Você está na página 1de 14

Da memória ao arquivo: proposições sobre o Patrimônio

Genético.
Alexandro Silva de Jesusa
a
Professor Adjunto I do Curso de Museologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Avenida
Professor Moraes Rego, 1235 - Cidade Universitária, Recife – Brasil.
alexandrosij@gmail.com

Resumo
Desde o século dezenove, as museo-lógicas vêm se deparando com gestos filosóficos
(Friedrich Nietzsche, Theodor Adorno) e literários (Gustave Flaubert) que não
hesitaram em afirmar a relação estreita e bifurcada da maquinaria museal e
patrimonial com a morte: a um só tempo, elaboração das perdas de um passado cada
vez mais próximo do que costumeiramente entendemos como presente e produção de
um mais de arquivo que resulta no imobilismo dos elementos vitais de uma cultura.
Recentemente(1) no entanto, a noção de patrimônio genético — que além de inaugurar
a possibilidade de uma nova relação entre os domínios do patrimônio, da economia e
dos usos, aponta para um novo protagonismo das comunidades tradicionais — é
anunciada como uma espécie de ultrapassagem dessa condição. Este artigo se
propõe como lugar de teste da consistência dessa promessa. Sua consecução urde
quatro1 proposições sobre: o dever de memória e a (im)possibilidade do pensamento
crítico; o capitalismo e a (im)possibilidade de uso; a relação entre ciência e tradição; o
deslocamento das memórias tradicionais para o arquivo. Essas proposições nos
permitem pensar, respectivamente, sobre a possibilidade efetiva de uma Teoria
Museológica Contemporânea, antecipar a tensão entre consumo e livre uso do
patrimônio genético, reavaliar a função antropológica - e das Ciências Sociais por
extensão - neste cenário, e determinar, assim, os efeitos da intervenção político-
científica nas comunidades tradicionais. Com isso, esperamos oferecer uma
perspectiva sobre a relação entre as museo-lógicas e a biodiversidade a partir de
pesquisas desenvolvidas dentro da nossa linha de pesquisa sobre políticas de
patrimonialização e museus em espaços pós-coloniais.

Palavras Chave: Museo-lógicas, Biodiversidade, Arquivo, Teoria Museológica


Contemporânea.

(1)(1)


De la memoria al archivo: proposiciones sobre el Patrimonio
Genético.
Alexandro Silva de Jesusa
a
Professor Adjunto I do Curso de Museologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Avenida
Professor Moraes Rego, 1235 - Cidade Universitária, Recife – Brasil.
alexandrosij@gmail.com

Resumen
Desde el siglo XIX, las museo-lógicas encuentran gestos filosóficos y literarios que
afirman la relación estrecha y bifurcada presente entre la maquinaria del museo y del
patrimonio y la muerte: al mismo tiempo, la elaboración de las pérdidas de un pasado
cada vez más cerca de lo que comprendemos como presente y la producción de
exceso de archivo que resulta en la inmovilización de los elementos vitales de una
cultura. Sin embargo, actualmente la noción de patrimonio genético – además de abrir
la posibilidad de una nueva relación entre los ámbitos del patrimonio, la economía y
los usos, apunta a un nuevo papel de las comunidades tradicionales - es considerada
como una especie de superación de esa condición. Este artículo está pensado para
colocar en prueba la consistencia de esa promesa. Para su logro, elige cuatro
proposiciones: el deber de la memoria y la imposibilidad del pensamiento crítico, el
capitalismo y la imposibilidad de uso, la relación entre la ciencia y la tradición, el
desplazamiento de los recuerdos tradicionales para el archivo. Esas propuestas
permiten reflejar sobre la posibilidad de una efectiva Teoría Museológica
Contemporánea, anticipar la tensión entre el consumo y el uso gratuito del patrimonio
genético, evaluar de nuevo la función antropológica – y de las Ciencias Sociales, por
extensión – en ese contexto, y así determinar los efectos de la intervención política y
científica en las comunidades tradicionales. Con eso, esperamos ofrecer una
perspectiva sobre la relación entre las museo-lógicas y la biodiversidad a partir de la
investigación desarrollada dentro de nuestra línea de investigación sobre las políticas
de patrimonio y museos en espacios postcoloniales.

Palabras Clave: Museo-lógicas, Biodiversidad, Archivo, Teoría Museológica


Contemporánea.
From memory to archive: propositions on the Genetic
Patrimony.
Alexandro Silva de Jesusa
a
Professor Adjunto I do Curso de Museologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Avenida
Professor Moraes Rego, 1235 - Cidade Universitária, Recife – Brasil.
alexandrosij@gmail.com

Abstract
Since the nineteenth century, the museum-logics have coming across with
philosophical (Friedrich Nietzsche, Theodor Adorno) and literary (Gustave Flaubert)
gestures that don not hesitated to affirm the thigh and bifurcated relation of the
patrimonial and museum machinery with death: at the same time, the elaboration of a
past more and more closer than what normally we understand as present and the
production of a plus of archive, which results on the immobilism of vital elements of a
culture. Recently, nevertheless, the notion of genetic patrimony – that goes farther
inaugurating the possibility of a new relation between the patrimony, economy and
uses domains, indicates a new protagonism of traditional communities – has been
announced as a kind of overcoming of that condition. This article has the aim of being
the locus of testing this promise. Its making demands four propositions about: the duty
of memory and the (im)possibility of critical thought; the capitalism and the
(im)possibility of usage; the relation between science and tradition; the traditional
memories displacement to the use of archive. Such propositions allow us to think,
respectively, on the effective of a Contemporary Musicological Theory, forestall the
tension between consume and free usage of genetic patrimony, reevaluate the
anthropological function – and of the social sciences for extension – in this scene, and
determine, thus, the effects of political scientific intervention on traditional communities.
On that way, we hope to offer a perspective on the relation between museum-logics
and the biodiversity since researches developed within our research line about
patrimonialisation and museums in post-colonial spaces.

Key Words: Museum-logics. Biodiversity, Archive, Contemporary Musicological Theory.


Introdução ou as proposições e o vazio .
As quatro proposições de que se ocupará essa comunicação são intuitivas. Isso não
significa que elas tenham surgido sem qualquer apoio de objetos empíricos, pura
especulação, mas que esses objetos disparadores são diversos, dispersos, e para os
quais ainda procuramos o melhor modo de alinhamento. Elas dizem, portanto, o que
esses objetos nos faz sentir; trata-se, portanto, de uma aposta. Nosso objetivo, aqui, é
demonstrar o potencial que elas possuem para nos esclarecer sobre as forças e as
expectativas que se encontram na e com a emergência de uma agenda sobre a
Biodiversidade a partir do conceito de patrimônio genético. Desta agenda as
proposições investigam encontros (entre uso e consumo e, através deste, da
experiência e ciência), funções (mediação, proteção, informação) e promessas (de
protagonismos e justas repartições).

Escolhemos apresentar as proposições do modo como elas apareceram:


independentes umas das outras. Retomaremos cada uma delas nas considerações
finais de modo que elas se tornem convergentes. É que cada proposição representa
uma procura capaz de se justificar por si só, e de ser aplicada a outros objetos dentro
e fora da museologia. Em todo caso, elas possuem um ânimo comum: todas
acontecem em função de uma resposta que continua esvaziada: afinal, o que é
museologia?

Proposição 1: O dever de memória é o que faz da Teoria


Museo-lógica Extemporânea algo por vir.

Sobre isso nos apoiaremos na dúvida de Zbynek Zbyslav Stránský (2008), aquela
incapaz de se decidir sobre a museologia ser ciência ou apenas trabalho prático, como
sintoma do ainda não da Teoria Museo-lógica Extemporânea2. Pois nosso esforço,
aqui, consiste em demonstrar em que condições torna-se (im)possível fazê-la viger.
Por isso, interessa-nos, fundamentalmente:

1. que essa dúvida tornada pública em 1980 no idioma inglês, tenha conhecido sua
tradução na língua portuguesa em 2008 (ou seja, na madrugada de hoje ou, no
2
Seja o que for esta teoria por vir, deverá assumir a função intempestiva que Friedrich Nietzsche
reclamava para a filologia clássica: “Não sei que sentido [ela] poderia ter hoje, senão aquele de exercer
uma influência intempestiva, quer dizer, agir contra a época, por conseguinte, sobre esta época e,
esperamos nós, em benefício de uma época vindoura" (NIETZSCHE, 2005, p.70).
máximo, de ontem), na forma de um visitar de novo3. Registre-se, desde agora, que
não lemos este re-visitar como algum tipo de cortesia ou afeição que se prestasse a
uma história. Pensamos, ao contrário, que esse ter em vistas novamente possui o
sentido de uma urgência, ou melhor, que a urgência da dúvida ainda nos pressiona;

2. que essa mesma indecidibilidade esteja ligada à constatação, no nível scholar, de,
na maioria dos casos, uma "base teórica relativamente fraca" , que ocupa, mesmo nos
centros especializados, "o segundo plano"4. Tratar-se-ia, assim, de uma teoria positiva,
isto é, festiva, sem potência, talvez — e aqui estamos nos apropriando de seu
diagnóstico livremente —, para constituir seus delineamentos.

A dúvida de Stránský diria assim, apenas o fato de uma teoria inconsistente, jamais
saída de seu esboço, sem nada nos revelar em que ponto esta sua condição se cruza
com a exigências que informa a museologia em seu plano técnico; esclarecer essa
relação será a única chance para validarmos nossa proposição. E é neste ponto que
se torna necessário reclamar o sentido forte do trabalho de tradução, que não é outro
senão escrever de novo, nos termos de uma re-invenção. A dúvida de Stransky deve
sofrer, portanto, uma re-elaboração, que é o mesmo que dizer que ela precisa ser
duvidada.

E a dúvida sobre a dúvida consiste nisto: é realmente necessário decidir sobre a


Museologia (e é importante marcar que em o Stránský termo diz o mesmo, ao menos
uma vez, que teoria museológica), engajá-la, com exclusividade, do lado da ciência ou
do trabalho prático? Para que a dúvida seja re-fundada esse “ou” que efetua uma
relação de oposição entre as suas possibilidades é realmente essencial? Da nossa
parte escolhemos caminhar com os dois pés, ou seja, com a teoria museológica
(rigorosamente, com aquela teoria fraca que Stránský indica) e com o trabalho prático,
para re-fundarmos a dúvida em termos que nos permitam indagar em que medida o
sentido que determina o como do trabalho prático não seria o mesmo que faz viger o
agora inconsistente da teoria.

3
O texto Museologia: ciência ou apenas trabalho prático, de Zbnek Z. Stránský foi publicado no idioma
português pela Museologia e Patrimônio, revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Memória
e Patrimônio da Universidade Federal do Estado do rio de Janeiro (UNIRIO). Cabe destacar que se
tratava da primeira edição da Revista e que a seção onde o artigo aparece aprece sob a rubrica
Revisitando.
4
STRÁNSKÝ, 2008, p.103.
Ora, o que dá sentido ao como da prática e a vigência da teoria em questão é o dever
de memória. Trata-se, aí de um diagrama 5 político, ou, o que dá no mesmo, de uma
espécie de máquina abstrata de governo. E a forma mais avançada que esta sua
realidade abstrata se materializa entre nós (a maneira de políticas públicas), submete
a teoria de agora a condição de arconte, para o bem e para o mal, de uma agenda de
Estado. (pressente-se desde já que as coisas se passando dessa forma, haverá
implicações sobre a avaliação da função mediadora que alguns autores reclamam
para os cientistas sociais, em relação às distintas demandas em torno do patrimônio
genético).

Tudo (teoria e prática), ou quase, acontece, então, a partir de um imperativo de


governo — a partir, portanto, de sua urgência, sempre a mesma, de re-fundar a
servidão voluntária6. Novamente: arquivar (tudo) é o dever que se deve fazer e aquilo
que faz pensar obrigado. Neste ponto, a teoria de agora deve ser acordada sobre as
condições de seu modo crítico, quer dizer, sem embaraços com o Estado; como teoria
deverá reconhecer que o compromisso com o dever de memória é a própria falência
da teoria. Seria preciso, mais do que nunca, sub-escrever (com todo e apesar do
idealismo) uma "razão [...] livre por sua natureza e [que] não acolhe nenhuma ordem
para aceitar algo como verdadeiro (nenhum crede mas apenas um credo livre)" 7 . Por
isso, a teoria por vir não terá problema em funcionar a partir de uma lateralidade com a
prática, desde que essa paridade não signifique estar, essencialmente, a serviço da
técnica, de modo que, a partir de seu gesto crítico, se possa determinar um lado de
fora do Estado (assim, por exemplo, a teoria sobre museu e patrimônio integral deverá
pensar também o Estado totalitário)8.

5
Diagrama. 1. “mecanismo de poder levado a sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se de
qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado como um puro sistema
arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de
qualquer uso específico” (FOUCAULT, 1987, p. 170); 2. Definindo-se por meio de funções e matérias
informes, ele ignora toda a distinção entre conteúdo e uma expressão, entre uma formação discursiva e
uma formação não discursiva. É uma máquina quase muda e cega embora seja ela que faça ver e falar
(DELEUZE, 2005, p. 44).
6
É por isso, adiantamos que a teoria por vir deve levar em consideração o modo se sujeição nos espaços
decoloniais, ou de outro modo, aos lugares de encontro das estruturas (subjetivas, de acesso) de
colonização e das formas de descolonização.
7
KANT, 1993, p. 22.
8
De resto, o dever de Estado que prática museal e teoria de agora se acham submetidas, exige,
necessariamente, que a teoria por vir considere os gestos conceituais e afectivos que desde o Oitocentos,
se empenharam em desencobrir o Estado (ou seja, o imobilismo) no dever de memória.
Proposição 2: O caráter sacramental da experiência capitalista
opõe consumo a todo uso.

Por mais familiar que seja o seu nome, o uso não está de fato presente entre nós, em
sua atualidade viva. Para aqueles, entre nós, que acompanham a problemática sobre
a experiência (problemática que deverá se tornar nevrálgica para a teoria por vir) a
partir dos escritos de Walter Benjamin (1994), torna-se dispensável avisar que
começamos calçados em uma paráfrase. Em modo próprio, seu diagnóstico afirma o
desaparecimento do narrador e da arte de narrar (desaparecimento este, já podemos
pressentir, que coloca todo o pequeno mundo da arte-educação e o outro, um pouco
maior, da educação patrimonial, em maus lençóis). Se nos pareceu necessário
introduzirmos o desenvolvimento da proposição desta forma, é porque acreditamos
que o narrador e o uso possuem uma mesma data de desaparecimento. O que
queremos demostrar é que não se trata, nisto, de uma coincidência, e sim que o
narrador e o uso enquanto inatuais se acham submetidos aos mesmos dispositivos de
rarefação.

Tal tarefa nos exige que a relação entre capitalismo e uso seja avaliada através da
perspectiva de uma filosofia da cultura, especificamente, aquela que faz passar o
capitalismo por uma experiência religiosa. De saída, devemos esclarecer que o que
torna possível que o capitalismo seja traduzido nestes termos é o fato desta filosofia
fazer cessar a oposição convencional entre religião e secularização fazendo com que
a tensão se aplique entre religião e profanação.
É preciso [...] fazer uma distinção entre secularização e profanação. A
secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças, que se
restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de
conceitos teológicos (a transcendência de Deus como paradigma do poder
soberano) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena,
deixando, porém, intacto seu poder.
A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana9.

Genealogicamente, podemos remontar essa cobertura religiosa do capitalismo (muito


diferente da cobertura religiosa que Max Weber descreve analiticamente) a Walter
Benjamin, pois, de fato, a análise de Giorgio Agamben se resolve como
desdobramento da leitura benjaminiana. Desta, o que importa destacar — não teremos
condições, aqui, de oferecer análise: uma religião de devoção extrema (talvez a mais
extrema que já existiu, Benjamin dirá), cujo culto acontece de maneira permanente
(todos os dias da semana), e que não é capaz, nunca, de expiar, mas apenas
culpabilizar. Trata-se, portanto, de uma religião do e para o consumo (e é por isso que

9
AGAMBEN, 2007, p. 68.
hoje, mais do que nunca, devemos levar a sério a relação entre consumo e
destruição).

Ora, o capitalismo como religião, e mais ainda, como devoção consumista


(destruidora) se opõe a todo uso. Dissemos: e mais ainda. É porque a indisposição
das coisas religiosas para o uso, essa indisponibilidade que experimentamos em todas
as nossas ações de mercado, ou seja, em todas as nossas ações, não foi algo que o
capitalismo tenha inventado; antes, faz parte do modo mesmo como a operação
religiosa deve ser definida (inclusive juridicamente). Ou seja: lhe é essencial.
Os juristas romanos sabiam perfeitamente o que significa "profanar".
Sagradas ou religiosas era as coisas que de algum modo pertenciam aos
deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e comércio dos
homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas
em usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que
violasse ou transgredisse essa sua especial indisponibilidade [...] 10

E mais,
Pode-se definir como religião aquilo que subtrai coisas, lugares, animais,
ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada.
Não só não há religião sem separação, como toda separação contém ou
conserva em si um núcleo genuinamente religioso11.

Toda a nossa atenção deve recair, portanto, para essa indisponibilidade, para esse
por em reserva (que é uma operação, mais propriamente, técnico-religiosa) que
impede o uso livre e o uso comum de homens, lugares e coisas. Em todo caso,
sabemos que podemos ser acusados, aqui, de pouco critério em nome de uma
conveniência, que enfatizamos apenas os elementos que beneficiam o sentido de
nossa leitura, e que toda a nossa atenção deveria recair também para a
indisponibilidade dos homens, lugares e coisas para o comércio como característico
do gesto religioso, e que assim, os lugares sagrados (e o próprio lugar do sagrado)
continuariam antipáticos às casas dos mercadores. O que podemos dizer: o que se
passa com o capitalismo dá mostras que a insdisponibilidade comercial que os juristas
tomavam por essencial para a definição do religioso era apenas um acidente, e como
tal sua vigência dependia de uma sociedade para a qual as relações de consumo não
constituíam sua escolha original12.

10
Idem, p.65.
11
Id.
12
Neste sentido, ter em mente as analises que José Ortega Y Gasset sobre o papel do dinheiro nas
sociedades ocidentais de hoje e de ontem, possivelmente dará ao nosso argumento mais consistência.
ORTEGA Y GASSET, 2007. Especialmente A dinâmica do tempo.
Pressente-se para onde tudo isso deverá nos conduzir: certamente para o consumo
(mercado), onde, Agamben concluiu, "[...] agora tudo o que é feito, produzido e vivido
[...] acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já
não define nenhuma divisão substancial e na qual todo o uso se torna duravelmente
impossível13. Mas não somente. Pois se tudo o que mostramos sobre a religião puder
ser asseverado, significa que o que chamamos, entre nós, de processo de
musealização (isso o termo deve dar conta do que acontece tanto no museu ou no
interior do IPHAN quanto das museo-lógicas de uma maneira geral), não é outra coisa
senão um procedimento religioso singular (e é exatamente por isso que não podemos
tocar nos objetos que a musealização, pela via do rito, consagra) que retira as coisas
da esfera do uso e as reserva indisponíveis. É por isso que de vez em quando
apanhamos alguém confundindo museu e mercado — e à essa confusão estão
sujeitos todos os tipos de museu e não apenas os museus de arte.

Proposição 3: As condições de época impedem qualquer


acordo entre experiência (tradicional) e ciência.

Falamos a pouco de uma herança benjaminiana no pensamento de Giorgio Agamben.


A rigor, se trata de uma re-fundação da problemática sobre a experiência a partir do
diagnóstico de Walter Benjamin, mas precisamente, sobre o desaparecimento da
experiência tradicional, não conceitual, apreendida no silêncio das coisas que, de
forma dispersa e em toda parte, simplesmente estavam aí (sabia-se exatamente,
Benjamin dizia, o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens.
De forma concisa, [ou] prolixa [...], muitas vezes como narrativa [...]14). Trata-se, assim,
do desaparecimento das condições de possibilidade que sustentavam certas formas
de existir junto (formas, aliás, que testemunham sobre seu próprio desaparecimento
tanto mais agora que se tornam objeto especial das museo-lógicas).

Ora, se essas condições foram desfeitas (e aqui continuamos a argumentar sob a


mesma perspectiva da filosofia da cultura que sustentou a proposição anterior), isto
ocorreu em benefício da experiência técnico-científica. Tomemos um dos gestos
essenciais, no século dezesseis, em que essa descolocação assume a forma de uma
oposição.

a experiência pura e simples [...], quando ocorre por si, é chamada de


acaso e, se buscada, de experiência. Mas essa espécie de experiência é

13
AGAMBEN, op. cit. p. 71.
14
BENJAMIN, 1994, p. 114.
como uma vassoura desfiada, como se costuma dizer, mero tateio, à
maneira dos que se perdem na escuridão, tudo tateando em busca do
verdadeiro caminho, quando muito melhor fariam se aguardassem o dia
ou acendessem um archote para então prosseguirem. Mas a verdadeira
ordem da experiência, ao contrário, começa por, primeiro, acender o
archote e, depois, com o archote mostrar o caminho, começando por
uma experiência ordenada e medida — nunca vaga e errática —, dela
deduzindo os axiomas e, dos axiomas, enfim, estabelecendo novos
experimentos15.

Saber que só pode ocorrer ocasionalmente, somente possível como pathos (pois
ocorrido no escuro, choca-se constantemente contra seus objetos) trata-se, aí, como
Agamben já observara, de uma condenação, em favor da ciência, da experiência
tradicional. Mas mesmo nos ensaios de Michel de Montaigne (2001), cuja topografia
constitui um dos mais belos cantos desta experiência que começa ver a si própria
passar (pois Montaigne escrevia tendo como horizonte seu próprio desaparecimento),
uma hierarquia sobre os modos de conhecer também testemunha uma positividade
favorável à ciência:
Não há desejo mais natural do que o desejo de conhecimento.
Experimentamos todos os meios que nos podem levar a ele. Quando a
razão nos falta, empregamos a experiência , [...] que é um meio mais
fraco e menos digno [...]16.

Não é necessário, tamanha a evidência, de que essa repartição entre experiência e


experimento continua a coser nossa atualidade. Ela ocorre (na forma de uma tensão,
por exemplo, entre medicina e curandeirismo), entre nós, brasileiros, ao menos desde
o Oitocentos (É para ver, dizia um cronista pernambucano em 1832, o desempenho e
fresquidão, com que um assassino destes [o curandeiro] de curiosidade tateia o pulso
de um pobre doente, sem saber o que é pulso, nem onde ele está, nem qual seu
estado normal [...]17), sempre na forma de uma desqualificação (e o rebaixamento
atual tem na Política nacional de Plantas medicinais e fitoterápicos um bom exemplo,
posto que a ação dos terapeutas tradicionais deve se restringir a parte da população
que tem dificuldade em garantir uma boa atenção em saúde). Isso dirá, portanto, sobre
o modo próprio da Museologia se relacionar com seus novos objetos

Proposição 4: Os procedimentos de arquivo indicam redução e


não aumento de memória.
15
BACON, Francis. Versão eletrônica do livro “Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da
Interpretação da natureza”. Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis
(Filosofia). Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis
16
MONTAIGNE, 2001, pp. 422-3.
17
APEJE, O Carapuceiro, No. 31, 1832.
Eis os aspectos que, para nosso plano teórico, melhor definem um arquivo:
“exterioridade de um lugar, operação topográfica de uma técnica de consignação e de
um lugar de autoridade (o arconte [...])18”. É fácil, a partir daí, fazer o museu passar por
arquivo. Pois as funções do museu não são outras senão domiciliar (por em
segurança, conservar) os documentos da cultura colocados sob sua jurisdição e
consigná-los (reuni-los sob um mesmo sentido, rubrica ou sistema). E cada um desses
aspectos (um lugar que conserva e uma lei que fixa o sentido e a relação) é conduzido
partir de uma curadoria produzida pelo seu arconte (museólogo). É em sua figura que
o arquivo concretiza suas funções econômicas: “guarda, põe em reserva, economiza,
mas não de modo natural, isto é, fazendo a lei (nomos) ou fazendo respeitar a lei”19.
Disto, todo e qualquer processo de musealização torna-se, em função de sua
natureza, um procedimento político.
Escolhemos, assim, uma definição de arquivo capaz de ignorar as distinções
tradicionais entre o que tradicionalmente entendemos ser sua instituição e a museal (e
que certamente não se esgota aí). Tal definição (derridiana) permite tal indistinção não
somente pelos aspectos que destaca do arquivo; ela procura, sempre que possível,
implicar diretamente o museu. Pois o que é, para essa ciência do arquivo, algo como a
psicanálise? “Projeto de saber”, certamente, mas também “de prática e de instituição,
comunidade, família, domiciliação, consignação, ‘casa’, ou ‘museu’ no estado presente
de seu arquivamento”20. Ou ainda, quando essa mesma ciência desenha os poderes
presentes na regência arquival: “transformada em museu, a casa de Freud hospeda
todos esses poderes da economia”21.
Temos, então, que a estrutura específica do museu é a do arquivo. O museu,
aqui, não se diferencia mais da biblioteca, nem do próprio arquivo; em certo nível não
diverge também, de dispositivos como câmeras fotográficas, o HDs ou o pen drives.
Sua estrutura específica é, na verdade, generalizada (era o que Henry-Pierrre Jeudy
tem em vista quando afirma que o espírito patrimonial é proteiforme). Por isso,

[...] museu não designa [...] um lugar ou um espaço físico determinado,


mas a dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo
era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é. O museu
pode coincidir, nesse sentido, com uma cidade inteira (Évora, Veneza,
declaradas por isso mesmo patrimônio da humanidade), como uma
região (declarada parque ou oásis natural), e até mesmo com um grupo
desapareceu). De forma mais geral, tudo hoje pode tornar-se Museu, na

18
DERRIDA, 2001, p. 8.
19
Ibid,, p. 17.
20
Ibid., pp. 15-6.
21
Ibid., p. 18.
medida em que esse termo indica simplesmente a exposição de uma
impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiência 22.

Tudo isso prenuncia a redução de potência das comunidades tradicionais quando


submetidas aos processos de musealização. E estes sinais já começam a ser
colhidos.
Exibida, colocada no museu, passada pelas mãos de arqueólogos, etnólogos e
conservadores, essa ambivalência que se manifestou cada vez que se pensou
em conservar ou destruir os ‘instrumentos de trabalho’, por ocasião de revoltas e
de insurreições desapareceu: foi inteiramente esvaziada de sua intensidade,
para se tornar o resumo objetivo de uma história de bravura23

Considerações finais ou sobre o encadeamento das


proposições.

Durante muito tempo o dever de memória funcionou, por Necessidade, como o móvel
e o impensado da política de conservação e da teoria de agora. Hoje, porém, sua vida
de dispositivo começa a ser problematizada. E essa abertura exige que a teoria por vir
enxergue a si mesma como teoria sobre o arquivo, que não é outra coisa senão uma
teoria sobre suportes de memória ou memórias protéticas. Ela deverá se esforçar para
exercer um pensamento que almeje o lado de fora do Estado (e o significado disto não
ficará totalmente evidenciado para o campo museológico, enquanto a perspectiva
sobre os bens culturais de Jean-Jacques Rousseau continuar negligenciado), pois até
aqui, o engajamento da teoria de agora com o mesmo não lhe permitiu formar uma
gramática independente. Eis, portanto, o estado das coisas e o desejo de povir que a
primeira proposição fixa. Todas as outras proposições deveriam oferecer a teoria por
vir, a partir do conceito de patrimônio genético, ocasião de teste.

Firmamos (através da segunda proposição) uma oposição entre uso e consumo para
evidenciar que a analítica de uma teoria por vir não poderá sub-escrever a agenda
política determinada para o patrimônio genético. Ela não poderá sub-escrever ainda, e
pelo mesmo motivo, a mediação das ciências sociais, especialmente a mediação
museológica, nos desacordos de tal agenda. Em parte por que estamos tratando de
um lugar onde não há nenhuma mediação possível entre uso coletivo e consumo
capitalista; o esforço seria, dessa forma, inútil. O motivo mais importante, contudo, é
de natureza técnica e diz a disposição museológica (reservar indisponível), ou melhor,
diz seu partido. Tudo isso pressiona a teoria por vir: sua definição de patrimônio
genético deverá dar conta do jogo de cercamento do uso e de abertura para o
consumo.
22
AGAMBEN, op cit., 73.
23
JEUDY, 2005, p. 29.
Podemos, com o apoio da terceira proposição, desdobrar o que dissemos sobre a
intervenção museológica: no que concerne a sua relação com o modo de vida
tradicional — com o seu novo objeto, portanto —, não será possível nem mediação
nem proteção. E isso porque, seja como ciência ou apenas trabalho técnico, a
museologia é animada por condições que exigem a despossessão da experiência
tradicional. Por outro lado, seria preciso investigar a consistência desse objeto
tradicional que a museologia, hoje começa a fazer parte da posse. Em outras palavras,
a teoria deve se perguntar em que medida a museologia partilha, no fundo, de uma
invenção antropológica24 .

Todas essas coisas dizem, finalmente, um pouco mais. Diz que também que a
intervenção museológica como intervenção de arquivo, reduz ainda mais a vitalidade
deste seu objeto (e, lembremos, isso já aconteceu com a Antropologia). Pois aquilo
que, nos enunciados sobre a biodiversidade, torna a comunidade tradicional
“protagonista” é tão somente a crença de que tal comunidade possui um saber fazer
que se reserva fora, ainda, dos arquivos técnico-científicos. Quando essa condição
estiver superada, será o arquivo (museu) a nos dizer alguma coisa.

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.


ARGIER, Michel. Distúrbios identitários em tempos de Globalização. In: Mana vol.7
no.2 Rio de Janeiro - Oct. 2001.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura.7ª. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
DELEUZE, Gilles. Foucault.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro,
Relume Dumará, 2001.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2005.
KANT, Immanuel. O conflito das faculdades. Lisboa: Edições 70, 1993.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios: livro III. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre História. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. 3ª. Ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os
homens. 3ª. Ed. São Paulo Martins, Fontes, 2005.
STRÁNSKÝ, Zbinesk Z.. Sobre o tema “Museologia – ciência ou apenas trabalho
prático?” In: Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e
Patrimônio – PPG-PMUS Unirio | MAST, Vol. I, N°. I, 2008.

24
A preocupação de Michel Argier (2011) com os modernos distúrbios identitários e as análises de Jeudy
sobre a maquinaria patrimonial já nos dizem alguma coisa a respeito.

Você também pode gostar