” (SI 94.10), e também lemos que, enquanto
os descendentes de Jacó “andavam de nação em nação... a ninguém
permitiu que os oprimisse; antes, por amor deles, repreendeu os reis”
(SI 105.13, 14). Jó, por sua vez, disse aos que lhe atormentavam:
“Acerbamente vos repreenderá, se em oculto fordes parciais” (Jó
13.10). Não deve haver nenhuma dúvida de que esta palavra é
empregada predominantemente quando se tem em vista algum tipo de
condenação.

C. O julgamento é racional

O grande ponto que aprendemos deykh e que não se apresenta de


forma tão clara nas outras palavras (embora, é claro, esteja sempre
implícito) é que o julgamento é um processo racional. Há várias
passagens em que o significado evidente desse verbo é “raciocinar” ou
algo semelhante. Ele é usado, por exemplo, na famosa passagem do
capítulo inicial de Isaías: “Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor...”
(Is 1.18); depois disso, o profeta passa a destacar o caminho onde os
homens podem encontrar o perdão para seus pecados, e o caminho
onde não podem esperar nada, senão a destruição. É usado em relação
a Jó, que deseja apresentar seu caso a Deus: “Quero defender-me
perante Deus” (Jó 13.3), e em relação à queixa de Deus contra Israel:
“O Senhor tem controvérsia com o seu povo, e com Israel entrará em
juízo” (yithwakkah; Mq 6.2). Tendo em vista a atitude de algumas
pessoas de hoje quanto ao conceito do julgamento divino, é bom
ressaltar que, de acordo com o Antigo Testamento, o processo todo é
eminentemente racional. Não poderiamos pensar em um Deus cheio
de caprichos, distribuindo arbitrariamente penalidades e recompensas,
nem poderiamos pensar que o processo de julgamento seria diferente,
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 37

se Deus tivesse resolvido deixar passar algumas coisas. Jeremias


lembrou aos homens de seu tempo: “A tua malícia te castigará, e as tuas
infidelidades te repreenderão” (tokhihukh; Jr 2.19). A natureza da vida,
do conflito moral e da eterna lei da justiça implicam que o julgamento
é a coisa mais lógica que se possa imaginar. É impossível vislumbrar um
processo que o ponha de lado, sem que resulte num caos.

4 • Elohim

É discutido se, em alguns lugares, esse termo, que é a palavra


comum aplicada a “Deus” ou “deuses”, deve ser entendido como uma
referência aos juizes. A Authorized Version traduz por “os juizes”, em
Êxodo 21.6; 22.8,9 (duas vezes) e na margem de Êxodo 22.28, enquanto
o singular é empregado em 1 Samuel 2.25. Em todas essas passagens,
exceto na última, a Revised Version traz “Deus” no texto e “os juizes”
na margem, enquanto que na última passagem a leitura marginal está
no singular, “o juiz”. Não parece haver dúvidas de que os processos
judiciários estão por trás de todas essas passagens, qualquer que seja a
tradução do termo. Nem precisamos duvidar de que o processo judicial
seja visto como algo de muita dignidade, que só deve ser executado
como se fosse na presença de Deus. Brown, Driver e Briggs apresentam
como o primeiro significado da palavra: “governantes, juizes, tanto
representantes divinos em lugares sagrados quanto os que refletem a
majestade e o poder divino”. Em ambos os casos, o julgamento tem uma
ligação estreita com Deus. É uma prerrogativa divina. É preciso que
não tenhamos nenhuma dúvida de que o julgamento é um processo
majestoso, nem de que todos os julgamentos humanos nos fazem voltar
os olhos para o julgamento de Deus.
Tradicionalmente, as referências aos “deuses” no Salmo 82 têm
sido compreendidas da mesma maneira. Assim, F. Delitzsch entende
que se tratam de “magistrados... vassalos e portadores da imagem de
Deus e, sendo Seus representantes, são também chamados ’elohim”.
Em tempos mais recentes, a tendência entre os eruditos em Antigo
Testamento é de entender que o salmo está apresentando uma crença
na existência real dos deuses pagãos. Eles são subordinados a Javé, e
Este pode chamá-los para uma prestação de contas, mas são seres reais.
Desse modo, Aubrey R. Johnson diz que o salmo “nos conduz de início
para a corte celestial, e revela Javé pronunciando uma sentença contra
38 • IMORTALIDADE

os deuses reunidos das nações, por causa do seu mau governo”. Por isso,
“apesar da posição deles como filhos de Deus, Javé passa a pronunciar
a senteça final contra eles, por não terem conseguido atingir esse ideal,
decretando que, conseqüentem ente, devem m orrer como seres
humanos comuns”. Não me convenço desse raciocínio, por uma série
de razões. Seria co n trário ao sólido m onoteísm o do A ntigo
Testamento, e não se deve esquecer que uma longa sucessão de
monoteístas convictos reconheceu a canonicidade desse salmo. Além
disso, as passagens que já consideramos nesta seção parecem-me
indicar que o termo ’elohim vez por outra era usado em referência aos
juizes. Depois, existe a linguagem da passagem em si. Observe os
versículos 2ss.:

Até quando julgareis injustamente,


e tomareis partido pela causa dos ímpios?
Fazei justiça ao fraco e ao órfão,
procedei retamente para com o aflito e o desamparado.
Socorrei o fraco e o necessitado;
tirai-o das mãos dos ímpios.

Isso está de acordo com o que se requer dos juizes em todo o Antigo
Testamento. Mas não se pede nem se espera que os deuses pagãos
exerçam essas funções. Parece-me que esse ponto não recebeu a devida
consideração dos eruditos que entendem essa passagem como um
referência aos deuses. O Antigo Testamento não carece de passagens
que mencionem os deuses pagãos. Mas onde se fala deles nesses
termos? Ao que me parece, é muito melhor entender que o salmo fala
de juizes humanos. No versículo 1, Deus lhes chama a atenção. Nos
versículos 6ss., Ele lhes lembra de que são mortais:

Eu disse: Sois deuses,


sois todos filhos do Altíssimo.
Todavia, como homens, morrereis
e, como qualquer dos príncipes, haveis de sucumbir.

Essas afirmações não são relevantes para os deuses das nações.


Nem o versículo final, que exige que Deus julgue “a terra”, L e., a
habitação dos juizes, não dos deuses.
Mas, qualquer que seja o veredicto sobre o Salmo 82, tanto esta
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 39

passagem como as estudadas antes ligam claramente a função de julgar


ao elemento divino. Assim, elas investem o julgamento de dignidade e
seriedade de propósito.

5 • Pqd

Este é um verbo de numerosos significados, tendo “julgar” como


um sentido subordinado. Brown, Driver e Briggs alistam-no como “dar
atenção, visitar, passar em revista, designar”, uma definição que mostra
que a palavra tem uma grande abrangência. Kõhler dá como significado
original: “sentir falta, preocupar-se” e, depois, “cuidar, ir ver”. Até
certo ponto isso é sustentado pelo uso nas línguas cognatas, que muitas
vezes parecem indicar “cuidado” ou “falta”. O que está claro é que a
palavra tem vários significados, um dos quais (e bem comum) é
“visitar”. E este significado dá lugar a mais um ou dois, pois uma visita
pode ter mais que um resultado.
Por conseguinte, a palavra é usada num sentido positivo, como por
ocasião do nascimento de Isaque, quando lemos: “Visitou o Senhor a
Sara como lhe dissera, e cumpriu o que lhe havia prometido” (Gn 21.1).
Não são poucas as passagens que podem ser citadas, em que esse verbo
é aplicado a uma visita com bênçãos semelhantes. Mas se Deus visita
uma pessoa ou nação, e essa pessoa ou nação é pecaminosa, então o
resultado da visita será diferente. Assim, Jeremias, depois de relatar os
pecados da nação, prossegue: “Deixaria eu de visitar (ARA, ARC:
castigar) estas coisas, diz o Senhor, ou não me vingaria de nação como
esta?” (Jr 5.9; a expressão é repetida no v. 29). O mesmo profeta diz:
“Pois que tanto amaram o afastar-se, e não detiveram os seus pés, por
isso o Senhor se não agrada deles, mas agora se lembrará da maldade
deles, e visitará os seus pecados” (Jr 14.10, ARC). Às vezes, o verbo é
traduzido em term os de julgamento, como em Jerem ias 51.47:
“Portanto, eis que vêm dias, em que visitarei as imagens de escultura
de Babilônia...” (ARC).
Por tudo isso, precisamos nos lembrar de uma verdade importante.
Deus não é nem pode ser neutro. Para Deus, uma visitação é o mesmo
que cuidar graciosamente dos justos e necessitados, e punir os ímpios.
40 • IMORTALIDADE

6 • Ribh

Ao contrário das outras palavras pesquisadas até aqui, ribh não é


traduzida por “julgar” ou vocábulos afins. Mas sua relevância para este
estudo é evidente, pois em muitas ou, talvez, na m aioria das
ocorrências, refere-se a processos judiciais. Seu significado básico
envolve contenda; portanto, a idéia de partes debatendo-se num
processo judicial. Dessa maneira, é usada tanto nos contextos em que
há um julgamento em questão como nas situações em que não há
n e n h u m p ro c e sso le g al em v ista. E x am in am o s esses usos
separadamente.

A. Contender, disputar

Este parece ser o significado fundamental desse grupo de palavras.


Brown, D river e Briggs apresentam “brigar, contender” como
significado principal e, então, passam a citar as palavras das línguas
cognatas com sentidos como “agitar”, “inquietar”, “chorar”, “gritar”,
“discutir em alta voz” etc. Às vezes, a idéia de violência física está
presente, como quando Moisés abençoa a Judá: “... com tuas mãos
peleja por ele” (Dt 33.7). O significado mais comum, como nota Kõhler,
é uma briga de palavras, como quando certas águas foram chamadas
“Meribá, porque os filhos de Israel contenderam com o Senhor” (Nm
20.13; as palavras usadas nessa “contenda” são dadas no v. 3).

B. Queixar-se, repreender

A partir da noção de contenda, surge a de queixa e repreensão.


Aqui, não há tanto a idéia de uma briga com ações recíprocas, mas, sim,
de uma pessoa tomando a iniciativa e falando o que pensa da outra. A
passagem em que Jacó “se irou... e altercou com Labão” (Gn 31.36) é
um bom exemplo disso, assim como quando Neemias “repreendeu” os
nobres (Ne 5.7).
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 41

C. Conduzir um processo judicial

Mas o uso mais importante desse grupo de palavras é o que


descreve algum tipo de processo judicial (muitas vezes no sentido
figurado, em que se apresenta Javé tomando medidas legais contra Seu
povo). Esse tipo de uso corresponde a quase metade das ocorrências,
tanto do verbo como do substantivo (30 das 68 ocorrências do verbo, e
26 das 62 do substantivo). Vemos os processos legais comuns, quando
se ordena: “... nem deporás, numa demanda, inclinando-te para a
maioria, para torcer o direito. Nem com o pobre serás parcial na sua
demanda” (Êx 23.2, 3), ou quando Absalão interpelou “todo homem
que tinha alguma demanda para vir ao rei ajuizo” (2 Sm 15.2).
As passagens realmente significativas são aquelas em que Javé
participa do processo. Algumas vezes se diz que Deus agiu. Quando
soube da morte de Nabal, Davi exclamou: “Bendito seja o Senhor, que
pleiteou a causa da afronta...” (1 Sm 25.39). Aqui, o Senhor já fez o que
se pediu. Davi simplesmente se alegra com o fato. Mas, às vezes, isso
também acontece por meio de uma oração por socorro futuro, como
quando o salmista disse: “Faze-me justiça, ó Deus, e pleiteia a minha
causa contra a nação contenciosa; livra-me do homem fraudulento e
injusto” (SI 43.1). Ele apela ao Senhor, confiantemente e procura
justificação e livramento, mas a linguagem usada para expressar seu
apelo é a de uma corte judicial. Não é nenhuma surpresa que o povo de
Deus seja exortado a reproduzir o mesmo tipo de comportamento: “...
defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas” (Is 1.17).
É provável que nenhuma outra passagem nos dê melhor o gosto
peculiar desta palavra do que a cena forense retratada com tanto vigor
por Miquéias. “Ouvi agora o que diz o Senhor: Levanta-te, defende a
tua causa perante os montes, e ouçam os outeiros a tua voz. Ouvi,
montes, a controvérsia do Senhor, e vós, duráveis fundamentos da terra;
porque o Senhor tem controvérsia com o seu povo, e com Israel entrará
em juízo” (Mq 6.1, 2; “defender” e “controvérsia” vêm dessa raiz).
Então o profeta passa a dar as palavras com as quais o Senhor formula
Sua acusação legal contra Seu povo. Dessa forma, Miquéias apresenta
com ênfase a realidade do pecado da nação (ele está totalmente
provado: a prova resistirá à corte legal) e a seriedade desse pecado (é
inevitável que a sentença caia sobre os que forem julgados culpados).
Isaías faz uso semelhante dessa figura: “O Senhor se dispõe para
42 • IMORTALIDADE

pleitear, e se apresenta para julgar os povos” (Is 3.13), bem como


Jeremias: “Ainda pleitearei convosco, diz o Senhor, e até com os filhos
de vossos filhos pleitearei” (Jr 2.9). A figura é freqüente em Jó, e. g.,
“Direi a Deus: Não me condenes; faze-me saber por que contendes
comigo” (Jó 10.2), e em outros lugares.
Ribh, portanto, salienta dois aspectos do julgamento. Um é a
realidade da oposição. Uma palavra cujo sentido original é “contenda”
não retrata um Deus levemente desgostoso com os pecadores. Ele Se
opõe radicalmente a todo mal. É necessário que os pecadores não sejam
complacentes em relação à sua posição. O outro é que Deus não age de
modo arbitrário quando lida com o pecado. Aqueles que sentem a mão
de Deus pesar em julgamento podem saber que suas más ações foram
completamente provadas. A acusação contra eles é límpida como
cristal.
Existe ainda outro pensamento que, embora não receba muita
ênfase, é importante. Nós o encontramos no último capítulo de
Miquéias, onde o profeta diz: “Sofrerei a ira do Senhor, porque pequei
contra ele, até que julgue a minha causa...” (Mq 7.9). O pecado precisa
ser punido. A justiça exige isso. Mas a esperança final do profeta está
no Senhor; ele aceita os julgamentos punitivos de Deus e, pela fé, espera
que Este defenda sua causa.

7 • O utras palavras

Nãò conseguimos extrair todo o ensino veterotestamentário acerca


do ju lg a m e n to , q u an d o exam inam os p a c ie n te m e n te , num a
concordância, cada palavra relacionada ao tema. Esse processo pode
nos ensinar muito sobre o julgamento; aliás, sem esquadrinhar com
cuidado todas as evidências, não é possível falar sobre o assunto com
alguma autoridade. Pronunciamentos ex cathedra baseados em textos
ou passagens isoladas têm pouco valor. Mus não esgotamos o assunto
depois de examinar todas as passagens que falam do julgamento. Às
vezes a idéia está presente, mesmo que não ocorra a palavra
“julgamento”. Portanto, quando lemos que “a Luz de Israel virá a ser
como fogo e o seu Santo como labareda, que abrase e consuma os
espinheiros e os abrolhos da Assíria num só dia” (Is 10.17), somos
lembrados de que o relacionamento de Israel com Deus, visto como um
Deus santo, implica necessariamente em julgamento. Ou então, Amós
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 43

pode alertar o povo: “Portanto, assim te farei, ó Israel! E porque isso


te farei, prepara-te, ó Israel, para te encontrares com o teu Deus” (Am
4.12). Aqui, não encontramos a palavra “julgamento”, mas como
interpretar a passagem sem pensar em um julgamento iminente?
Mas talvez a idéia mais importante nesse contexto seja a do “dia do
Senhor”. Quando encontramos esse termo pela primeira vez, o profeta
Amós não se detém para explicá-lo, introduzindo-o como se fosse bem
conhecido. Evidentemente, tratava-se de uma idéia bem antiga. “Ai de
vós que desejais o dia do Senhor! Para que desejais vós o dia do Senhor?
É dia de trevas e não de luz. Como se um homem fugisse de diante do
leão, e se encontrasse com ele o urso; ou como se, entrando em casa,
encostando a mão à parede, fosse mordido duma cobra” (Am 5.18,19).
Parece claro que, na expectativa popular, “o dia do Senhor” era o dia
em que o Deus de Israel iria atuar de forma evidente e inconfundível,
mostrando que Ele está do lado de Israel. Ele os livraria de todos os
opressores e, na verdade, colocaria cada opressor em suas mãos. Mas
Amós tem uma mensagem diferente. Deus diz à nação: “De todas as
famílias da terra somente a vós outros vos escolhi, portanto eu vos
punirei por todas as vossas iniqüidades” (Am 3.2). Precisamente por
manterem um relacionamento especial com Deus, eles devem esperar
ser julgados por um padrão mais alto e punidos por suas faltas. Mas o
povo de Deus, em especial, está sob Seu julgamento. Como disse H. H.
Rowley: “Esse elemento do julgamento é parte essencial da idéia do
Dia do Senhor. O que Amós trouxe para o termo não foi a idéia de um
julgamento, mas de um julgamento moral. Não seria um simples
julgamento dos inimigos de Israel, mas um julgamento dos homens
cujas vidas eram ofensivas a Deus, dentro ou fora de Israel”. Essa
verdade é reiterada em todas as passagens sobre o “dia do Senhor”.
Deus não tem favoritos. Seu julgamento cairá sobre toda a humanidade,
inevitavelmente. Não é por acaso que a última palavra impressa no
Antigo Testamento é uma palavra de julgamento.
44 • IMORTALIDADE

III. O JULGAMENTO NO NOVO TESTAMENTO:


UMA REALIDADE PRESENTE

1 • Introdução

A palavra básica para “julgamento” no Novo Testamento é o verbo


kriríõ, “ju lg ar”. E sta palavra, bem como o seu equivalente em
português, aplica-se perfeitamente ao processo legal. Podemos ver isso
em Mateus 5.40: “e ao que quer demandar contigo...” (c/. também 1 Co
6.1,6). A partir daí, passou a ser usada em sentido não-técnico de tomar
uma decisão (de novo, exatamente como nós). Vemos isso na resposta
de Pedro e João ao Sinédrio: “Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos
a vós outros antes do que a Deus” (At 4.19). Ocasionalmente há nuanças
de conotações do Antigo Testamento, como quando é usada no sentido
de “governo” (Mt 19.28; Lc 22.30).
Mais notável, e mais importante, é o uso do termo em associação
com a vitória de Cristo sobre todas as forças do mal. Isso é muito
semelhante à maneira como as passagens do Antigo Testamento
referiam-se à libertação. Assim, com a cruz agigantando-se diante de
Si, Jesus disse: “Chegou o momento de ser julgado este mundo, e agora
o seu príncipe será expulso” (Jo 12.31). Ele também disse que o Espírito
Santo convencería “o mundo... do juízo” e prosseguiu, explicando: "...
do juízo, porque o príncipe deste mundo já está julgado” (Jo 16.8-11).
A morte de Cristo era, em certo aspecto, uma transação judicial com o
diabo. Como no Antigo Testamento, isso não significa uma comparação
imparcial de evidências. Trata-se de uma negociação vigorosa com o
mal. O Senhor está ativamente envolvido na salvação de Seu povo. Mas,
como no Antigo Testamento, existe a idéia de que a transação de Deus
com Satanás não é arbitrária. Sua derrota está de acordo com a justiça.
Ele é lançado fora porque merece isso. Os fiéis podem saber que sua
libertação é judiciosamente embasada.

2 * 0 Pai e o julgamento no presente

O Novo Testamento deixa claro que Deus está engajado numa


atividade constante de julgam ento. Algumas vezes temos um a
proposição geral como: “... há quem a busque e julgue” (Jo 8.50). Isso
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 45

bem pode e deve ser aplicado ao julgamento final. Mas parece melhor
vê-lo como um processo que está ocorrendo aqui e agora. É verdade
que Deus é o único juiz e que no último dia isso será manifesto. Mas
também é verdade que os homens podem saber, aqui e agora, que suas
ações são pesadas pelo único juiz e que as medidas serão tomadas dessa
forma. Isto confere significado moral à história. A não ser que Deus
esteja ativo, julgando no presente, estamos condenados à idéia de que
o resultado moral de nossas ações não têm importância para esta vida.
Paulo destaca um ponto importante neste julgamento presente. Ele
está tratando da Santa Ceia e aponta que, por causa do mau uso do
sacramento, “há entre vós muitos fracos e doentes, e não poucos que
dorm em ” (1 Co 11.30). Então, ele continua: “Porque, se nos
julgássemos (diekrínomem) a nós mesmos, não seríamos julgados”. O
verbo por ele usado significa “distinguir”, “discriminar”. Paulo está
dizendo que, se fizéssemos distinção entre o que somos e o que
deveriamos ser, evitaríamos esse tipo de julgamento a que ele está se
referindo. Em outros termos, ele enxerga esses julgamentos não como
algo a ser simplesmente temido e odiado, mas como um incentivo a uma
auto-avaliação e a uma vida reta. Uma compreensão do fato de que o
Senhor está julgando Seu povo aqui e agora pode ser um poderoso
incentivo para os cristãos. Acrescenta dignidade e sentido à vida toda.
O julgamento tem essa característica na Bíblia inteira. Leva as pessoas
a um auto-exame e ao arrependimento. Jamais será uma simples
ameaça.
Paulo extrai uma segunda conclusão: “Mas, quando julgados,
somos disciplinados pelo Senhor, para não sermos condenados com o
mundo” (v. 32). Os sofrimentos de vários tipos que o cristão pode
encontrar não devem ser vistos como males sem nome. Na verdade, são
sinais do amor de Deus. São a indicação de que Sua mão paterna está
sobre nós, e Ele não nos deixará continuar em alguma trilha pecaminosa
sem nos “julgar”, para que possamos retornar à nossa legítima aliança.
De modo semelhante, o escritor de Hebreus lembra-nos de que “o
Senhor corrige a quem ama, e açoita a todo filho a quem recebe” (Hb
12.6). Ele continua, dizendo que a disciplina “produz fruto pacífico aos
que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça” (v. 11). A
terminologia não é a mesma de 1 Coríntios, mas a idéia é semelhante.
D e novo, Paulo agradece a Deus: “... à vista da vossa constância e
fé, em todas as vossas perseguições e nas tribulações que suportais, sinal
46 • IMORTALIDADE

evidente do reto juízo de Deus” (2 Ts 1.4, 5). Normalmente, não


consideraríamos as perseguições e aflições como evidências do reto
juízo de Deus, mas duas observações são oportunas. A primeira é que
o “sinal evidente” não são os problemas propriamente ditos, mas, ao
que parece, o com portam ento dos cristãos tessalonicenses nos
problemas. A outra é que, como vimos no parágrafo anterior, os
problemas e as dificuldades fazem parte do relacionamento de Deus
com Seu povo. Ele os julga continuamente e os leva através das coisas
desagradáveis dessa vida para a glória que lhes preparou. As
dificuldades que os cristãos encontram não devem ser vistas
simplesmente como acidente de percurso. São os meios que Deus usa
para disciplinar Seu povo. Elas têm o efeito de revelar algumas
qualidades do caráter cristão que nunca emergem durante os dias
serenos de paz e tranqüilidade.
Mas, apesar de Deus usar a punição para trazer Seu povo ao
caminho do desenvolvimento cristão, não podemos achar que Seus
julgamentos são arbitrários. Eles surgem da natureza do pecado
humano e estão relacionados a ele. Abraham Lincoln coloca assim a
questão: “Esperamos com otimismo — oramos com fervor — que esse
tremendo flagelo da guerra possa passar rapidamente. Ainda assim, se
Deus quiser que continue, até que seja sugada toda a riqueza
armazenada pelos escravos durante duzentos e cinqüenta anos de
fadigas não-reconhecidas, até que cada gota de sangue derramada pelo
chicote seja paga por outra derramada pela espada, como foi dito
trezentos anos atrás, ainda se deve dizer que ‘os juízos do Senhor são
verdadeiros e todos igualmente justos’”. Eis aqui a retração humana
natural diante do sofrimento. Mas ela está associada à percepção de
que a vida é um negócio sério no qual os justos juízos de Deus são e
devem ser executados. Há também uma prontidão para aceitar os
julgamentos do Senhor por aquilo que são. Somente tal atitude pode
trazer proveito aos homens quando estão atravessando dificuldades.
Hoje, muitas punições “corretivas” têm pouca relação com o crime.
Aliás, confessa-se que a base não é a justiça. Elas são feitas para corrigir
e administradas em função disso. Muitas passagens das Escrituras
fazem-nos lembrar que os julgamentos de Deus são retos. “E toda
transgressão e desobediência recebeu justo castigo” (Hb 2.2). Pedro
nos lembra de que o Pai, “sem acepção de pessoas, julga segundo as
obras de cada um” (1 Pe 1.17), e O identifica como “aquele que julga
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 47

retamente” (1 Pe 2.23). Em Apocalipse há júbilo pela maneira como o


Senhor Deus adapta o julgamento ao crime: “Tu és justo, tu que és e
que eras, o Santo, pois julgaste estas coisas; porquanto derramaram
sangue de santos e de profetas, também sangue lhes tens dado a beber;
são dignos disso” (Ap 16.5, 6). Até o altar moveu-se para dizer:
“Certamente”, ó Senhor Todo-poderoso, verdadeiros e justos são os
teus juízos” (v. 7). Talvez a idéia seja apresentada com muito mais vigor
no capítulo de abertura de Romanos, com seu lembrete de que a ira de
Deus está sendo revelada (Rm 1.18) e seu tríplice “Deus os entregou”
(Rm 1.24,26,28). Mesmo agora o pecado está colhendo uma terrível
recompensa.
Apresentamos duas últimas afirmações sobre os julgamentos
presentes do Pai. A primeira está em Apocalipse 18.8: "... poderoso é
o Senhor Deus que a julgou”. O mal é forte neste mundo, e com muita
freqüência as forças do bem parecem miseravelmente incompetentes.
Mas às vezes as aparências enganam. Os cristãos sabem com certeza
inabalável que o Senhor está sobre todas as coisas e que “poderoso é o
Senhor Deus que julga”. A outra pode ser vista na parábola de Lucas
13.6-9. Depois de três estações infrutíferas, o proprietário da figueira
sugere que a cortem: “... para que está ela ainda ocupando inutilmente
a terra?” Mas o viticultor pede mais um adiamento: “Deixe-a ainda este
ano, até que eu escave ao redor dela e lhe ponha estrume. Se vier a dar
fruto, bem está; se não, mandarás cortá-la”. Em outras palavras, não há
nenhuma precipitação nos julgamentos do Senhor. Ele esgota todos os
recursos para que haja muitos frutos. Mesmo quando os homens dizem:
“Não há motivo para dar uma nova chance”, Ele diz: “Que haja uma
nova oportunidade”. Quando o julgamento de Deus cai sobre um
homem, ele pode estar seguro de que exauriu as reservas da paciência
divina, e tais reservas não são escassas.

3 • O julgamento de Cristo

Desde o início estava claro que a missão de Jesus incluía uma severa
condenação do mal. João Batista disse que Ele batizaria “com o Espírito
Santo e com fogo. A sua pá ele a tem na mão, e limpará completamente
a sua eira; recolherá o seu trigo no celeiro, mas queimará a palha em
fogo inextinguível” (Mt 3.11,12). O batismo com fogo bem pode indicar
o fogo do julgamento, o fogo que purga a impureza, e é certo que o
48 • IMORTALIDADE

restante da citação transmite essa idéia. O fato de Cristo exigir


continuamente o arrependimento e denunciar impiedosamente o mal,
onde quer que o encontrasse, mostra com que seriedade se deve encarar
esse raciocínio.
A exigência de arrependimento leva-nos a outro aspecto do
julgamento no Novo Testamento. É essencialmente um julgamento de
indivíduos. No Antigo Testamento é freqüente a citação de nações
inteiras, e o julgamento cai sobre elas. No Novo Testamento, embora a
responsabilidade social e comunitária não sejam desprezadas, a ênfase
do julgamento está naquilo que o indivíduo faz ou deixa de fazer.
João tem algumas coisas interessantes a dizer sobre as atividades
presentes de Cristo como o juiz dos homens. Obviamente, isso não
difere em essência do julgamento do Pai, porque os dois são um. Jesus
diz: “Eu nada posso fazer de mim mesmo; na forma por que ouço, julgo.
O meu juízo é justo porque não procuro a minha própria vontade, e,
sim, a daquele que me enviou” (Jo 5.30). E, novamente: “Se eu julgo,
o meu juízo é verdadeiro, porque não sou eu só, porém eu e aquele que
me enviou” (Jo 8.16). A unidade entre o Pai e o Filho, ressaltada com
tanta força no quarto evangelho, significa que o julgamento feito por
um é o julgamento feito pelo outro.
Mas esse evangelho deixa claro que o propósito da vinda de Jesus
não era o julgamento. “Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo,
não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por
Ele” (Jo 3.17). “Eu não vim para julgar o mundo, e, sim, para salvá-lo”
(Jo 12.4.7). João retrata sistematicamente a Jesus como o Salvador. Ele
foi enviado pelo Pai com o propósito expresso de salvar os homens, e
Ele segue Seu caminho sem Se desviar. É verdade que Ele virá
novamente para julgar. O objetivo de João não é descrever isso em
detalhes — seu tema é a salvação. Ele menciona isso e destaca que o
Pai deu ao Filho autoridade para executar o julgamento. Ele lembra
aos leitores que “todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz
e sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os
que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo” (Jo 5.28,29).
Ele não se estende nessa verdade, mas sabe que ela existe; ele se
concentra na salvação.
Ainda assim, paradoxalmente, ele pode mostrar a Jesus, dizendo:
“Eu vim a este mundo para juízo” (Jo 9.39). A contradição com as
citações já vistas é apenas aparente. Em sua primeira vinda, Jesus não
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 49

tinha a intenção de julgar os homens, assim como o sol não tem a


intenção de lançar sombras, mas se o sol brilha sobre uma paisagem, as
sombras são inevitáveis. O próprio fato de o sol brilhar implica nisso.
E quando o Filho de Deus vem ao mundo, trazendo salvação, é
inevitável que Ele julgue os homens pelo mesmo motivo. Ele não veio
trazer a paz, mas a espada (Mt 5.34). Há um processo de seleção. A
oferta de salvação é divisora. Faz separação entre aqueles que
correspondem à oferta graciosa e aqueles que não. E esse processo
continua. Como E. Stauffer nos faz lembrar: “História é krisis, é a
separação das almas”.
João tem uma passagem muito importante na qual ele nos diz como
esse julgamento opera: “... o julgamento é este: Que a luz veio ao
mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas
obras eram más” (Jo 3.19). “Julgamento”, aqui, é krisis, que denota o
processo, não krima, que indica a sentença. João não está dizendo:
“Esta é a sentença que Deus decretou”. Ele está dizendo: “Este é o
processo. É assim que ele funciona”. “A luz”, Cristo (Jo 8.12), veio ao
mundo. Por causa disso, os homens são forçados a uma decisão. E são
julgados por suas atitudes em relação a Ele. A tragédia disso é que,
quando se encontram face a face com Cristo, os pecadores não se
interessam por Ele. A verdade inacreditável é que os homens preferem
sua escuridão à luz de Cristo. Suas obras são más e, portanto, fogem
dEle.
Não se pode menosprezar a importância disso. Os homens hoje
muitas vezes rejeitam toda idéia de julgamento. Acham que a idéia de
um Deus que julga os homens e os condena ao inferno não se harmoniza
com o conceito de Deus como um Pai amoroso. Essa objeção ignora
totalmente a maneira como funciona o julgamento. Não há um Deus
tirânico olhando os homens com severidade, pinçando alguns com
quem Ele não quer conversa. Deus é amor. Os homens sentenciam-se
a si mesmos. Eles acolhem a escuridão e recusam a luz.
Em certo sentido, Judas não vendeu realmente a Cristo. O Senhor
veio à terra com o objetivo expresso de chegar à cruz. Se pudermos
imaginar isso, mesmo que Judas tivesse sido fiel e verdadeiro, não teria
evitado a crucificação. Jesus veio para morrer. Mas se ele não vendeu
a Jesus, Judas vendeu a si mesmo, irrevogavelmente. E o preço que ele
estabeleceu para si foram trinta moedas de ouro!
E o processo continua. Um homem está determinado a desenvolver
50 • IMORTALIDADE

seu negócio e fazer dinheiro. Isso significa gastar, com o negócio, o


tempo que ele deveria estar dando para outras coisas, e envolve o uso
de práticas que podem, no mínimo, podem ser consideradas suspeitas.
Esse é o tipo de culto a Mamom que é incompatível com Cristo. Ele
constrói seu negócio. Ele faz seu dinheiro. Nunca se diga que Deus,
numa cruel vingança pelo sucesso do homem, jogou-o para fora do céu.
Ele é que se jogou. Ele deu à sua alma imortal o preço do seu negócio
e passou a vendê-la por ele. “O julgamento é este: Que... os homens
amaram mais as trevas que a luz.”
O princípio de que maior privilégio significa maior respon­
sabilidade e julgamento mais severo permeia todo o Novo Tes­
tamento. Em João 9.41, o pecado dos fariseus dependia do fato de
declararem que enxergavam (se fossem cegos, não teriam pecado). Em
João 15.22-24, aqueles que viram as obras de Cristo e ouviram Suas
palavras não têm desculpas: viram e odiaram tanto o Filho como o Pai.
Paulo obteve misericórdia, porque o seu pecado de blasfêmia e
perseguição foi cometido “na ignorância, na incredulidade” (1 Tm
1.13). Em 2 Pedro 2.20ss., considera-se melhor nunca ter conhecido o
caminho da justiça do que voltar atrás depois de conhecê-la. O tema do
julgamento perpassa todas essas passagens. Se os homens escolhem o
caminho inferior quando podem ter o de cima, então condenam a si
mesmos. Não há motivo para fechar os olhos a esta realidade
implacável.

IV. O JULGAMENTO NO NOVO TESTAMENTO:


UMA CERTEZA FUTURA

Se por um lado é verdade que os homens julgam a si mesmos no


presente, por sua reação perante Cristo, a luz do mundo, por outro,
também é verdade que nenhum julgamento é final, exceto aquele que
Deus dispensará no último dia. O Novo Testamento tem muita coisa a
dizer sobre isso, e nós selecionamos dez pontos específicos.

1 • O julgam entoéaxiom ático

Hoje, é comum os homens terem dificuldades com a idéia de um


dia de julgamento para toda a terra. Uns se perturbam com o
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 51

mecanismo disso; outros se incomodam com o conceito de Deus como


juiz. Como os gregos da antigüidade, eles rejeitam completamente a
idéia, mas os hom ens do Novo T estam ento não tinham esses
escrúpulos. Pelo contrário, consideravam ser fundamental e básico que
Deus julgasse todos os homens. Se Deus é Deus, Ele deve julgar toda
a criação. Escrevendo aos romanos, Paulo pergunta: “... mas, se a nossa
injustiça traz a lume a justiça de Deus, que diremos? Porventura será
Deus injusto por aplicar a sua ira?” Ele insere um parêntese para
explicar sua linguagem dura: “falo como homem”, e então prossegue:
“Certo que não. Do contrário, como julgará Deus o mundo?” (Rm 3.5,
6). O julgamento final não é algo que deva ser defendido. É uma
doutrina que serve de base para outras defesas. Paulo pressupõe que
não pode haver dúvida quanto a isso. É um ponto pacífico para todos
os cristãos. O escritor de Hebreus toma exatamente a mesma posição
quando fala do “juízo eterno” como um dos “princípios elementares da
doutrina de C risto” (Hb 6.1, 2). Paulo também pode usar esse
julgamento final como base para exortar seus convertidos a não serem
severos ao julgar os outros. Não importa, diz ele, o modo como vocês
ou qualquer tribunal humano possa me julgar quanto a isso. Eu mesmo
não me julgo, acrescenta. Ele não sabe de nada que possa condená-lo
perante Deus, mas não é isso que o justifica. “Quem me julga é o
Senhor. Portanto, nada julgueis antes de tempo, até que venha o
Senhor” (1 Co 4.3-5). Isto é, julgar os outros ou julgar a si mesmo é
completamente fútil. Só um julgamento interessa; e ele ainda não
chegou. Esperemos até que o Senhor venha com Seu julgamento
perfeito. A certeza do julgamento pode ser deduzida do fato de que
Jesus realmente pensava ser o Messias. Ele não entendia o messiado
como os judeus de Sua época, mas sabia que era o Ungido. Parece que
havia, entre todos os que buscavam o Messias, uma crença universal de
que Sua vinda iria introduzir um período de julgamento e tribulação a
que denominavam “as aflições do Messias”. Seus ensinos sobre o
segundo advento e o julgamento que, então, executará mostram com
muita clareza que Jesus não repudiava essa idéia (Mt 25.3lss.; Jo 5.22,
27ss.) O messiado não exclui, mas, sim, implica julgamento.
C. F. D. Moule demonstrou que ambos os sacramentos implicam
uma doutrina do julgamento. O batismo é visto como morrer com Cristo
e ressurgir com Ele. Portanto, trata-se de “uma aceitação voluntária do
veredicto do pecado, em união com Cristo, cuja perfeita obediência à
52 • IMORTALIDADE

sentença foi aceita e coroada pela ressurreição”. O batismo “é, em


essência, confessar o pecado, aceitar o veredicto”. Não pode ser
repetido, e traz consigo aquela qualidade definitiva do julgamento final.
A santa ceia deve ser precedida por um auto-julgamento, caso
contrário, será seguida pelo julgamento divino (1 Co 11.28, 29).
“Portanto, a eucaristia é, com certeza, uma ocasião de julgamento —
tanto de auto-julgamento voluntário, na aceitação do veredicto de Deus
para os homens caídos, como de sujeição forçada ao julgamento de
Deus.”
Os escritos mais recentes apresentam uma tendência de minimizar
ou menosprezar este elemento do ensino bíblico. Por exemplo, a
“escatologia realizada” de C. H. Dodd coloca toda a ênfase no presente.
Para ele, “o eschaton moveu-se do futuro para o presente, da esfera da
expectativa para a da experiência realizada”. “Sem dúvida, está claro
que, para os escritores do Novo Testamento em geral, o eschaton entrou
na história; o domínio secreto de Deus foi revelado; o porvir já chegou.”
Ao tratar do julgamento, apesar de saber que Paulo, por exemplo, fala
de um julgamento final, Dodd coloca toda a sua ênfase no presente.
“Deus está confrontando (os homens) em Seu reino, poder e glória.
Este mundo tornou-se o palco de um drama divino. É a hora da decisão.
Isto é escatologia realizada.” “Ainda assim, o reino de Deus vem com
julgamento. Os líderes religiosos, que censuraram Jesus por Seu
trabalho e ensino, estavam naquele mesmo momento pronunciando
julgam ento sobre si mesmos pela atitude que tiveram, por sua
precaução egoísta, seu exclusivismo, sua negligência em relação às
responsabilidades e sua cegueira diante do propósito de Deus.” “Um
fim absoluto para a história, seja Sua vinda concebida para cedo ou
tarde, nada mais é do que uma ficção projetada para expressar a
realidade da teleologia dentro da história.” A última frase em seu livro
The Apostolic Preaching (“A Pregação Apostólica”) faz do julgamento
final nada mais do que “o mito mais inadequado do objetivo da
história”.
Como insistimos numa seção anterior, o Novo Testamento dá
ênfase à idéia de um julgamento presente. Mas dizer que ele não atesta
nenhum outro julgamento é obviamente falso. As proposições sobre o
julgamento futuro são tão freqüentes e tão fundamentais para o
pensamento dos escritores bíblicos que nenhuma teologia que deixe de
fazer justiça a isso pode ser considerada coerente com a fé do Novo
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 53

Testamento. “Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a essa


vida, somos os mais infelizes de todos os homens”, escreveu Paulo
(1 Co 15.19). A esperança é uma das grandes chaves do pensamento
neotestamentário, e ela está centralizada nEle, que morreu uma vez
pelos homens e retornará para julgá-los e estabelecer o reino em toda
a sua plenitude. Uma escatologia puramente “realizada” é calamitosa,
tanto por não se ajustar à mensagem do Novo Testamento como por
suas trágicas conseqüências.
As objeções levantadas contra a escatologia realizada de Dodd
aplicam-se também à “escatologia reinterpretada” de R. Bultmann. Ele
afirma reiteradas vezes que o julgamento não passa de uma atividade
presente. “A historicização da escatologia, já introduzida por Paulo, é
completada radicalmente por João... O julgamento ocorre no simples
fato de que, no encontro com Jesus Cristo, efetua-se a separação entre
a fé e a incredulidade, entre os que vêem e os que são cegos... Portanto,
não é nenhum evento cósmico, dramático: ele acontece na resposta dos
homens à palavra de Jesus.” Mas, para provar sua teoria, Bultmann
precisa recorrer a uma boa dose de cirurgia crítica. Por exemplo, para
ele, “no último dia”, em João 6.39, 40, 44; 12.48, seria “uma redação
eclesiástica posterior”, extirpando igualmente João 6.51b-58; 5.28, 29
etc. Tal procedimento dá-nos boas informações sobre as idéias de
Bultmann, mas muito pouco sobre o ensino do Novo Testamento.

2 * 0 dia do julgamento será majestoso

Quando o Senhor estava na terra, os homens podiam não tomar


conhecimento dEle. Agora que Ele foi para o céu, os homens podem
ignorá-10 e até negar Sua própria existência. Mas quando Ele vier de
novo para julgar, virá em tamanha majestade que não haverá como
deixar de reconhecer a grandiosidade de Sua pessoa. Ele virá “entre
suas santas miríades, para exercer juízo contra todos...” (Jd 14, 15),
“com os anjos do seu poder, em chama de fogo (i. e., a túnica do Juiz
majestoso), tomando vingança contra os que não conhecem a Deus e
contra os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus”
(2 Ts 1.7, 8). Naquele dia “os céus passarão com estrepitoso estrondo
e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que
nela existem serão atingidos” (2 Pe 3.10). Apocalipse descreve um
“grande trono branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença
54 • IMORTALIDADE

fugiram a terra e o céu”. Os mortos, “os grandes e os pequenos”,


estavam diante do trono e foram julgados pelos livros, de acordo com
suas obras (Ap 20.11,12). Paulo fala de um dia em que todos os homens
comparecerão perante o trono de Cristo para serem julgados (2 Co 5.10;
cf Rm 14.10). O próprio Senhor falou que Ele virá em “majestade”,
com todos os anjos”, sentar-Se-á “no trono da sua glória”, e terá “todas
as nações” reunidas em Sua presença. Então “ele separará uns dos
outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas”. Ele mandará um
grupo “para o castigo eterno” e o outro “para a vida eterna” (Mt
25.31-46). O quanto disso tudo é apenas linguagem simbólica, não
estamos aptos para dizer. Mas o que está claro é que o Juiz é visto como
um personagem m agnífico, como alguém cuja aparência vai
assombrosamente além da descrição, aplicando a justiça final com mão
majestosa. Esse grande dia é confirmado em toda parte, ao longo do
Novo Testamento. Há julgamentos preliminares de Deus em toda a
história. Mas no final haverá o clímax, que procederá dos julgamentos
parciais e preliminares, e cumprirá perfeitamente tudo o que eles
prenunciam.
Encontram-se várias formas de se referir ao dia. Ele é chamado “o
dia de Deus” (2 Pe 3.12), “o dia do Senhor” (2 Pe 3.10), “o dia do Senhor
Jesus” (1 Co 5.5), “o dia de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Co 1.8), “o
dia de Cristo” (Fp 2.16), “aquele dia” (2 Ts 1.10), “o último dia” (Jo
6.39), “o grande dia” (Jd 6), “o dia da ira e da revelação do justo juízo
de Deus” (Rm 2.5), “o dia da redenção” (Ef 4.30), “o dia da visitação”
(1 Pe 2.12), “o grande dia da ira” (Ap 6.17), “o grande dia do Deus
Todo-Poderoso” (Ap 16.14), “o dia do juízo” (1 Jo 4.17). Essa
multiplicidade na maneira de se referir ao dia indica algo do fascínio
que ele exercia sobre os homens do Novo Testamento e também algo
da sua múltipla grandeza.

3 • Cristo, o Juiz

O Pai julga a todos os homens, mas Ele não o faz em pessoa. “Ao
Filho confiou todo o julgamento” (Jo 5.22). Isso acontece especial­
mente no caso do juízo final. Na cena do julgamento em Mateus
25.31-46, o Filho do Homem é o juiz. Pedro nos diz que “ele é quem
foi constituído por Deus Juiz de vivos e de mortos” (At 10.42). Paulo
fala da “coroa da justiça... a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 55

dia” (2 Tm 4.8). Essa verdade é tão básica que foi inserida nos credos
da Igreja: "... e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e os
mortos”; “de onde há de vir para julgar os vivos e os mortos”.
Em todo o Novo Testamento, Jesus aparece como nosso Salvador.
Ele veio à terra com o propósito expresso de aniquilar nossos pecados,
o que significava morrer na cruz. Essa é a nossa segurança de que o
julgamento final será um julgamento de amor. Mas isso não quer dizer
que o julgamento deixa de ser uma realidade implacável. O próprio
amor auto-sacrificial que vemos no Calvário é o mais odioso julgamento
imaginável para uma vida egoísta. Jesus mesmo, imediatamente depois
de dizer “eu não vim para julgar o mundo, e, sim, para salvá-lo”,
continuou: “Quem me rejeita e não recebe as minhas palavras tem
quem o julgue; a própria palavra que tenho proferido, essa o julgará no
último dia” (Jo 12.47,48). Embora Jesus tenha vindo com palavras de
conforto e salvação, ainda assim o homem que se afasta delas irá
considerá-las palavras de condenação no último dia. Esse é o outro lado
da salvação. Tiago nos diz que seremos julgados “pela lei da liberdade”
(Tg 2.12). A mesma liberdade que temos nos condenará, se não
conseguirmos usá-la corretamente.

4 • Todos os homens serão julgados

O julgamento será tal que ninguém poderá escapar dele. Os vivos


e os mortos estão envolvidos (2 Tm 4.1; 1 Pe 4.5); até os anjos estão
incluídos (2 Pe 2.4; Jd 6). “Deus é o Juiz de todos” (Hb 12.23). A
tentação do homem religioso é pensar que ele escapará dessa hora. Ele
pode entender palavras como “Deus julgará os impuros e adúlteros”
(Hb 13.4). Ele pode apreciar a força da máxima de Paulo de que todos
serão julgados: “... todos quantos não deram crédito à verdade; antes,
pelo contrário, deleitaram-se com a injustiça” (2 Ts 2.12). Mas ele gosta
de se considerar imune. É a atitude que T. F. Torrance critica na igreja
medieval: “Aqui o eschaton está domesticado e aninhado de tal forma
dentro da igreja que, longe de estar sob o julgamento final, a igreja o
executa, usando seu poder de ligar e desligar; longe de ser penitente e
reformável, a igreja pode apenas desenvolver-se de acordo com as
próprias normas imanentes que correspondem ao padrão fixo do
reino”.
Mas o Novo Testamento não deixa o homem religioso descansar
56 • IMORTALIDADE

em sua presunção complacente, instigando-o a ficar bem alerta,


insistindo em que ele também está sob julgamento. Considere as
palavras citadas em Hebreus 10.30 (Dt 32.36): “O Senhor julgará o seu
povo”. Isso coloca a questão a uma distância desagradável, muito perto
de casa. E é ainda pior em 1 Pedro 4.17: “Porque a ocasião de começar
o juízo pela casa de Deus é chegada”. Jesus assegura-nos de que pessoas
como os escribas, com pretensões religiosas, “sofrerão juízo muito mais
severo” (Mc 12.40), e Tiago nos lembra de que os mestres cristãos
haverão de receber >‘maior juízo” (Tg 3.1). Jesus nos diz que, no
julgamento, alguns afirmarão: “Senhor, Senhor! porventura, não temos
nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios,
e em teu nome não fizemos muitos milagres?” apenas para receber Sua
sentença: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a
iniqüidade” (Mt 7.22,23). Os que recebem privilégios especiais serão
julgados mais severamente. Como J. V. Langmead Casserley expressa:
“Aqueles que tomam o evjangelho para si mesmos devem viver para a
glória do evangelho ou morrer sob o julgamento dele”. Muito longe de
se livrarem rapidamente do julgamento, os religiosos serão julgados
com maior rigor, exatamente por causa de seus grandes privilégios.
Ignorar isso é menosprezar uma verdade que o Novo Testamento
reitera seguidamente. É interessante notar que as pessoas surpreen­
didas naquele dia não serão os totalmente estranhos, mas aqueles que
se consideram seguros dentro da igreja.

5 • Todas as coisas serão julgadas

O julgamento de que a Escritura fala é aquele em que nada pode


se manter oculto. “Deus há de julgar os segredos dos homens” (Rm
2.16, ARC). O Senhor “trará à plena luz as coisas ocultas das trevas,
mas também manifestará os desígnios dos corações” (1 Co 4.5; cf Mc
4.22; Lc 12.2, 3). Muitos de nós conseguiriamos encarar o julgamento
com tranqüilidade, se pudéssemos nos assegurar de que certas coisas
perm aneceríam ocultas. Mas todas as nossas obras estarão sob
julgamento, e aí está o problema. “Tudo” inclui todos os erros,
pequenos e grandes. “De toda palavra frívola que proferirem os
homens, dela darão conta no dia do juízo” (Mt 12.36). É a natureza de
grande abrangência do julgamento que o torna tão amedrontador. Ao
mesmo tempo, a idéia de que tudo que fazemos interessa a Deus faz
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 57

com que a vida valha a pena. Ela dá dignidade até ao mais insignificante
dos atos, à menos importante das palavras. Até um copo de água fria
oferecido não passará sem ser notado. Devemos também ter em mente
que, em Romanos 2.16, Paulo acrescenta a seguinte expressão às
palavras sobre julgamento citadas acima: “de conformidade com o meu
evangelho”. Julgamento não é nenhum desastre horrível em oposição
ao evangelho. É o cum prim ento da essência da mensagem do
evangelho. Não se pode repudiar ou reprimir o fato de que, para Deus,
tudo na vida é suficientem ente im portante para que Ele tome
conhecimento e exija uma prestação de contas. Isso deve ser bem-vindo.
Faz parte das boas novas.

6 • O julgamento é inevitável

“... aos homens está ordenado morrerem uma só vez e, depois disto,
o juízo” (Hb 9.27). O julgamento é tão inevitável quanto a morte, ou
melhor, até mais, já que o Novo Testamento considera que alguns ainda
estarão vivos na segunda vinda e, portanto, não verão a morte, mas não
visualiza ninguém escapando do julgamento. Para alguns há “certa
expectação horrível de juízo”, mas, com ou sem medo, os homens não
podem escapar dele. Paulo faz uma pergunta retórica: “Tu, ó homem...
pensas que te livrarás do juízo de Deus?” (Rm 2.3; c f Mt 23.33), e não
há dúvida quanto à resposta. Basicamente a idéia remonta a Jesus.
Como J. Jeremias afirma: “A mensagem de Jesus não é só a pregação
da salvação, mas também o anúncio da condenação, advertência e
convite à conversão diante da tremenda seriedade da hora. O número
de parábolas deste grupo é grande, terrivelmente grande. O chamado
ao arrependimento e o tom de urgência percorrem os evangelhos.
Esse aspecto do ensino de Jesus não agrada o homem de hoje.
Portanto, ele simplesmente o rejeita, descartando do pensamento toda
idéia de um juízo final. Ele não se considera envolvido. O Novo
Testamento não participa de seu otimismo irracional. Ele insiste em
que, além e acima do julgamento que sobrevêm inevitavelmente, aqui
e agora, sobre o homem, há um julgamento final em que todos estarão
perante o tribunal de Deus. O julgamento então dispensado terá um
caráter irreversível que nenhum dos julgamentos parciais e preli­
minares dessa terra podem reivindicar.
60 • IMORTALIDADE

9 • O julgamento é sério

O Novo Testamento não deixa a menor dúvida de que o julgamento


que nos espera está carregado das mais amplas conseqüências. Paulo
fala de certas coisas pecaminosas em Romanos 1, e então diz que a
sentença de Deus é que “são passíveis de morte os que tais coisas
praticam” (Rm 1.32; cf “o salário do pecado é a morte”, 6.23). Jesus
falou de alguns que sairiam das sepulturas “para a ressurreição do juízo”
(colocada em contraste com a “ressurreição da vida”, Jo 5.29). O
escritor de Hebreus diz que “se vivermos deliberadamente em pecado,
depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já não
resta sacrifício pelos pecados; pelo contrário, certa expectação horrível
de juízo” (Hb 10.26, 27). Embora possamos estar certos de que a
misericórdia de Deus chega até onde pode chegar, não podemos estar
cegos para o fato de que o julgamento final envolve sérios fatores. O
pecado deverá ser computado como pecado, recebendo sua justa
recompensa.
Para nossa geração, isso é praticamente inacreditável. Parece-nos
axiomático que um Deus de amor liberte todos os homens. Não é isto
que as Escrituras ensinam. E, na verdade, esse ponto de vista acaba
perdendo o que tenta proteger. Como McNeile Dixon nos lembra, “os
bondosos hum anistas do século XIX decidiram aperfeiçoar o
cristianismo. A idéia do inferno feria suas susceptibilidades. Eles o
fecharam, e para surpresa deles a porta do céu também se fechou com
um estrondo melancólico. A face maligna de Satanás os perturbava.
Eles o dispensaram, e no mesmo momento Deus bateu em retirada”.
Se quisermos preservar o fundamento do otimismo cristão, temos de
insistir nas sérias questões envolvidas numa verdadeira doutrina do
julgamento.
Outra crítica contra o ponto de vista a que nos estamos opondo é
que este não leva a sério o significado do amor. Como Aulen nos
lembra, “em última análise, o julgamento de Deus é entendido como
uma expressão do Seu amor, porque o único julgamento realmente
radical do pecado é o amor puro”. O pecado visto como transgressão
da lei de Deus é um assunto sério. Mas, quando os homens desviam-se
do dom que Deus oferece no amor redentor de Cristo, então é
infinitamente pior. O pecado contra o amor é o mais hediondo dos
pecados. Na Bíblia, o quinhão dos definitivamente impenitentes é a
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 61

condenação divina.
Com freqüência, isto se expressa no Novo Testamento nos termos
da ira de Deus. Às vezes, retrata-se a ira atuando no presente (e. g. Rm
13.4, 5), mas este é um conceito basicamente escatológico. É “a ira
vindoura” (hê mellousê orgê, Mt 3.7; hê orgê hê erchomenê, 1 Ts 1.10).
Em Romanos 2, a idéia do dia do julgamento mistura-se com a da ira
vindoura. Na verdade, aquele dia é “o dia da ira” (Rm 2.5). Tenta-se
demonstrar que “a ira” é um processo impessoal no Novo Testamento.
Em minha opinião, essas tentativas são totalmente fracassadas. O Deus
do Novo Testamento não Se recosta na cadeira, deixando as leis
“naturais” provocarem a derrota do mal. Ele Se opõe ativamente ao
mal de todas as maneiras e formas. Sua mão está presente onde quer
que surjam conseqüências desagradáveis p or causa de ações
pecaminosas. Em todo caso, é difícil perceber o significado que se pode
atribuir a um “processo impessoal” (aplicado a atividades morais) num
universo onde Deus é onipresente e todo poderoso. Se Deus é um Deus
moral, certamente tomará atitudes enérgicas em oposição ao mal. A ira
de Deus é uma conseqüência necessária de Sua santidade, retidão e
amor. Juntamente com isso, devemos ter em mente que todo o peso do
julgamento e da ira de Deus caiu sobre Cristo (Rm 3.24ss.; 2 Co 5.21;
1 Jo 4.10). É exatamente no contexto do julgamento que se deve
entender o sacrifício. Se Cristo suportou um julgamento tão pesado,
“como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação?” (Hb
2.3).

10 • Os fiéis podem confiar no julgamento

Embora os fiéis passem pelo julgamento como todo o resto da


humanidade, eles não o enfrentarão da mesma forma. A atitude do
Novo Testamento não é de retraimento covarde, mas de expectativa
numa mistura de alegria e solenidade. Como na frase de P. T. Forsyth,
o julgamento “sempre significa a aurora do reino mais do que a ruína
do mundo”. “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus?”,
pergunta Paulo. “É Deus quem os justifica. Quem os condenará?” (Rm
8.33,34). “Deus não é injusto para ficar esquecido do vosso trabalho e
do amor que evidenciastes para com o seu nome” (Hb 6.10). A
magnífica doxologia de Judas retrata a Deus como “aquele que é
poderoso para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com
62 • IMORTALIDADE

exultação, imaculados diante da sua glória” (Jd 24). João fala do amor
sendo aperfeiçoado em nós “para que no dia do juízo mantenhamos
confiança” (1 Jo 4.17). Sua palavra correspondente a “confiança” é
parrhesia, que literalmente significa “toda a fala”. Isso indica uma
atitude em que as palavras fluem livremente, quando nos sentimos à
vontade. E os cristãos irão se sentir à vontade naquele grande dia, pois
ele marcará o triunfo de seu Salvador no reino do Pai. Por que não se
sentiríam à vontade ao ver Sua vontade perfeitamente realizada?
A d o u trin a do julgam ento final en cerra m uitas verdades
importantes. Ela salienta a responsabilidade do homem e a certeza de
que, por fim, a justiça triunfará sobre todos os erros que são parte
integrante desta vida presente. A primeira empresta dignidade à mais
humilde das atitudes; a última traz calma e segurança àqueles que estão
no auge da batalha. Esta doutrina dá sentido à vida. O conceito grego
da história como um processo cíclico trancava os homens num moinho
onde eles podiam lutar com todas as forças, mas nem deuses nem
homens conseguiam avançar. O conceito cristão do julgamento indica
que a história caminha rumo a um objetivo. O. C. Quick refere-se ao
“ato final de Deus numa comunidade de almas redimidas, num universo
que é ao mesmo tempo um novo mundo e a perfeição do antigo”. O
julgamento preserva a idéia do triunfo de Deus e do bem. É impensável
que o presente conflito entre o bem e o mal possa durar toda a
eternidade. O julgamento mostra que o mal será removido defini­
tivamente, com autoridade e determinação. Ele demonstra que, no fim,
a vontàde de Deus será cumprida com perfeição.
2 Alan B. Pieratt

INTRODUÇÃO

Parece oportuno que o segundo artigo desta coletânea discuta a ira


de Deus, pois as Escrituras nos dizem que ela está sendo reservada para
aquele dia final em que será revelada em fogo flamejante contra os
inimigos de Deus (Ml 4.1; Hb 10.27). Ao levantar esse assunto, R. V.
G. Tasker, teólogo inglês, traz para o primeiro plano algo que tem
recebido pouquíssima atenção nos últimos tempos. É muito mais
simpático e agradável falar do amor e do perdão de Deus do que
contemplar Seu ódio ardente contra o pecado. Entretanto, Tasker
afirma que, ao falar sobre Deus, não se pode ignorar a ira em favor do
amor. Uma das heresias mais antigas da igreja é a crença de que o Deus
cristão só é um Deus de amor, que não pode sentir ou externar emoções
“inferiores”, tais como ciúme ou ira. No segundo século, Márcion criou
uma grande confusão na igreja, afirmando com veemência que todo o
Antigo Testamento devia ser rejeitado como algo não-cristão, porque
proclamava um Deus irado. Ele dizia que esse Deus devia ser diferente
do Deus revelado no Novo Testamento, onde lemos apenas a respeito
do Seu amor. Parece que Márcion negou-se deliberadamente a ver que
a ira e o amor de Deus são encontrados nos dois testamentos. A
fidelidade do amor de Deus é afirmada claramente nas alianças do
Antigo Testamento e vista na paciência com que trata Seu povo
escolhido. Da mesma foi .na, a ira do Senhor é claramente ensinada no
Novo Testamento, tanto por Cristo como por Paulo, e manifestada na
própria cruz.
Aliás, cabe assinalar que, em Cristo, a ira e o amor de Deus se unem,
pois foi Ele quem, por amor, aplacou a ira de Deus, e é Cristo quem,
em ira, colocará em ação a fúria de Deus. Não é à toa que, em
64 • IMORTALIDADE

Apocalipse, Ele é retratado como o cordeiro morto e também como o


leão que ruge (Ap 5.5,6).

Em sua origem, este capítulo apareceu em The Biblical Doctrine o f the Wrath o f God,
publicado na Inglaterra por The Tyndale Press, em 1960. Reproduzido aqui na íntegra
com tradução de Adiei Almeida de Oliveira.
2 R. V. G. Tasker

A IRA DE DEUS

I. A MANIFESTAÇÃO DA IRA DIVINA FORA DO PACTO

O locus classicus da Escritura em relação à manifestação da ira


divina no mundo pagão é Romanos 1.19-32. Nesta passagem, Paulo
insiste em que o mundo não-judeu não pode apresentar a desculpa de
que não conhece a Deus, porque não foi favorecido com a revelação
especial concedida a Israel, não merecendo ser objeto da ira divina.
Porquanto, embora invisível ao olho humano, Deus se manifestou
através das obras da sua criação, e por elas se deduzem “seu eterno
poder e divindade”. É evidente, então, que o poder que fez o sol, a lua
e as estrelas é um poder eterno que possui as qualidades da perfeição e
da divindade. Em sentido real, portanto, o mundo pagão teve
conhecimento de Deus; mas o pecado, inerente em cada filho de Adão,
conduziu o homem à cegueira de não conseguir deduzir deste
conhecimento a obrigação que tinha de glorificar e louvar o Criador.
Como resultado, o seu conhecimento de Deus foi pervertido de tal
modo que, em Efésios 2.12, Paulo pode descrever os pagãos como
estando sem Deus no mundo (atheoi en toi kosmoi), se bem que neste
mundo (este cosmos) o poder eterno de Deus e sua divindade se faziam
mais patentes. Isto se deve ao fato de que, quando os homens mudam
a verdade de Deus que lhes é manifesta, substituindo-a por um falso
conceito do caráter divino, perdem o sentido da diferença fundamental
entre o Criador e a criatura; caem então no pecado cardinal da idolatria
e dão à criatura a adoração que deveria ser dada unicamente ao Criador.
“E assim trocaram a glória de Deus pelo simulacro de um novilho que
come erva” (SI 106.20). Ser idólatra, seja qual for a forma que essa
idolatria tome, é estar debaixo da ira de Deus.
66 • IMORTALIDADE

A entrada do pecado no mundo deveu-se à rebeldia de Adão, que


não aceitou a sua condição de criatura, seu estado de dependência e
submissão à soberana vontade de Deus e ao seu desejo de tornar-se
como D eus. Por conseguinte, a ira de Deus voltou-se para a
humanidade desde então. “Não aflige nem entristece de bom grado os
filhos dos homens” (Lm 3.33); todavia, assim, e só assim, pode ser
vindicada a sua soberania. Um dos principais propósitos dos primeiros
capítulos de Gênesis — embora neles não apareça a expressão “ira de
Deus” — é registrar os juízos divinos e os castigos que Deus se viu
obrigado a infligir para que a sua soberania absoluta e sua justiça
perfeita pudessem ser demonstradas. A sentença de morte pronunciada
contra Adão, a maldição da terra por sua causa e a expulsão de Adão e
Eva do paraíso terrestre são manifestações - por palavras e obras -
da ira divina, sendo, o que é mais importante, reconhecidas como tais
pelos outros escritores da Bíblia. O salmista, por exemplo, quando
medita no fato iniludível da morte, diz: “Pois somos consumidos pela
tua ira, e pelo teu furor, conturbados” (SI 90.7). É “em Adão”, explica
Paulo, que “todos morremos”: “Entretanto reinou a morte desde Adão
até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram à semelhança da
transgressão de Adão”, a saber, sobre aqueles que não desobedeceram
a mandamentos específicos como ele, mas cujos corações, como um dos
resultados da queda de Adão, eram desesperadamente ímpios (Rm
5.14). Os efeitos da maldição pronunciada contra a terra por causa de
Adão, assinala Paulo, permanecerão até a manifestação final dos filhos
de Deus; porque a criação geme, com sinais de frustração, modifica-se
e decai, pois foi sujeita à vaidade por seu Criador (Rm 8.20). Como
comentou R. Haldane: “A mesma criação que declara a existência de
Deus e publica a sua glória, prova também que Deus é o inimigo do
pecado e o vingador dos crimes dos homens, de maneira que a revelação
da ira divina é universal, estendendo-se a todo o mundo, e ninguém
pode alegar ignorância”.1
A expulsão de Adão e Eva do paraíso — como aprendemos em
Gênesis — levou àquela sucessão de males que Paulo enumera como
características da vida humana, em Romanos 1.29, 30. Neste relato
presta-se atenção especial (Gn 1.6) às primeiras etapas da existência
humana até à natureza destruidora do pecado, com o assassinato de
Abel pelas mãos de Caim, a primeira dentre muitas ilustrações bíblicas
da verdade que Tiago expressou com estas palavras: “A ira do homem
A IRA DE DEUS • 67

não p ro d u z a ju stiç a de D e u s” (Tg 1.20); tam b ém alu d e à


intranqüilidade do homem como “fugitivo e errante pela terra” (Gn
4.14) e aos matrimônios incestuosos dos “filhos de Deus com as filhas
dos homens” (Gn 6.1), que constituíram uma violação da ordem moral
que Deus havia estabelecido e que resultou em uma impiedade tão
grande que “se arrependeu o Senhor de ter feito o homem na terra, e
isto lhe pesou no coração” (Gn 6.6), expressão antropomórfica que
manifesta, mediante um vocabulário muito humano, os motivos e
sentimentos divinos que levaram o Senhor do universo a destruir com
água toda a raça humana, com exceção de Noé e outros sete. Dentro da
perspectiva bíblica, este é o exemplo mais significativo da ira divina na
época pré-cristã, uma manifestação tão evidente do juízo de Deus que
não tem paralelo, só podendo ser comparada ao juízo que o Senhor fará
sobrevir aos pecadores no último “dia da ira”. A segunda carta de Pedro
não só leva a nossa atenção a concentrar-se neste paralelo com as
palavras: “... pelas quais veio a perecer o mundo daquele tempo,
afogado em água. Ora, os céus que agora existem, e a terra, pela mesma
palavra têm sido entesourados para fogo, estando reservados para o dia
do juízo e destruição dos homens ímpios” (2 Pe 3.6,7), mas também o
próprio Filho de Deus coloca ambos os juízos um ao lado do outro,
quando diz: “Pois assim como foi nos dias de Noé, também será a vinda
do Filho do homem” (Mt 24.37).
Pareceu possível à misericórdia de Deus um novo início para a
humanidade, depois da salvação de Noé e sua família, e a Escritura dá
a entender que Noé tornou notória a seus contemporâneos uma
revelação pertinente da justiça soberana de Deus, porque este patriarca
da antigüidade é descrito como “pregador de justiça”, em 2 Pe 2.5.
Todavia, o orgulho inerente ao homem levou-o uma vez mais a
esquecer-se da distância existente entre o céu e a terra, ou seja, entre
Deus e o homem, quando este ergueu a torre de Babel. Ludibriando a
misericórdia de Deus revelada na salvação do dilúvio, os homens só
conseguiram provocar novamente a ira divina, que deu lugar à confusão
da linguagem humana e também às numerosas línguas que têm causado
tantos mal-entendidos, constituindo sempre um fator de divisão da raça
humana.
Fica claro, diante destes primeiros capítulos de Gênesis, não só que
a ira de Deus se manifesta especialmente para confundir o orgulho
humano, onde quer que este apareça, e infligir sofrimento e morte
68 • IMORTALIDADE

como justos castigos, mas também que o homem, ao pecar, afunda em


maior pecado e na torrente de miséria e frustração que este sempre traz
consigo. Esta é a verdade que Paulo expõe explicitamente na última
parte do primeiro capítulo da Epístola aos Romanos, à qual devemos
voltar.
Os vários atos de impureza que o apóstolo menciona em Romanos
1.24-27 — alguns deles sendo os mesmos pecados que motivaram a
destruição de Sodoma e Gomorra, “que o Senhor destruiu na sua ira e
no seu furor” (Dt 29.23) —são os efeitos tanto da idolatria, que acarreta
a ira de Deus sobre os homens, como da corrupção inerente ao coração
humano. Nesses versículos, Paulo fala de Deus entregando os homens
a suas “imundícias” e “paixões infames”. Deus opera diretamente neste
processo de declínio moral, embora não seja responsável por esse mal
moral. Faríamos bem em recordar o comentário de Haldane sobre esta
difícil passagem: “Devemos distinguir entre o ato pelo qual Deus
abandona o homem e as terríveis conseqüências desse abandono. O
abandono procedeu da justiça divina, mas as conseqüências, da
corrupção do homem, na qual Deus não tem parte alguma. O abandono
é uma ação negativa de Deus, ou seja: uma negação em agir, na qual
Deus é soberano e Senhor absoluto, pois, não estando obrigado a
conceder a ninguém a sua graça, é livre para retê-la segundo o seu
beneplácito, de maneira que, na retenção da graça, não há injustiça,
chegando um momento em que Deus cessa de contender com o homem
(Gn 6.3).
A razão pela qual se presta tanta atenção, nesta parte de Romanos,
aos pecados de impureza provavelmente reside não apenas no fato de
que estes pecados eram muito corriqueiros no mundo romano, quando
a carta foi escrita por Paulo, mas porque estes pecados se associam mui
freqüentemente com a idolatria. A verdade que se revela é que, quando
o homem degrada ao seu Deus, também degrada a si mesmo, até chegar
a um nível mais baixo do que os próprios animais. Portanto, o apóstolo
a firm a , em R om anos 1.28: “E, p o r hav erem d e sp rez ad o o
conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição
mental reprovável, para praticarem cousas inconvenientes”. Charles
Hodge, parafraseando acertadamente este texto, assim o traduziu, para
ressaltar o jogo de palavras que se verifica no original: “Pelo fato de
eles não terem aprovado a Deus, Deus os entregou a uma disposição
mental que ninguém podia aprovar”.
A IRA DE DEUS • 69

À luz da linguagem usada neste primeiro capítulo da Epístola aos


Romanos, não é satisfatório limitar o significado da “ira de Deus” no
Novo Testamento unicamente às conseqüências que seguem as ações
pecaminosas. Sentimos, por conseguinte, como é imprópria a afirmação
do professor C. H. Dodd, quando diz: “Paulo reserva o conceito da ‘ira
de Deus’ não para descrever a atitude de Deus para com o homem, mas
para descrever o processo inevitável de causa e efeito no universo
moral”2.
“A ira de Deus”, como se tem dito com acerto, “é um ajfectus tanto
quanto um effectus, uma qualidade da natureza de Deus, uma atitude
da mente de Deus diante do mal”.
Em toda esta parte de Romanos é dada ênfase à justiça essencial
de Deus em sua maneira de tratar os pagãos. As manifestações de sua
ira não são arbitrárias, porque Deus não se compraz na morte do ímpio
(Ez 33.11), nem acontecem com nenhum outro propósito que não seja
a vindicação dos seus direitos soberanos como Criador. Os homens
m ereceram plenam ente a m iséria que o pecado lhes acarreta.
“Conhecendo eles a sentença de Deus”, escreve Paulo em Romanos
1.32, “de que são passíveis de morte os que tais cousas praticam, não
somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem”. A
conseqüência está claramente exposta em 2.14,15: a consciência deles
está imersa na corrupção moral a que se entregaram, mas esta
consciência não manchou o sentimento de que são seres morais com
um sentido moral e uma responsabilidade: "... testemunhando-lhes
tam bém a consciência, e os seus p ensam en to s m utuam ente
acusando-se ou defendendo-se”. Isto evidencia que, embora não
tenham recebido a revelação especial de uma lei moral como a que foi
dada a Israel, eles possuem por natureza um conhecimento da diferença
entre o bem e o mal. Em sentido real, “servem eles de lei para si
mesmos; estes mostram a norma da lei gravada nos seus corações,
testemunhando-lhes também a consciência”, por mais que fracassem
em agir segundo os ditames desta consciência.
A verdade essencial da questão está no fato seguinte: se o homem
possui por natureza um sentido moral, fracassou não apenas em
glorificar a Deus e agir de maneira agradável à sua vontade, mas
também se tom ou incapaz de fazer qualquer dessas coisas, devido ao
pecado que se foi acumulando sobre os seus membros. Portanto, os
homens, segundo a expressão de Romanos 9.22, são “vasos de ira,
70 • IMORTALIDADE

preparados para a perdição”. O apóstolo volta a dar testemunho desta


verdade, em Efésios 2.3, onde afirma que ele próprio e seus irmãos na
fé, não fosse a graça de Deus recebida por ocasião da sua conversão,
eram tekna phusei orines: objetos da ira de Deus, por natureza, tanto
quanto os outros. Por parte dos comentaristas modernos tem havido
uma aversão manifesta em dar a esta expressão o seu sentido óbvio e
transparente. Alguns, por exemplo, devido à ausência da palavra Theou
depois de orines têm suposto que Paulo não faz nada mais além de
indicar a propensão dos gentios a violentos ataques de enfado humano.
Esta interpretação não apenas despojaria esta passagem de sua
solenidade óbvia, mas também as palavras em questão pouco ou nada
acrescentariam à oração anterior; e há várias passagens do Novo
Testamento onde a palavra orine parece referir-se claramente à ira de
D eu s, e m b o ra não se m en cio n e a p a lav ra “D e u s”. O u tro s
comentaristas, que reconhecem esta referência como indicando a ira
de Deus, parecem preocupados em suavizar tanto quanto possível o
tom de phusei. Assim, Armitage Robinson interpreta esta expressão
negativamente, convertendo-a em uma paráfrase com as palavras “em
nós mesmos”, ou seja, porque nos faltava a graça divina. Mas a palavra
phusis refere-se, sem dúvida alguma, ao que é inato e arraigado no
homem e não a algo que se deve a defeito causado por condições
especiais ou circunstâncias adversas. Nesta passagem, por conseguinte,
o apóstolo sublinha a constituição essencial do homem decaído, que é
tanto a causa das práticas iníquas a que ele se entrega como o meio pelo
qual estas são persistentemente mantidas. Assim, como em virtude de
sua criação original à imagem de Deus, o homem está dotado de um
sentido moral e do dom da consciência, segundo Paulo afirma em
Romanos 2.14, também por causa da sua natureza decaída ele se acha
inevitavelmente envolto em uma forma de vida que o torna objeto da
ira divina. A conclusão, portanto, é que, sem o evangelho, toda a raça
humana, engendrada a partir da semente de Adão, é teknaphusei orines.
“O desfavor de Deus”, segundo a tradução que Knox faz de Efésios 2.3,
“é nosso direito de primogenitura”.3
A IRA DE DEUS • 71

II. A MANIFESTAÇÃO DA IRA DIVINA NO ANTIGO PACTO

Na última metade do segundo capítulo da Epístola aos Romanos,


Paulo quer demonstrar que os filhos de Abraão, em virtude dos seus
privilégios como povo escolhido de Deus, estavam predispostos a
pensar que tinham o direito de julgar o resto do mundo. Longe de se
verem livres da ira de Deus — herança que contempla todos os filhos
de Adão, logo ao nascerem — eram, ao contrário, objetos especiais
dessa ira. Portador orgulhoso do nome de judeu, confiando na lei
mosaica e no conhecimento superior que tinha das coisas divinas,
consciente de que a sua vocação consistia em ser guia de cegos e luz dos
que se achavam nas trevas, ele era, na verdade, vítima desse
auto-engano que embota e obscurece o sentido da realidade e da
presença do próprio pecado. Parece que o apóstolo, em Romanos
2.16-19, está pensando não apenas nos israelitas de sua época, mas
também nos que viveram no decorrer de toda a história passada de
Israel, história que os denuncia como culpados dos mesmos delitos e
pecados que eles condenavam nos demais povos. Paulo especifica aqui
alguns desses pecados, que podem ser ilustrados detalhadamente, se
recorrermos ao Antigo Testamento.
Apesar de ficarem horrorizados com o delito de roubo, os israelitas
haviam incorrido amiúde no tráfico desonesto e no engano em suas
relações comerciais, “diminuindo o efa e aumentando o siclo, e
procedendo dolosamente com balanças enganadoras” (Am 8.5; Rm
2.21). A despeito do aborrecim ento que professavam contra o
adultério, o pecado de Davi com Bate-Seba é uma triste amostra de que
mesmo o melhor dos israelitas havia cometido o pecado reconhecido
como característica do paganismo e, por haver dado aos inimigos do
Senhor ocasião para blasfemar, Davi incorreu inevitavelmente na ira
divina (2 Sm 12.14). Assim mesmo, Deus havia protestado por meio de
Jeremias que a resposta do povo escolhido à bondade de Deus havia
consistido em converter a mesma prosperidade que lhes havia sido
outorgada em mais um instrum ento de pecado, em uma nova
oportunidade para cometer este odioso pecado:"... depois de eu os ter
fartado, adulteraram, e em casa de meretrizes se ajuntaram em bandos.
Como garanhões bem fartos, correm de um lado para outro, cada um
rinchando à mulher do seu companheiro. Deixaria eu de castigar estas
72 • IMORTALIDADE

coisas, diz o Senhor, ou não me vingaria de nação como esta?” (Jr 5.7-9;
Rm 2.21).
“... abominas os ídolos, e lhes roubas os templos?” acusa Paulo a
seus irmãos de raça. Eles eram culpados de haver roubado a Deus.4 Por
meio do profeta Malaquias, o Senhor denunciou o desleixo com que
eram celebrados os sacrifícios que a lei ritual do antigo pacto exigia:
“Roubará o homem a Deus? Todavia vós me roubais, e dizeis: Em que
te roubam os? Nos dízimos e nas ofertas. Com m aldição sois
amaldiçoados porque a mim me roubais, vós, a nação toda” (Ml 3.8,9;
Rm 2.22). Por mais que se gloriasse na lei de Moisés, o israelita, ao
transgredi-la, desonrava a Deus, que a havia dado na presença de todos
os povos vizinhos: “Tive compaixão do meu santo nome, que a casa de
Israel profanou entre as nações para onde foi” (Ez 36.20-23; Rm 2.23).
O orgulho os impedia de compreender que a circuncisão não podia
oferecer nenhuma segurança aos transgressores da lei. Ela era um sinal
ou selo do pacto; mas, se as obrigações morais impostas pelo pacto eram
descuidadas, a circuncisão não tinha mais valor do que a incircuncisão
(Rm 2.25). Também a filiação à congregação visível de Israel não
subentendia necessariamente a participação no verdadeiro Israel de
Deus, para o que se exigia do crente algo mais do que a observância
minuciosa da letra da lei. Deus pedia uma adoração íntima do coração,
uma devoção que só ele podia reconhecer e cujo louvor só ele podia
outorgar (Rm 2.28,29).
Através das dramáticas perguntas que encerram o capítulo dois de
Romanos, Paulo dirige nossa atenção para o fato de que as pessoas que
se orgulhavam de ser o povo de Deus estavam mais sujeitas à ira divina
do que aquelas que se encontravam fora dos privilégios do pacto divino,
porque “àquele a quem muito foi dado, muito lhe será exigido; e àquele
a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão” (Lc 12.48). O juízo
que deve começar pela casa de Deus (1 Pe 4.17) é, por esta mesma razão,
mais severo e terrível. A tragédia do israelita consistia em que ele se
negava a reconhecer o seu pecado, enquanto estava sempre pronto a
considerar como pecadores todos os outros homens. O estado patético
a que havia chegado a religião de Israel, nos dias de Paulo, é o clímax
do contínuo declínio espiritual descrito no Antigo Testamento.
Ao mesmo tempo em que resume a história de Israel, Paulo parece
perguntar-se por que a decadência moral não podia ser contida, apesar
dos castigos que Deus, em sua ira, havia infligido a seu povo, além do
A IRA DE DEUS • 73

fato de que na lei de Moisés (essa dádiva única de Deus a Israel) havia
sido dada uma grande revelação da ira divina contra o pecado. O
apóstolo diz: “A lei suscita a ira” (Rm 4.15), porque exige perfeita
obediência aos seus mandamentos e, por conseguinte, a sua infração
submete os desobedientes ainda mais às conseqüências da ira divina.
Paulo conclui que a principal razão do fracasso de Israel em conter o
processo de corrupção moral estriba-se em sua reação equivocada à
paciência de Deus, sua compreensão incorreta da misericórdia divina
que, muito freqüentemente, não castigou os pecados do povo na plena
extensão que este merecia. Quando Deus guardou silêncio (SI 50.21),
logo que o pacto foi violado pela iniqüidade de Israel (segundo a lista
de pecados que o salmista enumera nos primeiros versículos do salmo
citado e que são os mesmos que Paulo assinala nesta passagem de
Romanos), os israelitas supuseram equivocadamente que Deus era
como eles: indolente e tolerante para com o pecado. Não conseguiram
entender que a bondade divina, ao dar um prazo para a execução do
castigo em sua totalidade, tinha como único objetivo dar outra
oportunidade para o arrependimento (Rm 2.4): desprezaram “a
riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que
a bondade de Deus” os guiava ao arrependimento. Quantas vezes, ao
conter a sua ira e recordar que eles eram nada mais do que pó,
“tornaram a tentar a Deus, agravaram o Santo de Israel” (SI 78.38-40)!
Não fizeram caso dos profetas que lhes ensinaram que Deus “é
misericordioso, e compassivo, e tardio em irar-se, e grande em
benignidade, e se arrepende do mal” (quer dizer: o Senhor não quer
desencadear, por enquanto, toda a sua ira até o máximo), devendo,
assim, entregar o coração a Deus em uma conversão autêntica (J12.12,
13). “Eles, porém, zombavam dos mensageiros, desprezavam as
palavras de Deus e mofavam dos seus profetas até que subiu a ira do
Senhor contra o seu povo, e não houve remédio algum” (2 Cr 36.16).
Paulo insiste tam bém , tanto quanto o cronista do Antigo
Testamento, em que o abuso das misericórdias divinas, longe de deter
a mão de justiça de Deus, redundará em acúmulo de ofensas que,
finalmente, receberão todo o castigo que merecem. Se os homens não
aproveitarem os convites ao arrependimento que lhes são feitos, se, à
semelhança de Faraó, persistirem em endurecer seus corações e se,
apesar de Deus ter estendido todos os dias a sua mão ao povo rebelde
(Is 65.2), continuarem sendo um povo rebelde, então os seus corações
74 • IMORTALIDADE

endurecidos e impenitentes entesourarão para si mesmos ira para o dia


da ira e da revelação do justo juízo de Deus (Rm 2.5). Este é o único
bem permanente que o ímpio possui, não porque Deus tenha retirado
a sua ira, mas porque ele a quer demonstrar e dar a conhecer o seu
poder no grande “dia da ira”, pois “suportou com muita longanimidade
os vasos de ira, preparados para a perdição” (Rm 9.22).5 Neste
desdobramento final da ira divina, a justiça de Deus será vindicada e o
nome dele glorificado. A bondade de Deus, portanto, jamais pode
assegurar a impunidade dos pecadores; e o abuso que estes fazem dela
deve necessariamente agravar a sua culpa e o seu castigo.
Portanto, a evidência do Antigo Testamento e o estado dos judeus
na época dos apóstolos testemunham em favor da verdade de que
judeus e gentios, igualmente, são objetos da ira divina, da qual só a
salvação trazida por Jesus Cristo lhes poderá livrar, porquanto “não há
justo, nem sequer um” (Rm 3.10). Os que recebem um conhecimento
especial de Deus e são objetos peculiares de seu amor — como
insistiram os profetas — devem também ser objetos especiais da ira
divina, se desprezarem esse conhecimento e pisotearem esse amor: “De
todas as famílias da terra somente a vós outros vos escolhi; portanto eu
vos punirei por todas as vossas iniqüidades” (Am 3.2). Amós prossegue
no capítulo 4 a descrição de algumas das maneiras pelas quais Deus
levaria a efeito a visitação das transgressões de Israel. Assim mesmo,
quando Deus tiver decidido executar a sua ira contra o povo rebelde,
nada que este possa fazer irá detê-la. Ezequiel profetiza a futilidade da
defesa de Jerusalém diante dos exércitos da Babilônia que, naquela
conjuntura, foram o braço executor da ira divina; a queda de Jerusalém
havia sido decretada por Deus, e nada poderia frustrar seu propósito.
Os habitantes de Jerusalém haviam feito preparativos para a defesa,
mas estes não tiveram valor para enfrentar o inimigo; a ira de Deus já
havia predeterminado a sua covardia e a sua derrota: “Tocaram a
trombeta e prepararam tudo, mas não há quem vá à peleja, porque toda
a minha ira ardente está sobre toda a multidão deles” (Ez 7.14). “Se te
iras, quem pode subsistir à tua vista?” (SI 76.7).
Todavia, não deduzamos desta longa história de um povo rebelde
e apóstata que a eleição de Israel como instrumento escolhido dos
propósitos de Deus tenha fracassado. Se não houve base para nenhuma
superioridade arrogante por parte do judeu, tampouco o gentio tinha
algo de que se gloriar. O plano de Deus para a salvação dos seus
A IRA DE DEUS • 75

escolhidos não pode ser frustrado, nem mesmo pela desobediência do


povo eleito, pela arrogância de seus opressores ou por aqueles a quem
Deus chamou para serem instrumentos de sua ira e que se vangloriaram
da sua própria força, apegando-se à honra decorrente dela. Se a ira de
Deus vem sobre o seu próprio povo, também cai sobre os que procuram
impedir a realização da sua vontade concernente a Israel. Um exemplo
marcante desta espécie de intento para frustrar os propósitos de Deus
é o endurecimento de Faraó. Sem dúvida, o endurecimento de Faraó e
o castigo subseqüente que lhe foi imposto foram os meios pelos quais
o poder de Deus tornou-se evidente e o seu nome foi anunciado por
toda a terra (Rm 9.17; Ez 4.16). De maneira semelhante, porque
Amaleque colocou-se no caminho de Israel, quando este subia do
Egito, Saul recebeu a recomendação de ser o ministro da ira vingativa
de Deus: “Castigarei a Amaleque pelo que fez a Israel; ter-se oposto a
Israel no caminho, quando este subia do Egito. Vai, pois, agora e fere
a Amaleque, e destrói totalmente a tudo o que tiver” (1 Sm 15.2, 3).
Quando Saul desobedeceu a este mandamento, perdoando a Agague e
retendo o melhor do despojo, percebe-se que ele incorreu na ira de
Deus: “Como tu não deste ouvidos à voz do Senhor, e não executaste
o que ele no furor da sua ira ordenou contra Amaleque, por isso o
Senhor te fez hoje isto” (1 Sm 28.18). “Por que se enfurecem os gentios
e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os
príncipes conspiram contra o Senhor e contra o seu Ungido, dizendo:
“Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas. Ri-se
aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na sua ira, a seu
tempo, lhes há de falar, e no seu furor os confundirá” (SI 2.1-5).
Quanto àqueles enviados por Deus para executar o seu castigo
sobre Israel, tais como os assírios, o Senhor lhes fala nestes termos: “Ai
da Assíria, cetro da minha ira! A vara em sua mão é o instrumento do
meu furor. Envio-a contra uma nação ímpia, e contra o povo da minha
indignação lhe dou ordens, para que dele roube a presa, e lhe tome o
despojo, e o ponha para ser pisado aos pés, como a lama das ruas. Por
isso acontecerá que, havendo o Senhor acabado toda a sua obra no
monte Sião e em Jerusalém, então castigará a arrogância do coração do
rei da Assíria e a desmedida altivez dos seus olhos; porquanto este disse:
Com o poder da minha mão fiz isto, e com a minha sabedoria, porque
sou entendido; removi os limites dos povos, e roubei os seus tesouros,
e como valente abatí os que se assentavam em tronos” (Is 10.5, 6,12,
76 • IMORTALIDADE

13).
A profecia de Naum, que prediz a destruição de Nínive, capital
assíria, cujos crimes haviam merecido a sua queda, é precedida de um
notável poema introdutório que descreve a manifestação da ira de
Deus: “O Senhor é Deus zeloso e vingador, o Senhor é vingador, e cheio
de ira; o Senhor toma vingança contra os seus adversários, e reserva
indignação para os seus inimigos. O Senhor é tardio em irar-se, mas
grande em poder, e jamais inocenta o culpado; o Senhor tem o seu
caminho na tormenta e na tempestade, e as nuvens são o pó dos seus
pés. Ele repreende o mar, e o faz secar, e míngua todos os rios;
desfalecem Basã e Carmelo, e a flor do Líbano se murcha. Os montes
tremem perante ele, e os outeiros se derretem; e a terra se levanta
diante dele, sim, o mundo e todos os que nele habitam. Quem pode
suportar a sua indignação? E quem subsistirá diante do furor da sua ira?
A sua cólera se derrama como fogo, e as rochas são por ele demolidas.
O Senhor é bom, é fortaleza no dia da angústia, e conhece os que nele
se refugiam. Mas com inundação transbordante acabará duma vez com
o lugar desta cidade; com trevas perseguirá o Senhor os seus inimigos.
Que pensais vós contra o Senhor? Ele mesmo vos consumirá de todo;
não se levantará por duas vezes a angústia” (Na 1.2-9). A ira de Deus
se concentrou em Nínive, “cidade sanguinária, toda cheia de mentiras
e de roubo” (Na 3.1).
De maneira semelhante, quando Habacuque, perplexo, pergunta
como era possível que os caldeus, a quem Deus havia levantado para
castigar Israel, tivessem sido chamados para tal fim, visto que eram
muito mais ímpios do que o próprio Israel, ele recebeu a resposta de
que, a seu tempo, a Caldéia, devido à sua arrogância, sua tirania e
impiedade, também seria castigada, convertendo-se em objeto da ira
de Deus (Hc 2.4). O terceiro capítulo de Habacuque contém um poema
que descreve a marcha de Deus sobre todos os povos para executar a
sua ira: “Na tua indignação marchas pela terra, na tua ira calcas aos pés
as nações. Tu sais para salvamento do teu povo, para salvar o teu
ungido” (Hc 3.12,13).
Outro exemplo impressionante da vingança de Deus contra os
inimigos de Israel é encontrado em Isaías 63.1-6. O profeta vê a Deus
“que vem de Edom, de Bozra, com vestes de vivas cores”, manchadas
com o sangue de seus inimigos. Deus diz a seu povo que só ele é grande
para salvar. A ira de Deus baseia-se em sua justiça: “Sou eu que falo
A IRA DE DEUS • 77

em justiça, poderoso para salvar... dos povos, nenhum homem se achava


comigo; pisei as uvas na minha ira; no meu furor as esmaguei, e o seu
sangue me salpicou as vestes e me manchou o traje todo. Porque o dia
da vingança me estava no coração, e o ano dos meus redimidos é
chegado”.
Estas passagens nos recordam de que, embora o povo de Deus
mereça e receba o castigo de Deus em parte, em sua maneira de tratar
Israel, segundo o pacto, Deus tem o cuidado de abrir caminho (embora
exterminando seus inimigos) para a realização do plano de salvação dos
seus eleitos. O amor de Deus não elimina a sua ira; quando esta se
defronta com o pecado, converte-se em ira santa, através do qual
encontram expressão a sua soberania e a sua justiça. A misericórdia de
Deus não exclui a sua ira, porém impede que esta alcance sua expressão
máxima nas relações com Israel. Em sua misericórdia amorosa, Deus
escolheu a Israel para que este lhe fosse um povo peculiar, o povo da
aliança; esta relação fundamentada no pacto não pode ser abandonada,
enquanto não se estabelecer um novo pacto. Por mais que Israel possa
pecar, é chamado do Egito para ser o filho especial do amor de Deus
(Os 11.1). Samaria, cidade onde Israel morava, não foi jamais
convertida em lugar como Sodoma ou como uma das cidades da
planície: “Como te deixaria, ó Efraim? Como te entregaria, ó Israel?
Como te faria como a Admá? Como fazer-te um Zeboim? Meu coração
está comovido dentro em mim, as minhas compaixões à uma se
acendem. Não executarei o furor da minha ira; não tornarei para
destruir a Efraim, porque eu sou Deus e não homem, o Santo no meio
de ti” (Os 11.8,9).
Contudo, a mais terna das expressões do amor de Deus por Israel,
que o leva a ater-se às relações do pacto e que exige uma limitação de
sua ira santa, talvez seja a que se encontra em Isaías 54.8,10: “... num
ímpeto de indignação escondi de ti a minha face por um momento, mas
com misericórdia eterna me compadeço de ti, diz o Senhor, o teu
R edentor... Porque os montes se retirarão, e os outeiros serão
removidos; mas a minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliança
da minha paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece de
ti”. A mesma verdade é exposta em Miquéias 7.18 com estas palavras:
“O Senhor não retém a sua ira para sempre, porque tem prazer na
misericórdia”.
Podemos resumir esta parte de nosso estudo, dizendo que, sob a
78 • IMORTALIDADE

antiga aliança, tornou-se evidente a natureza do pecado; e os homens


foram obrigados, mediante as manifestações destruidoras do poder de
Deus, a reconhecer que a ação divina frente ao pecado não pode ser
outra senão de ira, a ira justa e santa de um Deus perfeito. O antigo
pacto, contudo, não podia salvar do pecado o homem, nem pôr em
ordem as relações deste com Deus. Mas quando, na revelação dada pela
lei e os profetas, e também por meio dos sinais inequívocos da ira de
Deus no ordenamento providencial dos fatos históricos, Deus se
revelou como absolutamente soberano, perfeitamente santo e justo, o
antigo pacto cumpriu assim a sua missão e abriu-se o caminho para o
estabelecimento da nova aliança. Em outras palavras, quando a verdade
foi compreendida (embora talvez em parte, em muitos casos), como Jó
teve de aprendê-la, na amarga escola do sofrimento — a verdade de
que o homem não deve contender com seu Deus e Criador, que todo
orgulho humano deve se desvanecer na presença de Deus e que o
pecador deve humilhar-se e arrepender-se no pó e na cinza (Jó 42.6)
— então a piedade e a misericórdia infinitas de Deus, a respeito das
quais o Antigo Testamento nos ensina tantas coisas, eclodiram na
história humana de maneira maravilhosa, mediante a encarnação do
Filho de Deus.
Em Jesus, os propósitos amorosos de Deus, revelados no Antigo
Testamento, finalmente encontram cumprimento, note bem, não
abandonando a realidade da sua ira, nem por nenhuma renúncia a seu
desenvolvimento. O Deus que se revela em Jesus Cristo é o mesmo que
desafiou a Jó para que derramasse, se pudesse, o ardor de sua ira, e que,
ao fitar os altivos e soberbos, os humilhasse e abatesse (Jó 40.11,12).
Manifestar rejeição contra o orgulho — que constitui a essência do
pecado do homem — continua sendo uma prerrogativa única de Deus,
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Nossa próxim a tarefa, por
conseguinte, deve consistir de vermos como Jesus Cristo revelou não
apenas a bondade de Deus, mas também sua severidade.

III. A MANIFESTAÇÃO DA IRA DIVINA EM JESUS CRISTO

Já falamos o bastante, neste estudo, para demonstrar agora que a


opinião sustentada por Márcion, no segundo século e, consciente ou
inconscientem ente adotada por certos setores que desejam ser
A IRA DE DEUS • 79

conhecidos como “cristãos”, de que o Antigo Testamento revela apenas


um Deus de ira, e o Novo Testamento apenas um Deus de amor, é
completamente errônea. Ela pode ser refutada por qualquer pessoa
que tenha da Bíblia um conhecimento pouco mais do que superficial, a
menos que se faça uso de uma tesoura da crítica para cortar, aqui e ali,
todos os textos que não se encaixem com as pressuposições dos críticos.
É fato evidente, e bem comprovado, que no Antigo Testamento a idéia
da ira divina nunca sofre menosprezo; mas também é verdade que a
revelação de D eus como Pai am oroso não se lim ita ao Novo
Testamento, embora seja na pessoa e na obra de Jesus Cristo que essa
revelação adquira sua expressão suprema. Poucas descrições do amor
de Deus são mais belas do que as que encontramos no Salmo 103,
especialmente nos w . 8,9: “O Senhor é misericordioso e compassivo;
longânimo e assaz benigno. Não repreende perpetuamente, nem
conserva para sempre a sua ira”. Não obstante, no mesmo saltério lemos
também: “Deus é justo juiz; Deus que sente indignação todos os dias”
(SI 7.11). Por outro lado, um escritor do Novo Testamento, ao falar de
Deus como Pai, enfatiza ao mesmo tempo o seu papel de juiz, diante
do qual os homens devem viver em santo temor (1 Pe 1.17); também
outro escritor do Novo Testam ento, refletindo as palavras de
Deuteronômio 4.24, diz: “... o nosso Deus é fogo consumidor” (Hb
12.29).
Tampouco é no Antigo Testamento apenas que lemos histórias
acerca da repentina destruição que cai como juízo divino sobre os que
querem desbaratar os planos de Deus ou pretendem zombar da sua
misericórdia, histórias como a da matança que as ursas fizeram de
quarenta e dois rapazinhos que zombavam de Eliseu com estas
palavras: “Sobe, calvo; sobe, calvo!” (2 Rs 2.23-2S).6 No Novo
Testamento, Herodes Agripa, assassino do apóstolo Tiago e per­
seguidor de Pedro, foi ferido por Deus “e, comido de vermes, expirou...
por... não haver dado glória a Deus” (At 12.23), explica o texto sagrado;
pelo contrário, vangloriou-se do aparato externo de sua realeza e
aceitou a adulação idólatra dos seus súditos. De maneira parecida,
Ananias e Safira foram castigados com morte repentina, por haverem
tentado ao Senhor, da mesma forma como os israelitas tentaram a Deus
no deserto e foram destruídos pelas serpentes (At 5.9; 1 Co 10.9). Os
dois testamentos registram revelações tanto da bondade como da
severidade de Deus, pois estes dois atributos da natureza divina não
80 • IMORTALIDADE

podem ser separados um do outro. Como escreveu A. G. Hebert: “O


amor de Deus exige como seu corolário a ira de Deus, e isto acontece
exatam ente porque Deus se preocupa com os homens e é seu
verdadeiro Deus. Ele chamou o homem à comunhão consigo, e a recusa
a este convite são a ruína e perdição humanas. O Novo Testamento
enfatiza o amor de Deus e, por isso mesmo, sublinha igualmente a sua
ira. O evangelista apresenta várias vezes o Senhor Jesus Cristo tomado
de ira justa e santa”.7 Estas palavras encerram uma apreciação mais
correta das evidências dos evangelhos do que as que escreveu o
professor C. H. Dodd: “O conceito da ira de Deus não aparece nos
ensinamentos de Jesus, a menos que forcemos alguns elementos das
parábolas de maneira ilegítima”.8
Quando examinamos com cuidado as evidências dos evangelhos,
fica claro que a revelação da ira de Deus em Jesus Cristo constitui
realm ente uma parte im portante do seu ministério profético e
sacerdotal. Como arauto de “palavras de vida eterna”, ele revela a ira
divina chamando os homens ao arrependimento — como João Batista
havia feito antes — com vistas à inevitável ira que há de vir e que se
ab aterá inexoravelm ente sobre tantos quantos não se tenham
arrependido. O fato de que Jesus não ensinou nenhuma doutrina de
salvação universal, mas, pelo contrário, exortou os homens a temerem
o dia final da ira divina, é deduzido claramente de palavras como estas:
“Não temais os que matam o corpo e, depois disso, nada mais podem
fazer. Eu, porém, vos mostrarei a quem deveis temer: Temei aquele
que depois de matar, tem poder para lançar no inferno. Sim, digo-vos,
a esse deveis temer” (Lc 12.4,5). “Ou cuidais que aqueles dezoito, sobre
os quais desabou a torre de Siloé e os matou, eram mais culpados que
todos os outros habitantes de Jerusalém? Não eram, eu vo-lo afirmo;
mas, se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis” (Lc 13.4,
5). Jesus percebia que o que aguardava a geração à qual se dirigia não
era salvação, mas condenação. Ele disse que o juízo seria mais
benevolente para com Tiro e Sidom, cidades pagãs, do que para com as
cidades que haviam presenciado suas poderosas obras e continuado na
incredulidade (Lc 10.14). É digno de nota que Lucas, o evangelista que
D an te cham ou de “scriba mansuetudinis Christi”, discípulo que
escreveu principalmente para os gentios, não teve dúvidas em registrar
todas estas palavras de Jesus. Ademais, ele é o único evangelista que
toma nota das palavras de Cristo anunciando o desastre da destruição
A IRA DE DEUS • 81

de Jerusalém, que estava próxima, como manifestação específica da ira


divina (Lc 21.23).
Uma revelação semelhante da ira divina aparece nas parábolas de
Jesus, especialmente nas que se referem ao juízo de Deus. É verdade
que os detalhes das parábolas não devem ser violentados para serem
convertidos em alegoria fácil; mas alguns comentaristas têm pecado,
talvez por terem se deixado levar pelo conceito oposto: o abandono
completo do.elemento alegórico que parece estar implícito em algumas
delas. Assim, ao falar da Parábola das Bodas, em Mateus 22, o professor
Dodd escreve: “Ver o caráter de Deus no Rei que destrói seus inimigos
é tão ilegítimo como encontrá-lo no caráter do juiz injusto”.9 Todavia,
devemos assinalar que, apesar disso, no final da Parábola do Juiz
Injusto, Cristo deixa bem claro que o juiz não pode ser interpretado
alegoricamente, mas que o argumento implícito estáafortiori. Podemos
parafrasear Lucas 18.6, 7 da seguinte maneira: “O Senhor disse: Ouvi
o que disse o injusto (que, nessa ocasião isolada, parece ter
demonstrado alguma consideração pelo homem). Acaso Deus não fará
justiça (Deus, cujo caráter é tão diferente do caráter do juiz injusto) a
seus escolhidos, que clamam noite e dia?” Na Parábola das Bodas, em
Mateus 22, por outro lado, não nos é oferecida qualquer explicação
parecida; e os ouvintes supuseram naturalmente que, no versículo 7,
Jesus estava pronunciando uma profecia acerca da destruição que se
devia abater sobre a cidade santa, como sinal da cólera divina. “O rei
ficou irado e, enviando as suas tropas, exterminou aqueles assassinos e
lhes incendiou a cidade.”10 Na parábola paralela da grande ceia, em
Lucas, o anfitrião nos é apresentado irado contra os convidados que
recusaram o convite para o banquete (Lc 14.21). Outra parábola, a do
servo injusto, dá ao Senhor oportunidade de dizer que Deus tratará
aqueles que não querem perdoar da mesma forma como o rei desta
história tratou a seu escravo que a ninguém perdoava. Ele mesmo
alegoriza a narrativa: “E, indignando-se, o seu senhor o entregou aos
verdugos, até que lhe pagasse toda a dívida. Assim também meu Pai
celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão” (Mt
18.34,35).
Em segundo lugar, Jesus revela a ira de Deus nas expressões não
dissimuladas de sua própria ira, às quais os evangelistas prestam a
devida atenção em situações concretas do ministério profético do
Salvador. Menção explícita da ira do Senhor é a que se registra em
82 • IMORTALIDADE

Marcos, no relato da cura do homem que tinha a mão ressequida, na


sinagoga, num sábado, onde lemos: “Olhando-os ao redor, indignado e
condoído com a dureza dos seus corações, disse ao homem: Estende a
tua mão” (Mc 3.5). Mateus não apresenta paralelo à primeira parte
desta oração; mas Lucas, que parece seguir mais de perto a Marcos, diz:
“E, fitando a todos ao redor, disse ao homem: Estende a mão” (Lc 6.10;
Mt 12.13).
É Marcos quem várias vezes nos mostra as emoções humanas de
Jesus, embora elas nunca tenham sido meramente humanas, porque
nelas se revela a reação divina às palavras e atos dos homens. Os
comentaristas têm observado que o particípio que expressa o olhar
cheio de ira de Jesus, neste incidente, está no tem po aoristo
(periblepsamenos), enquanto o particípio que indica a pena de Jesus
está no presente do verbo (synlupoumenos), deduzindo que a ira foi
expressa por um olhar fugaz, enquanto o pesar foi permanente.
Contudo, o fato da ira de Jesus nesta ocasião continua de pé. Parece
que ele foi motivado não apenas ao ver que as pessoas que haviam
presenciado o seu milagre procuravam razões “legais” para acusá-lo,
mas também ao contemplar a impotência daquela gente miserável em
compreender que a mera abstenção, o fato de não causar dano a nada
(no sentido legal) não era a interpretação adequada do mandamento
divino de não trabalhar no sábado. Eles permaneceram calados, quando
Jesus lhes perguntou: “É lícito no sábado fazer o bem ou o mal? salvar
a vida ou deixá-la perecer?” (Lc 6.9). Eles não entendiam que, em
determinadas ocasiões, não fazer nada implica de fato em fazer o mal.
Náo curar o enfermo é o mesmo que matá-lo. Como podia Jesus aceitar
uma interpretação do descanso sabático que levava à violação do sexto
mandamento? E certo que os rabinos permitiam a cura de um enfermo
se fosse verificado que a sua vida corria perigo, e os fariseus podiam
muito bem ter pensado que, naquele caso, a vida do homem curado por
Jesus não estava em perigo. Mas parece que nosso Senhor irou-se
exatamente por isso: eles pensavam que podiam decidir quando uma
vida hum ana se achava realm ente em perigo. Isto faz parte da
arrogância que gera o pecado, arrogância que nos cega, impedindo-nos
de ver que nossa vida está de contínuo exposta ao risco e à incerteza e
que não subsistiriamos, senão pela misericórdia de Deus, Senhor e
doador da vida. Foi esta cegueira (verdadeiro sentido de porosis, em
Marcos 3.5) que fez com que Cristo se irasse e entristecesse.
A IRA DE DEUS • 83

Em Marcos 10.14, lemos que “Jesus indignou-se” com seus


discípulos, porque repreendiam os que traziam seus filhos para que ele
os tocasse ou, como diz Mateus, “para que lhes impusesse as mãos, e
orasse” (M t 19.13). A indignação de Jesus nessa ocasião não foi
motivada por razões humanitárias apenas. Jesus indignou-se porque,
com certeza, por trás das palavras de repreensão dos apóstolos, de quem
se aproximavam, escondia-se o seguinte pensamento: “O que merecem
ou o que fizeram estas crianças para se tornarem credoras da bênção
do Mestre? Mais tarde, quando houverem acumulado certa quantidade
de boas obras, elas poderão vir e reclamar com razão uma bênção, mas
não agora”. Era esta maneira de entender a relação dos homens com
Deus que despertou a indignação de Jesus. Os apóstolos estavam
demonstrando que em seu coração eram fariseus perfeitos. Como podia
Cristo deixar de abençoar as crianças, quando, na realidade — segundo
explicou em outra ocasião — elas eram parábolas vivas da verdade
essencial que ele viera proclamar: a verdade de que exatamente porque
o pecado converte o homem em um ser orgulhoso e auto-suficiente, é
necessário um novo nascimento levado a cabo pela atividade criadora
do próprio Deus, antes que o coração humano possa receber o reino de
Deus? O homem precisa receber a salvação, que jamais poderá merecer,
por mais que viva, e precisa recebê-la com a mesma disposição da
criança que aceita o que lhe dão.
Os evangelistas conservaram o testemunho desta indignação de
Cristo diante do fracasso dos discípulos, por entender a verdade
encerrada em Romanos 3.20: “... ninguém será justificado diante dele
por obras da lei”.
Eles também registraram a indignação do Mestre no templo, o que
ocasionou uma clara manifestação da sua justa ira. Nessa ocasião, a
causa da sua cólera foi a torpeza dos fariseus, que confiavam cegamente
nos sacrifícios do templo como meio para assegurarem a continuidade
do pacto e se livrarem da ira vindoura. Eles não conseguiram ver o
caráter temporal do sistema levítico nem conheceram a verdade
afirmada na Epístola aos Hebreus: “É impossível que sangue de touros
e de bodes remova pecados” (10.4). Além disso, o templo havia deixado
de ser “casa de oração para todos os povos” e, a partir do exílio, havia
se convertido no símbolo externo do exclusivismo judaico. Ademais, ele
não era nada mais do que “um covil de ladrões”, segundo palavras do
próprio Jesus (c/. Jr 7.8-11; Mt 21.13), onde os homens pensavam poder
84 • IMORTALIDADE

salvar suas consciências mediante transações fraudulentas dentro da


própria casa de Deus. Jesus, segundo o Evangelho de João, em sua
primeira visita a Jerusalém, “tendo feito um azorrague de cordas,
expulsou a todos do templo, bem como as ovelhas e os bois, derramou
pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas”. Naquela ocasião,
ele não estava sendo levado apenas pelo zelo da casa de Deus — como
seus discípulos acertadamente interpretaram (Jo 2.15, 17) — mas
também se achava cumprindo as palavras de Malaquias 3.1,2, se bem
que o evangelista mencionado não as cita: "... de repente virá ao seu
templo o Senhor, a quem vós buscais... Mas quem pode suportar o dia
da sua vinda? e quem subsistirá quando ele aparecer? Porque ele é
como o fogo do ourives e como a potassa dos lavandeiros”. Nos
evangelhos sinóticos, este é um dos últimos atos proféticos realizados
por Jesus e leva diretamente à sua morte e ressurreição ou, para
expressá-lo teologicamente, à destruição e reedificação do templo do
seu corpo, acerca do qual o relato de João fala de maneira acidental (Jo
2.19-22), que viria a ser o meio pelo qual se tornaria possível uma
adoração mais pura e universal no santuário do coração dos remidos.
Em Marcos e Mateus, este incidente encontra-se também ligado com
a misteriosa maldição da figueira. Israel era como uma árvore plantada
junto a águas copiosas, das quais se podia esperar fruto a seu tempo. No
entanto, Israel não produziu esse fruto, e a sua condição era a mesma
da figueira que Cristo amaldiçoou como símbolo da maldição lançada
sobre Israel. Por sua aparência, ela parecia ter muito fruto, mas na
realidade era infrutífera. Em lugar de produzir frutos dignos de
arrependimento, que lhes teria permitido fugir da ira futura, os judeus,
com seu legalismo pretensioso e a falsa segurança do seu templo,
estavam se tornando credores da maldição divina.
A terceira maneira pela qual Jesus manifestou a ira divina através
do seu ministério profético foi a severidade com que denunciou aqueles
cuja conduta e crenças eram contrárias ao que eles próprios sabiam ser
a vontade explícita de Deus ou que, deliberadamente, rejeitavam a
graça divina que lhes era oferecida na própria pessoa e obra do
Redentor.
Uma de suas repreensões mais severas foi dirigida contra aqueles
que deliberadamente colocavam pedras de tropeço no caminho dos
crentes que não tinham maturidade: “Qualquer, porém, que fizer
tropeçar a um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora
A IRA DE DEUS • 85

que se lhe pendurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho, e fosse


afogado na profundeza do mar” (Mt 18.6). O pecado dos pecados —
disse alguém com razão — é o de levar outras pessoas ao pecado,
especialmente os fracos, os simples, os inconstantes etc. Os fariseus (e
mais tarde os judaizantes, que procuraram roubar dos convertidos de
Paulo a liberdade que tinham em Cristo) foram culpados deste pecado.
Portanto, não é de admirar que algumas das denúncias mais amargas
de Jesus tenham sido dirigidas contra os fariseus; e a série de “ais” que
preenchem Mateus 23 constitui uma descrição aguda e completa da
espécie de conduta pecaminosa que caracteriza os “religiosos e
respeitáveis”. A única conduta de que eles são capazes é esta, pois
perm anecem fundam entalm ente inconversos, sem conhecer o
arrependimento, cegos para o poder do pecado em suas vidas, o qual
continua minando suas intenções e pervertendo suas ações. O conteúdo
de Mateus 23 pode se aplicar não apenas aos fariseus que pela primeira
vez o escutaram, mas a todos quantos foram satirizados por Jesus, como
as n o v en ta e nove pessoas “ju s ta s ” que não n ecessitam de
arrependimento, gente que olha com desprezo os demais, a quem
qualifica de “pecadores”, porque se negam a guardar suas tradições.
James Denney assim resumiu o conteúdo de Mateus 23: “Manter o
povo ignorante da verdade religiosa, seja porque não a vivemos ou
porque não o deixamos vivê-la (v. 13); fazer da piedade um pretexto
para a avareza (v. 14); fazer prosélitos para a nossa facção com a
desculpa de que estamos recrutando homens para o reino de Deus (v.
15); enganar as consciências simples, através dos sofismas da casuística
(w . 16-22); destruir o sentido da proporção nas questões morais,
fazendo da moralidade uma questão de legalismo frio, pelo fato de
todas as coisas poderem ser colocadas no mesmo nível (w . 23ss.); dar
mais importância às aparências do que à realidade; reduzir a vida a um
jogo, a uma comédia que tem tanto de tragédia como de farsa (w.
25-28); voltar a praticar os pecados do passado, enquanto, ao mesmo
tempo, simulam uma piedosa aversão por eles; crucificar os profetas
contemporâneos e construir monumentos aos profetas que sofreram
martírio no passado (w. 29ss.); tudo isto, como uma torrente, enchia de
santa e justa ira o coração de Jesus e provocou a denúncia cortante que
ele fez de seus inimigos”.11
Contudo, os “ais” de Jesus, que falam tão eloqüentemente da ira
de Deus, são dirigidos não apenas aos fariseus e a tantos quantos
86 • IMORTALIDADE

manifestam um espírito farisaico, mas também aos que se orgulham de


seus bens materiais ou de seus dons pessoais, aos que se comprazem
em si mesmos, aos que estão cegos quanto à sua necessidade de
arrependimento e aos que imaginam que sua vida deve ser boa, porque
recebe a aprovação dos seus semelhantes. A ira de Deus, conforme se
depreende de Lucas 6.24-26, sobrevêm aos que se sentem “ricos”,
“abastados” ou que se “riem” ou merecem consideração da parte da
sociedade: “Ai de vós, os ricos, porque tendes a vossa consolação! Ai
de vós os que agora rides! porque haveis de lamentar e chorar. Ai de
vós, quando todos vos louvarem! porque assim procederam seus pais
com os falsos profetas”.
Cristo sabia que esta é a condição em que se encontram todos os
homens por natureza, embora a maioria deles não a perceba. Todavia,
como a sua vinda ao mundo teve por objetivo revelar o amor de Deus,
tanto quanto a sua ira, ele precisava fazer algo mais do que somente
proclamar a trágica sorte que aguarda os incrédulos nas mãos de um
Deus justo e irado contra o pecado. Além de um ministério profético,
Jesus precisava levar a cabo uma obra sacerdotal, uma obra que
implicava em nada menos do que beber o cálice da ira divina até o fim.
Ele bebeu este cálice no Getsêmani e no Calvário, quando Deus “fez
cair sobre ele a iniqüidade de nós todos”. O conhecimento da amargura
desse cálice levou-o a orar: “Meu Pai, se possível, passa de mim este
cálice! Todavia, não seja como eu quero, e, sim, como tu queres” (Mt
26.39). “Agora está angustiada a minha alma, e que direi eu? Pai,
salva-me desta hora? mas precisamente com este propósito vim para
esta hora” (Jo 12.27).
Quando Paulo diz que “Cristo nos resgatou da maldição da lei,
fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar” (G1 3.13) e que
“aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós” (2 Co
5.21), ele está dizendo na verdade que Cristo, embora não tivesse
pecado, experimentou a ira de Deus contra os pecadores, que os
transforma em malditos segundo a sentença de morte da lei divina. Não
vamos supor, desde o início, que, ao beber o cálice da ira, Jesus pensou
que Deus estava irado contra ele. Como podia Deus irar-se contra
aquele de quem havia dito: “Este é o meu Filho amado, em quem me
comprazo” e que se levantou do Getsêmani, dizendo: “Não seja como
eu quero, e, sim, como tu queres”, e que sabia que Deus podia ser
glorificado de maneira suprema tão somente através da paixão de seu
A IRA DE DEUS • 87

Filho amado (Jo 12.31)? Todavia, ele experimentou a miséria, a aflição,


o castigo e a morte que constituem a sorte trágica de todos os pecadores
sujeitos — por serem pecadores — à ira de Deus. Deus é santo e justo,
completamente santo e perfeitamente justo; ele deve, portanto, castigar
os pecadores. Por isso, é lógico ver os cristãos, quando contemplam a
paixão de Jesus, recorrerem às palavras de Jeremias sobre as ruínas de
Jerusalém, toda vez que observam alguma semelhança entre os
sofrimentos do Salvador e a destruição causada pela ira divina mediante
a invasão babilônica de Jerusalém: “Não vos comove isto, a todos vós
que passais pelo caminho? Considerai e vede, se há dor igual à minha,
que veio sobre mim, com que o Senhor me afligiu, no dia do furor da
sua ira” (Lm 1.12).12 Foi o horror de experimentar a completa
separação de Deus, constituindo o estado inevitável e permanente dos
ímpios, que fez ressoar de novo, nas sombras da primeira Sexta-Feira
Santa, o clamor do salmista, saindo dos lábios de Jesus: “Deus meu,
Deus meu, por que me desamparaste?” (SI 22.1; Mt 27.46). Naqueles
instantes, o Salvador bebia até o fim o cálice da ira divina.
O fato de beber do cálice da ira em lugar daqueles a quem ele estava
preparado, constituía parte essencial dos “negócios do Pai” (Lc 2.49)
que Jesus viera realizar. Quando Pedro procurou dissuadi-lo, querendo
impedir a sua vocação, o Senhor falou-lhe em termos tão veementes
que é difícil não entendê-los como expressão da sua santa ira: “Arreda!
Satanás; tu és para mim pedra de tropeço...” (Mt 16.23).
Os que não o aceitam como Cordeiro de Deus, por cujo sacrifício
é perdoada a culpa dos pecadores, escolhem para si a condenação e
distanciam-se da salvação; preferem as trevas à luz, a morte à vida. Tal
é a verdade que Jesus ensinou em muitas ocasiões, segundo nos revela
o Evangelho de João em várias sentenças do Salvador nele registradas,
mas nenhuma delas tão explícita como a de João 3.36: “Quem crê no
Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o
Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus”.
Igualmente severas são as palavras registradas em Mateus 21.44,
quando Jesus refere-se a si mesmo como a pedra angular rejeitada pelos
edificadores, que, todavia, é a pedra principal do novo edifício, novo
templo onde o homem pode encontrar segurança e obter a libertação
da ira divina que se avoluma sobre ele, e acrescenta: “Todo o que cair
sobre esta pedra ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair ficará
reduzido a pó”. Os judeus haviam caído sobre essa pedra; portanto,
88 • IMORTALIDADE

Jesus profetizou que o reino de Deus lhes seria tirado e dado a outro
povo que produzisse os respectivos frutos (c/. Mt 21.43). Não
reconhecer que os atos de Jesus eram, na verdade, um assalto divino à
fortaleza do mal e atribuí-los a algum poder maligno, como haviam feito
os escribas de Jerusalém, constituiu um pecado de blasfêmia contra o
Espírito Santo: “aquele que blasfemar contra o Espírito Santo não tem
perdão para sempre, visto que é réu de pecado eterno” (Mc 3.29). De
igual forma, não reconhecer o que Jesus é, ou seja, o Filho de Deus que
veio proclamar a palavra de Deus e realizar a grande obra divina, fez
que os judeus não pudessem ser considerados filhos de Deus. Eles
demonstravam que eram, antes, filhos do diabo, condenados a morrer
em seus pecados e a receber o castigo preparado para o diabo e seus
anjos (çf. Jo 8.42ss.).
Estas palavras de Cristo são muito severas, porém fazem parte da
revelação de Deus dada a conhecer em Cristo Jesus, tanto quanto as
outras palavras do Mestre que expressam de forma tão maravilhosa o
amor e a misericórdia do Deus que se fez homem. Deixar de lado estas
palavras tão duras e concentrar a atenção unicamente naquelas
passagens dos evangelhos que proclamam a paternidade de Deus é
apresentar um cristianismo debilitado e incompleto, que nunca poderá
fazer o que Cristo planejou que se fizesse com ele e por ele: salvar os
homens da ira que há de vir. Neste sentido queremos citar as palavras
de um escritor que fez a seguinte observação, com a qual estamos de
total acordo: “Os que têm olhos para ver apenas o amor de Deus
desviam seu olhar da doutrina antipática da ira de Deus. Todavia, ao
eliminar a ira — a desgraça — de Deus, eles eliminam também a graça
de Deus. Onde não há temor não pode haver salvação. Onde não há
condenação não pode haver libertação. O amor deve estar baseado
na justiça”.13 Também podemos expressar esta verdade tão vital de
maneira um tanto distinta, dizendo que, ao procurar eliminar o inferno,
precisamos eliminar também o céu, o qual, nas palavras do Te Deum,
Jesus “abriu para todos os crentes”, mediante sua morte e ressurreição.
A ressurreição é a evidência constante de que o sacrifício
sacerdotal de Cristo foi aceito por Deus. O Novo Testam ento
ensina-nos claramente que a boa notícia do primeiro dia da Páscoa não
foi tanto o fato de que um Homem se havia levantado do túmulo, mas
que o sacrifício de Cristo, o verdadeiro Cordeiro pascal, havia recebido
a aprovação divina e que, por conseguinte, todos os que aceitassem
A IRA DE DEUS • 89

aquele sacrifício para si, com fé como meio de salvação, estavam


colocados em uma nova relação com Deus, em um estado não de
desgraça, mas de graça; deixando de ser objetos da ira divina,
convertendo-se em herdeiros da glória de Cristo, como filhos
redimidos. Por isso, os apóstolos proclamam Jesus como aquele “que
nos livra da ira vindoura” (1 Ts 1.10). “Logo, muito mais agora, sendo
justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira” (Rm 5.9).
O crente pode, portanto, esperar com confiança e segurança o dia em
que a ira de Deus será revelada de maneira plena e final, sabendo que
o Senhor “não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação
mediante nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Ts 5.9).
Embora, em maior ou menor grau, a ira de Deus sempre tenha sido
revelada nos juízos de Deus que encontram expressão na ordem
providencial da história humana —tanto de nações como de indivíduos
— continua de pé o fato de que em sua misericórdia ele suporta “com
muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição” (Rm
9.22).
Portanto, visto que a Bíblia o afirma constantemente, deve haver
um dia de juízo final que virá a ser de salvação completa para o crente,
mas também de ira extrema para os ímpios.

IV. A MANIFESTAÇÃO DA IRA DIVINA NA


NOVA ALIANÇA

O Novo Testam ento ensina claram ente que todos quantos


respondem com fé ao evangelho apostólico, colocando-se debaixo da
influência santificadora do Espírito de Cristo, são conscientizados de
uma mudança tão grande operada em suas vidas que as únicas
expressões da linguagem humana para descrevê-la são os conceitos de
“nascimento” e “ressurreição”. Tais pessoas “nasceram de novo”,
“passaram da morte para a vida”. Deus as libertou do poder das trevas
e as transportou para o reino do Filho do seu amor (Cl 1.13). Um
elemento essencial desta experiência de conversão é saber que elas já
não se encontram debaixo da ira, mas sob a graça. Contudo, o Novo
Testamento está longe de afirmar que o cristão encontra-se livre,
automaticamente, de qualquer manifestação da ira divina. A mensagem
neotestamentária declara que o pecador justificado deve converter-se
90 • IMORTALIDADE

em pecador santificado. Ele é chamado a permanecer no amor de Deus.


A diferença essencial entre o crente e o incrédulo é que este,
percebendo ou não o que acontece, está inevitavelmente sujeito à ira
de Deus; o crente, mediante sua contínua submissão ao Espírito Santo,
permanece na graça e escapa dessa ira.
Paulo teve grande cuidado em advertir os cristãos contra o perigo
de cair em uma falsa sensação de segurança. Se eles viviam pela fé em
Cristo, que se havia sacrificado por eles, então se encontravam na
obrigação de se oferecer ao seu Senhor como um sacrifício puro e limpo
de toda cobiça ou imundícia. A contaminação moral demonstraria que
eles não eram filhos de Deus, mas filhos da desobediência, sujeitos à
ira divina (Ef 5.1-6). No entanto, se antes eles eram “trevas” e agora
eram “luz no Senhor”, deviam andar como “filhos da luz”, produzindo
os frutos da luz, que consistem na bondade moral (Ef 5.8,9). Pelo fato
de terem ressuscitado com Cristo, podendo gozar dos benefícios da sua
paixão, eles estavam obrigados a olhar para “as coisas que são de cima...
e mortificar os seus membros sobre a terra”; estes “membros”, segundo
somos ensinados, são principalmente a sensualidade e a avareza, que é
idolatria.14 Paulo acrescenta que, por causa destas coisas, “vem a ira de
Deus [sobre os filhos da desobediência]” (Cl 3.1-6). O fato de não
estarem mais debaixo da lei, mas sim debaixo da graça, não devia
levá-los a se esquecerem de que há uma “lei de Cristo” que deve ser
observada (G1 6.2). O fato de terem se despojado “do velho homem
com os seus feitos” e se “revestido do novo homem” devia levá-los a
lembrar que o novo “se refaz para o pleno conhecimento, segundo a
imagem daquele que o criou” (Cl 3.9-11). É certo que, como disse Paulo
aos fiéis de Tessalônica, “Deus não nos destinou para a ira, mas para
alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo”, e isto mesmo
constitui uma razão que os impulsiona a responder ao chamado que se
lhes faz para serem sóbrios, vestidos com “a couraça de fé e amor,
tomando como capacete, a esperança da salvação” (1 Ts 5.8,9).
Muitos dos cristãos de Corinto não conseguiram compreender, a
princípio, que o cristianismo era algo muito diferente das religiões de
mistério tão populares entre os gregos. Não se tratava de uma opus
operatum que lhes daria uma segurança mecânica e permanente. Os
que estavam “em Cristo”, sendo membros do novo Israel e filhos da
nova aliança, não se encontravam livres da obrigação de ocupar-se e
preocupar-se com as questões relativas à conduta moral. Porquanto,
A IRA DE DEUS • 91

embora fosse certo que tudo lhes era lícito, também era verdade que
nem tudo lhes convinha. Em seu intento de fazê-los ver claramente
todas estas questões, o apóstolo Paulo recordava os seus leitores do
trágico destino que havia sofrido a maioria dos israelitas durante a
viagem do Egito para Canaã. Ao agir assim, Paulo coloca em relevo o
fato de que o Deus com que os antigos israelitas precisavam haver-se
era o mesmo Deus que havia convertido esses cristãos coríntios em uma
parte do novo Israel, estabelecendo com eles uma nova aliança
inaugurada pelo sangue de Jesus. A história do antigo Israel não foi
escrita como sim ples tem a de interesse p ara os am antes de
antigüidades, mas por ser um registro inspirado por Deus, que contém
a palavra de Deus adequada para seu povo em todas as épocas. “Estas
cousas”, escreve Paulo, “lhes sobrevieram como exemplos, e foram
escritas para advertência nossa, de nós outros sobre quem os fins dos
séculos têm chegado” (1 Co 10.11). Foram fatos históricos com um
significado único, porque neles o Deus vivo operou para revelar à
humanidade os elementos essenciais da sua natureza.
Estes israelitas do passado, recorda Paulo aos coríntios, foram um
povo privilegiado, não menos que os cristãos. Eles estavam “todos sob
a nuvem” da proteção divina. Eles também tiveram um salvador e
experimentaram uma salvação, embora houvessem sido remidos da
escravidão no Egito e tido o privilégio de serem conduzidos por Moisés,
um homem a quem Deus dotara de poderes sobrenaturais. Também
eles tinham seus sacramentos, porque foram alimentados com o pão
que descia do céu e beberam da água viva da rocha. Não obstante, eles
mui freqüentemente foram visitados de forma devastadora pela ira
divina. “Entretanto”, diz a Escritura, “Deus não se agradou da maioria
deles, razão por que ficaram prostrados no deserto” (1 Co 10.5).
No relato que o Antigo Testamento faz de todos os exemplos
apresentados por Paulo, em 1 Coríntios 10.1-10, torna-se explícita a
menção da ira de Deus sobre Israel. Lemos que o Senhor enviou
codornizes do mar, em resposta ao desejo de comer carne demonstrado
pelos israelitas: “Estava ainda a carne entre os seus dentes, antes que
fosse mastigada, quando se acendeu a ira do Senhor contra o povo, e o
feriu com praga mui grande” (Nm 11.33). Quando Arão levantou o
bezerro de ouro e disse: “São estes, ó Israel, os teus deuses, que te
tiraram da terra do Egito”, e “o povo assentou-se para comer e beber,
e levantou-se para divertir-se, disse o Senhor a Moisés: ...o teu povo,
92 • IMORTALIDADE

que fizeste sair do Egito, se corrompeu... Tenho visto a este povo, e eis
que é povo de dura cerviz. Agora, pois, deixa-me; para que se acenda
contra eles o meu furor, e eu os consuma” (Êx 32.4,6,7,9,10). Quando
“começou o povo a prostituir-se com as filhas dos moabitas, estas
convidaram o povo aos sacrifícios dos seus deuses; e o povo comeu,
inclinou-se aos deuses delas... a ira do Senhor se acendeu contra Israel...
os que morreram da praga foram vinte e quatro mil” (Nm 25.1, 3, 9).
Quando Israel provou a paciência de Deus e murmurou contra Arão e
Moisés, dizendo: “Por que nos fizestes subir do Egito, para que
morramos neste deserto?”, a ira do Senhor (embora esta expressão não
apareça explicitamente no texto) manifestou-se na praga das serpentes
abrasadoras, até que, graças à intercessão de Moisés, eles foram
libertados por meio da serpente de bronze que funcionou como meio
de graça salvadora de Deus (Nm 21.5-8). Quando, depois que a terra
tragou Coré, Datã e Abirão, líderes de uma rebelião contra os
dirigentes que o próprio Deus havia constituído, a congregação de
Israel murmurou de novo contra Moisés e Arão, e “falou o Senhor a
Moisés, dizendo: Levantai-vos do meio desta congregação, e a
consumirei num momento; então se prostraram sobre os seus rostos.
Disse Moisés a Arão: ...vai depressa à congregação, e faze expiação por
eles; porque grande indignação saiu de diante do Senhor; já começou
a praga” (Nm 16.44-46). Paulo deduz destas referências, as quais cita
em 1 Coríntios 10, que as mesmas espécies de penalidades que o antigo
Israel havia sofrido, cairão sobre o» cristãos, se eles pensarem que se
acham livres de toda insegurança: “Aquele, pois, que pensa estar em pé
veja que não caia” (1 Co 10.12). Sem dúvida, os cristãos de Corinto
vangloriavam-se de já não serem pagãos nem profanos. Mas o apóstolo
lhes traz à lembrança que as divisões que há entre eles são sinais de que
ainda há sacrilégio neles. Eles estão profanando o templo no qual Deus
agora se digna habitar; e Paulo os adverte, não de maneira incerta, de
que “se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque
o santuário de Deus, que sois vós, é sagrado” (1 Co 3.17).
É digno de nota que a Epístola aos Hebreus chama atenção
também para os castigos que a ira divina infligiu a Israel durante sua
travessia pelo deserto. Como resultado de persistente desobediência
dos israelitas, o autor recorda a seus leitores, citando o Salmo 95, que
Deus jurou “em sua ira” que eles não entrariam no seu descanso na terra
para a qual se dirigiam. Embora este repouso continue sendo uma
A IRA DE DEUS • 93

esperança para os filhos do novo pacto, a oportunidade de obter suas


bênçãos pode ser perdida para sempre, no caso de apostasia, conforme
o perigo em que se encontravam os leitores da referida carta (Hb 3.7-12;
4). O perigo de cair nas mãos do Deus vivo, que é “fogo consumidor”,
torna-se algo tão real na vigência da nova aliança como o fora na
da antiga (cf. Hb 10.31; 12.29).15
Quando Paulo faz seus leitores se lembrarem de maneira tão
enfática do perigo em que se achavam, parece que ele proclama não
apenas uma verdade evidente no Antigo Testamento, mas também se
refere a algo que conhece por experiência própria, como cristão.
Devido a estas contínuas advertências que ele faz a seus irmãos, se não
for por outro motivo, parece que devemos estar todos de acordo com
os intérpretes que asseguram que a dramática descrição da sua luta
íntima em Romanos 7 é um testemunho da experiência pessoal de
Paulo desde sua conversão e não anterior a ela. Nos dias que
precederam a sua conversão, embora já separado por Deus, desde o
ventre da sua mãe, para a grande tarefa que lhe estava reservada (G1
1.15), Paulo encontrava-se debaixo da ira divina. Todavia, longe de
perceber isto, ele pensava ser um fariseu irrepreensível (Fp 3.6), cheio
de zelo por Deus. Ele havia guardado a letra estrita da lei; no entanto,
tal lei nunca havia influenciado realmente as motivações internas da
sua conduta, mas apenas alimentava as chamas do seu orgulho. Não
obstante, ele fora feliz em sua auto-justificação, pois supunha
alegremente que estava fazendo a vontade de Deus, durante aquele
período de tempo. Quando, pois, ele olhava para trás, para aquela época
de sua vida que havia culminado no supremo pecado de perseguir a
igreja de Deus (1 Co 15.9), sob o engano de pensar estar fazendo a obra
de Deus, ele podia dizer: “Outrora, sem a lei, eu vivia” (Rm 7.9). O sinal
característico do homem não-regenerado é que ele acha que está
completamente vivo, quando, de fato, está espiritualmente morto. Ele
supõe que é objeto de amor de Deus, quando, na realidade, é objeto de
sua ira. Em resumo, ele não tem idéia da extrema gravidade de sua
situação. Todavia, depois de sua conversão, Paulo viu com clareza que,
até então, ele não havia sido nada mais do que um pecador o tempo
todo, necessitado de uma salvação que não pudera alcançar por si
mesmo. Mas agora que a salvação havia lhe chegado pela misericórdia
de Deus, ele estava consciente da luta moral como nunca antes. Até
aquele momento, ele havia sido inteiramente “carnal”, alheio às
94 • IMORTALIDADE

influências do Espírito Santo e, portanto, não havia conhecido a luta de


um “ego” dividido. Entretanto, como cristão, ele se torna bastante
consciente dessa luta, passando a saber que duas forças operam dentro
dele; uma “carne” que ainda é muito ativa e um “eu” mais alto, um “eu”
de tal maneira influenciado pelo Espírito divino que agora sua mente
é sensível às coisas de Deus, odiando o pecado e deleitando-se na lei
divina. Entre esta “carne” e este “eu” há um conflito perpétuo; mas a
vitória, potencialmente, está com o “eu”, pois o “eu” já não é só “eu”,
mas, como Paulo declara em Gálatas 2.20, “já não sou eu quem vive,
mas Cristo vive em mim”. Como resultado da conversão de Paulo, R.
Haldane afirmou acertadamente: “O pecado foi deslocado do seu
domínio, mas não da sua morada”.16
Quando, pois, Paulo exclama: “Desventurado homem que sou!
quem me livrará do corpo desta morte?”, ele pode afirmar em seguida:
“Graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor” (Rm 7.24,25). Contudo,
o fato de a luta moral prosseguir, mesmo depois de ele ter sido libertado
do domínio do pecado, é algo que o apóstolo afirma mui claramente,
ao acrescentar depois do seu grito de libertação estas palavras: “De
maneira que eu, de mim mesmo, com a mente sou escravo da lei de
Deus, mas, segundo a carne da lei do pecado”. A intenção de alguns
e ru d ito s, com o M offatt, de sim plificar to d a esta passagem ,
transportando a segunda metade do v. 25 para o final do v. 23, para que
possa se harmonizar com a interpretação que supõe que Paulo está
descrevendo a luta anterior à sua conversão, não tem apoio nos
manuscritos; por outro lado, esta interpretação não concorda com o
ensinamento de Paulo nos outros escritos seus. Por conseguinte, deve
ser rejeitada como arbitrária e improvável. Como acertadamente disse
Karl Barth, referindo-se a Romanos 7: “O que Paulo explica nesta
passagem foi m uito bem com preendido pelos reform adores;
entretanto, não o entendem esses teólogos modernos que o lêem com
as lentes da sua própria piedade... Que grande abismo separa a atitude
arrogante de herói conquistador, muito característica do século XIX,
da que tiveram os homens que chegaram a desprezar a si mesmos, o
que é característica da verdadeira religião!”17
Já vimos que no antigo pacto aqueles que pretenderam evitar os
propósitos de Deus e frustrar os seus planos para a salvação dos seus
escolhidos tiveram de enfrentar’a ira divina e os desastres dela
resultantes. Paulo manifesta a mesma certeza de que a ira divina
A IRA DE DEUS • 95

descerá também sobre os que, como ele diz em 1 Tessalonicenses 2.15,


“mataram o Senhor Jesus e os profetas, como também nos perseguiram,
e não agradam a Deus, e são adversários de todos os homens, a ponto
de nos impedirem de falar aos gentios para que estes sejam salvos”. A
ira do Senhor cairá sobre eles, a fim de, como diz Paulo, “irem enchendo
sempre a medida de seus pecados”. Mais de uma vez é afirmado na
Bíblia que Deus adia o desencadeamento da sua ira até que os
pecadores tenham alcançado certo grau de saturação iníqua, além do
qual Deus não deseja que prossigam. Assim, em Gênesis 15.16,
adverte-se a Abraão de que a iniqüidade dos amorreus não havia
chegado a seu ponto máximo. Da mesma forma, o Senhor disse aos
fariseus de sua época que eles deviam encher a medida da iniqüidade
de seus pais, antes que recebessem o juízo do inferno, do qual não
poderíam escapar (Mt 23.32,33). Deduz-se, segundo 1 Tessalonicenses
2.16, que o tempo a que Jesus se referia já havia chegado nos dias do
apóstolo: “A ira, porém, sobreveio contra eles, definitivamente”. A
destruição de Jerusalém pelos exércitos de Tito culminaria esse
processo. As palavras de Paulo se cumpriram nessa época, embora não
completamente, quando a cidade santa foi assolada em 70 A. D. Aquele
dia foi um dia de ira, como Jesus especifica em Lucas 21.23, em cujo
texto, depois de profetizar o cerco de Jerusalém, ele acrescenta:
“Haverá grande aflição na terra (a terra da Palestina), e ira contra este
povo (o povo judeu)”. O lugar em que se encontra esta profecia da
destruição de Jerusalém , em Lucas 21, dentro de um âmbito
escatológico mais amplo, torna evidente que Cristo considerou esse
acontecimento como precursor do último dia da ira, quando ele mesmo
voltará para executar o juízo final. Consideraremos em seguida a
revelação bíblica concernente a esse dia.

V. O DIA FINAL DA IRA

A expressão “o dia úo Senhor”, tão comum na época dos grandes


profetas de Israel, significava para os israelitas o dia final em que Jeová
vindicará a justiça do seu povo contra seus inimigos. Uma das tarefas
dos profetas era insistir no fato de que “o dia do Senhor” seria uma
oportunidade em que Deus vindicaria “a sua própria justiça”, não
apenas diante dos inimigos de Israel, mas também contra o próprio
96 • IMORTALIDADE

Israel. Esse “dia do Senhor” aparece sempre no Antigo Testamento


como uma realidade futura, se bem que houve acontecimentos na
h is tó r ia q u e a b ra n g e esse re g is tro in s p ira d o q u e fo ram
verdadeiramente dias de juízo para Israel e os povos vizinhos que o
oprimiam.
A certeza deste último “dia do Senhor”, quando a absoluta justiça
de Deus será completamente vindicada e o furor da sua ira, livre de
impedimentos, passa para o Novo Testamento. E este é um dos fatores,
entre outros, que dão unidade à teologia bíblica. Resta, todavia, uma
“ira vindoura”, quando João Batista apresenta a sua mensagem,
inaugurando a era do cumprimento assinalada no Antigo Testamento,
um cumprimento que, no entanto, não será realizado completamente
antes da segunda vinda de nosso Senhor Jesus Cristo; porque resta ainda
uma “ira vindoura”, quando o Novo Testamento termina com as
palavras: “Vem, Senhor Jesus!”.
O principal propósito da missão de João foi capacitar seus
contem porâneos a escaparem da ira final; com esse objetivo
apontava-lhes Cristo como o Cordeiro de Deus, por cujo sacrifício
expiatório seriam tirados os pecados do mundo (Mt 3.7; Jo 1.29).
Contudo, este Cordeiro de Deus também está destinado a ser, como
afirma João 5.22, o agente divino do juízo final: “E o Pai a ninguém
julga, mas ao Filho confiou todo o julgamento”. Por esta razão, o “dia
do Senhor” — ainda esperado quando se encerra o Antigo Tes­
tamento18 — “o dia da ira e do justo juízo de Deus”, como Paulo o
chama em Romanos 2.5, no Novo Testamento é sinônimo do dia da
volta de Jesus, o divino Filho do homem, em glória. Um elemento
essencial da salvação experimentada pelos que se encontram na nova
aliança é a espera alegre e anelante da gloriosa aparição do Senhor e
Salvador. Paulo assegura aos tessalonicenses que, se eles p er­
manecerem fiéis, gozarão naquele dia a completa libertação da ira que
será manifestada (c/. 1 Ts 1.10). Deus, que os chamou (Rm 8.28-30),
não os destinou à ira, mas à salvação final por meio do Senhor Jesus
Cristo (çf. 1 Ts 5.9). Os que eram perseguidos, quando Paulo escrevia
sua carta, mas permanecessem fiéis, apesar da perseguição, receberíam
o “alívio... quando do céu se manifestar o Senhor Jesus com os anjos do
seu poder” (2 Ts 1.7). Todavia, por outro lado, aqueles que não
obedeceram ao evangelho de Jesus e não conheceram a Deus terão de
enfrentar aquele dia como um dia de ira, no qual “sofrerão penalidade
A IRA DE DEUS • 97

de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu


poder” (2 Ts 1.9).
No Novo Testamento, por conseguinte, o dia final do juízo pode
ser chamado não somente de “dia do Senhor”, mas também, como é
denominado em Apocalipse 6.17, “dia da ira” (“a ira de Deus e do
Cordeiro”), em completo paralelismo com o Antigo Testamento. O
Apocalipse de João ensina que, por ter Cristo, em sua paixão expiatória,
bebido pessoalmente o cálice da ira preparado para os pecadores, ele
também é o agente divino através do qual a ira de Deus será finalmente
manifestada. Esta parece ser a razão principal pela qual se admoesta os
crentes a não se vingarem por si mesmos. Se eles o fizessem, ususpariam
uma função que pertence exclusivamente a Deus, e que será executada
pelo seu Cristo. Contudo, enquanto aquele dia não chega, os que
exercem autoridade legítima nos governos do mundo e se opõem
leg itim am en te ao m al, castigando os tran sg resso res, podem
considerar-se, em certo sentido, ministros de Deus, pois através deles
se manifesta, embora de modo parcial, o ministério da ira divina (Rm
13.4).
Quando Paulo, em Romanos 12.19, adverte os cristãos: “Não vos
vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira; porque está escrito:
A mim me pertence a vingança; eu retribuirei, diz o Senhor”, está se
referindo, sem dúvida, à manifestação da ira divina em sua eclosão final
no dia de juízo. A presença do artigo definido neste versículo, antes da
palavra “ira”, e o fato de que Paulo termina a sua advertência com a
menção de Deuteronômio 32.35 — “a mim me pertence a vingança, eu
retribuirei, diz o Senhor” — corrobora nossa interpretação de que esta
passagem se refere à ira divina, sem sombra de dúvida.
Virá o dia em que, segundo Apocalipse, o Senhor ressurreto e
glorificado abrirá os selos do livro divino dos destinos, no qual estão
escritos os juízos do Deus Todo-poderoso. O Cristo ressurreto é o único
digno de abrir este livro, porque é, ao mesmo tempo, o Cordeiro que
foi imolado e o Todo-poderoso Leão da tribo de Judá que, com seu
sangue, comprou para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação
(c/. Ap 5.9). O fato de que o Cordeiro é, ao mesmo tempo, o Leão
aumenta o aspecto terrível da sua ira, quando ele abre os selos do livro
e desencadeia os últimos ais e pragas que marcarão o fim. Todos
quantos tiveram alguma responsabilidade nos problemas da huma­
nidade, mas agiram de maneira contrária aos propósitos de Deus, se
98 • IMORTALIDADE

esconderão da ira do Cordeiro naquele dia, segundo a viva e terrível


descrição de Apocalipse. Swete comentou acertadamente Apocalipse
6.16: “O que os pecadores temem não é a morte, mas a revelação da
presença de Deus... H á uma profunda psicologia — acrescenta ele —
na observação de Gênesis 3.8: ‘Esconderam-se da presença do Senhor
Deus, o homem e sua mulher”’. O mesmo autor prossegue: “Apocalipse
prevê uma fuga semelhante da presença do Senhor, por parte da última
geração da raça, da mesma forma como a que ocorreu no princípio, na
queda dos pais da humanidade. Na ocasião final, porém, haverá outro
motivo de terror: junto com a revelação da presença de Deus será
manifestada a ira do Cordeiro”.19
O Santo Cordeiro de Deus, mediante seus anjos, lançará sua foice
à terra, vindimará a videira da terra (chamada assim por ser fruto de
uma videira, em contraste com a verdadeira videira, cujos ramos
produzem fruto para Deus) e lançará as uvas no grande lagar da cólera
de Deus (Ap 14.19). Cristo é a Palavra de Deus, o Rei dos reis, o Senhor
dos senhores, que ferirá e regerá com vara de ferro as nações, e pisará
o lagar do vinho do furor e da ira do Deus Todo-poderoso (Ap 19.13,
15,16). É ele, Jesus Cristo, quem dará de beber aos povos o vinho que
essa videira produz, o vinho mortal da ira de Deus. Todos os que
houverem adorado a besta ou qualquer outro substituto do verdadeiro
Deus, e todos quantos houverem perseguido o povo de Deus, “beberão
do vinho da cólera de Deus, preparado, sem mistura, do cálice da sua
ira” (Ap 14.10). Em 15.7 é utilizada uma metáfora um tanto diferente.
Aos sete anjos são dadas sete taças de ouro cheias da ira de Deus para
que derramem seu conteúdo sobre a terra. Por meio destas figuras e
símbolos, o livro de Apocalipse ensina, sem deixar dúvidas, o último e
completo derramamento da ira divina sobre o mundo.
Os vinte e quatro anciãos, que representam a igreja de Deus, são
apresentados em atitude de louvor e adoração ao Senhor, porque ele
vingou de maneira absoluta e suprema a sua justiça e porque a ira divina
demonstrou ser mais forte do que o vão rugir das nações. Assim, os
servos de Deus, os profetas e os santos, tanto grandes como pequenos,
recebem seu galardão {cf. Ap 11.18). Porquanto, por grandes e terríveis
que sejam os desastres que sobrevenham à terra, quando os vasos de
ira são esgotados, eles não alcançarão os servos de Deus, cujas testas
estão seladas com o bendito nome do seu Redentor e cujos nomes estão
escritos no livro da vida do Cordeiro (cf. Ap 7.3; 3.5). Para os redimidos,
A IRA DE DEUS • 99

está reservado um paraíso muito mais sublime do que aquele que Adão
perdeu, lugar de inefáveis bênçãos onde eles verão e adorarão a Deus
e gozarão eternamente da sua presença.
razão por que se acham diante do trono de Deus e o servem de
dia e de noite no seu santuário; e aquele que se assenta no trono
estenderá sobre eles o seu tabemáculo. Jamais terão fome, nunca mais
terão sede, não cairá sobre eles o sol, nem ardor algum, pois o Cordeiro
que se encontra no meio do trono os apascentará e os guiará para as
fontes da água da vida. E Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima”
(Ap 7.15-18).

NOTAS DO CAPÍTULO

1. Robert Haldane, The Epistle to the Romans, p. 55.


2. C. H. Dodd, The Epistle to the Romans, p. 23.
3. “Os pagãos não serão julgados por uma revelação que não conheceram.
Contudo, como têm uma revelação do caráter de Deus nas obras da criação (Rm 1.19)
e da regra do dever em seus próprios corações (Rm 2.14,15), são indesculpáveis. São
tão impotentes para justificar-se mediante a norma que lhes há de julgar, como nós de
cumprir a norma mais severa pela qual seremos julgados, nós que já conhecemos a
revelação especial de Deus. Ambos, portanto, necessitamos de um Salvador (Rm
2.12)”. Charles Hodge, A Commentary on the Epistle to the Romans, p. 89.
4. Paulo não acusa os judeus de idolatria, porque, desde o exílio, a idolatria em
sua forma mais grosseira se havia tornado algo cada vez mais desprezível aos israelitas.
Todavia, no Antigo Testamento, a idolatria — particularmente o culto a Baal — havia
provocado mais de uma vez a ira do Santo de Israel (cf. Dt 32.16,21; 29.24-28).
5. N este versículo, o particípio thelon é causativo e não concessivo.
6. Para uma interpretação cuidadosa deste texto tão mal compreendido,
remetemos o leitor à obra de John W. Wenham, O Enigma do Mal, pp. 129-131.
7. The Authority o f the Old Testament, p. 252.
8. The Epistle to the Romans, p. 23.
9. The Epistle to the Romans, p. 23.
10. Muitos comentaristas críticos da atualidade consideram esta passagem um
vaticinium p o st eventum; contudo, incluída na suposição de que aceitamos esta crítica
tão subjetiva, continua de pé e digna de ser considerada a convicção de que o
evangelista que fez esta “inserção” não parece ter verificado qualquer incongruência
na identificação do rei irado da parábola com o próprio Deus.
11. Dictionary o f Christ and the Gospels, p. 61.
12. É claro que é infinita a distância existente entre a dor experimentada por
Cristo, ao fazer a expiação do pecado, e a sofrida por Jerusalém, ao ser destruída pela
Babilônia. N o entanto, o autor quer sublinhar aqui a origem idêntica de ambos os
sofrimentos; a ira de D eus que fulmina o pecado (nota do tradutor).
100 • IMORTALIDADE

13. F. C. Synge, The Epistle to the Ephesians, p. 46.


14. Um a possível explicação da identificação que Paulo faz da “avareza” como
“idolatria” é a que nos dá E. F. Scott: “Provavelmente a verdadeira explicação deve ser
procurada no modo hebraico de falar, que sobrecarregava a gravidade de uma ofensa
por meio da sua identificação com outra que todo mundo conhecia como tal” (Epistle
to the Colossians, Moffatt Commentary, p. 67). Sem dúvida, também pode ser que Paulo
tenha querido dizer que a riqueza, o poder, a influência e as demais coisas que a cobiça
leva o homem a desejar tendem a converter-se em ídolos. Há uma associação parecida
da avareza com a idolatria, que levou o Senhor a pronunciar terríveis palavras de ira,
em Isaías 57.17, depois de descrever vividamente a idolatria na primeira metade do
capítulo: “Por causa da iniqüidade da sua cobiça eu me indignei e feri o povo; escondi
a face, e indignei-me; mas rebelde, seguiu ele o caminho da sua escolha”.
15. Quanto a um estudo mais completo das passagens “severas” da Epístola aos
Hebreus, veja-se minha monografia: The Gospel in the Epistle to the Hebrews (Tyndale
Press), pp. 47-50.
16. Commentary on Romans, p. 294.
17. The Epistle to the Romans, pp. 269-270.
18. “Pois eis que vem o dia, e arde como fornalha; todos os soberbos e todos os
que cometem perversidade, serão como o restolho; o dia que vem os abrasará, diz o
Senhor dos Exércitos, de sorte que não lhes deixará nem raiz nem ramo. Mas para vós
outros que temeis o meu nome nascerá o sol da justiça, trazendo salvação nas suas asas;
saireis e saltareis como bezerros soltos da estrebaria. Pisareis os perversos porque se
farão cinzas debaixo das plantas de vossos pés naquele dia que prepararei, diz o Senhor
dos Exércitos” (Ml 4.1-3).
19. The Apocalypse o f John, pp. 94,95.
3 A lan B. Pieratt

INTRODUÇÃO

Neste artigo de Packer, encontramos uma defesa curta, mas clara,


da convicção de que o inferno é real e não está vazio. Não é um ponto
de vista muito popular em nosso tempo. A teologia liberal e crítica
opõe-se universalmente à idéia de que a ira de Deus permanecerá para
sempre sobre aqueles que ficam sem Cristo. Eles argumentam que a
idéia do inferno não faz justiça à profundidade do amor de Deus nem
à total eficácia da vitória da cruz. Ademais, diz-se que acreditar no
castigo eterno seria fazer de Deus um fracasso na redenção e, talvez,
um demônio disfarçado. Qualquer que seja o período de purificação
que possa haver na próxima vida, no final, o inferno ficará vazio e todos
encontrarão o caminho para chegar à presença de Deus. No relato de
Gênesis, lemos o que Satanás prometeu a Adão e Eva: “É certo que
não morrereis”. Hoje, isso se transformou em: “Não sereis irreme­
diavelmente condenados”.
O desejo de negar a existência do inferno, ou de pelo menos
encará-lo como um lugar temporário, é um pensamento natural muito
mais confortador do que o contrário. Quem se sente moralmente capaz
de condenar alguém ao castigo eterno, sabendo que todos nós somos
salvos pela graça? E se a graça é suficiente para me salvar, não é
suficiente para salvar a todos? Por que, então, os evangélicos continuam
agarrados à doutrina do inferno? Pela simples razão de que a Bíblia
ensina isso. Não importa o quanto consideremos difícil esse pen­
samento: a existência da condenação eterna e da separação de Deus
deve ser sustentada, porque é ensinada pelos profetas, pelos apóstolos
e também por Cristo. Ela deve continuar sendo parte essencial daquilo
que cremos acerca da natureza do mundo. Por outro lado, isso deve ser
afirmado com tem or e trem or (Fp 2.12), pois todos precisamos
102 • IMORTALIDADE

reconhecer que, não fosse a graça de Deus, é ali que também


encontraríamos nosso lugar.
Originalmente, este capítulo apareceu como artigo na revista The Banner o f Truth, de
março/abril de 1966, publicada na Inglaterra. Reproduzido aqui na íntegra com
tradução de Adiei Almeida de Oliveira.
3 James I. Packer

NEM TODOS OS
HOMENS SERÃO SALVOS

O evangelho é “o poder de Deus para a salvação de todo aquele


que crê” (Rm 1.16). Esta é a proclamação universal do cristianismo.
Deus “notifica aos homens que todos em toda parte se arrependam”
(At 17.30). Esta é a conclamação universal do cristianismo. Jesus disse:
“Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28.19). Esta é
a missão universal do cristianismo.
Temos aí um tipo de universalismo, e este universalismo é ponto
pacífico. O que está sendo debatido é se esta proclamação universal da
graça redentora a todos os que a receberem, concede a esperança de
que, por fim, todos os homens encontrarão lugar no reino da graça. Em
sua acepção comum, a palavra “universalismo” denota a posição dos
que abraçam esta esperança. É neste sentido que estaremos usando esta
palavra neste capítulo.
Hoje o universalismo está avançando rapidamente no mundo
protestante. Embora tenha sido aventado em primeiro lugar como um
sério ponto de vista teológico pelo grande Orígenes, no começo do
século terceiro, e durante dois séculos tenha experimentado con­
sideráveis avanços, ele foi condenado quase no fim do século sexto e,
desde aquela época, o universalismo fracassou no seio da cristandade.
Ele se tornou uma hipótese desacreditada; durante séculos ninguém o
levou a sério. Na corrente principal do protestantismo, até o século
XIX, o universalismo conservou sua condição de nada mais do que um
ponto de vista de uma minoria heterodoxa. Mas, então, no século XIX,
as coisas começaram a se modificar.
O dogma universalista foi mantido pelo pioneiro do liberalismo,
104 • IMORTALIDADE

Schleiermacher, e por muitos liberais que seguiram suas pegadas. Uma


vez que aquela época foi marcada por otimismo e confiança ilimitada
no futuro do homem, o espírito universalista difundiu-se por toda a
cristandade.
Neste século, pela primeira vez na história do protestantismo,
m uitos líderes missionários, bem como teólogos das principais
denominações, estão dando ênfase à teoria do universalismo.
De fato, este é um desafio muito radical que os universalistas estão
lançando aos ortodoxos, dizendo que só eles estão fazendo justiça à
realidade do amor de Deus e da vitória da cruz. A crença em qualquer
forma da doutrina da perdição eterna ou do castigo eterno, dizem eles,
faz de Deus um fracasso; de fato, alguns vão ao ponto de dizer que faz
dele um diabo.
Se isto está sendo afirmado, não podemos simplesmente ignorá-lo.

As implicações

Quais são as implicações do universalismo?


Se todos os homens serão salvos, a urgência da evangelização deixa
de existir. Torna-se possível argumentar que outras maneiras de amar
seu próximo são mais importantes do que procurar em primeiro lugar,
como coisa mais importante, ganhá-lo para a fé no Senhor Jesus Cristo.
Dessa forma, torna-se muito fácil nos afastarmos do evangelho da
conversão para um evangelho social.
Agora, consideremos o problema que se nos levanta. No decorrer
da história da igreja, certos indivíduos carregaram um fardo de oração
e pleitearam junto a Deus, noite e dia, em favor de homens que eles
criam estarem perdidos. Essas pessoas oraram em termos de uma
convicção viva de que, sem conversão, os homens irão para o inferno
— irreparável e irrevogavelmente. Por amor e compaixão, elas caíam
de joelhos e oravam para que Deus tivesse misericórdia e salvasse as
almas. A questão para nós é: isto era necessário? O universalismo tem
a ver não apenas com o que dizemos ao povo, mas também com a
maneira como oramos pelo povo.
O universalismo é um problema hoje, também, porque é forte seu
apelo pessoal. Os evangélicos tradicionalmente têm considerado o
universalismo como um ensino m oralm ente debilitante e espi­
ritualmente mortal. Dizemos que ele sugere que a conduta da pessoa
NEM TODOS OS HOMENS SERÃO SALVOS • 105

aqui não importa e que estimula falsas esperanças de vida eterna,


em bora a pessoa não se arrependa nem creia. Os evangélicos,
historicamente, têm reconhecido no universalismo a forma moderna da
mentira de Satanás no jardim: “É certo que não morrereis”.
Todavia, para sermos perfeitamente honestos, o universalismo é
uma doutrina confortadora, quando nela se crê. O pensamento de que
muitos de nossos queridos amigos estão se dirigindo para a desgraça e
o tormento não é agradável, para com ele vivermos constantemente. Se
somos cristãos normais, gostaríamos de não precisar viver com estas
convicções. O universalismo, por outro lado, tem um forte apelo
pessoal. É uma doutrina confortável, com a qual podemos viver, tão
confortável quanto nunca podería ser a doutrina evangélica acerca do
castigo eterno. E temo que muitos de nós tenhamos nos esgueirado para
a idéia de viver e nos comportarmos como se o universalismo fosse uma
verdade, embora jamais tenhamos endossado por escrito essa teoria.

O que a Bíblia diz

Agora, vejamos o que a Bíblia tem a dizer acerca do universalismo.


Com respeito à esperança do crente, quando morrer, não há dúvidas de
nenhum lado. Como podería haver, quando o Novo Testamento é tão
exultantemente claro acerca da glória da esperança cristã? “Não há
condenação para os que estão em Cristo Jesus” é a maneira como se
inicia Romanos 8, e ele encerra dizendo que nada, nem no céu nem na
terra, pode nos separar do “amor de Deus que está em Cristo Jesus
nosso Senhor”.
Levanta-se uma interrogação a respeito do destino dos que estão
“sem Cristo... não tendo esperança, e sem Deus no mundo” (Ef 2.12).
O que podemos dizer deles? Os oito primeiros capítulos da Epístola
aos Romanos declaram que eles estão (1) debaixo da lei, (2) debaixo
do pecado, (3) debaixo da ira e (4) debaixo da morte.
Eles estão debaixo da lei não simplesmente no sentido de serem
obrigados a observá-la, mas por estarem sujeitos a serem julgados por
ela. Eles estão debaixo do pecado, com o seu poder dinâmico de
perversidade que impulsiona os homens para fora do caminho de Deus,
para a rebelião e a revolta. Eles estão debaixo da ira; pois a ira de Deus
é revelada do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens. Como
homens que estão debaixo do pecado e da ira, eles também estão sob a
106 • IMORTALIDADE

morte. “O pendor da carne dá para a morte” (Rm 8.6). “Porque, se


viverdes segundo a carne, caminhais para a morte” (Rm 8.13).
A mera justaposição desses dois textos mostra-nos que na Bíblia a
morte não significa a cessação do ser. Pelo contrário, significa a
continuação do ser em um estado em que a pessoa perdeu algo de
essencial para a vida que Deus preparou para vivermos. Agora, em certo
sentido, os homens estão mortos, mas eles estarão mortos em sentido
mais profundo, depois desta vida. Com base nisso, não é surpresa
descobrir que o Novo Testamento prossegue, desenvolvendo o que
parece ser uma doutrina forte e indiscutível de castigo eterno (kolasis
aionios).
Aionios significa “relativo ao mundo vindouro”. Ao mesmo tempo
em que os exegetas têm questionado se esta palavra subentende ou não
a eternidade em termos do tempo marcado pelo relógio, o que é certo
é que, de fato, ela dá a entender fixidez e irreversibilidade. A Bíblia só
conhece duas ainoesages, o estado de coisas atual e o estado de coisas
futuro. O primeiro é temporário e passará, mas o segundo é permanente
e subsistirá sem fim.
Na parábola das ovelhas e dos bodes (Mt 25.46), somos informados
de que aqueles a quem o juiz rejeita vão para o kolasis (castigo) aionios
(um estado final). Esta frase é equilibrada na primeira metade do
versículo pela referência a zoe aionios (vida eterna), que também é um
estado fixo e final. Mesmo que a palavra aionios venha a significar
somente “pertencente à aion (era) vindoura”, e não subentenda por si
própria a perenidade no sentido de continuidade perpétua, o
pensamento de perenidade por certo está implícito na frase “vida
e te rn a ” e, p o rtan to , dificilm ente pode ser excluído da frase
correspondente e oposta “castigo eterno”. O argumento exegético de
que, neste texto, aionios, ao ser aplicado a kolasis, necessariamente
subentende perenidade, parece ser iniludível.
O Novo Testamento sempre concebe este castigo eterno como
consistindo de uma consciência agonizante da má recompensa que a
pessoa está recebendo, do desprazer de Deus, do bem que a pessoa
perdeu e do estado fixo irrevogável em que se encontra. Esta doutrina
de castigo eterno foi ensinada na sinagoga, mesmo antes de nosso
Senhor tê-la tomado e reforçado nos evangelhos. Toda a linguagem que
causa terror em nossos corações — choro e ranger de dentes, trevas
exteriores, o verme, o fogo, geena, o grande abismo no meio — é
NEM TODOS OS HOMENS SERÃO SALVOS • 107

extraída diretamente dos ensinamentos de nosso Senhor. É com Jesus


Cristo que aprendemos a doutrina do castigo eterno.

Uma segunda chance

No entanto, o universalista desenvolveu uma tese alternativa, uma


doutrina de que, depois da morte, os que morrerem na incredulidade
e entrarem no inferno, de que falou nosso Salvador, terão uma segunda
chance. Deus ainda continuará lutando com eles por seu Espírito de
graça; e o sucesso nesta luta ulterior é uma certeza. Deus continuará
conclamando os homens ao arrependimento e fé, até que eles atendam
e se submetam ao senhorio de Jesus.
Assim, esta não é uma doutrina que negue a realidade do inferno.
O inferno é uma realidade, dizem eles, e os homens de fato irão para
lá. Mas ele é apenas temporário; os homens podem sair dele. Nas
palavras de Emil Brunner, o inferno é, segundo este ponto de vista,
apenas “um processo pedagógico de purificação”. O inferno, de acordo
com esses hom ens, parece corresponder ao purgatório cató-
lico-romano. Esta não é uma doutrina do inferno como destino
definitivo, mas como estado penúltimo, uma doutrina de salvação fora
das condições que o Novo Testamento descreve como castigo e
destruição eternos. Os livros falam dela corretamente como otimismo
da graça.

Os argumentos usados

Que argumentos poderíam ser apresentados para fundamentar


uma opinião como esta? Duas espécies de argumentos positivos são
usadas. O primeiro grupo é de argumentos exegéticos; o segundo, de
argumentos teológicos.
Os argumentos exegéticos, extraídos diretamente das Escrituras,
são baseados em três classes de textos:
(1) Há um grupo de textos que parece prever a salvação de todos
os homens: “a restauração de todas as coisas” (At 3.21); “atrairei todos
(os homens) a mim mesmo” (Jo 12.32); “por um só ato de justiça veio
a graça sobre todos os homens” (Rm 5.18s.); todas as coisas, e até a
morte, serão submetidas a Cristo (1 Co 15.25-28); “ao nome de Jesus
108 • IMORTALIDADE

se dobrará todo joelho” (Fp 2.9-11); e há alguns outros textos desse tipo.
(2) H á um grupo de textos que parece dizer que a intenção de Deus
é salvar todos os homens: ele “deseja que todos os homens sejam salvos”
(1 Tm 2.4); “não querendo que nenhum pereça, senão que todos
cheguem ao arrependimento” (2 Pe 3.9).
(3) Há um grupo de textos que parece nos dizer que a cruz
estabeleceu uma relação entre Deus e o homem que deve significar
salvação universal: “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o
mundo” (2 Co 5.19); “ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não
somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro”
(1 Jo 2.2); “Jesus provou a morte por todo homem” (Hb 2.9); “a graça
de Deus se manifestou salvadora a todos os homens” (Tt 2.11).
Todavia, estas três classes de textos, que supostamente provam o
universalismo, na verdade não provam nada semelhante. Eles não são
conclusivos pelas três razões seguintes:
(1) Todos eles admitem outra explicação, uma explicação mais
coerente com o seu contexto do que a universalista (veja comentários
da Série Cultura Bíblica).
(2) Todos eles estão justapostos a textos que afirmam que alguns
perecem. Por exemplo, depois de Atos 3.21, onde Pedro fala da
“restauração de todas as coisas”, ele também diz que quem “não ouvir
a esse profeta, será exterminado do meio do povo” (At 3.23). Em João
12.32, nosso Senhor diz: “E eu, quando for levantado da terra, atrairei
todos a mim mesmo”; contudo, anteriormente ele havia dito que alguns
homens, diante do som da sua palavra, serão ressuscitados dentre os
mortos para a ressurreição da condenação (Jo 5.29). E ao mesmo tempo
em que Filipenses 2.9 diz que “ao nome de Jesus se dobre todo joelho”,
afirma também, no capítulo seguinte (3.19), que o fim de algumas
pessoas é a destruição.
(3) Não há nenhuma passagem bíblica que defenda qualquer
in sistência de D eus ju n to aos hom ens, depois da m orte. Os
universalistas têm apelado a 1 Pedro 3.19, concernente ao fato de nosso
Senhor ter ido no Espírito pregar aos espíritos em prisão, os quais
haviam sido desobedientes nos dias de Noé. Contudo, não importa
como se exponha este texto, ele certamente não propicia base para a
afirmação de que haverá uma pregação de nosso Senhor, depois da
morte, a todas as almas no inferno e muito menos que tal pregação terá
sucesso em todos os casos.
NEM TODOS OS HOMENS SERÃO SALVOS • 109

Não há base para desafiar a velha doutrina do castigo eterno no que


tange às linhas exegéticas e, quanto a isto, os universalistas modernos
concordam, em sua maior parte. Por isso, eles passam dos argumentos
exegéticos para os teológicos.
Seus argumentos teológicos baseiam-se principalmente em duas
considerações: (1) o caráter de Deus; (2) a vitória da cruz.

Deus é amor

O Novo Testamento declara que Deus é amor. É impensável,


dizem eles, a idéia de que, visto que o caráter de Deus é de amor, ele
tenha qualquer outra intenção a não ser a de salvar todas as suas
criaturas racionais. O seu amor, em termos de redenção, precisa ser tão
amplo quanto o seu amor na criação e, porque ele é soberano e
onipotente, este propósito não pode falhar. Nels Ferré diz: “Deus não
tem filhos problemáticos permanentes”. O Bispo Robinson diz que a
justiça de Deus precisa ser imaginada como uma função do seu amor.
Certamente é suficiente responder que na Bíblia os atributos de Deus
não são em qualquer ponto representados como atributos uns dos
outros.
A Escritura nos diz que Deus é santo e que, dentro da sua santidade,
há um amor redentor manifestado na salvação dos crentes, enquanto
uma justiça pura é manifesta na condenação dos incrédulos. Deus é
amor, diz João (1 Jo 4.8), mas na mesma epístola nos é dito que Deus
é luz (1.5). Os universalistas dizem que o fato de permitir que qualquer
de suas criaturas sofra eternamente será um inferno para Deus.
Todavia, onde a Bíblia ensina qualquer coisa parecida com isto? Esta
é uma inferência especulativa que se afasta completamente do
testemunho bíblico em relação ao mistério do Ser Divino.

A vitória da cruz

O segundo argumento teológico que eles usam deriva diretamente


da crença que eles têm na vitória da cruz. Visto que a cruz, na verdade,
assegurou a salvação de todos os homens, dizem eles, a fé não é
objetivamente decisiva. A fé é simplesmente uma questão de chegar a
reconhecer que você já foi salvo; quando você reconhece isso, então
110 • IMORTALIDADE

sorri, por assim dizer, e diz a Deus: “Muito obrigado!” No entanto,


outra vez, este é um conceito que se afasta completamente do espírito
das Escrituras.
O Novo Testamento diz que a salvação é encontrada em Cristo.
Ninguém está em Cristo, enquanto não for levado a ele e ninguém é
levado a Cristo sem fé. A fé é essencial. A reconciliação precisa ser
recebida, e os que não a recebem permanecem sem ela. “Quem nele
crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no
nome do unigênito Filho de Deus... mas sobre ele permanece a ira de
Deus” (Jo 3.18,36). “O evangelho... é o poder de Deus para a salvação
de todo aquele que crê” (Rm 1.16). A Escritura parece deixar bem claro
que a vitória do Calvário propicia salvação tão somente à pessoa que
crê.
Além disso, o Novo Testamento define o propósito salvífico e o
efeito da cruz em termos particularizados. “Cristo amou a igreja, e a si
mesmo se entregou por ela” (Ef 5.25). Ele morreu para poder nos
desarraigar deste mundo perverso” (G1 1.4). Os universalistas não
conseguem explicar o que está fazendo nas Escrituras esta limitação
que particulariza.
Deixando de lado o problema especial dos “que nunca ouviram” e
concentrando nossa atenção inteiramente nos que ouviram o evan­
gelho, permitam-me fazer agora duas perguntas finais:
(1) A idéia de uma segunda chance, uma chance que resultará em
sucesso final, não ignora a fixidez, a irredutibilidade de um homem não
regenerado, natural, escravo do pecado? Ferré escreve: “Na vida
futura, Deus apertará os parafusos o suficiente para fazer que os
homens desejem mudar a sua maneira de ser”. Certamente o que a
Escritura sugere é que tal tratamento produziría simplesmente um
endurecimento maior, amargura ulterior e incredulidade. Deus não
tem uma revelação mais rica da sua graça para mostrar a Judas no
mundo vindouro do que a que lhe foi mostrada no curso da sua vida
neste mundo. Se você quer ver o amor de Cristo, há apenas um lugar
para onde se recomenda que você olhe: para a cruz histórica. Se você
rejeitar o evangelho da cruz nesta vida, porque o pecado cegou sua
mente, não existem razões para esperar que você aja diferentemente
no mundo futuro. A “persuasão moral”, tão somente, por mais intensa
que seja, não modificará o coração dos homens, aqui ou na vida futura.
(2) A idéia de uma segunda chance com sucesso, para aqueles que
NEM TODOS OS HOMENS SERÃO SALVOS • 111

morrerem na incredulidade, não ignora a insistência da Bíblia no fato


de que esta vida é decisiva? Havia um grande abismo colocado entre o
rico e Lázaro (Lc 16.26). “Aos homens está ordenado morrerem uma
só vez e, depois disto, o juízo” (Hb 9.27). Não há sugestão de nenhuma
segunda chance com sucesso, nestes versículos. No contexto de
Hebreus, coisa terrível é cair nas mãos do Deus vivo. “Porque importa
que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo para que cada
um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo”
(2 Co 5.10). As coisas que realmente foram executadas no corpo
voltarão para nós como nosso destino. Este será o nosso destino, um
destino que manipulamos para nós mesmos, mediante as nossas
escolhas aqui, o qual Deus, em seu último e solene ato de respeito pela
realidade da responsabilidade humana, permitirá que tenhamos.
Deus perguntará: “Você escolheu permanecer sem mim? Então
permanecerá sem mim!”. Você escolheu, neste mundo, apartar-se de
Jesus? No mundo futuro, Jesus dirá: “Afaste-se de mim. Você terá o
que escolheu”. Esta é a essência da doutrina bíblica acerca do juízo e
do inferno.
Os destinos eternos são formados nesta vida. “Eis agora o tempo
sobremodo oportuno, eis agora o dia da salvação” (2 Co 6.2).
4 A lan B. Pieratt

INTRODUÇÃO

Diz-se que a consciência pesada, junto com a culpa que a


acompanha, é a mais universal das experiências humanas. Se isso for
verdade, então, em segundo lugar, e quase empatado, deverá vir o
horror da morte. Na Bíblia, a morte é personificada como terror (Jó
18.14), caçador (SI 18) e escravizador (Hb 2.15). É algo que lança uma
“sombra” sobre a vida (SI 23.4) e pode escurecer, com desalento e
tristeza, os momentos mais ensolarados de felicidade humana. Paulo
disse que Cristo removeu dos cristãos o aguilhão da morte. Mesmo
assim, a dissolução da união entre o espírito e o corpo não é uma coisa
natural. A Bíblia descreve-a como o retomo ao pó (Gn 3.19), a
interrupção da respiração (SI 104.29), o desnudamento do espírito (2
Co 5.3,4) e o distanciamento do corpo (2 Co 5.8).
Na sociedade de hoje, ser mentalmente saudável significa rejeitar
pensamentos de morte. A morte foi transferida do lar para os hospitais
e centros médicos ou, adiante, para as agências funerárias. Neste artigo,
Packer afirma que é sábio contemplar a morte. Embora ela só ocorra
uma vez (Hb 9.27), é inevitável (Jó 14.22). Ainda que incerta quanto ao
tempo (PV27.1), é universal (Gn3.19); é o destino de todos nós. Moisés
disse que devemos aprender a “contar os nossos dias” e a refletir sobre
o nosso fim (SI 90). Esse fim não é definitivo (como pensa a ciência
moderna), mas, antes, um fim e um começo: o fim desta vida atual e o
início de um novo destino em que cada um colhe o que semeou (2 Co
5.10; G16.7).
Em sua origem, este artigo apareceu como capítulo de G od’s W ords, de James I. Packer,
publicado pela Inter-Varsity Press, na Inglaterra, em 1981. Reproduzido aqui na
íntegra com tradução de Adiei Almeida de Oliveira.
4 James. I. Packer

A MORTE

“Ele teve bastante sucesso em sua vida profissional, e a única


Intrusa com a qual teve dificuldades de lidar foi a morte.” Assim, ao
final de seu romance mais vigoroso, Charles Williams apresenta as
despedidas do jovem de fino trato que não tinha senso de valores, a não
ser a utilidade para si mesmo. As palavras de Williams dariam um bom
epitáfio para muitas pessoas nos dias de hoje, pois declaram com grande
exatidão como a morte atinge o homem natural. Na verdade, ela se
manifesta como intrusa, sem ser convidada e sem que se faça com ela
nenhum acordo. Q uando uma pessoa percebe que ela está se
aproximando, aparece o pânico. Por mais que queira fingir que é
corajosa ou mesmo que a despreza, por dentro ela se sente isolada,
paralisada, drenada de toda força. Na verdade, o homem é incapaz de
lidar com a morte em pé de igualdade.
De todas as experiências humanas, disse James Denney, a mais
universal é a má consciência. Se isto é verdade, a segunda na ordem de
universalidade é certamente o medo da morte. A Epístola aos Hebreus
descreve os remidos como seres que “pelo pavor da morte, estavam
sujeitos à escravidão por toda a vida” (Hb 2.15). Todos conhecem a
morte segundo é chamada em Jó: “o rei dos terrores” (Jó 18.14). Todas
as idades e culturas consideram traumático o pensamento da morte: ele
choca, intranqüiliza, enerva. Por todo o mundo, as pessoas ficam
embaraçadas e gaguejam se você lhes fala sobre a morte. Em toda parte,
a experiência de privação, ou a morte de um amigo, abala as pessoas
até o âmago; em todos, os lugares, a expectativa da morte lança os
inválidos em um desespero apático. (É por isso que os médicos e
funcionários de hospitais, muitas vezes cruelmente, procuram esconder
dos moribundos a sua verdadeira condição.) Dezenove vezes a Bíblia
116 • IMORTALIDADE

chama de “sombra” a perspectiva da morte, e esta figura expressa muito


bem o que sentimos a respeito dessa nossa inimiga. Vemos a morte se
agigantando diante de nós como uma ameaça tenebrosa, grosseira,
lançando diante de si uma sombra, escurecendo os nossos momentos
mais ensolarados com arrepios e tristeza. A cada dia avançamos em
direção a ela; depressa a sua sombra nos envolverá completamente, e
a luminosidade da vida deixará de existir para sempre. Teremos passado
para as trevas. Ao contemplarmos esta passagem, sentimo-nos,
obscuramente, pouco à vontade. O que está reservado a nós além das
trevas? Quando esta vida terminar, o que terá início? Esta interrogação
perturba as pessoas mais do que elas geralmente estão dispostas a
admitir.
É claro que algum as pessoas reso lu tam en te m anifestam
indiferença em relação a ela. Pensar na morte, dizem, é coisa mórbida;
as pessoas que têm mente sadia não pensam nisso. Contudo, duvidamos
de que a sua atitude seja a mais sábia. Porquanto, em primeiro lugar,
haver-se com a morte não é nada mais do que realismo sóbrio, visto que
a única coisa certa que temos na vida é a morte. O escapismo que leva
o homem a fechar os olhos para a perspectiva da morte é tão estúpido
quanto neurótico e desmoralizante. Revela mente tão sadia quanto a
chamada atitude “vitoriana” para com o sexo. Se, para termos saúde
mental e moral, achamos que é necessário enfrentar os “fatos da vida”
em relação ao sexo, devemos nos lembrar de que um fato muito mais
fundamental da vida é que a morte, mais cedo ou mais tarde, intervirá
para fazê-la cessar, e não devemos duvidar da necessidade de enfrentar
este fato, se quisermos que nossa maneira de encarar a vida seja sadia.
Filipe da Macedonia foi sábio, quando encarregou um escravo de
lembrá-lo todas as manhãs: “Filipe, lembre-se de que você deve
morrer”. Alguns de nós devemos achar uma forma de, igualmente, ter
pessoas que nos lembrem disso.
Nos últimos anos, a comunidade científica tem estudado in­
tensamente a morte e o ato de morrer. O desenvolvimento de técnicas
médicas para reanimar o coração desfez a antiga idéia de que o
momento da morte ocorria quando o coração parava de bater, dando
lugar ao conceito de um processo de morte que se torna irreversível
quando cessam no cérebro as vibrações elétricas, aproximadamente
vinte minutos depois que o coração pára. Algumas pessoas têm relatado
muitos tipos de experiência entre o momento em que seu coração parou
A MORTE • 117

e o instante em que foi reanimado, e expoentes do ocultismo têm se


apegado a esses relatos como revelações a respeito do destino humano;
visto, porém, que nenhum deles pode nos dizer o que acontece quando
se completa o processo da morte e o cérebro não consegue mais ter
consciência, o homem sábio não considera esses relatos como decisivos
em relação a nada. Da mesma forma, ele não imagina que a curiosidade
em relação à morte, que todas estas notícias suscitaram, tem feito algo
para diminuir o efeito traumático dos pensamentos a respeito da forma
como a pessoa sai deste mundo, indo para — o quê?
Parece claro que os jovens são mais capazes de pensar de maneira
não distorcida a respeito da morte do que pessoas em outras faixas
etárias, pois quando se cristaliza na mente humana o sentido da
individualidade própria e das ilimitadas possibilidades da vida, o
verdadeiro horror da aproximação da morte atinge a pessoa mais forte
e dolorosamente do que nunca. Há muitos jovens na idade entre quinze
e vinte e cinco anos que algumas vezes — sonhando acordados, talvez,
durante a noite, ou a sós no campo — se surpreenderam pensando
assim: “Quero viver — estou apenas começando a viver — mas, que
horror, eu devo morrerl” — e esse pensamento fere como um golpe
sobre o plexo solar. Os membros desta faixa etária consideram a morte
um mal antinatural, um atentado cósmico, que zomba de todos os seus
recém-nascidos anseios pela verdade, beleza e realização. Corrói-lhes
a dúvida: “Existe qualquer significado em lutar por objetivos sem valor,
se no fim da sua busca, ou antes dela, você terá de morrer?”
Via de regra, só na juventude é forte esta sensação do caráter
ultrajante da morte. Por volta da meia-idade, a visão da juventude se
torna difusa, e a pessoa simplesmente se resigna a morrer no tempo
devido, como necessidade natural a que precisa se submeter (embora
ninguém chegue a amar a morte por causa disso). Já na velhice, a visão
dos dias da mocidade está quase esquecida, e a vitalidade física chega
a níveis tão baixos que a morte pode até ser bem-vinda, como um alívio.
Mas o adulto jovem considera a morte como monstruosidade malévola
e ressente-se dela; desta forma, demonstra que seu senso de realidade
é mais agudo do que o dos mais velhos; porque, de fato, a morte é um
mal que de modo algum é natural, como veremos daqui a pouco.
118 • IMORTALIDADE

A natureza da morte

Quando uma pessoa morre de enfermidade ou de velhice, damos


a isto o nome de “morte natural”, reservando a expressão “morte não
natural” para casos de acidente ou violência. Mas as Escrituras
confirmam os nossos sentimentos instintivos de que, num sentido mais
profundo, toda e qualquer morte não é fato natural. O que é morte? É
a dissolução da união existente entre o espírito e o corpo; “o pó volte à
terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu” (Ec 12.7). Existe
aqui uma referência à história da criação. Assim como no princípio
Deus fez o homem, soprando vida em uma forma feita de pó (Gn 2.7),
assim também agora, na morte, ele parcialmente desfaz o homem,
separando as duas realidades que originalmente havia unido. Esta
desintegração é, para ó homem, antinatural até o mais alto grau. Por
isso as pessoas sensíveis se ressentem na presença de cadáveres.
Algumas vezes se diz que os mortos parecem estar em paz, mas
dificilmente esta observação é correta. O que é verdade é que os
cadáveres parecem vazios. É o evidente vazio neles que achamos
enervante — a sensação de que a pessoa de quem eram este corpo e
esta face simplesmente se foi.
A morte significa aniquilação pessoal? Na verdade, não. A morte
é, segundo a frase de Paulo, o “despimento” de uma pessoa, ao se
desmontar a sua “tenda” ou “tabernáculo” terreno (2 Co 5.1ss.), mas
não significa o fim da sua vida pessoal. Por toda parte, a Bíblia considera
como óbvia a sobrevivência pessoal. O Antigo Testamento retrata a
morte como uma “descida” (metáfora natural) para o lugar que ela
própria chama de Sheol (Septuaginta e Novo Testamento grego:
Hades). Algumas versões traduzem Sheol e Hades como “inferno”, mas
esta tradução é errônea, visto que nenhum desses termos dá a entender
qualquer coisa quanto à felicidade ou qualquer outro sentimento dos
habitantes desse lugar.
Todavia, Sheol não é a morada final dos mortos. As Escrituras
predizem um esvaziamento do Hades, quando os mortos forem
ressuscitados fisicamente para o juízo, por ocasião da volta de Cristo
(Jo 5.28s.; Ap 20.12s.; cf. Dh 12.2s.). Aqueles cujos nomes estão escritos
no livro da vida (Ap 20.12) serão então recebidos na bem-aventurança
eterna (“vida eterna”, Mt 25.46; “glória, honra e paz”, Rm 2.10; “um
reino”, Mt 25.34; “nova Jerusalém”, Ap 21.2-22.5). Mas os restantes
A MORTE • 119

então suportarão a manifestação extrema do desprazer divino (“fogo


inextinguível”, Mt 3.12; Mc 9.43; “Geena” — o lugar de incineração
fora dos limites de Jerusalém — “onde não lhes morre o verme”, Mc
9.48; “trevas exteriores”, lugar de “choro e ranger de dentes”, Mt
25.30); “castigo eterno”, Mt 25.46; “o fogo eterno preparado para
Satanás e seus anjos”, v. 41; “ira e indignação... tribulação e angústia”,
Rm 2.8-9; “penalidade de eterna destruição, banidos da face do
Senhor”, 2 Ts 1.9; “lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda
morte”, Ap 21.8; cf. 20.15).
Algumas pessoas afirmam que estes textos subentendem a
aniquilação dos que forem rejeitados — um momento de incineração
no fogo e, depois, o esquecimento. Contudo, parece claro que, na
realidade, a “segunda morte” não é a cessação do ser — tanto quanto
a primeira. Porquanto, (1) a palavra traduzida como “destruição”, em
2Tessalonicenses 1.9 (olethros), significa não aniquilação, mas ruína {cf.
seu uso em 1 Ts 5.3); (2) a insistência, nesses textos, no fato de que o
fogo, o castigo e a destruição são eternos (aiõnios, literalmente, “através
dos tempos”) e que o verme da Geena não morre, seria sem sentido e
imprópria, se tudo o que se pretende descrever é uma extinção
momentânea, da mesma forma como seria sem sentido e impróprio
falar de uma dor “infindável” resultante de um ferimento mortal
causado por uma bala. Essas palavras indicam como o tormento é
infindável, a não ser que sejam supérfluas e enganosas; (3) quanto ao
argumento de que aiõnios significa somente “relativo à era futura”, sem
qualquer implicação de perpetuidade ou duração eterna, parece
suficiente dizer que, se em Mateus 25.46 vida “eterna” significa
bem-aventurança sem fim (e, certamente, significa isto), então o castigo
“eterno” mencionado ali precisa também ser sem fim; (4) somos
informados de que no “lago de fogo” (o “fogo eterno preparado para
Satanás e seus anjos”, Mt 25.41), o diabo será atormentado “de dia e de
noite pelos séculos dos séculos” (Ap 20.10). O fato de que todo homem
enviado para juntar-se a ele suportará semelhante eternidade de
retribuição é claro diante da linguagem paralela de Apocalipse 14.10s.:
"... esse (o adorador da besta) será atormentado com fogo e enxofre...
a fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos séculos, e não tem
descanso algum, nem de dia nem de noite”.
Parece claro que esses textos não estão ensinando uma extinção,
mas a perspectiva muito mais terrível de uma consciência infindável do
120 • IMORTALIDADE

desprazer justo e santo de Deus. Embora o consideremos doloroso e


achemos mórbidas as imagens apocalípticas judaicas, naquilo que
Cristo e os apóstolos falam deste assunto (afinal de contas, esta é a
época posterior ao holocausto), um inferno sem fim não pode ser
retirado do Novo Testamento, tanto quanto um céu sem fim. Por isso
a morte física (a primeira morte) é perspectiva tão temível para os
homens sem Cristo; não por significar extinção, mas precisamente
porque não significa extinção, mas só a dor infindável da segunda morte.
O homem ímpio só percebe vagamente esta verdade, através da
revelação genérica de Deus (Rm 1.32); portanto, não é de admirar que
ele tenha medo de morrer.
De qualquer modo, no Antigo Testamento, as referências à morte
denotam superficialm ente apenas a dissolução física. No Novo
Testamento, porém, o conceito de morte é aprofundado de forma
radical. Ali, a morte é considerada primordialmente como um estado
espiritual, o estado da humanidade sem Cristo. Da mesma forma como
a morte física significa um estado em que o espírito é separado do corpo,
assim também a morte espiritual significa um estado em que o homem
é separado de Deus, excluído do seu favor e comunhão, “mortos em
nossos delitos” (Ef. 2.1, 5; cf. Mt 8.22; Jo 5.24; Rm 8.6; Cl 2.13; 1 Tm
5.6). Como na Bíblia “vida” denota repetidas vezes a alegria da
comunhão com Deus {cf. 1 Jo 5.12), assim também a alienação desta
“vida de Deus” (Ef 4.18) é igualada à “morte”. É da morte espiritual
que, antes e acima de tudo, precisamos ser libertos.

A morte e o pecado

Por toda a Bíblia, a morte, tanto física quanto espiritual, é


considerada como um mal penal, como o julgamento de Deus contra o
pecado {cf. Ez 18.4). A morte, diz Paulo, é o “salário” pago aos
empregados do pecado (Rm 6.23). Quando Deus disse a Adão “no dia
em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17), a referência
básica e explícita foi à dissolução física, como 3.19 torna claro. (As
palavras “no dia em que” expressa a certeza da seqüência e não
necessariamente a sua proximidade', cf. o uso da mesma frase em 1 Rs
2.37. Adão só morreu muito depois, Gn 5.5). Assim, quando Paulo diz,
em 1 Coríntios 15.22, que “em Adão todos morrem”, o contexto mostra
que ele tem em mente apenas a mortalidade física, que Cristo deve
A MORTE • 121

abolir, ressuscitando os mortos.


Mas, em Romanos 5.12ss., quando ele fala que Cristo liberta os
“muitos” que são seus, tendo saído da “morte” em que Adão os havia
envolvido, a sua referência é mais ampla. Sim, pois a libertação que ele
menciona não é meramente a ressurreição física (de fato, a ressurreição
física não é de forma alguma mencionada nessa passagem). Pelo
contrário, é a presente “justificação” (w . 16-19) que leva a uma
restauração da “vida” (w . 17, 18, 21) — em outras palavras, a cura
daquela relação com Deus que se havia corrompido, da qual a morte
física era prova e símbolo. Portanto, em Gênesis 2.17 devemos
encontrar im plícita também uma referência à m orte espiritual
retratada quando Deus expulsou o homem do É den (lugar de
comunhão), para impedi-lo de comer da árvore da vida.
O que teria acontecido ao homem no fim do seu período probatório
na terra, se ele não tivesse pecado? Teria ele morrido fisicamente?
Provavelmente, não; de qualquer forma, não da maneira como morre
agora. Talvez Deus apenas o “tomasse”, como “tomou” Enoque e Elias
(Gn 5.24; 2 Rs 2.1, 11). Alguns acham que seríamos fisicamente
transfigurados, como Cristo (Mc 9.2ss.). Mas isso é especulação acerca
de um assunto sobre o qual as Escrituras silenciam, e perguntas às quais
a Bíblia não responde devem ficar sem resposta.

O caráter definitivo da morte

De modo geral, o mundo se refere à morte física meramente como


fim — o ato de fechar uma porta na vida terrena da pessoa; mas o Novo
Testamento a considera também como início — a abertura de uma
porta para o destino de uma pessoa, a nova vida em que ela começa a
colher o que semeou (cf. 2 Co 5.10, G16.7). No Antigo Testamento, é
verdade, encontramos os santos recuando diante da perspectiva da
morte, crendo que no Sheol, embora Deus não estivesse ausente (SI
139.8), eles não poderíam esperar ter uma comunhão tão íntima e doce
com ele, como a que haviam gozado na terra {cf. SI 88.10-12; 115.17; Ec
9.5,10; Is 38.18, etc.). O Novo Testamento parece sugerir que os santos
do Antigo Testamento de fato estavam aguardando, até que o próprio
Cristo entrasse no Sheol (a “descida ao inferno”, do Credo; cf. At
2.27ss.), antes que a sua comunhão com Deus na Sião celestial se
tomasse completa e perfeita como é agora {cf. Hb 11.40 com 12.18-23).
122 • IMORTALIDADE

Seja como for, torna-se claro no Novo Testamento que nestes


“últimos dias” as rodas da recompensa divina estão girando do
momento da morte em diante e que, de repente, todo homem se
descobre experimentando de forma intensificada essa relação com
Deus e (se durante a sua vida ele ouviu o evangelho) com Jesus, que
ele escolheu ter, durante a sua vida neste mundo — ou para estar com
Cristo e Deus, o que agora se define como Paraíso e alegria (Lc 23.43;
Fp 1.23; 2 Co 5.6-8; cf At 7.55-59), ou então para permanecer sem
nenhum dos dois, nas trevas espirituais de uma existência egoística e
egocêntrica (cf. Jo 3.19) — condição que agora, quando se começa a
perceber o que se perdeu, descobre-se ser de agonia (Lc 16.23ss.). Para
os que estão com Cristo, Deus, pela graça, faz com que a nova vida seja
de alegria crescente sem qualquer dor ulterior (Ap 7.15ss.); para os que
estão sem Cristo, Deus, pela justiça retribuidora, faz com que a nova
vida seja de dor crescente, sem qualquer alegria ulterior (Lc 16.25).
Portanto, já está se verificando a predição de nosso Senhor: “A todo o
que tem dar-se-lhe-á; mas ao que não tem, o que tem lhe será tirado”
(Lc 19.26).
Todavia, é tarde demais para mudar; depois da morte existe “um
grande abismo” colocado entre os que Deus aceita e os que ele rejeita
(Lc 16.26). O tempo de escolha passou. Tudo o que resta agora é
receber as conseqüências da escolha já feita; até certo ponto, no “estado
interm ediário”; mais plenam ente, depois da ressurreição e do
julgamento final (cf. Hb 9.27). Não há nada de arbitrário em relação à
doutrina do castigo eterno: em essência, é o caso de Deus estar
respeitando a nossa escolha, permitindo que tenhamos, por toda a
eternidade, as condições espirituais que escolhemos ter enquanto na
terra.
Para muitos, isto acontecerá como ensinam ento doloroso,
indesejável; porém, seremos sábios se não o ignorarmos, pois grande
parte dele vem diretamente do próprio Senhor. Uma reação melhor
será nos determinarmos a viver como viveram os santos que existiram
antes de nós, sub specie aetemitatis — à luz da eternidade. Bem orou o
salmista: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que alcancemos
coração sábio” (SI 90.12). Murray M'Cheyne pintou um sol no ocaso no
mostrador do seu relógio, para lembrar a si mesmo como o tempo é
curto. Com verdade tem sido dito que temos toda a eternidade para nos
regozijarmos com as vitórias obtidas para Cristo, mas apenas algumas
A MORTE • 123

horas fugidias aqui em baixo, nas quais podemos conquistá-las. Todos


nós precisamos de uma consciência apurada da brevidade do nosso
tempo e do significado eterno da hora presente.

Outras opiniões

“Acabei de ler o seu artigo sobre a morte e achei-o revoltante”.


Assim começava uma carta escrita por um querido evangelista irlandês,
que agora está na glória, quando os parágrafos acima apareceram em
forma impressa pela primeira vez. Outras pessoas podem sentir a
mesma coisa, e eu não posso fazer nada a esse respeito, mas vejamos se
um pouco mais de exposição pode ajudar.
Quais alternativas existem para a opinião acerca do caráter final da
morte que acabo de expor? Apenas três: imortalidade condicional,
evangelização post-mortem e universalismo. Observemo-las.
A imortalidade condicional (doutrina da aniquilação dos rejeitados
por ocasião do dia do juízo) foi colocada de lado acima, por razões
bíblicas. O meu amigo evangelista me fez lembrar de que vários e
distintos evangélicos britânicos, que passaram pela Universidade de
Cambridge entre as duas grandes guerras, defenderam o condi-
cionalismo. Isto é verdade, mas não acho que lhe dê o direito de afirmar,
como fez: “Você apenas citou das Escrituras o que concorda com a sua
teoria, e ignorou o resto”. “O resto” não é texto, mas interpretação. É
bom que seja dito claramente: não existe nenhuma passagem bíblica a
partir da qual o condicionalismo possa ser interpretado de modo
confiável. Há passagens em que ele pode ser interpretado e passagens,
como as que vimos, em que dificilmente ele pode ser interpretado, onde
precisa haver uma defesa especial para que o condicionalismo não caia
por terra. Como pessoa que não está interessada naquilo que se possa
interpretar na Escritura, mas tão somente no seu significado natural,
tenho a dizer que a defesa especial que tenho encontrado não consegue
convencer.
De fato, a corrente principal do condicionalismo não é exegética,
mas teológica. Partindo do pressuposto de que a honra e a glória de
Deus não requerem a continuação da existência dos perdidos na
miséria, depois do juízo, a opinião é de que se Deus deixar de
aniquilá-los naquela ocasião, será desnecessariamente cruel. Este
argumento, porém, derrota a si próprio: segundo esse pressuposto, é
124 • IMORTALIDADE

desnecessariamente cruel o fato de Deus conservar os perdidos


existindo na miséria do estado intermediário (acerca do qual veja Lc
16.23ss.), até o dia do juízo; ele deveria aniquilá-los por ocasião da
morte — coisa que a Escritura mostra claramente que ele não faz. De
fato, porém, um julgamento justo (isto é, merecido) não é crueldade, e
a posição bíblica é de que o que Deus destinou aos ímpios é um
julgamento justo (c/. Lc 12.47s.; Rm 2.5-16), incrementando o seu
louvor (c/. Ap 16.5-7; 19.1-3).
A evangelização post-mortem, incluindo a todos os que nunca
haviam ouvido o evangelho pregado “in te lig e n te m en te ”, foi
mencionada por meu amigo evangelista. Contudo, não existe nenhuma
passagem bíblica clara a este respeito. Os versículos misteriosos de 1
Pedro 3.19s. não podem ser usados para defender esta posição, pois (1)
os “espíritos em prisão” muito provavelmente podem ser anjos
decaídos tanto quanto homens decaídos (cf Gn 6.1-4; Jd 6); (2) a
declaração de que Cristo pregou a espíritos que desobedeceram nos
dias de Noé dá a entender mais naturalmente que a pregação foi para
aqueles e não para outros; (3) “pregou” (grego: Icêryssõ), não sendo
especificada qual a mensagem, não subentende mais naturalmente uma
oferta de vida do que uma mera proclamação do triunfo de Jesus.
Assim, estes versículos não provam uma evangelização post-mortem
universal, bem como qualquer outra passagem. Além disso, textos
claros falam contra esta idéia, notavelmente os que consideram esta
vida decisiva para o futuro de uma pessoa (2 Co 5.10; G16.7, etc.).
De qualquer forma, os que não ouviram o evangelho apresentado
“inteligentemente” assim mesmo tinham da parte de Deus luz em suas
consciências, à qual ouviram ou desprezaram, decidindo-se a buscar ou
não o Deus do qual tinham indícios. Podemos dizer com segurança: (1)
se qualquer bom pagão chegou ao ponto de se lançar sobre a
misericórdia de seu Criador, pedindo perdão, foi a graça que o levou
até ali; (2) certamente Deus salvará qualquer pessoa que ele levar até
esse ponto (cf. At 10.34s.; Rm 10.12s.); (3) qualquer pessoa assim salva
ficará sabendo, no mundo vindouro, que foi salva através de Cristo. Mas
o que não podemos dizer com segurança é que Deus sempre salva
pessoas dessa forma. Simplesmente não o sabemos. Tudo de que
estamos certos é que “a ira de Deus é revelada do céu contra toda a
impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça”
e que Paulo não hesita em refletir a generalização do salmista: “Não há
A MORTE • 125

justo, nem sequer um” (Rm 1.18; 3.10; cf. 9-18); nem Deus deve alguma
apresentação do evangelho, muito menos “inteligente”, a qualquer
homem.
O universalismo, a terceira das alternativas, é geralmente declarada
como forma otimista do ensino de uma “segunda chance”: todos
aqueles que Deus fez, e que não se voltaram para ele nesta vida, ele
encontrará em Cristo depois da morte e levará a amá-lo, mesmo que
tenha de enviá-los a uma geena de fogo no purgatório, durante algum
tempo, para fazê-los voltar a seus sentidos. Todavia, é bem claro que
esta não foi a opinião de Cristo (veja Mt 12.32; 26.24) nem é o
significado necessário ou natural de qualquer texto bíblico considerado
em seu contexto.
Um dos grandes detetives de ficção estabeleceu a doutrina de que
quando você elimina todas as impossibilidades, o que resta, embora seja
improvável, deve ser verdade. À semelhança disso, o teólogo sabe que
quando você elimina todas as opções não-bíblicas, o que resta, embora
seja uma verdade desagradável, necessariamente será a verdade de
Deus. Não estou dizendo que a posição que estabelecí com respeito à
perdição eterna seja agradável ou confortável para com ela se conviver;
insisto apenas em que ela é, na verdade, ensinada por Cristo e pelo
Novo Testamento, devendo ser considerada sob essa luz.

A vitória sobre a morte

Se você não consegue compreender a morte, não pode com­


preender a vida; e qualquer filosofia que não nos ensine como enfrentar
a morte não vale nada para nós. A esta altura, os filósofos se retiram
derrotados — e o evangelho apresenta-se por si próprio. Sim, pois, de
certo ponto de vista, a vitória sobre a morte é o seu tema central — o
tema que John Owen resumiu como a morte da morte na morte de Cristo.
A ressurreição de Cristo não foi meramente uma ressurreição
temporária, como as ressurreições de Lázaro, da filha de Jairo e do filho
da viúva de Nairn. “Havendo Cristo ressuscitado dentre os mortos, já
não morre; a morte já não tem domínio sobre ele... vive para Deus”
(Rm 6.9s.). “Estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos
séculos, e tenho as chaves da morte e do inferno” (Ap 1.18). A
ressurreição dele proclamou e garantiu perdão e justificação atuais para
o seu povo (Rm 4.25; 1 Co 15.17) e também a sua presente co-
126 • IMORTALIDADE

ressurreição com ele, em novidade de vida espiritual (Rm 6.4-11; Ef


2.1-10; Cl 2.12s.; 3.1-11). Esta co-ressurreição espiritual será alcançada
quando Cristo voltar, mediante uma transformação física do nosso ser,
se estivermos vivos (Fp 3.21), ou mediante um revestimento do nosso
ser, se estivermos mortos (cf 2 Co 5.4s.; 1 Co 15.50-54), e isto significará
a destruição final da morte, como intrusa hostil e destruidora neste
mundo de Deus (1 Co 15.26,54s.).
Nesse ínterim, para o cristão, foi abolido o medo da morte física,
que se originou da idéia de que a morte era a porta para sofrimento e
julgamento (Hb 2.15): o “aguilhão” da morte foi tirado (1 Co 15.55s.),
através do conhecimento de que o pecado de uma pessoa é perdoado
e que “nem morte, nem vida... nem cousas do futuro... nem qualquer
outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo
Jesus nosso Senhor” (Rm 8.38s.). A morte física agora é “sono” (isto é,
descanso e refrigério, Ap 14.13 — e não inconsciência) “em
Jesus” (1 Co 15.18,51; 1 Ts 4.13ss.; At 7.60), um “sono” ocasionado pela
vinda de Cristo, para receber para si aqueles para quem estivera
preparando lugar (Jo 14.2s.). Eles partem para “estar com Cristo”, o
que é “incomparavelmente melhor” (Fp 1.23).
O cristão pode pensar corretamente no dia da sua morte como uma
data no diário de Jesus: quando chegar a hora marcada, o Salvador
estará lá para guiar seu servo para a luz da sua própria presença e
comunhão mais íntima. A morte, portanto, por penosa e dolorosa que
seja em termos físicos, torna-se uma viagem para a alegria. Uma peça
exibida em Londres, há alguns anos, tinha este título surpreendente:
Feliz Dia da Morte, e para o crente de fato será assim. A comunhão com
Cristo, e com Deus através de Cristo, uma vez iniciada aqui na terra,
jamais tem fim: através da morte, através do “estado intermediário”,
entre a morte e a ressurreição, e pela eternidade que se seguir, Cristo
estará com o seu povo; e isto é vida eterna. Desta forma, ele cumpre a
sua promessa, proclamada a Marta, quando esta se lamentava por causa
de Lázaro: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda
que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim, não morrerá
eternamente” (Jo 11.25s.).
A MORTE • 127

Esteja preparado

Há três séculos circulou uma história a respeito da visita de um


estudante a Thomas Goodwin, presidente da Faculdade Magdalen, de
orientação puritana, em Oxford, na Inglaterra. No escritório em
penumbra, Goodwin iniciou a conversa, perguntando se seu visitante
estava preparado para morrer. O rapaz fugiu. À época, esta história era
contada como anedota, como seria também hoje; porém, deve-se dizer
que, se ela é verídica, Goodwin estava fazendo uma pergunta pastoral
apropriada com a qual não se devia brincar, seja qual for a idéia que
tenhamos a respeito da sua técnica; pois, não importa se você é jovem
ou velho, um dos segredos da paz interior e da vida em plenitude é estar
preparado realisticamente para a morte — com as malas prontas,
podemos dizer, e pronto para partir. Não é absurdo lembrarmos uns
aos outros este fato.
Os cristãos de outrora o conheciam bem. Eles consideravam toda
a vida como uma preparação para a morte e a eternidade, e daí
consideravam (não a si mesmos, mas) cada momento com toda
seriedade. As instruções medievais e puritanas com respeito à arte de
morrer vêm a ser uma abordagem à arte de viver; as palavras de Ken,
“viva cada dia como o seu último dia”, servem sempre como linha
mestra. Vivendo desta forma, os cristãos de outrora, sem dúvida,
usufruíram mais da vida do que a maioria dos cristãos atuais. Hoje,
como temos visto, a mente sadia é definida em termos não dos
pensamentos acerca da morte, mas de não pensarmos nela, e até mesmo
os cristãos que insistem na segunda vinda de Cristo parecem não estar
percebendo que a preparação para esse evento e para a morte são dois
lados da mesma moeda, duas facetas do mesmo tema — a saber, o fim
deste mundo para você e para mim, porque Cristo veio até nós. Tudo
isto é retrógrado, e uma volta à sabedoria mais antiga seria de grande
vantagem para nós.
Como os cristãos podem viver com as malas prontas e prontos para
partir? Não há mistério a este respeito; o bom senso deve nos indicar
como fazê-lo. Esteja inteiramente dedicado ao serviço de Cristo, todos
os dias. Não toque no pecado com vara curta. Acerte as contas com
Deus. Pense em cada hora como uma dádiva de Deus para você, para
tirar dela o melhor proveito. Planeje a sua vida, levando em conta
setenta anos (SI 90.10), entendendo que se o seu tempo for menor do
128 • IMORTALIDADE

que esse prazo, isso não será uma privação injusta, mas uma promoção
mais rápida. Nunca permita que as coisas boas, ou as que não são tão
boas, excluam as melhores, e alegremente abra mão do que não é o
melhor, em favor do que é. Viva no tempo presente; goze com alegria
dos seus prazeres e abra caminho através das suas dores, contando com
a companhia de Deus, sabendo que tanto os prazeres quanto as dores
são passos na viagem para casa. Abra toda a sua vida para o Senhor
Jesus e gaste tempo conscientemente na companhia dele, expondo-se
e correspondendo ao seu amor. Diga a si mesmo, com freqüência, que
a cada dia você está mais perto. Lembre, como disse George Whitefield,
que o homem é imortal enquanto o seu trabalho não for realizado
(embora seja apenas Deus quem defina que trabalho é esse), e continue
a realizar aquilo que você sabe ser a tarefa que Deus lhe determinou
para aqui e agora.
Paulo disse: “... o tempo da minha partida é chegado. Combati o
bom combate, completei a carreira, guardei a fé. Já agora a coroa da
justiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele
dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua
vinda” (2 Tm 4.6-8). Pedro recomendou: "... por isso mesmo, vós,
reunindo toda vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com a
virtude, o conhecimento; com o conhecimento, o domínio próprio; com
o domínio próprio, a perseverança; com a perseverança, a piedade; com
a piedade, a fraternidade; com a fraternidade, o amor... procurai, com
diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação e eleição;
porquanto, procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum. Pois,
desta maneira é que vos será amplamente suprida a entrada no reino
eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2 Pe 1.5-7,10s.).
Este é o caminho.
5 A lan B. Pieratt

INTRODUÇÃO

Como é o inferno? O que significaria ser banido da presença de


Deus? Seria um lugar de escuridão e fogo? Seria como o abismo
flamejante retratado de forma tão vivida por Jonathan Edwards no
sermão de enxofre e fogo do inferno, “Pecadores nas Mãos de um Deus
Irado”? De fato, essa tem sido a imagem tradicional do inferno. A
história da igreja está cheia de descrições ardentes de cenas horrendas
que sempre incluem fogo. Até os solenes credos da igreja, mesmo
deixando os detalhes para a imaginação, não retratavam o inferno de
modo mais animador.
Neste artigo, Vernon Grounds dá uma feição um pouco mais
humana ao inferno. Isso não significa que ele minimize a seriedade ou
o horror do castigo eterno. Quem ousaria fazer isso, quando Jesus
alertou que “é melhor entrar na vida eterna com uma só mão, do que
ter as duas e ir para o inferno” (Mc 9.43, BLH)? Entretanto, por se
tratar de um lugar tão intolerável, o conceito de inferno que se
desenvolveu através dos séculos chega quase à irracionalidade.
Grounds traz à discussão os pensamentos de C. S. Lewis, Robert
Anderson e Friedrich von Hügel. Cada um menciona, à sua própria
maneira, a possibilidade de o inferno não ser bem como tem sido
retratado tradicionalmente. Sugerem que, para os condenados, o
tormento talvez não seja assim tão insuportável. Pode ser que o castigo
pareça tão grande do ponto de vista do céu, por causa daquilo que se
ganha ali, ou como Grounds afirma: “o inferno é um inferno, não do
nosso ponto de vista, mas do ponto de vista celestial”.
Também se propõe que já não consideremos plenamente humanas
as pessoas que encontram seu lugar no inferno. Não seria melhor,
pergunta-se, encarar os espíritos humanos julgados e não-redimidos
130 • IMORTALIDADE

como se fossem as ruínas da humanidade? Faz-se uma comparação com


uma tora queimada e reduzida a cinzas. Apesar de seus elementos
terem sido preservados em forma de gás, calor e cinza, já não é uma
tora. De modo semelhante, o espírito humano perdido é algo diferente
e inferior em relação àquilo que a humanidade devia ser em sua origem.
Esse processo de desumanização começa nesta vida e termina numa
morada que não foi projetada para o homem (Mt 25.41). O leitor
encontrará muita coisa para pensar neste artigo que convida à reflexão.
Publicado primeiramente como artigo da Journal o f Evangelical Theological Society,
vol. 24, nfi 3, de setembro de 1981, nos Estados U nidos, e reproduzido aqui
integralmente com tradução de Adiei Almeida de Oliveira.
5 Vernon C. Grounds

O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS

Pode ser que não compartilhemos com Robert Browning de seu


robusto otimismo acerca da vida humana:

O m undo está tão ch eio d e tantas coisas,


q u e esto u certo d e q ue todos p od em os ser tão felizes co m o reis.

A maioria de nós, porém, em grande parte do tempo, sente-se


moderadamente alegre e feliz. Como cristãos, cremos com Browning
que “Deus está nos céus” e, portanto, embora o pecado faça que nos
seja impossível acrescentar a frase “tudo está bem com o mundo”,
estamos convencidos de que, em última análise, tudo necessariamente
acabará bem para a criação de Deus. O nosso pessimismo relativo em
relação à ordem temporal é afogado por um otimismo final em relação
ao telos eterno, na direção em que está se movendo a história, sob a
direção divina. Raramente, suponho eu, encontramo-nos meditando na
terrível doutrina do castigo eterno. Só em ocasiões das mais raras e,
mesmo assim, de passagem, a nossa disposição m ental é a do
“Pensador”, a famosa estátua de Rodin, sentado em muda admiração,
vendo as almas entrarem no inferno. O que William Gladstone
escreveu a respeito do castigo eterno, no fim do século XIX, é
igualmente verdadeiro nos dias de hoje: “Parece que atualmente essa
idéia foi relegada aos cantos mais remotos da mente cristã, para ali
adormecer em trevas profundas”.1Exceto pelos estudos em sala de aula
ou na pregação evangelística, “o estado final dos ímpios” é um assunto
que reprimimos na privacidade de nossas mentes, e em nosso convívio
social preferimos envolvê-lo em um véu de silêncio.
No entanto, o jurista inglês Fitzjames Stephen fez esta observação
132 • IMORTALIDADE

contundente:

Embora o cristianismo expresse os sentimentos ternos e amorosos


com ardor apaixonado, ele também tem um lado terrível. O amor
cristão subsiste apenas durante certo tempo, e condicionalmente; ele
cessa pouco antes das portas do inferno, e este constitui parte essen­
cial de todo o esquema cristão.2

Isto é verdade? Se for, o que pode ser dito, biblicamente, a este


respeito?
Ao nos aventurarmos nesta região de pressentimentos e escuridão
da teologia, consultemos alguns relatórios fornecidos pelas hostes de
examinadores que nos precederam. As observações deles são confusas
e contraditórias; contudo, podemos tirar delas cinco conclusões.
A primeira é de um agnosticismo cru. É impossível obter a certeza
de que existe uma realidade chamada inferno, pois não se pode
determinar o que acontece depois da morte. Algumas dessas pessoas
— podemos chamá-las de agnósticos escatológicos? — afirmam que os
seres humanos não passam de organismos biológicos que expiram e se
desintegram como qualquer outro aglomerado acidental de átomos,
segundo frase memorável de Bertrand Russell. O segundo grupo
agnóstico, confiante de que o homem, em certo sentido, sobrevive à
morte, porém descartando-se in toto da afirmação de que a Bíblia é um
Baedeker do terreno existente além-túmulo, submete um relatório que
corresponde a um encolher de ombros. Nenhum dado confiável pode
ser obtido. É inevitável que se façam suposições. Daí, o melhor
resultado disponível é um “talvez” francamente especulativo. O
terceiro grupo, embora esteja certo de existir um mundo do porvir, e
desejoso de aceitar a Bíblia como revelação, afirma que a maneira como
ela delineia esse mundo futuro é vaga e imprecisa demais para permitir
que se trace qualquer topografia detalhada. Este grupo afirma ainda
que Deus, em sua sabedoria, limitou deliberadamente os homens a um
estado de ignorância reverente. Basta-nos saber que estamos
destinados a uma vida depois da morte. Com confiança infantil
aceitamos nossa ignorância acerca de como será a vida depois desta.
Somos parecidos com as crianças imigrantes que sabem apenas que o
nosso Pai sábio e amoroso nos espera em uma terra estranha e nova e,
portanto, não precisamos nos preocupar com o fato de que nossas
pequenas mentes não conseguem imaginar — mesmo com a ajuda dos
O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 133

esboços que ele nos enviou — o que experimentaremos, uma vez que
estejamos ali. O agnosticismo reverente concorda com as evidências de
uma fé profunda que se recusa a empenhar-se numa especulação
inquiridora. Permitamos que Joseph Butler, autor do outrora celebrado
Analogy o f Religion (“Analogia da Religião”), resuma este relatório:
“Não devemos nos confessar na presença de enunciados obscuros,
destinados a m inistrar esperança tanto quanto advertência, mas
fragmentários demais e incompletos para formarem sistemas?”3
A segunda conclusão extraída pelos examinadores do destino
hum ano é a do aniquilacionismo. Grande número de eminentes
filósofos e cientistas esposa esta opinião negativa. Muitas vezes com
dogmatismo emocional, eles afirmam que a pesquisa intensiva e a
reflexão árdua não apresentam nenhuma evidência convincente de
outro mundo, seja ele qual for. De fato, eles proclamam todos os
relatórios acerca desse suposto mundo como enganosos ou fictícios. Em
seu juízo sóbrio, ele é uma “terra do nunca”. E a Erehwon de Samuel
Butler, e o nome dessa utopia imaginária é, sem dúvida, nowhere (lugar
nenhum) escrito ao contrário. Desta forma, o não-cristão, o incorrigível
ateu, o “playboy” sacrílego, o tirano sádico, o fideísta desprovido de
temores — nenhum deles realmente precisa permitir-se uma pontada
de medo para nublar sua consciência. Bertrand Russell assegura a todos
nós que, por ocasião da morte, apodrecemos. Expressa com tal
deselegância, embora de maneira tensa, esta é a sorte tanto dos ímpios
quanto dos justos.
Segundo Russell, é muito melhor um sono infindável do que uma
peregrinação que leva a maioria dos nossos companheiros de viagem a
um inferno sem fim.
A terceira conclusão tirada pelos examinadores do destino humano
é a do universalismo. Certas passagens bíblicas deixam entrever, no
mínimo, que a eternidade não abrange nada correspondente ao inferno
da teologia tradicional. Lá no futuro post-mortem do homem, não há
nenhum abismo sulfuroso em que as almas perdidas suportarão para
sempre um sofrimento consciente. Nels Ferré, que no começo de sua
carreira pensava de modo diferente, é absolutamente positivo ao dizer
que os teólogos tradicionais interpretaram mal os dados bíblicos. Com
uma paixão restrita, ele rejeita a distorção trágica que eles fazem da
verdade a respeito do mundo do porvir.
134 • IMORTALIDADE

O conceito cristão das últimas coisas... está diretamente baseado no


amor eterno e Gel do Senhor soberano. O inferno eterno está
naturalmente fora de cogitação, como justiça e amor inferiores. O
próprio conceito de um inferno eterno é monstruoso e constitui
insulto ao conceito das últimas coisas existente em outras religiões,
para não mencionar a doutrina cristã do amor soberano de Deus.
Essa doutrina faria de Deus um tirano, diante do qual qualquer Hitler
humano correspondería a um santo, e os campos de concentração
para torturar os homens seriam como parques de piquenique do rei.
O fato de tal doutrina ter sido concebida, para não mencionar o fato
de ser crida, mostra como muitas pessoas outrora estavam longe de
qualquer compreensão do amor de Deus, e oh! ainda estão!
Nenhum insulto pior podería ser feito contra Deus e contra Cristo,
e nenhuma blasfêmia contra Deus podería ir a estágio mais profundo
do que esta. O nome de Deus tem sido acusado de maneira incrível,
mesmo por aqueles que acreditam sinceramente que O conhecem,
O amam e O servem. Não obstante, eles servem a um ídolo, e não ao
Deus da fé cristã. Um famoso evangelista da atualidade, segundo se
conta, pregou acerca da “melhor risada” de Deus, expressa à vista
dos que são torturados eternamente! Que indescritível falta de sen­
sibilidade, de compaixão, e que dolorosa distorção do nosso Deus
maravilhoso!... Não existem pecadores incorrigíveis; Deus não tem
filhos permanentemente problemáticos... O Bom Pastor insiste em
encontrar a centésima ovelha. A misericórdia de Deus, diz a Bíblia, é
eterna -, e o amor jam ais falha.4

W illiam Barclay é tão positivo quanto Ferré, ao rejeitar a


interpretação tradicional dos dados bíblicos como um engano triste e
grosseiro. Por entre a névoa da eternidade, ele percebe um céu
resplandecente para todo membro da raça decaída de Adão, sem uma
única exceção.

Creio que é impossível estabelecer limites para a graça de Deus.


Creio que não apenas neste mundo, mas em qualquer outro mundo
que possa existir, a graça de Deus ainda é eficiente, ainda opera, ainda
atua. Não creio que sua operação esteja limitada a este mundo. Creio
que a graça de Deus é ampla como o universo.
Creio implicitamente no triunfo final e completo de Deus, opor­
tunidade em que todas as coisas lhe serão sujeitas, e quando Deus
será tudo para todos (1 Co 15.24-28). Para mim, isto tem certas
conseqüências. Se um homem permanecer fora do amor de Deus no
O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 135

fim dos tempos, isto significa que aquele único homem derrotou o
amor de D eu s— e isto é impossível. Além disso, há apenas uma forma
pela qual podemos pensar no triunfo de Deus. Se ele não fosse nada
mais do que um Rei ou Juiz, seria possível falar do seu triunfo, se seus
inimigos estivessem agonizando no inferno ou fossem completa e
totalmente obliterados e varridos. Mas Deus não é apenas Rei e Juiz
— ele é Pai — de fato, acima de qualquer outra coisa, Deus é Pai.
Nenhum pai podería sentir-se feliz, se ainda houvesse membros da
sua família sofrendo uma agonia perene. Nenhum pai consideraria
como triunfo o fato de obliterar os membros desobedientes de sua
família. O único triunfo que um pai pode experimentar é ter toda a
sua família de volta ao lar. A única vitória que o amor pode desfrutar
é o dia quando a sua oferta de amor for respondida pelo retorno do
amor. O único triunfo final possível é um universo amado e que ame
a Deus.5

O quarto grupo de examinadores apresenta um relatório menos


animado. Os membros deste partido percebem os contornos tanto de
bem-aventurança sem fim quanto de ruína perene no território
tenebroso da vida do homem depois da morte. Por isso, eles optam por
uma doutrina chamada condicionálismo. Um resumo autorizado de
suas descobertas é dado por David Dean (deve-se notar que Dean,
diplomado pelo Seminário Teológico de Westminster, esposa o ponto
de vista evangélico acerca da autoridade da Bíblia).

O oposto da imortalidade condicional é imortalidade natural — a


opinião de que todos os homens são, por natureza, imortais e
existirão para sempre. A imortalidade condicional declara que al­
gumas condições precisam ser preenchidas antes que o pecador possa
receber uma existência pessoal eterna. Essas condições são duas.
Deus precisa outorgá-la, e o homem precisa recebê-la. A primeira
condição deve ser óbvia. Visto que só Deus possui a imortalidade, só
ele pode dá-la a alguém. Deus é a Fonte de toda a vida, incluindo a
vida física dos seres humanos. Ele soprou nas narinas de Adão, e o
primeiro homem tornou-se uma criatura vivente. Ele sopra na mor­
talidade do coração do pecador, e este se torna uma nova criatura em
Cristo, vivificada como crente. Desta forma, não precisamos nos
surpreender pelo fato de Deus ressuscitar os santos no último dia e
lhes conceder a plenitude da vida eterna. Desta forma, esses corpos
fracos, pecadores e enfermos serão ressuscitados em pureza,
perfeição e poder. “Seremos como ele é ” (1 Jo 3.2).
136 • IMORTALIDADE

O Deus que ressuscita os mortos é também o Deus que confere


imortalidade como sua dádiva graciosa aos pecadores por quem
Cristo morreu. Paulo mostra que a outorga da imortalidade (ele a
chama de glorificação nesta passagem) é simplesmente o passo final
na série de coisas que Deus faz para que tudo coopere para o bem
do crente (Rm 8.28-30). A salvação é a dádiva de Deus ao homem e
inclui a outorga da vida eterna e a concessão da imortalidade. Essas
dádivas dependem da graça de Deus e são providas como resultado
da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. “Porque pela graça sois
salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (E f 2.8).
Se Deus recusar-se a propiciar imortalidade a um pecador, não há
maneira pela qual este a possa conseguir. Louvado seja Deus, ele a
propicia a todos os que crêem.
Isto nos leva à segunda condição. Por ocasião da ressurreição, o dom
da imortalidade depende somente da atividade de Deus. Mas ele não
a concederá a todas as pessoas; só aos que durante esta vida se
arrependeram e creram em Jesus Cristo! D o ponto de vista humano,
a imortalidade é condicional, dependendo do arrependimento e da
fé. Ninguém a receberá, se não crer. E ninguém que verdadeiramente
crê deixará de recebê-la.6

Todavia, qual é o destino final daqueles que, recusando-se a se


arrepender e crer, “deixam de receber a imortalidade”? É um castigo
consciente que durará enquanto Deus continuar a existir? Não, é a
obliteração da consciência, a anulação da existência. Só os que
mediante o arrependimento e a fé estão em Cristo têm vida e a terão
eternamente. Os que de forma deliberada rejeitaram Cristo estão
espiritualmente mortos e destinados à morte eterna. Ouçamos uma vez
mais a apresentação deste ponto de vista, nas palavras de autoridade de
Dean:

Na Bíblia, a vida e a morte são apresentadas como opostos. A morte


é a destruição, cessação ou perda da vida. Morte espiritual é a
destruição ou perda do desejo e da capacidade do homem de ter
comunhão com Deus. Esta condiçfio é evidente nos fatos de que
Adão se escondeu de Deus depois de ter caído no pecado e de que
os pecadores são chamados inimigos de Deus (Rm 5.10). Quanto às
aparências externas, a pessoa espiritualmente morta pode parecer
viva. Não obstante, a pessoa "que se entrega aos prazeres, mesmo
viva, está morta” (1 Tm 5.6). A Bíblia apresenta isto como morte em
delitos e pecados (E f 2.1,5,6).
O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 137

A morte física— a destruição ou cessação das funções vitais do corpo


— é o segundo resultado do pecado.
A Bíblia tom a claro que o homem é uma unidade orgânica, um ser
psicofísico que vive e funciona como pessoa completa. O homem não
é uma alma aprisionada em um corpo, nem um corpo que está vivo,
tão somente! O homem é uma pessoa completa, e cada componente
seu é necessário, a fim de que ele viva. Certamente o corpo humano
é indispensável para a vida do homem. Mas a morte física abate o ser
humano e destrói o seu corpo, de forma que cessam suas funções
vitais. Os homens são mortais, e a morte física espera a todos.
Am orte eterna, chamada na Escritura de “segunda morte” (Ap 21.8),
é a destruição completa e total dos pecadores no fogo do juízo dos
últimos dias. Nesta morte, os perdidos serão destruídos “corpo e
alma” no inferno, de forma que haverá uma perda irrecuperável da
existência e da vida pessoal. Os ímpios serão “como se nunca tivessem
sido” (Ob 16).
As mortes espiritual, física e eterna são estágios através dos quais os
pecadores não-redimidos estão passando — irreversivelmente, sem
esperança de volta.7

Esta é a visão condicionalista em relação aos pecadores que não se


arrependem e nem crêem. O seu fim é o término da sua existência.
Desta forma, o seu destino, embora não seja consciente, é eterno; o seu
castigo eterno é irreversível e imutável.
O último grupo de examinadores da vida futura é formado de
cristãos que diferem amplamente entre si em algumas opiniões
doutrinárias, mas concordam em relatar que tanto o céu quanto o
inferno encontram -se diante da hum anidade como realidades
escatológicas inescapáveis e biblicamente desvendadas. Por exemplo,
John Henry Newman, que abandonou o anglicanismo para tornar-se
católico-romano, expressa em sua Apologia Pro Vita Sua uma crença
que o protestantismo, não menos que a igreja de Roma, tem sustentado
tradicionalmente a respeito da certeza do inferno:

Este é o ponto de divergência inicial entre o cristianismo e o


panteísmo, é a doutrina crítica — você não pode evitá-lo — é a
própria característica do cristianismo. Portanto, precisamos encarar
os fatos de frente. É mais improvável que seja verdade um castigo
eterno ou que não haja um Deus? Pois se existe um Deus existe
castigo eterno (a posteriori).8
138 • IMORTALIDADE

Pelo fato de a revelação bíblica do inferno estar no mesmo terreno


lógico e exegético da revelação do céu, conforme a opinião e o veredicto
da ortodoxia cristã, é impossível prever a bem-aventurança do céu sem
ao mesmo tempo afirmar o terror do inferno, correlação esta apontada
por H. McNeile Dixon:

Os bondosos humanistas... decidiram aperfeiçoar o cristianismo. A


idéia do inferno feria suas susceptibilidades. Eles o fecharam, e para
surpresa deles a porta do céu também se fechou com um estrondo
melancólico.9

Portanto, de forma triste, porém inequívoca, a ortodoxia cristã no


fim do século XX continua a advertir que, na vida futura, as almas
impenitentes e incrédulas serão consignadas ao inferno.
Nos últimos anos, a lógica desta posição tradicional foi expressa por
C. S. Lewis em sua convincente apologia O Problema do Sofrimento, e
ele é apenas um dos mais recentes de uma longa lista de expoentes que
concordam com a racionalidade intrínseca da existência do inferno.
No entanto, a razão básica da recusa da ortodoxia em redesenhar
a sua topografia do mundo futuro é, em última análise, exegética e não
lógica. A ortodoxia empenha-se, sem dúvida, em uma discussão
racional para defender sua visão da escatologia como compatível com
a justiça, a sabedoria e o amor divinos. Com valentia, ela procura
demonstrar a nulidade das críticas levantadas contra a sua maneira de
entender o castigo eterno. Contudo, a despeito da maneira convincente
ou inferior como ela dispõe a lógica, a ortodoxia cristã sustenta
inflexivelmente a sua crença no inferno, pois diz ter a própria revelação
de Deus acerca da vida futura do homem. Não apenas isso, ela diz
entender corretamente o significado da linguagem algumas vezes
enigmática que Deus resolveu usar para essa revelação. Consideremos
como ilustradora dessas declarações a série de “Ensaios Exegéticos
Acerca de Várias Palavras Relativas ao Castigo Eterno”, que Moses
Stuart, distinto erudito bíblico, preparou e publicou em 1830, quando
a controvérsia acerca do inferno estava agitando os protestantes no
mundo ocidental. Um século se passaria antes da publicação da
monumental obra de Kittel, Wõrterbuch, para não falar das monografias
especializadas pesquisando termos e conceitos neotestamentários que
apareceram intermitentemente. A ciência filológica, ajudada pela
arqueologia, fez enormes progressos entre os anos trinta do século XIX
O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 139

e anos setenta do século XX. Não obstante, a obra de Moses Stuart


permaneceu virtualmente imune a qualquer ataque. As suas conclusões
acerca de aiõn, aiõnos, holan, Sheol, Hades e Tártaro, ainda não foram
invalidadas. Consideradas ao lado de outros dados relevantes sobre a
revelação, elas compelem os estudantes da Bíblia a crerem em um
castigo futuro, eterno, para os pecadores impenitentes e incrédulos.
Stuart, conseqüentemente, estabelece uma antítese assombrosa:

Ou as declarações das Escrituras não estabelecem os fatos de que


Deus e sua glória e o louvor e a felicidade são eternos e de que a
felicidade dos justos em um mundo futuro é eterna, ou, então, elas
estabelecem igualmente o fato de que o castigo dos ímpios é eterno.
Todo o conjunto fica de pé ou cai a uma. Devido à própria natureza
desta antítese, aqui não pode haver lugar para qualquer dúvida
racional, de maneira que assim possamos interpretar a declaração dos
escritores sagrados. Precisamos admitir a miséria infinita do inferno
ou desistir da felicidade infinita do céu.10

Stuart também desafia seus colegas de erudição a refutar seus


resultados e não simplesmente a se envolverem em contradição ou
negação. Ele assevera que

... nem contradição nem negação, neste caso, originam-se da filologia,


mas de inclinação, desejos, filosofia ou preconceito. Se não for assim,
por que a filologia não é preparada, em toda a sua força, para opor-se
à idéia de que há um lugar de castigo futuro? Quem fez isto? Como
isto deve ser feito? Todos os exemplos das Escrituras... são
produzidos nestes ensaios. Nada foi escondido. Confio que não há
nenhuma tentativa para perverter ou desperdiçar seu significado
óbvio. Estou certo de que não existe de minha parte esse objetivo.
Que esse significado seja filológica ou criticamente colocado de lado
ou que se demonstre que eles foram interpretados de forma errônea
e, no que me concerne, prometo instituir de novo outro exame da
questão.11

Depois de um século e meio, o desafio de Stuart ainda não foi aceito


nem enfrentado vitoriosamente. A Escritura ensina “a miséria infinita
do inferno” tão irrefutavelmente quanto ensina “a felicidade infinita do
céu”.
A revelação, da maneira como agora a estamos pressupondo, esta-
140 • IMORTALIDADE

belece a realidade do inferno, desvendando-o como um lugar de castigo


eterno. Será que ela, com a mesma certeza, revela como é o inferno,
contra cujo destino nosso Salvador e Senhor repetidamente advertiu?
Será que ela permite dogmatismo acerca dos detalhes de uma existência
post-mortem que parece ser de sofrimento sem mitigação? Ou será que
ela, ao mesmo tempo em que requer dogmatismo com respeito à sua
realidade, limita-nos ao agnosticismo reverente de Joseph Butler
quanto a seu conteúdo?
Concordamos que desde os tempos apostólicos os cristãos têm
dado livre curso às suas imaginações ao tra ta r deste dogma;
concordamos que um zelo bem intencionado tem se esgueirado,
e n tra n d o no serv iço da e v an g e liz a ç ã o um a h e rm e n ê u tic a
grosseiramente literalista, e até nos casos de grandes teólogos, como
Agostinho, Aquino e Jonathan Edwards, têm sido feitas figuras
lúgubres que revoltam tanto os sentidos como a sensibilidade.
Concordamos que pregadores populares — como Charles Haddon
Spurgeon, por exemplo — têm sido culpados de pintar um retrato
inconscientem ente sádico das almas perdidas. A té que ponto,
precisamos perguntar, qualquer desses pronunciamentos escatológicos
foi baseado em um estudo sóbrio, cuidadoso e refletido? Até que ponto
um Jonathan Edwards, cuja percepção filosófica é aplaudida até por
não-cristãos, é justificado com esta espécie de exposição?

O mundo provavelmente se converterá em um grande lago ou em um


globo líquido de fogo, em que os ímpios serão mergulhados, que
estará sempre em tempestade, onde serão lançados para todos os
lados, não tendo descanso nem de dia nem de noite, pois grandes
ondas de fogo rolarão continuamente sobre suas cabeças, coisa de
que eles estarão sempre bem cônscios, interior e exteriormente; suas
cabeças, seus olhos, suas línguas, suas mãos, seus pés, suas costas e
suas entranhas estarão para sempre cheias de um fogo resplan­
decente, fundido, suficiente para fundir as próprias rochas e elemen­
tos. Eles também estarão cheios da sensação mais viva e palpitante
para sentir os tormentos, não por dez milhões de eras, porém para
todo o sempre, sem ter em vista qualquer fim.12

Será que um estudo sóbrio, cuidadoso e refletido, garante — ou


melhor, exige — uma perspectiva tão horrível? Será que isto nos força
a adotar uma atitude que Walter Moberley estigmatiza como “en-
O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 141

durecimento inconcebível”? Será que ela fecha nossos ouvidos e


mentes e, o que é muito pior, os nossos corações para este comentário
de Langton Clarke?

Lembro-me de uma vez ter visitado as masmorras de um de nossos


castelos feudais e ter visto o escuro buraco no piso da masmorra, a
única entrada ou saída daquele lugar, um daqueles terríveis “lugares
de esquecimento”. Lembro-me bem de que pensei: “Como as pessoas
que ficavam lá em cima conseguiam ter o coração tão empedernido,
a ponto de se sentirem alegres e felizes, enquanto tudo isto se passava
debaixo dos seus próprios pés? E então repentinamente relampejou
em minha mente a idéia de que isto é dito acerca dos bem-aven­
turados no mundo vindouro! — que eles são supremamente felizes,
enquanto estão acontecendo continuamente tormentos de-
sesperadores e infindáveis diante de seus próprios olhos.13

Se um estudo sóbrio, cuidadoso e refletido garante — ou melhor,


exige — que concordemos com estas descrições, exposições e
asseverações tão corriqueiras, então nós, evangélicos, aparentemente
precisamos nos tornar esquizofrênicos. Precisamos isolar as nossas
“psiques”, conservando os nossos processos mentais normais e as
nossas reações emocionais incapacitadas de contaminar nossas crenças
com sanidade e compaixão. Portanto, o que garante e exige o
pensamento perscrutador cristão?
Aqui, como em muitas outras áreas difíceis da crença ortodoxa,
C. S. Lewis demonstra ser uma grande, imensa ajuda; ele é sábio, lúcido
e, acima de tudo, tem a mente desanuviada. Defrontando-se com as
ferozes objeções feitas contra a própria noção do inferno, tiradas não
apenas da arte medieval, mas também de “certas passagens da
Escritura”, ele argumenta que três símbolos dominam particularmente
os ensinos de nosso Senhor: castigo, destruição e “privação, exclusão
ou banimento”. Ele sugere que “a imagem prevalecente do fogo é
importante, porque combina as idéias de tormento e destruição”.
Então, em uma extensa passagem, desenvolve a realidade prognos­
ticada através de formas literárias bíblicas:

O que pode ser então aquilo de que as três imagens são símbolo? A
destruição, podemos naturalmente presumir, significa a eliminação
ou aniquilação dos destruídos. E as pessoas falam com freqüência
como se a “aniquilação” de uma alma fosse possível. Em nossa
142 • IMORTALIDADE

experiência, porém, a destruição de uma coisa significa a emergência


de outra. Queime um pedaço de madeira e terá gases, calor e cinzas.
Ter sido um pedaço de madeira significa agora ser essas três coisas.
Se a alma pode ser destruída, não haverá um estado de ter sido uma
alma humana? E não é esse, talvez, o estado que é igualmente bem
descrito com o tormento, destruição e privação? V ocê estará
lembrado de que, na parábola os salvos vão para um lugar preparado
para eles, enquanto os perdidos vão para um lugar que não foi
absolutamente feito para homens. Entrar no céu é tornar-se mais
humano do que jamais alguém o foi na terra; entrar no inferno é ser
banido da humanidade. O que é lançado (ou se lança) no inferno não
é um homem: são “refugos”. Ser um homem completo significa ter
as paixões obedientes à vontade e essa vontade oferecida a Deus: ter
sido um homem — ser um ex-homem ou um “fantasma perdido” —
iria presumivelmente significar consistir de uma vontade completa­
mente voltada para o Eu e paixões não controladas pela vontade.
Torna-se, naturalmente, impossível imaginar com o que a consciência
de tal criatura — já então um agregado indefinido de pecados mutua­
mente antagônicos em lugar de um pecador — poderia comparar-se.
Pode haver grande parte de verdade no ditado: “o inferno é inferno,
não de seu próprio ponto de vista, mas do ponto de vista celestial”.
Não acredito que isto interprete mal a severidade das palavras de
Nosso Senhor. Somente aos condenados é que seu destino poderia
parecer menos do que insuportável. E deve ser admitido que, nestes
últimos capítulos, à medida que pensamos na eternidade, as
categorias de dor e prazer, que nos prenderam por tanto tempo,
começam a retroceder, enquanto bens e males mais vastos surgem no
horizonte. Nem a dor nem o prazer como tais têm a última palavra.
Mesmo se fosse possível que a experiência (se pode ser chamada
assim) dos perdidos não contivesse dor mas muito prazer, ainda assim,
esse prazer negro seria de um tipo tal que faria qualquer alma, ainda
não condenada, voar para as suas orações num terror de pesadelo.14

Também de Robert Anderson provém ajuda para se quebrar a


concha das formas literárias bíblicas e, assim, extraírem-se delas os
ensinamentos pretendidos. Como inspetor da Scotland Yard na época
da Rainha Vitória, na Inglaterra, ele foi um talentoso e prolífico autor
de obras teológicas. A sua discussão de escatologia Human Destiny:
After Death — What? foi louvada por Spurgeon como a discussão mais
satisfatória que ele já havia lido acerca do problema. Depois de
examinar as teorias do universalismo, condicionalismo e aniqui-
O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 143

lacionismo e, tendo demonstrado a sua indefensabilidade segundo a


perspectiva bíblica, Anderson apresenta alguns conceitos errados que
estão em voga a respeito do inferno. Em seguida ele passa a minar as
alegações contra o castigo eterno, mediante um apelo aos princípios de
revelação. Suponha que, com um mínimo de trabalho editorial,
possamos citar com suas próprias palavras essa refutação:

1.0 destino dos perdidos é um grande mistério, mas é apenas uma


fase do mistério que coroa o mal. Tem de haver alguma necessidade
moral para que o mal, uma vez existente, deva continuar a existir...
Mediante a redenção, Deus obteve o direito indisputado de restaurar
a raça decaída, levando-a de novo à bem-aventurança. Mas quem pode
dizer que é possível que impedimentos morais rejam o exercício desse
direito e desse poder?

2. Em uma esfera em que a razão nada nos pode dizer, somos


obrigados a nos limitar estritamente às palavras da Escritura, sem
expandi-las nem fazer inferências delas. Contudo, em contraste com
isto, as palavras inspiradas têm sido usadas de maneira a produzir uma
revolta mental que põe a fé em perigo.

3. Todo julgam ento é deixado nas mãos de Jesus Cristo,


precisamente “porque Ele é o Filho do Homem”. Daí, porque ele é
tanto Filho do Homem e o Deus Filho, a Sua justiça, bondade e amor
estão além de qualquer questão ou dúvida.

4. A Bíblia não foi escrita para satisfazer a curiosidade... Com


relação ao destino daqueles que o evangelho não consegue alcançar,
ela é absolutamente silenciosa. O destino dos pagãos está nas mãos de
Deus; e “não julgará retamente o Juiz de toda a terra?”

5. Os perdidos não serão enviados a seu destino, sem serem


ouvidos. Duas vezes na Escritura eles são representados dialogando
com seu Juiz. Cada um será julgado justamente. O registro de cada vida
será desnudado. Os livros serão abertos, e os mortos, julgados, cada
homem de acordo com suas obras. Cada pecador da incontável
multidão que deve ser chamada a juízo na grande assembléia ouvirá a
sua acusação e será ouvido em sua defesa.
144 • IMORTALIDADE

6. Em vez de igualdade absoluta, a Escritura indica uma


desigualdade infinita na punição. Haverá “poucos açoites” e “muitos
açoites”.

7. O “fogo eterno” não deve ser o reino do diabo, mas será sua
prisão, não seu palácio... As figuras de linguagem que descrevem os
gritos e as maldições emitidas pelos perdidos na terra, enquanto os
demônios zombam da sua angústia ou colocam mais combustível no
fogo da sua tortura, são aliviadas da acusação de loucura somente pela
acusação mais grave de profanação ou blasfêmia. Não há nenhum lugar
em todos os domínios humanos em que o reinado da ordem seja tão
supremo como na prisão. Assim também acontecerá no inferno.

8. Obediência será a condição normal no inferno. É inútil


especular como ela será conseguida. Pode ser que o reconhecimento
da perfeita justiça e bondade de Deus leve os perdidos a aceitarem o
seu destino.

9. Não há ociosos em uma cadeia bem disciplinada; na grande


penitenciária de Deus, deve a ociosidade reinar suprema?... Devemos
supor que todas as energias dos perdidos deverão ser consumidas em
tarefas de castigo sem objetivo?... Não podemos supor que na infinita
sabedoria de Deus há propósitos para cuja realização até eles serão
feitos ministros?... Por que presumir que os perdidos irão se refestelar
em alguma masmorra gigantesca, sem nenhuma ocupação a não ser
lamentar para sempre o seu destino?

10. A Escritura não deixa dúvidas de que no mundo vindouro o


castigo do pecado será real e perscrutador. Sabemos que ele acarretará
banimento da presença de Deus e, além disso, que um amor infinito e
uma justiça perfeita medirão o cálice que cada um precisará beber.
Todavia, além disso não sabemos absolutamente nada.15

Confessamos que estes princípios de revelação, com sua inegável


mistura de extrapolação lógica, não conseguem remover todas as
dificuldades, mas de qualquer forma eles fazem do inferno uma
doutrina que não ofende o coração nem crucifica a mente.
Mais ajuda para dissipar o nevoeiro retórico desta área da teologia
O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 145

também é propiciada por Friedrich von Hügel. Ele faz distinção, por
um lado, entre “a essência da doutrina do inferno”, que considera uma
mentira “acima de tudo com respeito à eternidade daquele destino” e,
por outro lado, quanto “às várias imagens e interpretações dadas à sua
essência”. Em contraste com os espíritos salvos, raciocina ele, os
espíritos perdidos “de acordo com o grau de deserção permanente e
voluntária da sua vocação sobrenatural”, persistirão em quatro padrões
de disposição e orientação de comportamento trágicos e destruidores.
Primeiro, eles persistirão na “mera mutabilidade perturbação e
dispersão, características da sua vida terrena, que havia sido escolhida
por eles mesmos”. Só no inferno sentirão muito mais intensamente “a
insatisfação dessa sua não-lembrança permanente, mais do que a
sentiram sobre a terra”.
Segundo, os espíritos perdidos persistirão no “egocentrismo e
subjetividade variados e quase completos da vida terrena que eles
mesmos haviam escolhido”. Só no inferno sentirão muito mais
in te n s a m e n te a fa lta de c re sc im e n to , a a u to -m u tila ç ã o , o
aprisionamento envolvido nesta sua infindável ocupação consigo
mesmos, e sua ciumenta fuga de toda a realidade e não simplesmente
de si mesmos”.
Terceiro, eles persistirão “em suas reivindicações e invejoso
auto-isolamento, em sua dor avarenta e mesquinha, ao ver ou pensar
na inigualável grandeza e bondade das outras almas”. Só no inferno eles
experimentarão a consciência deste fato “de modo mais pleno e
intermitente”.
Quarto, as almas perdidas persistirão nas dores sentidas na terra —
“as dores da falta de crescimento estéril, contração... os empedernidos
e tristes, ou os irados e negligentes, à deriva em sentimentos imorais ou
infiéis agridoces, em atos e hábitos que, desta forma tolerados,
propiciam uma cegueira espiritual sempre crescente, paralisia da
vontade e uma morte viva”. Só “as próprias dores do inferno consistirão
em grande parte na percepção, da parte da alma perdida, de como é
inatingível” a oportunidade de suportar os sofrimentos santificadores
que os espíritos salvos suportaram na terra. Essa própria sensação será
uma fonte intensificadora de “dores de parto que nada dão à luz”.16
Embora toda a extrapolação de von Hügel esteja diametralmente
afastada do literalismo canhestro e ofensivo de grande parte da teologia
tradicional, ele se encontra mais próximo, segundo se subentende, da
146 • IMORTALIDADE

verdade bíblica e da realidade escatológica.


Lewis e Anderson, juntamente com von Hügel, ajudam a fazer do
inferno um dogma crível, a despeito das dificuldades residuais que
compelem ao exercício de um reverente agnosticismo e de uma fé
pós-crítica.
O que dizer, portanto, em conclusão? Os problemas que temos
estado a considerar são indescritivelmente importantes; de fato, são os
mais momentosos que podem ocupar a mente humana. É impossível
exagerar a seriedade e a urgência que a doutrina do inferno transmite
à vida aqui e agora. Como expressar isto melhor, senão repetindo as
magistrais afirmações de James Orr?

As Escrituras desejam que compreendamos agora o fato da


experiência probatória, da responsabilidade aqui. Devemos conser­
var isto em mente e, concentrando todas as nossas exortações e
insistências no presente, devemos recusar-nos a sancionar
esperanças que as Escrituras não confirmam, lutando, pelo contrário,
por levar os homens a viverem debaixo desta impressão: “Como
escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação?” (Hb
2 .3). 7

NOTAS DO CAPÍTULO

1. Citado em The Ethics of Punishment, de W. Moberley (Londres: Faber and


Faber, 1968), p. 339.
2. Citado em ibid., p. 365.
3. Citado em ibid.
4. N. F. S. Ferré, The Christian Understanding of God (Nova Iorque: Harper,
1951), pp. 228-229.
5. W. Barclay,.<4 Spiritual Autobiography (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), pp.
60-61.
6. D . A. Dean, Resurrection: His and Ours (Charlotte: Advent Christian General
Conference of America, 1977), pp. 114-115.
7. Ibid., p. 110.
8. Citado em Hell and the Victorians, de G. Rowell (Oxford: Clarendon, 1974),
p. 163.
9. Citado em The Biblical Doctrine of Judgment, de L. Morris (Londres: Tyndale,
1960), p. 69. Este livro apresenta-se reproduzido aqui (com exceção das notas de
rodapé), no capítulo 1. A citação em português encontra-se na p. 60.
10. M. Stuart: Several Words Relating to Eternal Punishment (Filadélfia:
Presbyterian Publishing Commitee, s. d.), p. 89.
O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 147

11.Ibid., p. 202.
12. F. W. Farrar, Eternal Hope (Londres: Macmillan, 1892), p. 57.
13. Citado em Ethics, de Moberley, pp. 333-334.
14. C. S. Lewis, O Problema do Sofrimento (São Paulo, Editora Mundo Cristão,
1983), pp. 90-91.
15. R. Anderson, Human Destiny: After Death — What? (Londres: Pickering and
Inglis, 1913), pp. 113-179.
16. F. von Hügel, “What D o We Mean By Heaven? And What D o We Mean By
Hell?”,£ íí« y í and Addresses on the Philosophy o f Religion (Londres: J. M. Dent, 1924),
pp. 216-221.
17. J. Orr, The Christian View o f G od and World (Nova Iorque: Scribner’s, 1897),
pp. 345-346.
6 Alan B. Pieratt

INTRODUÇÃO

Jacques Ellul, o brilhante historiador de Direito, oferece neste


capítulo suas melhores reflexões sobre a nova Jerusalém. No clássico
de Agostinho, A Cidade de Deus, usa-se a imagem de uma cidade como
símbolo do trabalho de Deus na redenção do homem ao longo das eras.
Mas, na Bíblia, ela se apresenta como um lugar real de habitação, se
bem que inteiramente singular, pois é feita unicamente pelas mãos de
Deus (Ap 3.12; 21.2). Ela surge sobre a terra no final dos tempos,
plenamente formada e em glória resplandecente. Segundo Ellul, é uma
cidade como o Éden original, um paraíso feito para o homem, no meio
da ordem natural.
Ellul enfoca os significados dos símbolos usados na descrição da
cidade, tais como seus muros, por exemplo. A maioria das cidades
antigas possuía muros para proteção e defesa contra inimigos. A
Jerusalém celeste também é circundada por uma imensa muralha, mas
dificilmente teria como finalidade a defesa. Em vez disso, Ellul sugere
que ela seria símbolo de ordem, harmonia, equilíbrio e precisão. Diz-se
que o fundamento da cidade são os doze apóstolos. Isso, diz Ellul,
refere-se à Palavra de Deus da qual eles eram portadores. As portas da
cidade carregam os nomes das doze tribos. Isso representa a origem
histórica de nossa redenção, pois foi por meio de Israel que a salvação
veio ao mundo. As belas pedras de jaspe, safira, topázio etc., que
compõem os muros da cidade, também são alistadas na Bíblia. Ellul diz
que cada uma pode ter um significado diferente. O sárdio (ou rubi?),
por exemplo, talvez se refira à realidade mais profunda e perfeita do
homem. O topázio pode simbolizar o amor de Deus. Sugere-se que a
árvore da vida dentro da cidade é a mesma que havia sido plantada no
Éden, representando, como no princípio, a certeza da cura e da vida
150 • IMORTALIDADE

eterna. Resumindo, Ellul leva-nos num passeio sugestivo pela futura


cidade de Deus. Esse período de contemplação é um tempo bem
empregado, pois esse lugar especial é um símbolo muito real da
perfeição do plano de Deus para a humanidade.
Publicado em sua origem como capítulo de The Meaning o f the City (tradução inglesa
do original francês Sans Feu ni Lieu), do mesmo autor, lançado por William B.
Eerdmans Publishing Company, nos Estados Unidos, em 1970. Traduzido integral­
mente aqui por Adiei Almeida de Oliveira.
6 Jacques Ellul

YAHWEH-SHAMMAH
O SENHOR ESTÁ ALI

De acordo com os historiadores, a Jerusalém celestial como “idéia”


é uma mistura de várias tendências presentes durante os três séculos de
história judaica que precederam a destruição de Jerusalém pelo general
Tito. Esta noção é registrada tanto em livros canônicos como em
não-canônicos: Daniel, Zacarias, Esdras, Enoque, Jubileus, os Doze
Patriarcas e Baruque. Dentre estes, o livro cristão de Apocalipse é a
única fonte que difere um pouco das outras. O centro em que todas
estas tendências se cristalizaram era obviamente a Jerusalém terrena.
Vendo os ais e sofrimentos do povo escolhido, além da destruição da
Jerusalém terrena e sua impotência, os judeus daquele período difícil,
com pletam ente desanim ador, in terp retaram as profecias que
proclamavam uma Jerusalém abençoada e gloriosa como se elas se
referissem ao fim dos tempos. Tudo o que fora prometido como vindo
a acontecer nesta terra, devia realizar-se no céu, depois do fim da
história. E sta transform ação de antigas profecias não foi feita
arbitrariamente, por causa de um desejo de justificar os profetas, mas
em resposta às próprias necessidades espirituais autênticas dos homens
daquela época. Era essencial que o povo de Deus não se entregasse ao
desespero, devido apenas às circunstâncias históricas adversas.
Ao mesmo tempo, dizem os historiadores, podemos ver entre esses
escritores religiosos o que tem sido chamado de “regressão mística”.
Em vez de conservar o pensamento forte, realista e concreto dos
profetas, eles se deixaram levar a aventuras semi-poéticas, em uma
apaixonada desordem, desconhecida entre os grandes profetas e
aparentemente não edificada sobre fundamentos muito sólidos. Sem
152 • IMORTALIDADE

outras verdades espirituais a anunciar, ou praticamente sem nenhuma,


os escritores apocalípticos lançaram-se em um delírio poético um tanto
vago. Tudo se tornou universal, os símbolos tornaram-se excessivos,
enquanto a verdade tornou-se obscura, a história era considerada uma
máquina e a falta de inspiração foi substituída por conspirações
misteriosas e cálculos livrescos, teóricos. Foi nesta atmosfera complexa
que ocorreu a transferência da Jerusalém terrena para a celestial, sendo
a Jerusalém celestial entendida como tipo acerca do qual era legítimo
interpretar tudo o que fora escrito pelos profetas acerca da Jerusalém
terrena, até o grau absoluto.
Não podemos fazer objeções contra este ponto de vista, a não ser
pelo fato de ser em sua totalidade hipótese pura e até imaginação pura.
Porquanto, basicamente, tudo depende deste conceito psicológico
muito rudimentar: as coisas estão indo mal na terra e, por isso, passemos
a depender das coisas celestiais que ainda estão por vir. Uma psicologia
um tanto sem arte e, o que talvez seja mais importante, bastante
moderna. Quem pode dizer qual era a psicologia do povo hebreu no
segundo século a. C ? Como podemos julgar — nós, que estamos tão
pouco familiarizados até com a psicologia moderna, a despeito de
Freud? Certamente, nada pode ser edifícado tendo como base os
poucos livros mencionados acima. O que me impressiona parti­
cularmente nesta busca da evolução da idéia de uma Jerusalém celestial
é que o caráter específico desta evolução não é mencionado. Deve-se
notar que esta tradição é independente de qualquer tradição de outros
países (note, por exemplo, o fracasso da hipótese que relaciona o
movimento apocalíptico judaico com o masdeísmo). Além do mais,
simplesmente não há nenhuma evidência que necessariamente leve a
pensar que os escritores apocalípticos judeus centralizaram na Je­
rusalém terrena sua visão do mundo futuro. De fato, podemos tes­
temunhar aqui o nascimento de uma nova terra surgindo do mar, um
passo radical adiante, em termos de revelação — e o último passo, pois
a revelação acerca de Cristo e sua obra precisava apenas ser completada
antes da vinda do Messias. O que os historiadores não podem confirmar
é que a noção de uma Jerusalém celestial corresponde a uma realidade
objetiva. Nenhum dado textual ou arqueológico pode lhe dar qualquer
prova irrefutável disso — só o Espírito, que fez surgir esta noção na
mente dos profetas. A humildade da história: ela dificilmente pode ser
vista como a grande senhora, terrível em sua simplicidade, que Renan
YAHWEH-SHAMMAH • 153

estabeleceu como a grande dispensadora de dogmas.


No entanto, mesmo que a interpretação dos historiadores seja
correta, em que aspectos isto pode modificar nosso ponto de vista
acerca da nova Jerusalém? O que nos impede de vê-la como a revelação
da verdade objetiva? Obviamente, não o fato de que esta noção aparece
em dado momento da história, visto que a originalidade do pensamento
judaico-cristão é precisamente que a sua revelação sempre concorda
com a história. Deus, até certo ponto, submete-se às leis da história.

* *

O utra evolução também precisa ser indicada, e é um tanto


surpreendente o fato de que, de modo geral, os historiadores não a
enfatizaram: a evolução da visão de Ezequiel até a visão de João. Estas
duas visões apocalípticas referiam-se ao mesmo assunto, mas foram
vistas e entendidas de maneiras diferentes. Ezequiel anuncia que vê
uma cidade (cap. 40), mas, na extensa descrição de fatos vindouros que
se segue, ela nunca mais é mencionada. Ele fala interminavelmente do
templo, durante sete capítulos, com todas as medidas minuciosas que
qualquer leitor de Ezequiel conhece tão bem. Por fim, nas últimas
linhas do capítulo 48, ele adiciona mais algumas palavras a respeito da
cidade, mas sua ênfase claramente está no santuário; tudo é entendido
em termos do santuário — a habitação de Deus. Por certo, este é um
dos textos apocalípticos mais antigos e deve ser situado bem antes do
movimento do segundo século a. C. Esta evolução não procede da
Jerusalém terrena para a celestial, mas do templo de Salomão para o
templo de Deus. Neste contexto, Jerusalém é, como acabamos de ver,
apenas acessória em relação ao templo. Esta evolução, portanto, é
especificamente espiritual e não social, como alguns estudiosos
gostariam de nos levar a crer. O templo de Salomão, mesmo em época
bem anterior a Ezequiel, era apenas uma imagem da habitação de Deus,
como demonstram textos bem antigos. Portanto, na descrição de
Ezequiel não há nada de novo, mas só a declaração profética daquilo
que a revelação mosaica já continha com relação à arca. Contudo, na
visão de João, tudo está centralizado na cidade. Ele não fala nada do
templo. Pelo contrário, é fortemente enfatizado que não há templo:
154 • IMORTALIDADE

“Pois o templo é o Senhor Deus Todo-poderoso e o Cordeiro”.


Estou bem consciente de tudo o que pode ser dito para explicar
esta mudança. Alguns estudiosos citarão o fato de que o templo em
Jerusalém foi destruído antes de ter sido escrita a revelação de João,
acontecimento interpretado pelas primeiras gerações de cristãos como
cumprimento da profecia de Jesus em relação ao templo. Outros
argumentam com o pensamento de que os homens não devem mais
adorar em um templo, mas em qualquer parte, em espírito e em
verdade, que é exatamente o espírito de Apocalipse. Ainda outros farão
referência ao conceito cristão de dessacralização do templo por Cristo
em sua encarnação, morte e ressurreição. Finalmente, alguns indicarão
o extraordinário deslocamento da glória de Deus, que não habita mais
no templo, mas no corpo do Crucificado. Entretanto, todas estas
explicações são insuficientes.
Sim, pois não há contradição entre estas duas visões. Elas são
coerentes. O que é importante na declaração da presença total e
exclusiva de Deus —primeiramente a sua presença no templo e, depois,
quando já se desenvolveu o conceito messiânico, em toda a cidade de
Jerusalém, que é acessória ao templo na visão de Ezequiel e que, de
acordo com o ambiente em que ele viveu, tornou-se também um
templo, pois Deus torna-se tudo em todos. Isto é apenas uma expansão
do pensamento escatológico, e é muito significativo o fato de a
Jeru salém celestial estar arraigada e fundam entada na visão
escatológica do templo e não na Jerusalém terrena. A evolução descrita
pelos historiadores é, talvez, psicologicamente verdadeira, mas não
espiritualmente. João, em Patmos, também viu um templo, mas tão
grande que se tornara a nova cidade. O próprio significado de
Jerusalém deve ser o contrapeso da Babilônia. Ela pode desempenhar
este papel apenas se ela mesma for o templo de Deus. O templo era
uma sombra das coisas do porvir, um penhor da presença de Deus na
cidade; e quando a cidade se torna propriedade de Deus, quando as
coisas do porvir chegam ao presente, o penhor e a sombra se
desvanecem diante da presença e do cumprimento. Aquilo que
Ezequiel diz quanto à cidade onde se encontra o templo deve ser
considerado uma semente, como veremos, do que João viu — o
progresso imprevisível da solene marcha de Deus, transcendendo até
em suas descrições a imaginação dos escritores inspirados. Que
distância notável entre o desanimador apocalipse de Enoque e a
YAHWEH-SHAMMAH • 155

fantástica concatenação, através dos séculos, de outros que escreveram


no mesmo Espírito!

* *

Mas quando chega a hora de falar desta nova cidade, somos


tomados de medo. Pois não devemos tentar penetrar os segredos de
Deus. Não podemos tentar desvendar o que nos está oculto. Quando
pensamos nos textos acerca dessas coisas que nos são dados, somos
tentados a ir além do que eles dizem e lançar mão do mistério que Deus
conservou para si. Podemos também ser tentados a nos entregar a
especulações intelectuais, a uma espécie de “gnosis”, que pode ser
muito atraente como diversão, mas que nada acrescentaria à nossa fé e
à nossa vida em Cristo. Os textos que falam de Yahweh-shammah são
extrem am ente m oderados, se com parados com a exuberância
apocalíptica dos outros livros judaicos. Eles não nos apresentam nem
um a explicação nem uma descrição estritam ente real do que
acontecerá. O rigor do pensamento de João acerca da Babilônia
coloca-se em agudo contraste com a nebulosidade da sua descrição de
Jerusalém, que é claramente irrealizável em forma concreta. Esses
textos evitam revelar-nos os segredos de Deus e são muito discretos
quanto aos últimos acontecimentos e sua conclusão. O que precisamos
ter em mente, antes de tudo, é que a cidade nos é apresentada como
visão, algo situado além do alcance da nossa inteligência. Não é algo
acessível às leis da nossa razão. Ela é apresentada por Deus, vista de
fora, percebida tão somente durante um piscar de olhos. As nossas
mentes não conseguem classificá-la nem dissecá-la; e não podemos ir
além desta visão. Ela não pode ser transformada em um elemento de
um sistema intelectual. Tudo o que podemos fazer é ficar tão perto
quanto possível da figura apresentada e, a partir daí, dizer o que ela é
e o que ela representava para um homem da época de Ezequiel ou de
João.
Por outro lado, não podemos perder de vista o fato de que a
linguagem dos profetas usava coisas materiais para descrever verdades
espirituais e que, obviamente, a descrição feita não é materialmente
exata. Quando somos informados de que os muros da cidade são feitos
de ouro precioso, isto, é claro, não deve ser considerado literalmente.
156 • IMORTALIDADE

Precisamos ver aqui apenas imagens, quando muito símbolos, e isto


significa que essa cidade, cuja existência é real, possui sua realidade em
uma situação complexa, nem material nem abstratamente espiritual
(como costumamos entender algo espiritual). Este é o ponto em que a
verdade a tudo encobre e assume a realidade, onde toda ambigüidade
cessa, sendo, por conseguinte, incompreensível a nós. O mesmo
problema que se levanta em relação à cidade encontramos também em
relação a nossos corpos ressurretos, uma questão que de forma alguma
podemos abrir, pois isto é um segredo de Deus.
Finalmente, precisamos aceitar uma última limitação, imposta a
nós pelo próprio alvo do livro de Apocalipse. Ela é alimento para a fé
atual da igreja e dos cristãos, tendo sido escrita como resposta a certos
problemas da vida (não para incentivar a especulação). No meio das
dificuldades e da angústia do tempo presente, a esperança ministrada
pela revelação é, em primeiro lugar, de que a nossa história tem um
significado e um propósito, que ela se encaminha para o fim mostrado
a nós na revelação da Jerusalém celestial. Esta cidade, portanto, não é
nada menos do que o objeto da nossa esperança. Ela nos fortalece pela
certeza de que os eventos da história não podem mudar o seu destino
e de que tudo deve ser dirigido em termos desse alvo único. Contudo,
não podemos considerar esta Jerusalém de forma diversa da sua
natureza revelada. Ela não pode se tornar objeto de algum sistema
místico ou conhecimento intelectual; da mesma forma, ela não pode se
tornar um meio de fuga à vida presente, que Jesus Cristo nos pede que
vivamos.
Fuga de nossas condições espirituais? A alegre esperança não pode
nos levar a esquecer a luta de fé a que somos chamados a nos empenhar.
Pelo contrário, ela está ali para nos ajudar em nosso combate. O seu
único valor está neste combate.
Fuga de nossas condições materiais? A gloriosa visão da cidade não
nos pode fazer esquecer a cidade material em que estamos vivendo. Ela
não pode nos prejudicar no trabalho material que precisamos realizar.
Pelo contrário, ela está ali para tornar esse trabalho digno de ser
realizado. Ela não tem propósitOi ,excetO em relação a esse trabalho de
que fomos encarregados por Deus, nós que somos homens plenamente
vivos e responsáveis nesta terra humana.
YAHWEH-SHAMMAH • 157

I. A NOVA CIDADE

Um quarteirão imenso, com doze portas — Jerusalém está


chegando — capaz de acomodar todos os que Deus escolheu! Ela está
descendo do céu, diz Apocalipse. Ela vem através da destruição,
anuncia Zacarias. Pois antes que ela possa vir, precisa acontecer o
rompimento definitivo entre a Jerusalém terrena e a cidade de Deus.
O maior sinal do “dia de Javé” é o colapso de Jerusalém. Isto não é um
rejuvenescimento, nem purificação, nem renovação, nem modificação
de forma, mas ruptura total, a viagem para a m orte, completa
destruição: “Congregarei todas as nações para que ataquem Jerusalém.
A cidade será tomada, as casas pilhadas, as mulheres violadas...”. Daniel
também anuncia que a abominação da desolação estará presente na
cidade santa, e Jesus citou as palavras dele. Deus destrói e constrói. O
que os profetas estão anunciando é um rompimento completo entre
Jerusalém e Yahweh-shammah. A nova cidade é única e exclusivamente
obra de Deus. Só ele a edifica (SI 51.20), sendo tanto seus muros quanto
seu templo.
Esta declaração feita pelos profetas é ainda mais importante, visto
que contradiz a opinião dos historiadores de que os judeus viam uma
continuidade entre as duas Jerusalém, sendo ligado cada aspecto ainda
mais glorioso à cidade celestial. A verdade é exatamente o oposto: só
através da destruição da cidade terrena a outra pode ser vislumbrada.
Pois a cidade, como representação de segurança humana, garantia e
força inata precisa ser destruída. Todos esses meios humanos precisam
dar lugar à segurança dada por Deus. Esta cidade precisa ser um ato de
graça (SI 51.20). O próprio Deus será a força da cidade (e não apenas
a santidade dela). Seus muros serão salvação, e suas portas, a glória de
Deus (Is 60.18). Deus diz: “Pois eu lhe serei, diz o Senhor, um muro de
fogo em redor, e eu mesmo serei, no meio dela, a sua glória” (Zc 2.5).
Isto dá a entender que o trabalho material de Deus e a sua presença são
absolutamente inseparáveis. Uma nova encarnação ocorreu, e este é o
significado literal do nome dado à nova cidade; Ezequiel nos diz que
ela será chamada ‘Yahweh-shammah”, isto é, “o Senhor está ali” (Ez
48.35). Este nome, que substituiu o antigo, ‘Yerusalem”, é a
contrapartida exata da profecia relativa a Emanuel. Em Cristo, Deus
está conosco. Na nova cidade, a sua presença será constante. A nossa
comunhão com ele não sofrerá interrupção. Mas outro aspecto dessas
158 • IMORTALIDADE

profecias precisa ser enfatizado: o simples fato de que Deus adotará o


trabalho do homem quando a nova cidade for construída, ipso facto não
dá a entender que Deus estará presente nesse trabalho. Em outras
palavras, Deus prepara um mundo novo para o homem por ocasião da
ressurreição e, para assegurar uma comunhão absoluta, Deus não é
incluído na nova criação. Ele permanece transcendental. Deus vem à
cidade, mas por natureza não faz parte dela. Deus está vindo — isto é
o que os profetas anunciam.
Quando ele edificar, virá. Ele virá do Oriente (Ez 43.2; Zc 14.4).
Que milagre na harmonia do Espírito Santo — nenhum acidente,
nenhum desígnio humano! Ele vem do Oriente, como veio Caim, a fim
de que, como Caim, edifique e habite uma cidade. A vinda de Deus
corresponde exatamente à vinda de Caim. Mas ela também completa a
viagem de Caim. Pois, se Caim nunca foi capaz de se estabelecer em
uma cidade, se ele teve que continuar permanentemente a sua viagem
e, no decorrer da história, vir do Oriente, a vinda de Deus com o mesmo
alvo de Caim põe fim às jornadas dos homens. É aí que a instabilidade
do homem chega ao fim, e Deus é o único responsável por isso, porque
lhe dá a nova cidade. Zacarias acrescenta o detalhe de que, antes de
entrar na cidade, “os seus pés (do Senhor) estarão sobre o Monte das
Oliveiras, que está defronte de Jerusalém para o oriente” (Zc 14.4).
Como alguém poderia deixar de ver nestas palavras uma profecia da
noite em que Jesus foi preso? Por esse mesmo caminho Deus entra na
cidade. Quando Jesus decidira pessoalmente ir de encontro à sua
morte, quando ele se humilhara até à mais vergonhosa condenação e
escolhera ser abandonado por Deus, então foi fundada a nova
Jerusalém. Foi então que Deus veio a ela do Oriente, antes de tomar
posse dela. Portanto, ela é uma cidade fundamentada em humildade,
construída na aceitação das decisões de Deus, na aceitação de
condenação e sacrifício. Este é o significado de Yahweh-shammah. Isto
a b re um a nova p e rsp ec tiv a para nós, um a p ersp ectiv a que
encontraremos muitas outras vezes: da mesma forma como a nova
cidade é a realização daquilo que o homem jamais foi capaz de realizar,
ela também é o oposto exato da cidade terrena, tanto nos elementos de
que é formada quanto em seu significado. Por isso, Apocalipse
estabelece um paralelo entre Jerusalém e Babilônia. Ambas são
mulheres, mas uma é prostituta e a outra, esposa. Ambas são ricas e
adornadas de pedras preciosas, mas as riquezas de uma provêm da
YAHWEH-SHAMMAH • 159

venda das almas dos homens, e as da outra são devidas à graça de Deus.
Uma cidade é um lugar de “muitas águas”, a outra tem apenas um rio,
o rio da vida. A nova cidade é a contrapartida exata do que o homem
quisera fazer — não no sentido de verso e reverso, ou tipo e antítipo,
mas no sentido do inverso de um bordado e o seu lado de cima.
Enquanto o lado em que o homem está trabalhando é uma confusão
sem forma, o lado em que Deus trabalha é o lado certo, o lado da nova
Jerusalém. A presença de Deus é o ponto essencial em tudo o que se
disser a respeito da cidade. Ele está tomando posse do mundo do qual
o homem gostaria de vê-lo excluído. Ele próprio é a cidade, visto que
é seus muros, suas portas, sua praça central e seu templo. Ele é tudo e
está em tudo. Mas, ao mesmo tempo, ele é infinitamente diferente da
cidade. Esta unidade é muito mais completa do que aquela por ocasião
da criação. Falando de modo adequado, não há mais um mundo
separado de Deus, mas um mundo em que a comunhão com Deus é
perfeita e ilimitada para todos os que vivem ali. Pois este milagre é
inseparável dos habitantes da cidade.

* *

Yahweh-shammah é sempre representado como estando em um


alto monte. “Fundada por ele sobre os montes santos” (SI 87.1). O
Espírito do Senhor “me pôs sobre um monte muito alto; sobre este
havia como um edifício de cidade para a banda do sul” (Ez 40.2). “E
me transportou, em espírito, até a uma grande e elevada montanha...”
(Ap 21.10, 11). É certa a associação entre os dois lugares onde era
realizada a adoração do Senhor, entre o templo de Jerusalém e os
montes. Com certeza, é isto que os profetas tinham em mente.
Enquanto a adoração nos lugares altos era condenada, a ponto de ser
considerada idolátrica, não pode haver dúvida de que, na revelação de
Deus ao seu povo, os montes desempenharam um papel predominante.
A adoração em Jerusalém e a adoração nos lugares altos eram
freqüentemente comparadas. Isto é confirmado por Jesus em sua
conversa com a mulher samaritana: “A hora vem, quando nem neste
monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai...”. É verdade que na nova
criação o monte não tem parte na adoração mais do que Jerusalém tem
realidade por si mesma; entretanto, ambos se encontram presentes.
160 • IMORTALIDADE

Creio que estes fatos têm ainda outro significado. Até agora
verificamos que a nova criação consiste essencialmente de uma cidade.
Contudo, muitos textos nos ensinam que toda a criação será
reconciliada com Deus, que os montes saltarão como cordeiros, de
tanta alegria, que o lobo comerá erva com o cordeiro. Desta forma, a
nova criação alcança não apenas as cidades, mas o mundo em todas as
suas formas. É declarado com toda nitidez que haverá “novos céus e
nova terra”. Esta é uma perspectiva muito mais ampla do que o ponto
que temos estado a enfatizar aqui.
Todavia, de fato a cidade ocupa um lugar especial nesta recriação:
ela está situada no monte santo. Curiosa é esta visão de um mundo novo,
“onde habita a justiça” e onde também haverá um lugar santo, um lugar
separado. Todavia, podemos captar o significado subjacente oculto:
sem dúvida, toda a natureza será transformada, mas depois da
ressurreição o homem viverá exclusivamente na cidade. Ele não estará
por toda parte na natureza. Só ali. Isto corresponde exatamente à
situação do Éden: aquele era um jardim no meio da criação, e não toda
a criação. O Éden era um lugar limitado, feito para o homem e o resto
da criação —no princípio, independente. Depois de criar o céu e a terra,
“plantou o Senhor Deus um jardim no Éden... e pôs nele o homem que
havia form ado” (G n 2.8). No fim dos tem pos, a nova cidade
corresponderá a este jardim. Isto confirma o que estávamos falando
acima, acerca de um a linha progressiva, que vai do Éden até
Yahweh-shammah. É um lugar limitado feito para o homem, e a
natureza volta a seu estado relativamente autônomo. Outro ponto é que
esta cidade é santa, está no monte santo, a cidade do Senhor. Isto
significa que ela é o único lugar, em toda a nova criação, onde habita a
glória de Deus: “E me mostrou a santa cidade, Jerusalém, que descia
do céu, da parte de Deus, a qual tem a glória de Deus... A cidade não
precisa nem do sol, nem da lua, para lhe darem claridade, pois a glória
de Deus a ilumina, e o Cordeiro é a sua lâmpada” (Ap 21.10,11,23).
“Pois eu lhe serei, diz o Senhor... no meio dela, a sua glória” (Zc 2.5).
Dizer que Deus é a glória dela é outra maneira de dizer que Deus está
presente ali e que ela existe apenas até o ponto em que a presença dele
está ali. Mas há também o fato de que ela tem em si mesma a glória de
Deus. Esta é a manifestação da sua presença ou, mais exatamente, o
meio pelo qual Deus é designado em sua realeza. “Deus se glorifica
quando se mostra da maneira como é”, diz Karl Barth. Desta forma,
YAHWEH-SHAMMAH • 161

nesta cidade, e apenas ali, Deus se mostrará como ele é, na era da nova
criação. Isto significa que ele estará com todos e para todos,
verdadeiramente o centro e a plenitude da criação, o centro então
revelado a todos, em toda parte. Por isso, a cidade precisará estar no
monte mais elevado, um lugar para o homem, um lugar para a glória
divina, visto de toda a criação, elevado até o ponto mais alto de toda a
natureza — não para ser glorificado em si mesmo, mas a fim de que
toda a criação possa se voltar para o Deus que não é mais um Deus
oculto e que aparece nos muros resplandecentes de ouro precioso e na
luz eterna com que rebrilham as portas de pérola. Esta é a explicação
da profecia antiga. Quase não precisamos acrescentar que os autores
dessas obras não colocaram conscientemente todas estas minúcias em
seus sinais, pois estes só puderam assumir o seu significado e valor
plenos depois da vida, morte e ressurreição de Cristo.

* *

Esta cidade não é apenas o centro da nova criação, mas também o


centro das nações; e Deus lhe dá um papel muito singular para
desempenhar com respeito a elas. Primeiramente ela precisa ser “um
cálice de tontear” para as nações (Zc 12.2). Tontura, tremor, incerteza.
Quando as nações da terra vierem a se colocar diante de Jerusalém,
serão feridas de cegueira. Elas não saberão nem o que fazer nem o que
dizer. Mediante a presença de Jerusalém, elas são privadas, por assim
dizer, dos seus alvos e da sua vontade — porém, por algo mais do que
a presença dela. A palavra “cálice” é significativa. É sabido que, no
pensamento hebraico, dar um cálice é determinar o destino de alguém.
Dar a alguém um cálice de bênção não é tanto abençoar aquela pessoa
quanto colocá-la em separado, por um ato mágico, no caminho das
bênçãos. O mesmo acontece no sentido oposto. Aqui vemos que
Jerusalém é dada para as nações como “cálice de tontear”, isto é, a
cidade nova vencerá as nações e as encherá de uma intoxicação que lhes
tirará seu verdadeiro significado. Este é o primeiro ato da progressão
através do julgamento das nações até a gloriosa procissão que sobe em
direção à nova cidade. Para isto é estabelecido o novo laço entre os
homens, seus reis e suas nações e a cidade santa, que eles recebem do
alto. Esta cidade, antes de tudo, não é mais a cidade da escravidão, nem
162 • IMORTALIDADE

o mundo de confusão. As portas de Yahweh-shammah devem estar


sempre abertas. “Abri vós as portas!”, clama o profeta (Is 26.2). Todos
os outros textos refletem esta ordem: “As tuas portas estarão abertas
de contínuo; nem de dia nem de noite se fecharão” (Is 60.11). “As suas
portas nunca jamais se fecharão de dia, porque nela não haverá noite”
(Ap 21.25). Portanto, ela é um lugar limitado para o homem, mas
sempre aberto. Jerusalém é uma cidade aberta.
Em nossos dias, a noção de uma cidade aberta tem um significado
um tanto diferente. Quando Paris foi declarada cidade aberta, ficamos
sabendo que a guerra havia terminado — mas em uma derrota
vergonhosa. Roma tornou-se também uma cidade aberta — mas
bombardeada e massacrada! E Jerusalém foi declarada cidade aberta
em 1948 — mas a decisão militar dos homens só iniciou um novo
período de provocação e derramamento de sangue. A cidade aberta de
nossos dias não é nada mais do que uma cidade derrotada pedindo
misericórdia e um sinal do que a está ameaçando.
A abertura de Jerusalém, por outro lado, é de triunfo e realização,
para permitir aos homens chamados por Deus que entrem e, o que é
ainda mais importante, para permitir que todas as nações entrem. “As
tuas portas estarão abertas... para que te sejam trazidas riquezas das
nações, e, conduzidos com elas, os seus reis” (Is 60.11). Que outros
vejam aqui o pensamento político de Isaías, seu liberalismo econômico
e suas políticas de aliança. Eles têm este direito. Mas este não é o nosso
assunto e, provavelmente, também não é o significado das profecias,
pois Apocalipse responde: “As nações andarão mediante a sua luz, e os
reis da terra lhe trazem a sua glória” (21.24, 26).
Esta é outra tradição constante em Israel. Já estudamos aquele
salmo magnífico que proclamava este ponto de vista acerca do fim da
história — o fim glorioso, quando as nações da terra marcharão
triunfantemente em uma imensa coluna na direção da consecução de
todos os seus alvos, numa procissão inumerável, estando os homens
sábios indo ao berço de Belém como sua escolta profética. Este é o fim
glorioso de todos os seus esforços —a glória do homem adquirida como
tributo para a cidade! Eles estão vindo do recenseamento mais
prodigioso jamais realizado, ao lugar que se tornou seu lar e lugar de
nascimento. E o Senhor diz; “Dentre os que me conhecem, farei
menção de Raabe e de Babilônia; eis af Filístia, e Tiro com Etiópia; lá
nasceram. E com respeito a Sião se dirá: Este e aquele nasceram nela...”
YAHWEH-SHAMMAH • 163

(SI 87). Jeremias acrescenta a sua confirmação: “Naquele tempo


chamarão a Jerusalém o trono do Senhor; nela se reunirão todas as
nações em nome do Senhor” (Jr 3.17). E as nações se tornam os povos
de Deus. Apocalipse apresenta-nos um belo plural (21.3). Não existe
um povo de Deus escolhido dentre as nações. Todos agora estão unidos
em Deus, mas ainda mantêm suas particularidades, suas riquezas
individuais.
Por que mencionar de novo o que já dissemos a respeito da nova
cidade como lugar de reunião e não de dispersão? Babel já não existe,
deixou de existir porque Yahweh-shammah desempenha o papel que
Babilônia tentava desempenhar. Ela se tornou o ornamento das nações
(Is 60.15), o próprio título dado à Babilônia (Is 13.19). Mas em tudo isto
não cabe nenhuma glória ao homem. Todavia, aqui mesmo verificamos
que é realizado o alvo do homem de colocar na cidade toda a sua
grandeza, toda a sua força e todas as suas riquezas.
Como é im portante não en ten d er estas profecias em um
sentimento pejorativo e restritivo! Como é importante que não digamos
nada assim: “Esses judeus e cristãos — que destino pretensioso! As
nações precisam se tornar sujeitas à sua maneira de ver as coisas. Elas
precisam aceitar o jugo da sua cidade e a dominação do seu poder.
Todas as riquezas de todos os esforços humanísticos devem convergir
em sua história pessoal. (Humanismo, porque até o pensamento
intelectual e as artes estão incluídos: ‘Todos os cantores saltando de
júbilo entoarão: Todas as minhas fontes são em ti’ — SI 87.7.) O
egoísmo de uma fé estreita, o sectarismo do povo que pensa que a
verdade lhe pertence!”
Mas isto é exatamente o oposto do verdadeiro significado dos
textos. O ato de Deus é uma resposta à oração e não uma vitória
esmagadora. É um ato de graça e não de constrangimento. O que o
homem tem estado a buscar, desde a alvorada da civilização, ele
finalmente encontra quando Deus lhe oferece a nova cidade — a soma
de todos os seus esforços. As nações não trazem suas riquezas apenas
a fim de tornar rica a cidade dos cristãos; elas o fazem para o bem de si
próprias. Os reis não trazem a sua glória para aumentar a dela. Pois que
glória histórica podería jamais aumentar aquela que jorra da presença
do Senhor? Pelo contrário, eles trazem a sua glória a fim de vê-la
transfigurada. O que o homem queria da sua cidade, ele por fim obtém
—na visão única, promessa e realidade, no fim dos tempos. As riquezas
164 • IMORTALIDADE

e a glória fugidia do homem (quem podería negar que assim é?)


tornam-se eternas quando são trazidas e depositadas nesta cidade de
portas abertas, nesta cidade aberta onde, por fim, reina a segurança.
Podemos ver como Deus completa para todas as civilizações o que ele
fez para a cidade. Podemos ver como a cidade é verdadeiramente o auge
de toda a história. A nossa tarefa, é bom que o digamos novamente, não
é julgar pessoalmente essas riquezas; não devemos decidir quem pode
entrar na cidade. Pois as nações e os reis estão vindo, e anjos devem
embelezar as suas portas. Nada nos é dito do que então acontece.
Sabemos que eles não são o querubim flamejante que guardou as portas
do Éden, mas os anjos benevolentes que Deus constituiu mensageiros
da sua graça. Nada é dito dos julgamentos que eles podem fazer para a
gloriosa congregação de homens e coisas que se acumularão a seus pés,
das grandes decisões que eles deverão tomar entre as inúmeras obras
dos homens. Mas temos uma boa descrição dos homens que habitarão
a cidade. Eles não têm mais que conquistar a glória ou a beleza
humanas. Eles verdadeiramente já receberam seu quinhão.

* *

A mesma antítese que encontramos entre os habitantes de


Yahweh-shammah e a condição do homem, encontramos entre a
p ró p ria cidade nova e as cidades terrenas. Os habitantes de
Yahweh-shammah tam bém são diferentes da multidão humana,
embora sejam inumeráveis. Aqui não podemos tratar dos problemas
genéricos de escatologia ou do julgamento. Estamos preocupados com
os habitantes da cidade. Eles são caracterizados, como já dissemos, pela
comunhão com Deus. Mediante essa comunhão, eles se tornam e
permanecem justos. A contra-criação do homem é recriada, de forma
que agora (algo que não conseguimos entender) ela é, ao mesmo tempo,
plenamente livre como criação individual, em total comunhão com
Deus, e plena unidade com os homens. A cidade de divisão tornou-se
a cidade de conhecimento e de unidade em todas as suas formas. Isto é
o que também significa o fato de ela ser “a noiva, a esposa do Cordeiro”
(Ap 21.9). A primeira mensagem deste versículo é esta: tudo o que lhe
concerne e tudo o que diz respeito aos habitantes da cidade é dirigido
a Jesus Cristo. Mas isto também nos leva necessariamente à figura da
YAHWEH-SHAMMAH • 165

igreja como corpo de Cristo ou como sua noiva; à ligação entre Jesus e
sua igreja, a mesma ligação que une um homem e sua esposa. A noiva,
por fim, aparece aos olhos de todos como a noiva que ela realmente é.
Desta forma, a cidade segue e toma o lugar da igreja. Ela cer­
tamente não é a igreja, nem no presente nem no futuro. A sua natureza
não é a da humilde serva dos tempos históricos. Aqui também vemos
uma transposição: não é apropriado dizer que a igreja triunfante sucede
a igreja sofredora, nem é apropriado dizer que na nova criação não
haverá igreja. De fato, a cidade criada por Deus torna-se a substituta
da igreja da maneira como a conhecemos, mediante uma extraordinária
síntese da obra do homem adotada por Deus e a obra do Espírito levada
à perfeição. O que conhecemos de maneira medíocre será então vivido
plenamente na cidade. Podemos dar um passo a mais? Precisamos pelo
menos mencionar que os habitantes daquela cidade se gloriarão todos
na extraordinária luz que provém dos olhos de Deus.
Toda a visão explode em luz —as pedras do alicerce da cidade, com
suas facetas brilhantes, mencionadas por Isaías, a brancura das
vestimentas, as águas cristalinas, o ouro resplandencente. Tudo irradia
uma luz que provém de Deus. Mas este ouro não é mais o ouro pesado
e orgulhoso da Babilônia — ele é leve e transparente como cristal. Ele
se incendeia com a glória de Deus, e o Cordeiro é a sua chama. Os
habitantes da cidade moram na luz que ilumina todas as nações (Ap
21.24). “Eu sou a luz do m undo”, disse Jesus, e isto tem seu
cumprimento agora, como indica o tempo presente do verbo usado pelo
Filho do homem. A oposição do mundo não pode impedi-lo de ser o
que ele é. A cidade, em seu reino de trevas, pode recusar a luz, mas, no
fim, esta luz a atravessa, e nada escapa a esta reconciliação. Assim, seus
habitantes tornam-se verdadeiramente filhos da luz, e isto, talvez, é o
que os caracteriza melhor. As trevas da cidade, as trevas da tristeza do
homem na cidade, as trevas de suas obras, tudo foi transformado pela
vinda dessa luz sem par. Ali não permanece nada mais que seja impuro,
nada mais que seja morto; as faces mortas dos homens da cidade
brilham repentinamente com a beleza de Deus.
Entretanto, quem é digno, quem é digno de uma coisa dessas?
Ninguém, ninguém por si mesmo possui esta luz. O segredo de Deus
está inteiramente à disposição dos que entram, dos que estão na luz,
assim como Deus dá graça por graça. Isto é tudo que podemos dizer,
pois o rei da luz é também o Filho do homem.
166 • IMORTALIDADE

II. O SIMBOLISMO

Nos dias de hoje, não está mais em moda sondar o significado


simbólico e figurado de um texto bíblico. A razão é fácil de perceber:
este costum e deixa a porta aberta para tanta fantasia, que é
perfeitamente inteligente rejeitar este método. Entretanto, há um
aspecto do simbolismo que não pode de forma alguma ser eliminado;
trata-se do simbolismo usado conscientemente pelos autores bíblicos
para expressar seus pensamentos. Todos eles viveram em época em que
era comum usar símbolos, e eles também os empregaram, não tanto
para ocultar o que estavam falando (o que nos parece ser a causa,
porque perdem os o significado de seus símbolos) quanto para
explicá-lo de maneira a que seus leitores estavam acostumados.
Precisamos descobrir o significado que eles davam aos seus símbolos,
para que não entendamos de maneira errônea a mensagem desses
textos. Se nos recusarmos a fazê-lo, seremos semelhantes ao leitor de
um livro de álgebra que se recusa a enxergar a realidade oculta por trás
dos símbolos algébricos, usando o pretexto de que tal linguagem não é
clara. Neste caso, ainda teremos a idéia geral, a direção genérica que
os textos estão tomando, mas todos os detalhes propositalmente
inseridos pelo autor (com a intenção de provar suas idéias) nos
escaparão. Não somos obrigados a crer, por exemplo, que o número
sete é, por si mesmo, o número perfeito, mas devemos entender, cada
vez que o encontramos nas Escrituras, que o autor o colocou ali para
expressar a idéia de perfeição. Embora este simbolismo seja constante
em toda a Bíblia, ele é mais desenvolvido nos textos apocalípticos. O
que esta forma de expressão nos ensina acerca da nova cidade?
Na série de símbolos relacionados com a cidade, alguns são
perfeitamente claros e simples. Jerusalém é cercada por um muro, mas
este muro já não tem o significado de um artifício para defesa, de uma
ruptura entre interior e exterior. Pelo contrário, é o sinal de ordem,
harmonia, equilíbrio, precisão. O fato de a cidade santa ter como seu
alicerce os doze apóstolos obviamente significa que ela está alicerçada
na Palavra de Deus. O que importa não são os apóstolos como pessoas,
mas o fato de que eles foram portadores da Palavra. Esta cidade é o
oposto da confusão de línguas, o oposto de Babel. Só neste fato já temos
a solução para toda a tragédia da nossa história. O fato de as portas da
YAHWEH-SHAMMAH • 167

cidade ostentarem os nomes das doze tribos de Israel é também muito


simples de interpretar. O autor está dizendo que se pode entrar na
cidade apenas através de Israel, que, com seus anjos, guarda as suas
portas (não São Pedro). Israel é “restaurado à sua unidade e verdadeiro
destino, o de ser uma porta aberta para a glória do Reino divino”. Todos
precisam, por assim dizer, tornar-se membros de Israel, a fim de
pertencer ao povo de Deus, como o próprio Paulo ensinou. Isto dá a
entender que aquilo que é estabelecido pela eleição é a ligação entre o
homem e a cidade, e não a ligação de poder ou, acima de tudo, daquele
pertencer inconsciente ao mundo dos demônios que caracteriza os
habitantes da cidade.
Contudo, outros símbolos são menos claros.

* * *

Em primeiro lugar, consideremos os números simbólicos. Há


apenas dois: “quatro” e “doze”. O número quatro não é declarado
expressamente. Apocalipse diz apenas que Jerusalém é edificada como
um quadrado, até mesmo como um cubo, visto que a sua altura é igual
à sua largura e ao seu com prim ento. O núm ero “q u a tro ” é
tradicionalmente o número do universo, que era compreendido, na
antigüidade, de acordo com um ritmo de quatros: os pontos cardeais,
as quatro estações, quatro reinos, quatro elementos, e quatro até
mesmo como o número do corpo humano. Portanto, este número
expressa toda a criação. Quando Jerusalém é assim apresentada,
edificada na forma de um retângulo, isto significa que simbolicamente
ela inclui toda a criação — por um lado, porque nela todos os povos e
nações são chamados e, por outro, por ser a pedra fundamental de toda
a criação, por ela conduzida à luz de Deus. Mas Jerusalém tem forma
cúbica, e isto lhe dá um significado um pouco diferente: o cubo é
símbolo de força, constância, firmeza, e nos livros sacros Deus
recomendou o uso do cubo (por exemplo, na arca). Este símbolo
espiritual foi interpretado por Santo Agostinho da seguinte maneira: o
cubo é o símbolo dos que são predestinados, indicando que nenhuma
tentação ou queda pode causar a sua rejeição definitiva (Gn 6.14).
Deixaremos por conta de Agostinho a responsabilidade por esta
exegese, mas se ela corresponde ao pensamento bíblico, isto significa
168 • IMORTALIDADE

que a cidade de Deus é definitivamente a cidade dos predestinados e


que nada pode jamais removê-los da comunhão com Deus; a forma do
cubo é a garantia de que a história da tentação e queda nunca mais
poderá começar outra vez, pois tudo foi realizado.
Todavia, o número predominante em Apocalipse é doze. Há doze
portas e doze fundamentos; o muro tem 144 côvados de altura (12x 12)
e sua circunferência é de 12.000 estádios. Ora, doze é o produto de três
e quatro, o que significa simbolicamente o produto de Deus (visto que
ele é trino) e a criação. Portanto, esse número expressa uma realidade
complexa. Em primeiro lugar, expressa a unidade que mencionamos
entre Deus e a sua nova criação, que nunca mais poderá ser destruída.
Esta unidade produz uma realidade superior a qualquer realidade que
tenha existido antes na criação (este é o significado da multiplicação),
indicada a nós primeiramente pela igreja como corpo de Cristo, mas
que assume o seu significado pleno apenas em sua forma concreta como
a cidade santa. Por outro lado (este é um modo um pouco diferente de
expressar a mesma verdade), o número doze expressa a difusão da
Palavra de Deus, da sua Palavra e do seu Espírito, a todas as partes da
criação. Portanto, “doze” é o algarismo ecumênico par excellence,
indicando que a criação está cheia do Espírito Santo. O número doze
é, por conseguinte, o número do triunfo, porque expressa o resultado
final da obra de Deus, que era reconciliar o mundo consigo mesmo. Não
expressa muita coisa que já não tenhamos visto com clareza no texto,
mas reforça e enfatiza fortemente esse significado. Em todas estas
coisas, mais do que tudo, a visão de João corresponde àquela de
Ezequiel, uma vez que este também apresenta a cidade com doze
portas. Havia quatro muros, e cada muro tinha três portas.
Outro elemento comum a João e a Ezequiel é o símbolo da vara de
medir. As medidas tomadas pelo anjo para a nova Jerusalém são feitas
com uma vara de medir, com um caniço de ouro. O ato de medir
expressa o estabelecimento de limites protegidos. O perímetro da
fortaleza é estabelecido. O limite até onde qualquer inimigo pode
chegar é traçado. Isto é bem claro no livro de Enoque. Mas também
pode ser um limite para a ação de Satanás ou para a condenação
pronunciada por Deus. O fato de que o anjo está medindo a cidade
significa que ela está absolutamente protegida tanto das ameaças de
Satanás quanto dos juízos de Deus. Portanto, o julgamento é impedido.
Isto se torna ainda mais certo quando pensamos que o caniço é feito de
YAHWEH-SHAMMAH • 169

ouro: é, por conseguinte, uma vara de medir perfeita, com uma


finalidade celestial. Contudo, dirão os exegetas racionalistas,
Apocalipse refere-se aqui à “medida de homem, isto é, de anjo” (Ap
21.17). Isto significa que João crê que no céu as medidas usadas são as
mesmas do homem. Este é apenas mais um exemplo dos grosseiros
antropomorfismos desses textos. Contudo, precisamos responder, por
certo isto é ver as coisas ao contrário. Pois esta identificação não
significa que “no céu” encontraremos medidas de homem, mas que
nessa ocasião haverá semelhanças entre homens e anjos, e os atos de
anjos serão também atos do homem que atingiu a sua estatura perfeita!
Não podemos isolar este texto de outros que ensinam, juntamente com
o evangelho, que os homens “serão como os anjos no céu”. Esta é a
forma que o vidente de Patmos encontrou e escolheu para nos informar
que, até em seus atos, os habitantes da nova cidade dependerão de um
poder espiritual diferente do poder da cidade tradicional. Outro anjo
encontra-se ali. Tudo é novo.

4c 4c 4c

Os muros da cidade estão apoiados em doze fundamentos feitos de


doze pedras preciosas. A tradução apropriada dos nomes dessas pedras
é bem clara, mas o significado de várias delas é extremamente difícil de
determinar. Que se pode dizer do crisópraso ou do ônix? Até as pedras
com que estamos mais familiarizados, como jaspe ou topázio,
apresentam problemas. Quando lemos o que Plínio escreveu a respeito
delas, começamos a duvidar de que ele esteja falando das mesmas
pedras, embora elas sejam designadas hoje pelos mesmos nomes que
tinham na Roma do primeiro século. Todavia, o problema torna-se
ainda mais complicado quando vemos que estas são as mesmas pedras
engastadas no peitoral do sumo sacerdote do Antigo Testamento,
fazendo-se delas uma longa descrição nas listas de Êxodo, quanto às
vestes usadas pelo sumo sacerdote ao executar suas funções. Entre elas
se encontra um peitoral chamado peitoral do juízo (Êx 28.15ss.). Sobre
esse peitoral estão doze pedras, em quatro fileiras de três cada uma,
engastadas em ouro e unidas ao tecido que formava o bolso para conter
o Urim e o Tumim. Nessas doze pedras estavam gravados os nomes das
doze tribos de Israel. Isto nos é enigmático. Qual é o significado dessa
170 • IMORTALIDADE

obra de ourives? Para começar, ficamos quase completamente às


escuras quanto à identidade das pedras usadas.
As palavras hebraicas que as designam são dificilmente usadas em
outros textos, e a maioria delas não provém de raiz hebraica, mas
aramaica, cananéia ou outra origem indeterminada. Alguns tradutores
simplesmente transliteraram as palavras hebraicas, enquanto outros se
referiram ao texto de Apocalipse, imaginando que são as mesmas
palavras. Esta hipótese não é absolutamente gratuita ou imaginária,
pois os poucos nomes identificáveis correspondem com exatidão à lista
de João, a saber: topázio, esmeralda, safira e jaspe. Além disso, João
escolheu claramente as pedras segundo o seu significado, como
veremos, e as traduções de Êxodo para o grego vertem os nomes dessas
pedras com as mesmas palavras usadas em Apocalipse (com uma
exceção). Assim, a tradição é muito antiga, e podemos aceitar a
identificação dos doze fundamentos de Yahweh-shammah como as
doze pedras do peitoral. Mas isto não nos ajuda muito. O enigma ainda
é o mesmo: por que estas pedras? Por que foram escolhidas estas e não
outras? Qual é o seu significado? Alguns estudiosos têm tentado
explicá-las em relação ao simbolismo da cor, mas isto é muito incerto,
pois não temos certeza nem sobre as pedras com que estamos lidando.
Sem dúvida, todas elas são pedras translúcidas, e toda esta luz
colorida tem levado algumas pessoas a dizer de modo errado que João
conhecia muito bem o seu esquema de cores. Há jaspe iridescente —
muitas cores, atraindo todas as cores, outrora chamada a pedra de Deus,
por causa das muitas nuanças de cor que ela reduzia à unidade. Há o
violeta e o azul irradiando-se do jacinto e da ametista, o azul profundo
da safira, o verde da esmeralda, unidos com o vermelho do sárdio. Estas
cores definidas colocam-se em oposição às sombras mais misteriosas e
complexas do jacinto, a unha humana revelada no ônix, e a safira que
pode ser incolor, mas é toda luz. Contudo, a mágica da luz não é
suficiente para explicar a razão pela qual os profetas e apóstolos
escolheram estas pedras, quando nada no pensamento hebraico
leva-nos a esse simbolismo.
Outros estudiosos têm aventado a hipótese de que elas são as
pedras do zodíaco. Mas o que conhecemos a respeito do zodíaco de
forma alguma corresponde com o pouco que podemos aprender das
doze pedras do peitoral do sumo sacerdote. Alguns historiadores e
exegetas, por outro lado, têm chegado à conclusão de que essas pedras
YAHWEH-SHAMMAH • 171

preciosas podem não ter nenhum significado. É fácil presumir que, visto
que os sacerdotes egípcios e babilônicos também tinham placas
adornadas com pedras preciosas, os judeus estavam apenas imitando o
que acontecia entre os pagãos. Mas isto dificilmente é provável, visto
que o resto das vestimentas do sumo sacerdote não imitava as dos
egípcios. Mais do que isso, as pedras dos amuletos egípcios não tinham
nada a ver com o que podemos aprender das doze pedras do relatos
bíblicos. Podem os nós acreditar que as doze foram escolhidas
absolutamente ao acaso ou pelo fato de serem abundantes em Canaã?
Por que pedras diferentes? Por que tal abundância de detalhes
explicativos, se tudo isto não tem significado algum? O fato de alguém
querer uma jóia somente por luxo ou por sua beleza não contraria a
mentalidade do nono século a. C. ou mesmo do século sétimo a. G ?
Tudo parece indicar que a escolha dessas pedras tem algum significado.
Entretanto, onde encontrá-lo?
É claro que havia um simbolismo das pedras usadas em artes
mágicas. Todas as pedras preciosas eram usadas em prescrições
médicas e na feitiçaria, e é surpreendente notar que há uma certa
concordância entre os poderes atribuídos às pedras pelos textos
mágicos caldeus, por exemplo, pelos romanos e, mais tarde, pelos textos
mágicos medievais. Mas esta certam ente não é a direção que
precisamos seguir. Não é pelo fato de que se pensava que o sárdio
removia tumores e o carbúnculo expulsava demônios, que a fé do povo
israelita as usava para expressar uma verdade divina. Isto se contrapõe
ao cerne de tudo o que Israel recebera como verdade. Nenhuma coisa
criada jamais fora considerada como detentora de poder inato, por si
própria. Não por terem algum poder mágico inerente é que essas pedras
foram escolhidas, mas, sim, por uma razão contrária à mágica: elas
designavam algo divino. As únicas vozes que podemos ouvir, portanto,
são as dos rabis que através dos séculos expressaram o significado dessas
pedras para o povo de Israel. Não nos importa saber que significado
inato essas pedras podiam ter ou quais eram seus poderes, pois sabemos
que, se elas foram colocadas no peitoral do sumo sacerdote, isto se deu
por terem um significado para o povo de Deus, quando este se reunia
para contemplar a majestade daquele personagem, quando ele entrava
no Santo dos Santos. E se João as viu nos alicerces da nova Jerusalém,
certamente foi pelos mesmos motivos que haviam chamado a atenção
de Israel no passado e que não haviam mudado. Assim, as razões eram
172 • IMORTALIDADE

puramente simbólicas. O problema é que os rabis eram muito discretos


quanto aos seus significados simbólicos, e mesmo aqui precisamos nos
contentar com imaginação e alguns indícios. O ’odhem (rubi ou
sárdio?), segundo se pensava, era um símbolo de fogo e sangue e estava
ligado ao próprio homem; contudo, ao homem como Deus desejava que
ele fosse em Adão. Assim, talvez esta pedra seja o sinal da realidade
mais profunda e mais perfeita do homem. A pedra seguinte na primeira
fileira é o topázio, símbolo do amor de Deus, aquele que perdoa
pecados e ama a seus inimigos, que inclui toda a natureza no seu amor.
Este amor era descrito pelo verso secreto: Natura deficit, Fortuna
mutatur, Deus omnia cemit. A terceira, a esmeralda, é a pedra do
relâmpago e do golpe de espada semelhante ao raio, sendo também o
símbolo de castidade e de palavras verdadeiras, de virgindade e
imortalidade. A segunda fileira começa com nophekh, que tem nela
inscrita o nome de Judá. Ela brilha “como um carvão incandescente” e
é o símbolo da união com Deus que, desde o início da era cristã, era
ligada com a Última Ceia: para os primeiros cristãos, nophekh era o
símbolo da Santa Ceia. A safira é a pedra de que era feita o trono de
Deus, de acordo com Ezequiel (1.26), e o seu próprio nome está ligado
com a escrita, com a fala e a inscrição, uma imagem para o povo de
Israel do homem que fala a verdade —a pedra dos oráculos verdadeiros
e dos milagres da justiça de Deus. A pedra seguinte é a yahalom (ou
diamante?), símbolo de força ou daquilo que não se quebra nem se
modifica. A terceira fileira começa com uma pedra desconhecida, a
leshem, acerca da qual somos informados apenas de que ela representa
a caridade do homem pelos outros homens, e a sua humildade. A
shebbo, cuja raiz hebraica faz lembrar a idéia de cativeiro, parece
designar completa felicidade em Deus, no sentido de que o homem é
feliz em ser um cativo de Deus. Esta fileira termina com uma
’achlamah, também desconhecida, que não podemos identificar nem
quanto ao nome nem quanto ao significado. Alguns a consideram como
símbolo de um salário ou recompensa dada por Deus. Outros enxergam
uma ligação com o significado da sua raiz e a interpretam como
referência ao sonho profético pelo qual o homem recebe uma revelação
pessoal de Deus. A décima pedra é o tarshiysh, à qual normalmente são
atribuídos poderes perniciosos, mas aqui ela representa a posição do
homem diante de Deus — quebrantado, esmagado, mas recebendo
forças de Deus, em quem habita. A penúltima pedra é ashoham (ônix?),
YAHWEH-SHAMMAH • 173

a pedra do medo: o homem perturba o seu mundo e prostra-se diante


de Deus, que afasta a vergonha do homem prostrado. Esta lista de
p ed ras preciosas term in a com o jaspe, sinal de destituição,
simbolizando arrependimento ao qual Deus responde outorgando
purificação.
Para conservarmos estes valores simbólicos, precisamos ler o
peitoral de baixo para cima. A fileira de baixo contém os sinais ou
símbolos do arrependim ento, tem or e humilhação do homem,
enquanto as fileiras superiores contêm os sinais do encontro do homem
com Deus, de caridade, da força para chegar à união com Deus, à
verdade, e da estrutura de um homem perfeito em Deus. Esta é
certamente a ordem em que uma “mente primitiva” leria, mas também
é talvez o que se pretendia que o adorador fiel visse no peitoral.
Portanto, tudo isto se dirige para Deus, como imagem da aliança
eterna, e para o homem, como imagem do esplendor de Deus e da
humildade de suas criaturas. Sem dúvida, outros significados são
possíveis, e não temos como provar que a nossa interpretação é exata.
Todavia, tudo nos leva a crer que o mesmo significado pode ser dado
às doze pedras preciosas dos alicerces da nova Jerusalém: o de uma
relação múltipla entre Adão e Yahweh, entre o novo Adão e seu Pai.
De fato, é sobre esta união de verdade, justiça e amor, humildade do
temor e felicidade, que a cidade está fundamentada. Desta forma,
aprendemos que a nova criação assume a aliança, a função do sumo
sacerdote, e a glória do peitoral. Contudo, não podemos nos esquecer
de que este peitoral é um peitoral de julgamento. O uso exato do Urim
e Tumim no peitoral é algo que está além do nosso conhecimento atual.
Todavia, sabemos com toda certeza que em qualquer caso eles eram
usados para aprender os juízos de Deus, para descobrir a sua Palavra e
a sua vontade quanto a certo assunto. Também sabemos que essas duas
palavras significam “Luz” e “Perfeição”, e que estavam ligadas às doze
tribos de Israel: “Assim Arão levará o juízo dos filhos de Israel sobre o
seu coração diante do Senhor continuamente” (Êx 28.30). Este é o juízo
ou julgamento de Deus acerca da cidade. E a nova cidade, desta forma,
é estabelecida perenemente sobre a Palavra de Deus, que é súa lei de
amor, e sobre o juízo de Deus, o de sua misericórdia. Não podemos nos
esquecer de que o peitoral pertencia ao sumo sacerdote. As pedras são
encontradas na cidade, porque representam o que o sumo sacerdote
ostentava. Elas decoram a cidade, como outrora adornavam o sumo
174 • IMORTALIDADE

sacerdote. Elas estão escondidas nos alicerces do muro, como outrora


ficavam escondidas no misterioso bolso do qual saía o oráculo da
Palavra de Deus. Elas estão presentes na cidade para nos dizerem que
o ofício do sumo sacerdote foi exercido e levado à perfeição. Todos os
sacrifícios oferecidos por ele têm seu lugar e seu significado; e a vítima,
incluindo o sacerdote, enche toda a cidade, que, por sua vez, está
baseada no ofício do sacerdote em sua perfeição final. Todas as
mediações do sumo sacerdote entre Deus e o homem, todas as profecias
que ele pronunciava para o povo e a respeito dele, toda a justiça de Deus
que ele personificava diante de Israel, agora têm fim. Mas nada do que
ele fez se perdeu, visto que as mesmas pedras que outrora brilhavam
em seu peito, quando ele se empenhava em executar as suas funções,
agora estão reunidas na vida mais profunda da cidade — um
monumento de graça, unindo a mediação realizada por Deus com a
conquista que o homem empreendeu. Isto faz parte do que pode ser
descoberto no fato de João ter adotado as jóias sagradas do Antigo
Testamento.
Sem dúvida, seria incorreto separar o significado destas pedras da
profecia abrangente de Jacó acerca de seus doze filhos. Talvez seu
significado mais profundo esteja ligado com a lembrança desta profecia.
Neste caso elas seriam um memorial ou, talvez, sejam um sinal
contrário. Talvez sejam um apelo para que os filhos obtenham as
virtudes a eles negadas por Jacó. A pedra de Dã expressa sabedoria e
retidão no falar. A de Rubem, a devastação e a violação dos direitos do
Pai. A pedra de José pode ser a de bênção cumprida, e a de Benjamim
pode ser a pedra de dilaceração e conquista sangüinária.
Todavia, as doze tribos de Israel não são os alicerces ou
fundamentos da cidade. Sim, pois os primeiros nomes agora foram
substituídos pelos nomes dos doze apóstolos. A tentativa de Oleaster
de descobrir que pedra correspondia a que apóstolo pode ter sido
infantil, mas essa substituição por si mesma nos fornecería alimento
para muita meditação. Os nomes dos filhos de Israel estão agora
gravados nas portas da cidade. Para entrar, a pessoa precisa tornar-se
como Israel, a pessoa precisa ser o Israel de Deus. Israel, porém, não é
mais o alicerce. Este direito é reservado somente aos que levaram as
palavras de Cristo, o seu evangelho, aos que foram instrumentos de
juízo e misericórdia, ao anunciarem as boas novas à humanidade, e
lançaram os alicerces da igreja. Agora eles se tornaram para sempre as
YAHWEH-SHAMMAH • 175

bases dos muros que rodeiam a nova criação de Deus: um monumento


de glória dado ao homem, por sua luz e perfeição.
O povo ostentara a Palavra de Deus, mas agora os apóstolos
assumiram esse papel. Talvez devamos concluir deste fato que, na
tradição mística, estas doze pedras eram visualizadas como a totalidade
da m ensagem de revelação, indicando a estrada que leva do
arrependim ento à ressurreição e, talvez, devamos ver nela uma
confissão de fé, uma declaração teológica. Desta forma, desde os
primórdios de Israel como nação, a profecia e o anúncio mediante a
palavra e o julgamento divinos estiveram presentes no coração do
templo, no coração do lugar santo.
Contudo, as Escrituras capacitam-nos a darmos mais um passo para
entendermos o simbolismo destas pedras preciosas. A lista que temos
estado a estudar é encontrada não apenas em Êxodo e Apocalipse, mas
também em Ezequiel (28.13). Ela não é completa, visto que são
mencionadas apenas nove pedras pelo profeta, em vez de doze, mas são
exatamente as mesmas de Êxodo, e a lista é prefaciada por estas
palavras: “De todas as pedras preciosas te cobrias”. Portanto, esta lista
provavelmente não tinha a intenção de limitar. Todavia, deve ela ser
considerada em relação com as pedras preciosas do peitoral? Um
historiador necessariamente levantaria esta questão, e a sua resposta
seria a seguinte: o texto de Êxodo não data da época de Moisés; provém
da “quarta fonte”, escrita no sexto século, sob a direção de Ezequiel.
Assim, as vestimentas do sumo sacerdote foram decididas por membros
da “escola” de Ezequiel. Neste caso ele devia estar bem familiarizado
com o peitoral e suas pedras. Como se pode duvidar de que, se Ezequiel
reproduz a lista em uma de suas profecias, o faz de propósito e sabe
exatamente o que está fazendo: ele tem em mente a nova instituição e,
talvez, até a esteja anunciando. Quanto aos que não reconhecem
absolutamente nenhum valor nesta crítica histórica, considerando que
a lei e as vestimentas dos sacerdotes foram estabelecidas no deserto,
em algum tempo entre 1300 e 1200 a. C., eles vêem as palavras de
Ezequiel como inspiradas por Deus, enxergando na sua menção das
pedras um propósito de Deus e uma referência ao peitoral do sumo
sacerdote. Em que profecia é encontrada essa enumeração das pedras
preciosas? A quem estavam elas adornando, na mente de Ezequiel? As
Escrituras sempre terão novas surpresas para nós: o príncipe de Tiro:
“Filho do homem, dize ao príncipe de Tiro: Assim diz o Senhor Deus...
176 • IMORTALIDADE

estavas no Éden, jardim de Deus; de todas as pedras preciosas te


cobrias: o sárdio, o topázio, o diamante... tu eras querubim da guarda;
ungido, e te estabelecí; permanecias no monte santo de Deus; no brilho
das pedras andavas... na multiplicação do teu comércio se encheu o teu
interior de violência, e pecaste; pelo que te lançarei profanado fora do
monte de Deus, e te farei perecer, ó querubim da guarda, em meio ao
brilho das pedras”. Assim, o anjo daquela cidade, cujo poder e sedução
já estudamos e descrevemos, que inspirou o homem a se tornar
construtor e que está sujeito aos juízos de Deus, é o mesmo que é
adornado com as pedras preciosas que encontramos na nova Jerusalém.
Que meio mais adequado podería ser usado para dar a entender que
ele era um poder celestial que havia começado a sua obra de revolta no
mundo e que se entregara a Deus? Que maneira melhor se acharia para
dizer que essas pedras simbólicas lhe haviam sido tiradas porque ele
havia empreendido aquela própria obra condenada por Deus? Que
maneira melhor de declarar que a cidade do homem nunca é alicerçada
na presença do Senhor nem na verdade do homem? Nem no amor de
Deus nem na misericórdia do homem; nem na justiça do reino nem no
temor de Deus. Essas pedras são tiradas do príncipe de Tiro porque a
cidade, obra dele, está alicerçada na ausência de Deus e na falsidade
do homem, na dureza do coração e em um espírito de poder, em
injustiça, em medo. Mas essas são também as mesmas pedras que Deus
manteve reservadas através da história, miseravelmente representadas
na imperfeição das pedras engastadas no peitoral, que encontram o seu
verdadeiro lugar e significado quando a cidade do homem é tirada das
mãos do anjo que se revoltou e é transfigurada, para se tornar a cidade
do Senhor — uma cidade onde tudo voltou à sua natureza eterna, onde
toda luz reflete a luz eterna e onde reina a ordem.

* *

Finalmente, estudaremos dois símbolos pelos quais os escritores


apocalípticos pareciam ter afeição especial: a árvore e a água. No meio
da cidade encontram-se um rio e uma árvore: “Então me mostrou o rio
da água da vida, brilhante como cristal, que sai do trono de Deus e do
Cordeiro. No meio da sua praça, de uma e outra margem do rio, está a
árvore da vida, que produz doze frutos, dando o seu fruto de mês em
YAHWEH-SHAMMAH • 177

mês, e as folhas da árvore são para a cura dos povos” (Ap 22.1ss.). Esta
descrição concorda quase exatamente com a de Ezequiel (cap. 47). Ali
também o rio flui do centro do templo. Este rio também é de águas vivas
que espalham a sua vida por onde flui; as águas amargas e salobras
(sinais de pecado e morte) tornam-se doces e saudáveis. Em ambas as
margens crescem árvores que dão o seu fruto a cada mês, cujas folhas
são curativas. Podemos dizer, portanto, que as duas visões são
perfeitamente idênticas. Não ficamos abertamente perturbados pelo
fato de João usar imagens extraídas de Ezequiel. Talvez isto signifique
apenas que a inspiração dada pelo Espírito de Deus era a mesma em
ambos os casos. Todavia, também é certo que João entendeu a sua visão
em sentido espiritual, e não materialmente, como alguns escritores
sustentam no caso de Ezequiel. Também é óbvio que tudo o que João
escreve é enriquecido e sustentado pelas idéias evangélicas de água
viva, batismo e salvação.
Contudo, limitaremos o nosso estudo ao que isto significa para a
cidade. Um item sobressai: a árvore cresce no meio da cidade, na praça
pública, mas também está em ambas as margens do rio (não é coisa fácil
de visualizar!). A intenção de João é clara (muito mais clara do que a
de Ezequiel — certamente deve ser entendida como um progresso na
revelação). As árvores vistas por Ezequiel agora foram reduzidas a
apenas uma, e essas árvores com seus frutos maravilhosos e folhas
curativas agora obtêm o seu verdadeiro nome — a árvore da vida.
Portanto, a árvore é a árvore da vida plantada no meio do jardim do
Éden, da qual Adão podia comer antes de ter desobedecido, mas que
posteriormente foi proibida. Ela foi proibida porque, quando a pessoa
está em desarmonia com Deus, separada dele, comer dela é a própria
essência do inferno. Portanto, essa árvore é encontrada novamente (e
apenas) na nova Jerusalém. Esta é outra afirmação óbvia do que temos
dito acerca da substituição do Éden por Yahweh-shammah.
Todavia, não existe mais nenhuma árvore do conhecimento do bem
e do mal. Isto significa, em primeiro lugar, que o que foi feito está feito,
que o conhecimento adquirido em rebeldia não é destruído, mas que,
mediante a reconciliação com Deus, ele é colocado de volta em seu
devido lugar. Da mesma forma como a liberdade volta ao homem em
Cristo, porém ainda não é uma gloriosa liberdade enquanto estamos na
terra, mas um tanto precária, ameaçada e incompleta, assim também o
conhecimento do bem e do mal por parte do homem, mediante o
178 • IMORTALIDADE

sacrifício de Jesus, passa a ser parte integrante da nova aliança e deve


desabrochar plenamente na cidade santa. Desta forma, a comunhão
com Deus é mais completa do que era no princípio, e o conhecimento
dos demônios é substituído pelo conhecimento do amor proclamado
por Paulo: então conhecerei como também sou conhecido” (1 Co
13.12). Conheceremos de maneira diferente de tudo o que chamamos
de conhecimento hoje em dia, visto que será o conhecimento de Cristo,
aprendido quando ele se deu a si mesmo por amor. Este passo avante
nos dá uma nova perspectiva da cidade de Deus: ela é o lugar onde
conheceremos por amor. A cidade santa anuncia o triunfo do amor e
não o triunfo do conhecimento objetivo, das conquistas intelectuais do
homem, da pirataria que ele exerceu sobre o mundo. Quanto à árvore
da vida que permanece sozinha, a sua função dupla é indicada
claramente: ela dá alimento mediante os seus frutos e cura através de
suas folhas. Aqui temos a plena certeza da vida.
Os mesmos pensadores astutos que notam o absurdo de muros para
uma cidade que não é ameaçada por ninguém também apontam para o
fato de que, se ali a vida é eterna, não há necessidade de árvore da vida.
Afinal de contas, lemos em alguns versículos logo acima que ali não
haverá mais doença nem morte. Por que medicamentos? Contudo,
esses pensadores astutos obviamente são escravos da sua lógica e, como
tais, estão excluídos de algumas realidades. Isto acontece porque a
lógica desses astutos pensadores não é de Deus, como ensina Paulo.
O propósito desta árvore é fazer toda a criação de Deus se lembrar
da longa história da redenção posterior à queda. O seu propósito não é
utilitário, mas, mediante a sua própria inutilidade, repetir para o
homem ressurreto, glorificado, vivo com a própria vida de Deus, a
grandeza da obra divina, a sua paciência e amor. Por que deveriamos
abandonar a tradição cristã desta árvore? Muitos acham que a árvore
no meio do jardim do Éden era o símbolo da cruz de Cristo. Mas a
árvore no meio da cidade é a própria cruz! De fato, o termo usado no
texto grego é “o madeiro da vida”. Não é ela uma reminiscência do
madeiro em que foi pendurado o Senhor crucificado? Ela é o símbolo
vivo, bem no centro da cidade, da cura e da nutrição que os homens
receberam de Cristo, em sua morte. Ela dá o seu fruto indefinidamente,
doze vezes por ano, símbolo do fruto que outrora foi pendurado na cruz.
Assim, o Deus que é tudo em todos ainda continua sendo o Deus
redentor, o Deus cujo símbolo entre os homens é preservado no meio
YAHWEH-SHAMMAH • 179

daquela obra adotada por Deus.


Outra confirmação deste fato é o próprio rio — água da vida, água
viva, fluindo do trono de Deus ou do templo, espalhando saúde e pureza
por onde chega. A imensidade do mundo representada pelo mar é
transformada por esse rio. Aqui outra vez nos encontramos com a idéia
de que a nova Jerusalém é verdadeiramente a capital da nova criação
e o elo entre as duas é o rio, fluindo perenemente da cidade, levando
para a criação circunvizinha a comunhão com aquele que reina na
cidade. “Onde o rio toca, tudo revive”. O rio flui do trono de Deus e do
Cordeiro. Que visão perfeita da torrente perpétua de vida, fluindo da
Trindade, para infundir plenitude de vida por onde passa. Assim, vida
eterna não é a fixação da vida em um instante que dura para sempre,
não é imóvel, granito imutável, nem uma imobilidade fria, nem a fusão
de tudo em um grande todo. Ela é evolução, vitalidade, uma renovação
rápida como uma torrente borbulhante vinda das montanhas, juventude
perene recriada pela comunhão com aquele que é a própria Vida.
Podem os evitar, quando nos defrontam os com a claridade e
simplicidade da imagem usada, quando nos defrontamos com a
multidão de imagens diferentes que convergem, se sobrepõem,
confirmam e sustentam umas às outras — podemos evitar as palavras
de Cristo?
Os historiadores dizem que Ezequiel apresentou esta visão comum
significado histórico, e estava se referindo apenas à transformação do
Mar Morto. Outros, que crêem em um milênio aqui na terra, acham
que este versículo se cumprirá nesta terra e que todos veremos esse rio,
como um rio adoçando os oceanos que conhecemos tão bem. Contudo,
como alguém pode esquecer o pensamento tão freqüentemente
expresso, por exemplo, por Jeremias (escolhido exatamente porque ele
não é um autor apocalíptico): “O nome dos que se apartam de mim (o
Senhor) serão escritos no chão; porque abandonam o Senhor, fonte das
águas vivas” (Jr 17.13)? Aqui vemos a oposição que existe entre o nosso
mundo moderno, carnal, e o mundo transformado pela fonte de água
viva. O mesmo pensamento está em Jesus, levando-o a dizer: “Se
alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz
a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva” (Jo 7.37,38). Este
rio deve ser símbolo da fé total e absoluta que caracteriza a cidade
criada por Deus. Ela flui da cidade e propicia purificação em Jesus
Cristo a toda a terra e a todos os céus. Ela também corresponde aos
180 • IMORTALIDADE

quatro rios que fluem do Éden. Contudo, ao mesmo tempo em que eles
profetizavam a queda, este rio é a realidade da vida eterna, porque nele
o batismo se torna uma realidade. O que era apenas um sinal visível
agora é realizado em plenitude. Passamos para além da morte,
atravessamos a morte com Cristo e estamos de posse daquilo que as
águas do batismo somente prefiguravam. Com Cristo deixamos a morte
para trás, e isto é o que significa o rio de águas vivas, bem ali no coração
da nova criação, como reminiscência da história da salvação. Nesta
cidade, portanto, encontramos que o rio é um sinal de vida. A cidade
tornou-se o mundo da vida, a cidade mais nova e de maior frescor que
se pode encontrar. O símbolo aqui é o mesmo que nos é dado por
ocasião do batismo, para todos os dias de nossa existência miserável
aqui neste mundo. A terrível mistura feita pelo homem é reordenada
pela graça e pela benevolência, e pelo ato de Deus, aceitando e
agraciando a cidade escolhida com a sua presença. A ordem disso tudo
está além da capacidade de nossas mentes, sendo exprimível tão
somente por figuras de linguagem. Mas, agora, os subúrbios detestáveis
e gangrenados que tenho de atravessar, as cabanas dos trabalhadores
com sua pintura descascada e camadas permanentes de sujeira, os
barracões de ferramentas despencando sobre torrentes provindas dos
esgotos e córregos que exalam mau cheiro dos lavatórios e banheiros,
e o ferro retorcido que constitui o melhor material de construção
encontrado pelo homem — tudo isso já se foi, transformado em um
muro de ouro puro, um novo limite para a cidade, atravessada pelo rio
de águas vivas como por um cristal eterno.
7 Alan B. Pieratt

INTRODUÇÃO

Este capítulo apresenta um método cuidadoso e uma abordagem


sistemática que o tornam muito útil. Aqui, o leitor encontrará uma
discussão exegética cautelosa e detalhada acerca da morte, do estado
intermediário e da ressurreição. O autor tem como método rastrear
sistematicamente cada um desses tópicos através do Novo Testamento,
primeiro nos sinóticos, depois em João, a seguir em Atos, Paulo e, por
fim, nos demais escritos neotestamentários. Em cada tópico, o autor
discute as passagens centrais e agrupa os temas principais.
A quantidade de informações reunidas sobre nosso estado do
porvir é impressionante e mostra como o cristianismo é uma religião
do futuro. A Bíblia não menciona o futuro apenas aqui e ali. Pelo
contrário, o Novo Testamento está repleto de passagens que descrevem
nossa vida futura com Deus. Embora a esperança cristã esteja ancorada
no passado, na cruz de Cristo, o cristianismo como um todo é uma
religião voltada para o futuro. Cada vez que participamos da ceia, por
exemplo, não apenas lembramos a cruz, mas também olhamos para o
futuro, para o dia em que todas as conseqüências da cruz estarão
plenamente concretizadas e transformarão o mundo. O cristianismo,
portanto, é uma religião utópica, pois espera um futuro melhor em que
o homem estará em paz com Deus, com o mundo e consigo mesmo. Nos
dias de hoje, mais de uma filosofia tem desenvolvido uma visão do
mundo baseada numa secularização dessa esperança cristã no futuro.
Dentre elas, a que tem tido maior aceitação é o marxismo, que troca a
esperança num reino de Deus futuro por uma sociedade materialista
em que não haverá opressores nem oprimidos. O marxismo nunca
explica como essa mudança tão radical ocorrerá no mundo e na
natureza humana. A Bíblia aponta para Deus como a verdadeira
182 • IMORTALIDADE

resposta para tal esperança. É apenas pelo Seu poder que veremos o
despertar de uma nova era em que serão realizadas todas as esperanças
mais ardentes do homem. É sobre os primeiros movimentos dessa era
que Guthrie fala com tanta clareza.
Este capítulo faz parte de New Testament Theology, do mesmo autor, pp. 818-848,
publicado em 1981 pela Inter-Varsity Press, na Inglaterra. Trecho traduzido na íntegra
por A diei Almeida de Oliveira.
7 Donald Guthrie

A VIDA APÓS A MORTE

Neste capítulo nos preocuparemos principalmente com o assunto


da ressurreição dos crentes e da imortalidade, bem como com as
evidências de um estado intermediário. O assunto da ressurreição
sempre foi importante entre os judeus e causou uma divisão marcante
entre os fariseus e saduceus.1 Os primeiros a aceitavam (bem como os
essênios), mas estes últimos a rejeitavam. É em contraposição a esse
pano de fundo que o ensinamento específico de Jesus2 precisa ser
considerado.

OS EVANGELHOS SINÓTICOS

A ressurreição do corpo

Em vista da controvérsia existente entre os saduceus e fariseus


acerca deste assunto, é razoável começarmos considerando a tentativa
destes últimos para apanhar Jesus numa armadilha, com uma pergunta
capciosa (Mc 12.18-27 = Mt 22.23-33 = Lc 20.27-40). A pergunta
tinha o objetivo de testar as idéias de Jesus acerca de uma ressurreição
física. Se certa mulher havia sido casada com sete irmãos, de qual deles
seria ela na ressurreição? Como resposta, Jesus ressalta as idéias
erradas deles acerca da ressurreição. O casamento não faz parte do
estado ressurreto, o qual é comparado com o dos anjos. A declaração
adicional de Jesus, de que Deus não é Deus de mortos, mas de vivos,
registrada em todos os evangelhos sinóticos, está baseada na relação
contínua entre Deus e Abraão, Isaque e Jacó.
184 • IMORTALIDADE

O método de debate é tipicamente rabínico. Jesus está indicando


que a própria expressão “Deus de Abraão, Isaque e Jacó”, com sua
vigorosa confirmação no Antigo Testamento (Êx 3.6), pressupunha que
os patriarcas ainda estavam existindo de uma forma ou outra.5
Embora o método de argumentação possa parecer estranho, não
há como negar que Jesus estava afirmando a existência de um estado
de ressurreição, em oposição aos saduceus.6 No relato de Lucas, as
palavras de Jesus são mais explícitas acerca do estado de ressurreição
do que no relato de Marcos ou Mateus. Ele fala dos que são “havidos
por dignos de alcançar a era vindoura e a ressurreição dentre os
mortos”. Jesus assevera decisivamente que os mortos são ressuscitados.
É tam bém Lucas quem registra as palavras de Jesus acerca da
ressurreição dos justos, quando serão recebidas recompensas pelas
boas obras (Lc 14.14).
Outras palavras envolvendo os patriarcas encontram-se em Mateus
8.11s. = Lucas 13.28s., onde se diz que muitos virão do Oriente e do
Ocidente para sentarem-se à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino,
enquanto “os filhos do reino” serão consignados às trevas exteriores,
para chorar e ranger os dentes. Aqui, mais uma vez, a linguagem usada
pressupõe algum tipo de ressurreição física.
Quando, no Sermão da Montanha (Mt 5.29s.), Jesus faz comen­
tários acerca do adultério, ele fala da possibilidade de “todo o corpo”
ser lançado no inferno. Além disso, Jesus adverte os seus discípulos a
temerem aquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no
inferno (Mt 10.28), o que mostra mais uma vez a importância corporal
ou física da vida futura.
Nos evangelhos sinóticos encontramos muito pouca informação
acerca da vida depois da morte, mas o que temos é enfático em
afirmá-la. Jesus, entretanto, não apresenta dados acerca da natureza do
corpo da ressurreição ou sobre a natureza da morte, temas estes
mencionados nas epístolas paulinas. No Evangelho de João, há algumas
palavras importantes que lançam mais luz sobre esse assunto e ajudam
a complementar a apresentação sinótica.
Surge outra interrogação. Será que Jesus apoiou a idéia da
imortalidade da alma? Esta idéia como coisa distinta da ressurreição
do corpo é essencialmente grega, expressa, por exemplo, em Platão.7
Ela surgiu, em parte, da crença de que o corpo, sendo matéria, era
maligno e, portanto, mortal. De acordo com esta opinião, todas as
A VIDA APÓS A MORTE • 185

pessoas são essencialmente imortais em suas almas, mas não em seus


corpos. O Novo Testamento, contudo, não apóia uma dicotomia tão
clara. De fato, não há nada de relevante acerca desse assunto nos
evangelhos sinóticos, a não ser as passagens mencionadas acima, das
quais nenhuma a apóia.8 Este tema requererá maiores comentários,
quando for considerada a doutrina de Paulo acerca da vida depois da
morte (vejapp. 194ss.).

O estado intermediário

Em seguida, voltamos a nossa atenção para as idéias acerca do


estado intermediário. Esta é uma expressão usada para designar o
estado de existência entre a morte do crente e a ressurreição no último
dia. Embora não encontremos nenhum detalhe direto a respeito disso
nos evangelhos sinóticos, há certas passagens im portantes que
m erecem a nossa atenção. No Antigo Testam ento, o Sheol era
considerado a habitação de uma existência de sombras. Contudo, no
período intertestamentário, ele passou a ser considerado um estágio
entre a morte e o juízo. Nos ensinos de Jesus, Sheol, palavra hebraica
correspondente à grega Hades, ocorre três vezes nos evangelhos
sinóticos (Mt 11.23; 16.18; Lc 16.23). Ao dizer que Cafarnaum seria
derrubada até o Hades, Jesus estava indicando a sua completa
destruição, caso em que Hades é usada de modo figurado. No segundo
texto, a igreja é mostrada como inexpugnável contra as portas do Hades,
que aqui parece dar a entender uma oposição humana — outro uso
metafórico.
A terceira ocorrência é a Parábola do Rico e Lázaro (Lc 16.19-31),
que pressupõe uma divisão na morada dos mortos, com um abismo
intransponível entre as duas partes divididas. Algum paralelo a esta
idéia é encontrado no Livro de Enoque e parece ter sido comum entre
os judeus daquela época.9 Seria precário considerar esta parábola como
base suficiente para deduzir dela a natureza da vida após a morte, da
forma como era entendida por Jesus, pois sua intenção clara não era
doutrinária, mas moral. O foco está na vida egoística do rico. A parábola
não fala nada acerca da possibilidade de aquele homem mudar a sua
condição; de fato, dá a entender o contrário. O único fato certo a
respeito da vida além-túmulo que emerge dessa parábola é a realidade
da sua existência.10 Ela não teria sentido, se a vida além-túmulo fosse
186 • IMORTALIDADE

por si mesma um mito. O estado ou condição dos que já partiram, além


disso, está diretamente ligado ao seu comportamento nesta vida, o que
levanta a questão de a parábola ter pretendido ou não ensinar que
haverá uma inversão total de condição na vida futura. Não se pode
sustentar que Jesus pretendia ensinar isto, não importando quais
fossem as circunstâncias.
No caso do rico, o centro da parábola não é o fato das suas riquezas,
mas o que ele fez com elas. Ele era inteiramente egoísta e indulgente
para consigo mesmo e não se preocupava nem um pouco com as suas
responsabilidades sociais. De fato, ele era um representante típico da
maneira como os saduceus consideravam a vida.11 Estava claro que
ele jamais havia considerado que o seu comportamento durante a sua
vida afetaria a sua existência futura. Provavelmente ele não cria em uma
vida além-túmulo, como sabia que seus irmãos também não criam.
Além disso, ele é lembrado de que estes não iriam crer, mesmo que um
dos mortos voltasse.1 Aqui, mais uma vez, presum e-se que o
testemunho das Escrituras (Moisés e os profetas) era suficiente para
demonstrar a vida depois da morte, não por causa do ensinamento
explícito deles acerca do assunto, mas por causa da sua revelação sobre
a natureza de Deus (como na controvérsia de Jesus com os saduceus,
já mencionada).
O utra passagem que tem alguma relevância para esta nossa
discussão é Lucas 23.42s., em que Jesus assegurou ao malfeitor
moribundo que estaria com ele naquele mesmo dia no paraíso.13 Visto
que se trata de uma resposta ao pedido para que Jesus se lembrasse
daquele homem quando entrasse no seu reino, ela levanta a questão do
relacionamento entre o paraíso e o reino. Têm sido propostas duas
explicações possíveis para esta passagem. Uma é a de que paraíso é uma
esfera interina em que tanto o malfeitor quanto Jesus esperariam o
reino. A outra é de que o paraíso é sinônimo de céu, e que Jesus entraria
no seu reino naquele mesmo dia. Visto que paraíso, no período
intertestamentário, passara a ser considerado como lugar de descanso
interm ediário para as almas justas, isto confirmaria a prim eira
interpretação.14 Não obstante, em 2 Coríntios 12.4 e Apocalipse 2.7,
paraíso é usado como símbolo ou sinônimo de céu, o que confirmaria
a segunda hipótese.
A m bas as interp retaçõ es suscitam dificuldades acerca da
ressurreição de Cristo e da sua parousia. O máximo que pode ser dito
A VIDA APÓS A MORTE • 187

é que esta passagem tem possibilidade de suprir evidências do estado


intermediário, mas ela não o faz necessariamente. O que é mais certo
é que o malfeitor, presumindo-se que o seu pedido incluía arrepen­
dimento, estaria na presença de Cristo depois da morte.1

A atitude em face da morte

Estaria incompleta a nossa discussão do que acontecerá depois


desta vida, se não discutíssemos a morte. Indubitavelmente a crença de
uma pessoa acerca da vida além-túmulo afeta a sua atitude para com a
morte. Embora muitos evitem o assunto da morte e considerem
mórbida qualquer pessoa que enfrente os problemas que ele suscita,
Jesus nunca adotou uma abordagem evasiva. Tanto o seu ensino como
o seu exemplo estão cheios de inspiração quanto a este assunto. Em
seus dias, a vida humana tinha pouco valor, e a morte violenta era
ocorrência comum. As crianças chegavam até a brincar nos funerais (Mt
11.16s.; Lc 7.32), tão desinibida era a atitude geral com respeito a esse
assunto. Na narrativa de Lucas a respeito da natividade, Simeão
expressa o desejo de partir em paz depois de ter visto o Cristo (Lc
2.25-35). A sua atitude em relação à morte foi afetada pelo seu
conhecimento do advento de Cristo. No cântico de Simeão, a referência
à espada que traspassaria a alma de Maria leva a paixão de Cristo Jesus
a uma proximidade muito grande com a sua vinda.
Quando “os mortos” são mencionados nos sinóticos, a palavra
geralmente está no plural, indicando uma idéia coletiva de morte.
Embora a morte ocorra a cada pessoa individualmente, ela é coletiva
no sentido de que ninguém é excluído. A morte violenta caracteriza
algumas parábolas (Mt 21.39; 22.6). Jesus lamenta o assassinato dos
profetas (Mt 23.37) e prediz que alguns dos seus discípulos sofreriam
morte violenta (Mt 24.9; Lc 21.16). O nosso interesse, todavia, é
considerar a atitude de Jesus com respeito à morte propriamente dita.
Aqui notamos que ele não apoiou o ponto de vista de que sofrimento
e morte eram evidências de pecaminosidade especial (como, por
exemplo, os casos citados em Lucas 13.1-5). Embora, de conformidade
com a lei mosaica, a morte fosse considerada contaminadora, a ponto
de qualquer pessoa que tocasse um cadáver ser vista como contaminada
(cf. a caiação de túmulos: Mt 23.27), Jesus não ensinou essa idéia. De
fato, ele não disse nada acerca dos efeitos corruptores da morte. Ele
188 • IMORTALIDADE

mantinha respeito pela morte, sem se tornar obcecado por ela.


Além disso, precisamos considerar o significado de “dormir” como
figura da morte. Esta idéia era conhecida e comum no pensamento
hebraico.16 Ela encontra expressões em alguns casos nas palavras de
Jesus. No Antigo Testamento, o conceito de “dormir”, quando aplicado
à morte, sempre aparece em contexto que mostra que ele está sendo
usado metaforicamente. No período intertestamentário, ele também
foi usado como sinônimo de morte. Mas, no relato da ressurreição da
filha de Jairo, Jesus diz acerca da menina que ela “não está morta, mas
dorme” (Mt 9.24 = Mc 5.39 = Lc 8.52). As carpideirase outras pessoas
que se lamentavam ali não acharam que ele estava igualando sono e
morte, pois riram, zombando dele. Por outro lado, não faria sentido
esse incidente todo, se Jesus queria dizer meramente que ela estava em
coma. Todos os evangelistas retratam o incidente como ressurreição.
Como deve ser entendida, então, a metáfora do sono? Tem sido
sugerido que “sono” era uma descrição da morte do ponto de vista de
Deus.17 Contudo, isto subentendería um estado de “sono” entre a
morte e a ressurreição, opinião que não parece ser confirmada em
outras passagens dos evangelhos (c/. por exemplo as palavras de Jesus
acerca do paraíso para o ladrão moribundo, que pressupõe uma
experiência consciente). Parece melhor reafirmar que, do ponto de
vista dos que se lamentavam, aquela morte acabaria sendo um “sono”,
porque a menina estava para ser despertada dela. Isto vem a ser uma
nova forma de encarar a morte, em virtude do poder de Cristo, o qual
não seria detido por ela (veja a próxima divisão, onde usamos uma
análise semelhante com respeito à morte de Lázaro).
Alguns comentários precisam ser feitos quanto à atitude de Jesus
em relação à sua própria morte. Já foi demonstrado que ele a predisse
e a considerou como estando ligada ao pecado do homem. Ele sabia,
portanto, que a sua morte possuía significado especial. Há diferença
entre a maneira como Jesus encara a morte e a maneira como outras
pessoas o fazem, com respeito ao seu significado. Contudo, havia
diferença no encarar a experiência física da morte? Alguns eruditos18
enfatizam que a “tristeza” que Jesus experimentou ao pensar na sua
paixão (no Getsêmani: Mt 26.38 = Mc 14.34 = Lc 22.44) foi
ocasionada pelo medo da morte física. D e fato, costuma-se dizer que o
medo da m orte por parte de Jesus o ligaria com a verdadeira
humanidade, pois todos precisam morrer, e a maioria tem medo da
morte.
A VIDA APÓS A MORTE • 189

Mas esta explicação não pode por si mesma ser suficiente para
explicar a natureza daquela angústia. Precisamos dar mais peso à
consciência que nosso Senhor tinha do tremendo significado da sua
própria morte, uma consciência que nenhuma outra pessoa jamais
experimentou. Precisamos levar em conta, no caso de uma pessoa sem
pecado, o efeito do ato de tomar conscientemente sobre si o pecado do
mundo todo. Mais do que isso, o grito de abandono torna-se dupla­
mente desconcertante, se o que estava envolvido era apenas o medo
natural da morte (Mc 15.34 = Mt 27.46). É mais inteligível considerar
que o grito dado na cruz se explica pela consciência de estar carregando
o pecado, o qual, por sua natureza, separa de Deus.

A LITERATURA JOANINA

A ressurreição do corpo

H á duas passagens principais no Evangelho de João que se


relacionam diretamente com este tema. A primeira é o relato da
ressurreição de Lázaro, do qual a parte central, para os nossos objetivos,
é João 11.21-26.0 ensinamento joanino acerca do tema da ressurreição
é essencialmente semelhante ao ensino sinótico. Quando Jesus declara
que Lázaro ressuscitará, Marta conclui de imediato que ele está falando
da ressurreição no último dia (Jo 11.23s.). Não há dúvida em sua mente
de que acontecerá alguma espécie de ressurreição futura, contudo não
são dados quaisquer detalhes da natureza do corpo da ressurreição.
É impossível dizer qual era a compreensão que Marta possuía
acerca da ressurreição, mas a resposta de Jesus ao comentário dela é
característica, pois relaciona a ressurreição consigo mesmo. As palavras
“eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11.25) sugerem que Jesus estava
esclarecendo todo o conceito de ressurreição, identificando a ressur­
reição dos crentes com a sua: “Quem crê em mim, ainda que morra,
viverá”. Admitimos que, nesta declaração, Jesus não está se referindo
especificamente à ressurreição do corpo, mas ele torna claro que os que
nele crêem podem esperar vida em lugar de morte. Uma forte
afirmação de imortalidade é inegável nestas palavras. Visto que Jesus
posteriormente ressuscitou dos mortos a Lázaro em forma física, é
razoável supor que ele não estava sugerindo a imortalidade da alma à
190 • IMORTALIDADE

parte da ressurreição do corpo. De fato, ao declarar “eu sou a


ressurreição”, Jesus dá a entender que o seu próprio corpo da
ressurreição será tomado como padrão e exemplo para a ressurreição
dos crentes.19
A outra passagem é João 5.25-29, onde a ressurreição está
intimamente ligada ao juízo. Jesus está descrevendo um acontecimento
futuro: “Vem a hora” (w . 25, 28).20 Este acontecimento é ulterior-
mente designado como ressurreição da vida e ressurreição do juízo (v.
29). A idéia de que “vida” aqui é simplesmente um conceito espiritual
é excluída pela descrição da abertura dos sepulcros. Certamente esta
passagem confirma o ponto de vista de que a ressurreição aplica-se a
todos, embora seja feita uma clara distinção entre os que fizeram o bem
e os que praticaram o mal. Neste caso, a “vida” resultante é contrastada
com a “condenação” resultante. É importante notar que Jesus não
separa no tempo a ressurreição dos justos e a dos injustos, seja em João
ou nos sinóticos. Presume-se que ambas acontecerão simultaneamente.

O estado intermediário

Já vimos que os evangelhos sinóticos apresentam poucas


informações acerca do estado intermediário. No Evangelho de João, há
ainda menos. Algumas pessoas têm considerado João 14.2 — “vou
preparar-vos lugar” —como referência a algum lugar especial que pode
ser identificado com o estado intermediário.21 O contexto enfatiza a
expectativa de que “onde eu estou estejais vós também” e pressupõe
uma entrada imediata dos justos na presença do Pai. Um tema
semelhante é expresso em João 17.24, quando Jesus ora para que os
que o Pai lhe dera pudessem estar com ele onde ele iria estar. Naquele
estado, eles veriam a glória que o Pai havia dado ao Filho. Não há
nenhuma sugestão de que se passaria algum intervalo de tempo antes
de o crente poder estar com Cristo em seguida à morte, embora
admitamos que isso não é especificamente excluído.22 O ponto central
encontra-se decisivamente na bem-aventurança de estar com Cristo,
sendo muito difícil que isto se refira a um estado temporário ou de
inconsciência.
Há poucas passagens no Evangelho de João que se relacionam ao
assunto da morte. Jesus disse: “Se alguém guardar a minha palavra, não
verá a morte, eternamente” (8.51). Não é de admirar que os judeus
A VIDA APÓS A MORTE • 191

que afirmavam que Jesus tinha um demônio achassem que estas


palavras confirmavam a sua opinião. Eles pensaram claramente que
Jesus estava propondo uma forma de fuga da morte física. Eles
mencionam que até Abraão e os profetas haviam falecido. Como
resposta, Jesus não elucida este ponto, mas torna-se claro, con-
siderando-se a seqüência, que ele não estava pensando na morte física.
É neste contexto que ele diz: “Antes que Abraão existisse, eu sou”
(8.58).24 Estas palavras não nos falam nada acerca da morte, mas se
concentram no caráter de Jesus. É digno de nota o fato de que, embora
Jesus tenha dito “ver” a morte, os seus críticos alteraram a palavra para
“provar” (8.52), presumivelmente por ter o mesmo significado.25 Jesus
queria dizer que os seus seguidores teriam uma postura totalmente
diferente da abordagem das outras pessoas quanto à experiência da
morte, uma experiência que removería dela os seus terrores. Uma
interpretação alternativa seria presumir que Jesus estava se referindo
à morte espiritual, que os seus seguidores não experimentariam. Isto é
possível, mas não há nada no preâmbulo que prepare os seus ouvintes
para tal transferência de pensamento.
Duas declarações na passagem de Lázaro têm relevância para o
nosso estudo. Em João 11.4, Jesus diz: “Esta enfermidade não é para
morte, e, sim, para a glória de Deus”. Aqui ele deve estar olhando além
do acontecimento da morte física, para a restauração de Lázaro à vida.
Portanto, esta declaração contribui pouco para entendermos a morte,
além do fato de que a morte não é obstáculo no caminho da glória de
Deus. A segunda declaração está em 11.11: “Nosso amigo Lázaro
adormeceu, mas vou para despertá-lo”. João comenta que os discípulos
pensaram que Jesus estava falando literalmente que Lázaro havia
adormecido, embora ele logo em seguida tenha lhes explicado que
Lázaro estava morto. Notamos uma distinção semelhante entre sono e
morte nos sinóticos, pois Jesus está outra vez usando sono como
sinônimo de morte. É fundamentalmente a mesma idéia do caso da filha
de Jairo. Não é um estado inconsciente, mas um estado de morte do
qual a pessoa pode ser libertada. Nem Lázaro nem a filha de Jairo
deixaram no registro evangélico qualquer impressão da experiência da
morte através da qual passaram.
Quando consideramos o material sinótico, notamos várias opiniões
acerca da atitude de nosso Senhor em relação à morte. No relato de
João, o episódio do Getsêmani está ausente, mas uma frase paralela é
192 • IMORTALIDADE

encontrada em 12.27: “Agora está angustiada a minha alma, e que direi


eu? Pai, salva-me desta hora? mas precisamente com este propósito vim
para esta hora”. Aqui, mais uma vez, não se torna evidente, mediante
o contexto, que Jesus está expressando medo da morte. É verdade que
ele tem em mente a sua paixão (segundo mostra 12.32), mas é a “hora”
que é de suprema importância. Não é a morte propriamente dita, mas
a natureza e o propósito dela são o que causa a angústia. Deve-se notar
que no capítulo anterior Jesus estava profundamente comovido e
chorara, ao ver a tristeza que a morte causara à família de Lázaro
(11.33-35). Em nenhum dos casos a angústia de Jesus resulta
diretamente do simples fato da morte física. Outra característica do
Evangelho de João é o grito triunfante (“está consumado”) dado na
cruz, pouco antes do momento da morte (19.30), que transforma o
horror em missão cumprida.
Na aparição posterior à ressurreição, em João 21.15ss., Jesus
predisse que espécie de morte experimentaria (w. 18, 19). O evan­
gelista reconheceu, ao escrever, que Jesus considerou a morte de Pedro
como maneira pela qual este haveria de glorificar a Deus. A morte, para
os discípulos, não devia ser temida, se era uma forma de alcançar tal
objetivo. Jesus, ao afirmar acerca do discípulo amado: “Se eu quero que
ele permaneça até que eu venha, que te importa?” dá a entender que
somente os que estiverem vivos por ocasião de sua vinda escaparão da
morte (cf. Mc 13.27). É Paulo quem amplia este tema, mas o seu germe
se encontra nos ensinos de Jesus.
Pelo fato de, nas epístolas joaninas, a ênfase residir na qualidade
desta vida, não é de todo surpreendente que pouco se fale da vida
além-túmulo. Contudo, como no Evangelho de João, assim também
acontece em 1 João: muito se fala na vida eterna, o que deve
subentender mais do que esta vida. Sobretudo, quando a morte é
mencionada, ela tem uma conotação moral, o oposto da vida. O que é
explícito na maioria dos outros livros do Novo Testamento parece estar
pressuposto aqui.

ATOS

Talvez não seja de admirar, em vista da natureza deste livro, que a


sua contribuição ao assunto da ressurreição dos crentes seja pequena.
A VIDA APÓS A MORTE • 193

De fato, a declaração de maior importância ocorre no discurso de Paulo


no Areópago. Os epicureus e estóicos haviam ouvido falar que
Paulo andava pregando Jesus e a ressurreição (17.18). O discurso
subseqüente no Areópago foi interrompido à primeira menção da
ressurreição dos mortos.26 Paulo fala da ressurreição de um
“homem” ou “varão” apontado por Deus (17.31). A forte reação de
zombaria reflete o ceticismo dos ouvintes em relação à idéia toda de
ressurreição. Em um contexto grego, isto deve ser entendido em relação
com a ressurreição do corpo, distintamente da imortalidade da alma,
que era aceita pelos gregos que seguiam as idéias de Platão. A ênfase
de Paulo na ressurreição de Cristo imediatamente o colocou em
conflito com a opinião que prevalecia em Atenas.27 Visto, porém, que
esta idéia formava o cerne do seu evangelho cristão, ele não tinha
opção, a não ser proclamá-la, mesmo em face do ceticismo.
No discurso anterior de Pedro, no dia de Pentecoste, há duas
referências ao Hades (2.27, 31). A primeira é uma citação do Salmo
16.8-11: “Porque não deixarás a minha alma na morte {Hades), nem
permitirás que o teu Santo veja corrupção”. A segunda é um comentário
a respeito desta citação, que previa o seu cumprimento em Cristo. O
próprio salmo contém mais verdades profundas do que o salmista tinha
conhecimento. Para ele, tratava-se de uma tensão entre a vida com
Deus e a vida sem Deus. A primeira pelo menos tinha alguma
continuação depois da morte. A ligação entre Hades e corrupção é
importante quando aplicada a Cristo, visto que é impossível atribuir-lhe
corrupção e, portanto, o Hades não tem relevância para ele. Paulo, em
seu discurso em Antioquia da Pisídia, registrado em Atos 13, tira
conclusões idênticas do mesmo salmo (13.35-37). Ele estabelece o
contraste entre Davi, que viu corrupção, e Cristo, que não a expe­
rimentou. Todavia, nem Pedro nem Paulo relacionam a ressurreição de
Cristo com a ressurreição dos crentes. Ambos se contentam em revelar
o resultado prático da ressurreição de Cristo, isto é, a disponibilidade
do perdão de pecados.
Em relação ao tema da morte, Atos não é mais explícito. Ele relata
a morte de várias pessoas. Em alguns casos, a morte parece ter a
natureza de um julgamento divino, como aconteceu com Herodes, por
sua arrogância (12.23), e com Ananias e Safira, por causa de mentira
(5.1ss.). Neste último caso, Lucas comenta meramente que grande
temor caiu sobre a igreja. Em duas ocasiões, as pessoas foram trazidas
194 • IMORTALIDADE

de volta à vida; Dorcas, por Pedro (9.36ss.), e Êutico, por Paulo (20.9).
Em nenhum dos casos alguém expressa surpresa particular, embora
quando Dorcas foi ressuscitada muitas outras pessoas tenham crido no
Senhor. Admitimos que, por si mesmos, casos de restauração da vida
aos mortos não nos falam nada acerca da vida além-túmulo.
É necessário outro comentário acerca de Atos, visto que Lucas
descreve o falecimento de Estêvão em termos de “adormecer”, fato que
ele, não obstante, logo identifica como morte (At 7.60; 8.1). Isto está
em consonância com o uso desta idéia nos evangelhos, conforme citado
acima. É provável que Lucas desejasse contrastar a profunda paz
interior do falecimento de Estêvão com a crueldade e violência das
circunstâncias externas da sua morte. Ele certamente desejava ressaltar
o paralelo entre a atitude de Estêvão diante dos seus assassinos
(“Senhor, não lhes imputes este pecado”, 7.60) e a oração de Jesus na
cruz, que só Lucas registra (Lc 23.34). Parece evidente que a atitude do
próprio Jesus em relação à morte era considerada por seus seguidores
como padrão para a atitude que deviam ter. Não há sinal, no primeiro
mártir cristão, de qualquer medo do último inimigo do homem. A
oração seguinte, “Senhor Jesus, recebe o meu espírito!”, é também
reminiscente da atitude de Jesus na hora da morte (çf. Lc 23.46).

PAULO

A ressurreição do corpo

Paulo tem bem mais a dizer sobre a vida além-túmulo, mas há


muitas interrogações que ele deixa sem resposta, em especial acerca do
corpo da ressurreição. Notaremos, antes de tudo, as evidências daquilo
em que Paulo crê quanto à ressurreição dos crentes. Há várias
passagens que estabelecem este fato, sem nenhuma dúvida.
Consideraremos, em primeiro lugar, Filipenses 3.20s.: “... aguar­
damos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual transformará o nosso
corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória”. Nesta
declaração são enfatizados dois fatos importantes. É predita uma
transformação para os crentes, que será efetuada por ocasião da
parousia, e a condição final é física, corporal, assemelhada ao corpo de
glória do Jesus ressurreto. Esta íntima ligação entre o corpo da
A VIDA APÓS A MORTE • 195

ressurreição de Jesus e o corpo da ressurreição dos crentes é a chave


para compreendermos os ensinamentos de Paulo a este respeito.
Contudo, precisamos notar que ele não se refere ao corpo de carne de
nosso Senhor exaltado. Isto tem levado muitos estudiosos a argumentar
que ele não cria nisso.29 Em lugar disso, o corpo celestial de Jesus,
alegam eles, consiste de “glória”. Visto, porém, que na frase paralela
que descreve os nossos corpos atuais, o substantivo no genitivo
(traduzido como “de humilhação”) não pode ser levado a expressar a
forma de nossos corpos, mas a sua qualidade,30 assim também precisa
ser dado o mesmo sentido qualitativo à palavra “glória”. Neste caso, tal
declaração não apresenta nenhuma indicação quanto à substância, quer
do corpo de ressurreição de Jesus quer dos crentes.
Em 1 Coríntios 15, Paulo apresenta uma descrição extensa do tema
da ressurreição e novamente liga a ressurreição de Cristo com a dos
crentes. A primeira parte do capítulo tem como objetivo estabelecer o
fato da ressurreição de Cristo e indica as conseqüências terríveis para
a fé cristã, se Cristo não tivesse ressuscitado (cf. 1 Co 15.17). Na última
parte, ele aborda um assunto diferente, resumido na pergunta: “Como
ressuscitam os mortos? e em que corpo vêm?” (v. 35). A resposta de
Paulo leva-nos a duas áreas principais: a figura da semente e a
comparação entre Adão e Cristo. Visto que ele usa a analogia de Adão
na primeira parte do capítulo e também em Romanos 5, trataremos
primeiramente do segundo ponto.
O paralelo Adão-Cristo tem relevância tanto para a pessoa como
para a obra de Cristo e também lança luz sobre o tema do corpo da
ressurreição. Em 1 Coríntios 15.22, Paulo diz: “Porque assim como em
Adão todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo”,
declaração que algumas pessoas dizem sustentar uma ressurreição
universal. Comentários posteriores a esta idéia serão feitos no
parágrafo abaixo, que trata da extensão da ressurreição, mas o nosso
interesse no momento é notar a convicção de que há um elo definido
entre a vida do Cristo ressurreto e a dos crentes. Neste contexto, a
ressurreição de Cristo é considerada como “primícias” (1 Co 15.20,23).
Ela é uma garantia de que outras a seguirão.
Quando Paulo volta ao paralelo entre Adão e Cristo, em 1 Coríntios
15.45, ele estabelece uma importante distinção entre o primeiro Adão
como “ser vivente” e o último Adão como “espírito vivificante”.
Embora alguns tenham suposto que Paulo está refletindo a idéia do
196 • IMORTALIDADE

homem celestial, de Filo, ao referir-se a Cristo como o último Adão,


isto pode ser dissipado se considerarmos que o homem celestial de Filo
era o primeiro e não o último Adão. Não é impossível que os coríntios
tivessem sido influenciados erroneam ente por Filo e que Paulo
estivesse corrigindo os seus mal-entendidos. Parece natural supor que
ele derivara a sua inspiração diretamente do Antigo Testamento e que
pretendia chamar a atenção para a diferença essencial entre o potencial
espiritual para a humanidade, em Adão e em Cristo. Há uma enorme
diferença entre receber vida e dar vida.
O fato de que Cristo é descrito como “espírito” vivificante não
significa que o Cristo ressurreto não tenha forma física. Esta observação
tem importância em nossa consideração do corpo da ressurreição do
crente, pois se Cristo tem poder para dar vida (isto é, para ressuscitar
à vida), pode-se esperar que dê o mesmo tipo de vida que ele mesmo
possui. Como último Adão, Cristo é o representante de todos os que
têm uma medida plena do Espírito. É isto que está em jogo e não um
contraste em termos de substância física entre Adão e Cristo. De fato,
tanto Adão como Cristo são descritos como “homem”.
O segundo tema na exposição de 1 Coríntios 15 é a analogia da
semente nos versículos 35-44.33 Ela é feita por Paulo em uma tentativa
de responder à questão sobre o tipo de corpo que os mortos têm. Esta
discussão deve ser lida e interpretada em contraposição ao ceticismo
dos gregos quanto à ressurreição do corpo, e é provável que a analogia
da semente usada por Paulo tivesse o desígnio de responder a tal
ceticismo que se havia insinuado na igreja. A força da ilustração da
semente está apenas na evidência que ela fornece do poder que Deus
tem de extrair vida de coisas mortas. Não é uma analogia exata. Ela
ilustra que a nova vida não é apenas uma reprodução da vida anterior,
porém algo melhor. Sem experiência anterior disso, ninguém deduziría,
a partir da aparência morta da semente, que nela estivesse encerrada
uma forma nova e mais gloriosa de vida em potencial. Paulo sustenta
que, embora haja continuidade entre o corpo atual de carne e o corpo
da ressurreição, também há transformação. Não se pode escapar à
conclusão de que Paulo está argumentando em favor de alguma espécie
de corpo glorioso que tem relação direta com o presente corpo
de carne. Isto é confirmado adiante por sua idéia de que cada espécie
de semente tem seu corpo característico (v. 38), cujo significado é que
existe uma continuidade definida entre a semente e a planta que dela
A VIDA APÓS A MORTE • 197

resulta. Um grão de trigo nunca produzirá um pé de cevada. Assim,


Paulo estende o seu argumento a outros aspectos do mundo natural —
para o mundo animal e para os corpos celestes — para demonstrar
ainda mais o poder de Deus em propiciar formas adequadas para as
suas criaturas.
Ao aplicar esta idéia, o apóstolo diz que o que está morto é
ressuscitado “na incorrupção”, “em glória” (v. 42) e “em poder” (v. 43).
Ele se torna um “corpo espiritual” (v. 44).35 Essa transformação é,
sobretudo, necessária, visto que “carne e sangue” não podem herdar o
reino de Deus (v. 50). Apenas o que é imperecível pode herdar o que
é imperecível. Parece haver poucas dúvidas de que Paulo considera este
processo como consistindo de uma transformação de substância mortal
para substância imortal, com uma continuidade entre elas. A expressão
“corpo espiritual”, mencionada acima, é notável, pois está diretamente
ligada ao “corpo físico” (v. 44). Embora em ambas ocorra a palavra
“corpo”, é clara a intenção de que “espiritual” (pneumatikon) denote
uma espécie de substância inteiramente distinta, em contraposição a
“natural” (psychikon).36 Isto precisa ser levado em conta em qualquer
conceito do corpo da ressurreição como “carne”. É claro que pode ser
argumentado que, se Paulo quisesse excluir a idéia de “carne” do
conceito de corpo espiritual, ele o teria contrastado com um corpo de
carne (sarkikon) e não com um corpo natural {psychikon)?1 Mesmo
assim, a idéia verdadeira da declaração de Paulo é que os nossos corpos
naturais do presente ressuscitarão em forma espiritual.38
Outra passagem de algum significado para o nosso estudo é
Romanos 8.11: “Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou
Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus
dentre os mortos, vivificará também os vossos corpos mortais, por meio
do seu Espírito que em vós habita”. Novamente torna-se claro que é
garantida alguma transformação de nossos corpos atuais. Alguns
estudiosos negam que isto se refira ao estado futuro e interpretam as
palavras deste versículo em relação à nossa experiência cristã atual.
Embora haja alguma verdade nisto, a íntima ligação entre a ressur­
reição de Cristo e a revitalização de nossos corpos mortais não pode ser
encoberta, e não é impossível detectar algum princípio que se aplique
ao corpo da ressurreição, mesmo que a ressurreição não seja o ponto
central do contexto. O efeito do Espírito habitando em nós é muito
notável, pois ele chama a atenção para a agência através da qual são
198 • IMORTALIDADE

executados todos os processos de vivifícação. Não apenas na vida atual,


mas em todos os processos de vivifícação e transformação, a obra do
Espírito é dominante. Em Gálatas 6.8, Paulo fala de colher vida eterna
“do Espírito”, em contraste com colher corrupção “da carne”.40
Portanto, o Espírito é uma agência indispensável em todo o processo
de transformação de um estado de corrupção para o de incorrupção.
Para os nossos objetivos imediatos, a passagem mais importante,
bem como a mais difícil, é 2 Coríntios 5.1-10.41 Ela é preparada
mediante a clara convicção expressa em 2 Coríntios 4.14: “... sabendo
que aquele que ressuscitou ao Senhor Jesus, também nos ressuscitará
com Jesus, e nos apresentará convosco”. Esta declaração serve de
paralelo íntimo a Romanos 8.11. Em 2 Coríntios 5, Paulo fala do que
acontece quando a “nossa casa terrestre deste tabernáculo” é destruída
(isto é, por ocasião da morte de nosso corpo físico). Ele afirma que
“temos da parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos, eterna,
nos céus” (v. 1).
Há duas interpretações possíveis para esta declaração. Ela pode ser
entendida em sentido individual ou coletivo. Geralmente se supõe que
“edifício” é o corpo da ressurreição dos cristãos, que abrigará a alma
por ocasião da morte42 ou da parousia. Isto é baseado no pressuposto
de que Paulo é influenciado aqui pela maneira grega de pensar, visto
que o conceito de “casa” era usado neste sentido nas obras gregas
contemporâneas (cf. Filo, depraem. 120; de som. 1.122).
C ontudo, esta opinião, que tem desem penhado um papel
importante nas discussões acerca do estado intermediário na teologia
de Paulo (veja a divisão abaixo), está aberta a sérios desafios. Outras
ocorrências da idéia de um edifício não feito por mãos aparecem em
um sentido quase técnico, com significado coletivo. Marcos 14.58
apresenta um relatório de pessoas que haviam ouvido Jesus dizer que
iria edificar outro templo não feito por mãos. Embora seus ouvintes o
tivessem entendido mal, é logicamente certo que Jesus estava pensando
no “corpo de Cristo” coletivo (isto é, sua igreja). É provável que uma
alusão semelhante se encontre na referência de Estêvão ao novo templo
(At 7.48s.). Se Paulo tem a mesma idéia em mente, em 2 Coríntios 5.1,
ele está afirmando que os que estão em Cristo já têm outro “edifício”.
Eles se revestiram de Cristo por ocasião da conversão, e o despimento
da tenda ou tabernáculo terreno não pode afetar a incorporação do
crente no corpo de Cristo.43 Tal interpretação implica em que o estilo
A VIDA APÓS A MORTE • 199

de existência caracterizado pelo “tabernáculo terrestre” precisa ser


considerado coletivo, estado que afeta a todos os que estão em Adão.
Os que ainda gemem por causa das limitações do tabernáculo terrestre,
mas que, todavia, estão em Cristo, anseiam por revestir-se da
“habitação celestial” (2 Co 5.2).
Outra consideração importante que surge da mesma passagem é o
significado da palavra “nus” (gymnos), no versículo 3. Em geral ela é
vista como referente ao espírito desencarnado (sem corpo) e, portanto,
esta declaração, segundo se alega, sustenta a idéia de uma existência
fora do corpo no estado intermediário (veja a discussão abaixo). Anossa
preocupação, agora, é decidir se, de fato, a maneira correta de entender
o pensamento de Paulo é interpretar gymnos desta maneira. Mais uma
vez tem sido dada atenção exagerada a antecedentes supostamente
gregos, em detrim ento aos antecedentes hebraicos. Pode-se de­
monstrar que “nus”, no Antigo Testamento, freqüentemente está
ligado com “vergonha” na presença dos juízos de Deus (cf. Ez 16.37,
39; 23.26,29).45 Portanto, a expressão precisa ser considerada como de
significado ético, e há apoio para esta idéia em outras passagens do
Novo Testamento {cf. Rm 10.11; 1 Jo 2.28). Então, a idéia de
“revestir-se” (endyõ) teria relação com o fato de o crente estar no
contexto do corpo de Cristo por ocasião do juízo.
O terceiro fator que surge de 2 Coríntios 5 é a clara associação entre
a obra do Espírito e o pensamento escatológico de Paulo nesta
passagem. O Espírito já foi dado como “penhor” (arrabõn, 2 Co 5.5).
Isto se liga com o que já foi dito acerca do significado do Espírito na
ressurreição dos crentes. Visto que a palavra arrabõn era comumente
usada para designar uma amostra que garantia a qualidade daquilo que
se lhe seguiría, a declaração de Paulo necessariamente significa que a
presença do Espírito agora é uma segurança da vida com a qual será
revestido aquilo que agora em nós é mortal.
Consideraremos agora se Paulo confere algum apoio à idéia grega
de imortalidade da alma como algo distinto da ressurreição do corpo.
Já foi apresentada evidência suficiente deste último fato, mas alguns
eruditos que interpretam esta evidência no sentido espiritual sus­
tentam que Paulo esposava a idéia grega de imortalidade.47 Todavia,
quando Paulo fala de imortalidade, ele jamais a relaciona com a alma.
Ele declara explicitamente em 1 Timóteo 6.16 que só Deus tem imor­
talidade. Para os gregos, a morte era uma libertação da prisão da alma
200 • IMORTALIDADE

(que é o corpo); contudo, para Paulo a imortalidade é considerada dom


de Deus. A idéia de que ele se apegava a um ponto de vista grego acerca
da vida futura precisa ser rejeitada, à luz de seus ensinamentos como
um todo.
Alguns comentários precisam ser feitos sobre o suposto desen­
volvimento do ensino de Paulo acerca da ressurreição do corpo. Vários
eruditos48 têm reivindicado um avanço em quatro estágios: (i) a forma
judaica de crença escatológica em que se presumia que os corpos
ressuscitariam na mesma forma em que haviam descido ao túmulo.
Supõe-se que isto está implícito em 1 Tessalonicenses; (ii) os
primórdios da escatologia pneumatológica, em que se cria que o
Espírito ocasionaria uma transformação no momento da ressurreição.
Diz-se que isto é verificado em 1 Coríntios; (iii) o avanço do momento
de transformação dramática para o momento da morte. Isto é algumas
vezes ligado com a idéia de que o corpo do crente já está preparado no
céu e baseia-se em 2 Coríntios 5.1-8; (iv) a opinião de que a trans­
formação do corpo já começou nesta vida no crente, presumivelmente
baseada e expressa em 2 Coríntios 3.18 e 4.17.49
Antes de podermos apoiar qualquer teoria de desenvolvimento em
Paulo, precisaria ser mostrado não apenas que essas presumíveis
diferenças são baseadas em uma forma válida de entender as
evidências, mas também que a melhor interpretação dessas diferenças
é uma seqüência de desenvolvimento. Poderia ser estabelecido um
verdadeiro desenvolvimento, se cada novo estágio acarretasse e
envolvesse uma superposição do últim o. Isto, porém , é uma
simplificação exagerada de uma série complexa de dados. As opiniões
de Paulo são expressas apenas em termos mais genéricos. De fato, é
mais razoável supor que ele se expressa de várias m aneiras
não-contraditórias entre si, mas que apresentam ênfases distintas. Mais
do que isto, é inconcebível que Paulo tivesse mudado de opinião no
tempo incrivelmente curto decorrido entre 1 e 2 Coríntios.50 Outra
característica inconcebível é que, visto que o suposto estágio inicial em
1 Tessalonicenses apresenta semelhanças marcantes com os ensinos de
Jesus, o pensamento posterior de Paulo seria, então, correspondente a
uma correção no pensamento de Jesus. Contudo, não há justificativas
para supor que Paulo tivesse feito isto.
Uma cuidadosa comparação entre 1 Tessalonicenses 4.13ss., 1
Coríntios 15 e 2 Coríntios 4-5 não revela nenhuma modificação
A VIDA APÓS A MORTE • 201

fundamental na escatologia de Paulo. Os defensores da teoria do


desenvolvimento confundem o efeito atual da vida da ressurreição no
crente com a forma do corpo da ressurreição depois da morte. As idéias
de Paulo, contudo, abrangem tanto o presente como o futuro.
A nossa consideração final visa determ inar a extensão da
ressurreição dos crentes. Precisamos começar com 1 Coríntios 15.22:
“... todos serão vivificados em Cristo”. Aparentemente, esta frase dá a
entender não apenas uma ressurreição universal, mas também uma
salvação universal. O “todos” deste versículo encontra-se em paralelo
com a declaração de que “em Adão todos morrem”. Todavia, estas duas
declarações podem ser entendidas com o significado de que todos os
que estão “em Adão” morrerão, e todos os que estão “em Cristo” serão
vivificados. Paulo está afirmando “não a universalidade da lei, mas a
universalidade do seu modus operandi no contexto em que ela atua”.51
A ênfase recai não no “todos” em si, mas na palavra “todos” ligada a
“em Adão” e “em Cristo”. Esta declaração não nos revela nada acerca
da extensão da ressurreição do corpo além da sua aplicação aos crentes,
e não se pode considerar que esteja ensinando salvação universal.
No mesmo contexto (v. 23) ocorrem as palavras “cada um, porém,
por sua própria ordem” (tagma), e julga-se que elas confirmam a idéia
de ressurreição em dois estágios.52 Todavia, visto que o próprio Cristo
é uma ordem e os santos ressuscitados são outra, não se encontra aqui
apoio para uma ressurreição em dois estágios posterior à ressurreição
de Cristo.
Não podemos abordar este tema sem levar em conta o ensinamento
de Paulo em 1 Tessalonicenses 4.13-18, que inclui o fato de que algumas
pessoas que estiverem vivas por ocasião daparousia serão reunidas aos
mortos ressurretos, para encontrar o Senhor nos ares (veja pp. 213ss.).
Surge a interrogação: esses sobreviventes receberão um corpo da
ressurreição à semelhança daqueles que são ressuscitados dos mortos?
Não parece que Paulo esteja percebendo qualquer dificuldade a este
respeito. Nesta passagem ele não está preocupado com a natureza do
corpo da ressurreição. O centro do seu interesse é a relação entre os
sobreviventes e os mortos ressurretos. Os tessalonicenses tinham medo
de que os mortos fossem colocados em situação de desvantagem por
ocasião da parousia, mas Paulo sustenta que não haverá distinção entre
eles. É justo presumir que ele cria que todos possuirão a mesma espécie
de corpo da ressurreição, o que acarretará uma transformação
202 • IMORTALIDADE

instantânea dos que forem arrebatados. Paulo insiste em que todos


estarão “com o Senhor” (v. 17), mas não faz nenhum outro comentário
acerca do seu estado. Nesta passagem não há mais sugestão do que em
1 Coríntios 15.23, a respeito de uma ressurreição em dois estágios.
É necessário tecer alguns comentários acerca de Filipenses 3.10-14,
onde Paulo expressa os seus anseios acerca do futuro. O que deseja ele
falar quando diz, em relação às suas aspirações: “... para de algpm modo
(ei põs) alcançar a ressurreição dentre os mortos” (v. II)? 53 Alguns
estudiosos têm interpretado isto como referente a uma ressurreição
especial reservada aos mártires. Mas é claro que esta idéia não pode ser
sustentada, em vista de Filipenses 3.20-21, onde Paulo afirma que a
transformação do corpo, que terá lugar por ocasião da parousia, afeta
a todos, e não se faz nenhuma distinção entre os mártires e os outros
cristãos.54 Por outro lado, a declaração de Paulo tem sido interpretada
com o significado de que ele estava expressando a esperança de
sobreviver até a parousia, mas novamente não existem justificativas
para supor que ele tenha confundido seus termos, especialmente pelo
fato de, em Filipenses 1, mostrar-se bastante disposto a partir para estar
com Cristo.
Se eipõs significa “com vistas a alcançar” a ressurreição, então seria
possível supor que o apóstolo está expressando o seu reconhecimento
de que a profissão da fé cristã pode ser igualada à vida cristã cor­
respondente. Esta convicção está em grande evidência em todas as suas
epístolas, mas de forma alguma abre portas para a opinião de que atingir
a ressurreição dependería por completo dos seus próprios esforços. Na
passagem de Filipenses, Paulo está apresentando apenas um lado do
quadro, contudo uma apreciação séria do seu significado precisa levar
em conta o outro lado (isto é, a doutrina paulina de justificação somente
pela fé).

O estado intermediário

Duas questões intimamente ligadas têm sido levantadas a respeito


dos ensinos de Paulo, as quais podem ser resumidas com o título
genérico de estado intermediário. A primeira é: que informação Paulo
dá acerca da existência posterior à morte do crente, até a ressurreição
por ocasião da parousia? A segunda é: ele apóia a idéia de “sono da
alma” durante esse período? Esta expressão é usada para descrever um
A VIDA APÓS A MORTE • 203

estado existencial da alma, comparável a uma experiência de sono, ou


seja, de inconsciência. Logo de início precisa ser admitido que Paulo
não trata de nenhum desses temas de maneira frontal. Ele está muito
mais interessado na ressurreição, a qual discute minuciosamente, do
que no estado do crente por ocasião da morte. Não obstante, há certas
passagens nas quais ele dá indicações da sua maneira de pensar.
Voltemos a 2 Coríntios 5. lss., que já foi discutido na última divisão,
porque este tem sido o bastião mais importante da exposição do
ensinamento de Paulo acerca do estado intermediário.56 O pensamento
central está nos versículos 6 e 8: “no corpo” como sinônimo de
“ausentes do Senhor” e, por outro lado, “deixar o corpo” como
sinônimo de “habitar com o Senhor”. Desde a antigüidade presume-se
que “deixar o corpo” relaciona-se com o estado intermediário,57 e isto
tem forte apoio da maioria dos exegetas modernos. Fica imediatamente
claro que Paulo não pretende que os seus leitores suponham que, por
ocasião da morte, eles serão separados de Cristo. Em Romanos 8.38s.,
ele torna claro que a morte não tem poder para fazer tal coisa. No
presente contexto, as palavras “habitar com o Senhor” devem ter a força
de uma experiência imediatamente seguinte à experiência de “deixar o
corpo”. Portanto, não é válido nenhum conceito de estado inter­
mediário que não forneça também uma consciência da presença do
Senhor.
No entanto, tem sido questionado se 2 Coríntios 5.lss. deve ser
citado em referência ao estado intermediário. “Deixar o corpo” não
precisa significar nada mais do que separação “das solidariedades do
corpo mortal”.58 Neste caso, “habitar com o Senhor” indica o estado da
vida espiritual, mas não dá nenhuma indicação a respeito da forma
“física” dessa condição.
Outra declaração de Paulo tem algo a ver com a sua opinião acerca
do estado intermediário. Em Filipenses 1.23, ele expressa um dilema
em sua mente: “... tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o
que é incomparavelmente melhor”. 9 Aqui, mais uma vez, é inegável
que Paulo não está sugerindo nenhuma lacuna entre o momento da
partida (isto é, morrer) e o de estar com Cristo. O seu conceito acerca
do estado intermediário era de um estado existencial em que ele estaria
plenamente consciente da presença do Senhor.60
Todavia, há várias opiniões acerca do ponto de vista de Paulo com
respeito ao estado dos crentes entre a sua morte e a parousia. Estão
204 • IMORTALIDADE

abertas as seguintes possibilidades: (i) os crentes estão existindo em


espíritos desencarnados (sem corpo), esperando a ressurreição, quando
lhes serão dados corpos gloriosos e eternos; (ii) os crentes recebem um
corpo “temporário” por ocasião da morte, que será substituído pelo
corpo glorioso da ressurreição, no momento daparousia. Esta opinião
inclui uma espécie de processo em dois estágios para a ressurreição do
corpo; (iii) uma modificação desta última opinião é que a ressurreição
plena dos crentes acontece por ocasião da morte, e a ressurreição dos
incrédulos na hora da parousia] (iv) outra opinião ainda é que os mortos
entram em um estado de inconsciência até a ressurreição, quando serão
ressuscitados e lhes será dado um corpo glorificado.
Não é fácil determinar o que Paulo teria imaginado, se estivesse
sugerindo que os m ortos em Cristo subsistem como espíritos
desencarnados.61 De fato, nas epístolas paulinas não existe nenhuma
evidência específica para a idéia de espíritos desencarnados, se for
excluído 2 Coríntios 5. Todavia, também não há nada específico que
exclua esta idéia, contanto que se tenha em mente algum estado
existencial que permita uma plena consciência da presença de Cristo.
A segunda proposta de um revestimento do espírito em dois
estágios é difícil de imaginar, porque diminui o significado do corpo
pleno da ressurreição por ocasião da parousia. Não há explicação para
este último, se um corpo temporário é adequado.62 Algumas formas
dessa teoria pressupõem uma espécie de armazém celestial de corpos
preparados para os crentes, na hora da morte, mas isto parece estar
muito longe do modo de pensar de Paulo. Não obstante, esta opinião
tenta explicar como pode ser considerada a existência entre a morte e
a parousia, sem se recorrer a uma ressurreição em dois estágios, mas
deixa sem resposta o problema principal.
A dificuldade que existe com a terceira opinião, de que a
ressurreição do crente tem lugar por ocasião da morte, é que ela parece
envolver uma série inteira de ressurreições e não um único evento, o
que parece ser exigido pelas várias referências de Paulo. A única
maneira de evitar isto é afirmar que começa a funcionar uma
consciência diferente de tempo, como se explica abaixo.
A quarta opinião mencionada acima — o sono da alma — requer
exame mais específico, por causa do grande apoio que recentemente
tem recebido (em especial na obra de Cullmann). O nosso primeiro
interesse é notar as passagens onde Paulo se refere aos mortos como os
A VIDA APÓS A MORTE • 205

que estão dormindo. O verbo que Paulo usa é koimaomai, que


basicamente significa sono, mas que também era usado no período
intertestamentário para designar os mortos.63 Ele não dá a entender
necessariamente inconsciência.64 O apóstolo usa-o em 1 Coríntios7.39;
11.30; 15.6,18,20,51; 1 Tessalonicenses 4.13-15. Em relação a morrer,
ele usa outra palavra (apothriêskõ) com mais freqüência, o que lhe dá
alguma razão especial para ter escolhido a metáfora do sono nos casos
citados.
Notar-se-á que, exceto nas duas primeiras, elas ocorrem em
contextos escatológicos. Em 1 Coríntios 15.18, Paulo está pensando
especificamente naqueles que dormiram em Cristo. Em duas ocasiões
(1 Co 11.30 e 1 Ts 4.13),65 ele emprega o presente do verbo, e isto tem
sido usado para sustentar a idéia de uma condição contínua de sono,
distinta de um único ato. Contudo, é provável que nas duas ocasiões ele
esteja pensando em um número contínuo de mortes, caso em que as
suas palavras não sustentam a idéia de um sono da alma contínuo. Em
1 Tessalonicenses 4.14, 15, quando Paulo fala dos que morreram em
comparação com os que ficarem, por ocasião da parousia, ele escolhe
a expressão “os que dormem”.66 Ele faz a mesma coisa, ao se referir a
Cristo como “primícias”, em 1 Coríntios 15.20 (“primícias dos que
dormem”). Ele declara, em 1 Coríntios 15.51, que nem todos “dor­
miremos”, mas todos seremos transformados.
Portanto, qual o significado da figura do sono usada por Paulo para
designar a morte? Estará ele dando a entender um estado de sono da
alma anterior à ressurreição? Não é de admirar que ele empregue a
metáfora do sono para designar a morte, mas esta aplicação, na maneira
contemporânea de pensar, não tem em si a idéia de inconsciência. Não
parece haver razão para supor que Paulo cria que o crente, por ocasião
da morte, cairia em um estado de inconsciência do qual se levantaria
apenas na hora da ressurreição. Isto contradiría o significado claro tanto
de Filipenses 1.23 (estar com Cristo) como de 2 Coríntios 5.8 (habitar
com o Senhor). Estas declarações demandam uma consciência de estar
com o Senhor, e isto deve afetar qualquer exposição da teoria do sono
da alma.67 Neste aspecto, o ensinamento de Paulo concorda com as
palavras de Jesus ao ladrão penitente, em Lucas 23.43 (observe também
a história do rico e Lázaro, em Lucas 16.22s., e o clamor dos mártires
debaixo do altar, em Apocalipse 6.9-11).
Parte do problema do ensino do Novo Testamento a respeito da
206 • IMORTALIDADE

vida futura é suscitada pelo intervalo cronológico entre a morte e a


parousia. Cullmann diz haver uma consciência diferente de tempo na
vida futura e, se ele está correto, não podemos aplicar a esse intervalo
a consciência de tempo que temos agora. De fato, é possível que, do
ponto de vista de Deus, não haja nenhum intervalo, que a ressurreição
por ocasião da parousia aconteça imediatamente depois da morte do
crente. Mas aqui estamos na área de pensamentos sobre os quais, pela
natureza do caso, ninguém de nós tem experiência. A nossa conclusão
deve ser de que o máximo que podemos nos aproximar da idéia de Paulo
a respeito do estado imediatamente posterior à morte é dizer que ele
consistirá de comunhão com Cristo. Quando vamos além disso,
entramos na esfera da especulação.
É notável o fato de que Paulo não fala praticamente nada a respeito
da ressurreição dos injustos, mas não é possível deduzir deste fato que
ele excluía essa idéia. Pode-se inferir da sua convicção que todos serão
julgados, todavia precisa ser aventada a possibilidade de julgamento de
seres incorpóreos. O fato é que Paulo não dá indicação específica do
estado dos ímpios. Em 2 Timóteo 4.1, ele fala de Cristo Jesus “que há
de julgar vivos e mortos”, o que pode pressupor uma ressurreição de
ambos, embora ele não faça menção disso. Podemos dizer que a
preocupação dele não é com os destinos finais, mas com o interesse que
a vida futura tem para o crente.

A atitude diante da morte

Aqui nos limitaremos à morte física. O que foi dito acima mostra
que o apóstolo tem uma abordagem otimista em relação à morte. Ele
considera que, através de Cristo, a morte perdeu o seu aguilhão,
identificado por ele com o pecado (1 Co 15.55, 56). Esta abordagem
otimista acerca da morte baseia-se na opinião de que a entrada da morte
no mundo foi causada pelo pecado (Rm 5.12ss.) e de que Cristo
efetivamente já tratou da sua causa.69 Paulo não vê mais a morte como
inimigo a ser temido, mas, pelo contrário, como ponto de transição para
uma vida mais plena. A sua experiência ostenta esta característica. Ele
viveu sob constantes ameaças de morte (1 Co 15.31; 2 Co 1.8; 11.23ss.),
pôde debater friamente se é preferível a vida ou a morte em Cristo
(Fp 1.19ss.) e exemplifica um homem que venceu todo medo da
morte.70
A VIDA APÓS A MORTE • 207

É necessário referirm o-nos ainda à m orte concebida como


julgamento. Em 1 Coríntios 11.30, Paulo, ao comentar acerca dos que
participam da ceia do Senhor de maneira indigna, declara: “Eis a razão
por que há entre vós muitos fracos e doentes, e não poucos que
dormem” (morreram). Parece que ele está reconhecendo que as
enfermidades e a morte poderíam ser evitadas através de uma vida mais
digna. Mas a referência à morte neste contexto deixa-nos perplexos. Há
possibilidade de que Paulo tenha em mente alguma espécie de
avaliação disciplinar da morte, paralela à que sobreveio a Ananias e
Safira (Atos 5). É claro que há muitos casos em que Paulo aplica
“morte” no sentido espiritual como julgamento de Deus sobre o pecado
(Ef 2.1; Cl 2.13).

O RESTANTE DO NOVO TESTAMENTO

Com respeito ao assunto da vida além-túmulo, Hebreus tem pouca


coisa explícita a dizer, embora haja certos pensamentos valiosos que
podem servir de indicadores. A crença na ressurreição dos mortos é
tratada como uma das “doutrinas elementares de Cristo” (6.1,2), uma
doutrina básica, sem a qual ninguém poderia ser cristão. Sobretudo, ela
está ligada com “juízo eterno”. Contudo, nenhuma outra explicação é
dada a respeito da ressurreição. O escritor não se importa com o corpo
da ressurreição neste contexto.71 Quando ele fala de Cristo no céu,
refere-se a ele sentado à direita de Deus (1.3; 8.1; 10.12), mas não dá
nenhuma indicação da espécie de corpo que ele tem.
Quando a segunda vinda de Cristo é citada em 9.28, faz-se menção
dos que o estão esperando ansiosamente, mas nenhuma distinção é feita
entre os vivos e os mortos em Cristo (como em 1 Ts 4). Evidentemente
isto não representava problema nas comunidades para as quais esta
carta foi enviada. Talvez a passagem mais esclarecedora para os nossos
objetivos seja 12.22, que, mesmo sendo uma descrição de uma cena
celestial, não obstante abrange os adoradores atuais (note o verbo
“chegastes”). A passagem inteira sugere uma combinação atual de
adoradores angelicais com a assembléia dos primogênitos, e os espíritos
dos homens justos aperfeiçoados, todos em assembléia na Jerusalém
celestial.72 Aqui não se encontra nenhuma sugestão de existência
inconsciente ou nebulosa para os justos, embora o uso da palavra
208 • IMORTALIDADE

“espíritos” (pneumata) possa dar im pressão de uma existência


desencarnada (fora do corpo). Visto que em Hebreus é usada a mesma
palavra (1.14) a respeito dos anjos (espíritos ministradores), não se
pode tirar nenhuma conclusão da palavra propriamente dita, em
relação à forma física ou corporal. Seria seguro concluirmos que o
escritor não mostra nenhum interesse no assunto do corpo da
ressurreição e não diz nada a respeito do estado intermediário.
Quanto ao estado futuro dos crentes, o escritor se contenta com a
idéia de “glória” (2.10; çf. também 2.9; 3.3), mas isto não nos revela
nada a respeito da substância com a qual o crente será revestido. De
fato, embora esta epístola se concentre nas realidades celestiais que
estão por trás do culto antigo, e por isso tem uma perspectiva
essencialmente voltada para o futuro, seu objetivo é esboçar a maneira
certa de se aproximar de Deus no presente. Existe uma convicção básica
de que, embora haja um descanso futuro reservado para o povo de
Deus, o assunto mais urgente é o desafio de “hoje” (capítulos 3 e 4). O
restante, sobretudo, não deve ser concebido como prom etendo
inatividade, visto que o padrão do descanso do crente não é nada mais
do que o descanso sabático de Deus. A epístola em epígrafe é um
exemplo soberbo da mistura dos aspectos presente e futuro, com a
ênfase recaindo no desafio do presente.73
Quanto à atitude em relação à morte, Hebreus expressa a natureza
radical da mudança de atitude que acontece para os filhos de Deus.
Enquanto o medo da morte é natural para os que estão no cativeiro do
diabo, Cristo trouxe libertação (2.14,15). O seu povo não precisa mais
abordar a morte com medo, porque aquele que tem o poder da morte
(isto é, o diabo) está destruído. Se os cristãos temem a morte, é somente
porque não conseguem apreciar o fato de que não estão mais
escravizados a ela. O escritor não tem dúvidas de que essa libertação já
aconteceu.
Em uma epístola essencialmente prática como Tiago, não é de
admirar que se fale pouco a respeito da vida além-túmulo. Uma “coroa
de vida” é oferecida para aquele que suportar a tentação (1.12), e isto
presumivelmente será alcançado na vida futura. De forma semelhante,
os humildes serão exaltados (4.10). Mas Tiago é prático demais para se
deixar levar por especulações acerca do corpo da ressurreição.
Pode-se dizer acerca de Pedro e Judas que o interesse pela
A VIDA APÓS A MORTE • 209

escatologia, onde ele ocorre, é prático e não especulativo. 1 Pedro


começa mencionando a herança reservada no céu (1.4), mas não fala
nada acerca dos herdeiros em seu estado ressurreto. Embora diga que
o fim de todas as coisas está próximo (4.7), Pedro não acrescenta nada
acerca daparousia, da ressurreição dos mortos ou da relação entre estes
e os sobreviventes, no fim. Ele parece estar interessado principalmente
no desafio moral que a aproximação do fim deve ocasionar na vida
atual. O clímax que se aproxima também é chamado de “dia da
visitação” (2.12), onde mais uma vez esse pensamento é usado para
fazer uma exortação moral (c/. também 1.13).
Há uma passagem característica nesta epístola, que, segundo se
pensa, faz referência específica à vida além-túmulo, isto é, 3.19, uma
passagem notoriamente difícil, que se refere a Cristo pregando aos
“espíritos em prisão”.74 O contexto menciona a desobediência anterior
desses espíritos e os liga com o dilúvio. Algumas pessoas vêem aqui uma
proclamação para os mortos, mas não há nesta passagem nenhuma
declaração que justifique isto. É altamente improvável que esta
passagem se refira à pregação do evangelho para dar aos mortos
incrédulos uma segunda chance. Nenhuma outra passagem do Novo
Testamento sustentaria tal sugestão. Mesmo que esta interpretação
esteja correta, esta passagem não nos fala nada acerca do estado dos
crentes depois da morte ou do corpo da ressurreição. Não obstante, a
palavra “pregação” certamente favorece mais uma pregação do
evangelho do que uma proclamação de julgamento. Todavia, nenhuma
interpretação é satisfatória, se não a relacionar de algum modo com a
época de Noé e não tiver alguma importância para os leitores de Pedro.
Não pode ser dada aqui nenhuma resposta final. Contudo, parece
bastante razoável supor que o pregador era Cristo (não especificando
a forma em que ele pregou), mas que a pregação foi feita na geração de
Noé.75 Neste caso, os “espíritos em prisão” são os condenados por
desobediência na época do dilúvio, e a arca, instrumento divino de
salvação, foi o meio pelo qual Cristo lhes pregou naquela época. Toda
a passagem seria parte do apelo de Pedro ao exemplo de Cristo. Esta
interpretação não se faz sem dificuldades, mas se ela é aceita, significa
que a passagem não apresenta idéias acerca do estado de coisas
existente na vida pós-morte, sem se contar a expressão “espíritos em
prisão” que descreve os que haviam sido desobedientes nesta vida. Os
“espíritos” (pneumctía) não são definidos de maneira mais detida. A
210 • IMORTALIDADE

descrição de Cristo como estando “morto, sim, na carne, mas vivificado


no espírito” simplesmente aponta para seu ser em forma espiritual, mas
não deve ser relacionada à sua pregação na antigüidade. Sobretudo, é
digno de nota o fato de que aqui não se faz menção do Hades.
Uma segunda declaração feita por Pedro, igualmente difícil, está
em 4.6: pois, para este fim foi o evangelho pregado também a
m ortos”. À semelhança da passagem anterior, tem havido várias
tentativas para explicar esta declaração enigmática. O que nos interessa
aqui é a opinião de que o evangelho é pregado aos que já estão mortos,
isto é, para os falecidos, quer justos, quer injustos. Se esta opinião é
correta, ela significa que na vida depois da morte haveria oportunidade
para a pessoa reagir ao evangelho, mesmo dentre as que não haviam
reagido a ele durante a vida. Esta interpretação, quaisquer que sejam
as atrações que tenha, não concorda com a redação precisa da
declaração, pois o fato a que ela se refere é uma ocasião passada de
pregação (tempo aoristo).
Uma explicação mais provável é que os cristãos que agora estão
mortos, a quem o evangelho foi pregado no passado, não precisam
temer o juízo,76 pois, embora sejam julgados no que concerce à carne
(isto é, eles morreram), eles podem estar certos de uma vida renovada
em um estado espiritual. Esta explicação presume que os “mortos” são
os que foram maltratados (v. 5) e que essas palavras têm a conotação
de ânimo para os irmãos, perplexos porque os cristãos não estavam
escapando à morte física.77 Neste caso. os “mortos” aqui são
diferentes dos “espíritos em prisão”, de 3.19. Podemos concluir desta
passagem, tanto quanto da outra, que as interpretações mais prováveis
não favorecem uma extensão do ministério da graça até o Hades.
A epístola de Judas não contém nenhuma referência à ressurreição.
E m bora nela haja um a alusão aos anjos decaídos que foram
conservados nas trevas até o dia do juízo (v. 6), não há referências
específicas aos mortos ímpios. Judas não oferece nenhuma ajuda para
resolver o problema da vida além-túmulo. O mesmo pode ser dito a
respeito de 2 Pedro, que entra em grandes detalhes a respeito do dia do
Senhor (cf. especialmente cap. 3). No entanto, há duas declarações em
2 Pedro que merecem a nossa atenção. Em 1.14, Pedro fala de “deixar
o meu tabernáculo” e da “minha partida” (v. 15). Nada ele diz acerca
do estado depois da morte. Em 3.4, a morte é mencionada através da
metáfora do sono, mas outra vez nada mais pode ser deduzido acerca
A VIDA APÓS A MORTE • 211

do que aconteceu aos pais depois da morte.


YimApocalipse, livro que se concentra no futuro, não é de admirar
que encontremos referências à ressurreição dos mortos. Mas essas
referências suscitam certos problemas. Notamos, em primeiro lugar,
que os mártires são vistos “debaixo do altar” (6.9). Tem sido afirmado
que a sua presença debaixo do altar mostra que eles ainda não estavam
na presença imediata de Deus, o que não aconteceria antes da primeira
ressurreição.79 É provável, porém, que esta dedução esteja errada, pois
os paralelos que contêm a expressão “debaixo do altar” na literatura
judaica sugerem que isso pode significar debaixo do trono de Deus e,
portanto, na presença de Deus.80 Nada se diz nessa passagem a respeito
do corpo da ressurreição. Os mártires estão vestidos de “vestiduras
brancas”, frase que alguns estudiosos têm pensado referir-se a um
corpo glorificado; mas dificilmente isto pode ser considerado como
“vestimenta” para mártires, e é mais provável que se refira às roupas
de justiça que Cristo fornece (cf 7.13s.; cf. também 19.8).81 O fato de
que eles são descritos como “almas” (psychai) não significa que sejam
especificamente considerados como incorpóreos.82 Esta declaração,
porém, parece indicar alguma espécie de estado pré-ressurreição,
embora esteja claro que não se trata de um estado de inconsciência.
Levanta-se um problema da referência à primeira ressurreição,
encontrada em 20.4, 5, 13, que parece ser restrita aos mártires. De
acordo com esta passagem, a primeira ressurreição é anterior ao
milênio, e a segunda, depois dele. A segunda é para os ímpios e
incrédulos. Naturalmente, a nossa interpretação dos estágios da
ressurreição dependerá da nossa interpretação do milênio. Se o
tratarmos como período literal de mil anos, durante os quais Cristo
reinará na terra, não há dúvidas de que o “descanso dos mortos”, que
não voltam à vida enquanto não termina esse período, precisa ser
identificado com os mortos incrédulos. Se, porém, for feita uma
distinção entre os mártires e os outros crentes, esta idéia requererá um
ponto de vista da primeira ressurreição em dois estágios. 3
Certamente não existe nenhuma declaração específica dizendo
isto, caso em que a reconstrução feita, seja ela qual for, deve ser
considerada como especulativa. Pode ser alegado, sem dúvida, que esta
é a hipótese mais provável para explicar todos os fatos, mas não se pode
dizer que ela é a única interpretação possível. Se os mil anos não forem
considerados como literais, mas simbólicos, a reconstrução acima não
212 • IMORTALIDADE

se aplicará. De fato, a opinião de que a teoria de uma ressurreição em


dois estágios é a mais provável precisa ser questionada. Ela envolve uma
posição que não encontra confirmação em nenhuma outra passagem do
Novo Testamento. Todas as referências à ressurreição do corpo
presumem apenas uma ressurreição. Apenas em Apocalipse 20 é que
se faz menção de primeira e segunda ressurreição.
Levanta-se a interrogação sobre a possibilidade de Apocalipse 20
ser entendido de qualquer m aneira que não subentenda duas
ressurreições físicas. O problema não surge do fato de Apocalipse 20
ser a única referência a uma ressurreição dupla, pois uma testemunha
única não pode ser condenada simplesmente porque está sozinha. O
problema se origina da reconstrução que a teoria de duas ressurreições
torna necessária, incluindo o pressuposto de que os corpos ressusci­
tados fisicamente se misturarão com as pessoas não-ressuscitadas
durante o milênio.84
Contudo, se o milênio simboliza o presente reino de Cristo na terra,
a primeira ressurreição pode ser considerada como ato espiritual, e a
segunda como ato físico. Isto é confirmado pelo fato de que a primeira
ressurreição é diferenciada da segunda morte, que com toda a certeza
deve ser a morte espiritual (20.6). É digno de nota o fato de que. não
se faz nenhuma menção a corpos em ligação com o milênio, mas só a
almas (20.4). Mais do que isto, a declaração de que elas “viveram”
(ezêsan) inclui um verbo que não é usado habitualmente a respeito da
ressurreição física (embora seja usado assim em Romanos 14.9). De
suprema importância na mente de João é a posição dos que haviam sido
ameaçados com o martírio cristão, a quem ele está encorajando em face
da ameaça vindoura. A eles é assegurado que reinarão com Cristo.
Apocalipse 20.4 pode ser entendido como incluindo outras pessoas
além dos mártires, visto que João fala também dos que não haviam
adorado a besta nem haviam recebido a sua marca. Assim, estes dois
grupos juntos poderíam abranger todos os cristãos mortos.
Nas várias cartas às igrejas em Apocalipse 2 e 3, são feitas
promessas aos vencedores (2.7, 11, 17, 26; 3.5, 12,21), e é importante
perguntar se estas promessas lançam alguma luz sobre a vida futura.87
Certamente os vencedores são crentes em Cristo, e não parece que
denotam um grupo específico no contexto do conjunto dos remidos.
Eles podem esperar a vida eterna, a libertação da segunda morte
(referência ao juízo), uma relação peculiar com Deus, vestiduras
A VIDA APÓS A MORTE • 213

brancas (isto é, através de Cristo), um lugar importante na cidade de


Deus e uma participação na vitória de Cristo. Contudo, nada se diz
acerca do estado dos crentes depois da morte.88

NOTA ACERCA DO “ARREBATAMENTO”

Como resultado dos claros ensinamentos de Paulo acerca da


parousia e da ressurreição dos crentes, não é de admirar que alguns dos
seus convertidos ficassem perplexos com a posição comparativa dos
crentes que haviam morrido antes da parousia e dos que ainda estarão
vivos por ocasião da vinda de Cristo. Isto deu origem ao seu ensi­
namento acerca do “arrebatamento”. A expressão “arrebatamento”
vem do latim rapio, que significa “tirar com violência” ou “enlevar,
extasiar”, e serve de tradução para a palavra grega harpazõ, em 1
Tessalonicenses 4.17.89 Nessa passagem, Paulo afirma que os que
permanecerem até a vinda de Cristo serão arrebatados juntamente com
os cristãos que forem ressuscitados, para estarem com o Senhor (ao
encontro dele) nos ares. A função do “arrebatamento” é dupla: (i) unir
os sobreviventes com o Senhor que vem e (ii) transformá-los no mesmo
estado ressurreto em que os outros estão. O “arrebatamento” é,
portanto, uma parte necessária da vinda de Cristo. Não há indicação do
estado do crente arrebatado nem do tempo em que isso ocorrerá. Estas
observações são importantes, em vista da teoria de que o arreba­
tamento acontece antes da grande tribulação. Precisamos fazer alguns
comentários acerca das evidências apresentadas para apoiar esta idéia.
As únicas passagens em que é mencionada uma transformação
súbita em ligação com a vinda do Senhor, além desta, são 1 Coríntios
15.51,52 e Filipenses 3.20,21. Na primeira, Paulo fala de um “mistério”,
mas não se pode afirmar, como alguns alegam, que este mistério seja o
tempo em que ele ocorre (isto é, pré-tribulação), pois nenhuma
referência a tal tribulação é feita no contexto. De fato, a única
referência cronológica é “a última trombeta”, que, seja quando for que
aconteça, deve referir-se claramente a um evento público. A idéia de
um “arrebatamento” secreto é inteiramente excluída. Também não há
base para a opinião de que os santos precisarão em primeiro lugar ser
arrebatados para poderem descer com Cristo dos céus; pois o texto não
diz que os santos arrebatados virão dos céus — só que eles serão
214 • IMORTALIDADE

transformados. O mistério é, portanto, a transformação instantânea dos


crentes que estiverem vivos. A mesma idéia aparece em Filipenses 3.20,
21, onde são prometidos aos crentes corpos gloriosos como o de Cristo
(veja página 194ss.).90
Duas passagens em 2 Tessalonicenses, que apontam para a vinda
futura de Cristo e ao mesmo tempo se referem aos crentes, não
requerem claramente, da mesma forma, a teoria de um arrebatamento
secreto pré-tribulacionista.91 O texto de 2 Tessalonicenses 1.6-10
refere-se ao aparecimento do Senhor Jesus do céu com os seus
poderosos anjos, em fogo resplandecente, e isto não se pode aplicar a
uma vinda diferente de uma demonstração pública. Esta passagem não
descreve o evento comoparousia,92 e isto tem levado alguns estudiosos
a traçarem uma distinção entre uma vinda para os santos (por ocasião
do arrebatamento) e outra manifestação a todas as pessoas (no dia final
de ajuste de contas).93 Mas Paulo não faz essa distinção, pois é por
ocasião do “aparecim ento” que todos serão julgados (crentes e
incrédulos igualmente). Isto não confirmaria a teoria de uma cena
dupla de juízo, que faz parte integrante da visão de um arrebatamento
pré-tribulacionista.
Na segunda passagem, 2 Tessalonicenses 2.1-8, a vinda de Cristo é
ligada com o juízo, que ocorre depois que o empecilho (“aquele que
agora o detém”) é removido, tornando-se conhecido o iníquo. Alguns,
que interpretam esse empecilho como o Espírito Santo, dizem que a
sua remoção coincidirá com o arrebatamento.94 Mas esta passagem não
faz menção ao arrebatamento, o que parece estranho se ela forma o
ponto central para a liberação de uma intensidade maior de iniqüidade.
H á uma passagem nos ensinos de Jesus que pode ter algo a ver com
o assunto do “arrebatamento”. Ela ocorre em Mateus 24.40,41 = Lucas
17.34,35, em relação à vinda do Filho do homem. De dois homens que
estarão no campo, um será tomado, o outro deixado; semelhantemente,
acontecerá com duas mulheres que estiverem trabalhando no moinho
(Lucas se refere a duas pessoas numa cama, de noite). Alguma espécie
de remoção súbita acontece, simultânea com a vinda de Cristo,
exatamente da mesma forma como Paulo descreve o arreba-
tamento. Mas Jesus não deu nenhuma indicação de quando isto
aconteceria. De fato, ele usou a ilustração do “ladrão de noite” para
indicar a sua natureza imprevisível. Esta passagem podería referir-se a
um arrebatamento secreto, mas não requer necessariamente essa
A VIDA APÓS A MORTE • 215

interpretação, pois não há razão para que essas palavras não possam
referir-se à manifestação final de Jesus, por ocasião da qual só os que
crêem nele serão arrebatados para o encontro com ele nos ares.
Além da passagem acima, há outras que usam a ilustração do ladrão
em relação à vinda de Jesus: Lucas 12.39, 40; 1 Tessalonicenses 5.1-4;
2 Pedro 3.10-12; Apocalipse 3.3; 16.15. Em todas essas passagens a
vinda do ladrão ilustra subitaneidade e surpresa, mas nenhuma
subentende segredo. Além disso, em 1 Timóteo 6.14 e 2 Timóteo 4.1,
Paulo usou a palavra “manifestação” (epiphaneia), que descreve uma
manifestação gloriosa (ou aparição). De fato, nesta última passagem
Paulo está esperando receber uma coroa de justiça. Em nenhuma delas
há qualquer apoio para um arrebatamento secreto.

RESUMO

Embora haja uma grande carência de declarações explícitas acerca


da vida além-túmulo nos evangelhos, há indicações suficientes para se
estabelecer a existência de vida depois da morte. Jesus considera isto
como fato provado, como se torna evidente no relato do rico e Lázaro,
embora não seja possível preencher ali muitos detalhes. Ele prevê a sua
própria posição como no paraíso e não no Sheol sombrio.
Jesus fala de uma ressurreição para a vida e uma ressurreição de
juízo. A ressurreição das pessoas é um evento assegurado no futuro. Em
algumas ocasiões, Jesus falou da morte como sono, mas nada indica que
isto fosse mais do que uma expressão metafórica. Certamente, Jesus
enfrentou a sua morte com força de ânimo e esperava que os seus
seguidores fizessem o mesmo.
É principalmente nas epístolas de Paulo que este assunto da vida
futura é explicitado de forma mais plena, mas ainda assim há muitos
detalhes obscuros. Paulo não tem dúvidas de que os crentes receberão
um corpo de ressurreição. Sobretudo, ele liga a ressurreição deles com
a de Cristo, que é considerado as primícias. Ele resiste à idéia de
estarmos nus. Toda a sua maneira de encarar este assunto é radi­
calmente distinta da idéia grega de imortalidade da alma, libertada do
corpo que é considerado como prisão dela. Com respeito à pergunta do
que acontece aos crentes por ocasião da morte, Paulo dá a entender
que eles se vêem com o Senhor, mas apresenta poucos dados acerca de
216 • IMORTALIDADE

quando é recebido o corpo da ressurreição. Algumas vezes ele usa a


imagem do sono para descrever a morte, mas não parece estar suben­
tendendo uma existência inconsciente. Tudo o que se pode afirmar em
definitivo é que o fiel será revestido com um corpo espiritual.
Há dificuldades acerca das duas ressurreições mencionadas em
Apocalipse 20. Contudo, não há discordância sobre o fato de que
acontecerá uma ressurreição geral por ocasião da consumação da era
em que vivemos.

NOTAS DO CAPÍTULO

1. Um exame completo dos antecedentes judaicos deste assunto pode ser


encontrado em H. C. C. Cavallin, Life After Death (1974). Este estudo tinha o objetivo
de ser uma preparação para uma análise dos argumentos de Paulo em 1 Coríntios 15.
2. Para estudar um relato das esperanças da ressurreição no período
intertestamentário, cf G. W. E. Nickelsburg, Jr.: Resurrection, Immortality, and Eternal
Life in Intertestamental Judaism (1972). Quanto à crença de Qumran, cf. K. Schubert:
The D ead Sea Community (tradução para o inglês, 1959), pp. 108ss.; idem, “D ie
E n tw ick lu n g der A u fersteh u n g sleh re von d en Q um rantexten und in der
Trührabbinischen Zeit”, B Z 6,1962, pp. 177-214.
3. Cf. W. Strawson em sua discussão desta passagem, em Jesus and the Future
Life (1959), pp. 203ss.
4. Em um comentário a Lucas 20.27-40, E. E. Ellis, Luke (NCB, 1966), ad loc,
considera que esta passagem não sustenta a imortalidade de Abraão, que ele está agora
individualmente no céu. Ele concorda com R. Bultmann (TNT. 1, p. 209) e W. G.
Kümmell, (Man, pp. 43ss., 86) em que o ponto de vista do Novo Testamento acerca do
homem não sustenta um dualismo entre corpo e alma. Ellis considera que esta
passagem ensina a ressurreição e não a sobrevivência.
5. R. Otto, The Kingdom o f G od and the Son o f Man (1938), p. 239, nota
declarações de que os patriarcas foram libertados da morte, mas não ressuscitados.
6. V. Taylor, Mark (21966), p. 483, diz que aqui Jesus está pensando apenas nos
justos. Strawson, op. cit., p. 209, concorda.
7. Cf. Platão em Phaedo, em que ele descreve a morte de Sócrates e registra a
exposição da imortalidade feita por Sócrates pouco antes de sua morte.
8. Cf. O. Cullman, Immortality o f the Soul or Resurrection o f the Dead? (1958);
quanto a uma discussão mais completa deste tema.
9. J. M. Creed, Luke (1930), pp. 209s., rcfere-se às histórias egípcias e judaicas
comuns a respeito de um rico e um pobre.
10. K. Hanhart, The Intennediate State in the New Testament (1966), pp. 190ss.,
discute esta passagem mais detalhadamente e conclui: “O problema do estado
intermediário surge quando se tenta combinar os dois ‘fins’ em um sistema lógico”. Cf.
também J. D. M. Derrett: “Fresh Light on Lk. xvi. I. The Parable of the Unjust
Steward”, NTS 7, 1960-1, pp. 198ss., e “II. Dives and Lazarus and the Preceding
A VIDA APÓS A MORTE • 217

Sayings”, NTS 7, pp. 364ss. Ele liga as duas passagens. Em sua interpretação, Lázaro
está ligado a Eliézer, servo de Abraão. Derrett considera esta história com a intenção
de encorajar e não de desanimar. Ela se concentra no que resta desta vida.
11. Cf. T. W. Manson, The Sayings o f Jesus (1949), p. 299.
12. Diante desta expressão é bem possível que Jesus estivesse pensando em sua
própria ressurreição.
13. Para obter uma discussão completa desta passagem, cf. K. Hanhart, op. cit.,
pp. 199ss. Ele sustenta que esta passagem não confirma um estado intermediário. Além
disso, afirma que o paraíso não mantém contraste com o reino, mas é paralelo a ele.
14. Quanto ao paraíso, cf. J. Jeremias: TDNT 5, pp. 765ss.
15.1. H. Marshall, Luke, p. 873, compara a esperança do criminoso no sentido de
alcançar a vida por ocasião daparousia com a certeza de Jesus de que ele teria entrada
imediata no paraíso.
16. C f C. Ryder Smith, The Bible Doctrine o f the Hereafter (1958), pp. 42ss.
17. Assim também pensa W. Strawson, Jesus and the Future Life, pp. 84ss.
18. Cf. O. Cullmann, op. cit., pp. 21s.; W. Strawson, op. cit. pp. 95s.
19. Observe também João 6.44, que afirma que Cristo ressuscitará no último dia
a todos os que se achegarem ao Pai através dele.
20. R. E. Brown, John, p. 220, atribui João 5.25 aos versículos anteriores, 19-24, e
vê nele uma escatologia realizada. Os versículos 26-29 são considerados como
escatologia final. Brown entende os mortos no versículo 25 como espiritualmente
mortos. Contudo, ele rejeita a dicotomia de Bultmann entre as duas escatologias. Cf.
P. Gàchter em seu ensaio acerca da forma de João 5.19-30, em Neutestamentlich
Aufsâtze. FestschriftfiirJ. Schmid (ed. J. Blinzer, D. Kuss e F. Mussner, 1963), pp. 65ss.
21. U. Simon, Heaven in the Christian Tradition (1958), p. 216, considera João 14.2
como confirmação específica de um estado intermediário, apresentada por Jesus.
22. E. Kãsemann, The Testament o f Jesus (tradução para o inglês, 1968), p. 72,
rejeita a opinião de que João 17.24 deve ser visto no sentido de que Jesus leva os seus
para si na hora da morte. Ele rejeita uma interpretação semelhante de João 14.2ss. A
sua idéia é de que João espiritualizou velhas tradições apocalípticas. Contudo, veja R.
E. Brown, John, pp. 779s., onde se encontra um comentário acerca desta opinião. Ele
apela para Filipenses 1.23 para mostrar que pode ter sido cristã a opinião de que os
cristãos estariam com Cristo por ocasião da morte. Brown é cauteloso demais, pois há
boas bases para se sustentar que este é o ponto de vista do Novo Testamento.
23. L. Morris, John, p. 469, comenta que a palavra “morte” aqui está em posição
enfática.
24. J. Marsh, John (21968), p. 371, considera que estas palavras ligam o tempo
terrestre e a eternidade celestial. Contudo, assim mesmo elas nada nos dizem acerca
do estado da existência na esfera celestial.
25. B. Lindars, John (NCB, 1972), pp. 332s., é da opinião de que esta declaração
baseia-se em Mateus 16.28, a única outra passagem em que a expressão “provar a
morte” ocorre nos evangelhos.
26. Cf. F. F. Bruce, The Acts o f the Apostles (21952), p. 340, que considera o plural
(“mortos”) como um plural generalizador.
27. Cf. Phaedo, de Platão. Veja nota 7.
218 • IMORTALIDADE

28. J. A. Schep, The Nature o f the Resurrection Body, pp. 185s., indica que foi a
idéia de ressurreição dos mortos que ofendeu os atenienses e não a de imortalidade.
Cf. N. B. Stonehouse, Paul before the Areopagus and other New Testament Studies
(1957), pp. 1-70.
29. Cf. R. Bultmann: TN T 1, p. 192; O. Cullmann, op. cit., pp. 46s.
30. R. P. Martin, Filipenses (Série Cultura Bíblica, 1985), ad. loc., sustenta que isto
significa “o estado de humilhação causado pelo pecado”.
31. Com toda probabilidade, em Corinto havia pessoas que rejeitavam a idéia da
ressurreição, porque o pensamento de reanimação dos cadáveres lhes era repugnante.
É possível que eles tenham argumentado que Paulo devia deixar de lado esta idéia que
ele herdara do judaísmo. Cf. F. F. Bruce, “Paul on Immortality”, SJT 24,1971, pp. 464s.
32. Alguns estudiosos vêem aqui vestígios da distinção feita por Filo entre um
homem celestial e outro terreno. Cf. R. Bultmann, TN T 1, p. 174; E. Kásemann, Leib
und die Leib Christi (1933), pp. 166ss. Cf. os comentários de E. E. Ellis, Paul’s Use o f
the O ld Testament (1957), p. 64.
33. Veja a discussão completa de Schep acerca desta passagem, op. cit., pp. 189ss.
34. R. Bultmann, TN T 1, p. 192, que não pode aceitar esta idéia, precisa afirmar
que Paulo se permitiu ser levado pela argumentação dos seus oponentes. Kásemann,
op. cit., pp. 135s., considera que Paulo cometeu um erro.
35. Cf. “Breves Remarques sur la Notion de soma pneumatikon”, de H. Clavier,
em The Background o f the New Testament and its Eschatology (ed. W. D. Davies e D.
Daube, 1964), p. 348. Ele se opõe à idéia de que Paulo argumenta em favor de um corpo
ressurreto de carne.
36. Com respeito à aplicação destas duas palavras em 1 Coríntios, cf. B. A.
Pearson: ThePneumatikos-Psychikos Terminology in I Corinthians (1973). Pearson nota
que, embora os cristãos possam ser considerados prolepticamente comopneumatikos,
a sua existência plena de pneumatikos ainda está por ser realizada na ressurreição dos
mortos (p. 41).
37. Assim pensa Schep, op. cit., p. 200.
38. R. H. Gundry, Som a in Biblical Theology (1976), p. 165, sustenta que o
psychikon som a é um corpo físico animado pela psychê e que o pneumatikon som a é
um corpo físico renovado pelo Espírito de Cristo.
39. Whiteley, The Theology o f St. Paul, p. 254, considera o contexto como
soteriológico e não escatológico.
40. Cf. G. Vos em sua detalhada discussão da importância do Espírito na
escatologia de Paulo, The Pauline Eschatology, pp. 159ss.
41. Quanto às discussões desta difícil passagem, além dos comentários, c f, de E.
E. Ellis, “The Structure of Pauline Eschatology (2 Cor. 5.1-10)”, em seu livro Paul and
His Interpreters (1961), pp. 35-48; W. L. Knox, St. Paul and the Church o f the Gentiles
(1939, reimpresso em 1961), pp. 125-145; M. J. Harris, “2 Corinthians 5.1-10:
Watershed in Paul’s Eschatology”, TB 22, 1971, pp. 32-57; R. Cassidy, “Paul’s Attitude
to Death in 2 Cor. 5.1-10” EQ , 43, 1971, pp. 210ss.; O. Cullmann, op. cit., pp. 52ss.
Quanto a um resumo completo das opiniões recentes, cf. F. G. Lang, 2 Korinther 5.1-10
in derneueren Forschung (1973).
42. Quanto à opinião de que isto acontece por ocasião da morte, cf. R. F.
Hettlinger, “2 Cor 5.1-10” SJT 1 0 ,1957, pp. 193ss., e C. Masson, “Imortalité de l’âme
A VIDA APÓS A MORTE • 219

ou résurrection des morts?” RThPh 8,1958, pp. 250-267. Quanto à opinião alternativa,
cf. R. Bultmann, Exegetische Probleme des Zweiten Korintherbriefes (1947), p. 12; TNT
I, pp. 202s. Quanto a uma crítica de Hettlinger, cf. R. Berry, “Death and Life in Christ”,
S J T 14,1961, pp. 60-76.
43. Assim também pensa E. E. Ellis, “The Structure of Pauline Eschatology”, em
sua obra Paul and his Recent Interpreters, pp. 35ss., que considera que a trilha grega foi
um desvio falso.
44. H. N. Ridderbos, Paul, p. 503, rejeita uma forma grega de entender gymnos e
considera que esta palavra significa não estado incorpóreo, mas estado em que falta a
glória de Deus.
45. Cf. E. E. Ellis em sua discussão, op. cit., pp. 44ss. Sua interpretação é criticada
por Whiteley, op. cit., pp. 256ss.
46. O. Cullmann, op. cit., pp. 52ss., liga o gymnos com o estado de sono de 1
Tessalonicenses 4 e 1 Coríntios 15.
47. Quanto às idéias gregas de imortalidade, cf. E. Rohde, Psyche: The Cult o f
Souls and Belief in Immortality among the Greek, 2 vols. (r. p. 1966); W. Jaeger: “The
Greek Ideas of Immortality”, em Immortality and Resurrection (ed. K. Stendahl, 1965),
pp. 97-114. O. Cullmann, op. cit., pp. 19ss. Quanto a outros estudos dos antecedentes,
cf. R. B. Laurin, “The Question of Immortality in the Qumran ‘Hodayot”’,/5 5 3,1958,
pp. 344-355; J. Van der Ploeg, “LTmmortalité de Phomme d’après les textes de la Mer
Morte”, FT 2, 1952, pp. 171ss.; F. F. Bruce, “Paul on Immortality”, SJT 24,1971, pp.
457-472.
48. Cf. G. Vos, op. cit., pp. 172ss., quanto a uma discussão completa destes
supostos estágios de desenvolvimento. Cf. R. H. Charles, A Critical History o f the
Doctrine o f a Future Life (21913), pp. 455ss. Cf. também os comentários de Schep, op.
cit., pp. 206ss.
49. Cf. Vos, op. cit., pp. 200ss., onde se encontra uma crítica do quarto estágio.
50. Foi C. H. Dodd quem fez fortes afirmações em favor de um desenvolvimento
entre 1 e 2 Coríntios.
51. Assim também pensa G. Vos, op. cit., 241.
52. Quanto à ressurreição dos cristãos e não-cristãos, cf. H. Molitor, Die
Auferstehung der Christen und Nichtchristen itach dem Apostei Paulus (1933), pp. 44ss.,
C f R. Schnackenburg, G od’s Rule and Kingdom (tradução para o inglês, 1963), p. 293.
Veja a digressão em E.-B Alio, Première Épitre aux Corinthiens (EB, 21956), pp.
438-454.
53. Cf. Vos, op. cit., p. 253. J. D. G. Dunn Jesu s and the Spirit (1975), p. 334, sugere
que o que Paulo está querendo dizer é que apenas os que sofrerem a morte de Cristo
alcançarão a ressurreição, visto que só a morte de Cristo resultou em ressurreição. Cf.
J. Gnilka, Der Philipperbrief (HTKNT, 21976), pp. 196ss. E. Lohmeyer, Philipper,
Kolosser und Philemon (KEK, 91953), pp. 139s., restringe o sofrimento ao martírio. Cf.
também R. C. Tannehill, Dying and Rising with Christ (1967).
54. Por certo, Filipenses 3.21 sustenta com firmeza a opinião de que a ressurreição
envolve uma transformação do corpo. C f B. Ramm, Them He Glorified (1963), pp.
101-122, que indica que a redação de Paulo dá a entender um elo direto entre o corpo
de glória de Cristo e os nossos corpos. M. E. Dahl, Tlte Resurrection o f the Body
(tradução para o inglês, 1962), pp. 103s., considera a combinação das palavras
220 • IMORTALIDADE

metasclíêmatizõ esymmorphon neste versículo como a sugerir “que Cristo modificará


externamente o nosso estado de humilhação”.
55. Cf. J. N. Sevenster, “Einige Bemerkungen über den ‘Zwischenzustand’ bei
Paulus”, NTS 1,1954-5, pp. 291ss., que considera que é essencial pressupor que Paulo
esposava a idéia de um estado intermediário, embora não a tivesse mencionado
especificamente.
56. K. Hanhart, The Intermediate State in the New Testament, p. 73, que relaciona
tanto “casa” como “vestimentas” com realidades celestias, com o templo celestial e
com a vida vivida com Cristo nos céus, não considera isto como indicador de um estado
intermediário. Cf. também a sua discussão completa de toda a passagem, pp. 149-179.
Quanto à possibilidade de Paulo estar pensando em um julgamento por ocasião da
morte ou do juízo final, isto não está claro. Hanhart sustenta que a ênfase é dada ao
fato e não ao momento (p. 178), negando que, ao falar em um edifício no céu, Paulo
estivesse se referindo à questão antropológica de corpo ou alma (p. 167).
57. C f Clemente de Alexandria, Stromata, iv, xxvi; Tertuliano, De resurrectione
cantis, xiii.
58. E. E. Ellis, op. cit., p. 46. Ele considera que é provavelmente um conceito
errado falar do estado intermediário em relação a 2 Coríntios 5.8. Cf. Schep, op. cit.,
p. 210, n. 69. H. A. A. Kennedy, St. Paul’s Conceptions o f the Last Things, p. 269.
59. Quanto a Filipenses 1.21-23, cf. J.-F. Collange, Phillipiens (1973), pp. 62-65.
R. P. Martin, Filipenses (Série Cultura Bíblica, 1985), pp. 89ss. A. Schweitzer, The
Mysticism o f Paul the Apostle (1930, trad, para o inglês 21953), p. 137, sugeriu que Paulo
esperava um tratamento especial, por ser um mártir.
60. Bultmann, TN T 1, p. 346, considera Filipenses 1.23 como estando em
contradição com a doutrina da ressurreição, quando Paulo expressa a idéia de que
estar com o Senhor segue-se imediatamente à morte. Contudo, como o indica H.
Ridderbos cm Paul, p. 499, n. 29, é difícil aceitar idéias contraditórias dentro da mesma
epístola acerca de assunto tão básico.
61. Cf. P. E. Hughes, 2 Corinthians (NICNT, 1962), pp. 160ss. Cf. também J. N.
Sevenster, “Some remarks on the Gymnos of 2 Cor. v. 3”, em Studia Paulina in honorem
Johanitis de Zwaan (ed. J. N. Sevenster e W. C. van Unnik, 1953), pp. 212ss.
62. Cf. J. Lowe, “An examination of attempts to detect developments in Paul’s
theology”, ITS 42 (1941), pp. 129ss.
63. Cf. Whiteley, op. cit., pp. 264ss.
64. B. F. C. Atkinson, Life and Immortality (s. d.), p. 51, chega à conclusão de que
os homens ficam dormindo na morte e que o túmulo é um lugar de trevas e silêncio
onde não há atividade, lembrança de Deus nem louvores a Ele. Observa-se que grande
parte do raciocínio deduzido para apoiar esta idéia está baseada no A ntigo
Testamento.
65. Cf. Grosheide, I Corinthians (NICNT, 1983), a d loc., e Barrett, 1 Corinthians
(BC, 21971), a d loc., acerca de 1 Coríntios 11.30. Cf. também L. Morris, The Epistles to
the Thessalonians (TCNT, 1956), ad loc, acerca de 1 Tessalonicenses 4.13.
66. Quanto a uma discussão de 1 Tessalonicenses 4 acerca da idéia do sono da
alma, cf. K. Hanhart, op. cit., pp. lll s s .
67. Atkinson, op. cit. p. 64, explica estas referências como provas de que a
experiência subjetiva da morte para os crentes é de passagem instantânea deste mundo
A VIDA APÓS A MORTE • 221

para a glória da ressurreição. A inconsciência da alma é tão profunda, de acordo com


Atkinson, que para os crentes o instante seguinte é a manhã da ressurreição. Todavia,
esta não parece ser a maneira mais natural de entender as palavras de Paulo em
Filipenses 1.23 e 2 Coríntios 5.8.
68. Cullmann, op. cit., p. 57.
69. A. J. M. Wedderburn, “The Theological Structure o f Romans v. 12”, NTS 19,
1973, pp. 339-354, argumenta que o pano de fundo é o determinismo apocalíptico, que
dizia que Adão era responsável pela morte.
70. K. Hanhart: “Paul’s Hope in the Face of Death”, JBL 88, 1969, pp. 445ss.,
argumenta que Paulo não tinha expectativa específica para o futuro, mas uma radiante
esperança de vida eterna.
71. A capacidade de Deus no sentido de ressuscitar os mortos reflete-se em
Hebreus 11.19,35.
72. Em Hebreus 12.1 se diz que as testemunhas estão rodeando os cristãos, mas
isto não pode ser considerado como evidência de que os espíritos dos mortos estão
presentes nesta vida. Hb 12.1 precisa ser interpretado à luz de 12.22.
73. Cf. G. E. Ladd em sua discussão acerca do dualismo em “Hebreus”, TNT, pp.
572ss.
74. Bo Reicke, The Disobedient Spirits and Gxristian Baptism (1946), faz uma
análise detalhada desta passagem. A maioria dos eruditos concorda em que os espíritos
citados são demônios, e a proclamação a eles feita é de vitória. Isto se baseia nos
pressupostos de que o livro de Enoque está por trás desta passagem. C f também W.
J. Dalton em sua ótima exegese: Christ’s Proclamation to the Spirits (1965).
75. C f S. D. F. Salmon, The Christian Doctrine o f Immortality (31897), pp. 471s.
76. C f E. G. Selwyn em seu extenso ensaio de 1 Pedro 3.18-4.6, em 1 Peter, pp.
314-369.
77. K. Hanhart, op. cit., pp. 218s., considera forçada a explicação de Selwyn e
prefere concluir, a partir do uso do tempo aoristo do verbo, que a referência é a um
ato já realizado (isto é, o ato de Cristo pregando no Hades). Portanto, não é um
acontecimento que se possa repetir.
78. K. Hanhart, op. cit., p. 218, não concorda em que os “espíritos”, de 3.19, devam
ser identificados com os “mortos”, de 4.6, mas apóia a idéia de que há alguma ligação
entre as duas passagens.
79. C f I. T. Beckwith, The Apocalypse o f John, ad loc.
80. Cf. G. R. Beasley-Murray, Revelation, ad loc.
81. K. Hanhart, op. cit., pp. 239s., concorda em que, se o que se tem em mente são
os mártires cristãos, a expressão “um pouco mais” refere-se a um período inter­
mediário. Mas ele sugere que os mártires podem ser os santos que morreram por sua
fé na vigência da antiga aliança, caso em que esta expressão se referiría ao período
imediatamente anterior à encarnação.
82. C f E. Schweitzer, TD NT 9, p. 654.
83. Cf. R. Pache, The Future Life (1962), pp. 190ss., faz distinção entre uma
ressurreição anterior e outra posterior aos três anos e meio de tribulação.
84. Cf. J. W. Hodges, Christ’s Kingdom and Coming, pp. 229s.
85. Há força na insistência de H. Alford de que fazer ezêsan significar uma coisa
no versículo 4 e outra no versículo 5 esvazia a linguagem do seu significado (The Greek
222 • IMORTALIDADE

Testament, 4, revisado por E. F. Harrison, 1958, p. 732).


86. N. Shepherd, “The Resurrections of Revelation 20”, WTJ 37,1974, pp. 34ss.,
propõe uma interpretação diferente das duas ressurreições. Ele entende a primeira
como individual, no sentido de batismo e identificação com a ressurreição de Cristo, e
a segunda como cósmica, envolvendo não apenas os crentes, mas também todo o
cosmos. N este caso, ezêsan não poderia ser entendido como volta à vida.
87. Cf. G. R. Beasley-Murray, “The Contribution of the Book of Revelation to the
Christian Belief in Immortality”, SJT 27 (1974), pp. 85ss., quanto a um exame destas
promessas no contexto dos ensinos acerca da imortalidade.
88. C f K. Hanhart, op. cit., pp. 225s., que comenta este assunto.
89. E. Best, 1 and 2 Thessalonians, p. 198, interpreta o verbo aqui em um sentido
que se situa mais ou menos entre seu significado em 2 Coríntios 12.2, 3, onde denota
uma experiência espiritual temporária, e em Atos 8.39, onde é usado em relação a um
evento material irreversível. Por ocasião do “arrebatamento”, ele tem dois aspectos:
um espiritual e outro material, mas Paulo não se alonga a respeito deste último.
90. Com todas as probabilidades, Paulo está combatendo a opinião de que o
estado dos remidos já é eficaz e que, portanto, não há razão para a esperança da
parousia (c f R. P. Martin, op. cit.).
91. Cf. R. H. Gundry, The Church and the Tribulation (1973), que argumenta em
favor de um arrebatamento posterior à tribulação, ao contrário das teorias
pré-tribulacionistas.
92. Em 1 Tessalonicenses 3.13, a palavra parousia é usada, porém não há razão
para supor que o apokalypsis mencionado em 2 Tessalonicenses 1.7 se refira a qualquer
acontecimento diferente. Cf. L. Morris, 1 and 2 Thessalonians (TNTC, 1959), p. 118.
93. J. D. Pentecost, Things to Come, pp. 206s., afirma com força que há diferença
en tre o arrebatam ento e a segunda vinda, b a sead o nos p ressu p o sto s do
dispensacionalismo.
94. Os dispensacionalistas, que sustentam que o Espírito Santo é removido por
ocasião do arrebatam ento, sentem -se obrigados a sustentar também que a
evangelização do mundo depois deste fato será realizada pelos judeus, sem a ajuda do
Espírito.
95. Alguns autores têm relacionado este fato com a queda de Jerusalém, ocasião
em que os judeus foram “levados”; c f P. Benoit, Matthieu (1961), p. 151. Contra esta
opinião, porém, cf. P. Bonnard, Matthieu (CNT, 1963), p. 355.
96. Quanto a um resumo das diferentes teorias referentes ao arrebatamento, veja,
de J. D. Pentecost, op. cit., e M. J. Erickson, Opções Contemporâneas na Escatologia.
8 Alan B. Pieratt

INTRODUÇÃO

Até este ponto do livro foram discutidos vários aspectos da vida


após a morte. A morte propriamente dita, o intervalo entre ela e o
julgamento, o inferno, o dia do julgamento, a ressurreição do corpo e a
nova cidade de Jerusalém; todos foram discutidos, um após o outro.
Falta dizer alguma coisa acerca da vida que teremos no reino vindouro.
A imagem que muita gente tem do céu não passa de alguém sentado
nas nuvens, cantando um hino com uma harpa na mão. Mesmo entre
os teólogos evangélicos, há os que não acreditam que haja muito o que
falar, exceto que a vida por vir é “espiritual” ou “abençoada”. Este
capítulo tenta mostrar que é possível saber mais do que isso e que
existem alguns princípios claros de hermenêutica que nos ajudam nessa
tarefa.
Estamos hoje na extremidade de uma longa tradição de estudos
bíblicos que vem refinando cada vez mais seus métodos hermenêuticos.
Isso permite que a compreensão do texto bíblico torne-se mais precisa
e, por conseguinte, mais significativa. Um conceito útil que está sendo
usado hoje é o do “horizonte”. Na natureza, a palavra “horizonte”
refere-se à linha onde o céu parece encontrar-se com a terra. Na
hermenêutica, a mesma palavra é usada de forma figurada, para indicar
a autoconsciência de um autor. O “horizonte” de um autor é tudo o que
forma sua compreensão do mundo e o que ele vê como significado da
vida. Em resumo, seu “horizonte” é sua cosmovisão. O alvo de qualquer
estudo de texto é reconstruir esse horizonte ou essa cosmovisão
original, de modo que possamos participar dos pensamentos do autor.*
Raramente isto é fácil, pois a idéia de horizonte aplica-se não apenas
ao autor original, mas também ao leitor de hoje. Assim como cada autor
escreve a partir de um horizonte de significado, cada leitor também
224 • IMORTALIDADE

interpreta aquele texto a partir de sua própria compreensão particular


do mundo. As vezes há um abismo considerável entre esses horizontes,
ainda mais quando o autor e o leitor vêm de culturas radicalmente
diferentes. Considere, por exemplo, a postura em relação à questão da
lei. Note a diferença entre o ponto de vista de um brasileiro do século
XX, acostumado ao “jeitinho”, e o de um profeta judeu ortodoxo, como
Isaías, que vivia no século VII a. C. e observava meticulosamente todos
os detalhes da Torá. É exatamente esse tipo de diferença quanto a
tempo, cultura e visão do mundo que cria as diferenças de com­
preensão. O leitor de hoje precisa atravessar esse abismo para obter um
verdadeiro entendimento. Quando isso acontece, diz-se que houve uma
“fusão” de horizontes. A conquista dessa fusão muitas vezes é um
processo lento e ocorre invariavelmente em etapas. Ela começa quando
o leitor chega ao texto com a mente aberta e tem algumas questões
básicas à mão. O texto fornece algumas respostas iniciais para as
questões. Os dois horizontes começam a convergir. As questões do
leitor vão sendo reformuladas, à medida que ele ganha consciência do
significado do texto e das pressuposições que o sustentam. As respostas
tornam-se mais claras e perspicazes. Sua compreensão aprofunda-se e
os horizontes fundem-se um pouco mais. E assim prossegue.
A figura dos “horizontes” e a idéia de uma “fusão” entre eles são
úteis, porque esclarecem o que se busca atingir no estudo da vida após
a morte. Nesse estudo, os dois horizontes não são os do autor original
e do leitor de hoje, mas, sim, os de nossa vida presente e do reino
vindouro. Por natureza, as diferenças entre os dois mundos são muitas
e fundamentais. Hoje, vivemos em um mundo alienado de Deus. Na
vida por vir, a Bíblia nos diz que haverá uma existência significativa e
jubilosa sem fim, no louvor e serviço a Deus. Essas diferenças pro­
fundas e importantes indicam que os dois “horizontes” são bem
diferentes entre si.
Este artigo começa com a pressuposição de que é possível obter,
no mínimo, uma fusão parcial. Não estamos totalmente no escuro.
Podemos saber algumas coisas a respeito do céu e da natureza da vida
naquele lugar. Obviamente, esse assunto excede em muito o escopo de
um simples artigo — ou até de um grande livro. Quantos livros sobre a
vida após a morte já foram escritos e quantos mais ainda surgirão?
Nenhum deles terá a palavra final. Quantos livros seriam necessários
para descrever de forma adequada a ordem mundial presente? Quantos
PENSANDO NO CÉU • 225

mais seriam necessários para se fazer uma descrição completa do


mundo vindouro? Portanto, a intenção deste artigo é bem modesta. É
sugerir uma forma de classificar e discutir aqueles textos que falam da
outra vida. Na realidade, o objetivo é fazer melhores perguntas, para
que o texto possa fornecer respostas mais claras acerca da maravilhosa
salvação que nos foi prometida.
Escrito especialmente para ser incluído nesta coletânea, o presente artigo foi traduzido
por Lucy Yamakami.
8 Alan B. Pieratt

PENSANDO NO CÉU

H á uma riqueza de imagens, símbolos e descrições da vida futura


do cristão que nos chegam através dos profetas e salmistas do Antigo
Testamento, dos ensinos de Cristo e dos apóstolos, e das visões finais
de João. São passagens fascinantes, porque falam de coisas que
repousam no futuro. Mas são ao mesmo tempo frustrantes, pois
descrevem eventos e modificações que vão muito além da experiência
humana presente, sendo, portanto, difíceis de interpretar. Assim como
os homens piedosos de antigamente, nós também pesquisamos as
Escrituras e não entendemos plenamente o que estamos lendo. Ainda
assim, não deixamos de ter recursos para nos ajudar nessa tarefa. À
nossa disposição, temos a tradição, a experiência e a razão. Por
“tradição” entendam-se os quase 2000 anos de meditação na Bíblia, que
nós, santos dos últimos dias, temos por herança. Em termos conceituais,
erguemo-nos por sobre os ombros daqueles que se foram antes de nós
e, por isso, enxergamos mais longe e, quem sabe, quase sempre melhor.
Em segundo lugar, temos a ajuda de nossa própria experiência. Isso não
se refere às visões ou revelações individuais, mas às emoções e
expectativas do Espírito que habita em todo cristão. O Catecismo de
Heidelberg expressa muito bem o que se deseja, em sua qüinquagésima
oitava pergunta: “Qual o consolo que obténs da fé na vida eterna?” A
resposta apresentada é: “Uma vez que sinto agora em meu coração o
começo do gozo eterno, após esta vida possuirei perfeita salvação...” A
experiência de profunda alegria que o Espírito concede ao que crê é
uma amostra da realidade da era vindoura e nos ajuda a entender como
será a vida na presença de Deus. Por fim, temos nossa razão, atributo
que abre possibilidade para todo o entendimento humano.
Um estudo das últimas coisas e da vida por vir podería usar
228 • IMORTALIDADE

qualquer um desses instrumentos, ou todos. Podería analisar, por


exemplo, as opiniões dos grandes teólogos acerca da vida após a morte,
comparando-as entre si. Ou poderia concentrar-se nos sentimentos
profundos e especiais que chegam junto com a contemplação de Deus
e Seu reino. Entretanto, este capítulo irá se concentrar unicamente no
uso de nossa razão como ferramenta para entendermos melhor os
textos que descrevem nossa esperança para a vida futura. Na
introdução, foi dito que o objetivo ou o alvo do estudo de textos
escatológicos era obter a fusão dos “horizontes” desta vida com os da
próxima. Esta é, antes de tudo, uma tarefa para a razão.1 Com um
raciocínio cuidadoso, pode-se alcançar algum entendimento da vida
futura. Mas que tipo de raciocínio? A idéia de uma “fusão de
horizontes” esclarece nosso alvo, mas não o método. Será que existe
algum procedimento ou método que possa nos ajudar a atingir uma
compreensão da vida no céu, que não seja uma simples leitura e
meditação sobre os textos bíblicos? O propósito deste capítulo é
afirmar que sim. O raciocínio ou método aqui usado possui três
aspectos. Prim eiro: as passagens serão separadas entre as que
descrevem o céu como uma continuidade de nossa vida presente e as
que o descrevem como uma descontinuidade. Segundo: as passagens
que retratam a vida futura como continuação da vida presente ou algo
semelhante a ela podem ser discutidas pelo raciocínio dedutivo, i. e.,
podemos raciocinar, partindo do que foi afirmado para o que é inferido.
Terceiro: as passagens que retratam a vida por vir como algo distinto
ou diferente da vida presente são mais difíceis e, em geral, devem ser
deixadas como estão. Cada uma dessas diretrizes ainda exige um pouco
de explicação, antes que se considerem alguns textos-chave.
Em primeiro lugar, as passagens sobre a vida após a morte podem
ser divididas entre as que mostram continuidade e as que mostram
descontinuidade em relação a este mundo.2 Bastam duas perguntas
para decidir isso: a passagem descreve a vida futura como sendo
semelhante à nossa vida atual? Ou ela retrata a vida vindoura como
sendo diferente da nossa vida presente? A maioria dos versículos que
falam do céu situam-se claramente em um desses dois grupos. Esse tipo
de classificação dialética é fundamentado na Bíblia, sendo sugerido por
Paulo em 1 Coríntios 2.9, 10.3 O versículo 9 diz: “... mas como está
escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou
em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o
PENSANDO NO CÉU • 229

amam”. Aqui, a implicação é que nossa vida no céu é tão diferente de


nossa vida atual que nenhum de nossos sentidos percebe, nem nossa
imaginação pode retratar como será. Entretanto, Paulo não pára nesse
ponto. Se tivesse parado, teria imposto um limite hermenêutico estreito
ao que poderiamos conhecer acerca dessa vida futura. Mas no versículo
10 ele diz: “Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a
todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus”. Isso não
é uma contradição, mas, digamos, o outro lado da moeda. Àqueles
dentre nós que crêem nas Escrituras e se preocupam em pesquisá-las,
Deus revelou algumas características do mundo vindouro.
Paulo está usando uma dialética do tipo sim-não para expressar o
caráter incomum de nosso conhecimento do céu. Sim, a vida futura é
totalmente nova e diferente, mas não, não fomos deixados numa
escuridão total, pois Deus nos revelou alguns traços de sua natureza.
Essa dialética indica que uma forma fácil de estudar as passagens
relevantes é agrupá-las de acordo com a dialética de continuidade ou
descontinuidade. No primeiro grupo, podem ser alistadas as que
descrevem ou pressupõem uma continuidade entre a vida de agora e a
vida por vir. No segundo grupo podem ser colocadas as que indicam
que a vida vindoura difere da ordem presente ou não mantém
continuidade em relação a ela. Esses dois grupos prestam-se a
diferentes tipos de raciocínio. As passagens que descrevem o céu como
algo semelhante à nossa vida presente prestam-se bem ao raciocínio
dedutivo, em que a mente parte daquilo que é afirmado explicitamente
no texto ou na conversa para aquilo que está implícito.
Um bom exemplo do uso desse tipo de raciocínio na Bíblia é a
história de Abraão e Isaque (cf Gn 22.2-14). Você se recorda de que
Abraão recebeu uma promessa de Deus: apesar de sua idade avançada,
ele seria abençoado com um filho e, por meio desse filho, Deus iria
estabelecer uma linhagem de descendentes que cresceria até formar
uma nova nação (Gn 17). Isaque era esse filho da promessa, e Abraão
ficou num dilema quando, mais tarde, recebeu de Deus uma ordem para
sacrificá-lo. Deus havia prometido abençoá-lo por intermédio desse
filho, e aquele mesmo filho era requisitado como sacrifício humano.
Como essas duas coisas poderíam ser verdadeiras? Somos informados
de que Abraão creu que Deus cumpriría Sua promessa, levantando
Isaque dentre os mortos após o sacrifício (Hb 11). Aparentemente, ele
raciocinou que se Isaque era o filho escolhido, então, por inferência,
230 • IMORTALIDADE

teria de ser trazido de volta à vida, para cumprir aquela promessa. Essa
dedução partiu do que havia sido claramente prometido por Deus e
chegou ao que estava implícito naquilo. Isto é raciocínio dedutivo, e ele
é útil na interpretação de textos que descrevem a vida após a morte
como algo semelhante à nossa vida hoje, pois, como a promessa de Deus
a Abraão, eles insinuam mais do que afirmam.
As passagens que descrevem a vida vindoura como algo distinto em
relação à ordem presente não se prestam a esse tipo de raciocínio.
Muitas consistem em negações que indicam o que o céu não é, ou não
contém, e pouco se pode inferir delas. Por exemplo, considere a
afirmação de que na vida por vir não haverá morte (Ap 21.4). Essa é
uma das promessas básicas da vida futura e indica uma mudança de
importância fundamental, mas o que ela nos ensina sobre a própria vida
no reino? Além do fato de não ter fim, é difícil entender como podería
ser uma vida sem morte. Será que podemos deduzir que não haverá
acidentes? Nesse caso, como haveria liberdade? Significaria que, se
houvesse um acidente e nossos corpos fossem destruídos, eles seriam
refeitos imediatamente? É evidente que esse tipo de discussão em
torno de uma negativa leva a resultados insuficientes, pois não podemos
partir da inexistência de algo para deduzir as condições de possibilidade
dessa inexistência. Portanto, em geral, os aspectos novos e descontínuos
da vida futura são mais difíceis de questionar e, muitas vezes, precisam
ser deixados como estão.
Estamos, então, prontos para tentar agrupar as passagens, de
acordo com a forma como retratam o céu. As duas categorias não são
simétricas. As que indicam continuidade oferecem muitas possi­
bilidades de especulação e reflexão. As que indicam descontinuidade
dão pouca margem para isso e, portanto, receberão menos espaço. As
passagens que indicam continuidade serão estudadas primeiro, porque
é somente por elas que podemos falar dos aspectos distintos. Se não
fosse por aquilo que é reconhecido como igual, não seria possível falar
das diferenças. Espera-se que ambas as seções sejam sugestivas e
ilustrativas; daí o título do capítulo: “Pensando no Céu”. Sem dúvida,
seria possível elaborar um trabalho muito maior a partir dessa
perspectiva, mas, aqui, os tópicos estarão limitados a três: nós mesmos,
nosso mundo e nossa cultura.
PENSANDO NO CÉU • 231

1 • Continuidade

Comecemos observando três passagens dos evangelhos que


apresentam um ponto básico sobre o céu. Em Mateus 8.11,22.23-33 e
Lucas 13.28, Jesus refere-Se a Abraão, Isaque e Jacó, como se vivessem
hoje no reino. A passagem de Mateus 22 afirma isso de forma mais
explícita, como parte de uma discussão com os saduceus. Eles estavam
tentando apontar uma falha lógica na crença de que os homens
ressuscitam. Jesus condenou-os por falta de fé em Deus e por um
conhecimento deplorável das Escrituras. Então, Ele responde às
objeções, citando Êxodo 3.6: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de
Isaque e o Deus de Jacó”. O argumento de Jesus depende do verbo
“ser”, empregado no tempo presente. Deus é o Deus dos patriarcas
agora, porque eles estão vivos hoje no reino. Para o caso de os ouvintes
não terem entendido, Jesus esclarece, acrescentando: “Ele não é Deus
de mortos, e, sim, de vivos”. Nos relatos de Mateus 8 e Lucas 13, Jesus
também Se refere aos patriarcas no céu, embora o fato de estarem vivos
seja um pressuposto e não o ponto central. Em Mateus 8, Jesus diz que
muitos gentios entrarão no reino e gozarão a presença dos patriarcas,
enquanto muitos judeus serão excluídos. Em Lucas 13, Jesus diz a uma
multidão pouco receptiva: “Ali haverá choro e ranger de dentes,
quando virdes, no reino de Deus, Abraão, Isaque, Jacó e todos os
profetas, mas vós lançados fora”.
O ponto-chave em cada uma dessas passagens, esteja explícito em
Mateus 22 ou implícito em Mateus 8 e Lucas 13, é que os patriarcas (e
os profetas) estão vivos, passam bem no reino de Deus e continuam
sendo os homens que eram. Eles eram e são Abraão, Isaque e Jacó.
Várias inferências podem ser extraídas daqui. Em primeiro lugar, a
alma que ressurge dos mortos é exatamente a mesma que fechou os
olhos na morte. Assim como os antigos patriarcas, os cristãos de hoje
irão se levantar dos mortos conhecendo a si próprios. Essa afirmação
de auto-reconhecimento é a mais básica das continuidades entre esta
vida e a próxima. É a condição que possibilita todos os outros aspectos
da vida na presença de Deus. Segunda, assim como os patriarcas e os
profetas reconhecem a si mesmos e são reconhecidos pelos outros como
as pessoas que eram, nós também nos conheceremos mutuamente no
reino. A memória social, a capacidade de reconhecer os outros, é uma
parte necessária de nosso autoconhecimento. Aliás, conhecer a nós
232 • IMORTALIDADE

mesmos significa saber quem somos em relação aos outros ao nosso


redor: família, amigos, colegas, companheiros de trabalho, empregados
etc. Somos seres sociais, e nossa autoconsciência é construída sobre
essas relações. A terceira inferência, que tem ligação estreita com a
anterior, é que o céu não é como um mosteiro, em que o culto a Deus
acontece em silêncio e isolamento. Pelo contrário, Jesus descreve os
patriarcas sentados à mesa, banqueteando-se uns com os outros. Cenas
semelhantes são encontradas em vários discursos de Jesus, pois várias
vezes Ele descreve o reino em termos de alegres multidões reunidas
para uma festa, um casamento ou um banquete nupcial.4 Da mesma
forma, o livro de Apocalipse descreve grandes assembléias de santos
louvando juntos a Deus (cf. Ap 7.9; 19.1,6). Essas reuniões festivas dão
a entender que a natureza gregária do homem será confirmada, se não
intensificada.
Por fim, pelo modo como Jesus menciona os patriarcas, podemos
inferir que manteremos a memória de nossa vida passada. Os patriarcas
não seriam reconhecidos se não pudéssemos lembrar quem haviam sido
nas narrativas do Antigo Testamento. Também não poderiamos nos
lembrar dos relatos do Antigo Testamento sem nos recordarmos de
nosso treinam ento na igreja e na escola dominical. Nem nos
lembraríamos da escola dominical sem uma recordação de nossas
famílias nos levando até lá. E assim por diante. A dedução clara é que
nossas lembranças permanecerão intactas. As passagens que des­
crevem o dia do juízo final confirmam essa conclusão. Sabemos que os
homens prestarão contas de cada palavra dita (Mt 12.36), cada segredo
escondido (Rm 2.16), cada desígnio oculto no coração (1 Co 4.5) e cada
ato que praticaram ou deixaram de praticar {cf. Mt 10.42 com Ap 20.12).
Quer o resultado seja uma recompensa, quer seja uma condenação, só
poderá haver um julgamento legítimo e justo se a lembrança desses
feitos estiver presente. A lembrança é a repreensão de Abraão para o
homem rico na história do rico e Lázaro (Lc 16.25). A pessoa que
perdeu a memória e não consegue se lembrar do que fez ou deixou de
fazer não conhece a si mesma. Ela não consegue situar-se no tempo ou
na sociedade. As cortes humanas não submetem a julgamento os
incapazes, os que sofrem de amnésia e os portadores de insanidade
mental, e podemos esperar que Deus não seja menos justo.
Para resumir, o fato de Jesus referir-Se aos patriarcas como se eles
estivessem vivos no céu comporta uma série de inferências acerca da
PENSANDO NO CÉU • 233

continuidade entre esta vida e a próxima. Continuaremos sendo as


mesmas pessoas que somos agora. Reconheceremos a nós mesmos e os
outros ao nosso redor. Lembraremos nossa vida na terra, o que fizemos
e o que não fizemos. Simplificando, pelo menos em termos mentais,
seremos as mesmas pessoas que fomos. É bom notar que este ensino
elimina as possibilidades de reencarnação e panteísmo. A reencarnação
diz que nascemos e renascemos vezes sem conta no mundo, mas sem
nossa memória. O panteísmo ensina que, após a morte, somos
absorvidos no Absoluto, ou Espírito, e perdemos nossa identidade. O
ensino bíblico afirma que “eu” ressuscitarei dos mortos, reconhecerei
a mim mesmo e me lembrarei de minha vida passada. Isso não dá espaço
para nenhuma idéia de que minha identidade pessoal possa ser
esquecida, apagada ou dissipada.
Entretanto, ser um homem é mais do que conhecer e lembrar.
Também somos seres físicos, com uma vasta gama de emoções e
sensações físicas. Há outras passagens que indicam que esses aspectos
de nossa humanidade também continuarão no reino. Por exemplo, as
Escrituras descrevem o céu como um lugar repleto de emoções.
Basta aqui, como prova, considerar a própria pessoa de Cristo. Seremos
como Ele em todas as coisas, pois Ele é o alvo e o exemplo para esta
vida e a próxima. Os evangelhos deixam claro que nosso Senhor era (e
é) uma pessoa afetuosa, cheia de vigor emocional. Relata-se que, ao
longo da vida, Jesus consumiu-Se pelo zelo da casa de Deus (SI 69.9;
Mt 21.12), afligiu-Se com o pecado dos homens (Mc 3.5) e sentiu grande
compaixão pelas multidões (Mt 9.36; 14.14; 15.32; Mc 6.34; Lc 7.13).
Somos informados de que Ele chorou pela morte de um amigo (Jo
11.33, 35) e pela dureza da resposta dos judeus contra Si (Lc 19.41).
Afirma-se que, no final de Sua vida, Ele desejou ardentemente
compartilhar a páscoa com Seus discípulos (Lc 22.15). Ressurreto, usou
palavras fortíssimas para reprovar a falta de paixão pelas coisas de Deus
(Ap 3.16). Além disso, os relances do céu que recebemos mostram os
santos experimentando emoções intensas: expectativa (Ap 8.1),
satisfação (SI 17.15; Mt 5.6), alegria (Is 12.3; 1 Ts 2.19; Jd 24), riso (Lc
6.21) e temor santo (SI 5.7; 33.8; Ap4.8-ll;5.11-14). Portanto, podemos
inferir que, na vida vindoura, nossa constituição emocional continuará
exatamente como era ou, pelo menos, manteremos pleno uso das
emoções que são puras.
As Escrituras também indicam que nossos sentidos continuarão
234 • IMORTALIDADE

atuando no reino. Manteremos a visão, pois a promessa é de que


veremos a Deus (Mt 5.8; Ap 22.4). Seremos capazes de ouvir, pois,
como João nas visões do Apocalipse, vamos ouvir a voz de Deus
dizendo: “Tudo está feito” (Ap 21.6). Ao que parece, teremos o sentido
do olfato, pois se diz que, na sala do trono, o fumo do incenso sobe
diante de Deus (Ap 8.4). Sentiremos o gosto da comida e da bebida,
pois se diz que comeremos pão e beberemos vinho (Lc 22.18; Ap 22.17).
Podemos deduzir que iremos nos mover e sentir o movimento, pois
lemos que eles se prostram diante do trono e depositam suas coroas
diante de Deus (Ap 5.8, 14; 7.11; 19.4). Por fim, seremos capazes de
falar, cantar e orar, pois vemos homens e anjos, juntos, cantando e
louvando a Deus (Ap 7.9,10).
E quanto aos corpos? As Escrituras dizem que nossos corpos
ressuscitarão dos túmulos, e lemos sobre isso no capítulo escrito pelo
professor Guthrie. Mas podemos ter um pouco mais de conhecimento
da natureza desse corpo refeito, além do fato de que ele será
“espiritual”.6 Em Romanos 8.11, Paulo diz que “o Espírito daquele que
ressuscitou a Jesus dentre os mortos... vivificará também os vossos
corpos mortais”. A palavra “mortal” é um adjetivo importante, pois
indica que o mesmo corpo que viveu na terra — o corpo que cresceu,
envelheceu e por fim morreu — ressurgirá dentre os mortos. Não
podemos deduzir que nossos corpos consistirão dos mesmos átomos,
moléculas e partículas subatômicas que os compõem hoje. Mas a
implicação é que, no reino, teremos a aparência de hoje e reconhe­
ceremos uns aos outros por ela. Dessa forma, podemos concluir que
muito do que somos permanecerá na vida por vir: a identidade pessoal,
o reconhecimento de outras pessoas, a memória, as emoções e a
constituição física. Em suma, em muitos aspectos continuaremos sendo
os homens que somos.
E quanto ao mundo em que iremos habitar? Todos temos
consciência das passagens que predizem a destruição da presente
ordem pelo fogo e a criação de um novo universo. Será que, no novo
mundo, haverá alguma coisa semelhante ao que temos em nossa vida
hoje? Será que haverá objetos reconhecíveis no céu? Haverá mon­
tanhas e vales, vento e chuva, árvores e florestas, rios e oceanos? Pouco
se fala a respeito da maioria dessas coisas. Mas no céu existe pelo menos
uma coisa, descrita por João, que não podería ser mais familiar. É a
árvore de Apocalipse 22.2. É chamada a árvore da vida, o que significa
PENSANDO NO CÉU • 235

que sua natureza deve ir muito além de toda e qualquer árvore


conhecida nos dias de hoje.7 Entretanto, ela também é denominada
“árvore” e descrita com os atributos das árvores, tais como as
conhecemos hoje. Seu formato geral é o de uma árvore, tem folhas e
frutifica como uma árvore. Alguns preferem ver, nessas palavras
descritivas, figuras, imagens ou símbolos espirituais que não
comunicam nenhum conteúdo real. Entretanto, prefiro seguir a lógica
de Tomás de Aquino, que observou que a linguagem bíblica deve ser
analógica e não unívoca nem equívoca.8 Isto significa que sempre há
uma correspondência entre aquilo que entendemos por meio da
palavra bíblica e aquilo a que ela se refere no âmbito celestial. Não se
trata de uma correspondência equívoca nem exata, mas é próxima o
suficiente para fornecer uma informação real. Portanto, uma árvore do
céu deve ser alguma coisa parecida com uma árvore da terra, caso
contrário não se podería identificar um objeto celestial como algo que
pudesse ser chamado de árvore. Tal conclusão é lógica e necessária,
pois, a menos que as coisas citadas na Bíblia sejam como as que
conhecemos hoje, não havería razão para descrevê-las, pois nada
comunicariam. As coisas que existem na vida do porvir e que são
totalmente distintas de nossa experiência precisam ser deixadas em
silêncio. Portanto, as descrições do céu são analógicas, i. e., comunicam
um conhecimento real, embora esse conhecimento não seja perfeito
nem exato. Se o que João descreveu é mais do que uma árvore, pelo
menos também é o que hoje denominamos de árvore. Pode-se inferir
o mesmo dos outros itens mencionados na nova Jerusalém: o rio da
água da vida, as pedras preciosas, os muros semelhantes à luz e ruas que
espalham cores em todas as direções. Às vezes, essas descrições
apresentam grande atenção aos detalhes (considere a descrição da
qualidade do linho que cobre os cavalos do exército celeste, em Ap
19.14), dando a impressão de que João está tentando registrar com
máxima fidelidade aquilo que está vendo. No céu também há outros
fenômenos semelhantes aos da terra, tais como relâmpagos, trovões,
estrondos e terremotos, até uma saraivada, e é dito que tudo isso ocorre
dentro da área do templo (Ap 11.19). Podemos concluir, portanto, que
a lg u m a s coisas que veremos no mundo vindouro nos serão pelo menos
familiares, ainda que mais grandiosas.
Resta considerar nesta seção uma série de passagens a respeito da
possível continuidade entre a cultura humana de hoje e a cultura da vida
236 • IMORTALIDADE

do porvir. É impressionante a variedade de culturas na história humana;


cada uma apresenta as características de determinado tempo e
determinada organização.9 Por exemplo, a Europa da Idade Média
organizava-se e via-se de uma forma bem diferente da índia de hoje,
assim como a cultura atual dos estados centro-africanos é pro­
fundamente diferente da cultura dos índios peruanos. Existe uma
tendência natural de os diversos grupos humanos se organizarem de
maneiras distintas que expressem suas condições materiais e sua
compreensão do mundo. Como resultado disso, a diversidade de
culturas humanas como fenômeno histórico é tão complexa quanto a
própria vida e poderia ser estudada ad infinitum. A questão que temos
é: será que tais diferenças culturais, raciais e institucionais continuarão
no reino de Deus, formando a base para a estruturação da vida na
próxima era? Essa questão possui pelo menos quatro aspectos
diferentes. Primeiro: alguma parcela da diversidade cultural presente
subsistirá no novo século? Segundo: o céu será como a presente ordem,
em que existe uma profusão de culturas, ou todos os homens irão se
fundir em uma única cultura sob o comando de Deus? Terceiro: haverá
no céu uma estrutura de poder, como há na presente ordem? E, por
último: se houver “cultura” no céu, ela proporcionará alguma
oportunidade de crescimento e desenvolvimento?10 Em outras pala­
vras, haverá alguma oportunidade de o homem continuar seu de­
senvolvimento para a glória de Deus? Nossa inteligência, nossa moral
ou nosso senso estético (a capacidade de ter prazer em Deus e em Sua
criação) crescerão com o tempo ou permanecerão fixos para sempre na
ressurreição?
Em relação à primeira questão, pelo menos dois conjuntos de
passagens indicam que alguns aspectos da cultura bíblica subsistirão no
reino. Diz-se em Hebreus que o tabernáculo do Antigo Testamento era
“figura”, “sombra” e “modelo” da realidade celestial (Hb 8.5; 9.24).
Isso indica que no céu haverá uma organização ou estrutura semelhante
que incluirá os fundamentos do culto veterotestamentário: purificação,
lembrança do. sacrifício, ofertas e a presença de Deus. Essa noção de
um modelo celestial pode abranger também as festas judaicas. Todos
os adultos de sexo masculino eram convocados três vezes por ano para
uma assembléia (Dt 16.16).11 É possível que ocorra no céu uma
assembléia semelhante, em que os santos do reino se reunirão para
adorar. Essa possibilidade é reforçada pelas passagens de Jó, em que
PENSANDO NO CÉU • 237

os anjos parecem participar de assembléias periódicas (Jó 1.6; 2.1). No


Evangelho de Mateus, Jesus diz que o que conhecemos hoje como
“santa ceia” terá seu cumprimento no reino, onde comeremos e
beberemos juntamente com Ele (Mt 26.29). Assim, podemos dizer que,
no mínimo, alguns aspectos da cultura bíblica continuarão na era
vindoura.
Segundo, no céu haverá uma única cultura ou uma profusão delas?
Haverá uma única maneira de adorar a Deus ou o homem será livre
para usar suas habilidades como base para edificar uma nova ordem?
Encontramos um indício de resposta para esta pergunta quando
observamos, no livro de Apocalipse, aquelas cenas que prevêem o fim
desta era e o início da próxima. Quatro palavras diferentes são usadas
repetidas vezes para expressar a variedade de tipos humanos que estão
esperando a mudança das eras: tribo, língua, povo, nação (Ap 5.9; 7.9;
11.9; 13.7; 14.6). É possível inferir que essas distinções culturais,
nacionais e raciais não serão apagadas, fornecendo material para a
construção de uma profusão de culturas que irá muito além daquilo que
vemos hoje na história humana. Isso é reforçado pelo fato de Deus
haver criado o cosmos presente de tal forma que ele seja infinito em
variedade e mude continuamente com o tempo. Nada se repete. Cada
grão de cereal, cada folha de grama, cada ser humano, cada estrela, cada
galáxia é diferente e, assim também, cada átomo e cada partícula
subatômica. Além disso, tudo muda com o tempo, sofrendo um
processo de surgimento, crescimento, maturidade e decadência.
Quanto mais complexo o elemento, tanto mais isso é verdade. O fato é
que a presente ordem reflete a natureza de um Deus infinitamente
criativo, cuja natureza gloriosa é honrada através de um mundo
infinitamente variado. Faria algum sentido insinuar que o mundo por
vir será de natureza monolítica, com todos os caminhos traçados e todos
os dias iguais? Harmoniza-se melhor com o que sabemos acerca de
Deus acreditar que, no mundo vindouro, a cultura humana será muito
mais maravilhosa em sua variedade e bem mais grandiosa em sua
capacidade de expressar a verdade e a beleza.
Terceiro, haverá uma estrutura de poder no reino sob a autoridade
de Deus? Nessa questão, a esfera angelical pode ser útil. Há uma série
de passagens que se referem a distinções de poder e autoridade entre
os anjos. Paulo alista “tronos”, “soberanias”, “principados” e
“potestades” (Cl 1.16; 2.15). Isaías descreve os serafins (Is 6) como
238 • IMORTALIDADE

anjos privilegiados que permanecem continuamente na presença de


Deus. Para Daniel, Miguel é o “príncipe” dos anjos (Dn 12.1). Esses
relances fascinantes da ordem angelical sugerem uma estrutura de
autoridade bem complexa. A referência aos apóstolos sentados em
tronos (Mt 19.28) aponta para uma estrutura semelhante na nova
ordem humana.12 Afirma-se que, no céu, não somente eles, mas todos
os fiéis governarão por intermédio de Jesus e juntamente com Ele (2
Tm 2.12; Ap 3.21; 5.10). A idéia de que, mesmo ali, haverá canais de
autoridade subordinados a Deus parece coerente com a liberdade que
Deus dá às Suas criaturas. Deus é honrado pelo uso que Suas criaturas
fazem da vontade, para glorificá-lO em todas as áreas — seja na
adoração, na ação, no estudo ou no poder — e parece razoável crer que
isso não vai mudar.
A questão final é: o homem continuará tendo oportunidade para
se desenvolver por intermédio dessas formas culturais ou a natureza
hum ana será determ inada de uma vez por todas na hora do
despertamento, na ressurreição? Esse problema pode ser considerado
sob dois aspectos. Primeiro: as Escrituras indicam que haverá atividade,
trabalho ou objetivos no céu? Segundo: se houver, será possível um
progresso na santidade pessoal como parte dessa atividade? A Parábola
dos Talentos volta-se claramente para esse primeiro aspecto. O homem
que empregou melhor os seus talentos durante a vida terrena recebe a
maior responsabilidade na outra vida (Lc 19.11ss.). Isso indica que no
céu haverá serviço a fazer e alvos a atingir. Não se deve pensar no céu
como um estado permanente de descanso perpétuo. A idéia de que
existe um descanso à espera do cristão está solidamente enraizada tanto
em Hebreus como em Apocalipse (Hb 4; Ap 14.13), mas nada indica
que esse descanso seja uma ociosidade eterna.13 Pelo contrário, po­
demos esperar que o céu seja repleto de atividades significativas
centradas em deveres e responsabilidades. Os alvos que esta­
belecermos e as realizações que conseguirmos contribuirão para a
glória de Deus e, portanto, também para nossa alegria e satisfação.
O segundo aspecto, se haverá ou não crescimento em santidade, é
mais difícil de responder. O que se pensa tradicionalmente é que o
estado da ressurreição é completado de uma vez por todas em um único
ato recriativo de Deus.14 Entretanto, esse ponto de vista enfrenta uma
dificuldade em relação a questões como morte prematura. A maioria
dos habitantes deste mundo, incluindo muitos cristãos, morre antes de
PENSANDO NO CÉU • 239

chegar à maturidade, por doença, fome, guerra, catástrofes naturais etc.


Essas pessoas não tiveram oportunidade para desenvolver seu
potencial. Além disso, mesmo que atinjam a idade adulta, vivem em um
nível muito mais baixo de autoconsciência e de conhecimento de Deus
e do mundo do que poderíam, não fossem as circunstâncias fora do
controle delas. Em suma, grande parte das pessoas nunca desenvolveu
mais do que uma fração de seu potencial. Na maioria das religiões do
mundo, uma das esperanças em relação à vida após a morte é que no
céu se alcancem algumas dessas possibilidades. A Bíblia ensina que o
alvo de Deus em relação ao homem é que ele se torne como Cristo (Rm
8.29, E f 4.13). Os prim eiros passos nesse sentido foram dados
juntamente com a decisão de crer e com o processo de santificação que
se seguiu. A conclusão desse processo ocorre do outro lado do túmulo.
A distância entre o “já ” e o “ainda não”, entre o que somos e o que
deveriamos ser, ainda precisa ser transposta. Isso poderia acontecer
num único ato recriativo de Deus ou por um processo de maturação e
purificação. A Bíblia não dá essa ou aquela resposta definida para a
questão, mas vale a pena notar que o Novo Testamento usa metáforas
de semeadura e colheita, semente e planta adulta, para descrever nosso
crescimento atual, de onde podemos deduzir que o processo continuará
na ressurreição. Da mesma forma como não há metamorfoses mágicas
na natureza nem transformações instantâneas nesta vida, no reino de
Deus também é bem possível que não haja. O que nos espera além da
morte pode ser uma estrada contínua num nível superior e um alvo mais
claro diante dos olhos. Talvez esse seja o significado da profecia
m essiânica ainda não cumprida de que “do increm ento deste
principado... não haverá fim” (Is 9.7, ARC). Nosso progresso no reino
pode consistir de um contínuo aprofundamento de nossa relação com
Deus e da vontade e capacidade de trabalhar para Sua glória. Na
próxima vida, optaremos por buscar a santidade e o conhecimento de
Deus, e nossa escolha será completada por oportunidades ilimitadas.
Os que buscarem, acharão.
Depois de considerar vários aspectos da continuidade entre esta
vida e a próxima, estamos prontos para observar as mudanças que
tornam o mundo futuro tão diferente do nosso. Vale a pena repetir que
só se pode conceber a descontinuidade em função dos aspectos de nossa
vida que têm continuidade no mundo por vir. É somente porque
continuamos sendo nós mesmos, com nossa memória, nossa capacidade
240 • IMORTALIDADE

de reconhecer os outros, nossas emoções e nossos sentidos intatos, que


podemos reconhecer o novo e perceber que ele é diferente. Muitas
formas do novo mundo nos serão familiares, e não há dúvidas de que
nos sentiremos em casa. Teremos capacidade de criar culturas piedosas,
procurar atividades significativas e progresso pessoal — tudo para a
glória de Deus. Mas muita coisa será estranha e nova, de uma forma
maravilhosa. É para essa descontinuidade que nos voltamos agora.

2 • Descontinuidade

Um filósofo alemão disse certa vez que a vida após a morte não é
como trocar de cavalos e sair em disparada.15 Em sua origem, esse
comentário serviu para zombar da esperança cristã do céu, mas ele
expressa uma verdade básica acerca da nova ordem da ressurreição:
apesar das semelhanças, a vida do porvir não é simplesmente a mesma
vida, apenas melhorada. Esse é o tipo de pensamento encontrado na
mitologia grega. Zeus, Apoio, Posêidon e o restante do panteão do
Monte Olimpo eram semelhantes aos homens e às mulheres, embora
muito maiores e mais poderosos. A descrição bíblica do céu não é assim.
O reino vindouro não é apenas maior em termos quantitativos; é muito
mais: é uma ordem existencial diferente, e isso faz com que seja difícil
descrevê-lo ou imaginá-lo. A impressão que se tem de várias passagens
bíblicas é que o autor está sofrendo por falta de palavras, um tipo de
insuficiência literária. O texto de 2 Coríntios 3.8-11 é um bom exemplo.
Paulo tenta descrever em que medida os resultados do ministério de
Cristo são muito melhores do que a ordem do Antigo Testamento
mediada por Moisés. Em apenas três períodos ele usa dez vezes a
palavra “glória” e seus derivados. Na Bíblia, normalmente, a idéia de
glória é usada em referência ao poder ou à majestade de Deus (Êx
33.18; SI 19.1) ou à honra devida a Ele (Êx 14.18; Jd 25; 2 Pe 3.18). Mas
aqui, ela aparece como um tipo de auxílio retórico ou adjetivo restritivo
que indica alguma coisa mais grandiosa, sem que se possa dizer
exatamente o que é nem como é.
Sem dúvida, Paulo pensou muito nesse problema — como des­
crever, de modo convincente, a maravilhosa natureza do reino vin­
douro. Começamos com sua tentativa dialética em 1 Coríntios 2.9,10,
cuja primeira metade dizia: “Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram...
o que Deus tem preparado para aqueles o amam”. Ninguém viu nem
PENSANDO NO CÉU • 241

ouviu as coisas do reino porque não existe nada exatamente igual neste
mundo. Quando tentamos descrever o céu, deparamo-nos com um
muro conceituai que, em certos aspectos, é intransponível. Essa talvez
seja a razão pela qual muito do que a Bíblia diz acerca do reino seja
expresso em forma de negativas. A frase repetida com maior freqüência
é “não haverá...”16 O raciocínio dedutivo geralmente não funciona com
essas passagens porque não se pode partir da não-existência de algo
para se chegar às condições de possibilidade de sua não-existência. Na
discussão inicial, consideramos a promessa de que na vida por vir não
haverá morte. O fato de a morte ser extirpada da vida humana vai mudar
tudo. Não há nenhuma dúvida quanto a isso. Mas há poucas indicações
sobre como seria uma vida sem morte. Em geral, é muito mais difícil
falar acerca dos aspectos descontínuos da vida do porvir, e só oca­
sionalmente se pode inferir algo de substancial. Muito do que se diz
sobre o céu oferece pouca possibilidade de uma “fusão de horizontes”.
Com essas reservas, estamos prontos para considerar pelo menos
alguns versículos que expressam a descontinuidade entre este mundo
e a ordem vindoura. Comecemos com as passagens que falam da
destruição e da recriação do mundo para, depois, considerar as que
descrevem em que será diferente a vida na presença de Deus.
O cosmos que nossos cientistas estudam hoje com tanta diligência
não passará do dia do julgamento (2 Pe 3.5, 6; 1 Co 7.31; Ap 21.1). Se
o universo está se expandindo infinitamente ou passando por ciclos de
expansão e colapso, essa questão será decidida num instante.1 As
mudanças no cosmos serão tão impetuosas que Isaías escreve: “Pois eis
que eu crio novos céus e nova terra; e não haverá lembrança das coisas
passadas, jamais haverá memória delas” (Is 65.17). Como se pode
descrever essa nova ordem? É provável que não se possa, a não ser por
negativas como: não haverá morte (Is 25.8; 1 Co 15.26), não haverá
escuridão ou noite (Ap 22.5); não haverá mar (Ap 21.1); não haverá
maldição (Ap 22.3); não haverá doença, luto ou dor (Ap 21.4) e, talvez
o mais importante, não haverá mal (Ap 20.10-15). Qualquer que tenha
sido sua origem misteriosa — angelical ou humana — o mal não
persistirá na era vindoura. A natureza já não ameaçará o homem, e este
não violará nem prejudicará a natureza, incluindo a humana, pois
nossas vidas serão vividas em corpos glorificados ou espirituais (1 Co
15.50ss.; 2 Co 5.1).
Embora essas declarações sejam quase totalmente negativas, uma
242 • IMORTALIDADE

das mudanças mais fundamentais da ordem do porvir está expressa na


declaração afirmativa de que Deus habitará com o homem (Ap 21.3).18
Ele estará perto, visível, sem véu, e fornecerá luz para todos (Ap 21.23;
22.5). Quer as culturas humanas sejam muitas, quer uma única; quer
haja progresso, quer uma consolidação definitiva; qualquer que seja a
forma assumida pela vida humana, tudo será reconstruído à luz da
presença de Deus. Mas para descrever a vida na presença de Deus,
precisamos voltar para as negativas: essa vida estará livre do pecado (Ef
5.5; G1 5.20, 21) e do pecador (G1 5.19-21; Ap 21.27). Não haverá
tentação nem capacidade para pensar de uma forma egoísta ou
pecaminosa. Não haverá mágoa, lágrimas, luto, saudade, frustração
nem tristeza (Ap 7.17; 21.4; 22.5). Os sentimentos pecaminosos de
lascívia, cobiça e inveja não estarão presentes (1 Co 6.9,10). Não haverá
ameaça de discriminação, nem ódio ou medo. Também não haverá
casamento e, provavelmente, tudo o que o acompanha, incluindo a
reprodução, pois se diz que, nesse aspecto, os homens serão como os
anjos de Deus (Mt 22.30). Por fim, no reino vindouro, haverá uma
inversão de valores em que muito do que hoje é julgado importante será
considerado sem valor. Jesus faz uma alusão a essa inversão de valores
em Sua lacônica declaração de que os primeiros serão últimos, e os
últimos, primeiros (Mt 19.30). Dinheiro, poder, prestígio, posses,
coisas pelas quais a maioria dos homens luta a vida inteira, deixarão de
ter significado. A mansidão e a humildade serão valorizadas; a
arrogância e o orgulho, eliminados (Mt 5.3; 18.3; Lc 6.20). O
conhecimento e o amor de Deus serão os valores supremos, e ambos
serão plenamente satisfatórios.20
Tentamos aqui refletir sobre as passagens bíblicas que falam do
céu, separando as que indicam continuidade das que apontam para
descontinuidade em relação ao mundo presente, usando um raciocínio
dedutivo com as que aceitam esse processo. Essa abordagem permite
m uita reflexão. Mas de todos os pensam entos que podem ser
concebidos a respeito da era vindoura, talvez o mais forte e, certamente,
o mais motivador, é o de que esses eventos não são mitologias
atemporais nem sonhos utópicos. São fatos que estão sendo preparados
agora mesmo. A vinda deles está bem próxima no horizonte do tempo.
Voltando à idéia do começo deste livro, sabemos que esses eventos irão
se concretizar e que o reino vindouro chegará, porque temos uma
palavra segura de profecia para prová-los. Tão certo como o Messias
PENSANDO NO CÉU • 243

veio, sofreu, morreu e ressuscitou dos mortos, assim também esses


eventos grandiosos do futuro irão se concretizar e o plano de Deus será
cumprido. Nossa obrigação é trabalhar e estarmos prontos.

NOTAS DO CAPÍTULO

*Nem todos concordam que essa seja a função da hermenêutica. Trata-se hoje de
uma forte tradição secular que afirma que o objetivo de interpretar um texto é criar
um novo significado. Dentre os livros contemporâneos que defendem esse ponto de
vista, o mais importante é Truth and Method (“Verdade e M étodo”), de Hans George
Gadamer. Basta dizer que tal ponto de vista é incompatível com todo e qualquer
conceito da Bíblia com o o continente da verdade para todos os homens de todos os
tempos.
1. Alguns grupos protestantes rejeitam o uso da razão em matéria de fé. Há dois
motivos para isso. O primeiro é o medo dos efeitos destrutivos do raciocínio crítico,
cuja essência é questionar todas as coisas. O segundo é o desejo de enfatizar o trabalho
do Espírito e não o da mente. Contrária a ambos, a Bíblia encoraja o uso da razão em
matéria de fé. Paulo oferece um exemplo claro disso, pois seu método básico para
alcançar os judeus de seu tempo era o de debater com eles (c/. At 17.2,17; 18.4,19).
2. Veja a discussão em Hendrikus Berkhof, Christian Faith, Eerdmans, 1986, pp.
490-494.
3. Paulo tinha prazer em tais construções dialéticas. Considere Fp 2.8,9 ou 2 Co
4.8. Muitos grandes filósofos e teólogos, incluindo Platão, Lutero, Pascal, Hegel,
Kierkegaard, Barth e Tillich também usaram o pensamento dialético na tentativa de
descrever o mundo. Veja Ernst Koenker, Great Dialecticians in Modem Thought,
Augsburg, 1971.
4. C f Mt 22.1-14; Mt 25.1-13; Lc 12.35-40; 13.29; 14.7-24; 15.11-32; 22.15,16; Ap
19.7,9.
5. Jonathan Edwards apresenta uma excelente discussão sobre o lugar das
emoções na vida cristã, em On Religious Affections, seção 1.6, Banner of Truth,
Edimburgo, 1834.
6. Donald Guthrie, comentando sobre a vida por vir, no final do capítulo
intitulado “A Vida Após a Morte”, neste volume, diz que “tudo o que se pode afirmar
em definitivo é que o fiel será revestido com um corpo espiritual”. Mas o que significa
ser espiritual? A Bíblia fala de várias coisas chamadas espirituais, incluindo a mente
(Rm 8.6, lit. “mas a mente do Espírito...), as bênçãos (Ef 1.3), os dons (Rm 1.11), a lei
(Rm 7.14), o culto (Rm 12.1, BJ), o zelo (Rm 12.11), a sabedoria (Cl 1.9), a verdade e
as palavras (1 Co 2.13), os cânticos (Ef 5.19) e o corpo (1 Co 15.44). O adjetivo
“espiritual” não significa necessariamente “material” ou desconhecido, como o é
qualquer coisa relacionada ao Espírito de Deus ou influenciada por Ele. A s pessas ou
as coisas são chamadas espirituais quando mantêm uma relação com o Espírito. Os
cristãos são chamados espirituais, não por serem menos físicos que os outros, mas
porque são nascidos do Espírito, e Este habita neles (cf. 1 Co 2.13, 14). Na Bíblia,
portanto, a palavra “espiritual” não é usada como um adjetivo que insinue uma
244 • IMORTALIDADE

imposição de limites quanto ao que se podería conhecer a respeito da vida por vir.
7. Quanto ao fato de a árvore da vida ser idêntica à do Jardim do Éden, veja os
comentários de Ellul no capítulo 6.
8. Veja Aquino, Summa Theologica, questão 13, artigo 2.
9. A cultura humana é um conceito vasto que inclui todas as estruturas sociais e
materiais que formam determinada sociedade, incluindo riqueza material, lei, religião,
moralidade popular, expressões artísticas etc. Também inclui a organização de suas
atividades programadas por intermédio de instituições religiosas, educacionais,
políticas e militares. Esse complexo de atitudes sociais, crenças pessoais e estruturas
institucionais é construído gradualmente, através de um longo processo baseado na
capacidade de apurar o gosto, os costumes e a inteligência das pessoas por meio da
educação, disciplina e experiência. Para esta discussão, são dois os aspectos
importantes da cultura: primeiro, todas as culturas têm uma estrutura de poder que
mantém a ordem social; segundo, todas as culturas refletem , nas estruturas
institucionais e sociais, a sua compreensão do significado ou propósito da vida.
10. Desde o final do século XVIII, a idéia de desenvolvimento ou progresso tem
sido incluída em todas as discussões sobre cultura. J. B. Bury, V ie Idea o f Progress,
Macmillan, 1921 e R. Nisbet, History o f the Idea o f Progress, Harper & Row, 1979.
11. Veja também Z c 14.16, 17, onde se faz uma descrição de ajuntamentos
regulares, reunindo judeus e gentios.
12. Outras passagens também podcriam ser consideradas, tais como a promessa
feita a Davi no Antigo Testamento, dizendo que sua descendência reinaria para
sempre. Aqui, nosso ponto de vista acerca do milênio influencia nossa compreensão
do céu. Existe uma discussão sobre se certas passagens — tais como a do leopardo
deitado junto ao cabrito, do reinado de Cristo em Jerusalém, da restauração do templo
e da terra de Israel — fazem referência a um reino eterno ou a um reino milenar. A
maioria desses textos controvertidos não será usada, já que o propósito deste artigo é
apresentar uma forma de abordar essas passagens sobre o céu e não defender ou
combater a posição milenista.
13. Berkhof nota que, nas épocas mais difíceis da história, a fé cristã demonstra
maior interesse pelas imagens neotestamentárias do tipo “descanso” e “sábado”. Não
sem razão, pois na vida do porvir o homem poderá respirar livremente, sem receio.
Aquele que sofreu e labutou nesta vida tem motivos para imaginar a vida eterna como
um descanso imperturbável, enquanto a pessoa dinâmica, que viveu uma vida plena de
serviço, pode igualmente esperar alcançar alvos mais elevados, com maiores
responsabilidades. Deus é ilimitado e inesgotável. Quanto mais próximos dEle, tanto
mais veremos que as possibilidades da vida com Ele também são assim. Portanto, é
possível que a atividade e o serviço eterno ao Rei devam ser considerados paralelos ao
descanso e ao gozo eterno. Christian Faith, pp. 537-545.
14. Quanto a uma defesa da posição tradicional de que não há santificação, apenas
conclusão, após a morte, veja Herman Bavinck, Reformed Dogmatics, pp. 797-803.
15. A fonte dessa frase é desconhecida, mas ela tem sido atribuída a Feuerbach,
filósofo alemão.
16. Faz parte da tradição da igreja falar acerca de Deus e do mundo por vir usando
frases negativas. Houve um tempo em que a via negativa era um método teológico
respeitável. A idéia básica era que não podemos falar acerca do que Deus é, apenas
PENSANDO NO CÉU • 245

do que Ele não é, pois Sua natureza é diferente da nossa. Pseudo-Dionísio, o


Areopagita, (c. 500) recebe o crédito pela introdução dessa idéia nos círculos cristãos.
Veja C. E. Rolt, Dionysius the Areopagite on the Divine Names and the Mystical
Theology, Macmillan, 1920.
17. O ensino bíblico de que Deus criará todas as coisas novamente não parece
compatível com nenhuma das concepções evolucionistas usadas hoje. O cientista e
teólogo católico Teilhard de Chardin sugeriu que a matéria é o útero ou a matriz de
onde surge a vida espiritual e, depois que isso acontece, sua missão está cumprida,
sendo posta de lado. Mas isso não parece coerente com a distinção bíblica entre corpo
e alma, matéria e espírito. E também não faz justiça à ênfase que a Bíblia dá à idéia de
uma separação completa entre esta era e a próxima (Is 65.17; 66.22; 2 Pe 3.13; Ap 21.4).
Embora o modelo evolucionista de Chardin seja atraente em nossa época, por estar
recebendo tanta aprovação das ciências naturais, não é uma perspectiva histórica
aprovada pela Bíblia. Veja Teilhard de Chardin, The Phenomenon o f Man, Harper and
Row, 1955.
18. C f também Z c 8.3; Jo 14.2ss.; 17.24; 2 Co 5.8; 1 Ts 4.14-17.0 conceito de uma
visão beatífica, a idéia de que a visão de Deus é o destino final do homem e seu maior
bem, tem uma fundamentação bíblica. Moisés pede para ver a glória de Deus (Êx
33.18ss.). Davi disse: “... buscarei... a tua presença” (SI 27.8). Veja em Aquino, Summa
Contra Gentiles, III, c. 37, 47-63 e Summa Teologica, Sup. 92, uma discussão sobre a
visão beatífica. Veja também Berkhof, Christian Faith, pp. 534-535.
19. Friedrich Nietzsche, sempre observador, vociferou contra o fato de o
cristianismo ensinar uma inversão dos valores do mundo. Ele disse que, em vez de
ensinar a “vontade de potência”, pela qual o homem pode se exaltar e dominar tanto
a natureza como a si mesmo, o cristianismo ensinava mansidão, humildade, bondade,
dar a outra face etc. Nietzche pensava que esses valores cristãos eram destrutivos,
inimigos do progresso humano. Ele era, de fato, como afirmava, um “anticristo”. Veja
Friedrich Nietzsche, O Anticristo.
20. Há razão para se crer que os valores da ordem natural também serão
revertidos. A lei da sobrevivência dos mais aptos também deixará de vigorar. O cabrito
se deitará com o leopardo, em vez de ocupar o degrau logo abaixo na cadeia alimentar.
9 Alan B. Pieratt

INTRODUÇÃO

Fechamos esta coletânea com uma parte de um livro de Oswald J.


Smith. Pode parecer que uma compilação de declarações feitas por
homens famosos no leito de morte, tanto ateus como fiéis, teria pouco
espaço num livro sério a respeito da vida após a morte. No entanto, em
todas as discussões sobre o reino vindouro de Deus, a palavra final deve
ser pessoal. Na verdade, todos os tópicos deste livro são intensamente
pessoais. Nós é que vamos morrer, ressurgir dos mortos e ser julgados.
Nós é que vamos gozar a vida com Deus ou ser banidos da presença de
Deus, de acordo com o que escolhemos: crer ou não crer. Decerto, as
crenças cristãs podem ser estudadas como qualquer outro assunto, tais
como a biologia, a física ou a filosofia. Suas origens históricas podem
ser traçadas com grandes detalhes acadêmicos. É possível fazer análises
minuciosas dos textos bíblicos. Mas, no fim, o cristianismo exige uma
decisão. Muitas pessoas só consideram essa questão quando a morte
está próxima e o coração sonda a si mesmo, procurando aquilo em que
realmente acredita. Espera-se que esses testemunhos induzam o leitor,
qualquer que seja sua condição, a considerar essa decisão agora.
Nesses relatos encontraremos as afirmações de homens que, pela
última vez, estão se confrontando com a decisão de crer ou não crer. O
grande contraste entre as duas decisões é evidente. Para aqueles sem
fé, a morte é uma perspectiva sombria e pavorosa. Para aqueles que
agiram de acordo com a fé em Deuss ao longo da vida, o medo da morte
é derrotado, e brilha do outro lado uma esperança. A Bíblia nunca
insinua que alguém possa ser empurrado para dentro do reino, movido
pelo medo (embora a história do carcereiro filipense chegue perto
disso). Mas a perspectiva da própria morte é um espectro que nos leva
248 • IMORTALIDADE

a buscar fé e esperança. Essas histórias podem induzir cada um de nós


a empreender essa busca agora, antes que chegue o tempo.
Em sua origem, o presente texto fez parte de um capítulo em The Gospel We Preach,
de Oswald J. Smith, publicado por Marshall, Morgan and Scott, na Inglaterra, em 1949.
A tradução é de Gérson Dudus.
9 Oswald J. Smith

TESTEMUNHOS NO LEITO
DE MORTE

Agora, para terminar, permitam-nos citar as últimas palavras dos


céticos e descrentes em geral. Ouça o que têm a dizer em seus leitos de
morte estes homens e mulheres que ousaram atacar a Deus e Sua
Palavra. Pois só quando estão às portas da morte os verdadeiros
segredos do coração são expostos; só então dizem em que realmente
acreditam. Não enquanto vivem; vivos, eles o encobrem; procuram
esconder o verdadeiro ego. Mas coloque-os face a face com a morte e
veja o que fazem, ouça o que dizem. Ficar ao lado de um incrédulo que
está morrendo é uma experiência que poucos iriam querer repetir. E
como é diferente o leito de morte de um verdadeiro cristão! Que
contraste! Mas, deixemos que falem por si mesmos.

Thomas Paine
“Ele gritava ininterruptam ente durante seus paroxismos de
angústia: ‘O Deus, me ajude! Senhor, me ajude! Jesus Cristo, me ajude!
Ó Senhor, me ajude!’etc., repetindo as mesmas expressões sem a menor
variação, num tom que alarmava a casa toda. ‘Daria mundos, se os
tivesse’, gritava, ‘para que The Age of Reason (“A Idade da Razão”)
nunca tivesse sido publicado.”’

Voltaire
“Por três meses, o remorso, a reprovação e a blasfêmia acom­
panharam e caracterizaram a longa agonia daquele ateu moribundo.
Sua morte, dentre as registradas, a mais terrível a atacar um ímpio, não
foi negada nem por seus companheiros de impiedade. O silêncio deles,
250 • IMORTALIDADE

p o r m ais q u e q u isessem n eg ar, é a ú ltim a das ev id ên cias


comprobatórias que podem ser citadas. Nem um deles jamais ousou
mencionar algum sinal de firmeza ou tranqüilidade dado pelo premier.
Tal silêncio demonstra como foi grande a humilhação que sofreram na
morte dele.
Apesar de todos os filósofos pagãos que se congregavam a seu
redor, ele deu sinais de desejar retornar ao Deus contra quem
blasfemara com tanta freqüêpcia. Chamou um padre. Aumentando o
perigo, escreveu suplicando ao Abade Gaultier que fosse visitá-lo. Mais
tarde, fez uma declaração na qual renunciava à sua infidelidade.
Voltaire permitiu que essa declaração fosse levada ao Reitor de S.
Sulpice e ao Arcebispo de Paris, para saber se ela seria suficiente.
Quando o Abade Gaultier retornou com a resposta, foi impossibilitado
de chegar até o paciente. Os conspiradores envidaram todos os esforços
para impedir que seu chefe consumasse sua retratação, e todos os
caminhos foram fechados ao sacerdote enviado por Voltaire. A raiva
seguiu-se à fúria e a fúria à raiva novamente durante o restante de sua
vida.
D ’Alembert, Diderot e cerca de vinte outros conspiradores nunca
se aproximavam dele, a não ser para evidenciarem suas próprias
ignomínias; e freqüentem ente ele os amaldiçoava e exclamava:
‘Retirai-vos! Fora! Que glória infame conseguistes para mim!’ Eles
podiam ouvi-lo, uma presa da angústia e do pavor, suplicando ou
blasfem ando alternadam ente àquele D eus contra quem havia
conspirado; e em tons queixosos gritava: ‘Ó Cristo! Ó Jesus Cristo!’ e
se lamentava por ter sido abandonado por Deus e pelos homens.
Aterrados, seus médicos se afastaram, afirmando que a morte de um
ímpio era terrível demais.
O orgulho dos conspiradores prontamente suprimiu essas de­
clarações, mas foi em vão. O Marechal Richelieu fugiu de sua cabeceira,
declarando que era por demais terrível suportar aquela visão; e o Dr.
Tronchin, dizendo que a fúria de Orestes podia oferecer apenas uma
pálida idéia da fúria de Voltaire.
Em uma de suas visitas, o médico o encontrou nas maiores agonias,
exclamando com o mais puro horror: ‘Fui abandonado por Deus e pelos
homens’, e então disse: ‘Doutor, dar-te-ei metade do que possuo se me
deres mais seis meses de vida’. O médico respondeu: ‘Senhor, não
podes viver nem seis semanas’. Voltaire respondeu: ‘Então vou para o
inferno’, e logo depois expirou.”
TESTEMUNHOS NO LEITO DE MORTE • 251

Francis Newport
‘“Pobre de mim! Quem pode escrever sua própria tragédia sem
lágrimas ou copiar a sentença de sua própria condenação sem horror?
Que há um Deus eu sei, porque continuamente sinto os efeitos de Sua
ira; de que há um inferno também estou certo, pois já recebi em meu
peito uma porção da minha herança de lá. Desprezei meu Criador e
neguei meu Redentor; juntei-me aos ateus e profanos, e continuei nesse
caminho sob inúmeras condenações, até que minha iniqüidade ficou
madura para a vingança e o justo julgamento de Deus.
Quão inútil é pedir ao fogo que não queime quando se acrescenta
combustível, e ordenar ao mar que fique calmo no meio de uma
tempestade! Esse é o meu caso; e o que significa o conforto de meus
amigos? Para onde estou indo? Condenado e perdido para sempre.
Deus tornou-Se meu inimigo e não há ninguém que possa salvar-me.’
Sua voz falhou e ele começou a lutar para manter a respiração;
quando a recuperou, com um gemido medonho e horrendo, como se
aquilo tivesse sido algo sobrehumano, gritou: ‘Ó, as insuportáveis
angústias do inferno e da condenação!’, e então expirou.”

Um universalista à morte
“‘Minha chance se foi!’, disse ele. ‘É tarde demais para mim! Tarde
demais!’ ‘Não, Senhor, não é tarde demais’, insisti. ‘Se você quiser a
misericórdia de Deus, você a terá.’
‘Misericórdia! Misericórdia!’, ele vociferou. ‘É ela que torna minha
situação tão pavorosa! Eu desprezei a misericórdia! Eu zombei de
Deus! Eu recusei a Cristo! Minha chance se foi! Estou perdido!
Perdido! Ó, tolo! tolo! Fui tolo a vida inteira!’
O pai dele entrou, dizendo: ‘Você nunca fez mal a ninguém’.
‘Não fale comigo, pai’, disse ele num tom de ódio e raiva. ‘Você foi
meu pior inimigo! Você me arruinou! Você me disse que não havia
inferno. Não me venha agora tentar me enganar de novo. Eu zombei
do inferno; agora o inferno zomba de mim! Deus punirá os pecadores!
Ele se apoderou de mim, e eu não posso fugir das suas mãos. Existe,
sim, um inferno horrendo.”’
252 • IMORTALIDADE

Outros
“Tudo é escuro e incerto.” — Gibbon
“Todas as minhas posses por um pouquinho de tempo!” —Rainha
Elizabeth
“Pedindo um copo d’água à esposa, disse: ‘Não poderei consegui-lo
no lugar para onde estou indo’. Bebendo sofregamente, fitou os olhos
da esposa e exclamou: “Ó! Marta, Marta; você selou minha perdição
eterna!” e morreu. — Um ateu
‘“Os demônios estão chegando; ó, salvem-me! Eles me arrastam
p a ra baixo! P erd id a! P erd id a! P e rd id a !’ Pouco depois, ela
disse:‘Atai-me, ó grilhões da escuridão! Oh! Se eu pudesse deixar de
ser, mas continuo existindo! O verme que nunca morre, a segunda
morte.’” —Jennie Gordon
“Até este momento eu pensava que não havia nem Deus nem
inferno. Agora sei e sinto que ambos existem, e fui condenado à
perdição pelo justo julgamento do Todo-Poderoso.” — Sir Thomas
Scott
“Estou perdido! Perdido!” — Gambetta
“Meu pecado é maior do que a misericórdia de Deus. Eu neguei a
Cristo, voluntariamente. Sinto que Ele não me reserva nenhuma
esperança.” —Francis Spira
“Estou sofrendo a agonia dos condenados.” — Tallyrand Perigord

CENAS DA MORTE DE FIÉIS

Agora, observemos algumas cenas da morte de fiéis. Ouça o que


eles dizem e note o contraste:

John Payson
Seu leito de morte presenciou uma cena extraordinária e sublime;
ele gritou: “Isto basta: Cristo morreu por mim. Estou subindo para o
trono de Deus!” Então, rompendo em acordes de louvor arrebatadores,
juntando as mãos como se estivesse orando, disse: “Sei que estou
morrendo, mas meu leito de morte é um leito de rosas; não tenho
TESTEMUNHOS NO LEITO DE MORTE • 253

espinhos plantados no travesseiro de minha morte. O céu já começou;


a vida eterna está ganha, ganha, ganha. Tenho uma morte fácil, segura
e feliz. Tu, meu Deus, estás presente, eu sei, eu sinto Tua presença.
Jesus precioso! Glória a Deus!” Logo depois, expirou exclamando:
“Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!”

David Brainerd
“Meu desejo é servir a Deus e ser completamente devotado à Sua
glória; este é o céu pelo qual anseio, esta é minha religião e minha
felicidade, e sempre foi, desde que julguei ter uma verdadeira religião.
O guardião está comigo; por que a carruagem custa tanto a chegar? Por
que tardam as rodas de Sua carruagem?”

John Wesley
Quando os amigos se acercaram de seu leito de morte, ele tentou
falar, mas, observando que não estava sendo entendido, parou.
“E n tão”, disse um a testem unha ocular, “erguendo seus braços
enfraquecidos num gesto de vitória, e elevando a voz debilitada em
santo e indizível triunfo, gritou: “O melhor de tudo é que Deus está
conosco”.
Enquanto umedeciam-lhe os lábios, disse: “Agradecemos-Te,
Senhor, estas e todas as Tuas misericórdias; abençoa a Igreja e o Rei;
e concede-nos paz e verdade através de Jesus Cristo, nosso Senhor, para
todo o sempre!”
“Ele faz com que seus servos descansem em paz”; as nuvens
destilam fartura”; “O Senhor está conosco, o Deus de Jacó é o nosso
refúgio” — são algumas de suas exclamações fragmentadas, mas cheias
de êxtase, nas últimas horas de vida.
Novamente ele convocou os companheiros para orar à beira de sua
cama; o quarto havia se tornado não apenas em santuário, mas nos
portais dos céus; ele participou da liturgia com crescente fervor;
durante a noite, várias vezes tentou repetir o hino de Watts que havia
cantado no dia anterior; mas só conseguia proferir: “Eu te louvo... Eu
te louvo...”
Na manhã seguinte, fechou-se a cena sublime. Joseph Bradford,
parceiro de longa data em suas viagens ministeriais, o companheiro em
suas provações e sucessos, orou com ele. “Adeus!” foi a última palavra
e bênção do apóstolo ao falecer.
254 • IMORTALIDADE

Billy Bray volta para casa


Na sexta-feira, ele desceu as escadas pela última vez. A um de seus
velhos amigos que, poucas horas antes de sua morte, perguntou-lhe se
não tinha nenhum medo da morte, ou de se perder, ele disse: “O quê?
Eu temer a morte? Eu perdido? Ora, meu Salvador venceu a morte. Se
eu fosse para o inferno, iria gritando glória! glória! ao meu bendito
Jesus, até fazer o inferno ressoar, e o miserável e velho Satanás diria:
“Billy, Billy, isso não é lugar para você; saia daqui”. Então eu iria para
o céu, gritando glória! glória! glória! louvado seja Deus!” Pouco depois,
ele disse: “Glória!”, e essa foi sua última palavra.

Mortinho Lutero
Os amigos queriam que ele tomasse algum remédio. “Estou
partindo e, em breve, vou render meu espírito”, disse Lutero, repetindo
três vezes: “Pai, em Tuas mãos entrego meu espírito, porque Tu me
redimiste, Tu, Deus da Verdade”. Então, ficou completamente imóvel,
não respondendo às perguntas que lhe dirigiam, até que, friccionando
seu pulso com uma solução revigorante, o Dr. Jones lhe disse ao ouvido:
“Reverendo, o senhor permanece com Cristo e com as doutrinas que
tem pregado? Elas resistem à agonia da morte?” “Sim! Sim! Mil vezes,
sim!”, gritou Lutero e, virando-se, adormeceu.

Toplady
“A doença não é aflição; nem o sofrimento, maldição; nem a morte,
dissolução, o céu está claro, não há nuvens. Vem, Senhor Jesus, vem
depressa.”

John Oxtoby
“Oh, o que contemplei; uma visão que não posso descrever. Havia
três figuras brilhantes próximas a mim; suas vestes eram tão brilhantes,
seus semblantes tão gloriosos que a nada que eu tenha visto antes
poderíam se comparar”. Esta foi sua oração final: “Deus, salva as almas;
não as deixes perecer”. Logo depois, exclamou: “Glória, glória, glória!”
e se foi.
TESTEMUNHOS NO LEITO DE MORTE • 255

Catherine Booth retoma ao lar


“As águas estão subindo, mas eu também. Não vou submergir, mas
subir. Não se preocupe com sua morte, apenas continue a viver bem, e
a morte correrá bem.” Suas últimas palavras foram ditas ao General:
Até que a aurora surja e as sombras se dissipem”.

A morte triunfante do Dr. Wakely


“Pela manhã, irão perguntar: ‘O irmão Wakely morreu?’ Morreu?
Não! Digam que ele está melhor e vive para sempre. Eu conheço o
velho barco. O Piloto me conhece muito bem. Ele me levará seguro ao
porto. As brisas celestes já sopram no meu rosto. Não serei um estranho
no céu. Sou bem conhecido lá em cima. Como Bunyan, vejo uma
enorme multidão com vestes brancas e anseio por estar com eles. É
muito melhor partir e estar com Jesus. Quando forem à sepultura, não
vão chorando. A morte não tem aguilhão. O túmulo não traz nenhum
terror. A eternidade não possui escuridão. Cantem em meu funeral.
Ouçam! Ouçam! Não estão escutando a canção? A vitória é nossa. Há
grande regozijo no céu. Abri-vos, portais dourados, e deixai meu carro
passar.”

A partida de Whitefield
“Senhor Jesus, estou exausto em Teu trabalho, mas não do Teu
trabalho. Se ainda não completei meu curso, deixa-me ir e falar por Ti
mais uma vez nos campos, e selar a verdade, e voltar para casa para
morrer. Prefiro me consumir a me enferrujar.” Ele correu até a janela,
lutando para respirar, dizendo: “Estou morrendo”. E quase imedia­
tamente deu o último suspiro em sua cadeira.

O martírio de Latimer
“Tenha bom ânimo, Mestre Ridley, e seja homem! Neste dia,
acenderemos na Inglatei ’•a, pela graça de Deus, uma vela que, confio,
nunca será apagada!” Depois disso, exclamou: “Ó Pai Celeste, recebe
minha alma!”
256 • IMORTALIDADE

Outros
“Estou satisfeito com Tua semelhança; satisfeito — satisfeito —
satisfeito!” — Charles Wesley
“Logo estarei com Jesus. Talvez eu esteja por demais ansioso. Isso
é a morte? Ora, ela é melhor que a vida! Diga-lhes que morro feliz em
Cristo.” —John Arthur Lyth
“Ainda nos encontraremos para sempre, para cantar a nova canção
e estarmos felizes eternamente num mundo sem fim. Toma-me, pois
estou indo para Ti.” —John Bunyan
“O sol está se pondo, o meu está nascendo. Vou desta cama para
uma coroa. Adeus.” — S. G. Bangs
“A terra recua, os céus se abrem diante de mim!” — D. L. Moody

COMO SERÁ A SUA?

Amigo, diga-me, como será sua morte? Lembre-se, não há como


fugir. “Aos homens está ordenado morrerem uma só vez.” Quem disse
isso? Deus! O Deus a quem você rejeita e despreza. Mas como você vai
morrer? Quais serão seus pensamentos naquela terrível e última hora?
Será a morte de um ateu ou a de um fiel voltando para casa? É você
quem deve decidir. Ó, deixe-me implorar, agora, antes que seja tarde
demais, que lance fora suas dúvidas e diga: “Sim! Eu o farei! Creio agora
que Jesus morreu por mim”, e neste momento fique de joelhos, aí
mesmo onde você está, e diga-Lhe isso. Pois Ele terá misericórdia e
perdão abundante.
E n tra m o s em águas profundas quando estudamos a
natureza da imortalidade e da vida após a morte, pois
estamos esquadrinhando além do finai do mundo presente
e o início de uma nova ordem.

Os eventos predeterminados por Deus terão cumprimento


certo, e isto se aplica à morte, à ressurreição dos mortos,
ao dia do julgamento, à Sua ira final. Não estamos falando
de eventos distantes ou desligados de nossa realidade.
Todos nós avistamos as “últimas coisas” quando contem­
plamos a morte, seja ela a nossa, seja a de algum ente
querido, pois a morte de uma pessoa a conduz diretamente
è presença de Deus e à existência do mundo vindouro.

Esta coleção de ensaios sobre a vida após a morte foi


selecionada a fim de desafiar, instruir e edificar. Os artigos
estão dispostos em tópicos que variam da ira de Deus à
natureza da morte, o estado final dos perversos e uma
descrição da maravilhosa realidade da vida com o Senhor
após a morte. Os autores são nomes muito famosos no
meio evangélico: Packer, Morris, Grounds, Tasker, Ellul e
outros. O pastor ou obreiro cristão encontrará nesta obra
um farto material para usar em seus ensinos ou pregações.

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