Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
* Pedrinho A. Guareschi
RESUMO
Uma das maiores dificuldades que sentimos, até mesmo a nível de Comecemos por dar a noção de alguns conceitos básicos, definidos
pós-graduação, quando passamos a discutir teorias, modelos, referenciais de maneira extremamente simples, exatamente para se poder entender o
filosóficos, etc, é a falta de compreensão de alguns conceitos básicos, cen que falamos, ou escrevemos. Esses conceitos nos acompanharão por toda
trais, ligados à epistemologia, ou teoria do conhecimento. a discussão:
Uma das causas disso é, certamente, o fato de a filosofia ter sido Ontologia: Trata das teorias sobre a natureza do mundo, sobre o que
retirada de nossas escolas, e com isso passa-se a ter menos e menos pos existe (campo da filosofia).
sibilidade de pensar corretamente. Tudo é passado de roldão, as mentes Epistemologia: Trata das teorias de como se pode conhecer o mundo,
vão sendo preenchidas, à maneira de enormes containers com um bom a realidade (campo da filosofia do conhecimento).
bardeio de informações sem muito nexo, transformando nossos jovens em Realismo: uma teoria que diz que as coisas existem "lá fora", inde
grandes bancos de dados, de onde retirarão, oportunamente em vestibu pendentemente das pessoas (campo da filosofia).
lares ou exames, o material necessário como resposta a determinados es Idealismo: uma teoria que diz que as coisas não existem "lá fora", mas
apenas na nossa mente (campo da filosofia)
tímulos.
Vamos prevenir que essas considerações são apenas iniciais, são pa Com essas quatro definições, podemos começar a trabalhar. É raro
nos de fundo, sobre as quais se podem, oportunamente, estabelecer dis encontrar, hoje em dia, gente que negue que existam coisas "lá fora". É
cussões frutíferas.1 Apesar de já sugerirem uma pista, pois é impossível ser conhecida a resolução prática que Marx e Engels deram ao assunto: nós
de outro modo, elas não fecham a discussão. O importante, e útil, pensa comemos pudim, logo ele existe. Nesse sentido, no campo filosófico, a
mos, é que elas colocam definições relativamente claras, parâmetros defi maioria adota o realismo filosófico.
nidos, dentro das quais se toma fácil comunicarmo-nos e passarmos a dizer O problema começa quando nós perguntamos: como conhecemos a
o que queremos, e a entender o que os outros possivelmente queiram dizer. realidade lá fora, e se aquela realidade "lá fora" é assim mesmo, como nós
a vemos (ou parece que a vemos), ou se ela é diferente. O fato de aceitarmos
que existam coisas "lá fora" não resolve nossos problemas, por isso. E difícil
negar que existam coisas "lá fora". Mas nós nos podemos enganar sobre o
jeito como essas coisas são: é o caso da mistificação. E o interessante é que
1 Esse trabalho tem alguma referência com o artigo de Milton Madeira essas mesmas mistificações "trabalham", também "funcionam", também "es
(Psico, vol. 17, n .l, 1989, p. 7-14), onde o autor pretende iniciar uma tão lá fora..."
discussão sobre o objeto de estudo do Mestrado em Psicologia Social e da No campo das teorias do conhecimento, da epistemologia, podem-se
Personalidade do Instituto de Psicologia da PUC-RS. O rápido trabalho identificar ao menos três enfoques teóricos diferentes. Mas antes de pas
inicia com uma discussão referente à epistemologia, mas já traz implícitos sarmos a essa discussão, temos de deixar claro um ponto importante: que
vários pressupostos que necessitariam ser discutidos. Sem ser nem um co estamos tratando aqui de conhecimento.
mentário, nem uma resposta ao trabalho citado, pretendemos apenas co
locar algumas premissas para um diálogo profícuo nesse assunto.
156
157
O CONHECIMENTO O que nós podemos (e queremos) conhecer, é o "fato empírico", a
"experiência empírica".
Quando falamos de conhecimento, entra em jogo, automaticamente, Colocam-se aqui, agora, as três teorias centrais que estávamos para
o ser humano. E entrando o ser humano, entra a consciência, o intelecto, começar a discutir acima, antes de explicarmos o que seja o conhecimento.
as faculdades mentais. E essa consciência é "minha", pessoal, dum lado; e,
de outro lado, esta consciência é diferente da coisa "lá fora", apesar de ela
poder ser considerada também, de maneira reflexiva, como uma coisa "lá TRÊS TEORIAS EPISTEMOLÓGICAS CENTRAIS
fora". Isso quer dizer que há, então, no conhecimento, uma relação entre
a pessoa que conhece, e a coisa "lá fora". É disso que trata a epistemologia, Podemos identificar, para efeitos metodológicos, três matrizes epis-
a teoria do conhecimento: como nós conhecemos as coisas, e qual o "re temológicas fundamentais, das quais se poderiam derivar outras sub-teo-
sultado" daquilo que nós conhecemos. A esse "resultado", nós vamos, de rias, que se alimentam, em parte, de uma ou de outra. Cabe a cada situação
agora em diante, chamar de "experiências", a experiência do conhecimento, particular mostrar as especificidades de uma ou outra teoria particular.
ou também de "fatos observados", ou de "fatos empíricos". Essas matrizes seriam:
Os nomes dados aos conceitos definidos acima, não são criação nos a) O realismo empírico, também chamado, às vezes, de empirismo.
sa. Muitos teóricos, como Wright, Burawoy, Bhaskar e outros, os usam Afirma que há uma identidade entre os mecanismos da realidade, o que
nesse sentido. A experiência empírica, ou o fato empírico, é, pois, resultado está "lá fora", e os fatos empíricos, que eu observo. Mais: há uma identidade
de duas coisas: as condições de observação (percepção, conceitos, teorias, entre as três coisas: os mecanismos da realidade, como se mostram esses
modelos), e a "realidade lá fora" (os mecanismos da realidade, que se mos mecanismos (os acontecimentos), e a experiência, ou o fato empírico ob
tram através dos acontecimentos). O gráfico seguinte nos ajudará a enten servado. A ciência consiste em isolar, em identificar regularidades empíri
der melhor o que queremos dizer: cas, que são diretamente "dadas" no mundo. A tarefa da ciência é "limpar
a poeira", "tirar o ruído" dessas regularidades, o que se faz através da ex
perimentação. O cientista é, essencialmente, alguém passivo.
b) O idealismo radical, transcendental (visão neo-kantiana da ciên
cia): afirma que os "fatos observados" são totalmente produzidos por dis
cursos, teorias, conceitos, modelos, em suma, pela nossa cabeça. Os fatos
são totalmente constituídos pelas teorias. Somos nós que construímos esses
fatos, e isso por três razões principais:
aa) Nossas teorias determinam que questões perguntar.
bb) Nossos esquemas conceituais determinam as categorias com as
quais nós fazemos nossas observações, e por isso, determinam o que nós
podemos "ver".
cc) Não existem, por isso, tais coisas como fatos "reais lá fora"AÍnde-
pendentes de teorias ou de conceitos. '
158 159
cobrimento duma "lei" geradora de explicações dessas generalizações ba
seadas em conjunções-correlaçõs constantes.
c) O realismo transcendental. Essa teoria afirma que, dentro dum raio
Poder-se-ia de imediato fazer uma observação questionadora dessa
de fatos possíveis, determinados por nossos conceitos e teorias, os meca
teoria:
nismos reais do m undo "lá fora", mecanismos que existem inde
O fato de eu descobrir uma correlação, uma conjunção constante de
pendentemente de nossas teorias, também determinam nossas observações
eventos, não quer dizer que eu descobri um mecanismo que gere tais even
concretas. Assim, os "fatos empíricos", as "experiências empíricas", são in
tos. A verdadeira explicação está na identificação dos mecanismos gera
fluenciadas pelo mundo "lá fora", e por nossas teorias e conceitos também.
dores, não nas aparências, isto é, nas correlações constantes. Mesmo
Eles são o resultado dialético dessas duas realidades, ou melhor, essa passa
quando se faz um experimento, não se descobre qual o mecanismo gerador,
a ser a realidade do conhecimento, a única realidade possível de ser "co
apenas se cria um "sistema fechado" artificial, onde as coisas acontecem
nhecida".
de modo parecido, não igual. Isso porque o mundo é um "sistema aberto",
A atividade científica deve ser vista como um processo de produção,
e não um sistema fechado. Há muitos e diferentes mecanismos causais
e o resultado final dessa produção, é o conhecimento. O conhecimento
operando simultaneamente, com relações mútuas apenas contingentes e
possui, pois, duas dimensões: é um produto social; e é conhecimento de
acidentais. Na natureza há apenas tendências, probabilidades, depend
coisas que estão e existem "lá fora", objetivamente, independentemente de
endo das contingências da multiplicidade de mecanismos. O que os expe
nós mesmos. Tenta reconciliar dois aspectos: a dimensão histórica do co
rimentos fazem, quando são bons experimentos, é apenas criar um sistema
nhecimento, e a dimensão de existência independente de mecanismos reais
fechado artificial. Mas esse sistema não pode simplesmente, e univocamen-
no mundo.
te, ser identificado com o funcionamento do mundo "lá fora".
161
160
O processo de explicação do realismo caminha, pois, pelos seguintes Se mudam elas, é sinal de que "elas" sofrem influência do mundo extemo
passos: também.
Sobre o positivismo, pode-se perguntar: se o que vemos (aconteci
aa) Identificam-se regularidades, correlações, semelhanças entre fe
mentos) representa, de fato, os mecanismos reais, como explicar, por
nômenos.
exemplo, o caso de Galileu? Até hoje nós vemos que o "sol se põe", o "sol
bb) Levanta-se a hipótese (suspeita) da presença dum mecanismo,
na imaginação: ele é inventado pela atividade criativa do cientista, tendo se levanta": é nossa constatação concreta, "fática". Até há algum tempo se
em consideração explicações e teorias já existentes. Esse mecanismo é uma dizia que o sol se movimentava; agora se diz que o que se movimenta é a
hipótese (uma proposição), sobre o que dever ser verdadeiro "lá fora", para terra. E houve até gente que quase foi para a fogueira por causa de situações
como essa. Disso tudo se pode concluir que o positivismo não é seguro,
que essas regularidades existam e aconteçam.
cc) Através da investigação empírica (experimentos, quase-experi- pois se as coisas, como as vemos, já mudaram, por que não podem mudar
mentos, e muitos outros procedimentos metodológicos, quantitativos ou de novo?
qualitativos), testa-se a realidade dessas entidades e desses processos hi
potéticos, postulados.
PISTAS PARA POSSÍVEIS SOLUÇÕES
163
162
(propositadamente ou não), e de nos enganarmos (problemática das ideo
logias).
Uma conclusão, por assim dizer, aceitável, poderia ser a seguinte: o
conhecimento é um processo contínuo, infinito. Nunca podemos dizer que
tenhamos chegado ao fim. Todo cientista e pesquisador, deve ser, neces
sariamente, muito modesto, e estar ciente dessas limitações fundamentais.
Mas com isso não podemos cair num ceticismo, afirmando que não
é possível conhecer coisa alguma, que é a conclusão do idealismo radical.
Do mesmo modo, não podemos cair num dogmatismo ingênuo e funda-
mentalista, que diz que as coisas são exatamente como as vemos, que é a
conclusão do positivismo empiricista, infelizmente bastante comum entre
nós. Temos de reconhecer que existem, como existiram, idéias e teorias
errôneas, mistificadas, baseadas em interesses, escusos até, muitas vezes.
Talvez seja aqui que se veja a importância quase imprescindível, e a
necessidade sábia duma teoria crítica, isto é, duma teoria que começa por
ser crítica dela mesma, em primeiro lugar, para que se dê conta de suas
limitações, como muito bem demonstra Geuss (1988) que, ao apresentar
as características da Teoria Crítica, mostra como ela, além de iluminadora
e emancipatória, deve ser reflexiva, isto é, começar por ser crítica dela
mesma.
BIBLIOGRAFIA
164