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Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA

O conceito de liberdade na teoria política de Norberto Bobbio#

The concept of liberty in the Norberto Bobbio’s political theory

Carlos Bernal Pulido


Professor da Faculdade de Direito da Universidade Externado de Colômbia

Resumo: Este ensaio propõe uma reconstrução crítica do conceito de liberdade de Norberto
Bobbio. A leitura histórica e analítica de seu trabalho leva à identificação de três usos
descritivos do conceito de liberdade: uso negativo ou liberdade liberal, liberdade democrática
ou autonomia e liberdade positiva, de um tipo socialista. Na segunda parte deste trabalho, o
alcance e as limitações desses três usos são comentados, destacando-se a insuficiência da
dicotomia entre liberdade negativa e positiva, a incompatibilidade da liberdade negativa com
a ideia jurídica e fundamentalmente reforçada de liberdade consagrada nas Constituições e a
fundamentação dos direitos sociais como realização da liberdade, que num Estado fundado na
legalidade e no direito podem tanto ter uma fundamentação independente quanto constituir
um meio para exercer essas liberdades.

Palavras-chave: Conceito de liberdade. Liberdade liberal. Liberdade democrática. Liberdade


positiva. Direitos sociais.

Abstract: This essay offers a critical reconstruction of Noberto Bobbio’s concept of liberty.
The historical and analytical review of his work leads to the identification of three descriptive
uses of the concept of liberty: negative or liberal liberty, democratic liberty or autonomy, and

#
Traduzido, com a gentil autorização do autor, do original em espanhol intitulado El concepto de libertad en la
teoría política de Norberto Bobbio, publicado na Revista de Economía Institucional 14, 2006, pp. 55-75.

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positive liberty, of a socialist type. In the second part, the reaches and limitations of these
three uses are commented on, highlighting the insufficiency of the dichotomy between
negative and positive liberty, the incompatibility of the negative liberty with the legally and
fundamentally reinforced idea of liberty consecrated in the Constitutions and the foundation
of social rights as the realization of liberty, which in a State based on the rule and law can
either be independently grounded or justified as a means to exercise these liberties.

Keywords: Concept of liberty. Liberal liberty. Democratic liberty. Positive liberty. Social
rights.

1 INTRODUÇÃO

1.1 PRÓLOGO

Norberto Bobbio foi dos mais proeminentes filósofos do direito e da política do século XX e,
também, um dos principais protagonistas do debate político italiano no segundo pós-guerra.
Deve-se atribuir à sua obra jurídico-filosófica – da qual talvez suas teorias gerais da norma e
do ordenamento jurídico sejam as mais significativas 1 – o mérito de ter antecipado no âmbito
continental a aplicação da filosofia analítica ao estudo da natureza e da função do direito.
Bobbio foi pioneiro neste campo, logo revolvido não só na Itália por discípulos como Luigi
Ferrajoli, como também na Espanha e na América Latina.

Contudo, talvez sejam as contribuições de Bobbio à filosofia política que o levaram a adquirir
renome mundial. Tais contribuições incluem mais de uma dezena de livros e uma centena de
artigos, os mais emblemáticos dos quais foram traduzidos para o espanhol e publicados há
pouco tempo sob os auspícios de Michelangelo Bovero na boa compilação chamada Teoria
General de la Política 2. Esta teoria não negligencia nenhum dos temas essenciais da filosofia
política e os trata com o rigor e a crítica implacável que sempre caracterizaram os trabalhos de
Bobbio. A obra sistematiza uma análise pormenorizada que alcança desde as idéias dos
clássicos até os posicionamentos dos autores mais recentes, em cinco idiomas, sobre temas
como democracia, igualdade, liberdade, valores, paz e guerra e direitos humanos. Sua

1
N. Bobbio, Teoría general del Derecho, Temis, Bogotá, 1988.
2
N. Bobbio, Teoría general de la Política, Trotta, Madrid, 2003.

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importância tem ido além das fronteiras italianas, europeias e do mundo latino, como se
evidencia na incontável literatura – artigos, livros, compilações e teses doutorais – que se tem
produzido no mundo inteiro sobre o pensamento de Bobbio.

1.2 A ANÁLISE DO CONCEITO DE LIBERDADE

Um dos aspectos mais relevantes da teoria política de Bobbio foi seu estudo sobre os valores.
A perspectiva analítica a que o autor sempre privilegiou o levou a tentar reconstruir o
significado ou os significados descritivos dos valores. A pretensão de Bobbio era fazer um
estudo sob uma perspectiva científica, alheia à manipulação retórica, que permitisse dotar da
maior clareza possível cada conceito. Ou, se preferir, o que o filósofo de Turim buscava era
tratar os valores sob um ponto de vista desprovido de valorações (avalorativo). Assim, sua
contribuição pode ser posta em consonância com obras como as Dimensões da Liberdade, de
Oppenheim. O ponto de partida foi o reconhecimento da possibilidade de descrever os
valores, isto é, de reconstruir o significado ou os significados descritivos das noções de valor,
de acordo com as regras linguísticas que os regem. Através da aplicação deste método
analítico seria possível assumir ou refutar o valor, sempre com a consciência de que esta
assunção ou refutação não deriva diretamente do significado descritivo de cada noção.

Enquanto valor, a liberdade também possui um ou vários significados descritivos, cuja


reconstrução deve ser feita conforme as regras linguísticas utilizadas pela comunidade em
geral e pela comunidade científica em particular. Um dos objetos centrais da teoria política de
Bobbio foi o esclarecimento destes conceitos descritivos de liberdade. Neste sentido, a
contribuição deste autor situa-se ao lado de estudos clássicos como os de Constant sobre a
liberdade dos antigos e sua diferença com a liberdade dos modernos 3 e o genial ensaio de
Isaiah Berlin intitulado Two Concepts of Liberty, já bastante difundido no mundo hispânico 4.

O presente artigo pretende ser uma metarreconstrução crítica do conceito de liberdade de


Norberto Bobbio. Trata-se, em primeiro lugar, de uma metarreconstrução porque se propõe
uma reconstrução da reconstrução que este autor faz dos conceitos descritivos de liberdade. E,

3
B. Constant, “De la liberté des anciens comparée a celle des modernes”, In : De la liberté chez les modernes.
Ecrits politiques, Paris, 1980, p. 491 e seguintes.
4
I. Berlin, “Dos conceptos de libertad”, In: Cuatro ensayos sobre la libertad, Alianza Editorial, Madrid, 1996,
pp. 200 e seguintes.

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em segundo lugar, trata-se de um trabalho crítico que questiona se a reconstrução de Bobbio é


adequada ou não. É bem certo que a filosofia analítica, bem aplicada por este autor, nos fez
considerar a inexistência de essências conceituais, ou, dito de outro modo, que os conceitos
não têm qualquer correspondência com essências de nenhum tipo, senão que eles são o
produto dos usos linguísticos que a comunidade deles faz. Desde este ponto de vista, quando
se analisa um conceito como o de liberdade, a tarefa do analista não é de “descobrir” algo
como a “verdadeira essência” de um objeto do mundo que possa corresponder na realidade
com a liberdade, e sim de reconstruir os significados que este termo possui nos discursos
filosóficos, jurídicos, políticos e da comunidade em geral. Contudo, esta maneira de proceder
não faz da filosofia política nem da filosofia geral uma ciência meramente descritiva de
convenções linguísticas. Não podemos esquecer a velha lição que Kant dera em sua Crítica da
razão pura, quando afirmara que sempre é legítimo questionar se os conceitos são adequados
a seus objetos. Nesta direção, este trabalho não apenas busca reconstruir a reconstrução que
Bobbio faz do conceito ou dos conceitos de liberdade, como também questionar se esta
reconstrução é adequada ao seu objeto.

1.3 PLANO DE OBRA

Para tanto, este trabalho é dividido em duas partes. Na primeira parte será feita uma
reconstrução do conceito de liberdade na teoria política de Norberto Bobbio. A segunda parte
conterá uma análise da adequação deste conceito ao seu objeto.

2 A RECONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE LIBERDADE SEGUNDO BOBBIO

2.1 OS CONCEITOS DE LIBERDADE DE BOBBIO NO TEMPO

Uma das preocupações constantes de Bobbio foi tentar esclarecer o significado descritivo ou
os significados descritivos do conceito de liberdade. Para o autor, esta tarefa analítica era um
pressuposto conceitual que deveria ser esclarecido previamente a qualquer outra discussão
sobre a estruturação política dos valores na sociedade. Neste sentido ecoam veementemente as
palavras do próprio Bobbio quando ele indagara: “que sentido teria dizer ‘prefiro a liberdade’
se não se estabelece antes em qual dos sentidos descritivos de liberdade emprego esta palvra

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neste contexto?”. E complementa: “uma reflexão sobre a liberdade apenas faz sentido quando
se apoia em um significado descritivo bem determinado e bem delimitado do termo. O
significado valorativo vem depois; é um significado ampliado. Que ‘liberdade’ tenha um
significado valorativo quer dizer tão-somente o seguinte: que quando emprego este temo,
indico, além de que certa situação está determinada em certo sentido, que esta é também uma
situação ‘boa’, que recomendo. Contudo, o que importa na reflexão sobre a liberdade não é
tanto saber que aquela situação de que se fala resulta desejável e recomendável, mas o que é
que o interlocutor deseja e recomenda” 5.

Bobbio dedicou-se com afinco durante várias décadas a responder o que é que o interlocutor
deseja e recomenda quando se refere à liberdade 6. A primeira pedra foi posta talvez em seu
artigo de 1954, famoso por seu título satírico: Da liberdade dos modernos comparada com a
liberdade das gerações futuras 7. Neste bemquisto texto este autor empreendeu um trabalho de
esclarecimento e distinção dos diferentes significados descritivos do termo “liberdade”. Desde
então, sustentou a tese de que este termo continha, sobretudo, dois significados descritivos.
Em primeiro lugar, aparecia a liberdade de matiz liberal, também chamada liberdade negativa
ou não-impedimento e que era entendida como a faculdade de realizar ou não realizar certas
ações, sem impedimento externo. Ao lado dela, aparecia a liberdade democrática, que o autor
de Turim também denominou por vezes de liberdade positiva ou não-constrição e a definiu
como o poder de dar leis a si mesmo.

É impossível passar pelo texto de Bobbio de 1954 sem destacar que este autor deixou desde
então traçadas com toda clareza as principais balizas da dicotomia entre liberdade negativa e
liberdade positiva, que logo daria, no mundo anglosaxão, grande renome a Isaiah Berlin. O
texto de Berlin é, porém, quatro anos posterior ao de Bobbio 8. Como veremos mais adiante,
há certas diferenças importantes entre os enfoques destes dois autores. Contudo, suas
coincidências são da mesma forma notáveis.

5
Cfr. A. Passerin D'Entreves (ed.), La libertà política, Edizioni di Comunita, Milano, 1974, p. 296.
6
Sigo, aqui, M. Bovero, “Introducción. La idea de una teoría general de la política”, In: N. Bobbio, Teoría
General de la Política, op. cit., pp. 43 e seguintes.
7
N. Bobbio, “Della libertà dei moderni comparata a quella dei posteri”, In: Política e cultura, Einaudi, Torino,
1955, pp. 160 e seguintes. Publicado em espanhol em: Teoría General de la Política, op. cit., pp. 293 e
seguintes. Neste texto cito esta edição.
8
I. Berlin, Two Concepts of Liberty, Clarendon Press, Oxford, 1958.

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Onze anos depois da publicação de Da liberdade dos modernos comparada com a liberdade
das gerações futuras, Bobbio se aproximou de novo do conceito da liberdade no ensaio
intitulado Kant e as duas liberdades 9. Um dos aspectos mais determinantes deste segundo
texto foi a substituição que Bobbio fez da forma de denominar o conceito de liberdade
democrática pelo conceito de autonomia. É bem certo que no texto de 1954 Bobbio havia
aludido à autonomia quando explicou o conceito de liberdade defendido pela teoria
democrática. Sem embargo, no texto de 1962 a autonomia aparece situada no centro deste
segundo significado descritivo de liberdade.

Posteriormente, no verbete Liberdade, que redigiu para a Enciclopedia Del Novecento, o


conceito de não-constrição é completamente absorvido pela definição da primeira liberdade, a
liberdade liberal, e se converte em um aspecto complementar à noção de não-impedimento.
Paralelamente, a autonomia permanece como significado essencial à segunda liberdade, a
liberdade democrática. Esta variação ocorre porque Bobbio considera neste estágio que tanto
a não-constrição como o não-impedimento se referem à liberdade de ação e que a autonomia
se refere à liberdade de vontade. Ao lado desta tese, o filósofo de Turim também reconhce
que a dicotomia entre as esferas do atuar e do querer era a mais pertinente para distinguir os
significados descritivos da liberdade.

Por fim, em contribuições posteriores 10, Bobbio acrescenta um terceiro significado aos até
agora propostos. Este terceiro significado se refere ao entendimento da liberdade como a
capacidade positiva material ou poder positivo de fazer o que a liberdade negativa permite
fazer. O filósofo de Turim reconhece que este terceiro significado é uma herança do
socialismo e que serve de fundamento aos direitos sociais. A ele também se refere com a
denominação de liberdade positiva. Deste modo, provoca uma confusão entre esta categoria e
a liberdade positiva entendida como autonomia, bem aludida ao longo e em toda extensão de
sua obra.

9
N. Bobbio, “Kant e le due libertà”, In: Da Hobbes a Marx, Morano, Napoli, 1965, pp. 147 e seguintes.
Publicado em espanhol em: Teoría General de la Política, op. cit., pp. 113 e seguintes. Neste texto cito esta
edição.
10
As mais relevantes são: N. Bobbio, “Eguaglianza e dignità degli uomini”, In: AAVV, Diritti dell'uomo e
Nazioni Unite, Cedam, Padova, 1963. Reimpresso em: N. Bobbio, Il terzo asente, Sonda, Torino, 1989, pp. 71 e
seguintes. Publicado em espanhol em: Teoría General de la Política, op. cit., pp. 525 e seguintes. Neste texto
cito esta edição. E, N. Bobbio, “Sui diritti sociali”, In: Neppi Modona (ed.), Cinquant'anni i Repubblica italiana,
Einaudi, Torino, 1996, pp. 115 e seguintes.

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2.2 TRÊS CONCEITOS DE LIBERDADE

De acordo com tudo que foi dito, para Bobbio, então, são relevantes três conceitos de
liberdade, que reconstruiremos em seguida. Permita-se-me denominar estes conceitos, em
consonância com o uso mais frequente que deles fez este autor, com as expressões liberdade
liberal, autonomia e liberdade positiva. Para Bobbio, todos estes sentidos do conceito de
liberdade são legítimos. Cada um é válido em seu âmbito próprio. Por isso, não faz sentido
perguntar qual deles reflete a existência de uma “verdadeira” ou uma “melhor” liberdade.
Uma pergunta semelhante implicaria na aceitação absurda de que, “por algum decreto divino,
histórico ou racional”, existiria “um único modo legítimo de entender o termo liberdade e
portanto todos os demais estariam equivocados 11”.

De todo modo, Bobbio asseverou com veemência que todos estes sentidos de liberdade
representam estados desejáveis do homem e que, para seu esclarecimento analítico, é
pertinente formular duas perguntas sobre eles: “liberdade de quem?” e “liberdade de quê?” 12.
Empreendamos, assim, uma reconstrução desses três conceitos de liberdade.

2.2.1. A liberdade liberal

Liberdade liberal é a locução que Bobbio escolhe para se referir ao conceito de liberdade
utilizado pela teoria liberal. Este conceito se refere “[à] faculdade de realizar ou não certas
ações sem ser impedido pelos outros, pela sociedade como um todo orgânico ou,
simplesmente, pelo poder estatal 13”. Graças a esta faculdade, o indivíduo pode gozar de uma
esfera de ação, mais ou menos ampla, não controlada pelos órgãos do poder estatal. Nela
pode-se comportar como “a água que corre fora do leito 14”. Este sentido de liberdade tem a
ver com o conceito de ação. Uma ação livre é uma ação lícita, que posso tomar ou não, porque
ela não está impedida.

Pois bem, Bobbio enfatiza que a esfera da liberdade liberal se compõe pelo conjunto de ações
não impedidas. Em termos de teoria geral do direito, trata-se da esfera do permitido, isto é, do

11
N. Bobbio, Teoría General de la Política, op. cit., p. 305.
12
Ibidem, p. 324.
13
Ibidem, p. 113.
14
Ibiídem, p. 304.

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não-obrigatório. Liberdade é, nesta acepção, o “espaço não regulado por normas imperativas –
positivas ou negativas 15”. Aqui a liberdade tem a mesma extensão que a licitude 16, a mesma
extensão da esfera do que é permitido por não estar nem obrigado nem proibido. Trata-se da
liberdade negativa, da esfera dos comportamentos não regulados, e, portanto, lícitos ou
indiferentes, já descrita por Montesquieu quando assinalava que a liberdade consistia em fazer
tudo o que as leis permitem ou por Hobbes ao apontar que a liberdade era a situação em que
um sujeito atuava segundo sua natureza, sem que o impedissem forças exteriores, na esfera do
ius ou dos comportamentos lícitos 17.

É por isso que esta acepção da liberdade se contrapõe ao impedimento. O que a doutrina
busca com ela é alcançar “uma diminuição da esfera das ordens e uma extensão da esfera das
permissões”. Nesta direção, a liberdade liberal e sua esfera de licitude traçam um conjunto de
limites ao exercício do poder do Estado. A sua máxima é: “o Estado deve governar o menos
possível, dado que a verdadeira liberdade consiste em não se ver impedido por um excesso de
leis 18”. Correlatamente, todo ser humano deve possuir uma esfera de atividade pessoal
protegida contra as ingerências dos poderes exteriores, em particular do poder estatal 19.

2.2.2. Autonomia

O conceito de liberdade também tem recebido um significado descritivo, inconfundível com o


anterior e por ele insubstituível, proveniente da teoria democrática. Deste segundo ponto de
vista, liberdade significa autonomia, isto é, refere-se ao “poder de não obedecer outras normas
senão às que imponho a mim mesmo 20”. Caso se prefira, a autonomia indica, de forma
antagônica à liberdade liberal, que ser livre não significa não ter leis, mas dar leis a si mesmo.
O democrata não procura eliminar todas as barreiras possíveis à ação do sujeito, e sim
“aumentar o número de ações regidas por processos de autorregulamentação 21”.

15
Ibidem, p. 113.
16
Ibidem, p. 304.
17
Ibidem, p. 525.
18
Ibidem, p. 306.
19
Ibidem, p. 526.
20
Ibidem, p. 113.
21
Ibidem, p. 113.

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Em termos de teoria geral do direito, este segundo conceito de liberdade coincide com a
esfera do “obrigatório”, ainda que não com a de tudo que é obrigatório, e sim apenas “daquilo
que é obrigatório em virtude de uma auto-obrigação”. Liberdade, então, seria o espaço
regulado por normas imperativas, sempre que estas sejam autônomas e não heterônomas 22.

Entendida nesta acepção, liberdade se contrapõe à constrição e não tem a ver com a ação,
como no caso da liberdade liberal, mas com a vontade. Como assinala Bobbio, “uma vontade
livre é uma vontade que se autodetermina 23”. Nesta direção da liberdade, a máxima é: “os
membros de um Estado devem se governar a si mesmos, já que a verdadeira liberdade
consiste em não fazer depender de ninguém além de si próprio a regulamentação da própria
conduta24”.

Deve-se assinalar que uma observação detida do conceito de autonomia indica que com ele
Bobbio não se refere apenas ao âmbito do “auto-obrigatório”, mas também àquilo que outros
autores como Habermas têm denominado autonomia pública 25. É neste sentido que Bobbio
sustenta que em virtude da autonomia, “todo ser humano deve participar direta ou
indiretamente na formação das normas que deverão regular mais tarde sua conduta naquela
esfera que não está reservada ao domínio exclusivo de sua jurisdição individual 26”. Contudo,
neste ponto, a ênfase de Bobbio parece um tanto quanto inconsistente, porque às vezes enfoca
mais a autonomia da comunidade democrática e a faculdade que ela dá ao Estado para impor
suas normas aos cidadãos e às vezes dá mais relevo à faculdade do cidadão de intervir na
conformação da vontade geral.

2.2.3 Relação entre a liberdade liberal e a liberdade democrática

Bobbio não ignora que um dos temas mais debatidos na filosofia política tem sido estabelecer
a relação entre as duas liberdades anteriormente definidas, isto é, a liberdade liberal e a
liberdade democrática.

22
Ibidem, p. 113.
23
Ibidem, p. 304.
24
Ibidem, p. 306.
25
J. Habermas, Facticidad y Validez. Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría
del discurso. Madrid, Trotta, 1998, pp. 149 e seguintes.
26
N. Bobbio, Teoría General de la Política, op. cit., p. 526.

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A tese do autor de Turim assinala que é impossível confundir estas liberdades, já que cada
uma se refere a um âmbito próprio. A teoria liberal define a liberdade fundada em uma
concepção do indivíduo considerado isoladamente, ao passo que a teoria democrática parte de
um indivíduo enquanto partícipe de uma coletividade. Cada uma das teorias responde a uma
pergunta diferente. A questão básica da liberdade liberal é “o que significa ser livre para o
indivíduo considerado como um ser independente?”, ao passo que a pergunta essencial da
teoria democrática é “que significa ser livre para um indivíduo considerado como parte de um
todo?”. Cada uma destas perguntas se refere a um problema de fundo particular. A liberdade
liberal aborda o problema dos limites da ação do Estado. E a liberdade democrática, por sua
vez, tem relação com o tema dos limites à legislação não heterônoma 27.

É por esta razão que as duas liberdades são inconfundíveis e insubstituíveis. Como Bobbio
assinala com agudeza, pode existir sempre uma sem a outra: “pode-se falar de uma ação
limitadora da liberdade, quista livremente”, como quando um fumante decide não fumar
depois de uma profunda reflexão; assim como de “uma ação livre, cuja liberdade não é
livremente quista”, como quando um fumante volta a fumar porque seu médico lhe deu
permissão 28.

Analogamente, cada uma destas liberdades oferece vantagens que a outra não pode oferecer.
Assim, por exemplo, a vantagem que brinda a liberdade democrática assenta que se o Estado é
cada vez mais invasivo e esta invasão é inevitável, esta segunda liberdade pretende “que os
limites se convertam, na medida do possível, em autolimitações, no sentido de que os limites
à liberdade venham assinalados pelos mesmos que devem sofrê-los”. Se não é possível evitar
que o cidadão esteja menos impedido que antes, sustenta Bobbio, “tratemos ao menos de que
esteja menos constrangido 29”.

Sem embargo, este autor tem consciência de que as possibilidades de realização da autonomia
são mais hipotéticas que reais. Isso acontece porque a democracia real não é direta nem
consensual, senão representativa e fundada no princípio majoritário. Este modus operandi da
democracia implica que as decisões dos representantes devem ser atribuídas aos representados
e que a vontade da maioria também governa as minorias. Por essa razão, deve-se ter

27
Ibidem, p. 115.
28
Ibidem, p. 304.
29
Ibidem, p. 307.

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consciência de que ainda que a liberdade liberal tenha surgido para combater o Estado
absoluto da minoria, ela também deve reger para controlar a maioria. A suposição de que a
extensão do exercício do poder dos poucos aos muitos não tornaria necessário fixar limites
liberais tem demonstrado ser quimérica. Como esta extensão do exercício do poder à maioria
é institucionalmente imperfeita, subsistem as razões para traçar limites estritos e
independentes ao exercício do poder público 30.

Contudo, e neste aspecto o pensamento de Bobbio está de acordo com o de muitos outros
autores – Rawls é o mais destacado deles – existe uma razão de maior peso em virtude da qual
se deve considerar a liberdade liberal como um conceito independente e inclusive como um
pressuposto da liberdade democrática. Esta razão é o reconhecimento de que a própria
vontade como autonomia pressupõe uma situação de liberdade como não-impedimento. Como
o filósofo de Turim enfatiza, “não pode existir uma sociedade em que os cidadãos dêem lugar
a uma vontade geral em sentido rousseauniano sem exercer certos direitos fundamentais de
liberdade 31”. Caso se esteja de acordo que a autonomia em sentido político consiste em que as
normas estejam em conformidade com os desejos dos cidadãos, que as normas que se
obedeçam sejam intimamente queridas e proclamadas 32, deve-se aceitar, assim mesmo, que
para isso é indispensável que os cidadãos possam pensar e se expressar livremente sem
nenhuma classe de impedimentos.

Tudo o que foi dito anteriormente não é óbice para afirmar que as duas liberdades são
complementares e podem ser reconduzidas a um significado comum: o de
“autodeterminação 33”. Como sustenta Bobbio,

A esfera do permitido, definitivamente, é aquela em que cada um atua sem


constrição exterior, o que equivale a dizer que atuar nesta esfera é atuar sem estar
determinado por qualquer outra pessoa que não si mesmo; e, do mesmo modo, que
um indivíduo ou um grupo não obedeçam outras leis que não as que tenham imposto
a si mesmos significa que tal indivíduo ou tal grupo se autodetermina.

A liberdade como ausência de impedimentos (agir como melhor lhe pareça) coincide
com a liberdade como autodeterminação (sem depender da vontade de ninguém
mais) 34.

30
Ibidem, p. 307.
31
Ibidem, p. 307.
32
Ibidem, p. 526.
33
Ibidem, p. 114.
34
Ibidem, p. 114.

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Não obstante, ainda tendo por base este significado comum, existiria uma diferença entre
estes dois tipos de liberdades. De acordo com este autor, a diferença entre a teoria liberal e a
democrática da liberdade poderia ser formulada da seguinte maneira: “a primeira tende a
ampliar a esfera da autodeterminação individual, restringindo ao máximo a do poder coletivo,
ao passo que a segunda tende a ampliar a esfera de autodeterminação coletiva, restringindo ao
máximo a regulação de tipo heterônomo 35”. É nesta diferença que estas liberdades se
compatibilizam e complementam. A máxima destas liberdades assinalaria que: “até onde seja
possível, deve-se dar rédeas soltas à autodeterminação individual (liberdade como não-
impedimento); onde isso não for mais possível, então a autodeterminação coletiva (liberdade
como autonomia) deve intervir 36”.

2.2.4 Liberdade positiva

O terceiro sentido em que Bobbio se refere ao conceito de liberdade é o de liberdade positiva.


De acordo com este autor, este conceito surgiu por causa de uma mutação sofrida pelo
conceito de liberdade em razão da influência das teorias socialistas do século XIX. Por causa
desta mutação, também se fala de liberdade não para se aludir ao seu sentido liberal negativo,
mas quando se sustenta que a garantia da liberdade deve abranger também o poder positivo,
isto é, a “capacidade jurídica e material de concretizar as possibilidades abstratas garantidas
pelas constituições liberais 37”.

Este poder positivo ou capacidade jurídica e material refere-se explicitamente ao poder


efetivo que todo ser humano deve ter “de traduzir em comportamentos concretos os
componentes abstratos previstos pelas normas constitucionais que atribuem este ou aquele
direito 38”. De forma mais explícita, a liberdade estabelece aqui que todo ser humano deve
“possuir como próprios ou como parte de uma propriedade coletiva os bens suficientes para
gozar de uma vida digna”. Esta liberdade alude à suficiente capacidade econômica para
satisfazer algumas necessidades fundamentais da vida material ou espiritual, sem as quais a
liberdade liberal seria vazia e a liberdade democrática seria estéril 39.

35
Ibidem, p. 115.
36
Ibidem, p. 115.
37
Ibidem, p. 525.
38
Ibidem, p. 526.
39
Ibidem, p. 526.

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Por fim, deve-se assinalar que, como o próprio Bobbio sustenta, os direitos sociais
representam a concretização mais adequada desta terceira liberdade. É nesse sentido que este
filósofo indica que “se somente existissem as liberdades negativas [...] todos seriam
igualmente livres, mas nem todos teriam o mesmo poder. Para equiparar também em poder os
indivíduos, reconhecidos como pessoas sociais, é necessário reconhecer que eles possuem
outros direitos como os direitos sociais, direitos capazes de colocá-los em condição de ter o
poder de fazer aquilo que têm liberdade para fazer” 40.

3 UMA CRÍTICA DOS CONCEITOS DE LIBERDADE DE BOBBIO

É inegável a contribuição de Bobbio para o esclarecimento do conceito de liberdade por meio


das elucubrações que acabamos de reconstruir. Não obstante, ao menos três aspectos de tais
elocubrações podem ensejar algumas considerações críticas. São eles: a dicotomia entre
liberdade negativa e positiva, o fato de que a liberdade negativa não poder ser caracterizada
como uma liberdade jusfundamentalmente reforçada e a consideração dos direitos sociais
como concreção da liberdade. Faremos referência a estas críticas em seguida.

3.1 LIBERDADE NEGATIVA E POSITIVA

Uma primeira objeção que se pode formular ao sistema de liberdades proposto por Bobbio é
que a diferença entre liberdade liberal e autonomia, enquanto reconstrução, não consegue
refletir todos os matizes da diferença entre liberdade negativa e positiva, presente em quase
todo o léxico da liberdade desde a Antiguidade.

Talvez tenha sido Isaiah Berlin quem com mais brilhantismo e clareza tenha exposto a
dicotomia entre liberdade negativa e positiva, que tem tido uma importância destacável
inclusive em nossa jurisprudência constitucional. Não se trata de um detalhe sem importância
que a motivação da Sentença C-221 de 1994 sobre a despenalização do consumo de drogas
inicie com a conhecida frase de Mazzini: “a verdadeira liberdade não consiste no direito de
escolher o mal, e sim no direito de eleger apenas entre os caminhos que conduzem ao bem”. É
40
Ibidem, p. 541.

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bem possível considerar esta frase como uma definição padrão do conceito de liberdade
positiva. Segundo este conceito, reconstruído por Berlin, ao sujeito é atribuída liberdade de se
comportar somente através de condutas razoáveis e necessárias 41. Como é sabido, este
conceito de liberdade é o que aparece nas doutrinas religiosas, morais e éticas que buscam a
salvação ou a perfeição do homem. É o que se acontece, por exemplo, no Evangelho de João,
onde Jesus prega que a escravidão advém do pecado e a liberdade surge do conhecimento e da
prática da palavra. A verdade nós torna livres, aquela verdade em que está presente o razoável
e devido 42.

No campo jurídico, este conceito de liberdade tem sido a liberdade oficial dos regimes
autoritários e totalitários. Relembrando nossa história constitucional, observaremos que esta
questão é pertinente. Durante infaustos períodos de nossa vida política, o conceito de
liberdade positiva foi imposto de fato como o conceito constitucional de liberdade. Isto tem
tido lugar, sobretudo, quando o fundamentalismo católico se junta com o poder político e
confunde o Estado com a Igreja e o cidadão com o fiel, sem dúvida para atribuir a si mesmo o
monopólio da determinação do conteúdo da liberdade observada desde o ponto de vista
religioso, e para fixar também o conteúdo da liberdade política e jurídica.

Na filosofia política, ao lado do conceito de liberdade positiva sempre existiu o de liberdade


negativa. De acordo com este último conceito, o indivíduo não apenas é livre para fazer o
razoável ou necessário, como também livre para fazer ou deixar de fazer o que quiser, sem
intervenções externas provenientes do Estado ou de outros indivíduos 43. Este conceito
também tem raízes na Antiguidade. Dele é uma clara manifestação a citação de Deuteronômio
em que Deus declara ter colocado diante do homem “a vida e o bem, a morte e o mal” e, deste
modo, lhe conferido a liberdade para eleger a todo o momento seu próprio rumo 44. Trata-se da
liberdade de arbítrio proclamada por Kant e entendida como “a independência em face da
determinação” de cada um por seus próprios impulsos 45. Como o próprio Kant deixa claro,
esta concepção da liberdade jurídica como liberdade negativa não elimina a liberdade
positiva, senão que a reserva para o foro interno do indivíduo, para sua órbita como crente,
como laico ou como sujeito ético.

41
I. Berlin, "Dos conceptos de libertad", en Id., Cuatro ensayos sobre la libertad, op. cit., pp. 200 e seguintes.
42
João, 8, 31 e seguintes.
43
I. Berlin, "Dos conceptos de libertad", op. cit., p. 191.
44
Cfr. Deuteronômio, 30, 15.
45
I. Kant, Introducción a la teoría del derecho, Marcial Pons, Madrid, 1997, pp. 29 e seguintes.

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Esta liberdade se separa de qualquer interpretação perfeccionista 46. Ela garante um âmbito
reservado ao indivíduo, um espaço para tomar suas decisões vitais – no sentido usado por
Locke –, correlativo a um âmbito em que o poder está ausente – no sentido empregado por
Hobbes 47. Trata-se de uma liberdade negativa porque em seu âmbito nega-se o poder externo,
a heteronomia. Assim também tem reconhecido entre nós a Corte Constitucional em uma
extensa linha jurisprudencial. “Não corresponde ao Estado nem à sociedade, senão às próprias
pessoas – sustenta a Corte – dizer a maneira como se desenvolvem seus direitos e se controem
seus projetos e modelos de realização pessoal48”.

É evidente que a reconstrução da liberdade liberal de Bobbio consegue refletir por inteiro e
com toda precisão o sentido da liberdade negativa. Sem embargo, seu conceito de autonomia
não consegue dar conta daquilo que traduz a liberdade positiva. Dar normas a si mesmo é algo
diverso da ideia defendida pelos filósofos da liberdade positiva, de que o indivíduo apenas
pode fazer o bom e o razoável. É bem certo que a liberdade negativa não pode ser de modo
algum o conceito adequado de liberdade em um Estado Constitucional de Direito. Não
obstante, isto não lhe retira sua importância como conceito de liberdade nos âmbitos da ética e
da moral e não serve como argumento para negar que, ainda que lamentavelmente, este tenha
sido para muitos pensadores autoritários o conceito político e jurídico adequado de liberdade.
A liberdade positiva é um significado descritivo da liberdade que o conceito de autonomia
não consegue expressar.

3.2 LIBERDADE JUSFUNDAMENTALMENTE REFORÇADA

Uma segunda objeção está em que o conceito de liberdade negativa defendido por Bobbio se
identifica com o conjunto de condutas irrelevantes para o direito e é em certo sentido
incompatível com a ideia de uma liberdade jusfundamentalmente reforçada, como aquela que
no artigo 16 de nossa Constituição garante o direito ao livre desenvolvimento da
personalidade, segundo o qual “todas as pessoas têm direito ao livre desenvolvimento da

46
Cfr. Sobre a incompatibilidade entre o perfeccionismo e a idea de liberdade constitucional: C. S. Nino, La
constitución de la democracia deliberativa, Gedisa, Barcelona, 1997, pp. 76 e seguintes.
47
H. Hofmann, Filosofía del derecho y del Estado, Universidad Externado de Colombia, Bogotá, 2002, pp. 197
e seguintes.
48
Cfr. Por todas a T-516 de 1998.

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personalidade sem quaisquer limitações senão as impostas pelos direitos dos demais e pela a
ordem jurídica”.

É bem certo que a liberdade negativa tem um conteúdo universal, que compreende todas as
opções humanas que possam ser empreendidas, isto é, todas as condutas possíveis. Portanto, o
número dessas condutas é infinito e se estende desde assuntos triviais como beber um copo
d’água até assuntos complexos como criar uma rede de servidores de Internet. De modo
semelhante, o objeto da liberdade evolui com o tempo, recria-se, muda e, por isso, escapa às
previsões de todo poder jurídico, por mais visionário e garantista que possa ser. Por esta
razão, muitos dos conteúdos da liberdade negativa não podem ser sequer previstos pelo
Constituinte nem pelo Legislador, mediante proibições, ordens ou permissões. Dentro deste
âmbito se encontram assuntos tão heterogêneos como a possibilidade de contrair matrimônio,
viver em união estável ou permanecer solteiro, ser mãe, escolher o próprio nome, escolher a
opção sexual, definir a aparência ou a classe de educação que se quer ter ou o procedimento
médico que se está disposto a aceitar quando se está enfermo 49. Todas estas possibilidades
que compõem aquela parte da liberdade não compreendida nas liberdades constitucionais
específicas se incluem, então, dentro do conteúdo do direito ao livre desenvolvimento da
personalidade, que, neste sentido, se erige como cláusula geral residual de liberdade. A
liberdade negativa abarca todo o espectro de todas as condutas humanas possíveis no passado,
no presente e no futuro. Dentro do Estado de Direito, a liberdade negativa cumpre a função de
cláusula de fechamento do ordenamento jurídico. Por causa desta cláusula, tudo o que não
está proibido pela Constituição ou pelas normas jurídicas de hierarquia inferior está permitido,
ou seja, representa uma posição jurídica de liberdade.

A pergunta, sem embargo, é: que status jurídico tem esta cláusula geral residual de liberdade,
isto é, a liberdade negativa dentro do Estado Constitucional?

No modelo do Estado Liberal, o conteúdo desta cláusula era o âmbito do agere licere. Por
agere licere entende-se aquilo a que se refere Bobbio, isto é, o espaço composto por todas as
ações irrelevantes para o direito, ou, em outros termos, as ações que ainda não tenham sido
objeto de regulação jurídica. O conhecido mito liberal sobre a fundação da sociedade civil a

49
Cfr. Para uma análise detalhada das principias sentenças concernentes ao direito ao livre desenvolvimento da
personalidade, ver: N. Osuna, A. Julio et al., “El derecho al libre desarrollo de la personalidad en la
jurisprudencia constitucional”, mimeografado.

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partir do estado de natureza oferecia uma base idônea para considerar as ações irrelevantes ou
não reguladas como ações livres. A liberdade natural, inerente ao homem, deveria ser ainda a
regra geral na sociedade civil; portanto, junto às ações proibidas, ordenadas ou permitidas
pelo direito, as ações naturais não reguladas apareciam como ações livres.

Contudo, tratava-se de uma liberdade natural, não protegida juridicamente. O âmbito do agere
licere estava exposto às iminentes intervenções do poder público. Nem o Legislador nem a
Administração conheciam limites para lhe impor restrições. O resultado inquestionável de
qualquer restrição era a mudança automática no status da conduta. Assim, por exemplo, se
uma lei proibia ou ordenava uma conduta até então irrelevante esta regulação era
inquestionável. Contra ela não valia argumento algum. Os demais poderes públicos e os
particulares estavam sujeitos às suas prescrições. A liberdade havia desaparecido, havia sido
negada, havia se tornado uma não-liberdade.

A única forma em que o agere licere se mostrava resistente às intervenções do poder público
era através de sua transformação em uma permissão legislativa. Quando o Legislador permitia
uma conduta naturalmente livre, a liberdade se reforçava, convertia-se em uma liberdade
juridicamente protegida. Neste caso, nem a Administração nem os particulares podiam proibir
ou ordenar o que já havia sido permitido pelo Legislador, não podiam obstruir o exercício da
ilberdade reforçada pelo direito. Sem embargo, o conteúdo do agere licere nunca poderia
oferecer resistência aos desígnios legislativos. Tinha razão então Montesquieu ao definir a
liberdade por meio de sua conhecida fórmula: “a liberdade é o direito de fazer tudo o que as
leis permitem 50”.

Este panorama se modifica substancialmente no Estado Constitucional com a introdução do


direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Esta introdução implica a
constitucionalização do âmbito do agere licere e este fato tem consequências de projeção
profunda. Em primeiro lugar, constitucionaliza-se todo o âmbito da liberdade negativa que
não se encontra contido nas liberdades específicas. Como consequência disso, e em segundo
lugar, a regulação de todo este âmbito deixa de estar a cargo das intervenções do poder
público e, em especial, a cargo do Legislador. Já não se trata da liberdade na medida da lei, e
sim da lei na medida da liberdade. A lei deixa de definir o âmbito da liberdade resistente às
intervenções do poder público. Muito pelo contrário, o respeito à liberdade
50
Montesquieu, El espíritu de las leyes, Tecnos, Madrid, 1995, p. 106.

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constitucionalizada começa a ser a medida da validade da lei, dos atos administrativos e


judiciais e das condutas dos particulares. Apenas merecem ter validade em sentido material
normas jurídicas que respeitem a liberdade constitucional.

Desta maneira, o âmbito de agere licere desaparece como tal e o conteúdo da cláusula geral
de liberdade se transforma no conteúdo do direito ao livre desenvolvimento da personalidade.
Este direito começa a ser concebido, então, como um verdadeiro direito fundamental geral de
liberdade. Finalmente, some do horizonte do direito o espectro das condutas juridicamente
irrelevantes. Toda liberdade ainda não regulada pelo Estado faz parte, ao menos prima facie,
do conteúdo do direito ao livre desenvolvimento da personalidade. As liberdades ainda não
reguladas somam-se às liberdades protegidas expressamente pela Constituição e formam o
conjunto do constitucionalmente permitido prima facie. Enquanto no Estado liberal tudo o
que não é proibido é permitido como parte da liberdade natural, sem nenhuma proteção
jurídica, no Estado Constitucional tudo o que não é proibido ou ordenado pela Constituição é
permitido prima facie pelas liberdades constitucionais específicas ou, residualmente, pelo
direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Toda liberdade natural é agora relevante
para a Constituição, é uma liberdade constitucionalmente protegida.

Por tudo isso, deve-se dizer que o conceito de liberdade negativa de Bobbio é refutável do
ponto de vista da filosofia jurídica, já que reflete com exclusividade a existência de um agere
licere, não contemplando a existência de um direito geral fundamental de liberdade.

3.3 OS DIREITOS SOCIAIS SÃO DIREITOS DE LIBERDADE?

Por fim, parece refutável o terceiro conceito de liberdade de Bobbio, como poder de
disposição dos meios materiais para o exercício da liberdade. Neste sentido, este aspecto
parece formular a tese de que os direitos sociais devem ser entendidos como direitos de
liberdade ou, em sentido contrário, que um dos significados da liberdade se concretiza nos
direitos sociais.

Mais coerente seria dizer ou bem que a garantia dos direitos sociais é uma garantia da
liberdade, ou que os direitos sociais têm uma fundamentação independente. Em todo caso, o

65
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que não parece consistente é atribuir a estes direitos o status de significados da própria
liberdade.

Sobre este aspecto deve-se dizer que, dentro do esquema do Estado Social de Direito, os
direitos sociais podem ser fundamentados de duas formas: independentemente ou como meios
para garantir o exercício real das liberdades.

E. Tugendhat oferece uma notável fundamentação filosófico-política independente dos


direitos sociais dentro do conceito do Estado Social de Direito. A ideia central de Tugendhat
aponta que, para responder à pergunta sobre que direitos uma pessoa deve ter, “só pode ser
fundamental o conceito de necessidade 51”. De acordo com este autor, os direitos fundamentais
estabelecem regras de cooperação social que traçam as condições nas quais se desenvolvem
os vínculos entre os indivíduos e entre estes e o Estado. O conteúdo destas regras de
cooperação não é imutável, e sim varia em cada época de acordo com os valores e interesses
predominantes ou em conformidade com as reivindicações que se impõem como resultado das
lutas sociais. Desta maneira, entende-se que a convicção liberal, segundo a qual os direitos
fundamentais se traduzem tão-só em deveres estatais de abstenção, não é senão um reflexo do
pensamento burguês que deita suas raízes sobre o contratualismo iluminista 52. O pensamento
burguês pressupõe que a sociedade é formada por indivíduos dotados de um elevado grau de
poder; por adultos, aptos para o trabalho, capazes de satisfazer por si próprios suas
necessidades e de empreender projetos úteis para seus interesses. A única necessidade que
tem esse conjunto de indivíduos, exitosos e autônomos no sentido kantiano, é a de se proteger
dos ataques externos. A crença na autossuficiência do homem permite fundamentar um
sistema de direitos composto exclusivamente por obrigações de abstenção, que busca proteger
o sujeito de toda intervenção exterior.

Tugendhat se esforça para mostrar que esta idealização da sociedade proposta pelo
liberalismo não se compartilha com a circunstância real de que “grandes setores da
comunidade não se podem valer por si mesmos 53”. O sistema de direitos fundamentais não
pode ser sustentado sobre a presunção incorreta de que a sociedade é formada apenas por
indivíduos capazes, autônomos e autossuficientes, que, além disso, intervêm em condições de

51
E. Tugendhat, Lecciones de ética, Gedisa, Barcelona, 1997, pp. 344 e seguintes.
52
Ibidem, pp. 321 e seguintes.
53
Ibidem, pp. 338 e seguintes.

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igualdade no processo de tomada de decisões políticas. É imperioso reconhecer que o


liberalismo pressupõe mais indivíduos capazes de serem cidadãos livres do que existem na
prática.

Ante esta lacuna da concepção burguesa, Tugendhat sugere a construção de um sistema de


direitos fundamentais que se arraigue no conceito de necessidade. A ideia de necessidades
inerentes ao homem não é totalmente incompatível com o liberalismo. Por esta razão, pode
ser emoldurada dentro do Estado Social de Direito. Por trás das noções de liberdade negativa
e de autonomia, que fundamentam a concreção dos direitos fundamentais em deveres de
abstenção, subjaz também o reconhecimento de que o indivíduo tem a necessidade de
escolher e de decidir seu próprio rumo. Exercer a liberdade é também uma necessidade
humana. Não obstante, a ideia de necessidade se estende sobre outros planos, esquecidos pelo
pensamento burguês. Esta ideia dá relevo à situação da carência dos bens indispensáveis para
subsistir e para exercer as liberdades em que se encontram vários setores da população dos
Estados, constituindo-se um fato de relevância social. Nenhuma sociedade que pretenda ser
justa pode deixar a satisfação das necessidades básicas, que começam pela alimentação 54,
dependentes dos resultados da sorte econômica.

Do que foi dito, segue-se que o imperativo de satisfazer as necessidades básicas de toda a
população dá origem a certas regras de cooperação que também integram o conteúdo dos
direitos fundamentais. Estas regras de cooperação desenvolvem o princípio de
solidariedade 55, se ajustam aos direitos fundamentais sociais e prescrevem deveres de agir que
têm um duplo efeito de irradiação 56. Tais deveres se projetam, em primeiro lugar, sobre o
próprio afetado – a quem seu status inicial como pessoa autônoma impõe uma obrigação de
auto-ajuda –, e sobre seus familiares e amigos, que têm com o afetado um vínculo de

54
Cfr. Una fundamentación independiente del derecho a recibir una alimentación básica, In: A. K. Sen, El
derecho a no tener hambre, Universidad Externado de Colombia, Bogotá, 2002.
55
M. Borgetto assinalou que o princípio de solidariedade cumpre a função de fundamentar em alguna medida
certos directos sociais. Nesta dimensão, a solidariedade é entendida como um “dever coletivo de ajuda mútua”,
como um “verdadeiro princípio de ação política”. Cfr.: La notion de Fraternité en Droit Public Français, LGDJ,
París, 1993, p. 398 No mesmo sentido, G. Peces-Barba tem sustentado que a solidariedade é um “valor que está
na raiz de alguns dos direitos econômicos, sociais e culturais e também dos novos direitos, como os que se
referem ao meio ambiente”. Cfr.: Curso de derechos fundamentales, teoría general, Universidad Carlos III de
Madrid, Madrid, 1995, pp. 208, 209 e 213. Igualmente : A. Weber, “L’État social et les droits sociaux en RFA”,
Revue Française de Droit Constitutionnelle, núm. 24, 1995, p. 678. Sem embargo, deve-se levar em conta que o
princípio de solidariedade não pode ser considerado como um fundamento autônomo dos direitos sociais. Este
princípio fundamenta os deveres de ajuda mútua. Contudo, para poder fundamentar os direitos sociais, este
princípio deve se somar ao conceito de necessidades básicas que enfatiza as posições subjetivas do indivíduo.
56
E. Tugendhat, Lecciones de ética., op. cit., pp. 341 e seguintes.

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solidariedade muito estreito. Sem embargo, se estes deveres positivos não podem ser
satisfeitos nesta primeira instância, se traspassam, de modo subsidiário, por todos e cada um
dos membros da sociedade, que se unem no Estado para procurar o dever prestacional
correspondente que satisfará o direito social 57.

A dupla irrediação dos deveres que emanam dos direitos sociais, defendida por Tugendhat,
reveste-se da vantagem de conciliar o imperativo de satisfazer as necessidades básicas de cada
indivíduo com a sua consideração enquanto sujeito autônomo e capaz. Desta maneira, por sua
vez, os direitos sociais são compatíveis com as liberdades dentro dos limites do Estado. A
dupla irradiação indica, ademais, qual é o enfoque preferível que as prestações estatais
tendentes a satisfazer os direitos sociais devem adotar. Estas prestações devem procurar de
maneira prioritária proporcionar à pessoa as condições necessárias para que se ajude a si
mesma, para que possa velar por sua própria subsistência. Por isso, dentro do possível, as
prestações públicas devem ser temporais e devem estar canalizadas para conseguir que os
sujeitos beneficiados desenvolvam sua própria autonomia 58. Deste modo, a concepção das
necessidades básicas mostra que tanto nas liberdades como nos direitos sociais, os direitos
têm prioridade em relação aos deveres. Assim como a necessidade do indivíduo de exercer
sua liberdade se fundamenta no correspondente dever de abstenção do Estado e dos
particulares, a necessidade individual de dispor do cuidado existencial e dos bens mínimos
para exercer a liberdade fundamenta o dever de prestação correspondente, também a cargo
dos demais indivíduos e, em última instância, do Estado.

Mediante o conceito de pessoa como sujeito titular de um conjunto de necessidades,


Tugendhat oferece uma fundamentação independente dos direitos sociais. Uma
fundamentação independente é aquela que considera os direitos sociais como fins em si
mesmos, e não meramente como pressupostos ou meios indispensáveis para o exercício das
liberdades ou dos direitos políticos. É bem sabido que justamente este tipo de fundamentação
instrumental dos direitos tem prevalecido na filosofia política e na dogmática constitucional.
Alexy tem sustentado, por exemplo, que “o argumento principal a favor dos direitos
fundamentais sociais é um argumento de liberdade”. Segundo este autor, o argumento de

57
Do mesmo modo, J. J. Gomes Canotilho tem demonstrado que o imperativo que se depreende dos direitos
sociais vincula a todos os membros da sociedade e se torna efetivo, sobretudo, graças aos contribuintes, que
proporcionam ao Estado os recursos necesarios para atender às prestações correspondentes. Cfr.: “Metodología
“Fuzzy” y “Camaleones normativos” en la problemática actual de los derechos económicos, sociales y
culturales”, Derechos y Libertades, n. 6, 1998, pp. 39 e seguintes.
58
Ibidem, p. 49.

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liberdade assinala, em primeiro lugar, que “a liberdade jurídica para fazer ou deixar de fazer
algo sem liberdade fática (real), isto é, sem a possibilidade fática de escolher o permitido,
carece de valor 59”; e, em segundo lugar, que “sob as condições da sociedade industrial
moderna, a liberdade fática de um grande número de titulares de direitos fundamentais não
encontra seu substrato material em um âmbito vital dominado por eles, senão que depende
essencialmente de atividades estatais 60”. Noutros termos, Alexy ressalta que a satisfação por
parte do Estado das necessidades ligadas aos direitos sociais representa um meio
indispensável para o exercício da liberdade jurídica. Por causa deste nexo instrumental,
conclui, deve-se considerar que a liberdade jurídica amplia-se e inclui os direitos sociais em
seu âmbito garantido, ou seja, que os direitos sociais devem ser considerados como direitos
fundamentais em virtude de sua função favorável à liberdade. Do mesmo modo,
Böckenförde 61 tem apontado que os direitos fundamentais sociais encontram sua justificação
“certamente não como contraprincípios diante dos direitos fundamentais de liberdade, e sim a
partir do próprio princípio que assegura a liberdade”: “se a liberdade jurídica – escreve este
autor – deve poder ser convertida em liberdade real, seus titulares precisam ter uma
participação básica nos bens sociais materiais; esta participação nos bems materiais é,
inclusive, uma parte da liberdade, já que é um pressuposto necessário para sua realização”.

Do mesmo modo, outros autores têm reivindicado a fundamentação dos direitos sociais como
meios não apenas para o exercício das liberdades, mas também dos direitos políticos.
Unicamente a título de exemplo, traz-se a concepção de Habermas, para quem os direitos
sociais desempenham o papel de meios para o desfrute, em condições de igualdade, dos
direitos individuais e políticos 62. Neste sentido, Gomes Canotilho tem aduzido como
argumento favorável à atribuição da maior força jurídica possível aos direitos sociais que
“abaixo de um certo nível de bem-estar material, social, de aprendizagem e de educação [que
eles garantem], as pessoas não podem fazer parte da sociedade como cidadãos, e muito menos
como cidadãos iguais 63” (grifo nosso).

59
R. Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid,
1997, p. 486.
60
Ibidem, pág. 487.
61
E-W. Böckenförde, “Los derechos fundamentales sociales en la estructura de la Constitución”. In: Escritos
sobre derechos fundamentales, Nomos, Baden-Baden, 1993, p. 74.
62
J. Habermas, Facticidad y Validez, op. cit., p. 189.
63
J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1997, p. 432.

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Ao contrário destas concepções instrumentais, Tugendhat sugere que os direitos sociais


devem ser considerados como fins em si mesmos. Ao juízo deste autor a ideia de que a
liberdade representa o único fim do sujeito digno de proteção no Estado Constitucional é uma
derivação do mito burguês do estado de natureza, no qual se considera o homem como um ser
dotado de liberdade absoluta. A grande deficiência deste mito está em que idealiza um homem
que não existe, um “Robinson Crusoé”, capaz de subsistir ilhado em um mundo sem contato
com os demais, e esquece que “nenhum indivíduo teria podido sobreviver jamais se não
tivesse nascido dentro de uma comunidade 64”. No mundo real, todos os indivíduos passam
pelo menos por uma etapa (a infância), na qual não somos capazes de cuidar de nós mesmos.
Esta circunstância se repte na velhice e para muitos é uma constante durante toda sua
existência. Os deveres de solidariedade correspondentes aos direitos sociais, que favorecem
aos que não podem cuidar de si próprios, não têm como fim prioritário patrocinar o exercício
da liberdade, e sim prover o necessário para a subsistência do indivíduo em condições dignas.
Segundo Tugendhat, o que na realidade importa é reconhecer que o homem tem determinadas
necessidades que lhes são inerentes, cuja satisfação é como um dos fins principais da
comunidade política. Tais necessidades fundamentam os direitos sociais (que tendem a
satisfazer as necessidades materiais, vitais e físicas), os direitos de liberdade (que buscam
preencher as necessidades que subjazem ao exercício da liberdade) e os direitos políticos
(relativos às necessidades de cooperação política com os demais indivíduos). De acordo com
este autor, então, as normas que tipificam os direitos sociais não são apenas um meio para a
realização da liberdade; tais normas têm a finalidade própria de oferecer a todos os indivíduos
as condições mínimas para satisfazer suas necessidades básicas e para ter uma existência
digna. Os direitos fundamentais sociais revestem, neste sentido, o caráter de direitos
atribuídos, sobretudo, àqueles que deles carecem 65.

Não obstante, ao nosso modo ver, a tese da fundamentação independente defendida por
Tugendhat não é contraditória com a ideia de uma fundamentação instrumental dos direitos
sociais, mas sim complementar a ela. Este nexo de complementariedade se produz em razão
de que o âmbito dos direitos sociais tem um conteúdo bastante amplo, que abarca não só as

64
E. Tugendhat, Lecciones de ética, op. cit., p. 344.
65
Cfr. G. Peces-Barba, “Los derechos económicos, sociales y culturales: su génesis y su concepto”, Derechos y
Libertades, n. 6, 1998, p. 28; L. Prieto Sanchís, “Los derechos sociales y el principio de igualdad sustancial”,
Revista del Centro de Estudios Constitucionales, n. 22, 1995, p. 17; A. Baldasarre, “Los derechos sociales”,
Revista de Derecho del Estado, n. 5, 1998, p. 13.

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disposições tendentes a garantir um mínimo existencial para o indivíduo, senão também as


normas que formam a dimensão prestacional das liberdades e dos direitos políticos.

Se analizarmos estas colocações e as compararmos com a ideia de liberdade positiva de


Bobbio, teremos que ressaltar a intuição deste autor no sentido de fundamentar os direitos
sociais como pressuposto para a realização da liberdade liberal ou liberdade em sentido
negativo. Contudo, a distinção entre categorias é clara, pelo que é imprório referir-se ao
direito de dispor dos meios necessários para exercer a liberdade também com o conceito de
liberdade.

Tradução de Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

Revisão de Thomas da Rosa de Bustamante

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