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1.

0 CONCEITO
2. INTRODUÇÃO
3. APENDICEI
4. APENDICEII
1. 3 - 0 AMOR AO PRÓXIMO
5. APENDICE
6. A VIDA EM SOCIEDADE (VITA SOCIALIS)
7. SANTO AGOSTINHO
8. E 0 PROTESTANTISMO
m principio, para Hannah Arendt, como para Santo Agostinho, há uma expansividade, o desejo.
«Estrutura fundamental do ente», o desejo é a forma de um apetite que instala o querente na
solidão, dispõe-no a todas as angústias é a todas as audâcias, mas atrai coa uma dinâmica
irrecusável, a’-vontâdéWseT feliz. Felicidade, alegria, ou qualquer outro nome que se lhe
chame, o ofcjeclo do desejo revela o fim último do ser criado,- ser feliz.
0 principal objective de Hannah Arendt ê tornar explícito aquilo que Santo Agostinho apenas
diz implicitamente, ou seja, ela desmonta toda a linha de pensamento do autor e desce ate as
profundezas do seu pensar, para revelar o lado oculto do que está dito e, eventualmente, aquilo
que também ficou por dizer, Para a realização da sua interpretação, Hannah Arendt dividiu o seu
trabalho em três partes. A primeira é dedicada ao amor compreendido como desejo ê ás
contradições a que esta difinição do amorpode levar. A segunda, tenta compreender de que
mudo é que sô se ama o próximo no amor a esse próximo, e, na terceira parte, o objectivo é
entender de que forma è que o homem isolado de tudo o que tem ligação com o mundo -
encarado, única e exclusivamente, na sua relação face a Deus -, ainda consegue interessar-se
pelo próximo.
Três partes que são as linhas centrais de um apaixonante ensaio de interpretação filosófica, onde
se abordam e desenvolvem os trés grandes aspectos presentes na problemática agostihiana do
amor, Amor, desejo, solidão, felicidade, alegria, caridade, cobiça, fé, vida, morte, medo, amor
ao próximo e amor a Deus são apenas alguns dos conceitos que se encontram nesta obra, com o
único propósito de explicar o fim último de todo o ser humanot ser feliz.
HANNAH ARENDT, a discípula de HeideWer. a aIunp’deJpspegs.e a leitora
PeHIerfteSard.Estaobraé a sua dissertação de doutoramento,. ..

789728’407575'

1. INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA DO ESPÍRITO

Pascal Engel

2. RELER DESCARTES
Alexis Pbiitmukf)
J. A FILOSOFIA NATURAL DE DESCARTES
Michio Kobaytjsbi

4. DESCARTES-A FÁBULA DO MUNDO

fan-Pierre Cavnillé

5. FUNDAMENTOS NATURAIS DA ÉTICA

Direcção defan-Pierre Cbangeux

6. TEORIA DO SISTEMA GERAL

fam-Loitis Le Moigne

7. OS SISTEMAS AUTÔNOMOS

Jacques Lorigpy

8. SOBRE A ONTOLOGIA CINZENTA DE DESCARTES

Jean-Luc Marion

9. O LUGAR DO HOMEM NA NATUREZA

P. Teilhard de Cbardin

10. O JUSTO

Paul Riconer

11. PAUL RICOUER - A PROMESSA E A REGRA

Olivier Abel

12. HEIDEGGER E A ESSÊNCIA DO HOMEM

Micbel Hmir
B. O CONCEITO DE AMOR EVÍ SANTO AGOSTINHO Ilaimab Arendt
0 CONCEITO
DE AMOR
EM SANTO
AGOSTINHO

0 CONCEITO
DE AMOR EM SANTO AGOSTINHO ENSAIO DE INTERPRETAÇÃO FILOSÓFICA
HANNAH ARENDT
INSTITUTO
PIAGET
Título priginal:
Le Concept d'aniottr chez Augustin
Autor:
Hannah Arendt
Colecção:
Pensamento e Filosofia
Direcção de Antônio de Oliveira Cruz
Tradução:
Alberto Pereira Dinis
Capa:
Dorindo Carvalho
© Copyright - Original publicado em alemão sob o título Der Liebesbegriff Bei Augustin, de
Hannah Arendt, por Julius Spinger, 1929.
Direitos reservados para a língua portuguesa:
INSTITUTO PIAGET - Av. João Paulo II,
Lote 544,2.° - 1900 Lisboa
Telefone 837 17 25
Fotocomposição e Paginação:
Maria João Cifita
Impressão e acabamento:
Gráfica Manuel Barbosa e Filhos, Lda.
ISBN ■ 972-8407-57-2
Depósito Legal n.° 117129/97
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer processo
electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópía ou gravação, sem
autorização prévia e escrita do editor.

INTRODUÇÃO
APENDICEI
APENDICEII
3 - 0 AMOR AO PRÓXIMO
APENDICE
A VIDA EM SOCIEDADE (VITA SOCIALIS)
SANTO AGOSTINHO
E 0 PROTESTANTISMO
INTRODUÇÃO
As dificuldades sobre as quais tropeça uma interpretação que queira compreender Santo
Agostinho podem ser, devido à singularidade da sua obra, ordenadas em três pontos de vista
que limitam e determinam de maneira decisiva toda a análise:
A justaposição de diversos raciocínios;
Uma submissão ao dogma que vai aumentando com a idade;
O facto de uma evolução biográfica marcante que leva a uma acentuada mudança do seu
campo intelectual.
No que diz respeito ao primeiro ponto, para fazer justiça a esta justaposição de idéias e de
teorias geralmente apresentadas como outras tantas contradições, este trabalho tentará
mostrar em três partes os três sistemas conceptuais nos quais o problema do amor
desempenha um papel decisivo, e relacionará cada um destes sistemas precisamente com a
questão do sentido e da significação do amor ao próximo. Como o amor ao próximo,
mandamento cristão, depende do amor por Deus na comoção da fé e na nova posição que daí
decorre face ao próprio si, cada uma das duas primeiras partes deve partir da questão
seguinte: o que é que significa amar Deus e amar-se a si mesmo? As respectivas aplicações
surgirão numa breve conclusão. São suportadas pela questão da pertinência própria do
próximo para o crente estranho ao mundo e aos seus desejos. Desde logo, Santo Agostinho
tenta compreender o amor e procura dizer qualquer coisa sobre o mesmo, introduzindo
sempre pelo menos o amor ao próximo, se bem que a questão da importância do próximo se
transforme numa crítica do conceito dominante de amor, da posição do homem em relação a
si e a Deus (ê dito: «Deves amar o teu próximo como a ti mesmo, e só o fazes porque és
obrigado por Deus e pelo seu mandamento»), Esta crítica nunca significa uma crítica
absoluta a partir de um ponto de vista filosófico ou teológico fixo, é apenas uma mera
crítica, porque este conceito de amor é suposto ser um conceito cristão. Cristão significa, por
outro lado, nada mais do que pau lino, visto que, em Santo Agostinho, vida e pensamento, por
mais que sejam efectivamente religiosos e não sejam determinados por influências gregas e
neoplatónicas, são-no sobretudo a partir de São Paulo, tal como o próprio Santo Agostinho
reconhece na obra Confissões.
Ligar num sistema estas séries de reflexões justapostas, ainda que fosse sob a forma de
antíteses, é evidentemente impossível se se recusa impor a Santo Agostinho um-pensamento
sistemático e um rigor lógico que nunca foram seus. Apenas a questão da importância do
próximo - que para Santo Agostinho se põe em absoluto por si mesma - une as diferentes
partes. Apenas a convicção da importância das diversas séries de reflexões, que só se
verificará na sua apresentação, justifica a aparente ausência de unidade deste trabalho de
pesquisa. Esta falta de unidade é apenas aparente: por um lado, este trabalho organiza-se em
torno da questão central do autor, por outro lado, reflecte no fundo a ausência de unidade da
obra agosti-niana, o que lhe confere ao mesmo tempo a sua espantosa riqueza e o seu
encanto.
Mas o facto de tratar em três capítulos outros tantos pontos de vista fundamentais,
independentes uns dos outros, não significa que se possa repartir os escritos de Santo
Agostinho em três ordens onde ele teria exposto pormenorizadamente a sua posição. Pelo
contrário, cada um dos seus escritos deve ser interpretado a partir de um destes três pontos
de vista. Assim, sendo, entendemos por interpretar tornar explícito aquilo que Santo
Agostinho apenas diz implicitamente, mostrando por esta explicação como, num mesmo
contexto, diferentes pontos de vista se juntam e interagem. Esta pesquisa é de parte a parte
uma análise que procura penetrar nas profundezas que Santo Agostinho já não deixa
aparecer claramente. Faz daí derivar um pensamento sistenfático que não quer encerrar
Santo Agostinho num rigor lógico que lhe é desconhecido, mas que tenta simplesmente
interpretar enunciados e reflexões, mesmo aparentemente heterogêneas, por referência a um
fundamento objectivamente comum. Pode parecer que este fundamento objectivo leva a ver
ele próprio pontos de vista heterogêneos -como é o caso do duplo conceito de mundo na
segunda parte. A análise pretende mostrar como estes pontos de vista fundamentais redefinem
e chegam mesmo a desviar cada enunciado num contexto que já não é explicitamente
transparente. Por isso, a análise mostra, apesar do que tem de sistemático nos pormenores, a
ausência de uma unidade de conjunto.
No que diz respeito ao segundo ponto, as nossas análises manter-se-ão em grande parte
alheias à submissão do ponto de vista do dogma de Santo Agostinho à autoridade das
Escrituras e da Igreja, porque por princípio são livres em relação ao dogma na sua essência
e no seu sentido. No entanto, no caso de Santo Agostinho, esta demarcação deliberada de
tudo aquilo que é a ordem dogmática, que poder ia ser fatal para a interpretação de um autor
religioso, justifica-se com bastante facilidade devido ao seu objecto de estudo. Ele diz: «Eles
não compreenderam (...) que o "não faças aos outros o que não queres que te façam a ti" não
era de forma alguma susceptível de interpretações diversas em função da sua pertença a tal
ou a tal nação. Com efeito, se se aplica este princípio ao amor a Deus, então é o fim de toda
a acção vergonhosa; sendo aplicado ao amor ao próximo, é o fim de todo o crime1.» 0
mandamento explícito do amor ao próximo é pois ele próprio precedido por um outro
mandamento, independente de toda a revelação divina tal como foi realizada em Cristo;
trata-se dessa lei inscrita nos nossos corações (lex scripta in cordibus nostris), passim,
sobretudo Conf //, 9, onde esta lei se encontra expressamente distlnguida da lei de Deus (lex
Dei). 0 mandamento cristão reforça esta lei (natural) e, assim, apenas reconduz o ser-
conjunto dos homens à sua singularidade mais perfeita, onde são eliminados todos os crimes
(facínora). Poderemos, portanto, delimitar de forma não dogmática o quadro da nossa
interpretação de duas maneiras: por um lado, interrogando essa esfera pré-teológica, por
outro, procurando apreender aquilo que a interpretação de Santo Agostinho inclui de
especificamente novo na formulação cristã: em que é que reside o carácter próprio da vida
humana, que é ao mesmo tempo exigido e afirmado, que já não releva apenas da lei inscrita
nos nossos corações mas da lei divina que governa do exterior, e porque é que esta lei de
Deus é a única via para a verdade própria da existência humana quando esta regressa a si
mesma (a questão que pus a mim mesmo, quaestio mihi fac-tus sum), verdade que se encontra
já pré-indicada na consciência (conscientia)? O próprio Santo Agostinho autoriza-nos uma
tal questão e uma tal interpretação uma vez que só concede a toda a autoridade um papel
preparatório e pedagógico: «E por isso, então, que a nossa fraqueza não nos permitia
encontrar a verdade com a ajuda da razão pura, e que, por esta razão, nós tínhamos
necessidade da autoridade das Sagradas Escrituras...2 Do mesmo modo, um duplo guia é-nos
necessário para aprender: o da autoridade e o da razão. A autoridade chega em ^primeiro
lugar, enquanto que a prioridade da razão é realh»
Nenhuma ruptura brutal entre autoridade e razão nos obriga na interpretação a fixarmo-nos
à eterna problemática paradoxal do crente, tal como a entendem São Paulo e Lutero. Para
Santo Agostinho, a autoridade comanda do exterior o que a lei interna (lex interna), a
consciência, nos diria se desde sempre não S^estivéssemos, pelo hábito (consuetude) presos
ao pecado.
A esta interpretação orientada segundo dois lados correspondem nas duas primeiras partes
os dois primeiros capítulos -o último, já o dissemos, representa apenas a sua prova respectiva
através do exemplo. O primeiro procura recordar a esfera pré-teológica, indispensável para
a compreensão das definições do amor como desejo (appetitus), ou a relação da criatura com
o Criador na sua origem. No segundo capítulo, procuramos compreender a inversão
específica do cristianismo, no qual se fundem, apesar de diferenças decisivas, as visões
fundamentais que precedem toda a interpretação especificamente teológica. A elaboração
conceptual funda os critérios da autenticidade ou da não-autenticidade da existência humana
face a Deus (coram Deo) na perspectiva de Santo Agostinho. (Estes desenvolvimentos
pretendem apenas afirmar que uma tal esfera pré-teológica é objectivamente justificada, ou
que a existência humana encontra a sua autenticidade face a Deus.)
No que diz respeito ao terceiro ponto: explica-se de uma forma geral a falta de unidade da
obra de Santo Agostinho - em certa medida com razão - pelo facto de Santo Agostinho,
descendente da cultura da antiguidade tardia, e determinado por quase todas as suas
orientações num ou outro momento de maneira decisiva, sofreu, na sequência da sua
conversão, a influência de representações cristãs e da matéria de fé religiosa no decurso de
um longo processo biograficamente datável, e que, de retórico antigo e escritor de talento, se
transforma cada vez mais em «Padre da Igreja» - é enquanto tal que continua a viver e a
exercer a sua influência na história - e isto a um ponto tal que, no fim da sua vida, submete
toda a sua obra a uma revisão explícita nas RetractaçÕes. Não ter em conta esta evolução,
como fazemos nas nossas análises, parece à primeira vista muito irresponsável. Para
defender esta tentativa de uma pesquisa puramente filosófica, poderia dizer-se, perante uma
apresentação da evolução de Santo Agostinho (sendo a melhor, no meu entender, a obra de
Prosper Alfaric, involution intel-lectuelle de saint Augustin, Paris, 1908, que infelizmente
chega apenas ao neoplatonismo) o seguinte: nada do patrimônio filosófico da antiguidade e
da antiguidade tardia que Santo Agostinho assimilou nas diversas épocas da sua vida, de
Hortensius, de Cícero, à tradução de Plotino de Victorinus Rhetor, nunca foi verdadeira e
radicalmente eliminado do seu pensamento. A alternativa radical entre a reflexão filosófica
pessoal e a obediência religiosa à fé, tal como a viveu o jovem Lutero, foi-lhe alheia. Apesar
de se ter tornado um cristão crente e convicto, de ter avançado muito na problemática do
cristianismo através das leituras das epístolas de São Paulo, dos salmos, do Evangelho de
São João e das suas epístolas, nunca perdeu completamente a impulsão do questionamento
filosófico, e nunca o excluiu radicalmente do seu pensamento. Para a interpretação, isto
significa que é possível - e esta possibilidade, como tudo o que mencionamos anteriormente,
só pode ser verificada pela análise concreta - procurar estas visões fundamentais
independentemente da evolução através da qual são acentuadas de diferentes maneiras, de
ver como os pontos de partida neoplatónicos, ainda que dissimulados, continuam a actuar em
cada problemática cristã e a transformam de maneira particular - ocultam-na, poder-se-ia
dizer, numa compreensão pretendida puramente cristã. À primeira vista, grosso modo, nunca
pusemos aqui a questão de saber quem surge primeiro, se o helenismo ou o cristianismo. As
diferentes análi-ses mostrarão não tanto quem levou a melhor mas sim em função de quem se
orientou o interesse original; isso aparece nos enunciados do gênero da questão que eu pus a
mim próprio (quaestio mihi factus sum), e será tratado como um simples ponto de partida, um
fenômeno que não nos propomos interpretar nesta obra. No quadro da temática de que nos
ocupamos, o conceito de amor, tentaremos esclarecer as direcções nas quais se movem a
interpretação e a orientação do próprio Santo Agostinho.
I Este trabalho propõe três análises. A primeira começa pelo amor (amor), compreendido
como desejo (appetitus), a única definição que Santo Agostinho deu do amor (amor). No final
da análise, na apresentação da caridade ordenada (ordinata dilec-tio), veremos as
contradições a que esta definição pode levar, mesmo seguindo Santo Agostinho, e ficaremos
constrangidos para avançar para um outro mapa conceptual, que tenta, já de uma maneira
curiosamente liminar, incompreensível à primeira análise, buscar no amor como desejo (amor
qua appetitus) a origem do amor ao próximo (dilectio proximi). A segunda analise permite
apenas compreender em que medida se ama o próximo no amor ao próximo (dilectio proximi).
E é só na terceira análise que se esclarece a contradição da segunda, tal como torna evidente
a questão de saber como o homem face a Deus (coram Deo), isolado de tudo o que tem
relação com o mundo, pode ainda interessar-se pelo próximo. Esta atinge esse ponto
demonstrando a partir de um outro contexto a importância do próximo. Esclarecer uma
contradição não significa, todavia, resolver um problema resultante de um conjunto
relativamente fechado de conceitos e de experiências, mas responder à questão de saber
como aparecem estas discordâncias, que, contra todas as expectativas, fazem desembocar
certas premissas em contradições incompreensíveis para um pensamento sistemático. É
preciso tomar as contradições como elas são, esclarecê-las enquanto tal, compreender o que
escondem.

NOTAS
1. De doctr. chríst. Ill, 22: Non intellexerunt... «Quod tibi fieri non vis alii ne feceris»,
radio posse alia eorum gentili diversitate variari. Quae sententia cum refertur ad
dilectionem Dei omnia flagitia moriuntur; cum ad proximi omnia facínora (cf. En. in Ps.
LVII, I).
2. Coni'. VI, 8: ideoque cum essemus infirmi ad inveniendam liquida ratione veritatem et
ob hoc nobis opus esset auctoritate sanctarum Litterarum...
3. De Ord. II, 26: ad discenduni item necessário dupliciter diicimum, auctoritate atque
ratione. Tempore auctoritas, re autem ratio prior est.

PARTE UM
0 AMOR COMO DESEJO (AMOR QUA APPETITUS)

1 - A ESTRUTURA DO DESEJO

J «Amar não é mais do que desejar (appetere) uma coisa por si mesma.» E, indo um pouco mais
longe: «Pois o amor é desejo (appetitus)1.» Todo o desejo está ligado a qualquer coisa
determinada que deseja. E este objecto do desejo que, antes de mais, fez nascer o desejo,
estimulou-o, deu-lhe a sua direcção. E determinado por aquilo que o determina, pelo que é
predestinado ao seu fim2. Não encontra este determinado espontaneamente; é-lhe sempre dado
antecipadamente; o desejo dirige-se para um mundo conhecido. A coisa (res) conhecida é um
bem (bomim), pois a ela se aspira por ela própria (propter se ipsam). Devido a esta tensão
contra si mesma, a coisa é para o amor independente das suas relações com outros objectos, e
apresenta apenas o bem que lhe advém como algo particular, isolada do resto. O caracter
específico deste bem é o de não ser possuído. Imediatamente após ser possuído, o desejo acaba,
a não ser que exista o perigo de perder o que foi adquirido, nesse caso, o desejo de possuir
(habendi) transforma-se em medo de perder (metus amittendi). Devido ao facto de aspirar ao
bem e não a um objecto qualquer, o desejo não é apenas orientação para... mas é também
retrospectividade do por. Está ligado por um movimento de retorno ao homem que conhece o
bem e o mal (malum) do mundo e que se esforça para viver feliz (beate vivere). É a partir desta
atitude fundamental, o querer ser feliz (beatum esse velle)'\ que é determinado o respectivo bem
de cada desejo. O desejo, ou ainda mais o amor, é a possibilidade dada ao homem de entrar em
posse do seu bem4.
Este amor transforma-se em medo (metus)'. «As pessoas não têm dúvidas de que o medo tem
apenas por objecto a perda do que amamos, se o obtivemos, ou a sua não-obtenção, se o
esperamos obterh» Do querer possuir e do querer manter o desejo nasce o medo da perda. No
instante em que é possuído, o desejo transforma-se em medo. Assim como o desejo deseja o
bem, o medo receia o mal. O mal, que afasta o medo6, ameaça a vida feliz que consiste em
possuir o bem. Enquanto o homem deseja as coisas temporais (res temp orales), expõe-se
continuamente a esta ameaça, e ao desejo de possuir corresponde incessantemente o medo de
perder. Os bens temporais nascem e morrem independentemente do homem que a eles está
ligado pelo desejo. Constantemente ligado pelo desejo e pelo medo de um devir' do qual se
desconhece o que trará, o presente perde toda a quietude, toda a possibilidade de prazer e, na
mesma medida, a sua significação original8. Todo o presente é determinado, não apenas pelo
futuro como tal (isso também pode acontecer em Santo Agostinho, como veremos adiante), mas
também por acontecimentos precisos, temidos ou esperados do futuro, que o indi-
víduo deseja e procura adquirir ou de que foge e afasta do seu caminho. A beatitude (beatitudo)
consiste na posse (habere, tenere) do bem e mais ainda na segu-\ rança da não-perda. Esta
significação negativa da segurança, só ela assegura a posse real do bem, podendo ser
compreendida apenas a partir da determinação concreta do próprio bem. Bem e mal são bom e
mau para aquele que quer viver feliz. Santo Agostinho mostra que todos os homens querem
viver felizes, mas o que cada um entende por felicidade e pelos bens que o levam à felicidade,
que portanto deseja, é algo de diferente9. No entanto, todos estão de acordo em relação a este
querer viver. Por isso, a l^jVida feliz (beata vita) é a verdadeira vida compreendida de maneira
diferente por cada um. A vida constan-temente ameaçada pela morte não é vida, uma vez que
nunca deixa de correr o risco de perder o que é, aquilo que até sabe que tem de perder um dia.
«A vida que
- é eterna e feliz é a Vida propriamente dita1".» A vida feliz encontra-se lá onde o nosso ser não
terá morte". Portanto, o bem ao qual o amor aspira é a vida, e o mal que o medo afasta é a
morte. A vida feliz é a vida que não pode ser perdida. A vida terrestre é uma j/ morte vivente
(mors vitalis) ou então uma vida morre-1 doura (vita mortalis), uma vida posta à determinação
da morte13. Esta vida torna-se um constante medo. «Mas se se tem medo de ver pôr termo à
saúde e à vida, isso já não é nem nunca mais será a vida. Pois isso já não é mais viver sem
cessar, mas temer sem cessar15.»
Todos os medos face a males precisos são regidos por este medo fundamental. A morte, pondo
fim à vida, põe através de si própria termo à constante \ inquietação da própria vida, e isto tanto
na inquie-
tação da beatitude terrestre e passageira como na vida após a morte14. Onde não há a morte, e
consequentemente futuro, é possível viver sem a angústia do cuidado (sine angore curae)v\ O
medo da vida antes da morte é medo dela mesma enquanto vida que deve morrer e que, enquanto
tal, permanece constantemente no medo10. Assim, aquilo em que se crê torna--se a própria
crença1'. Aí onde não se pode perder nada, reina a segurança sem medo da posse. É esta
ausência de medo que procura o amor. O amor enquanto desejo é determinado pelo objecto a
que \ aspira. Este objecto é ser livre do medo (metu cmre)iS.
Poder perder (amittere posse) é, assim, o ponto de partida para a determinação do amar
(amandum)^ porque a vida não pára de se perder enquanto se aproxima da morte .
Assim, o que faz o bem do amor é o não poder ser perdido20. Já vimos que o bem do homem,
que deve conduzi-lo à beatitude, é essencialmente definido a partir destes dois conjuntos
heterogêneos. Por um lado, o bem é aquilo a que aspira o desejo, portanto, é qualquer coisa de
útil, que se pode encontrar no mundo, que se espera poder possuir; por outro lado, o que
determina o bem é retirado do medo da morte, do receio que a vida tem do seu próprio
aniquilamento. Todos os outros acasos da vida que o homem não domina são remetidos ao poder
(potestas) que não se tem sobre a própria vida21. Porém, do mesmo modo, a morte é
interpretada em dois sentidos: é por um lado o indicador daquilo que a vida não pode dispor de
si mesma; por outro lado, é o mal (malum) extremo que pesa sobre a vida, prejuízo absoluto. A
morte é este mal extremo, na medida em que se funda sobre a vida do exterior, e a vida foge-lhe,
ainda que, em cer-
tas expressões, como «vita mortalis» a vida é encarada, à primeira vista, como mortal. A
consciência deste poder que falta, através do qual a vida é entendida à
primeira vista como mortal, contradiz a definição de amor como desejo, uma vez que o desejo
enquanto aspiração visa, pelo seu próprio sentido, qualquer coisa de acessível, mesmo que a
não consiga alcançar.
Se a morte é vista apenas como mal extremo, a
unidade da argumentação é preservada (amor qua appetitus)12. Mas o duplo ponto de partida
de toda esta problemática surge claramente na dupla interpretação da morte. Retenhamos
provisoriamente o seguinte: a vida visa qualquer coisa que, em princípio, não tem capacidade
de atingir, visto que é determinada pela morte, e visa-a como qualquer coisa de que poderia
dispor.
tantemente a vida, é a morte. Todo o presente do homem, determinado por esta iminência, é de
facto
Todo o bem ou mal é iminente. O que é iminente, em última análise, este para o qual se
encaminha consyum contínuo ainda-não. Todo o ter é dominado pelo ./medo, todo o não-ter pelo
desejo. O faturo em que o ■ homem vive é sempre, portanto, o futuro esperado, ; inteiramente
determinado pela aspiração ou o medo
presente. Mas toda a realização do desejo é apenas aparente, uma vez que, no final, a morte
ameaça, e
^com ela, a perda radical. Isto significa que o ainda-não do presente constitui aquilo que
permanece sempre '■ para temer. O devir só pode ser ameaçador para o ^presente. Só um
presente sem devir é que não é mutável (mutabilis), inteiramente ao abrigo do perigo. É num
presente deste tipo que vive a posse tranquila; esta posse é a própria vida, visto que todos os
seus bens estão apenas aí para a vida, para a proteger da sua
morte, da sua perda. Este presente sem devir, que já não conhece bens (bona)> sendo ele
mesmo o bem absoluto é a eternidade.(Esta eternidade é
o que não se pode perder contra a sua vontade (invi-tus amittere non potes).) O amor, que, entre
as coisas 4- terrestres, tende a ser qualquer coisa de firme, de que se pode dispor, não passa de
uma ilusão, uma vez que tudo está consagrado à mortalidade. O amor inverte--se nesta
decepção, e não há determinação que não seja exclusivamente negativa; nada mais há a amar do
que a ausência de medo, e esta só existe na perfeita quietude, que nenhum acontecimento que o
futuro reservasse conseguiría abalar. O bem, que só deve ser j compreendido como um correlato
do amor definido * como desejo, e que para a vida mortal não tem senti-X do, é projectado para
fora, começando após a morte, , é o presente que constitui o futuro absoluto da vida ''■terrestre.
Mas este bem, enquanto desejado, encontra-se tanto diante disto, como qualquer bem esperado
do futuro, como perto da vida, conduzindo até este futuro absoluto toda a sua expectativa, não
pode mais ser desiludido. No entanto, o bem conserva a sua ne-gatividade e não tem conteúdo, é
a quietude pura, o puro me tu carere, que é visado. Negatividade e ausência de conteúdo
resultam do facto do desejo não ter sentido para uma vida essencialmente compreendida a partir
da morte, e para quem quiser dispor—do. sbu objecto isso não é mais do que um
simpleíabsurdoT) j E a partir do conceito de bem assim definiclo, a partir da eternidade, que o
mundo e a temporalidade são desvalorizados e relativizados. Todos os bens A deste mundo são
cambiantes, mutáveis (mutabilia)\ ^uma vez que não têm permanência, não são apropriados para
serem ditos34. Não podemos confiar nisto.
J. E mesmo se tivessem uma permanência, é a própria ! vida humana que não a tem. Em cada dia
que passa, perdemos a própria vida; vivos, caminhamos em direcção ao nada"\Só aquilo que é
presente existe -f' realmente2í Mas a vida é sempre ou já muito ou ainda \ nada2'.
> Já vimos que o amor visa um bem que, devido ao próprio sentido que faz este bem, se
encontra fora deste visar. Mas ainda que tudo o que vem do exterior para a vida só seja
desejado pelo amor da vida, é um facto que é à vida que se deve aspirar. A vida torna-se ela
própria o bem ao qual se aspira. Enquanto verdadeira vida idêntica ao ser (esse), tendo por isso
uma permanência, o bem encontra-se projec-tado na eternidade e torna-se assim no que é
iminente. Exteriormente um bem, mesmo que seja o mais perfeito. Designar Deus como coisa de
que é preciso fruir (res qua fniendum est2S), representando a identidade do ser e do viver, e
sendo ao mesmo tempo a coisa eterna que se deseja, é tanto característico como enganador.
Portanto, a vida é uma coisa que desaparece do mundo, uma coisa que não tem permanência. E
considerada do ponto de vista do seu conteúdo «objectiva» e mundana, está de fora, e mesmo
fora dela própria, como aquilo que sobrevive ao mundo e que, mudandor.se fixaz ao que não
muda para obter a sirTpermanêncup É a eternidade, o objecto do dcsejo/qTie a harmoniza. Tal
como para o desejo, que só é determinado por aquilo que deseja, Santo Agostinho determina a
vida geralmente pelo objecto do seu desejo. Ela deseja os bens que permanecem no mundo e
desse facto advem um bem que está no mundo. A coisa (res) tem permanência, amanhã é a
mesma que hoje. Á vida desaparece de dia para dia uma vez que se vai precipitando para a
morte; não
tem permanência, não permanece idêntica a si mesma , nao esta sempre presente, nunca e
verdadeiramente um facto, porque é sempre um ainda--não ou um não-mais. Nenhum bem
terrestre conseguiría mantê-la no seu estado transitório, visto que o futuro lhe arrancará tudo, e,
perdendo-se na morte, perderá tudo o que tinha chamado a si. E verdade que, enquanto obra de
Deus, todos os bens mundanos são bons. E a vida que, prendendo-se a eles para lhes roubar o
futuro em seu benefício, os transforma em coisas efêmeras, em coisas que mudam, em
mittabilia. «Chama-se «mundo», com efeito, não apenas esta criação de Deus, o céu e a terra
(...) mas também todos os habitantes do mundo são chamados «mundo» (...) Todos os que amam
o mundo são portanto chamados “mundo”'10». O mundo, enquanto mundo terrestre, não é apenas
constituído pelas obras de Deus, mas também pelos «que amam do mundo» (dilectores mimdi),
os homens, e o que amam os homens. Apenas o amor pelo mundo faz de coelum, et terra o
mundo, uma coisa mutável. A aspiração à durabilidade, que foge à morte, está ligada justamente
ao que desaparece com a morte. O amor dirige-se para um falso objecto (amatwri), esse mesmo
que ilude constantemente a sua aspiração. O amor justo contém precisamente no seu objecto o
justo amatum. O homem mortal, que é posto no mundo - mundo presentemente enquanto coelum
et terra - e que o deve deixar, faz do mundo, a ele se prendendo, um objecto condenado a
desaparecer na morte. A identificação específica entre terrestre e mortal só é possível quando
\^o mundo é considerado a partir do homem, aquele que vai morrer (moriturus). A este falso
amor que se prende ao mundo e que, por esse motivo, o constitui, e que, como tal, é mundano,
Santo Agostinho chama
^(cobiça (cupiditas), e ao amor justo que aspira à ^eternidade e ao futuro absoluto, caridade
(caritas).

2 - CARIDADE E COBIÇA (CARITAS

ET CUPIDITAS)
Portanto, estes dõis conceitos são, como se tentou mostrar através do que acima foi dito,
construídos a partir do amor definido como desejo, próximo da orexis greco-aristotélica.
Caridade e cobiça diferenciam-se pelo objecto que visam, e não pelo como do próprio visar31.
Descrevem desde logo a pertença a qualquer coisa e não à atitude, o habitus. O homem é aquilo
que se esforça por atingir32. O amor é a mediação entre o que ama e aquilo que ama; o que ama
nunca está isolado daquilo que ama, isso pertence-lhe3'. O desejo daquilo que é da ordem do
mundo é mundano, pertence ao mundo. O que cobiça decidiu ele próprio, através da sua cobiça,
a sua corruptibilidade, enquanto a caridade, visto que tende para a eternidade, torna-se ela
própria eterna. Se é verdade que todo o homem particular vive isolado, ele tenta no entanto
ultrapassar sempre este isolamento através do amor; mas também não é menos verdade que a
cobiça faça dele um habitante deste mundo ou que a caridade o obrigue a viver num futuro
absoluto, mundo que ele habitará. Se há vida na caridade, o mundo transforma-se num deserto
em vez de um em casa, está vazio e é alheio àquilo que o homem procura34. Mas porque é que o
mundo pode ser um deserto para o homem que procura? Como e por que o homem pode viver no
questionamento que é a sua procura, sem nada exigir ao mundo?
A constante relação estabelecida com um objecto pode ser suprimida pela presença perto do
que é desejado. Esta presença é a quietude (quies), manter o que se deseja. A posse apenas
supera verdadeiramente o isolamento e harmoniza a beatitude". Santo Agostinho chama a esta
ultrapassagem o isolamento inerência (inhaerere). Níijverdad^este termo apenas se encontra
como ifíerência a.DcusjA'quemdizcr que na-tei-ca^ja se pode^sair-xU^abandnno de Deus?)Este
isolainent© que é necessário"süpi'im-ir--é-ser’^separado1 Alors'euproprio bem. A verdadeira
beatitude "é^e^tar satisfeito junto do objecto desejado, a supressão da separação. A cobiça visa
o que está de fora (foris), fora de mim (extra me)>b. Não se quer a si própria, quer o mundo, e
possuindo-o, quer ser ela própria -mundo. O facto de cobiçar mostra bem que, à partida, a
cobiça não é isso. A vida, procurando o mundo, procura o seu bem próprio. O isolamento
original da vida que deste modo fundamenta a busca, é portanto a separação do que a pode
conduzir à beatitude, por conseguinte, ao bem, e também, já o vimos, a si mesma. Todavia, como
a cobiça visa o fora de mim (extra me)y falta-lhe precisamente este bem. Como o bem lhe é
exterior, escapa ao seu poder, assim como viver não está no seu poder, o que significa que a
cobiça está à mercê do que é desejado, o que escapa principalmente ao seu poder. A vida,
desejando as coisas de que não é dona, que pode perder contra a sua vontade (invitus amittere
potest)^ depende destas coisas; logo, perde deste modo a sua autonomia. Que a vida,
considerada como separada daquilo de que tem necessidade, deseja, prova que não é autônoma
por si própria e que não se satisfaz a si mesma (sibi sufficit). O isolamento não é sinônimo de
autonomia. A vida quer continuamente sair deste isolamento através do amor e passar pela
caridade e cobiça, justamente porque esta auto-suficiência lhe falta. E na sua procura daquilo de
que necessita para poder simplesmente ser, a vida esbarra com o que está de fora, o mundo. No
desejo, ela tem necessidade do mundo e de dele se tornar escrava. Assim, encontramos
constantemente em De lib. arb. este par de opostos: cobiça (ou libido) e livre-arbítrio’', sendo
este definido a partir do ideal de auto-suficiência'^. O sentido do de fora é por isso suprimido,
significando precisamente a pertença ao fora de mim (extra me)‘ que encontra sua expressão no
medo. «Tudo o que escapa ao nosso poder, não se pode amar nem fazer grande caso disso (...)
Não amando estas coisas, não se lamenta a perda, que é considerada com um desprezo total39.»
O medo que, como vimos, exprime na sua forma mais radical a falta de poder sobre a própria
vida, é o fundamento existencial do ideal de auto-suficiência. Esta auto-suficiência exprime-se
no desprezo, que já não tem necessidade nenhuma de ser um desprezo cristão. Neste contexto,
Deus surge como suimnum esse, a plenitude do ser, o absolutamente autônomo que não precisa
de nada, isto é, que não depende de um mundo, de um de fora que lhe seria por princípio
exterior: «E ele (Deus) não recebeu nenhuma ajuda na sua obra de criação, como se não fosse
suficiente a si mesmo40.»-Esta determinação ontológica de Deus poderia corresponder à
determinação teológica do todo-poderoso (pinnipoten-tiaf 43.
Como vemos, o que é preciso amar é, tanto depois como antes, a ausência de medo, assimilada
à auto--suficiência; o que é verdadeiro não é o que não tem necessidade. A atitude concreta que
daí deriva é a ausência de medo. O que especifica o ser humano é precisamente o medo que
procede da dependência. A libido não é má porque o de fora é mau, mas sim porque é
dependência daquilo que por princípio não está no seu poder; é má, isto é, não livre. Isto não
contradiz, no entanto, o que foi dito acima: o desejo é determinado pelo seu objecto, que se
transforma, segundo os casos, em cobiça ou caridade. Mas só visando o de fora que assim faz o
mundo, e, ao mesmo tempo, o torna mau. Não é pelo facto de ser amado que o mundo é mau e
que o desejo se transforma a si mesmo em cobiça, porque orienta-se para o de fora; é este, o de
fora enquanto de fora, que o torna escravo. A liberdade é ser livre do medo e reside na
autonomia. Veremos mais tarde que a caridade é livre precisamente porque não tem medo
(timorem foras mittit).
É preciso ultrapassar a pertença ao mundo concretizada na cobiça, porque ela está sob a
dominação \ do medo, e só pode ser ultrapassada pela caridade. ^Vivendo na cobiça, o homem
torna-se mundo. Santo Agostinho usa o termo dispersão (dispersio) para exprimir este ser-
mundo. Tal como o desejo, nessa dependência do fora de mim (extra me), daquilo que
precisamente eu não sou, passa ao lado do bem, também a dispersão pretende hoje alcançar uma
coisa, amanhã uma outra, por outras palavras, o múltiplo43. O desejo vive no divertimento - a
fuga de si, a vontade de se fixar ao que aparentemente tem permanência44. Esta perda
caracteriza-se pela curiosidade (curiositas), a concupiscência do olhar (concupiscentia
ociilorum), que procura um saber inútil4'. Ela exprime de maneira, por assim dizer habitual, a
dependência em relação ao mundo, a insegurança e a futilidade do humano que vive longe de si
próprio (a se), que foge
de si mesmo. A esta fuga perante si próprio, Santo Agostinho opõe o se quaerere^ o procurar si
mesmo K (quaestio mihi factus sum)46. Neste regresso a si, ele A^encontra Deus:
«Efectivamente, o que é que se quer dizer com falar de si mesmo através de Ti, senão aprender
a conhecer-se a si mesmo? E eu procuro-Te fora de mim, e não encontro o Deus do meu
coração. Pois ele estava dentro e eu de fora. Em seguida, exortado a regressar a mim mesmo,
penetrei no meu próprio interior, sob a Tua condução; e isso foi-me possível porque Tu vieste
ajudar-me4'.» Este encontrar-se a si mesmo e encontrar Deus funcionam conjuntamente. Do
mesmo modo, não posso encontrar--me a mim mesmo sem a ajuda de Deus. Mas a partir do
momento em que começo a procurar-me, já não pertenço ao mundo - como o demonstra
claramente aquilo ficou dito - mas a Deus; isto compreende-se melhor com o que se segue.
«Quando amo o meu Deus, é a luz, a voz, o odor (...) do meu ser interior que eu amo. Lá onde
resplandece a parte da minha alma que não circunscreve o lugar, onde ecoa aquilo que o tempo
não leva (...) e onde se fixa o que o contentamento não dispersa. Eis aquilo que amo quando amo
o meu Deus48.» «Ligai--vos o mais possível ao amor a Deus para que, do mesmo modo que
Deus é eterno, também vós permanecereis eternos, pois tal é o objecto do amor e tal *Jé quem
ama49.» Deus é amado como luz, como voz, como odor do homem interior. E amado como
aquilo que, do homem interior, não é arrebatado pelo tempo. O amor concede pertença, e o amor
de Deus concede a pertença à eternidade. O homem ama Deus como aquilo que é eterno e que
não é, como aquilo que lhe pertence e que nunca lhe poderá ser arrebatado. O mundo é-lhe
arrebatado na morte. O que é eterno, o que permanece, para ele é o interno (internum)^.
Encontrando Deus, o homem encontra o que lhe falta, aquilo que ele precisamente não é - eterno.
O justo bem do amor é o eterno. Deus é o summum bonum, não apenas um bem qualquer, mas o
correlato do desejo que tende para o seu bem. Convém ter e manter este bem supremo'1. No
amor por ele, o homem ama-se justamente (recte) a si mesmo. E apenas na posse e na fruição
(frui) da eternidade que o homem é verdadeiramente, ou seja, imutável. Como ele não tem esta
eternidade, caminha para ela, e, deste modo, para si mesmo. Amar-se justamente (recte), é
desejar-se. Não a si, o homem do presente condenado a morrer, mas àquilo que fará de si um
vivente para sempre. Na sua procura de si mesmo, o homem descobre que é mortal, efêmero e
mutável’2. Não se pode fíar no seu si próprio. Ele não se mantém numa presença efectiva total a
si mesmo. E apenas na relação com Deus e num devir absoluto que o si mesmo encontra uma
permanência". O amor a si mesmo, para o sujeito que sobrevive no mundo, transforma-se em
ódio de si mesmo (odium sui), e isto não porque ele teria orgulho (Kocu/ôofiat, São Paulo), mas
porque este amor de si mesmo corre constantemente perigo de se perder. A vida terrestre é
determinada pela morte, pelo seu fim, pelo facto de ser efêmera e mutável; o bem da vida não
pode ser aí encontrado. Ele é, pois, projectado para fora, no futuro absoluto desejado. Já vimos
anteriormente que este faturo não é estruturalmente distinto daquilo que, de maneira geral, é
esperado da vida, é desejado como acontecimento que há-de vir, e, por este facto, enquanto
correlato do desejo, torna-se um bem que vem de fora. Pois, neste contexto conceptual, a
caridade é, como todo o amor, pela sua estrutura, um desejo que apenas o objecto desejado
distingue da cobiça'4. Assim, a sua própria vida, por mais que seja feliz (beata vita)y torna-se
um bem esperado do de fora. A vida, tal como se desenrola no presente hic et nunc, é
desprezada. Perde o seu sentido e o seu peso face a essa verdadeira vida projectada para o de
fora, no devir absoluto, que somente ela persegue a vida terrestre no seu movimento.
No presente, o bem supremo é possuído na tensão para ele. Nesta tensão, nesta procura,
esquece-se o presente e de algum modo produz-se o impasse. O presente não é mais que o
desejo daquilo que está para vir, aquilo que será apenas presente eféctivo, um eterno dhoje”. O
esquecimento do presente, comparável à transformação da vida presente numa expectativa da
vida futura56, é o esquecimento de si mesmo. «E é preciso amar Deus de tal maneira que, se for
possível, esquecermo-nos-emos nós mesmos5'.» Este esquecimento é o próprio esquecimento da
vida humana, na medida em que ela deve fazer do desejo o seu modo fundamental, e é mais do
que um simples esquecimento - é um esquecimento «próximo» de qualquer coisa, próximo
daquilo para que se caminha. O esquecimento de si próprio próximo do mundo'8 é dispersão e
só depois de me assenhorear desta dispersão é que posso pôr-me à procura de mim mesmo e da
questão que sou para mim. Mas o esquecimento enquanto tal é um fim existencial. Encontrá-lo é
também encontrar Deus. No desejo de eternidade que é amar, esqueço-me de mim mesmo. O
desejo, que encontra a sua origem ria retrospectiva em si, pela correlação com a vontade de ser
feliz, transforma-se e
esquece-se naquilo que deseja. Aquele que deseja já só x existe no desejo. Aquele que ama na
caridade já só está
na eternidade futura. Neste esquecimento, ele deixa de ser ele próprio, um ser particular. Perde
a sua modalidade ontológica de ser mortal, sem ser Deus ou eterno. Ele está na modalidade
ontológica do «desde-para», onde o «para», a direcção, faz esquecer «desde». Neste
esquecimento do «desde», do ponto de partida, o passado também é esquecido. Na tensão
(extentus) para o que está antes dele (ante) e que ao mesmo tempo já não existe (nondum),
esquece e despreza a diversidade do mundo e o seu próprio passado mundano. O amanhã da
temporalidade torna-se necessariamente, a partir de um futuro, um presente, e, depois, um
passado. Mas este futuro absoluto é o iminente absoluto que nenhuma atitude humana pode fazer
entrar na mortalidade humana. Enquanto iminente, o futuro só pode ser temido ou esperado59. E
para ele que o homem caminha que o futuro seja absoluto, isso não permite nenhuma dispersão
ao homem (non distentus sed extentus)60. Este ser que caminha, a verdadeira inerência
(inaherere) a Deus, é alcançado no \ esquecimento de si, no facto de passar para além de si -
de transcender. Esta ultrapassagem é um salto por cima do presente para o futuro absoluto.
«Ninguém o \alcança (Deus) sem se ultrapassar a si mesmo61.» A interrogação ansiosa sobre a
permanência do seu próprio ser leva a ver nele apenas o declínio, a consumpção pelos
tempos62. Deste modo, a seguir a uma longa explicação do non esse do tempo: «então, para
existires tu também, transcende o tempo65.» Esta trans-. * cendência consiste precisamente em
transcender a temporalidade. Esquecendo o tempo, esquecemo-nos da nossa mortalidade,
esquecemo-nos a nós próprios
’-..para a eternidade. A passagem é isso - o esquecimento. E a passagem de si para o que está
fora de si. Esta passagem é estruturalmente sempre necessária desde que o amor seja concebido
como desejo. «Qual é, então, esta passagem? A alma esqueceu-se ela própria, mas amando o
mundo; que ela se esqueça, mas amando aquele que criou o mundo64.» A passagem vai directa-
mente daquilo que é transitório, daquilo que está permanentemente exposto ao perigo da perda,
para aquilo que não pode ser perdido6'. Como tal, o humano é ultrapassado.
A reversão do amor a si é uma renúncia total a si por inerência a Deus, por outras palavras, o
passar por si compreendido como esquecimento de si, só é compreensível a partir do amor-
desejo, dessa posição específica do homem face ao seu bem próprio, que, correlato do desejo, é
procurado por princípio fora da vida humana. Mesmo vivendo na caridade, caminhando para o
devir que deseja, o homem permanece isolado \ daquilo que lhe dá o seu ser próprio, permanece
na ^necessidade. A caridade faz a ligação entre homem e Deus do mesmo modo que a cobiça
liga o homem ao \ mundo. Mas é apenas uma ligação, não é a expressão de uma pertença
originalmente dada. No entanto, todo o desejo é determinado pelo seu objecto e está a ele
submetido. Esta submissão ao objecto desejado mostra que o caminho para si mesmo, cujo
termo remonta ao tempo da autarcia grega, transforma-se nessa renúncia a si «pseudocristã» (a
escolha deste termo só será justificada na segunda parte). A procura do bem é a procura de uma
vida que não conhece a morte, a realidade plena da sua própria vida que está ao abrigo de toda
a perda66. Esta vida sem morte é
Deus, Deus amado e procurado enquanto eternidade. Esta eternidade é o futuro absoluto: se o
homem deseja a realidade plena da sua própria vida, procura--se e deseja-se como porvir e não
ama o eu na primeira pessoa, que encontra como dado na realidade terrestre. O ódio a si e a
renúncia ao si levam ao eu presente, dado, mortal. O critério do amar justo ou mau não é a
renúncia ao si absoluto mas uma renúncia pelo amor do eterno que nos espera: «Abstém-te de
amar nesta vida, para não perderes a vida eterna (...) Se oca-sionalmente amaste mal, então
odiaste; se odiaste com xJ conhecimento de causa, então amaste6'». Amor de Deus e amor a si
caminham lado a lado e não se contradizem. No amor de Deus, o homem ama-se a si próprio, ao
homem que há-de vir, na pertença desejada a Deus, logo, a si mesmo enquanto aquilo que será \
eterno68. Esta renúncia a si é pseudocristã não porque não procede da consciência do seu
próprio ser de criatura nem da insuficiência de tudo o que é humano que Deus chamou à
obediência da fé, e pelo que, desde logo, toda a autonomia é orgulhosa (São Paulo), mas porque
ela é a última consequência, ultrapassando-se a si mesma, do amor, do desejo, da procura do
seu próprio bem. E é apenas porque o homem não constitui ele próprio um bem que lhe permite
ser feliz69 que não é auto-suficiente, que deve procurar-se e que nessa procura o bem leva-o a
esquecer--se de si próprio. Ele pode perder-se se se esquecer nos bens deste mundo. O desejo
é, pois, a estrutura fundamental do ser que não se possui a si mesmo e que corre o perigo de se
perder'0. No abandono de Deus, o homem é empurrado para o fora de si (extra se) e perde-se
aí'1.
'■i;l O amor espera encontrar com a eternidade a sua \ própria realização. Esta realização é ver
(videre), uma realização específica, e, para Santo Agostinho, um modo excepcional de a ter (a
posse). Este ver torna-se fruição (frui). Na quietude absoluta e na estabilidade da vida eterna, a
relação com Deus é de tranquila fruição. E apenas nesta fruição que Deus existe
verdadeiramente para os homens. Para São Paulo, o amor (a caridade) é a única atitude que se
encontra fora da alternativa do crer e do ver, e é por isso na terra já o «vínculo da perfeição»; o
amor só anula verdadeiramente o facto de Deus ter abandonado os homens; dito de outra
maneira, o amor não é desejo mas sim expressão da pertença a Deus, e «nunca acaba», porque é
nele e apenas nele que o ser-criatura do homem, o seu ser-mundo, é verdadeiramente
ultrapassado. Não caminha para aquilo que ama e não acaba nele - transforma-se nele próprio.
A renúncia a si não é pois aqui o esquecimento de si, mas só é efec-tiva e eficaz na consciência
do pecado, na consciência do passado pessoal de onde somos resgatados. Para Santo Agostinho,
ou bem a caridade aumentará uma vez que verá'2, e, logo, tornar-se-á fruição, ou então, ele di-lo
também explicitamente, acabará, uma vez s que o homem terá, manterá, verá'o que ele ama e
'Mdeseja aqui, e de que fruirá'3. O agape (àyoOTT|) não tem em Santo Agostinho o significado
capital que tinha para São Paulo, onde era entendido como a possibilidade da perfeição já neste
mundo. Na fruição, no tranquilo estar-perto-de, o amor acaba, encontra a sua realização. Todo o
amor é tensão dirigida para essa realização. A realização é a beatitude (beatitude), que não
consiste em amar mas em fruir daquilo que é amado e desejado. Todo o amor é tensão dirigida
para essa fruição. «No entanto, ninguém é feliz se não fruir do que ama. Mesmo aqueles que
efectivamente amam o que não é preciso amar não acreditam em obter felicidade do seu amor
mas da sua fruição'4.» Fruir é estar perto do objecto desejado, firme e sem inquietude. Nesta
proximidade perto-de, a procura é levada até ao fim, já não procura mais nada, pelo contrário,
permanece aí. Uma coisa é desejada por ela mesma quando perto dela a procura se apaga.
«Fruir, com efeito, consiste em ligar-se ao amor de uma coisa por esta mesma coisa7’.» O fim
do amor é o bem junto do qual justamente o amor deixa de ser enquanto tal. Existe apenas para o
seu fim, a fruição do bem, perto da qual acaba. O seu fim é tanto uma submissão ao mundo - que
não é um verdadeiro fim, visto que a morte fará sempre perder também esse mundo, recordando-
o, então, da sua tranquila submissão - como um ser-na-eternidade, um prazer tranquilo longe de
qualquer acto.
A vida humana, cuja beatitude é projectada pela «passagem» e pelo esquecimento para fora de
si mesma no futuro absoluto, é tensão no por-amor-de (propter). Todos os bens terrestres são
compreendidos a partir deste fim último do amor pelo qual apenas ele existe - o amor só o visa
a ele, e só se apoia sobre o resto, os bens terrestres, por causa do amor deste fim. Este por-
amor-de exprime a relação com tudo o que há para ser amado, e existe apenas através do bem
supremo, porque não há este modo de relação com os outros bens, dado que, acabando com o
amor, quebra todos os laços. Este isolamento absoluto do bem supremo é expresso neste por-
amor-de-ele-próprio (propter se ipsum)', este inclui ao mesmo tempo uma negação deste
propter que indica um sempre-mais--longe. A fruição só pode explicar-se a partir desta
determinação negativa, pois situa-se fora de todas as categorias humanas e terrestres. Não é
para os outros, é apenas para si. Todo o amor está nesta tensão do por-amor-de. Se ama o bem
supremo por si mesmo e os bens, é por esse mesmo facto que eles o levam ao bem supremo. A
via da beatitude que é o amor vai do uso (uti) à fruição. O objecto do uso determina-se do
próprio objecto da fruição (fniendwm). «Aquilo de que devemos fruir faz-nos felizes. Aquilo
que devemos usar ajuda-nos no nosso esforço para alcançar a beatitude'6.» A caridade, ligada
ao bem supremo, só tem relação com o mundo enquanto o mundo serve o seu fim último. No uso
do mundo, o mundo é posto em relação com Deus". Utilizado, o mundo perde a sua autonomia
para o homem, e, subitamente, também o risco de se ver votado à cobiça do homem. A justa
relação com o mundo é o uso: «E preciso usar o mundo e não fruí-lo78.»
A caridade, tomada no por-amor-de (propter), exprime-se no uso e na fruição justos. «Quanto à
própria caridade, não podia ser designada de forma mais justa do que pela expressão por-amor-
de-ti79.» Apodera-se intuitivamente de maneira justa deste propter. Por isso, a pertença do
homem ao mundo é superada - o mundo não é mais do que um mundo utilizado que, subitamente,
pode novamente existir, precisamente como mundo entregue ao uso. A vida determinada pela
caridade tem um fim que se situa por princípio fora do mundo e, portanto, também fora da
própria caridade. A caridade não é mais do que o caminho para este fim último, a expressão
desta tensão do propter. Por esta orientação para um fim, ela
possui a eternidade a título provisório, e o mundo, objecto de uso, perde o seu caracter temível,
e, assim relativizado, reencontra o seu sentido. Todo o amor enquanto desejo é determinado por
um fim; encon-tra-se incessantemente na alternativa da fruição e do uso*10. A caridade só deseja
a fruição81, ela não é - a fruição, a proximidade calma perto do objecto dese-\ jado, a
verdadeira perfeição (perfectio) só se encontra no A devir82. O que a caridade deseja é eterno
e, por isso, advem absolutamente do medo. Uma vez que a eternidade é um bem futuro para o
amor do qual apenas a vida terrestre e a sua procura têm um sentido, a morte é ela própria
relativizada. A morte está morta83, já não tem qualquer significado para o vivente. Não mais
temê-la é alcançar a liberdade, alcançar um ser \Jivre do medo e da perda84. Devido ao facto de
a própria vida, enquanto verdadeira vida, ser projectada para fora dela, no devir, como um bem
a alcançar, reencontrou o poder em si mesma precisamente enquanto de-vir. O seu poder
(potestas) na terra consiste em poder desejar. Já vimos anteriormente que esta projecção no
futuro absoluto só é possível porque a vida é considerada como correlato do desejo. O
problema que põe esta impotência da vida a dispor de si mesma, introduzida pela experiência
da morte, é portanto aqui «resolvido» pelo conceito de caridade. A caridade não conhece mais
o medo porque também já não conhece mais a perda e porque, neste contexto, a morte já só
aparece como o mal extremo de uma vida determinada pela cobiça. Mas para uma vida
determinada pela caridade não se trata simplesmente de se acomodar à morte, mas também à
vida8'. A caridade acomoda-se na vida e no mundo através do uso
* livre. Esta liberdade é ser livre do medo e só surge na eternidade que está por vir86. A
definição negativa da .-liberdade como um ser-livre-de responde ao ideal de "" auto-suficiência
anteriormente evocado. Mesmo na caridade como tensão para, a vida humana não é
independente, permanece no medo de perder o bem supremo ao qual aspira. Toda a vida humana
é aqui, na terra, determinada pelo amor e pelo temor (timor)*'. Libertos, tornamo-nos servos da
caridade (servi caritatis). O medo, de onde brota a caridade, tem por tarefa, enquanto medo-
casto (timer castus), prevenir a cobiça. A própria cobiça conhece o medo a Deus como medo
do castigo, assim como também conhece a fé em Deus, mas não como esperança e amor. Este
medo que não vem do amor não é o medo justo. O medo casto teme perder aquilo para o qual se
tende, pertence legitimamente à caridade88. A liber-da-de da caridade é assim, uma vez mais,
uma liberdade futura, e para que ela seja de novo livre na terra, terá de pertencer ao objecto
desejado comunicado pelo amor. A realização do amor é a ausência de medo, enquanto que a
realização da cobiça está precisamente ligada ao medo contínuo89, que a impele de um objecto
para outro na dispersão, e que a conduz irremediavelmente a uma escravatura, a uma servidão.

3-0 AMOR ORDENADO

(ORDINATA DILECTIO)
O mundo é compreendido a partir desta liberdade à qual se aspira e que é efectiva na caridade.
A relação com o mundo é uma relação de uso, uso livre, que não depende do mundo. Tomada
nesta estrutura do por--amor-de (propter), a sua significação só.se mantém nesta finalidade do
uso. O inundo considerado na sua finalidade por aquilo que deseja adquire, nesta perspectiva,
uma ordem bastante específica que não é mais do que a expressão da relação que o homem
mantém com ele e do uso que dela faz. A relação com uma coisa (res), com todo o ser, portanto,
é determinada pelo amor enquanto desejo (appetitus). O amor do mundo, guiado pelo fim
último, é de segunda i ordem. Na procura do bem supremo, o mundo, aquele \ mesmo ao qual
pertence aquele que ama, é esque-4 cido na sua autonomia. Para a caridade que se transforma no
futuro absoluto onde foi abandonada, o mundo, enquanto presente, perdeu a sua significação
primeira, e o amor que.lhe temos não é mais amor por ele. Mas o futuro absoluto fornece
também um lugar situado por princípio fora do mundo, e a partir do qual o mundo e as nossas
relações com ele podem ser ordenados. O bem supremo é o fio condutor que unifica este pôr em
ordem, esta hierarquização do mundo dos objectos disponíveis. Vimos que, na procura do si
próprio, entendida como a procura da vida verdadeira, a própria existência do homem torna-se
uma coisa objectivamente disponível, o correlato do desejar90. E através desta projecção no
futuro, que lhe dá uma permanência que foge ao tempo, que esta «coisificação» da existência é
ratificada. Para aquele que regressa do futuro absoluto e ordena o mundo, a existência concreta
torna-se ela própria uma coisa que deve encontrar o seu lugar na permanência das coisas
disponíveis. Devemos pois ter em conta o duplo aspecto do amor a si (amor sui). Amar-se a si
mesmo, donde procede a procura de si (se quaerere), difere, por princípio, do amor a si que
resulta do amor ordenado (ordinata dilectw). O amor a si é doravante, depois do esquecimento
na eternidade, tornado coisa secundária. Nada é decidido da relação do homem consigo próprio
no amar, ou no odiar, mas o amor e o ódio determinam-se através do olhar lançado sobre o
mundo a partir do bem supremo, logo, a partir do tipo de ordenação assim conhecida. Para este
segundo amor de si, o eu, contrariamente a tudo o resto, é apenas uma coisa a utilizar para
alcançar a vida verdadeira, desejada noj futuro absoluto. Assim, a rela-tivização do mundo
engloba cada ser particular, desde que ele se «contemple», a partir do objecto desejado, como
mundo exterior a si mesmo. No amor (dilectio) que provém desta ordem, a renúncia a si
«pseudo-cristã» torna-se efeçtiva e eficaz; determina a vida humana sujeita na caridade ao bem
supremo. Na hierarquização a partir do futuro absoluto, o que é deste modo ordenado é um puro
disponível. A objectivi-dade daquele que ordena, garantia face ao mundo e a si mesmo pelo
amor (amor) e o seu bem, não é mais posta em causa nem pelo mundo nem por si. Esta
objectividade irá determinar aquilo que é preciso amar. O próprio amor é apenas uma
consequência desta determinação. O grau do amor (dilectio) caminha lado a lado com a
determinação daquilo que é preciso amar. Está conforme à ordem que atribui a cada um o seu
lugar. Cada um tem apenas o amor que lhe pertence, nem mais nem menos91. O amor (dilectio) a
si e ao próximo só é orientado por um objective - o amor (amor) deseja uma coisa por amor a
ela, por isso é dependente dela -, mas o amor aqui não é mais que a atitude objectiva
predestinada do homem que, sempre aí no mundo, vive no futuro absoluto92,93. O amor (dilectio)
não é, pois, determinado de início pelo objecto, não é desejo, mas procede do mundo ordenado
no qual o ordenador é entendido como fazendo ele próprio parte do mundo que ordena. A ordem
fixa o que está acima de nós (supra nos) como aquilo de mais elevado que é preciso amar acima
de tudo, o nós (nos) e ao lado de nós (iuxta nos), o próximo (proximus), que estão ao mesmo
nível, e o que está abaixo de nós (infra nos), o corpo, que constitui o último e o mais baixo grau
da ordem do amor94. O bem supremo, procurado pelo amor de si próprio, é o fio condutor deste
pôr em ordem. O eu, o próximo e o corpo estão ligados ao propter\ O amor ordenado não
ordena arbitrariamente o mundo inteiro a partir do futuro absoluto, mas em relação com o
próprio eu. A experiência desta relação é feita na sociedade (societas), apenas com aqueles
que, em relação com Deus e o bem supremo, podem alcançar a beatitude (os próximos,
proximi), e esta experiência é vivida naquilo que pertence como coisa particular ao eu terrestre,
no corpo96. Esta relação com Deus, com o próximo e com o eu é absolutamente distinta da
relação que o amor (amor) enquanto desejo põe em prática, provém de contextos completamente
diferentes, que serão explicitados de seguida. Para nós, esta relação só é considerada quando é
contemplada e ordenada a partir do bem supremo, logo, do de fora.
Não é por mero acaso que é justamente neste sítio que a descoberta lógica de um conjunto
conceptual homogêneo onde o amor, explicitamente ou não, é incessantemente definido como
desejo, esbarra em obstáculos consideráveis e não mais pode ser isolada de sistematizações
completamente diferentes. O desejo de si mesmo, que provém do ideal grego da autar-cia, isola
absolutamente o ser particular, que tende para a independência, para a plena liberdade em
relação a tudo o que é exterior ao seu próprio eu. Aqui, é descartada a hipótese de uma relação
original com o próximo e com o mundo. O caracter não original desta relação exprime-se na
objectividade do amor ordenado. Por outro lado, não é fortuitamente que Santo Agostinho tenta
articular, unir, neste mesmo contexto, o amor do próximo, que para o cristianismo é a
possibilidade específica de ter uma relação com o mundo, mesmo na ligação a Deus; e esta
tentativa não depende simplesmente da tradição cristã e bíblica. Pelo contrário, a projecção da
beatitude no futuro absoluto, a impossibilidade da perfeição no presente, fazem ressurgir o
problema do ser no mundo. A fruição, a auto-suficiência plena e inteira que procura em
princípio o futuro absoluto, são de origem grega, mas o facto do futuro absoluto, a determinação
da vida mundana a partir do futuro, são especificamente não gregos. Se no desejo o futuro é
remetido ao presente, uma vez que este futuro é esperado como um bem que chega, a morte
interdita-lhe no entanto absolutamente qualquer presença concreta no mundo, e nada resta ao
homem senão tender para ele (extentum esse), a acomodar-se ao mundo na dialectio. Tentar
deduzir o amor do próximo do futuro absoluto é necessariamente abortado, pois o amor ao
próximo é inútil ao amor desejante, que queria congregar o mundo inteiro num propter, por outro
lado, esta tentativa é abortada por causa da objectividade procedente do amor ordenado.
1 No mundo ordenado, o próximo tem o seu lugar ao lado do eu. Mantém-se ao mesmo nível
dele. Daí resulta que eu devo amá-lo como eu mesmo. O seu lugar de próximo na ordem é
obtido pelo facto de também poder fruir Deus9'. O próximo só é próximo
na medida em que se põe frente a frente a Deus na mesma relação que eu. Não é nos encontros
mun-i danos concretos - como amigo ou inimigo, por exemplo - que é experimentado; o próximo
está inscrito, enquanto já homem, numa ordem que decide sobre o \amor. Todo o amor, tomado
no propter, apenas pode fruir (ou visar a fruição) ou fazer uso de. O amor do próximo e de si é
determinado pelo uso98. No entanto, o uso não significa que a pessoa se torne num meio, é
apenas um indicador da relativização que impõe a ordem, que, portanto, preexiste ao amor. É
apenas no amor que se decide do ser do outro, mas antes dele. Regressando de um futuro
absoluto, o homem pôs-se fora do mundo e ordenou-o. Vivendo no mundo, ele tem o amor
ordenado, ama como se não estivesse no mundo mas como se fosse o ordenador do mundo. Ele
tem aquilo que não pode ser perdido e está fora de qualquer perigo, o que o torna objectivo99.
Esta objec-tividade vira-se contra ele próprio e contra os outros. Ele julga o próximo do mesmo
modo que se julga a si mesmo. «Em nenhum caso é a qualidade do pecador que é preciso amar
no pecador100.» Esta objectividade pertence ao que não é mais tocado nem pelo mundo nem por
si mesmo. O esquecimento de si torna-se aqui efectivo de modo iminente. A renúncia a si pseu-
do-cristã alcança o seu fim.
Neste estudo do amor do próximo, caímos num amor que já não é desejo. Santo Agostinho
inclui-o também neste contexto declarando-o secundário, e, segundo ele, todo o amor existirá
face à alternativa do uso e da fruição. Se bem que, determinado neste contexto, o sentido deste
amor, a dilectio, é incompreensível, tal como a sua origem. Em toda a exploração do amor ao
próximo introduz-se um conceito de amor fundamentalmente diferente; estudá-lo-emos adiante.
APENDICEI
Em Confissões XI, 13, Santo Agostinho exprime a identidade da eternidade pelo termo gnóstico
de eternidade imóvel (stems aetemi-tíis), mas retira-lhe o seu sentido especificamente místico.
(Para este emprego de termos místicos por Santo Agostinho, que lhes retira o seu sentido
original, cf. Karl Holl, Augustins innere Entwicklung, Preuss. Akad. der Wissenschafften, p.
24; Max Zepf, Augustins Konfessionen, Heidelb. Abband. zur Phil. 9, p. 28. «Quem de terá esse
pensamento, quem o imobilizará para lhe dar um pouco de estabilidade, para o abrir à intuição
do esplendor da eternidade sempre imóvel? E quando este pensamento é comparado com a
perpétua mobilidade dos tempos que verá que aí é incomparável.» (Quis tenebit illud (se.
cor)... utpaululum stet, et paululum rapiat splen-dorem semper stantis neternitatis. et
comparet atm temperibus mtnquam stantibus, et videat esse incomparabikm. Conf. XI, 13) -
Cf. Plotino, Enéades III, 7, 3: «O ser do qual não se pode dizer: foi ou será, mas apenas que é, o
ser estável que não admite modificações de futuro... eis. a eternidade» (ó oüv pf]TE f]V gf|TE
eotoh, áXX egti póvov, TOO TO EOTCÜÇ £%ÓV TÓ EÍVÍXt ... ÉQTÍV Ò (XÜbv).
O tempo que nunca é imóvel é medido pelas coisas perto das quais passa, mas só na medida em
que pode ser medido (Conf. XI, 18, 21). Só o presente pode ser medido; só é o que é presente
(prtie-sens) e a eternidade é o eterno hoje (XI, 16). Mas, por sua vez, o presente só será medido
como aquilo que escapa sempre a toda as interrogações. No presente eterno, o tempo por inteiro
é simul-taneidade (simul). «Os vossos anos mantêm-se em simultâneo exac-tamente porque
subsistem.» (An ni tui omnes simul stant, qiionium stant. Conf. XI, 16). A questão é então saber
através de que espaço se deve medir o tempo e em que lugar ele é, em certa medida, mantido.
Isso será a memória. A memória é a presença do não-mais (iam non) e a espera, a presença do
ainda-não (nondum). «Portanto, não são essas que eu meço, visto que já não existem, mas algo
que permanece na minha memória, profundamente inscrito.» (Non ergo ipsas quae iam non sunt,
sed a li quid in memória mea metior quod infix-um manet. Conf. XI, 26, 37. 35). O tempo só
existe neste remeter ao presente. - Cf. Plotino, Enéades III, 7, 9: «De uma forma geral, o
anterior é o tempo que acaba no instante presente, e o posterior é o tempo que começa no
instante presente» (eotl yàp õàxoÇ tò 7tpÓT£pov Kaí uaieporo tò pèu xpóÇ ò eíÇ tó võv
Aávycov, tò 6è uoTEpov õÇ çtTtò toú vuv ãp^erat. Mas a vida vive sempre daquilo que «sai
daquilo que ainda não é, atravessa o que é inextenso, para se perder naquilo que já não é» (c.v
ill o quod non d um est per illud quod spatio caret hi illud quod iam non est. Conf XI, 27).
APENDICEII
É importante que fique claro que todo este conjunto (libido, foris, sibi sufficcre) provém
essencialmente da tradição e de Plotino. O desejo (õpE^iÇ) conduz ao de fora (è^ü)), não tem,
portanto, independência (avTE^oòotov) (Evn. VI, 8, 4IÜI). Toda a praxis (TipâEjÇ) actua no de
fora e não pode, portanto, depender de nós (étp’ qpiv) (VI, 8, 2). Logo, não é pura (KCtôctpòu),
mas sim misturada (ptKTÒv), e tem qualquer coisa de incompleto (otou aúvQeróvri), «um
composto de essência e de uma diferença» (éK ÔtoccpopâÇ kcò. oòoíaÇ), VI, 8, 12. Já
Aristóteles, que parte do conceito de liberdade - p,r| (Ma102 - reconhece este caracter
problemático da praxis e utiliza o termo acções misturadas (piKTOti Ttpã^EiQ, sem que, por
outro lado, se tivesse francamente decidido. A necessidade (évSeéÇ eivai), prova de que o
homem depende do de fora"1’, é também aqui identificada no mundo. Só dependemos de nós
quando o desejo chega à paz (Enn. VI, 8, 2líw) e quando está no espírito (vovÇ). Isto significa
que, longe de todo o agir (jtpáTTetv), a liberdade é ser-se na paz total. O espírito tem o seu
princípio (áp%f|), a partir do qual chega ao seu próprio ser, não num de fora (ê^íoOev), como o
desejo, mas no bem (Twáya00j) que lhe pertence. Assim, «aquilo que há de livre nas nossas
acções, aquilo que depende de nós, não é remetido ao próprio facto de agir no seu aspecto
exterior, mas a um acto interior, a um pensamento e a uma contemplação da própria virtude»
(scp’ fipíu não eíÇ u'tü e^cú, akV EÍÇ RQU EVTOÇ ÉVÈPYEIAV KCTI VÓRIM V Koà Gecopicxv aÚTqÇ
áperfiÇ, Enfades, VI, 8, 6). Somente a ausência absoluta de necessidades ou o indivíduo
absolutamente isolado (pouopeva, VI, 8, 15) no seu ser constitui a autarcia (aUTOtpKEÇ1"’).
Assim, para explicitar a liberdade tal como ela é exposta em De libero arbítrio, Santo
Agostinho parte visivelmente da tradição grega. O isolamento original e ideal do homem em
relação ao seu mundo, ao qual, antes de mais, ele está ligado pelo desejo (a libido), onde não
encontra o seu bem próprio, depende do mundo, visto que está efectivamente no de-fora, mas o
homem não é visto na sua ligação original com o mundo, prévia a qualquer questão sobre a
liberdade. Simplesmente, é preciso não esquecer que o motivo existencial que aqui guia Santo
Agostinho é o medo, enquanto que em Plotino, que disso fala, o medo não é o verdadeiro
impulso da sua problemática.

NOTAS

1. De div. quaest. 83. qu. 35. 1 e 2: Nihil enim a Hud est amare, qtiam propter se ipsam
rem aliquam tippet ere. E um pouco mais à frente: narnque amor appetitus quidam est.
2. Qu. 35, 1: Deinde cum amor motus quidam sit, neque ullus sit motus nisi ad aliquid...
«Por outro lado, o amor é impulso e só há impulso para qualquer coisa»
3. Each., sive de Fide, Spe et Caritate CIV. De lib. arb. II, 16: ut ergo constat nos beatos
esse velle... e outras. «Para que veja, pois, que queremos ser felizes.»
4. Qu. 35, 1: cf. nota 2, p. 17.
5. Qu. 33: Nulli dubium est non aliam metuendi esse causam nisi ne id quod amamiis aut
adeptum amittamus aut non adipiscamur speratum.
6. De div. quaest. 83, qu. 33: Necesse esa autem ut qui metnit aliquid fugiat. «E preciso
fazer o bem, se temermos que nos foge alguma coisa.»
7. Qu. 33: nullum metum esse nisifuturi et imminentis mali. «Só há a temer um mal futuro
e iminente.»
8. Qu. 35, 1: Et ideo non amandum est, quod manenti et fruenti amori anferri potest.
«Não é preciso, portanto, amar o que pode ser extorquido ao amor, subsistindo e
usufruindo-se este.»
9. Serm. CCCVI, 3 e 4.
10. Serm. CCCVI, 7: ipsa est vita quae et aeterna et beata.
11. De trin. XIII, 11: Cum ergo beati esse omnes homines velint, si vere volant, profecto
et esse immortales volunt: aliter enim beati esse non possent. De Civ. Dei XI, XXVIII:
Ibi esse nostrum non babebit mortem, ibi nosse nostrum norm babebit errorem, ibi aware
nostrum non habebit offensionem. «Todos os homens querem, portanto, ser felizes: se o
querem verdadeiramente, também querem, por inerência, ser imortais; de outra maneira,não
poderíam ser felizes.» (De trin, XIII, II.) «Aqui, o nosso ser não terá a morte, aqui o não
ser não terá enganos, aqui o nosso acto de amar não sofrerá algum contratempo.» (De Civ.
Dei, XI, XXVIII.)
12. Conf. I, 7 (vita mortalis), X, 26; In bomine vivente mortalitev... De civ. Dei XII, XX,
1; si tamen ista vita dicenda est, quae potius mors est... («vida morredoura», Conf. I, 7),
«Para o homem que só vive para morrer.» (Conf. X, 26) «contanto que se pode chamar
vida àquilo que éanais uma morte...» (De civ. De/XII, XX, 1).
13. Serm. CCCVI, 7: Sed sanitas et vita si timetur ne finiatur, iam nom est vita. Non est
enim semper vivere sed semper timere.
14. Conf. VI, 19: Quid si mors ipsa omnem curam cum sens'll ampntabit etfiniet?...
Sedabsit ut ita sit... Numquam tanta et talia pro nobis divinitus agerentur, si moite
corporis etiam vita animae consumeretur. «Mas se a morte amputa, acaba com todas as
preocupações, tirando-nos o sentimento?... Mas longe de mim tal hipótese!... A divindade
nunca teria criado coisas tão perfeitas e belas para nós se com a morte física se apagasse
também a vida da alma.»
15. Ep. 55, 17.
16. De lib. arb. II, 10: invenit omnem rem viventem fiigere mortem; quae cum sit vitae
contraria, necesse est ut vita etiam se ipsam sen-tiat, quae contrarium suumfugit. «Cada
um constata que qualquer vivente foge da morte, sendo esta o oposto da vida; parece que é
preciso que a vida tome consciência de si mesma para fugir ao seu contrário.»
17. Conf. VII, 7: Idcirco aut est malum quod timemus aut hoc malum est quia timemus.
«Assim, pois, ou bem que existe um mal que tememos, ou então o mal é o próprio facto que
nós tememos.»
18. De div. quaest. 83, qu. 34.
19. Serm. XXXVIII, 5: Ideoque vivendo bic decresdt vita, non crescit.

«E por isso que vivendo aqui a vida decresce, não aumenta.»

20. De lib. arb. I, 34 - Serm. I, XXII, 6: Hoc est bonum quod non potesinvitus amittere.
«E o bem, aquilo que não podes perder contra a tua vontade.»
21. Civ. Dei XIV, XXV: Ntmc vero quis bominum potest ut vult vivere, quando ipsum
vivere non est in potestate? «Mas, no presente, qual é o homem que pode viver como quer,
quando a própria vida não está em seu poder?»
22. E isto significa, neste caso, que Santo Agostinho pertence, sem qualquer ruptura, à
tradição de Platão e Aristóteles, passando por Plotino. Toda a terminologia do appetitus,
em qualquer contexto, advem da tradição grega (cf. sobretudo Nik. Eth. Nic., I, 1094a ei,
1095a 16). Para a dependência de Santo Agostinho face à tradição grega e as vias de
transmissão: Fuchs, Augustin und die antike Friedensidee (Neue Philos. Unters., ed. V.
Jaeger). Desejo (õpE^tÇ), felicidade (etiSaip-ODÍa) e bem (òtyaOõn) aparecem aí
situados no mesmo contexto. Plotino Enn., III, 5, 4: èpcoÇ Ôè evepYeta. yu/nÇ ccyaOon
opiyucupevri^. Eros é a actividade da alma que procura o áyaOou - a morte como o mal
que mais se teme (<po|3EpcoTa-tov kcckov), - cf. Eth. Nic. 1114 b 26.
23. E na obra Confissões que se pode ver em que medida é que a experiência da morte foi
central para Santo Agostinho (cf. sobretudo Conf. IV). E justamente esta problemática que
o deveria conduzir ao cristianismo; na teologia constituída por São Paulo, o facto da morte,
enquanto já não iminente e definitiva, tem um significado determinante. O estudo das
epístolas de São Paulo fê-lo um verdadeiro cristão, e, quanto mais se torna cristão, mais se
torna paulista. Nas Conf. VI, ele próprio diz que o pressuposto existencial mais profundo
para a sua conversão foi o medo da morte (metus mortis), que o obrigou a alterar todas as
suas opiniões. Nada, a não ser isso, lhe teria causado repulsa pelas volúpias da carne
(voluptates camales).
24. Cf. por ex. Plotino, Enn. III, 7, 6.
25. Serm. CIX, 4: Veniunt, ut abeant anni nostri... cum transeuntper nos, teruntnos, et
minus minusque nosfaciunt (cf. Serm., XXXVIII, 5). «Os nossos anos chegam, mas para se
irem embora... Uma vez que passam por nós, usam-nos e deixam-nos cada vez menos
forças.»
26. Conf. XI, 27: Scio quia metimur, nec metiriae quae non suntpos-sumus et non sunt
praeterita vel futura. «Eu sei-lo porque nós o medimos. Não se pode medir aquilo que não
é - e tanto o passado como o futuro não são.»
27. Ibid.: Ex illo ergo quod nondum est, per illud quid spatio caret, in illud quod iam non
est...«Saído daquilo que ainda não é, atravessa o que é inextenso, para se perder naquilo
que já não é. O tempo, inextenso, não é mensurável, não o podemos, portanto, reter» (cf.
Conf. XI, 36).
28. De doctr. christ. I, 2: quod enim nulla res est, omnino nihil est; I, 5: Res igitur quibus
fruendum est, Pater et Filias et Spiritus Sanctus (cf. I, 7). «O que não é uma coisa não é
absolutamente nada.» (De doctr. christ. I, 2.) «E por isso que a coisa que é preciso fruir é o
Pai, o Filho e o Espírito Santo.» (De doctr. christ. I, 5.)
29. Cf. Apêndice I.
30. Ep. Ioan. tr. II, 12: Mundus enim appelatur non solum istafabrica quam fecit Deus,
coelum et terrain... sed habitatores nmndi mundus vocantur... omnes ergo dilectores
mundi mundus vocantur.
31. Serm. CCCII, 2: sed quomodo diligitur temporalis (sc. vita) ab amatoribus suis, sic
diligamus aeternam, cuius amorem christianus profitetur (também: Ep. 127, 4). «Assim
como a vida temporal é amada pelos que a amam, nós amamos a vida eterna como o cristão
faz questão de a amar.»
32. Ep. Ioan. tr. II, 14: talis est quisque, qualis eius dilectio est. «Pois tal como se ama
assim se é.»
33. De trim VIII, 14: Quid est ergo amor, nisi quaedam vita duo ali-qua copulans vel
copulare appetens? Amantem scilicet et quod amatur? Et hoc etiam in extemis
camalibusque amoribus ita est. «O que é então o amor senão uma certa via que une dois
seres ou tende a uni-los: o que ama e o que é amado? E sempre assim, mesmo nos amores
exteriores e carnais.»
34. Ep. Ioan. VII, 1: Mundus iste omnibus fidelibus quaerentibus patriam sic est,
quomodo fiiit eremus populo Israel. Ioan. Ev. XXVIII, 9: Modo ergo antequam ad
patinam promissionis id est aetemam re-gnum veniamus in deserto, in tabemaculis
sumus. «Este mundo é para os fiéis que procuram a pátria aquilo que o deserto foi para a
população de Israel.» (Ep. Ioan, VU, 1.) «E por isso que antes de chegar à pátria da
promessa, isto é, o reino eterno, nós estamos no deserto, nas tendas.» (Ioan. Ev., XXVIII,
9.)
35. Civ. Dei VIII, VIII: nemo tamen beatus est qui eo quod amat non fruitur. Nam et ipsi
qui res non amandas amant, non se beatos amando putant, sed fruendo. «Ora uma pessoa
não é feliz se não fruir da coisa que ama. Com efeito, mesmo os que amam as coisas que
não são para amar, não se imaginam a serem felizes amando mas fruindo.»
36. Conf. VI, 1 - Exposit. quarumdam propos. ex Ep. ad. Rom. I, VIII: vanitas rerum quae
foris sunt. - Serm. XCVI, 2: Incipit enim deserto Deo amare se, et a d ea diligenda quae
sunt extra se, pellitur a se. «A vaidade das coisas que estão fora de nós.» (Ep. ad. Rom. I,
VIII.) «Ele começou, com efeito, a amar-se na ausência de Deus, e dispersou-se de si
mesmo perto das coisas a amar, que estão no seu exterior.» (Serm. XCVI, 2.)
37. Fazer o mal (male facere) é aqui inserido nas categorias libido--vontade, como noutras
passagens das categorias de cobiça-caridade. «Que há de mais hostil à boa vontade do que
a libido?» (Quid autem tam inimieum bonae voluntati est quam libido? De Ub. arb. I, 8,
27.)
38. K libido é directamente definida como o amor das coisas que se pode perder contra a
sua vontade. (De lib. arb. I. 16.)
39. De lib. arb. I, 27: Illa quippe omnia quae in potestate nostra non sunt, amare iste
acplurimi aestimare non potest... Cum autem non amat haec, non dolet amissa et omnino
contemnit.
40. De lib. arb. I, 5: nee ulla adiutum (sc. Deumi) esse natura in cre-ando, quasi qui non
sibi sufficeret.
41. E desta coerência que advem também a preponderância do saber (scientia) ou da razão
(ratio), porque a autonomia do homem reside no saber. «Se o doutor é mau, não é doutor»
(si doctor est malus non est. De lib. arb. I, 3). De lib. arb. I, 17: a oposição à
«experiência» (experiri) parece nitidamente orientada pela ideia de ser suficiente a si
próprio (sibi sufficere). A compreensão (intelligere) deve garantir a posse mais firme
(tenere firmissimum).
42. Cf. Apêndice II.
43. Conf. II, 1: et colligens me a dispersione in qua frustatim discissus sum, dum ab uno
te aversus in multa evanui. «Delícias felizes e seguras, que recolheis em vós meu ser
disperso, disseminado, e que, afa-stando-se da vossa Unidade, se dissipa em mil
vaidades.»
44. En. in. ps. LVII, 1: Sed quia homines appetentes ea- quae foris sunt etiam a se ipsis
exsules facti sunt... «Alas devido ao facto de os homens desejarem o que lhes é exterior,
estão também exilados de si próprios.»
45. Conf. X, 41, 54, 55: Hine ad perscrntanda naturae, quae praeter nos non est, operata
procedifítr, quae scire nihilprodest et nihilaliud quant scire homines cupiunt. «E ela (a
curiosidade) que nos induz a investigar os mistérios secretos da natureza exterior a nós,
segredos que de nada serve conhecer e onde os homens procuram apenas este mesmo
conhecimento.»
46. Conf. X, 25, 50: Sana me, in cuius oculis mihi quaestio factussum, et ipse est languor
meus «...curem-me. Tornei-me para mim mesmo, debaixo dos vossos olhos, um enigma; e é
aí precisamente que está a minha fraqueza.»
47. Conf. X, 3: Quid est enim a te audire de se nisi cognoscere se? VI, 1: et quaerebam
teforis a me, et non inveniebam Deum cordis mei. VII, 11: Intus enim erat, ego
autemfioris. VII, 16: Et inde admoni-tus redire a d memetipsum intravi in interna mea
duce te; et potui, quoniam factus es adiutor meus.
48. Conf. X, 8: cum amo deum meum, lucem vocem odorem... interi-oris hominis mei
(amo); ubifulget animae meae quod non capit locus et ubi sonat quod non rapit tempos...
et ubi haeret quod non divel-lit satietas. Hoc est quod amo cum Deum- meum amo.
49. Ep. Ioan. tr. II, 14: Tenete potius dilectionem Dei, ut quom-odo Deus est aetemus, sic
vos maneatis in aetemum: quia talis est quisque qualis eius dilectio est.
50. Conf. IX, 10.
51. De lib. arb. II, 26.
52. De vera rel. 72.
53. Semi. CXXC, 11: Cum adhuc tecum est quod amissurus es, aut vivos, aut moriens
illud dimittis, non potest tecum esse semper: cum ergo adhuc tecum est, solve amorem;...
Tene te ad ilium quern non amittis invitus. - De vera. rel. 72.- et si tuam naturam
mutabilem inveneris, transcende et teipsum. «Uma vez que tens ainda contigo um bem que
vais perder, que deves deixar durante a vida ou a morte (logo) não podes guardá-lo sempre
contigo, suprime o amor (que tens por ele)... Liga-te ao que não podes perder mesmo
contra a tua vontade.» (Sevm CXXV, II) «e se encontras a tua natureza, que é mudança,
transcende-te também a ti mesmo». (De vera, rel. 72).54. Serm. CCCII, 3: sed quomodo
diligitur temporalis (sc. vita) ab amatoribus suis, sic diligamus aeternam (cf. Ep. 127, 4).
«Mas, assim como a vida temporal é amada pelos que a amam, também nós amamos a vida
eterna».

55. Conf.XI, 16.


56. A possibilidade dessa metamorfose está ligada à interpretação agostiniana do tempo,
que apenas engloba o passado e o futuro como .presente. Conf. XI, 26: Tempova sunt trim
praesens de praeteritis, praesens de praesentibus, praesens de futuris. -37: Non igitur
longum tempus fitturum quod non est, sed longum futuram longa expectatio futuri est;
neque longum praeteritum tempus quod non est, sed longum praeteritum longa memória
praeteriti est. «Existem três tempos: o presente do passado, o presente do presente e o
presente do futuro.» (Conf XI, 26.) «Não é, pois, o futuro que é longo, visto que não existe;
um longo futuro é uma espera pelo futuro, que o concebe como longo; não é o passado que
é longo, visto que não existe; um longo passado é uma recordação do passado que o
representa como longo.» (Conf. XI, 37).

51. Serm. CXLII, 3; Et am.andus est Deus ita ut, si fieri potest, nos ipsos obliviscamur.

58. Serm. CXLII, 3: Quis ergo est iste transitas? oblita est anima se ipsam, sed amando
mundum: oblivíseatur se, sed amando artificem 7H.undÍ. «Qual é, então, esta passagem?
A alma esqueceu-se de si própria, mas amando o mundo; que ela se esqueça, mas amando o
fabricador do mundo.»
59. Esperado na pertença a Deus que dá a caritas e teme a queda do mundo à qual a morte
põe fim. Assim, a fé do cristão é determinada pela esperança, e esta fé só é cristã porque o
seu objecto é esperado e amado (cf. a fé dos demônios, Ep. CXCIV, 11).
60. Conf. XI, 39: non in ea quae futura et transitara sunt, sed in ea quae ante stmt, non
distentus sed extentus, non secundum disten-tionem, sed secundum intentionem sequor
ad palmam supemae vocationis. «Esquecido do que está para trás de mim, sem aspiração
inquieta pelo que deve vir e passar, inclinado apenas para as coisas presentes, eu persigo,
através de um esforço exclusivo de toda a dispersão, este palmo da vocação celeste.»
61. Ioan. Ev. tr. XX, 11: Nemo eum (Deutn sc.) attingit nisi qui tran-sierit se.
62. Conf. IX, 10: devorans têmpora, devoratus temporibus. «Devorando o tempo e
devorado por ele.»
63. Ioan. Ev. Tr. XXXVIII, 16: ut ergo et tu sis, transcende tempus.
64. Serm. CXLII, 3: Quis ergo est iste transitais? Oblita est anima se ipsam, sed amando
mundum: obliviscatur se, sed amando artificem. mundi.
65. De vera, rei. 72: Noli foras ire, in te ipsum redi; in interiors bomine habitat veritas;
et si tuam natnram mutabilem inveneris, transcende et te ipsum. «Em vez de caminhares
para fora, torna a entrar em ti mesmo; é no coração do homem que habita a verdade. E, se
encontras apenas a tua natureza, sujeita à transformação, vai para além de ti mesmo.»
66. Conf. I, 21.
67. Ioan. Ev. LI, 10: noli amare in bacvita ne perdas in a eterna vita...

Si male amaveris, tunc odisti: si bene oderis, tune amasti.

68. De trim XJV, 18: Qui ergo se diligere novit, Deum diligit: qtti vero non diligit Deum,
etiam si se diligit, quod et naturaliter indi-tum est, tamen non inconvenienter odisse se
dicitur, cum id agit quod sibi adversatur. «Quem sabe amar-se, ama Deus; ao contrário,
quem não amá Deus a preceito, o que lhe é dado com a sua natureza, pode-se dizer sem
nada de arbitrário que se odeia, uma vez que faz aquilo que lhe é contrário.»
69. Civ. Dei XII, 1,2.
70. Civ. Dei XII, 1,2: Ille vero (se. Creator) qui non alio sed se ipso bono beatas est, ideo
miser non potest esse quia non se potest amittere. «Mas este (o Criador) que obtém a sua
felicidade do bem que ele próprio é, e não de um outro, não pode ser infeliz, porque não
pode perder-se». O desejo tem precisamente por função procurar o bem da beatitude.
71. Serm. XCVI, 2 (cf. nota 2, p. 19). Serm. CCCXXX, 3: Quisquis enim dimisso Deo
amaverit se Deumque dimiserit amando se, non remimet nec in se, sed exit et a se.
«Aquele que, depois de ter abandonado Deus, se ama si mesmo - e abandona Deus
amando-se a si mesmo - não permanece mais em si mesmo mas sai de si mesmo.»
72. Retr. I, VII, 4: ne forte putaretur caritatem. Dei non futuram esse maiorem quando
videbimus facie a d fadem, «...para não deixar crer que o amor de Deus não seja tão
grande quando o virmos face a face.»
73. De Civ. Dei VIII, 8: nemo tamen beatus est, qui eo quodarnat non fruitur. «Ninguém,
no entanto, pode ser feliz se não usufruir do que ama.» A felicidade (beatum esse) resulta
não do amor mas da fruição.
74. De civ. Dei VIII, 8: nemo tamen beatus est, qui eo quod amat non fruitur. Nam et ipsi
qui res non amandas amant, non se beatos amando putant sed fruendo.
75. De doctr. christ, I, 4: Frui enim est amove alicui vei inhaerere propter se ipsam.
16. De doctr. christ. I, 3: Iliac (sc. res) quibusfritendum est, beatosnos faciunt. Istis quibus
utendum est tendentes ad bcatitudinem adiuva-mur. De doctr, christ. I, 4: Frui enim est amove
alicui vei inbaereve propter se ipsam. Uti autem, quod in usum venerit ad id quod amas
obtinendum referre, si tamen amandum est. «Fruir, com efeito, é ligar-se a uma coisa pelo
amor a ela mesma. Usar, ao contrário, é reconduzir o objecto de que fazemos uso para o objecto
que sé ama, se, todavia, ele for digno de ser amado.» {De doctr. christ. I, 4)

77. Cf. nota preqedente. ;


78. De doctr. christ. I, 4: utendum est hoc mundo non fruendum.
79. De mor. eccl. I, 15: Caritas vero ipsa non potuit significant expresses quam quo
dictum eSt «propter te».
80. De doctr. christ. I, 34: Nam si neqtte fruitur neque utitur, non invenio quemadmodum
diligat (Deus sc.!): «Então, se não houver fruição nem uso, eu não vejo como é que ele
(Deus) ama.»
81. Solil. I, 13: caritas qua viderc perfruique desiderat. «A caridade pela qual se deseja
ver e fruir.»
82. Doctr. christ. 1, 43: perfectum sane, quantum in hac vita potest; nam in.
comparationefitturae vitae nullius iusti et sancti est vita ista perfecta. « ...perfeito, bem
entendido, enquanto que ele pode sê-lo nessa vida; pois, comparada à vida íutura, a vida
de nenhum homem justo e santo é perfeita.»
83. A maior parte das vezes expresso por citações bíblicas. Seja: Ioan. Ev. XLI, 13.
84. De div, quaest. 83, qu. 36, 1, 2: ut caritatis libertasprae servitute timoris eminent.
«De modo que a liberdade da caridade a leve para a servidão do medo.»
85. Isto vê-se melhor numa passagem dirigida contra os estóicos e à sua maneira de querer
acabar com a morte. Ep. Ioan. IX, 2: Sunt enim homines qui cum patientia ?noriuntur:
sunt autem quidam perfecti qui aim patientia vivunt etc. «Com efeito, há homens que
morrem com paciência mas também há alguns homens perfeitos que vivem com paciência.»
86. Ioan. Ev. XLI, 10: nondum. tota nondum pura nondum plena libertas, quia nondum.
aetemitas. «Não é ainda a plena liberdade, a pura liberdade, a total liberdade, porque não
é ainda a eternidade».
87. En. in Ps. LXXIX, 13: admnne recte factum amor et timor ducit: ad omne peccatum
amor et timor ducit. Ut facias bene, am as Deism, et times Deum: ut facias maul, amas
mundum, et times mundum. «Todo o amor, to do o temor, levam à acção boa; todo o amor e
todo o temor conduzem ao pecado. Para agir bem, ama Deus e teme Deus; para agir mal,
ama o mundo e teme o mundo.»
88. Ep. Ioan. IX, 5: Ipse est timor ille qui introducit caritatem: sed sic venit ut exeat...
Quis est timor castas? Ne amittas ipsa bona... ne recedat a te. - Civ. Dei XIV, IX, 5: bunc
enim timorem habet cari-tas imo non habet nisi caritas... non est timor exterrens a maio,
quod accidere potest; sed tenens in bono quod amitti non potest. - En. In Ps. CXXVII, 8:
castas ergo timor hoc habet; venit de amore, etc. «Este temor é o que dá acesso à
caridade; mas ele só entra na alma para dela sair... O que é o temor casto? E o de perder os
próprios bens. Compreendam bem. Outra coisa é temer Deus, por medo que ele te envie
para a geena com o diabo; outra coisa é temer Deus, por medo de o ver afastar-se de ti»
(Ep. Ioan. IX, 5). «Este temor é experimentado pela caridade, mais ainda, ela é a única a
experimentá-lo... não é aquela que treme diante de um mal que pode sobrevir, mas aquela
que está firme num bem que se pode perder.» (Civ. Dei XIV, IX, 5). «O temor casto tem-no,
portanto; ela vem do amor.» (En, in Ps. CXXVII, 8).
89. Doctr. christ. I, 42: Inter temporalia quippe atque aetema hoc interest, quod
temporale aliqudplus diligitur antequam habeatur... non enim satiat animam, cui vera
est et certa sedes aeternitas. «Pois entre os bens temporais e os bens eternos há esta
diferença: um bem temporal é mais amado antes de ser possuído (mas perde o seu valor
uma vez obtido), pois não sacia a alma, para quem a verdadeira e firme morada é a
eternidade.»
90. De doctr. christ. I, 20.
91. Doctr. christ. I, 28: Ille autem. inste et sancte vivit, qui rerum integer aestimator est:
ipse est autem qui ordinatam dilectionem habet, ne aut diligat quod non est diligendum
aut non diligat quod est diligendum, aut amplias diligat quod minus est diligendum. -De
mend. 9: Nam et ipsa dilectio proximi ex sua cuiusque terminam accepit... Quomodo ergo
quisque diligit tamquam se ipsum, cui utpraestevitam temporalem, ipse amittit
aeternam? ...non este iam diligere sicut se ipsum. Sedplus quam se ipsum: quod sanae
doc-trinae regulam excedit. «Este vive no justo e no santo, que aprecia as coisas no seu
verdadeiro valor. Ele tem, por conseguinte, um amor bem ordenado: ou não ama o que não
é para amar, ou ama o que deve amar, ou não ama mais o que deve amar menos...». (Doctr.
Christ. I, 28.) «Pois o amor ao próximo mede-se exactamente a partir do amor que temos
por nós... Ou qualquer um perde a sua vida eterna para conservar a um outro a sua vida
temporal, amando-o, ao fazê-lo, como se ama a si próprio? ... Não, porque se ele se
contenta por dar a sua vida corporal em troca pela sua, não o amará como a si próprio, mas
mais que a ele próprio, e, deste modo, iria mais longe do que lhe exige a santa doutrina.»
(De mend. 9.)
92. A distinção terminológica: amor = appetitus, caritas = relação com o summum bonum
e dilectio = a relação consigo e com o mundo que saiu da caritas foi aqui introduzida para
tornai* a exposição mais clara. O próprio Santo Agostinho emprega os três termos
indiferentemente como sinônimos do amor e sublinha-o por diversas vezes, como por
exemplo em Civ. Dei XIV,.VII, 2. Objectivamente, a distinção está absolutamente
justificada, mas terminológica mente não. Cf. tanto para a possibilidade de distinguir
objectivamente como para o uso indiferenciado dos três termos que, originariamente, são
traduções do grego (amor = epcoÇ, dilectio = atopyr|, caritas = âyÓOTTi), Harnack, Der
Eros in der alien christlichen Literatur, Stizgsber. d. preuss. Akad. d. Wiss. 1918, pp. 85 e
segs..
93. Se se perguntar porque é que existe ainda aí uma dilectio proximi, uma relação
explícita com o mundo, a explicação é-nos dada num contexto totalmente diferente, onde o
conceito de amor encontra o seu lugar, um conceito de amor que provém precisamente do
ser-conjunto natural e da dependência recíproca dos homens. Esta relação natural já se
proclama na lei: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti mesmo. Depois, a
dilectio cristã é interpretada como uma relação bem determinada ao tu e tornada
particularmente explícita. Trataremos adiante com maior detalhe este conceito tomado no
seu contexto. Por agora, negligenciá-lo-emos.
94. Doctr. christ. I, 22.
95. Doctr. christ. I, 21: sed quidquid aliud diligendum venerit in ani-mum, illuc rapiatur
quo totus dilectionis impetuscurrit. «Mas exige que qualquer outro objecto a amar que
chegue ao espírito seja dirigido ao fim onde corre todo o ímpeto do nosso amor.»
96. Doctr. christ. I, 22: Non- autem omnia quibus utendum est, dili-genda sunt sed ea
sola quae aut nobiscum societate quadam referen-tur m Deum sicuti est homo vel
angelus; aut ut nos relata... sicuti est corpus. 21: id quod sumus et id quod infra nos est,
a d nos tamen pertiiiet, inconaissa naturae lege diligimus. «Não devemos, por outro
lado, amar todos os seres feitos para o nosso uso, mas apenas os que estão unidos a nós ou
por um laço de sociedade, como o homem ou o anjo se relacionam com Deus, ou,
referindo-se a nós, como o nosso corpo, têm necessidade por nosso intermédio do favor
divino». (Doctr. christ. I, 22) «... o nosso ser e os seres que estão abaixo de nós e as
relações connosco, amamo-los por uma lei imprescritível da natureza...» (Doctr. christ. I,
27).
97. De doctr. christ. I, 30: Omnium autem qui nobiscum fruipossunt Deo, partim eos
diligimus quos ipsi adiuvamus, partim eos a quibus adiiwamur. «Ora, entre todos os
homens que podem fruir connosco de Deus, nós amamos alguns que nós próprios ajudamos,
e alguns pelos quais somos ajudados».
98. De doctr. christ. I, 20: Itaque magna quaestio est, utrum frui se homines debeant, an
uti, an utrumque... Si enim propter se fruimur eo; si propter aliud utimiir eo. Videtur
autem mihi propter aliud diligendus. Quod enim propter se diligendum est, in eo
constituitur vita beata; cuius etiam si nondttm res, tamen spes eras nos hoc tempore
consolatur. «E também uma grande questão a de saber se os homens devem fruir deles
próprios, ou usar, ou fazer uma e outra coisa... Se é para ele próprio (que nós o amamos),
nós frui-lo-emos, se é por outra coisa, usá-lo-emos. Ora parece--me que ele deve ser
amado por outra coisa. Pois é no Ser que deve ser amado por ele próprio que se encontra a
felicidade. Ainda que na realidade não tenhamos esta felicidade, todavia a esperança de a
atingir consola-nos na terra.»
99. De doctr. christ. I, 30: Hinc efficitur ut inimicos etiam nostros diligamus: non enim
eos timemus, quia nobis quod diligimus auferre non possunt. «Daí resulta que devemos
amar mesmo os nossos inimigos. Com efeito, não os tememos, visto que eles não nos
podem retirar Aquele que amamos.»
100. De doctr. christ. I, 28: Omnis peccator in quantum peccator est, non est diligendus.
De doctr. christ. II, 24. Solil. I, 7: Et homines sunt et eos amo non eo quod animalia sed
eo quod homines sunt; id est ex eo quod rationales animas babent, quas amo etiam in
latro-nibns. - Civ. Dei XIV, VI: ut necpropter vitium oderit hominem, ?iec amet vitium
propter bominew; sed oderit vitiirm avtet boniinem. «Os meus amigos são os homens e eu
amo-os não enquanto animais mas enquanto homens, isto é, porque eles têm uma alma
racional que eu amo até nos "ladrões" .» (De doctr. christ. I, 28) «... sem todavia odiar o
homem por causa do vício nem amar o vício por causa do homem; ele deve simplesmente
odiar o vício e amar o homem.» (Civ. Dei XIV, VI).
101. Enéades, VI, 8, 4: Kaíxot Zr|Tf|OEtEU áv tiÇ, toóÇ kote tó Kar’ õpE^tv ytyvópevov
auTE^ouotov EOTat ttjÇ ópèÇecoÇ ékí tu e£,co áyoóaT[Ç Kal tó évòeèÇ, é/quotiÇ «Não
obstante, existe aí matéria que levanta uma questão: como é que o acto que provém de uma
tendência (desejo) pode ser independente, uma vez que a tendência (desejo) leva-nos para
fora de nós e supõe uma falta?»
102. Etb. Nic., 1110a 1: ÔOKEt Sè áKOúota cvuca xà fJía f| Si’ áyuotau ytyvópEva, fJíatou
8é ou f] áp%f] eÇcoOêu. Cf. Énéades VI, 8, 1: EKOúotov pèu yàp itàu, õ pi] £ía pcxá toG
eíSévat, écp qpíi) ôé, 8 Kat KÚptot Ttpâ^at. Ora, segundo o testemunho humano, existem
duas espécies de actos que fazemos contra a nossa vontade: os que se fazem por
constrangimento e os que se fazem por ignorância» (Ética a Nicóniaco 1110a 1). Cf.
Enéades VI, 8, 1: «E preciso distinguir o acto voluntário reflectido, isto é, aquele que
executamos sem constrangimento e sabendo que o fazemos, e o acto que depende de nós,
isto é, aquele que somos mestres a fazer».
103. Ver nota 101.
104. Enéades VI, 8, 2: ei Ôè t qv õpEgtv jcocúoaÇ eott) Koá ÉUTauGa tò écp’ fpíu, oúk éu
JtpáÇci toOto Eoxat átt! éu uõ ottioetou TOUTO É71EÍ Kat TÓ ÉU Tlpá^Et 71ÓU, KCXU
KpaTT] Ò ÀÓyoÇ, ptKTÓV Kaí oú KaGapòu ÓúuaTat tó é<p’ f|pív e/êiv. «Mesmo que a
razão se contente em fazer cessar o desejo e se é isso mesmo que depende de nós, o que
depende de nós não está na acção mas reside na nossa inteligência. Por outro lado,
qualquer acção, mesmo que seja dominada pela razão, é misturada, e não pode depender
puramente de nós.»
105. Eth. Nic., 1097b 14: tò 8’ avxapKÈÇ tíÔe^êv 8 povoúpevov atpETÓv TtoiEÍ tòv piou
KOti ppÕEUòÇ ÉvÔEà. «Por agora, admi-tamo-lo, torna-nos independentes aquilo que
unicamente possuído torna a nossa vida digna de ser vivida e liberta de qualquer
necessidade.»

PARTE DOIS
CRIADOR - CRIATURA (CREATOR - CREATURA)

1 - 0 CRIADOR COMPREENDIDO

COMO ORIGEM DA CRIATURA


Considerámos que o amor de si, nascido do desejo, era secundário no ordenamento que permite
a contemplação a partir da eternidade. Em conformidade com a estrutura do desejo, deixámos
de lado o amor a si e com ele o amor do próximo, em suma, não aprofundámos mais a relação
originária que têm um com o outro; é mais tarde, a partir do bem supremo atingido, que esta
relação encontra o seu verdadeiro lugar. A relação originária do amor de si que permite, ainda
que não explicitamente, a orientação no mundo que se deve ordenar, só pode subsistir no amor
ordenado (ordinata dilectio), se o amor de si não se ligar a nada pelo desejo. Pensavamos
poder demonstrá-lo trazendo à luz o absurdo do amor de si e do próximo no quadro do desejo.
O desejo implica também um amor que não é uma relação desiderativa, mesmo que não o inclua
no amor ordenado senão apenas como um elemento bem posicionado. Para compreender este
amor no seu próprio contexto, voltemos ao ponto de partida original: o amor como desejo.
A articulação posterior do desejo com a vontade de ser feliz (beatum esse velle) é superada
pelo desejo da sua própria estrutura, projectando a vida feliz para diante de si, e esperando-a
como um bem vindo de fora. Esta ultrapassagem era necessária, uma vez que todo o desejo é
orientado para o futuro e estruturado pelo esquecimento de si perto de. Esta ultrapassagem
quebra simultaneamente qualquer laço humano que não seja feito de desejo - aquilo que pode
viver limita-se ao que é esperado, ao bem ou ao mal que o futuro oferecerá. Mas para poder
esperar o futuro da vida feliz do desejo, é preciso já ter tido a experiência dessa vida, mesmo
antes de tudo aquilo sobre o qual o desejo pode recair, ainda que este seja sempre dirigido para
o futuro. Este já-vivido da vida feliz exprime-se nesta particularidade do amor, já enquanto
desejo, de remeter para o que é anterior. Este reenvio é um reenvio para o passado que permite
por si só à vida feliz entrar no campo do desejo, e, portanto, ser pro-jectada no futuro. Vemos
portanto que esta articulação retrospectiva do desejo exprimia já uma dupla relação do homem
com a sua possibilidade de ser a mais apropriada possível; em paralelo com a relação visada
pelo simples desejo - até agora, o nosso único objecto - surge a relação de rememoração, e isto
de tal forma que só ela torna possível a relação do desejo, quando mesmo a rememoração for
seguidamente esquecida no próprio desejo. Assim, a vida feliz tem como garantia a memória
(memória), uma memória que vai mais longe do que o passado intramundano -uma vez que se
recorda de uma vida feliz que não se pôde conhecer nesta vida que só é miséria (miséria). K
possibilidade de uma tal rememoração é provada pelo pôr em paralelo da recordação de factos
vividos
pessoalmente. Apesar dos factos mudarem, isso não invalida em nada a possibilidade de os
rememorar como factos vividos1. «Pois recordo-me da minha alegria mesmo quando estou
triste, tal como me recordo da minha felicidade quando estou infeliz2». Este paralelismo diz
qualquer coisa de bem preciso sobre o modo de recordar extramundano: a vida feliz não é
rememorada como puro passado, que enquanto tal não a nada obriga a vida factual; ao contrário,
ela é, enquanto passado rememorado, uma possibilidade do futuro (tal como, nos momentos de
tristeza, nos recordamos da alegria a partir da experiência que se teve como um possível que
pode ser reencontrado em momentos actuais de tristeza). E apenas porque nos recordamos nesta
possibilidade específica e nos recordamos de um passado que precede tudo o que é terrestre e
mundano que a vida feliz se pode tornar no fundamento de toda a aspiração humana3. O passado
é presentificado pela memória como aquilo através do qual se pode refazer a experiência. Ele é,
pois, retido no presente, e perde o seu caracter de passado definitivo. O passado é guardado na
memória porque nesta \presentificação torna-se um devir possível4. Isto significa que o desejo
não está absolutamente desligado de tudo, não é flutuante; só é aparentemente autônomo uma vez
que cria uma ligação a qualquer coisa, efectivamente depende de uma relação prévia, sempre
necessariamente esquecida pela sua visão para o futuro. Em conformidade com essa nova e
originária possibilidade de aceder a essa origem de onde provém a vida feliz, o homem não
procura mais o bem supremo no desejo mas sim na procura da vida feliz. «Se a alma pecadora
procura ser feliz, a alma pura procura também aquilo de onde pode retirar a sua felicidade’.»
Nessa rememoração, o homem está desta vez acima de si mesmo, leva-o a ultrapassar todas as
experiências intra-mundanas que estão à sua disposição, e, por outro lado, é reenviado para a
última fronteira do passado, ou seja, para a sua origem última. O homem chega à memória pelo
amor do amor de Deus6. A procura da memória é ao mesmo tempo uma fuga da dispersão. Esta
procura é conduzida pelo amor do amor de Deus, uma vez que a verdadeira confissão consiste
em recordar-se (recordari). Não é pois o desejo da vida feliz que leva à memória, ainda que
também só aí ela pode ser descoberta e sobretudo garantida, mas sim a procura e a interrogação
da sua própria origem, sobre aquilo que me criou (qui fecit me). «Eu quero por isso ultrapassar
também esta força da minha natureza para me elevar progressivamente em direcção a quem me
fez; e eis que chego aos domínios, aos vastos palácios da memória7.» A vida feliz encontra-se,
em primeiro lugar, na memória; através dela, o homem está em relação com o seu ser mais
apropriado, a sua origem. Recordando um passado anterior a toda a possibilidade de
experiência terrestre e humana, a criatura apresenta o limite extremo do passado humano, o a
partir de onde que a '^constitui.
A dependência do desejo da vontade de ser feliz exprime uma dependência mais profunda e
mais fundamental do que aquela que o desejo jamais poderia revelar por si próprio. A tarefa
deste capítulo é a de compreender esta dependência em todas as suas consequências.
A dependência, que já se exprimia na articulação retrospectiva do desejo, é a dependência da
criatura em relação ao Criador. Que o homem, no seu desejo,
dependa, pela vontade de ser feliz, de uma vida feliz que não pôde conhecer na vida terrestre, e
que, pelo contrário, esta vida feliz seja aquilo que unicamente determina o seu ser terrestre,
mostra que, no seu ser, depende de qualquer coisa que se encontra fora de si. E, uma vez que ele
se recorda desta vida feliz, ainda que dela não tenha tido experiência intra-mundana, este fora-
de-si é idêntico a um ante-si: o Criador8 que o precede e que não está em si (in me) senão
enquanto se faz conhecer na memória como aspiração à vida feliz. Somente o ligame
retrospectivo ao Criador dá à criatura aquilo que determina o seu ser, pois tem em \, si, antes
mesmo do acto do Criador (actio creati), a " 5 razão da criação (ratio creandi hominis)9. E
apenas nesta relação retrospectiva na origem que todo o amor (dilectio) adquire o seu sentido,
porque é nele, nas razões eternas (rationes sempitemae), que se encontra o sentido imperecível
de todo o ser terrestre.
«Assim, ainda que nem todas as criaturas possam conhecer a felicidade (...), a que pode
conhecê-la não tira essa possibilidade de si própria, uma vez que foi criada a partir do nada,
mas daquilo de onde provém10». A vida feliz só pode ser alcançada a partir do regresso (redire)
à sua própria origem11. O regresso a si é idêntico ao regresso do Criador. O homem ama-se a si
próprio relacionando-se com Deus enquanto seu Criador. Tal como o desejo que aspira à vida
feliz só adquire o seu sentido na memória que remonta para além da vida terrestre e mundana,
também a criatura, no seu estado de criatura, só adquire o seu sentido através do Criador, que
existia antes de ter ', sido criada, enquanto a sua origem. Pois, na medida em que o Criador é
anterior ao criado, a origem já está sempre lá; e como a criatura nada seria sem esta origem, a
relação com o anterior é aquilo que em primeiro lugar a constitui como ente. E esta realidade de
«ser dado» antecipadamente que funda o estado de criatura do homem. Ser criado significa que
a criatura não tira o seu ser dela própria, mas de Deus, entendido pura e simplesmente como o
ser, o ser supremo (summum esse)'~. O regresso a Deus é a relação retrospectiva com o seu
próprio serb, e toda a criatura só é na medida em que detém esta ligação retrospectiva à sua
própria origem14. Esta relação não é instituída arbitrariamente, é a expressão da dependência da
criatura enquanto criatura. O desejo também tornava o homem dependente - do objecto desejado
(cf. primeira parte). Mas não instituía esta dependência somente a partir da falta específica de
vida; esta dependência é sempre determinada a partir do futuro, na expectativa do bem ou do
mal. Mas a dependência da criatura funda-se justamente na ligação retrospectiva, a ligação com
a origem. O ser é a origem à qual a criatura permanece fixada e que não institui de forma
alguma. O sinal desta ligação é a memória da origem. Se a partir do conjunto Criador-criatura
nós voltamos ao desejo, compreendemos porque é que estamos em condições de chamar
pseudocristã à renúncia a si que daí provém; a intenção de compreender o homem como criado
(çreatum esse) encontra-se logo no ponto de partida primeiro da articulação retrospectiva,
ainda que só apareça na sequência do desenvolvimento.
A criatura é apenas aquilo que é enquanto ente vindo à existência. A estrutura do seu ser é a de
devir (fieri) e mudar (mutari)^. O Criador é o ser absoluto10, e, enquanto tal, é aquilo que por
princípio está antes de qualquer coisa (ante omnia). «Tudo o que, sem ter sido criado, existe de
qualquer forma, não tem nada em si que não tenha existido anteriormente: trata-se da
mutabilidade, da transformação1'.» A mutabilidade do ente-criatura é um modo de ser que lhe é
específico, que nem é ser nem não-ser, mas se encontra no espaço entre os dois. Todo o ente que
foi feito, que foi necessário à partida chamar ao seu ser, não é ser absoluto, está apenas em
relação com o ser18. Este ser é plenamente imutável. A criatura refere-se portanto a um ser que
lhe é oposto pela sua estrutura mais essencial; e, no entanto, ela relaciona-se aí tal como ao seu
ser no sentido da razão eterna (sempiterna ratio). A vida, simultaneamente mutável e não nada,
que nasce e que se apaga, não é a posse simples do ser pelo qual ela é e para o qual caminha,
não está ligada senão a ele19. E mesmo o ente só pode ser mutável porque o seu ser é imutável20.
Uma vez que é chamado à existência, não lhe é possível sequer tornar-se nada, nascer2i, nem
existir já no sentido radical do termo, isto é, ser eterno22. Somente o ente, na diversidade das
suas atitudes, e não o ser, é confrontado com a eterna permanência em si2?. O ente é visto no
pleno concreto da vida humana, vindo do nada, precipitando-se para ele. A mutabilidade da
vida, que, sem ser nada, só é nesta relação retrospectiva, só podendo retomar explicitamente
esta relação na caridade. Mas, pondo isto de parte, esta relação é constitutiva da existência
humana, e o facto de ser dada antecipadamente permanece indiferente tanto para a caridade
como para a cobiça.
O modo de ser do ente que assume esta relação é caracterizado pela imitação (imitari). E assim
que a relação se exprime habitualmente, pois nenhum ser pode escapar a esta imitação. Mesmo
o mal ainda é, como imitação desviada24. Existe, pois, um desvio, proveniente do facto de ser
criado ex nihilo-, mas, uma vez chamado ao ser, já não há queda absoluta para fora da origem,
há apenas um distanciamento (appropinquare nihilo)1". O ser age sempre por imitação, ao
contrário do ser simples de Deus, que, enquanto ser, é desde o início idêntico em todos os seus
actos possíveis: «Ser não é nada mais do que ser um. Por conseguinte, qualquer coisa só existe
na medida em que tende para a unidade (...) pois os elementos simples tiram a sua existência de
si próprios; os compostos imitam a unidade pela harmonia das suas partes e só existem na
medida em que alcançam essa unidade26.» A imitação significa, pois, desde logo, a estrutura
fundamental das atitudes desse ente, mesmo onde há aparentemente um desvio que, na verdade, é
apenas um desvio, uma perversão, e, consequentemente, a imitação consiste na apropriação
explícita desta estrutura predestinada no amor27, que então realiza a volta a si.
A relação da criatura com o ser é a relação com o Criador. Este é antes de qualquer coisa
criada, é antes do mundo, que, na sua consistência factual, surgiu unicamente a partir da razão
eterna28. Como o mundo e toda a criação nascem em primeiro lugar, o seu ser é determinado
pelo devir; torna-se algo, tem um começo. Mas, por esse facto, está desde logo submetido à
mutabilidade, é e nunca foi sempre aquilo que é. Começou por tornar-se. Mas o que começou
por tornar-se, que nem sempre foi, também tem um fim, e um dia já não será29. O ser de que
provém é eterno. E antes o ente, e sê-lo-á depois do ente, é ante nos dois sentidos do termo; era
antes aquilo que foi criado (ante omnia) e é face ao criado, visto que ainda subsiste após o
criado, esse para que o criado vive aqui"0.
A criatura descobre este caracter duplo do ante através da memória, que é uma presentificação
do passado. O passado restaurado na presença da própria existência volta a ser uma
possibilidade de experiência do próprio ser. Assim, recuar à sua própria origem, que aparece
na retrospecção reflexiva como o que abarca o todo, torna-se ao mesmo tempo um transporte de
si para o fim (se referre ad finem), como se fosse um regresso aó Criador. Somente aqui o duplo
sentido do ante, do , antes, adquire o seu verdadeiro significado; para a relação retrospectiva, é
simultaneamente aquilo de onde se vem e aquilo para onde se vai. Dar o ser como eterno torna
portanto inter-mutáveis para o ente temporal o princípio e o fim, a partir do momento em que se
relaciona com o seu próprio ser. O ser (esse), imutável, é simultaneamente o limite extremo do
passado e do futuro extremo. O Criador, idêntico, permanece o mesmo, independentemente
daquilo que cria. Para ele não há tempo, no sentido de uma extensão'1. Por outras palavras, o
seu tempo é a eternidade, o eterno hoje, o presente absoluto. A criatura é determinada
temporalmente pelo facto de se tornar. Com a sua^ mutabilidade, é ao mesmo tempo o que é
criado32. E somente através da recordação e da espera que a criatura pode apreender num todo a
extensão temporal do seu ser, como passado e futuro tornados presentes, e aproximar-se deste
modo do eterno hoje, do presente absoluto que é a eternidade. A grande força (vis) da memória
reside no facto de poder remeter efectivamente o passado para o presente, de modo que, desta
forma, ele nunca é perdido”. Quando o passado extremo e o futuro extremo, que são antes (ante)
de facto no regresso ao seu ser próprio (redire ad se) se juntam, dão à criatura a sua parte de ser
imutável. Vivendo para a morte, para a última fronteira, a vida mortal vai na direcção da sua
origem última. O simples facto de tornar presente toda a vida dá à criatura a possibilidade de
participar na eternidade’4. A re-presentação (Vergegen-wãrtigung) na espera e na recordação,
pela qual a última fronteira do futuro se torna idêntica à do passado, aniquila o tempo e a
submissão da criatura ao tempo. A memória torna presente o passado e permite fazer coincidir
passado e futuro absoluto como se já tivéssemos vivido este futuro que, todavia, se apresenta
novamente como uma possibilidade desejada; por esse meio, o princípio e o fim da vida
tornam--se intermutáveis para a vida factual que na relação reflexiva com o Criador se interroga
sobre o seu ser. Este fenômeno de intermutabilidade põe-nos à partida a questão sobre o
conceito de ser que comanda esta reflexão, ser que permite ao ser verdadeiro do homem conter
o todo, a questão, pois, do antes (ante) na sua dupla acepção de começo e fim. A segunda
questão assenta na natureza da vida no mundo que permite interrogar-se, no regresso a si,
precisamente sobre aquilo que não podemos experimentar no mundo. Pois o ser verdadeiro da
criatura nunca é imanente à vida mundana, encontrando-se, por princípio, antes do mundo, sendo
a origem não-mundana. O que é então este mundo, no qual a criatura é introduzida através do
nascimento e que não é, no entanto, aquilo que a determina originariamente?
A estas duas questões correspondem, em Santo Agostinho, duas intenções completamente
heterogêneas. A determinação do ser é conduzida a partir da concepção grega do ser, aquilo que
é sempre, o que tem permanência3’. No entanto, tal como veremos, este ser não é mais do que o
eterno estado estrutural do mundo. A questão do mundo, pelo contrário, é determinada pela
visão cristã, para a qual tudo o que existe no mundo é uma coisa criada, não sendo portanto
eterna; e esta questão do mundo é determinada pela interpretação especificamente cristã do
cosmos, segundo a qual o mundo é um mundo humano constituído pelo homem'6. Este duplo
ponto de partida implica objectivamente a seguinte dificuldade: por um lado, acontece que o ser
sobre o qual a criatura se interroga encontra o seu ser precisamente na estrutura permanente do
mundo no qual a criatura se encontra remetida; por outro lado, no entendimento cristão do
mundo, a criatura que se interroga sobre o seu próprio ser exila-se, por assim dizer, para fora do
mundo. A nossa tarefa é mostrar como, a partir destes dois pontos de vista, Santo Agostinho
determina o Criador e a eternidade sob a forma de um duplo ante, não alheio às suas primeiras
intenções. Sublinhemos desde logo que, para a relação criatura-Criador, o conceito cristão de
mundo é de longe o mais importante. No entanto, deveremos estudar primeiro o conceito de ser,
proveniente da tradição grega, na medida em que o reencontramos na concepção agos-tiniana do
mundo como universo (universum), para compreender a espantosa inflexão que Santo Agostinho
vai dar ao outro conjunto conceptual de onde exclusivamente pode nascer a determinação do
duplo ante.
Na tradição grega, o ser é o cosmos na sua totalidade, permanece idêntico a ele mesmo
independentemente da variabilidade das suas partes. Cada parte do cosmos só é na medida em
que é parte e que, enquanto tal, tem a sua parte no todo3'. «Tu deste-lhes a possibilidade de
serem partes da realidade; elas não existem ao mesmo tempo, mas, desaparecendo e sucedendo-
se, todas contribuem para a constituição do universo do qual são partes’8, A» O universo é
simul-taneidade (simul)™, somente as suas partes nascem e desaparecem, mas a parte isolada
na sua relação com essa simultaneidade não está de modo algum em condições de a abranger no
seu conjunto, uma vez que, nascendo e desaparecendo, não pode apoderar-se absolutamente
deste simul enquanto tal41. E a partir deste caracter inapreensível do simul que se compreende a
temporalidade específica da parte. Neste contexto, ela não se funda precisamente no caracter
mutável e efêmero da criatura, mas na relação parte--todo. Só existe tempo porque, para a parte,
o simul é uma sucessão. Portanto, contrariamente ao simul da eternidade, o tempo é a sucessão
daquilo que é, de facto, simultaneidade. Esta eternidade é, pois, o estatuto estrutural do
universo. Porquanto mesmo se este, enquanto criado, é levado a desaparecer, só a figura
(figura) é que não é perecível, não a natureza (naturafi. O que significa que, nascendo e
perecendo cada ser particular, a harmonia mantém-se imperecí-vel e nela todo o ser individual
tem o seu lugar. O tempo é a forma através da qual a parte se apodera do universo
(universum)™. Só o universo é simultaneidade, a parte nasce e morre. A parte só é
simultaneidade quando está inserida numa estrutura, na pertença ao universo. Realiza-se por si
própria no universo através do tempo. A sua própria vida (vita) pode ser, por sua vez, cortada
em partes, sempre medidas e compreendidas a partir da simultaneidade do universo44. A vida
perde, deste modo, o carácter irreversível e único de um desenrolamento que vai do nascimento
à morte.
O universo é simplesmente aquilo que envolve tudo, indiferente a cada uma das suas partes. Ele
é, enquanto invariante, o que confere constituição às partes, que só têm sentido devido a esta
incorporação no todo. Através desta integração, cada momento isolado da vida torna-se ele
próprio parte que só pode ver a luz do dia enquanto parte, porque a vida não tem esta
simultaneidade. O ser é, portanto, o todo, aquilo que abrange e envolve; para ele, o tempo não
existe, ele é o presente eterno que presentifíca simultaneamente tudo e que contém de uma vez só
o carácter temporal e perecível das partes. Além disso, este universo não contém mal (malum),
mas apenas os bens (bona) que tomam o seu lugar na ordem e que só podem surgir como maus
ao indivíduo isolado (singulum)^. Este ser, o universo, não é nem a soma das coisas singulares,
nem a potência criadora que, a partir de do fora, assim fará as criaturas46, mas sim a substância
eterna, a estrutura eterna regida segundo leis, a harmonia das partes4'. O mau é o que se retira
desta harmonia predeterminada, que desobedece a essa lei eterna impressa em nós (lex aeterna
quae impressa nobis est). Esta lei é impressa em cada indivíduo entendido como parte, sendo a
melhor o homem perfeitamente ordenado (homo ordinatissimus)™. Para o homem enquanto
parte, não pode haver aí regresso (redire) ou reenvio (referre) (deste modo, estes termos já não
aparecem na questão do universo), visto que o ser não é aqui esse ser próprio (ratio) do ente
(criatura), com o qual ele tem, para o seu estado de criatura, uma relação necessária; ele é
simplesmente o englobante, independentemente de que o indivíduo o queira ou não e mantém-se
perfeitamente indiferente ao seu olhar. A parte não tem nenhum início ao qual relacionar-se. O
universo do qual não pode conhecer a universalidade não é a sua origem mas sim a ordem
superior, a permanência eterna e estruturada que determina também a sua estrutura, mas que não
a cria49. Esta ordem é tal que o é para toda a eternidade, e o mesmo se aplica àquilo que aí
encontra o seu lugar, indiferentemente do facto da coisa singular aí nascer e morrer. Enquanto
nasce e desaparece, podemos a todo o momento substituí-la e aumentá-la. A parte só existe para
a beleza (pulchritudo) do universo, e nunca para ela mesma. O si, enquanto coisa singular, está
simultaneamente encerrado e perdido na simul-taneidade (simul) do universo, permanecendo
eternamente idêntico a si próprio. O antes (ante), no sentido do Criador, perdeu aqui o seu
significado. Nem o mundo nem o Criador estão lá à partida; esta questão não tem sentido, pois
perde-se de vista o carácter concretamente perecível da vida humana quando é compreendida
como parte. Este conceito de mundo proveniente da tradição grega50 não é na verdade
propriamente central nos escritos tardios de Santo Agostinho. No entanto, ele dá uma orientação
claramente diferente à problemática do conceito de mundo (mundus), de que trataremos agora, e
à relação retrospectiva que exclusivamente permite com-preendê-la.
«Portanto, nada chega ao mundo por acaso. Posto isto, daí se segue que tudo o que se realiza no
mundo é em parte a obra divina e em parte a obra da nossa vontade’1.» Nós somos por nossa
vontade parte que se apodera daquilo que advém ao mundo. Deus, na medida em que é também
por ele que qualquer coisa advém, não é o Eterno, aquele que abrange o todo, que nos contenta a
nós e aos nossos actos; a relação é de parte a parte (pai^m-partim). O mundo é portanto o lugar
daquilo que advém (geri), fora do qual de algum modo se encontra aquele que faz advir
(gerens),-quer seja o homem ou Deus. Em todo o caso, o que advém ao mundo é também
constituído pelo homem que vive no mundo. Mas, então, o que é este mundo?
«Chama-se "mundo", com efeito, não apenas a esta criação de Deus, o céu e a terra (...) mas
também todos os habitantes do mundo são chamados "mundo" (...) Todos aqueles que amam o
mundo são chamados "mundo"’2. O mundo, portanto, são aqueles que amam o mundo (dilectores
mundi). O conceito de mundo é duplo: por um lado, o mundo é a criação de Deus - o céu e a
terra - dada antecipadamente a toda a dilectio mundi, por outro lado, ele é o mundo humano a
constituir através do facto de o habitar e de o amar (diligeref”. Naquilo que advém pela nossa
vontade, céu e terra fazem-se mundo neste segundo sentido. Só há mundo, em primeiro lugar, no
acto de constituir o mundo, mas ele não é criado como na criação ex nihilo-, a partir da criação
de Deus (fabrica Dei), a partir da criação que lhe é anterior, o homem faz o mundo e faz-se a si
mesmo pertencendo ao mundo. «Por que razão os pecadores são chamados "mundo"»? «Porque
eles amam o mundo, e amando-o, habitam-no; da mesma maneira, a palavra "casa" designa ao
mesmo tempo a construção e os que a habitam’4». O que advém pela nossa vontade é conduzido
pelo amor do mundo (dilectio mundi), pelo que o mundo, a fabrica Dei, torna-se a pátria
totalmente natural do homem. A própria vida que se instala naquilo que é dado pela criação
onde toma lugar nascendo faz da criação o mundo por este meio”. Tornar o mundo mundano,
amar o mundo, funda-se no facto de ser do mundo (de mundo)' ('. Aquilo que é do mundo já não é
mundano, tanto mais que não é a criação de Deus como tal - veremos seguidamente o que
significa este «mundano». Aquele que é do mundo tem a possibilidade de não querer estar em
casa no mundo, e de assim manter incessantemente em aberto a relação retrospectiva com o
Criador. «Não ponhas o teu amor na criação mas habita o Criador’7.» A criatura encontra a
criação de Deus já lá, e, encontrando o mundo já lá, encontra-se também a si já lá, como
criatura do mundo, igualmente criada por Deus. Somente adoptando o mundo como pátria,
aquilo que não está no puro ser-já-Iá criado por Deus, a criatura funda o mundo (mundus). Por
oposição a este encontrar-se-já-lá (invenire) de que a criatura depende em todo o fazer (facere),
existe o acto livre de criar e de eleger, que pertence a Deus’b. Como ofabri-care próprio à
criatura depende do invenire, está aí a expressão de estranheza específica na qual se encontra
para ela o mundo na sua interioridade como sendo já um deserto. Contrariamente ao fabricate
de Deus, que tem em si o mundo que criou (miindus infusus fabricat), que portanto mantém uma
ligação original com aquilo que é criado’9 e que só existe como criação de Deus, o homem
mantém-se alheio à sua própria fabricação (fabricatiim)-, o que é fabricado é dado já como
coisa no mundo sem outra ligação com o seu fabricante (faber) - aí, uma vez mais,
contrariamente à criação divina, que é ao mesmo tempo uma conservação continuada60. O
homem pode a todo o momento retirar--se daquilo que ele próprio fabricou, sem que, no entanto,
isso deixe de estar ao alcance da sua mão. Ele mantém-se de fora (forinsecus) daquilo que é
criado e, enquanto tal, não tem poder sobre si. O mundo guarda, pois, mesmo quando o homem
nele se instala - o que se realiza no fabricare - a sua estranheza original. O homem não tendo
nenhum poder sobre tudo o que fabricou, isto torna-se imediatamente o já-lá e faz-lhe frente
como mundo. Ele tem, portanto, uma escolha a fazer: retirar-se, através da reflexão sobre a sua
própria origem, de um mundo que tornou habitável habitando-o, ou reapropriar-se dele
explicitamente pelo desejo. Não é o fabricare enquanto tal que suspende o caracter de
estranheza do mundo e que faz do homem um habitante do mundo - o fabricare deixa sempre o
homem, quanto à sua essência, no exterior do fabricatum ~ mas o amor do mundo, pelo qual o
homem faz explicitamente do mundo a sua pátria, e do qual ele só espera no desejo o seu bem e
o seu mal. E nesse momento apenas que o homem e o mundo se tornam «mundanos». Num outro
sentido, o homem descobre-se também pertencendo já ao mundo; renunciando a todo o fabricare
ex aliquo e a habitar na fabrica onde se exprime o amor do mundo, ele é do mundo, mas apenas
enquanto é criado com ele e nele61. A mundanidade do mundo só é possível aí, quando o fazer e
o amar do homem se tornam autônomos, independentes do puro ser criado.
Neste necessário ser do mundo, a criatura só é enquanto o mundo é: «Todos os que são do
mundo vêm depois do mundo; vindo o mundo antes do homem, o homem é do mundo; mas Cristo
vem antes do mundo62.» O facto de se encontrar já lá (invenire) comporta em si o após (post).
Na medida em que o homem não se introduz no mundo aí se criando mas aí se encontrando a si
mesmo, ele é principalmente depois, tão posterior ao mundo no qual vive como posterior, neste
sentido específico, ao seu próprio ser6’. Mas para ele, que, posto no mundo pelo nascimento, e
deste modo ente do mundo, o mundo já está lá, para ele, presente, acessível, o próprio ser pelo
que ele é, o que ele é (a sempitema ratio/', situa-se igualmente por princípio antes do mundo ao
qual ele pertence sendo do mundo como ente do mundo. O seu próprio ser está antes dele e só
lhe é acessível sob a forma de um passado tornado presente na memória. Toda a procura de si
(se quaerere), toda a descoberta de si (si invenire) residem no facto de, enquanto criatura, o si
ser posterior ao seu próprio ser. Este está, por princípio, antes (ante)-, o ente é o que é a partir
desse ser e procura-se na procura deste antes. Ser do mundo precede, pois, todo o amor
explícito do mundo (dilectio mundi) e afirma a pertença ao reino da Criação. Em relação ao
mundo, o facto de ser criado significa, pois, duas coisas para a criatura: ela é desde fogo criada
e introduzida no mundo, e, portanto, depois do mundo (post mundumi). E nesse depois que se
funda a sua dependência do mundo, a possibilidade de tornar-se mundano. O mundo é, em certa
medida, o falso ante - o que demonstraremos adiante - pois, em segundo lugar, a criatura é do
mundo, pese embora o mundo pertencer ao que é criado e reenviado à verdadeira origem.
Vemos claramente que o antes nasce desta relação criatura-mundo. A criatura, introduzida pela
criação no mundo, procura-se a si mesma, como aquilo que, sendo criado (creatum), é posterior
ao seu ser, como o que antes de tudo a chamou para este ser-no-mundo. Esta procura do próprio
ser é específica à existência humana mas não o é à fabrica Dei-, funda-se no querer-ser-feliz
que reenvia, pela relação retrospectiva na memória, ao Criador6'. O mundo enquanto fabrica
não comporta a menor dúvida sobre o seu ser. Este mundo só existe antes e depois da criatura e,
ainda que seja criado, o seu ser não é de algum modo discutível. Se a fabrica ignora esta
interrogação, é porque, ainda que mutável (muta-bilis), não é no entanto efêmera. Interrogando-
se sobre o seu próprio ser, a criatura põe a questão - proveniente do conceito grego de ser - em
relação ao que não acontece, e isto justamente a partir da experiência que ela tem do mundo
como céu e terra. A primeira experiência não é a da perenidade de Deus mas a da perenidade do
mundo. A expressão «depois do mundo» (post mundum) demonstra-o bem. Pois o que está
depois distingue-se do que está antes - já o vimos acima - pelo facto de ser sempre determinado
pelo devir fieri). Quando Santo Agostinho fala do carácter efêmero do mundo, é sempre no
mundo constituído pelos homens que ele pensa (como faz parecer claramente a utilização do
termo «século», saeculum, neste século, in hoc saeculo, etc.66) e nunca no mundo como céu e
terra. Século exprime justamente a temporaliza-ção do mundo6', não o mundo em relação ao qual
a criatura está depois, mas o mundo que ela própria constitui pelo seu ser do mundo (no que diz
respeito à inclusão do mundo no estado efêmero do homem, ver acima). O termo século
(saeculum) quer dizer o fim do gênero humano (genus humanumf*. Na procura do seu próprio
ser, a criatura reecontra o ante, o antes, o Criador.
Mas, para compreender este duplo antes, devemos explorar de forma mais precisa e mais
concreta o que é a vida da criatura. Desta explicação do mundo podemos tirar provisoriamente
esta conclusão: o conceito de mundo analisado acima, segundo o qual o mundo significa
simplesmente o universo (universum) e o todo (totum), do qual a eternidade é a invariabili-dade
de uma estrutura, na qual o homem não é criatura mas parte, desempenha aqui um papel
importante para o conceito de mundo (mundus)-, desloca o ponto de partida inicial da
compreensão de onde a criatura criada era compreendida simultaneamente come no mundo e
permite compreender o do-mundo (de mundo) e o mundo novamente como primeiro (prius) na
sua imutabilidade. Mas, desde logo, a vida humana é reintroduzida no fechamento do mundo e já
não concomitantemente no mundo. Pois ao depois do mundo do nascimento corresponde o facto
de durar após a morte.
O que é criado tem a estrutura do devir, do ter-se tornado (fieri), e, portanto, do perecível. Tudo
o que é criatura provém do ainda-não e corre para o já-não. Provindo de um ainda-não, a
criatura, na medida em que se põe à procura do seu próprio ser, torna explícita, pela questão do
antes, a relação retrospectiva com a sua própria origem a partir desta relação prévia.
Caminhando para um já-não, ela relaciona-se antecipadamente com a morte (refert ad finem)69.
A vida desenrola-se no mundo do ainda-não para o já-não. Por se interrogar sobre o antes e o
depois, a criatura questiona o para-além deste mundo, constituído com e pelo homem, e isto de
duas maneiras - pondo a questão da não-criatura, do antes de tudo aquilo que é criado (creatum
esse). Esta interrogação que ultrapassa o mundo funda-se no ainda-não e no já-não que
delimitam a vida. Esta dupla negação, «não» e «não»*, designa aquilo que precede a vida e lhe
sucede no mundo. A vida é posta no mundo pelo nascimento, e, morrendo, deixa novamente o
mundo em que viveu. A procura de si tem, pois, duas linhas directoras: a vida pode interrogar-
se relacionando-se com a sua origem ou no fim da sua existência'0. E verdade que as duas
questões assentam sobre o não da vida (nondum, ainda-não / iam non, já-não)'1, mas este não é
qualitativamente diferente; o do ainda-não designa a origem e o não do já-não designa a morte'".
Mesmo que pareçam igualmente negativos, o não do passado e o do futuro estão longe de ser
idênticos. O limite extremo dó passado é bem para a criatura o não-ser (non esse), na medida
em que é feita do nada (ex nihilo)'’, mas neste limite ela reencontra o ser tornado seu, na medida
em que é chamada ao ser; ela não provém, portanto, totalmente do nada (nihil), mas também do
ser supremo enquanto princípio (stwrnne esse qua principiam)') Antes dela, existia tanto o ser
supremo como o nada absoluto'1, e somente por aquilo que é feito do nada é que Deus é
absolutamente o antes. Qualquer outro antes remetería, como o antes do mundo, mais longe para
trás, para onde a criatura seria engendrada a partir de Deus (genita de Deo), como o Filho único
(Unigenitus) e, por este facto, não diferiría de Deus, ser-lhe-ia consubstanciai (consubs-
tancialis)16. O Unigenitus também é Dele (de illo), mas, para o Filho único, Deus não é o
primeiro. Não tem princípio, pois nunca foi nada. O princípio permanece, existia antes da
criatura. Todavia, com o princípio que permanece, a criatura tem logo a relação determinada
pelo facto de ser dele saída. O «não» do ainda-não da vida tem um sentido positivo. Está ligado
ao que sucede ao ainda-não, ao que foi criado, e ele próprio só é como tal ao relacionar-se com
o seu próprio ainda-não, que lhe comunica e assegura a eternidade da sua origem. A vida
proveniente do ainda-não «tende» para o seu ser". Este facto de tender para qualquer coisa já
está contido no facto de ter vindo do nada para o ser. Mas a vida onde se efectua este tender
para o ser (tendere esse) tem um fim visto que também teve um começo'8. A vida, vivendo em
direcção ao seu fim no tendere esse, vive novamente em direcção a um não-ser que se distingue,
todavia, do primeiro; e o tendere esse realiza--se como relação retrospectiva com o ainda-não,
pois é só no nada como origem que se encontra ao mesmo tempo a origem do tendere esse. O
ainda-não da vida não é, portanto, nada; como origem, ele determina-a, pelo contrário, na
positividade do seu ser. Esta relação retrospectiva com o ainda-não é necessária porque a vida
no mundo tem um fim. Se o princípio significa a entrada no mundo, o fim significa que é preciso
voltar a sair daí. A relação retrospectiva vai até antes do mundo, a vida volta aí antes do mundo.
O que esta relação retrospectiva procura é este facto independente do já-não absoluto da morte.
Origina-riamente, antes de qualquer interpretação especificamente teológica e cristã, o nunca-
mais da morte não se relacionava com um ser ao qual a criatura estaria ligada, mas significava
simplesmente um já-não definitivo de tudo o que a vida efêmera tem ou é79. Por outro lado, só
existe relação reflexiva porque a vida é passageira. E apenas porque a vida tem um fim, e um
fim tal que já é dado com o começo, que deve constituir a relação retrospectiva na procura do
seu próprio ser. A morte é o último afastamento da própria origem, do Criador. A vida perde o
seu ser na morte uma vez que se distancia da origem do seu ser80. O perigo que o homem corre é
o de não poder ver este necessário tender para o não-ser (tendere non esse), de não actualizar a
relação retrospectiva e de sucumbir deste modo à morte, ao afastamento (alie-natio) de Deus,
absoluto e eterno.
E apenas através da morte que o homem se torna atento à origem da sua vida. Tal é o sentido da
sua fragilidade e do estado da criatura, assim como esclarecemos acima. A morte como fim da
vida reenvia a vida para a origem do seu ser. Presentemente, compreendemos apenas a
importância do retorno (redire). A retrospecção não é uma relação que se realiza pela vontade
de cada criatura e em todas as ocasiões; pelo contrário, parte da morte e reencontra, neste
questionamento retrospectivo determinado partindo da morte, o Criador enquanto ser (Creator
quae esse). Neste questionamento, a vida compreende--se como proveniente do ser e
precipitando-se para o nada. A origem, inicialmente compreendida de forma negativa como um
ainda-não, inverte-se na sua determinação pela morte num positivo e torna-se um ser puro e
simples. A morte, inicialmente tomada como um nunca-mais do ser, inverte-se para um nada
absoluto81. A posição intermediária do homem entre o ser e o não-ser é agora considerada de
um ponto de vista essencialmente temporal, mais ainda, ela é o próprio tempo82. O tempo não é
apenas o indicador da corruptibilidade, é ele próprio corruptibilidade; e, na medida em que a
vida humaná deve unicamente ao seu passado a possibilidade de ser positiva, é através da
memória que é possível reter o tempo, pôr fim à corruptibilidade8'; e daqui resulta que na
memória o passado já não é mais um puro ser passado, um não--ser-mais, mas é, pela sua
representação, tornado presente. A morte reenvia a vida à sua origem, para o que precede o
mundo (que precede a sua entrada no mundo), para o seu próprio ainda-não. Neste ainda--não
que é o verdadeiro antes, toda a diferenciação individual que a criatura tenha podido deter
desaparece. A morte torna semelhante (idem) rejeitando tudo aquilo que está para trás84. Ela
revela a dupla negativa do ainda-não e do nunca-mais. Com o nunca-mais definitivo, mostra ao
mesmo tempo que todos, num determinado momento, ainda não éramos, e que é nesse não-ainda-
ser, nisso que nos precede, que reside a verdadeira positividade dessa existência,
essencialmente determinada pela morte. Só somos na medida em que temos uma relação
imediata com o antes da nossa existência e com o seu ainda-não.
O fim da vida com o qual a vida se relaciona e que a reenvia para trás é um fim (finis) nos dois
sentidos do termo; por um lado, um fim imanente mesmo à vida, o indicador derradeiro e radical
da sua corruptibilidade8’, mas, por outro lado, fim significa também aquilo em que a vida acaba,
o porquê do seu ser86; de certo modo, o fim é o ponto onde a vida esbarra com a eternidade, é
essa mesma eternidade. Assim, a eternidade é para a vida o fim, onde ela atinge o seu fim. O
fim, no primeiro sentido do termo, como termo da vida, põe a vida diante do seu antes (ante) e
só tem este sentido provocante de uma certa maneira. O fim é compreendido como o nada
verdadeiro, irrevogável, para o qual a vida se precipita constantemente e do qual apenas o
regresso (reditus) pode salvá-la. Neste segundo sentido, o fim torna-se a eternidade, o momento
em que acaba num sentido radicalmente positivo e se oferece ao olhar que permanece, à
quietude da contemplação. Assim, quando a vida se compreende no seu ser, reenviada à origem,
compreende-se aqui precipitando-se para o seu ser, e só se reencontra constantemente e
exclusivamente esta significação na altura em que Santo Agostinho fala da referência ao fim (se
refere ad finem). Este duplo sentido de fim não corresponde, pois, a dois contextos diferentes.
Deve ser justificado pela nossa análise da referência (referre) e do retorno (redire).
Para a referência ao fím, o ser volta a ser antes, e este antes do futuro > tem exactamente o
mesmo conteúdo que o antes do passado extremo, sabendo-se que ambos são imutáveis
(incommutabile). Mas, neste contexto preciso, a rfeflexão sobre o estado de criatura e sobre
Deus enquanto Criador não desempenha nenhum papel. Este duplo sentido de fim deixa
transparecer de novo o fenômeno, para nós primordial, da intermutabilidade do começo e do fim
de que a vida experimenta, limitada de parte a parte por este duplo não, pelo facto de que a sua
existência é problemática e pelo qual vemos uma vez mais a importância que tem para a própria
vida. Só podemos compreender este fenômeno baseando-nos na explicação do mundo para
aquém do qual a vida refere a sua questão e esclarecendo a significação do princípio e do fim
(momentos em que a criatura é introduzida no mundo e aí é excluída).
Constatámos no início desta passagem que encontramos em Santo Agostinho uma concepção
dupla, absolutamente heterogênea, do mundo. A vida, considerada no seu estado de criatura e na
sua mortalidade concreta, é compreendida como vida no mundo e com o mundo, do qual, num
primeiro tempo, já não é mais independente (no regresso do mundo à origem, por exemplo) do
que o mundo dela; pelo contrário, ela participa na constituição do mundo onde vive. Para esta
vida, há um princípio e um fim, enquanto ela é chamada no mundo e à existência, enquanto ela
os exclui e perde. Pouco importa aqui que o mundo seja tomado no sentido daqueles que amam
o mundo (dilectores mundi) ou da criação de Deus (fabrica Dei). Porquanto mesmo se a
criatura constitui o mundo, constitui-o sempre fundando-se na fabrica Dei, no mundo tal qual
como ela o encontra já aí, criado, e somente daí resulta a possibilidade de constituir uma vez
mais o mundo num sentido explícito. Na morte, deixa-se afabrica Dei tanto como o mundo.
Visto que é efêmero, o homem tanto perde este mundo onde foi introduzido como também aquilo
que ele próprio criou no amor do mundo (dilectio mundi).
A parte do todo é, enquanto parte, mutável e inter-mutável. O todo que a engloba mantém-se
indiferente ao seu olhar. Na sua simultaneidade e na sua universalidade, o todo é, contudo, um
ser imutável (incommutabile) com o qual o homem se refere. Mas isto também possibilita uma
dupla interpretação; segundo a tradição grega, o ser não é propriamente Criador, mas sim o
eterno conjunto estruturado do cosmos. Na mimesis, a própria essência do ser toma parte no ser
eterno. O regresso a si já não significa que seja preciso deixar o mundo. Já existia a imitação de
Deus (imitatio) quando a parte se inscreveu no seu lugar certo na ordem do mundo, com o
homem per-feitamente ordenado (forno ordinatissimus) que se dispõe exactamente no todo que
o encerra, em função do qual só ele é aquilo que é, isto é, parte. Mas se o ser imutável se
distingue por princípio do ser do mundo, enquanto antes, se não está incluído no conceito de
mundo mas transcende-o enquanto origem do mundo, o regresso (reditus) adquire o seu sentido
original de regresso. Mas, na medida em que aquilo com que se relaciona, o próprio ser, é
tomado como o que nunca muda, o ser permanece, tanto antes como depois, o englobante,
englobando a sua eternidade também a temporalidade. No final, ele é tal como era no princípio.
Aquilo para o qual a vida se precipita é idêntico à sua origem. Compreendemos no presente o
sentido da dupla acepção do fim. Referir-se ao fim num sentido único, enquanto Santo
Agostinho tinha unicamente em vista o tender-para-o-ser (tendere esse), para o qual o fim é ao
mesmo tempo a origem, o ser englobante, a eternidade. No seu sentido habitual de fim da vida, o
fim só pode adquirir este segundo sentido devido ao conceito de ser que se apodera novamente
do ser na sua transcendência, mas que, enquanto tal, o faz englobar o mundo e a vida. Mostrando
à criatura o seu nada, o que ela não pode fazer se o homem for entendido como parte, a morte
indica-lhe a sua origem e uma maneira possível de escapar ao nada, e, logo, de escapar à morte.
Sendo este ser imutável, o próprio homem torna-se nele. A vida, englobada pela eternidade,
toca aí o seu princípio e o seu fim. O carácter original de limite que tinham o princípio e o fim
quando eram o limite último face ao ainda-não ou ao já-não, limite que, por si só, levava à
procura de si (se quaerere), é invertido ao longo dessa procura; princípio e fim são limitados
pela eternidade. Este duplo aspecto da vida, que simultaneamente limita e engloba, perde o seu
carácter de limite; vir do nada e para aí se precipitar já nada significam. A própria morte perdeu
o seu sentido. A vida adquire o caracter que lhe é específico quando é tomada a partir do ser
que a engloba.
E necessário, portanto, compreender o duplo antes (ante) a partir do duplo sentido de fim e da
premissa de que o ser é um ser-sempre. Mas, para que a morte possa tornar-se num antes, é
preciso, desde logo, que a vida descubra a sua função; a morte faz descobrir a futilidade
(vaidade) da vida, e através disso remete para a origem. Através desta função, a morte isola a
vida do mundo, fazendo aparecer claramente a futilidade do ser-no-mundo. Esta futilidade
consiste precisamente no tornar-se não-ser a partir do ser. A vaidade específica da vida é
anulada, também ela, a partir do momento em que a morte se torna o princípio de uma
eternidade onde a vida se encontra inscrita; torna-se o momento positivo da paragem. Mas, à
primeira vista, o desenrolar factual da vida já não é a passagem única, irremediável e
irreversível do ser para o não-ser. A vida vai até ao ser no ser, até à eternidade na eternidade.
Destruindo deste modo o significado do fim, é ao mesmo tempo o desenvolvimento da vida que
está nivelado, na medida em que o princípio e o fim já não estão absolutamente separados, mas,
englobando-os, tornam-se idênticos. A questão sobre o próprio ser, que justamente dá ao ser
específico da vida uma importância tão decisiva, mesmo quando ela é vista na sua vaidade, é
aqui suprimida. O desenrolamento concreto da vida já não tem importância. Se a morte
unicamente comunica o ser novo, que é o ser original, a existência é nivelada, e pouco importa
se é breve ou longa. «De tal maneira que a duração desta vida não é absolutamente nada senão
uma corrida para a morte, ao longo da qual ninguém pode parar um pouco ou abrandar a marcha
de tempos a tempos, mas onde todos se precipitam ao mesmo ritmo e seguem na mesma
peugada. Aquele que viveu menos tempo não passou o dia mais rapidamente do que o que
morreu mais velho (...) Aquilo que uma duração mais longa conduz até à morte não viaja mais
tempo mas percorre mais caminho8'.» A in-termutabilidade do princípio e do fím da vida fá-la
surgir como um simples trajecto que perde toda a importância qualitativa. A própria existência
perdeu um sentido que só pode ter por e para ela própria na sua extensão temporal. A morte
torna idem desvalorizando a vida enquanto tal, se já não entendermos a vida a partir de antes da
morte (ante mortem) mas de depois da morte (post mortem).
2 - CARIDADE E COBIÇA (CARITAS ET CUPIDITAS)
Já vimos que o regresso ao Criador era a determinação estrutural originária do ser da criatura.
Mas este regresso só se actualiza quando a morte reenvia a criatura a esta ligação estrutural. O
antes só está aí enquanto tal quando o homem se apodera dele positivamente. E a caridade que
realiza este apoderamento positivo da própria realidade na relação com Deus. Falhar este antes
tomando o mundo, que também ele está antes e depois do homem, até à eternidade, apoderar-se
do falso antes, é a concupiscência ou ainda a cobiça. Portanto, caridade e cobiça dependem as
duas do homem à procura do seu próprio ser como de um ser-sempre, e este ser sempre é, nos
dois casos, pensado como aquilo que inclui a existência concretamente temporal.
«Ninguém poderá existir sem amar, mas a questão é: amar o quê? Pois não nos é de modo algum
ordenado amar, mas sim escolher o objecto do nosso amor88.» Não é apenas o objecto do amor
que distingue a caridade da concupiscência, mas sim o acto de escolher (eligere). O amor do
mundo (dilectio mundi) nunca é uma escolha (electio), visto que o mundo já está sempre aí e o
amor do mundo é dado naturalmente. A tomada através da relação retrospectiva vai para além
do mundo; apodera-se e escolhe aquilo que o mundo não oferece ele próprio. Neste amor que
escolhe, o Criador é tomado na sua relação pessoal com a criatura. A criatura reconhece-se
como criatura escolhendo na caridade o Criador. O Criador, do qual depende a existência da
criatura, está aí antes de que a criatura escolha; por outras palavras, o próprio acto de escolher
depende ele próprio ainda daquilo que escolhe, e isso só é possível devido a uma escolha
(electio) antecipada do próprio Criador: «Se não tivermos provado a prontidão para amar,
aplique-mo-nos a amar de volta. Ele amou-nos em primeiro lugar - tal não é a nossa maneira de
amar89.» A caridade que escolhe está também ela, enquanto realização da relação retrospectiva,
submetida a um anterior (prius). E apenas na medida em que o próprio Criador actualiza ele
próprio a relação de dependência da criatura que esta tem a possibilidade de também ela se
apoderar desta actualização na caridade90. Esta actua-lização feita por Deus da relação
retrospectiva da criatura é a escolha no seio do mundo (electio ex mundo)91-, esta actualização
é a verdadeira graça de Deus (gratia Dei). A graça divina dá a possibilidade à
criatura de se apoderar do seu próprio ser que se esboça no regresso, e, como este ser vem de
Deus, é o próprio Deus, esta possibilidade torna-se um ser vivo segundo Deus (secundum Deum
vivere)' 11. Apoderar-se explicitamente da graça de Deus quer dizer apoderar--se explicitamente
do seu próprio estado de criatura, realizar a dependência prévia do ser, a partir da qual somente
a própria existência é o que ela é. Na medida em que esta existência, ainda que vivida no
mundo, é apesar de tudo determinada por um ente que está absolutamente fora do mundo e antes
do mundo, a graça de Deus tira ao mundo a criatura, é a escolha no seio do mundo93. Por esta
eleição, a criatura compreende que não pertence ao mundo mas sim a Deus94. E aqui, com esta
função do amor (dilectio), compreendemos ainda melhor o papel decisivo da morte na
descoberta do ser do estado de criatura. A morte, que só ela, exceptuando Deus, tem o poder de
subtrair o homem ao mundo, reenvia à eleição no seio do mundo. Teme-se a morte porque se
ama o 1 mundo (amor mundi)-, a morte aniquila não só qual-quer posse do mundo, mas também
todo o desejo de amar qualquer coisa por vir que se espera do mundo9'. A morte destrói a
relação natural no mundo da qual o amor mundi é a expressão. Por isso, a morte é, de modo
puramente negativo, de tal maneira poderosa, separando-nos do mundo, como o amor de que se
apodera em Deus o próprio ser. «Este amor constitui precisamente a nossa morte no século e a
nossa vida em Deus. Com efeito, se se trata de uma morte logo quando a alma deixa o corpo,
como é que não se trataria de uma morte na qual nós renunciamos à nossa afeição ao mundo? O
amor tem, pois, a força da morte .»
A escolha no seio do mundo (electio ex mundo) dá a possibilidade de viver segundo Deus. Na
caridade operante, a imitação (imitari) própria a tudo o que é criado, imitação necessária e
ontologicamente fundada, torna-se similitude explícita com Deus (sicut Deus). Ao mesmo
tempo, o ser do mundo (ex mundo esse) destrói a singularização e a individualização do homem
dadas no mundo, reduz ao mesmo (idem), como a morte reduz ao mesmo, dado que, ao
desaparecer, o mundo retira a possibilidade da presunção (jactantia), que provém justamente da
mundanidade da criatura quando é comparada com outras97. No avançar da caridade para o ser
enquanto tal, que, na sua universalidade e no seu poder supremo absoluto é também o seu
próprio ser, a criatura desfaz-se de tudo o que com propriedade lhe pertence. «Rejeitar-me-ei a
mim mesmo e escolher-te-ei98.» E verdade que a imitação, quer seja justa quer seja
deformadora, determina, enquanto estrutura ontológica, todo o conjunto da vida. Mas a imitação
dá total liberdade a qualquer acto desta vida. A própria imitação é independente da vontade
agente do homem. A vida e as acções humanas no mundo eram uma função desta imitação, mas o
próprio homem não se lhe submete, pois não depende explicitamente desta determinação. Como
estrutura ontológica, a imitação não depende da decisão do homem para consigo mesmo, mas
deixa o homem na sua liberdade imanente enquanto este não se apoderar explicitamente desta
função, função que é ele próprio enquanto não lhe é submetido para decidir da justiça ou
injustiça dos seus actos. No movimento da imitação, ele é livre, mas apenas para si próprio, e
não para Deus. Porém, Deus, enquanto determina tudo o que fazemos ou não fazemos, não pode
ainda ser descoberto99, enquanto o homem deixar a imitação na sua objectividade não pensada,
enquanto não se apodera explicitamente de si próprio, confirmando por este meio que depende
de qualquer coisa que lhe é exterior. Apenas apoderando-se explicitamente da imitação surge a
exigência de ser como Deus (sicut Deus)™. O limite eterno deste processo de assimilação é a
igualdade101, é o limite da criatura enquanto tal. No avançar para o seu próprio ser, ela
permanece constantemente no caminho, porque ainda que tenha sido escolhida no seio do
mundo, não é menos do mundo, introduzida originalmente no mundo pela criação e por este ser--
no-mundo, escolhida^ por Deus (electa), portanto, separada do ser puro. E a razão pela qual a
igualdade nunca se pode ter como um todo (totum). Se se tivesse como um todo, teria o seu ser
no sentido em que nós o entendemos aqui; mas uma vez que para si, enquanto criada, o ser só
pode ser a origem, a sua existência concreta é determinada pela temporalidade onde nunca pode
apoderar-se a si mesma por inteiro102. Todavia, a igualdade é ao mesmo tempo o fim, a
perfeição nunca inacessível. A única possibilidade que resta ao homem é de chegar sempre cada
vez mais longe na semelhança (similitudo)™. Aquilo a que o homem se assemelha é a Deus
como ser supremo (summum esse), o ser puro e simples, face ao qual todas as diferenças
individuais desaparecem porque são da ordem do criado. A rejeição de mim-próprio é ao
mesmo tempo assemelhar-me mais a Deus. Nessa actualização da imitação que se realiza na
renúncia absoluta ao eu que se encontra como ser do mundo, a criatura apodera-se da sua
própria existência como pura e simplesmente oposta a Deus - o que se
exprime na impossibilidade da igualdade - e compreende isso de maneira bastante mais radical
vendo a relação entre o Criador enquanto ser e criatura, onde o mundo e a própria criatura
seriam já a imitação eterna do divino. Somente aqui, nesse amor que se apodera do Criador, o
limite posto à criatura torna--se-lhe então perfeitamente visível, tal como a sua total
insuficiência face à exigência do criado por Deus (z? deo creatum), o qual, ao mesmo tempo
que um a Deo, é necessariamente também um ad Deum (em direcção a Deus). Esta exigência e o
facto de não poder ser preenchida, é a expressão da dependência do homem face a face a Deus;
exprime-se concretamente na lei (lex) e na impossibilidade de a cumprir (implere).
«E uma lei inscrita no coração dos homens, que nem mesmo a iniquidade poderia apagar104.» A
lei é a exigência a todo o instante presente que Deus enquanto Criador dirige à sua criatura. A
lei exige o que a criatura não está preparada para cumprir por si própria; a lei é o avanço para o
próprio ser, o reconhecimento de que ela é criatura; e este conhecimento não é o conhecimento
de qualquer um que simplesmente é, mas o conhecimento de qualquer um que, introduzido no
mundo pela criação, vive numa interrogação específica sobre o seu próprio ser10’. A lei dá o
conhecimento do pecado (cognitiopeccati)wb. A sua exigência concreta é «nada cobiçarás» (non
con-cupisces)™1. O conhecimento dado pela lei é o conhecimento da concupiscência. A
concupiscência é o apoderamento do falso antes. Na medida em que o mundo precede o homem
que, introduzido pela criação, é depois do mundo (post mundum), o mundo é para o homem,
como já vimos, o que não passa. E verdade que a morte tira o homem do mundo, mas o mundo
não acaba por isso. A concupiscência apodera--se e deseja este mundo: amando o mundo de per
si (propter se), ama a criação em vez do Criador108. Na procura retrospectiva da sua própria
perenidade, ela esquece, acordando a prioridade ao mundo, a prioridade absoluta de Deus109. A
cobiça vê bem o caracter retrospectivo da existência que, determinada pela morte, não tem,
como é evidente, qualquer poder (potestas) sobre o próprio ser, mas não vê o caracter
retrospectivo próprio a qualquer coisa criada, que dura, que não é do puro ser puro e simples,
mesmo quando não está submetida à corruptibilidade pela morte. Tudo o que foi criado é bom,
na medida em que o contemplamos e disso nos apoderamos na relação original para com o
Criador110. No entanto, amando a criatura em vez do Criador, a criatura con-cebe-se na sua
essência autônoma, desligada de tudo, tal como se se tivesse feito a si mesma. Só aqueles que
amam o mundo (dilectores) fazem do mundo que Deus criou um mundo que a concupiscência
pode desejar; portanto, ela ama a obra da criatura, aí está o seu verdadeiro pecado (peccatum).
Reconstituindo o mundo pela afeição ao mundo (amicitia mundi), o homem constitui-se, ao
mesmo tempo, como pertencente ao mundo, assim como no amor de Deus pertence ao seu
Criador. Todavia, enquanto que no amor do mundo ele pertence unicamente ao que fez a si
mesmo, no amor de Deus, _ pertence àquele que o criou em primeiro lugar. E por isso que o
orgulho (superbia) é uma imitação deformada da elevação divina (celsitu-do)m, dando a ilusão
de que o homem é criador. E a vontade própria (propria voluntas)"1, a possibilidade de fazer
qualquer coisa a partir de si, que está na origem da concupiscência. Na medida em que o homem
se ama segundo a sua própria vontade, não se ama tal como se encontra dado a si mesmo na
criação divina, mas tal como se faz a si mesmo. Ora, como ele não pode chamar-se a si mesmo
para a existência, como não pode fazer ex nihilo - falta-lhe o verdadeiro poder criador, o puro
ser - só pode amar o mundo (dilector mundi) devido ao seu ser-vindo-do-mundo, fazendo do
mundo a pátria que lhe pertence (patria), e negando que o mundo é igualmente deserto113. Por
este facto, deformou (perversitas) o sentido original do seu ser criado, que era justamente de o
reenviar para lá do mundo à sua verdadeira origem.
E o hábito (consuetudo) que faz ceder a esta falta. «Pois a lei do pecado é a violência do
hábito, conduz e encerra o espírito, mesmo contra a sua vontade, como consequência da sua
tendência para aí se deixar tomar114.» O hábito faz do pecado aquilo que não deixa de
determinar a vida. A criatura, enquanto é do mundo, está lançada no mundo pelo hábito, ou
antes, cede sem cessar à tentação de transformar o mundo num mundo determinado por aqueles
que amam o mundo. Deste modo, realiza-se no hábito a segunda natureza11’, da qual a criatura
só pode livrar-se lem-brando-se da sua verdadeira origem. A concupiscência quer
constantemente dissimular esta origem no hábito, e, atendo-se apenas no facto de ser do mundo,
faz do próprio mundo a origem. Deste modo, é a sua natureza que impele o homem a dedicar-se
à criação em vez de se dedicar ao Criador (condita pro Conditore)' 16. O apoderamento da sua
própria origem está ligado à morte, indicador da corruptibilidade. O hábito obstrui esta
perspectiva sobre a morte, perspectiva que se teme tanto quanto a própria morte117, enquanto
que, fazendo desta forma barreira a essa perspectiva sobre a morte e reenviando-a unicamente
ao mundo, conduz precisamente e desde logo à morte.
A actualização do regresso na caridade é uma escolha ligada ao livre arbítrio. Querendo a sua
origem mais apropriada possível, ou seja, o limite extremo do passado, o livre arbítrio quer ao
mesmo tempo o limite extremo do próprio futuro, uma vez que, face à eternidade, passado e
futuro coincidem. O hábito opõe-se a este passado e a este futuro extremo prendendo-se no falso
antes de que se apoderou. O hábito é o eterno ontem sem futuro. O dia de amanhã é idêntico ao
de hoje. Este nivelamento da existência temporal, perecível, funda-se no medo do futuro
extremo, da morte, que destrói a existência que é construída de acordo com a própria vontade. A
morte, enquanto limite extremo do futuro, é também o limite extremo do poder da vida sobre si
mesma. Uma vez que a vida se apoderou do mundo, que portanto negou o seu estado de criatura
determinado por Deus, arrebata o hábito que dá razão ao único amor trazido outrora ao mundo e
que dissimula o risco necessariamente no coração desta apreensão passada, uma vez que
contradiz o próprio sentido da criatura enquanto criatura. Só aí é que a morte é um perigo, onde
não se descobre que a criatura depende da origem. A morte tem como função conduzir a esta
descoberta. Fixando-se ao falso antes do mundo, o hábito transforma a vida, que se perde neste
mundo e a sua perenidade aparente, primeiramente (prnis) em algo de imperecível. No hábito, a
vida pertence àquilo de que um dia se apoderou118, é abandonada ao seu próprio passado, que é,
justamente, o pecado (pecca-turn). Mas a essa lei do pecado (lex peccati) opõe-se a origem do
pecado que é a de persistir na sua própria vontade: «mas como o gênero humano se dobra ao
peso não do próprio desejo, mas sim do seu hábito ...ll9>> A tendência para o pecado provém
mais do hábito do que da própria libido, e isto porque no hábito, o mundo tal como o homem o
constituiu na concupis-cência, encontra-se em certa medida consolidado. Na procura do seu
próprio ser, a criatura procura a segurança (securitas) da sua existência. Dissimulando o limite
extremo da existência, assimilando hoje e amanhã ao que era ontem, o hábito dá à vida que se
agarra ao falso passado a má segurança (mala securi-tas)' 20. Esta tendência (proclive esse) vem
do facto de ser depois do mundo. O gênero humano, virado para a sua própria origem, para o
limite extremo do seu próprio passado, é levado a apoderar-se do falso antes, falso, porque não
é aquilo-de-que-provém a própria existência. O hábito, prendendo-se sempre ao passado,
mostra justamente que a própria vontade peca desde a origem, uma vez que esta só instaurou o
hábito121 para aí encontrar a quietude face à morte, o indicador da vida humana criada,
dependente.
Contra o hábito e a sua segurança, a lei faz apelo à consciência (conscientia)122, que provém de
Deus (ex Deo)' 2’, que tem portanto como função pôr no caminho do Criador e não da criatura.
Como a consciência vem de Deus, é através dela que se efectua a relação retrospectiva directa.
A lei, no «nada cobiçarás», exige que o homem se desligue de tudo o que é criado, do mundo no
sentido mais lato. Todo o próprio mundo constituído pelo homem no hábito, tornado
independente do Criador, cai sobre o poder da concupiscência. No mundo humano constituído
pela criatura, todo o homem particular já não tem qualquer relação com a sua própria origem;
pelo contrário, vive num mundo comum, constituído conjuntamente, com os outros. Daquilo que
ele é já não faz a experiência pela consciência que vem de Deus, mas sim pela língua
estrangeira (aliena língua)™. Ele faz-se a si próprio habitante deste mundo, isto é, transformou-
se em alguém que já não é mais ex Deo apenas, mas que é devedor daquilo que é neste mundo
que ajudou a constituir. Esta língua estrangeira, que determina o ser da criatura - quer seja má ou
boa - do exterior, a partir daquilo que só a criatura fez, é contrariada pela consciência em nós
(cosncientia in nobis)™, e esta consciência fala de tal maneira que aquele a quem se dirige não
pode escapar. «A má consciência não se afasta a ela própria, não tem nenhum sítio para onde ir,
caminha na sua própria continuação»126, uma vez que o mundo para onde poderia escapar-se e o
acostumar-se que aí encontrou são justamente aquilo que a consciência acusa. Para a
consciência, o mundo volta a ser um deserto, e repele o homem para fora de qualquer
acostumar-se a este mundo. A voz da lei falando à consciência, a voz do Criador, revelando ao
homem a evidência da sua dependência, dirige-se sempre já à criatura caída no poder do mundo
no hábito, e chama-a a revoltar-se contra aquilo de que «era antes de mais prisioneira através
do hábito»12/. Tornar-se estranho ao mundo (die Entfremdung von der Welt) é essencialmente
sair (eine Entfremdung) do hábito. Enquanto o homem vive no hábito, vive tendo em vista o
mundo, e está lançado ao seu julgamento. A consciência põe-no face a Deus (coram Deo)™'.
Pelo testemunho da consciência (testimonium conscientiae), Deus é o único juiz que julga a
possibilidade do bem e do mal. O testemunho da consciência é o testemunho da dependência da
criatura face a Deus, tes-temunho que ela encontra em si própria1-9. Este testemunho interior
reduz ao nada o mundo e o seu julgamento - não há possibilidade de se fugir perante a
consciência. Por mais familiarizado que se esteja com o mundo, por mais forte que seja o
sentimento de nele nos sentirmos em casa, não há nada que possa diminuir o peso da
consciência (onera)1*0. A voz da consciência, falando sob a impulsão da lei divina ao homem
ligado ao mundo, põe-no face a Deus (coram Deo), face à sua própria origem. A relação pura da
criatura, independentemente da sua actualização, apodera-se daquilo com que ela se relaciona
como um duplo antes, onde princípio e fim da vida seriam equivalentes. Aqui, no primeiro lugar
onde a criatura deve realizar essa relação, realização que só é possível devido ao testemunho
vindo do próprio Deus, em que a criatura se deve pôr em prática pela caridade no desenrolar
concreto da sua vida submetida ao hábito, que termina necessariamente na morte131. Aqui, o
antes, no seu duplo sentido de regresso ao Criador (redire ad crea-torem), que está antes de
todas as coisas (ante omnia) e de remissão ao fim (se referre ad finem), passa para segundo
plano em proveito da presença imediata de Deus no coram Deo. E verdade que este face a Deus
(coram Deo) só é possível devido à pertença estrutural da criatura ao seu antes; mas a própria
origem já não é aqui compreendida na actualização do regresso como sendo aquilo que é eterno,
englobando deste tudo aquilo que é particular, mas como o criador sendo exigente face à
criatura posta à sua frente. A imitação de Deus já não é o que determina o ser de tudo o que é
criado, é a exigência divina pronunciada pela lei na consciência com a qual a criatura se vê a
todo o instante confrontada. O Criador já não determina somente o princípio e o fim da vida, na
qualidade de ser eterno englobante, mas está presente, exigindo da criatura o arrebatamento
possível do próprio ser que lhe extorque o sentimento de estar em casa no mundo. E apenas por
isso que o conceito de Deus como Criador, o ser supremo, compreendido de forma puramente
ontológica, se torna especificamente cristão. A exigência de Deus face a face à criatura no
desenvolvimento concreto da sua vida faz de algum modo esquecer o conteúdo ontológico do
conceito de Deus; e o Criador é unicamente compreendido como o Deus pessoal todo-poderoso
que, dado que é criador, tem um direito sobre a sua criatura, em detrimento de todas as
possibilidades de existência que lhe oferece a vontade própria.
Mas como é que esta inversão do antes no face-a (coram) - chamemos isto a todo este conjunto -
é possível1'2? Na actualização da relação retrospectiva que se admite permitir à criatura aceder
ao seu próprio ser enquanto eternidade, esta é descoberta como estando posta face ao ser num
sentido que até agora lhe era desconhecido. Com efeito, ela é incapaz de o apreender ela
própria. E verdade que esta incapacidade só é possível devido à dependência desde sempre
presente que se exprime na imitação; mas a imitação, enquanto tal, não significa ainda que a
criatura era incapaz de realizar por si própria de maneira positiva a sua dependência, de tomar
consciência explicitamente daquilo de que depende e disso se apropriar. A imitação significava
simplesmente que a criatura não se tinha criado a si própria, mas não que ela não pudesse
explicitamente alcançar por si própria o lugar de onde provinha enquanto criada. Mas a
actualização da sua relação com o ser é uma exigência presente no coração da criatura1”; e, na
medida em que somente onde ela está inclinada para se abandonar ao mundo no hábito, essa
exigência vem-lhe do exterior1’4. Essa exigência, é a lei que manda - «Nada cobiçarás» - da
qual cada exigência particular se transforma nessa exigência fundamental, pois o seu
cumprimento é o cumprimento do bem (perfectio boni) e o aniquilamento do mal (consumptio
mali)'”. O cumprimento do bem é, pois, determinado negativamente, porque a escolha (eligere)
do Criador realiza-se já no acto de manter livre do mundo. Essa determinação negativa não é
senão o facto de, para o homem que está à procura do seu próprio ser, nada ser possível; ele já
está sempre tomado no ou então-ou então, a alternativa de ser do Criador (a Creatore) e do
mundo. A criatura é incapaz de cumprir esta lei, de se guardar das tentações ligadas ao facto de
ser do mundo, portanto, necessariamente depois do mundo (post mundum). Se chegasse a
cumprir esta lei, ela só viveria ainda segundo a sua própria justiça (secundum suam justitiam).
k. lei divina é dada com o ser vindo de Deus que é a Criatura. Mas, neste ser vindo de Deus,
Deus é o ser supremo (summum esse), o próprio ser de cada criatura particular e não
simplesmente o ser que se opõe à criatura; face à sua exigência que também é da criatura, esta
torna-se impotente1'6. Aqui, a autonomia pura torna--se pecado, não como rebelião da parte
contra o universo, mas na efectuação autônoma, por si mesma, da própria submissão. Por isso,
Deus já não é tomado como ser supremo que, dado que eterno, torna presente a lei eterna em
cada uma das partes, mas, como autoridade constantemente presente, à qual se opõe
incessantemente a criatura fazendo assim a sua vida.
A deficiência (fraqueza) da criatura face à lei não consiste numa falta de vontade - na medida
em que ela não quer o mundo mas sim o Criador, já tomou o partido, exigido pela lei, de não
cobiçar - mas numa falta de poder (potestas). A experiência da insuficiência é a da separação
entre querer e poder1’'. Em Deus, poder e querer coincidem1’8, a separação é o signo (signum)
do estado de criatura que não tem no seu poder o seu próprio ser. Como a criatura não pode
poder, torna-se, uma vez mais e num sentido ainda mais decisivo, dependente do Criador; é
Deus que pode fazer com que a criatura, mesmo que já tenha tomado o caminho de se interrogar
sobre o seu próprio ser e já se tenha desviado do mundo, nunca alcance o fim que exige de si
mesma e chegue a isolar-se do mundo139. Mesmo no reconhecimento consciente da lei (sub
lege), a criatura só ganha o conhecimento do pecado (cognitio peccati)' 40-, o pecado enquanto
tal permanece na inadequação entre poder e querer. A lei produz assim uma humilhação da
criatura141 que a torna capaz, a partir desta nova experiência da dependência, de ter novamente
a experiência do Criador. Se na sua tentativa de actualização do regresso na consciência ela
tivesse experimentado a exigência interior, a da lei dada pelo Criador, cujo cumprimento é
justamente esta actualização em toda a sua concretização, a sua deficiência face à lei obrigá-la-
ia de qualquer modo a refazer a experiência do Criador como aquele que dá o poder; ela faz a
experiência da graça (gratia)-. «Da mesma maneira que ele é Criador de toda a natureza,
também é dispensador de todas as faculdades, não de toda a vontade (...) Assim, a nossa própria
vontade só vale aquilo que Deus quis que valesse142.» Este poder só é dado aos que querem
(volentibus)'\ tal como o ser de que vimos está fora de nós (extra nos). Ainda que a exigência
de regressar a ele, porque ele é a origem, se encontre em nós como consciência, o poder, que é a
graça de Deus, é dado abundantemente do exterior. Este fora de nós do ser, pelo qual nós somos
o que somos, foi determinado como o duplo antes (ante), esse da eternidade. A lei, que, sendo
de Deus, também está em nós, a exigência imanente à nossa existência, traz à luz a deficiência
da criatura e reenvia-a ao Criador. Este sinal repetido revela a natureza pecadora, necessária,
ligada a toda a criatura, pelo facto de ela ser do mundo, do qual ela se apoderou desde sempre
no hábito, o mundo como falso antes. Descobrir a sua natureza pecadora que não tem lugar no
ser criado por Deus e o movimento de retorno que daí deriva, submete de uma nova maneira a
criatura a Deus, mas enquanto pecadora. A este face a Deus enquanto pecador corresponde o ser
face a Deus (coram Deo esse). O retorno àquilo que existia antes de todas as coisas144 inverte-
se para um face a Deus no momento em que a criatura descobre a sua deficiência face à
exigência necessária que a habita14'. E esta insuficiência face a Deus encontra-se já no próprio
facto de a lei enquanto tal exigir e ordenar. A inadequação do querer e do poder tem como
contrapartida a insegurança do querer e do não-querer («em parte querer, em parte não-
querer»146). O que manda na lei é a nossa própria consciência, que é ao mesmo tempo
vontade14'. Se a vontade fosse inteira (plena), não teria nada para mandar. «Pois a vontade
manda a fim de ser vontade, e nada mais do que a própria vontade. Mas ela não é inteira
enquanto manda; também não há aqui razão para que mande. Pois se fosse inteira, não teria
necessidade de mandar para ser, visto que já seria. Hesitar entre querer e não querer não é uma
deformidade mas sim uma doença de espírito, visto que o espírito não pode descobrir a sua
integridade, sendo empurrado para o alto, para a verdade, e para baixo, para o hábito148.» Pelo
facto desta discordância da própria vontade que provém do hábito149, a lei manda do exterior de
uma e de outra parte, a incapacidade da vontade e os seus caprichos tornam-se compreensíveis.
«A vontade não é sufi-150 ciente .»
Revelando a natureza pecadora que ela não pode, no entanto, suprimir, a lei provoca1’1 o novo
movimento da conversão para o Criador. Este movimento não é mais uma simples relação com
ele, mas um verdadeiro pedido de socorro. Deus já não funciona como Criador, mas dá e detém
segurança. A sua segurança é a graça que só é acessível ao humilhado (humuliatus) e que só ele
pode receber, aquele que reconheceu como pecado a sua incapacidade e a sua inferioridade face
à exigência”2. Tal como o pedido de socorro é um regresso renovado a Deus, também a graça
divina é o acolhimento renovado da criatura que ele próprio criou. Este acolhimento equivale a
uma nova criação, é ela própria o reconhecimento do criado, o amor (dilectio)"’ que só o
humilhado pode reconhecer e aceitar, e que se realiza na reconciliação com Deus”4, ou seja,
sempre em conformidade com a sua exigência mais íntima, vinda de Deus e imanente à criatura.
Pela graça, a criatura é recriada, uma vez que é libertada da sua natureza pecadora, e, por isso,
do facto de ser-do-mundo1”. A libertação do ser-do--mundo, é verdade, permite novamente ao
homem compreender o mundo no seu caracter de eremus (que foi), mas o homem já não se perde
mais nele. Ele pode viver neste deserto, uma vez que tem a sua origem na caridade e procede do
sentido desta vida”6. Mas isto significa que Deus se dá como longínquo na lei e próximo na
graça”'. Essa proximidade é o sentido da vida terrestre e da encarnação de Cristo. A caridade
cumpre, pois, o seu tender-para-o-ser (tendere esse), tal como a cobiça o aproxima do nada
(appropinquare nihilo). Mas esta aproximação depende, por sua vez, deste último movimento
de Deus. Neste novo regresso, a criatura torna-se uma nova criatura (nova creatura), é
reconciliada com Deus, e, ao mesmo tempo, com o seu estado de criatura. Ela renunciou,
enquanto criatura, a ela própria; permanece unicamente como aquela que Deus ama num amor
que lhe leva porque ela é criatura, e não por aquilo que eventualmente ela poderia ser por si
mesma. Em si mesma, ela é face a Deus sempre pecadora, quer porque é completamente lançada
à concupiscência, quer porque tenta através da sua própria vontade ultrapassar o seu estado de
criatura na procura da sua origem. Nos dois casos, o Criador é esquecido, seja pelo mundo, seja
pela sua própria autonomia. A esta autonomia, pelo facto de ser orgulho (superbia), falta
justamente a possibilidade de actualização. Permanecendo perto de si mesma, ela esquece a
origem”8. «O orgulho, portanto, impediria o retorno da alma”9.»
Compreender, apoderar-se da graça de Deus, produzem-se na caridade. Em conformidade com a
necessária relação retrospectiva, a caridade é também ela determinada pelo amor de volta
(redamare). E apenas neste redamare que ela actualiza a sua relação retrospectiva, que
unicamente dá a possibilidade de chegar à verdade (veritas) da sua própria existência160.
Só há caridade bem sucedida aceitando o socorro do Criador, daquele que dá o poder (dator
potestatum) para cumprir a lei, pois é apenas na graça divina aceite que é verdadeiramente
efectuado o desprendimento do mundo. «E tu escolheste deste mundo o que era impuro,
desprezível e inexistente, como se isso existisse, e rejeitaste o que existe161.» E apenas pelo
acto de eleição de Deus, posterior à criação sem lhe ser todavia independente que o mundo
volta a ser aquilo que era originalmente na criação; ele está esvaziado do ser que a criatura fez
dele. A caridade cumpre a lei, pois esta já não é para ela uma exigência mas justamente a
própria graça162. Pelo facto de se virar para Deus de uma nova maneira e mais particularmente
para o amor de Deus (dilectio Dei), a lei já não exige mais nada e já não é mais temida, pois na
aceitação amante do amor de Deus, o mundo torna-se deserto (aquilo que foi), e a
concupiscência perdeu assim o seu sentido. Neste acolhimento amoroso, a criatura re-conciliou-
se com Deus, regressou do mundo para si e renegou o mundo e a si própria enquanto ser-do--
mundo. Esta renúncia a si própria dá-lhe a verdade autêntica e o sentido do seu ser criatura.
«Vivendo segundo ele mesmo, isto é, segundo o homem e não segundo Deus, ele vive desde logo
infalivelmente na mentira; não que o homem enquanto tal seja mentira, uma vez que Deus é o seu
autor e o criador, e que Deus não podería ser o autor e o criador da mentira, mas a verdadeira
natureza do homem é viver não segundo ele próprio mas segundo Aquele que o criou, o que quer
dizer que ele deve cumprir sempre primeiro a vontade d’Este em vez da sua própria vontade;
não viver em conformidade com o por quem se foi criado, eis a mentira163.» Só a caridade é que
está em condições de realizar esta renúncia a si, pois é apenas no amor que é dado o porquê do
sacrifício. Só o amor tem a possibilidade de renunciar à vontade própria, e esta renúncia que
nasce do amor é a condição para se apoderar a graça. E por isso que ela é, face à vontade que
está naturalmente em nós, a vontade mais poderosa164. Na renúncia a si, a criatura comporta-se
consigo mesma como Deus (sicut Deus), ama-se a si mesma como Deus a ama; odeia em si o
que ela própria fez e só se ama dado que foi criada por Deus (a Deo creata). Ela só ama em si
mesma a bondade de Deus (bonitas Dei)' 6) o próprio Criador, e odeia-se na medida em que,
pelo livre arbítrio (liberi-um arbitrium), pode dar um sentido autônomo ao seu ser do mundo.
«Pois ele odiava-nos enquanto não nos tinha feito; e como a nossa iniquidade não tinha
destruído completamente a sua obra, ele sabia ao mesmo tempo odiar em cada um de nós o que
nós tínhamos feito e amar o que ele tinha feito166.»
3 - 0 AMOR AO PRÓXIMO

(DILECTIO PROXIMI)
Esta renúncia a si exprime-se no comportamento face ao mundo. O mundo é amado enquanto
criado (creatum)-, amando no mundo, a criatura ama o mundo como Deus (sicut Deus). Está aí a
realização da renúncia a si que volta a dar a cada um no mundo, e também a si próprio, o seu
sentido verdadeiro proveniente de Deus. Esta realização é o amor ao próximo16'. Tentaremos
compreender o que se entende por outro no amor ao próximo, no amor proveniente de Deus e
que renuncia a si próprio.
O amor ao próximo é a atitude face ao outro nascida da caridade. Remete para duas relações
fundamentais: em primeiro lugar, ele deve amar o outro como Deus, depois, como a si mesmo
(tamquam se ipsum). Neste contexto, surge uma dupla questão: como é que o próximo
reencontra a criatura que renuncia a si e o que é o próximo nesse reencontro?
Amar-se mutuamente (diligere invicem) é o mandamento da lei, é o próprio espírito desta lei
que visa cada lei isoladamente168. A lei regula e determina o comportamento da criatura no
mundo, na medida em que vê nele o deserto e vive na relação com a sua própria origem. E como
este mundo já é sempre constituído pelo homem, a lei determina o comportamento dos homens
entre eles. O amor (dilectio) é o espírito de todos os mandamentos particulares; por aquilo que
significa, cumpre todo o mandamento possível. Ele é mandado porque é o próprio espírito da
lei. Desde logo, o seu cumprimento depende da graça de Deus; poder amar o próximo depende
do amor de Deus (dilectio Dei)' 69. Aceitando o amor divino, a criatura renega-se a si própria,
ama e odeia como Deus. Renunciando a si, ela renuncia ao mesmo tempo a todas as relações
mundanas. Ela só se compreende a si própria como criada por Deus (a Deo creata) e rejeita
tudo o que ela própria fez, todas as relações que ela própria instaurou. Por esse facto, o outro, o
próximo, perde para ela o sentido que lhe dá a sua existência mundana concreta - como amigo
ou inimigo, por exemplo - no amor (dilectio), amando-o como Deus. Para aquele que ama
(diligens), não é mais do que a criatura de Deus, reencontra o homem determinado pelo amor de
Deus enquanto criado por Deus. Neste amor que renuncia a si e aos seus próprios laços, todos
os homens se reencontram e são todos igualmente importantes - ou melhor, negligen-ciáveis -
para o próprio ser. A criatura ligada à sua própria origem não ama o seu próximo nem por ele
nem por ela; o amor ao próximo deixa aquele que ama no isolamento absoluto e o mundo, por
esta existência isolada, permanece do passado. Respondendo ao mandamento do amor ao
próximo, este isolamento, justamente na relação com o mundo, no qual vive também a criatura
isolada, encontra-se realizado e não aniquilado. Como a criatura não é Deus - e nunca chega à
igualdade - o como Deus (sicut Deus) retira--Ihe toda a possibilidade de escolher o outro170. E
este como Deus, que destrói todos os critérios humanos, separa o amor ao próximo de todo o
amor carnal (dilectio carnalis)m.
Todavia, o amor ao próximo, enquanto mandamento de renunciar a si, nunca permite
compreender como é que pode haver aí ainda um próximo para a criatura absolutamente isolada.
Como já vimos, a questão sobre a sua própria origem leva para além do mundo, cai, neste
transbordo do mundo, no antes absoluto, o Criador, que é concreto actualizando-se no face a
Deus. Mas a questão da origem, transbordando o mundo, transborda também toda a origem
histórica imanente ao mundo. A origem histórica seria justamente a mundanidade da criatura.
Ela correspondería ao facto de ser do mundo, e seria, mesmo na sua sublimação mais audaciosa,
o apoderar do falso antes (cobiça), falso, mas não absurdo, uma vez que o sentido da cobiça
reside justamente no ser factualmente depois do mundo. O isolamento absoluto da criatura face a
Deus que suscita a actualização do retorno permite ainda compreender bem como o amor
ordenado por Deus pode ser a realização de uma renúncia a si, visto que se renuncia, de facto, a
toda a escolha autônoma e a toda a relação com o mundo constituído originalmente; mas já não
se compreende como, neste amor que renuncia a si e ao mundo, o outro possa ser ainda
compreendido como sempre próximo, ou seja, numa reciprocidade específica. Veremos na
terceira parte que o outro é reencontrado enquanto próximo na caridade social (caritas
socialis), e isto devido à pertença originária dos homens uns com os outros, instituída na
descendência histórica de Adão, comum a todos. Nesta pertença que é, não restam dúvidas, do
mundo, o próximo adquire uma certa importância, mesmo no amor que renuncia a si próprio.
Autorizamo-nos a deixar aqui de lado essa contradição que provém do isolamento absoluto da
criatura face a Deus, pois adoptando a posição de Santo Agostinho aqui descrita,
compreendemos a importância do próximo como unicamente do mundo, senão não faríamos
justiça à verdadeira origem do papel capital do próximo em Santo Agostinho.
O amor na renúncia ama renunciando a si; isto significa que ele ama todos os homens sem a
menor diferenciação, o que para o amor faz do mundo um simples deserto. E este amor ama os
outros como a si próprio. Na actualização da relação retrospectiva, a criatura acede ao seu
próprio ser. Ela compreende-se, ela que é enquanto vinda de Deus, ao mesmo tempo que indo
em direcção a Deus, no seu ser face a Deus. E somente nesta compreensão retrospectiva do
próprio ser e do isolamento que aí se realiza que surge o amor fraterno (frater=proximus). A
condição para uma compreensão justa do próximo é a compreensão justa de si mesmo. E apenas
aí onde me asseguro da verdade do meu próprio ser que posso amar o próximo no seu
verdadeiro ser, no seu ser de criatura, o creatum esse. E na medida em que em mim mesmo eu
não amo aquele que fiz prisioneiro do mundo, não amo o outro pelo simples facto de o
reencontrar no mundo, mas amo nele o facto de ser criado. Não é simplesmente ele que eu amo
mas qualquer coisa nele, o que justamente ele não é dele mesmo. «Com efeito, tu não amas nele
o que ele é, mas o que queres que ele seja1'2.» Assim, não é apenas o isolamento daquele que
ama que é preservado, aquele que só diz respeito ao outro pelo facto de em si amar Deus17",
mas o próprio amor tem como única função fazê-lo entrar neste isolamento do face a Deus174. O
que ama faz daquele que ele ama um igual a si (aeqiiahs sibi)'^ e ele ama-o nesta igualdade sem
se preocupar em saber se o outro o compreende ou não176. O amor que renuncia a si renuncia
também ao outro como a si mesmo, mas não esquece o outro. Há uma correspondência estrita
entre esta renúncia, o eu quero que tu sejas (volo ut sis), e o arrebatamento em direcção a Deus
(rapere ad Deum). O amor renuncia ao outro para o provocar para avançar em direcção ao seu
ser verdadeiro, tal como tinha renunciado a si próprio na procura de si próprio. A este
propósito, notemos o seguinte: na renúncia a si, vive-se a experiência adequada da origem, ela é
o que permite à sua própria existência compreender que seja originalmente entregue aos
sentidos e que carregue o seu fardo. Mas a renúncia ao outro não é o cumular de um processo,
do questionamento retrospectivo, mas é o seu início. Quer incitar à renúncia a si, ou, mais
precisamente, nesta renúncia que é uma maneira de compreender o ser do outro, este ser é
apresentado como o ser que originariamente é o seu. O amor ao próximo é, pois, a realização
concreta da relação retrospectiva para além do mundo, e, ao mesmo tempo, empurra o outro
para fora do mundo, para que ele veja o sentido do seu ser. Como sugere a identidade entre ser e
ser eterno, ele ama o outro não como alguém que vai morrer (moriturus) mas ama nele aquilo
que é eterno, a sua origem mais apropriada1". «Se as almas te agradam, ama-as em Deus, pois
elas são mutáveis pela sua própria natureza e é fixando-se nele que encontram uma estabilidade,
sem a qual desapareceriam e pere-ceriam»178. Marcado pela sorte, aquele que é amado encontra
o seu sentido original. Passando por aquilo que ama, aquele que ama apodera-se de Deus,
aquele em que unicamente a sua existência e o seu amor têm o seu sentido próprio. Para o amor
ao próximo, a morte não significa nada, uma vez que, retirando-o do mundo, a morte só faz o que
de todas as maneiras este amor ao próximo fez em virtude do seu amor pelo ser, o qual vive no
outro como a sua origem. Para o amor, a morte não tem importância, porque todo o ser só é uma
razão para amar Deus. Em todo o homem particular, é a própria origem que é amada; face a esta
origem idêntica, o indivíduo é negligenciável. Deste modo, o cristão pode amar todos os
homens, pois cada um é apenas uma ocasião, uma incitação, e cada um pode ser esta ocasião. A
força do amor verifica-se justamente pelo facto de que mesmo o inimigo, mesmo o pecador,
serem compreendidos como outras tantas ocasiões para amar. Neste amor ao próximo, não é
exactamente o próximo que é amado, mas o próprio amor179. E assim, a questão da importância
do próximo enquanto tal - esta discordância que salientámos atrás - é novamente suprimida, e o
ser particular pode permanecer no seu isolamento.
APENDICE
Santo Agostinho retoma o conceito de mundo da tradição, e, fixando-se rigorosamente à
interpretação do ser como permanência, Platão conhece ainda bem um princípio do mundo, uma
vez que o cosmos é «tornado» (TEVÓpEVoQ180. Mas este tornar-se é «sempre» (áet) e consiste
na imitação da eternidade181. Em Santo Agostinho, esta mimesis torna-se a expressão do ser-
tornado, dizendo que o que é tornado depende do Criador. O tornar-se ele próprio não é
«sempre», mas apenas determina de maneira estrutural o tornado182. Em Platão, o próprio tempo
(%póvoQ, enquanto movimento dos astros, é esta mimesis'*’. Assim, o cosmos, enquanto
imagem (eíkcüv) do eterno, imagem que dura eternamente e que é sempre idêntica a si
própria184, não é, pois, independente deste próprio eterno, pelo facto dele e de todas as suas
partes só serem segundo o Uno (koc0’ ev), em relação com o Unol!”, mas tem já nesta mimesis o
seu ser eterno e a sua justificação ontológica eterna. Neste «sempre tornar-se» (áei yèvécyQai),
é independente do seu próprio início. Neste «tornar-se sempre» atinge, por assim dizer
constantemente, enquanto lhe é possível, como «imagem» (eíkcúv), a eternidade (octróv) da
qual retira o seu ser. A «eternidade» permanece para ele o eterno modelo (TtapáÓEiYpa)186. E,
da mesma maneira que em Aristóteles, também aqui o cosmos não tem um começo187. O cosmos
é aqui a própria totalidade (ougtocoiQ e, enquanto tal, esta é eterna. Só existem as
«disposições» (8ia0éeiQ't'1’, as «partes» (pópta) platônicas, que são submetidas à mudança. A
própria totalidade é anterior às «disposições» e é assim independente; enquanto todo, é anterior
às partes. Os «corpos» (crápata) são separados (TtenEpaouéva), enquanto tais, não são
imutáveis. Mas o começo (o princípio) (áp/f]) é eterno189, ou seja, é, em consequência rigorosa
da problemática platônica, a totalidade (oÚCTTaotÇ). Já não é exterior ao cosmos, mas aquilo
que do cosmos é imutável190. Este cosmos está «à volta da terra» (ttspt Tfjv yqv), é o englobante
puro e simples'91. A polêmica dirigida contra o Timeu significa precisamente que o cosmos
como totalidade precede já o surgimento do cosmos .
Mas nós só encontramos ligações apropriadas com as teorias de Santo Agostinho na
estruturação do conceito de cosmos por Plotino, ao qual faremos aqui apenas uma breve
referência'9’, mas que é suficiente para o que queremos dizer. Para ele, também, o cosmos é
«sempre» (áeí). A mimesis está no «tornar-se» (év TCÔyí-yvEoOoct)194; o «tornar-se»
(yíyvEGOai) é, por isso, também aqui eterno, em relação constante com «o anterior»
(ttpóoOEv), mas esta relação é privada da possibilidade de ser novamente actualizada. A
inflexão do conceito de mimesis em Santo Agostinho, a saber, que o imitari e o fieri não
coincidem, mas que de certa maneira só intervém a partir da existência do homem, é
característica do facto de o mundo não mais ser apoderado no sentido do cosmos antigo. A
questão de Plotino tem por horizonte a incorporação do homem no cosmos, que é para ele o
«sempre» (áEt) e «o antes» (npóoQev), o que em certo sentido, mas não exclusivamente, é o
caso de Santo Agostinho. O homem está na ordem (tóc^iÇ) do cosmos; de algum modo se pode
subtrair a esta «ordem»19’, mas cada negativo, cada «mal» (Katóv) é apenas uma «diminuição»
(jcpòÇ opiKpÓTEpov)196, que leva, em seguida, ao «desconvir» (cpOEtpEtv), mas isto pela
única razão de ele não ter podido «tomar o lugar» (cpépEtv) no qual tinha o seu ser19'. Ao
cosmos, ao «lugar no todo» (w.giC toú õà.ov), corresponde em Santo Agostinho o homo
ordinatissimus e a pars, que se torna «vergonhosa» (turpis), quando «desconvém com o seu
universo» (Conf. III, 15). Em Plotino, tal como em Platão e Aristóteles, as «partes» (Ltépiq)19K
correspondem ao conjunto (óÀov). Para Santo Agostinho, Plotino é decisivo precisamente
porque põe de uma nova maneira a questão da situação do homem no cosmos, a questão de uma
possível disconveniência e de um mal.

NOTAS
1. Conf. X, 30: Agostinho põe a questão: como é que eu rememoro a felicidade (beata
vitaf, e responde assim: Numquid sicut meminimus gaudium? Fortasse ita. Nam gaudium
meum etiam tristis memini sicut vitam beatam miser: neque umquam corporis sensu
gaudium meum vel vidi velaudivi... sed expertus sum in animo meo quando laetatus sum;
et adhaesit eius notitia memoriae meae. 31: Quae quoniam res est quam se expertum non
esse nemo potest dicere, propterea reperta in memória recognoscitur, qziando beatae
vitae nomen auditur. «Este recordar é como recordar a alegria? Talvez, uma vez que me
recordo da minha alegria na minha tristeza, do mesmo modo que, na miséria, sonho com a
felicidade. Ora esta alegria nunca foi para mim sensível nem à vista, nem ao ouvido... foi
na minha alma que eu a experimentei quando me alegrei, e a noção ficou deste modo ligada
à minha memória.» (Conf. X, 30) «Como não há ninguém que possa pretender nunca ter
conhecido a alegria, reencontramo--la na memória e reconhecemo-la quando ouvimos
pronunciar a palavra felicidade.» (Conf. X, 31.)
2. Conf X, 30: Nam gaudium meum etiam tristis memini sicut vitam beatam miser.
3. Conf. X, 31: Ubi ergo et quando expertus sum vitam meam beatam ut recorder earn...'?
28.: Nom enim quasi novum credimus, sed recor-dantes approbamus hoc esse, quod
dictum es. 29: Cum enim te Deum meum quaero, vitam beatam quaero. 35: Ecce quantum
spatiatus sum in memoria mea quaerens te, Domine, et non te invent extra earn. «Mas
onde, pois, e quando conheci pela experiência a minha felicidade para poder recordar-me
dela...?» {Conf. X, 31.) «Ela não é para nós qualquer coisa de novo, a que acrescentamos
fé; não, nós ainda não nos recordamos dela e declaramos que é mesmo ela». (Conf. X, 28.)
(E assim com toda a recordação). «Quando eu vos procuro, meu Deus, é a felicidade que
eu procuro». (Conf. X, 29:) «Vejai como percorrí os espaços da minha memória
procurando-vos, ó meus Deus, e não vos encontrei fora dela.» (Conf. X, 35.)
4. Conf. X, 14: et ipse contexo praeteritis atque ex his etiam futuras actiones et eventa et
spes, et haec omnia rttrsus quasi praesentia meditar. «... eu próprio ligo-as (as imagens)
ao passado, e combino também acções, acontecimentos, esperanças, para o futuro, e tudo
isso surge-me como presente.»
5. Ioan, Ev. XXIII, 5: Si quáerit beata esse infirma anima, quaerit unde beata sit sancta
anima.
6. Conf. II, 1: Recordari volo transactas foeditates meas ... Amore amoris tui facio istuc,
recolens vias meas... et colligens me a disper-sione... «Quero remeter o meu pensamento
para as minhas tor-pezas de outrora... O que eu fiz, é por amor ao vosso amor; regresso às
minhas vias perversas ... que recolheis em vós o meu ser disperso.»
7. Conf. X, 12: Transibo ergo et istam vim naturae meae gradibus ascendens ad eum qui
fecit me; et venio in campos et lata praetoria memoriae.
8. Conf. I, 2: Non ergo essem, Deus mens, non omnino essem, nisi esses in me. An potius
non essem, nisi essem in te. 9: Tu autem, Domine, qui et semper vivis et nihil moritur in
te, quoniam ante primordia saeculorum et ante omne, quod vel ante dici potest, tu es... et
apud te rerum omnium instabilium stant causae et rerum omnium mutabi-lium
immutabiles manent origines et omnium, irrationalium et tem-poralium sempiternae
vivunt rationes. «Eu não seria, pois, ó meu Deus, eu não seria absolutamente nada, se vós
não estivésseis em mim. Ou melhor, eu não seria nada se não estivesse em vós.» (Conf. I,
2.) «Mas vós, Senhor, vós viveis sempre, e nada morre em vós, porque antes do
nascimento dos séculos e antes de tudo o que ainda pode ser nomeado de anterior, estais
vós... e em vós habitam as causas de tudo o que passa, as imutáveis origens de todas as
coisas mutáveis, e as razões eternas de todas as coisas temporais e privadas de razão.»
(Conf. I, 9.)
9. De Gen. ad.Litt. VI, 16.
10. De Civ. Dei XII, I, 2: Ita quamvis non omnis beata possit esse creatura... ea tamen
quae potest, non ex se ipsa, quia ex nihilo areata est, sed ex illo a quo est.
11. Serm. CXLII, 3: confundatur ut redeat, quae se iactabat lie redi-ret. Superbia ergo
impediebat animae reditum... Revocatur ad se anima, quae ibat a se. Sicut a se ierat, sic
a Domino silo ibat. «Que a alma se faça confusa para regressar (a Deus), ela cuja jactân-
cia impedia de regressar, o orgulho, com efeito, impedia-a de regressar à alma... Ela é
chamada a si, a alma que ia para fora de si. No momento em que ela ia para fora de si, ia
também para longe do seu Senhor.»
12. De mor. Munich. II, 1: o Ser supremo (summe esse) é ao mesmo tempo o ser originário
(primitus esse).
13. De lib. arb. Ill, 21: Si enim magis magisque esse vohieris, ei quod summe est
propinquabis. 20: videbis te in tantum esse miserum, in quantum non proprinquas ei
quodsumme est... et idea tamen te esse velle, quoniam ab illo es qui summe est. «Se
queres ser cada vez mais, aproximar-te-ás d’Aquele que é soberanamente...» (De lib. arb.
III, 21) «tu verás que és infeliz na medida em que te afastas do Ser supremo... e isto
enquanto pertences à existência, porque tu vens desse Ser supremo». (De lib. arb. III, 20.)
14. En. in Ps. LXXV, 8: Tamdiu est aliquid homo, quamdiu illi haeret a quo factus est
homo. Nam recedens ab illo, nihil est homo. «Enquanto o homem é qualquer coisa, está
ligado àquilo pelo qual foi feito homem. Pois separando-se disso, o homem não é nada.»
15. Conf. XI, 6.
16. lib. arb. III, 6: ea sola intuebar quae in creatura eius (sc. Dei) fiunt; non autem quae
in ipso; nom enim ea fiunt, sed sunt sem-piterna (cf. Conf. XI, 6). «...tenho apenas em
vista os que chegam na sua criatura, e não os que chegam nele: estes, com efeito, não
chegam., mas são eternos.»
17. Conf. XI, 6: Quidquid autem factum non est, et tamen est, non est in eo quidquam
quod ante non erat, quod est mutari et variari.
18. De Gen. ad. Litt. IV, 34: Et ideo dum ipse manet in se (sc. Deus) quidquid ex illo est
retorquet ad se; ut omnis creatura in se habeat naturae suae terminum, quo non sit quod
ipse est. «Em conse-quência, enquanto ele próprio habita em si, reenvia a si tudo o que
vem dele: na medida em que toda a criatura tenha em si o próprio limite da sua natureza,
em virtude da qual ela não é aquilo que Deus é.»
19. Enquanto feito de nada (ex nihilo factum), ela pode declinar (déficere). De Civ. Dei
XII, VIII: Hoc seio naturam Dei... nulla ex parte posse deficere; et ea posse deficere
quae ex nibilo fact sunt. «Pois eu sei isso da natureza de Deus... não sendo feita de partes,
não pode declinar; e tudo o que pode declinar é o que é feito a partir do nada.»
20. De Trin. VIII, 5: Qua propter nulla essejít mntabilia bona nisi esset incommutabile
bonum. «Não haveríam portanto bens mutáveis se não houvesse um bem imutável.»
21. Ibid.: Avertendo enim se a summo bono amittit animus ut sit bonus animus-, non
autem amittit ut sit animus. «Pois afastando-se do bem supremo, a alma deixa de ser boa,
mas não deixa de ser uma alma.»
22. Conf. VII, 17: Et inspexi caetera infra te et vidi nec omnino esse nec omnino non
esse: esse quidem quoniam abs te sunt; non esse autem, quoniam id quod es non sunt. «E
eu dirigia o meu olhar para as coisas que estão abaixo de vós e reconhecia que elas nem
são absolutamente, nem não são absolutamente. São porque vêm de vós; não são porque
não são aquilo que vós sois.»
23. De mor. Manich. II, 3.
24. Conf. II, 14: Perverse te imitantur omnes qui longe se a tefaciunt et extollunt se
adversum te. Sed etiam sic te imitando iudicant crea-torem te esse omnis naturae. 13:
Nam et superbia celsitudinem imi-tatur; cum tu sis unus super omnia Deus excelsus.
«Eles imitam--vos em contra-senso todos aqueles que se afastam de vós e que se erguem
contra vós. Mas mesmo imitando-vos assim, eles mostram que vós sois o Criador do
Universo.» (Conf. II, 14.) «Pois até o orgulho imita a magnanimidade; enquanto tu és o
único Deus elevado acima de todas as coisas.» (Conf. II, 13.)
25. De Civ. Dei XIV, XIII, 1: Nec sic deficit homo ut omnino nihil sit... Relicto itaque
Deo, esse in semetipso, hoc est sibiplacere, non iam nihil esse est, sed nihilo
appropinquare. «A sua degradação, é verdade, não aniquilou totalmente o homem...
Abandonar Deus, com efeito, para ser em si mesmo, isto é, comprazer-se em si, já não é
ser nada mas aproximar-se disso».
26. De mor. Manich, II, 8: Nihil est autem esse quam mum esse. Itaque in quantum
quidque unitatem adipiscitur, in tantum est... nam simplicia per se sunt; quae autem non
sunt simplicia, concordia partium imitantur unitatem et tantum sunt in quantum
assequun-tur.
27. Expos. Ep. ad Gal. XXIV: credendo dilexerunt, diligendo imitati sunt. «Eles amaram
crendo, eles são imitados amando.»
28. Ep. Ioan. tr. I, 5: ipse enim semper erat et est; nos non eramus et sumus. De Gen. ad
Litt. II, 17: Quemadmodim ergo ratio qua creatura conditur, prior est in Verbo Dei quam
ipsa creatura quae conditur. «Pois ele, ele sempre foi e sempre é; nós, nós não éramos e
nós somos.» (Ep, loan. tr. I, 5.) «Desde logo, da mesma maneira que a razão está na origem
da constituição de uma criatura, também precede no Verbo de Deus a própria criatura que é
constituída...» (De Gen. ad Litt. II, 17.)
29. En. in Ps. CXXXIV, 6: Est enim et vere est et eo ipse quod vere est, sine initio et sine
termino est... De Civ. Dei XIII, IX: Idem ipse igitur simul et moriens est et vivens: sed
morti accedens, vita cedens. «Pois ele é e ele é verdadeiramente, e, por aquilo que ele é
verdadeiramente, não tem princípio nem fim...» (En. in Ps. CXXXIV, 6.) «E-se sempre
simultaneamente vivo e morto; aproximando-se da morte, afastando-se da vida.» (De Civ.
Dei XIII, IX.)
30. Conf. XI, 39: cf. primeira parte, nota 60, p. 32.
31. Do agir de Deus (operati Dei) que é de fazer tudo de uma vez (simul), é dito que se
trata «de uma ordem que vem, não de etapas temporais, mas do encadeamento das causas»
(non intervallis temporum sed connexione causarum, Gen. ad Litt. V, 12).
32. Civ. Dei XI, VI: Si enim discemitur aeternitas et tempus, quod tempus sine aliqua
mobili mutabilitate non est, in aetemitate autem nulla mutatio est: quis non videat quod
têmpora non fuissent, nisi creatura fieret, quae aliquid aliqua motione mutaret, cuius
motionis et mzitationis cum aliud atque aliud, quae simul esse non possunt; cedit atque
succedit, in brevioribus vel produetioribus morarum intervallis tempus sequeretur? (cf.
De Gen. ad Litt. V, 12). «Se,-com efeito, a verdadeira diferença entre a eternidade e o
tempo é que o tempo não existe sem uma mudança sucessiva, enquanto que a eternidade não
admite qualquer mudança, quem não vê que o tempo não teria existido se não tivesse sido
feita uma criatura que desloca esta ou aquela coisa através de um qualquer movimento.
Porque esta mudança, este movimento onde tal elemento ou tal outro que não podem existir
em simultâneo cedem o lugar e sucedem-se por intervalos de duração ou mais curta ou
mais longa, deu origem ao tempo.»
33. Conf. X, 26 e 24.
34. Ioan. Ev. XXIII, 5: beatitudinem tamen eius qua fit beata ipsa anima, non fieri nisi
participations illius vitae semper vivae, incom-mutabilis, aetemaeque, substantiae, quae
Deus est. «Mas a beatitude que torna a própria alma feliz, só lhe advém da participação
nessa vida sempre viva, nesta substância imutável e eterna que é Deus.»
35. De mor. Man. II, 8: Esse enim ad manendum refertur. «Pois o ser reporta-se ao que
permanece.»
36. Cf. Rud. Bultmann, Die Eschatologie des Joh.-Evangeliums, Zwischen den Zeiten,
1928.
37. Conf. III, 15: Turpis enim omnis pars est suo universo non con-gruens. «Toda a
desconveniência de uma parte com o todo ao qual se une implica deformidade.»
38. Conf. IV, 15: Tantum dedisti eis, quia partes sunt rerum, quae non sunt omnes simul,
sed decedendo ac succedendo agunt omnes universum cuius partes sunt.
39. De Trin. V, 11: Quae magnitudo utiqueprimitus magna est, mul-toque excellentius
quam ea quae participatione eius magna sunt... hoc est enim Deo esse quod est magnum
esse. (Ver nota precedente.) «Esta grandeza é originariamente grande e superior de longe
em relação ao que só é grande participativamente a ela.»
40. De Gen. ad Litt. V, 45: Sicut autem in ipso grano invisibiliter erant omnia simul, quae
per têmpora in arborem surgerent: ita ipse mundus cogitandus est, cum Deus omnia
creavit, habuisse simul omnia, quae in illo cum illo facta sunt... «Ora, da mesma maneira
que a semente era invisivelmente e simultaneamente tudo o que se desenvolvia na árvore,
também se deve pensar que o mundo, quando Deus criou simultaneamente todas as coisas,
abrangia simultaneamente tudo o que foi feito nele e com ele...»
41. Serm. CXVII, 5: Uno ergo aspectu totum videre non potes. Et quamdiu versas ut
videas partes vides. - De Civ. Dei XII, IV: Cuius ordinis decus nos propterea non
delectat, quoniam parti eius pro conditione nostrae mortalitatis intexti universum, mi
parti-culae, quae nos offendunt, satis apte decenterque conveniunt, sentire non
possumus. «Por conseguinte, tu não podes ver o todo apenas por um só olhar. E quando tu
te voltas para ver, vês as partes». (Serm. CXVII, 5.) «Se a beleza desta ordem não se torna
atraente para nós, é porque, inseridos no mundo como partes por causa da nossa condição
mortal, não podemos apreender o conjunto ao qual os detalhes que nos ofendem se ajustam,
todavia, com toda a conveniência e harmonia queridas.» (De Civ. Dei XII, IV.)
42. Civ. Dei XX, XIV: mutatione namque rerum non omni modo interim transibit hie
mundus. Unde et Apostolus ait: I. Kor. 7, 31/32: Figura ergo praeterit non natura. «Pois
é pela transformação dos seres e não pelo seu total aniquilamento que o mundo passará.
Acerca deste assunto, o Apóstolo diz igualmente: A figura deste mundo passa, com efeito,
eu quero que vós estejais sem inquietude (I Co. 7, 31-32). É pois a figura que passa, não a
natureza.»
43. Conf. XI, 13: et videat longum tempus, nisi ex multis praetereun-tibus motibus, qui
simul extendi non possunt, longum. non fieri; non autem praeterire quidquam in aeterno,
sed totum esse praesens; nullum vero tempus totum esse praesens: et videat omne
prateritum propelli ex futuro, et omnefuturum ex praeterito consequi; et omne
prateritum ae futurum ab eo quod semper est praesens, creari et excurrere. «É pois ao
comparar esta (a eternidade sempre imóvel) à perpétua mobilidade dos tempos que ela
verá que é aí incomparável; que a duração, por mais longa que seja, só é longa pela
sucessão de quantidades de movimentos que não podem desenvolver-se simultaneamente,
enquanto que na eternidade não há de todo sucessão; está tudo presente ao mesmo tempo, o
que não pode ser o caso do tempo; ela verá que todo o passado é apanhado pelo futuro, que
todo o futuro segue o passado, que todo o passado e o futuro têm o ser e provêm do eterno
presente.»
44. Conf. XI, 38: hoc in tota vita hominis, cuius partes sunt omnes actiones hominis.
«...da mesma forma para toda a vida do homem, de cujas acções do homem são outras
tantas partes.»
45. Enchir. de Fide. Spe et Caritate X: sed tamen bona etiam singula: quia ex omnibus
consistit universitatis admirabilis pulchritudo. XI: In qua etiam illud quod malum
dicitur, bene ordinatum et loco suo positum, eminentius commendat bona ut magis
placeant et laud-abiliora sint dum comparantur malis. - De lib. arb. Ill, 32: Naturas
igitur om.nes Deus fecit, non solum in virtute atque histi-tia permimsuras, sed etiam
peccaturas: non ut peccarent, sed ut essent ornaturae universttm, sivepeccare sive
nonpeccare voluissent. «(todas as coisas) mesmo isoladamente e tomadas no seu conjunto,
são "absolutamente boas" porque a sua soma constitui o Universo com a sua admirável
beleza.» (Enchir. de Fide, Spe et Caritate X.) «Nesta criação, não é que mesmo até aquilo
a que se chama mal não esteja bem ordenado e posto no seu lugar, de maneira a melhor
fazer valer o bem, que agrada mais e torna-se mais digno de elogios que quando
comparado com o mal». (Idem, XI.) «Deus fez, pois, todas as naturezas, não só as que
perseverariam na justiça mas também as que pecariam; estas, não porque pecam, mas pelo
que acrescentam à beleza do Universo, aceitando ou pecar ou não pecar.» (De lib. arb. III,
32.)
46. Uma passagem onde a perfeição do homem, como de tudo o que é criado, é procurada
já no Criador e onde o homem aparece, contudo, como uma parte incorporada na sua
clausura, mostra quanto Santo Agostinho se regula pela representação do Universo como
englobante e do homem como uma parte incluída: «Pois cada coisa encontra a estabilidade
da sua perfeição não tanto no Universo, do qual ela é apenas uma parte, quanto n’Aquele
pelo qual ela é e na qual é também o próprio Universo» (Quoniam rei cuiusque perfectio,
non tarn in universo cuius pars est, quam in eo a quo est, in quo et ipsum uni-versum est.
Gen. ad Litt. IV, 34.)
47. De Mus. VI, 30: Turpis enim factus est voluntate, universum, amittendo quod Dei
praeceptis obtemperans possidebat, et ordinatus in parte est, ut qui legem agere noluit, e
lege agatur. «Por conseguinte, este homem cobriu-se de vergonha pela vontade, perdendo
o universo que possuía obedecendo aos preceitos de Deus; e ele foi posto na sua ordem
numa parte deste universo; nesta medida, não tendo querido seguir a lei, ele é conduzido
pela lei.»
48. De lib. arb. I, 15: Simul etiam te videre arbitrar in ilia temporalli (sc. lege) nihil esse
instum atque legitimam, quod. non ex hae aeter-na sibi homines derivarint. «Tu vês
também, eu penso, que na lei temporal não há nada mais justo e legítimo que os homens
tenham ido colher ao eterno.»
49. Conf. I, 9: cf. nota 8, p. 69 - De lib. arb. I, 15: cf. nota 48, p. 77.
50. Cf. Apêndice.
51. De div., quaest. 83. qu. 24: Nihil igitur casufit in mundo. Hoc constitute, consequent
videtur ut quidquid in mundo geritur, partim divinitus geratur, partim nostra voluntate.
52. Ep. Ioan. tr. II, 12: Mundus enim appellatur non solum ista fabrica quam fecit Deus,
coelum et terrain... sed habitatores mundi mundus vocantur... omnes ergo dilectores
mundi mundus vocantur.
53. M. Heidegger em L'etre-essentiel d'un fondement ou «raison» -Questions I (Worn
Wesen des Grundes, trad. Gallimard-Tel, 1968, p. 116) - E. Husserl, Festschrift, p. 86-87,
Halle, 1929 -esboçando a história do conceito de mundo, faz alusão ao conceito
agostiniano. Heidegger distingue, também ele, dois significados de mundo em Santo
Agostinho: o mundo é desde logo o ente criado (ens creatum), o que abrange aqui a obra
de Deus, o céu e a terra, e, por outro lado, o mundo compreendido como dilectores mundi.
Heidegger só interpreta o último significado: «o “mundo” significa, pois, o ser-aí humano
no seu conjunto, e este como a qualificação decisiva com a qual ele (Dasein) se põe e se
mantém diante do ser-aí humano.» Enquanto a sua interpretação apela unicamente para o
esclarecimento do mundus como habitare corde in mundo, e ainda que o outro conceito de
mundo seja mencionado mas sem ser interpretado, a nossa interpretação visa precisamente
tornar compreensível este carácter duplo.
54. En. in Ps. CXLI, 15; Unde mundus peccatores? Quia diligunt mundum, et diligendo
inhabitant mundum; quomodo domus dicitur et fabrica, et inhabitantes.
55. Op. Imp. IV, XX: Ipsam denique humanam vitam, qua non secundum Deum sed
secundum hominem vivitur, mundum hoc loco appelavit Apostolus. «E por causa desta
mesma vida humana segundo a qual se vive não segundo Deus mas segundo o homem, que o
apóstolo a chamou, na mesma passagem, mundo.»
56. Cf.: Ioan, Ev. XXXVIII, 4.
57. En. in Ps. CXLI, 15: Noli amare habitare in fabrica, sed habita in fabricatore.
58. Act. c. Eel. Man. II, XVIII: omnia quaefiunt et quod quisquefacit aut de se est, aut ex
aliquo, aut ex nihilo. Homo quia non est omnipotent, de se filium facit: ex aliquo sicut
artifex ex liguo arcam... quia de se quodfecit, necfecisse dicendus est, sedgenuisse. -

C. duas ep. Pelag. II, 15; Electionem quippe dixit, ubi Deus non ab alio factum, quod eligat
invenit, sed quod inveniat ipse facit. «Todas as coisas que estão em transformação e tudo o que
cada um faz são ou a partir de si mesmo, ou a partir de outra coisa ou a partir de nada. O
homem, dado que não é todo--poderoso, faz-se filho de si próprio: da mesma maneira que o
operário fabrica uma caixa a partir da madeira... porque do que ele fez de si mesmo não se pode
dizer que o fez mas que o engendrou (Act. c. Fel. Man. II, XVIII). «Ele chamou eleição a isso
onde Deus encontra qualquer coisa que é feita não para outra coisa, mas ele faz ele próprio o
que procura.» (C. duas ep. Pelag. II, 15.)

59. Ev. II, 10: Non enim sic fecit (sc. Deus mundum), quomodo facit faber. Forinsecus est
arca quam facit, et ilia in alio loco posita est cum fabricatur... Deus autem mundo
infusus fabricat; ubiqueposi-tus fabricat, ibi non recedit aliquo... «Pois Deus não fez o
mundo à maneira de um artesão..O cofre que este fabrica está fora de si, é colocado num
lugar que não ele enquanto é fabricado... Deus, pelo contrário, está no meio do mundo que
fabrica, está por toda a parte quando o fabrica e não se retira para outro lado.»
60. De Gen. ad Litt. V, 40: Sic ergo credamus... usque nunc operari Deum, ut si conditis
ab eo rebus operatio eius subtrahatur, interci-dant. «Eis como devemos crer ou mesmo,
se não o pudermos, compreender que Deus opera até hoje: a saber, que se a sua operação
se retirar das coisas que criou, elas deixam de ser.»
61. De Gen. ad Litt. V, 45: ita ipse mundus cogitandus est, cum Deus simul omnia creavit,
habuisse simul omnia quae in illo cum illo facta sunt «do mesmo modo, deve-se pensar
que o mundo, quando Deus criou simultaneamente todas as coisas, encerrava
simultaneamente, quando foi criado o dia, tudo o que foi nele e com ele feito.»
62. Ioan, Ev. XXXVIII, 4: Omnes de mundo post mundum; quia prius mundus, et sic homo
de mundo: pritis autem Christus, deinde mundus.
63. Que ele mesmo se encontre igualmente como previamente dado, é expresso na
atestação de que ele é um «fazer a partir de si e não a partir de qualquer coisa».
64. Cf. nota 8, p. 69. Conf. I, 9.
65. De Civ. Dei XII, I, 2: Ita quamvis non omnis beata possit esse

creatura (neque enim hoc munus adipiscuntur aut capiunt ferae, ligna, saxa et si quid huius
modi est)... «Na verdade, toda a ■ criatura não é capaz de beatitude (o animal, a
madeira, a pedra
f e outras coisas semelhantes não obtêm ou não atingem este
favor).»

66. Assim, por exemplo: Ep. Ioan. tr. I, 5: vivere in hoc saeculo inter

‘ tentationes; «vivendo no meio das tentações deste mundo.»

67. Serm. LXXVI, 9: Amatores suos vorare novit (saeculum. sc.) non portare (cf. Conf.
IX, 10: devorans têmpora, devoratus tempo-

\ ribus). - De Gen. ad Litt. V, 38; omnis creatura non ante saecu-


'■ la sed a saeculis. Ab ipsa enim exorta sunt saecula et ipsa a saeculis,
í quoniam initium eius initium saeculorum est: Unigenitus autem
; ante saecula per quem facta sunt saecula. «Ele aprende a devorar
os que o amam, não a trazê-los.» (Serm. LXXVI, 9) (cf. Conf. IX, 10: «devorando o tempo,
devorado por ele.» «...ele não é | criatura antes dos séculos, mas desde a origem dos
séculos.
I Pois foi com ela que os séculos começaram e ela começou com
l os séculos, visto que o seu princípio é o princípio dos séculos.
I O Filho único, este, está antes dos séculos, ele por quem os
I séculos foram feitos.» (De Gen. ad. Litt. 38.)
i, 68. De Bono Coniug. 10: Quid si, inquiunt, omnes homines velint ab
| omni concubitu continere; unde subsistet genus humanum?... multo
? citius Dei civitas compleretur, et accelleraretur terminus saeculi. «O que
i aconteceria se todos os homens se abstivessem do casamento?
Como subsistiría o gênero humano? ... A cidade de Deus seria í rapidamente realizada
e aceleraria a sua marcha até ao fim dos
tempos.»

69. Civ. Dei XIX, X: et se ipsam ad eum finem refert (sc. virtus), ubi nobis talis et tanta
pax erit. «Ela (a virtude) relaciona-se ainda ela própria com este fim, onde nós teremos
uma paz tão grande e tão perfeita...»
70. Por um lado, a vida relaciona-se retrospectivamente com o Criador, por outro, vê-se
determinada pela morte.
71. Conf. XI, 27. 17.
72. Conf. XI, 17: ut scilicet non vere dicamus tempus esse, nisi quia tendit non esse. «De
maneira que, de facto, se temos o direito de dizer o tempo é, é porque ele encaminha-se
para o não--ser.» O «não» do ainda-não é ser feito a partir do nada (ex nihilo factum est).
Conf. XI, 12 e 7.
73. Cf. De Civ. Dei XII, VIII; cf. nota 19, pág. 71.
74. Ioan. Ev. XXXVIII, 11; Ecce quod est esse. Principium mutari non potest: principium
in se manet, et innovat omnia. «Eis o que é ser. O princípio não pode mudar: o princípio
mantém-se em si próprio e dá a todas as coisas a sua novidade radical.»
75. De nat. boni c. Manich. XXVI: Quia ergo Deus omnia, quae non de se genuit, sed per
Verbum suum fecit, non de his rebus quae iam erant, sed... de nihilo fecit. «Assim, porque
Deus fez tudo o que não provém dele mesmo, pelo seu Verbo, fê-lo não a partir das coisas
que já eram mas... a partir de nada.»
76. Op. Imp. V, XXXI: quoniam de illo sunt, hoc quod ille sunt, alius nascendo, alius
procedendo (sc. Christus et Spiritus); atque ita sunt de illo, ut mimquam fuerit ipse prior
illis «pois o Filho e o Espirito, dado que são d’Ele (o Pai), são aquilo que ele próprio é,
um por nascença, o outro por procissão; e são dele de tal maneira que ele não lhes é
anterior.»
77. Conf. IV, 15: Ergo cum orhmtur et tendunt esse, quo magis celeriter crescunt, ut sint,
eo magis festinant, ut non sint; sic est modus eonim (cf. De mor, Manich. II, 8). «Portanto,
uma vez que elas (as belas coisas) nascem e esforçam-se para o ser, mais rapidamente
crescem para ser, mais depressa elas se precipitam para o não-ser. Tal é a sua condição.»
78. Conf. VI, 17: Non omnino est et non omnino nihil est. «Ele não é absolutamente e ele
não é absolutamente nada.»
79. Tal é precisamente o sentido da perda (amittere) contínua, posta em evidência, na
primeira parte, como uma estrutura fundamental da vida para Santo Agostinho.
80. Isto assenta na convicção que se manifesta constantemente na interpretação da
expressão paulina da morte como castigo do pecado, a saber, que a morte não é um facto
natural mas o castigo do pecado, pois ela própria é marcada pela falta (comparar com
Serm. CCXXXI, 2). Civ. Dei VI, XII: Nulla quippe maior et peior est mors quam ubi non
moritur mors. Sed quod animae natura, per id quod immortalis creata est, sine
qualicumque vita esse non potest, summa mors eius est alienatio a vita Dei in aetemitate
supplicii. «Não há pior morte e mais completa do que aquela em que a morte não morre!
Mas como a natureza da alma criada imortal não poderia estar privada de toda a vida, a
sua suprema morte consiste em ser separada da vida de Deus na própria eternidade do
suplício.»
81. Civ. Dei VI, XII: Nulla quippe maior et peior est mors, quam ubi non moritur mors.
«Não há pior e mais completa morte que aquela onde a morte não morre.»
82. O tempo vindo do ainda-não e indo para o já-não, é o tempo enquanto precipitando-se
para o não-ser (Conf. XI, 17).
83. Conf. XI, 35: Non ergo ipsas, quae iam non sunt, sed aliquid in memória mea metior
quod infixum manet. (Cf. Apêndice I da primeira parte.) «Não são, pois, elas que eu
avalio, uma vez que elas já não são mais, mas é qualquer coisa que fica na minha memória,
impressa profundamente.»
84. Civ. Dei I, XI, 1: Finis autem vitae tam longam quam brevem vitam. hoc idemfacit.
Neque enim aliud melius et aliud deterius, aut aliud maius aut aliud. brevius est, quod
iam pariter non est. «De facto, a morte iguala a vida longa e a vida curta. Como as duas
coisas já não existem, uma não é melhor nem a outra é pior, uma não é mais longa nem a
outra mais curta.»
85. Para esta aplicação de finis, ver, entre outros, Serm. CCCVI, 7, e Civ. Dei I, XI, 1.
86. Ep. Ioan, tr. X, 5: quidquid propter se et gratis quaeritur, ibi est finis. «Tudo o que se
procura por si mesmo, gratuitamente, eis o fim.» Para o propter, v. primeira parte.
87. De Civ. Dei XIII, X: ut omnino nihil sit aliud tempus vitae huius, quam cursus ad
mortem, in quo nemo vel paululum stare vel ali-quando tardius ire permittitur; sed
urgentur omnes pari motu nec diverso impelluntur accessu. Neque enim, cui vita brevior
fuit, celerms diem duxit quam ille, cui longior... Qui ergo usque ad mortem productiora
spatia tempons agit, non lentius pergit sed plus itineris conficit.
88. Serm. XXXIV, 2: Nemo est qui non amet: sed quaeritur quid amet. Non ergo
admonemur, ut non amemus: sed ut eligamus quid amemus.
89. Ep. Ioan. tr. VII, 7: Sipigri eramus ad amandum, nan simuspigri ad redamandum.
Prior amavit nos; nec sic nos amamus.
90. Ep. Ioan. tr. IX, 9: Prior dilexit nos, et donavit nobis ut diligere-mus ilium. «O
primeiro amou-nos e deu-nos o amá-lo.»
91. Ioan. Ev. CVII, 1: Mtmdum vultmodo intelligi, qui vivuntsecundum concupiscentiam
mundi, et non sunt in ea sone gratiae, ut ab illo eligantur ex mundo. «Agora, ele (Cristo)
quer que se entenda por “mundo" os que vivem segundo a cobiça do mundo, e não são
compreendidos nesta espécie de graça pela qual seriam escolhidos por ele, fora do
mundo.»
92. Op. Imp. IV, XX.
93. Ioan. Ev. LXXVI, 2: Qui enim diligunt quia diligunt, eliguntur... Dilectio sanctos
discernit a mundo. «Pois os que amam porque amam são eleitos... Porquanto é o amor
(dilectio) que faz a diferença entre os santos e o mundo.»
94. Conf. I, 21: Amicitia enim mundi huius fornicatio est abs te. «A amizade deste mundo
é uma fomicação, uma infidelidade a vosso respeito.»
95. Cf. primeira parte.
96. Ioan. Ev. LXV, 1: ipsa dilectio est mors nostra saeculo, et vita cum Deo. Si enim mors
est, quando de corpore anima exit, quomodo non est mors, quando de mundo noster exit?
Valida est ergo sicut mors dilectio.
97. Civ. Dei V, XVII, 2: Tolle iactantiam, et omnes homines quid sunt nisi homines? -
Serm. CXLII, 3: Superbia ergo impediebat animae reditum. «Suprimam a gabarolice: o
que são todos os homens senão homens?» (Civ. Dei V, XVIII, 2) «Pois o orgulho impediría
o regresso da alma.» (Serm. CXLII, 3.)
98. Conf. X, 2: abiciam me atque eligam te.
99. A este «não-ser-descoberto» corresponde na construção agos-tiniana da história «o
ser-antes-da lei» (ante legem esse) -Exposit. ex ep. ad Rom. XIII-XVIII: Itaque quattuor
istos gradus hominis distinguamus; ante legem, sub lege, sub gratia, in pace... Ante
legem ergo non pugnamus; quia non solum con-aipiscimus et peccamus, sed etiam
approbamus peccata: sub lege pug-namus sed vincimur... «E por isso que distinguimos
quatro graus do homem: antes da lei, sob a lei, sob a graça, na paz... E por isso que, antes
da lei, nós não lutamos; porque não só estamos sob a acção da cobiça e pecamos, mas
também porque aprovamos os pecados: sob a lei lutamos mas somos vencidos...»
100. Ep. Ioan. tr. IV, 9: Ergo castificat nos sicut et ipse castus est etc. tr. IX, 3; Sicut ille
diligit inimicos suos... ita nos... «Ele torna-nos portanto puros tal como ele também é puro,
etc». (Ep. loan. tr. IV, 9) «como ele ama os seus inimigos fazendo levantar o seu sol sobre
os bons e os maus... do mesmo modo, nós, que não temos nada para dar aos nossos
inimigos, nem sol, nem chuva, damos as nossas lágrimas quando rezamos por eles». (Ep.
Ioan. tr. IX, 3).
101. Ioan. Ev. XLII, 10: sed plane Creator, Creator est: creatura est; aequari creatura
non potest Creatori. - Ep. Ioan. tr. IX, 3: Numquid mim potest esse homo sicut Deus? lam
vobis exposui quia non semper ad aequalitatem dicitur «sicut»: sed dicitur ad quam-dam
similitudinem. «Mas, em toda a verdade, o Criador é o Criador, a criatura é a criatura, e a
criatura não pode ser tornada igual ao Criador.» (loan Ev. XLII, 10.) «O homem pode ser
como Deus? Já vos expliquei que a palavra "como" não significa sempre igualdade, mas
significa uma certa parecença.» (Ep. loan, tr, IX, 3).
102. Conf. X, 15: Et vis est haec (sc. memória) animi mei, atque ad meam naturam
pertinet, nec ego ipse capio totum, quo sum. Ergo animus ad habendum si ipsum
angustus est. «Não é, no entanto, mais do que uma força do meu espírito (a força da minha
memória), ligada à minha natureza; mas eu não posso conceber integralmente aquilo que
sou. O espírito é pois demasiado estreito para se conter a si próprio.»
103. Conf. VII, 22: quibus (sc. inferioribus creaturae tuae partibus) et ipsi iniqui apti
sunt, quanto dissimiliores sunt tibi, apti autem supe-rioribus quanto similiores, fiunt
tibi. «A vossa justiça desagrada aos maus: tanto mais a víbora e o verme que criastes bons
e adaptados às partes inferiores da vossa criação, as partes com as quais os maus têm
tantas mais afinidades quanto mais desiguais são de vós, do mesmo modo eles se
aproximam da ordem superior na medida em que se tornam mais parecidos convosco.»
104. Conf. II, 9: lex scripta (est) in cordibus hominum, quatn ne ipsa quidem delet
iniquitas.
105. Conf. X, 25: Quid autempropinquius me ipso mihi? Et ecce memoriae meae vis non
comprehenditur a me, cum ipsum me non dicam praeter illam. «Mas o que é que está mais
próximo de mim que eu próprio? E eis que não posso compreender a própria essência da
minha memória, ainda que sem ela nem sequer possa nomear-me.»
106. De Spir. et Litt. 52: sedper legem cognitio peccati. «Mas é pela lei que se tem
conhecimento do pecado.» Santo Agostinho estabelece também estas sequências noutra
parte.
107. Ioan. Ev. XLI, 12: Quae estautem. consumptio mali, nisi quodLex, dicit. Non
concupisces. Omnino non concupiscere perfectio boni est, quia consumptio mali est.
«Mas qual é o desaparecimento do mal, senão o que diz a Lei: não cobiçarás. Não cobiçar
de todo é o cumprimento perfeito do bem uma vez que é o desaparecimento do mal.»
108. De Trin. IX, 13: Tunc enim est cupiditas cum propter se amatur creatura. «Há
cobiça quando se ama a criatura por si mesma.»
109. Conf. II, 6: gaudens vinulentia, in qua te iste mundus oblitus est creatorent suum, et
creaturam tuam pro te amavit «...encantado com esta embriaguez que faz com que o mundo
vos tenha esquecido, vós, o seu Criador, para amar a vossa criatura em vez de vós.»
110. Conf. VII, 20; 72 072 est sanitas eis quibus displicet aliquid creaturae tuae. «Falta
saúde de espírito a quem desagrada qualquer coisa da vossa criação.»
111. Conf. II, 13; Nam et superbia celsitudinem imitatur... 14: Perverse te imitantur
omnes, qui longe se a te faciunt. «Pois o orgulho dá-se ares de elevação da alma.» (Conf.
II, 13.) «Imitam-vos em contra-senso todos os que se afastam de vós». (Conf. II, 14.)
112. De lib. arb. I, 21: nulla res alia mentem cupiditatis comitem faciat, quam propria
voluntas et liberum arbifrium «não há, pois, nada que torne o espírito servidor da paixão,
senão a vontade própria e o livre arbítrio.»
113. Ioan. Ev. XXVIII, 9: llle enim est tabernaculis, qui se esse in mundo intelligit
peregrinum. llle se intelligit peregrinantem, qui se videtpatriae suspirantem... Quid est
in eremo? In deserto. Quare in desert? Quia in isto mundo ubi sititur in via inaquosa. -
Ep. Ioan, tr. X, 5: Adhaesisti Deo, finisti viam: permanebis in patria. - En. in Ps. CXLI,
15: noli habitare in fabrica, sed habita in fabricatore. «Com efeito, mora sob a tenda
aquele que se vê como um peregrino no meio do mundo e vê-se como um peregrino quem
tem a consciência de suspirar pela pátria... O que significa estar no deserto? Estar numa
solidão árida? Porque estamos neste mundo onde sofremos de sede num caminho sem
água.» (Ioan. Ev. XXVIII, 9.) «Tu estás unido a Deus? Tu terminaste o caminho: tu
permanecerás na pátria.» (Ep. Ioan, tr. X, 5) «não mora na obra feita mas mora naquele que
a fez». (En. in. Ps. CXLI, 15.) .
114. Conf. VIII, 12: Lex enim peccati est violentia consuetudinis, qua trahitur et tenetur
etiam invitus animus eo mérito, quo in earn volens illabitur.
115. De Mus. VI, 19: Non enim frustra consuetude quase secunda, et quasi affabricata
natura dicitur (cf. Op. Imp. VI, XLI). «Pois não é em vão que se diz do hábito que é quase
segundo e quase refabricado.»
116. Ep. Ioan. tr. II, 11: Sed vae tibi si amaveris condita et deserueris conditorem. «Mas
má sorte a tua se amando as criaturas abandonas o Criador.»
117. Conf. VIII, 18: et quasi mortem, refonnidabat restringí a flnxu consuetudinis, quo
tabescebat in mortem «e ela apreendia como a morte a sentir-se puxada pela brida e
desviada desta corrente de hábito onde bebia a corrupção e a morte.»
118. Op. Imp. IV, CIII: ut per vim consuetudinis fiat sine voluntate... «afim de que isso
apareça pela força do hábito sem a vontade».
119. III, 15: Doctr. Christ. Sed quoniam proclive est humanum genus non ex momentis
ipshts libidinis, sed potius suae consuetudinis aesti-mare peccata... >
120. Ep. Ioan. tr. I, 7.
121. Op. Imp. IV, CIII: ifonne conditionem suam sua conditioneperdit, ut per vim
consuetidini's fiat sine voluntate, cum consuetudo non facta sit nisi voluntate?... Tu vero
dixisti voluntatem et necessitatem simul esse non posse; ci m.cernas simul eas esse cum
concordant, simul esse cum pugnant. ’ _ j

«Não é verdade que’O pecado perde o que o condiciona por esta mesma condição, de tal
maneira que, pela força do hábito, seja cometido sem vontade, uma vez que o hábito é apenas o
efeito da vontade? Tu disseste que vontade e constrangimento não podem existir juntos; e, no
entanto, tu bem vês que existem conjuntamente visto que se conciliam e também porque se
combatem.»

122. Conf. III, 13: Et non noveram iustitiam veram interiorem non ex consuetudine
iudicantem, sed ex lege rectissima Dei omnipotentis. «E eu não conheço esta verdadeira
justiça interior que não julga a partir do costume mas de acordo com a lei tão equi-tativa
do Deus todo-poderoso.»
123. Ep. Ioan. tr. VI, 3: Perhibeat tibi testimonium conscientia tua, quia ex Deo est. «Que
a tua consciência te preste testemunho que ela é de Deus.»
124. Ep. Ioan. tr. VI, 2: 72072 quando Uli perhibet testimonium lingua aliena, sed
quando perhibet conscientia propria. «Não é pois a boca de outro que testemunha, mas a
sua própria consciência.»
125. Ioan. Ev. LXXIV, 5: Sic enim (sc. invisibiliter) a nobis videtur in nobis et nostra
conscientia. «Pois é assim (de maneira invisível) que a nossa consciência é vista por nós
em nós.»
126. Ioan. Ev. XLI, 4: Non fugit se ipsam mala conscientia, non est quo eat, sequitur se.
127. Quaest. 17 in Ev. sec. Mt. III.
128. Expos. Ep. ad Gal. 57: Numquam itaque alienipeccati obiurgan-di suscipiendum est
negotium, nisi cum internis interrogationibus examinant.es nostrum conscientiam,
liquido nobis coram Deo respon-derimus, dilectione nos facere. «Por consequência,
nunca nos devemos tentar a censurar a um outro o seu pecado, a menos que, interrogando as
nossas intenções e examinando a nossa própria consciência, possamos responder
claramente diante de Deus que o fazemos por amor.»
129. Civ. Dei XII, VIII: nec iactantia vitium est landis humanae, sed animae perverse
amantis laudari ab hominibus, spreto testimonio conscientiae. - XIV, XXVIII: Illa enim
quaerit ab hominibus gloriam: huic autem Deus conscientiae testis, maxima est gloria,
«nem a jactância é o vício do louvor humano mas da alma que, num amor perverso deste
louvor, despreza o testemunho da consciência». (Civ. Dei XII, VIII.) «Uma procura a sua
glória nos homens; quanto à outra, Deus é testemunha da sua consciência que é a sua grande
glória.» (Civ. Dei XIV, XXVIII.)
130. Expos. Ep. ad Gal. 59: Non ergo laudatores nostru minuunt onera consicentiae
nostrae. «Pois não são os que nos louvam que aliviam os pesos da nossa consciência.»
131. Cf. notas 117, p. 100 e 118, p. 101.
132. Santo Agostinho emprega face a Deus (coram Deo) e diante de Deus (ante Deum
promiscue). Escolhi coram, primeiro porque o utilizo na sua delimitação em relação ao
ante num outro sentido, e depois porque é a tradução tradicional do grego ou do hebreu (v.
nota 145, p. 108).
133. Cf. lex scripta in cordibus hominum (Conf. II, 9). — De lib. arb. I, 3 2: lubet igitur
aeterna lex avertere amorem a temporalibus, et cum mundatum convertere ad aeterna «a
lei inscrita no coração dos homens.» (Conf. II, 9.) «É por isso que a lei eterna impõe
desviar-se do amor das coisas temporais e virar o amor purificado para as coisas eternas.»
(De lib. arb. I, 32.)
134. En. in Ps. LVII, 1: «Quod tibi non vis fieri tie facias alteri». Hoc et antequam. Lex
daretur nemo ignorare permissus est, ut esset unde indicarentur et quibus Lex non esset
data... Sed quia homines appe-tentes ea quae foris sunt, etiam a seipsis exsules facti
sunt, data est etiam conscripta lex: non quia in cordibus scripta non erat; sed quia tu
figitivus eras cordis tui. «"Não faças ao outro o que não queres que te façam a ti". Esta
regra, ninguém está autorizado queres que te façam a ti". Esta regra, ninguém está
autorizado a ignorá-la, mesmo antes que seja dada a Lei, a fim de que todos sejam julgados
por ela, mesmo aqueles aos quais a Lei não foi dada. Mas como os homens ao procurarem
o que está no exterior estavam a exilar-se (ou "alienados") de si mesmos, a Lei escrita
também foi dada: não que ela não tenha sido escrita nos corações mas porque tu fugiste
para longe do teu coração.»
135. Ioan. Ev. XLI, 12.
136. De grat. et lib. arb. 24: Suam vero iustitiam dicit (sc. Apost.) eos valentes
constituent, quae iustilia est ex lege; non quia lex ab ipsis est constituía, sed in lege
quae ex Deo est, suam iustitiam constituerant, quando eamdem legem suis viribus se
implere posse credebant: ignorantes Dei iustitiam, non qua iustitia. Deus lustws est; sed
quae iustitia est homini ex Deo. «(O Apóstolo) diz que (os Judeus) queriam estabelecer a
sua própria justiça (Rom, 10, 3), uma justiça que vem da lei: não porque tivessem eles
mesmos estabelecido a lei, mas porque estabeleceram a sua justiça na lei que vem de Deus
presumindo que podiam cumprir esta lei pelas suas próprias forças. Eles ignoravam assim
a justiça de Deus, não aquela através da qual Deus é justo mas a que o homem recebe de
Deus.»
137. Civ. Dei V, X, 1: Nam si voluntas tantum esset necposset quod vel-let potentiore
voluntate impediretur; nec sic tamen voluntas nisi voluntas esset; nec alterius sed eius
esset qui vellet, etsi non posset implere quod vellet. «Pois se houvesse apenas uma
vontade, que seria impotente para fazer aquilo que quer, seria impedida por uma vontade
mais forte. Mesmo neste caso, ela não seria menos uma vontade, e seria não a vontade de
um outro, mas a vontade própria do homem que quer, mesmo que fosse na impotência de
realizar o que ele quer.»
138. Conf. VII, 6: voluntas enim etpotentia Dei, Deus ipse est. «A vontade e o poder de
Deus são o próprio Deus.»
139. Expos, ex. ep. ad Rom. XL (sobre Rom. 7, 13): Tzzzzc enim se mortuum quisque
cognoscit, cum illud quod recte praeceptum esse confitetur, implere non potest. - LXI:
Nostrum enim est credere et velle, illius autem. dare credentibus et volentibus facaltatem
bene operandi. - Ep. CLXXVII, 5: Distinguenda est lex, et gratia. Lex inhere, gratia
iuvare. Nec lex iuberet, nisi esset voluntas; nec gratia iuvaret, si sat esset voluntas. «É
então que cada um se reconhece no entanto, é justamente isso que lhe é ordenado.» (Expos
ex. ep ad Rom. XL.) «Pertence-nos crer e querer; mas pertence (a Deus) dar aos que crêem
e que querem a capacidade de realizar o bem.» (Expos ex. ep ad Rom. LXI.) «É preciso
distinguir a lei e a graça. A lei ordena, a graça ajuda. E a lei não ordenaria se a vontade
não existisse; a graça não ajudaria se a vontade fosse suficiente.» (Ep. CLXXVII, 5.)
140. Expos, ex. ep. ad Rom. XIII-XVIII. - XXX: sed data est Lex ad ostendendum quantis
quamque arctis vinculis peccatonim constrin-gerentur, qui de suis viribus ad implendam
iustitiam praesumebant. - Expos, ad Gal. 26: cognitio enim maioris aegritudinis, et
deside-rari medicum vebementiusfecit «mas a Lei foi dada para mostrar por que ligações,
numerosas e estreitas, dos seus pecados, estavam encadeados aqueles que confiam na sua
própria força para realizar a justiça». (Expos, ex ep. ad Rom. XII-XVIII. -XXX.) «O
conhecimento (ou a consciência) de uma doença mais grave faz também desejar mais
fortemente o médico». (Expos, ad Gal. 26.)
141. Expos, ad Gal. 24: ut quoniam gratiam caritatis nisi humiliatus accipere non posset,
et sine bac gratia nullo 'modo praccepta Legis impleret, transgressione humiliarefur, ut
quaereretgratiam. «A Lei foi dada ao povo orgulhoso a fim de que - uma vez que ele não
podia, sem ser humilhado, acolher a graça da caridade, sem a qual não podia de nenhuma
maneira cumprir os preceitos da Lei - ele fosse humilhado pela sua transgressão, a fim de
procurar a graça.»
142. Civ. Dei V, IX, 4: Sicut enim omnium naturarum creator est, ita omnium potestarum
dator, non voluntatum... Quapropter et volun-tates nostrae tantum valent, quantum Deus
eas valere voluit.
143. Civ. Dei V,X, 1.
144. Mistura de várias passagens.
145. Assim, em Santo Agostinho. O èvcímiov tov Oeov da versão dos Setenta, que traduz o
hebraico ni>T mostra que o coram Deo (face a Deus), enquanto autoridade constantemente
presente, pode já valer no estado de homem a que Santo Agostinho chama o ser sob a lei.
146. Conf. VIII, 21: partim velle - partim nolle.
147. Civ. Dei XIV, VI: Voluntas est quippe in omnibus: imo omnes nihil aliud quam
voluntates sunt. «Pois a vontade está em todos os movimentos, ou, antes, todos estes
movimentos não são mais que vontades.»
148. Conf. VIII, 21: Quoniam voluntas imperat, ut sit voluntas, net alia, sed ipsa. Non
utique plena imperat; idea non est quod imperat. Nam si plena esset, nee imperaret ut
esset, qui iam esset. Non igitur 'monstrum partim velle, partim nolle, sed aegritudo
animi est, quia non totus assurgit veritate sublevatus, consuetudine praegravatus.
149. Conf. X, 65: Tantum consttetudinis sarcina degravat (dignus est. Corp. eccl.). Hie
esse valeo nee volo; illic volo nee valeo; miser utro-bique. «E de que maneira pesa sobre
nós o peso do hábito! Onde eu posso ser, não quero; onde eu quero ser, não posso, dupla
miséria.»
150. Ep. CLXXVII, 5: Voluntas non sat est.
151. Expos, ad Rom. XXXVII: Bona est enim Lex; sed sine gratia ostendit tantummodo
peccata non tollit. «Pois a lei é boa, mas, sem a graça, a única coisa que ela faz é mostrar
o pecado, não o retira.»
152. Ep. CCXVII, 12: Non est igitur gratia Dei in natura liberi arbi-trii et in lege atque
doctrina, sicut pelagiana perversitas desipit; sed ad singulos actus datur illius
voluntate. «E por isso que a graça de Deus não está na natureza do livre arbítrio nem na lei
e na doutrina como defendem os Pelagianos na sua perversidade; mas a graça de Deus é
dada para os actos singulares pela vontade de Deus.»
153. Enchir. XXXI: Tune ergo efficimur vere liberi, cum Deus nosfin-git, id est, format et
creat, non ut homines, quod iam fecit; sed ut boni homines simus, quod nunc gratia sua
facit; ut simus in Christo Jesu nova creatura.

«Assim, pois, tornamo-nos efectivamente livres logo que Deus nos enforme, ou seja, nos forme
e nos crie, não para fazer de nós homens, mas homens bons, o que ele faz agora pela sua graça,
para que em Jesus Cristo nós sejamos uma nova criatura».

154. Ioan. Ev. CX, 6: sed iam nos diligenti reconciliati sumus ei, cum quo propter
peccatum inimicitias habebamus. CXI, 1: Ita mundus reconciliatus ex inimico liberabitur
mundo «mas agora estamos reconciliados com aquele que nos ama, aquele em relação ao
queal estávamos em inimizade por causa do pecado.» (foan. Ev. CX, 6.) «Assim, o mundo
reconciliado será libertado do mundo inimigo.» (loan Ev. CXI, 1.)
155. Ioan. Ev. CVIII, 1: Hoc eis regeneratione collatum est: nam gen-eratione de mundo
erant. CXI, 1: ut mundus ex mundo liberator. eratime de mundo erant. CXI, 1: ut mundus
ex mundo liberatin'. «Isso foi-lhe acordado pela regeneração, pois, pela geração, eles
eram do mundo.» (loan. Ev. CVIII, 1) «a fim de que o mundo seja libertado do mundo.»
(loan. Ev. CXI, 1.)
156. Ep. Ioan. tr. VII, 1: sed si non vultis in ista eremo siti mori, bibite caritatem «mas se
não quereis morrer de sede neste deserto, bebei a caridade.»
157. Serm. CLXXI, 3: Cum ergo longe a nobis esset im.mortalis et ius-tus, tamquam a
mortalibus et peccatoribus, descendit ad nos, ut fieret nobisproximus ille longinquus...
llle ut essetproximus, sucepit poenam tuam, non suscepit culpam tuam. «É por isso, uma
vez que o que é imortal e justo estava longe de vós, mortais e pecadores, que ele desceu
até nós para que ele, o longínquo, se torne próximo de nós... A fim de estar próximo, ele
toma para ele a tua miséria e não o teu pecado.»
158. Civ. Dei XIX, XXV: Proinde virtutes, quas habere sibi videtur... rettulerit nisi ad
Deum etiam ipsae vitia sunt potius quam virtutes. .. etiam time inflatae ac superbae sunt.
«Também as virtudes que ela pensa ter... se ela não as relaciona com Deus, estas próprias
virtudes são mais depressa vícios que virtudes... além disso elas são apenas presunção e
orgulho.»
159. Serm. CXLII, 3: Superbia ergo impediebat animae reditum.
160. Veritate sublevatus, consuetudine praegravatus.
161. Conf. VIII, 9: et ignobilia huius mundi elegisti et contemptibilia et ea quae non sunt,
tamquam sint, ut ea quae sunt evacuares (I. Co-1/27 f.). No cristianismo primitivo
também (cf. a epístola de Paulo citada) este «reduzir-se a nada» (evacuate) é,
isoladamente, a razão da eleição do humilde e do desprezado. Isso significa aniquilamento
e não destruição de todos os comportamentos humanos. Isto vai tanto contra Nietzsche e a
sua dedução psicologista a partir do ressentimento - quando mesmo isto podia ser
pertinente para cada caso particular -como contra a teoria do aristocrata de Scheier que se
verga à humildade (Das Ressentiment im Aufbau der Moralen, Gesammelte Aufsatze und
Vortrãge, vol. 2).
162. De div. Quaest. ad Simpl. I, 17: Itaque idem praeceptum timen-tibus lex est,
amantibus gratia est. «E porque o mesmo preceito é lei para aqueles que temem e é graça
para os que amam.»
163. Civ. Dei XIV, IV, 1: Cum vero vivit secundum se ipsum, hoc est secundum hominem,
non secundum Deum, profecto secundum men-dacium vivit; non quia homo ipse
mendacium est, cum sit eius auc-tor et creator Deus, qui non est utique auctor
creatorque mendacii, sed quia homo ita factus est rectus, ut non secundum se ipsum, sed
secundum eum, a quo factus est, viveret, id est illius potius quam suam faceret
voluntatem: non autem ita vivere, quemadmodum est factus Tit viveret, hoc est
mendacium.
164. De Trin. XV, 41.
165. Ioan. Ev. I, XXXVII, 4.
166. Ioan Ev. CX, 6. oderat enim nos quales non fecerat; et quia iniq-uitas nostra opus
eius non omni ex parte consumpserat, noverat simul in unoquoque nostrum et odisse
quodfeceramus et amare quod fecerat.
167. Quando Holl (op. cit.) diz, p. 47: «Esta visão de conjunto limitada confirma, em
primeiro lugar, que a influência de São Paulo não atingiu nas suas últimas profundezas o
pensamento de Santo Agostinho. O traço eudemonista fundamental da sua ética permaneceu
intacto (e também) - apesar de tudo o que ele diz sobre a caritas - o facto de todas as suas
aspirações serem dirigidas para o si»; e p. 29: «em relação a isto, o facto de Santo
Agostinho só saber apreender os mandamentos do Sermão na montanha a partir do seu lado
negativo. A essência mais profunda do amor ao próximo, o seu sentido como vontade para
uma comunidade de sacrifício, permaneceu nele ocultado». Isso não poderia ser
contestado. Mas pode-se mostrar que no próprio São Paulo (ainda que não nas palavras de
Jesus) o amor ao próximo continua ligado de maneira muito rigorosa ao ser particular e à
preocupação da salvação da sua alma; portanto, a questão que está na base da compreensão
do amor ao próximo, tal como Jesus a prescreve, é: como é que posso, apesar de tudo,
viver no mundo enquanto possuído por Deus e separado do mundo?
168. Enchir. CXXI: Omnis itaque praecepti finis est caritas; id est, ad caritatem refertur
omne praeceptum. «No momento em que o preceito tem como finalidade a caridade é que
à caridade se restituem todos os preceitos.»
169. Expos. Ep. ad Gal. 45: Item diligere proximum, id est omnem hominem, tamquam se
ipsum., quis potest, nisi Deum diligat, cuius praecepto et dono dilectionem proximi
possit implere? «Do mesmo modo: amar o próximo quer dizer todo o homem como si
próprio que é disso capaz se não ama Deus pelo mandamento
170. En. in Ps. XXV, II, 2: Proximum tuum debes putare munem hominem et antequam sit
christianus. Nom enim nosti quid sit. apud Deum, quomodo ilium praesciverit Deus
ignoras. «Tu deves pensar que todo o homem é o teu próximo antes mesmo que ele seja
cristão. Pois tu ignoras o que está perto de Deus da mesma maneira.»
171. Ioan. Ev. LXV, 1 (sobre João 13, 34-35): Innovat quippe audi-entem, vel potius
oboedientem non omnis, sed ista dilectio quam Dominus ut a camali dilectione
distingueret, assidit: «sicut dilexi vos». «Não é todo o amor que renova quem escuta esta
palavra, ou, mais ainda, que lhe obedece, mas apenas este amor para o qual, a fim de o
distinguir do amor carnal, o Senhor acrescentou: "como eu vos amei"».
172. Ioan. Ep. tr. VIII, 10: Non enim amas in illo quod est; sed quod vis ut sit.
173. Serm. CCCXXXVI, 2: Ille enim veraciter amat amicum, qui Deum amat in amico,
aut quia est in illo; aut ut sit in illo. «Pois ama verdadeiramente o seu amigo quem ama
Deus no seu amigo, ou porque ele está nele ou a fim que ele esteja nele.»
174. Ep. CXXX, 14.
175. Ep. Ioan. tr. VIII, 8: Debes velle omnes homines aequales tibi esse. «Deves querer
que todos os homens sejam teus semelhantes.»
176. Ioan. Ev. LXXXVII, 4: Ergo et prohibemur diligere in illo quod ipse diligit in
scipso; et iubemur diligere in illo quod ipse odit in scipso. «Está-nos então garantido
amar nele (aquele que ama o mundo) o que ele ama em si mesmo; e está-nos prescrito amar
o que ele odeia em si mesmo.»
177. Ver Confissões IV.
178. Conf. IV, 18: Si placent animae, in Deo amentur, quia et ipsae mutabiles sunt et illo
fixae stabiliuntur: alioquin irent et perirent.
179. Ep. Ioan. tr. IX, 10: Numquid potest diligere fratrem et non diligere dilectionem?
Necesse est ut diligat dilectionem... Diligendo dilectionem, Deum diligit (cf. Civ. Dei XI,
XXVII). «Pode ele amar o seu irmão sem amar o amor? Necessariamente ele ama o amor...
Amando o amor, ama Deus.»
180. Timeu, 28 a: jtccv 8é av TÓ YIYVÓPEVOV WT’ CDRÍU TIVÓÇ ÉE, ÁVÁYKRIÇ YÍYEOOAT. 28 B:
YÉYOVEV (Ó KÓCTUOÇ = OÚPOCVÚÇ SC.) ÓPATÓÇ YÁP ÁTTTÓÇ RÉ ÉORTV KCÚ OCÓPA E%COV. «ORA, TUDO O QUE
POR SUA VEZ SE TORNA, É PELA ACÇÃO QUE O CAUSA QUE NECESSARIAM ENTE SE TORNA.» (28 A) «ELE TORNA-SE (O
MUNDO = O CÉU); É VISÍVEL, COM EFEITO, TANGÍVEL, E TEM UM CORPO.» (28 B.)
181. Timm, 27 d: ú to ytyvópevov pév áei õv Sé óuòékote. 29 a: ei pév Stí kocXóÇ éOTiv
õSe ó KÓopoÇ õ te ÔTjpioupyóÇ áyaOòÇ òpÀov a>Ç TtpòÇ tò áíòov èPàekev. «O que é
que é sempre e que de maneira nenhuma se torna?» (27 d) «Se este mundo é belo, e o seu
criador bom, é evidente que foi para o modelo eterno que olhou.» (29 a.)
182. A comparar com a polêmica contra o devir eterno (Civ. Dei. XII, XI, 12).
183. Timeu, 37 d: eíkú> S’etuvoei kivtjtov Ttva cróávoÇ Ttoifjoat, ko.í Storooopáv ápa
oúupavóv ttotEt pévovxoÇ aíwvoÇ év èví koto áprOpòv touoav aíávtov EtKÓva, toútov õv
8ij /póvov cóvopáKapEv. 37 e: taúta ôè ttávta (ijpépaÇ etc.) pépq /pá>-vou, Kaí to t’ r|V to
t’ éotat %póvon yeyovów. eiôq... 38 a: ypóvon tccvtcc aírâa ptponpévou kocí k«t’ aptGpóv
kukaovlisvov yéyovEV etôq. «Também tenha tido a ideia de formar uma espécie de imagem
móvel da eternidade, e, enquanto organiza o Céu, forme, conforme a eternidade imutável na
sua unidade, uma imagem no eterno desenvolvimento ritmado pelo número; e é a isso que
chamamos Tempo.» (37 d.) Tudo isso (os dias, as noites...), são divisões do Tempo e os
termos "era, será” designam modalidades no tempo, efeitos do devir.» (37 e.)

«Ao contrário, estão aí, no tempo que imita a eternidade descrevendo ciclos ao ritmo do
número, as modalidades-nasci-das.» (38 a.)

184. Timeu, 29 b: toútcov Sè uTtap/ovTCOv ccO ttâcra áváyKri tóvòe tóv kóoliov EtKÓva
TtvòÇ Etvat.

«E sendo dadas estas condições, é também de todo necessário que este mundo seja a imagem de
qualquer coisa».

185. Timeu, 30 c: tü)v pév ow év pépóvÇ eÍ5ee TtEcpVKÓTtov pqôeví KaTaÇtwampEV


úteàeí yáp éoikoç oúôév ttot’ ãv yévovro KaAóv oú 5’ éoti xáÀA gcoa kcxô év Kat Kortà
yévr] popta, TOÚTCO WATOCDV ÓgOTOTO.TOV aÚTÒV TlOtOpEVTà yàp Ôfj
VO^TÓ

Ttávxa éKEtvo év éawâ) TtEptXapóv é/et KCzQómep òôe ó KÓopoÇ rjpctÇ.


«Entre os vivos, à semelhança do qual o autor o constituiu? Não à semelhança de um dos que a
sua natureza destina o papel de parte... pois assemelhar-se tem incompleto, e não poderia
produzir-se o belo; mas aquele do qual os outros vivos, singular e especificamente, são partes, é
a esse entre todos que o mundo é mais semelhante. Com efeito, todos os vivos inteligíveis, ele
próprio tem-nos envolvidos em si mesmo, da mesma maneira que este mundo nos contém a
nós...»

186. Timeu, 38 c: tò pév yàp Sf| Ttapáôetypa Ttávra aia écrav õv, ó S’ au ôtá réÀovÇ ròv
ànavra ypóvov yEyováÇ te kocí ròv kcó éaòpsvo.

«O modelo, com efeito, de toda a eternidade, "é"; ele (o Tempo), ao contrário, de um lado ao
outro de todo o tempo "foi", "é", "será"».
187. Aristóteles, Do céu, 280 a 21: f] Sé toú óàov gú raoíÇ éon KÓcqtoÇ Kod oúrtavóÇ,
oúk âv ó KÓGpoÇ ytyvotro koú <p0£ípotTO, áÀÀ’ cá StaOéoEiÇ aúroí).

«Por conseguinte, se a totalidade dos corpos, que é um contínuo, se ordena tanto de uma maneira
como de outra, e se a constituição do todo forma um Mundo e um Céu, não se poderia dizer que
é o mundo que nasce e morre, mas apenas as diversas disposições».

188. Id., 280 a 24: npiv yàp yEvéaOat áei úmipxEv f] rtpò atirou otioraotÇ, fjv pq
yEvopévqv otiy oiov r’ eivai <pap.Ev pETapáXÀetv.

«Antes do seu nascimento, existia sempre a constituição que lhe era anterior, a qual, dizemos
nós, não pode mudar se ela própria não tiver sido engendrada.»

189. Aristóteles, Metereologia, 339 a 24: TtpòÇ Sé toúroiç tj pév (áp/f| sc.) átStoÇ Kai
réA.oÇ òuk E^ovaa t<b rórt® rfjÇ KivfiOEtoÇ, aXÀ’ aeti év réÀEt Taura Sé rá amuara
Ttávra TtETtepaouévovÇ Siégttikè rórcovÇ aÀÀfiycov.

«Além disso, este movimento é eterno e o seu movimento não tem limite no lugar, mas está
sempre acabado, enquanto que todos os outros corpos ocupam lugares separados que se limitam
reciprocamente».

190. Ver notas 3 e 4.


191. Aristóteles, Metereologia, 339 a 19: ò Sé rtepi rqv yfjv òA.oÇ KÓa-poÇ «O mundo
inteiro que rodeia a terra.»
192. Aristóteles, Do Céu, 300 b 16: tò atirò Sè roúro oupPaivEtv ávayKatov k&v eí
KaOáttsp év rm Tipai© yéypattrai, ttpiv yevéoOat tòv kòguov éKívEro rá Grot/Eía
áráKtroÇ áváyicq yáp fj piatov Eivar rqv KÍvqaiv fj Kára iptioiv. eí Sé Kàra cptiGtv
éKivEiro áváyKT] Kòapov eivar.

«A mesma dificuldade produz-se necessariamente, mesmo se se supõe, como está escrito no


Timeu, que antes do nascimento da ordem os elementos se moviam em desordem. Com efeito, é
preciso que necessariamente o seu movimento tenha sido quer forçado quer natural. O seu
movimento era natural? Já há necessariamente um Mundo ordenado.»

193. Sobre a influência de Plotino sobre Santo Agostinho, cf. antes de mais George Grand,
Augustin et le néo-platonisme, Paris, 1896: justapõe de uma forma muito instrutiva
passagens paralelas entre as Enéades e as obras de Santo Agostinho. Cf. também W.
Thimme, Ausgustins geistige Entwicklung, e Holl, Augustins innere Entwicklung.
194. Enéades, II, 1, 8: utpeitat 6é ev t® yiyveoOcxt h yEWâv tt)V Kpò aúTfjÇ qróaiv.

«Ela produz, no devir e na geração, uma imitação da natureza que lhe é superior».

195. Enéades, II, 9, 7; 'Enel oúSé f) cróoicunÇ ópoicoÇ tco Ttocvti kcxí Çróco éKáoT©
éAAd ÉKEÍ OIOV ÉNT OET KÉXEVCRAOA PÉVETV, ÉVTOTVGA SÉ COO ÚTT EKCPEÚYOVTO'. £IÇ TTJV TÁLJIV
ÉAVTÂV SÉSETOU SEOLIÃ SEWÉPCO. ÉKEÍ SÉ OÚK Ê/EI. ÕTCOD <PÚYQ.

«E que o organismo universal não é semelhante ao de um animal individual; no organismo


universal, a alma que paira por cima dele impõe-lhe permanência; no organismo individual, as
partes espalham-se por todo o lado e só estão sujeitas à ordem por uma ligação de segunda
categoria. As partes do corpo universal não têm lugar onde possam espalhar-se.»

196. Enéades, II, 9, 13: tó te ko.kòv pf] voliíÇeiv áXko TI ÔEÉOTGPOV EIÇ
FJ TÒ ÉV (PPÓVQOIV
KCÒ. EXCXTTOV ÁYOCOÒV KCCI ÁEI TCPÒÇ TÒ OPT KPÓTEOOV.

«...quando se sabe que o mal é apenas o enfraquecimento da sabedoria e uma diminuição


progressiva e contínua do bem.»

197. Enéades, II, 9, 7: ’Eàv Sé noú ti aÚTÔv Ka.TÒ cpàotv Ktvr|0fj, oíÇ OÚK EOTt
KCCTÓ. cpúotv, TOCÔTOC 7tá0%£l, aÚTÓ. SÉ KOCÀ.CÒÇ (pépETOCl ráÇ too 0À.0D
tò Sé (pOeípcTca oú Swúpeva tò>v toú õ/íou táÇtv cpépEtv... oú SwqQEtoa cpúyEtv Tf]V
tó.Çiv ... eí uévtoi PET’ éKEÍVT]Ç TáÇEIEV éCCÜTf)V, OÚÔéV ÔtV Ú7TO TOÚTOV
OÚSÈ CXÚTT] ttáOot.

«Se um dos corpos se move em conformidade com a sua natureza, ele faz sofrer os que ainda
não podem mover-se em conformidade com a sua natureza; mas estes mesmos corpos, enquanto
partes do universo, são arrastados como é preciso; alguns perecem, se não são compatíveis com
a ordem do universo; são como uma tartaruga que se deixou prender no meio de uma multidão,
que caminha na direcção certa; ela é espezinhada porque não pode subtrair-se dos efeitos do
avanço regular da multidão; a menos que não ordene com ela os seus próprios movimentos; ela
não sofrerá, então, nenhum dano.»

198. Enéades. II, 9, 17: Enevra, cm ou tccútòv KáÀ.À.oÇ éid uépet KCtt ÕÀCÚ KCZÍ
TrâOl KOd TtttVTÍ.

«Pois é preciso saber em seguida que a beleza de uma parte não é a do conjunto, a beleza de
cada ser não é a do universo.»
PARTE TRES
A VIDA EM SOCIEDADE (VITA SOCIALIS)
Partindo do facto de que a caridade intra-mundana do cristianismo está ligada ao amor a Deus,
seguimos aqui duas linhas de pensamento diferentes em Santo Agostinho que se considerou
exporem o apego do homem a Deus, de cada vez estruturado diferentemente, tendo como
resultado, ou antes como descon-veniência, que o próprio papel do amor ao próximo
permanecia incompreensível. O amor ao próximo está ligado, conforme o mandamento da
tradição, tanto ao amor a Deus como ao amar o outro como a si mesmo (tamquam se ipsum).
Santo Agostinho concebe este «como a si mesmo» em todas as passagens em que fala do amor
ao próximo (dilectio proximi) sob uma forma que lhe é própria. E assim que, no esquecimento
de si do desejo (appetitus), regressando à eternidade, o si já não se vê, e já só vê o próximo a
uma distância absoluta, pois toda a relação original é esquecida no e pelo esquecimento de si.
Assim, seria necessário que a renúncia a si na relação retrospectiva, que apenas dá o seu
sentido à criatura no seu isolamento total, isolamento que é já o início da renúncia a si, seja
renúncia a outrem tanto como a si mesmo. A questão mantém--se: porque é que o amor ao
próximo, apesar das repetidas discordâncias, desempenha um papel tão importante em Santo
Agostinho, mesmo naqueles contextos que não têm directamente a ver com esse amor, e
precisamente nesses? Haverá talvez um outro campo de experiências, absolutamente distinto na
origem destes de que falámos, em que o próximo tem precisamente uma importância específica?
Nos nossos desenvolvimentos anteriores, esta importância pode parecer ter sido eliminada, mas
repercute-se de facto em Santo Agostinho, e poderia esclarecer o seu interesse por este aspecto
preciso da tradição cristã?
«Eles viram, nós não, e, no entanto, pertencemos a uma mesma comunidade, pois temos uma fé
comum'». A verdadeira sociedade (societas) está fundada sobre o facto da fé comum. Numa
primeira e simples observação, a sociedade dos crentes é portanto definida por dois traços;
primeiro, está fundada sobre qualquer coisa que por princípio não é o mundo, é deste modo
comunidade com o outro não porque ele esteja aí realmente no mundo, mas devido a uma
possibilidade específica; depois, como esta possibilidade é a mais radical do ser do homem,
esta comunidade da fé comum que se realiza no amor mútuo (diligere invicem), exige o homem
por inteiro - ao contrário de todas as comunidades mundanas, na medida em que estas são
cidades (civitates) que nunca isolam senão uma determinação do ser -, exige o homem por
inteiro tal como Deus o exige2. A fé, da qual se diz, no entanto, que cada qual tem a sua (singuli
suas habantf, é de um modo tão radical a fé comum que outrem só é, também, compreendido a
partir da sua fé possível, que faria dele um companheiro (socius). E essa fé é ao mesmo tempo
compreendida - conforme a segunda parte demonstrou - como a possibilidade última, a mais
radical, do ser humano. Mas vimos que é precisamente esta fé que empurra cada um para o
isolamento face a Deus (coram Deo) e mesmo se, simplificando, todos acreditassem na mesma
coisa, esta «comunidade» ficaria sem efeito para o ser de cada um. O simples ser-se de Deus,
no qual todos crêem, não é suficiente para formar uma comunidade de crentes. A partir de que
ponto de vista o puro ser-con-junto dos crentes se torna uma comunidade da fé (fides communis)
que faz de todos os irmãos, mesmo os descrentes, tornarefn-se cada um num próximo? Esta
primeira questão, ppr si só, dar-nos-á a experiência fundamental que fará com que a comunidade
cristã seja decisiva para cada crente. De onde vem - é assim que prossegue a nossa questão -
esta experiência fundamental que já não se deixa deduzir da dialéctica imanente da fé?
Enquanto que o desejo e a relação retrospectiva eram de cada vez uma atitude e a intuição de
uma possibilidade própria cuja realização dependia apenas da graça de Deus, a fé está aqui,
como fé, ligada a um facto histórico, concreto, determinado. Não é o grande problema que eu
sou para mim mesmo (quaes-tio mihi factus sum) que dá ao próximo a importância posta pelo
mandamento de amor - cujo processo a continuação deste capítulo mostrará mais precisamente -
mas uma realidade histórica preexistente que, enquanto tal, é igualmente constringente para a
morte redentora de Cristo que, por si só, lhe dá uma realidade. E portanto antes de mais a partir
da dupla compreensão da fé que se torna manifesta a diferença de ponto de vista; à fé
compreendida como atitude de cada um interrogando-se sobre o seu próprio ser opõe-se aqui
uma concepção da fé que a liga à factici-dade da História, do passado enquanto tal.
A morte redentora de Cristo não resgatou um homem particular mas sim o mundo inteiro, o
mundus constituído pelos homens. Se, portanto, a fé isola cada ser particular, o objecto da fé, a
saber, a redenção por Cristo, adveio num mundo dado à partida, e, por isso, numa comunidade
já dada. A fé retira o homem do mundo, portanto, de uma comunidade humana, da cidade
terrestre (crvitas terrena). Esta cidade terrestre, que é sempre ao mesmo tempo uma
comunidade (socie-tasf determinada por um ser-com e um ser-para outrem e não por uma
simples coexistência, não é assentida arbitrariamente e não é, pois, susceptível de ser suprimida
também arbitrariamente; ela está fundada sobre um segundo facto histórico que, por si só, torna
também possível a realidade histórica efectiva e eficaz de Cristo’ (torna-a possível no sentido
do plano de salvação divina); a descendência comum de Adão, fundamento de uma igualdade
bem determinada de todos os homens entre si e de uma igualdade constringente6. Existe
igualdade porque em Adão o gênero humano é instituído radicalmente7. Existe igualdade radical
(radicaliter) porque ninguém do gênero humano pode subtrair-se a esta proveniência e porque,
para mais, nela a determinação mais essencial da existência humana é constituída e fixada de
uma vez por todas8. Não é portanto uma semelhança acidental (similitude) que liga os homens;
ela está necessariamente fundada e fixada historicamente na descendência comum, a qual
determina um parentesco que excede toda a simples semelhança9. Este parentesco cria a
igualdade, que não é uma igualdade das propriedades ou das aptidões, mas a igualdade da
situação. Todos têm o mesmo destino. O ser particular não está só no mundo, tem companheiros
de destino (consortes), e aqui, não apenas nesta ou naquela situação, mas durante toda a sua
vida. A vida inteira é considerada como uma situação particular submetida a um destino, o
dever morrer. E sobre ela que se funda o parentesco dos homens e, ao mesmo tempo, a sua
ligação num mesmo conjunto (societas).
A dependência recíproca dos homens, que determina de forma essencial o ser-conjunto dos
homens na comunidade mundana, é inteligível pela igualdade que na cidade terrestre permanece
implícita. Esta dependência recíproca mostra-se na troca, no gesto de dar e de tomar, graças ao
qual os homens vivem uns com os outros10. A atitude de cada um para com os outros é aqui
caracterizada pelo facto de crer (credere), por oposição a todo o saber real ou potencial11. Tudo
o que é histórico, todos os actos humanos e temporais (gesta humana et temporalia) são
compreendidos pela mediação desta fé que é ao mesmo tempo confiança e nunca pela mediação
da inteligência (intelligere). Esta fé no outro é uma fé no ser-conjunto futuro que deverá
verificá-la; toda a cidade terrestre depende desta verificação. O facto de crer, derivado da
dependência recíproca, precede toda a verificação12. Não é esta que é constitutiva para a
permanência do gênero humano1', mas esta fé necessária que se tem nela.
A dependência recíproca no interior do mundo tinha sempre por pressuposto a igualdade, mas
esta nunca tinha sido ela própria compreendida tematica-mente na constituição da comunidade
terrestre (socze-tas terrena). A igualdade da situação mantém-se implícita enquanto a morte
permanecer um facto natural e não o indicador do estado de pecador, ou seja, enquanto cada um
ignorar o sentido verdadeiro da igualdade. E apenas se se sabe o que significa a igualdade que a
dependência recíproca e intrínseca dos homens uns em relação aos outros pode ser ultrapassada
pelo isolamento em que cada um se interroga sobre o seu próprio ser. E preciso esconder a
igualdade para que surja a questão: «Como ver o olhar que o teu amigo lança sobre ti? Ninguém,
com efeito, pode ver a vontade pelos olhos do corpo14.» Ao facto de crer corresponde aqui (cf.
segunda parte, nota 173, p. 120) o facto de não poder ver, como, noutra passagem, o facto de
não poder compreender (non inte-lligereposse) (cf. nota 175, p. 120). Ver é uma possibilidade
do conhecimento, a qual, precisamente sob este modo do ver, é de uma evidência certa. Mas
conhecer a verdade do outro em relação a si apenas tem importância face à dependência
recíproca. Na igualdade de todos os homens perante Deus, que se tema-tiza no amor ao
próximo, esta vontade em relação a si (voluntas erga se), amigável ou hostil, é tão indiferente
como o encontro concreto de outrem como inimigo ou amigo. Toda a questão que incide sobre o
outro não interroga aqui a sua significação mundana mas o seu ser perante Deus. Aí, todos os
homens são iguais (aequales), igualmente pecadores.
A proveniência comum é a de tomarem todos parte no pecado original (peccatttm originale).
Esta natureza pecadora é dada à nascença e adere necessariamente ao homem. Não se pode
subtrair-se-lhe. Ela é igual para todos os homens. A igualdade da situação significa que todos os
homens estão no pecado.
«Portanto, o mundo na sua totalidade é nascido de Adão13.» Esta igualdade é a omnipotência
que destrói todas as diferenças. Do mesmo modo, qualquer que seja o número dos Estados e das
comunidades particulares, na verdade existem apenas duas cidades, a boa e a má, fundadas em
Cristo ou em Adão, tal como existem apenas dois amores (amores), o amor ao mundo ou de si e
o amor a Deus16. Todo o ser particular pertence sempre já a Adão, e, assim, ao gênero humano,
e isto pelo nascimento (generatione) e não pela imitação (imitatione)1'. Só há possibilidade de
imitação, e, assim, de livre escolha da graça divina (cf. parte II), desde que Cristo tenha
revelado esta graça aos homens aquando da sua passagem histórica sobre a terra. A liberdade
de escolha bem chama cada um a sair para fora do mundo e para fora do enraizamento
necessário na comunidade do gênero humano, mas nisso ela não pode eliminar a igualdade
instituída à partida, limita-se a conferir-lhe um novo sentido. Este novo sentido é precisamente o
amor ao próximo. Mas isto significa: o ser-conjunto dos homens na comunidade, de necessário e
evidente que era, torna-se um ser-conjunto livremente escolhido e constringente para cada um.
Constringente devido a esta situação comum que se torna, se se a explicita, um ser-no--pecado
comum. Esta comunidade no pecado faz.com que cada um pertença a cada um.
Para compreender de mais perto e de maneira mais concreta a viragem da atitude de cada um em
relação ao mundo que o rodeia e a importância decisiva e nova da igualdade de todos os
homens, que vale igualmente para o cristão isolado no mundo, é necessário examinar as duas
questões seguintes: como é constituída a comunidade do gênero humano determinada por Adão?
Que ser-conjunto define o novo mandamento de Cristo?
A comunidade dos homens que, remontando a Adão, forma o mundo (mundus)' 9 é sempre
anterior a qualquer cidade de Deus (civitas Dei)w. A comunidade dos homens, à qual cada ser
particular pertence pelo nascimento (generatione), já está sempre lá. Por consequência, é de
nascença que o homem endossa a natureza pecadora; antes de qualquer escolha livre o seu ser é
pecador. A igualdade dos homens não é somente a igualdade de homens que, por acaso, vivem
uns com os outros; estende-se até ao extremo do passado histórico20. Tal como a criatura retira a
sua origem, o seu ser verdadeiro recebido de Deus, do mais longínquo passado não-mundano, o
homem existente neste século (in hocsaeculo) retira o seu ser do primeiro passado
historicamente constituído, do primeiro homem. Este mundo histórico (saeculum) é o mundo do
ser-conjunto evidente para todos.
Na comunidade fundada em Adão, o homem tornou-se independente do seu Criador. Depende
dos outros homens, não de Deus. O gênero humano tem a sua origem em Adão e não no Criador.
Surgiu pelo nascimento (generatione) e a sua relação com a sua origem faz-se apenas através de
todas as gerações. A comunidade dos homens, fundada sobre o seu parentesco, é portanto uma
comunidade (societas) a partir dos mortos e com os mortos. Isto significa que é histórica. A
independência deste mundo em relação a Deus é precisamente fundada sobre esta historicidade,
portanto, neste caso, sobre a própria origem da humanidade, que tem a sua própria legitimação.
A sua natureza pecadora é precisamente a sua origem própria, independente de Deus. Mas esta
origem não descreve a proveniência directa do ser a partir do qual o homem é desde logo
(criatura-Criador) na medida em que é. Ela é a origem do gênero humano na sua totalidade que
cada ser particular recebe apenas indi-rectamente pelo nascimento (generatione). Apenas este
desvio - o facto de pelo primeiro homem a proveniência só ser transmitida remontando para lá
de todos os homens, através do mundo tornado por inteiro histórico apenas este desvio funda a
igualdade de todos os homens; pois é somente na transmissão de um ao outro que a proveniência
(e através disso o facto de tomar parte no pecado original) é para cada um a origem. Por outro
lado, este desvio funda através desta necessária transmissão o parentesco de destino e, portanto,
a dependência recíproca de todo o gênero humano, fundamento da comunidade. Esta
comunidade é pois simultaneamente dada por natureza (natura) e fundada historicamente. Que o
homem, pela sua natureza, seja um ser social2' significa ao mesmo tempo que está - visto nesta
pertença à origem que é o único a ter - em acordo com o mundo tanto por natureza como por
nascimento (generatione), isto é, historicamente. A sua natureza tem, enquanto natureza, a sua
origem histórica em Adão. Este duplo laço de familiaridade com o mundo é suprimido na
cidade celeste (civitas coelestis).
Vemos, pois, que na problemática de Santo Agostinho, que quer apreender o ser do homem
como ser social num sentido original, a origem do próprio ser é totalmente diferente da que é
tratada na segunda parte. Na questão sobre o ser da criatura, é sobre o ser de cada ser particular
que incide a interrogação, e a questão já só se põe no isolamento absoluto. A questão sobre o
que é o ser do homem incide, essa, sobre o ser do gênero humano (gmus huma-num) enquanto
tal. Esta questão remete-nos de cada vez para os limites últimos do passado. Todavia, enquanto
a criatura se apreende no seu passado mais remoto como extra-mundana, o homem, esse,
compreende-se, na medida em que pertence à sociedade dos homens, também e justamente no
seu passado mais longínquo, como mundano. A sua origem própria confunde-se com o início do
mundo no pecado original de Adão. E, ao mesmo tempo, a origem do pecado e da queda, pois a
sua proveniência é determinada pelo nascimento (gene-ratio) e não pela criação (creari). O
mundo não é mais o estranho por excelência onde cada um foi atirado pela criação, mas um
mundo que, pelo parentesco na generations, é sempre já familiar, e ao qual cada um pertence
desde a origem. Esta segunda compreensão do ser do homem permite compreender a função
cons-tringente da igualdade: «Assim, não há ninguém no génèro humano a quem não se deva
amor, não devido a uma afeição recíproca, mas devido à própria pertença a uma comunidade de
natureza22.» Este amor não faz senão exprimir a interdependência dos homens. Mas como é que
a igualdade, que no seu sentido cristão é fundada sobre o falso antes (ver parte II), sobre o
pecado, deve tornar-se constringente para aquele que é tocado pela fé, para a criatura que sabe
que depende do Criador, que está dependente origi-nariamente do extramundano? Ou ainda:
como é que um passado que deve justamente ser totalmente aniquilado pode tornar-se
constringente? O que permite, com efeito, a relação do homem com a sua origem, da criatura
com o Criador, é um facto histórico: a revelação divina em Cristo (in Christo). Esta re-vela-se
ao mundo, ao ser-conjunto dos homens, a um mundo histórico como facto histórico. Por um lado,
a fé, no face a Deus, libera todo o ser particular do seu encadeamento no mundo; por outro lado,
é no mundo que constituem que o anúncio da salvação chegou aos homens: «E o teu irmão, vós
fostes salvos pelo sangue de Cristo»2". A simultaneidade da salvação remete para a igualdade
em que Cristo encontra todos os homens no mundo24, pois esta igualdade designa bem o facto de
tomar parte no pecado original. Por esta participação fundada sobre a proveniên-cia comum, o
mundo é, é verdade, salvo, mas sem que o mérito recaia sobre alguém; todos são salvos, do
mesmo modo que todos foram encontrados na mesma situação. Ao mesmo tempo que esta
redenção é antes de mais a igualdade, esta situação partilhada por todos, que se torna manifesta
e transparente. A revelação da igualdade na nova situação de redenção é identificada com o
reconhecimento do passado próprio, o pecado. A igualdade dos homens perante Deus, que
corresponde à igualdade no pecado, funda--se mesmo na vida determinada por Cristo, sobre um
mesmo passado de pecado, que funda a cidade terrestre e que fez do mundo o lugar onde os
homens estão intrinsecamente dependentes uns dos outros. Toda a alienação (Entfremdung) do
cristão no mundo não pode senão ser uma alienação do mundo, pois a evidência seria sentir-se
em casa no mundo2". O passado do pecado continua, portanto, comum a todos, e é o único a
poder estabelecer o ser-conjunto numa cidade. O passado não é pois, como parecia,
simplesmente aniquilado; enquanto estado de pecador pertencendo ao passado, é absolutamente
constringente. Não permanece um puro passado, é revivido na mudança de interpretação que
procede da nova situa-
ção do homem salvo. Que, nesta nova interpretação, subsista como um dado conjuntamente com
o ser do qual a experiência é refeita, é só a partir daí que o próximo adquire a sua importância
específica. Recorda incessantemente o próprio pecado que, se bem que se tenha tornado
passado pela graça divina, não deixa por isso de ser pecado. E o aviso vivo do perigo do
orgulho, porque não é nunca apreendido na sua presença intramundana (ver partes I e II, 3.°
capítulo), mas sempre como aquele em que Deus já agiu pela graça - assim a humildade perante
a graça nos é prescrita ao mesmo tempo que o amor - ou antes como aquele que está ainda
prisioneiro do pecado - não é então nada mais que aquilo que o próprio Cristo foi, e do qual ele
também só foi salvo pela graça de Deus. Neste último caso, o próximo é ao mesmo tempo o
sinal do próprio perigo e a recordação do passado26. Pelo anúncio da salvação, a igualdade não
é apenas eliminada, toma um sentido explícito bem determinado. Este carácter explícito e claro
da igualdade está contido no mandamento do amor ao próximo. Porque no fundo o outro é igual
a ti porque tem o mesmo passado de pecador que tu; é por isso que deves amá-lo. Mas isso
significa: somente o passado faz da pura capacidade de crer uma fé comum (communis fides).
Além disso, não deves amá-lo por causa do seu pecado, que é propriamente a origem da
igualdade, mas por causa da graça que se revelou nele como em ti mesmo (tamquam te ipsum).
A igualdade adquire aqui, porque explicitada, um sentido novo. Torna-se igualdade da graça.
Mas já não é a mesma igualdade, pois enquanto que antes da vinda de Cristo o parentesco de
todos os homens era adquirido de Adão pelo nascimento (generatione), aqui, é a graça divina
que, revelando-se, torna todos os homens iguais ao mostrar-lhes o seu passado comum no
pecado. Se a igualdade apenas se torna verdadeiramente visível na graça, funda-se porém no
passado. E somente a partir do facto deste passado, que é o mundo em sentido lato, que a
igualdade constringente dos homens deve ser compreendida também face a Deus (coram Deo).
Ora, que um mesmo passado de pecador seja igualmente constitutivo do estado na graça
significa que o ser-conjunto dos homens não é simplesmente eliminado logo que, pela fé, nos
tornámos estranhos ao mundo e aos seus desejos. O passado mantém o seu direito na
subsistência do mundo, contra o qual (mas não sem o qual) o anúncio da salvação chegou aos
homens. «Cristo não teria vencido o mundo se o mundo vencesse os seus membros27.» A cidade
terrestre está, enquanto tal, ultrapassada, mas, ao mesmo tempo, o crente é chamado a combatê-
la. O passado continua a agir porque é impossível para cada um chegar ao isolamento total.
Separado (separatus), o indivíduo é impotente, não pode agir senão com os outros ou contra
eles. Mesmo tornado estranho no mundo, continua a viver no mundo, e, tal como o próprio
Cristo veio ao mundo, o seu ser para Cristo depende também da conversão do mundo em corpo
de Cristo (corpus Christi), corpo que exprime a pertença dos crentes a Cristo28. A própria
redenção é tornada dependente da conduta do mundo, da vitória sobre ele. Portanto, o mundo
não é importante porque o cristão (e isto, de certo modo, devido a um desprezo) vive ainda
nele, mas devido à sua pertença constante ao passado, e, portanto, ao parentesco original que
consiste na mesma participação no pecado original, pelo qual a morte é inteligível. Que o
passado não esteja aniquilado na redenção, a morte mostra-o às claras; a morte nunca é
compreendida como um facto natural mas como um acontecimento, uma fatalidade, o castigo do
pecado que apenas Adão e o pecado permitem compreender29. A mortalidade, que faz dos
homens companheiros de destino, subsiste; mas como a morte subsiste não por uma lei da
natureza (lege naturae), adquire para o crente um sentido novo. Acontecimento susceptível de
ser compreendido, ela pode ser interpretada deste ou daquele modo; para os bons, é boa, para
os maus, é má'°. O mundo humano toma aqui a importância particular do próprio passado. No
mundo, o próprio passado continua a viver e o combate contra o mundo, ou o facto de se
inquietar com isso, só pode ser conduzido e compreendido a partir desta pertença ao mundo.
Apenas se pode alcançar a vida nova no combate contra a velha, combate incessante que só
termina com a morte. Enquanto o homem vive no mundo, ficou-lhe ligado, a ele e aos seus
desejos, quer se lhes sucumba ou os combata'1. Enquanto o mundo subsiste, o passado também
subsiste. «Estende também o teu amor ao mundo inteiro se queres amar a Cristo'2.» Com efeito,
a importância do próximo não está ligada à cristandade. O que obriga é só secundariamente a fé
comum em Cristo, que apenas pode tornar-se comum pelo passado de que nos resgata. Apenas
este passado é comum a todos os homens; para o mundo, é o que parte de si, e só o cristão o
conhece explicitamente como pecado. Levar outrem a esta explicitação do seu próprio ser,
conduzi-lo a Deus (rapere ad Dewn), é o dever para com o próximo que incumbe ao cristão
devido ao seu pecado passado. «Ele é consubstanciai a ti (...) O que tu és, ele é-o também;
respeita o teu irmão”.» É por isto que a fuga para a solidão’4 é pecado; priva outrem da
possibilidade da conversão”. Assim, tornando estranho no mundo, a graça divina confere ao
ser-conjunto dos homens um sentido novo, e este sentido é defender-se do mundo. A nova
cidade, a cidade de Deus, é fundada sobre esta defesa face ao mundo. Deste modo, nasce desta
distância face ao mundo um novo ser-conjunto e um ser o-um-para-o-outro que existe ao lado e
contra a antiga comunidade (societas)’6. A nova vida em comunidade fundada em Cristo é
determinada pelo amor mútuo (diligere invicem). Este dissolve a dependência recíproca. Na fé,
a pertença ao mundo no sentido original de cidade terrestre é também ela suprimida. Por isso, a
relação com outrem já não tem esta evidência que lhe dava a dependência recíproca. A
superação desta evidência exprime-se, por um lado, no mandamento de amor, e, por outro lado,
no carácter indirecto específico deste amor.
Apenas o carácter explícito do próprio ser tal como é apreendido na fé torna explícito o ser de
outrem na igualdade. Só aqui o outro se torna o irmão (encon-tramosyNíCT' porproximus,
fraterna dilectio, passim). A caridade, que é ao mesmo tempo um dever (necessitas), nasce
deste laço explícito que é a fraternidade’7. E é dever porque o homem não pode deixar este
mundo dado, mesmo no isolamento da fé, por causa dos pecados passados. Na comunidade com
Cristo, que, compreendida como corpo, contém em si todos os seres particulares a título de
membros38, cada membro sofre com os outros’9. Aqui, a ideia de um ser comum a todos atinge a
sua expressão mais exagerada. O ser particular é absolutamente esquecido nesta «comunidade»
(ser-conjunto), já não é senão membro e apenas tem o seu ser na ligação de todos os membros
com Cristo40. O amor mútuo torna-se um amor a si mesmo, uma vez que o ser do si próprio é
identificado com o ser de Cristo, com o ser do corpo de que é membro41. Todavia, mesmo
abstraindo-nos deste exagero - no qual a dupla significação do ser do homem no mundo, que se
exprime na mistura das duas cidades42 e que é bastante raro em Santo Agostinho, é suprimido - a
caridade permanece uma necessidade e isto contra qualquer tendência que quisesse isolar
absolutamente o crente4’. Esta necessidade já não é dirigida para este ou aquele homem que, no
seu significado mundano, pode ser bom ou mau para aquele que ama, mas, partindo da
explicitação do próprio ser, é dirigida para o ser humano criado pura e simplesmente, para
todos os homens. Apenas o que é comum a todos é determinante, e isto só é apreendido na fé. O
que é comum a todos é o passado comum do pecado do gênero humano e é apenas enquanto tal
que diz respeito ao crente. Mas, como tal, determina ao mesmo tempo a caridade. E como, para
falar globalmente, o dever para com outrem procede deste traço comum que é o pecado, o
impulso concreto para o amor ao próximo nasce da conside-ração do perigo que pesa
continuamente sobre esta vida sempre submetida à tentação, e isto devido ao passado, à nossa
proveniência de Adão44. «Efectivamente, nada impele tanto à misericórdia como o pensamento
do próprio perigo (...) Consequentemente, a paz e o amor estão guardados no coração pelo
pensamento do perigo comum4’.» O amor funda-se, pois, nesta consciência comum do perigo. O
ser-no-mundo do cristão, que exprime ao mesmo tempo a pertença ao passado próprio, chama-
se um ser-em-perigo. A comunidade congregante e unificadora dos crentes exprirne-o também.
Mas, por isto, a comunidade de destino, que fundava igualmente o ser-conjunto dos homens na
cidade terrestre, atinge uma nova forma de expressão; fundada sobre o perigo, esta nova
comunidade de destino assenta de novo sobre a morte. Mas a morte, que só é pensada como
«tributo do pecado» (São Paulo) -não como acontecimento natural -, torna-se no perigo que pesa
sobre todos no cristianismo; já não se trata da morte como fim da vida terrestre, mas da morte
castigo do pecado, da morte eterna. Santo Agostinho qualifica-a como segunda morte46. Que a
primeira morte subsista como fim da vida exprime a persistência do antigo passado do pecador
que era a sua única causa. Pela redenção de Cristo, esta morte é susceptível de ser transposta
como uma ponte para a eternidade. Mas ela pode igualmente tornar-se a morte eterna; a mesma
morte é boa para os bons e má para os maus. O perigo é, pois, soçobrar neste passado pecador,
e a queda é a da morte eterna. A mortalidade do homem era necessidade e tornou-se perigo. Por
esta exposição ao mesmo perigo, o ser-conjunto necessário da cidade terrestre transforma-se
numa livre inclinação para o outro (inclinare). O ter em conta o perigo separou já cada ser
particular da antiga comunidade de destino; o que era necessário por nascimento (generatione)
torna-se num perigo onde cabe a cada um decidir. A simples pertença ao gênero humano já não
é, pois, decisiva por si só. Esta mesma morte, que antes da vinda de Cristo era uma maldição
inexorável, a angústia constante de toda a vida, pode doravante significar a redenção para o
homem bom. Os homens já não pertencem ao mesmo gênero pela generatione mas pela
imitação47. Por ela, cada um pode tornar-se a ocasião de salvação para o outro. Assenta sobre o
amor mútuo e não significa nunca o amor naquele sentido que é o nosso, tornado impossível
pelo desprendimento do mundo, pois falta-lhe o momento da escolha (da eleição); o amado não
é escolhido, mas, antes de toda a possibilidade de escolha, é-nos dado como estando na mesma
situação que nós. O amor (dilectio) reporta-se a todos os homens na cidade de Deus, do mesmo
modo que a interdependência recíproca da cidade terrestre se aplicava identicamente a todos os
homens. Este amor leva as relações humanas a tomar uma forma precisa; proveniente da tomada
em consideração do perigo que conhece a consciência face a Deus, portanto, no isolamento
absoluto, impele igualmente outrem neste isolamento absoluto, e, assim, não se dirige mais ao
gênero humano mas sim ao ser particular, mesmo se se trata do conjunto dos seres particulares.
Na comunidade da nova sociedade, o ser humano dissolve-se de um certo modo nos seus
componentes, os seres particulares. Não é o gênero humano como tal que está em perigo, mas
todo o homem.
Todavia, o crente apenas tem uma relação de amor com estes seres particulares, saídos e
separados do gênero humano, na medida em que nele a graça divina pode ser eficaz. O próximo
nunca é amado por si mesmo mas pela graça divina. Este carácter indirecto próprio do amor
(dilectio) suprime, num sentido ainda mais radical, a evidência natural do ser-conjunto. Toda a
relação com o outro torna-se uma simples passagem para a relação directa com Deus. Não é
outrem como tal que pode dar a salvação; só há salvação porque a graça de Deus é eficaz nele.
O amor ao próximo, o amor mútuo, apenas nos são prescritos porque são ao mesmo tempo o
amor de Cristo (dilectio Christi). Este carácter indirecto choca novamente com o ser-conjunto,
uma vez que faz dele qualquer coisa de provisório. Na cidade terrestre, a interdependência
implícita era também apenas provisória na medida em que a morte lhe punha um termo, mas este
carácter provisório era definitivo. Não havia eternidade capaz de relativizar esse carácter
definitivo. Aqui, na cidade de Deus, a relativização pela eternidade é radical. Quando mesmo a
caridade é uma necessidade, ela é-o somente neste século (m hoc saeculo), neste mundo, após o
qual virá a eternidade, a redenção última e definitiva. Se Santo Agostinho cita frequentemente a
palavra de São Paulo sobre o amor que nunca cessa, ele entende por tal apenas o amor por Deus
ou por Cristo, ao qual todo o amor ao próximo não pode senão impulsionar, e isto é um
mandamento apenas para este fim. Este carácter indirecto das relações dos crentes entre eles
abre precisamente a possibilidade de apreender o ser inteiro do outro, o ser que está face a
Deus (coram Deo), enquanto que toda a comunidade humana tem efectivamente como
perspectiva o ser do gênero humano, mas não o do indivíduo. O indivíduo só pode conhecer-se
enquanto tal no isolamento em que o põe a fé em Deus.
Desenvolvendo a questão da importância de outrem, vemos que Santo Agostinho põe a questão
da origem do homem de duas formas e que a resposta é também ela dupla. A questão incide, por
um lado, sobre o ser do homem enquanto ser particular - e esta questão sobre o ser é já idêntica
à da sua origem -sendo a resposta a esta questão: Deus, como origem de cada um. Certamente,
aqui, o ser particular - que terá em seguida um papel determinante para o amor ao próximo
enquanto preocupação pela salvação espiritual do outro - é apenas descoberto, mas o outro
como próximo, que apenas por acaso se encontra no mesmo mundo que nós e que crê no mesmo
Deus, não é tomado em consideração. Depois, em segundo lugar, a questão incide sobre a
origem do ser humano, e, por dife-rença com a ipseidade de Deus, a resposta dada aqui é o
antepassado humano comum a todos. De modo análogo, o homem de início apenas é
reconhecido como isolado e vindo ao mundo por acaso -o mundo como deserto (eremus)-,
depois, ele é compreendido como pertencendo pelo nascimento (generatione) aos homens, e,
assim, a este mundo.
O ponto de partida não único desta problemática indica já a contradição, que não é senão
aparente, desta teoria da dupla origem. O homem é um outro, quer se compreenda como isolado
ou como condicionado, e constituído essencialmente pela sua pertença ao gênero humano. A
imbricação das duas questões torna-se ainda mais compreensível quando consideramos a
maneira como se unem na doutrina do amor ao próximo. E esta ligação, este nó, é dupla; se bem
que só se possa encontrar o outro devido à sua pertença ao gênero humano, este só se torna o
próximo no isolamento de cada ser particular face a Deus, subtraído à dependência evidente, em
que todos os homens vivem entre si, e as relações que nós mantemos com ele estão
explicitamente submetidas ao constrangimento do parentesco que partilhamos com ele. Mas, em
segundo lugar, a possibilidade do isolamento é introduzida também como facto na história do
gênero humano (antes da redenção por Cristo, e para a filosofia agostiniana da história existe
apenas o gênero humano determinado por Adão), e torna-se assim ela mesma histórica, se bem
que dê precisamente a possibilidade de ser arrancada à história do gênero humano e ao seu
irrevogável encadeamento pelo nascimento (generatione).
E apenas neste nó, nesta ligação, neste recorte, procedente da sua dupla origem, que a
importância do próximo se torna compreensível. O outro é o próximo na medida em que
pertence ao gênero humano, e é-o também no desprendimento e na explicitação que derivam do
isolamento que efectua o ser particular. Pelo simples facto de os crentes estarem juntos devido à
ipseidade de Deus, a fé comum torna-se a comunidade de todos os crentes. Mas, através disso, o
ser do homem compreende-se como proveniente de uma dupla origem.
SANTO AGOSTINHO
E 0 PROTESTANTISMO
O 1500.° aniversário da morte de Santo Agostinho é celebrado com pompa no conjunto do
mundo católico. Na Itália, em França, na Alemanha, as revistas católicas testemunham-no e
manifestações comemoram a sua memória. Eruditos e religiosos discutem sobre o significado da
sua obra, da sua pessoa e da sua influência. Todavia, no protestantismo, ele é a maior parte das
vezes esquecido; os católicos açambarcaram--no proclamando-o Santo Agostinho, aos
protestantes parece repugnar tê-lo em conta por si próprio.
Não foi sempre assim. Da Idade Média até Lutero, o nome de Santo Agostinho era autoridade
tanto para os ortodoxos como para os hereges, tanto para os reformadores como para os
paladinos da Contra--Reforma. O próprio Lutero referiu-se a ele e considerou-se um dos seus
sucessores, tal como recusou Tomás de Aquino e, com ele, a tradição aristotélica enquanto
pensamento do «filósofo insensato». E, com efeito, nem a consciência protestante nem o
«indivíduo» protestante, nem mesmo a exegese bíblica protestante, que se estreou com os
comentários do jovem Lutero sobre a epístola aos Gaiatas e a epístola aos Romanos, não são
pensáveis sem as Confissões de Agostinho, por um lado, e os grandes comentários do
Evangelho e das epístolas de São João, do Gênesis e dos salmos, por outro. Santo Agostinho
podia ser duplamente um antepassado, como homem da Antiguidade e como cidadão do império
romano, quando deixou o mundo cultural da sua juventude e se converteu ao cristianismo. Na
sua juventude tinha-se deixado tomar por todas as correntes culturais e espirituais da sua época;
foi maniqueísta, depois céptico, depois neo-platónico. No fondo, nunca abandonou o seu neo-
platonismo, herança de Plotino, o último filósofo grego. Nunca deixou de tentar interpretar e
apreender o mundo no modo filosófico-cosmológico. Mais ainda, introduziu na Igreja católica
nascente todos esses elementos como a ordem hierárquica, a eloquência retórica e a pretensão à
universalidade, que nos permitem ainda hoje considerar a Igreja como a herdeira do império
romano. Santo Agostinho legitima esta herança na medida em que dá à Igreja, na sua Cidade de
Deus (De Civitate Dei), a sua própria história como uma instituição mundana. Ele sabe que a
Igreja só pode fondar a sua universalidade sobre a universalidade do império romano no seu
declínio, e concede-lhe o direito para tal. Não se pode compreender o alcance e a riqueza do
Santo Agostinho cristão sem se ter em conta o duplo significado da sua existência como romano
e como cristão, e se nos lembrar-mos que ele está justamente na fronteira entre o fim da
Antiguidade e o começo da Idade Média.
As Confissões testemunham o outro império, o império cristão, que, no fim da Antiguidade,
Santo Agostinho abriu para os séculos seguintes: o reino da interioridade. A alma não foi
pensada como interiori-dade pelos Gregos. A alma representava a essência do homem, mas não
eram os horizontes cheios de mistério e de desconhecido da própria interioridade, que não estão
menos ocultos para o homem que os horizontes do mundo exterior. O Grego não conhecia estes
horizontes como história da sua própria vida, como biografia. Existem muitas Bioi na literatura
grega, vidas de grandes homens escritas por outros que não eles mesmos (e estas datam já da
época helenística); servem para a glória de um homem eminente. Mas, em Santo Agostinho, o
olhar deitado sobre a sua vida passada não serve precisamente para a sua própria glória, mas
para a glória de Deus. A nossa própria vida tem importância apenas na medida em que não é
apenas terrestre, porque nela se decide a proximidade ou o afastamento de Deus, o pecado e a
salvação. No momento da sua conversão, Agostinho é resgatado por Deus; não o mundo inteiro,
mas unicamente ele, o ser singular que se levanta perante Deus. E salvo da sua vida pecadora. E
é na glória de Deus que ele professa a redenção e testemunha perante os homens o poder de
Deus. Nesta profissão de fé, é obrigado a recordar-se da sua vida passada na totalidade, uma
vez que cada instante dessa vida era pecado e cada instante engrandece a força e a maravilha da
redenção. Por isto, a vida própria torna-se uma unidade homogênea e cheia de sentido, um
caminho para a redenção. Esta vida é aberta pela recordação; é apenas na rememoração que a
vida adquire o seu sentido indefectível; é recolhida na rememoração. Duvidou-se
frequentemente da veracidade das Confissões. Santo Agostinho teria exagerado os seus
pecados, teria representado a sua vida de forma falseada - intencionalmente ou não - de uma
maneira que ela não teria sido na realidade, esquecendo todo o bem dessa vida; em suma,
acredita-se que a recordação altera. No entanto, sem esta rememoração, sem esta
«representação» que é sempre qualquer coisa de essencialmente outra que não a realidade
vivida de forma ingênua, o passado não teria sido conservado para nós, teria permanecido
passado. Apenas a rememoração «que falseia» salva a realidade. A questão da realidade
«real», independente da realidade salva nas Confissões, não tem sentido. As Confissões
terminam em toda a lógica através de um longo desenvolvimento filosófico sobre a memória,
que se torna a essência da interioridade, portanto, do cristão.
A descoberta da interioridade pessoal e toda a sua exploração temática não têm nada a ver com
a psicologia ou com a reflexão modernas, apesar da abundância de pormenores psicológicos
incisivos que aí se encontra. Pois esta interioridade importa, não porque é a minha e seria por
esse facto interessante, mas porque era má e tornou-se boa. A vida pessoal não é tematizada
porque seria, no sentido moderno, individual e única, nem porque teria o seu próprio
desenvolvimento no sentido de um aperfeiçoamento da personalidade; não é única mas é
exemplar (como isto se passa comigo, pode passar-se o mesmo com todos). A confissão de si
tem um sentido geral - é assim que a graça de Deus reina sobre uma vida. A vida não tem
história autônoma; mas o princípio fundamental da mudança é a conversão que divide a vida em
duas partes diferentes. O que torna a vida digna de ser rememorada, o que faz dela um
monumento para o cristão, não é um princípio imanente à própria vida, mas simplesmente o
Outro, a graça de Deus.
Na tradição cristã e europeia, esta rememoração tem uma dupla herança: a confissão
sacramental e a consciência moral, mas a confissão sacramental representa já uma certa
alteração do sentido original das Confissões. Em Santo Agostinho, aquele que confessa a sua fé
é trazido à solidão do seu próprio interior e mantém-se com ele perante Deus. Que esta
exposição solitária a Deus seja para os outros uma exortação e um testemunho, isso nada
infirma; Santo Agostinho apenas confessa Deus, não os homens, quanto muito por eles. Mas a
confissão sacramental introduz esta instância na relação da alma com Deus, que Lutero combate
como uma alteração do sentido original do cristianismo. Numa tradução notável e secular e para
lá da época propriamente católica, Lutero alinhava com Santo Agostinho, pela sua concepção do
crente cuja consciência se perfila imediatamente perante Deus.
Se bem que a confissão da sua vida tenha tido para Santo Agostinho poucas implicações
psicológicas, não deixa de ser ele o iniciador do romance psicológico e autobiográfico
moderno, e isto pelo desvio do pietismo. O recolhimento religioso perante Deus perde com o
movimento geral da secularização a autoridade que lhe era reconhecida e torna-se simplesmente
um recolhimento sobre a sua própria vida - tal como acontece pela primeira vez na Alemanha,
de um modo representativo, em Anton Reiser de K. P. Moritz, que, se bem que oriundo do
pietismo, definitivamente abandonou as descrições de vida «edificantes» da religiosidade
pietista. O conceito da graça dá lugar ao desenvolvimento autônomo de si, e a sua própria
história pessoal aparece-nos finalmente em Goethe como a «forma criada que se desenvolve
vivendo».

NOTAS
1. Ep. Ioan. tr. I, 3: Illi videnint, nos non vidimus, et tamen socii sumus; quia fidem
communem tenemus.
2. Serm. XXXIV, 7: totum exigit te qui fecit te. «Exige-te por inteiro aquele que te fez».
3. De Trin. XIII, 5: Fides ista communis est... sed sicut dici potest omnibus hominibus
esse facies humana communis; num hoc ita dici-tur, ut tamen singuli suas habeant.
«Comum é esta fé... no sentido em que dizemos que o rosto humano é comum a todos os
homens, pois diz-se isto deixando entender bem que cada um possui o seu».
4. Civ. Dei XIX, XVII: quoniam vita civitatis utique socialis est. «Uma vez que a vida de
uma cidade é evidentemente social».
5. Cf. o relacionamento constante entre Cristo e Adão a partir de Ep. Ad Rom. 5,12. Por
exemplo, De pecc. mer. et rem. I, 16.
6. Ep. Ioan. VIII, 8: Debes velle omnes homines aequales tibi esse. «Deves querer que
todos os homens sejam teus iguais».
7. De Gen. ad Litt. VI, 14: In ipso Adamo genus humanus tamquam radicaliter instituíam
est.
8. Serm. XCVI, 6: si homines dicas mundum, totum mundum. malum fecit qui primo
peccavit. «Se dizes que o mundo são os homens, o primeiro que pecou tornou mau o mundo
inteiro».
9. Civ. Dei XIV, 1: Diximus iam. superioribus libris ad humanum genus, non solum
naturae similitudine sociandum, verum etiam quadam cognationis necessitudine in
unitatem concordem pads vinculo colligandum, ex homine uno Deum voluisse homines
instituere... a quibus aclmissum est tam grande peccatum, ut in deterius eo natu-ra
mutaretur humana, etiam in posteros obligatione peccati et mortis necessitate
transmissa. - XII, XXII: unum ac singulum (hominem sc.) creavit, non utique solum sine
humana societate deserendum, sed ut eo modo vebementius ei commendaretur ipsius
societatis imitas vinculumque concordiae, si non tantimi inter se naturae similitudine
verum etiam cognationis affectu homines necte-rentur. «Como disse nos livros
precedentes, querendo Deus não apenas unir os homens numa única sociedade pela
similitude da natureza, mas, graças aos laços de parentesco, reuni-los numa harmoniosa
unidade nos laços da paz, instituiu a humanidade a partir de um só homem. Esta
humanidade em cada um dos seus membros não deveria morrer, se os dois primeiros
homens, um extraído do nada, o outro do primeiro homem, não o tivessem merecido pela
sua desobediência: e a sua falta foi tão grande que a natureza humana achou-se por isso
depravada, e com ela transmitem-se aos descendentes a servidão do pecado e a
necessidade da morte». (Cm. Dei XIV, 1.) «Foi por isso que Deus criou o homem único e
só, não para o deixar isolado de toda a comunidade humana, mas para pôr em mais vivo
relevo aos seus olhos a unidade desta sociedade e o laço da concórdia que liga os homens
entre si, não apenas por uma semelhança de natureza, mas ainda por um sentimento de
parentesco». (Civ. Dei XII, XXII.)
10. Conf. X, 6: ...in auribus credentium filiorum hominum, sociorum gaudii mei et
consortium mortalitatis meae.. praecedentium. et conse-quentium et comitum viae meae.
«...para ser ouvido pelos filhos dos homens, associados à minha fé, à minha alegria, e que
participam na minha condição mortal... e que caminham pela minha estrada, perante mim,
seja depois de mim, seja ao meu lado.»
11. Div. Quaest. ad Simpl. I, 16: cum dando et accipiendo inter se hominum societas
connectatur... «enquanto dando e recebendo, uns aos outros, uns dos outros, a sociedade
dos homens tece-se...»
12. De div. quaest. 83, qu. 48: Credibilium tria sunt genera. Alia sunt quae semper
credentur et numquam intelliguntur: sicut est omnis historia, temporalia et humana
gesta percurrens. Alia quae mox, ut cre-duntur, intelliguntur: sicut sunt omnes rationes
humanae. Tertium, quae primo creduntur, et postea intelliguntur... «Há três espécies de
coisas credíveis. Umas são aquelas em que se crê sempre sem nunca as compreender: tal é
essencialmente a história que desenrola os acontecimentos temporais e humanos. Outras
são tanto compreendidas como logo admitidas: tais são todos os raciocínios humanos. As
terceiras são primeiro admitidas, e seguidamente compreendidas... como as coisas divinas
(divinae res).»
13. De Fide rerum quae non vid. 3: Sed utique ut eum probes, peri-culis tuis nec te
committeres nisi crederes: ad per hoc cum te commit-tis ut probes, credit antequam
probes. «Mais ainda, para o (ao amigo) julgar, tu não te basearias sequer nas tuas provas
se não cresses nele. A partir do momento em que fundas sobre eles o teu juízo, é porque
antes de julgar tu crês».
14. Ibid. 4: Si auferatur haecfides de rebus humanis, quis non atten-dat quanta earum
perturbado et quam. horrenda confusio subse-quatur? - Si ergo non credentibus nobis
quae videre non possumus, ipsa humana societas, concordia pereunte, non stabit.
«Supondo que, nas relações humanas, se suprime esta fé, quem não se dá conta da
desordem, da horrível confusão que se se seguiría a essa supressão?... Se, portanto, a
recusa de crer no que não podemos ver irá arruinar a sociedade dos homens destruindo a
união dos corações...»
15. De Fid. rer. 2: Amici tui erga te quibus oculis vides? Nulla mim voluntas corporeis
oculis videri potest.
16. C. Jul. Pel. VI, 5: Totus ergo mundus ex Adam reus.
17. Civ. Dei XIV, 1: Mortis autem. regnum in. homines usque adeo dom-inatum est, ut
omnes in secundam quoqtte mortem, cuius nulla est finis, poena debita praecipites
ageret, nisi inde quosdam indébita Dei gratia liberaret. Ac per hoc factum est, ut, cum
tot tantaeque gentes per terrarum orbem... sint varietate distinctae, non tamen amptius
quam duo genera humanae societalis existerent... «Ora o reino da morte prevaleceu de tal
modo sobre os homens que um justo castigo os precipitaria a todos na segunda morte, cuja
duração é eterna, se uma imerecida graça de Deus não salvasse dela um certo número.
Adveio desde logo que, entre tantas e tão grandes nações espalhadas por toda a terra, não
se encontrou todavia senão duas formas de sociedades humanas».
18. Civ. Dei XIV, XXVIII: Fecerunt itaque civitates duas amores duo, terrenam scilicet
amor sui usque ad contemptum Dei, coelestem vero amor Dei usque ad contemptum. sui.
«Dois amores fizeram, pois, dois lados; o amor a si mesmo até ao desprezo de Deus, a
cidade terrestre; o amor a Deus até ao desprezo de si, a cidade celeste.»
19. Op. Imp. II, CXC: Non imitationem imitationi, sed regenera-tionem generationi
opposuisse Apostolum. CLXIII: sed quia in illo qui hoc egit, quando id egit, mines
eramus, tantumque fait ac tale delictum, ut eo natura universa vitiaretur humana', quod
satis indi-cat etiam ipsa generis humani tarn manifesta miséria. - De nupt et concup. II,
45: sed idea per unum hominem dixit a quo generatione utique hominum coepit, ut per
generationem doceret isse per omnes originalepeccatum. «O Apóstolo não opõe a
imitação à imitação mas a regeneração à geração.» (Op. Imp. II, CXC) «mas porque nós
estávamos todos naquele que desobedeceu quando desobedeceu, e esta falta foi tão grande
e de tal forma que por ele foi viciada a natureza humana inteira: é o que prova a miséria
tão evidente de todo o gênero humano.» (Op. Imp. CLXIII) «mas ele diz (que o pecado
entrou no mundo) por um só homem (Rom. 5, 12), esse homem pelo qual começou, com
efeito, a geração dos homens, para ensinar assim que o pecado original passa por todos
pela geração.» (De nupt. et cone. II, 45.)
20. Os desenvolvimentos seguintes deixam intencionalmente de lado a outra teoria
agostiniana das duas cidades, na medida em que esta remonta a Caim e Abel. Tornaria
inutilmente pesada a interpretação. A boa cidade (cru it as), encarnada por Abel, é
anunciadora da civitas Dei, que apenas será fundada definitivamente numa realidade de
facto e eficaz por Cristo. Para uma interpretação filosófica, o que se segue deverá ser
suficiente. A passagem principal onde é explicada a teoria de Caim e Abel é Civ. Dei XV,
I, 1 e 2.
21. Civ. Dei XV, I, 2: Natus est ergo prior Cain ex Ulis duobus generis humani
parentibus, pertineus ad hominum civitatem: posterior Abel, ad civitatem Dei. - C. Jul.
Pel. VI, 4: in illo (Christo sc.) peccatum numquam fui, propter quod omnis homo prius
mundo, non Deo nas-citur. «Nele nunca houve pecado porque todo o homem nasce antes
de mais do mundo, não de Deus.» (C. Jul. Pel. VI, 4.)
22. Op. Imp. II, CLXIII: quia in illo qui hoc egit (sc. Adam), quando id egit omnes
eramus... et idea manifestam est, ad ilium pertinere omnem qui ex illo successione
propaginis nascitur... «porque nós estávamos todos nele (Adão), que desobedeceu quando
o fez... por causa disto, é evidente que releva dele todo o homem que nasce segundo a
sucessão da sua descendência.»
23. Civ. Dei XII, XXVIII, 1: Nihil enim est quam hoc genus tarn dis-cordiosum vitio, tarn
sociale natura. Neque commodius contra vitium discordiae... natura loqueretur humana
quam recordationem illius parentis, quern propterea Deus creare voluit unum, de quo
multitu-do propagaretur... «Nenhuma raça está tão sujeita à discórdia pelo efeito do vício,
nenhuma é tão sociável por natureza. Contra este vício da discórdia, para o impedir de
nascer ou curá-lo, uma vez nascido, a natureza humana não podia exprimir-se melhor senão
evocando a recordação do primeiro pai: Deus quis criar só aquele de quem se propagaria
uma multidão para que, graças a esta recordação, mesmo na multidão, seja preservada a
unidade dos corações.»
24. Ep. CXXX, 13: Ita nemo est in genere humano cui non dilectio, et si non pro mutua
caritate, pro ipsa tamen communis naturae societate debeatur.
25. Ep. Ioan. V, 12: Prater tints est, simul emptis estis, unum est pretium vestrum, ambo
sanguine Christi redempti estis.
26. Civ. Dei I, IX, 3.
27. Civ. Dei XV, I, 2. Cf. nota 21, p. 159.
28. Expos. Ep. ad Gal. 56: Nihil enim ad misericordiam sic inclinat, quam propriipericuli
cogitatio... Pax igitúr et dilectio communis periculi cogitatione in corde serventur. 57:
Dilige et die quod voles: nullo modo maledictum erit quod specie maledicti sonuerit, si
memineris senserisque te in gladio verbi Dei. «Nada inclina tanto à misericórdia como a
consciência de um perigo comum... Que a paz e o amor sejam pois conservados no coração
pela consciência de um perigo comum.» (Expos. Ep. ad Gal. 56) «Ama e diz o que queres:
o que pode ressoar como palavra má não será de maneira nenhuma palavra má se tu te
lembrares e sentires que estás sob a espada da palavra de Deus.» (Expos. Ep. ad Gal. 57.)
29. De discipl. christ. 3: De proximo inventa est tibi regula quia inventus es proximo tuo
par tu ipse. «Uma regra foi encontrada para ti a partir do teu próximo, pois tu, tu também,
foste achado igual ao teu próximo.»
30. Ioan. Ev. CIII, 3: Non enim vicisset ille (sc. Christus) mundum, si eius membra
vincerest mundus.
31. Ioan. Ep. tr. X, 3: Et diligendo fit et ipse membrum, et fit per dilec-tionem in compage
corporis Christi. «Amando, torna-se, também ele, um dos seus membros, e entra pela
dilecção na unidade do corpo de Cristo.»
32. Civ. Dei XIII, XV: etiam. ipsam nobis corporis mortem non lege naturae, qua nullam
mortem homini Deus fecit, sed merito inflictam esse peccati (cf. Senn. CCXXXI, 2) «a
própria morte do corpo não nos foi inflingida por uma lei da natureza, uma vez que,
segundo esta lei, Deus não submeteu o homem a nenhum gênero de morte, mas como justo
castigo do pecado.»
33. Civ. Dei XIII, II: De prima igitur corporis morte dici potest, quod bonis bona sit,
malis mala. «Da primeira morte corporal pode pois dizer-se que é um bem para os bons,
um mal para os maus.»
34. Serm. CLI, 7: Agit malum, quia movet desiderium malum: non perficit malum, quia
me non trahit ad malum. Et in isto hello est tota vita sanctorum, «Ele faz mal porque um
desejo mau o conduz; não vai até ao extremo do mal porque não me arrasta para o mal. E
toda a vida dos santos está nesta guerra.»
35. Ep. Ioan. X, 8: Extende caritatemper totum orbem, si vis Christum amare.
36. Serm. LVI, 14: Consubstantialis tuus est... Hoc est ille quod tu: respite fratrem tuitm.
37. Conf. X, 70: fuga in solitudinem. «Foge para a solidão.»
38. Ep. Ioan. VIII, 2: Nutnquid hoc voluit. dicere, ut quaetumque bona facimus,
abscondamus ab oculis hominum et timeamus videri? Si times spectatores non habebis
imitatores: debes ergo videri. 9: Si enim abscondis ab oculis hominis, abscondis ab
imitatione hominis, laudem subtrahis Deum. «Quis ele dizer que, qualquer que seja o bem
que façamos, devemos esconder-nos dos olhos dos homens e temer ser por eles vistos? Se
temes os espectadores, não terás imitadores: é pois necessário que te vejam.» (Ep. loan
VIII, 2) «Se, com efeito, te furtas aos olhos dos homens, furtas-te à imitação dos homens,
frustras Deus na sua glória.» (Ep. loan VIII, 9.)
39. De cat. rud. 31: Duae itaque civitates, uma iniquonmi, altera sanctorum, ab initio
generis humani usque in finem saeculi perducuntur, nun permixtae corporibus.«EÁs
porque existem duas cidades, uma dos injustos, outra dos justos (santos). Elas prosseguem
a sua caminhada desde a origem do gênero humano até ao fim do mundo».
40. Ver todo o parágrafo que opõe a suavidade da contemplação à necessidade da
caridade... (Civ. Dei XIX, XIX): si autem imponi-tur, suscipienda est propter caritatis
necessitate™. «Se no-los impõem (o estudo e a contemplação) é necessário aceitá-los
conforme impõe o dever da caridade.»
41. Para estas representações do cristianismo primitivo, de origem provavelmente estóica,
ver em Santo Agostinho: Ep. loan tr. X, 3 e 8; loan. Ev. CX, 5.
42. Ioan. Ev. LXV, 1: et si patitur unum membrum, compatiuntur omnia membra. «E se
um membro sofre, todos os membros sofrem com ele.»
43. Serm. XXIV, 5: Ut membra Christi non discordent, impleant omnia quae in illius
corpore sunt, officia sua: facial oculus in sublimi locatus quod ad oculum pertinet, etc.
(Cf. loan. Ev. XVIII, 9). - Serm. CCLXVII, 4: officia diversa sunt, vita communis. Sic est
Ecdesia Dei... in aliis hoc in aliis illud: singuli propria operantur, sedpariter vivunt (cf.
En. in Ps. XXXII, 21). «Para que os membros de Cristo não estejam em desacordo, para
que cumpram todos os ofícios próprios que pertencem ao seu corpo: que o olho colocado
no topo faça o que convém ao olho, etc.» {Serm. XXIV, 5); «Os ofícios são varios'mas a
vida é comum (no corpo humano). Assim é na Igreja de Ipeus... uns fazem isto, outros
aquilo: cada um faz o seu ofício próprio, mas vivem uma vida igual.» Serm. CCLXVII, 4.
44. Ioan. Ep. tr. X, 3: cum> enim se invicem amant membra, corpus se amat. «Uma vez
que, com efeito, os membros se amam mutuamente, o corpo ama-se a si mesmo.»
45. Civ. Dei XI, I: ...de duarum civitatum terrenae scilicet et coelestis, quas in hoc
interim saeculo perplexas quodam modo diximus invicemquepermixtas... «...as duas
cidades, a terrestre e a celeste, que são, como já disse, entrelaçadas, e, de certo modo,
misturadas uma na outra no século presente.»
46. Civ. Dei XIX, XIX.
47. Conf. X, 39, 48: nemo securus esse debet in ista vita, quae tota tentado nominatur
(Hiob 7, 1). «Ninguém deve considerar-se em segurança nesta vida que foi chamada “uma
tentação permanente”.»
48. Expos. Ep. ad Gal. 56: Nihil enim ad misericordiam sic inclinai, quam proprii
periculi cogitatio... Pax igitur et dilectio, communis periculi cogitatione en corde
serventur.
49. Civ. Dei XIII, II. XIV, I: Mortis autem regnum in homines usque adeo dominatum est,
ut omnes in secundam quoque mortem cuius nullus est finis, poena debita praecipites
ageret, nisi inde quosdam indébita Dei gratia liberarei. «Ora o reino da morte prevaleceu
de tal modo sobre os homens que um justo castigo os precipitaria a todos na segunda morte
cuja duração é eterna, se uma graça de Deus imerecida não livrasse de tal um certo
número.»
50. Cf. Ep. Ioan., VIII, 2.

ABREVIATURAS

Act. c. Fel. Man. Acta contra Felicem Manicbaeum.


D. b. vita De beata vita.
D. bono coni. De bono coniugali.
Cat. rud. De catechizandis rudibus.
Civ. Dei De civitate Dei.
Conf. Confessions.
De cont. De continentia.
C. duas ep. Pel. Contra duas epistolas Pelagianorum ad Bonifacium.

C. Faust. Manich. Contra Faustum Manicbaeum.


C.Jul. Pel. Contra Julianum Pelagianum.
Op. imp. Contra secundam Juliani respon sionem imp erfectum opus.

Discipl. christ. De disciplina Christiana.


Div. quaest. ad Simpl. De diversis qaestionibus ad Simpli-cianum.

De div. quaest. 83 De cliversis quaestionibus octoginta tribus.

Doctr. christ. De doctrina Christiana.


Enchir. Enchiridion de fide, spe et caritate.
En. in Ps. Enarrationes in Psalmos.
Ep. Epistolae.
Ep. in Rom. inch, expos. Epistolae ad Romanos incboata expo sitio.

Expos. Ep. ad Gal Expositio Epistolae ad Gaiatas.

Expos. Ep. ad Rom. Expositio quarumdam propositionum ex

Epistolae ad Romanos.

Fid. et op. De fide et operibus.

De Fid. rer. De fide rerum quae non videntur.

Gen. ad Litt. De Genesi ad Litteram.

Grat, et lib. arb. De gratia et libero arbítrio.

Ioan. Ev. tr. In loannis Evangelium tractatus.

Ep. Ioan. tr. In Epistolam loannis ad Parthos trac

tatus.

De lib. arb. De libero arbítrio.

De mend. De mendacio.
De mor. eccl. I

De mor. Man. De moribus ecclesiae catholicae et de

moribus Manichaeorum.

De mus. De musica.

De nat. boni. c. Man De natura boni contra Manichaeos.

Nat. et grat. De natura et gratia.

Nupt. et concup. De nuptiis et concupiscientia.

De ord. De ordine.

Pecc. mer. et rem. De peccatorum meritis et remissione.

Quaest. 17 in Ev. Quaestiones septemdecim in Evan

gelium

sec. Mt. secundem. Matthaeum.

Retr. Retractationes.

Serm. Sermones.

Solil. Soliloquia.

Spir. et Litt. De spiritu et littera.

De trin. De trinitate.

De util. cred. De utilitate credendi.

De v. rei. De vera religione.

En. Plotino. Enéades.

Nik. Eth. Aristóteles. Ética a Nicómaco.


Corp, script. Corpus scriptorum ecclesiasticorum

latinorum..

Ao longo da obra, as citações seguem a edição Mauriner (Migne, Paris), nomeadamente no que
diz respeito à divisão em parágrafos. (H. A.)
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