Você está na página 1de 9

1

CURSO EAD JUSTIÇA RESTAURATIVA CNJ – ENFAM

UNIDADE II

ORIGEM E HISTÓRICO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL

Leituras indicadas pelos formadores Egberto Penido e Leoberto Brancher(*)

(*) Dada a indisponibilidade de registros históricos sistematizados, compartilhamos os conteúdos


a seguir que são excertos de textos produzidos pelos autores para outras publicações.

ORIGENS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL

Egberto Penido - Material redigido para a apresentação da


Delegação da Justiça Restaurativa Brasileira
ao Simpósio Nacional de Justiça Restaurativa do Canadá, 2019.

Como em outras nações, no Brasil, as práticas restaurativas são ancestrais e

também se inspiram nas nossas “primeiras nações”, como se pode constatar das

práticas culturais dos Tupi-Guarani, Kamayurá, entre outros povos indígenas

originários. Do mesmo modo, dialogam com práticas quilombolas que aqui se

instauraram.

De modo institucional, as experiências em Justiça Restaurativa tiveram início no

Brasil com a elaboração, no final de 2004, de um projeto de envergadura

nacional denominado “Implementando Práticas Restaurativas no Sistema de

Justiça Brasileiro”, promovido pelo Ministério da Justiça em parceria com o PNUD

– Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que possibilitou o

surgimento de iniciativas pioneiras nas áreas da Infância e Juventude (nos

Estados do Rio Grande do Sul e São Paulo) e com adultos (em Brasília).

De lá para cá, as expansões foram intensas e expressivas diante dos resultados

exitosos, existindo atualmente projetos de práticas restaurativas em todos os

Estados do país, respeitadas as diversidades de cada unidade federativa, pois o

Brasil é um país de dimensão continental com imensa diversidade cultural.


2

Muitas são as características do DNA próprio da Justiça Restaurativa brasileira, e

destacamos quatro delas: (a) a maioria de seus projetos se faz dentro de uma

perspectiva de cultura de paz, não se reduzindo a uma metodologia ou uma

técnica de resolução de conflitos, buscando trabalhar o conflito e as situações de

violência na complexidade destes fenômenos, envolvendo dimensões

relacionais, institucionais e sociais; (b) ter-se iniciado por meio de ações oriundas

de magistrados e magistradas, mas buscando a articulação com os demais

setores da sociedade, como instituições públicas e privadas, e a sociedade civil

organizada; (c) fazer-se dentro e fora de ambiências forenses, buscando ações

não só nos Fóruns, mas na comunidade, na sociedade civil organizada e em

parceria com outras instituições, sobremaneira com a Educação; e (d) apresentar

uma diversidade de metodologias e ambiências institucionais para sua

realização, respeitando a diversidade dos contextos sociais, culturais e

institucionais que é observada nos Estados Federativos. Assim, já houve ou ainda

existem projetos baseados nas metodologias dos círculos restaurativos

(inspirados na comunicação não-violenta), nas conferências familiares, no

modelo Zwelwthemba, mas tem preponderado significativamente a metodologia

dos processos circulares.

Na ambiência do Judiciário, o início da implementação da Justiça Restaurativa

deu-se preponderantemente nas áreas da Infância e Juventude e dos Juizados

Especiais Criminais, que julgam crimes de menor potencial ofensivo. Mas, hoje, a

Justiça Restaurativa espalhou-se para outras áreas, tais como Violência

Doméstica, Família, Cível, Execução Criminal, entre outras.

No Brasil, logo se constatou que a Justiça Restaurativa deveria ter uma

normativa nacional específica em face de sua identidade própria, pelo que o

Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 225/2016, referência nacional

atual que tem como linhas programáticas o caráter universal, sistêmico,


3

interinstitucional, interdisciplinar, intersetorial, formativo e de suporte da Justiça

Restaurativa. Nesta normativa, estabeleceu-se que os programas restaurativos,

ao serem implementados, devem buscar a participação dos integrantes da

“rede” constituída por todos os órgãos do Poder Judiciário, por entidades

públicas e privadas parceiras, inclusive universidades e instituições de ensino,

bem como pela sociedade civil organizada.

Esta resolução foi constituída com base nas práticas que já estavam sendo

desenvolvidas no Brasil e desta forma se fez de baixo para cima e não de cima

para baixo.

Tem-se a clareza que temos muito que aprender e que muitos são os desafios

da Justiça Restaurativa no Brasil, especialmente neste momento em que ela se

expande e corre o risco de ser banalizada ao ser inserida dentro de um contexto

institucional em que prepondere a lógica punitivista.

E também temos a clareza de que já temos alguma produção de conhecimento e

que a troca das experiências com outras nações é uma salvaguarda para

permanecermos alinhados com os princípios e valores que informam a Justiça

Restaurativa, os quais constituem o norte seguro para o qual sempre se deve

caminhar

JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL

Egberto Penido – Trecho do artigo publicado em 2017.

No Brasil, a Justiça Restaurativa teve inicio de modo oficial com a

elaboração, no final de 2004, do projeto “Implementando Práticas Restaurativas

no Sistema de Justiça Brasileiro”, pelo Ministério da Justiça, através da então

recém criada Secretaria da Reforma do Judiciário, que possibilitou a realização

de iniciativas pioneiras nos Estados de São Paulo, Brasília e Rio Grande do Sul.,
4

na área da Infância e Juventude e com adultos, nos crimes de menor potencial

ofensivo.

Logo após foi realizado o I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, na

cidade de Araçatuba/S,P, em abril de 2005, com a elaboração da primeira Carta

de princípios restaurativos do Brasil)1, que se mostra atual. Lê-se no bojo de seu

conteúdo:

Acreditamos que o modo violento como se exerce o poder, em todos os

campos do relacionamento humano, pode ser pacífico, mudando-se os

valores segundo os quais compreendemos e as práticas com as quais

fazemos justiça em nossas relações interpessoais e institucionais.

Reformular nossa concepção de justiça é, portanto, uma escolha ética

imprescindível na construção de uma sociedade democrática que respeite

os direitos humanos e pratique a cultura de paz. Essa nova concepção de

justiça está em construção no mundo e propõe que, muito mais que

culpabilização, punição e retaliações do passado, passemos a nos

preocupar com a restauração das relações pessoais, com a reparação dos

danos de todos aqueles que foram afetados, com o presente e com o

futuro. E mais adiante, em relação aos princípios: 1. Plena informação

sobre as práticas restaurativas anteriormente à participação e os

procedimentos em que se envolverão os participantes; 2. Autonomia e

voluntariedade para participação das práticas restaurativas, em todas as

suas fases; 3. Respeito mútuo entre os participantes do encontro;; 4.

corresponsabilidade ativa dos participantes; 5. Atenção à pessoa que sofreu

o dano e atendimento de suas necessidades, com consideração às

possibilidades da pessoa que o causou; 6. Envolvimento da comunidade

pautada pelos princípios da solidariedade e cooperação; 7. Atenção às

1
I SIMPÓSIO BRASILEIRO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA, 2005, Carta de Araçatuba, Anais Eletrônicos,
Araçatuba, São Paulo, 2005. Disponível em: http://jij.tjrs.jus.br/justica-restaurativa/carta-aracatuba Acesso em:
18/08/2014.
5

diferenças socioeconômicas e culturais entre os participantes; 8. Atenção

às peculiaridades socioculturais locais e ao pluralismo cultural; 9. Garantia

do direito à dignidade dos participantes; 10. Promoção de relações

equânimes e não hierárquicas; 11. Expressão participativa sob a égide do

Estado Democrático de Direito; 12. Facilitação por pessoa devidamente

capacitada em procedimentos restaurativos; 13. Observância do princípio

da legalidade quanto ao direito material; 14. Direito ao sigilo e

confidencialidade de todas as informações referentes ao processo

restaurativo; 15. Integração com a rede de assistência social em todos os

níveis da federação; 16. Interação com o Sistema de Justiça.

A partir de então diversas outras iniciativas se fizeram, diante dos

resultados que foram e estão sendo obtidos. Avanços legislativos surgiram, pois

se antes era possível a realização de tais práticas no âmbito do Judiciário, com

base na interpretação das normas do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei


2
n. 8069/90) e da Lei n. 9.099/953 (na fase de composição para os crime de

menor potencial ofensivo), hoje já temos a Lei do Sinase - Sistema Nacional de

Atendimento Socioeducativo (Lei n.12.594/2012)4 – e algumas normatizações

institucionais, como o Regimento Interno da Fundação CASA de São Paulo 5, ou a

Resolução SE Nº 01/2011 da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo6,

que criou a figura do professor mediador (motivada em muito pelas práticas

restaurativas) e previu as dinâmicas restaurativas expressamente como caminho

a ser seguido em caso de conflito no âmbito escolar.

2
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069/90). 1990.
3
BRASIL. Lei n. 9.099/95. 1995.
4
BRASIL. Lei do Sinase - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Lei n.12.594/2012). 2012.
5
SÃO PAULO (Estado). Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA). Regimento
Interno. Disponível em: http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/pdf/Regimento_Interno.pdf Acesso em:
18/08/2014.
6
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Educação. Resolução SE Nº 01/2011.
6

Muito há ainda para se caminhar, caberá a cada um que esteja

comprometido com a implementação da Justiça Restaurativa que essa se faça de

modo claro e preciso e com a qualidade necessária.

POR UMA JUSTIÇA PARA O SÉCULO XXI

Ana Paula Flores e Leoberto Brancher,

Artigo publicado no livro Justiça Restaurativa

– Horizontes a partir da Resolução 225do CNJ.

Disponível no link https://www.cnj.jus.br/wp-

content/uploads/2016/08/4d6370b2cd6b7ee42814ec39946f9b67.pdf

A promulgação da Resolução nº 225, de 31 de maio de 2016, do Conselho

Nacional de Justiça (CNJ), instituindo e disciplinando uma Política Nacional de

Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, acende um poderoso farol,

iluminando nosso olhar sobre as concepções, estruturas e modos de administrar

a Justiça no país.

A nova Resolução enuncia e sistematiza, projetando sua aplicação pelo

Judiciário brasileiro, os elementos essenciais de uma aprendizagem construída a

partir de um processo coletivo e capilarizado de apropriação e testagem do

repertório teórico e metodológico colhido originalmente do cenário

internacional, mas amalgamado no fazer cotidiano das experiências nacionais –

modo que tornou possível a composição de um modelo que podemos

denominar, genuinamente, de uma Justiça Restaurativa do Brasil.

Perfazendo uma trajetória de expansão tão inesperada quanto criativa, o

movimento restaurativo no âmbito do Judiciário brasileiro – e a partir dele

irradiado em múltiplas direções – emerge no texto dessa Resolução desde o

fazer da sua magistratura e da sua jurisdição de primeiro grau. E é a partir daí,


7

também, que adquire a legitimidade de um fazer plural, constituído no dialogar

contínuo com os saberes acadêmicos e com os saberes empíricos agregados

pelas múltiplas interfaces profissionais e comunitárias envolvi- das nos casos

atendidos. Desse veio fluíram e foram sendo modeladas as concepções que ora

se imprimem no texto normativo. Como numa pulsação cardíaca, esse diálogo

veio sincronizado pelo diapasão de movimentos de sístole e diástole

representados ora por experimentos e aplicações práticas no terreno, com os

casos mais dramáticos, ora por articulações de cúpula, com as hierarquias

institucionais mais representativas.

Momentos emblemáticos desse processo de retroalimentação contínua

foram representados pelos “inputs” de inicialização trazidos pelo Ministério da

Justiça (MJ) e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)

quando, em 2005, desencadearam os três projetos-pilotos fundantes da Justiça

Restaurativa no Brasil. Tais projetos-pilotos contaram com 92 o suporte de dois

Seminários Internacionais realizados, em Brasília, nos anos de 2005 e 2006, e

foram acompanhados de oficinas de treinamento e da publicação de livros7.

Malgrado a descontinuidade daquele suporte inicial, não tardaria a

frutificar a devolução reversa, representada pela contribuição dos protagonistas

dos projetos-pilotos em manter as iniciativas, aprofundar a aprendizagem e

buscar novas expertises para realimentar o movimento, inclusive por meio de

novas parcerias técnicas e financiadoras.

Nesse compasso, corolário do contagiante movimento induzido a partir do

campo judicial, também se produziria um movimento associado ao campo

acadêmico e ao protagonismo não governamental. Inúmeros artigos científicos,

trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses foram se multiplicando ao

longo desse percurso, ratificando a pertinência – e, mais do que isso, produzindo

7
1 As publicações que resultaram da parceria do MJ/SRJ e PNUD em torno da temática da Justiça
Restaurativa foram as seguintes: “Justiça Restaurativa: Coletânea de Artigos “ e “Novas Direções
na Governança da Justiça e Segurança” (MJ/SRJ e PNUD 2005 e 2006, respectivamente).
8

encantamento com as teses restaurativas – e conferindo reconhecimento e

credibilidade ao trabalho de quantos a elas vinham se filiando. Por outros

percursos, o movimento se alastraria também por iniciativas não

governamentais, apoiadas por instituições públicas e agências internacionais,

bem representadas nos três Simpósios Internacionais de Justiça Restaurativa

realizados em 2005, na cidade de Araçatuba (SP), no ano de 2007, em Recife (PE),

e em 2012, num circuito de eventos que abrangeu as cidades de São Paulo (SP),

Porto Alegre (RS), Caxias do Sul (RS) e Belém (PA). Essas iniciativas são lembradas

aqui por sua relevância, mas também a título de ilustração das incontáveis

atividades de divulgação, sensibilização e formação que, de forma pulverizada e

sob a forma de palestras e cursos de formação, se multiplicaram em todas as

direções do país.

Formava-se aí um vigoroso processo de maturação “de baixo para cima”

que viria a ser finalmente catalisado pela iniciativa da Associação dos

Magistrados Brasileiros (AMB), apoiada pelo CNJ, ao firmar, em agosto de 2014,

um protocolo para difusão nacional da Justiça Restaurativa, logo desencadeando

um programa de difusão amparado por um “pool” interinstitucional formado por

órgãos do Governo Federal, agências das Nações Unidas e organizações não

governamentais. No âmbito judiciário, ao lado da AMB e do CNJ, a esse protocolo

concorreram também Tribunais, Associações de Magistrados e Escolas da

Magistratura do Rio Grande do Sul (RS), São Paulo (SP) e Distrito Federal (DF),

representando as implantações pioneiras e autenticando o movimento a partir

da sua base – e com isso também sinalizando a ampla acolhida institucional que

a novidade restaurativa vinha alcançando junto ao Sistema Judiciário em âmbito

nacional.

É desse processo de base – representado na composição do Grupo de

Trabalho redator da minuta – que o CNJ foi colher a acumulação cultural que

subsidiou a formulação normativa e ao mesmo tempo é a esse processo de base


9

que atribui sua autoridade, retroalimentando-o e impulsionando-o para uma

nova etapa de expansão de base, cada vez mais bem estruturada e agora para

todo o Judiciário nacional.

É nesse contexto de avanços da Justiça Restaurativa a partir de uma

tessitura de protagonismos complexos e como um processo de aprendizagens

coletivas que podemos situar melhor o objetivo deste artigo. Tem ele a intenção

de oferecer, a título de depoimento institucional, um recorte desse cenário de

construção, no que se refere à contribuição histórica e aos fundamentos

ético-filosóficos e metodológicos que, oficialmente desde 2014, embasam a

implantação da Justiça Restaurativa como política judiciária pelo Tribunal de

Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

Você também pode gostar