Você está na página 1de 14

UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

Faculdade de Direito
Licenciatura em Direito
Ano Lectivo 2014-2015
1.º Ano - 2.º Semestre

Finanças públicas:

capítulo 3

Mestre Guilherme Valdemar Pereira d’Oliveira Martins

Lisboa

2015

1/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

NOTA - Os sumários que se seguem constituem apenas e fundamentalmente um


roteiro de estudo. Não se trata de uma exposição exaustiva da matéria. São, assim, um
instrumento importante mas nunca exclusivo, designadamente para o
acompanhamento tutorial. De modo sintético, indica-se os temas, as referências
fundamentais e, no final de cada capítulo, a bibliografia. O método usado obriga,
assim, a uma preparação e acompanhamento permanentes das aulas e a um contacto
constante com os elementos de estudo (através de apontamentos das aulas, de
sumários, da bibliografia fundamental e de trabalhos práticos). Só considerando os
sumários como um roteiro ou guião poderemos retirar deles a sua plena utilidade.
G.O.M.

Capítulo III - A atividade financeira como fenómeno jurídico, político e económico.


3.1.Estado e atividade financeira
3.2. Decisão política e decisão financeira.
3.3. Estado e sociedade
3.4. Fontes de Direito Financeiro
3.5. Autonomia e natureza do Direito Financeiro.

Capítulo III - A atividade financeira como fenómeno jurídico, político e económico.

3.1. Estado e atividade financeira.

O Estado contemporâneo resulta de um longo caminho evolutivo, que neste momento


é alvo de uma profunda reflexão, relacionada com a dimensão, a eficiência e a
legitimidade democrática. Nascido da necessidade de fazer face às falhas e
incapacidades do mercado, o Estado começou por ter funções muito limitadas. Não
referindo a fase em que o patrimonialismo feudal e os primeiros passos da sociedade
urbana tiveram lugar, e detendo-nos apenas na génese e afirmação do Estado
moderno, verificamos que as revoluções liberais nascidas da evolução histórica no
Reino Unido (“Gloriosa Revolução”, 1688-89), nos Estados Unidos (Declaração da
Independência, 1776) e em França (Revolução francesa, 1789) geraram um Estado
liberal, não intervencionista, essencialmente guardião dos mecanismos espontâneos
do mercado e do livre-câmbio. Era o modelo do Estado polícia que se afirmava como
garante da ordem constitucional e do respeito dos direitos fundamentais dos cidadãos.

2/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

A intervenção pública económica era excecional e tinha exclusivamente como fim


responder às falhas de mercado e ao provimento de bens coletivos (ou financeiros).

A Revolução Industrial trouxe, porém, novos problemas e novos desafios, sobretudo


ligados às graves injustiças sociais, à ausência de mecanismos capazes de cobrir os
riscos sociais mais comuns (desemprego, doença, sobrevivência, velhice) e às novas
situações na evolução dos ciclos económicos. O “laissez-faire” ou livre-cambismo não
permitia responder a problemas novos e inesperados, cujo desenvolvimento levava a
graves tensões sociais. Por outro lado, a tomada de consciência pelo proletariado
industrial da contradição entre o reconhecimento das liberdades políticas e a
incapacidade do Estado para garantir o respeito pelos mais elementares direitos
individuais a uma vida condigna conduziu à necessidade de lançar os fundamentos do
Estado social.

Foi na Alemanha, num governo de Otto von Bismarck (1815-1898), que foram lançadas
as bases do moderno Estado Social. Em 1871 foi reconhecido legalmente o princípio
de uma responsabilidade objetiva limitada dos industriais no caso de acidentes de
trabalho. Em 1881 foram lançadas as bases de um sistema de seguro obrigatório para
acidentes laborais. A lei de 5 de Junho de 1883 criou o seguro de doença, visando os
operários assalariados (coberto em um terço pelos empregadores. Foram, assim,
criadas caixas de três tipos: das empresas, profissionais e comunais) A lei de 1884
sobre acidentes de trabalho determinou que os patrões deveriam obrigatoriamente
financiar caixas cooperativas para cobrir a invalidez permanente resultante de
acidentes de trabalho. A lei de 1889 sobre seguro de velhice e invalidez instituiu o
primeiro sistema obrigatório de reformas – financiado metade por metade por
empregadores e operários. Estas três leis seriam reunidas no Código de Seguro Social,
que consolidou o primeiro sistema de cobertura de riscos sociais obrigatório. Estamos
perante a influência do Socialismo Catedrático, de que foram figuras proeminentes
Adolf Wagner (1835-1917), de quem já falámos, Albert Schaeffle (1831-1903) e Gustav
von Schmöller (1838-1917).

Nasceu, assim, o Estado-providência, na expressão de Émile Laurent, na sua obra


sobre o pauperismo («Le Pauperisme et les Associations de Prévoyance», de 1865),
também conhecido na expressão britânica como Welfare State (Estado de bem-estar),
como «Wohlfahrstaat», na designação dos socialistas catedráticos, ou apenas
«Sozialstaat» (Estado Social), que, sem deixar uma conceção liberal, assume
responsabilidades sociais na cobertura de riscos inerentes ao trabalho.
3/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

A Primeira Grande Guerra (1914-18), a pressão ideológica gerada pelo Revolução


Russa de 1917, a grande depressão induzida pelo crash de Outubro de 1929 na Bolsa
de Nova Iorque (NYSE) e o novo conflito mundial iniciado em Setembro de 1939
determinaram um claro reforço das responsabilidades do Estado Social. Daí que em
Inglaterra tenha sido nomeada no início dos anos quarenta uma comissão, presidida
pelo liberal Sir William Beveridge (1879-1963), antigo secretário de Beatrice (1858-
1943) e Sidney Webb (1859-1947) na Fabian Society, grupo de reflexão sobre os
direitos cívicos e laborais, na esfera do Trabalhismo, encarregada de apresentar as
bases de um sistema público de Segurança Social.

O relatório de 1942 («Social Insurance and Allied Services») lançou o moderno sistema
de “Segurança Social” – revolucionando ideias que tinham sido já defendidas por F. D.
Roosevelt (1882-1945) nos Estados Unidos em 1935. Há uma nova conceção do risco
social e do papel do Estado. A Segurança Social tem como objetivo libertar as pessoas
da necessidade, garantindo a segurança do rendimento. É considerado como risco
social, tudo o que ameace o rendimento regular dos indivíduos (doença, acidentes de
trabalho, morte, velhice, maternidade, desemprego). O regime de Segurança Social
passa a ter quatro características fundamentais:

(a) É um sistema generalizado/universal que cobre o conjunto da população


qualquer que seja o estatuto do emprego e do rendimento;
(b) É um sistema unificado e simples: uma só quotização cobre o conjunto dos
riscos que podem conduzir a uma privação de rendimento;
(c) É um sistema uniforme: as prestações são uniformes, qualquer que seja o
ganho dos interessados;
(d) É um sistema centralizado, pressupondo um único serviço público gestor do
sistema e de compensação dos riscos sociais.

Paralelamente, o Plano Beveridge previu a ajuda às famílias através de abonos, o


aperfeiçoamento dos cuidados de saúde pela criação do Sistema Nacional de Saúde
(NHS) e a organização do emprego e da formação profissional. Para o financiamento
do sistema de segurança social foram criadas contribuições sociais complementares
para cobrir os riscos da saúde e os encargos familiares.

À conceção tradicional do Estado liberal, com meras funções de polícia, contrapõe-se a


partir dos anos quarenta o Estado Social, dotado de um sistema universalista e de
4/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

repartição para cobertura dos riscos sociais. Já não se trata do sistema bismarckiano
de capitalização, de que apenas poderiam beneficiar aqueles que se inscrevessem e
tivessem contribuído. Agora pode haver o benefício pelos não contribuintes, desde
que fiquem em situação de provação. William Beveridge disse em 1944: “Proteger os
cidadãos contra o desemprego de massa deve ser função do Estado, tão
definitivamente como já é missão do Estado defender os cidadãos contra os ataques
de fora e contra os roubos e os ataques que sofrem de dentro da sociedade”.

A partir deste novo conceito de Estado Social, o pós-guerra caracterizou-se por um


grande esforço de reconstrução que exigiu do Estado um importante papel de
ordenador da economia, mas também de criador de emprego, através de grandes
obras públicas e da concretização na Europa dos programas de recuperação
económica. O “modelo social europeu” desenvolveu-se assim. Ora seguindo o modelo
anglo-saxónico, ora seguindo o modelo renano, as economias mistas da Europa
ocidental afirmaram-se através de um forte crescimento das despesas públicas, já por
nós analisadas, a propósito da chamadas “lei de Wagner”. Os “trinta gloriosos anos”,
na expressão de Jean Fourastié (1907-1990), de 1945 a 1975, representaram o sucesso
de um Estado social intervencionista com despesas públicas crescentes. No entanto,
nos últimos anos tem-se vindo a registar um movimento crítico em relação a esse
desmesurado crescimento das despesas públicas, sem um correspondente efeito
positivo na eficiência e na equidade. Daí que a “justiça distributiva” para ser eficaz
exija que o Estado se demarque a um tempo das conceções de Estado produtor e de
Estado mínimo.

O Estado tem de estar ciente também das “falhas de intervenção” e da necessidade


de não se substituir ao mercado. O Estado de Direito Social moderno deve, assim,
determinar critérios de legalidade e regularidade na atividade financeira e assumir
equilibradamente uma função redistributiva segundo critérios de justiça, visando
combater a exclusão. A crise do Estado Providência dos anos oitenta do século XX foi
uma crise de resultados, uma vez que o abrandamento económico, a recessão, a
inflação e o desemprego não foram debelados ou superados, mas também foi uma
crise de legitimidade, uma vez que se exigiram mais impostos aos contribuintes sem
uma correspondente melhoria da prestação de serviços públicos.

Sem entrar na discussão de como ter “melhor Estado”, a verdade é que todos aceitam
hoje que o aumento de impostos não pode continuar, devendo por isso haver uma
limitação das despesas públicas. O primado de uma sociedade de serviços e o
5/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

desenvolvimento de economias do conhecimento exigem um Estado social catalisador


de iniciativas e de energias, o que leva, cada vez mais, a falar de um Estado de cultura,
promotor da diversidade e das iniciativas da sociedade civil – onde a solidariedade
inter-geracional possa funcionar e onde as necessidades sejam satisfeitas com recursos
disponíveis e não apenas à custa de recursos futuros.

Os progressos da sociedade pós-industrial, na expressão de Daniel Bell (1919-2011), e


da sociedade da comunicação conduziram à falência dos sistemas coletivistas e
dirigistas. Daí o fim do mundo bipolar que caracterizou a segunda metade do século
XX. A crise do Estado-Providência obriga, entretanto, à procura de novas soluções que
permitam reduzir o peso do sector público na economia; complementar os modos de
financiamento assentes na capitalização e na repartição, de modo a garantir a
cobertura dos riscos sociais para todos – apesar da evolução demográfica, do aumento
da esperança de vida, do envelhecimento da população, da redução das taxas de
natalidade e do esgotamento dos recursos naturais; bem como assegurar equilíbrio
entre a riqueza criada, as receitas tributárias conseguidas e as despesas realizadas.

O fenómeno financeiro público tem, assim, de ser visto hoje no contexto das
economias mistas, nas quais mercado, regulação, estabilização e proteção social têm
de se complementar. Em lugar do dirigismo ou do planeamento imperativo, do Estado-
produtor ou do Estado-centralizado, impõe-se favorecer a subsidiariedade (decidir o
mais próximo possível do cidadão), a descentralização e a prestação de contas aos
contribuintes (segundo um critério de custo e benefício).

Assim, na dimensão jurídica, partimos do respeito pelo Estado de Direito e pelo


primado da lei, que obriga à salvaguarda dos direitos fundamentais e dos direitos
económicos e sociais, bem como à existência de mecanismos de responsabilidade
financeira quando haja infrações.

Na dimensão política, o princípio do consentimento dos cidadãos tem de ter


expressão efetiva – a começar na legitimidade da representação, nos parlamentos dos
Estados e nas instituições supranacionais.

Na dimensão económica, importa assegurar o equilíbrio entre recursos gerados e


disponíveis e as necessidades efetivas a satisfazer.

6/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

3.2. Decisão política e decisão financeira.

Já referimos que J. Buchanan e G. Tullock desenvolveram a noção de “escolha


pública”, aplicando à vida financeira e à decisão política os critérios baseados na
análise económica. Nesse sentido falam de “constituição”, não numa aceção jurídica,
mas como modo de intervenção dos agentes na vida económica.

Assim, formularam a existência de três tipos de “constituições”: a ação individual; a


ação cooperativa e a ação coletiva. Na ação individual prevalece uma vontade
individual. Na ação cooperativa importa a associação livre de um grupo que defende
os interesses comuns. Na ação coletiva é a sociedade politicamente organizada que
age, regulando o direito positivo o modo como as necessidades são satisfeitas.

A constituição para a escola da “escolha pública” é uma instituição que sanciona a


vontade do indivíduo, da comunidade ou na sociedade política. E o consenso
democrático pressupõe um conjunto de instituições e regras. Como defendeu K.
Wicksell, o consenso mínimo tem de existir e deve reportar-se: aos direitos individuais,
aos limites das áreas de ação individuais e coletivas, à estruturação do Estado para
provimento dos bens coletivos que o mercado não pode fornecer, bem como à
participação das populações nas decisões coletivas. Buchanan defende, por exemplo,
que a Constituição dos Estados Unidos da América consagra implicitamente um
princípio de equilíbrio orçamental, que limita drasticamente o crescimento do peso do
Estado na Economia.

Além da escola da “escolha pública” devemos citar outros contributos para a


compreensão do alcance financeiro das decisões políticas. Robert Nozick (1938-2002)
defende um ponto de vista, segundo o qual o Estado deve reduzir ao máximo a sua
intervenção, advogando uma posição que legitima o que designa como Estado
mínimo, na sua obra mais conhecida “Anarchy, State and Utopia” (1974), a partir de
uma lógica de compensação por contraponto à redistribuição, com o objetivo de
reduzir o peso das “agências de proteção dominante” para não reduzirem o espaço de
ação dos cidadãos. Se quanto à segurança a redistribuição faz sentido, já o mesmo não
deve acontecer quanto à proliferação de subsídios ou à progressividade dos impostos.
Já John Rawls (1921-2002) formula em “Uma Teoria da Justiça” (1971), a partir da
consideração de que há “um véu de ignorância” que impede aos sujeitos económicos
um conhecimento do modo como o processo de distribuição opera. Há, assim, dois
princípios de justiça como equidade: “cada pessoa terá um direito igual à liberdade de
7/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

base mais ampla desde que compatível com uma liberdade equivalente para os
outros”; mas “as desigualdades económicas e sociais serão reguladas de forma tal que
permitam o benefício de todos, mas de modo que prioritariamente se garanta a
satisfação das necessidades dos sujeitos em posição mais desfavorecida”.

Já Michael Walzer (1935), em “Spheres of Justice” (1983) adotou uma conceção de


justiça pluralista para uma igualdade complexa. Uma “sociedade humana é uma
comunidade distributiva” o que conduz a que as relações de poder e dominação se
refiram à mediação dos bens sociais. A justiça distributiva não opera da mesma
maneira relativamente aos bens transacionais e aos dons. Daí que a teoria da justiça
seja indissociável da análise da natureza e dos modos de distribuição dos bens no seio
de uma dada comunidade. E a verdade é que os bens sociais se distribuem
diferentemente nas sociedades humanas. E assim a cada bem social corresponde uma
esfera própria de distribuição, sendo a tirania o desejo de dominação universal fora da
sua ordem. Os diferentes modos de distribuição e a sua compreensão permitem que
haja freios e contrapesos que impedem a tirania. Uma igualdade simples é votada à
instabilidade e ao estatismo. Deste modo, a injustiça, por exemplo numa sociedade
capitalista, não está principalmente ligada à distribuição desigual de dinheiro e
recursos, mas ao facto de o dinheiro oferecer acesso a bens sociais (como a educação
e a saúde) que deveriam obedecer a outros princípios distributivos. Numa palavra, o
mérito, como critério distributivo, não pode ser substituído pela capacidade
económica. Não poderá usar-se, assim, um só critério, qualquer que seja, para repartir
o conjunto dos bens sociais – como o dinheiro, o amor, as responsabilidades públicas,
o reconhecimento etc.

Assim, e como vimos, as decisões financeiras são opções relativas à satisfação pública
de necessidades coletivas, com afetação de recursos e definição das respetivas fontes
e processos de financiamento – devendo ser apreciadas à luz de considerações de
eficiência e de equidade, ora numa lógica de não intervenção, como defende Nozick,
ora numa perspetiva de consentimento redutor dos encargos públicos (Buchanan,
Tullock), ora ainda segundo conceções de proteção social – de “justiça como
equidade” (justice as fairness) de John Rawls ou de “justiça complexa” de Michael
Walzer.

Podemos ainda estar diante da distinção clássica ente justiça comutativa e justiça
distributiva. No primeiro caso, funciona a teoria do benefício segundo a qual deve
pagar ao Estado quem mais dele precisa, numa lógica de utilizador pagador. No Estado
8/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

patrimonialista não eram os detentores da terra que pagavam impostos, sem prejuízo
de ter outras obrigações (como ajudar o rei na defesa e na guerra), mas sim aqueles
que beneficiavam dos serviços prestados pelo Estado (taxas e portagens). No segundo
caso funciona a teoria da repartição. No Estado moderno os sistemas fiscais tendem a
ser redistributivos, através da progressividade dos impostos que exige mais a quem
tem maiores rendimentos ou riqueza.

3.3. Estado e sociedade.

O Estado é o mais importante dos agentes económicos, mas coexiste com outros entes
de natureza privada ou social, que têm também relevância na satisfação das
necessidades coletivas.

Em Estados onde vigora um princípio de separação das Igrejas, como é o nosso caso ou
o da generalidade dos países europeus, não existem poderes financeiros atribuídos às
entidades de natureza religiosa, como muitas vezes aconteceu no passado e ocorre em
regimes teocráticos. O mesmo se diga relativamente a outras entidades de natureza
social que, não estando investidas de poderes de autoridade, não têm poderes
financeiros. A regra é, hoje, assim, a de atribuir poderes financeiros a entes dotados de
jus imperii. Mesmo assim, no caso das concessões do Estado não podemos esquecer
que podem dar lugar ao pagamento de taxas a pagar pelos utilizadores. Nesses casos,
porém, ainda que cobradas pelos concessionários aos utilizadores, apenas podem
existir uma vez que há um contrato de Direito público que o permite.

Ainda se deve referir que hoje na União Europeia existe já um embrião de fenómeno
financeiro público comunitário, sobretudo se pensarmos no financiamento da antiga
Comunidade Europeia do Carvão e do Aço através de um tributo aplicável diretamente
aos produtores, bem como os recursos financeiros baseados no Imposto Sobre o Valor
Acrescentado cobrado em cada Estado-membro. O fenómeno financeiro público tem
expressão supranacional sempre que se exercer um poder tributário próprio resultante
da partilha de soberanias com expressão própria na União Europeia.

9/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

3.4. Fontes de Direito Financeiro.

De entre as fontes de Direito tradicionais, a lei é a fonte fundamental do Direito


Financeiro. A partir desta noção muito ampla de lei, temos de começar por referir a
Constituição da República, numa aceção formal. E aí temos a referir, além dos artigos
gerais, como os artigos 2º (Estado de direito democrático) e 13º (Principio da
igualdade), os artigos 105º (Orçamento de Estado), 106º (Elaboração do Orçamento) e
107º (Fiscalização da execução orçamental); bem como os artigos 103º (Sistema fiscal)
e 104º (Impostos), que tratam especificamente das questões tributárias. Os artigos
161º, alíneas g) e h) (competência política e legislativa da Assembleia da República
relativamente à Lei do Orçamento e à autorização para contrair empréstimos ou
garantias), 162º alínea d) (competência parlamentar quanto à tomada das contas);
164º alíneas r) e t) (reserva absoluta de competência legislativa quanto ao regime geral
de elaboração e organização dos orçamentos de Estado, das regiões autónomas e das
autarquias locais e regime de finanças das regiões autónomas); 165º alíneas i) e q)
(reserva relativa de competência legislativa quanto a impostos, sistema fiscal e regime
geral de taxas, e regime das finanças locais); 214º (Tribunal de Contas); 227º i), j) e r)
(Poderes das regiões autónomas quanto ao exercício do poder tributário próprio e
disposição de recursos financeiros); 232º (competência da Assembleia Legislativa da
região autónoma); 238º (Património e finanças das autarquias locais) e 254º
(Participação nas receitas dos impostos directos). Refira-se ainda o artigo 115º, 4,
alínea b) (exclusão do âmbito do referendo de questões e actos de conteúdo
orçamental, tributário ou financeiro).

No tocante às leis, refira-se que o regime de finanças das regiões autónomas reveste a
forma de lei orgânica (Artigos 165º, 2; 168º, 5 e 136º, 3). A lei de enquadramento do
Orçamento de Estado reveste um valor reforçado, devendo ser respeitada pelas leis
que sejam aprovadas no seu âmbito, prevalecendo hierarquicamente. A violação da lei
de enquadramento poderá dar lugar a uma inconstitucionalidade material, se se
entender que o legislador ordinário não tinha liberdade para adotar caminho
diferente, na sequência do disposto na lei fundamental (v.g. quanto a princípios e
regras orçamentais). O Orçamento de Estado é aprovado por lei, num sistema monista
parlamentar, que tem uma natureza especial, como veremos, de lei-plano, com
vigência anual, que se traduz numa autorização política, jurídica e económica ao
governo, para cobrar receitas e realizar despesas, concebendo e realizando uma
política de finanças públicas.
10/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

A lei e o decreto-lei são as principais fontes de Direito Financeiro. A Constituição prevê


que seja por lei formal que se adotem providências gerais e abstratas em matéria de:
criação de impostos, definição do sistema fiscal, autorização de empréstimos e outras
operações de crédito que não sejam de dívida flutuante. No caso do Orçamento e da
autorização de empréstimos, a iniciativa do Parlamento é exclusiva e a reserva
absoluta, não podendo haver delegações ao Governo. Infelizmente, a tendência tem
sido para reduzir ao mínimo estas competências parlamentares, amiúde
desrespeitadas. O decreto-lei, em domínios onde não haja reserva de competência
parlamentar, é fonte de direito normal, plena e concorrente com a lei. O decreto
legislativo regional é um ato legislativo, podendo reger matéria financeira (artigo 112º,
n.º 4).

No âmbito definido por leis e decretos-leis, temos os regulamentos financeiros. Estão


neste caso, com graus diferentes de eficácia: os decretos regulamentares, as
resoluções de Conselho de Ministros, portarias, despachos ministeriais, despachos e
instruções de responsáveis administrativos e deliberações de entidades autónomas e
órgãos locais que tenham carácter genérico.

Quanto à jurisprudência, ainda que se discuta a inclusão dos atos uniformizadores


entre os atos normativos, uma vez que não vêm referidos no artigo 112º da
Constituição, a verdade é que os mesmos assumem indiscutível importância, com
consequências práticas na vida jurídica, pela relevância na esfera jurisdicional – quer se
trate de decisões do Supremo Tribunal de Justiça, do Tribunal Constitucional, do
Supremo Tribunal Administrativo ou do Tribunal de Contas…

O regime do artigo 8º da CRP relativo ao Direito internacional, segundo o qual as


normas e os princípios de direito internacional geral e comum fazem parte do direito
português, tem importância sobretudo em domínios como tratados e acordos em
matéria de dupla tributação ou de desarmamento aduaneiro. No entanto, a matéria
financeira pública é primacialmente nacional, ainda que, cada vez mais, haja uma
dimensão internacional ou supranacional a considerar. A União Económica e
Monetária, prevista a partir do Tratado de Maastricht na União Europeia, obriga à
consideração de uma sobreposição da soberania financeira e fiscal nacional e de uma
partilha europeia de soberanias.

11/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

A doutrina e o costume não são entre nós fontes de direito; e a interpretação das
normas de Direito Financeiro e a aplicação das leis no tempo não revestem regras
especiais diferentes das que vigoram na nossa ordem jurídica em geral (artigos 9º a
13º do Código Civil).

3.5. Autonomia e natureza do Direito Financeiro.

Tendo em consideração os critérios objetivo – “conjunto de normas, relações e


instituições distintas das demais e dotadas de um espírito e de um regime comuns e
próprios” (A. Sousa Franco) – e subjetivo – disciplina jurídica que tem esses elementos
como objeto – há muito que o Direito Financeiro ganhou autonomia na ciência
jurídica. Com efeito, o Estado de direito moderno foi-se construindo graças à
afirmação das instituições deste ramo de direito, onde se relacionam os regimes das
receitas públicas, das despesas públicas e da autorização orçamental, na tripla
dimensão jurídica, política e económica. Temos uma forma específica de regulação
social (sem a qual não se reconhece a especificidade da satisfação das necessidades
públicas), um regime jurídico autónomo e coerente que permite o exercício de uma
função social complexa, instituições jurídicas próprias e uma disciplina jurídica
autonomizada.

Estamos perante um muito antigo ramo de Direito, produto do Estado liberal saído da
tripla influência inglesa, norte-americana e francesa. Nele encontramos o
consentimento dos contribuintes, a separação e interdependência de poderes, a
distinção entre poderes de autorização orçamental e de execução orçamental, a
autorização para cobrança de receitas e realização de despesas, a legalidade e o
cabimento orçamentais, o regime tributário, a autorização do crédito público, o
exercício de formas específicas de responsabilidade financeira dos agentes
responsáveis pelos dinheiros e valores públicos correspondentes à jurisdição própria
do Tribunal de Contas. E se virmos bem temos permanentemente uma arbitragem
entre a atividade do Estado e a dos cidadãos, enquanto contribuintes e enquanto
beneficiários dos serviços públicos.

Os poderes financeiros são diversos dos administrativos. Antes de mais, a


Administração pública não pode, por si só, pôr em prática as opções orçamentais de
receitas e despesas – que dependem de consentimento parlamentar. Não existe, pois,
o privilégio de execução prévia e há o recurso para os tribunais fiscais ou financeiros. E
12/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

se os poderes financeiros têm especificidade própria também se distinguem da


aplicação do Direito Civil ou do Direito Comercial – uma vez que no Direito Financeiro
estamos perante poderes de autoridade do Estado (v.g. no regime da dívida pública).

Em suma, no Direito Financeiro estamos perante um ramo de Direito Público, em que


o interesse público está presente, ainda que este deva ser sempre ponderado em
função da proteção da esfera privada dos cidadãos (contribuintes, credores do Estado,
beneficiários dos serviços públicos).

Por outro lado, estamos diante de instituições próprias (imposto, orçamento, crédito
público, tesouro) e vida jurídica autónoma (administração financeira, Tribunal de
Contas). O Direito Fiscal é um sub-ramo do Direito Financeiro, com as mesmas
características deste, mas que se autonomizou em razão da grande relevância social da
tributação – considerando os direitos, deveres e interesses dos contribuintes.

O Direito Constitucional está paredes-meias com o Direito Financeiro, sobretudo no


tocante à Constituição Financeira e à Constituição Tributária, devendo referir-se que a
génese das mais importantes soluções do constitucionalismo moderno se encontra no
Direito Financeiro (separação e interdependência de poderes). O Direito
Administrativo tem também relevância nesta área quanto à organização e
funcionamento das instituições administrativas fazendárias. Não podemos esquecer,
assim, que a atividade financeira pública tem componentes políticas e administrativas
que não podem ser menosprezadas.

Quanto ao Direito Privado, refira-se que as relações com o Direito Financeiro


assumem cada vez maior importância, em razão do que tem sido designado como a
“fuga para o Direito Privado” (Prof. Maria João Estorninho) nas atividades da
Administração pública. Daí que a jurisdição do Tribunal de Contas tenha sido ajustada
na reforma de 2006 (completada em 2011) considerando essa realidade – passando a
aplicar-se um critério objetivo para controlo dos dinheiros e valores públicos. Assim,
ainda que o regime jurídico de uma determinada entidade que movimente dinheiros
públicos seja de direito privado o que importa é o facto de o dinheiro proveniente dos
contribuintes estar sujeito a um regime de responsabilidade financeira de Direito
Público. Independentemente de a entidade ou de a operação estar sujeita ao Direito
Civil ou ao Direito Comercial, o que importa é a natureza pública dos recursos,
provenientes dos contribuintes.

13/14
UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

BIBLIOGRAFIA

A.L. de SOUSA FRANCO Finanças Públicas e Direito Financeiro, I, pp. 74-96.

GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS ET ALL., Lei de Enquadramento Orçamental


Comentada, Almedina, 2007.

MARIA D’OLIVEIRA MARTINS, Lições de Finanças Públicas e Direito Financeiro,


Almedina, 2013.

J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Lições de Finanças Públicas, 5ª ed. refundida e atualizada,


pp.260-291, 399-409

PAULO TRIGO PEREIRA ET ALL., Economia e Finanças Públicas, 2ª edição, pp.21 e ss.

14/14

Você também pode gostar