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Joan C. Tronto
mentarei que elas não podem supor que qualquer atributo das mulheres seja
automaticamente uma virtude digna de ser defendida como causa. A não ser
que adotemos uma posição pró-feminina acrítica e digamos que, seja o que
for que as mulheres façam, é ótimo só porque é feito por elas, precisamos
analisar mais detidamente a questão. Tentarei explorar o que poderia ser
uma abordagem feminista dos cuidados.
A tarefa de separar os aspectos femininos e feministas dos cuidados não
é simples. Primeiro, precisamos esclarecer qual é sua natureza tal como são
compreendidos hoje no Ocidente. Estaremos, então, em condições de avali-
ar como cuidar contesta as noções contemporâneas na teoria moral sobre o
que é desejável e virtuoso. Em ambos os aspectos, as análises femininas e
feministas podem coincidir. Na análise final, entretanto, é nas últimas que
as categorias morais ganham significado num contexto mais amplo. As aná-
lises femininas caracterizam-se por aceitar que o roteiro tradicional está mais
ou menos correto. Os aspectos verdadeiramente transformadores e feminis-
tas dos cuidados e do cuidar não podem ser reconhecidos a não ser que
reformulemos nossa visão do contexto político em que eles se situam como
um fenómeno moral.
care significava carga; cuidar é assumir uma carga. Quando uma pessoa ou
um grupo cuida de alguma coisa ou de alguém, presumimos que estão dis-
postos a trabalhar, a se sacrificar, a gastar dinheiro, a mostrar envolvimento
emocional e a despender energia em relação ao objeto de cuidados. Pode-
mos, assim, compreender afirmações como: ele só cuida (ele só se preocu-
pa) de ganhar dinheiro; ela cuida (com carinho) de sua mãe; esta sociedade
não cuida (não se preocupa com) dos sem-teto. À reclamação, você não tem
cuidado (você não se importa), respondemos mostrando alguma prova de
trabalho, sacrifício ou compromisso.
Se cuidar envolve um compromisso, deverá, então, ter um objeto. As-
sim, cuidar é necessariamente relacional. Dizemos que cuidamos de ou te-
mos cuidado com alguma coisa ou com alguém. Podemos distinguir "cuida-
do com" de "cuidar de" com base no objeto dos cuidados.1 "Cuidado com"
refere-se a objetos menos concretos; caracteriza-se por uma forma mais ge-
ral de compromisso. "Cuidar de" implica um objeto específico, particular,
que é o centro dos cuidados. As fronteiras entre essas duas formas de cuidar
não são tão nítidas como essas afirmações fazem subentender. Todavia, a
distinção é útil para revelar algo sobre a maneira como pensamos sobre cui-
dados em nossa sociedade, porque se ajusta à forma como ela define os
cuidados de acordo com o género.
"Cuidar de" envolve responder às necessidades particulares, concretas,
físicas, espirituais, intelectuais, psíquicas e emocionais dos outros. O pró-
prio ser, uma outra pessoa ou um grupo de outros, podem fornecer cuidados.
Por exemplo, cuido de mim mesma, uma mãe cuida da criança, uma enfer-
meira dos pacientes do hospital, a Cruz Vermelha das vítimas de um terre-
moto. Esses tipos são unificados por se originarem do fato de que os seres
humanos têm necessidades físicas e psíquicas (alimento, boa aparência, ca-
lor, conforto etc.) que requerem atividades para satisfazê-las. Essas necessi-
dades são em parte socialmente determinadas; também são atendidas em
sociedades diferentes por diferentes tipos de práticas sociais.
Em nossa sociedade, as estruturas privadas que envolvem "cuidar de"
localizam-se especialmente na família; profissões que proporcionam cuida-
dos são muitas vezes interpretadas como um apoio ou um substituto para
cuidados que não podem mais ser proporcionados dentro da família. Esta
pode não estar mais intacta em consequência de morte, divórcio ou distân-
cia. Ou pode não ser capaz de fornecer ajuda, porque alguns cuidados reque-
rem habilitação especial. Ou então, a própria família pode ser considerada a
fonte do problema, como no caso de famílias com padrões de abusos graves,
incesto, violência. Nesse caso, o cuidado tem sido prestado crescentemente
pelo Estado ou pelo mercado. Os americanos fazem menos refeições em
Mulheres e Cuidados: O Que as Feministas Podem Aprender Sobre a Moralidade... 189
casa, contratam empregadas, pagam para outros ficarem na fila por eles. Em
resposta a essa versão de cuidados crescentemente orientada pelo mercado,
alguns pensadores recuaram horrorizados e sugeriram que o cuidado não
pode ser dispensado se perturbar a integridade da relação do ser com o outro
(Elshtain, 1981:330; Noddings, 1984). O resultado é que na sociedade mo-
derna de mercado, a ilusão de cuidados é muitas vezes preservada: espera-se
dos prestadores de serviços que "finjam" ter cuidado (Hochschild, 1983).
Cuidar é uma atividade regida pelo género tanto no âmbito do mercado
como na vida privada. As ocupações das mulheres são geralmente aquelas
que envolvem cuidados e elas realizam um montante desproporcional de
atividades de cuidado no ambiente doméstico privado. Para colocar a ques-
tão claramente, os papéis tradicionais de género em nossa sociedade impli-
cam que os homens tenham "cuidado com" e as mulheres "cuidem de".
Como nem todo cuidado apresenta um caráter moral, uma outra distin-
ção entre ter "cuidado com" (preocupar-se) e "cuidar de" torna-se óbvia.
Quando queremos saber se "ter cuidado com" (preocupar-se) é uma ativida-
de moral, indagamos sobre a natureza do objeto do cuidado. Preocupar-se
com a justiça é uma atividade moral, porque justiça é um assunto moral;
preocupar-se com o acúmulo de dias de férias não é presumivelmente uma
atividade moral.
"Cuidar de" adquire significado moral de uma maneira diferente. Quan-
do indagamos sobre isso, não é suficiente conhecer o objeto do cuidado;
provavelmente temos de saber algo sobre o contexto em que se dá, especial-
mente sobre a relação de quem o presta e de quem o recebe. Uma criança
suja não é uma preocupação moral para muita gente; mas poderíamos desa-
provar moralmente a mãe de tal criança que, em nossa opinião, pode ter
falhado em sua obrigação de cuidar dela. Deve-se levar em conta, obvia-
mente, que esses julgamentos estão profundamente enraizados em pressu-
postos sociais, culturais e de classe sobre as obrigações da mãe, sobre pa-
drões de limpeza e assim por diante. A atribuição da responsabilidade de
cuidar de alguém, alguma coisa ou alguns grupos pode então ser uma ques-
tão moral. O que faz "cuidar de" ser tipicamente percebido como moral não
é a atividade em si, mas como essa atividade se reflete sobre as obrigações
sociais atribuídas a quem cuida e sobre quem faz essa atribuição.
A verdadeira atividade de cuidar de outra pessoa parece muito longe do
que consideramos habitualmente como questão moral. Parece mais ligada à
esfera da necessidade do que à esfera da liberdade onde presumivelmente os
julgamentos morais têm lugar (ver Arendt, 1958; Aristotle, 1981). Mas al-
guns teóricos(as) têm recentemente tentado descrever o valor dos cuidados,
negando que constituam simplesmente uma atividade banal, que não envol-
190 Género, Corpo, Conhecimento
Capacidade de Atenção
Autoridade e Autonomia
Particularismo
lher, que não conhece mecânica e está sozinha e o estranho seja um homem?
Cuide sempre de sua mãe. Suponhamos que ela e suas crianças dependam
da sua renda para manter a casa e que cuidar dela em casa lhe custará seu
emprego? Assim, os julgamentos morais envolvidos em oferecer e prover
cuidados são muito mais complexos do que qualquer conjunto de regras
possa considerar. Qualquer regra suficientemente flexível para cobrir todas
as complexidades provavelmente só poderia ser expressa por uma fórmula
como "faça tudo o que puder para ajudar mais alguém". Uma formulação
desse tipo não serve como guia para o que a moralidade exige. O que para
uns pode ser "cuidado demais" para um filho que ajuda os pais de idade
avançada, pode parecer a outros egoisticamente pouco. A objeção lógica
sobre os limites da moralidade regida por regras é bem conhecida, mas con-
tinua a ser uma dificuldade prática.
A razão por que o comportamento regido por normas é tão frequen-
temente associado à vida moral é que, se somos obrigados a seguir regras,
somos obrigados a agir imparcialmente, não fazendo favores especiais para
aqueles que estão mais próximos de nós. Outro problema em relação ao
cuidar, de um ponto de vista moral, é que podemos, devido à nossa relação
de cuidados, dar tratamento especial àqueles mais próximos de nós e ignorar
outros mais merecedores.
Nel Noddings enfrenta esse problema de maneira perturbadora. Sua po-
sição é muito restritiva quanto às condições em que o cuidado deve ocorrer.
Embora sustente que nos é natural cuidar de nossos filhos, quando estende-
mos o cuidado para além de nossas próprias crianças, isso se toma um ato
ético (não natural) (Noddings, 1984:79-80). Noddings também sugere que o
cuidado deve acontecer em um contexto limitado ou não será adequadamen-
te compreendido como cuidar: sua descrição é demasiado pessoal; seus exem-
plos incluem cuidar de gatos e pássaros, crianças e maridos, estudantes e
estranhos que batem à porta. Mãe-filho e professor-aluno são relações
paradigmáticas de cuidado. Mas qualquer expansão do cuidar para além dessa
esfera é perigosa, porque o cuidado não pode ser generalizado. Deseja, as-
sim, separá-lo de muitas de suas conotações sociais mais amplas; e parece
excluir da atividade de cuidar qualquer preocupação genérica com os ou-
tros:
NOTAS
Reconheço, com gratidão, a ajuda para escrever este ensaio que recebi de Annmarie Levins,
Mary Dietz, George Schulman, Berenice Fisher e Alison Jaggar.
1. Deve-se observar que minha distinção entre "cuidar de" e "ter cuidado com" (preo-
cupar-se com) difere daquela feita por Meyeroff (1971) e Noddings (1984). Meyeroff dese-
ja contrastar cuidar de ideias e cuidar de pessoas. Esse paralelo não só mascara a tradicional
diferença de género, mas também, como ficará claro mais tarde, os tipos de atividades en-
volvidos em cuidar de outras pessoas não podem ser facilmente usados nesse mesmo senti-
do. Noddings distingue "cuidar de" de "ter cuidado com" (preocupar-se com) numa dimen-
são que tenta esclarecer qual é o grau de comprometimento envolvido. Cuidamos mais de
quem (as pessoas que recebem nossos cuidados) do que daquilo com que nos preocupamos
(1984:86, 112); mas Noddings também deseja reivindicar que podemos cuidar de ideias.
Acredito que a maneira como formulei a distinção revela mais sobre as relações entre o
cuidar e os pressupostos tradicionais da diferença de género.
2. Entretanto, para que ocorra o cuidar, é preciso haver mais do que boas intenções e
comunicação não distorcida; os atos de cuidar também têm de ser concretamente efetivados.
202 Género, Corpo, Conhecimento
Acredito que esse ponto possa ajudar a distinguir esta abordagem daquela de Habermas
(pelo menos das versões mais antigas). Para a crítica de que o trabalho de Habermas é
intelectualizado demais, ver Henning Ottmann (1982-86).
3. Ver, entre outros autores contemporâneos que questionam a forma kantiana domi-
nante de moralidade, Lawrence Blum (1980), Alasdair Maclntyre e Stanley Hauerwas (1983),
John Kekes (1984) e Peter Winch (1972).
4. Sou grata a Berenice Fisher por sua sugestão de que um dos elementos importantes
de uma teoria dos cuidados é a especificação dos limites do cuidar.
5. Jack H. Nagel aprimorou análises anteriores sobre o poder para incluir o que C.J.
Friedrich chamara de "regra de reações antecipadas", a situação onde "o agente B molda seu
comportamento para adequá-lo ao que ele acredita serem os desejos de outro agente A, sem
ter recebido mensagens explícitas sobre as necessidades ou intenções de A ou de seus repre-
sentantes" (1975:16). Ver também Dahl (1984:24-25).
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Mulheres e Cuidados: O Que as Feministas Podem Aprender Sobre a Moralidade... 203