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JUSTIÇA RESTAURATIVA – HOWARD ZEHR

São Paulo: Palas Athena, 2012

PREFÁCIO

Primeiro teste ocorreria em 2002 numa audiência de um roubo a mão


armada, onde uma senhora foi chamada para fazer o reconhecimento de
dois réus......Quem ali se prostrava e pedia perdão de joelhos não era mais
o ladrão, o réu, o assaltante, o menor infrator. Era de novo aquele menino
vizinho que a vítima- como ele agora com seu neto-há 17 anos segurara
em seu colo. E desde esse nível incomensuravelmente profundo de resgate
e conexão, um novo futuro se abriria para todos. Depois de todo o
ocorrido, aqueles dois com certeza, não as assaltariam outra vez. Ficara
evidente que cada um desses jovens – agora confrontados com sua
própria humanidade através do espelho do reconhecimento do sofrimento
e da humanidade das vítimas, e dos próprios familiares integrados ao
encontro – descera até o inferno do crime, mas para reencontrar a raiz da
própria identidade e para dali ressurgir firmado noutro propósito, noutra
perspectiva de vida. Essa cena do pedido de perdão resume uma vivência
cuja intensidade e repercussão em termos de elaboração psíquica não
poderia ser proporcionada por qualquer prisão – nem, talvez, psicanálise –
do mundo.

Vale ressaltar que esse testemunho de resgate das relações de


humanidade e proximidade, em que um conflito grave, ao ponto de
tipificar um crime, acaba dando lugar a uma experiência de
transcendência e enlevo, não faz parte da literatura internacional e sim no
Brasil (Porto Alegre).

Um monitoramento feito pela Faculdade de Serviço Social da PUCRS


acompanhou 380 casos atendidos no Juizado entre 2005 e 2007.
Entrevistando os participantes, constatou-se que 95% das vítimas e 90%
dos ofensores saíram satisfeitos de sua experiência de contato com a
justiça após participarem de procedimentos restaurativos. (Os índices
internacionais de satisfação no contato com a justiça criminal giram em
torno de 12 a 15% positivos). (pesquisa www.justiça21.org.br).

Essa expansão está contemplada através da Lei 12.594 de 18 de janeiro de


2012 que regulamentou o SINASE-Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo.

A JR coloca em xeque a improdutividade dos mais arraigados pressupostos


implícitos do sistema penal tradicional, que podem ser resumidos nos
conceitos estruturantes de culpa, perseguição, imposição, castigo e
coerção. O simples fato de operar a justiça penal tentando substituir esses
conceitos, respectivamente, pelos de responsabilidade, encontro, diálogo,
reparação do dano e coesão social, mesmo que complexo e trabalhoso, e
talvez por ora somente possível de forma tópica e ocasional, já é por si só
atitude capaz “ o “como” (tal qual possivelmente ninguém o faça), mostra
muito claramente “em que” e “por que” uma abordagem restaurativa dos
conflitos e do crime pode fazer toda a diferença nessa encruzilhada da
história em que a violência e a insegurança transbordam e nos desafiam,
transfiguradas em esfinges pós-modernas.

CAPÍTULO 1 – VISÃO GERAL

1-Enquanto sociedade, como devemos reagir às ofensas ?

2-Quando acontece um crime ou quando é cometida uma injustiça, o que


precisa ser feito?

3-O que pede nosso senso de justiça?

Quer estejamos preocupados com crimes ou ofensas, nossa reflexão sobre


tais questões foi profundamente moldada pelo sistema jurídico ocidental –
não apenas no Ocidente, mas também em grande parte do outro lado do
mundo.

O sistema jurídico ocidental ou, especificamente a justiça criminal, tem


importantes qualidades. No entanto, vem crescendo o reconhecimento de
suas limitações e carências. Não raro, vítimas, ofensores e membros da
comunidade sentem que o sistema deixa de atender adequadamente às
suas necessidades. Muitos profissionais da justiça sentem que o processo
judicial aprofunda as chagas e os conflitos sociais ao invés de contribuir
para seu saneamento e pacificação.

A partir de 1989, a Nova Zelândia fez a Justiça Restaurativa o centro de


todo o seu sistema penal para a infância e a juventude.

A JR começou como um esforço para lidar com assaltos e outros crimes


patrimoniais que é visto em muitos casos como ofensas menores. Hoje,
contudo, as abordagens restaurativas estão disponíveis em algumas
comunidades para a aplicação às modalidades mais violentas de crime:
morte causada por embriaguez ao volante, agressão, estupro e mesmo
homicídio. (ocorre na África do Sul).

Tais abordagens estão chegando às escolas, locais de trabalho e


instituições religiosas. Outros veem as “conferências de grupos familiares”
(Nova Zelândia e Austrália) como caminho para construir e sanar
comunidades.

Embora o termo JR abarque uma ampla gama de programas e práticas, no


seu cerne ela é um conjunto de princípios, uma filosofia, uma série
alternativa de perguntas paradigmáticas. Em última análise, a JR oferece
uma estrutura alternativa para pensar as ofensas.

1-Será que os programas da JR oferecem apoio suficiente para que os


ofensores cumpram suas obrigações e mudem seus padrões de
comportamento?

2-Será que de fato tratam os males que levaram os ofensores a se


tornarem quem são?

3-Tais programas não estarão se tornando somente uma outra forma de


punir os ofensores, sob outro pretexto ? E a comunidade como um todo?
Estará suficientemente motivada para envolver-se e assumir suas
obrigações em relação às vítimas, aos ofensores e a seus membros em
geral?

JUSTIÇA RESTAURATIVA NÃO É...

1-A JR não tem como objeto principal o perdão ou a reconciliação: não


estimula ou força a vítima perdoar ou se reconciliar com o ofensor,
embora ofereça um contexto que isso venha a acontecer. Contudo, esta é
uma escolha que fica totalmente a cargo dos participantes.

2-A JR não é mediação: para participar de um encontro de JR, na maioria


dos casos o ofensor deve admitir algum grau de responsabilidade pela
ofensa, e um elemento importante de tais programas é que se reconheça
e se dê nome a tal ofensa. O termo deve ser substituído por “encontro” ou
“diálogo”.

3-A JR não tem por objetivo principal reduzir a reincidência ou as ofensas


em série: A diminuição da criminalidade é um subproduto da JR, que deve
ser administrada, em primeiro lugar, pelo fato de ser a coisa certa a fazer.
As necessidades das vítimas precisam ser atendidas, os ofensores devem
ser estimulados a assumir responsabilidade por seus atos, e aqueles que
foram afetados por seus atos devem estar envolvidos no processo.

4-A JR não é um programa ou projeto específico: Ainda estamos em fase


de aprendizado nesse campo. De modo geral, os modelos estão em
alguma medida atrelados à cultura. Portanto, a JR deve ser construída de
baixo para cima, pelas comunidades, através do diálogo sobre as
necessidades e recursos, aplicando os princípios às situações que lhes são
próprias.

5-A JR não foi concebida para ser aplicada a ofensas comparativamente


menores ou ofensores primários: A experiência tem demonstrado que a
JR pode produzir maior impacto nos casos de crimes mais graves.

6-A JR não é uma panaceia nem necessariamente um substituto para o


processo penal: simplesmente porque, não é de modo algum, resposta
para todas as situações.

7-A JR não é necessariamente uma alternativa ao aprisionamento: as


abordagens restaurativas podem também ser usadas em conjunto com as
sentenças de detenção, ou paralelo a estas. Elas não são necessariamente
uma alternativa à privação de liberdade.

8-A JR não se contrapõe necessariamente à justiça retributiva: (páginas


71-72).
A JUSTIÇA RESTAURATIVA É FOCADA EM NECESSIDADE E PAPÉIS

O movimento da JR começou como um esforço de repensar as


necessidades que o crime gera e os papéis inerentes ao ato lesivo. Os
defensores da JR examinaram as necessidades que não estavam sendo
atendidas pelo processo legal corrente.

A JR amplia o círculo de interessados no processo (aqueles que foram


afetados ou têm uma posição em relação ao evento ou ao caso) para além
do Estado e do ofensor, incluindo também as vítimas e os membros da
comunidade.

VÍTIMAS: A JR se preocupa em especial com as necessidades das vítimas


de atos ilícitos, aquelas necessidades que não estão sendo atendidas pelo
sistema de justiça criminal. Não raro as vítimas se sentem ignoradas,
negligenciadas ou até agredidas pelo processo penal. Isso acontece em
parte devido à definição jurídica do crime que não inclui a vítima. O crime
é definido como ato cometido contra o Estado, e por isso o Estado toma o
lugar da vítima no processo. No entanto, em geral as vítimas têm uma
série de necessidades a serem atendidas pelo processo judicial.

Devido à definição jurídica de crime e à natureza do processo penal,


quatro tipos de necessidades parecem estar sendo especialmente
negligenciadas:

1-Informação. A vítima precisa de respostas às suas dúvidas sobre o ato


lesivo – por que aconteceu e o que aconteceu depois? Precisa de
informações reais, não especulações ou informações oficiais vindas de um
julgamento ou dos autos do processo. Conseguir informações reais em
geral requer que tenhamos acesso direto ou indireto ao ofensor que
detém a informação.

2-Falar a verdade. Na maioria dos casos é importante que a vítima reconte


suas história várias vezes. Há bons motivos terapêuticos para tanto. Parte
do trauma acarretado pelo crime advém da forma como ele perturba
nossa visão sobre nós mesmos e o mundo, nossa história de vida. Com
frequência é importante para a vítima contar a história àqueles que
causaram o dano, fazendo-os entender o impacto de suas ações.
3-Empoderamento. Em geral as vítimas sentem que a ofensa sofrida
privou-lhes do controle – controle sobre sua propriedade, seu corpo, suas
emoções, seus sonhos. Envolver-se como o processo judicial e suas várias
fases pode ser uma forma significativa de devolver um senso de poder às
vítimas.

4-Restituição patrimonial ou vindicação. Quando o ofensor faz um esforço


para corrigir o dano cometido, mesmo que parcialmente, isto é uma forma
de dizer “estou assumindo a responsabilidade, você não é culpado/a pelo
que eu fiz. De fato, a restituição de bens é um sintoma ou sinal que
representa uma necessidade mais básica – a de vindicação. A restituição
de bens é uma dentre muitas outras maneiras de atender a essa
necessidade de igualar o placar. Um pedido de desculpas também pode
contribuir para satisfazer essa necessidade de ter reconhecido o mal que
nos foi infligido.

A teoria e a prática da Justiça Restaurativa surgiram e foram fortemente


moldadas pelo esforço de levar a sério as necessidades das vítimas.

Ofensores. O segundo maior foco de preocupação que motiva a Justiça


Restaurativa é a responsabilidade do ofensor.

O sistema atual dificilmente estimula o ofensor a compreender as


consequências de seus atos ou desenvolver empatia em relação à vítima.
Pelo contrário, o jogo adversário exige que o ofensor defenda os próprios
interesses a qualquer custo. O ofensor é desestimulado a reconhecer sua
responsabilidade e tem poucas oportunidades de agir de modo
responsável concretamente. Assim, infelizmente, o senso de alienação
social do ofensor só aumenta ao passar pelo processo penal e pela
experiência prisional. Por vários motivos esse processo tende a
desestimular a responsabilidade e a empatia por parte do ofensor.

A JR tem promovido a conscientização sobre os imites e subprodutos


negativos da punição. Mais do que isto, vem sustentando que a punição
não constitui real responsabilização. A verdadeira responsabilidade
consiste em olhar de frente para os atos que praticamos, significa
estimular o ofensor a compreender o impacto de seu comportamento, os
danos que causou- e instá-lo a adotar medidas para corrigir tudo o que for
possível. O autor sustenta que este tipo de responsabilidade é melhor para
as vítimas, para a sociedade e para os ofensores.

Além da sua responsabilidade para com as vítimas e a comunidade, o


ofensor tem outras necessidades. Se queremos que assuma suas
responsabilidades, mude de comportamento, torne-se um membro que
contribua para a comunidade, devemos também atender às suas
necessidades.

OS OFENSORES PRECISAM QUE A JUSTIÇA LHES OFEREÇA:

1-Responsabilização que:

a-Cuide dos danos resultantes

b-Estimule a empatia e a responsabilidade e

c-Transforme a vergonha.

2-Estímulo para a experiência de transformação pessoal, inclusive:

a-Cura dos males que contribuíram para o comportamento lesivo

b-Oportunidades de tratamento para dependências químicas e/ou outros


problemas.

c-Aprimoramento de competências pessoais.

d-Estímulo e apoio para reintegração à comunidade

e-Para alguns, detenção, ao menos temporária.

Comunidade

Os membros da comunidade têm necessidades advindas do crime, e


também papéis a desempenhar. “quando o Estado assume o lugar do
cidadão, isso termina por enfraquecer nosso sentido comunitário. As
comunidades sofrem o impacto do crime e, em muitos casos, deveriam ser
consideradas partes interessadas, pois são vítimas secundárias. Os
membros da comunidade também têm importantes papéis a
desempenhar e talvez, ainda, responsabilidades em relação às vítimas, aos
ofensores e a si mesmos.
Quando a comunidade se envolve com o processo, poderá iniciar um
fórum para discutir essas questões, atividades que vai, ao mesmo tempo,
fortalecer a própria comunidade.

As comunidades precisam que a justiça ofereça:

1-Atenção às suas preocupações enquanto vítimas.


2-Oportunidades para construir um senso comunitário e de
responsabilidade mútua.
3-Estímulo para assumir suas obrigações em favor do bem-estar de seus
membros, inclusive vítimas e ofensores, e fomento das condições que
promovam convívio saudável.
Em resumo, os serviços do sistema de justiça criminal ou penal estão
centrados nos ofensores e na aplicação do castigo – e garantem que eles
recebem o que merecem. A JR está mais centrada nas necessidades da
vítima, das comunidades e dos ofensores.

PRINCÍPIOS RESTAURATIVOS
A JR parte de uma concepção muito antiga de delito, baseada no senso
comum. Mesmo que ela seja expressa de modo distinto em culturas
diferentes, esta abordagem provavelmente é comum a todas as
sociedades tradicionais. Para a maioria de nós, com raízes europeias
constitui o modo como muitos de nossos ancestrais (mesmo pais)
compreendiam o comportamento socialmente nocivo:
a-O crime é uma violação de pessoas e relacionamentos interpessoais.
b-As violações acarretam obrigações.
c-A principal obrigação é corrigir o mal praticado.
Na vida social estamos todos interligados formando uma teia de
relacionamentos. Dentro dessa cosmovisão, o crime representa uma chaga
na comunidade, um rompimento da teia de relacionamentos. Significa que
vínculos foram desfeitos. E tais situações são tanto a causa como o efeito
do crime. Um mal como crime provoca ondas de repercussão e acaba por
perturbar a teia como um todo. Além dos mais, o comportamento
socialmente nocivo é via de regras, sintoma de que algo está fora de
equilíbrio nessa vida.
Relações implicam em obrigações e responsabilidades mútuas. Assim, não
é surpresa que essa visão do comportamento socialmente nocivo enfatize
a importância de corrigir, consertar, endireitar as coisas.
Como fica esta visão do crime se comparada àquela do sistema jurídico?
DUAS VISÕES DIFERENTES (ver quadro da página 33-cópia e não legível)

TRÊS PILARES DA JUSTIÇA RESTAURATIVA


1º Dano cometido: nosso sistema jurídico tem a visão que o Estado é a
vítima. Preocupados em dar aos ofensores o que eles merecem, o sistema
jurídico considera as vítimas na melhor das hipóteses, como preocupação
secundária do processo penal. Mas na JR, ao colocar o foco no dano, surge
uma preocupação inerente com as necessidades da vítima e o seu papel
no processo.
Portanto, para a JR o “fazer justiça” começa na preocupação com a vítima
e suas necessidades. Ela procura, tanto quanto possível, reparar o dano –
concreta e simbolicamente. Essa abordagem centrada na vítima requer
que o processo judicial esteja preocupado em atender as necessidades da
vítima, mesmo quando o ofensor não foi identificado ou detido.
A JR se preocupa também com o dano vivenciado pelo ofensor e pela
comunidade, levando a contemplar as causas que deram origem ao crime
e cujo objetivo é oferecer uma experiência reparadora para todos os
envolvidos.
2º - Obrigações.
Por isso, a JR enfatiza a imputação e a responsabilização do ofensor.
No âmbito legal, responsabilizar significa assegurar-se de que o ofensor
seja punido. No entanto, se o crime for visto essencialmente como um
dano, a responsabilização significa que o ofensor deve ser estimulado a
compreender o dano que causou. Os ofensores devem começar a
entender as consequências de seu comportamento. Além disso, devem
assumir a responsabilidade de corrigir a situação na medida do possível,
tanto concreta como simbolicamente.
3º Promove engajamento ou participação.
As pessoas envolvidas precisam receber informações uns sobre os outros e
envolver-se na decisão do que é necessário para que faça justiça em cada
caso específico.
Em alguns casos pode ocorrer a diálogo direto nos encontros entre vítima
e ofensor e em outras através de intermediários ou representantes ou
ainda outras formas de envolvimento.
Resumo: A JR requer, no mínimo que cuidemos dos danos sofridos pela
vítima e suas necessidades; que seja atribuída ao ofensor a
responsabilidade de corrigir aqueles danos e que vítimas, ofensores e a
comunidade sejam envolvidos nesse processo.

O “QUEM” E O “COMO” SÃO IMPORTANTES


O Processo – “o como”
O processo penal é conduzido por profissionais do judiciário em diversas
instâncias alheias ao conflito básico. As vítimas, os membros da
comunidade e mesmo os ofensores raramente participam do processo de
modo substancial.
A JR reconhece o papel dos profissionais envolvidos e do Estado. No
entanto, destaca a importância da participação daqueles diretamente
envolvidos, sofreram o impacto.
O encontro permite que a vítima e ofensor ganhem feições, façam
perguntas um ao outro diretamente, e negociem um modo de corrigir a
situação. Nessa ocasião, o ofensor ouvirá e começará a compreender os
efeitos de seu comportamento e descobrir que um diálogo dessa natureza
constitui vivência forte e positiva.
Um encontro –seja direto ou indireto – nem sempre é possível e, em
alguns casos, pode ser indesejável. Os encontros indiretos, razoavelmente
eficazes, sem serem ofensivos, poderão tomar a forma
de uma carta, vídeo gravado, ou ser realizados através de um
representante da vítima.

A JUSTIÇA RESTAURATIVA VISA ENDIREITAR AS COISAS


Tratar o ato lesivo
O ofensor deve na medida do possível tomar medidas concretas para
reparar o dano causado à vítima (e possivelmente à comunidade afetada).
Em casos de assassinato, obviamente, o dano não pode ser reparado, no
entanto, passos simbólicos (como o reconhecimento da responsabilidade
ou a indenização) poderão ajudar as vítimas, e são responsabilidade do
ofensor.
“Endireitar” sugere reparação, restauração ou recuperação. Embora,
quando um ato lesivo grave foi cometido, não há como reparar o mal ou
voltar atrás no tempo.
É possível que a vítima tenha mais probabilidade de restabelecimento se o
ofensor se esforçar para endireitar as coisas – seja de fato ou
simbólicamente. Muitas vítimas se mostram ambivalente quanto ao termo
“cura”, em virtude de sua conotação de conclusão ou término. Este é um
percurso que somente a vítima pode trilhar – ninguém pode fazê-lo em
seu lugar. Mas um empenho para de alguma forma corrigir o mal poderá
ser um auxílio ao longo do restabelecimento, mesmo que jamais se chegue
à restauração plena do estado anterior.
A obrigação de consertar as coisas é, em primeiro lugar, do ofensor, mas a
comunidade pode ser responsável também não só pela vítima, mas
inclusive, possivelmente, pelo ofensor. Para que este tenha sucesso no
cumprimento de suas obrigações, poderá precisar de apoio e estímulo da
comunidade. Além disso, esta tem responsabilidade pelas situações que
ocasionaram ou incentivaram o comportamento criminoso. Idealmente, os
processos de JR podem servir como catalisador ou fórum para examinar e
definir, tais necessidades, responsabilidades e expectativas.

Tratar as causas
Além dos danos também é preciso abordar as causas do crime. A maior
parte das vítimas deseja exatamente isso. Elas procuram saber que
medidas estão sendo tomadas para reduzir o perigo para si e para os
outros.
Na Nova Zelândia, onde a JR é a norma, espera-se que os participantes
desenvolvam um plano consensual que todos apoiarão e que contenha
elementos de reparação e prevenção. O plano precisa dar contas das
necessidades das vítimas e das obrigações do ofensor em relação ao
atendimento dessas necessidades. Mas o plano deve também contemplar
medidas necessárias para modificar o comportamento do ofensor.
O ofensor tem o ônus de tratar as causas de seu comportamento, mas em
geral não é capaz de fazê-lo sem ajuda. Não raro outros, além, do ofensor,
são também responsáveis: as famílias, a comunidade ampliada e a
sociedade como um todo.
O ofensor como vítima
No processo é preciso examinar os danos que o próprio ofensor sofreu.
Pesquisas mostram que muitos ofensores foram, eles mesmos, vítimas de
traumas significativos. Muitos deles se percebem como vítimas. Os males
sofridos ou percebidos podem ter contribuído de modo importante para
dar origem ao crime. Conforme o psiquiatra Dr. James Gilligan, professor
do Harvard e pesquisador do sistema prisional, sustenta que toda
violência é um esforço para conseguir justiça ou desfazer uma injustiça.
Em outras palavras, muitos crimes podem surgir como resposta a uma
sensação de vitimização e esforço para reverter essa situação. Com isso,
via de regra a punição reforça o sentido de vitimização já existente.
Ocasionalmente os ofensores ficam satisfeitos quando sua percepção de
serem vítimas é reconhecido. Outras vezes sua percepção precisa ser
questionada. Em certas ocasiões o dano perpetrado deve ser reparado
antes que se possa esperar do ofensor uma mudança de comportamento.
Estamos diante de um assunto controvertido e é fácil entender porque isto
constitui algo especialmente difícil para muitas vítimas. Com frequência
esses argumentos racionais soam como desculpas. Além do mais, por que
algumas pessoas vitimizadas se voltam para o crime e outras não? Estou
convencido de que qualquer tentativa de mitigar as causas do crime
exigirá de nós uma análise da vivência de vitimização dos ofensores.
UMA LENTE RESTAURATIVA
A JR oferece uma estrutura alternativa para pensar o crime e a justiça.
Princípios
A lente ou filosofia restaurativa traz cinco princípios ou ações-chave:
1-Focar os danos e consequentes necessidades da vítima e também da
comunidade e do ofensor.
2-Tratar das obrigações que resultam daqueles danos (as obrigações dos
ofensores, bem como da comunidade e da sociedade).
3-Utilizar processos inclusivos, cooperativos.
4-Envolver a todos que tenham legítimo interesse na situação, incluindo
vítimas, ofensores, membros da comunidade e da sociedade.
5-Corrigir os males.
(conforme círculo na página 45 e “flor” na página 46-cópia ilegível).

Valores
Os princípios da JR são úteis apenas se estiverem enraizados em certos
valores subjacentes.
Para que funcionem adequadamente, os princípios da JR devem ser
cercados por um cinturão de valores.
Para que floresçam, os princípios que constituem a flor da JR devem estar
enraizados em certos valores.
Subjacente à JR está a visão de interconexão. Estamos todos ligados uns
aos outros e ao mundo em geral através de uma teia de relacionamentos.
Quando essa teia se rompe, todos são afetados.
O autor elege o respeito como valor básico e de suprema importância. O
respeito nos remete à nossa interconexão, mas também a nossas
diferenças. O respeito exige que tenhamos uma preocupação equilibrada
com todas as partes envolvidas. Se praticarmos a justiça como forma de
respeito estaremos sempre fazendo a JR.
DEFININDO JUSTIÇA RESTAURATIVA
JR é um processo para envolver, tanto quanto possível, todos àqueles
que têm interesse em determinada ofensa, num processo que
coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigações
decorrentes da ofensa, a fim de promover o restabelecimento das
pessoas e endireitar as coisas, na medida do possível.

AS METAS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA


(Manual Restorative Justice: A vision for Healing and Change Susan Sharp)

a-Colocar as decisões-chaves nas mãos daqueles que foram mais afetados


pelo crime.
b-Fazer da justiça um processo mais curativo e, idealmente mais
transformador, e
c-reduzir a probabilidade de futuras ofensas.

Para atingir estas metas é necessário


a-Que as vítimas estejam envolvidas no processo e saiam dele satisfeitas.
b-Que os ofensores compreendam como suas funções afetaram outras
pessoas e assumam a responsabilidade por tais ações.
c-Que o resultado final do processo ajude a reparar os danos e trate das
razões que levaram às ofensas(planos especiais que atendam às
necessidades específicas de vítima e ofensor), e
d-Que a vítima e ofensor cheguem a uma sensação de “conclusão” ou
“resolução” e sejam reintegrados à comunidade.

PERGUNTAS BALIZADORAS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA


1-Quem sofreu o dano?
2-Quais são suas necessidades?
3-De quem é a obrigação de atendê-las?
4-Quem são os legítimos interessados no caso?
5-Qual o processo adequado para envolver os interessados num esforço
para consertar a situação?
Essas perguntas balizadoras estão levando alguns advogados de defesa dos
Estados Unidos a repensar seus papéis e obrigações nos casos de pena de
morte.
INDICADORES DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
1-Foco nos danos causados pelo crime ao invés de nas leis que foram
infringidas.
2-Ter igual preocupação e compromisso com vítimas e ofensores,
envolvendo a ambos no processo de fazer a justiça.
3-Trabalhar pela recuperação das vítimas, empoderando-as e atendendo
às necessidades que elas manifestam.
4-Apoiar os ofensores e ao mesmo tempo encorajá-los a compreender,
aceitar e cumprir suas obrigações.
5-Reconhecer que, embora difíceis, as obrigações do ofensor não devem
ser impostas como castigo, e precisam ser exequíveis.
6-Oferecer oportunidades de diálogo, direto ou indireto entre a vítima e
ofensor, conforme parecer adequado à situação.
7-Encontrar um modo significativo para envolver a comunidade e tratar as
causas comunitárias do crime.
8-Estimular a colaboração e reintegração de vítimas e ofensores, ao invés
de impor coerção e isolamento.
9-Dar atenção às consequências não intencionais e indesejáveis das ações
e programas de JR.
10-Mostrar respeito por todas as partes envolvidas: vítimas, ofensores e
colegas da área jurídica.
PRÁTICAS RESTAURATIVAS
O conceito e a filosofia da JR surgiram durante as décadas de 70 e 80 nos
Estados Unidos e Canadá, junto com a prática então chamada Programa de
Reconciliação Vítima-Ofensor (Victim Offender Reconciliation Program-
VORP).
Para as sociedades que ainda mantém um vínculo mais próximo com os
costumes tradicionais, a JR serve de catalisador para reavaliar, ressuscitar,
legitimar e adaptar abordagens consuetudinárias antigas.

O CERNE DAS ABORDAGENS GERALMENTE ENVOLVE UM ENCONTRO.


Três modelos distintos tendem a dominar a prática a prática da JR: os
encontros vítima-ofensor, as conferências de grupos familiares, e os
círculos de JR. No entanto, cada vez mais esses valores têm sido
mesclados. As conferências de grupos familiares por vezes utilizam um
círculo, e novas formas que aproveitam elementos de cada um dos
modelos acima tem sido desenvolvida para circunstâncias específicas. Em
alguns casos, vários modelos são utilizados num mesmo caso ou situação.
Por exemplo, um encontro entre vítima e ofensor pode ser promovido
antes de um círculo de sentenciamento, e a título de preparação.
No entanto, todos esses modelos possuem elementos importantes em
comum. Por causa de suas semelhanças, são às vezes agrupados como
formas distintas de JR.
Quando é possível ou inapropriado promover um encontro da vítima
específica com seu ofensor específico, representantes ou substitutos
entram em seus lugares. Muitas vezes utilizam-se cartas ou vídeos como
preparação ou em substituição a um encontro face a face. Mas todos esses
modelos implicam algum tipo de encontro, de preferência, presencial.
Liderados por facilitadores de círculos os mesmos não impõem acordos.
Todos os modelos abrem oportunidades para que os participantes
explorem fatos, sentimentos e resoluções. Eles são estimulados a contar
suas histórias, fazer perguntas, expressar seus sentimentos e trabalhar a
fim de chegar a uma decisão consensual.
Para resolver qualquer tipo de comportamento socialmente nocivo, três
coisas precisam acontecer (Ron Classen):
1-O mal cometido precisa ser reconhecido,
2-A equidade precisa ser restaurada,
3-É preciso tratar das intenções futuras.
Em geral é necessário também falar do futuro. O ofensor fará isso de novo
? Como viveremos juntos na mesma comunidade? Como tocaremos a vida
adiante?
Os programas de encontro vítima-ofensor hoje em funcionamento nos
casos de violência grave são, na sua maioria, externos ao sistema judiciário
formal e concebidos para serem ativados por iniciativa das partes, em
geral das vítimas.
OS MODELOS DIFEREM QUANTO AO “QUEM” E AO “COMO”
Encontros entre vítima e ofensor
Nos casos em que for indicado, trabalha-se com a vítima e o ofensor em
separado e, depois, havendo consentimento para que continue o
processo, acontece um encontro ou diálogo entre os dois, organizado e
conduzido por um facilitador treinado que orienta o processo de maneira
equilibrada.
Em geral o resultado é a assinatura de um acordo de restituição de bens,
salvo nos casos de violência grave, quando isto não acostuma acontecer.
Membros da família da vítima e do ofensor poderão participar, mas
normalmente essas pessoas têm papéis de apoio secundários. Pessoas que
representam a comunidade poderão ser envolvidas como facilitadoras ou
supervisoras do acordo selado, mas via de regra não participam do
encontro.
Conferências de grupos familiares
Esse modelo vem se concentrando no apoio ao ofensor, para que ele
assuma a responsabilidade e mude seu comportamento, e por isso, a
família do ofensor e/ou pessoas relevantes da comunidade são muito
importantes. No entanto, a família da vítima também deve ser envolvida
no processo. Em alguns casos, especialmente quando o encontro tem o
poder de afetar o desenlace do processo penal, um representante do
Estado (um policial) poderá participar do encontro.
Duas modalidades de conferência de grupos familiares ganharam especial
destaque. Um dos modelos que vem recebendo bastante atenção nos
Estados Unidos foi desenvolvido inicialmente pela polícia australiana, com
base de uma modalidade nascida na Nova Zelândia. Geralmente essa
abordagem adota um modelo de facilitação padronizado ou “roteirizado”.
Os facilitadores podem ser autoridades, como policiais especialmente
treinados para essa tarefa. Essa tradição ou abordagem deu especial
destaque à dinâmica da vergonha, e trabalha ativamente para usar a
vergonha de modo positivo.
O outro modelo de conferência de grupos familiares nasceu na Nova
Zelândia e hoje tornou o procedimento normativo para as ofensas sob a
jurisdição das varas da infância e juventude daquele país.
O governo da Nova Zelândia revolucionou seu sistema de justiça para a
infância e juventude em 1989. Esta ação foi uma reação à crise vivida
então na área do bem-estar do menor, também às críticas por parte da
população indígena maori, de que as autoridades utilizavam um sistema
colonial imposto e alheio à cultura local. Muito embora o sistema judicial
tenha sido mantido como retaguarda, o procedimento padrão para a
maioria dos crimes mais graves cometidos por menores na Nova Zelândia
é a conferência de grupos familiares.
Em consequência, na Nova Zelândia estas conferências podem ser
consideradas tanto um processo judicial quanto um encontro informal.
Elas são organizadas e facilitadas por assistentes sociais pagos pelo Estado
chamados de Coordenadores de Justiça do Adolescente. Juntamente com
as famílias, é sua função ajudar os participantes a determinarem quem
deve estar presente no encontro.
Nesse caso, a facilitação não é roteirizada e sim adequada de acordo com
a cultura local.
Um dos elementos comuns à maioria delas é a reunião de família que
acontece em dada altura do processo. O ofensor e a família do ofensor se
retiram para outra sala a fim de discutir o que aconteceu, até então, e
desenvolver uma proposta que será apresentada à vítima no restante da
conferência. As vítimas podem trazer advogados. Poderá estar presente
um procurador especial da vara da infância e da juventude e também
outros profissionais assistenciais.
Nesse processo, até mesmo as acusações podem ser negociadas e é
importante que o plano precisa obter a concordância de todos os
presentes. A vítima, o ofensor, ou a polícia poderão vetar a decisão se
alguns deles estiver insatisfeitos.
Círculos
As abordagens circulares surgiram nas comunidades aborígenes do
Canadá, onde foi escolhido o termo “Círculos de Construção de Paz”. Hoje
os círculos têm inúmeras aplicações:
-Círculos de sentenciamento, que objetivam determinar sentenças para
processos criminais,
-círculos de apoio (em preparação a círculos de sentenciamento),
-círculos para lidar com conflitos no ambiente de trabalho,
-círculos como forma de diálogo comunitário.
Nessa modalidade restaurativa, participantes se acomodam em círculo.
Um objeto chamado de “bastão da fala” ou “objeto da fala” vai passando
de mão em mão para que todos tenham oportunidade de falar, um de
cada vez, na ordem em que estão sentados.
Nas comunidades indígenas, os anciãos desempenham importante papel
como líderes dos círculos, ou como conselheiros ou ainda trazendo
percepções e insights.
Hoje, essa modalidade é usada em grandes centros urbanos e em
inúmeros contextos. Devemos ressaltar que nem todos os encontros nem
todas as necessidades podem ser atendidas.
OS MODELOS DIFEREM QUANTO A SEUS OBJETIVOS
Outro modo de compreender as diferenças entre as várias abordagens
restaurativas é examinar seus objetivos, que podem ser separados em três
categorias:
1ª-Programas alternativos
Os promotores fazem o encaminhamento postergando a denúncia e,
eventualmente dispensam-na, se o caso for satisfatoriamente resolvido no
âmbito restaurativo. Também o juiz poderá encaminhar o caso para um
encontro restaurativo a fim de que sejam trabalhadas partes da sentença,
como a retribuição de bens. Em alguns processos circulares o promotor e o
juiz poderão juntar-se à comunidade no círculo a fim de desenvolver uma
sentença sob medida para as necessidades da vítima, do ofensor e da
comunidade.
2ª-Programas terapêuticos
Cada vez mais programas restaurativos estão sendo usado em crimes
graves. Em muitos casos o ofensor já está preso e o encontro não tem o
propósito de influenciar no desfecho do processo judicial. Tais encontros
produzem resultados impressionantes, experiências positivas tanto para as
vítimas quanto para ofensores.
Como parte do tratamento, estimulam-se os ofensores a compreender o
que fizeram e a se responsabilizarem por isso.
3ª-Programas de transição
Uma área relativamente nova é a que trata da reintegração do prisioneiro
recém-libertado. Um dos modelos interessantes é o Círculo de Apoio e
Responsabilização desenvolvido no Canadá para trabalhar com
perpetrados de crimes sexuais. Em boa parte dos Estados Unidos e do
Canadá, depois de cumprirem suas sentenças, as pessoas que cometeram
crimes sexuais retornam às suas comunidades, que oferecem apoio ao
ofensor e tem tido sucesso na reintegração de ex-ofensores,
simultaneamente aplacando o temor da comunidade.
UM CONTINUUM RESTAURATIVO
É importante ver os modelos de JR dentro de um continuum, que vai do
totalmente restaurativo até o não restaurativo, com vários graus extremos.
Seis perguntas-chave nos ajudam a analisar tanto a eficácia quanto o
alinhamento dos vários modelos concebidos para situações específicas
com os princípios restaurativos:
1-O modelo dá conta de danos, necessidades e causas?
2-É adequadamente voltado para a vítima?
3-Os ofensores são estimulados assumir responsabilidades?
4-Os interessados relevantes estão sendo envolvidos?
5-Há oportunidades para o diálogo e decisões participativas?
6-Todas as partes estão sendo respeitadas?
Como proceder nos casos em que o ofensor não é pego, ou não está
disposto a assumir a responsabilidade?
O que acontece quando o ofensor se mostra disposto a compreender as
consequências de seus atos e assumir responsabilidades, mas a vítima está
ausente ou recalcitrante?
Deve- se observar os graus entre as Práticas Restaurativas: um continuum:
Totalmente restaurativa, Majoritariamente restaurativa, Parcialmente
restaurativa, Potencialmente restaurativa e Pseudo ou não restaurativa.
A JR tornou-se tão popular que muitas ações e programas tem sido
rotulados de “restaurativos” sem de fato o serem. Alguns podem ser
aproveitados, outros não. A pena de morte, que causa danos adicionais e
irreparáveis, recai nessa última categoria.

CAPÍTULO 4 – ISTO OU AQUILO?


JUSTIÇA RETRIBUTIVA X JUSTIÇA RESTAURATIVA
Segundo o filósofo do Direito Conrad Brunk, a retribuição e a restauração
não são pólos opostos. Na verdade, as duas modalidades têm muito em
comum. Um dos objetivos primários de ambas as teorias é o de acertar as
contas através da reciprocidade, ou seja, igualar o placar. Elas diferem nas
suas propostas quanto ao que será eficaz para equilibrar a balança.
As duas teorias reconhecem a intuição ética básica de que o
comportamento socialmente nocivo desequilibra a balança.
RETRIBUTIVA: postula que a dor é o elemento capaz de acertar as contas,
mas na prática ela vem mostrando contraproducente, tanto para a vítima
quanto para o ofensor.
RESTAURATIVA: sustenta que o único elemento apto para realmente
acertar as contas é a conjugação do reconhecimento dos danos sofridos
pela vítima e suas necessidades ao esforço ativo para estimular o ofensor a
assumir a responsabilidade, corrigir os males e tratar as causas daquele
comportamento. Ao lidar de modo positivo a JR tem potencial de dar
segurança a vítima e ofensor, ajudando-os a transformar suas vidas.

Iniciada nos anos 80 por iniciativa de um grupo de pessoas que sonhavam


em fazer justiça de um jeito diferente, hoje são programas implantados em
numerosos países: as conferências de grupos familiares adaptadas das
tradições maori na Nova Zelândia; os círculos de sentenciamentos das
comunidades aborígines do norte do Canadá; os tribunais de construção
da paz dos navajos; a lei consuetudinária africana; ou a prática afegã
chamada jirga.
Nenhuns desses modelos devem ser copiados ou simplesmente
implantados em outra comunidade ou sociedade. Ao contrário, devem ser
vistos enquanto exemplos de como diferentes comunidades e sociedades
encontraram no seu contexto particular uma forma apropriada de fazer
justiça e reagir ao comportamento socialmente nocivo. Tais abordagens
oferecem inspiração e um ponto de partida e levar em conta as
necessidades e tradições locais.
Para que haja justiça é preciso que façamos a nós mesmos as perguntas:
Quem foi prejudicado?
1-Quais são as suas necessidades?
2-Quem tem obrigação e quem é responsável por atender tais
necessidades?
3-Quem tem interesse legítimo na situação?
4-Que processo conseguirá envolver os interessados a fim de encontrar
uma solução?
A JR requer que troquemos não apenas nossas lentes, mas também nossas
perguntas.
Acima de tudo, a JR é um convite ao diálogo para que possamos apoiar um
ao outro e aprender uns com os outros. É um lembrete de que estamos
todos interligados de fato.

ANEXO 1
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Howard Zehr e Harry Mika
1-O Crime é fundamentalmente uma violação de pessoas e de
relacionamentos interpessoais.
1.1. As vítimas e a comunidade foram lesadas e precisam ser
recompostas.
1.1.1. As vítimas primárias são aquelas afetadas mais diretamente pela
ofensa, mas outros familiares das vítimas e dos ofensores, testemunhas e
membros da comunidade atingidos, são vítimas também.
1.1.2. Os relacionamentos afetados (e refletidos) pelo crime precisam ser
tratados.
1.1.3 A restauração é um continuum de reações a gama de necessidades e
danos vivenciados por vítimas, ofensores e pela comunidade.
1.2. Vítimas, ofensores e as comunidades afetadas são basicamente os
detentores de interesse na justiça.
1.2.1. O processo de JR enfatiza a contribuição e a participação dessas
partes – mas especialmente das vítimas primárias e dos ofensores – em
busca de restauração, superação, responsabilização e prevenção.
1.2.2. Os papéis dessas partes variarão segundo a natureza da ofensa, bem
como as capacidades e preferências das partes.
1.2.3. O Estado tem papel delimitado, como o de investigar os fatos,
facilitar os processos e garantir a segurança, mas o Estado não é uma
vítima primária.
2. A violação cria obrigações e ônus
2.1. A obrigação dos ofensores é corrigir as coisas tanto quanto possível.
2.1.1. Uma vez a obrigação primária é para com as vítimas, um processo
de JR empodera as vítimas para que de fato participem da definição de
obrigações.
2.1.2. Os ofensores recebem oportunidade e estímulo para compreender
o mal que causaram às vítimas e à comunidade, e desenvolver um plano
para cumprir suas obrigações de modo adequado.
2.1.3. Estimula-se a participação voluntária dos ofensores, enquanto se
minimiza a coerção e a exclusão. Contudo, caso não o façam
voluntariamente, poderá se exigir dos ofensores que assumam suas
obrigações.
2.1.4. As obrigações que advém do dano infligido devem guardar uma
relação com o empenho em corrigir a situação.
2.1.5. As obrigações podem ser vivenciadas como difíceis, e mesmo
dolorosas, mas não são impostas com o objetivo de punição, vingança ou
retaliação.
2.1.6. As obrigações em relação às vítimas, como a restituição de bens ou
a promoção de seu restabelecimento, são prioritárias em relação a outras
sanções ou obrigações diante do Estado, como as multas.
2.1.7. Os ofensores têm a obrigação de participar ativamente do esforço
para atender às suas próprias necessidades.
2.2. As comunidades têm obrigações diante das vítimas e dos ofensores e
também em relação ao bem-estar de seus membros em geral.
2.2.1. A comunidade tem obrigação de dar apoio e prestar ajuda às vítimas
de crimes a fim de que sejam atendidas as suas necessidades.
2.2.2. A comunidade é responsável pelo bem-estar de seus membros e
pelas condições e relacionamentos sociais que levam ao crime ou à paz na
comunidade.
2.2.3. A comunidade tem a responsabilidade de apoiar os esforços para
reintegrar ofensores à comunidade, de envolver-se ativamente na
definição das obrigações do ofensor e de garantir que o ofensor tenha a
oportunidade de corrigir o seu erro.
3. A JR busca restabelecer pessoas e corrigir os males.
3.1. As necessidades das vítimas de informação, validação, vindicação,
restituição de bens, testemunho, segurança e apoio são os pontos de
partida da justiça.
3.1.1. A segurança das vítimas é prioridade imediata.
3.1.2. O processo de fazer justiça fornece a estrutura para que se
desenvolva o trabalho de recuperação e restabelecimento, que em última
instância é domínio da vítima individual.
3.1.3. As vítimas são empoderadas através da valorização de sua
contribuição e participação na definição de necessidades e resultados ou
decisões.
3.1.4. Os ofensores estão envolvidos na reparação do mal tanto quanto o
possível.
3.2. O processo de fazer justiça amplia oportunidades para a troca de
informações, participação, diálogo e consentimento mútuo entre a vítima
e o ofensor.
3.2.1. Encontros presenciais são apropriados em alguns casos, enquanto
formas alternativas de troca são mais apropriadas em outros.
3.2.2. As vítimas desempenham papel principal na definição e direção dos
termos e condições do encontro.
3.2.3. O consentimento mútuo tem precedência sobre as decisões
impostas.
3.2.4. Há oportunidades para remorso, perdão e reconciliação.
3.3. As necessidades e aptidões dos ofensores são levadas em conta.
3.3.1. Reconhecendo que os próprios ofensores sofreram um dano, o
restabelecimento e integração dos ofensores à comunidade são
enfatizadas.
3.3.2. Os ofensores recebem apoio e tratamento respeitoso ao longo do
processo.
3.3.3. A perda de liberdade e o confinamento forçado dos ofensores se
limitam ao mínimo necessário.
3.3.4. A justiça valoriza mudanças pessoas mais do que comportamento
obediente.
3.4. O processo de fazer justiça pertence à comunidade.
3.4.1. Os membros da comunidade participam ativamente do processo de
fazer justiça.
3.4.2. O processo se enriquece com os recursos comunitários e, por sua
vez, contribui para a construção e fortalecimento dessa mesma
comunidade.
3.4.3. O processo procura promover mudanças na comunidade, tanto para
evitar que males semelhantes atinjam outras pessoas, como para
fomentar a intervenção imediata a fim de atender as necessidades das
vítimas e promover a responsabilização dos ofensores.
3.5. A justiça está consciente dos resultados intencionais e não
intencionais de suas respostas ao crime e à vitimização.
3.5.1. A justiça monitora e incentiva o acompanhamento dos acordos
resultantes do processo já que restabelecimento, recuperação,
responsabilização e mudança se amplificam quando tais acordos são
cumpridos.
3.5.2. A justiça é assegurada não pela uniformidade das decisões, mas por
disponibilizar apoio e oportunidades a todas as partes, evitando-se a
discriminação baseada em etnia, classe e sexo.
3.5.3. Decisões que são predominantemente coercitivas ou privativas de
liberdade deveriam ser adotadas como último recurso, utilizando-se
possível as intervenções restritivas e, ao mesmo tempo, buscando a
restauração das partes envolvidas.
3.5.4. Consequências imprevistas e não intencionais, como a cooptação de
processos restaurativos para fins coercitivos ou punitivos, orientação
indevida a ofensores ou a expansão do controle social, devem ser
rechaçadas.

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