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COLEÇÃO TEMAS DE PSICOLOGIA FORENSE

PSICOLOGIA FORENSE

- Um olhar para o futuro-

Jorge Trindade
Fernanda Molinari (org.)
SUMÁRIO

Apresentação

ENTRE A PSICOLOGIA E O DIREITO: O FUTURO TEM MUITOS NOMES


– Jorge Trindade

DOS CUIDADOS COM A SAÚDE MENTAL DA CRIANÇA NO PROCESSO


DE ALIENAÇÃO FAMILIAR - Fábio Dias Gadeia da Silva

A ALIENAÇÃO PARENTAL E OS EFEITOS DECORRENTES SOBRE OS


FILHOS - Andressa Schneider Andrighetto Bresolin

CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE ALIENAÇÃO PARENTAL:


COMO IDENTIFICÁ-LAS NO CONTEXTO CLÍNICO? - Maria Augusta
Mansur de Souza e Maria de Lourdes Oliveira Pereira

QUEM É O ABUSADOR? A ALIENAÇÃO PARENTAL E AS FALSAS


DENÚNCIAS DE ABUSO SEXUAL – Bárbara Müller Silva

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E EXPOSIÇÃO À VIOLÊNCIA


INTERPARENTAL: O CONTRIBUTO DA PSICOLOGIA JURÍDICA - Mauro
Paulino

A IMPORTÂNCIA DA PSICOLOGIA JURIDICA NO ÂMBITO DA


VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR EM RELAÇÃO À MULHER - Tatiane Bueno

SÍNDROME DE MUNCHAUSEN POR PROCURAÇÃO SOB O OLHAR DA


PSICOLOGIA FORENSE - Gabriela Ceratti e Victória Kofler Puchalski

ABANDONO AFETIVO DE PAIS IDOSOS - Vanessa Souza da Silva

O ADVOGADO NO DIREITO DE FAMÍLIA: EMOÇÕES E


CONTRATRANFERÊNCIA À LUZ DA PSICANÁLISE - Carlos Eduardo Lamas

A (RE)CONSTRUÇÃO DE INTERAÇÕES VINCULARES ATRAVÉS DA


MEDIAÇÃO FAMILIAR – Fernanda Molinari
O ADVOGADO E O MEDIADOR: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO PARA
CONSTRUÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO SISTEMA “MULTIPORTAS”
OU GESTÃO ADEQUADA DE CONFLITOS - Paulo D’Oliveira

(DES) ENCONTROS ENTRE O DIREITO E A PSICOLOGIA: O CONTROLE


DA PROVA PERICIAL PSICOLÓGICA - Maria Cecília Butierres e José
Alcebíades de Oliveira Junior

A INSERÇÃO DO PSICÓLOGO NO PODER JUDICIÁRIO: PERÍCIA E


ASSISTÊNCIA TÉCNICA - Gicela Nicolini Hansen

PODEMOS CONFIAR NOS DEPOIMENTOS DE TESTEMUNHAS E


VÍTIMAS NO PROCESSO PENAL? UMA ANÁLISE A PARTIR DO
FUNCIONAMENTO E DAS FRAGILIDADES NA FORMAÇÃO DA
MEMÓRIA - Luciano Iob

FALSAS MEMÓRIAS NO PROCESSO PENAL: UMA ANALISE PRÁTICA


SOB O VIÉS DA PSICOLOGIA DO TESTEMUNHO. DA CRIAÇÃO ATÉ O
ERRO JUDICIAL. ESTUDO DE CASO. - Michel França

O PROTOCOLO DE ENTREVISTA DO NICHD: CONSTATAÇÕES,


LIMITAÇÕES E CRÍTICAS - Marina Kayser Boscardin, Elise Karam Trindade e
Patricia Cantisani Schaffer Pires

A PSICOLOGIA FORENSE NO TRIBUNAL DO JÚRI: PARÂMETROS


PARA A FORMAÇÃO DO CONSELHO DE SENTENÇA - Carlo Velho Masi e
Guilherme Poletto

A INIMPUTABILIDADE DO ESQUIZOFRÊNICO: UM ESTUDO DE CASO


SOB O OLHAR DA PSICOLOGIA FORENSE - Kátia Denny Osorio Goelzer

COMUNIDADES URBANAS, PREVENÇÃO CRIMINAL E DIAGNÓSTICO


LOCAL DE SEGURANÇA - Ana Sani, Laura M. Numes e Sónia Caridade

O QUE NOS MOVE? - Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler


AUTORES

Ana Sani
Andressa Schneider Andrighetto Bresolin
Bárbara Mattes Müller Silva
Carlo Velho Masi
Carlos Eduardo Lamas
Elise Karam Trindade
Fábio Dias Gadeia da Silva
Fernanda Molinari
Gabriela Ceratti
Gicela Nicolini Hansen
Guilherme Poletto
Jorge Trindade
José Alcebíades de Oliveira Junior
Kátia Denny Osorio Goelzer
Laura M. Numes
Luciano Iob
Maria Augusta Mansur de Souza
Maria Cecília Butierres
Maria de Lourdes Oliveira Pereira
Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler
Marina Kayser Boscardin
Mauro Paulino
Michel França
Patricia Cantisani Schaffer Pires
Paulo D’Oliveira
Tatiane Bueno
Sónia Caridade
Vanessa Souza da Silva
Victória Kofler Puchalski
APRESENTAÇÃO

Psicologia Forense: um olhar para o futuro

Apresentamos o 5º volume da Coleção Temas de Psicologia Forense,


lançado pela Editora Imprensa Livre, comemorativo ao encerramento da XX Turma
do Curso de Formação em Psicologia Forense, promovido pela Sociedade Brasileira
de Psicologia Jurídica (SBPJ), sob a coordenação da Profº. Dra. Fernanda Molinari.
Este volume volta a Psicologia Forense de olhos para o futuro. E de que futuro
falamos? Ora, se vivemos a pós-modernidade este é o tempo certo para lembrar que,
depois de Nietzsche, não existem mais fatos, apenas interpretações. Na verdade, desde
Heráclito, queiramos ou não, o sol nasce novo todos os dias.
Entretanto, foi somente agora no ano de 2016 que a Oxford Dictionaries, um
departamento da Universidade de Oxford responsável pela elaboração de dicionários,
elegeu a expressão (ou palavra) post-truth e a definiu substantivamente da seguinte
maneira:
“que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm
menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças
pessoais”.
Nesse contexto, de que Psicologia Forense falamos? Qual seu registro? Se não
é mais possível uma adaequatio rei et intellectus, do que mesmo se trata? Poderíamos
formular aqui mais um diagnóstico apocalíptico e agonístico: o fim da história; o fim
da filosofia, o fim da psicologia? A pergunta que salta aos olhos do futuro questiona
se há uma psicologia dos fatos ou toda ela é uma ficção? Sim, ainda que uma ficção,
mas uma ficção necessária, que precisa ser cultivada e trabalhada pelo desvelamento.
Foi Lyotard (1979), entretanto, quem mostrou que essas transformações se
referem à crise das narrativas, principalmente àquelas do discurso e do metadiscurso
de autolegitimação. Isso define mais do que um saber. Define uma condição. E essa
condição se chama pós-modernidade. A psicologia forense que olha para o futuro
mostra que uma coisa que seja legítima não significa outra que também não a seja.
Nessa psicologia forense do futuro não haveria ninguém privilegiado na compreensão
da realidade ou na apropriação da verdade. Quando menos se espera, aparecem novos
problemas e não sabemos sequer de onde.
Elias Canetti, em A Língua absolvida (2010)1, ao tratar de suas primeiras
recordações, deixou-nos uma lição bem clara. Vale a pena transcrevê-la:

“Minhas primeiras recordações estão imersas no vermelho. Saio por uma


porta nos braços de uma menina, o chão à minha frente é vermelho e à
minha esquerda desce uma escada igualmente vermelha. A nossa frente, à
mesma altura, abre-se uma porta e aparece um homem sorridente que,
alegre, vem em minha direção. Ele se aproxima bem, para e me diz: ‘Mostre
a língua! Mostro a língua e ele leva a mão ao bolso, tira um canivete, abre-o
e põe a lâmina bem perto de minha língua’. Não ouso recolher a língua; ele
se aproxima cada vez mais, até quase tocá-la com a lâmina. No último
momento ele recolhe a faca e diz: ‘Hoje ainda não, amanhã’. Ele dobra o
canivete e o guarda no bolso.
Todas as manhãs saímos pela porta para o pátio vermelho, a porta de abre e
o homem sorridente aparece. Sei o que ele dirá e aguardo sua ordem de
mostrar a língua. Sei que ele a cortará, e cada vez tenho mais medo. Assim
começa o dia e a história se repete muitas vezes.”

Nós, afiliados à Psicologia Forense que olha para o futuro através da pós-
modernidade e da pós-verdade sabemos que o homem sorridente virá com seu
canivete para cortar a nossa língua. E que virá dia após dia, todos os dias... Sabemos
justamente por isso que também é preciso salvar-se a cada dia. Entretanto, só há um
modo de salvar-se. É salvando o outro pelo compromisso com a palavra. A palavra
empenhada. Somente essa palavra salva a nossa língua de ser cortada. Quando ela se
torna salvadora (salvífica). Devido ao seu dever de pa-lavra, isto é, aquilo que pode
acontecer quando o homem se encontra em verdade, em desvelamento, em
correspondência com as coisas, sendo que o lugar próprio das coisas é o seu começo,
o seu sentido de surgimento.
Todos os capítulos aqui apresentados, portanto, configuram um desvelamento
e um logos no sentido de reunião e coletividade. Significam muito mais no seu
conjunto do que sua individualidade pretende, pois nenhum de nós é capaz de prever
de que maneira seu texto irá repercutir no futuro tenha ele o nome que tiver.
Porto/ Porto Alegre, outubro de 2019.

Jorge Trindade e Fernanda Molinari


Organizadores da Obra

1
CANETTI, E. A língua absolvida: história de uma juventude. São Paulo: Companhia das Letras,
2010, p. 9.
ENTRE A PSICOLOGIA E O DIREITO:
O FUTURO TEM MUITOS NOMES2

Jorge Trindade3

Introdução: do passado ao futuro com o mesmo idealismo


Há um samba-enredo brasileiro cujo refrão, bastante conhecido, pergunta e
responde assim: “Como será o amanhã? Responda quem puder”4…
Como alguém que, dentre outros caminhos possíveis, escolheu trabalhar nesse
projeto desafiante de estabelecer conexões entre Psicologia e Direito, irei
assumidamente correr mais um risco. O risco de pensar em voz alta, sem medo, ainda
que, agora, na idade madura, - aquela em que deve prevalecer o bom senso e porque
não dizer o politicamente correto -, mas mesmo assim ser mais uma vez idealista. Pois
é, idealista. A propósito, o idealismo é uma condição tão cara pelo menos em uma
etapa de nossas vidas, pois ainda não conheci nenhuma pessoa que não tenha sido
idealista pelo menos na adolescência.
De fato, sem esse idealismo característico das almas juvenis teria sido
impossível trilhar por esse caminho errante que não se faz nem por aqui nem por ali,
mas por um “entre”. Entre a Psicologia e o Direito. Um não-estar nem cá nem lá, para
simultaneamente poder criar um novo território epistemológico, inaugurando um nova
maneira de estar que é própria da Psicologia Jurídica, Forense ou também
denominada Psicologia Legal.
Nesse es(ex)-paço, muitas foram as tentações e os apelos para seguir por
trajetos mais planos, mais seguros, com mais pompas e até mesmo economicamente
mais recomendáveis.
Ouvi de colegas juristas tantos conselhos para que não desse bola à essa jovem
com o nome de Psicologia, quantas vezes ouvi de colegas psicólogos recomendações
de que abandonasse esse velho senhor de barbas brancas chamado Direito. De fato. A

2
Conferência Entre A Psicologia e o Direito: o futuro, realizada no II Congresso Internacional Crime,
Justiça e Sociedade. Universidade Fernando Pessoa e Instituto CRIAPP, cidade do Porto, 28.03. 2014,
adaptado para publicação neste livro.
3
Pós-doutor em Psicologia Forense e do Testemunho. Doutor em Psicologia Clínica; Doutor em
Ciências Sociais; Livre-docente em Psicologia Jurídica; Membro da Academia Brasileira de Filosofia,
titular da Cadeira Nº. 10.
4
O Amanhã. Letra de Dudu Nobre. Foi samba-enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba União
da Ilha do Governador, no Carnaval de 1978.
Psicologia tem muitas caras, muitos rostos, fala muitas línguas, mas sobretudo é
muito moça, enquanto o Direito vem através dos séculos e dos milênios na sua gênese
romana.
Porque efetivamente as pessoas, pelo menos os homens, apaixonam-se pela
psicologia, mas casam com o direito. Talvez com as mulheres aconteça exatamente o
inverso. Quero deixar claro que não há nada de errado com a paixão; assim como
também nada há de errado com o casamento. Nessa questão - e refiro-me somente a
esta - o que não pode haver é separação nem divórcio. Unir saberes, conhecimentos,
dar continuidade, talvez aquilo que em brasileiro chamamos de união estável, para os
momentos bons e para os momentos ruins, pois afinal nos encontramos na era da
superação das disciplinas, das desapropriações, das descompartimentalizações, diga-
se de passagem aquelas mesmas que foram tão importantes para concepção de um
dado modelo que se convencionou chamar “cientificismo”, mas que hoje temos de
reconhecer que pertence a era da desmaterialização e do virtual, pois tudo está On
Line, ou pelo menos On Disk, em bits e Kbyts. Il Mare nostrum: o que antes nos
separava é o mesmo que agora nos une.

2. O futuro tem muitos nomes

“Como será o amanhã? Responda quem puder”.

1. O futuro da Psicologia Jurídica virá quando todos os discursos


ocuparem o mesmo lugar na mesa de debates e fora dela, sem hegemonias
escondidas sob o falso manto da multidisciplinaridade, sem a necessidade de
compartimentar o conhecimento em “caixinhas” para se poder falar a verdade,
ainda que em sua provisoriedade de ser apenas erros emendados;
2. O futuro da Psicologia Jurídica será quando a Psicologia Investigativa
conseguir esclarecer e identificar o suspeito, evitando a barbárie, a tortura, a
violência física e mental que ainda caracteriza a investigação coativa, que não
traz nenhuma vantagem para o processo, nem para o réu, nem para a vítima e
menos ainda para a Justiça;
3. O futuro da Psicologia Jurídica será no momento em que a Psicologia
se despir de seus preconceitos, de seus jargões e de suas presunções, para falar
uma linguagem que todos os humanos - e quiçá até os não humanos e os
deuses - sejam capazes de entender;
4. O futuro da Psicologia Jurídica ocorrerá quando tanto os juristas
quanto os psicólogos reconhecerem que o sentido e o fim da ciência não é a
ciência que nos pode dar;
5. O futuro da Psicologia Jurídica acontecerá quando se derrubarem os
dogmas, as verdades absolutas, os hermetismos e o jugo epistemológico
impostor exercido pelo Direito, em nome de um poder que detém não a última
palavra, mas a palavra última;
6. O futuro da Psicologia Jurídica será quando a violência contra a
mulher já não precisar mais de leis específicas como a Lei Maria da Penha,
sem dúvida nenhuma um avanço, e quando nos dermos conta de que não é
necessário uma Lei para os crimes hediondos, porque todos os crimes são
hediondos;
7. O futuro da Psicologia Jurídica será no instante em que não houver
mais casos de abuso sexual infantil, nem crianças revitimizadas pelo
descompasso das declarações, hoje, no Brasil, em torno de sete até que o caso
chegue à apreciação judicial;
8. O futuro da Psicologia Jurídica será quando não houver mais a
necessidade de presídios, nem de masmorras, nem de albergues, nem de casas
de acolhimento para crianças abandonadas, porque ela será preventiva,
comunitária, socializadora e sobretudo porque não haverá mais famílias que
por tantos motivos, causas e concausas, necessitem abandonar;
9. O futuro da Psicologia Jurídica se dará quando os interrogatórios
forem concebidos como forma de defesa do acusado e quando, de fato,
prevalecer até o fim do processo o princípio de que todos somos inocentes até
sentença condenatória transitada em julgado;
10. O futuro da Psicologia Jurídica será no dia em que, seja porque
constitui uma Síndrome - a Síndrome da Alienação Parental - seja porque
simplesmente aliena, a intervenção psicológico-jurídica puder ser preventiva e
efetiva, tirando a criança das mãos do alienador, sem precisar discutir se o que
tem bico de pato, tem pena de pato e tem pé de pato, é ou não é pato,
independentemente de o pato estar ou não inserido no DSM-V;
11. O futuro da Psicologia Jurídica se dará no momento em que a lei for
efetivamente igual para todos, sem distinção de qualquer natureza e houver a
inviolabilidade do direito à vida e à liberdade;
12. O futuro da Psicologia Jurídica será quando todo o depoimento,
mesmo aquele que se denominou sem dano, constituir um bem e um ganho,
tanto para crianças, quanto para adultos e para idosos;
13. O futuro da Psicologia Jurídica será quando a casa, seja rica seja pobre,
uma choupana, um reino ou um castelo, for o domicílio inviolável do cidadão;
14. O futuro da Psicologia Jurídica acontecerá quando os direitos
fundamentais, - refiro-me à vida, à liberdade, à honra, à dignidade e todos
aqueles que dizem respeito ao núcleo do homem, - tiverem eficácia plena pelo
simples fato de serem universais e irrenunciáveis, inalienáveis e inegociáveis,
pois, como disse Sêneca, Homo Homini Res Sacra;
15. O futuro da Psicologia Jurídica será quando, como referiu Winston
Churchill a propósito da democracia, alguém bater a nossa porta às cinco da
manhã e tivermos certeza de que esse alguém só pode ser o leiteiro, e não
como acontece nas casas dos Amarildos, com as Marieles e nas favelas e nas
“casas” dos sem-teto;
16. O futuro da Psicologia Jurídica será quando, em meu país - em todos
os países - não houver mais meninos nem meninas de rua;
17. O futuro da Psicologia Jurídica acontecerá quando todas as crianças
tiverem escola;
18. O futuro da Psicologia Jurídica acontecerá no dia em que forem
efetivamente inadmissíveis provas ilícitas e que compreendermos que toda e
qualquer avaliação para fins judiciais, psicológicas ou não, devem ser
inarredavelmente submetidas ao elementar Princípio do Contraditório e da
Ampla Defesa, e quando soubermos respeitar a cláusula pétrea da lealdade
processual, interpessoal e intrapessoal;
19. O futuro da Psicologia Jurídica será quando todas as pessoas tiverem
direito ao trabalho digno, reservando-se a criança o direito ao trabalho de
brincar;
20. O futuro da Psicologia Jurídica chegará quando todos nós podermos
entoar juntos o hino da paz, sem dissonância provocada por qualquer tipo de
violência, notadamente do mais forte em relação ao mais fraco, porque todos
seremos simplesmente iguais em direitos e obrigações, desfrutando
naturalmente da dignidade própria da pessoa humana, sem esquecer que nos
dias de hoje há “mais fortes” que são “mais fracos” e “fracos” que são “mais
fortes”, pois a força e a fraqueza já não são físicas, mas possuem capilaridade
emocional, financeira, social, profissional, do lobby e do status;
21. O futuro da Psicologia Jurídica será quando não houver mais
necessidade de um Detector de Mentira, porque todos soremos capazes de
dizer a verdade que decorre do fato de sermos iguais a nós mesmos, sem
subterfúgios de cotas, homeostases ou malabarismos políticos-interesseiros;
22. O futuro da Psicologia Jurídica sucederá quando houver liberdade para
a pesquisa científica independentemente das agências de fomento de
promoção partidária e de a busca de votos para as próximas eleições;
23. O futuro da Psicologia Jurídica acontecerá, decididamente, quando em
nenhum congresso do mundo - nem nacional, nem internacional - ninguém
mais precisar fazer um discurso como este, porque simplesmente terá perdido
todo e qualquer sentido.

Como se pode observar, essas referências sobre o futuro da Psicologia


Jurídica, de um lado, dirigiram-se menos à Psicologia para o Direito, e menos ainda à
Psicologia no Direito, mas foram endereçadas especialmente para a Psicologia do
Direito, aquela parte da Psicologia Jurídica que interessa aos fundamentos, que funda
o mental do Direito, cuja dimensão antropológica se encontra na concepção grega do
ócio necessário para participar dos destinos da polis e que mais tarde se transformou
na negação do ócio, que os romanos denominaram neg+ócio, um valor orientado para
a vida prática do mundo jurídico habitado pelo cidadão do império.
De outro lado, essas referências sobre o futuro da Psicologia Jurídica
destinaram-se à Psicologia, àquela que originariamente foi buscada por Heráclito ao
dizer que mesmo percorrendo todos os caminhos jamais encontraremos os limites da
alma, tão profundo é o Logos, a anima, o sopro, não da vida física, mas da vida
mental, a dimensão noética do humano, justamente agora que os confins da pessoa
humana se tornaram flutuantes.
Mais tarde, bem mais tarde, essas referências se encontram na convergência
multidisciplinar do discurso normativo kelseniano com a visão antropológica de Lévis
Strauss, e com a psicologia psicanalítica de Freud. Refiro-me à possibilidade teórica e
caleidoscópica do mitsein da Norma Hipotética Fundamental com a Lei Primeva da
Humanidade, isto é, da Ground Norm, a norma que fundamenta todas as normas de
modo a evitar o recurso ad infinitum, na perspectiva jurídica, com a lei primeira da
psicologia antropológica. Em uma perspectiva, o caminho jurídico percorrido tomou a
via da lógica para encontrar uma norma que não é posta, mas substancialmente
pressuposta. Esse mesmo fim, do ponto de vista psicológico, foi concebido na
universalidade da proibição do incesto e na proibição do parricídio, regula que
formatou a Lei Primeva como norma fundamental da humanidade e se sua
sobrevivência.
Norma Hipotética Fundamental (Kelsen) e Lei Primeva da Humanidade
(Lévis-Strauss): eis aí os fundamentos dessa nova-velha inscrição epistemológica que
denominamos Psicologia Jurídica. Da mesma maneira que duas figuras pretas não
formam uma branca, e nem duas telas brancas se transformam em um tela preta e
muito menos em duas, a Psicologia Jurídica é essa disciplina de conexão que aponta
para a necessidade de superar ultrapassados compromissos epistemológicos, e, ao
mesmo tempo, acena para novos patamares axiológicos, hermenêuticos e
deontológicos.
Esta é a convocatória da Psicologia Jurídica do futuro; esta é a chamada para
os novos tempos.

3. A título de encerramento: como será o amanhã?


Finalmente, para não dizer que não falei de flores - porque só de flores falei -
importa registrar que, se pudesse regressar ao passado, e de novo escolher um
caminho pessoal, tenho a certeza de que escolheria exatamente o mesmo, não por
qualquer forma de rigidez, mas pela doce melodia que toca a experiência.
Assim, parafrasenado Freud, a propósito do ego e id, apronto-me para dizer
que o futuro da Psicologia Jurídica acontecerá logo ali quando a Psicologia e o Direito
conseguirem efetivamente dar as mãos.
Como vimos no decorrer dessa fala, a utopia faz o mundo girar e o futuro pode
ter muitos nomes. Como disse Vitor Hugo, (...) “para os fracos poderá se chamar o
inalcançável. Para os temerosos, será o desconhecido. Para os valentes é a
oportunidade”.
Porque estou ciente de que discordar é uma forma de pensar, - e talvez a única,
- espero que essas ideias, de alguma forma, possam haver contribuído para a nossa
reflexão.
Esse futuro, que já tem o seu tempo, terá também um lugar. “Onde será o
amanhã? Responda quem puder...”

Esse lugar é a oportunidade que começa aqui e agora, neste tempo e neste
templo, com cada um de nós. Este é o lugar onde o futuro já começou.
“Como será o amanhã? Responda quem puder”...
DOS CUIDADOS COM A SAÚDE MENTAL
DA CRIANÇA NO PROCESSO DE
ALIENAÇÃO FAMILIAR

Fábio Dias Gadeia da Silva5

Introdução
Assunto de grande relevância, a Alienação Parental é temática que merece
devida atenção, sendo assim, o presente capítulo busca esclarecer o conceito de
Alienação Parental pela visão da Psicologia Jurídica, também será discorrido acerca
da Síndrome da Alienação Parental (SAP), apresentando a maneira que se manifesta,
os sintomas, os graus da síndrome e os cuidados necessários com a saúde mental da
criança alienada.
Da mesma maneira, buscando apresentar e trazer mais clareza ao assunto, será
abordado o porquê se utilizar no lugar da expressão Alienação Parental o termo
Alienação Familiar, por possuir sua definição mais próxima à realidade da criança
alienada.
Apresentar-se-á os impactos psicológicos gerados na criança vítima de
Alienação Parental que se encontra como protagonista em um cenário de disputa
judicial de guarda e os impactos psicológicos causados na criança em sua fragilidade
durante o caminhar processual. Da mesma forma, será levantado os traumas advindos
da inobservância para com a saúde mental e o desenvolvimento da criança.
Também será tratado a fragilidade que se encontra a criança durante o
processo judicial e o surgimento das falsas memórias, frutos da Alienação Parental, e
como as falsas memórias podem causar um impacto negativo no depoimento da
criança e consequentemente nas fases processuais.

1. Alienação Parental no viés da Psicologia Forense

1
Bacharel em Direito pela Universidade do Desenvolvimento e Região do Pantanal – UNIDERP.
Formação em Psicologia Jurídica pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica – SBPJ. Membro da
Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica – SBPJ.
A Lei nº 12.318 de 26 de agosto de 2010, altera o artigo 236 da Lei nº 8.069
de 13 de julho de 1990, dispõe sobre a alienação parental e traz em seu art. 2º sua
conceituação:
Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica
da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores,
pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade,
guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao
estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.

A referida lei, visa proteger a criança ou adolescente que se encontre em


estado de alienação por parte do genitor ou indivíduo responsável por sua guarda ou
tutela, que dificulte de qualquer forma o convívio familiar e crie uma imagem que
gere desprezo da criança em ter ou manter contato com seu genitor, produzindo assim,
a Síndrome da Alienação Parental (SAP). A alienação parental, em outras palavras,
consiste na atuação (geralmente de um dos pais) no sentido de fazer com que o filho
passe a rejeitar e rechaçar o outro genitor, sem qualquer justificativa plausível para tal
(GARDNER, 1985).
A Alienação Parental, na grande maioria dos casos, ocorre nas separações
judiciais litigiosas, onde tem como vítima a prole que sofre danos psicológicos por
conta das brigas e discussões trazidas no processo de separação. O alienante traz fatos
fantasiosos ou distorcidos sobre o alienado, a fim de criar um estado de aversão para
que o menor não queira ter contato com o genitor alienado, mantendo assim, certo
controle sobre o filho.

1.1. Da Síndrome da Alienação Parental


Segundo Gardner, psiquiatra norte-americano e perito forense, relata em suas
publicações que, na década de 1970, passou a observar, em sua prática junto aos
juízos de família, que muitos filhos de casais em processo de divórcio apresentavam
um conjunto de “sintomas” em virtude de serem envolvidos nos conflitos sentimentais
entre os genitores, levando Gardner a cunhar a expressão “Síndrome da Alienação
Parental” – SAP.
Segundo Jorge Trindade: Entende-se a Síndrome de Alienação Parental como
um processo que consiste em programar uma criança para que odeie o outro genitor,
sem justificativa, fazendo uma espécie de campanha para a desmoralização do
mesmo, veja-se:
A síndrome foi definida pela primeira vez nos Estados Unidos por Richard Gardner
em 1987, mais tarde passou a ser difundida na Europa por F. Podevyn em 2001.
Despertando mais tarde um interesse na área de psicologia e do direito, por tratar se
de um problema que afeta as duas áreas. A psicologia jurídica se une para um
melhor entendimento dos fenômenos emocionais que acontecem com os atores
processuais, que no caso, seriam os envolvidos no divorcio ou separação, os filhos.
(TRINDADE, 2004, p. 161).

Gardner também elenca a SAP como um distúrbio infantil ocasionado em


razão da disputa de guarda:
A SAP é um transtorno infantil que emerge quase que exclusivamente no contexto
de disputa de guarda. Sua manifestação primária é a campanha da criança
direcionada contra o genitor para denegri-lo, campanha esta sem justificativa. Isso
resulta da combinação da “programação” (lavagem cerebral) realizada pelo outro
genitor e da própria contribuição da criança na desqualificação do pai alienado.
Quando o abuso e/ou negligência parental são presentes, a animosidade da criança
pode ser justificada e então a explicação de síndrome de alienação parental para
essa hostilidade não pode ser aplicada. (GARDNER, 2002, p.95)

Não se deve confundir a SAP com a simples alienação parental, como


descreve Priscila Maria:
A alienação parental é o afastamento do filho de uns dos genitores, provocado
pelo outro, via de regra, o titular da custodia. A síndrome da alienação parental,
por seu turno, diz respeito às sequelas emocionais e comportamentais de quem
padecer a criança vitima daquele alijamento.

Jorge Trindade vai mais além, descrevendo também a situação da criança


nesse meio, onde podemos identificar lesão aos direitos infantis, como descreve:

A Síndrome de Alienação Parental tem sido identificada como uma forma de


negligência contra os filhos. Para nós, entretanto, longe de pretender provocar
dissensões terminológicas de pouca utilidade, A Síndrome de Alienação Parental
constitui uma forma de maltrato e abuso infantil.

De acordo com Caroline Ribas Sérgio, a Síndrome da Alienação Parental -


SAP, é uma das inúmeras maneiras que o genitor possui para descontar os seus
sentimentos em relação ao outro genitor, fazendo com que a criança desenvolva de
maneira leve, moderada ou severa, o pânico em estar na presença do outro genitor, de
modo que a criança se afaste e crie situações de pânico, depressão e problemas
psicológicos em relação ao genitor alienado.(2)
A síndrome da alienação parental é exercida em vários estágios, são eles: leve,
moderado e grave. Esta divisão de categorias progressivas está relacionada com as
etapas de execução da Alienação Parental e o grau de comprometimento psicológico
da criança alienada.
No estágio leve a alienação é iniciada quando o filho começa a receber
informações negativas pelo genitor alienador sobre o genitor. Inicia o processo de
desconstituição da figura do genitor alienado minuciosa e gradativamente, passando o
filho a desconfiar e levemente repulsar o genitor alienado, embora ainda haja afeto.
No estágio moderado a criança alienada posiciona-se contrário às decisões do
genitor alienado e sua repugnação em face a este se torna mais nítida, deixando claro
o desejo de afastamento, tendo como modelo ideal o genitor alienador e o círculo a
que este pertence.
No estágio grave ocorre quando o filho alienado não aceita a proximidade do
genitor alienado e quando o faz, deixa claro que o afeto está se transformando em
ódio, repulsa. Neste último estágio está caracterizado a síndrome.
Assim, verifica-se que essa síndrome, resulta da programação da criança, por
parte de um dos pais, para que rejeite e odeie o outro, somada à colaboração da
própria criança – tal colaboração é assinalada como fundamental para que se
configure a síndrome.
A Síndrome da Alienação Parental pode ser considerada ainda, como mais do
que uma simples lavagem cerebral, pois inclui fatores conscientes e inconscientes que
levam um genitor a conduzir seu filho ao desenvolvimento dessa síndrome, além da
contribuição ativa na difamação do outro responsável.

1.2. Alienação Parental ou Alienação Familiar?


Não somente o genitor alienado e a criança sofrem pelo afastamento que a
alienação traz consigo, mas também, membros das famílias tornam-se impedidos ao
convívio da criança. Além do afastamento do genitor alienado, a criança pode sofrer
também o distanciamento entre irmãos, tios, avós, padrinhos e até mesmo os amigos
mais próximos, trazendo prejuízo à sua formação psicológica e seu desenvolvimento
social.
A criança forma um conceito ruim não só sobre o genitor alienado, mas
também de familiares e amigos, absorve e memoriza as afirmativas que denigrem a
imagem de seu genitor alienado e familiares e por si mesmo deseja o afastamento
destes, desta feita, o termo mais correto a se utilizar seria Alienação Familiar, tendo
em vista a abrangência maior do distanciamento das relações de convívio da criança,
pois, inclui além do genitor, a família e amigos do círculo social mais próximo do
genitor alienado.
Outro ponto importante é que a desmoralização do genitor alienado traz um
impacto muito grande ao processo, porque a criança não deseja mais estar convivendo
com o alienado, trazendo para si, por conta de boatos, consequências psicológicas que
podem perdurar por toda sua vida devido ao afastamento, que na maioria dos casos,
ocorre por partir de decisão judicial, sendo assim, na oitiva da criança, se não ocorrer
a perícia com cautela se obtém depoimento diverso da real situação e se a criança já
houver desenvolvido a Síndrome da Alienação Parental as chances de aparecerem
informações sugestivas são maiores ainda.

2. Da Importância da observância dos impactos psicológicos causados na


Criança nos Procedimentos Processuais
Há também que se falar nas situações de separação judicial, em grande
maioria dos casos a guarda provisória fica a encargo da genitora, caso errôneo, pois o
Código Civil/2002 deixa claro que em questões de disputa judicial de guarda, via de
regra, a guarda deve ser compartilhada e não unilateral, como descreve Paulo Lôbo:
“A guarda compartilhada é obrigatória, independentemente da concordância dos
pais separados. Assim é porque inspirada e orientada pelo superior interesse da
criança ou adolescente. Os interesses dos pais, diferentemente do que ocorria com
a predominância anterior da guarda unilateral, não são mais decisivos. (LÔBO,
2015, p. 177)”

Basta uma simples busca do assunto em questão em qualquer Tribunal que o


resultado é o seguinte: enquanto o processo judicial tramita, a guarda provisória cabe
exclusivamente à mãe, deixando ao pai provar a não veracidade dos fatos para
conseguir a guarda compartilhada, que deveria ser regra e não exceção, há também o
caso reverso, porém o índice é menor. Segundo Batista Sobroza Neto: “Toda sorte é
que malgrado esse prevalente entendimento o princípio do melhor interesse da
criança e adolescente sustentou a construção da doutrina e no Superior Tribunal de
Justiça a favor da aplicação da guarda compartilhada em casos de litígio.”
Vale ressaltar que além de melhor para a criança, por ampliar a convivência
com os pais, a guarda compartilhada também ajuda a minimizar os efeitos de uma
possível alienação parental, como descreve Leite (2003), a Guarda Compartilhada
aspira impedir que a criança crie uma imagem desvirtuada do genitor com quem
convive diariamente, uma vez que a partir da guarda compartilhada ele terá o
convívio com ambos, obstando ao genitor ressentido da separação da pratica de
Alienação Parental.
O Código Civil/2002 em seu artigo 1.632 prevê que não há qualquer alteração
na relação entre pais e filhos em caso de dissolução do casamento ou união dos
primeiros:
Art. 1.632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não
alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros
cabe, de terem em sua companhia os segundos”, outro ponto importante é a
capacidade parental, que deve ser levada em conta na decisão da guarda
provisória da criança.

Não há diferença, com exceção de alguns casos, da capacidade parental entre


o pai e a mãe, nas palavras de Maryorie Dantagnan e Jorge Barudy (2007), as
competências parentais correspondem à definição das habilidades práticas dos pais,
para cuidar, proteger e educar seus filhos, assegurando-lhes um desenvolvimento
saudável, sendo assim, não pode haver desigualdade entre os genitores, pois ambos
possuem poder familiar igual e a guarda deve ser decretada compartilhada já no início
do procedimento judicial. Somente este ato do judiciário acarreta um distanciamento
da criança, impedindo o convívio devido com ambos seus pais, abrindo espaço para a
alienação ocorrer tranquilamente e quando o genitor finalmente consegue provar sua
capacidade parental em juízo e consegue judicialmente a guarda compartilhada, a
própria criança decide não querer vê-lo com a frequência esperada, pois já possui uma
imagem ruim, denegrida pela alienação.
Mesmo que não haja alienação, o distanciamento entre o pai e a criança,
atrapalha o desenvolvimento deste. Está nítido o impacto que um simples ato no
início do processo traz à vida da criança, um sofrimento que poderia ser evitado tão
somente se houvesse um olhar crítico do judiciário.
Na mesma linha de pensamento, descreve Molinari e Trindade:
O comportamento alienante nega, assim, à criança a sua necessidade de segurança
e conforto, representando, por isso, uma parentalidade maligna e negativa, que
vem desestruturar as relações familiares e causar roturas no convívio da criança
com um dos seus progenitores e demais familiares, representando, por isso, um
desrespeito pela liberdade de afetos e pela instituição familiar, pela estabilidade e
manutenção dos laços familiares, pontos de referência da criança, do seu melhor
interesse e dos seus direitos fundamentais (Molinari e Trindade, 2013).

Salienta-se assim, que a saúde e bem-estar do menor devem ser zeladas por
todas as figuras presentes no processo judicial. A criança é detentora de direitos, seu
desenvolvimento mental sadio é de responsabilidade dos genitores e dos profissionais
que tratam da lide e também zelar em favor desta que se encontra em situação frágil
que pode lhe causar danos psicológicos.
3. Da fragilidade da Perícia da Criança Alienada
Se não detectada a Alienação pelo perito no momento da avaliação, a não
observância deste fato pode trazer sérias consequências ao processo, pois o judiciário
somente visa os fatos objetivos, atentando-se aos relatos da criança que em estado de
alienação transmite a mensagem do alienante, tão somente, por estar alimentado de
informações, treinado muitas vezes para falar o que o alienante deseja com falas que
facilmente podem ser identificadas como discursos de uma pessoa adulta, por possuir
vocabulários inadequados ou avançados para o nível intelectual de uma criança ainda
em seu processo de formação.
Se a perícia não ocorrer de acordo com os parâmetros descritos no Código de
Processo Civil ou se por acaso não for evidenciado de imediato a alienação, o
processo tramita normalmente e pode solucionar a questão processual, porém, ainda
está presente a injustiça do afastamento do menor do convívio familiar, pois não é
somente da mãe ou pai alienado que a criança acaba se afastando, mas também de
toda família e amigos, por conta da raiva que a criança toma pelo alienado.
Também ocorre que, se for constatado em outra fase processual o erro, a
criança outrora já sofreu o trauma e não há mais o que fazer para sanar o problema a
não ser o acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, claramente a criança sofreu
uma violação de direitos, uma violência psicológica, observa-se então a importância
de uma perícia acompanhada por um Assistente Técnico, que se encarrega de cuidar
do bem estar psicológico da criança e da observância do cumprimento de todos os
atos devidos para que a perícia possa ocorrer com o menor impacto possível sobre a
criança, protegendo-a como preconiza a Lei 13.431/17 que regulamenta e estabelece o
sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de
violência, em consonância com o artigo 19 da Convenção sobre Direitos da Criança
(promulgada pelo Decreto 99.710/90), cuja intenção é proteger integralmente a
criança e o adolescente contra todas as formas de violência, como se observa no
artigo 19 do Decreto no 99.710, de 21 de novembro de 1990:
Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas,
sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as
formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus
tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a
custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa
responsável por ela.

O Código de Processo Civil dispõe sobre o papel do Assistente Técnico, que é


portanto, pessoa de confiança da parte, nomeada para trabalhar em conjunto com o
perito, elaborando os quesitos que são respondidos pelo perito oficial e mais tarde a
elaboração de um Parecer Técnico fundamentado cientificamente,(2) trazendo mais
segurança e clareando área que talvez possa ser de menor conhecimento do Juiz, o
CPC também determina que é dever do perito observar a questão da comunicação do
Assistente Técnico em relação aos atos periciais, conforme dispõe o artigo 466
CPC/15 e seus parágrafos:
Art. 466. O perito cumprirá escrupulosamente o encargo que lhe foi cometido,
independentemente de termo de compromisso.
§ 1º Os assistentes técnicos são de confiança da parte e não estão sujeitos a
impedimento ou suspeição.
§ 2º O perito deve assegurar aos assistentes das partes o acesso e o
acompanhamento das diligências e dos exames que realizar, com prévia
comunicação, comprovada nos autos, com antecedência mínima de 5 (cinco) dias.

De acordo com Liliane Santi “A indicação de um perito assistente técnico é


de fundamental importância para dar segurança e eficiência à produção da prova
pericial, pois, cabe a esse profissional fazer a interface de comunicação com o perito
do juízo e evidenciar os aspectos técnicos de interesse ao esclarecimento da matéria
fática sob a ótica da parte que o contratou, de modo que o cliente não seja
prejudicado por visões unilaterais, distorcidas da realidade ou que não sejam
suficientemente abrangentes para o magistrado formar sua convicção”.
Há também que se falar em uma centralização pericial, quando houver mais de
um processo tramitando, como por exemplo, nos casos em que há acusação de abuso
sexual da criança, o trabalho do assistente técnico e perito em conjunto facilita a
análise do quadro da criança e a detecção de falsas memórias, é importante que a
criança seja ouvida para relatar os fatos o menor número de vezes possível, o ideal
seria somente uma vez, pois na perícia a criança está submetida a uma série de
perguntas com um peso grande para sua idade, deve-se evitar a revitimização, porque
se procedentes as acusações de abuso, a criança sofre ainda mais com a situação, e
força-la a relembrar um fato tão traumático fere ainda mais sua saúde mental, é algo
que a criança já vai carregar pelo resto de sua vida, então, é necessário a devida
atenção ao seu bem-estar e minimizar o máximo possível os traumas advindos do
procedimento judicial. Bittencourt (2009, p. 90) explana acerca desta problemática:
As inadequadas intervenções do aparato estatal acabam produzindo nova (re)
vitimização, e até a destruição de eventuais provas dos fatos imputados ao
acusado. Desafortunadamente, o Estado não está equipado com recursos materiais
e humanos capazes de proteger e preservar a vítima em sua integridade moral,
psicológica e socioafetiva. Trata-se de um sistema dirigido a adultos, sem pessoal
especializado a intervir com crianças e adolescentes frágeis e vulneráveis, sem
estrutura adequada a 33 possibilitar que essas vítimas sejam preservadas de novos
abusos e corretamente informadas dos procedimentos adotados. Referimo-nos a
falta de delegacias especializadas, do despreparo do pessoal encarregado do
atendimento a vítima infanto-juvenis, ausência de estrutura para exames físicos
periciais necessários, carência de médicos peritos especializados em crimes
sexuais que envolvam vítimas infanto-juvenis, e, por fim, inabilidade dos
operadores do direito em geral para lidar com vítimas especiais e falta de estrutura
física para recepcionar e ouvir tais vítimas em processo judicial. O percurso da
vítima de crime sexual traduz-se num sistema estatal de violência.
(BITTENCOURT, 2019).

Desta feita, destaca-se a importância de uma perícia cautelosa, rica na


observância dos detalhes, cuidando primeiramente da saúde psíquica da criança, pois
esta, encontra-se em fase de construção e além disso possui direitos como indivíduo,
também é merecida devida atenção quanto à receptividade do perito ao trabalho em
conjunto com os assistentes técnicos, pois estes são elegidos pela parte, desempenham
papel de suma importância, ombreado com o perito na melhor maneira para se buscar
respostas sem traumatizar ainda mais a criança e trazendo mais segurança à análise
pericial.

4. Da Falsa Memória e seu impacto no Depoimento da Criança


Segundo Iván Izquierdo, “Memória” significa aquisição, formação,
conservação e evocação de informações. A aquisição é também chamada de
aprendizado ou aprendizagem: só se “grava” aquilo que foi aprendido. A evocação é
também chamada de recordação, lembrança, recuperação. Só lembramos aquilo que
gravamos, aquilo que foi aprendido.
As falsas memorias são recordações de situações que não aconteceram de fato,
assim define Stein acerca das falsas memórias:
A mesma memória que é responsável pela nossa qualidade de vida, uma vez que,
é a partir dela que nos constituímos como indivíduos; sabemos nossa história,
reconhecemos nossos amigos, apresenta erros e distorções que podem mudar o
curso de nossas ações e reações, e até mesmo ter implicações sobre a vida de
outras pessoas. (STEIN, 2010, P 22).

Cabe ressaltar que as falsas memórias se diferem de mentiras, pois naquele as


recordações são fatos que nunca ocorreram e são tidas como reais, são invenções ou
sugestões que a criança realmente acredita, e se “recorda” com riqueza de detalhes, a
mentira por outro lado é uma narrativa inventada intencionalmente. Juliana Almeida
faz um paradigma entre a mentira e a falsa memória:
A mentira é uma narração deliberadamente distorcida ou inventada, não
correspondendo com a realidade. Existe no caso um elemento subjetivo essencial,
qual seja a plena consciência de a história contada não corresponder aos fatos. Já
as falsas memórias, não existe a intenção de distorcer ou inventar fatos, pois o
indivíduo acredita na real existência da situação na forma como relatada. Para a
pessoa, trata-se de uma lembrança como qualquer outra, porém o fato sequer
aconteceu ou pelo menos não aconteceu daquela forma ou naquele contexto, por
isso a dificuldade em sua identificação nos casos concretos. (ALMEIDA
GALINDO DO NASCIMENTO, 2018).

As Falsas Memórias começaram a ser estudadas em 1900 por Alfred Binet e


versavam sobre as características de sugestionabilidade da memória, que seria a
incorporação e recordação de informações falsas que o sujeito tenha como verdadeira,
seja de origem interna ou externa (STEIN, 2010). Uma das importantes contribuições
deste pesquisador foi categorizar a sugestão na memória em dois tipos: autossugerida
(isto é, aquela que é fruto dos processos internos do indivíduo) e deliberadamente
sugerida (isto é, aquela que provém do ambiente). As distorções mnemônicas
advindas desses dois processos foram posteriormente denominadas de FM [falsas
memórias] espontâneas e sugeridas (NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 23).
Juliana Almeida explana sobre a dificuldade e a delicadeza em identificar as
falsas memórias: “Assim como o fenômeno da alienação parental, a constatação da
existência de falsas memórias dentro dos processos em andamento no judiciário
brasileiro, ainda é um procedimento pouco visto. Tal fato se deve, principalmente a
complexidade que envolve os casos e a necessidade de existência de uma análise
multidisciplinar, com não só uma equipe jurídica preparada, mas todo um corpo de
especialistas na psicologia humana.”
Os profissionais da área (psicólogos, assistentes sociais e operadores do
Direito) precisam ter conhecimento que a memória da criança vítima de alienação
parental pode sofrer distorções decorrentes do processo alienador. A exposição a
informações falsas, é um dos fatores que podem provocar o aparecimento, no relato
da criança, de situações que jamais ocorreram.
A sugestão de informações falsas muitas vezes se faz presente no processo de
alienação parental, as vezes até de modo inconsciente, pois o genitor comprometido
na campanha de difamação do outro genitor tenta convencer a criança de que o outro
pai lhe causou um mal. As sugestões são facilmente incorporadas à memória da
criança, ocasionando falsas memórias (e. G. OTGAAR, CANDEL,
MERCKELBACH e WADE, 2009).
Desta feita, está claro a dificuldade em identificar falsas memórias e a
complexidade da atuação na avaliação da criança.

Considerações Finais
Ao final deste capítulo conclui-se que a Alienação Familiar traz sérios
problemas à vida da criança, os genitores e profissionais envolvidos devem ter um
olhar atento ao bem-estar e à saúde mental da criança em uma situação de disputa de
guarda, tratando de amenizar os problemas psicológicos advindos durante o
desenrolar processual. Também é de suma importância o olhar clínico quanto à
identificação da Síndrome da Alienação Parental – SAP na criança, para este
resultado, faz-se necessário uma visão interdisciplinar entre Direito e Psicologia para
amenizar os traumas psicológicos causados na criança advindos da lide processual.
Também foi elencado a dificuldade em identificar falsas memórias nas
crianças que sofrem com a Síndrome da Alienação Parental e a necessidade do
trabalho em conjunto dos Assistentes Técnicos e Peritos, a união das duas áreas traz
maior cuidado em relação à saúde mental da criança e mais segurança jurídica ao
laudo pericial. Está nítido que o trabalho interdisciplinar somente traz benefícios às
partes envolvidas, além de minimizar os impactos negativos advindos do processo
judicial, também apresenta laudo que auxilia o magistrado para uma visão mais clara
na tomada de decisão.

Referências
ALMEIDA GALINDO DO NASCIMENTO, Juliana. As implicações das
falsas memórias nas provas do processo de alienação parental. Pernambuco:
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Direito da Universidade
Federal de Pernambuco- UFPE 2018.

BITENCOURT, Luciane Potter. Vitimização secundária infanto-juvenil e


violência sexual intrafamiliar: Por uma política pública de redução de danos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009.

BRASIL. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de


garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e
altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente),
Brasília, 2017.
BRASIL. Lei nº 12.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.
Brasília, 2015.

FONSECA, Priscila Maria Corrêa da. Bacharel em ciências Jurídicas e Sociais


pela Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica. Artigo
publicado em Pediatria (São Paulo), 2006, p.12.

GARDNER, Richard A. Does DSM-IV Have Equivalents for the Parental


Alienation Syndrome (PAS) Diagnosis? Artigo não publicado. Aceito para publicação
em 2002. Disponível em: <http://www.fact.on.ca/Info/pas/gard02e.htm>. Acesso em:
22/08/2019.

GOIS, Marilia Mesquita. Alienação Parental. Disponível em


https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5841/Alienacao-parental. Acesso em
22/08/19.

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LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

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Coparentalidade Maligna, Associação Brasileira da Criança Feliz, 2013, disponível
em http://criancafeliz.org/wp/alienacao-parental-coparentalidade-maligna/. Acesso em
22/08/19

MUCCILLO BAISCH, Victoria. Alienação parental, sugestões falsas e falsas


memórias. JUSBRASIL. 2015. Disponível em
https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/185079112/alienacaoparental-
sugestoes-falsas-e-falsas-memorias. Acesso em 22/08/19.

OTGAAR, Henry, CANDEL, Ingrid, MERCKELBACH, Harald, WADE,


Kimberly A. Abducted by a UFO: prevalence information affects Young children’s
false memories for an implausible event. Applied Cognitive Psychology. v. 23, 2009,
p. 115-125.

RIBAS SÉRGIO. Caroline. A síndrome da alienação parental e seus reflexos


no âmbito familiar. DireitoNet. 2018. Disponível em:
https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/10632/A-sindrome-da-alienacao-
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SANTI, Liliane. Estudo Psicossocial: a função do psicólogo assistente técnico


nas Varas de Família. Jusbrasil. Disponível em
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STEIN, Lilian Milnitsky e colaboradores. Falsas Memórias: Fundamentos


científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed. 2010.
TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores de
Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado. Editora, 2004.
A ALIENAÇÃO PARENTAL E OS EFEITOS
DECORRENTES SOBRE OS FILHOS

Andressa Schneider Andrighetto Bresolin6

Introdução

A Alienação Parental é um dos temas mais delicados tratado pelo Direito de


Família, devido aos efeitos emocionais e psicológicos negativos causados na relação
entre pais e filhos, decorrentes de disputas familiares que permeiam uma separação.
Ocorre a interferência na formação psicológica da criança e do adolescente gerada ou
induzida por um dos pais, avós ou outro adulto que tenha a guarda, ou que seja
responsável pelo infante, objetivando prejudicar o seu vínculo com o genitor, ferindo
o direito fundamental à convivência familiar saudável e descumprindo deveres
relacionados à autoridade parental ou decorrente da tutela.

Efeitos traumáticos acompanhados de sentimento de abandono, rejeição e


traição são desencadeados quando não há a elaboração do luto conjugal, iniciando
então um processo de destruição, de desmoralização, de descrédito ao ex-cônjuge,
sendo os filhos levados a odiar o genitor, conforme Maria Berenice Dias.

Diante disso, o Brasil inseriu em seu ordenamento jurídico a Lei de Alienação


Parental nº. 12.318/2010 que visa a evitar que a relação de filhos com um dos pais
seja sabotada por algum familiar. Exemplificativamente, conforme artigo 2º,
parágrafo único, da aludida legislação, caracteriza-se alienação parental: mudar de
endereço sem justificativa, dificultar o contato da criança com o genitor, realizar
campanha de desqualificação ou apresentar falsa denúncia, etc. Em que pese a Lei
citada busque a proteção da criança ou adolescente, sua aplicação correta é um
verdadeiro desafio em virtude da dificuldade de comprovação da efetiva prática
alienante.

Em decorrência da gravidade de atos dessa natureza, os filhos submetidos à


Alienação Parental expressam sinais de ansiedade, nervosismo, agressividade,
depressão entre muitos outros, variando conforme a idade da criança e o grau de

6
Bacharel em Direito pela UNIVALI e em formação em Psicologia Forense pela Sociedade Brasileira
De Psicologia Jurídica - SBPJ.
influência exercido sobre ela. “Não estamos tratando apenas de um fenômeno
jurídico, mas também social e psicológico”, afirma Fernanda Molinari (2018, p.15).

As consequências podem ser devastadoras nas vidas das crianças ou


adolescentes envolvidos, sendo necessário, portanto, dedicar um olhar
multidisciplinar a essas vítimas a fim alcançar o almejado conceito de proteção
integral, preconizado no artigo1º do Estatuto da Criança e Adolescente.

1. Alienação parental e a Síndrome da Alienação Parental


A Alienação Parental é um fenômeno proveniente da dissolução do casamento
ou da união estável, quando a família muitas vezes encontra-se inapta a lidar com a
ruptura conjugal, sendo provocada por um dos genitores e tendo como vítima os
filhos, que passam a odiar e temer o outro genitor, de forma imotivada, destruindo a
figura materna ou paterna. “Os filhos são utilizados como instrumento de
agressividade direcionada ao outro, gerando sentimentos de abandono e rejeição
provenientes de uma relação não adequadamente resolvida através de um luto
elaborado” (TRINDADE, 2017, p. 382).

Cabe ressaltar que atualmente são diversas as modalidades de famílias


existentes, devido às constantes modificações fáticas que se constatam no Direito de
Família, atualizações estas que, por exemplo, consolidaram a importante equiparação
de direitos e deveres entre os genitores, positivando reciprocamente os conceitos de
educar, amar, prover o sustento, etc. No entanto, a Alienação Parental ainda
manifesta-se com mais frequência no ambiente materno, já que o encargo da guarda
historicamente continua sendo imputado à genitora na maioria dos casos, segundo
afirma Podevyn (2001) citado por TRINDADE (2017).

Conforme Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p. 134):


“A sociedade moderna tinha a ideia de que em caso de dissolução da sociedade conjugal,
a guarda dos filhos era preferencialmente da mãe. Isso porque havia a noção de que a mãe
teria um instinto materno, que garantiria à criança um desenvolvimento saudável, daí
criou-se o mito de que a mulher seria a mais apta a ficar com a guarda dos filhos”.

A Alienação Parental ocorre dentro do âmbito familiar, causando efeitos


devastadores em todos os envolvidos, principalmente nos infantes, aqueles que
deveriam justamente estar protegidos nesse momento de conflito. A prática inicia-se
com uma dinâmica para denegrir a imagem, a personalidade do outro genitor, fazendo
com que a criança passe a odiá-lo, querendo distância, muitas vezes podendo agravar-
se até a Síndrome de Alienação Parental (SAP), quando os próprios filhos introjetam
a alienação, passando a odiar o genitor alienado, de acordo com Jorge Trindade In
Maria Berenice Dias (2010).
“A Síndrome de Alienação Parental (SAP) é um distúrbio da infância que aparece
quase exclusivamente no contexto de disputas de custódia de crianças. Sua
manifestação preliminar é a campanha denegritória contra um dos genitores, uma
campanha feita pela própria criança e que não tenha nenhuma justificação.
Resulta da combinação das instruções de um genitor (o que faz a “lavagem
cerebral, programação, doutrinação”) e contribuições da própria criança para
caluniar o genitor-alvo. Quando o abuso e/ou a negligência parentais verdadeiros
estão presentes, a animosidade da criança pode ser justificada, e assim a
explicação de Síndrome de Alienação Parental para a hostilidade da criança não é
aplicável” (GARDNER, 2002).

Caso a destruição do vínculo perdure por longo tempo, a morte simbólica da


separação produzirá a morte real do genitor alienado, restando à identificação com o
genitor patológico e, portanto, uma opção pela doença, ou, pelo menos com parte
menos saudável desse genitor, segundo Jorge Trindade (2017).

Falsas memórias são implantadas quando o filho vive com falsos personagens
de uma falsa existência. A criança manipulada acredita naquilo que lhe foi dito e com
o tempo nem o genitor alienante consegue perceber diferença entre a verdade e a
mentira. A sua verdade passa a ser a verdade para a criança.
“Muitas vezes da ruptura da vida conjugal, quando um dos cônjuges não consegue
elaborar adequadamente o luto da separação e o sentimento de rejeição, de
traição, surge um desejo de vingança que desencadeia um processo de destruição,
de desmoralização, de descrédito do ex-parceiro. Nada mais do que uma
“lavagem cerebral” feita pelo guardião, de modo a comprometer a imagem do
outro genitor, narrando maliciosamente fatos que não ocorreram ou que não
aconteceram conforme a descrição dada pelo alienador. Assim, o infante passa
aos poucos a se convencer da versão que lhe foi implantada, gerando a nítida
sensação de que essas lembranças de fato aconteceram. Isso gera contradição de
sentimentos e destruição do vínculo entre o genitor e o filho. Restando órfão do
genitor alienado, acaba se identificando com o genitor patológico, passando a
aceitar como verdadeiro todo que lhe é informado.” (DIAS, 2010, p. 455-456).

Quando adulta, consciente ou inconscientemente, a vítima perceberá a


insuportabilidade de viver no registro falso oriundo da alienação ou de sua promoção.
Nesse contexto, é fundamental a intervenção já nos primeiros sinais, por profissionais
da área da saúde mental, para evitar os desgastes de um processo judicial, que pode
vir a deteriorar ainda mais a relação entre os genitores, revitimizando os filhos já
conflituados pela separação dos pais. Para tanto, recomenda-se que os genitores sejam
avaliados separadamente e, constatado que nenhum deles representa perigo para os
filhos, o trabalho da mediação pode iniciar, com o objetivo de evitar a instauração da
Síndrome da Alienação Parental, de modo que, se esta primeira fase falhar, deve-se
adotar atitude mais rígida e, então, recorrer ao sistema judicial (TRINDADE, 2017).

A Lei de Alienação Parental nº. 12.318, aprovada em 26 de agosto de 2010,


objetiva inibir sua prática e proteger os direitos individuais da criança e do
adolescente, vítimas de abuso exercido pelos genitores. Pela relevância, válida e
elucidativa a transcrição de excerto da mencionada legislação:
Artigo 2º: Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação
psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos
genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua
autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo
ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos
atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente
ou com auxílio de terceiros:
I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da
paternidade ou maternidade;
II - dificultar o exercício da autoridade parental;
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a
criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra
avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar
a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste
ou com avós.
A Lei prevê, ainda, que a guarda do filho, nas hipóteses em que a
compartilhada for inviável, será concedida preferencialmente ao genitor que
viabilizar a efetiva convivência do infante com o outro genitor. Além disso,
caracterizados, em ação autônoma ou incidental, atos típicos de Alienação Parental
ou qualquer conduta que dificulte a convivência da criança ou adolescente com um
dos genitores, o juiz poderá aplicar diversas medidas processuais, a fim de inibir ou
atenuar seus efeitos, sem prejuízo de eventual responsabilização civil ou criminal.
Entre as medidas previstas a serem aplicadas pelo juiz, segundo a gravidade de cada
caso, estão: advertência, ampliação do regime de convivência, multa,
acompanhamento psicológico, fixação cautelar de domicílio, inversão da guarda e
suspensão da autoridade parental.
A Alienação Parental consiste em programar a criança para odiar um de seus
genitores, até que a própria criança ingresse na trajetória da desconstrução desse
genitor, ou seja, a instauração, da Síndrome da Alienação Parental (TRINDADE,
2017).

A convivência familiar é fator essencial da personalidade infantil, pois a


criança não cresce de maneira saudável sem a construção de um vínculo afetivo
estável e verdadeiro com adultos, preferencialmente, com seus pais naturais. O
estabelecimento de vínculos afetivos é substancial à condição humana e se constitui
num requisito essencial ao desenvolvimento. O direito da criança e adolescente
considera os vínculos familiares uma condição da convivência. Assim, não basta
sobrevivência e sim, participar de uma rede afetiva onde possa crescer e se
desenvolver de forma plena (TRINDADE, 2017).

Sem que haja um apoio psicológico, talvez a vítima da Alienação Parental


nunca perceba pelo que passou, evidenciando a importância de recorrer a um terceiro,
um protetor que pode ou não ser uma instituição, a fim de romper esse círculo vicioso
proveniente da Alienação Parental, neutralizando a ação maligna do genitor alienador
(TRINDADE, 2017).

Conforme Gardner (2002) In TRINDADE E MOLINARI (2018, p.32), “são


critérios para identificação da SAP:

• Campanha denigritória contra o genitor alienado;


• Racionalizações fracas, absurdas ou frívolas, para a depreciação;
• Falta de ambivalência; Fenômeno do “pensador independente”;
• Apoio automático ao genitor alienador no conflito parental;
• Ausência de culpa sobre a crueldade e/ou exploração contra o genitor
alienado;
• Presença de encenações “encomendadas”;
• Propagação da animosidade aos amigos e/ou à família extensa do
genitor alienado.

A Síndrome de Alienação Parental possui três estágios: leve, médio e grave,


explicitados a seguir por Madaleno e Madaleno (2015, p.46):
“No estágio leve, as crianças convivem com o genitor alvo sem grandes
dificuldades. O mais (comum) são apenas alterações naturais que ocorrem após o
divórcio.
No estágio médio, está a constante provocação do genitor alienante, que se
utiliza de falsas histórias e sua repetição, bem como da depreciação do genitor alvo,
induzindo a criança a nutrir por este sentimento de rancor, ódio e medo.
Já no estágio grave, a criança e/ou adolescente sofre de fortes perturbações
mentais e crises de alucinação, tanto que não mais necessita da figura do genitor
alienante para induzi-la ao ódio e ao medo pelo genitor alvo, uma vez que esta já está
totalmente corrompida e nutrida por sentimentos negativos face ao genitor oposto da
relação de parental, de forma que a visitação nesta fase se torna impossível e/ou
insuportável, devido à agressividade da criança."
Do que se depreende do artigo 6º da Lei nº 12.318/2010, dependendo do grau
de alienação parental, denunciada no estudo a ser elaborado por assistente social, e
também do parecer do psicólogo, o juiz poderá adotar as providências dos seguintes
incisos, de acordo com gravidade detectada:
Art. 6º Caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que
dificulte a convivência de criança ou adolescente com genitor, em ação autônoma
ou incidental, o juiz poderá, cumulativamente ou não, sem prejuízo da decorrente
responsabilidade civil ou criminal e da ampla utilização de instrumentos
processuais aptos a inibir ou atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso:
I - declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador;
II - ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado;
III - estipular multa ao alienador;
IV - determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial;
V - determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua
Inversão;
VI - determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente;
VII - declarar a suspensão da autoridade parental

2. Síndrome das Falsas Memórias

“A Síndrome das Falsas Memórias traz em si a conotação das memórias


fabricadas ou forjadas, no todo ou em parte, na qual ocorrem relatos de atos
inverídicos, supostamente esquecidos por muito tempo e posteriormente relembrados.
Podem ser implantadas por sugestão e consideradas verdadeiras e, dessa forma,
influenciar o comportamento” (REICHERT, 2008, p. 215).

As falsas memórias são aquelas que têm relação ao fato de ser uma crença de
que um fato aconteceu sem realmente ter ocorrido. Essas recordações são muito
subjetivas e possuem informações da pessoa, isto é, cada indivíduo tem a sua própria
maneira de ver, sentir e reagir a cada acontecimento.

Maria Berenice Dias (2009, p.17) enfatiza que:


“Neste jogo de manipulações, todas as armas são utilizadas, inclusive a assertiva
de ter havido abuso sexual. O filho é convencido da existência de um fato e
levado a repetir o que lhe é afirmado como tendo realmente ocorrido. A criança
nem sempre consegue discernir que está sendo manipulado e acredita naquilo que
lhe foi dito de forma insistente e repetida. Com o tempo, nem a mãe consegue
distinguir a diferença entre verdade e mentira. A sua verdade passa a ser verdade
para o filho, que vive com falsas personagens de uma falsa existência,
implantando-se, assim, falsas memórias.”

Na Síndrome da Alienação Parental, pode eventualmente ser utilizada a


implantação de falsas memórias, mas o objetivo é afetivo, é programar uma criança
para que odeie, sem justificativas, um de seus genitores, decorrendo daí que a própria
criança contribui na trajetória de campanha de desmoralização, sendo este contexto
um campo fértil para o surgimento de falsa denúncia de abuso sexual. Os alienadores
por meio de repetição e sugestão podem influenciar na produção de falsas memórias
aos filhos, os quais muitas vezes passam a acreditar que o abuso de fato ocorreu
(TRINDADE, 2017).

3. Identificação e comportamento do alienador

De suma importância a identificação do genitor alienador, que pode ser tanto a


mãe, como o pai ou um terceiro como os avós, tios, tias, tutores, dentre outros. A lei
dispõe que o alienador é aquele que detém a guarda da criança e a incentiva a repudiar
o outro genitor. Na maioria dos casos, quem ocupa o pólo ativo deste conflito é a mãe.
Analisando os dados sobre o assunto, é possível constatar que a genitora tem uma
tendência maior de desenvolver a síndrome, do que o genitor.

Comportamentos mais frequentes do alienador: Sentimentos destrutivos de


ódio, de ciúmes, de ódio exacerbado por fatores econômicos, de superproteção do
alienador em relação aos filhos, mudanças súbitas radicais, inadequados de cuidado
dos filhos, de medo e de incapacidade perante a vida, nas palavras de Jorge Trindade
(2017).

Segundo Podevyn (2001) por Trindade (2017, p. 388-389):


Comportamentos Clássicos de um Genitor Alienador
Recusar ou dificultar passar as chamadas telefônicas aos filhos;
Organizar várias atividades com os filhos durante o período que o outro
genitor deve,
Apresentar normalmente,
o novo exercer
cônjuge aos filhoso como
direito“nova
de visitas;
mãe” ou “novo pai”;
Desvalorizar e insultar o outro genitor na presença dos filhos;
Recusar informações ao outro genitor sobre as atividades em que os filhos
estão
Falar envolvidos
de maneira (esportes, atividades
descortês do escolares,
novo cônjuge grupos
ao outro teatrais, escotismo,
genitor;
etc.);
Impedir o outro genitor de exercer seu direito de visita;
“Esquecer” de avisar o outro genitor de compromissos importantes (dentistas,
médicos, psicólogos);
Envolver pessoas próximas (sua mãe, seu novo cônjuge, etc.) na lavagem
cerebraldecisões
Tomar de seus importantes
filhos; a respeito de seus filhos sem consultar o outro
genitor (escolha
Trocar (ou tentar)daseus
religião,
nomes escolha da escola, etc.);
e sobrenomes;
Impedir o outro genitor de ter acesso nas informações escolares e/ou médicas
dos filhos;
Sair de férias sem os filhos e deixá-los com outras pessoas que não o outro
genitor,
Falar aosainda
filhosque
queeste
os esteja disponível
presentes do outroe genitor
queira ocupar-se de seus ou
são inadequados filhos;
feios e
proibi-lospunir
Ameaçar de usá-los;
os filhos s eles telefonarem, escreverem ou se comunicarem
com o outro
Culpar genitor
o outro de pelo
genitor qualquer
mau maneira;
comportamento dos filhos;
Interceptar as cartas e os pacotes mandados aos filhos.

4. Efeitos decorrentes da Alienação Parental nos filhos

Em se tratando de ruptura conjugal, o sofrimento dos cônjuges ou do cônjuge


abandonado (quando for o caso) perde relevância quando há filhos envolvidos no
conflito. Os especialistas garantem que os filhos são, de longe, os mais prejudicados.
Principalmente quando vítimas da Síndrome da Alienação Parental.
Os efeitos decorrentes da Alienação Parental nos filhos variam de acordo com
a idade da criança, com as características de sua personalidade, com o tipo de vínculo
anteriormente estabelecido, e com a capacidade de resiliência (da criança e do
cônjuge alienado), além de inúmeros outros fatores, alguns mais explícitos, outros
mais recônditos (TRINDADE, 2017).
Dessa ruptura supracitada, de acordo com Seijo e Farina (2000) citados por
Trindade (2007, p.418-421), são consequências geradas nas vidas dos filhos:
Problemas escolares: a criança pode apresentar desinteresse ou desmotivação
pela escola; ocorrências de estereótipos negativos que geram entre os colegas efeitos
prejudiciais no âmbito emocional, social e pedagógico; diminuição do rendimento
escolar.
Sentimentos de abandono: crianças pequenas não conseguem compreender
porque um dos pais, geralmente o pai, deixou o lar e tendem a interpretar essa
situação em termos de abandono e culpa; conflitos decorrentes da separação ou do
processo do divórcio, inclusive patrimoniais, costumam envolver os pais, que, nesse
contexto, reduzem o tempo de dedicação aos filhos. Muitas crianças sentem-se
abandonadas por seu progenitor não custódio.
Sentimentos de impotência: ruptura; desestruturação do lugar da família;
saída do pai não custódio para outra casa ou família; novo domicílio e novos vizinhos;
nova escola, novos colegas e novos professores; mudança na situação econômica.
Insegurança: Os sentimentos de abandono, rechaço, impotência, desamparo e
dependência provocam insegurança na criança, enquanto a situação for instável, mas
tende a desaparecer quando o contexto familiar se normaliza.
Condutas regressivas: enurese noturna; rechaço da escola e dos grupos de
amigos; as crianças podem ficar poliqueixosas e solicitantes; outras vezes,
excessivamente cooperativas.
Comportamento disruptivo e antissocial: devido aos sentimentos de
frustração; agressividade, inclusive com genitores, irmãos, outros familiares,
professores e colegas; irritabilidade; hostilidade; oposição; mentiras ou pequenos
furtos com características de reação ao trauma decorrente da separação ou do
processo de divórcio dos pais.
Condutas repetitivas: uma forma de controlar a própria vida. Quando
persistem ou muito intensas, sugerem patologias da rigidez, podendo ser muito
disruptivas na adolescência.
Sentimento de culpa: principalmente quando a separação coincide com o
auge da conflitiva edípica.
Medo e depressão: somatização, que consiste em deslocar os conflitos
emocionais para o corpo; preocupações intensas com abandono, com doença ou com
morte; incapacidade para dormir na casa de amigos ou parentes; medo de conciliar o
sono; não participar das atividades escolares; isolamento, perda de apetite; ideias
suicidárias, que levam a pensar em depressão severa.
Variáveis de ajuste psicossocial das crianças a partir da separação ou do
processo de divórcio dos pais: gênero da criança; idade no momento da separação;
nível de conflito interparental; separação de uma das figuras de apego; tipo de relação
da criança com o genitor custódio ou não custódio; novos matrimônios; relação
residual dos pais; aspectos econômicos.
Os filhos normalmente não detectam o momento crítico pelo qual estão
passando, tampouco às manipulações a que estão sujeitos, aderindo à campanha feita
pelo alienador e se afastando do genitor alienado, numa crise de lealdade. Os sintomas
da Síndrome da Alienação Parental manifestam-se inicialmente no filho mais velho,
até porque esse se sente responsável pela proteção dos irmãos mais novos. Cabe ao
profissional da área psicológica mostrar a esses filhos que eles não precisam e nem
devem sentir-se culpados pelas vontades incongruentes dos pais sendo possível a
preservação do afeto com ambos, independente dos conflitos existentes. Com
acompanhamento psicológico a Síndrome da Alienação Parental é desarticulada,
ocorrendo à desprogramação dos comportamentos alienantes, e permitindo aos filhos
através de sua livre convicção fazer a leitura da postura do alienado e do alienador,
assim se aproximando progressivamente da verdade dos fatos e dos sentimentos
genuínos em relação aos pais. O sinal mais preocupante é a indiferença, e não o ódio,
pois este contém amor, assim como amor contém ódio, em concordância com Jorge
Trindade (2017).
Ao Poder Judiciário cabe estancar tal conduta, impedindo que a Síndrome da
Alienação Parental venha se instalar. É imperioso que os juízes percebam elementos
identificadores da alienação parental, determinando, nesses casos, rigorosa perícia
psicossocial, para então adotar as medidas necessárias para a proteção integral das
vítimas, respeitando o Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente,
que assegura de forma absoluta o direito à vida, à saúde, ao lazer, à educação, à
dignidade, bem como à convivência familiar e comunitária.
Conforme Molinari e Trindade (2018, p. 21):
“Com mais um importante reconhecimento nesse sentido de violência
interparental é que a Alienação foi incluída na Classificação Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, o CID-11, que entrará em vigor em
janeiro de 2022".
Isso porque Alienação Parental é uma forma de violência contra a criança e o
adolescente, acarretando-lhes danos psicológicos, sejam cognitivos, sejam
comportamentais, fazendo desabrochar na criança sequelas irreversíveis no seu
desenvolvimento que podem perdurar até a vida adulta. A propósito, estudos apontam
que esses filhos têm um índice elevadíssimo de recorrerem ao uso de drogas e álcool,
para tentar de alguma forma aliviar o sentimento de culpa que sentem pelo profundo
mal-estar e desajustamento (TRINDADE, 2017).

Considerações Finais
A Alienação Parental encontra-se cada vez mais presente nas famílias, após a
ruptura da relação matrimonial, sendo, portanto, indispensável entender, sobretudo,
que a família em geral e todo seu contexto, vem enfrentando diversas mudanças em
seus aspectos.
As famílias apresentam-se cada vez mais progressistas, não sendo possível
observar no casamento aquele vínculo perpétuo como antigamente, pois, nos dias
atuais, casar e logo após separar-se, tornou-se corriqueiro. Não obstante essa
efemeridade, quando da relação que está sendo encerrada advém filhos, o assunto
necessita ser tratado com cuidado.
O que se vem constatando é que crianças e adolescentes são usados pelos pais
na tentativa de vingar-se do ex-cônjuge, mediante introdução de uma memória
totalmente distinta da realidade ou mera campanha de desmoralização, assim afetando
o seu psicológico, induzindo o filho a criar uma aversão ao genitor alienado
culminando no afastamento entre eles. Assim se configura a Alienação Parental e, por
conseguinte, surgem as vítimas da Síndrome da Alienação Parental.
Os efeitos da Síndrome da Alienação Parental na vida destas vítimas podem
ser devastadores: a violência física e emocional sofrida pela criança, a falta de
carinho, amor e atenção, afetando, assim, seu comportamento e seu relacionamento
para com um de seus genitores, criando negativos sentimentos de repúdio, desprezo e
até mesmo rejeição.
A partir da promulgação da Lei nº 12.318/2010 surgiram expectativas de
atenuar os efeitos decorrentes dessa prática por meio da ação do Judiciário, aliado ao
auxílio de um profissional técnico da área da Psicologia.
Conclui-se, assim, que é de suma importância o combate à prática de
Alienação Parental, considerando que, com surpreendente frequência, crianças e
adolescentes estão sendo desrespeitados dentro do próprio lar e por seus próprios pais,
mesmo sendo sujeitos de direito a quem o ordenamento jurídico prevê especial
proteção.

Referências
BRASIL (2010). Presidência da República. Lei 12.318, de 26 de agosto de
2010. Brasília: Diário Oficial da União.
BRASIL (2010). Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/90, de 13
de julho de 1990. Brasília: Diário Oficial da União.
DIAS, Maria Berenice. Alienação Parental e suas consequências. Disponível
em: http://www.mariaberenice.com.br> Acesso em: 12. ago. 2019
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5a edição. São Paulo:
2009.
GARDNER, Richard. O DSM-IV tem equivalente para o diagnóstico de
Síndrome de Alienação Parental (SAP). Disponível em:
http://www.alienacaoparental.com.br> Acesso em: 22. ago. 2019
MADALENO, Ana Carolina Carpes, MADALENO, Rolf. Síndrome da
Alienação Parental: importância da detecção, aspectos legais e processuais. Rio de
Janeiro: Ed. Forense, 2015.
MOLINARI, Fernanda; Mendes, Modesto. Alienação Parental e
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Sucessões: um olhar prático./Org. Conrado Paulino Rosa, Liane Maria Busnello
Thomé, Rogério Brochado. Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2018. In: TRINDADE,
Jorge. MOLINARI, Fernanda. Psicologia Forense: novos saberes. Porto Alegre:
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PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a
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Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba-PR, 2004.
PODEVYN, François. Síndrome da Alienação Parental. Disponível em:
http://www.apase.com.br> com a colaboração da Associação de Pais para Sempre.
Disponível em: http://www.paisparasemprebrasil.org> Acessado em 23/03/04 In
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rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.
REICHERT, Evânia. Infância, a idade sagrada. Porto Alegre: Ed. Vale, 2008.
TRINDADE, Jorge; MOLINARI, Fernanda. Psicologia Forense: novos
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Direito. 8. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.
TRINDADE, Jorge. Síndrome da Alienação Parental. In: DIAS, Maria
Berenice. (coord.). Incesto e Alienação Parental: Realidades que a Justiça insiste em
não ver, 2ª. Ed., São Paulo, 2010.
CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS
DE ALIENAÇÃO PARENTAL: COMO
IDENTIFICÁ-LAS NO CONTEXTO
CLÍNICO?

Maria Augusta Mansur de Souza7

Maria de Lourdes Oliveira Pereira8

Introdução
O fenômeno da Alienação Parental se faz presente em muitos casos de
divórcios e separações litigiosas, de forma que seus efeitos estão sendo
frequentemente discutidos e estudados nos âmbitos da Psicologia e do Direito. O
conceito de Alienação Parental surgiu a partir dos estudos do psiquiatra e psicanalista
norte americano Richard Alan Gardner, que na década de 1980 criou o termo
Síndrome de Alienação Parental (“SAP”). Por sua vez, a SAP relaciona-se
diretamente ao transtorno psicológico, baseado nas consequências e sequelas geradas
pela prática da Alienação Parental (Refosco & Fernandes, 2018).
Dessa forma, este capítulo visa elucidar quais são os sinais e sintomas que
podem ser verificados em crianças e adolescentes no contexto clínico, afim de
identificar possíveis vítimas de Alienação Parental, tendo em vista muitas vezes esse
fenômeno não aparece como motivo da busca por atendimento, podendo inclusive,
estar mascarado por outros quadros ou psicopatologias. Para tanto, abordaremos
inicialmente os conceitos e descrições de Alienação Parental, bem como da Síndrome
de Alienação Parental. A seguir, será abordado em quais contextos familiares surgem
esse fenômeno. Por conseguinte, descreveremos quais as formas de Alienação
Parental e qual o perfil dos genitores alienadores. Por fim, abordaremos as
consequências psicológicas, comportamentais, cognitivas e físicas de crianças e
adolescentes vítimas de Alienação Parental, tanto como consequência direta dos atos

7
Psicóloga (CRP 07/14.502), graduada pela PUCRS. Psicóloga clínica de crianças, adolescentes e
adultos. Especialista em Psicologia Clínica, abordagem Cognitivo-Comportamental (WP, Centro de
Psicoterapia Cognitivo-Comportamental). Mestre em Psiquiatria (UFRGS). Formação em Terapia do
Esquema (Wainer). Professora de cursos de Especialização na abordagem Cognitivo-Comportamental.
Coordenadora do curso de Especialização em Psicoterapia Cognitivo-Comportamental da Infância e
Adolescência, CEFI Cuiabá. Terapeuta Certificada pela Federação Brasileira de Terapias Cognitivas
(FBTC).
8
Graduada em Psicologia pela ULBRA, Especializada em Psicologia Forense pela Sociedade
Brasileira de Psicologia Jurídica. Atua como psicóloga clínica.
do genitor alienador, como também os prejuízos a médio e longo prazo na vida dos
filhos.

1. Caracterização da Alienação Parental


Segundo Fermann & Habigzang (2016), a Alienação Parental comumente
envolve crianças que são alvos de disputas de guarda e se caracteriza como um
processo sistemático e consciente do genitor que desqualifica o outro. O genitor que
não está de acordo com a separação e sente-se injustiçado, passa a incluir o filho
nesses conflitos conjugais (Brito, 2007). A elevada litigância entre os pais após o
divórcio e a disputa pela guarda dos filhos são os maiores desencadeantes e os filhos,
a despeito de seu histórico anterior de bons vínculos afetivos com seus pais, passam a
recusar o contato e a denegrir, sem motivos justificáveis, uma de suas figuras
parentais. A campanha do genitor alienante é feita de forma deliberada e consciente.
Esta campanha pode ser feita de modo explícito (denegrindo a imagem do outro
genitor) ou implícito (mudar de cidade para afastar a criança do outro genitor)
(Gardner, 2001).
Diante desse contexto, a Lei nº 12.318/2010 surgiu como forma de proteger a
parte prioritária dessa relação, a criança, e seu direito fundamental à convivência
familiar saudável (Nuske & Grigorieff, 2015). As discussões a respeito da Alienação
Parental tomaram fôlego no país com a aprovação da lei sobre a Guarda
Compartilhada em 2008 (lei n 11.698, 2008) (Soma, Castro, Willliams e Tannús,
2016).
Na guarda compartilhada presume-se que os pais tenham as mesmas
responsabilidades legais sobre o filho, compartilhando as obrigações e decisões
relativas a este. A partir desse movimento, elaborou-se o projeto de lei nº. 4853/08,
cujos maiores objetivos eram identificar e punir os genitores responsáveis pela
alienação dos filhos. Esse projeto foi sancionado e tornou-se lei em 26 de agosto de
2010 (lei n 12.318, 2010) e criou uma série de medidas judiciais que poderiam ser
aplicadas contra o alienador (Sousa & Brito, 2011; Therense, 2017). A Alienação
Parental, além de ser uma afronta a dois importantes princípios constitucionais: o da
Dignidade da Pessoa Humana e o do Melhor Interesse do Menor, é também aos
direitos da criança do adolescente, que estão dispostos no ECA (Estatuto da Criança e
do Adolescente, 1990) (Guilhermano, 2012).
1.1 Estatísticas
Ainda é desconhecido o número de crianças em situação de Alienação
Parental, porém há uma estimativa norte-americana de que 20 milhões de crianças já
tenham sido expostas a comportamentos alienantes e 25 milhões ainda serão expostas
no período entre o divórcio dos pais e a vida adulta (Fermann & Habigzang, 2016).
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010), em
87,3% dos divórcios concedidos no Brasil, as mulheres ficaram responsáveis pela
guarda dos filhos menores. Pesquisas indicam que nos casos de divórcio ou de
separação dos pais, 80% dos filhos sofreram algum tipo de alienação, e que mais de
25 milhões de crianças no mundo padecem desse tipo de violência (Pinho, 2009).

1.2 Inclusão nos Manuais Diagnósticos


Vale salientar que apesar de amplas discussões, a Síndrome da Alienação
Parental (SAP) ainda não foi reconhecida como patologia pela Organização Mundial
da Saúde, nem mesmo foi registrada nos manuais diagnósticos, o DSM-V (Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), e a CID-11 (Classificação
Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) (Soma
et al, 2016). A intenção de Gardner (2001) era que a SAP fosse reconhecida pela
comunidade científica e estivesse presente nos manuais de psiquiatria. Entretanto,
apesar de nos últimos anos ter havido um aumento significativo no número de
publicações científicas e a atenção sobre o tema ter aumentado, a SAP não foi
incluída no DSM-V (APA, 2014) (Gardner, 2002).

1.3 Definição de Alienação Parental


A configuração de Alienação Parental, segundo Gardner (1998), inclui:
(1) desqualificação sistemática do alienador em relação ao alienado para a
criança/adolescente;
(2) omissão de informações importantes sobre a vida da criança/adolescente
pelo alienador;
(3) tentativas de dificultar o contato entre o alienado e a criança/adolescente; e
(4) comportamentos de recusa por parte da criança/adolescente a conviver
com o alienado.
Há três personagens principais nesses casos: o alienador/alienante, que é o
responsável pelos atos descritos; o alienado, que é o genitor afastado do filho; a
criança, vítima da campanha de desmoralização de um dos pais (Guilhermano, 2012).
De acordo com Darnal (2011), esses comportamentos não devem ser
justificados por comportamentos dos pais, como a baixa qualidade de práticas
educativas parentais, uso de substâncias, sintomas psicopatológicos, prática de
violência contra a criança/adolescente (negligência, abuso físico e sexual,
psicológico), que poderiam contribuir para a resistência desta em permanecer em
contato com o genitor.

1.4 Etiologia da Alienação Parental


Os reais motivos pelos quais se deflagra a Alienação Parental quase sempre
estão calcados em uma necessidade de vingança e até mesmo de frustração pelo fim
do relacionamento (Fernandes, 2013; Ferreira, 2019), portanto comumente é
decorrente da fragilidade na elaboração do luto do relacionamento amoroso perdido
(Rodrigues & Jager, 2016). Entre as outras causas para praticar tal ato, encontram-se:
intenção de manter a relação através do conflito; evitação da dor; autoproteção; culpa;
medo de perder os filhos e desejo de controle da situação. Também devem ser
consideradas a hipótese de patologia individual do alienador; possibilidade de uma
história prévia de abandono, alienação e abuso físico ou sexual (Fernandes, 2013;
Vargas & Vasconcelos, 2012). Fernandes (2013), aponta outras causas, como querer
ter exclusividade na posse dos filhos, onde o cônjuge alienador se vê como detentor e
proprietário da criança; e o fator econômico, visando auferir vantagens financeiras às
custas da criança, fazendo dela mero objeto para conseguir realizar seus desígnios.
A qualidade do vínculo da criança com o genitor alienado pode amenizar ou
até mesmo evitar o desencadeamento da SAP. As fragilidades parentais de ambos os
genitores, os recursos pessoais dos filhos e as interações dos membros dessa família
são decisivos para a sua ocorrência. Como fragilidades dos pais alienados que
contribuem para a rejeição da criança, podem ser apontadas: passividade ante a
exacerbação do conflito; contra rejeição frente a uma rejeição pela criança; estilo
parental excessivamente rígido; imaturidade e egocentrismo; comportamento
demandante e crítico; pouca empatia pela criança (Refosco & Fernandes, 2018).
2. Síndrome da Alienação Parental (SAP)
A Síndrome da Alienação Parental (SAP), conforme descrita por Richard
Gardner na década de 1980, diz respeito a um quadro patológico apresentado por uma
criança que se torna psicologicamente afastada de um de seus genitores no contexto
de separação conjugal ou de disputa de guarda. (Gardner, 1985, 2002). Síndrome, é o
conjunto de sintomas que caracteriza a existência de uma doença, seja na esfera
orgânica (física), seja no plano psicológico (mental). O que dá consistência para que
ela seja considerada uma síndrome é que a maior parte dos sintomas (se não todos)
aparecem juntos e de maneira previsível (Trindade, 2014). Trata-se de uma desordem
psiquiátrica constituída pela soma de programação mental da criança por um dos
genitores – em geral a mãe – para denegrir o outro – em geral o pai – e pelas
contribuições da própria criança em suporte à campanha de difamação do genitor
alienado (Gardner, 1987).
A SAP, atualmente, passou a ser identificada como uma maneira de
negligência parental. Entretanto, para outros autores ela nada mais é do que uma
forma de maus tratos e abuso infantil. Ou seja, um abuso envolto por peculiaridades
um tanto quanto não tradicionais, e exatamente por essa razão tão grave, é que a
mesma se torna mais difícil de ser constatada (Poura, 2014). Ou seja, a síndrome é
resultado da Alienação Parental; são as sequelas emocionais deixadas por ela (Braz,
2017).

2.1 Estágios da Síndrome da Alienação Parental


A SAP pode ser estruturada em 3 fases, as quais corresponderiam a um
continuum de estádios de intensidade relacionados com o grau de gravidade.
Estágio Leve: a criança alienada apresenta apenas algumas manifestações,
difíceis de serem identificadas. As visitas são aparentemente tranquilas, o desrespeito
do genitor alienado é pouco presente. O filho possui forte vínculo emocional com
ambos os genitores. O alienador “esquece” de informar compromissos, reuniões,
festas escolares, recados e menciona que o outro genitor esqueceu de comparecer aos
compromissos, criando situações e ocasiões para que o menor não queira visitá-lo
(Andrade, 2015; Gardner, 1985; Molinari, 2015).
Estágio Moderado: é considerado o nível mais comum quando identificado,
em que os sintomas ficam mais evidentes. O genitor alienador já começa utilizar
inúmeras estratégias para atingir o outro com repertórios intensificados de
desmoralização. É o momento no qual surgem conflitos mais severos, normalmente
nos períodos de visitas, podendo haver discussões e até agressões. O alienador une
suas diferentes armas para afastar o outro genitor e destruir o laço afetivo na vida da
criança. Durante esse estágio a criança começa a recusar a sair com o genitor
alienado, se mostrar insensível a ele, fingir situações e argumentos inexistentes, e na
hora da visita apresentar comportamentos ofensivos (Andrade, 2015; Fernandes,
2013; Gardner, 1985; Molinari, 2015).
Estágio Severo: os sintomas são exacerbados, a criança fica na presença
apenas do alienador e rejeita visitas do outro genitor. Nesse estágio a criança já
demonstra sentimentos de raiva, ódio e recusa diante do alienador, no tempo em que o
outro responsável é protegido, amado por completo e irracional. A criança apresenta
comportamentos de gritos, agressividade e descontrole, principalmente no momento
que antecede as visitas. Apresenta-se também, mais hostil e perturbada, a ponto de
ajudar o alienador a denegrir a imagem do alienado (Andrade, 2015; Fernandes, 2013;
Molinari, 2015). Nesse estágio podem surgir falsas denúncias de abuso sexual
(Gardner, 1985).
É importante ressaltar que a criança exposta a estas contingências poderá
aprender a prática alienadora e tornar-se no futuro um espelho do alienador,
ampliando as intenções de reproduções e repetindo essa prática com seus próprios
filhos (Fonseca, 2006).

3. Contexto Familiar da Alienação Parental


3.1 Família
Segundo Molinari (2012), a família deixou de ser concebida estritamente um
núcleo econômico e reprodutivo, e avançou para uma dimensão sócioafetiva,
surgindo, naturalmente, novas representações sociais, novos arranjos familiares, já
que existem em razão do sentimento de afeto dos membros que a constituem. O afeto
constitui a base, o elo, o elemento identificador e distintivo dos vínculos familiares. O
afeto é o que conjuga, o que constitui os sujeitos familiares (Dias, 2004).
Independentemente de sua composição nuclear, sanguínea ou afetiva, família é
definida como aquela que cumpre o papel de responsabilidade entre seus membros e
sobre suas crianças, zelando pelo cuidado e proteção destas, proporcionando-lhes um
ambiente propício ao estabelecimento de vínculos saudáveis, de um desenvolvimento
biopsicossocial o mais normativo possível, dando-lhes condições básicas para se
consolidarem como sujeitos de direito (Costa, 2011; Fialho, 2012; Jesus & Cotta,
2016). A ideia de família que construímos desde os primeiros momentos de nossa
vida, sinalizará a visão de mundo, as futuras relações e a busca de significados
(Andrade, 2015).

3.2 Divórcio
O rompimento conjugal não é o causador da Alienação Parental, mas sim o
modo singular com que cada genitor, a partir de suas condições e estrutura psíquica,
lida com esta nova realidade. Com o rompimento do vínculo conjugal, todos os
membros da família precisam se adaptar a uma nova situação estrutural, redefinindo
papéis e funções. Nessas situações, sobram mágoas e ressentimentos, podendo ocorrer
de um dos genitores não conseguir lidar com a frustração do fim do relacionamento
(Nuske & Grigorieff, 2015). Dentre as diversas tarefas pós-divórcio, provavelmente a
mais complexa fique ao encargo dos progenitores. Estes, devem permanecer unidos
pelos laços parentais, compartilhando a tarefa comum de educar os filhos. A literatura
aponta que esta é uma das grandes dificuldades no divórcio: separar conjugalidade e
parentalidade. Os papéis e regras parentais precisam ser redefinidos, pois têm
implicação direta na forma como irão exercer a parentalidade (Andrade, 2015).
O divórcio acarreta o término do subsistema conjugal, permanecendo ainda o
subsistema parental, sendo assim, cabe aos pais tentar minimizar os prejuízos para os
filhos (Brito, 2007; Carter & Mcgoldrick, 2008). O contexto de divórcio litigioso pode
favorecer o aparecimento ou agravamento de discordâncias dos genitores quanto às
práticas educativas dos filhos. Além disso, o recasamento torna o processo mais
complexo devido ao envolvimento de mais sistemas familiares (Fermann &
Habigzang, 2016).
Nesse processo de competição destrutiva o casal acaba por se “utilizar” de
outras pessoas e isso ocorre, em primeiro lugar, na direção dos filhos, que se tornam o
objeto da disputa. Esse processo pode ser identificado como triangulação, no qual o
filho é colocado num triângulo relacional de interdependência emocional e também
violento. Não se trata de uma triangulação constitutiva da criança, a qual possibilita a
assunção da sua subjetividade, mas sim a uma triangulação doentia em que a criança
desocupa o lugar de sujeito e passa a ser objeto de um dos pais ou do casal parental.
Nas situações de divórcio destrutivo no qual a criança está triangulada, ela assume
esse compromisso com ambos os genitores, numa espécie de pêndulo emocional
acrescido da vivência de que enquanto agrada a um desagrada ao outro, e vice-versa
(Costa, Penso, Legnani e Sudbrack, 2009).
Conforme Sani (2017), a família detém um importante papel na socialização
da criança, porém, se os relacionamentos na família forem marcados por conflitos
violentos é possível que ela apreenda e reproduza, no seio desta e noutros contextos,
as interações aversivas que observou. A observação de comportamentos violentos
reforça a ideia de que é legítimo viver em conflito, aprendendo que as condutas
agressivas representam um método eficaz para controlar as demais pessoas e para
realizar seus próprios desejos. A criança é o membro mais exposto aos efeitos da
desestruturação familiar, e, com isso, suscetível a uma série de prejuízos emocionais,
sociais, comportamentais e cognitivos, cujas consequências podem ser imprevisíveis
(Trindade & Molinari, 2014).

4. Formas de Alienação Parental


Em contextos em que a Alienação Parental se torna presente, os genitores
irrompem com suas responsabilidades parentais por confundi-las com suas
responsabilidades conjugais, expondo os filhos a situações de litígio (Jesus & Cotta,
2016).
Para Gardner (1998, 1999, 2002), existem 4 critérios de identificação de
situações de Alienação Parental. O alienador:
1 – Busca evitar o contato da criança com o genitor alienado de diversas
formas, como por exemplo não comunicar fatos importantes da vida dela e ao tomar
decisões sobre ela sem comunicá-lo;
2 – Faz denúncias falsas de abuso. Essa sem dúvida é a forma mais grave de
acusação, visto que a criança passa a ter medo de encontrar-se com o genitor,
principalmente quando a denúncia é de abuso sexual;
3 – Projeta no filho todas as frustrações que teve com o fim do
relacionamento, passando a persuadi-lo de que o genitor abandonou a família, que não
gosta do filho, ou que é uma pessoa perigosa e má;
4 – Gera no filho uma reação de medo do genitor alienado, caso ela não faça o
que ele diz e assim a criança passa a se apegar ao alienador, se afastando cada vez
mais do alienante. Por esse motivo a criança passa a sentir a necessidade de proteger a
genitor alienador, por achar que ele é a parte mais “fraca.
4.1 Condutas típicas do Alienador
Para Gardner (1985, 1999), esses são comportamentos característicos do
alienador:
1- Apresentar o novo cônjuge como novo pai ou nova mãe;
2- Interceptar cartas, e-mails, telefonemas, recados, pacotes destinados aos
filhos;
3- Desvalorizar o outro cônjuge perante terceiros;
4- Desvalorizar e insultar o genitor na presença dos filhos;
5- Recusar informações ao outro genitor sobre as atividades em que os filhos
estão envolvidos (esportes atividades escolares, etc.);
6- Falar de modo descortês do novo cônjuge do outro genitor;
7- Impedir a visitação;
8- “Esquecer” de transmitir avisos importantes/compromissos (médicos,
escolares, etc.);
9- Envolver pessoas na lavagem emocional dos filhos;
10- Tomar decisões importantes sobre os filhos sem consultar o genitor;
11- Trocar ou tentar trocar seus nomes ou sobrenomes;
12- Impedir o genitor de ter acesso às informações escolares ou médicas dos
filhos;
13- Sair de férias e deixar os filhos com outras pessoas sem ser o outro
genitor, sendo que este esteja disponível e queira ocupar-se dos filhos;
14- Alegar que o genitor não tem disponibilidade para os filhos;
15- Falar das roupas que o genitor comprou para os filhos ou proibi-los de
usá-las;
16- Ameaçar punir os filhos se eles telefonarem ou se comunicarem com o
outro genitor;
17- Culpar o genitor pelo comportamento dos filhos;
18- Colocar barreiras relacionadas às visitas, que vão desde invenções de
doenças a compromissos arranjados de última hora;
19- Quebrar regras, chegando a recusar as decisões jurídicas,
20- Agir de modo a não possuir empatia, pois mesmo que o filho sofra as
consequências de seus atos, o alienador não possui alguma consideração;
21- Comportar-se de modo a faltar com a verdade, agindo de maneira a
manipular as pessoas ao seu redor, inclusive o filho;
22- Solicitar à escola em que o filho está matriculado uma restrição de acesso
do genitor não guardião, mesmo tendo consciência de que ambos os genitores
possuem o mesmo direito de acesso, sem nenhum deles pode ser privado deste acesso
(Fialho, 2012)

4.2 Falsas Acusações e Implantação de Falsas Memórias


O tema das falsas memórias merece destaque e aprofundamento, visto que é
um artifício muito utilizado pelos alienantes e um dos mais cruéis, principalmente
quando as memórias implantadas são referentes ao abuso sexual (Guilhermano, 2012)
A implantação de falsas acusações e de falsas memórias ocorrem quando o filho é
convencido pelo genitor da existência de um fato e levado a repetir o que lhe é
afirmado como tendo realmente acontecido (Rodrigues & Jager, 2016). Trata-se de
um processo sistemático, em que o genitor alienante conta à criança fatos, sugere
acontecimentos, induzindo-o a acreditar que algo realmente aconteceu (Guilhermano,
2012). A vítima não consegue discernir que está sendo manipulada, caracterizando e
vivenciando o discurso como real. Com o tempo, nem o genitor alienador distingue
mais a diferença entre verdade e mentira (Rodrigues & Jager, 2016).
Trindade & Molinari (2014), referem que a Alienação Parental se trata de um
trabalho silencioso e sutil do alienador, visando apenas o rompimento do vínculo do
outro genitor com o filho. O filho passa a se encontrar em um conflito de lealdade,
onde se vê obrigado a escolher um dos pais, já que é induzido a pensar que um deles é
totalmente bom e o outro totalmente mau, ocorrendo uma dissociação e incapacidade
de tolerar diferenças. Assim, o alienador acaba utilizando-se da inocência e
ingenuidade da criança, conseguindo com que o próprio filho respalde mentiras e
volte-se contra o ascendente. Para o filho, nestes casos, resta estar “condenado” a
permanecer diversos anos com estas falsas alegações: a construção de uma
inexistência.

5. Perfil dos Alienadores


Estudos mostram que geralmente a mãe é a alienadora, e o pai acaba se
tornando alienado. Isso ocorre pelo fato de que no contexto atual, normalmente o
maior índice de separação judicial é a mãe quem detém a guarda dos filhos. O
alienador pode ser também, avós, madrasta/padrasto, familiares (Roque & Chechia,
2015), ou quaisquer outras pessoas que tenham responsabilidade sobre a criança. Mas
o mais comum, entretanto, é a alienação praticada por um dos genitores (Dolto, 2011;
Souza, 2014).
De acordo com Silva (2016), o comportamento do alienador não nasce com a
separação do casal, pois remete a uma estrutura psíquica já constituída, manifestando-
se quando algo sai do seu controle: Em muitos casos, há uma estrutura perversa de
base, a qual pode ser dissimulada e passar despercebida durante o casamento, mas
eclode com os conflitos e litígios conjugais.
Em um estudo, encontrou-se que os pais envolvidos em casos de Alienação
Parental possuíam dificuldades em expressar suas emoções e as acusações realizadas
pelo genitor alienador estavam relacionadas à irresponsabilidade, criminalidade e
perigo. Quanto ao diagnóstico dos genitores não foram estabelecidas desordens de
Eixo I, porém as mães envolvidas possuíam traços de insegurança (Lavadera et al,
2012).

5.1 Descrição do Genitor Alienador


Algumas das características que identificam o perfil do genitor alienador, são:
baixa autoestima, dependência, manipulação, sedução, se queixar por tudo, histórias
de desamparo ou ao contrário, de vitórias afetivas (Roque & Chechia, 2015; Trindade
& Molinari, 2014). Estudos conduzidos por Gomide, Camargo & Fernandes (2016),
indicaram que mães alienadoras apresentavam práticas parentais de risco, falhando na
supervisão dos filhos, sendo o foco de sua atenção as suas próprias necessidades.
O alienador influencia a criança a exprimir emoções falsas e manipular
pessoas e situações, acarretando diversos prejuízos futuros ao filho. A fala do genitor
alienador é sempre desagradável para a criança, a ponto de desenvolver uma crise de
lealdade. O discurso do genitor constitui o sujeito, de forma que a fala imposta pelo
alienador constitui/desconstitui a criança de tal forma, que esta não saberá mais o que
ela “é” (Molinari & Trindade, 2014).
A ideia não é prejudicar a prole, mas dificultar a vida do outro genitor, ainda
que para isso deva, também inconscientemente, causar severos danos ao próprio filho.
“O fenômeno em questão versa sobre a tirania dos pais, “entre si, mas, sobretudo,
tiranos em relação aos filhos, porque utilizam a criança como instrumento de ataque
ao outro” (Molinari & Trindade, 2014, p. 24).

5.2 Comportamentos típicos do Alienador


Superproteção: Em muitos casos, o alienador tem um perfil de superprotetor,
ou seja, acredita que outra pessoa não seja capaz ou suficiente para cuidar do seu filho
(Guilhermano, 2012) Há um domínio do alienador sobre o filho, em que aquele “faz e
decide tudo”, provocando a total dependência deste, deixando-o sem autonomia. Esse
é um dos motivos pelo qual a criança assume o discurso do alienador (Silva, 2016).
Simbiose: O alienador possui uma dificuldade muito grande em individualizar,
isto é, de reconhecer seu filho como um ser humano separado de si. O resultado disso
consiste em deter o controle total sobre ele, e destruir a relação dele com o genitor
ausente (Silva, 2016). Assim, cria maneiras de manter o filho numa simbiose,
dominando, oprimindo, superprotegendo e deixando-a dependente de suas ideias e
atos (Ferreira, 2019).
Vitimização: O alienador confidencia ao filho, com riqueza de detalhes, seus
sentimentos negativos e as más experiências vividas com o genitor alienado, e o filho
sente-se no “dever” de protegê-lo. Com isso, estabelece um pacto de lealdade com o
alienador, em função da dependência emocional e material, demonstrando inclusive
um medo em desagradar ou opor-se a ele. (Silva, 2016).
Dissimulação: O alienador pode adotar a postura de aceitar a aproximação do
filho ao outro genitor e em juízo ofertar visitas, garantindo pensar, única e
exclusivamente, no interesse dos filhos. Contudo, tal atitude é apenas para conseguir
controle e deter a posse sobre os filhos (Poura, 2014).
Descumprimento de regras: Para o alienador, obrigações e compromissos nada
significam, não sendo confiáveis e responsáveis. Não honram compromissos formais
ou implícitos, nem perante o juiz ou outra autoridade. Não se deve acreditar em
acordos escritos ou verbais firmados com eles, pois não cumprirão em sua totalidade
(Duarte, 2014). O alienador apresenta desrespeito às regras, não gosta de ser avaliado
e demonstra falso interesse pelo tratamento (Trindade, 2014), inclusive podendo se
recusar a cumprir as decisões judiciais e a submeter-se a tratamentos (Pinto, 2012;
Roque & Chechia, 2015).

5.3 Transtornos associados ao Genitor Alienador


a) Transtorno de Personalidade Paranóide: a pessoa com esse
transtorno, apresenta um padrão invasivo de ciúme, desconfiança e suspeita
quanto aos outros, de modo que seus motivos são interpretados como malévolos.
b) Transtorno Psicótico Compartilhado: também chamado de folie à
deux, é caracterizado por uma forte relação íntima em que o transtorno delirante
de um indivíduo – que controla a relação e impõe seu delírio – seja partilhado
pelo outro.
c) Transtorno da Personalidade Limítrofe ou Borderline: a sua
característica essencial é um padrão invasivo de instabilidade dos
relacionamentos interpessoais, autoimagem e afetos, além de acentuada
impulsividade. O indivíduo faz uma série de esforços para evitar um abandono
real ou imaginado. Ao perceberem uma separação ou rejeição iminente, ocorrem
profundas alterações na autoimagem, cognição, afeto e comportamentos.
d) Transtorno de Personalidade Antissocial: igualmente conhecido
como psicopatia ou sociopatia, tem como principais características o desprezo e
a violação das condutas legais e dos direitos alheios. O indivíduo se mostra
insensível e manipulador, com ausência de culpa e remorso-- quando apresenta,
esses sentimentos, eles não são genuínos, e sim aprendidos, uma vez que podem
lhe trazer vantagens. Transparecem uma onipotência e orgulho irreais, pois sua
autoestima, em verdade, é muito baixa: Os pais portadores desse transtorno
põem seus desejos acima da família, e, quando lutam pela guarda de seus filhos,
agem unicamente no propósito de utilizá-los a seu favor.
e) Transtorno de Personalidade Narcisista: caracterizado por um
padrão invasivo de grandiosidade (na fantasia ou no comportamento), por uma
necessidade de admiração e falta de empatia, há um sentimento
desproporcionado da própria importância.
f) Síndrome de Münchausen: é o transtorno psicológico em que o
sujeito, de forma compulsiva, deliberada e contínua, causa, provoca ou simula
sintomas de doenças.
g) Síndrome de Münchausen por procuração: via de regra, a mãe
inventa ou provoca doenças em seu filho, fazendo com que seja submetido a
diversos exames e internações a fim de que se beneficie da atenção que lhe é
prestada pelos órgãos de saúde (Madaleno, 2019).

6. Consequências da Alienação Parental nos Filhos


Segundo Trindade (2014), os efeitos prejudiciais que a Alienação Parental
pode provocar nos filhos variam de acordo com a idade da criança, características de
sua personalidade, tipo de vínculo anteriormente estabelecido e com a capacidade de
resiliência dos envolvidos. Os genitores que submetem a criança à Alienação Parental
cometem um tipo de violência psicológica que não deixa marcas muito claras num
primeiro momento, o que pode postergar e dificultar sua identificação e possíveis
intervenções (Jesus & Cotta, 2016).

6.1 Identificação da Criança Alienada


Geralmente, as alterações no comportamento da criança, fazem com que ela
assuma as ideias criadas pelo genitor alienador como se fossem dela, sem perceber
que está sendo manipulada. A influência emocional do alienador se dá por inúmeras
maneiras, chegando ao ponto de fazer constantes ameaças ao filho, as quais se
consubstanciam em abandoná-lo ou de enviá-lo para viver com o outro genitor. Desta
forma, o filho é colocado numa situação de dependência emocional, medo do
abandono afetivo e da desaprovação, ficando submetido a exigências de constantes
provas de lealdade. Cria-se assim, uma ligação psicopatológica similar a uma “folie a
deux” (Trindade, 2014)
Não importa qual é a idade da criança, ofender e acusar o outro genitor é
desestruturante para ela. A criança transforma-se em um defensor do guardião,
reproduzindo, de forma desapropriada, os discursos agressivos sobre o outro genitor.
Além disso, colabora para a desmoralização do alienado, passando a odiar e desprezar
aquele que até então, amava e respeitava (Dolto, 2011). De acordo com Gardner
(2002), a criança não demonstra ambivalência em relação aos conflitos, podendo
reproduzir falas do alienador, e encenar interações que presenciou entre os pais como
se tivessem ocorrido entre ela e o genitor alienado. Quando questionada, afirma que
aqueles são seus próprios pensamentos e não demonstra culpa ou remorso pela
maneira como se refere ao mesmo.
É possível, porém, que a criança mais tarde se revolte contra o alienador, na
medida em que perceba o dano que este lhe causou. Assim, para defender-se da
realidade imposta, cria uma nova realidade, para dar conta de sua dor psíquica.
Também pode ocorrer a repetição do padrão comportamental cindido entre o bem e o
mal para a sua vida futura, de modo que a ambivalência e a diferença são
insuportáveis (Nuske & Grigorieff, 2015).
Segundo Gardner (2002) e Sousa & Brito (2011), crianças e adolescentes que
sofrem/sofreram Alienação Parental apresentam uma ou mais das seguintes
características:
1. Campanha denegritória contra o genitor alienado: a criança tende a falar
mal, acusar, desmerecer, menosprezar, ignorar o pai ou a mãe alienado;
2. Racionalizações fracas, absurdas ou frívolas para a depreciação do
genitor alienado: argumentações sem lógica, acusações, relatos de
acontecimentos fantasiosos (que podem incluir desde acusações de maus
tratos, até relatos de falsos abusos, sexuais ou emocionais);
3. Falta de ambivalência: a criança despreza o alienado, enaltecendo o
alienador e tendo clara preferência por ele;
4. Fenômeno do pensador independente: a criança defende que suas decisões
são tomadas de forma individual, sem a participação ou influência de
terceiros;
5. Apoio automático ao genitor alienador nos conflitos parentais: para a
criança este tem sempre razão e o causador dos problemas e da discórdia é o
alienado, sendo o alienador, a vítima;
6. Ausência de culpa sobre a crueldade a e/ou a exploração contra o genitor
alienado: não há percepção de que todo o movimento feito para afastá-lo
possa gerar sofrimento ou consciência da intenção por trás das acusações;
7. A presença de encenações ‘encomendadas’: não raro, a criança simula
situações perante outras pessoas para mostrar que o genitor alienado é um
algoz; há também comportamentos previamente orientados pelo alienador para
simular a falta de afeto ou a incapacidade do outro genitor lidar e cuidar do
próprio filho;
8. Propagação da animosidade aos amigos e/ou à família extensa do genitor
alienado: por fim, todos que estão relacionados com o alienado– amigos,
familiares– são vistos como inimigos da criança e passam a ser alvo de
ataques, ameaças e comportamentos que possam prejudicar ou denegrir a
imagem deles

6.2. Efeitos e Consequências da Alienação Parental


A Alienação Parental gera consequências graves tanto para os filhos, quanto
para os genitores alienados. As crianças submetidas a esse processo de alienação, são
emocional e psicologicamente prejudicadas em seu desenvolvimento familiar e social
(Poura, 2014).
De acordo com Sarmet (2016), a manipulação do vínculo da criança com o
genitor, permeada por sentimentos e pensamentos destrutivos, desequilibra e
prejudica o desenvolvimento dela e dificulta a elaboração do luto pela separação e o
prosseguimento saudável de sua vida. As graves sequelas resultantes dessa forma de
violência prejudicam o relacionamento da criança com o mundo e produzem um
apego excessivo, ou mesmo exclusivo, a um dos genitores. Ainda, a criança não
encontra acolhimento e consolo no ambiente familiar, pois os pais, ensimesmados
pela dor e sofrimento da separação, ficam alheios ao sofrimento dela.
O genitor que utiliza o filho para atingir o outro genitor não tem a menor
consciência dos danos emocionais que está gerando nele. Pois, nessa situação, a
criança, cuja personalidade encontra-se em processo de formação, se vê em meio a
um verdadeiro fogo cruzado, lhe sendo passadas informações totalmente conflituosas,
gerando para si uma percepção destorcida do mundo, onde passa e vivenciar uma
situação que poderá no futuro fazer com que ela não mais confie em seus próprios
sentimentos e emoções. Além de gerar uma verdadeira confusão emocional, a criança
ainda começa a verificar qual dos genitores é emocionalmente mais fraco, passando a
assumir um papel de protetor. Assim, surge a necessidade de ter que tomar partido
entre um ou outro genitor, sendo instalado um conflito emocional interno e
sentimento de culpa (Sarmet, 2016).
Outra área que sofre impacto negativo da Alienação Parental é a da confiança
em si mesmo e nos outros. A falta de autoconfiança deriva do sentimento de menos-
valia e da relação de grande dependência e exclusividade que se cria entre o genitor
alienador e a criança (Baker, 2005). Quando adultos, as vítimas de Alienação Parental
serão pouco autoconfiantes, com dificuldades em tomar decisões independentes e com
maior chance de não conseguir cuidar de si mesmos (Bem-Ami & Baker, 2012).
Tudo isso traz dificuldades para a criança conviver com a verdade, pois sendo
constantemente levada a um jogo de manipulações, acaba por aprender a conviver
com a mentira e expressar falsas emoções. Assim, entra num mundo de duplas
mensagens, de duplos vínculos e de verdades censuradas, não raro tirando partido
dessa conflitualidade, a noção do certo e do errado fica flutuante, favorecendo
prejuízos na formação do caráter (Trindade, 2014).
A seguir serão listados os principais problemas e sintomas presentes em
crianças e adolescentes que sofrem ou sofreram com a Alienação Parental. São eles:
Psicológicos, Afetivos, Físicos e Psicossomáticos, Cognitivos e por fim,
Comportamentais.

6.2.1 Sintomas Psicológicos


Depressão (Bem-Ami & Baker, 2012; Gomide et al, 2016; Juras, 2009; Nunes,
2015; Rosa, 2008); Transtornos de Identidade e de Imagem (Lavadera et al, 2012;
Trindade, 2014); Dupla e/ou múltipla personalidade (Trindade, 2014); Adicção
(Baker, 2005; Rodrigues e Jager, 2016; Sarmet, 2016; Silveiro, 2012; Trindade,
2014); Alcoolismo (Bem-Ami & Baker, 2012; Gomide et al, 2016; Nuske &
Grigorieff, 2015; Trindade, 2014); Insegurança (Juras, 2009; Nunes, 2015; Rosa,
2008); Baixa autoestima (Bem-Ami & Baker, 2012; Gomide et al, 2016); Sentimentos
de inferioridade (Molinari, 2015) e culpa (Trindade, 2014); Apego inseguro (Gomide
et al, 2016); Tendência à manipulação e distorção da realidade (Lavadera et al, 2012);
Medos concretos ou imaginários; Rigidez e inflexibilidade diante das situações
cotidianas (Molinari, 2015); Automutilação (Nuske & Grigorieff, 2015; Trindade,
2014); Ideação suicida e Suicídio (Nuske & Grigorieff, 2015; Roque & Chechia,
2015; Silveiro, 2012; Trindade, 2014).
Segundo Bem-Ami & Baker (2012), há uma associação significativa entre a
exposição à Alienação Parental na infância e maiores taxas de transtorno depressivo
na idade adulta. A Depressão pode ser uma das consequências da SAP, configurando-
se como um transtorno um tanto quanto complexo, pois as crianças muitas vezes não
sabem nomear o que estão sentindo e os pais podem achar que é só uma fase. Estudos
de Depressão infantil tem como foco a relação familiar, como um ambiente causador
de estresse, fazendo com que a criança não se sinta protegida e amada (Sarmet, 2016).

6.2.2 Sintomas Afetivos (Emocionais)


Sentimentos de vergonha, culpa, , insegurança, choro compulsivo sem motivo
aparente (Molinari, 2015); rejeição dos próprios sentimentos, ansiedade (Juras, 2009;
Negrão & Giacomozzi, 2015; Nunes, 2015; Rosa, 2008); Alterações no humor e
mudança de sentimentos em relação ao alienado (de amor-ódio à aversão total)
(Guilhermano, 2012).
6.2.3 Sintomas Físicos e Psicossomáticos
Problemas respiratórios e gastrointestinais (Fermann & Habigzang, 2016);
Enurese (diurna ou noturna); Distúrbios do sono; Perda do apetite; Vômitos; Febre;
Faringite; Asma, entre tantos (Trindade, 2014).

6.2.4 Sintomas Cognitivos


Inúmeros são os danos no âmbito escolar, os quais se destacam: problemas de
aprendizagem e queda no desempenho escolar, muitas vezes levando a reprovação
(Nunes, 2015; Rosa, 2008); Desatenção; Dificuldade de organização; racionalização
excessiva dos conteúdos acadêmicos; desorganização mental (Fernandes, 2013);
Atraso no desenvolvimento da linguagem; alterações mnêmicas e alterações da
concentração (Molinari, 2015; Negrão et al, 2015).

6.2.5 Sintomas Comportamentais


Déficits na capacidade para brincar e comportamento desviante (Molinari,
2015); Agitação; Hiperatividade; Mudanças súbitas de comportamento; Regressões
no comportamento e Isolamento (Nunes, 2015; Roque & Chechia, 2015; Silveiro,
2012); Comportamento hostil (Roque & Chechia, 2015; Silveiro, 2012; Trindade,
2014); Comportamento agressivo (Juras, 2009; Negrão et al, 2015; Roque & Chechia,
2015; Silveiro, 2012); Insegurança (Roque & Chechia, 2015); Apresentação de falsas
emoções (Silva, 2016); Intolerância com as diferenças e frustrações (Souza, 2014;
Trindade, 2014).
Área interpessoal: Dificuldade em fazer amizades e estabelecer relações,
principalmente com pessoas mais velhas; Problemas nas relações interpessoais, como
por exemplo, relações passivas ou conflituosas; Dificuldade em confiar no outro
(Molinari, 2015); Incapacidade de adaptação nos ambientes (Trindade, 2014);
Manipulação de pessoas e situações e Mentiras compulsivas (Fernandes, 2013; Silva,
2016).
Não importa que idade tenha a criança, destruir a imagem, falar mal, ofender,
desconstruir, acusar o outro genitor; sempre é desestruturante para ela. Características
como estrutura de personalidade, traços de caráter, qualidade ou ausência ou excesso
dos mecanismos de defesa psíquicos, vínculo pais/filhos e o processo de subjetivação
em si são comprometidas. Em casos mais graves e de longa duração, os danos são
tamanhos que o sujeito os leva por toda a vida, necessitando recorrer à psicoterapia
para poder lidar com eles, e podem se repetir no futuro (Dolto, 2011).

Considerações Finais
Através da revisão de literatura utilizada para confecção desse capítulo, foi
possível vislumbrar o crescimento significativo ocorrido nos últimos anos acerca do
interesse e produção científica em torno do tema Alienação Parental, além de uma
clara necessidade da interlocução entre as áreas da Psicologia e do Direito, afim de
proteger as crianças e adolescentes e garantir a integridade psicológica delas.
Contudo, no contexto clínico, é cada vez mais frequente crianças e adolescentes
vítimas de Alienação Parental passarem despercebidos pelos profissionais de saúde
mental, por não possuírem conhecimento em relação ao conceito ou em relação a
apresentação desses pacientes e do cenário familiar. Dessa forma, eles não serão
ajudados em sua totalidade e o ciclo da Alienação Parental tende a se perpetuar nas
famílias.
Portanto, o principal objetivo desse capítulo foi servir de orientação e alerta
para os profissionais que atendem crianças e adolescentes ficarem mais aptos a
identificarem esse fenômeno no contexto clínico.
Mesmo tratando-se de um fenômeno complexo, com diversos vértices a serem
contemplados, demos ênfase aos sinais e sintomas que as vítimas de Alienação
Parental apresentam, bem como aos indicativos dos contextos familiares que
predispõe ao surgimento, evitando, assim, que vínculos familiares sejam destruídos e
que a criança ou adolescente tenham seu desenvolvimento psicológico e emocional
prejudicados, muitas vezes, de forma permanente.

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QUEM É O ABUSADOR?
A ALIENAÇÃO PARENTAL E AS DAS
FALSAS DENÚNCIAS DE ABUSO SEXUAL

Bárbara Mattes Müller Silva9

Introdução
Na grande maioria dos casos, a ruptura da vida conjugal gera sentimentos
muito negativos nos cônjuges, como inconformidade, abandono e rejeição. Quem não
consegue lidar bem com o luto da separação muitas vezes acaba desencadeando um
processo de desmoralização do ex-cônjuge, uma vingança para desmoralizar esse ex-
companheiro.
Esse processo fica ainda mais complexo quando o casal possui filhos, que
acabam ficando no meio de uma “guerra” à qual não pertencem, pois o rompimento
do vínculo matrimonial não rompe o vínculo dos pais para com os filhos.
No meio dessas desavenças surge a Alienação Parental, quando um dos
genitores inicia um processo para afastar o filho do outro genitor, rompendo o vínculo
entre os dois, usando os mais diversos artifícios, inclusive, lhe imputando a falsa
denúncia de abuso sexual, o tema principal deste artigo.
A denúncia de abuso sexual de um dos genitores para com o filho tem
crescido de uma forma assustadora. Assustadora pois trata-se de um assunto muito
sério e muito grave, pois falamos da dignidade e saúde física e mental de um menor,
que pode estar sofrendo nas mãos de quem, em tese, mais confia.
Mas assustadora também pois, em muitos casos, essa denúncia não
corresponde com a verdade, e é utilizada pelo genitor alienador como a última
“cartada” nesse jogo de manipulações que é a Alienação Parental.
Adiante, veremos quais as consequências dessa denúncia, e como elas podem
ser prejudiciais e incorrigíveis na vida dos filhos, pois, embora não sejam verdadeiras,
geram danos como se verdade fossem.

9
Advogada. Graduada em Direito e Pós Graduada em Direito e Gestão Tributária pela Unisinos.
Especialista em Psicologia Forense pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica.
1. Da Alienação Parental
Com o passar dos anos e com todas as mudanças da sociedade nas últimas
décadas, nós pudemos abandonar o conceito de “família patriarcal”, na qual o pai é a
figura central, na companhia da mãe e dos filhos. A idéia e o conceito de “família”
precisaram acompanhar as mudanças e seguir esse movimento de transformação para
poderem se adaptar aos novos modelos de famílias que vemos hoje.10
Nós tivemos o reconhecimento das famílias monoparentais, nas quais só existe o
pai ou a mãe, além do reconhecimento da união estável como uma entidade familiar,
e, o instituto mais conhecido de todos – o divórcio, o qual possibilitou que duas
pessoas rompessem o vínculo matrimonial reconhecido por lei.11
Entretanto, quando duas pessoas se divorciam, e possuem filhos, a situação já não
é mais tão simples, pois isso não rompe os direitos e deveres dos genitores para com
os filhos.12
E hoje, cada vez mais, vemos uma mudança em relação ao papel que os genitores
querem exercer na vida dos filhos, principalmente o pai, que tinha um papel menos
ativo em relação à mãe, e hoje busca exercer a paternidade e se fazer presente. Assim,
o processo de guarda dos filhos muitas vezes termina por gerar conflito entre os
genitores pois ambos, igualmente, querem estreitar a convivência com os filhos,
podendo gerar uma reação negativa ao genitor preterido.13
Diante disso, surge o instituto da Alienação Parental, previsto na Lei
12.318/2010, no qual prevê:
Art. 2º. Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação
psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos
genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua
autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo
ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.14

10
DIAS, Maria Berenice. As famílias e seus direitos. Disponível em:
<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_568)14__as_familias_e_seus_direitos.pdf>.
Acesso em: ago. 2019
11
DIAS, Maria Berenice. As famílias e seus direitos. Disponível em:
<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_568)14__as_familias_e_seus_direitos.pdf>.
Acesso em: ago. 2019
12
CARVALHO, Luna Araújo de. Falsas acusações de abuso sexual na alienação parental: Quem é o
verdadeiro abusador?. Disponível em: <http://monografias.ufrn.br/handle/123456789/7386>. Acesso
em: ago.2019.
13
CARVALHO, Luna Araújo de. Falsas acusações de abuso sexual na alienação parental: Quem é o
verdadeiro abusador?. Disponível em: <http://monografias.ufrn.br/handle/123456789/7386>. Acesso
em: ago.2019.
14
BRASIL. Lei 12.318 de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e dá outras
providências. Brasília, DF. Presidente da República, 2010. Disponível em :
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm>. Acesso em: ago. 2019.
Quando um dos genitores não consegue processar o luto da separação, e
desencadeia sentimentos de rejeição e de abandono, começa a desenvolver um
processo de vingança, de destruição e de desmoralização do ex-cônjuge. 15
Para tanto, começa a criar diversas situações para dificultar a convivência do
filho com o genitor, e leva o filho a rejeitá-lo e odiá-lo sem qualquer justificativa. O
que gera uma contradição de sentimentos na criança, destruindo o vínculo entre ele e
o genitor. 16
O filho é meramente um instrumento de rejeição direcionado ao ex-parceiro, e
o genitor afastado passa a ser um intruso na relação, enquanto o genitor alienador
passa a ser a referência para a criança e assume totalmente o controle na criação do
filho. 17
Ressalta-se que a alienação parental que os pais praticam contra os filhos,
mesmo que sem conhecimento de suas consequências, é equiparada ao abuso moral
contra o menor, pois é um descumprimento da função e autoridade parental frente à
criança, que precisa de um ambiente saudável e harmônico para construção da sua
própria identidade. 18

2. Das Falsas Denúncias de Abuso Sexual


Dentre todas as manipulações, não raramente surge a assertiva de que o filho
pode ter sido vítima de abuso sexual por parte do genitor afastado. Basta a narrativa
de um episódio de tentativa de contato inadequado do genitor com o filho durante as
visitações para que haja uma brecha para acusação de abuso sexual.
O filho é convencido de que o abuso existiu e passa a repetir o que lhe é
afirmado como se realmente tivesse ocorrido. A criança, na maioria das vezes, não
consegue discernir o que realmente aconteceu e o que está sendo implantado em sua

15
DIAS, Maria Berenice. Síndrome da alienação parental, o que é isso?. Disponível em:
<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_504)1__sindrome_da_alienacao__parental_o_q
ue_e_isso.pdf>. Acesso em: ago. 2019.
16
DIAS, Maria Berenice. Síndrome da alienação parental, o que é isso?. Disponível em:
<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_504)1__sindrome_da_alienacao__parental_o_q
ue_e_isso.pdf>. Acesso em: ago. 2019.
17
DIAS, Maria Berenice. Síndrome da alienação parental, o que é isso?. Disponível em:
<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_504)1__sindrome_da_alienacao__parental_o_q
ue_e_isso.pdf>. Acesso em: ago. 2019.
18
COIMBRA, Marta de Aguiar. Lei de Alienação Parental e sua eficácia no ordenamento jurídico
brasileiro. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-117/lei-da-alienacao-
parental-e-a-sua-eficacia-no-ordenamento-juridico-brasileiro/>. Acesso em: ago. 2019.
memória como se verdadeiro fosse. Surge, assim, a implantação das falsas
memórias.19
Crianças mais novas tem a memória mais maleável e podem mudar suas
próprias recordações frente às novas informações sugeridas à ela. Quando essa falsa
informação se torna parte da sua recordação como uma falsa memória, pode gerar
sofrimento psíquico, gerando uma vitimização na criança como se realmente ela
tivesse vivenciado essa situação, pois ela acredita que, de fato, vivenciou.20
De um modo geral, quando esse fato é levado ao Poder Judiciário, a tendência
é que o Juiz suspenda a visitação de modo imediato, para que possa averiguar a
veracidade dos fatos, com a realização de estudos psicológicos e sociais. Esses
procedimentos geralmente são demorados e, durante todo o período, o genitor fica
com a convivência com o filho cessada, gerando uma quebra na relação que
dificilmente é recuperada, principalmente se a criança é de tenra idade.21
Depois disso, o genitor alienante fica em posição vitoriosa, e acaba protelando
cada vez mais o andamento do processo, para prejudicar o máximo possível a relação
da criança com o genitor alienado. Não comparece às perícias e protela os estudos
psicológicos e sociais, contribuindo mais ainda para o rompimento dos vínculos de
afeto do genitor alienado com o filho. 22
Dessa forma, não há a devida ponderação na decisão judicial de suspensão de
visitação, uma vez que rompe totalmente o contato do genitor com a criança. O
correto seria a reavaliação da presunção de culpabilidade, à fim de evitar a privação
total do menor e do genitor alienado, além da manutenção das visitas monitoradas.
Abaixo, um quadro comparativo extraído do livro de José Manuel Aguilar,
sobre a distinção entre o verdadeiro abuso sexual e a implantação da falta memória.

19
DIAS, Maria Berenice. Síndrome da alienação parental, o que é isso?. Disponível em:
<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_504)1__sindrome_da_alienacao__parental_o_q
ue_e_isso.pdf>. Acesso em: ago. 2019.
20
TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do Direito. 8. Ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2017.
21
DIAS, Maria Berenice. Síndrome da alienação parental, o que é isso?. Disponível em:
<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_504)1__sindrome_da_alienacao__parental_o_q
ue_e_isso.pdf>. Acesso em: ago. 2019.
22
CARVALHO, Luna Araújo de. Falsas acusações de abuso sexual na alienação parental: Quem é o
verdadeiro abusador?. Disponível em: <http://monografias.ufrn.br/handle/123456789/7386>. Acesso
em: ago.2019.
ALIENAÇÃO
ABUSO SEXUAL
PARENTAL
O filho programado não viveu o que
O filho lembra do que ocorreu sem
seu progenitor denuncia. Precisa se
nenhuma ajuda externa.
recordar.
As informações que transmite têm
As informações que transmite têm
menor credibilidade, carecem de
credibilidade, com maior quantidade
detalhes e inclusive são
e qualidade de detalhes.
contraditórios entre os irmãos.
Os conhecimentos sexuais são
Não tem conhecimentos sexuais de
impróprios para sua idade: ereção,
caráter físico – sabor, dureza, textura,
ejaculação, excitação, sabor do
etc.
sêmem.
Costumam aparecer indicadores
sexuais – condutas voltadas ao sexo,
conduta sedutora com adultos, jogos
sexuais precoces e impróprios com Não aparecem indicadores sexuais.
semelhantes (sexo oral), agressões
sexuais a outros menores de idade
inferior, masturbação excessiva, etc.
Costumam existir indicadores
Não existem indicadores físicos.
físicos do abuso (infecções, lesões).
Costumam aparecer transtornos
funcionais – sono alterado, eneresis, Não costumam apresentar transtornos
encopresis, transtornos de funcionais que o acompanhem.
alimentação.
Costumam apresentar atrasos
Não costumam apresentar atraso
educativos – dificuldade de
educativo em consequência da
concentração, atenção, falta de
denúncia.
motivação, fracasso escolar.
Costumam apresentar alterações no
padrão de interação do sujeito
abusado – mudanças de conduta
O padrão de conduta do sujeito não
bruscas, isolamento social, consumo
se altera em seu meio social.
de álcool ou drogas, agressividade
física e/ou verbal injustificada,
roubos, etc.
Costumam apresentar desordens
emocionais – sentimentos de culpa,
Não aparecem sentimentos de culpa
estigmatização, sintomas
ou estigmatização, ou condutas de
depressivos,
autodestruição.
baixa auto estima, choro sem
motivo, tentativas de suicídio.
O menor sente culpa ou vergonha Os sentimentos de culpa ou vergonha
do que declara. são escassos ou inexistentes.
As denúncias de abuso são prévias à As denúncias por abuso são
separação. posteriores à separação.
O progenitor percebe a dor e a O progenitor não leva em conta, nem
destruição de vínculos que a parece lhe importar a destruição dos
denúncia provocará na relação vínculos familiares.
familiar.
Seria esperado que um progenitor
que abusa de seus filhos pudesse Um progenitor alienado aparenta
apresentar outros transtornos em estar são nas diferentes áreas de sua
diferentes esferas de sua vida. vida.
são nas diferentes áreas de sua vida.
Um progenitor que acusa o outro de
Um progenitor programador só
abuso a seus filhos costuma acusá-
denuncia o dano exercido aos filhos.
lo também de abusos a si mesmo.

3. Das Consequências
Quando a criança é utilizada como um mero instrumento de vingança e é levada a
odiar o outro genitor, ela perde um vínculo muito forte com uma pessoa que fazia
parte do seu círculo e que sempre foi muito importante na sua vida.23
O constrangimento em ter que escolher um dos pais vai totalmente contra ao
desenvolvimento emocional saudável da criança. Essa “quebra” compromete a normal
evolução da criança, sendo certo que esse processo patológico gera sequelas.24
A instabilidade emocional, iniciada com nervosismo e ansiedade, pode facilmente
levar a atitudes agressivas e a depressão, além de uma incapacidade de adaptação ao
seu ambiente normal e danos graves nas esferas afetiva, psicológica e sexual da
criança.
Os danos causados por essas falsas memórias infiltradas na criança geram danos
tão graves quanto o próprio abuso sexual em si. Além disso, expõe a criança a
inúmeros procedimentos invasivos para averiguação da veracidade da denúncia.25
Quanto ao genitor alienado e acusado de forma inverídica, há a destruição de sua
reputação, pois, ainda que constatada a falsidade da denúncia, o estigma de ser
considerado um abusador sexual, principalmente de um filho, dificilmente é retirado
totalmente, ficando uma mácula na imagem desse genitor.

23
CARVALHO, Luna Araújo de. Falsas acusações de abuso sexual na alienação parental: Quem é o
verdadeiro abusador?. Disponível em: <http://monografias.ufrn.br/handle/123456789/7386>. Acesso
em: ago.2019.
24
SERGIO, Caroline Ribas. A síndrome da alienação parental e seus reflexos no âmbito familiar.
Disponível em: <https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/10632/A-sindrome-da-alienacao-
parental-e-seus-reflexos-no-ambito-familiar>. Acesso em: ago. 2019.
25
COSTA, Sirlei Martins da. Violência Sexual e Falsas Memórias da Alienação Parental. Disponível
em: < https://asmego.org.br/wp-content/uploads/2012/04/violencia-sexual.pdf>. Acesso em: ago.2019.
Além disso, há o enfrentamento de um processo, o desgaste emocional, ter de
ouvir do próprio filho alegações de fatos que nunca acontecerem. Ainda, há o pior de
todos os danos, que é o afastamento do filho, o rompimento do vínculo e a perda do
afeto da criança com o genitor.
Em decorrência disso, essa criança começa a adaptar-se nessa nova rotina de vida
e nessa nova realidade e, em muitos casos, já é tarde demais para a reinvindicação do
vínculo com o genitor, que foi totalmente rompido.26

4. Dos meios punitivos ao Alienador


Em se tratando das repercussões jurídicas, essas tratam somente do genitor
alienador, pois, a criança e o genitor alienado são meras vítimas nessa relação
jurídica.
Infelizmente, ainda não existe uma solução ideal para a questão levantada, pois
trata-se de uma matéria extremamente complexa. Para os operadores do Direito,
principalmente os juízes, cabe receber ao máximo o auxílio dos profissionais da
Psicologia e da Psiquiatria, para que seja possível chegar à uma conclusão confiável.27
Na Lei 12.318/2010, que prevê a Alienação Parental, há um rol de instrumentos
processuais que visam atenuar os efeitos da alienação, que seguem:
Art. 6o Caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que
dificulte a convivência de criança ou adolescente com genitor, em ação autônoma
ou incidental, o juiz poderá, cumulativamente ou não, sem prejuízo da decorrente
responsabilidade civil ou criminal e da ampla utilização de instrumentos
processuais aptos a inibir ou atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso:
I - declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador;
II - ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado;
III - estipular multa ao alienador;
IV - determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial;
V - determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão;
VI - determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente;
VII - declarar a suspensão da autoridade parental.
Parágrafo único. Caracterizado mudança abusiva de endereço, inviabilização ou
obstrução à convivência familiar, o juiz também poderá inverter a obrigação de
levar para ou retirar a criança ou adolescente da residência do genitor, por ocasião
das alternâncias dos períodos de convivência familiar.28

26
CARVALHO, Luna Araújo de. Falsas acusações de abuso sexual na alienação parental: Quem é o
verdadeiro abusador?. Disponível em: <http://monografias.ufrn.br/handle/123456789/7386>. Acesso
em: ago.2019.
27
COSTA, Sirlei Martins da. Violência Sexual e Falsas Memórias da Alienação Parental. Disponível
em: < https://asmego.org.br/wp-content/uploads/2012/04/violencia-sexual.pdf>. Acesso em: ago.2019.
28
BRASIL. Lei 12.318 de 26 de Agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e dá outras
providências. Brasília, DF. Presidente da República, 2010. Disponível em :
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm>. Acesso em: ago. 2019.
A falsa alegação de abuso sexual é a forma mais grave de alienação parental,
devendo ser aplicada a medida mais drástica. Importante salientar que as medidas
propostas na Lei da Alienação Parental não tem a finalidade de penalizar, mas sim de
proteger o bem-estar da criança, trazendo formas de reprimir tal prática.
Dessa forma, as medidas mais brandas previstas, como a ampliação do regime de
convivência familiar em favor do genitor alienado ou a estipulação de multa ao
alienante, não são suficientes para suprimir atos graves como este em questão. Seriam
indicadas a alteração de guarda ou a suspensão da autoridade parental, cumuladas
com acompanhamento psicológico.29
Entretanto, novamente, tais medidas também não são muito utilizadas, uma vez
que vão de encontro com a função da Lei, pois, buscando evitar as práticas de
alienação parental e visando resguardar o direito da criança ao convívio familiar, a
suspensão do poder familiar estaria ferindo essa prerrogativa.
Assim, somente em casos de perigo extremo ao menor essas medidas mais
drásticas necessitam ser aplicadas, devendo o vinculo ser reestabelecido assim que
possível.30
Conforme já exposto anteriormente, as “punições” elencadas na Lei da Alienação
Parental não possuem caráter compensatório em relação ao ocorrido com a criança e
com o genitor alienado. Entretanto, no campo da Responsabilidade Civil existe essa
possibilidade, uma vez que poderá ser pleiteada a reparação de danos, decorrentes dos
atos ilícitos do alienador.31
Para que haja a condenação do alienante para pagamento dessa indenização, é
necessária a comprovação do nexo causal entre as atitudes do alienante e do fato
lesivo na criança e no alienado. A imputação de falsa denúncia de abuso sexual, por si
só, já configura ato danoso. 32

29
CARVALHO, Luna Araújo de. Falsas acusações de abuso sexual na alienação parental: Quem é o
verdadeiro abusador?. Disponível em: <http://monografias.ufrn.br/handle/123456789/7386>. Acesso
em: ago.2019.
30
CARVALHO, Luna Araújo de. Falsas acusações de abuso sexual na alienação parental: Quem é o
verdadeiro abusador?. Disponível em: <http://monografias.ufrn.br/handle/123456789/7386>. Acesso
em: ago.2019.
25
SOUZA, Ronaldo Ribeiro de. A responsabilidade civil por Alienação Parental. Disponível em: <
https://jus.com.br/artigos/58175/a-responsabilidade-civil-por-alienacao-parental>. Acesso em:
ago.2019.
26
SOUZA, Ronaldo Ribeiro de. A responsabilidade civil por Alienação Parental. Disponível em: <
https://jus.com.br/artigos/58175/a-responsabilidade-civil-por-alienacao-parental>. Acesso em:
ago.2019.
Aqui, a responsabilidade civil atua como consequência jurídica ao alienante, pois
pune quem frustra a expectativa de uma relação familiar.33

Considerações Finais
Diante de todo o exposto, vemos que não podemos mais ficar silentes diante
dessas estratégias ardilosas que vem crescendo de forma inquietante.
As falsas denúncias de abuso sexual não podem mais merecer a corroboração
da justiça que, em nome da proteção integral, e sem a devida averiguação, acaba
rompendo vínculos que nunca mais são reestabelecidos, gerando graves danos no
desenvolvimento da criança.
A ausência de punição dessa postura está trazendo um aumento desenfreado
de denúncias. Genitores alienadores que põe a vingança contra ex-cônjuge acima do
bem-estar dos filhos, e que não possuem o mínimo discernimento para perceber os
danos que irão advir dessa atitude.
É imprescindível que haja medidas contra o genitor alienador, uma vez que,
sem elas, o desenvolvimento saudável da criança envolvida não está assegurado. É
preciso apuração e averiguação dessas posturas, que estão ocorrendo dentro de casa,
onde as portas de fecham e a Justiça não chega.

Referências

AGUILAR, José Manuel. Síndrome da Alienação Parental. Portugal:


Caleidoscópio, 2008.

BRASIL. Lei 12.318 de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação


parental e dá outras providências. Brasília, DF. Presidente da República, 2010.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2010/lei/l12318.htm>. Acesso em: ago. 2019.

CARVALHO, Luna Araújo de. Falsas acusações de abuso sexual na


alienação parental: Quem é o verdadeiro abusador?. Disponível em:
<http://monografias.ufrn.br/handle/123456789/7386>. Acesso em: ago.2019.

COIMBRA, Marta de Aguiar. Lei de Alienação Parental e sua eficácia no


ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em:
27
CARVALHO, Luna Araújo de. Falsas acusações de abuso sexual na alienação parental: Quem é o
verdadeiro abusador?. Disponível em: <http://monografias.ufrn.br/handle/123456789/7386>. Acesso
em: ago.2019.
<https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-117/lei-da-alienacao-parental-e-a-
sua-eficacia-no-ordenamento-juridico-brasileiro/>. Acesso em: ago. 2019.

COSTA, Sirlei Martins da. Violência Sexual e Falsas Memórias da Alienação


Parental. Disponível em: < https://asmego.org.br/wp-
content/uploads/2012/04/violencia-sexual.pdf>. Acesso em: ago.2019.

DIAS, Maria Berenice. As famílias e seus direitos. Disponível em:


<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_568)14__as_familias_e_se
us_direitos.pdf>. Acesso em: ago. 2019

DIAS, Maria Berenice. Síndrome da alienação parental, o que é isso?.


Disponível em
<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_504)1__sindrome_da_alien
acao__parental_o_que_e_isso.pdf>. Acesso em: ago. 2019.

SERGIO, Caroline Ribas. A síndrome da alienação parental e seus reflexos no


âmbito familiar. Disponível em:
<https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/10632/A-sindrome-da-alienacao-
parental-e-seus-reflexos-no-ambito-familiar>. Acesso em: ago. 2019.

SOUZA, Ronaldo Ribeiro de. A responsabilidade civil por Alienação


Parental. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/58175/a-responsabilidade-
civil-por-alienacao-parental>. Acesso em: ago.2019.

TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do


Direito. 8. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E EXPOSIÇÃO À
VIOLÊNCIA INTERPARENTAL: O
CONTRIBUTO DA PSICOLOGIA JURÍDICA

Mauro Paulino34
* Texto original de Portugal

Introdução
Este capítulo recupera, em larga medida, o que tenho redigido sobre este tema,
o qual tem constituído uma área de investigação e reflexão profissional há vários
anos.
A finalidade passa por apresentar elementos baseados em evidência científica,
os quais registam e confirmam o quão nociva é a exposição à violência interparental
para o desenvolvimento infantojuvenil. Acresce que é fundamental a consideração de
tal ocorrência familiar como uma variável de extrema importância nos mais diversos
eixos (e.g., regulação do exercício das responsabilidades parentais, acompanhamento
clínico posterior).
Nestas temáticas, é imprescindível ter presente que o papel dos profissionais é
influenciado por características pessoais e socioculturais (e.g., crenças, perceções,
vivências diversas), que se não forem devidamente consciencializadas poderão
enviesar o entendimento de determinada realidade criminal e familiar, potenciando a
negligência dos contributos do conhecimento científico.
Consequentemente, é imperativo que qualquer profissional que contacte com
vítimas de violência doméstica (seja esta homem, mulher ou criança) seja apto para
34
Coordenador da Mind | Instituto de Psicologia Clínica e Forense. Psicólogo Forense Consultor do
Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses. Doutorando em Psicologia Forense na
Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação na Universidade de Coimbra (FPCE-UC). Membro
efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses, com grau de Especialidade Avançada em Psicologia da
Justiça. Integra o Grupo de Trabalho da Ordem dos Psicólogos Portugueses – Intervenção do Psicólogo
em Contexto de Violência Doméstica. Membro do Conselho Nacional de Psicólogos, um órgão
consultivo que tem como principal atribuição o aconselhamento e a emissão de pareceres sobre
questões colocadas pela Direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses. Membro do National
Awarding Committee da Ordem dos Psicólogos Portugueses, no âmbito do Certificado Europeu de
Psicologia – Europsy. Coordenador da Pós-graduação de Psicologia Forense da Universidade
Autónoma de Lisboa. Mestre em Medicina Legal e Ciências Forenses pela Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa. Pós-graduado em Consulta Psicológica, Psicoterapia e Neuropsicologia.
Membro do Laboratório de Avaliação Psicológica e Psicometria (PsyAssessmentLab) (FPCE-UC) e do
Centro de Investigação do Núcleo de Estudos e Intervenção Cognitivo-Comportamental (CINEICC).
Autor e coordenador de diversos livros (e.g., “Abusadores sexuais de crianças: A verdade escondida; O
inimigo em casa: Dar voz aos silêncios da violência doméstica”, “Violência doméstica: identificar,
avaliar e intervir”, “Forensic psychology of spousal violence: Psychodynamics, Forensic Mental Health
Issues and Research”, “Comportamento criminal e avaliação forense”). Docente convidado em várias
universidades nacionais e internacionais.
afastar e combater crenças e mitos que dificultam ou impedem a intervenção nesta
área, que conheça fatores associados à violência doméstica, assim como as dinâmicas
e processos abusivos tomados a cabo pelo agressor. É igualmente recomendável a
capacidade de identificação daqueles que são o atos mais frequentes e consequências
associadas, de reconhecimento dos sinais indicadores da ocorrência de violência e de
incentivo à revelação por parte da vítima. Deve ainda munir-se de competências e
estratégias básicas de comunicação/atendimento (e.g., presencial, telefónica, estar
sensibilizado, especificidades emocionais e comportamentais), mantendo em mente
quais os tipos de apoio disponíveis e quais os passos necessários à articulação com
outros serviços.

1. Breve Enquadramento ao Flagelo Social da Violência Doméstica


No contexto familiar, muitos lares são marcados pela violência surgindo a
casa como “(…) um dos lugares mais perigosos das sociedades modernas. Em termos
estatísticos, seja qual for o sexo e a idade, uma pessoa estará mais sujeita à violência
em casa do que numa rua à noite" (Giddens, 2001, p. 196).
De acordo com estatísticas internacionais, uma em cada quatro mulheres é
vítima de violência doméstica e as investigações conduzidas pela Organização
Mundial de Saúde estimam que, ao longo da sua trajetória de vida, as mulheres
sofram diversos tipos de abuso, cuja prevalência pode variar entre os 15 e os 71%
(Allen, 2011).
Manifesta-se como um dos crimes mais impactantes com consequências
complexas a diversos níveis, tanto para as vítimas, como para a comunidade, o
sistema de saúde e serviços sociais e judiciais (Ali & Naylor, 2013; Chan & Cho,
2010, Eckhardt et al., 2013). Reconhecida como um problema de saúde pública
(Datner, Asher & Rubin, 2003; Mota, Vasconcelos & Assis, 2007), o flagelo da
violência doméstica tem obtido um lugar de destaque no discurso científico, político,
judiciário, meios literários e nos mass media (Matos, 2006).
Diretamente associado aos crimes de violência doméstica, surge a exposição,
nas suas várias formas (e.g., observação direta das agressões; audição de ofensas
verbais; notar as marcas corporais resultantes das agressões), à violência interparental,
a qual acarreta para os menores repercussões extremamente prejudiciais ao seu
desenvolvimento educativo e comportamental (Paulino, 2016; Rodrigues, 2017, Sani,
2018), assim como para o ajustamento global das crianças e adolescentes (Artz et al.,
2014; Kernic & Bonomi, 2007).
É necessário ter presente que, pela reconhecida escalada de violência, a
mesma tende a ser reiterada e, em média, as vítimas demoram cerca de 13 anos até
denunciarem ou pedirem apoio (Arroyo, 2004; Matos, 2006; Paulino, 2016), o que
resulta, por força da variável tempo, numa exposição continuada e intensa das
crianças a condutas agressivas, fazendo também destas vítimas.

2. Impactos e Contornos da Exposição à Violência Interparental


A exposição à violência interparental consubstancia inegavelmente, à luz da
Psicologia, uma forma de maltrato, uma vez que acarreta hostilidade e perigo,
resultando num clima de medo e exposição a modelos de vinculação negativos e
limitados, que encorajam comportamentos violentos. Estes cenários, indicam,
concomitantemente, tanto relações de vinculação inseguras, como uma desadaptação
das estratégias parentais ao temperamento e necessidades da criança, fatores estes
particularmente relevantes para a o crescimento saudável da criança. Assim,
independentemente dos moldes da agressão, sabe-se que a exposição contínua a
situações indutoras de stresse tóxico prejudica severamente o desenvolvimento, como
demonstrado pelo Center on the Developing Child da Universidade de Harvard.
De acordo com uma investigação que realizei, no âmbito da tese de mestrado,
na maioria dos casos (81.6%, n=62), os filhos assistiram, pelo menos, a uma agressão
(Paulino, 2016). A literatura tem revelado que resulta, desta realidade, uma série de
consequências em termos cognitivos, comportamentais e emocionais para os
descendentes (Black Trocmé, Fallon, & Maclaurin, 2008; Coutinho & Sani, 2008;
Howell, Barnes, Miller, & Graham-Bermann, 2016; Matos, 2006; Sani 2006), sendo
introduzido o conceito de vítimas silenciosas (Holt, Buckley, & Whelan, 2008) e
podendo a criança desenvolver sintomatologia diversa.
Ao nível da internalização refira-se a ansiedade, a depressão, o isolamento, a
perda de confiança e a baixo autoestima. No tocante à externalização, tomando
muitas vezes o comportamento do agressor como modelo, numa espécie de
aprendizagem vicariante, existe maior predisposição para a agressividade,
impulsividade, desobediência, e para estilos conflituosos na resolução de problemas,
inclusive relações amorosas (Sani & Caridade, 2016).
A exposição à violência doméstica é um dos traumas mais reportados nos
estudos abrangentes das Adverse Childhood Experiences (ACEs) (Felitti et al., 1998),
sendo que registar zero (0) ACEs confere uma proteção significativa contra a doença
mental na infância e adultícia.
Outro estudo acerca do abuso psicológico a que estas crianças são submetidas,
concluiu que, frequentemente, as mesmas são utilizadas como ferramentas de abuso,
na medida em que são alvo de jogos psicológicos e manipulações. Mais
concretamente, 85% das sobreviventes de violência referiram que o agressor se usou
dos menores para as ameaçar ou controlar e 72% disseram que o agressor procurou
colocar as crianças contra elas (Safelives, 2019).
Torna-se relevante ainda referir os contributos da Psicologia do
Desenvolvimento e das Neurociências, sendo que estes apresentam evidências de que
as experiências ambientais podem ativar, moldar e alterar o genoma. Também uma
adequada e securizante estimulação é determinante na maturação e desenvolvimento
das suas capacidades neurológicas. Estudos nestes domínios evidenciam que as
experiências que o ser humano desenvolve na interação com o ambiente,
principalmente na infância, são fundamentais e cruciais ao desenvolvimento da
personalidade. Porém, quando ocorrem adversidades extremas (i.e., exposição à
violência interparental), são potenciadas perturbações da personalidade (Pires,
Pereira, Paiva & Silva, 2017).
A literatura referente a lares onde predomina a negligência e/ou condutas
parentais desadequados/disfuncionais demonstra que muitos dos padrões violentos
surgem associados a estilos parentais autoritários e demasiado reativo (Department of
Health and Human Services, 2008, citado por Rodriguez, 2010). Segundo a mesma
fonte, também o estilo parental permissivo pode elevar o risco de agressão. De uma
forma geral, um estilo parental autoritário, a longo prazo, encontra-se associado a
menores graus de autoconfiança e, por sua vez, um estilo parental negligente a
resultados negativos a vários níveis (Pereira, Canavarro, Cardoso, & Mendonça,
2009).

Na relação parental, é também sabido que a relação de vinculação


caracterizada pela segurança e compreensão (i.e., autoritativo) é a mais favorável ao
desenvolvimento saudável de uma criança (Pereira, Canavarro, Cardoso, &
Mendonça, 2009). No entanto, em casos de exposição à violência interparental, o
progenitor agressor acaba por ameaçar seriamente o desenvolvimento saudável e
equilibrado dos filhos (Alarcão, 2008).
A violência doméstica tem permanecido muitas vezes à margem nos processos
de regulação das responsabilidades parentais, marcados por acordos tipificados, que
as mulheres não têm poder para negociar e por um raciocínio de igualdade formal,
que privilegia o exercício conjunto das responsabilidades parentais e o direito de
visita do progenitor agressor (normalmente, o pai), em detrimento da segurança da
vítima adulta (normalmente, a mãe) e dos filhos. Desta forma, é alimentado o mito
segundo o qual um homem pode ser agressivo com a mulher, mas bom para com os
filhos.
Leve-se em linha de consideração, como demonstra a literatura da
especialidade (Pereira & Alarcão, 2016), que a violência doméstica interfere
negativamente na parentalidade, designadamente:
• Prejudica a capacidade de prestação de cuidados;
• Cuidadores vítimas apresentam-se emocionalmente distantes, indisponíveis ou
incapazes de satisfazer as necessidades dos seus filhos;
• Como forma de evitar a violência, as mães priorizam a satisfação das
necessidades dos parceiros;
• Capacidade diminuída de exercer autoridade;
• Dificuldade em reconhecer o impacto da violência no funcionamento dos
filhos;
• Agressores menos afetuosos e mais inconsistentes, autoritários, irritáveis e
agressivos.

Importa que a exposição à violência interparental seja ponderada aquando da


regulação das responsabilidades parentais, prestando especial atenção à presença de
recusas por parte da criança, as quais devem ser compreendidas com vista a conferir
estabilidade e segurança à sua vida.
Para tal, é fundamental que os vários profissionais a trabalhar neste domínio
beneficiem de formação específica na temática, reduzindo assim o risco de uma
situação de perigo para a criança ser confundida com um mero conflito a resolver por
medidas coercivas ou por conselhos moralistas aos pais. Adicionalmente, é essencial a
especialização dos profissionais na audição das crianças, com a finalidade de evitar
interpretações enviesadas e/ou seletivas dos relatos das crianças, evitando que se
termine, sem fundamento técnico-científico ou suporte pericial da Psicologia Forense,
no desfecho fácil da alienação parental.
Num enquadramento legislativo que privilegia o exercício conjunto das
responsabilidades parentais, quando o processo envolve violência doméstica que é
tolerada pelo sistema, as mulheres sujeitam-se a ter que entrar em contato com o
agressor, para tomada de decisões em relação aos filhos e a cumprir regimes
coercivos de visitas, mesmo perante a recusa fundamentada da criança, sob pena de
serem perseguidas penalmente por crime de subtração de menores, que pune o
incumprimento do regime de convivência com o outro progenitor.
Por conseguinte, ignora-se que a investigação tem demonstrado, de forma
clara, a continuidade da violência, mesmo após a rutura ou o divórcio, razão pela qual
as decisões dos profissionais de justiça devem basear-se e refletir as necessidades de
segurança das mulheres e crianças, ambas vítimas de violência.
Em situações de violência doméstica, ou apenas de indícios ou suspeita, não
devem ser impostas visitas, pois tais momentos não devem ser fonte de qualquer tipo
de perigo para a saúde, segurança, educação ou formação moral do menor. O foco de
qualquer decisão judicial deve ser, portanto, orientado para a proteção da criança e
não para a manutenção da relação desta com os progenitores, até porque não raras
vezes a relação com o progenitor agressor é disfuncional/inexistente. Para as crianças
expostas à violência interparental parece distante a representação de família enquanto
contexto de afeto, partilha, proteção e segurança, uma vez que esse contexto mais do
que ter sido promotor de um desenvolvimento holístico se afigurou de risco.
Atente-se que a Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e
combate à violência contra as Mulheres e violência doméstica (Istambul, 11 de maio
de 2011), declara no seu artigo 31.º que “As Partes deverão adotar as medidas
legislativas ou outras que se revelem necessárias para assegurar que os incidentes de
violência abrangidos pelo âmbito de aplicação da presente Convenção sejam tidos em
conta na tomada de decisões relativas à guarda das crianças e sobre o direito de visita
das mesmas”.
À medida que aumenta a consciência da coocorrência de violência doméstica e
maus-tratos infantis, assim como dos possíveis resultados deletérios associados à
exposição de crianças à violência doméstica, algumas agências públicas de assistência
social à criança estão a expandir o seu alcance para incluir a violência doméstica
como uma forma de maus-tratos que justifica uma intervenção protetora (Lawson,
2019).
Num estudo holandês relativo à exposição das crianças a situações de
homicídio em contexto de violência doméstica, registaram-se 256 crianças que
perderam um progenitor na sequência de 137 casos de homicídio, no intervalo de uma
década (2003-2012). Em média, as crianças tinham 7,4 anos, aquando do homicídio, e
a maioria perdeu a mãe (87,1%). Sobre a existência de violência prévia em casa,
apurou-se que em 67,7% dos casos as crianças foram certamente expostas e em 16,7%
provavelmente, representando assim mais de 80% da amostra. A maioria das crianças
(58,7%) estava presente no local do homicídio, quando este ocorreu, registando-se
diferentes níveis de exposição. Os homicídios envolveram principalmente facas e
armas de fogo, contribuindo para a exposição a cenários traumáticos de grande
intensidade visual (Alisic et al., 2017).
Importa também aqui falar de avaliação de risco, na medida em que a mesma
se tem revelado fundamental na prevenção de violência contra crianças e, portanto,
determinante no futuro das mesmas. O processo avaliativo, pela sua natureza e
impacto, deve ser cauteloso, consistente e fundamentado, com vista a evitarem-se
intervenções desadequadas (Chan, 2012; Norris, Griffith & Norris, 2017). Ainda que
não se possa fazer uma previsão inequívoca do risco, o recurso a ferramentas
específicas para o efeito contribui positivamente para a avaliação preditiva, em
particular quando se combinam diferentes modos de avaliação (D’Andrade, Austin, &
Benton, 2008; Sing, Grann, & Seena, 2011).
Para além dos riscos psicoemocionais, sociais e de desenvolvimento referidos
ao longo do presente texto, faz igualmente sentido referir o risco de letalidade para as
crianças, tema de preocupação em diversas investigações.
Num relatório da Women’s Aid são referidas 29 crianças, de 13 famílias, que
foram mortas, em Inglaterra e País de Gales, entre 1994 e 2004, mortes estas
ocorridas em contexto de litígio familiar (Saunders, 2004). No ano de 2016, a
Women’s Aid focou-se em acabar com mortes infantis evitáveis, lançando uma
campanha intitulada Child First: Safe Child Contact Saves Lives. Neste âmbito, foram
destacadas 19 crianças, e duas mulheres, de 12 famílias, mortas por agressores
conjugais após contactos informais e/ou supervisionados com as crianças, como
forma de centrar as preocupações nas crianças, em casos de violência doméstica
(Women’s Aid, 2017).
Dawson (2015) alerta para o fenómeno do filicídio (i.e., homicídio cujo alvo é
o filho), o qual ocorre, variadas vezes, como forma de vingança no contexto de
separação, aquando num histórico de violência doméstica.
Numa análise de homicídios de crianças (com idades compreendidas entre 2 e
14 anos), oriundas de 16 estados, no decorrer do período de 2005 a 2014, Adhia,
Austin, Fitzmaurice e Hemenway (2019) verificaram que, entre um total de 1386
vítimas, 280 estavam associadas a narrativas de violência entre parceiros íntimos.
Destas 280 vítimas, 54,3% eram infanticídios relacionados com a prática de violência
pelo parceiro íntimo, em que o agressor também matou ou tentou matar o parceiro.
Um estudo realizado por Jaffe e colegas (2014) concluiu que tanto os
homicídios direcionados a adultos, como os infantis em contexto de violência
doméstica, partilham sinais de alerta semelhantes. Tendo em conta este conhecimento,
baseado em evidência científica, torna-se fundamental compreender estes sinais e
orientar uma avaliação de risco adequada para estes casos. Os autores defendem ainda
que é importante apostar-se numa estreita coordenação entre os profissionais, de
modo a garantir que os planos de segurança e a prevenção a diferentes níveis inclua as
crianças.

Considerações Finais
A violência doméstica constitui um fenómeno que envolve diversos sectores
sociais, exigindo uma resposta integral, designadamente, da saúde, educação, serviços
sociais, justiça e política (Krug et al., 2003, citados por Pérez & Martínez, 2009).
Perante o impacto severamente negativo que a exposição à violência
interparental acarreta para o salutar desenvolvimento das crianças, só pelo
desconhecimento se percebe que se continue a obrigar as crianças a estar na presença
de progenitores que nunca exerceram o seu dever de educar e cuidar, contribuindo
para a desorganização emocional daquelas. É imperativo entender que a afetividade
não é fruto de uma ligação biológica e natural da díade progenitor-criança, sendo que
esse tipo de crença vai contra as mais elementares evidências científicas acerca da
vinculação.
Se são efetivamente precisos juízes e procuradores que tomem atenção à dor
de um pai, ou mãe, que não pode, de forma infundada, ver a criança, em eventuais
casos de falsas alegações premeditadas (as quais deviam ser fortemente sancionadas),
é igualmente imperativo que existam juízes e procuradores que prestem total
consideração ao medo de uma criança que não quer estar, pelo terror a que foi
exposta, com um agressor que a biologia lhe impôs como progenitor.
Recorde-se que para as crianças expostas à violência interparental parece
distante a representação de família, enquanto contexto de afeto, partilha, proteção e
segurança, na medida em que esse contexto, ao invés de promotor de um
desenvolvimento holístico, se afigura de risco, uma vez que a violência doméstica
constitui uma agressão sobre todo o sistema familiar. É fundamental identificar a
influência perniciosa que a violência doméstica tem nas crianças que a experienciam.
Perante a lei, as crianças que experienciam violência devem deixar de se ser
percecionadas como meros atores passivos, secundários ou vítimas esquecidas, pois
vivenciaram uma marcante experiência adversa na infância que acarreta danos
diversos.
Deste modo, a Justiça, beneficiando do contributo da Psicologia da Jurídica,
deve levar ao fim dos usuais ciclos de violência doméstica. A ressocialização de um
progenitor agressor não pode ser feita através do sofrimento, insegurança e
comprometimento da vida das crianças. Estas merecem ver os seus traumas
intervencionados, ao nível da saúde mental, bem como que a Justiça, no seu todo,
reconheça que o tempo das crianças não é o tempo dos processos.

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A IMPORTÂNCIA DA PSICOLOGIA
JURIDICA NO ÂMBITO DA VIOLÊNCIA
INTRAFAMILIAR EM RELAÇÃO À
MULHER

Tatiane Bueno35

Introdução
Inicialmente cabe diferenciar os termos Violência Doméstica e Violência
Intrafamiliar. Percebe-se que a literatura quando se refere à violência de gênero e
contra a mulher entende que o correto seria Violência doméstica, já quando violência
se refere às crianças, adolescentes e idosos a prevalência é do termo Violência
Intrafamiliar. Neste trabalho pretende-se analisar a importância da psicologia jurídica
nas relações intrafamiliares em relação a mulher, pois o escopo é não se limitar a o
significado dos termos, mas fazer uma reflexão Macro em relação a violência contra a
mulher, seja ela esposa, avó, filha, neta, tia.
Observando a tipologia de violência familiar contra a mulher, bem como as
principais legislações que as protegem. Averiguando a forma como é feita a avaliação
psicológica judicial regulada pelas inovações do Novo Código de Processo Civil, bem
como o entendimento do nosso TJRS sobre a importância da avaliação psicológica,
onde corrobora a importância da interdisciplinaridade entre os profissionais da saúde
e do Direito, demonstrando a importância do profissional psicólogo como auxiliar do
magistrado.

1.1.Psicologia Jurídica
A Psicologia Jurídica é uma das subdivisões da Psicologia que teve inicio a
sua prática junto com o reconhecimento da profissão de psicólogo em 1962, através
da Lei nº 4.119/1962, que dispõe sobre os cursos de formação em psicologia e
regulamenta a profissão, todavia a psicologia jurídica era utilizada informalmente e
muitas vezes através de trabalho voluntário.Com o passar do tempo e o estudo das
relações, principalmente as familiares, a atuação do psicólogo jurídico tornou-se
imprescindível nas Varas de Família, Criminais, Infância e Juventude e também nas
35
Advogada. Mediadora de conflitos capacitada pelo TJRS. Expositora em formação de Oficina de
Parentalidade pelo TJRS. Pós-Graduanda em Direito de Família. Especialista em Psicologia Forense-
XX Edição do Curso promovido pela SBPJ, no Instituto de Psicologia professor Jorge Trindade.
Varas de violência doméstica, onde são tratados os casos de violência intrafamiliar em
relação a mulher foco do presente trabalho.
A atuação da psicologia jurídica se dá através de perícia e avaliação
psicológica, acompanhamento e orientação, conforme veremos detalhadamente.

1.2 Violência Intrafamiliar


A violência intrafamiliar é toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a
integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de
outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum
membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda
que sem laços de consanguinidade, e em relação de poder à outra. (Ministério da
Saúde, 2002, p.15)36

2. Tipologia da Violência Intrafamiliar


2.1 Contra a Mulher
A violência doméstica contra a mulher, é qualquer ação que nefasta que cause
danos físicos ou psicológicos. Segundo Fiorelli & Mangini37 (2010), a violência
pode ser dividida em três grandes grupos: assédio moral, violência física e
violência psicológica. Assevera o mesmo autor que a violência sexual está no âmbito
físico. Não obstante, parece evidente que todo dano físico tenha consequências
psicológicas; é igualmente verdade que os danos psicológicos venham acarretar
problemas psicossomáticos, gerando alterações físicas.

2.1.1 Lei11.340/2006 – Maria da Penha


No ano de 2006, foi criada a lei que sem duvida é uma das mais importantes,
quiçá a mais importante ferramenta legislativa no combate a violência intrafamiliar
contra a mulher, a Lei Maria da Penha, Lei 11.340/2006, em homenagem à Maria da
Penha Maia Fernandes38 uma farmacêutica brasileira que lutou para que seu agressor
viesse a ser condenado. Maria da Penha tem três filhas e hoje é líder de movimentos
de defesa dos direitos das mulheres, vítima emblemática da violência doméstica. Sua

36
Ministério da Saúde. (2002).Violência intrafamiliar: orientações para a prática em serviço. Secretaria
de Políticas de Saúde. Brasília, DF: Autor.
Disponível em:http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd05_19.pdf Acesso em : 01/08/2019
37
Fiorelli,J.O.& Mangini,R.C.R.(2010).Psicologia Jurídica(2aed.).Editora Atlas: SP.
38
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_da_Penha Acesso em 01/08/2019.
luta teve como finalidade a obtenção de medidas drásticas e necessárias para que o
agressor fosse punido e mantivesse distância da vítima.
A condenação do ex-esposo de Maria da Penha só aconteceu no ano de
1991, após ele tentar matá-la duas vezes, deixando-a paraplégica. Atualmente,
devido à defesa ter alegado irregularidades no processo do Júri, o agressor
continua em liberdade.
Essa legislação possui grande relevância no ordenamento jurídico, pois foi um
marco tanto nos procedimentos, quanto na aplicação no processo penal aplicado à
violência de cunho doméstico à mulher.
Cabe salientar que atualmente, em decorrência de alterações na lei e devido ás
jurisprudências, a aplicação da referida lei não se restringe apenas às mulheres, ao
gênero e à relação de “esposa” “companheira”. É aplicada ao transexual, á mãe e
filha, á irmã, cunhada, prima, ou seja, à qualquer “mulher” que se encontra em
fragilidade em relação ao agressor em ambiente doméstico intrafamiliar.
O ponto mais relevante da Lei Maria da Penha é que mesmo no caso da
relação já ter se acabado e com isso não houver mais o ambiente doméstico, a lei
ainda protege a mulher em caso de agressão de homem, pois se entende que há uma
maior “acessibilidade” pelo agressor, pelo fato de já ter tido um relacionamento com a
vítima. Dai decorre o entendimento que não se trata de uma vítima de lesão corporal ,
moral ou psicológica qualquer, mas sim de violência doméstica.

2.2. Contra a Criança e o Adolescente


Para Bee39 (2003),o abuso e a negligência são um dos perigos mais terríveis na
infância. A violência contra crianças e adolescentes que não se trata de apenas
uma realidade brasileira. Em geral, as crianças e adolescente que sofrem violência
em casa, também sofrem violência na escola. Aqui não nos referimos apenas em
violência física, mas também psicológica–bullying.
Em relação as principais causas da violência contra a criança e o adolescente,
Bee (2003) aponta três causas principais: o estresse dos pais, frente as imensas
dificuldades que existem em criar um filho; a falta de habilidade na educação e
vivência com os filhos, fato relacionado com os pais novos e inexperientes; por fim, é
a falta de apoio social e familiar dos pais e responsáveis, muitas vezes relacionado à

39
Bee,H..A criança em desenvolvimento (9ºed.).Editora Artmed: SP, 2003.
questão econômica e cultural dos pais.
Há vários estudos que apontam as consequências danosas e devastadoras da
violência contra a criança. Bee(2003), elenca algumas delas: crianças que sofrem
abusos físicos tem mais probabilidade de se tornarem agressivas e delinquentes;
crianças que foram abusadas sexualmente, estão propensas a vivenciar um
desenvolvimento sexual exacerbado. Observa-se, pois, uma direta consequência cruel
na vida das crianças que sofreram algum tipo de violência.

2.3. Contra o Idoso


De acordo com Fiorelli & Mangini(2010), a violência contra idosos se dá pela
negligência e violência psicológica, sendo casos raros os de violência física. É
possível que dentre os problemas que levem à violência estejam questões econômicas,
em detrimento dos cuidados com uma pessoa idosa; o estresse o cuidado; e os
conflitos familiares que levam estes cuidados.

3. A Atuação da Psicologia Jurídica em Relação às Vítimas


De acordo com diversos estudos, na grande maioria dos casos, as
agressões intrafamiliares se dão mais comumente por parte do marido ou
companheiro, há inúmeros casos de agressões por dia de mulheres em relações
familiares/conjugais.
Os registros nas Delegacias especializadas são volumosos mas
ainda, infelizmente, os números reais de agressões intrafamiliares superam os
números que chegam as delegacias e as ações judiciais.
Diante desse enorme problema cultural, é de grande pertinência que os
serviços de atendimento tenham deferência ao tratar do assunto e tratar de vítimas de
violência que geram sequelas infindáveis , seja pelas agressões físicas, quanto as
agressões morais, sexuais ou patrimoniais.
Sem duvida a psicologia jurídica possui um papel mais que social no trato com
as vitimas , mas sim assistencial.
Dutra40 (2011) comenta sobre em seu artigo:
Pela amplitude e complexidade da problemática, é importante que os serviços de
atendimento sejam guiados por uma perspectiva interdisciplinar, onde o
compartilhamento de saberes seja capaz de potencializar as ações dirigidas às

40
DUTRA, Morgani Moreira.2011.Psicologia Jurídica em Pauta. Disponível em:
http://psicojuris.blogspot.com/ Acesso em: 05/08/2019
famílias perpetradas pela violência. Entretanto, a discussão aqui proposta
pretende focalizar a atuação do psicólogo dentro do Judiciário. No Brasil, a
Psicologia Jurídica ainda é recente como campo de atuação. Segundo Cesca
(2004), foi só em 1980 que o psicólogo começou a atuar na área judicial e apenas
em 1985 teve cargo consolidado dentro do Sistema Judiciário, no intuito de
contribuir com a eficiência jurídica(...) com o objetivo de auxiliar o juiz a tomar
decisões que atendam às necessidades dos sujeitos que dela fazem parte,
cumprindo a garantia dos direitos previstos pela legislação.

3.1. Perícia e Avaliação Psicológica


Inicialmente, é importante mencionar o conceito de avaliação psicológica.
Segundo o conselho Federal de Psicologia [CFP], em sua Resolução Nº 09/201841, que
Institui o Manual de Elaboração de Documentos Escritos produzidos pelo psicólogo,
decorrentes de avaliação psicológica, esta última é “um processo estruturado de
investigação de fenômenos psicológicos, composto de métodos, técnicas e
instrumentos, com o objetivo de prover informações à tomada de decisão, no âmbito
individual, grupal ou institucional, com base em demandas, condições e finalidades
específicas.”
De acordo com Raposo 42 (2011), a avaliação psicológica está inserida no
contexto da perícia psicológica. Na linguagem jurídica, a perícia deve ser realizada por
um profissional tecnicamente qualificado e nomeado pelo juiz no sentido de analisar ou
examinar a veracidade de fatos e causas que transitam no âmbito da justiça.
A perícia tem como escopo produzir conhecimento técnico para dar subsidio e
auxiliar o juiz através das respostas aos quesitos elaborados pelas partes envolvidas no
caso analisado. A partir da perícia ou investigação psicológica devidamente
fundamentada em métodos e técnicas científicas, o psicólogo deverá produzir um laudo
ou relatório que apresente, segundo a Resolução Nº 08/201043 do CFP, indicativos
pertinentes à sua investigação, procurando não influenciar nas decisões do magistrado.
A Lei 13.105/2015, Conhecida como Novo Código de Processo Civil-NCPC,
foi inovadora reconhecendo a necessidade da interdisciplinaridade entre o direito e a
psicologia.

41
Disponível em : https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/04/Resolu%C3%A7%C3%A3o-
CFP-n%C2%BA-09-2018-com-anexo.pdf acesso em: 01/08/2019.
42
Raposo, H. S., Figueiredo, B. F. C., Lamela, D. J. P. V., Nunes-Costa, R. A., Castro, M. C., Prego, J.
(2011). Ajustamento da criança à separação ou divórcio dos pais. Revista de Psiquiatria Clínica, 38(1).
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rpc/v38n1/a07v38n1.pdf acesso em: 01/08/2019
43
Resolução Nº 08, de 30 de junho de 2010. (2010, 30 de junho). Dispõe sobre a atuação do psicólogo
como perito e assistente técnico no Poder Judiciário. Brasília, DF: Conselho Federal de
Psicologia.Disponivelem:https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2010/07/resolucao2010_008.pdf
Acesso em 01/08/2019
Como inovação enuncia o artigo 156 caput “ que o juiz será, assistido por
perito quando a prova ou fato depender de conhecimento técnico ou científico”.
Assim valorizando o conhecimento próprio ao psicólogo. Podendo ser nomeados
peritos os profissionais legalmente habilitados e, como inovação, os órgãos técnicos
ou científicos devidamente inscritos em cadastro mantido pelo tribunal ao qual o juiz
está vinculado, cabendo a esses tribunais a avaliação e reavaliações periódicas para
manutenção do cadastro.
Já o artigo 464 caput, define a prova pericial como exame, vistoria ou
avaliação. O que confere ao trabalho realizado pelos psicólogos, além da perícia em
si, um caráter de intervenção.
Deste modo, no âmbito das perícias podem ocorrer intervenções com o uso de
técnicas próprias à psicologia, e que em muito contribuem para solução dos litígios
judicializados. Como exemplo, Groeninga 44 (2016) cita: a conscientização do
significado e das consequências das disputas, sobretudo, para os filhos; mediação das
relações com o fortalecimento dos vínculos; a prevenção de transtornos psíquicos ou
de seu agravamento; acompanhamento da situação objeto do litígio; recomendação de
psicoterapias específicas às situações analisadas.
No parágrafo 2º e 3° do artigo supracitado menciona que o juiz de oficio ou a
requerimento das partes, poderá substituir a pericia, solicitando uma técnica
simplificada de produção de provas, com a inquirição do especialista pelo juiz
quando o ponto controvertido for de menor complexidade e demande especial
conhecimento científico ou técnico.
O artigo 466 do NCPC em seu parágrafo 2º traz regulamentação da figura do
assistente técnico, que era omissa no Código de 1973. Profere o parágrafo 2º: “O
perito deve assegurar aos assistentes das partes o acesso e o acompanhamento das
diligências e dos exames que realizar, com prévia comunicação, comprovada nos
autos, com antecedência mínima de cinco dias”.
Avalia-se que a maior inovação do NCPC se deu na nova redação do artigo
473, pois garantiu direitos e ratificou a necessidade e importância do psicólogo,
especificando o que o laudo pericial deverá conter, garantindo-lhes melhor qualidade ,
44
GROENINGA, Giselle Câmara. Importância do Psicólogo nas Perícias é reconhecida pelo Código de
Processo Civil. Revista Consultor Jurídico. Disponível em Https://Www.Conjur.Com.Br/2016-Jul-
10/Processo-Familiarimportancia-Psicologo-Pericias-Reconhecida-Cpc Acesso Em: 27/08/2019.
pois o profissional deve expor o objeto da perícia; análise técnica ou científica
realizada; indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser
predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se
originou; resposta conclusiva a todos os quesitos e apresentar sua fundamentação em
linguagem simples indicando como alcançou tais conclusões.
Temos finalmente como inovação a nova redação do artigo 471,
principalmente no parágrafo 3º que valoriza a escolha consensual entre as partes e
também os pareceres e laudos prévios apresentados pelas partes na inicial e na
contestação.
Para Serafim e Saffi45 (2012), o processo pericial deve seguir cinco etapas
principais. Tem inicio com o estudo dos autos do processo, ou seja, a leitura atenta de
todos os documentos juntados ao processo e relacionados ao caso a ser analisado,
incluindo os quesitos apresentados pelas partes. A segunda etapa se refere à entrevista
psicológica, respeitando as diretrizes estabelecidas pela profissão. A partir dai segue-se,
então, para a avaliação das diferentes tipos de recursos e técnicas psicológicas
dependerá das características do periciando e do profissional psicólogo. Por fim,
realiza-se uma análise dos dados levantados e elabora-se o laudo ou parecer psicológico
que deverá seguir as instruções instituídas pela Resolução Nº 09/2018 do CFP e,
posteriormente, protocolado aos autos para manifestação das partes e analise do
magistrado.
A forma de atuação do perito psicólogo é de extrema importância, pois
possibilita detectar falsas acusações referentes ao tema, corriqueiras nos processos
litigiosos conforme demonstra o julgado abaixo: 46
Ementa: APELAÇÃO-CRIME. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR.
VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. ACUSADO PAI DO OFENDIDO. 1.
ÉDITO ABSOLUTÓRIO. REFORMA. Prova amplamente incriminatória.
Relatos coerentes e convincentes do ofendido, descrevendo que, quando era
ainda menor de 6 anos de idade, o acusado, seu pai, deitava ao seu lado na
cama, de pijamas, e esfregava o corpo contra o seu, tendo ereção, embora, já
com 15 anos, não lembrasse mais dos episódios ocorridos durante o banho
que relatara inicialmente particularidade esta que sequer constou da
denúncia. Relevância da palavra da vítima, em delitos de natureza como a do
presente, porque praticados geralmente na clandestinidade, sem
testemunhas. Narrativas da genitora e da avó do ofendido que confirmaram
seu temor excessivo em permanecer com o pai. Depoimentos das duas
psicólogas que trataram a vítima atestando intenso sofrimento psíquico e
crises de pânico relacionadas à presença do genitor, bem como que a criança
contara que era abusada sexualmente por ele. Laudos produzidos pela equipe

45
Serafim, A.P., Saffi, F. (2012). Psicologia e práticas forenses. São Paulo: Manole.
46
Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul. Disponível em :
http://www.tjrs.jus.br/site/busca-solr/index.html?aba=jurisprudencia acesso em 27.08.2019
interdisciplinar da 5ª Vara de Famílias e Sucessões do Foro Central
indicando sofrimento psíquico intenso da criança, compatível com abuso
sexual, resultando, primeiro, na visitação do réu aos filhos com
monitoramento e, ao final, na destituição do poder familiar. Negativa de
autoria que restou não só isolada, como contrariada nos autos. Declarações
da terapeuta do ofensor, no sentido do profundo carinho que nutria pelos
filhos, enfraquecidas pelo laudo da equipe técnica, atestando ausência de
laços afetivos e pouca disposição do acusado para construí-los. De qualquer
forma, sentimentos e demonstrações de carinho não são incompatíveis com o
comportamento do abusador sexual. Prova segura à condenação. Sentença
absolutória reformada. Acusado condenado como incurso nas sanções do art.
214 c/c art. 224, "a", art. 226, II e art. 71, todos do CP (fato anterior à Lei
12.015/2009). 2. PENA. DOSIMETRIA. Circunstâncias mais gravosas do
delito, praticado contra criança de tenra idade (menor de 6 anos).
Consequências de relevo, considerando o intenso sofrimento psíquico e as
crises de pânico do menino, havendo necessidade de intervenção dos
profissionais da área. Pena-base fixada em 6 anos e 6 meses de reclusão. Na
3ª fase, pela condição de ascendente do réu em relação à vítima, exasperação
da pena em ½, nos termos do art. 226, II do CP, ficando, a provisória, em 9
anos e 9 meses. Pela continuidade delitiva, exasperação da pena em 1/6,
restando definitiva da em 11 anos, 4 meses e 15 dias de reclusão, no regime
inicial fechado, nos termos do art. 33, § 2º, "a" do CP. APELO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA REFORMADA.
DENÚNCIA JULGADA PROCEDENTE. ACUSADO CONDENADO
COMO INCURSO NAS SANÇÕES DO ART. 214 C/C ART. 224, "A",
ART. 226, II E ART. 71, TODOS DO CP, À PENA DE 11 ANOS, 4
MESES E 15 DIAS DE RECLUSÃO, NO REGIME INICIAL
FECHADO.(Apelação Crime, Nº 70062880323, Oitava Câmara Criminal,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Fabianne Breton Baisch, Julgado em: 25-
05-2016).

A avaliação do psicólogo perito, propõe que uma das funções da psicologia


jurídica no contexto da Violência Intrafamiliar, refere-se à realização de avaliação e
perícia psicológica no sentido de investigara veracidade das acusações e as causas da
violência e ainda, auxiliara vítima e muitas vezes também o agressor, para a
recuperação das sequelas psicológicas e emocionais.
O Perito psicólogo precisa ser um profissional com aptidão, habilidade, atenção,
sensibilidade e responsabilidade para que possa constatar a existência desta forma de
violência e, inclusive compreender a causalidade entre a violência vivida e o
sofrimento da vítima.
A grande adversidade que envolve os psicólogos jurídico são acompanhar um
caso de violência intrafamiliar é que o profissional deve, priorizar a proteção da
família, pela delicadeza das relações, não só focar na mera condenação do agressor.
Dutra assevera:
(...) deve-se dizer que, apesar de o psicólogo ter conhecimento do que deve
fazer para priorizar a proteção da família, existem muitos entraves diante
da sua atuação, pois as perícias e os laudos psicológicos que realiza não
tratam da materialidade dos casos, como as agressões físicas, mas de agressões
não menos doloridas e que podem jamais cicatrizar. Contudo, elas
tendem a ser desprezadas pela imaterialidade dos fatos, o que acaba por
conjurar novos abusos dentro do meio familiar.

Uma das possíveis soluções seria a aplicação célere e de grande abrangência de


políticas públicas , por exemplo, elencadas na Lei Maria da Penha, para que assim
possa evitar futuras e maiores agressões, físicas e psicológicas. E essas Políticas
Públicas não são apenas ás vítimas, mas também aos agressores e toda a sociedade.
Cabe salientar que não raro, os agressores provém de famílias violentas, com histórico
de agressões físicas e psicológicas e com isso apenas reproduzem o que presenciaram
durante toda a sua vivencia. Infelizmente está “enraizada” na nossa sociedade a ideia de
posse, submissão da mulher ao homem, contribuindo para a falta de respeito e zelo com
a mulher, seja ela esposa, mãe, filha, prima , etc.
Tais politicas publicas devem ser aplicadas de forma educativa aos possíveis
agressores e a toda a sociedade para que tenham o respaldo, o respeito à mulher, á
família.

Considerações Finais
A partir do estudo realizado foi possível comprovar a hipótese de que a atuação
da psicologia jurídica é fundamental no contexto da violência intrafamiliar e sendo
importante em dois momentos principais: na detecção da existência da violência
intrafamiliar, através da realização de perícia e avaliação e no acompanhamento
psicológico das vítimas, do agressor e de toda família envolvida.
Cabe a reflexão de que os casos de violência intrafamiliar não ocorrem só entre
relações conjugais, essas relações apenas são talvez as mais divulgadas e denunciadas.
As outras formas de violência intrafamiliar, como entre irmãos ou idosos sofrem com a
questão da subnotificação, ou seja, são raramente denunciados por falta de
conhecimento das partes envolvidas ou, ainda, por acontecerem intimamente no seio da
família. É ai que reside à importância do profissional da psicologia neste contexto.
Através de sua atuação com as famílias, seja na área clínica, escolar ou social, o
psicólogo é o profissional que possui todo o manejo para compreender e auxiliar neste
contexto, ajudando as vítimas, agressores, acusados e ainda auxiliará o judiciário para
que este possa tomar decisões com detalhes de esclarecimentos sobre todo o contexto
familiar que envolve tais situações.
Ocorre que em inúmeras situações, nem o agressor e nem as vítimas têm
consciência de que estão praticando e sofrendo violência. Isto ocorre principalmente
quando não se trata de uma relação de conjugalidade, pois os envolvidos geralmente
apresentam dificuldades em discriminar e verbalizar o que vem acontecendo com ela,
precisando de ajuda profissional para entender e elaborar a violência sofrida/praticada.
A violência intrafamiliar é uma forma de abuso muito difícil de ser identificada,
porque nem sempre deixa marcas evidentes no corpo e permeia todas as outras
modalidades de abuso, sendo uma forma de agressão que nem sempre deixa marcas
visíveis, mas emocionalmente, cicatrizes para a vida toda.
Reconhecer e demonstrar a vitima e ao agressor a prática de violência
intrafamiliar vem sendo um grande desafio para o profissional da Psicologia, já que
este se encontra em uma posição estratégica no suporte emocional das vitimas e
também do agressor.

Referências
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DUTRA, Morgani Moreira. 2011. Psicologia Jurídica em Pauta. Disponível


em: http://psicojuris.blogspot.com/ Acesso em: 05/08/2019.

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https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/04/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-
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Https://Www.Conjur.Com.Br/2016-Jul-10/Processo-Familiarimportancia-Psicologo-
Pericias-Reconhecida-Cpc Acesso Em: 27/08/2019.

LEI MARIA DA PENHA – Lei nº 11340/06, de 7 de agosto de 2006. Disponível


em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/95552/lei-maria-da-penha-lei-
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prática em serviço. Secretaria de Políticas de Saúde. Brasília, DF: Autor. Disponível
em:http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd05_19.pdf Acesso em : 01/08/2019.

NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: comparado-Lei 13.105/2015/


Coordenação Luiz Fux; organização Daniel Amorim Assumpção Nes.-2. Ed. Revista-
Rio de janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2015.
RAPOSO, H. S., Figueiredo, B. F. C., Lamela, D. J. P. V., Nunes-Costa, R. A.,
Castro, M. C., Prego, J. (2011). Ajustamento da criança à separação ou divórcio dos pais.
Revista de Psiquiatria Clínica, 38(1). Disponível
em:http://www.scielo.br/pdf/rpc/v38n1/a07v38n1.pdf acesso em: 01/08/2019.

RESOLUÇÃO Nº 08, de 30 de junho de 2010. (2010, 30 de junho). Dispõe sobre


a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder Judiciário. Brasília,
DF: Conselho Federal de Psicologia.Disponivelem:https://site.cfp.org.br/wp-
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SERAFIM, A.P., Saffi, F. (2012). Psicologia e práticas forenses. São Paulo:


Manole.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.


Disponível em: http://www.tjrs.jus.br/site/busca-solr/index.html?aba=jurisprudencia
acesso em 27.08.2019.

WIKIPEDIA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_da_Penha.


Acesso em 01/08/2019.
A SÍNDROME DE MUNCHAUSEN POR
PROCURAÇÃO SOB O OLHAR DA
PSICOLOGIA FORENSE

Gabriela Ceratti47

Victória Kofler Puchalski48

Introdução
Em 1951 o médico inglês Richard Asher utilizou pela primeira vez a
terminologia Síndrome de Munchausen a fim de retratar pacientes que contavam
histórias falsas, narravam dramaticamente seus sintomas e, não raramente, eram
submetidos a extensas investigações diagnósticas e tratamentos desnecessários
(Ferrão & Neves, 2013)49. O termo “Munchausen” foi cunhado após os sintomas
expostos pelos pacientes serem associados ao personagem do livro “As
surpreendentes aventuras do Barão de Munchausen”, de Rudolf Erich Raspe50. No
livro, o Barão descreve suas façanhas construindo engraçadas, ricas e extravagantes
mentiras com grande naturalidade, fazendo com que outras pessoas frequentemente
acreditassem nos seus relatos.
Embora seja amplamente conhecida e disseminada como Síndrome de
Munchausen, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5),
emprega a terminologia Transtorno Factício (F68.10) 51 e aborda a patologia no
capítulo sobre Transtorno de Sintomas Somáticos e Transtornos Relacionados.
Conforme descreve o referido manual, os critérios diagnósticos são divididos em
quatro itens, os quais são especificados no quadro 1. Cumpre ressaltar que pode se
tratar de um episódio único ou de episódios recorrentes (dois ou mais eventos de
falsificação de doenças e/ou indução de lesão).

47
Graduada em Direito pela Faculdade Meridional - IMED. Especialista em Direito Penal e Políticas
Criminais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Formada em Psicologia Forense
pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica (SBPJ).
48
Psicóloga em formação pela Universidade Luterana do Brasil - ULBRA. Formada em Psicologia
Forense pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica – SBPJ.
49
FERRÃO, A.C.F., & Neves, M. D.G.C. (2013). Síndrome de Munchausen por Procuração: quando
a mãe adoece o filho. Comun. Ciênc. Saúde, 24(2), 179-186.
50
RASPE, Rudolph Erich. As surpreendentes aventuras do Barão de Munchausen em XXXIV
capítulos. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
51
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). Manual Diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais DSM-5. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2013. Transtorno factício; p.325-327.
Quadro 1. Critérios diagnósticos para o Transtorno Factício Autoimposto.
A. Falsificação de sinais ou sintomas físicos ou psicológicos, ou indução de lesão ou
doença. Associada a fraude identificada.
B. O indivíduo se apresenta a outros como doente, incapacitado ou lesionado.
C. O comportamento fraudulento é evidente mesmo na ausência de recompensas
externas óbvias.
D. O comportamento não é mais bem explicado por outro transtorno mental como
transtorno delirante ou outra condição psicótica.
Fonte: American Psychiatric Association (APA). Manual Diagnóstico e estatístico de transtornos
mentais DSM-5. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2013. Transtorno factício, p.325.

Observa-se que normalmente sujeitos com o diagnóstico de Transtorno


Factício relatam o seu histórico de saúde de forma dramática, mas quando
questionados a respeito dos detalhes da sua patologia, são reticentes e pouco capazes
de sustentar a narrativa elaborada (De Sousa Filho et al., 2017)52. Diferentemente de
pacientes simuladores, que esperam receber recompensas financeiras, os casos desse
transtorno apresentam motivação interna e inconsciente, existe uma necessidade de
manter-se sob cuidado profissional e receber atenção de uma equipe (Pereira et al.;
2018)53.
Cabe ressaltar que apenas a minoria dos portadores da síndrome são
diagnosticados por profissionais da psicologia ou psiquiatria, pois as características do
transtorno levam os pacientes a transitar entre diferentes clínicas, hospitais e serviços
de emergência médica (Gatazz et al., 2003)54, ocasionando, assim, a dificuldade do
diagnóstico e do acompanhamento médico de longo prazo. Sendo assim, a prevalência
dos transtornos factícios ainda é desconhecida, mas seguramente existe em maior
número do que atualmente se diagnostica. Portanto, verifica-se uma grande
necessidade de difundir a existência do transtorno para que a patologia receba mais
atenção dos profissionais e pesquisadores.

52
De Sousa Filho, D., Kanomata, E.Y., Feldman, R.J., & Maluf Neto, A. (2017). Síndrome de
Munchausen e síndrome de Munchausen por procuração: uma revisão narrativa. Einsten, 15(4), 516-
521.
53
PEREIRA, A.V., Bastos, C.G.M., Gonçalves, M.R., & Goulart, B. N.G.D. (2019). Transtorno
factício e a equipe interdisciplinar: identificação de sinais e fatores de risco. CoDAS. São Paulo.
31(1), p.1-2.
54
GATTAZ, W.F., Dressing, H., Hewer, W., & Nunes, P. (2003). Síndrome de Munchhausen:
diagnóstico e manejo clínico. Rev. Assoc Med Bras, 49(2), 220-224.
1. Síndrome de Munchausen por Procuração
Descrito no DSM-5 como Transtorno Factício Imposto a Outro, caracteriza-se
pela falsificação de sinais ou sintomas em outro (Quadro 2). Para TRAJBER et al.
(1996)55 é uma forma de abuso da criança que não raramente passa despercebida,
visto que a mãe (geralmente a perpetradora) simula extrema devoção ao filho.

Quadro 2. Critérios diagnósticos para Transtorno Factício Importo a Outro.


A. Falsificação de sinais ou sintomas físicos ou psicológicos, ou indução de lesão ou
doença em outro, associada a fraude identificada.
B. O indivíduo apresenta outro (vítima) a terceiros como doente, incapacitado ou
lesionado.
C. O comportamento fraudulento é evidente até mesmo na ausência de recompensas
externas óbvias.
D. O comportamento não é mais bem explicado por outro transtorno mental como
transtorno delirante ou outra condição psicótica.
Nota: O agente, não a vítima, recebe esse diagnóstico.
Fonte: American Psychiatric Association (APA). Manual Diagnóstico e estatístico de transtornos
mentais DSM-5. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2013. Transtorno factício, p.325.

Ferrão & Neves (2013)56, atentam para as consequências à vítima, submetida a


repetidas internações, exames e intervenções perigosas, é comum que sejam
desenvolvidas sequelas psicológicas e físicas (essas podendo levar a vítima a morte).
Os quadros patológicos são reforçados pelo cuidador nos falsos relatos de que o
paciente sempre piora na ausência da equipe médica. Ademais, não raro, para dar
veracidade à estória, o perpetrador submete a vítima a sufocamentos, envenenamentos
ou lesões (Alegeri et al., 2014)57.
De acordo com Braga (2007)58, a Síndrome de Munchausen não afeta apenas a
dupla perpetrador-vítima (geralmente mãe-filho), mas todo o contexto familiar e, à
medida que surgem os sintomas físicos, a gravidade é ainda maior. Estudos
referenciam que em mais de 90% dos casos de Síndrome de Munchausen por

55
TRAJBER, Z., Murahovski, J., Candio, S., Cury, R., Gomide, C., Klein, E., & Tofolo, V. (1996).
Síndrome de Munchausen por procuração: o caso da menina que sangrava pelo ouvido. Jornal de
Pediatria, 72(1), 35-39.
56
FERRÃO, A.C.F., & Neves, M. D.G.C. (2013). Síndrome de Munchausen por Procuração: quando
a mãe adoece o filho. Comun. Ciênc. Saúde, 24(2), 179-186.
57
ALGERI, S., Silva, F. M. D., Anflôr, E.P., Oliveira, C.P.D., & Costa, A.C. (2014). Síndrome de
Munchausen por procuração: revisão integrativa. Revista de Enfermagem UFPE On Line. Recife,
8(11), 3983-3991.
58
BRAGA, M.D.S. (2007). Um estudo teórico sobre a síndrome de munchausen por procuração.
Procuração, a figura do perpetrador é desempenhada pela mãe da criança (Saad citado
por Silva & Priszkulnik, 2013)59.
Dentre alguns casos famosos de Síndrome de Munchausen por Procuração,
destaca-se a obra autobiográfica “Eu não sou doente: a verdadeira história de uma
vítima da síndrome de Munchausen por procuração” da escritora americana Julie
Gregory60. No livro, a autora compartilha sua vivência como vítima da síndrome,
narrando sua rotina de consultas, exames e intervenções médicas. Além disso,
descreve como a mãe desempenhava um papel ameaçador com a filha e também com
os profissionais responsáveis pelos atendimentos:

‘Olhe, droga, esta menina está doente, certo? É só olhar para ela. E eu juro por
Deus que se ela vier a morrer em meus braços porque vocês não conseguiram
encontrar o que há de errado com ela, vou processá-los por cada centavo que lhes
paguei’. Mamãe fechava a cara, semicerrava os olhos e pequenas bolhinhas
brancas de saliva apareciam no canto inferior de seus lábios sempre que ela ficava
nervosa. Sua voz perseguia qualquer médico que dissesse que não podia ser feito
mais nenhum exame, acompanhava-o pelo corredor, cortava o silêncio do hall.
‘Jesus Cristo’ ela silvava, retornando à sala de exames ‘não posso acreditar nesse
filho da puta incompetente’. ‘Não se preocupe mamãe. Está tudo bem. Nós vamos
encontrar um outro médico’. Era assim que eu a tranquilizava, dizendo a ela que
simplesmente não desistiríamos. ‘Olhe, eu estou tentando ajudá-la a resolver seu
problema, sacrificando minha vida para encontrar que diabos há de errado com
você. Então pare de estragar tudo agido como se tudo estivesse normal. Mostre a
eles como você é doente e vamos chegar às raízes do seu problema, tá certo?’
Assim sendo, quando mamãe insistia para que fosse feito um outro exame e eles
se negavam a fazê-lo, bem, então saíamos e tentávamos achar alguém que fosse
competente. (Gregory, 2004, p. 20).

A narrativa demonstra a complexidade dos sintomas da patologia e como uma


criança é capaz de submeter-se a demandas nocivas para não perder o amor materno.
Ademais, a autora reforça que durante toda sua infância a mãe exerceu sobre ela um
poder que foi nutrido pelo medo que Julie sentia de ser privada do afeto materno.
Outro caso peculiar a ser destacado é o de Dee Dee e Gypsy Rose Blanchard.
Em virtude da perplexidade causada pelo surpreendente desfecho dos acontecimentos,
a história foi amplamente divulgada pelos meios de comunicação e a relação entre
mãe e filha foi retratada no documentário “Mamãe Morta e Querida”61, produzido
pelo canal de televisão norte-americano HBO.

59
SILVA, H.M., & Priszkulnik, L. (2013). Síndrome de Munchausem por procuração, a psicologia e a
psicanálise: conhecer para suspeitar. Psicologia, Conocimiento y Sociedad, 3(2), 155-170.
60
GREGORY, Julie. Eu não sou doente: A verdadeira história de uma vítima da síndrome de
Munchausen por procuração. São Paulo: Arx, 2004.
61
MAMÃE morta e querida. Direção Erin Lee Carr, Produção: Andrew Rossi. HBO, 2017 (82 min).
Gypsy Rose Blanchard viveu uma vida de abusos perpetrados pela mãe. Aos
três meses de idade a menina foi submetida ao uso de respiradores, pois sua genitora,
Dee Dee, alegava que a criança apresentava um quadro de apneia obstrutiva do sono.
Entre os anos de 2005 e 2014, foram mais de cem visitas a diversos hospitais, sendo
que dentre as patologias tratadas estavam: asma, epilepsia, problemas auditivos e
visuais, paralisia, distrofia muscular, retardo mental, leucemia, problemas cardíacos e
gástricos.
O documentário aprofunda a percepção de Gypsy quanto aos abusos
cometidos pela mãe. A menina recebia comandos de como se comportar na presença
da equipe médica, vizinhos, conhecidos e até mesmo familiares. Quando pequena,
tinha permissão somente para brincar de bonecas e foi terminantemente proibida pela
genitora de movimentar as pernas. Os remédios que Dee Dee administrava na filha
eram responsáveis por induzir os diversos sintomas que os médicos acreditavam tratar
e controle exercido pela mãe era absoluto. A menina não podia falar em particular
com ninguém, pois a mãe estava sempre presente e de mãos dadas com a filha, assim,
na eventualidade de Gypsy tentar falar algo considerado inadequado ou
inconveniente, a mãe apertava seus dedos para externar o poder de censura e sua
autoridade.
Para que nenhum familiar desconfiasse das mentiras, Dee Dee Blanchard
adotou a estratégia de mudar-se com a filha para lugares cada vez mais distantes. Ao
pai foram concedidas poucas explicações a respeito das circunstâncias e a síndrome
foi utilizada como uma ferramenta para a prática da alienação parental, visto que Dee
Dee alegava que o genitor não se interessava por Gypsy. No entanto, a mãe afastava a
filha do contato paterno, não permitia a aproximação do genitor e fugia quando
questionada a respeito.
Os abusos recorrentes e o isolamento social fizeram com que Gypsy
mantivesse uma conta secreta num site de relacionamentos, no qual conheceu seu
primeiro namorado e juntos planejaram o assassinato de Dee Dee. Gypsy foi presa e
condenada pelo homicídio de sua genitora e a previsão é de que saia da prisão
somente no ano de 2024. Atualmente, Gypsy possui um relacionamento próximo com
seu pai.
Diante de tais aspectos, quanto ao papel da mãe que simula sintomas no filho,
Fraser citado por Silva & Priszkulnik (2013)62, descreveu que para a perpetradora, ter
um filho doente lhe assegura o papel de mãe ideal, a recuperação dessa criança
indicaria a perda desse papel e dessa identidade. A aparente devoção dessa mãe
costuma sensibilizar e enganar a equipe com a qual acaba se estabelecendo uma boa
relação e geralmente a preocupação da perpetradora não parece proporcional à
gravidade e a preocupação do médico (Trajber, 1996)63.
Sendo assim, a Síndrome de Munchausen por Procuração ainda é uma
psicopatologia pouco difundida na literatura, o que dificulta o reconhecimento e o
manejo nos serviços de saúde. Trata-se de uma forma extrema de abuso infantil e sua
prevalência é ainda desconhecida, visto que poucos casos são de fato diagnosticados.
As sequelas físicas e psicológicas que uma criança submetida à Síndrome de
Munchausen por Procuração carrega são irreparáveis e o tratamento da doença se
baseia principalmente na psicoterapia individual ou de grupo e em medidas de suporte
físico, psicológico e social (Menezes et al., 2002)64.

Considerações Finais
A partir deste artigo, pôde-se observar que a Síndrome de Munchausen por
Procuração é dificilmente identificada e diagnosticada pelos psicólogos, psiquiatras e
demais profissionais do ramo da saúde. Assim, ficou demonstrado que a principal
questão a ser observada é que a não detecção da Síndrome acarreta uma demanda
desnecessária de tempo, recursos e procedimentos médicos. Com isso, períodos de
hospitalizações desnecessárias podem ser prolongados de forma indevida,
impulsionando o comportamento patológico do portador da síndrome e,
consequentemente, gerando o aumento no custo do sistema de saúde.
Dentro desse contexto, verificou-se que atualmente existem poucos estudos
contundentes e tratamentos efetivos para a Síndrome, justificando, portanto, a falta de
conhecimento e a dificuldade de diagnóstico pelos profissionais de saúde.

62
SILVA, H.M., & Priszkulnik, L. (2013). Síndrome de Munchausem por procuração, a psicologia e a
psicanálise: conhecer para suspeitar. Psicologia, Conocimiento y Sociedad, 3(2), 155-170.
63
TRAJBER, Z., Murahovski, J., Candio, S., Cury, R., Gomide, C., Klein, E., & Tofolo, V. (1996).
Síndrome de Munchausen por procuração: o caso da menina que sangrava pelo ouvido. Jornal de
Pediatria, 72(1), 35-39.
64
MENEZES, A.P.T., de M Holanda, E., Silveira, V.A.L., de Oliveira, K.C., & Oliveira, F.G.M.
(2002) Síndrome de Munchausen: relato de caso e revisão de literatura. Revista brasileira de
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ABANDONO AFETIVO DE PAIS IDOSOS

Vanessa Souza da Silva65

Introdução
A partir do artigo 226, da Constituição Federal de 1988, observa-se que a
família está fundada no afeto e na cooperação entre os seus integrantes, não mais no
casamento. Anteriormente existia somente a autoridade paterna, com o objetivo de
gerar filhos, sendo o casamento e os liames biológicos os elementos-fundamentais da
família, atualmente o afeto e a colaboração recíproca são os fundamentos básicos da
família.
Nessa nova concepção jurídica da família, percebem-se inúmeras alterações,
destacando-se, entre elas, a evolução do afeto, que passa a desempenhar papel
fundamental no meio familiar, tornando-se o elo que une os seus membros, em
contraposição aos vínculos econômicos que, anteriormente, predominavam na
instituição familiar. Identifica-se, a partir de então, juntamente com o valor concebido
à afetividade, uma crescente valorização da dignidade da pessoa humana, isto é, uma
preocupação efetiva com aquele integrante da família, que passa a desempenhar papel
que transcende o econômico.
Assim, surge, um instituto chamado abandono afetivo, tema que vem sendo
discutido pela doutrina e pelo Judiciário, visto que envolve direito fundamental do
indivíduo. Ordinariamente, o abandono afetivo ocorre por parte dos genitores,
permitindo, assim, em muitos casos, a responsabilização civil dos pais. Ocorre que,
assim como as crianças, as pessoas idosas também necessitam de auxílio imaterial,
que compreende o afeto, companhia e principalmente cuidado.
Nesse sentido, ainda que o Estatuto do Idoso traga garantias, direitos e
proteção às pessoas idosas, consistentes na assistência material e econômica, é

65
Doutoranda em Política Social e Direitos Humanos, UCPel (2018-2021). Mestra em Política Social e
Direitos Humanos, UCPel. Graduada em Letras e Bacharel em Direito. UCPel. Especialista em Direito
do Trabalho pela Anhanguera Educacional, Especialista em Direito Público pela Universidade
Anhanguera – Uniderp e Especialista em Direito de Família Contemporâneo e Mediação, pela
FADERGS. Mediadora Judicial pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e Conselho
Nacional de Justiça; Instrutora em formação pelo Conselho Nacional de Justiça. Mediadora de
Conflitos certificada pelo ICFML. Formação em Psicologia Forense-XX Edição do Curso promovido
pela SBPJ, no Instituto de Psicologia Professor Jorge Trindade. Membro do Núcleo IBDFAM (Instituto
Brasileiro de Direito de Família) de Pelotas Professora Universitária e Professora de Cursos de Pós-
Graduação. E-mail: mediadoravanessasilva@gmail.com.
possível que essas pessoas sejam vítimas de abandono afetivo praticado por seus
filhos, e, nesse caso, tornar-se possível a reparação pecuniária pelo dano cometido,
nos casos de abandono afetivo inverso.
O presente artigo, pretende, como objetivo geral, analisar possibilidades em
que os filhos são responsabilizados civilmente por terem abandonado afetivamente
seus pais idosos, examinando a ocorrência e as prováveis consequências dessa atitude,
ou seja, pretende-se, abordar o abandono familiar inverso, ou seja, a admissibilidade
da reparação por danos morais sofridos pelos pais em situação de abandono afetivo
por parte de sua prole.

1. Princípios Constitucionais Norteadores do Direito de Família


Vários princípios constitucionais servem de fundamento ao direito de família
diante do movimento de constitucionalização deste ramo. Isso posto, embora o direito
de família seja um ramo do Direito Privado, ele passa a ser visto como de interesse do
Estado e, por conseguinte, encontra na Constituição o alicerce para inúmeros direitos
que envolvem as instituições familiares.
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana - O Estado Democrático de Direito
tem por fundamento no art. 1.º, III, da CF/1988, a dignidade da pessoa humana. Esse
princípio é considerado como sendo o valor supremo da ordem jurídica, o Princípio
dos princípios. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho arriscam-se em
defini-lo como “ Um valor fundamental de respeito à existência humana, segundas
suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis a sua
realização pessoal e a busca da felicidade”. (GAGLIANO E FILHO, 2016, p. 78).
No bojo do referido princípio encontramos a base para interpretação de todas as
outras garantias e direitos assegurados pela Constituição Federal.
A dignidade da pessoa humana também fundamenta o Estatuto de idoso
disposto pela lei 10.741 de 01 de outubro de 2003. A referida lei foi promulgada com
a intenção de ser um instrumento de garantia ao envelhecimento digno , devendo ser
proporcionado solidariamente pelo Estado, pela família e pela sociedade, como se
observa na disposição do seu art. 3º: “Art. 3º do Estatuto do idoso É obrigação da
família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com
absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao
respeito e à convivência familiar e comunitária” (ESTATUTO DO IDOSO, 2003).
Neste sentido, citamos Guilherme Calmon Nogueira da Gama que relaciona o
princípio com o direito de família: “A dignidade da pessoa humana encontra na
família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial
proteção independentemente de sua origem. A multiplicação das entidades familiares
preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares – o afeto, a
solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum-,
permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe com base em
ideias pluralistas, solidaristas, democráticas e humanistas” (GAMA, apud DIAS;
PEREIRA, 2003, p. 105);
Portanto, podemos dizer ainda que a dignidade da pessoa humana é vista como
uma qualidade intrínseca de todo e qualquer ser humano e, ao mesmo tempo, a base
para uma convivência harmônica entre os membros da entidade familiar.
Princípio da Solidariedade - Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, segundo art. 3º
inciso I da Constituição Federal de 1988.
Assim sendo, o princípio da solidariedade alcança as relações familiares, sem
se reduzir apenas ao âmbito patrimonial, mas, também se baseando em uma
assistência afetiva e sociológica. Nesse sentido: “Solidariedade é o que cada um deve
ao outro. Esse princípio, que tem origem nos vínculos afetivos, dispõe de acentuado
conteúdo ético, pois contém em suas entranhas o próprio significado da expressão
solidariedade, que compreende a fraternidade e a reciprocidade. A pessoa só existe
quando coexiste”. (GAMA, apud DIAS; PEREIRA, 2003, p. 110,)
Dentre os vários dispositivos do ordenamento jurídico que abrangem este
princípio se dá destaque aos artigos 229, 230 da Constituição Federal e o artigo 1694
do Código Civil, referente a alimentos, o qual informa que: “Podem os parentes, os
cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para
viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às
necessidades de sua educação”. (BRASIL, 1988)
Princípio da Afetividade - O princípio da afetividade, conforme assevera Diniz
(2015), é um princípio corolário do respeito da dignidade da pessoa humana, como
norteador das relações familiares e do Princípio da solidariedade. Aduz a
juspsicanalista Giselle Câmara Groeninga:
“O papel dado à subjetividade e à afetividade tem sido crescente no Direito de
Família, que não mais pode excluir de suas considerações a qualidade dos
vínculos existentes entre os membros de uma família, de forma que possa buscar a
necessária objetividade na subjetividade inerente às relações. Cada vez mais se dá
importância ao afeto nas considerações das relações familiares; aliás, um outro
princípio do Direito de Família é o da afetividade” (GROENINGA, 2008, p. 28).

Mesmo que a palavra afeto não esteja expressa na Constituição, a afetividade


encontra-se enlaçada no âmbito de sua proteção. (DIAS, 2016, p. 55). A partir de uma
análise de nosso ordenamento jurídico podemos identificar a valorização jurídica do
afeto no reconhecimento da união estável, igualdade entre os filhos biológicos e os
adotivos, e o tratamento da adoção com os mesmos direitos de paternidade, dentre
outros exemplos.
Destaca-se um julgado da ministra Nancy Andrighi, in verbis:
“A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a
valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando
à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela
voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais
visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo,
sejam entre o homem e a mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela
reciprocidade zelosa entre os seus integrantes”. (STJ, REsp 1.026.981/RJ, Rel.
Min. Nancy Andrighi, 3.ª Turma, j.04.02.2010, DJe23.02.201)

Conforme exposto, apesar de sua falta de previsão expressa na legislação


vigente, percebe-se que a interpretação aprofundada dos juristas demonstra a
existência do Princípio da afetividade no nosso ordenamento jurídico.
As relações paterno-filiais são construídas com base em sentimentos, respeito
e dever de cuidado mútuo. Entretanto, o vínculo existente pode ser abalado quando
uma das partes descumpre com o seu dever, que, embora deva ser recíproco, é em
inúmeros casos esquecido pelos descendentes, fazendo com que seus pais idosos
sejam abandonados afetivamente, psicologicamente ou moralmente.
Em razão disso, o presente capítulo tem como objetivo identificar o conceito
de abandono afetivo, examinar aspectos acerca do dano moral no âmbito das relações
familiares, expondo-se noções sobre o dever de prestar alimentos e assistência
imaterial aos pais idosos, bem como explanando-se sobre o Projeto de Lei nº
4.294/2008, em tramitação no Congresso Nacional, para, por fim, analisar-se o
entendimento jurisprudencial adotado pelos Tribunais em relação ao tema em
discussão.
2. Conceito de Abandono Afetivo
Com a evolução da instituição familiar, aliada ao papel importante que
começou a ser desempenhado pela afetividade, o afeto passou a ser considerado um
valor jurídico, eis que houve uma “mudança de paradigma nos relacionamentos
familiares com a afetividade assumindo o papel que outrora fora destinado à família
legítima, ao matrimônio, às orientações religiosas biológicas” (CALDERÓN, 2017,

P.16).
Em outras palavras, a família atual representa e assume sua real função, a qual
acredita-se que já estava presente em suas origens mais remotas. A família
contemporânea representa, dentre outras coisas, a união de desejos, os vínculos
afetivos e a comunhão de vida, sendo que é no seio familiar que se consolidam os
afetos, único elo que mantém as pessoas unidas (LÔBO, 2017).
Nesse contexto, a afetividade pode ser conceituada da seguinte maneira:

[...] uma atividade do psiquismo que constitui a vida emocional do ser humano.
Representa um aspecto da vida íntima que mais precoce e constantemente se
altera em estados psicopatológicos de qualquer feitio ou natureza, e tem o dom de
penetrar e preencher todos os demais aspectos da vida do indivíduo (MALUF;
MALUF, 2016, p. 48).

À vista disso, a afetividade pode ser compreendida como um sentimento


existente na relação entre pessoas íntimas ou queridas umas para as outras, que
demonstre carinho e cuidado (MALUF; MALUF, 2016).
Nessa lógica, importa recordar que há distinção entre o princípio da
afetividade, o qual estabelece uma obrigação recíproca de cuidado entre pais e filhos,
e a afetividade como sentimento, que é o vínculo de carinho ou amor que une uma
pessoa à outra. (LÔBO, 2017).
Com relação ao abandono afetivo, convém referir que muitos autores que o
conceituam, assim como Luz (2009), referem apenas a possibilidade de ocorrência do
abandono afetivo em relação aos filhos. Entretanto, outros doutrinadores vêm
abordando, igualmente, a viabilidade de configuração de abandono afetivo com
relação aos pais idosos, como demonstra Pereira, R., (2015, p. 31), ao conceituar o
abandono afetivo da seguinte forma:
“Expressão usada pelo Direito de Família para designar o abandono de quem tem
a responsabilidade e o dever de cuidado para com outro parente. É o descuido, a
conduta omissiva, especialmente dos pais em relação aos filhos menores e
também dos filhos maiores em relação aos pais. É o não exercício da função de
pai ou mãe ou de filho em relação a seus pais.’
Os autores Maluf e Maluf (2016 p 50) em complementação, expõem que “o
abandono afetivo é um conceito novo atribuído à ausência de afeto entre pais e filhos,
em que estes buscam por intermédio de demanda judicial a reparação dessa lacuna
existente em sua vida”
Nessa esteira, os doutrinadores que se posicionam favoravelmente à
possibilidade de indenização por danos morais em decorrência do abandono afetivo
(CARVALHO, 2017; TARTUCE, 2017; DIAS, 2014; GAGLIANO e PAMPLONA
FILHO, 2017a), aduzem, em síntese, que a falta do afeto e cuidado geram uma série
de consequências psicológicas para o indivíduo. De tal modo, o posicionamento
favorável à reparação civil, pautado no princípio da dignidade da pessoa humana diz
que aquela tem o objetivo de servir de instrumento jurídico a fim de desempenhar
papel pedagógico e punitivo à pessoa causadora do dano.
Por outro lado, conforme os civilistas acima referidos, o posicionamento
contrário ao instituto do abandono afetivo se assenta no argumento de que o
reconhecimento de tal possibilidade causaria a monetarização do afeto, bem como ao
fato de que o amor e o afeto não podem ser impostos, isto é, não se pode obrigar um
filho a amar seus genitores.
Em entrevista concedida ao Instituto Brasileiro de Direito de Família
(IBDFAN) (2013, texto digital), Jones Figueirêdo Alves conceituou o abandono
afetivo inverso da seguinte forma: “A inação de afeto ou, mais precisamente, a não
permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores, de regra idosos”.
Nessa senda, Lôbo (2017) aduz que o abandono afetivo se caracteriza quando
do descumprimento dos deveres jurídicos de paternidade que são estabelecidos pela
Constituição Federal e pela legislação infraconstitucional. Salienta que não se trata
apenas de dano moral, eis que o direito o tomou para si, disciplinando consequências
jurídicas, sendo uma delas a reparação civil.
Com relação ao nome utilizado para denominar este tipo de abandono,
Rosenvald (2015) salienta que a expressão abandono afetivo não está sendo bem
empregada, isto porque, leva a discussão para o âmbito da subjetividade, onde se
discute se é possível obrigar alguém a amar o outro. Por este motivo, o autor acredita
ser necessária a substituição da expressão ora empregada, por omissão de cuidado, o
que faria com que a discussão permeasse no âmbito jurídico.
Portanto, depreende-se que o abandono afetivo inverso pode ser entendido
como a omissão por parte dos filhos em relação aos seus pais idosos. Omissão esta
relativa ao cuidado, amparo e assistência, decorrentes do princípio da solidariedade
familiar. Assim, caracterizada tal omissão, torna-se possível a indenização civil por
danos morais, como será melhor analisado em seguida.

3. O Dano Moral no Âmbito das Relações Familiares


Com o passar dos anos, o dano moral passou a ser regulado pelo direito
brasileiro em virtude da necessidade que o homem sentia em ser reparado por ter sido
acometido por dano moral. Nesse ponto, no âmbito das relações afetivas também
existem situações ensejadoras do dano moral, o que é muito delicado, visto que ocorre
dentre os membros da própria família, podendo ocasionar dano ainda mais sério
(CARDIN, 2012).
Nessa senda, como já abordado anteriormente neste estudo, o dano moral é
aquele que provoca uma espécie de lesão no indivíduo, atingindo valores intrínsecos à
pessoa, seus sentimentos e dignidade, dentre outros direitos relacionados à honra e à
boa fama. “O dano moral, embora não seja suscetível de aferição econômica, é
ressarcido para compensar a injustiça sofrida pela vítima, atenuando em parte o
sofrimento. (CARDIN, 2012. p.18)
Em decorrência do direito de família atual, que deve ser interpretado sob a luz
constitucional, assim como a valorização do vínculo de afetividade e solidariedade
que passou a existir entre os membros da família, adveio a necessidade de se exigir
responsabilidade entre os mesmos com relação aos atos praticados uns com os outros,
notadamente no que tange ao dano moral (CARDIN, 2012).
A partir dessa premissa, Madaleno (2017, p. 331) expõe o seguinte em sua
obra:
“A reparação do dano moral no Direito brasileiro foi elevada à garantia de direito
fundamental com a Carta Política de 1988, encerrando de uma vez por todas a
digressão doutrinária e jurisprudencial até então reinante no Brasil negando a
indenização pelo agravo moral.”

Para Almeida e Rodrigues Júnior (2012), em razão da ampla aplicação da


responsabilidade civil no ordenamento jurídico, o instituto tem sofrido constante
evolução, sendo que um dos maiores desafios reside na elucidação de quais casos
realmente são passíveis de indenização, sobretudo no que diz respeito aos danos
extrapatrimoniais. Ainda segundo os autores, em meio a este cenário de difícil
caracterização, encontram-se as discussões atinentes às relações familiares.
Dessa forma, juntamente com a admissão do dano moral no direito, se passou
a discutir a possibilidade de caracterizá-lo, igualmente, no direito de família. Acerca
disso, Cardin (2012, p. 70) alega que:

“ Evidencia-se que a família não pode ser vista como um instituto alheio ao
Estado de Direito, onde se suspendem as garantias individuais, daí por que se
deve reconhecer a aplicação das normas gerais da responsabilidade civil quando
um membro da família, através de ato ilícito, atinge um legitimo interesse
extrapatrimonial do outro familiar [...]”

Para a autora, a reparação civil no âmbito familiar em nada prejudica a sua


convivência, visto que o dano causado pelos próprios membros é que constitui o fato
gerador à destruição dela. Para ela, “a reparabilidade do dano moral funciona como
uma forma de fortalecer os valores atinentes à dignidade e ao respeito humano para
aqueles que jamais recebeu afeto” sendo a denegação da reparação por danos morais
um incentivo à sua repetição (CARDIN, 2012, p.71).
Entretanto, importa referir que a responsabilidade civil por danos morais no
meio familiar necessita ser examinada de modo minucioso, juntamente com provas
concretas, a fim de evitar a temida banalização do dano moral (CARDIN, 2012).
Assim, entende-se que o Direito das Famílias, embora seja uma matéria mais
delicada de se lidar, devido às suas particularidades e sentimentos que abarca, não
pode ser privado do instituto da indenização por danos morais, eis que causas
ensejadoras de reparação civil também ocorrem nas relações paterno-filiais.
Salienta-se, no entanto, que a indenização por danos morais não pode ser
confundida com a obrigação de prestar alimentos, visto que se trata de institutos
diversos, cada qual com suas próprias características.

4. Entendimento Jurisprudencial
Em relação ao abandono afetivo convencional, tanto a doutrina quanto a
jurisprudência ponderaram que se o pai ou a mãe, divorciados, acreditam que
incumbe como obrigação em relação à prole, apenas a prestação de alimentos,
negando a sua companhia ou convivência, o caso poderá ser passível de reparação
civil (LÔBO, 2017).
A partir dessa premissa, alguns casos passaram a ser levados ao Judiciário, a
fim de que a matéria fosse debatida. Nesse entorno, um dos primeiros processos foi
interposto em maio de 2003 na 2ª Vara Cível da comarca de Capão da Canoa/RS, sob
o número 141/1.03.0012032-0, visando a condenação do réu, pai da autora, ao
pagamento de indenização civil por abandono moral, visto que pagava somente
pensão alimentícia, mas não mantinha contato algum com a filha. O pedido da autora
foi julgado procedente pelo juiz Mário Romano Maggioni, condenando o pai ao
pagamento de indenização pelo abandono afetivo da filha, sendo que da sentença,
nenhuma das partes interpôs recurso (RIO GRANDE DO SUL, 2003).
Outras ações reparatórias similares à supracitada foram interpostas e levadas à
julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Uma delas foi a ação que teve
origem no estado de Minas Gerais. Esta demanda obteve sentença improcedente em
primeiro grau, desfavorável ao filho que buscava indenização pecuniária em
decorrência de abandono afetivo sofrido pelo genitor.
O feito em questão teve a decisão de primeiro grau reformada, eis que no
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o pedido do autor obteve decisão favorável.
Porém, o Superior Tribunal de Justiça decidiu no REsp. 757.411 pelo provimento do
recurso interposto pelo pai, afastando a possibilidade de indenização nos casos de
abandono moral, como se vê na ementa abaixo:

RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO.


DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral
pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma
do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação
pecuniária. 2.
Recurso especial conhecido e provido (REsp. 757.411, Rel. Min. Fernando
Gonçalves, julgado em: 29/11/2005)

Análogo processo foi julgado em abril de 2012 pelo Superior Tribunal de


Justiça. O REsp. 1.159.242 teve e ainda tem gerado grandes debates entre juristas e
doutrinadores, visto que julgou procedente a pretensão da autora, concedendo-lhe o
direito a indenização em decorrência do abandono afetivo praticado pelo pai, como é
possível notar, in verbis:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO.


COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem
restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o
consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado
como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro
não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas
diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a
imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a
ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere,
que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação,
educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal,
exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por
abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a
possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe
um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da
lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma
adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do
abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por
demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de
reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a
título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas
hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória
ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido (REsp. 1.159.242-SP,
Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em: 24/04/2012).

O recurso especial acima referido, a Relatora Ministra Nancy Andrighi


sustenta que não se deve discutir somente o vínculo afetivo existente entre pais e
filhos, tendo em vista que não se pode negar a presença de um elo legal que os une.
Neste âmbito, alguns deveres têm maior destaque, como o dever de convívio e o
dever de cuidado, e é este vínculo que deve ser examinado e garantido (BRASIL,
2012).
Já para Rosenvald (2015, p. 311), essa decisão “ofereceu bases jurídicas mais
sólidas para o deslinde de colisões de direitos fundamentais envolvendo a liberdade
do genitor e a solidariedade familiar”, visto que a responsabilidade civil advinda da
omissão de cuidado já vinha sendo discutida há muito tempo pela doutrina e
jurisprudência.
Nesse contexto, com relação ao amor e ao dever de cuidado, que constitui
imposição biológica e legal, a Ministra ainda referiu:

O amor diz respeito à motivação, questão que refoga os lindes legais, situando-se,
pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo
meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente,
é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de
verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de
ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais [...]. Em suma,
amar é faculdade, cuidar é dever (BRASIL, 2012, p. 11).

O excerto acima citado também foi referido pelo Relator Eduardo Sá Pinto
Sanderville no julgamento da apelação nº 0014079-45.2009.8.26.0009, originária da
Comarca de São Paulo, levada à análise em setembro de 2014. Tratava-se de ação de
obrigação de fazer, na qual o irmão de um idoso pretendia a condenação dos filhos
deste, a manterem pessoalmente os cuidados do pai (SÃO PAULO, 2014).
Inicialmente se discutiu a legitimidade ativa da ação. Nessa esteira, com base
no artigo 4º, § 1º, do Estatuto do Idoso e em consonância com o que dispõe o artigo
230, Constituição Federal, Dias (2014 p 483) aduz que “o conteúdo abrangente do
princípio da proteção integral, que impõe à família garantir, com absoluta prioridade,
a efetivação dos direitos do idoso, confere legitimidade a todos os parentes para
representá-lo e defendê-lo em juízo”. Portanto compreende-se que o irmão era sim
parte legítima para defender os direitos do irmão idoso.
O referido relator entendeu que “à família incumbe o dever jurídico e objetivo
de cuidado do idoso, porque é dentro dela que esses direitos encontram condições de
concretização Para tanto, invocou como forma de argumentação o REsp. 1.159.242.
pois, segundo ele, “somente ao se definir o cuidado e a solidariedade como obrigações
legais (mensuráveis), e não manifestações de afeto ou amor (valores intangíveis), é
que se viabiliza a proteção integral (SÃO PAULO 2014 p 4).
No julgamento da apelação, o Relator disse que a pretensão do autor é plenamente
verossímil, eis que o dever de cuidado consiste em regra jurídica e dever objetivo,
imposto pela própria Constituição Federal (SÃO PAULO, 2014).
Assim, convém ainda referir a seguinte ementa mencionada pelo Relator
Sanderville, em julgamento do qual participou, e que segundo ele, não difere do
entendimento aplicado à decisão supramencionada:

TUTELA ANTECIPADA. ALIMENTOS E CUIDADOS COM MÃE IDOSA.


Pretensão de que as filhas se revezem nos cuidados com a agravante. Fixação de
alimentos provisórios, mas negativa de conceder a tutela para a obrigação de
prestar cuidados, sob a falsa premissa da impossibilidade jurídica do pedido.
Violação ao que dispõem os artigos 229 da Constituição Federal e 3º do Estatuto
do Idoso. Distinção entre os conceitos de afeto e de cuidado. Dever jurídico de
cuidado aos familiares idosos. Prova inconcussa de que a autora é idosa,
cadeirante e necessita de diversos tipos de cuidados, que são prestados
exclusivamente por uma das suas seis filhas. Possibilidade de determinar um
sistema de revezamento, por meio do qual cada filha, alternadamente, deve visitar
e cuidar da genitora nos finais de semana. Incidência de multa a cada ato de
violação ao preceito. Recurso parcialmente provido” (Agravo de Instrumento nº
0230282-23.2012.8.26.0000/ Campinas, julgado em: 06/06/2013, grifo nosso).

Acerca do Agravo de Instrumento acima referido, em trâmite sob segredo de


justiça, infere-se tratar-se de caso no qual a mãe idosa e debilitada em razão de
problemas de saúde, apesar de possuir seis filhas, contava com o cuidado e auxílio de
apenas uma delas, o que configura por parte das outras filhas, clara violação ao
disposto no artigo 229, da Constituição Federal e ao artigo 3º, do Estatuto do Idoso.
No caso, além do dever alimentar, buscou-se estabelecer um sistema de revezamento
entre as proles, para que cuidassem da genitora aos fins de semana, sob pena de
fixação de multa em caso de descumprimento (SÃO PAULO, 2014).
Ainda em relação ao dever de cuidado, oportuno mencionar a apelação cível nº
2005.01.1.007686-5, interposta em face de sentença denegatória de mandado de
segurança:
MANDADO DE SEGURANÇA – PRINCÍPIO DA EFETIVIDADE MÁXIMA
DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS - PEDIDO DE REDUÇÃO DE CARGA
HORÁRIA, COM REDUÇÃO DE SALÁRIO, FORMULADO POR FILHO DE
PESSOA IDOSA OBJETIVANDO ASSISTIR-LHE DIANTE DA DOENÇA E
SOLIDÂO QUE O AFLIGEM – CUIDADOS ESPECIAIS QUE EXIGEM
DEDICAÇÃO DO FILHO ZELOSO, ÚNICA PESSOA RESPONSÁVEL PELO
GENITOR - DEVER DE AJUDA E AMPARO IMPOSTOS À FAMÍLIA, À
SOCIEDADE, AO ESTADO E AOS FILHOS MAIORES – DOUTRINA -
ORDEM CONCEDIDA. I. De cediço conhecimento que se deve procurar conferir
a maior efetividade às normas constitucionais, buscando-se alcançar o maior
proveito, sendo também certo que as mesmas (normas constitucionais) têm efeito
imediato e comandam todo o ordenamento jurídico. II- Ao estabelecer ―”
Família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas,
assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-
estar e garantindo- lhes o direito à vida” (230 CF 88) que os filhos maiores têm o
dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade (art. 229, 2ª
parte CF/88), a Carta Maior prioriza a atenção ao idoso em razão desta sua
condição especial que o torna merecedor de proteção e atenção especial por parte
daquelas entidades (família, sociedade e o Estado). III- A efetividade da prestação
jurisdicional implica em resultados práticos tangíveis e não meras divagações
acadêmicas, porquanto, de há muito já afirmava Chiovenda, que o judiciário deve
dar a quem tem direito, aquilo e justamente aquilo a que faz jus, posto não poder o
processo gerar danos ao autor que tem razão. IV - Os idosos não foram
esquecidos pelo constituinte. Ao contrário, vários dispositivos mencionam a
velhice como objeto de direitos específicos, como do direito previdenciário (art.
201, I), do direito assistencial (art.203,I), mas há dois dispositivos que merecem
referência especial, porque o objeto de consideração é a pessoa em sua terceira
idade. Assim é que no art. 230 estatui que a família, a sociedade e o Estado têm o
dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade,
defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida, de
preferência mediante programas executados no recesso do lar, garantindo-se,
ainda, o benefício de um salário mínimo mensal ao idoso que comprove não
possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por família,
conforme dispuser a lei (art. 203, V), e, aos maiores de sessenta e cinco anos,
independentes de condição social, é garantida a gratuidade dos transportes
urbanos” ( sic in Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, 18º edição.
José Afonso da Silva, 2000, págs. 824/825).V- In caso, a denegação da segurança
em casos como o dos autos implica em negativa de vigência às normas
constitucionais incrustadas nos artigos 229 e 230 da Lei Fundamental, de
observância cogente e obrigatória por parte de todos (família, sociedade e
Estado), na medida em que a necessidade do idoso em ter a companhia, o amparo,
proteção e ajuda de seu único filho, o Impetrante, diante da enfermidade de seu
velho pai, constitui concretização daquelas normas constitucionais em favor de
quem foram (normas constitucionais) instituídas e pensadas pelo legislador
constituinte. VI -Sentença reformada para conceder-se a segurança nos termos da
inicial. (Apelação Cível nº 2005.01.1.007686-5, Quinta Turma Cível, Tribunal de
Justiça do Distrito Federal, Relator: João Egmont Leôncio, julgado em:
08/11/2006,).
A apelação supramencionada foi julgada pelo Tribunal de Justiça do Distrito
Federal em novembro de 2006. Conforme se extrai do acórdão, o filho do idoso
impetrou Mandado de Segurança em face de ato do Gerente de Recrutamento,
Seleção e Movimentação da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal, em
razão de ter tido os pedidos de redução de carga horária de trabalho como professor,
bem como redução proporcional do salário, negados. O pedido de redução da jornada
de trabalho foi motivado pela necessidade de cuidados especiais dos quais o pai idoso
do impetrante dependia (BRASIL, 2006).
Na apelação, a ordem foi concedida, demonstrando que é sim dever dos filhos
o amparo aos pais idosos, sendo justamente este dever, a fundamentação para a
redução da carga horária do professor.
Recentemente o Tribunal de Justiça do Estado do Acre noticiou julgamento de
demanda referente ao abandono afetivo e moral de idoso. Na sentença proferida pela
Vara Cível da Comarca de Brasileia/AC, deliberou – se que “ ao demostrar ingratidão,
desapreço ou ausência de sentimento afetivo para com o de cujus, submetendo - p ao
desemparo e a solidão”, a filha só merecia 50% da herança deixada pelo falecido pai,
destinando-se a outra metade do valor existente em conta bancária, ao Lar de idosos
no qual estava o de cujus quando do falecimento (ACRE, 2018, texto digital).
O magistrado ainda reconheceu “que a filha não mantinha contato e, mesmo
sendo aceita a alegação de ter sido reconhecida a paternidade recentemente, também
demonstrou desinteresse em cuidar desse, que, em idade avançada, sucumbiu às
dificuldades e suspirou pela última vez numa casa de acolhimento” (ACRE, 2018,
texto digital).
Dessa forma, importa reforçar que o presente estudo se refere ao abandono
afetivo cometido pelos filhos em detrimento de seus pais idosos. Além do mais, como
é possível notar, a jurisprudência acerca do abandono afetivo inverso ainda é escassa,
porém, o REsp. 1.159.242 abriu precedente no Superior Tribunal de Justiça quando
reconheceu a possibilidade de indenização por abandono afetivo.
Não se deve olvidar que as mesmas regras do abandono afetivo convencional
podem e devem ser aplicadas ao abandono afetivo inverso, eis que também há
previsão constitucional quanto ao amparo que deve ser despendido pelos
descendentes maiores para com seus ascendentes idosos. O cuidado, segundo
Rosenvald (2015) também constitui uma forma de amor, além do que, conforme
Pereira, R. (2015, p. 34):
No campo jurídico, o afeto é mais que um sentimento. É uma ação, uma conduta
presente ou não o sentimento. Portanto, está categoria dos deveres que podem ser
impostos como regra jurídica. E, a toda lei deve corresponder uma sanção, sob
pena de se tornar mera regra ou princípio moral. Por isso é necessário a
responsabilização, principalmente dos pais em relação aos filhos menores e dos
filhos em relação aos pais idosos, que têm especial proteção da Constituição da
República

Desse modo, o julgamento do REsp. nº 1.159.242, a Ministra relatora


reconheceu que a omissão de cuidado configura ato ilícito e ofende diretamente o
direito fundamental à convivência familiar, estabelecido no artigo 227, da
Constituição Federal, bem como o próprio dever de cuidado previsto no artigo 229, do
mesmo diploma legal. Ademais, julgou procedente a pretensão da filha, reconhecendo
a existência do abandono afetivo praticado pelo genitor (BRASIL, 2012).

Considerações Finais
A família vem passando por transformações: antigamente era constituída
somente por meio do casamento, com o nítido interesse na procriação, chefiado por
um pai que detinha poderes patriarcais sobre todos os membros familiares. Com o
advento da Constituição Federal de 1988, surgiram incontestáveis mudanças para o
Direito de Família, muitos conceitos foram reformulados, dando origem à moderna
entidade familiar, inclusive aquelas constituídas somente pelo vínculo afetivo.
A adoção dos princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade
familiar e da afetividade, fundamenta o novo conceito de família, o judiciário vem se
manifestando de forma positiva na adoção desses princípios. Mesmo com a ausência
de conteúdo legislativo específico a respeito de abandono afetivo inverso, alguns
dispositivos podem ser usados na proteção do idoso, como os presentes na
Constituição Federal, Código Civil e Estatuto do Idoso.
A função social da família, a qual constitui o alicerce da sociedade, é a
reparação dos danos morais causados pelo abandono afetivo pelo descendente ao
ascendente. Da mesma forma que aos ascendentes é imposta a ingerência do poder
familiar, aos filhos cabe amparar aqueles quando fragilizados.
O direito à dignidade do idoso é inerente a sua própria condição de pessoa
humana, devendo-lhe serem garantidos os direitos fundamentais à vida, à saúde, ao
lazer, à liberdade, ao respeito e à convivência familiar, dentre outros, assim como o
dever de cuidado, previsto na Constituição Federal. Esse dever refere-se aos cuidados
que os pais precisam ter em relação aos filhos menores, assim como os filhos maiores
em relação aos pais idosos. Nesse contexto, o idoso que sofre abandono afetivo por
parte de seu filho pode pleitear no Judiciário, a correspondente reparação pecuniária.
No entanto, a jurisprudência dos Tribunais analisada no presente estudo,
verificou-se que ainda é escasso o número de casos que tenham chegado às instâncias
superiores, versando sobre o abandono afetivo inverso, isto é, aquele sofrido pelos
pais idosos. Não obstante, foram citados no trabalho alguns casos concretos, sobre
ações ajuizadas pleiteando o cumprimento da obrigação de fazer de filhos em relação
aos seus genitores.
Destaca-se que o abandono afetivo inverso não se configura subitamente, pois
é necessário que se dê de forma reiterada, de modo que afete realmente os direitos e
interesses da pessoa idosa, a fim de demonstrar o dano ocorrido e os demais
pressupostos necessários à reparação pecuniária. Desse modo, não há que falar em
monetarização do amor e do afeto, uma vez que o que se busca é a garantia de uma
vida digna ao idoso, haja vista os encadeamentos do envelhecimento. Assim, é preciso
que a sociedade valorize e faça parte do sistema de proteção dessa faixa etária, pois,
como já referido neste estudo, o Brasil não é mais um país só de pessoas jovens.
Portanto são necessárias medidas efetivas e imediatas para que se possa
construir, uma sociedade mais consciente dos princípios constitucionais da dignidade
da pessoa humana, solidariedade e afetividade.

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Relator: Eduardo Sá Pinto Sandeville, São Paulo, 18 set. 2014. Disponível em:
<https://esaj.tjsp.jus.br. Acesso em: julho 2019.
O ADVOGADO NO DIREITO DE FAMÍLIA:
EMOÇÕES E CONTRATRANSFERÊNCIA À
LUZ DA PSICANÁLISE

Carlos Eduardo Lamas66

Introdução
Dentro do direito e em seus variados ramos, de tudo já se escreveu, muito se é
direcionado ao direito civil, direito penal, direito empresarial, direito do consumidor,
processo penal, processo civil, entre milhares de outros assuntos, mas muito pouco se
vê escrever e estudar sobre os aspectos psicológicos do advogado na sua atuação,
pouco se volta ao estudo da psiqué e dos processos mentais daquele que representa as
partes dentro do judiciário.
Nas faculdades e nos cursos jurídicos também não se dá a devida atenção ao
que entendemos ser essencial para a atuação do advogado, independente da área. Do
mesmo modo as editoras não se esforçam para ver escritos sobre o advogado e a
psicologia, talvez por temer uma baixa demanda.
Talvez o conservadorismo da classe proíba sair da zona de conforto,
impossibilitando adentrar em um terreno tão arenoso para quem tem formação
exclusivamente jurídica. Desta forma, fica o advogado adstrito e dependente de suas
qualidades individuais para percorrer seu próprio psiquismo.
A psicanálise interessa ao direito como um sistema de pensamento, e discurso,
que desconstrói fórmulas e dogmas jurídicos a partir da compreensão do sujeito do
inconsciente, do desejo e da sexualidade67
Desta forma, o presente capítulo busca aprofundar, de forma reflexiva a
influência, através da contratransferência, de toda emoção que envolve a relação do
advogado que atua em contextos familiares e seus clientes, que de forma aberta
despejam todos seus sentimentos e desejos ao advogado de confiança.
Se cada profissional recebe de uma maneira as informações fornecidas pelo
cliente, de certo que a maneira de atuação deste profissional, vai depender de todo seu

66
Advogado, Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS). Presidente do Núcleo Pelotas do Instituto Brasileiro de Direito de
Família IBDFAM – Seção RS. Diretor da Associação Brasileira Criança Feliz - ABCF na cidade de
Pelotas/RS. Formado em Psicologia Forense pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica –SBPJ.
67
Disponível na URL: https://www.conjur.com.br/2018-dez-09/processo-familiar-importancia-
conexao-entre-direito-familia-psicanalise.
funcionamento emocional, relacionando-se às vivências deste advogado e a sua
psiqué.
Para elaboração do presente capítulo, necessário se faz entender
primeiramente o fenômeno da contratransferência clínica genuína, advinda do estudo
psicanalítico, para após, analisarmos de maneira profunda a atuação peculiar do
advogado que atua nas varas de família, para então entendermos a aplicação da
contratransferência na relação do advogado com o seu cliente e as maneiras que
podem afetar de maneira positiva ou negativa a atuação do advogado.

1. A Contratransferência Clínica
O estudo do fenômeno da contratransferência está intimamente ligado ao da
transferência, de forma que ambos são indissociáveis, um não existe sem o outro,
pois, muitas vezes, se superpõem e se confundem entre si.
Logo, para entendermos o fenômeno da contratransferência, necessário se faz
a conceituação da transferência.
De acordo com Laplanche e Pontalis, a transferência consiste no “processo
pela qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro
de certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação
analítica”.68
Nunberg, citado por Jorge Trindade, ensina que:

“a transferência é um termo autoexplanatório e significa que afetos e ideias são


transferidos de uma situação para outra, prevalecendo a tendência de fazer com
que impressões do passado se sobreponham a impressão do presente. Implica a
reagir em situações atuais como se fossem aquelas vividas no passado, mostrando
uma tendência a repetir antigas vivências e de encontrar semelhança do passado
que se aplicariam ao presente, uma forma de reviver experiência antigas aqui e
agora.”69

Já em relação a contratransferência, tivemos uma evolução no conceito. A


primeira, na ideia de Freud, em 1910, que entendia ter a contratransferência várias
fontes inconscientes nos conflitos neuróticos do analista, reativados pelo contato com
os conflitos infantis do analisado. Freud ainda entendia que a contratransferência é
como uma resistência do terapeuta, a qual deveria ser eliminada pela autoanálise ou

68
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J-B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Livraria Martins Fontes,
1983, 7ª edição.
69
TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. 8. rev. atual. e ampl.
– Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.
terapia pessoal. Tal perspectiva negativa permaneceu e prevaleceu na literatura
psicanalítica por várias décadas.
A partir dos trabalhos de Paula Heimann e Heinrich Racker, provocou-se uma
ampliação na sua conceitualização, utilizando-se um conceito “totalístico” de
contratransferência, considerando um fenômeno normal do processo terapêutico,
instrumento imprescindível para a interpretação. Nesta mudança conceitual, a
contratransferência contempla elementos da realidade da relação analista-analisado,
abrangendo reações inconscientes e conscientes.70
Observa-se então que através da constante interação entre analista e paciente
implica em um processo de recíproca introjeção das identificações projetivas do
outro. Quando ocorre esse fenômeno, especificamente na pessoa do analista, pode
mobilizar neste, durante a sessão, uma resposta emocional sob forma de um conjunto
de sentimentos, afetos, associações, fantasias, evocações, lapsos, imagens, sonhos,
sensações corporais, etc.71
Assim, o fenômeno contratransferencial resulta das identificações projetivas
oriundas do analisando, as quais provocam no analista um estado de contra
identificação projetiva. Segundo conceituação de Grinberg (1963) os conflitos
particulares do analista não são os que determinam a contratransferência, o que
simplesmente acontece é que o analista fica impregnado com as maciças cargas da
identificação projetiva do paciente e fica sendo, passivamente, dirigido a sentir e a
executar determinados papéis que o paciente “colocou” e despertou dentro do
terapeuta.
Alguns aspectos da contratransferência geram controvérsias, dentre eles se o
fenômeno durante a sessão é unicamente inconsciente ou também pode ser
consciente, ou ainda se a contratransferência pode ficar a serviço da empatia e da
intuição.
M. Kyrle, autor Kleiniano, que estudou mais profundamente o fenômeno da
contratransferência, nos ensina que existem três aspectos essenciais: 1) O analista
deve, silenciosamente, reconhecer que de alguma forma ele está emocionalmente
perturbado no campo analítico. 2) Tentar reconhecer quais foram “as partes do

70
BARROS, Alcina Juliana Soares. A contratransferência nas perícias psiquiátricas e psicológicas em
contextos de crimes sexuais, In: TRINDADE, Jorge, MOLINARI, Fernanda (org). Temas de psicologia
forense: Porto Alegre: Imprensa Livre, 2015.
71
ZIMERMAN, David E. Manual de técnica psicanalítica: uma re-visão. Porto Alegre: Artmed, 2004.
paciente” que lhe provocam essa reação. 3) Quais são os efeitos que estão operando
sobre ele.
A perspectiva contemporânea da contratransferência, nos indica que o manejo
dos próprios sentimentos inconscientes durante a análise é tarefa complicada para
qualquer analista por envolver questões de cunho pessoal nem sempre elaboradas.
Entretanto, diferente da perspectiva clássica sobre a contratransferência, a
contemporânea aborda esse conflito como parte da análise e define a
contratransferência para além da reação emocional do analista para com o seu
paciente. Assim, abre a possibilidade de a contratransferência ser utilizada como
instrumento analítico ao possibilitar a compreensão da relação transferencial e do
psiquismo do paciente.72
Portanto, com o crescente estudo da mente do analista, cada vez mais se
procura levar em consideração como funciona sua mente em contato com a do
paciente e identificar as encenações produzidas nessa relação mutuamente
provocadora de emoções e estado psíquicos complexos. Logo, a contratransferência
também pode ser influenciada por questões de gênero e o momento do ciclo vital do
paciente e terapeuta e constitui uma área de crescentes pesquisas em psicanálise e
psicoterapia analítica.73
De certo que os efeitos da contratransferência podem assumir na mente a na
atitude psicanalítica do terapeuta várias reações, dentre elas de configurar em uma
forma de contratransferência patológica com todos prejuízos daí decorrentes, a outra,
uma vez reconhecida conscientemente pelo analista a contratransferência pode se
transformar em uma excelente bússula empática.74
Talvez, essa “bússula empática” seja um instrumento essencial para atuação
do advogado familista, conforme abaixo discorreremos.

2. O Advogado Familista e a complexidade de emoções vividas no Exercício


da Advocacia
A origem da advocacia é bastante controversa entre os estudiosos, não
havendo dados precisos para defini-la, mas não se nega que o berço da advocacia,
72
Leitão, Leopoldo Gonçalves. Contratransferência: uma revisão na literatura do conceito. Análise
Psicológica. 2003.
73
EIZIRIK, Cláudio Laks; AGUIAR, Rogério Wolf de; SCHESTATSKY, Sidnei S.- organizadores.
Psicoterapia de orientação analítica: fundamentos teóricos e clínicos. – 3. ed. – Porto Alegre: Artmed,
2015.
74
ZIMERMAN, David E. Manual de técnica psicanalítica: uma re-visão. Porto Alegre: Artmed, 2004.
enquanto atividade exercida por profissionais para defender os cidadãos, remonta a
Atenas, na Grécia.
Já no Brasil, a advocacia remonta ao período colonial. Tanto no Brasil
colonial quanto no Brasil império, o exercício da profissão guardava estreita ligação
com a história da profissão em Portugal, tanto é que as Ordenações Afonsinas e
Filipinas, as quais disciplinavam acerca da advocacia, exigiam que os letrados que
queriam advogar no país tivessem cursado Direito Canônico e/ou Civil na
Universidade de Coimbra, tratando-se de uma formação totalmente voltada ao
liberalismo individualista.75
Porém, somente com a Constituição Federal de 1988 é que o exercício
profissional da advocacia teve a importância merecida, com forte regulação ética e
disciplinar, reconhecendo ainda que o advogado é indispensável à administração da
justiça.76
Assim, também se estatuiu de uma função social, pois além de representantes
dos interesses individuais de seus clientes, o advogado passou a ser representante
também dos interesses públicos.
Miguel Reale Junior, como de praxe, como muito saber, ministra que o
advogado é aquele que fala pelo outro, mas é mais do que isso. O advogado é aquele
que se identifica com o outro que nele confia; é quem vive o sofrimento e a angústia
do que o outro vivencia, por um processo simpático à experiência do outro.77
No que se refere a advocacia familista, geralmente o advogado, é sempre o
primeiro profissional a ser procurado para auxiliar os envolvidos em qualquer espécie
de conflito que não se consegue ser gerido no seio familiar, tornando-se necessária a
busca por respostas jurídicas, como em qualquer outra área do direito.
A contratação, a escolha do advogado que representará um sujeito no processo
sempre será baseada na confiança, pois esse é o elemento que sustenta a relação
advogado-cliente, principalmente nos litígios familiares, onde é, pelo cliente,
desabrochado as mais íntimas e dolorosas situações.
A ideia desse advogado, sensível, atento a escuta, sem preconceitos ou
julgamentos vai ao encontro da repersonalização das relações familiares, na medida
75
PELLEGRINI, Carolina Portella. Mediação: usos e práticas dos advogados em conflitos familiares
judicializados – Curitiba: CRV, 2018
76
Artigo 133 da Constituição Federal e artigo 2º, caput, da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e
Ordem dos Advogados do Brasil).
77
NEVES, José Roberto de Castro. Como os advogado salvaram o mundo. – 1. Ed. – Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2018. 09 pag.
que há uma valorização no interesse da pessoa humana e acima de tudo o
reconhecimento do afeto como valor jurídico.
A atuação do advogado que atua na seara familiar pode-se dizer ser um tanto
quanto peculiar. Não existe nenhuma ação do direito de família que não esteja envolto
o amor, o ódio, a alegria, a tristeza, o nascimento ou a morte. Mesmo que a morte seja
sob o viés de um divórcio ou o nascimento através de um casamento, para utilizarmos
uma visão psicanalítica aos contextos, pois conforme menciona SARTI, a família é o
espaço social onde se realizam os fatos da vida, vinculados ao corpo biológico, como
o nascimento, a amamentação, o crescimento, o acasalamento, o envelhecimento e a
morte.78
É no direito de família que a subjetividade se presentifica mais forte dentro do
direito, muito em razão da singularidade dos sujeitos envolvidos, sendo assim, o
Advogado que milita nesta área tem uma responsabilidade extra, não deve ele ser
objeto de gozo daquele cliente, o advogado familista tem o compromisso
constitucional79, como cidadão, de proteger e preservar o interesse das crianças e
adolescentes que estejam envolvidos no processo judicial, crianças essas que muitas
vezes são utilizadas como objeto pelos pais que a disputam como um troféu.
Acaba-se, por vezes, sendo o advogado familista e o judiciário um instrumento
de gozo na realização de um desejo inconsciente, transvestido em outra cena, de
ordem subjetiva e a compreensão desta cena é não permitir ser este instrumento de
ilusão de satisfação do desejo oculto, é barrar o gozo, o excesso.80
É essencial a esse profissional do direito ter noções, no mínimo básicas da
psicanálise, para que possa compreender de forma mais ampla a estrutura do litígio
que bate à sua porta, para entender o funcionamento dos atores e personagens da cena
jurídica, possibilitando uma atuação mais ética e que se coadune ao real desejo do seu
cliente.
O dado fundamental que faz do advogado familista e do psicanalista terem
funções parecidas (nunca iguais) é que passam, ambos a serem instrumentos valiosos

78
SARTI, Cynthia Andersen. A família como ordem simbólica. Psicologia USP, São Paulo, v. 15,
2004.
79
Constituição Federal, art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
80
CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios Fundamentais norteadores do direito de família. – Belo
Horizonte: Del Rey, 2005.
na escuta daquele que traz as informações (cliente ou paciente), uma vez que toda
perturbação psíquica, mental, comportamental (as duas primeiras quase sempre
acabam repercutindo no comportamento humano) decorre da historia inconsciente do
sujeito, do lugar que ele ocupa na família e de sua relação com o ambiente social.
Assim, quando o advogado interpela seu cliente e o questiona sobre todos os fatos que
antecederam o sofrimento familiar gerador do fracasso de um projeto comum é
porque está perscrutando a alma humana de modo a buscar as razões que o levaram a
agir desta ou daquela maneira, procurando minorar seu sofrimento e daqueles que o
cercam. 81
Podemos observar nos litígios existentes nas varas de família, que talvez um
simples processo de divórcio seja em verdade o último suspiro para preservar um
vínculo, mesmo que patológico, junto àquela pessoa amada/odiada, ou aquela pensão
alimentícia em nome do filho que ao fundo é uma intenção de se ver indenizada(o)
por uma traição, entre outros inúmeros exemplos que poderíamos fornecer de como
um processo judicial pode ser na verdade um pano de fundo para satisfazer um desejo
oculto, pois como bem observa o Ministro Antonio Cesar Peluso, aquilo que se vê nas
Varas de Família é tristeza, silêncio e ódio.82
Por certo, essa intenção de utilização do poder judiciário ou do advogado para
satisfação do gozo, seja pelo amor, seja pelo ódio, causa com toda certeza malefícios
àqueles sujeitos litigantes que nem mesmo notam o mal que fazem a si mesmos e
principalmente aos filhos.
É de obrigação do advogado familista tentar diminuir os danos emocionais
causados por conta desses litígios, é atribuição do advogado familista olhar para além
dos autos.
Importante para a atuação do advogado que milita no direito de família é de
não contribuir com o sofrimento do cliente, mesmo que ele não consiga reconhecê-lo.
Perceber se a sustentação do litígio é verdadeiramente benéfica tanto economicamente
como emocionalmente para o cliente é uma obrigação do causídico familista, que
deverá sempre levar em consideração a possibilidade de composição do conflito
através de técnicas e modelos alternativos.

81
LEITE, Eduardo de Oliveira. A Psicanálise e o Advogado. Aspectos psicológicos na prática jurídica.
ZIMERMAN, Davi, org. 4. ed. – Campinas-SP: Millennium Editora.
82
PELUSO, Antonio Cesar. “O menor na separação”. In: Repertório de Jurisprudência e Doutrina
sobre Direito de Família. Vol. 1.
Em verdade, a formação do advogado, desde a faculdade é para litigar,
todavia, o litígio é o pior cenário para minimizar os danos emocionais. Nesse
diapasão, faz-se necessário repensar sobre esse novo papel que o advogado deve
desempenhar na sua prática profissional e pessoal, enriquecidos pelo aporte das novas
técnicas de resolução de conflito.
Cabe aos advogados que atuam no direito de família, a partir da compreensão
desses elementos subjetivos que levam o sujeito ao seu escritório, mostrar que o
verdadeiro interesse na demanda não é sempre aquele que por vezes é apresentado.
Saber distinguir os elementos subjetivos daqueles objetivos, faz com que o advogado
consiga organizar um melhor texto jurídico, encaminhando o litígio para uma melhor
resolução, afastando-se da lógica retrógada do ganha x perde, abrindo-se um novo
espaço e uma nova forma de lidar com o conflito, através de um olhar construtivo, em
que todos ganham, inclusive o advogado, como bem explicam Fernanda Molinari e
Marilene Morodin.83
David Zimerman enfatiza a importância de advogados e magistrados terem um
domínio relativamente seguro daquilo que se passa nos meandros do inconsciente dos
indivíduos, casais e grupos, camuflados nas dobras de um processo judicial.84
A postura do advogado familista, deve ser de não se deixar envolver pela
atmosfera revanchista que é despejada na maioria das vezes pelo cliente, impondo
limites firmes no que diz respeito ao espaço e tempo que o cliente tem com o
advogado, fazendo reconhecer enfaticamente as inevitáveis limitações que o próprio
processo encerra, mas que por muitas vezes o sujeito entende poder exigir do
profissional, não devendo então o advogado se intimidar frente as investidas do
cliente, pois caso contrário, perderá a serenidade para a tomada de uma posição
coerente, consistente e técnica, não perdendo a indispensável manutenção da
hierarquia do profissional com o cliente, mesmo que isso leve ao risco de perdê-lo,
pois como bem expressa o advogado Conrado Paulino da Rosa, “o advogado é o dono
do processo”.
A possibilidade de perda do cliente é bem exposta por David Zimerman,
quando faz uma analogia com aquilo que se passa na área clínica psicoterápica,
afirmando que:

83
MARODIN, Marilene; MOLINARI, Fernanda (organizadores). Mediação de Conflitos: paradigmas
contemporâneos e fundamentos para a prática. – Porto Alegre: Imprensa livre, 2016
84
ZIMERMAN, David, COLTRO, Antonio Carlos Mathias e BIZZI, Idete Zimerman, organizadores.
Aspectos psicológicos na prática jurídica. 4. ed. – Campinas, SP: Millennium Editora, 2018.
“os assim chamados impasses psicanalíticos somente serão resolvidos quando o
analista prossegue trabalhando sem deixar intimidar pelas ameaças de algum
determinado paciente nessas condições, sem perder o seu lugar e o seu papel no
par analítico”. 85

A experiência nos mostra também a necessidade e a importância de que em


certos casos se encaminhe o cliente para espaço psicoterápico, com o intuito principal
de fazer com que este possa reorganizar seu espaço mental e por conseqüência
consiga visualizar a real idéia do contexto litigioso, chegando enfim ao que podemos
afirmar como sendo o gozo verdadeiro, a satisfação real e não aquela falsa,
transvertida em ação judicial.
Todavia, a atuação do advogado não pode em nenhum momento confundir-se
com qualquer atribuição de psicólogos ou psicanalistas. Aquilo que por vezes
escutamos de que o advogado é “um pouco psicólogo” é uma inverdade. Alias, é um
desmerecimento ao papel tão fundamental dos psicólogos. Não se admite que o
advogado intervenha de uma forma analítica, não se deve confundir a intersecção da
psicanálise e do direito com uma atuação analítica do advogado. Cabe a cada
profissional preservar e atuar no seu campo, não se pode querer psicanalizar o direito
ou jurisdicionalizar a psicanálise, é preciso preservar os dois campos, uma vez que o
diálogo entre os dois é essencial.
O advogado atuante no direito de família precisa, além de uma boa vontade de
escutar, ter uma escuta qualificada, porém nunca submeter o cliente a uma análise
psíquica, não pode ser uma escuta analítica, pois a intervenção analítica é privilégio
do analista, pois acaso o advogado, erroneamente, se apossar desta atribuição, corre-
se o risco de trazer questões que não bem elaboradas podem trazer sérios danos ao
cliente.
Logo, o grande desafio do advogado familista é descobrir a realidade da
mensagem inconsciente que está implícita disfarçada no discurso do sujeito, ou,
utilizando-se da expressão Lacaniana, é escutar o que está entre o dito e o que ainda
resta dizer.

3. A Contratransferência na atuação do Advogado Familista


Existe pouca literatura que desenvolva o assunto da contratransferência para
além do setting terapêutico, talvez por continuar sendo considerada nos estritos

85
Idem, 4
limites da relação terapêutica e não um fenômeno universal ínsito às relações
interpessoais, mesmo que Freud nunca haja descurado recomendar sua abrangência.
Com efeito, o fenômeno da contratransferência constitui um acontecimento da vida
psíquica absolutamente geral, embora na relação analítica sejam suscetíveis de uma
utilização técnica, pois que advindas com maior impacto.86
Partindo-se do pressuposto de que não existe ato humano que não esteja
sustentado na subjetividade, se faz concluir que a atuação do advogado frente ao seu
cliente se faz impossível sem a contratransferência.
Todo o advogado tem o direito de sentir difíceis sentimentos
contratransferenciais, como medo, dúvidas, raiva, excitação, confusão, tédio, entre
outros, pois antes de ser um causídico, é um ser humano.
Por certo que as atitudes de um advogado para com o seu cliente
derivam também de situações anteriores, vivências, experiências pessoais que
consequentemente são deslocadas para o cliente concretizando o fenômeno da
contratransferência também em ambiente de escritório de advocacia, havendo a
reação do advogado baseado também nos seus conflitos inconscientes.
O que diferencia a contratransferência em ambiente terapêutico daquela
ocorrida dentro do escritório de advocacia é que no primeiro os aspectos
inconscientes são reavaliados em regime de supervisão, ao passo que no segundo não
existe tal possibilidade, o que deixa o terreno do advogado muito mais sujeito a
intervenções sem domínio de organização mental, o que lhe causa um risco maior de
prejuízo em sua atuação.
Ao advogado, pela sua expertise, cabe, nessas situações, escutar as vozes do
interior, reconhecendo os aspectos contratransferenciais negativos, reencontrando um
equilíbrio, aproveitando-as de maneira a otimizar seu trabalho, caso o contrário, ao
notar que tais vozes prejudicam sua advocacia, é aconselhável o procedimento
terapêutico de forma a organizar tais ruídos.
Por certo que o advogado se humaniza ao aprender a se colocar na situação do
cliente e ao se dispor a responder por quem se põe sob sua proteção. Esse exercício
por um processo simpatético de viver a experiência do outro, se da com excelência
através de uma conscientização do fenômeno contratransferencial. A
contratransferência transformada em empatia corresponde ao que Racker denominou

86
TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. 8. rev. atual. e ampl.
– Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.
como “contratransferência concordante”. Afirma-se ainda, para melhor compreensão,
que o termo empatia, nesta conjuntura significa a capacidade de o advogado sentir em
si, para poder entender a subjetividade do que o cliente lhe passa, através de uma
adequada identificação projetiva e introjetiva.
Acontece que o advogado, desfamiliarizado com a psicanálise, tende a
confundir empatia com uma simples intuição. A primeira, mais própria da área
afetiva, enquanto a segunda refere-se a um terreno ideativo.
Há outras razões determinantes na vida do advogado, determinantes esses que
não estão no mundo visível e aparente, que se escondem por de trás de toda a história
de vida daquele que ali recebe todo o sentimento, toda a frustração do cliente.
A contratranferência é mais um ponto de encontro entre direito e psicanálise,
aparentemente opostos, já que um lida com a subjetividade e o outro com a
objetividade, como bem salienta o jusfilósofo Pierre Legendre, citado por Rodrigo da
Cunha Pereira87, mas presente tanto em ambiente jurídico como de terapia.

Considerações Finais
Forçoso concluir que existe a influência dos sentimentos na atuação do
advogado frente seu cliente, uma vez que a contratransferência pode ser observada em
toda e qualquer relação, sendo ainda mais presente na relação do advogado familista,
tendo em vista toda a carga emocional que envolve um processo judicial ou até
mesmo um procedimento extrajudicial que envolvam contextos familiares.
Daí a importância do advogado ter o conhecimento sobre a psicanálise e
especificamente sobre a contratransferência, uma vez que sendo conhecedor do
fenômeno fica possibilitado sua identificação e sua utilização de maneira positiva em
sua atuação.
O risco de prejudicar o trabalho do advogado por intensos sentimentos
negativos é latente, devendo-se manter alerta para uma potencial distorção do caso
concreto, geradas por esses sentimentos contratransferenciais que retiram do
advogado toda a lucidez e técnica exigida para o exercício da profissão.
Conforme M. Kyrle, citado anteriormente, podemos adaptar os três aspectos
essenciais da contratransferência para a atuação do advogado, qual seja, reconhecer
que de alguma forma ele está emocionalmente perturbado naquele determinado caso,

87
CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios Fundamentais norteadores do direito de família. – Belo
Horizonte: Del Rey, 2005.
tentar reconhecer quais foram “as partes do cliente” que lhe provocam essa reação e,
por fim entender quais são os efeitos que estão operando sobre ele a
contratransferência.
Entendemos ser essencial para a atuação do advogado o reconhecimento do
fenômeno contratransferencial para que tenha uma possibilidade de entendimento e
dinâmica, não ficando envolvido de forma patológica de modo que consiga
transformá-la em algo positivo e até mesmo empático, afim de conseguir ter uma
atuação de excelência e otimizada.
Torna-se necessário e até mesmo impositivo na atualidade repensar o direito a
partir da psicanálise, e em especial a atuação do advogado a partir desta, o que é
pouco difundido pela literatura. É de extrema necessidade um estudo mais
aprofundado sobre o tema, assim, fica o convite a todos os profissionais do direito a
refletirem sobre a importância do estudo da psicanálise para atuação do advogado,
principalmente do advogado que atua em contextos familiares, onde as emoções estão
sempre em estado de erupção.

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. São Paulo:
Saraiva, 2003.
CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios Fundamentais norteadores do
direito de família. – Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
EIZIRIK, Cláudio Laks; AGUIAR, Rogério Wolf de; SCHESTATSKY,
Sidnei S.- organizadores. Psicoterapia de orientação analítica: fundamentos teóricos
e clínicos. – 3. ed. – Porto Alegre: Artmed, 2015.
LAPLANCHE, J. E PONTALIS, J.B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo:
ED. Martins Fontes, 2001.
LEITÃO, Leopoldo Gonçalves. Contratransferência: uma revisão na literatura
do conceito. Análise Psicológica, 2003.
MARODIN, Marilene; MOLINARI, Fernanda (organizadores). Mediação de
Conflitos: paradigmas contemporâneos e fundamentos para a prática. – Porto Alegre:
Imprensa livre, 2016.
NEVES, José Roberto de Castro. Como os advogado salvaram o mundo. – 1.
Ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
PELLEGRINI, Carolina Portella. Mediação: usos e práticas dos advogados
em conflitos familiares judicializados – Curitiba: CRV, 2018
SARTI, Cynthia Andersen. A família como ordem simbólica. Psicologia USP,
São Paulo, v. 15, 2004.
TRINDADE, Jorge, MOLINARI, Fernanda (organizadores). Temas de
psicologia forense. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2015.
TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do
Direito. 7. ed. rev. atual. e ampl. - Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.
TRINDADE, Jorge; MOLINARI, Fernanda (organizadores). Psicologia
Forense: Novos Caminhos. – Porto Alegre: Imprensa Livre, 2017.
TRINDADE, Jorge; MOLINARI, Fernanda (organizadores). Psicologia
Forense: Conexões Interdisciplinares. – Porto Alegre: Imprensa Livre, 2016.
ZIMERMAN, David, COLTRO, Antonio Carlos Mathias e BIZZI, Idete
Zimerman, organizadores. Aspectos psicológicos na prática jurídica. 4. ed. –
Campinas, SP: Millennium Editora, 2018.
ZIMERMAN, David E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica
– uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed, 1999.
ZIMERMAN, David E. Manual de técnica psicanalítica: uma re-visão. Porto
Alegre: Artmed, 2004.
A (RE)CONSTRUÇÃO DE INTERAÇÕES
VINCULARES ATRAVÉS DA MEDIAÇÃO
FAMILIAR

Fernanda Molinari88

“Produzir a diferença com o outro


é criação do novo, da temporalidade;
produzir a diferença com o outro, não contra o outro,
é realizar uma mediação.
Todo vínculo mediado produz uma diferença.
É o modo de inscrever o amor no conflito”.
Luis Alberto Warat89

Introdução
A resolução dos conflitos interpessoais pode dar-se na busca de formas
autocompositivas, sendo uma delas a mediação, que consiste num sistema que
considera que os conflitos possam resolver-se com ajustes de conveniência
recíproca90.
A utilização deste paradigma, que inicialmente teve uma maior utilização em
situações de conflitos familiares, mas que hoje possui muita evidencia em contextos
empresariais, penais, trabalhistas e em situações que envolvam Autarquias Federais,
provoca o fortalecimento dos vínculos e uma maior possibilidade de as pessoas
resolverem positivamente situações de crise, mediante a priorização de uma filosofia
intercomunicativa que preconiza a coparticipação responsável. Os conflitos são
administrados pelos próprios interessados através de decisões conjuntas, porém
reconhecendo a singularidade de cada pessoa. Os envolvidos se tornam protagonistas
das decisões assumidas, adquirindo habilidades para gerir suas próprias diferenças91.
Neste sentido, a mediação é uma abordagem capaz de compreender o
movimento que deu origem ao conflito, e sua abrangência ultrapassa os limites de um
eventual acordo que possa via a ser celebrado entre os mediandos, porque seu tempo é
88
PhD em Psicologia Forense pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal). Mediadora de Conflitos
pela CLIP. Advogada. Psicanalista Clínica. Docente e Supervisora no Curso de Formação de
Mediadores de Conflitos da CLIP. Especialista em Direito de Família pela PUC/RS. MBA em Direito
Civil e Processo Civil pela FGV. Presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica e da
Sociedade Sul-Brasileira de Psicanálise. Vice-Presidente da Associação Brasileira Criança Feliz.
Diretora do IBDFAM/RS.
90
MOLINARI, F., & MARODIN, M. A mediação em contextos de Alienação Parental: O papel do
mediador e dos mediandos. In C. P. Rosa, & L. M. B. Thomé (Org.), O papel de cada um nos conflitos
familiares e sucessórios (pp. 155-166). Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2014.
91
GRUNSPUN, H. Mediação Familiar: o mediador e a separação de casais com filhos. São Paulo:
Editora LTR, 2000.
o futuro92. Quando estamos diante de um contexto de mediação, o foco para solução
do conflito é sempre de caráter prospectivo, ou seja, a visão dimensional da solução
conflitiva passa a ser a sua resolutividade com projeções futuras, e não a análise de
circunstâncias do passado93.
Sendo a mediação uma forma autocompositiva para resolução de conflitos, o
mediador deve adotar determinados procedimentos que conduzam, de maneira sutil e
sem interferência de juízos de valores, a um entendimento que atenda as pretensões e
expectativas dos envolvidos, tentando reestruturar a possibilidade de escuta recíproca
e direta, sem intermediários parciais94.
A principal característica da Mediação é que o poder de decisão é conferido
aos mediandos, não advindo do mediador. Este, portanto, não decide, não opina,
tampouco força a consecução de um acordo, apenas, de forma imparcial, utilizando-se
de técnicas apropriadas, conduz o processo de mediação de forma a possibilitar que os
mediandos possam ter clareza das suas necessidades e, consequentemente, consigam
chegar à resolução do conflito, de forma satisfatória e duradoura95.
Nesse sentido, o mediador não decide, mas ajuda a realizar a reconstrução
simbólica que permitirá uma eventual resolução entre os mediandos, transformando o
conflito96. Na sua abordagem de atuação, o mediador tornará legítima e qualificará as
pretensões de ambos, não participando da cultura beligerante, mas facilitando a
resolução do conflito, alcançando as ferramentas para as pessoas refletirem sobre o
que está acontecendo97.
A mediação evoca o significado de centro, de meio, de equilíbrio, compondo a
ideia que um terceiro, o mediador, favorece uma cultura de diálogo e pacificação
social. Por isso, a mediação é vista como um processo em virtude do qual o mediador
auxilia os participantes a tratar uma situação conflitiva, expressando em uma solução

92
BARBOSA, A. A. Formação do Mediador Familiar Interdisciplinar. In R. C. Pereira (Coord.),
Família: entre o público e o privado (pp. 11-25). Porto Alegre: Magister/IBDFAM, 2012.
93
MOLINARI, F., & MARODIN, M. A mediação em contextos de Alienação Parental: O papel do
mediador e dos mediandos. In C. P. Rosa, & L. M. B. Thomé (Org.), O papel de cada um nos conflitos
familiares e sucessórios (pp. 155-166). Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2014.
94
TRINDADE, J., TRINDADE, E. K., & MOLINARI, F. Psicologia judiciária para carreira da
magistratura. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
95
FANKHAUSER, C. L. S. Aplicabilidade e eficácia da mediação nos conflitos familiares: da prática à
teoria. In M. F. Jobim (Org.), Inquietações jurídicas contemporâneas (pp. 71-83). Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2013.
96
WARAT, L. A. Surfando na pororoca: O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001.
97
MARODIN, M., & BREITMAN, S. A prática moderna da mediação: Integração entre a psicologia e
o direito. In D. Zimerman, & A. C. M. Coltro (Coord.), Aspectos psicológicos na prática jurídica (pp.
495-507). 3ª edição. São Paulo: Millennium, 2010.
aceitável e estruturada de maneira que permita ser possível a continuidade dos
vínculos entre as pessoas envolvidas98.
A mudança de perspectiva de olhar para os conflitos, e a forma de resolvê-los,
traz uma nova concepção sobre eles. As divergências passam a serem vistas e
compreendidas como oportunidade, e as energias antagônicas como complementares.
A postura que fragmentava, classificava e gerava distanciamento, se reveste de forma
colaborativa, pois vivemos através de interações, e somos constituídos da
complexidade desses vínculos99.
Sobre o tema, Marodin e Breitman100 salientam que o procedimento mais
adequado do mediador é reverter os papéis: de coadjuvantes, os atores passam a ter o
papel principal. Eles são os donos do problema/conflito que o mediador, de modo
imparcial tentará conduzir, guiar, administrar sem julgamentos, preferências ou juízos
de valor. Ele tentará reestruturar a possibilidade de escuta recíproca e direta, sem
intermediários parciais. Nesse sentido, o mediador procurará tornar legítima e
qualificar as pretensões de ambos. De forma equidistante e habilmente treinado, não
se deixar envolver por nenhum, mantendo seus próprios juízos de valores e princípios.
Do ponto de vista legislativo, o Brasil teve significativas mudanças no âmbito
da Mediação de Conflitos, principalmente com o advento da Resolução 125 do
Conselho Nacional de Justiça101 e, posteriormente, com a promulgação da Lei nº
13.140/2015102 (Lei da Mediação) e Lei nº 13.105/2015103 (novo Código de Processo
Civil).
É a partir dessa mudança de paradigmas de ver e tratar os conflitos, também
em âmbito processual, que passaremos a descrever e apresentar o panorama atual da

98
HAYNES, J. M. Fundamentos de la mediación familiar. Madrid: Gaia, 1995.
99
WARAT, L. A. Surfando na pororoca: O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001.
100
MARODIN, M., & BREITMAN, S. A prática moderna da mediação: Integração entre a psicologia e
o direito. In D. Zimerman, & A. C. M. Coltro (Coord.), Aspectos psicológicos na prática jurídica (pp.
495-507). 3ª edição. São Paulo: Millennium, 2010.
101
BRASIL. Resolução Nº 125 de 29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política Judiciária
Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras
providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, de 29 de novembro de
2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em 24 de fevereiro de 2017.
102
BRASIL. Lei 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como
meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração
pública; altera a Lei no 9.469, de 10 de julho de 1997, e o Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972; e
revoga o § 2o do art. 6o da Lei no 9.469, de 10 de julho de 1997. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 26 de junho de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br.
Acesso em: 24 de fevereiro de 2017.
103
BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Dispõe sobre o Código de Processo Civil. Diário
Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 de março de 2015. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 24 de fevereiro de 2017.
mediação de conflitos no Brasil, através de um enfoque jurídico e de vivências.

1. A Mediação como Política Pública: Resolução Brasileira nº 125 do


Conselho Nacional de Justiça e a Lei de Mediação
Por meio da mediação, o conceito de Justiça apresenta-se como um valor
adequadamente estabelecido, por meio de um procedimento equânime que auxilie os
envolvidos a produzir resultados satisfatórios, considerando o pleno conhecimento
deles quanto ao contexto fático em que se encontram. Portanto, na mediação, a justiça
se concretiza na medida em que os mediandos foram estimulados à produção da
solução de forma consensual e, tanto pela forma como pelo resultado, vivenciam
satisfação pelo protagonismo, autonomia e exercício de uma pacificação social104.
Considerando que cabe ao Judiciário estabelecer política pública de tratamento
adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga
e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito nacional, não
somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também os que possam
sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em especial dos
consensuais, como a mediação e a conciliação, e a necessidade de se consolidar uma
política pública permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos
consensuais de solução de litígios e, considerando que a conciliação e a mediação são
instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a
sua apropriada disciplina em programas já implantados no país tem reduzido a
excessiva judicialização dos conflitos de interesses, em 29 de novembro de 2010 foi
aprovada a Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça, no Brasil.
Os objetivos da Resolução 125 do CNJ podem ser assim compreendidos: i.
Disseminar a cultura da pacificação social e estimular a prestação de serviços auto-
compositivos de qualidade; ii. Incentivar os tribunais a se organizarem e planejarem
programas amplos de autocomposição (art. 4º) e iii. Reafirmar a função de agente
apoiador da implantação de políticas públicas.
A criação de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça Brasileiro que
dispõe sobre a conciliação e a mediação partiu de uma premissa de que cabe ao
Judiciário estabelecer a política pública de tratamento adequado dos conflitos de

104
AZEVEDO, A. G. de. Manual de mediação judicial. Brasília/DF: Ministério da Justiça e Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2013.
interesses resolvidos no seu âmbito - seja por meios heterocompositivos, seja por
meios autocompositivos. Esta orientação foi adotada, de forma a organizar, em todo
território nacional, não somente os serviços prestados nos curso da relação processual
(atividades processuais), como também os que possam incentivar a atividade do Poder
Judiciário de prevenção de demandas com as chamadas atividades pré-processuais de
conciliação e mediação. Pela perspectiva da Resolução, aos órgãos judiciários
incumbe oferecer mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados
meios consensuais, como a mediação e a conciliação bem assim prestar atendimento e
orientação ao cidadão.
Com a Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça, surge a necessidade
de Tribunais e magistrados criarem contextos colaborativos. A pergunta recorrente no
Poder Judiciário deixou de ser “como devo sentenciar em tempo hábil” e passou a ser
“como devo abordar essa questão para que os interesses que estão sendo pleiteados
sejam realizados de modo mais eficiente, com maior satisfação do jurisdicionado e no
menor prazo”105.
A Resolução Brasileira nº 125 do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe
sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos de interesses
no âmbito do Poder Judiciário, estabelece no Código de Ética, a partir do artigo 1º, os
princípios e garantias da mediação judicial, determinando que são princípios
fundamentais que regem a atuação de conciliadores e mediadores judiciais:
confidencialidade, competência, imparcialidade, neutralidade, independência e
autonomia, respeito à ordem pública e às leis vigentes.
Pelo paradigma da Resolução nº 125 do CNJ, o princípio da confidencialidade
refere-se ao dever de manter sigilo sobre todas as informações obtidas na sessão,
salvo autorização expressa das partes, violação à ordem pública ou às leis vigentes,
não podendo ser testemunha do caso, nem atuar como advogado dos envolvidos, em
qualquer hipótese; o princípio da competência diz respeito ao dever do mediador de
possuir qualificação que o habilite à atuação judicial, com capacitação na forma desta
Resolução, observada a reciclagem periódica obrigatória para formação continuada; o
princípio da imparcialidade refere-se ao dever do mediador de agir com ausência de
favoritismo, preferência ou preconceito, assegurando que valores e conceitos pessoais

105
AZEVEDO, A. G. de. Manual de mediação judicial. Brasília/DF: Ministério da Justiça e Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2013.
não interfiram no resultado do trabalho, compreendendo a realidade dos envolvidos
no conflito e jamais aceitando qualquer espécie de favor ou presente; o princípio da
neutralidade do mediador diz respeito ao dever de manter equidistância das partes,
respeitando seus pontos de vista, com atribuição de igual valor a cada um deles; o
princípio da independência e autonomia refere-se ao dever do mediador de atuar com
liberdade, sem sofrer qualquer pressão interna ou externa, sendo permitido recusar,
suspender ou interromper a sessão se ausentes as condições necessárias para seu bom
desenvolvimento, tampouco havendo obrigação de redigir acordo ilegal ou
inexequível; e o princípio do respeito à ordem pública e às leis vigentes diz respeito
ao dever do mediador de velar para que eventual acordo entre os envolvidos não
viole a ordem pública, nem contrarie as leis vigentes.
A Resolução nº 125 do CNJ estabelece que as regras que regem o
procedimento da mediação são normas de conduta a serem observadas pelos
mediadores para seu bom desenvolvimento, permitindo que haja o engajamento dos
envolvidos, com vistas à sua pacificação e ao comprometimento com eventual acordo
obtido, sendo elas: i. Informação, que diz respeito ao dever do mediador de esclarecer
sobre o método de trabalho, apresentando-o de forma completa, clara e precisa,
informando sobre os princípios deontológicos, as regras de conduta e as etapas do
procedimento; ii. Autonomia da Vontade, compreendida como o dever de respeitar os
diferentes pontos de vista dos mediandos, assegurando-lhes que cheguem a uma
decisão voluntária e não coercitiva, com liberdade para tomar as próprias decisões
durante ou ao final do processo, podendo inclusive interrompê-lo a qualquer
momento; iii. Ausência de obrigação de resultado, pois o mediador não deve forçar
um acordo, ou tomar decisões pelos mediandos, cabendo a eles a construção de um
entendimento. Neste sentido, não há como garantir o resultado final da mediação, pois
dependerá, antes de mais, do comprometimento e evolução dos mediandos durante o
procedimento; iv. Desvinculação da profissão de origem, ocasião em que o mediador
deve esclarecer que atua desvinculado de sua profissão de origem, informando que,
caso seja necessária orientação ou aconselhamento afetos a qualquer área do
conhecimento poderá ser convocado para a sessão o profissional respectivo, desde
que com o consentimento de todos e; v. Teste de Realidade, onde o mediador deve
assegurar que os envolvidos, ao chegarem num acordo, compreendam perfeitamente
suas disposições, que devem ser exequíveis, gerando o comprometimento com seu
cumprimento.
2. Código de Processo Civil Brasileiro e a Lei da Mediação: um novo
paradigma para soluções consensuais de conflitos
Francesco Carnelutti106 inicia suas lições processuais referindo que o processo
existe porque os homens não sabem amar. Se o soubessem, se pudessem ter
perenemente cultivado a reciprocidade, a tolerância, a compreensão e a
longanimidade, teriam sabido solver esse permanente conflito de interesses que se
diria inerente à natureza humana. Se este eterno conflito só se pode validamente
dirimir através do processo, é assim o processo o sucedâneo do amor que os homens
não souberam viver.
A perspectiva trazida pelo autor refere-se ao fato que a atividade jurisdicional,
enquanto meramente substitutiva, irá dirimir o conflito levando em consideração seus
efeitos legais, respeitando todas as normas de direito processual que, não raras vezes,
pelos mecanismos nela necessariamente implícitos, permitem que o processo judicial
perdure por longos anos107 Para Thomé (2010, p. 112) “resta um hiato entre o desejo
de cada parte de ser ouvida e compreendida no seu conflito quando ingressa no
Judiciário e a solução imposta no julgamento108”.
Em contrapartida, principalmente em questões que envolvam a área familiar,
o processo psicológico dos envolvidos em uma disputa judicial pode não coincidir
com o tempo do processo, o que permite que as partes exteriorizem, ao longo da
demanda, questões internas, de natureza inconsciente, que não foram resolvidas
adequadamente e servem para fomentar a litigiosidade. Assim, sob o aspecto
temporal, o processo psicológico dos envolvidos no conflito não corresponde
obrigatoriamente com o trâmite do processo judicial, sendo a recíproca igualmente
verdadeira109.
O juiz, que tem o poder de decidir o conflito a ele trazido pelas partes, encerra a
sua atividade jurisdicional com a sentença de mérito, e, conforme comumente se
observa, a parte vencida acaba transferindo ao Poder Judiciário sua frustração, o que
pode gerar novos obstáculos durante a execução da sentença, incentivando novas

106
CARNELUTTI, F. Metodologia del Diretto. Padova: Cedam,1929.
107
TRINDADE, J. Manual de psicologia jurídica para operadores do Direito. 8ª edição. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2017.
108
THOMÉ, L. M. B. Dignidade da pessoa humana e mediação familiar. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010.
109
TRINDADE, J., TRINDADE, E. K., & MOLINARI, F. Psicologia judiciária para carreira da
magistratura. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
lides110.
Como mudança de paradigma, a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, que
institui o novo Código de Processo Civil, traz em seu bojo alterações significativas,
tendo como um dos princípios norteadores que o Estado promoverá, sempre que
possível, a solução consensual dos conflitos, através da conciliação, mediação e
outros métodos de solução consensual, devendo ser estimulados por juízes,
advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso
do processo judicial.
O novo Código de Processo Civil estabelece que os Tribunais criem centros
judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões
e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas
destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.
As mediações que ocorrerão no âmbito do Poder Judiciário terão como
princípios norteadores a independência, imparcialidade, autonomia da vontade,
confidencialidade, oralidade, informalidade e decisão informada, conforme previsto
no artigo 166 do novo diploma legal.
No que diz respeito à mediação, o artigo 165, parágrafo 3º, do novo Código de
Processo Civil, estabelece que o mediador, que atuará preferencialmente nos casos
em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a
compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo
restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios soluções consensuais
que gerem benefícios mútuos.
No que se refere aos contextos que envolvem relações familiares, o artigo 694
do Código de Processo Civil estabelece que nas ações de família, todos os esforços
serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz
dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação
e a conciliação.
Neste sentido, destaca-se decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, que ressalta a relevância da Mediação em contextos familiares:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO MONOCRÁTICA. AÇÃO DE
SEPARAÇÃO JUDICIAL LITIGIOSA. REMESSA DOS AUTOS À CENTRAL
DE MEDIAÇÃO COM DESIGNAÇÃO DE AUDIÊNCIA PARA
COMPOSIÇÃO DA LIDE.

110
TRINDADE, J. Manual de psicologia jurídica para operadores do Direito. 8ª edição. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2017.
O instituto da mediação surgiu como instrumento alternativo de resolução dos
conflitos no âmbito familiar, possibilitando às partes que formatem um acordo
que contemple soluções adequadas e satisfatórias para ambas, sendo a satisfação
mútua e plena uma das maiores vantagens do instituto.
No caso, ainda que oportunizada a conciliação no curso da instrução, estando o
feito apto a ser julgado, a designação de nova audiência para data bem próxima
não tem o condão de retardar a prestação jurisdicional, mas, sim, oportunizar que
as partes examinem a possibilidade de composição da lide111.

Neste aspecto, é inquestionável que o principal objetivo da jurisdição, a sua


essência, é seu caráter de pacificação. Nesse sentido, é salutar que se encontrem
fórmulas de consenso para que o conflito chegue a bom termo, atingindo-se o ideal de
justiça das partes, que são os principais protagonistas, e a razão de ser, das demandas
judiciais.
Outra importante evolução legislativa foi a promulgação da Lei da Mediação
(Lei nº 13.140/2014), que dispõe sobre a mediação como meio de solução de
controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da
administração pública (artigo 1º).
No âmbito desta Lei, conforme estabelece o artigo 1º, parágrafo único,
considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder
decisório que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou
desenvolver soluções para a controvérsia.
Como princípios norteadores, a Lei da Mediação estabelece i) imparcialidade
do mediador; ii) isonomia entre as partes; iii) oralidade; iv) informalidade; v)
autonomia de vontade das partes; vi) busca de consenso; vii) confidencialidade e viii)
boa-fé.
Talvez nunca a Mediação tenha sido tão celebrada, principalmente ao
considerarmos as grande mudanças trazidas pelo Código de Processo Civil e pela Lei
da Mediação, que adotaram a filosofia introduzida pela Resolução 125 do CNJ.
Mudanças necessárias, e que chegam a um tempo em que é preciso repensar as formas
como lidamos com o conflito, principalmente no âmbito judiciário.

3. Vivências: Estudo de Caso com a participação de um filho em


Mediação Familiar
A mudança de paradigma cultural de resolução de conflitos requer um olhar
111
Brasil. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº 70043106350, 7º
Câmara Cível, Relator Desembargador André Luis Villarinho.
que vai para além de buscar compreender os resultados a que a mediação se propõe, e
a filosofia de pacificação que permeia toda a sua essência112. Para compreendermos
esse paradigma de mudanças, temos que caminhar dentro de um cenário novo, que é a
participação de crianças e adolescentes em contextos de Mediação Familiar, e a
necessária competência técnica do mediador para essa inclusão, que compreenda a
importância e as circunstâncias específicas que envolvem essa participação113.
Ao abordar a importância da participação dos filhos na mediação, Ribeiro114
refere que qualquer acordo entre os pais fica vazio se não for dada “voz” às crianças e
adolescentes, afirmando que uma das grandes vantagens da participação direta deles é
atenuar o sentimento de culpabilidade e os conflitos de lealdade, pois o mediador irá
trabalhar com todas as opções possíveis para a solução mais adequada aos interesses
de todos os membros da família.
Nesse sentido, passaremos a apresentar um estudo de caso que decorreu no
âmbito da pesquisa de Doutoramento da autora, na Universidade Fernando Pessoa, em
Portugal. O tema escolhido para pesquisa de Doutoramento na área de Ciências
Sociais, na especialidade em Psicologia Forense e do Testemunho, teve por objetivo
estudar e compreender os efeitos, a nível comportamental e emocional, da utilização
da Mediação de Conflitos como forma de intervenção familiar em contextos que
esteja presente a Alienação Parental115, em estágio moderado.
A escolha desse tema, a par da sua atualidade e da lacuna existente entre essa
aproximação – Mediação e Alienação Parental -, justifica-se por qualquer lado que se
examine a questão. Pela via da Mediação, porque ela vem demonstrando ser uma
ferramenta hábil para minimizar os conflitos resultantes da separação, pois existirá a
preocupação de (re) criar vínculos, estabelecendo um diálogo e transformando e
prevenindo novos conflitos. Pelo lado da Alienação Parental, porque o enfrentamento
desse complexo fenômeno ainda é efetuado apenas no plano de sua identificação, sem
estudos que a relacionem com a possibilidade da utilização da mediação como sendo

112
MOLINARI, F. Mediação de Conflitos e Alienação Parental: Fundamentos teóricos e práticos.
Porto Alegre: Editora Imprensa Livre, 2016.
113
MOLINARI, F. & SANI, A.I. Procedimentos para participação dos filhos em Mediação familiar:
apresentação de um estudo Luso-Brasileiro. In M. Marodin, & F. Molinari (Org.), Procedimentos em
Mediação Familiar (pp. 377-399). Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2017.
114
RIBEIRO, M. S. P. O mediador, as crianças e os outros. Disponível em
http://www.ipmediacaofamiliar.org/MEDIACAO_files/Criancas_mediador.pdf, 2010.
115
Artigo 2º da Lei nº 12.318/2010: Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação
psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou
pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie
genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este.
uma forma resolutiva de conflitos, e que poderá minimizar seus efeitos, atuando de
forma preventiva116.
O Estudo de Caso que passaremos a apresentar decorre de um procedimento
de Mediação Familiar num contexto de Alienação Parental, no qual participou Pedro
(nome fictício), um adolescente de 14 anos, conjuntamente com os seus pais.
A partir da percepção do filho sobre os efeitos da participação em mediação,
pretendeu-se compreender quais as psicodinâmicas relacionais presentes na família
foram alteradas, e quais as consequências comunicacionais, emocionais e
comportamentais passaram a ser vivenciadas pelos progenitores e pelo filho
adolescente.
Desta forma, procuramos como objetivos específicos deste Estudo de Caso
identificar, através da percepção do filho, quais as variáveis pessoais, familiares e
contextuais-relacionais estavam associadas à Alienação Parental vivenciada, através
da análise da i. Dificuldade de Relacionamento com os pais após a ruptura conjugal
deles e; ii. Causas para dificuldade de Relacionamento com os pais.
Após a compreensão e análise dos aspectos relacionados à dinâmica familiar,
procuramos como objetivos específicos perceber quais os efeitos da Mediação
Familiar em relação à Alienação Parental vivenciada, através da análise da i.
Motivação para participar da Mediação; ii. Comunicação após a Mediação; iii.
Mudanças Emocionais nos pais após a Mediação; iv. Mudanças Emocionais no filho
após a Mediação e, v. Mudanças comportamentais em relação à Alienação Parental
vivenciada.
Essa participação ocorreu de forma voluntária e consentida pelos progenitores,
com o objetivo de compreender a importância dessa participação no processo de
Mediação Familiar, o qual foi analisado tendo por base as eventuais alterações em
variáveis pessoais, familiares e contextuais-relacionais que estavam associadas à
situação de Alienação Parental vivenciada.
Prévio à inclusão na Mediação Familiar, Pedro preencheu uma escala de
indicadores legais de alienação parental (www.escaladealienacaoparental.com) e foi
avaliado por uma equipe multidisciplinar no sentido de se ponderar também a
adequação da sua participação. Após a decisão de participação do jovem no

116
MOLINARI, F. Mediação de Conflitos e Alienação Parental: Fundamentos teóricos e práticos.
Porto Alegre: Editora Imprensa Livre, 2016.
procedimento de mediação, as sessões ocorreram em novembro de 2014 na sede do
Instituto de Psicologia Prof. Jorge Trindade, na cidade de Porto Alegre/Brasil. O
procedimento conduzido pela mediadora Fernanda Molinari teve um total de dez
sessões de mediação, sendo uma sessão individual com cada progenitor, uma sessão
individual com o filho adolescente, cinco sessões em conjunto somente com os
progenitores e duas sessões em conjunto com o filho e seus pais (cf. Molinari,
2016 117 ). Ao término do procedimento de mediação, Pedro foi convidado para
responder um questionário semiestruturado composto por questões fechadas
relacionadas com os dados sociofamiliares e questões abertas relativas ao tema em
estudo, que era a Mediação Familiar em contextos que haviam a presença de
Alienação Parental.
Da análise aos dados realizada entre dezembro de 2014 e março de 2015
emergiu um a seguinte matriz de categorias (cf. Tabela 1).

Tabela 1. Categorias de análise do caso em estudo (Pedro)


CATEGORIAS SUBCATEGORIAS
Dificuldade de relacionamento com os Comportamento egocentrado dos pais
pais após a separação conjugal deles Dificuldade de comunicação
Conflitos de lealdade
Causas para dificuldade de
Consequências psicoemocionais após a
relacionamento com os pais
separação conjugal dos pais
Necessidade de se sentir compreendido
Motivação para mediação
Possibilidade de diálogo
Comunicação após a mediação Mudança no foco da comunicação
Mudanças emocionais nos pais após a Sentimento de respeito e colaboração
mediação Sentimento de tranquilidade
Mudanças emocionais no filho após a Sentimento de pertença
mediação Sentimento de ser compreendido
Mudanças comportamentais em relação Convivência com ambos os pais
à alienação parental vivenciada Cumprimento do acordo

Em termos de resultados da pesquisa e na impossibilidade de explorar todas as


categorias apresentadas, expomos os obtidos quanto às categorias motivação para
mediação e mudanças comportamentais em relação à Alienação Parental vivenciada,
com vista a revelar com base no discurso do Pedro as principais mudanças ocorridas
com a possibilidade de ter participado no processo de mediação familiar.

117
MOLINARI, F. Mediação de Conflitos e Alienação Parental: Fundamentos teóricos e práticos.
Porto Alegre: Editora Imprensa Livre, 2016.
Em termos da motivação para Mediação, as respostas de Pedro apontaram para
a necessidade de se sentir compreendido pelos pais e a possiblidade de diálogo.
A subcategoria Necessidade de se sentir compreendido pelos pais identificou
como motivo para participar da mediação o desejo que Pedro tinha de também querer
falar, para que os pais pudessem compreender o que ele estava sentido.

“(...) Eu também queria falar, e tinha receio de falar com eles, porque não
queria decepcioná-los, mas também queria que eles soubessem o que eu
estava sentindo”.
Através da subcategoria Possibilidade de Diálogo foi possível identificar o
desejo que Pedro tinha de falar com os pais, referindo que não conseguiam conversar
há anos, sendo um alívio ter participado da Mediação.

“(...) Queria conseguir falar com eles, todos juntos, o que não conseguíamos
fazer há anos (...) Foi um alívio eu ter participado com eles”.

Quanto às mudanças comportamentais em relação à Alienação Parental


vivenciada, as respostas de Pedro apontaram para a possibilidade de convivência com
ambos os pais e o cumprimento do acordo celebrado entre eles.
A subcategoria Convivência com ambos os pais identificou que Pedro passou
a conviver com ambos os progenitores, tendo como reflexo uma redução no Conflito
de Lealdade, pois sentiu não estar mais no meio dos pais.

“(...) Agora convivo com os dois, embora esteja morando com o meu pai, mas
vou seguido estar com a minha mãe, e não me sinto mais no meio deles. Eles
estão conversando mais comigo”.
Por fim, através da subcategoria Cumprimento do Acordo, foi possível
identificar ser importante para Pedro ver que os pais estão conseguindo cumprir o que
acordaram em Mediação, se sentindo participante destas combinações, na medida que
através da sua participação seus desejos e necessidade foram ouvidos, respeitados e
validados pelos pais.

“(...) Tem sido importante pra mim ver que o que eles combinaram estão
conseguindo cumprir. De alguma forma participei das combinações deles, e é
bom sentir que está dando certo.
Neste aspecto, através dos resultados obtidos com a participação de Pedro, em
conjunto com os pais, em contexto de Mediação Familiar, é possível identificar uma
mudança comportamental em relação a Alienação Parental, pois Pedro passou a
conviver com ambos os progenitores, tendo sido fortalecidos os vínculos parentais,
refletindo no adequado cumprimento do acordo que foi firmado entre eles em
Mediação.

Considerações Finais
A Mediação de Conflitos insere-se numa orientação que favorece a
comunicação, a responsabilidade e o empoderamento dos envolvidos para a solução
do conflito, visando uma mudança cultural no que diz respeito ao poder conferido aos
mediandos de tomarem as suas próprias decisões, ao invés de solicitar a um terceiro
que decida por eles, evitando, desta forma, a escalada dos desentendimentos,
conferindo uma linguagem ternária, onde temos a utilização da conjunção ”e” ao
invés da “ou”, determinante da linguagem binária, ou excludente118.
A Mediação de Conflitos como Política Pública, contempla o paradigma
proposto pela Resolução 125 do CNJ, e acarretou significativas mudanças
legislativas, através da Lei da Mediação e do novo Código de Processo Civil,
disseminando a cultura da pacificação social. Desta forma, possibilita que os
mediandos resolvam seus conflitos partindo para uma perspectiva autocompositiva,
em que passam a serem os protagonistas das suas próprias histórias. Neste contato
com o outro, através da mediação, mudam os mediandos, mudam suas formas de
pensar e sentir o conflito e mudam as circunstâncias, onde os conflitos de interesse
não se suprimem, mas se compõem.
A mudança de paradigma cultural de resolução de conflitos requer um olhar
que vai para além de buscar compreender os resultados a que a mediação se propõe, e
a filosofia de pacificação que permeia toda a sua essência. Para compreendermos esse
paradigma de mudanças, e como hoje ele é uma realidade no âmbito judiciário, temos
que caminhar dentro de um cenário novo, que se baseia numa lógica não excludente,
mas colaborativa e ganha-ganha119.
Conforme os resultados do Estudo de Caso que apresentamos, os mediandos
conseguiram resolver seus conflitos de forma construtiva, privilegiando o diálogo, a
manutenção dos vínculos e uma cultura de paz, num movimento de múltiplas vozes,
118
MARODIN, M., & MOLINARI, F. A relevância do advogado como agente transformador para uma
cultura de Pacificação Social. In M. Marodin, & F. Molinari (Org.), Mediação de Conflitos:
Paradigmas Contemporâneos e Fundamentos para a Prática (pp. 47-69). Porto Alegre: Editora
Imprensa Livre, 2016.
119
MARODIN, M., & MOLINARI, F. A relevância do advogado como agente transformador para uma
cultura de Pacificação Social. In M. Marodin, & F. Molinari (Org.), Mediação de Conflitos:
Paradigmas Contemporâneos e Fundamentos para a Prática (pp. 47-69). Porto Alegre: IBDFAM/RS,
2014.
do encontro, em que o filho também sentiu e participou na construção destas
mudanças, alterando-se os contextos relacionais advindos da separação conjugal para
uma realidade harmoniosa de manutenção dos vínculos parentais, cumprindo-se, neste
aspecto, uma das essências da Mediação Familiar120.
A mediação, ao propor um contexto de cultura do diálogo, e uma solução de
benefício mútuo, firma-se na própria responsabilidade dos envolvidos em tomar
decisões sobre as suas vidas, num movimento construtivo e prospectivo de futuro.
Neste aspecto, o resultado da pesquisa que apresentamos apontou para mudanças
emocionais e comportamentais, onde reafirmamos as ideias centrais presentes neste
texto, em que os mediandos são co-construtores de suas histórias, e os principais
responsáveis por darem sentido a ela.

Referências

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da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2013.
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do Brasil, Brasília, DF, 26 de junho de 2015. Disponível em:
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120
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Habitus, 2001.
O ADVOGADO E O MEDIADOR: UM
DIÁLOGO NECESSÁRIO PARA
CONSTRUÇÃO E DESENVOLVIMENTO
DO SISTEMA “MULTIPORTAS” OU
GESTÃO ADEQUADA DE CONFLITOS

Paulo D’Oliveira121

Introdução
O sentido do texto é repercutir a prática da Mediação como abordagem
adequada aos conflitos, em contributo a uma reflexão a partir do entendimento das
distintas funções desempenhadas pelas personagens que participam da lide tradicional
e que podem estar nela (a Mediação) envolvidos de alguma forma, como por exemplo
e por ordem alfabética: advogado, autor, juiz, perito, promotor de justiça, réu e
servidores do judiciário. Atentando-se para a prática da sessão de Mediação e para as
personagens que podem nela estar envolvidas em sua realização ou contexto, releva
anotar o local e o papel do mediador, e considerar a participação do advogado como
representante da parte/mediando e detentor da utilidade extrínseca à Mediação: o jus
postulandi. Para isto, o texto aborda dois conceitos tão distintos quanto intimamente
ligados: lide e conflito.

1. A lide e as suas personagens


Ao experimentar alguma pretensão resistida, como por exemplo, a de conviver
com filho, a de receber auxílio financeiro, a de partilhar bens, a de se separar, a de
receber uma indenização, a de tomar posse sobre um bem, ou posse em um cargo
público, dentre outras, via de regra, a pessoa insatisfeita, compreendendo que pode
estar sendo prejudicada, busca o advogado da sua livre escolha e confiança para o
ingresso de uma ação judicial. Se busca, assim, a satisfação da pretensão do sujeito
através de interpretação jurídica e, como resultado desta, o enquadramento do caso no
direito como causa a ser pleiteada perante o judiciário. Resulta a ação judicial como
cultura vigente.

121
Mestre em Direito. Doutorando. Advogado de Família. Mediador.
Em relações familiares ou nas relações de natureza próximas a estas – onde
exista convívio, afeto ou intimidade e que devam permanecer para além da lide
imposta por circunstâncias ou contextos que fogem à vontade do sujeito, e se há uma
inquietação subjetiva, algo que incomoda o sujeito internamente, e em havendo
sensibilidade para tanto, a pessoa pode buscar realizar tratamento com profissional
das áreas de psiquiatria, psicologia ou psicanálise. Neste sentido, haverá um
reconhecer das inquietações, sua descrição e um tratamento no âmbito subjetivo,
operando-se terapia.
Ambos os caminhos, a ação judicial ou a terapia, são legítimos. Podem ser
trilhados de forma concomitante. Buscam, precipuamente, abordar o sofrimento
trazido pelo conflito surgido no sentido de minorá-lo e, quiçá, demovê-lo ou resolvê-
lo.
Interessa aqui um olhar sobre a busca pelo caminho jurídico, por assim dizer.
Nos concentraremos no exercício da tradicional função do advogado que é a de
inaugurar a lide. A lide se origina pelo ajuizamento de uma ação judicial. Em síntese
bem apertada: por meio de pedido formulado pelo advogado, chamado de petição
inicial, onde estará reduzida a termo, pelo próprio advogado, a narrativa de um outro
sujeito sobre os fatos e a sua pretensão resistida, a qual recebe o enquadramento
jurídico (legal e jurisprudencial) de forma que ela própria (a narrativa) seja o
embasamento e consectário lógico daquele pedido substanciado no direito, para que a
pretensão do sujeito possa ser satisfeita por decisão de um terceiro: o juiz
(sentença)122.
Recebido o pedido pelo juiz, segue-se o ato de citação – noticiar a outra parte
para se manifestar sobre este pedido inicial que foi consequência de uma pretensão
resistida. Tendo ocorrido a ciência da outra parte, na forma da lei processual, haverá a
formação da chamada relação jurídica processual que é tripartite, pois participam dela
o juiz, o autor e o réu. Estes autor e réu, cada um, representado por advogado, que é o
profissional detentor do jus postulandi, vale dizer, prerrogativa da profissão com uma
característica de utilidade extrínseca à Mediação: a possibilidade, quando houver
necessidade, de pedir ao Estado-Juiz em nome de outrem123.

122
A chamada heterocomposição para o conflito, em que um terceiro decide pelas pessoas.
123
Artigo 103 do Código de Processo Civil. Existem exceções ao jus postulandi como prerrogativa da
advocacia: as ações perante os Juizados Especiais Cíveis até o valor de vinte salários mínimos, Habeas
Corpus, Ação Penal Pública incondicionada.
Durante o transcurso do processo judicial (tramitação processual), que se
constitui da realização concatenada, em espaço que deve ser razoável de tempo, de
inúmeros atos prescritos e públicos, como por exemplos, a distribuição do pedido para
um juízo (vara judicial), a expedição do mandado de citação, a defesa/contestação, as
certidões, os termos, os demais mandados expedidos, a produção de provas, de
diligências, etc., os quais, todos, rendem eficácia ao princípio constitucional do
devido processo legal, bem como às demais garantias, notadamente, e dentre outras, a
do contraditório e a da ampla defesa124.
O juiz é a personagem a quem incumbe presidir este processo, ele é quem
recebe os argumentos, é o destinatário da produção das provas, ele é quem interpreta a
lei ao caso concreto para pronunciar um julgamento (sentença). Este julgamento terá a
qualidade de ser imparcial e eficaz no sentido de terminar a lide (processo). Na lide
penal, na que trata das relações familiares ou que envolva crianças e adolescentes, se
faz necessário a participação de outra personagem: o Ministério Público que atuará,
respectivamente, como dominus litis (autor da ação penal) ou como custus legis
(fiscal da lei)125.
Também, nesse processo judicial, há outras participações além das
personagens referidas - juiz, promotor, partes e advogados -, e não menos importantes
como se verifica na prática (notadamente em relação ao tempo de duração do
processo judicial). São inúmeros os servidores do judiciário que contribuirão para
buscar a resolução da lide: escrivão, contador, perito, assistente técnico, oficial de
justiça, auxiliares, estagiários etc.
Não raras vezes, pelo longo tempo de tramitação de um processo judicial,
mais de um juiz poderá atuar nele de forma sucessiva126. Assim, para e durante a
tramitação de processo judicial, muitos colaboradores atuam, e, importante anotar,
sem necessariamente haver, por parte destes colaboradores, um envolvimento pessoal
necessário no sentido da proximidade àqueles que estão experimentando a lide.
Mesmo que possa haver esta intenção de algum envolvimento pessoal por parte do

124
O princípio do contraditório e da ampla defesa são garantias constitucionais que determinam sejam
todos os atos praticados no processo de conhecimento das partes e submetidos à manifestação delas.
Pode ser resumido à necessidade de informação dos atos processuais às partes e à possibilidade de
reação pelas partes.
125
Artigo 178 do Código de Processo Civil.
126
Poderá o juiz se submeter a remoção, merecer uma promoção, entrar em aposentadoria, estar em
licença de saúde, em gozo de férias etc.
colaborador, o sistema legal dá conta de o impedir – há que se seguir a lei
procedimental.
Ora, as relações pessoais influem diretamente, positiva ou negativamente, nas
organizações e nas suas administrações. É o que se verifica pelos estudos na área
própria da ciência da administração (Recursos Humanos). Quanto maior o número de
intervenções em distintos níveis hierárquicos, maior a complexidade para que se
consiga atingir a finalidade da organização. Este é um dado necessário para se
considerar nessa reflexão, embora tema de outra área do saber. E o Poder Judiciário
não foge a essa circunstância127.
Em 2015 houve a promulgação das leis n°13.105 e n°13.140, respectivamente
o novo Código de Processo Civil e a Lei da Mediação, trazendo “nova onda” ao
sistema processual brasileiro e a forma como a sociedade poderá, daqui para o futuro,
abordar os conflitos128. Basicamente trouxe ao Estado a incumbência de incentivar a
busca da solução consensual dos conflitos. Embora inaugurando conceitos, estas
personagens já referidas e suas funções não se modificaram em relação ao atual
processo judicial, ou seja, permanecem tratando da lide129. Assim permanecendo este
caminho à abordagem da insatisfação de alguém que se compreende estar com uma
pretensão resistida, a tendência é resistir a cultura da lide. Afinal, desde a última
reforma do anterior Código de Processo Civil se vão vinte anos; e quarenta e dois
anos de vigência até a sua revogação. Entretanto, há estudos e material suficientes
para uma nova reflexão e para que não se construam óbice ou postura refratária a esta
outra abordagem inaugurada e possível alternativamente à lide: a gestão do conflito130.

127
Pesquisa realizada pela USP por encomenda do CNJ demonstra, por exemplo, um excessivo número
de andamentos burocráticos, cujo detalhamento precisa ser mais explorado, no intuito de se verificar a
real necessidade de sua existência. A aplicação das técnicas de process mining (mineração de
processos) aos andamentos processuais revelou que os andamentos não demonstram uniformidade,
comprovando com dados o que os operadores do Direito conhecem na prática: cada caso é um caso.
Título da pesquisa Mediação e Conciliação Avaliadas Empiricamente, Jurimetria para proposição de
ações eficientes (http://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-pesquisa/publicacoes). Acesso
28/08/2019.
128
Parágrafos 1°, 2° e 3° do artigo 2° do Código de Processo Civil.
129
ALEGRETTI, Carlos A. Mediação: Uma Visão Pós-Moderna do Conflito. In DORNELLES,
Ricardo Cesar Correa Pires e GROSSI, Herta (org.) Reflexões sobre Mediação. Porto Alegre:
OAB/RS, 2018. p. 211.
130
Ibidem, p. 210.
Em muitos países, como por exemplo nos Estados Unidos, uma cultura reconhecida;
aqui, ainda uma potencialidade131.
Necessário se fazer, portanto, uma crítica construtiva sobre esta abordagem
tradicional que produz a lide, originada pela instauração do processo judicial e, por
que não, originada pela própria formação dos operadores do Direito. Uma vez
emoldurada pela interpretação jurídica, a lide torna-se, pelas personagens, perene e
ancorada a partir de algum lugar no passado que é exatamente a data da narrativa do
fato ou do ato (contado) ao advogado e/ou na data do ajuizamento da ação
(distribuição do pedido ao juiz).
Ela terá o tempo de duração vinculado ao tempo da tramitação do processo
judicial, vale dizer, até a sentença final transitada em julgado (depois de vencidos
inúmeros recursos disponíveis no sistema processual). A média de tramitação de um
processo no Brasil é atualmente de oito anos132.

2. O conflito e as suas personagens


A lide tem conotação negativa. Difícil escapar-se desta afirmação. Em que
pese todo o zelo e responsabilidade, toda a valorosa contribuição das inúmeras
personagens referidas, a colaboração na ambiência da lide ocorre, forçosamente pelo
contexto organizacional, de forma abstraída ao necessário envolvimento pessoal sobre
o caso concreto levado ao juiz. A colaboração ocorrerá abstraída do contexto de
princípio – meio – fim. A lide marca o progressivo afastamento das personagens
principais (protagonistas) entre si (pessoas em conflito – autor e réu) que permanecem
em suas posições em vigília na espera da decisão do terceiro (sentença). Escorre pelas
mãos como água a possibilidade da comunicação eficaz. Elas se manifestam nos autos
do processo por intermédio e pelos termos dos advogados. Esta situação acarreta a
ritualização e padronização na comunicação, levando a impossibilidade de se tratar os
interesses atuais, que são dinâmicos. Ademais, há irrazoável tempo de duração da lide
e custos elevados (pessoais e financeiros).

131
Esta constatação vem ao encontro do reconhecimento ao trabalho de construção, desenvolvimento e
divulgação da Mediação no Brasil desde a década de 80 por inúmeros profissionais mediadores,
preocupados sobremodo com preservação da qualidade.
132
CNJ – Relatório Justiça em Números (http://www.cnj.jus.br/pesquisas-
judiciarias/justicaemnumeros/2016-10-21-13-13-04/pj-justica-em-numeros). Acesso 28/08/2019.
Para esclarecer ainda mais esta ideia, há uma história sobre duas irmãs que
disputavam uma laranja 133 . Na esteira da reflexão acima, a instauração da lide
resultaria em atribuir a um terceiro a decisão sobre qual das irmãs teria o direito à
fruta. Teria direito a fruta a mais velha? A que colheu a fruta? A que chora mais? O
juiz decidiria, por hipótese, que, de acordo com as narrativas lançadas, as provas
produzidas e a interpretação do sistema jurídico sobre o fato, a laranja deva ser
dividida pela metade (ideal de justiça); ou que a laranja deva ser entregue para a irmã
que a coletou etc.
A outra abordagem poderia ser pela gestão do conflito existente entre as duas
irmãs, e, nesta hipótese, poderá apresentar, sim, conotação positiva. Esta lente
específica sobre o problema da disputa da laranja, buscando focar o conflito,
possibilita enxergá-lo e significá-lo de modo mais abrangente, e a imagem do iceberg
serve bem à amostragem da distinção que se pretende estabelecer entre a lide e o
conflito. O que se consegue ver do iceberg é exatamente o que está acima do nível
d’água (a lide); o que se poderia enxergar dele com outro olhar (ou método), porque
submerso, seria o conflito existente com suas características peculiares. Daí por que
se necessita da gestão. E esta gestão se inicia exatamente na intenção e intensidade da
abordagem no plano de envolvimento humano das e entre as personagens que
contribuirão para o desenvolvimento do conflito134 – a empatia, antes e para além do
exercício de determinado ofício. Esta abordagem considera e valida, além das
posições (pretensão resistida), outras áreas fundamentais, como as necessidades, os
interesses e os sentimentos, que invariavelmente são dinâmicas, mutáveis diante de
circunstâncias, contextos, pessoas envolvidas.
Então, voltando-se ao exemplo da disputa entre as irmãs pela laranja, esta
abordagem do conflito resultaria em se poder pesquisar os motivos subjacentes com
incentivo ao protagonismo das próprias irmãs. Teriam elas, assim, a oportunidade de
poderem descobrir, por hipótese, que uma delas pretendia a fruta para fazer suco e
matar a sede; a outra, a casca e o bagaço da fruta como matéria prima para fazer um
bolo. Esta abordagem passa pela metodologia da Mediação que busca enxergar o
conflito em sua inteireza e como fenômeno comum que se produz pela própria
natureza humana (o errar).

133
URY, William e FISCHER, Roger. Como Chegar ao Sim: A Negociação de Acordos sem
Concessões.
134
O conflito, sim, se desenvolve. Pode se desenvolver no sentido do seu crescimento, pode se
desenvolver no sentido de uma solução ou transformação.
A Mediação que aborda o conflito é metodologia desenvolvida desde a década
de 50, foi admitida “ontem” pela lei brasileira e exige, para a sua prática, do
mediador, com devida formação técnica, o reconhecimento dos próprios limites
pessoais, o aprimoramento constante (em permanente supervisão), os cuidados da
regulação para o exercício da função e a divulgação para, talvez o maior desafio, que
é a mudança de cultura da lide.
As personagens desta abordagem são, claro, o mediador e os mediandos, esta
denominação que se dá às partes – autor e réu da lide. De todas as outras personagens
retro referidas envolvidas na lide, as que poderão contribuir aqui são o advogado e o
perito. O Advogado acompanhando seu cliente no sentido de proporcionar orientação
e, fundamentalmente, segurança jurídica para a construção e formatação de eventual
entendimento. Este é papel distinto daquele desempenhado pelo mediador, mas que se
assemelha pela circunstância de ser função coadjuvante. O sentido é facilitar para os
mediandos uma comunicação direta e eficaz. Jamais substituem a responsabilidade
dos mediandos que exatamente é a de buscarem o melhor para si. A escuta é
concentrada nestes, nas suas narrativas, nos seus interesses subjacentes, pretéritos e
atuais, nos seus sentimentos. São eles quem devem decidir conjuntamente o caminho
a seguir em como resolverem as pretensões. Esta metodologia faz com que as pessoas
envolvidas no conflito possam desenvolver capacidades de se compreenderem juntos
na construção da melhor decisão para eles.
Poderá exercer o papel de mediador privado (extrajudicial), nos dizeres da lei -
e impropriamente em nosso sentir, por que separou o procedimento de mediação em
judicial e privada (ou extrajudicial) -, qualquer pessoa capaz (no sentido a lei) que
tenha a confiança das partes e que seja capacitada (curso), independentemente de
integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe ou associação, ou nele
inscrever-se. E poderá atuar como mediador judicial a pessoa capaz (no sentido da
lei), graduada há pelo menos dois anos em curso de ensino superior de instituição
reconhecida pelo Ministério da Educação e que tenha obtido capacitação em escola ou
instituição de formação de mediadores, reconhecida pela Escola Nacional de
Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM ou pelos tribunais,
observados os requisitos mínimos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça
em conjunto com o Ministério da Justiça.
O mediador privado (extrajudicial) pode ser qualquer pessoa capaz (no sentido
civil), com capacitação em curso sem regramento sobre grade curricular ou carga
horária, sem necessidade de integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe ou
associação, ainda assim deve ser da confiança das partes em conflito. Já o mediador
judicial, por sua vez, deve ser pessoa capaz (sem o designativo “qualquer”), formada
em curso superior em nível de graduação há pelo menos dois anos (presunção de
maior qualificação) e capacitado em escola ou instituição de formação de mediadores
reconhecidas pelo ENFAM (presunção de maior qualificação ainda). E, pelo que se
depreende, a confiança seria um dado presumido ao mediador judicial, porque
integrante de CEJUSC. Não há necessidade de ser escolhido pelas partes. Esta
discrepância convida à reflexão para o crescimento da mediação no Brasil.
Este tratamento dicotômico dado pela lei a mediadores, em que pese ela ter
trazido avanço inestimável ao inaugurar alternativa à lide como única abordagem até
então oferecida às partes em conflito, é inadequado sob a ótica do crescimento e
desenvolvimento da própria Mediação no país, que deve manter qualidade, princípios
e natureza onde quer que seja realizada. A formação de mediadores está sendo
realizada através de cursos de capacitação e em pleno e crescente desenvolvimento no
Brasil, com surgimento de entidades reguladoras, de diferentes modelos; que, por
necessária rapidez para absorção da demanda, notadamente no âmbito do judiciário,
pode acarretar à Mediação prejuízo pelo risco de ser confundida como etapa do
processo judicial, ou como metodologias holísticas, filosofia, religião ou estilo de
vida, ou uma plêiade de “futuras novidades”. Deve-se repercutir, neste passo, os
princípios norteadores da função do mediador em sua específica atuação.
Por ocasião do II Congresso Internacional de Mediação da OAB-RS realizado
em Porto Alegre em junho 2018, Maria Nazareth Serpa e Paul Eric Mason referem
sobre o momento da mediação no país. Entendendo que o contexto trouxe muita
improvisação, afirmam que o evento serviu como “precioso instante de reflexão e
conscientização do tratamento a ser dado ao curso da Mediação no Brasil para um
novo lançamento de redes e uma pesca mais rica”. Adiante adverte que “ao longo dos
últimos anos foi temperada a gostos exclusivos, mas chama hoje pela volta de seu
único principado” 135.

3. Princípios da Mediação e o papel do mediador

135
SERPA, Maria de Nazareth, MASON, Paul Eric. Entraves na Realidade da Mediação. In
DORNELLES, Ricardo Cesar Correa Pires e GROSSI, Herta (org.) Reflexões sobre Mediação. Porto
Alegre: OAB/RS, 2018. p. 161.
Sobre a Mediação, o ensinamento de Nazareth e Mason: “A despeito da
reticência da Lei em definir propriamente a Mediação e sem adentrar na discussão
acadêmica se Mediação é um contrato, prestação de serviço, instituição, mandato,
comissão, filosofia ou técnica, somente atentando para sua estrutura conceitual,
consideramos nesta abordagem a Mediação como um processo”; assim “princípios
foram criteriosamente selecionados para serem usados numa receita simples: num
processo judicioso (justiça quase perfeita) junta-se pessoas (mediandos) revestidos de
total poder para negociar e decidir como únicos protagonistas de qualquer tipo de
conflito ou disputa, com um processador terceiro interventor neutro (mediador)”136.
Nenhuma estrutura prévia procedimental, como dito. A Mediação é assentada
somente sobre princípios e “sua teoria desenvolve-se orientada por linhas de proteção
claras e diferentes de todas as diretrizes de outros processos resolutivos de
conflitos”137. Estes nortes são a flexibilidade, que significa a direção do procedimento
pelo acompanhamento das necessidades de comunicação contidas no próprio conflito
abordado; a informalidade, ou seja, “sem símbolos, toga de império da lei e
julgamento ou beca de compromisso com o direito. Sem gravata ou com gravata, sem
rituais a Mediação dirige seu holofote ao conflito no seio da interlocução dos
mediandos”138; confidencialidade, “princípio instrumental mantenedor da segurança,
embasa outro que é a privacidade do conteúdo fático da relação sujeito-conflito”139;
voluntariedade que é o princípio que abarca todos os anteriores – se a parte não quer
participar, fica a opção de sair do procedimento a qualquer momento (o que não
ocorre no processo judicial sem prejuízos).
“Mas os princípios que realmente imprimem um cenário e uma ação
totalmente diferente no universo resolutivo de conflitos são, a autodeterminação das
partes, erroneamente pontuado na Lei de Mediação como autonomia da vontade, e o
princípio da neutralidade do mediador. Autonomia da vontade produz leis no âmbito
contratual e Mediação produz resolução de conflito no ciclo das relações humanas.
[...] Estes princípios surpreendem e contrariam todos os ditames até então conhecidos
e sua compreensão tem impingido grandes dificuldades na apresentação e execução
do processo de Mediação nos seus conforme essenciais”140.

136
SERPA, Maria de Nazareth, MASON, Paul Eric. Op. cit., p. 164.
137
Ibidem.
138
Ibidem.
139
SERPA, Maria de Nazareth, MASON, Paul Eric. Op. cit., p. 165.
140
Ibidem.
O princípio da autodeterminação dos mediandos determina que a Mediação
“começa, desenvolve-se e finaliza-se respeitando a capacidade física, intelectual,
psicológica e através da vontade e determinação decisória dos entes em conflito. São
eles que alavancam momento, forma, tom ou toada do processo. Não se submetem
nem municiam nenhuma autoridade dentro do processo” 141 . O princípio da
neutralidade do mediador, comumente confundido com o da imparcialidade (comum
também ao processo adversarial) que significa evitar de todas as formas imprimir
preferências a alguém envolvido no conflito, determina que o interesse, opinião
técnica, jurídica ou moral do mediador não deve interferir no mérito da disputa.
Originalmente, a Mediação é um procedimento não adversarial a serviço da
satisfação de interesses particulares, célere em comparação ao processo judicial, com
o controle das partes envolvidas, mais econômico, com possibilidade plena de
expressão e envolvimento das pessoas e mais próximo do que é justo para cada um, já
que busca os interesses “submersos”. Sem interpretação imposta ou arcabouço
procedimental prévio e estanque, sem discriminação de áreas de conflitos e
dependente de aceitação prévia (voluntariedade). Acessível a toda a sociedade.
A administração/coordenação/condução do procedimento da Mediação está
sob a responsabilidade do mediador, abrange a sua função, consciente daqueles
princípios norteadores. E esta parcela da função do mediador também se estabelece
em relação ao advogado participante, com perfil renovado de gestor de conflito pelo
acompanhamento do cliente/mediando, que deve observá-la e respeitá-la. Busca-se
possibilitar aos mediandos, também aos advogados, a instrução e garantia de
observância do princípio da autodeterminação.
Extensa e profunda função para que se estabeleça o protagonismo dos
mediandos no sentido de se autodeterminarem durante todo o procedimento, no
sentido da geração (construção) de opções à tomada de decisões informadas. Sem a
garantia deste princípio, poderá haver tudo, menos mediação. Por conta disto e da
referida característica de utilidade extrínseca da função do advogado na Mediação,
deverá o mediador ter interlocução próxima com esse profissional e resgatar a sua
confiança na sessão e, quando observar desigualdade de informação jurídica em
relação a outra parte desacompanhada de advogado, buscar sanar o desequilíbrio
dentro do procedimento, no que deverá ter capacidade suficiente para esta gestão.

141
Ibidem.
4. A mediação no contexto do judiciário
Importa interpretar os dispositivos que referem sobre Mediação no Código de
Processo Civil vigente (Lei 13.105/15) a luz do princípio da boa-fé processual
(lealdade e cooperação) 142 . Incluída que foi somente a partir da referida lei, a
Mediação, a par de incentivar a busca da comunicação e do consenso para dirimir os
conflitos, surge no âmbito do judiciário (da lide) precipuamente para enfrentar a crise
do próprio judiciário pelos inúmeros e incessantes processos judiciais.
A partir de então, ao juiz a lei impõe a obrigação de designar audiência de
Conciliação ou de Mediação, ao despachar a inicial apta, sem pedido de tutela de
urgência ou tendo tal pedido já sido indeferido143. Clara a importância que se atribui a
Mediação para que as partes na lide (autor e réu) tenham a oportunidade para
experimentar a retomada da comunicação eficaz e possam construir em conjunto e de
comum acordo - voluntariamente portanto -, com auxílio de um terceiro (mediador),
alternativa de abordagem ao conflito existente. Inexiste delegação para a tomada das
decisões necessárias.
Os benefícios desta metodologia ainda são incompreendidos pela maioria da
população, incluindo aí as próprias personagens da lide e advogados no âmbito do
foro. A cultura da delegação da decisão para solução dos problemas gradativamente
deve perder terreno. Esta cultura tomou corpo a partir do acesso facilitado ao
judiciário, notadamente em 1988 com o advento da chamada Constituição cidadã.
Sendo esta absorção da Mediação no âmbito do judiciário um regramento
recentíssimo, e ainda em processo de implantação na prática forense, se traduz num
caminho razoável a se trilhar com o objetivo de se encontrar solução à inúmera e
crescente litigiosidade social que adentra o judiciário144.
A obrigação ao juiz para que designe Sessão de Mediação (incorretamente
designada pela lei de audiência), acarretará a realização de Mediação judicial, onde
poderá atuar somente o mediador judicial145. Ele é equiparado aos auxiliares da

142
Como bem ilustrado nos primeiros dispositivos do Código de Processo Civil: §§2° e 3° do art. 1°.
143
Art. 334 CPC.
144
Existem causas cuja natureza demandam serem julgadas pelos tribunais: causas coletivas, políticas
públicas, afirmação de princípios constitucionais em abstrato. In FISS, Owen. Um novo processo civil
– estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. Coordenação e tradução Carlos
Alberto de Salles; tradução Daniel Porto Godinho da Silva, Melina de Medeiros Rós. – São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004.
145
Existe previsão da criação do cargo público para o exercício da função de mediador judicial, o que
seria, nesse cenário, a situação ideal. O que dispõe o § 6° do art. 167 CPC.
Justiça, ao lado do perito por exemplo, e o mediador, como referido, é quem coordena
as Sessões de Mediação perante Centros Judiciários de Solução de Conflitos e
Cidadania (CEJUSC)146, em conformidade com o regulamento do tribunal respectivo
e observadas as normas do Conselho Nacional de Justiça. Registre-se que o juiz não
poderá valer-se de mediador privado (extrajudicial), pois este somente poderá atuar
por iniciativa e escolha das próprias partes (autor e réu da lide). É a previsão legal que
outorga liberdade às partes para que optem, prévia ou incidentalmente ao processo
judicial, pela Mediação privada (extrajudicial); e, portanto, plena liberdade para que
escolham, optem, de comum acordo, por mediador ou câmara privada de mediação,
que podem ou não constar do cadastro no tribunal147.
E somente se passar in albis este prazo legal148 para que as partes optem pela
Mediação privada da confiança, ou, se neste prazo, as partes manifestarem pelo
prosseguimento do processo judicial, o juiz determinará, em seguimento da
tramitação, a distribuição do caso para o CEJUSC, a partir de sua acuidade e
critério149. Ao juiz incumbe fornecer a informação às partes sobre o inteiro teor do
artigo 168 do Código de Processo Civil. E, para além disto, também convém que
assine prazo razoável para que as partes possam exercer essa liberdade de opção.
A lei não excluiu, e nem poderia fazê-lo, essa possibilidade de ser alcançada a
via da abordagem adequada dos conflitos através de Mediação privada, por
profissionais mediadores autônomos, conforme lei específica que trata da matéria150.
Daí se vislumbra a razoabilidade daquela previsão processual, como requisito da
petição inicial, de manifestação do autor sobre a opção em se submeter, ou não, à
audiência de Mediação judicial151.

5. O papel do advogado também na Mediação


Dentro da cultura da lide, a avaliação acerca da possibilidade da gestão do
conflito, seja pela evitação, pela via da autocomposição ou da heterocomposição,
comumente ocorre por intermédio do advogado, com perfil revigorado, como

146
Segundo relatório CNJ Justiça em números, em 2015 a Justiça Estadual passou de 362 para 649
CEJUSCs, o que representa um aumento de 79%, e cerca de 24% dos centros estão localizados no
estado de São Paulo.
147
Art. 168 e 695 CPC.
148
Se o juiz não assinar prazo, será de 5 dias para esta manifestação. O que dispõe o §3° do Art. 218
CPC.
149
Que será aprazada dentro das possibilidades de pauta dos CEJUSC ou NUPEMEC.
150
Art. 9° da Lei 13.140/15.
151
Inciso VII do Art. 319 CPC.
profissional que recebe pessoas, físicas ou jurídicas, em conflito, escuta-as e está sob
permanente fiscalização por órgão de classe. O advogado pode encaminhar o conflito,
ou parte dele, ao procedimento de Mediação e acompanhá-la, ou mesmo buscar o
consenso negociado diretamente.
Insiste-se nesse ponto: para que isto aconteça, de forma a observar a lei dentro
da lide, e agora como regra processual, as partes devem receber a completa
informação sobre o teor do artigo 168 do Código de Processo Civil, para que tenham
ampla liberdade de refletirem e poderem optar em qualquer momento pela via da
Mediação. Para terem condições para escolherem o mediador ou câmara de sua
confiança, também como decisão informada. Além da completa informação acima
referida, devem receber prazo razoável para que, juntamente com o advogado,
busquem o mediador ou câmara na forma como melhor lhes aprouver, onde haverá
maior celeridade para o início das sessões, maior flexibilidade de agendas e, o mais
importante, maior respeito e confiança construídos.
Ao juiz não cabe indicar mediador ou câmara de mediação às partes, e sim
cumprir o disposto no artigo 334 do Código de Processo Civil, encaminhando os
autos do processo ao CEJUSC, caso as partes optarem por não escolher o mediador ou
câmara da confiança de comum acordo, ou após vencido o prazo para esta
manifestação.
A Resolução n° 02/2015 do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil, que, tratando do Código de Ética e Disciplina da Advocacia, na parte que trata
sobre os deveres do advogado, dentro dos Princípios Fundamentais e da Ética
profissional, revitaliza152 o inciso VI do parágrafo único do artigo 2°: é dever do
advogado a ação de estimular, a qualquer tempo, a conciliação e a mediação entre os
litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios. Significa dizer,
em outros termos, que a função do advogado resta potencializada, não apenas como
detentor do jus postulandi, mas, antes e acima disto, uma atividade da gestão de
conflitos. Importa considerar no contexto atual uma advocacia com perfil de gestão de
conflitos (multiportas), e não somente de atuação forense.
Diante deste novo papel e panorama, desafios e afazeres. Este contexto pode
trazer como resultado as hipóteses de ação judicial consensual, quando pela lei seja

152
Insere a Mediação ao lado da Conciliação.
necessária a homologação do juiz; vale dizer, ações em que as partes requerem, já na
petição inicial, a homologação do acordo estabelecido por entendimento anterior.
Como retro referido, a Mediação é processo judicioso e, como o nome
informa, nada tem com o judiciário.153 Afinal, a Mediação serve ao judiciário? Ou ao
conflito? O juiz permanece com função específica de jugar lides. Claro que o objetivo
de recrudescimento da litigiosidade e, por consequência, o do número de demandas
ingressante no judiciário deve ser almejado e incentivado, não só pelo judiciário,
também pelos advogados e, de resto, por toda a sociedade. Neste contexto, a
Mediação vem a calhar. Cuidado. Os envolvidos no conflito, e nesta condição com
improvável chance de discernimento, não devem ser incentivados a promoverem a
lide. Por outro lado, devem experienciar Mediação que serve ao conflito.
Por ser a atitude ética, o advogado deve buscar evitar, com todo o esforço e
competência, o processo judicial litigioso, o qual abordará a lide, e não o conflito. Isto
não significa impedir o acesso à Justiça 154 , apenas que esse acesso deve ser
resguardado às situações realmente necessárias. Deixando-se para à judicialização os
casos de necessidade de resguardo de garantias155 ou de recebimento de notícias de
crimes.
Alçado como função indispensável à administração da justiça pelo
mandamento constitucional156, a advocacia detém a prerrogativa da inviolabilidade por
seus atos e manifestações nos limites da lei de regência da atividade (Lei 8.906/94),
que dispõe serem atividades privativas do advogado a postulação a órgão do Poder
Judiciário e as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas. No âmbito da
Mediação, não há legislação específica que obrigue a participação do advogado,
muito menos que a proíba157. Estando o advogado exercendo seu mister na assessoria
jurídica de seu cliente, deverá acompanhá-lo na sessão de Mediação também. Ficará
ao critério do advogado em conjunto com o seu cliente esta decisão.

“A atuação dos advogados na sessão de Mediação, além de subsidiar os clientes


com informações jurídicas relevantes, pode ter duas utilidades adicionais, quais

153
Esta constatação não ilide o fato da imbricação de interesses entre a administração da crise no
judiciário e o desenvolvimento da Mediação.
154
Inciso XXXV do Art. 5º CF.
155
FISS, Owen. Um novo processo civil – estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e
sociedade. Coordenação e tradução Carlos Alberto de Salles; tradução Daniel Porto Godinho da Silva,
Melina de Medeiros Rós. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
156
Art. 133 CF.
157
Existe projeto de lei tramitando no Senado Federal que obriga a presença de advogados na Mediação
(PL5.511/2016).
sejam: (i) propiciar maior igualdade entre as partes na condução das negociações,
impedindo que o estilo de uma imponha decisões à outra, e (ii) avaliar a
viabilidade jurídica das propostas e do acordo que porventura seja obtido ao final
do procedimento, impedindo a constituição de obrigações inexequíveis”158.

Pode se acrescentar, ainda, três utilidades: verificar a qualidade do


procedimento de Mediação em relação as garantias e a segurança jurídica para a tutela
dos interesses de seu cliente; nos casos que tratam de direito de família, postular
eventual acordo perante o Poder Judiciário como sendo o único ator neste âmbito
detentor do referido Jus Postulandi; e, o que também se poderia considerar como
característica de utilidade extrínseca da participação do advogado no procedimento de
Mediação, estabelecer a confiança exigida na Mediação, como sendo o profissional
detentor rapport; portanto, a ele deve ser dirigida, por parte do mediador, todo o
acolhimento.

Considerações Finais
A Mediação como abordagem adequada aos conflitos, como caminho
alternativo ao processo judicial (lide), em face das recentes leis processual e especial
que a introduziram no sistema jurídico brasileiro, da tarefa de construção para sua
gradativa compreensão, desenvolvimento e prática que observe os seus princípios,
necessita da atuação de suas personagens em desejada harmonia e respeito às funções
que desempenham. Com foco às atitudes dos profissionais envolvidos que resultem
em benefício à saúde e às finanças das pessoas que estão experienciando o conflito.
Neste sentido, o envolvimento das personagens que irão contribuir para esta
abordagem adequada ao conflito é tanto melhor quando houver, por parte delas, a
leitura, escuta e compreensão sobre o todo do conflito, além do conhecimento dos
limites das funções desempenhadas. Traçando-se um paralelo: uma abordagem para o
atendimento na porta de um hospital leva em consideração protocolos internacionais
para que o encaminhamento do paciente seja adequado ao problema de saúde que
apresenta até o seu diagnóstico. Se todos fossem encaminhados ao bloco cirúrgico do
hospital sem esta real necessidade, tal ala ficaria lotada.
Aqueles realmente necessitados desse tratamento cirúrgico, pela demora em
abrir vaga, poderiam sofrer agravamento do seu quadro de saúde, ou morrer na
entrada do hospital. Este exemplo, com a opção pela vida, traz presumivelmente foco
158
ALMEIDA, Diogo A. Rezende de, PAIVA, Fernanda. A Dinâmica da Mediação. In ALMEIDA,
Tânia, PELAJO, Samantha, JONATHAN, Eva (org). Mediação de Conflitos – para iniciantes,
praticantes e docentes. p. 264.
e maior responsabilidade. A busca pelas melhores práticas dentro de um sistema
reclama permanente capacitação, experiência e cumprimento de protocolos para que
todas as personagens envolvidas possam oferecer melhor atendimento em benefício
aqueles que estão experienciando, por exemplo, um conflito.
Para a construção e desenvolvimento da chamada “multiportas” para
abordagem do conflito social 159 , vale dizer, protocolos que possam oferecer o
encaminhamento adequado às pessoas em conflitos, com possibilidade de ser
realizada análise e diagnóstico acurados, antes deve ser da conta das personagens que
possam abrir as portas para acolher estas pessoas no sentido de operarem em efetivo
benefício, vale dizer, oportunizando a gestão do conflito em observância da ética. E,
no particular, a interlocução entre mediador e advogado, em respeito às distintas
funções, é imperiosa.

Referências

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DORNELLES, Ricardo Cesar Correa Pires e GROSSI, Herta (org.) Reflexões sobre
Mediação. Porto Alegre: OAB/RS, 2018.
ALMEIDA, Diogo A. Rezende de, PAIVA, Fernanda. A Dinâmica da
Mediação. In ALMEIDA, Tânia, PELAJO, Samantha, JONATHAN, Eva (org).
Mediação de Conflitos – para iniciantes, praticantes e docentes.
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Familiar: Uma Estrutura para a Terapia Familiar. Tradução Maria Adriana Veríssimo
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FISS, Owen. Um novo processo civil – estudos norte-americanos sobre
jurisdição, constituição e sociedade. Coordenação e tradução Carlos Alberto de
Salles; tradução Daniel Porto Godinho da Silva, Melina de Medeiros Rós. – São
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GRISARD FILHO, Waldir. Guarda compartilhada: um novo modelo de
responsabilidade parental. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002.
GRUNSPUN, Haim. Mediação Familiar – O Mediador e a Separação de
Casais com Filhos. São Paulo: LTr, 2000.

159
Considera-se que à abordagem do conflito deve ser observado o protocolo chamado “multiportas”
desde a perspectiva de responsabilidade do profissional que incialmente é solicitado (advogado ou
mediador); antes mesmo de dever sê-lo nos tribunais.
HAINES, John M. e MARODIN, Marilene. Fundamentos da Mediação
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Pais e Mães Solteiros, de Pais e Mães Separados e dos Filhos na Ruptura da Vida
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fundamentos teóricos e práticos. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2016.
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uma Forma de Manutenção do Vínculo do Casal? In: ZIMERMAN, David;
MATHIAS, Carlos Antônio (Org.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. 3. ed.
Campinas: Millennium Editora, 2010.
(DES) ENCONTROS ENTRE O DIREITO E A
PSICOLOGIA: O CONTROLE DA PROVA
PERICIAL PSICOLÓGICA

Maria Cecília Butierres160

José Alcebíades de Oliveira Junior161

Introdução
A prova pericial psicológica está assumindo grande relevância no contexto
forense, constituindo, não raras vezes, o meio de prova determinante para a tomada de
decisão judicial. Nesse sentido, o objetivo do presente trabalho é abordar o controle
da prova pericial psicológica no âmbito do processo civil. Para tanto, divide-se em
duas partes.
Na primeira parte, trata-se da prova pericial na relação jurídica processual.
Examina-se a relação entre prova e verdade, através do questionamento se a prova
pericial pode ser um instrumento de busca da verdade quando sobre ela é exercido o
controle devido. Em seguida, trata-se da experiência norte-americana, através da
trilogia de decisões Frye-Daubert-Kumho, as quais se notabilizaram como um
paradigma de inspiração mundial no controle da prova pericial.
Na segunda parte, aborda-se os limites e as possibilidades do controle da
prova pericial psicológica, de acordo com suas particularidades. O novo Código de
Processo Civil trouxe inovações em relação à perícia e, suas diretrizes, pautam o
controle da prova pericial psicológica. Realiza-se um fechamento, através da
abordagem dos critérios de admissibilidade e de valoração da perícia psicológica, de
acordo com os parâmetros estabelecidos pelo novel Código.

160
Doutoranda em Direito pela UFRGS, sob orientação do Prof. Dr. José Alcebíades de Oliveira
Junior. Mestre em Direito pela UFRGS. Doutora em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS.
Estágio Pós-Doutoral em Psicologia Forense e do Testemunho pela UFP/Porto/Portugal. Especialista
em Psicologia Forense pelo IMED e Formada em Psicologia Forense pela SBPJ. Professora das
disciplinas Psicologia Aplicada ao Direito e Direito Penal I das Faculdades João Paulo II. E-mail:
ceciliabutierres@yahoo.com.br
161
Doutor em Direito pela UFSC. Estágio Pós-Doutoral pela Justus-Liebig-Universität
Giessen/Alemanha. Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela UFSC. Professor Titular convidado
do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRGS e professor contratado do Programa de Pós-
Graduação em Direito da URI/ Santo Ângelo. Pesquisador 1D do CNPq. E-mail:
alcebiadesjunior@terra.com.br
1. A Prova Pericial na Relação Jurídica Processual
A complexidade das relações sociais propicia a crescente incorporação, tanto
na legislação quanto nas decisões judiciais, de informações com caráter técnico-
científico. Nesse sentido, a repercussão de novas tecnologias tem suscitado novos
162
direitos como desafios contemporâneos , dentre os quais pode-se citar,
exemplificativamente, a questão da proteção de dados no direito da informática ou da
inteligência artificial na estrutura judiciária. Tal constatação não é diferente em
matérias relacionadas à articulação entre Direito e Psicologia, de forma que “assiste-
se cada vez com maior frequência à participação do psicólogo no cenário judiciário
em que se inclui a temática da prova pericial psicológica e sua cientificidade”. 163
A perícia técnica forense é um tipo de prova cuja principal função consiste em
oferecer ao processo esclarecimentos especializados acerca dos fatos em litígio, os
quais caracterizam-se, primeiramente, pelo status epistêmico da incerteza.164 Assim, o
sistema processual civil conferiu ao magistrado o poder de nomear peritos – dentre
eles, o psicólogo – cuja função consiste em produzir informações técnicas ou
científicas, em termos objetivos, independentes e imparciais, aptas a subsidiar a
tomada da decisão judicial.165
O objetivo da prova pericial pode ser compreendido através da perspectiva da
verdade como correspondência. Ou seja, a prova que busca a verdade entendida como
correlativa, na máxima medida, aos eventos que ocorreram na situação empírica que
está na base da controvérsia judicial. 166 Nesse sentido, insere-se a busca pela verdade
no processo; assim como se sucederia em qualquer ramo da experiência. De modo
que não parece plausível criticar o Direito, por não possuir certezas objetivas, quando
em nenhum âmbito da experiência se tem totalmente certeza acerca dos fatos. Não há
diferença epistêmica que justifique a diferença entre verdade judicial e a verdade não
judicial. 167

162
OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de; SOUZA, Leonardo da Rocha de. Sociologia do Direito:
Desafios Contemporâneos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
163
TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do Direito. 8 ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 344.
164
HAACK, Susan. Evidence Matters: Science, Proof and Truth in the Law. New York: Cambridge
University Press, 2014.
165
TARUFFO, Michele. A Prova. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
166
BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prova e Veritá nel Diritto. Bologna: Il Mulino, 2004;
167
TARUFFO, op. cit., 2014.
1.1 Prova e Verdade: Taruffo contra os Verifóbicos
Para Taruffo, a busca pela verdade no processo judicial é “uma condição
necessária – ou um objetivo instrumental – de toda decisão justa e legítima e, em
consequência, de qualquer resolução apropriada e correta da controvérsia entre as
partes”. 168 Essa relação entre prova e verdade, no entanto, tem suscitado polêmicas
entre os doutrinadores do Direito. Nesse sentido, cita-se o debate entre Michele
Taruffo e Bruno Cavallone, compilado na obra “Verifobia: Un Dialogo sobre Prueba
y Verdad”. 169
Embora polêmica e com diversos enfoques, a averiguação da verdade deve ser
a meta da atividade probatória. A partir de Taruffo, pode-se depreender que a
vinculação entre prova e verdade não é meramente conceitual, mas, sim, teleológica.
Ou seja, a principal finalidade da prova é oferecer informação acerca da verdade dos
fatos em litígio. Nesse sentido, pode-se depreender que o fim/a função do processo
deve ser resolver o conflito, com a aplicação correta da lei, buscando uma decisão
justa. Não qualquer decisão, que determine o vencedor e o perdedor de acordo com a
melhor storytelling170, mas a decisão justa que seja verdadeira, conforme o contexto
fático; a realidade empírica.
Nesta linha, Taruffo classifica o sistema processual norte-americano como
intrinsecamente verifóbico. O adversary system norte-americano “não está
estruturalmente orientado para a busca da verdade” 171 . Tem-se uma luta para
estabelecer o vencedor e o vencido; em que o papel do juiz é simplesmente zelar para

168
Ibid., p. 23.
169
TARUFFO, Michele; CAVALLONE, Bruno. Verifobia Un Dialogo sobre Prueba y Verdad. Lima:
Palestra Editores, 2012. p. 55-56. “Cavallone, como um bom verifóbico, admite substancialmente que
uma regulação que limite a admissão das provas é, ao final, algo bom, mesmo que termine por limitar
ou excluir totalmente a descoberta da verdade (ou talvez justamente por isso). Eu sigo, ao contrário,
uma perspectiva benthamiana ou epistemológica, segundo a qual se quisermos determinar a verdade,
será necessário poder usar toda a informação (isto é: de todas as provas) disponível”. Tradução nossa.
No original: “Cavallone, como buen verifóbico, substancialmente admite que una regulación que
limite la admisión de las pruebas es, todo sumado, algo bueno, aunque ello termine por limitar o
excluir del todo el descubrimiento de la verdad (o tal vez justamente por ello). Yo sigo, en cambio, una
perspectiva benthamiana o epistemológica, según la cual, si se quiere determinar la verdad sería
necesario poderse servir de toda la información (es decir: de todas las pruebas) disponible”.
170
Nesse sentido, cita-se a disseminação da IME (Inferência para Melhor Explicação – Inference for
the Best Explanation). “A IME conduz à conclusão de que uma dada hipótese é (provavelmente)
verdadeira pelo fato de que ela é aquela que melhor explica a evidência. Chega-se à conclusão de que
foi o gato que arranhou o sofá novo (hipótese), por vê-lo, com suas garras afiadas, sobre o sofá cujo
tecido está estraçalhado (evidência), e pelo fato de ser hipótese aquela que, dentro das circunstâncias,
melhor explica a evidência”. DALLAGNOL, Deltan Martinazzo. As lógicas das provas no processo.
Prova direta, indícios e presunções. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 77.
171
TARUFFO; CAVALLONE, op. cit. p. 35.
que as regras do jogo sejam cumpridas. Como uma luta, vencerá o mais forte; que não
necessariamente é aquele quem tem razão.
No sistema norte-americano, o trial judge (juiz togado) funciona como uma
espécie de “filtro” das provas requeridas, impedindo que as provas consideradas
inadmissíveis pelo ordenamento jurídico cheguem ao conhecimento daqueles que tem
o dever de verificar a veracidade dos fatos alegados pelas partes, ou seja, o trier of
fact (geralmente, o júri). 172 Passado o momento de admissão da prova, o perito deve
comparecer na data do julgamento e prestar depoimento, daí a nomenclatura para o
perito de expert witness. Do perito é esperado mais do que capacitação técnica; ele
também deve demonstrar persuasão, ou seja, capacidade de expor com clareza suas
conclusões, buscando convencer os jurados de que razão assiste ao seu cliente.173
Ressalvadas as peculiaridades do sistema norte-americano – de tradição da
common law – de modo que não se pode pretender o transplante para o sistema
brasileiro de modo literal, a experiência norte americana notabilizou-se como
paradigma, de inspiração mundial, no controle da prova pericial. Assim, a análise da
trilogia Frye, Daubert e Kumho é uma importante fonte para o estudo dos critérios de
aferição de credibilidade e legitimidade científica da perícia.

1.2 A Experiência Norte-americana no Controle Pericial: Os Casos Frye,


Daubert e Kumho
Nos Estados Unidos, há aproximadamente cem anos iniciava-se a preocupação
com a produção da prova pericial. De modo que o Direito norte-americano possui
uma larga experiência no controle da admissibilidade e da valoração desse tipo de
prova. Um percurso que se pode dizer inicia-se com o caso Frye, de 1923, passa pela
promulgação das Federal Rules of Evidence (1975), até chegar aos casos Daubert
(1993) e Kumho (1999). Atualmente, esses dois últimos casos complementam a
disciplina encontrada nas Federal Rules of Evidence (atualizada em 2000) e, assim,
regulam a admissibilidade e o controle da prova pericial. 174

172
DAMASKA, Mirjan. Evidence Law Adrift. New Haven and London: Yale University Press, 2013.
173
HAZARD JR, Geoffrey C.; TARUFFO, Michele. American Civil Procedure: An Introduction. New
Haven and London: Yale University Press, 1993.
174
Em 2000, o art. 702 das FRE foi alterado para se adequar aos padrões estabelecidos nos casos
Daubert e Kumho de modo que determina: “Se um conhecimento científico, técnico ou outro
especializado subsidiar o julgador do fato a entender a prova ou a determinar um fato em questão, uma
testemunha qualificada como perito, por seu conhecimento, habilidade, experiência, treinamento ou
educação, poderá prestar depoimento na forma de um parecer ou de outro modo se (1) o testemunho é
baseado em fatos ou fatos suficientes, (2) o testemunho é o produto de princípios e métodos confiáveis,
Tendo em vista a doutrina da força vinculante dos precedentes no Direito
norte-americano (doctrine of binding precedent), a qual indica que o juiz deve
solucionar o litígio na mesma direção e com o mesmo fundamento de decisão
anteriormente proferida, compreende-se a importância desses julgados para o estudo
da prova pericial. Assim, embora a produção da prova seja regida pelas Federal Rules
of Evidence (FRE), julgados como Daubert e Kumho são fonte imediata do Direito e
tem força cogente (stare decisis).
O percurso do controle da prova pericial pode-se dizer que se inicia em 1923,
no caso Frye v. United States175 em que, na Court of Appeals of District of Columbia,
James Alphonso Frye foi condenado por homicídio. Nesse julgamento, a perícia
empregou um método de detecção de mentiras, baseado na análise da pressão
sanguínea (systolic blood pressure deception test). De acordo com esse método, o
perito, partindo da técnica de análise da pressão sanguínea do depoente, seria capaz de
indicar se determinado testemunho era verdadeiro ou falso.
A Court of Appeals of District of Columbia foi provocada a se manifestar se
esses resultados poderiam ser tidos como confiáveis, ou seja, se o método científico
empregado demonstrava ser um instrumento idôneo para a comprovação dos fatos
alegados. A decisão foi de que o teste de detecção de mentiras não desfrutava de
suficiente reconhecimento científico. De modo que no caso Frye restou estabelecido
que o método/técnica empregado na perícia somente deve ser admitido quando estiver
suficientemente estabelecido na comunidade científica para gozar de “aceitação geral
no particular campo ao qual pertence”176.

(3) a testemunha aplicou os princípios e métodos confiáveis aos fatos do caso. Tradução nossa. No
original: “If scientific, technical, or other specialized knowledge will assist the trier of fact to
understand the evidence or to determine a fact in issue, a witness qualified as an expert by knowledge,
skill, experience, training, or education, may testify thereto in the form of an opinion or otherwise if (1)
the testimony is based upon sufficient facts or data, (2) the testimony is the product of reliable
principles and methods, and (3) the witness has applied the principles and methods reliably to the facts
of the case”.
175
Frye v. United States, 293 F.1013 (D.C. Cir. 1923). Court of Appeals of District of Columbia, 1923.
176
Frye v. United States: “Inúmeros casos são citados em apoio a essa regra. Quando um princípio
científico, ou uma descoberta, cruza a linha entre os estágios experimentais e demonstráveis, é difícil
definir. Em algum lugar dessa penumbra, a força probatória do princípio deve ser reconhecida; e;
enquanto as cortes acompanharem a admissão da prova pericial, deduzida de um princípio científico ou
descoberta devidamente reconhecidos, a dedução daí feita deve ser suficientemente estabelecida para
ganhar aceitação geral no particular campo ao qual ela pertence”. Tradução nossa. No original:
“Numerous cases are cited in support of this rule. Just when a scientific principle or discovery crosses
the line between the experimental and demonstrable stages is difficult to define. Somewhere in this
twilight zone the evidential force of the principle must be recognized, and while courts will go a long
way in admitting expert testimony deduced from a well-recognized scientific principle or discovery, the
thing from which the deduction is made must be sufficiently established to have gained general
acceptance in the particular field in which it belongs”.
Esse precedente criado em 1923, no caso Frye, perdurou por décadas no
direito norte-americano como a principal referência para o juízo de admissibilidade da
prova pericial. No entanto, a crescente utilização nos tribunais de dados científicos de
qualidade duvidosa (junk science), em detrimento da boa ciência que deve ser trazida
ao processo (good science), 177 impulsionou a Suprema Corte Norte-Americana a
revisitar o precedente e a elaborar critérios objetivos para o juiz realizar o juízo de
admissibilidade da prova pericial. Isso foi feito no caso Daubert vs Merrell Dow
Farmaceutical Inc, de 1993, em que a Suprema Corte estabeleceu critérios objetivos
os quais o juiz deveria seguir para controlar a validade científica e a confiabilidade da
prova pericial178.
No caso Daubert vs Merrell Dow Farmaceutical Inc, a Suprema Corte norte-
americana estabeleceu que ao juiz é atribuído o papel de guardião (gatekeeper) na
questão da admissibilidade da prova pericial, em razão da exigência de que a ciência
trazida ao processo deva ser de boa qualidade (good science). Além de revisitar o
critério da aceitação geral da teoria ou método entre os estudiosos da área de
conhecimento, foram estabelecidos outros critérios, a saber: a revisão pelos pares
(peer review) e publicação do conhecimento em periódicos especializados; a
indicação do percentual de erro e a possibilidade de teste voltado para a falsificação
da teoria ou método. 179
O caso Kumho Tire Co. Ltd, et al. v. Carmichael, et. al180, de 1999, versou
sobre uma ação indenizatória proposta por Patrick Carmichael, proprietário de uma
minivan cujo pneu estourou, causando a morte de um passageiro e ferimentos nos
demais. Carmichael sustentou que o acidente ocorreu por defeito no pneu da
fabricante Kumho Tire. O perito contratado atestou defeito no pneu, mas, para tanto,
valeu-se de técnica não científica. A Suprema Corte foi provocada a decidir se tal

177
GARY, Edmond. After Objectivity: Expert Evidence and Procedural Reform. Sydney Law Review,
25 (2), p. 131-161.
178
Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals Inc., 509 US. 579, 113 S.Ct. 2795, 1993. No caso Daubert,
William e Joyce Daubert, pais de duas crianças, ajuizaram ação indenizatória contra a indústria
farmacêutica Merrell Dow, alegando que o medicamento Bendectin, utilizado para náuseas durante a
gravidez, teria causado malformação nas crianças. Para tanto, contrataram oito peritos. Os Daubert
perderam a ação, no entanto, o debate no caso fomentou o estabelecimento de critérios (standards)
probatórios.
179
No Brasil, o julgamento do Recurso Extraordinário n. 363.889/DF, pelo Supremo Tribunal Federal,
o voto do Ministro Luiz Fux recorreu ao caso Daubert para examinar a validade técnica do exame de
DNA. Essa decisão, em particular o voto do Min. Fux, reveste-se de importância por questionar o meio
de prova e trazer aportes críticos sobre a prova pericial. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n.
363.889/DF. Relator Min. Dias Toffoli. Julgado em 02.06.2011, publicado no DOU de 16.12.2011.
180
Kumho Tire Co. Ltd, et al. v. Carmichael, et. al. 526 U.S. 137, 1999.
prova poderia ser admitida. Manifestou-se no sentido de que os standards
estabelecidos no caso Daubert servem de auxílio, mas não necessariamente devem ser
aplicados em todas as instâncias em que a confiabilidade de um testemunho científico
é examinada. De modo que conferiu maior discricionariedade aos juízes para aferir o
grau de confiabilidade da perícia diante do caso concreto.
Essa flexibilidade dos requisitos estabelecidos no caso Daubert são
particularmente importantes nas chamadas soft sciences, como a Psicologia, o Serviço
Social e a Sociologia. Isso porque é claro que elas não se adequam aos mesmos
métodos das ciências exatas. Por exemplo, às soft sciences lhes é inerente a
dificuldade de apresentação de margem de erro. De modo que elas devem ser
admitidas e valoradas de modo diferenciado, sem que com isso seja negado a
possibilidade de controle. 181

2. O Controle da Prova Pericial Psicológica Forense


As chamadas soft sciences, ou flexíveis, como a Psicologia, cada vez mais tem
ingressado no processo civil como fontes de provas. De acordo com Taruffo, “isso
significa que a amplitude das provas periciais é agora muito maior do que foi no
passado; novos peritos estão no mercado e o problema de verificar a credibilidade das
provas periciais tornou-se muito mais complicado”.182 Na prova pericial psicológica,
Trindade e Caridade destacam que “as dificuldades para o juiz garantir a qualidade
científica daquilo que adquire do perito e do assistente técnico são ainda maiores”.
Isso porque, para além da máxima “o juiz é peritus peritorum e não está adstrito às
conclusões do expert, há o paradoxo de que necessita filtrar cientificamente o ponto
exato em que carece do conhecimento específico, o que vem relativizando a máxima
latina”. 183
O paradoxo da prova pericial é um dos grandes obstáculos no exercício de seu
controle. Paradoxo porque o juiz recorre a um terceiro, uma vez que não possui
conhecimentos técnicos sobre determinado assunto, mas, depois, deve-se manifestar
sobre esse mesmo assunto para decidir sobre a sua credibilidade e validade. Situação
paradoxal em si mesma: chama-se alguém para explicar o que não se sabe e depois é
181
ROJAS, Carmen Vásquez. Sobre La Cientificidad de La Prueba Científica en el Proceso Judicial.
Anuário de Psicologia Jurídica. Madrid: vol. 24, enero-diciembre, 2014.
182
TARUFFO, op. cit., p. 95.
183
TRINDADE, Jorge; CARIDADE, Sónia. A Prova Pericial Psicológica e o Método de Análise da
Credibilidade das Declarações (SVA): Reflexões. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo:
RT, ano 25, n. 136, out. 2017, p. 189.
preciso decidir sobre o que não se sabe. Ou seja, o sistema exige que o juiz apele ao
terceiro, mas depois, obriga-o a se debruçar e a valorar sobre os (des) acertos das
conclusões sobre um tema que não compreende. 184
Além disso, a complexidade da questão das provas periciais acentua-se nas
psicológicas porque, não raras vezes, operadores do Direito realizam demandas para
que os psicólogos exponham seus resultados com níveis de certeza e apresentem
conclusões categóricas sobre determinado fato. Não raro, na prática, esses operadores
idealizam as “ciências, nomeadamente a Psicologia e a Psiquiatria, segundo um
critério de racionalidade de tipo matemático, cujo saber tem de ser exato binário,
capaz de conferir certezas do tipo sim-não, certo-errado, pois é esse o único tipo de
respostas que lhe pode dar o grau de certeza que procura (beyond reasonable doubt)”.
185
No entanto, há casos em que psicólogos não tem como precisar certas respostas,
dentro de sua autonomia teórico-técnica, sem que infrinjam deveres éticos-
profissionais. Além disso, estudos tem demonstrado que mesmo quando psicólogos se
referem a uma razoável certeza psicológica, estaria envolto algum julgamento
subjetivo. 186
Esses desencontros de expectativas podem ocorrer não apenas na relação
Direito-Psicologia, mas no interior da própria Psicologia. Trindade destaca que,
apesar da ciência psicológica ser uma só, ela possui várias faces. Apenas para
exemplificar, a American Psychological Association – APA – lista mais de cinquenta
campos de atuação. A Psicologia se expressa através de diferentes linguagens; o que
“não chega a constituir uma Torre de Babel, mas, não raro, existem dificuldades de
entendimento entre suas diversas linguagens”. De modo que nas perícias psicológicas
pode ocorrer “uma natural diferença de perspectivas, sem que nenhum dos
procedimentos esteja equivocado. São matizes diferentes do caleidoscópio humano.”
187

Apesar desses desencontros e dificuldades, a perícia psicológica forense


reclama mecanismos adequados de controle judicial, sob pena de desviar o processo

184
KNIJNIK, Danilo. Prova Pericial e seu Controle no Direito Processual Brasileiro. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2017.
185
PAULINO, Mauro; CASIMIRO, Carlos. O Psicólogo na Justiça: Notas Preliminares sobre o Perito,
o seu Depoimento e a Perícia Forense. In: PAULINO, Mauro; ALMEIDA, Fátima. Psicologia, Justiça
e Ciências Forenses Perspectivas Atuais. Lisboa: Pactor, 2014. p. 58.
186
MELTON, Gary B.; PETRILA, John; POYTHRESS, Norman G.; SLOBOGIN, Christopher;
OTTO, Randy K.; MOSSMAN, Douglas; CONDIE, Lois O. Psychological Evaluations for the Courts
A Handbook for Mental Health Profissionals and Lawers. 4 ed. New York: The Guilford Press, 2018.
187
TRINDADE, op. cit., p. 27 e 740.
de uma resolução justa. As partes tem direito a ter conhecimento da motivação que
levou o juiz a considerar válido, sob o ponto de vista técnico-científico, o método
adotado na perícia. Ou seja, tem direito ao conhecimento das razões que levaram à
aceitação do conteúdo que o perito trouxe ao processo. Isso, inclusive, viabiliza a
possibilidade de eventual impugnação, através da interposição de recurso.

2.1. As Diretrizes do Novo Código de Processo Civil


O novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) tratou da Prova Pericial
especificamente nos artigos 464 a 480. Além de estabelecer uma minuciosa
regulamentação sobre a prova pericial, o que inclui, no que lhe é pertinente, a
psicológica, trouxe inovações, tais como a perícia simplificada e a possibilidade das
partes, em comum acordo, escolherem o perito, indicando ao juízo. No que diz
respeito ao controle da perícia, regrou a atuação do juiz de forma, que se poderia
dizer, mais conectada com a noção de gatekeeper do direito norte-americano, ou seja,
ligada a um papel de guardião na admissibilidade da prova pericial.
No art. 464, § 1º, o CPC enumera situações em que o juiz indeferirá a perícia,
quais sejam: a) quando a prova do fato não depender de conhecimento especial de
técnico; b) quando a perícia for desnecessária diante do material probatório constante
no processo; c) quando a verificação for impraticável. Nesse artigo, também há uma
inovação: a perícia simplificada. Isto é, de ofício ou a requerimento das partes, o juiz
poderá, em substituição à perícia, determinar apenas a inquirição do perito, quando o
ponto controvertido for de menor complexidade.
O art. 465 do novo CPC determina que o juiz nomeará perito especializado no
objeto da perícia e fixará de imediato o prazo para a entrega do laudo. Uma novidade
do atual CPC é no sentido de que não apenas o juiz poderá escolher o perito, as partes
também terão essa faculdade. O art. 471 estabelece que as partes podem, de comum
acordo, escolher o perito, desde que sejam plenamente capazes e a causa possa ser
resolvida por autocomposição. No caso específico da perícia psicológica, ela deve ser
realizada por psicólogo regularmente inscrito no Conselho Federal de Psicologia,
órgão que fiscaliza a profissão, a qual é regulamentada pela Lei n. 4.119/62.188

188
A Lei 4.119/62 expressamente dispôs, no § 2º, art. 13, a colaboração do Psicólogo em assuntos
ligados a outras ciências (o que obviamente se inclui o Direito), bem como dispôs sobre a competência
dos psicólogos para a realização de perícias e emissão de pareceres sobre a matéria Psicologia. Essa
atuação do psicólogo foi regulamentada pelas Resoluções n.008/2010 e n. 017/2012 do Conselho
Federal de Psicologia.
Estando ciente da nomeação, o novo CPC determina que o perito deve
apresentar, em cinco dias, a proposta de honorários e o currículo, com comprovação
de especialização. Uma questão prática interessante diz respeito a especialização do
perito-psicólogo. Apesar de não haver exigência legal para que o psicólogo tenha
formação específica na área forense, basta que esteja regularmente inscrito no
Conselho Federal de Psicologia, não há dúvidas de que um profissional especializado
na psicologia jurídica possui maiores condições de possibilidade de produzir um
trabalho pericial de maior credibilidade. 189
O novo CPC expressamente dispôs, no art. 466, § 2º, que o perito deve
assegurar aos assistentes das partes o acesso e o acompanhamento das diligências e
dos exames que realizar, com prévia comunicação, comprovada nos autos, com
antecedência mínima de cinco dias. 190 A participação do assistente técnico em
processos judicias pode ser vista como um importante recurso de controle da prova
pericial psicológica. Isso porque assistentes técnicos examinarão como foram obtidos
os dados pelo psicólogo-perito e verificarão as inferências e generalizações realizadas
sobre esses dados, a fim de realizarem um parecer técnico. Assim, a capacitação dos
assistentes técnicos possui condições de possibilidade de oferecer ao juízo
fundamentos para o controle científico da perícia.

2.2 Os critérios de Admissibilidade no novo CPC: A Influência da


Experiência Norte-Americana
Para o controle da prova pericial, o art. 473 do novo CPC reveste-se de
fundamental importância. Tal artigo estabelece os critérios de admissibilidade do
laudo pericial, o qual deverá conter: I - a exposição do objeto da perícia; II - a análise

189
O Conselho Federal de Psicologia (CFP), através da Resolução n. 014/2000, instituiu o título de
Especialista em Psicologia em nove áreas específicas de atuação, dentre as quais a Psicologia Jurídica.
A Resolução n. 013/2007 estabeleceu novos procedimentos para o registro de profissionais como
especialistas, incluindo o registro de especialista em Psicologia Jurídica.
190
Na Jurisprudência, essa participação do assistente técnico tem suscitado divergências. Isso porque a
Resolução n. 008/2010 do Conselho Federal de Psicologia dispôs expressamente: “o psicólogo
assistente técnico não deve estar presente durante a realização dos procedimentos metodológicos que
norteiam o atendimento do psicólogo perito e vice-versa, para que não haja interferência na dinâmica e
na qualidade do serviço realizado”. Nesse sentido ver: Ação de Suspensão do Direito de Visitas.
Perícia. Avaliação Psicológica. Nomeação de Assistente Técnico. Prazo. 1. a função do assistente
técnico não é fiscalizar o ato do perito oficial, mas subsidiar a parte com elementos técnicos que
permitam compreender a extensão e o alcance da perícia levada a efeito. 2. nas perícias psicológicas e
psiquiátricas o exame é ato pessoal do perito e a presença do assistente técnico pode ser prejudicial às
partes envolvidas. recurso desprovido. BRASIL, TJRS, Processo n. 70069338366. 7ª Câmara Cível.
Data de Julgamento: 31. ago. 2016.
técnica ou científica realizada pelo perito; III - a indicação do método utilizado,
esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da
área do conhecimento da qual se originou; IV - resposta conclusiva a todos os
quesitos apresentados pelo juiz, pelas partes e pelo órgão do Ministério Público.
O primeiro critério refere-se ao controle do objeto da perícia. A perícia
psicológica forense não se confunde com a avaliação clínica. Enquanto a primeira
possui a finalidade de prestar informações para o esclarecimento de uma demanda
judicial, a segunda possui fins terapêuticos. Essa dissonância de finalidade faz com
que o Psicólogo tenha que exercer no âmbito forense um papel diferente daquele que
exerce no âmbito da clínica. O papel a ser exercido pelo psicólogo-perito será do tipo
avaliativo, diferente da aliança terapêutica que é estabelecida em seu setting
profissional.191
Os dados obtidos pelo psicólogo-perito serão de conhecimento do juiz e das
partes. De modo que a garantia de confidencialidade não se assemelha ao tratamento
clínico. Isso porque o objetivo da perícia psicológica forense é o esclarecimento,
dentro do processo judicial, de questões técnicas ou científicas que dependam do
conhecimento especial da Psicologia. O foco não é o tratamento, embora, obviamente,
nas conclusões, o perito tenha a possibilidade de indicar a necessidade de um
tratamento psicológico.192
Em razão desse objetivo, as probabilidades de o psicólogo-perito encontrar
pessoas não cooperativas, resistentes à avaliação são maiores do que na clínica. Os
periciados podem simular e dissimular comportamentos com vistas a se beneficiar do
resultado final do processo judicial. Nesse sentido, analisar se o perito tomou
precauções metodológicas contra a simulação e a dissimulação, através, por exemplo,
de entrevistas estruturadas, também fazem parte do controle da prova pericial
psicológica.
O segundo critério exige a análise técnica ou científica realizada pelo perito. O
art. 3º da Resolução n. 017/2012 do Conselho Federal de Psicologia estabelece que a
perícia psicológica forense poderá ser realizada, conforme a especificidade de cada
situação, por meio de observações, entrevistas, visitas domiciliares, aplicação de

191
GREENBERG, Stuart A.; SCHUMAN Daniel W. Irreconcilable Conflict Between Therapeutic and
Forensic Roles. Professional Psychology: Research and Practice, vol. 28, n. 1, 1997. pp. 50-57.
192
ECHEBURÚA, Enrique; MUÑOZ, José Manuel; LOINAZ, Ismael. La Evaluación Psicológica
Forense frente a la Evaluación Clínica: Propuestas y Retos de Futuro. International Journal of Clinical
and Health Psychology, v. 11, n. 1, 2011, pp. 141-159.
testes psicológicos, dentre outros instrumentos, métodos e técnicas reconhecidos pela
ciência psicológica. Assim, no âmbito das perícias psicológicas deve ocorrer
intervenções com o uso de técnicas próprias à Psicologia. 193
O terceiro critério determina a indicação do método utilizado, esclarecendo-o
e demonstrando ser o predominantemente aceito pelos especialistas da área do
conhecimento da qual se originou. O artigo 479 determina que o juiz deverá apreciar a
prova pericial, indicando os motivos que o levaram a considerar ou a deixar de
considerar as conclusões do laudo, levando em conta o método utilizado pelo perito.
Depreende-se que o CPC primeiramente fez a exigência de o laudo pericial conter o
método ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da
qual se originou, numa clara inspiração das premissas fixadas no caso Frye norte-
americano, o qual consagrou o critério de admissibilidade da prova pericial o método
de aceitação geral.
Logo após, no art.479, o CPC determina que o juiz aprecie o método utilizado
pelo perito. A conclusão que se pode depreender é que o novo CPC elencou como
método para resolver o paradoxo da prova pericial o critério da aceitação geral, mas
como um dos critérios e, não como o único critério, porque ao determinar que leve em
consideração o método para aceitar ou rejeitar o laudo pericial, estamos no terreno do
padrão Daubert, que fixou critérios objetivos para resolver o problema do controle da
prova pericial.
O quarto critério determina que o laudo pericial contenha resposta conclusiva
a todos os quesitos apresentados pelo juiz, pelas partes e pelo órgão do Ministério
Público. O perito deverá responder aos quesitos utilizando linguagem simples e
coerente, sendo-lhe vedado emitir opiniões pessoais que excedam o limite técnico ou
científico da perícia. Nesse sentido, Trindade adverte que os peritos devem evitar “as

193
Em perícias psicológicas forenses, o teste de Rorschach tem sido muito utilizado. Nesse sentido ver:
GACONO, Carl B.; BARTON, Evans. The Handbook of Forensic Rorschach Assessment. New York:
Routledge, 2008. p. 18: “O Rorschach Inkblot Method (RIM) tem uma longa e nobre tradição no
campo da avaliação de personalidade. O desenvolvimento do sistema compreensivo ancorou o RIM na
corrente principal dos instrumentos empíricos de avaliação da personalidade, tornando-o aceitável para
o uso na avaliação forense. O RIM fornece uma tarefa, de estrutura aberta, de resolução de problemas
perceptivos cognitivos baseado em desempenho, que é bem diferente do autorrelato”. Tradução nossa.
No original: “The Rorschach Inkblot Method (RIM) has a long and noble tradition within the field of
personality assessment. The development of the Comprehensive System has anchored the RIM within
the mainstream of empirical personality assessment instruments, making it acceptable to use in
forensic assessment. The RIM provides an open-structured, performance-based cognitive perceptual
problem-solving task that is quite different from self-report measures”.
respostas vagas, remissivas e inconclusivas, que poderão ensejar quesitos
complementares ou mesmo a convocação do perito para respondê-los em juízo”. 194

Considerações Finais
A prova pericial representa o encontro do processo com as ciências, dentre
elas a Psicologia. Não raras vezes, as demandas judiciais envolverão fatos
dependentes de esclarecimentos de conteúdo psicológico. No entanto, as
complexidades e as dificuldades desse tipo de prova poderão significar desencontros
entre o Direito e a Psicologia. Apesar desses desencontros, a perícia psicológica
forense reclama mecanismos adequados de controle judicial, sob pena de desviar o
processo de uma resolução justa.
As informações trazidas pelo psicólogo-perito ao processo devem passar por
critérios científicos de aferição de legitimidade e de credibilidade. Nesse sentido,
nota-se que o novo Código de Processo Civil trouxe importantes mecanismos, com
clara inspiração na experiência norte-americana na trilogia Frye-Daubert e Kumho.
O adequado controle da prova pericial reveste-se de particular importância nas
perícias psicológicas porque elas, em sua grande maioria, tratam de situações de
vitimização, de sofrimento, tais como, alienação parental, disputas de guarda e perda
do poder familiar. De modo que, a inadequação de uma perícia psicológica poderá
implicar um processo de revitimização, em que os procedimentos adotados conduzem
a um reviver o sofrimento.

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194
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A INSERÇÃO DO PSICÓLOGO NO PODER
JUDICIÁRIO: PERÍCIA E ASSISTÊNCIA
TÉCNICA

Gicela Nicolini Hansen195

Introdução
Mesmo constituindo-se em disciplinas distintas, a Psicologia e o Direito
possuem como interesse comum – em perspectivas diferentes – o comportamento
humano. Enquanto a Psicologia se volta ao mundo do ser, tendo como ponto de
análise os processos psíquicos conscientes e inconscientes, individuais e sociais que
governam a conduta humana; o Direito volta-se ao mundo do dever ser, ao conjunto
de regras que tem como objetivo regular o comportamento humano em sociedade
(Trindade, 2017; Fiorelli e Mangini, 2014). São inúmeras as situações em que as
questões psicológicas necessitam ser consideradas para as decisões, tanto do ponto de
vista estritamente legal, como sob a ótica do bem-estar dos envolvidos. A
compreensão dos indivíduos e de suas condutas difere significativamente quando
avaliada por um psicólogo e quando estudada por um legislador. Os planos do ser e
do dever ser acabam se entrelaçando e justapondo, tornando um saber complementar
ao outro.
Na área do Direito de Família, fatores emocionais e outros aspectos
psicológicos que afetam os envolvidos no conflito produzem questões subjetivas que
estão além das questões jurídicas. Nesse sentido, a conexão com a Psicologia se torna
possível e necessária. A atuação do psicólogo, nesse campo do Direito, pode estar
presente na formação e rompimento do vínculo familiar, regulamentação de visitas,
guarda, adoção, paternidade, reconhecimento de filhos, interdição, sucessões,
acompanhamento em tomada de depoimentos, Síndrome de Alienação Parental,
Síndrome de Münchausen, mediação de conflitos, perícia e assistência técnica
psicológica (Trindade, 2017; Fiorelli e Mangini, 2014).
Na interface com o Direito, a Psicologia Forense procura entender melhor a
dinâmica psíquica, assim como, estabelecer conexões entre fatos, comportamentos,

195
Psicóloga. Graduada pela UFRGS. Psicoterapeuta. Formação em psicoterapia de orientação
psicanalítica pelo IEPP. Especializada em Psicologia Jurídica pela Sociedade Brasileira de Psicologia
Jurídica.
sintomas e sentimentos vivenciados pelos envolvidos (Trindade, 2017). A perícia
psicológica e a assistência-técnica são possibilidades de atuação do psicólogo dentro
dessa área, cujo objetivo é o de subsidiar decisões legais, quando essas dependem de
um entendimento acerca do funcionamento psicológico dos envolvidos ou seu bem-
estar.
Conhecer o trabalho da perícia judicial à serviço do processo, em
conformidade com a técnica e ética, assim como as regras que norteiam o trabalho
jurídico terão como consequência uma melhor prestação de serviços à justiça e aos
envolvidos no processo (Trindade, 2017; Dal Pizzol, 2009).
Em um processo, para fundamentar suas alegações, as partes podem fazer uso
de todos os meios de prova admitidos em Direito sempre que possível e necessário.
Cada parte tem como objetivo convencer o juiz da sua “verdade”, trazendo ao
processo argumentos e provas. No entanto, nem sempre os argumentos ou provas são
suficientes para o convencimento do juiz. Quando envolve matéria técnica que escapa
ao conhecimento do magistrado, pode se recorrer à prova pericial para auxiliar na
decisão judicial.
A prova pericial é produzida pelo perito, profissional habilitado tecnicamente
para investigar e analisar fatos específicos, a fim de produzir provas de causa e efeito.
Ao assistente técnico cabe o trabalho de assessorar a(s) parte(s), acompanhar o
trabalho pericial e intensificar a argumentação da parte que o contratou (Silva, 2009).
Enquanto o perito é considerado auxiliar da justiça, o assistente técnico não o é.
Assim sendo, não estão submetidos às mesmas regras jurídicas.

1. Perícia Psicológica
Para poder atuar como perito psicológico, o profissional deve ser graduado na
área e devidamente registrado no Conselho de Psicologia. A atividade da perícia está
a serviço do magistrado, para esclarecer, quando necessário algum ponto dos autos. O
perito, especialista técnico, pode fornecer elementos que servem de auxílio para esta
compreensão, quando for necessário ao juiz, por não ter o devido conhecimento
técnico (Trindade, 2017). A perícia ocorre por meio da análise psicológica que pode
incluir o processo do psicodiagnóstico, o entendimento da dinâmica familiar e as
interações entre os membros da família em questão por meio de entrevistas (Fiorelli e
Mangini, 2014). De acordo com Feitor (2017), as perícias psicológicas realizadas têm
a capacidade de trazer aos autos a compreensão das psicodinâmicas conflitivas e o
impacto na intersubjetividade e sistema familiar. Não há obrigação do juiz em aceitar
o resultado da perícia. Ela representa um esclarecimento técnico, não gerando um fato
irrefutável (Trindade, 2017).
O perito tem a responsabilidade de realizar a perícia com neutralidade e
precisão necessárias para fornecer subsídios para a decisão judicial e, por isso o crime
de falsa perícia é imputável a ele. O processo de uma perícia psicológica, com base
no exame psicológico, deve ter como eixo principal os preceitos éticos. Caso o
instrumento de avaliação psicológica não seja usado de forma correta ou o avaliador
não esteja familiarizado com a literatura clínica pertinente, trará prejuízos para o
periciado. Um diagnóstico incorreto implica em consequências futuras importantes
para o indivíduo, sua família e a sociedade (Serafim et al, 2006).
De acordo com Trindade (2017), não há regra específica na legislação do
Brasil para a atuação dos psicólogos em processos judiciais. No entanto, já se percebe
a necessidade de que as avaliações psicológicas e as perícias sejam objetivas e não
meramente subjetivas. Para efeitos de decisão judicial, a realização da perícia
psicológica, exige da parte do perito um conjunto de conhecimentos teóricos e
práticos que lhe permitam organizar os procedimentos avaliativos aos objetivos
pretendidos. Além disso deve comunicar de forma clara e objetiva os seus achados.
De acordo com Silva (2009), a função do perito tem como essência ofertar ao juiz
subsídios dentro de seu conhecimento técnico-específico, sendo fundamentais,
portanto, o diagnóstico e o laudo.
De acordo com o artigo 420 do Código de Processo Civil, a prova pericial
consiste em exame, vistoria ou avaliação. A perícia não busca provas – no sentido
jurídico do termo – mas sim indicadores para responder os objetivos da perícia (Silva
e Costa, 1999). Sendo assim, podemos afirmar que a perícia psicológica consiste em
um exame caraterizado pela investigação e análise de fatos e pessoas, com foco nos
aspectos emocionais e subjetivos das relações entre os indivíduos. Busca estabelecer
uma correlação de causa e efeito das circunstâncias e busca a motivação consciente e
inconsciente para a dinâmica das relações (Silva, 2009).
Segundo Vainer (1999) a perícia psicológica pode ser organizada em etapas. O
autor aponta que a primeira etapa corresponde ao estudo, que inclui coleta dos dados,
testes, entrevistas e outros procedimentos que se façam necessários. A segunda fase
está relacionada com o diagnóstico, momento de análise dos dados obtidos e reflexão
diagnóstica. Por fim, o momento do laudo, onde o profissional expõe formalmente o
estudo diagnóstico da situação e seu parecer técnico.
Para a realização da perícia, outros pontos também devem ser considerados,
tais como: a leitura dos autos do processo (identificação da demanda, das questões
psicológicas que serão alvo da investigação pericial e dos quesitos que deverão ser
respondidos pelo psicólogo); levantamento das hipóteses prévias que nortearão a
coleta de dados; a coleta de dados propriamente dita (entrevistas necessárias);
planejamento da bateria de testes ou técnicas adequadas para o caso e aplicação dos
testes; interpretação dos resultados dos testes e análise da(s) entrevista(s); redação do
informe psicológico com o objetivo de responder à demanda jurídica que motivou tal
avaliação e quesitos – quando presentes no processo judicial. Na entrevista é
fundamental manter o foco em seu objetivo, pois está associado aos objetivos da
perícia.
Silva e Costa (1999) observam que a função do perito judicial existe sem o
trabalho do assistente técnico, contudo o inverso não é verdadeiro. Embora o perito
ocupe uma posição de confiança junto ao magistrado, sua função é oferecer
assistência para suas decisões e não fazer o julgamento. Não cabe ao perito fazer
interpretações ou aconselhamento às partes e apresentá-las no laudo pericial (embora
o psicólogo possa conversar com as partes). Em decorrência disso, o perito deve
adotar uma postura neutra em relação às pessoas e aos fatos na realização do seu
trabalho. Não sendo aceito nenhuma ligação com as partes e seus advogados.
Não há uma prática rígida estabelecida para a realização do trabalho da perícia
psicológica. A qualidade e a quantidade de métodos que serão usados na perícia
dependem de cada profissional e do objeto de perícia. A coleta de dados deve
contemplar o que será investigado, passando pela leitura dos autos e quesitos
formulados. As características do caso e dos sujeitos envolvidos serve de guia para as
avaliações psicológicas. A leitura dos autos também pode auxiliar no levantamento de
hipóteses e entendimento da perícia (Silva e Costa, 1999). O resultado do trabalho da
perícia é apresentado por meio de um laudo, no prazo fixado pelo juiz (Trindade,
2017; Silva, 2009).
Ao escrever o laudo, Cruz (2002) refere que o perito deve organizá-lo
utilizando as informações decorrentes da avaliação psicológica elaborada em uma
linguagem cientificamente aceitável, com objetividade nos argumentos e descrição
das informações coletadas. O autor menciona que do ponto de vista técnico, o
documento tem uma estrutura e conteúdo formais, de acordo com a Resolução
007/2003 do Conselho Federal de Psicologia.

2. Assistência Técnica
Diferente do perito que é nomeado pelo magistrado, o assistente técnico é
contratado por uma das partes ou por ambas, sendo considerada uma atividade
privada (Dal Pizzol, 2009). Ele é de confiança de quem o contratou – um consultor –
por isso não se espera imparcialidade. Devido a isso, não está sujeito a impedimentos
nem a suspeição, de acordo com os artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil. A
partir da intimação do despacho de nomeação do perito – que é realizada pelo juiz – a
indicação do assistente técnico deve ocorrer no prazo de 5 dias, consoante ao artigo
421, §1º do Código de Processo Civil (Trindade, 2017; Silva 2009).
A importância de seu trabalho consiste em ampliar, por meio de opinião
científica, as informações sobre os pontos que precisam de esclarecimento, para a
tomada da decisão judicial. O assistente técnico pode discordar do perito, de forma
fundamentada sempre que for considerado necessário. Nunca perdendo de vista o
respeito à dignidade do perito (Trindade, 2017). Mesmo sendo contratado para
assistir à parte (ou às partes), não está isento de seguir os preceitos do Código de Ética
Profissional dos Psicólogos e demais normas que regulamentam a profissão de
psicólogo (Dal Pizzol, 2009). De forma alguma deve fazer uso de meios ilícitos e
inadequados para atingir seus objetivos. A conduta do psicólogo durante os trabalhos
periciais ou técnicos deve primar pela ética profissional, em todos os momentos
(Silva, 2009).
A assistência técnica reforça o princípio do contraditório – direito de se
contrapor às alegações feitas pelo autor e com os quais a outra parte não concorda
(Dal Pizzol, 2009) e da ampla defesa. Além de acompanhar o processo de perícia, de
acordo com Trindade (2017), o assistente técnico pode se utilizar de todos os meios
necessários – dentro dos princípios lícitos, jurídicos e formalmente legais – para
realizar entrevistas, ouvir testemunhas, requisitar informações, documentos em poder
da parte ou de repartições públicas (art. 473, § 3º, do Código de Processo Civil).
Também é possível formular quesitos, conforme autoriza o artigo 469 do Código de
Processo Civil. Desta forma, as partes poderão fornecer provas, testemunhas e discutir
qualquer etapa da prova conduzida pela perícia.
A assistência técnica apresenta um parecer acerca do trabalho do perito e do
conteúdo e forma do laudo pericial. Mesmo que não seja consoante ao documento
produzido pela perícia, o parecer crítico deve apresentar suas conclusões de forma
fundamentada cientificamente (Dal Pizzol, 2009), com especial atenção às técnicas
utilizadas pelo perito na realização do laudo pericial. Também há um prazo legal
estabelecido pelo juiz, que deve ser respeitado, para que este possa apreciar com o
devido embasamento técnico (Trindade, 2017; Silva, 2009).
A função do psicólogo, no Poder Judiciário, é a de conhecer, dentro do
praticável, o mundo psíquico do indivíduo de forma que seja possível construir
hipóteses capazes de explicar sua conduta. As especificidades de cada caso deverão
nortear a metodologia eleita para o trabalho da assistência técnica. Entender e
conhecer os fatos, o contexto cultural e social, a história de vida, os componentes
hereditários e a forma própria de construir significados e a elaboração de experiências
pessoais são importantes para a compreensão das motivações conscientes e
inconscientes do sujeito para suas ações. Portanto, a revisão dos autos do processo
pode fornecer ao psicólogo dados capazes de organizar seu pensamento ao longo das
avaliações que se seguirão. A leitura dos autos e das entrevistas proporcionam ao
psicólogo um panorama do contexto psíquico, auxiliando na formulação de hipóteses
com respeito à estrutura e dinâmica do sujeito. A partir dessas hipóteses é possível o
planejamento da avaliação que será realizada – escolhas de testes, inventários, escalas
(Serafim et al, 2006) e a escolha dos quesitos (perguntas) que servem para esclarecer
os dados contraditórios em teoria.
Revestindo-se da finalidade de esclarecer, corrigir omissões ou falhas
constantes nos trabalhos periciais os quesitos são perguntas escritas e relativas à
matéria da perícia e deverão ser respondidos pelo perito. Sua formulação servirá para
especificar e orientar o trabalho da perícia frente a algum ponto importante e para
aprofundar questões relevantes. Devem ser bem redigidos, contendo linguagem clara,
objetiva, com ortografia e normas gramaticais corretas. Quanto ao conteúdo deve
abarcar todos os aspectos relevantes do objeto de perícia, promovendo uma ampliação
do trabalho do perito e, ao mesmo tempo, a compreensão e o convencimento judicial
para a tomada de decisão (Silva e Costa, 1999).
A elaboração e escolha dos quesitos para a perícia é tarefa complexa. O
planejamento adequado do trabalho da assistência técnica se faz imprescindível para a
complementação e direcionamento do foco da perícia psicológica. Conhecer o objeto
da perícia, a necessidade do caso em questão, as características concretas das pessoas
que deverão ser avaliadas, se há casos de transtornos mentais e se há relevância ou
doenças neurológicas, também faz parte do trabalho da assistência. Consoante a isso,
a leitura dos autos é de extrema importância para a determinação do procedimento
que o assistente técnico adotará. Os quesitos precisam ser objetivos, delimitar e ter
direcionamento ao tipo de conflito em questão, pois terão influência na perícia
(Feitor, 2017).
Segundo Silva (2009), muitas vezes, na prática, o perito não dispõe de meios
ou tempo necessário para realizar um estudo mais detalhado da dinâmica familiar,
suas conclusões acabam sendo um compromisso entre o que seria adequado e
desejável enquanto estudo técnico e o que é possível realizar no contexto da perícia.
Diante desse quadro e por terem mais tempo e maior contato com seus respectivos
clientes, com foco em reforçar ou contradizer as conclusões da perícia, o trabalho da
assistência técnica pode ampliar as informações psicológicas para o esclarecimento
dos fatos. Em termos de carga de trabalho e acesso às partes, o assistente técnico
ocupa uma posição privilegiada e, em consequência disso, tem maior condição de
trazer material que o perito não tinha conhecimento. Os quesitos fazem bem esse
papel.
Pautada na ética e no conhecimento técnico, a relação entre o assistente
técnico e o perito deve ser de colaboração, não é necessário haver concordância, mas
sim possibilitar um espaço de discussão do objeto de perícia. Desta forma, existe a
possibilidade de contribuir com uma interpretação que escape ao perito
(Groeninga, 2006).
Segundo Silva e Costa (1999) o assistente técnico é contratado para auxiliar o
advogado e seu cliente naquilo que acredita estar certo. Apontam que a defesa do
advogado estará pautada no parecer que o assistente técnico elaborar a respeito do
laudo pericial. Observam que o assistente técnico poderá fazer interpretações e
sugestões ao seu cliente e ao advogado. Os autores consideram de extrema
importância o conhecimento da função do perito por parte do assistente, para saber o
que deve esperar do trabalho desse profissional e como seu trabalho deverá
encaminhar-se.

Considerações Finais
O trabalho do psicólogo deve estar comprometido em preservar a saúde e o
bem-estar das pessoas envolvidas no processo jurídico. O objetivo da perícia é assistir
ao juiz de matéria técnica específica para que este possa fazer uso de seu poder
decisório. Sendo que o perito deve comunicar seus achados de forma fidedigna,
imparcial, clara e com o devido conhecimento técnico. A perícia psicológica objetiva
subsidiar decisões legais, quando estas dependem de um entendimento acerca
funcionamento psicológico envolvido. Invariavelmente, o perito deve adotar uma
postura neutra diante da perícia, pois seu trabalho envolve esclarecimentos ao
magistrado para que este possa decidir com mais segurança, a função da perícia é a de
esclarecer de forma objetiva os aspectos subjetivos, emocionais e psicológicos da
personalidade humana encontrados em seu trabalho.
A assistência técnica é tão importante quanto a atividade do psicólogo perito.
Por ser o assistente técnico de confiança da parte, não está sujeito nem a impedimento
nem a suspeição. Ambos os profissionais não podem perder de vista o aspecto ético
do exercício profissional.
Numa disputa judicial ambas as partes têm seus interesses, querem ganhar
algo. Os advogados contratados irão apresentar as demandas dos seus clientes
exaltando ou amenizando ou até mesmo omitindo fatos que podem favorecer ou
prejudicar seus casos. Tendo isso em mente e respeitando os princípios éticos, a
dinâmica de colaboração entre o trabalho da perícia e do assistente técnico deve ser
colaborativa e não de litígio. O ideal é que os profissionais da Psicologia não
assumam a postura de litígio que os operadores do Direito costumam adotar. Isso
seria enriquecedor para o campo da Psicologia Forense onde ainda há um longo
caminho a percorrer. Tanto no campo do conhecimento da matéria em si, quanto no
que diz respeito ao acolhimento do assistente técnico nesse espaço e o trabalho em
conjunto.
As interpretações dos aspectos inconscientes não cabem no enquadre judicial,
mas como um recurso dentro do processo da perícia psicológica forense. De fato, sua
aplicação abrange importantes aspectos dos envolvidos, no entanto, a comunicação
dos achados da perícia deve ser objetiva, clara e fundamentado em bases científicas
reconhecidas. Não cabe no serviço de perícia uma intervenção psicológica, como na
clínica, e sim a análise e conhecimento de uma situação concreta. Em consequência,
emitindo um resultado para que o juiz possa tomar uma decisão segundo o
entendimento técnico apresentado. Também o assistente técnico precisa ter como foco
a objetividade em seu trabalho, pois tanto o laudo da perícia quanto o parecer do
assistente técnico devem colaborar – de forma clara e não evasiva – na tomada
decisão do magistrado.
Uma última consideração se faz importante no que diz respeito ao trabalho do
psicólogo no poder judiciário. Ter conhecimento das consequências que as decisões
judiciais imprimem na vida das pessoas envolvidas e a responsabilidade do papel do
psicólogo no entrelaçamento com a justiça é de fundamental importância. O que está
escrito em um laudo pericial pode ter grande influência no poder decisório do
magistrado. Por isso, o que consta nesse documento deve ser objetivo, claro e restrito
ao objeto da perícia. Não devendo ter interpretações ambíguas ou generalizadas que
possam comprometer, sem fundamentos, a vida do sujeito periciado.

Referências

Cruz, R. M. (2002). Perícia em Psicologia e Laudo. In: Cruz, R. M.; Alchieri,


J. C.; Sardá Junior, J. J. Avaliação e medidas psicológicas: produção do
conhecimento e da intervenção profissional. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Dal Pizzol, A. (2009). Perícia psicológica e social na esfera judicial: aspectos


sociais e processuais. In: Rovinski, S. L. R. & Cruz, R. M. Psicologia Jurídica:
perspectivas teóricas e processos de intervenção. São Paulo: Vetor Editora.

Feitor, S. I. (2017). Perícias psicológicas no âmbito do Direito da Família:


necessário intercâmbio entre o Direito e a Psicologia. In: Trindade, J., Molinari, F. &
colaboradores. Psicologia Forense: Novos Caminhos. Porto alegre: Editora Imprensa
Livre.

Fiorelli, J. O. & Mangini, R. C. R. (2014). Psicologia Jurídica. São Paulo:


Atlas.

Groeninga, G. C. (2006). O papel profissional do assistente técnico na relação


cliente/perito/juiz. In: II encontro de psicólogos peritos e assistentes técnicos. São
Paulo: Conselho Regional de Psicologia (6ª região).

Serafim, A. de P., De Barros, D. M. & Rigonatti, S. P. (2006). Temas em


Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica II. São Paulo: Vetor.
Silva, D. M. P. da (2009). Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro: a
interface da Psicologia com o Direito nas questões de família e infância. Rio de
janeiro: Forense.

Silva, M. T. A. & Costa, G. B. P. M. (1999). O papel dos assistentes técnicos


nos processos judiciais, Anais do III Congresso Ibero-Americano de Psicologia
Jurídica.

Trindade, J. (2017). Manual de Psicologia Jurídica para operadores do


Direito (8ª ed.). Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda.

Trindade, J. (2017). Prova pericial psicológica: critérios de admissibilidade


científica. In: Trindade, J., Molinari, F. & colaboradores. Psicologia Forense: Novos
Caminhos. Porto Alegre: Impressa Livre.
PODEMOS CONFIAR NOS DEPOIMENTOS DE
TESTEMUNHAS E VÍTIMAS NO PROCESSO
PENAL? UMA ANÁLISE A PARTIR DO
FUNCIONAMENTO E DAS FRAGILIDADES NA
FORMAÇÃO DA MEMÓRIA

Luciano Iob196

Introdução
Na Antiguidade Clássica, História e Memória não eram atividades divisíveis.
Mnemosine, a mãe das musas, detinha o saber do passado, e por isso, podia prever o
futuro. Era um testemunho, uma forma de conhecimento. Entre os gregos antigos,
todavia, a memória é um meio de conhecimento – e não a lembrança voluntária ou
involuntária daquilo que nos causou prazer ou medo, este tempo passado que se
presentifica em nossas recordações voluntárias ou inusitadas ou por meio da
psicanálise. Para os gregos, a História como memória deveria salvar os feitos
humanos do esquecimento, assegurar-lhes evocação pela posteridade, fazendo assim
sua própria glória brilhar através dos séculos (Bergson, 1990).
Contudo, na história da filosofia clássica, de uma maneira geral, a memória foi
um tanto quanto negligenciada pelos antigos e relegada a uma faculdade cognitiva
inferior e secundária, apesar de filósofos do quilate de Aristóteles, Santo Agostinho,
John Locke e Thomas Reid, por exemplo, terem dado à mesma o seu devido valor ao
lhe dedicarem tratados e capítulos de livros (o estagirita escreveu o seu célebre De
Memória, Agostinho a trata nas suas “Confissões”, e Locke e Reid no “Ensaio sobre o
entendimento humano” e “Ensaio sobre os poderes intelectuais do homem”,
respectivamente). O auge do esquecimento da memória na tradição filosófica, e este é
um esquecimento incompreensível e até certo ponto inadmissível, é o fato de um dos
mais importantes filósofos da modernidade, Immanuel Kant, não a ter mencionado
sequer uma vez na sua “Crítica da Razão Pura” e em seus outros escritos, atribuindo,
por exemplo, mais valor a faculdade da imaginação do que a memória. Tal quadro
196
Advogado. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UniRitter. Formado em Psicologia Forense pela
Sociedade Brasileira de Psicologia Forense (SBPJ). Sócio e Fundador da Iob & Kessler Sociedade de Advogados.
começa a mudar em meados do século XIX, com os estudos do médico e psicólogo
estado-unidense William James, que influenciaram decisivamente filósofos como
Henri Bergson, Bertrand Russell, Ludwig Wittgenstein e Norman Malcolm, estes,
dentre outros, os principais responsáveis pela inserção dos estudos sobre a memória
na tradição e da mesma ser fonte de intensa investigação ao longo do pensamento do
século XX (Guimarães, 2014).
Entender os mecanismos de funcionamento da memória humana e as
estruturas cerebrais envolvidas na formação da mesma, constitui um dos grandes
desafios da ciência moderna. Já na tentativa de definição o tema mostra sua
complexidade. Isso porque o conceito de memória varia de acordo com a
especialidade na qual será aplicado.
Como observa Carnelutti, os juristas friamente classificam a testemunha junto
com o documento na categoria de provas, esquecendo-se de que, diferentemente do
documento, a testemunha é uma pessoa, com seu corpo e sua alma, seus interesses e
suas tentações, sua ignorância e sua cultura, sua valentia, seu medo e suas memórias
(lembranças e esquecimentos).
Entretanto, com as restrições técnicas que infelizmente a polícia brasileira –
em regra – tem, a prova testemunhal acaba por ser o principal meio de prova do nosso
processo criminal. E, em que pese a imensa fragilidade e pouca credibilidade que tem
(ou deveria ter), a prova testemunhal culmina por ser a base da imensa maioria das
sentenças condenatórias ou absolutórias proferidas.
Khaled Jr. (2013), citando Alonso Aragoneses, diz, com razão, que enquanto o
processo civil é o reino do documento, o processo penal é o reino do testemunho,
porque no processo penal a prova testemunhal tem sempre valor, pois em muitos
casos não existe outro elemento de prova além do testemunho do acusador ou de
terceiros.
Todavia, em que pese a prova oral ser de grande valia para o processo, trata-se
de uma das modalidades mais frágeis, tendo em vista depender da recordação dos
fatos da memória daquele que os narra.
O presente capítulo tem como objetivo analisar o funcionamento da memória,
suas nuanças e a problematização da testemunha (e da vítima) para o processo penal.
1. Memória: conceitos e funcionamento, uma breve síntese
A memória é uma das faculdades cognitivas mais importantes no homem, e
nossa existência é totalmente dependente da mesma. O que seria de nossas vidas,
desde a mais corriqueira tarefa diária, como lembrar-se do que foi feito há algumas
horas (já tomei banho, já me alimentei) e do que será feito dentro de instantes (para
onde vou, com quem vou me encontrar), à lembrança de eventos do passado, bem
como de informações que apreendemos, se não fossemos providos da capacidade
memorial?
Assim, a função básica da memória, como faculdade responsável pela
evocação no presente das informações obtidas no passado, é a capacidade da
lembrança.
É consensual, portanto, que a memória seja preservadora das informações
adquiridas no passado: se o conteúdo mental que ela reteve pode ser considerado
conhecimento, a informação é preservada na mente com o tempo, e quando do
momento da evocação, na lembrança propriamente dita, continua mantendo este
caráter cognitivo.
Uma das definições mais usadas é a memória como a capacidade de guardar a
informação aprendida para posteriormente ser utilizada (Kandel, 2000; Bear, 2002).
Segundo Izquierdo (2002), memória é a aquisição, a formação, a conservação e a
evocação de informações.
Guimarães (2014), aduz que o psicólogo cognitivo Endel Tulving catalogou
nada mais nada menos do que 256 tipos distintos de memória.
Possuímos pelo menos dois sistemas qualitativamente diferentes de
armazenamento da informação, que são normalmente designados como memória
declarativa ou explícita e não-declarativa ou implícita (também chamadas de
"memória de procedimento" ou “procedimental”) (Kandel, 2000; Eichenbaum, 2001;
Izquierdo, 2002). De maneira ampla, a memória declarativa refere-se ao
armazenamento do material que está disponível à consciência, podendo ser
verbalizado (expresso mediante a linguagem), e a memória não-declarativa refere-se
àquela memória não disponível à percepção consciente, pelo menos não de forma
detalhada, estando associadas a comportamentos, hábitos e habilidades (Kandel,
2000). Incluem-se nesta segunda categoria atividades motoras complexas, como
dirigir um automóvel, tocar piano ou andar de bicicleta.
Nas memórias declarativas, há subdivisões, de acordo com o tempo, quais
sejam:
• Memória imediata (registro sensorial) – Este é um sistema de memória
que pode ser chama de memória on-line, porque sua duração é
fracamente persistente e conserva eventos e fatos por apenas alguns
segundos (lembrar o número de telefone no intervalo de tempo entre
olhar a agenda e discá-lo/digitá-lo, a penúltima ou antepenúltima
palavra de uma frase o tempo suficiente para construir o sentido da
mesma). Ela é a capacidade rotineira de manter na consciência, durante
alguns segundos, experiências em andamento. A capacidade desse
registro é muito ampla, envolvendo todas as modalidades (visual,
verbal, tátil, entre outras) e está na base de um sentido contínuo de
“presente” (Purves et al., 2005).

• Memória de Curto Prazo (MCP) – é a capacidade de reter uma


informação por segundos a minutos ou poucas horas, passado o
momento presente. Refere-se ao sistema de memória com capacidade
de poucos itens e que decai rapidamente com o tempo (Bueno &
Oliveira, 2004).

• Memória de Longo Prazo (MLP) – permite a conservação durável das


informações, podendo durar de horas a meses e décadas, ou pela vida
inteira, possibilitando o aprendizado e a consolidação das informações
(Magila, 2004). São exemplos desse tipo de memória as nossas
lembranças da infância ou de conhecimentos que adquirimos na escola.
Refere-se ao sistema de memória com capacidade ilimitada de
processamento e que persiste indefinidamente (Bueno & Oliveira,
2004). As MLP que duram muitos meses ou anos costumam ser
denominadas memórias remotas (Izquierdo, 2002).

As Memórias de curta e longa duração começam a se organizar ao mesmo


tempo, isto é, logo após haver o insight ou a experiência; o que as diferencia é o
tempo de duração. Após a memória imediata ter ‘decidido’ se a informação vai ou
não ser classificada como útil e importante, os dados ficam em stand by até o
momento de se transportar para a memória de longa duração.
O período em que ocorre a formação do traço de memória é chamado de
período de "consolidação". Durante esse período, ocorre a conversão do
armazenamento de curto prazo para longo prazo.
Inicialmente a informação é processada por “depósitos” sensoriais
extremamente transitórios, que armazenam a informação sensorial. A seguir a
informação passa para um “depósito” de curto prazo, de capacidade limitada, que por
sua vez se comunica com um “depósito” de longo prazo, de capacidade ilimitada
(Bueno & Oliveira, 2004).
O papel da memória de curto prazo é crucial neste modelo, pois para atingir a
memória de longo prazo, a informação precisa passar, necessariamente, pela memória
de curto prazo (o que equivale a dizer que a memória permanente já conheceu,
anteriormente, uma forma mais lábil). Além disso, o “portão de saída” da memória de
longo prazo é, também, a memória de curto prazo. É ali (memória de curto prazo) que
se desenvolve a vida mental consciente. Além de armazenar a informação por curtos
períodos, a memória de curto prazo compreende processos de controle, dos quais a
repetição subvocal ou reverberação é um exemplo. O indivíduo pode decidir se repete
ou não determinados itens, os quais recirculam pela memória de curto prazo se a
escolha for positiva (Bueno & Oliveira, 2004). Na concepção de Atkinson e Shiffrin
(citado por Bueno & Oliveira, 2004), quanto mais tempo um determinando item
permanece na memória de curto prazo, maior é a probabilidade de transferência para a
memória de longo prazo.
Se algo que é percebido será ou não lembrado, vai depender de uma série de
fatores. Estes fatores influenciam a natureza e o grau de codificação que ocorre
inicialmente (Squire & Kandel, 2003).
Codificar é literalmente converter a informação em um código, ou seja, o
material que encontramos recebe atenção, é processado e preparado para ser
armazenado na memória (Squire & Kandel, 2003). A partir da codificação, o processo
de memorização envolve outros dois estágios, o armazenamento e a decodificação.
Estes três estágios são também conhecidos como aquisição, consolidação e evocação.
A memória envolve diferentes módulos do sistema nervoso com habilidades
próprias, as quais, por sua vez, funcionam de modo independente e associativamente.
As informações são processadas de forma paralela e distribuídas, permitindo que
associações livres em partes diferentes do tecido neural culminem ao final, com o
processamento ordenado de informações e a criação de novas memórias.
Como esse armazenamento ocorre, quais áreas cerebrais estão envolvidas e
como essas áreas se relacionam não está suficientemente entendido.
Sabe-se, todavia, que a memória visual necessita da percepção visual, isto é,
da recepção e interpretação dos sinais do meio ambiente que nos cerca. A maior parte
das impressões do mundo que nos rodeia e de nossa memória a respeito delas, é
baseada na visão. Entretanto, não há um completo domínio de como é feito a recepção
e o processamento destes sinais, no entanto, sabe-se que, para memorizar, é necessária
a recepção destes sinais através dos canais da percepção. Torna-se necessário, então,
vencer a etapa da percepção para chegarmos à classificação efetiva dos conteúdos
percebidos, permitindo seu reconhecimento posterior (Kandel, Schwartz, Jessel,
1997).
A visão é um sentido notável que nos permite detectar coisas minúsculas e
próximas, ou imensas e distantes do mundo que nos cerca. A percepção visual refere-
se à forma como nosso cérebro interpreta o que os olhos veem.
A primeira “estação” sináptica na via que serve à percepção visual ocorre, em
um grupo de células do tálamo dorsal também chamado de núcleo Geniculado lateral,
do qual a informação ascende ao córtex cerebral onde será interpretada e lembrada
(percepção e memória) (Kandel, Schwartz, Jessel, 1997). Ou seja, a imagem de um
objeto é transmitida da retina até o córtex visual no lobo occipital e, a partir desse
ponto, o impulso nervoso caminha para os lobos parietal e temporal até o lobo frontal.
O córtex estriado (chamado V1) é a primeira área cortical a receber
informação do Núcleo Geniculado Lateral. A percepção visual inicia-se aí (córtex
paraestriado e periestriado). Essas áreas circundam o córtex visual e têm sido
descritas como responsáveis pela memória visual. Também comunicam-se com o giro
angular, no lobo parietal, onde o cérebro interpreta o que o olho vê.
A informação visual, processada pelo córtex de associação visual, flui em duas
direções: dorsalmente, em uma corrente de ação para a porção posterior do lobo
perietal, e, ventralmente, em uma corrente de percepção para os lobos occipito-
temporais. A informação na corrente dorsal é utilizada para ajustar os movimentos
dos membros (Lundy-Ekman, 2004). A corrente ventral se ocupa da construção da
forma dos objetos e padrões complexos, o que vais ser importante para o
reconhecimento de faces, objetos e palavras. Interrupções das conexões destas regiões
com áreas límbicas podem acarretar em amnésia visual (incapacidade de armazenar
novas memórias visuais) (Consenza, 2004).
Assim, as memórias são de crucial importância para a adaptação do indivíduo
na sociedade. São compostas de neurônios, seu armazenamento localiza-se em redes
neurais e sua evocação se dá pelas mesmas redes neurais ou por outras. São
moduladas pelo nível de consciência, estados de ânimo e pelas emoções, sendo o
ânimo e as emoções os maiores reguladores da aquisição, formação e evocação das
memórias (Izquierdo, 2002).
Vulgarmente, se acredita que o único problema da memória é o esquecimento.
A impressão primeira é que todos os acontecimentos importantes da vida de cada um
ficam gravados em algum cantinho da mente. Então, quando fosse necessário lembrar,
bastaria acionar um dispositivo que imediatamente começaria a rodar um filme. Sabe-
se, entretanto, que detalhes de alguns fatos são esquecidos e também, muitas vezes,
situações já vividas não conseguem ser lembradas, como se tivessem sido apagadas
completamente.
Isso ocorre, pois, entre a apreensão de um fato através dos sentidos, sua
codificação e armazenamento na memória e a posterior evocação desse evento,
podem ocorrer falhas.
Schacter (2001) se preocupou em analisar as causas e as consequências das
distorções mnemônicas através da apresentação de alterações que foram por ele
chamadas de “sete pecados” da memória. Os “sete pecados” foram denominados de
transitoriedade, superficialidade, bloqueio, engano, sugestão, distorção e persistência.
Além de o processo mnemônico não ser fidedigno à realidade, pois a memória
não reconstrói os acontecimentos tal e qual eles ocorreram, proporcionando apenas
uma versão aproximada e parcial, a lembrança ainda pode estar sujeita à
contaminação de várias ordens. Quanto maior o transcurso de tempo entre o
acontecimento e o relato, maior a possibilidade de os detalhes desvanecerem-se. Isso
porque a tendência da memória, superado o dualismo cartesiano da separação entre
razão e emoção, é justamente armazenar apenas a emoção do acontecimento.
Essas situações ocorrem muitas vezes no nosso dia a dia e podem acarretar em
consequências inesperadas principalmente se levarmos essa problemática para dentro
do processo penal onde, além do mais, o contato com outras pessoas, a leitura dos
jornais e a forma com que são inquiridas podem influenciar a percepção da vítima e
da testemunha sobre aquilo que elas realmente sabem.

2. Testemunhas / vítimas e os depoimentos no processo penal


Os depoimentos e as provas testemunhais são elementos básicos no Direito.
Na falta de evidências materiais (e mais das vezes até com evidências materiais), o
testemunho obtém um valor decisivo na sentença de condenação ou na absolvição de
uma pessoa.
Para Messias (1999), a palavra testemunha tem origem epistemológica em
testari, que significa fazer afirmativa, relatar com atestado de fé. Já, para Khaled Jr
(2013), a etimologia da palavra testemunha remete à superstes, expressão em latim
que significa aquele que passou por uma experiência e que por isso pode depor sobre
ela.
A testemunha (presencial) é a pessoa que esteve próxima ao fato, no momento
em que este ocorreu, assistindo-o, ou que conhece detalhes e circunstâncias
antecedentes a esse fato. Portanto, ampara-se em um critério de autoridade, embasado
na dimensão da presença: “eu vi, eu estava lá, eu constatei”. A prova testemunhal,
nesse contexto, é fruto da observação pessoal dos fatos que tenha interesse jurídico e
se constitui na forma mais antiga das provas judiciárias.
A prova testemunhal no campo penal tem três características: oralidade,
objetividade e retrospectividade. Como a oralidade é um dos princípios do próprio
processo penal, a prova testemunhal deve ser colhida mediante uma narrativa verbal
prestada em contato direto com o policial civil ou militar (nos inquéritos) e o juiz (nos
processos).
A segunda característica é a objetividade: a testemunha deporá somente sobre
fatos, reproduzindo-os sem emitir qualquer juízo de valor ou opinião pessoal.
Portanto, o escopo da prova testemunhal é apenas a reprodução de um fato.
Como retrospectividade, se entende que a testemunha é chamada para
reproduzir fatos passados, acontecimentos pretéritos conhecidos e nunca para fazer
previsões sobre o futuro.
Exige-se das testemunhas e vítimas um relato o mais exato possível do que
aconteceu. Nesse sentido, policiais, promotores, advogados, juízes parecem, muitas
vezes, ainda partir de um princípio objetivista da realidade, isto é, creem e esperam
que o testemunho seja um resgate direto e puro de uma realidade passada que deve,
meramente, ser transportada para o presente (“ora, você não presenciou o fato? então,
simplesmente conte exatamente como aconteceu”). Esta concepção objetivista
pressupõe que as pessoas representam internamente a realidade como fosse uma
réplica exata do mundo externo e, por conseguinte, passível de ser verificável e
recuperável a qualquer momento, sob qualquer condição, tal como um vídeo-
audiogravado.
Esta lógica objetivista na qual um testemunho deveria ser um simples reflexo
de uma realidade anterior vivenciada, isento de contaminações ou vieses
(“simplesmente reflita e relate exatamente o que ocorreu”), ainda é mantida por
alguns atores jurídicos. Corroborando esta ideia, o próprio artigo 213 do Código de
Processo Penal brasileiro desconsidera a subjetividade da testemunha, considerando o
relato como um ato totalmente objetivo: “o juiz não permitirá que a testemunha
manifeste suas apreciações pessoais, salvo quando inseparáveis da narrativa do
fato”.
No entanto, esta ótica objetivista sobre o testemunho, que facilitaria o trabalho
policial e jurídico, não se confirma na prática, uma vez que a mente humana não é
perfeita nem protegida das influências mais diversas. A percepção de qualquer evento
é repleta de interpretações, expectativas, inferências e interferências de inúmeras
ordens. Logo, as representações mentais que baseiam um testemunho estão longe de
serem completas e/ou réplicas quase idênticas de algo ocorrido no passado.
Sendo assim, a recordação da testemunha acerca de um fato delituoso não
significa reconstruí-lo exatamente da mesma forma como este ocorreu na realidade.
Nesse processo de tradução (da representação mental da realidade), é natural e
esperado que aconteçam reduções e transformações da experiência a ser traduzida, ou
seja, a memória de um evento pode ser mais ou menos distante do que, de fato,
aconteceu. O cérebro acaba por transformar e agir sobre a realidade, modificando-a e,
por fim, comprometendo a exatidão do conteúdo transformado em memória. A
simples passagem do tempo, também, é um dos fatores mais determinantes sobre o
processo mnemônico (Baddeley et al., 2011).
Batistelli (1963) já afirmava que o depoimento inexato da testemunha nem
sempre se reveste do caráter da mentira. Muitas vezes revela um erro dos sentidos. As
afirmações feitas em audiências ou em interrogatórios policiais podem ser de boa fé,
sem que a pessoa tenha, de alguma maneira se percebido do engano. Nesse caso, os
depoimentos são tidos como erros de percepção ou de memória, ou seja, ilusões.
Para os pesquisadores em Psicologia Cognitiva, os erros testemunhais não
representam novidade, uma vez que há muito tempo estão familiarizados com a
natureza imperfeita dos processos cognitivos, especialmente da memória (Loftus,
1979). Por outro lado, este ainda é um tópico pouco conhecido, cientificamente, por
leigos, jurados e operadores da lei em geral. Na esfera jurídica, os responsáveis pela
aplicação das leis tendem a avaliar as oitivas testemunhais de forma pouco crítica e
não científica, com a expectativa de que as informações fornecidas refletirão os fatos
passados natural e objetivamente.
Com base em pesquisas e avanços científicos da Psicologia do Testemunho,
países como o Reino Unido, Estados Unidos, Noruega, Austrália, Nova Zelândia e
Canadá já implantaram, inclusive, mudanças em seus sistemas legais que
modificaram a abordagem e a condução das entrevistas investigativas e forenses com
adultos e crianças. Segundo Luciano Haussen Pinto (2015) foram criados modelos
como, por exemplo, o PEACE (Clarke & Milne, 2001); a Entrevista Cognitiva (Fisher
& Geiselman, 1992; Geiselman et al., 1984); o Step-Wise Interview (Yuille, Hunter,
Joffe, & Zaparniuk, 1993); o Protocolo de Entrevista Forense da CornerHouse -
RATAC (“Finding Words”; Anderson et al., 2010), o protocolo do National Institute
of Child Health and Human Development (NICHD; Lamb, Orbach, Hershkowitz,
Esplin, & Horowitz, 2007); e a Self-Administered Interview (SAI; Gabbert, Hope, &
Fisher, 2009). Enquanto isso, no Brasil, tais modelos permanecem praticamente
desconhecidos, pouco estudados e, consequentemente, não utilizados nas práticas
profissionais cotidianas.
Deste modo, há sérios riscos envolvidos nos casos em que a palavra da
testemunha e/ou vítima é a principal fonte de prova. Por isso, a importância de que
todos atores do campo jurídico tenham mais conhecimento sobre a memória humana,
não ignorando e/ou negligenciando a sua natureza falível e todas as variáveis
relevantes que a circundam.
É preciso saber lidar com essa situação através de medidas de redução de
danos, evitando que milhares de sentenças condenatórias sejam proferidas com base
neste único meio de prova.

Considerações Finais
A constatação de que injustiças, às vezes, são cometidas por imperícia e/ou
obscurantismo do próprio Estado talvez seja uma das piores máculas que qualquer
sociedade democrática possa sofrer.
Como visto, a prova testemunhal tem sua credibilidade seriamente afetada,
isso sem falar na possibilidade da mentira e das falsas memórias . Nessa mesma
197

dimensão, situa-se o reconhecimento do investigado, cuja valoração probatória não


pode desconsiderar esses fatores, pois igualmente depende da complexa variável
“memória”.
Conforme destaca Aury Lopes Jr (2018), deve-se considerar a existência de
diversas variáveis que modulam a qualidade da identificação, tais como o tempo de
exposição da vítima ao crime e de contato com o agressor; a gravidade do fato; o

197
Sobre as falsas memórias imprescindível o aprofundamento do tema com os estudos realizados por
ELIZABETH LOFTUS e os escritos de Marina Kayser Boscardin e Cristina Di Gesu.
intervalo de tempo entre o contato e a realização do reconhecimento; as condições
ambientais (visibilidade, aspectos geográficos etc); as características físicas do
agressor; as condições psíquicas da vítima, enfim, todo um feixe de fatores que não
podem ser desconsiderados . 198

Sendo assim, no testemunho surge uma crise de crença, que pode autorizar-se
a pensar toda a sua dinâmica a partir da suspeita como pressuposto. Somando a isso o
problema da percepção limitada e de que toda a apreciação de uma ação implica uma
valoração, fica claro o quanto o testemunho é problemático. Eis aí a tolice de afirmar-
se que é possível a obtenção da verdade correspondente sobre o passado, sendo que na
maioria das vezes o meio de acesso se dá através de depoimentos (Khaled JR, 2013).
Em suma, conhecer detalhadamente a memória e suas limitações, possibilita
que sejam desenvolvidas e adotadas técnicas passíveis de otimizar as entrevistas
investigativas, auxiliando, assim, a testemunha a fornecer depoimentos mais
completos e fidedignos. Criando-se e utilizando-se técnicas eficazes, pode-se obter
informações em maior quantidade e melhor qualidade do que as entrevistas
tradicionais realizadas, muitas vezes, em condições impróprias e conduzidas de forma
sugestiva e tendenciosa por profissionais indevidamente preparados.

Referências

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Memória. Porto Alegre: Artmed, 2011.

BATISTELLI, L. A mentira nos tribunais, estudos de psicologia e


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2004.

198
O doutrinador Aury Lopes Jr, ainda adverte quanto ao efeito do foco da arma, onde a sua presença
distrai a atenção do sujeito de outros detalhes físicos importantes do autor do delito, reduzindo a
capacidade de reconhecimento. Tal variável deve ser considerada altamente prejudicial para um
reconhecimento positivo, especialmente nos crimes de roubo, extorsão e outros delitos em que o
contato agressor-vítima seja mediado pelo uso de arma de fogo.
CONSENZA, R.M. Bases estruturais do Sistema Nervoso. In: Andrade VM,
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FALSAS MEMÓRIAS NO PROCESSO
PENAL: UMA ANALISE PRÁTICA SOB O
VIÉS DA PSICOLOGIA DO TESTEMUNHO.
DA CRIAÇÃO ATÉ O ERRO JUDICIAL.
ESTUDO DE CASO.

Michel França199

Introdução
O presente artigo visa demonstrar e exemplificar os traços da memória, desde
a sua criação, armazenamento e evocação, para demonstrar que a memória de todo ser
humano saudável não é uma máquina filmadora, bem assim sujeita-se a
sugestionabilidades do mundo externo, que podem influenciar na evocação das
recordações. Será abordada a criação de falsas memórias em um estudo de caso
prático de um processo criminal em que o reconhecimento e a prova testemunhal
judicializada encontravam-se embasadas em falsas memórias. No caso, a
contaminação da conjuntura probatória por falsas memórias resultou na condenação
do réu à uma pena de 12 anos de prisão em regime fechado, sendo modificada apenas
em segunda instância, pelo Tribunal de Justiça do Rio grande do Sul, que anulou a
decisão e determinou a realização de um novo júri.

1. Memória
Após longo período de pesquisas realizadas, verificou-se que a memória não é
algo unitário e divide-se em vários tipos. A memória do ser humano funciona por três
processos básicos: codificação, armazenamento e recuperação.
Memória não é somente a capacidade de relembrar de um fato passado, mas
também de codificar, armazenar e recuperar, ou seja, não é um processo único. A
memória está na origem de todo ato cognitivo.
A codificação é aquilo visualizado, lido e ouvido, porém nem tudo codificado
pela mente é armazenado por tempo ilimitado. Muitas vezes, algumas leituras
realizadas são facilmente esquecidas (memória de curta duração), enquanto outras
poderão ser lembradas por vários anos (memória de longo prazo).

199
Advogado Criminalista. Graduado em Direito pela PUCRS. Especializando em Ciências Penais pela
mesma Instituição com formação em Psicologia Forense pela Sociedade Brasileira de Psicologia
Forense.
Conforme leciona (Izquierdo 2006)200, a memória é o armazenamento de
informações obtidas por meio de experiências vividas, tendo a capacidade de
conservação e evocação das informações gravadas em nosso cérebro, fazendo com
que cada indivíduo seja como é.
Partindo disso, a capacidade de fixar, conservar e evocar constituem a
memória. Entretanto, ela é armazenada e evocada por redes de neurônios, sendo
moduláveis pelas emoções, pelo nível de consciência e pelo estado de ânimo. A
memória é maleável, seletiva e mutável, podendo ser alterada pelo meio em que
vivemos, pela sugestionabilidade, pela emoção ou estresse. A maneira como a
memória é armazenada no cérebro influencia no processo de recuperação, sendo este
o meio responsável pela lembrança.
O fator emocional de uma memória é outro aspecto relevante, muitas vezes
vítimas ou testemunhas de um crime passam por uma carga emocional gigantesca que
podem alterar a recuperação da memória. É nesse solo fértil que são plantadas as
falsas memórias.
Isso por que, instintivamente, na ânsia de achar um culpado ou para se afastar
logo daquela situação (reviver os fatos traumáticos), diante da ignorância ao fato
ocorrido, a mente vai completando as lacunas esquecidas, isso pode ocorrer tanto pelo
trauma vivido, pela sugestionabilidade de quem pergunta, por conversar com outras
testemunhas.
Imagine que duas pessoas foram testemunhas presenciais de um fato, porém
cada uma avistou o ocorrido sob ângulo diferente outra. À grosso modo, uma viu de
um lado e outro viu de outro. Atente-se que as duas presenciaram o mesmo
acontecimento de perspectivas diferentes, contudo as testemunhas começam a
conversar entre si e contar suas versões, nesse momento o que uma testemunha não
viu, ficou sabendo pela outra testemunha, e vai preenchendo as lacunas das suas
lembranças que não havia visto.
Ou seja, a própria conversa entre testemunhas de um mesmo fato, pode criar
falsas memórias e o resultado é muito grave quando se trata de processo penal.
O tempo é outro fator importante na evocação da memória, pois nem tudo que
codificamos, armazenamos a longo prazo, não raras vezes o depoimento de uma
testemunha transcorre um ano entre o fato e o depoimento. Não só isso, o fator local é

200
IZQUIERDO, Iván. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2002.
determinante com uma testemunha, convocando-a para um ambiente desconhecido
para ela (uma sala de audiência) com três atores processuais questionando-a sobre o
que ela lembra, viu ou não viu. É complexo e intimidador, pois por muitas vezes a
testemunha se obriga a lembrar de um fato que sequer presenciou por estar na frente
de um juiz, figura que passa autoridade, passando a proferir declarações sobre o que
não sabe pelo sentimento de obrigação ao testemunhar e ajudar a “justiça”.
Nesse contexto, quanto mais emotiva e intensa for o momento da colheita
dessa lembrança (prova), mais difícil da testemunha recuperar essa lembrança e
externar.
Por este viés, que não é aconselhável forçar, ameaçar, falar em tom mais
grosso forçando a lembrança, tendo em vista a probabilidade do esquecimento
involuntário devido a carga emocional é grande.
Os mecanismos psíquicos inconsciente do indivíduo o protegem dos fatos
traumáticos e dolorosos, fazendo com que ocorra um bloqueio das lembranças. Um
exemplo é o fato de alguma testemunha quando senta à frente de um juiz, quando
qualificada esquece o próprio endereço, pois o ambiente pra ela não é agradável. O
emocional afeta a evocação da memória, assim como o ambiente, pressão e perguntas
sugestionáveis.

2. Falsas memórias
Pontuado o funcionamento da memória, o presente trabalho tem o condão de
demonstrar não só que a memória não é confiável por não ser uma máquina de filmar,
mas que mesmo de boa-fé, facilita a lembrança em um testemunho de fatos que não
presenciamos. Não significa dizer que trata-se de uma mentira, até por que a mentira é
algo deliberado, ou seja, a testemunha inventa algo através de um ato consciente. Na
falsa memória é diferente, uma vez que a testemunha crê veementemente que aquilo
seja uma verdade. Realmente se acredita que aquela reconstrução dos fatos aconteceu.
A memória é passível de falhas, sendo possível o esquecimento de
informações importantes e lembrança de detalhes que nunca ocorreram. A principal
função da memória não é recordar o passado de forma fiel, mas sim utilizar as
informações adquiridas para dar suporte a decisões e julgamentos (Trindade, 2017).
A reconstrução da verdade no processo penal é algo intangível, mas ficamos
presos a busca da verdade real, já dizia Heidegger, “a verdade é um todo e o todo é
demais pra nós humanos”201.
No mesmo sentido afirma Cristina di Gesu:

Um dos grandes problemas da prova está na contaminação da reconstrução de


fatos passados, principalmente pelo modo como a prova é colhida. O desvio do
escopo do processo, ou seja, a procura desmedida por uma “verdade real” –, acaba
por influenciar a memória das pessoas que depõem no processo e até mesmo antes
dele202.

O processo é sempre passado, por isso (Carnelutti, 1965) afirma que o


processo penal é uma máquina de retrospectiva. Em se tratando de processo penal, a
principal prova ainda é a testemunhal, e ela tem grande relevância na reconstrução
dos fatos passados e na identificação de suspeitos.
No brasil há um caos no sistema de investigação criminal, meios antigos,
sucateado, a qualidade das provas técnicas no Brasil são de baixo nível, remetendo a
reconstituição fática quase que exclusivamente com a memória de determinadas
pessoas, muitas vezes que passaram por um evento traumático.
A nocividade das falsas memórias revela-se na circunstância de que podem
conter elementos muito mais detalhados ou parecer muito mais vívidas do que as
memórias verdadeiras (Loftus, 2005)203. Os estudos de Loftus demonstram que falsas
memórias são muito convincentes, justamente porque podem ser muito detalhadas e
afirmadas pela pessoa com segurança e emoção.
Já dizia salvador dali, “A diferença entre as lembranças falsas e as
verdadeiras é a mesma que existe entre as joias: As falsas sempre parecem mais
brilhantes e reais”. Significa dizer que se tem um testemunho mais delineado e rico
em detalhes quando diante de uma falsa memória, mancomunado de desdobramentos,
mais complexo e floreado do que aquele testemunho de quem realmente presenciou
algo, pois as lacunas do que foi esquecido ou até não visto serão preenchidos com as
experiências da testemunha, com as sugestões das perguntas, do que foi dito até ali.

201
HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer, 1927.
202
DI GESU, Cristina. Prova penal e falsas memórias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 165.
203
LOFTUS, Elizabeth. As falsas lembranças. Revista Viver Mente e Cérebro, n. 2, 2005.
Em linhas gerais pode-se dizer que falsas memórias são lembranças de eventos
significativos ou triviais que não ocorreram, mas que são recordados como se
tivessem sido realmente vivenciados. (Stein, 2010)
As falsas memórias podem ser formadas de maneira natural, através da falha
na interpretação de uma informação ou ainda por uma falsa sugestão externa,
acidental, ou deliberada, apresentada ao indivíduo”204.
De acordo com os estudos de Loftus, existem dois tipos de falsas memórias: as
que decorrem de fatos que não existiram e o ressurgimento de recordações reprimidas
a partir da inflação da imaginação. Ainda conforme Loftus: “as falsas lembranças são
elaboradas pela combinação de lembranças verdadeiras e de sugestões vindas de
outras pessoas”205.
As falsas memórias estão classificadas como Espontâneas e como Sugeridas.
As espontâneas são resultantes de distorções endógenas, ou seja, internas ao sujeito.
Essas distorções, também denominadas de autossugeridas, ocorrem quando a
lembrança é alterada internamente, fruto do próprio funcionamento da memória, sem
interferência de uma fonte externa à pessoa. No que tange as falsas memórias
sugeridas, elas advêm da sugestão de falsa informação externa ao sujeito, ocorrendo
devido à aceitação de uma falsa informação posterior ao evento ocorrido e a
subsequente incorporação na memória original206.
Em outras palavras, falsas memórias espontâneas são meros erros da própria
memória. As sugeridas podem ocorrer de forma acidental ou deliberada por sugestão
de terceiros. Desta maneira, as falsas lembranças se formam a partir de induções ou
da fantasia do próprio indivíduo, que acredita ser verdade a falsa recordação
Uma falsa memória não é necessariamente implantada, ela pode decorrer de
uma simples confusão mental, de uma distorção de uma fato inicialmente verdadeiro.
Nossa memória é suscetível à distorção mediante sugestões de informações
posteriores aos eventos. Além disso, outras pessoas, suas percepções e interpretações
podem influenciar a forma como recordamos dos fatos. (Stein, 2010).

204
BARBOSA, Cláudia. Estudo Experimental sobre emoção e falsas memórias. Porto Alegre, 2002.
Dissertação (Mestrado em Psicologia), Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002, p. 27.
205
LOFTUS, Elizabeth. As falsas lembranças. In: Viver mente e cérebro. São Paulo, 2006, p. 93.
206
STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 167.
Na falsa memória a sugestão é sempre posterior ao evento, e a pessoa não tem
consciência desde processo. Não se trata de simulação, mas de algo que a pessoa
verdadeiramente passa a acreditar em uma lembrança que não ocorreu.
Segundo (Trindade, 2017) existem alguns fatores que podem que podem levar
ao surgimento das falsas memórias, são eles: Erro do monitoramento da fonte, fatores
endógenos e exógenos, sugestionabilidade, deferência e conformidade de memória.
Importante debruçar sobre os dois aspectos que mais chamam a atenção, para
compreensão acerca do caso prático, sendo eles: erro no monitoramento da fonte e
sugestionabilidade.
O erro no monitoramento da fonte se relaciona com local de onde se originou
a informação a serem armazenadas, durante o processo de construção da memória o
indivíduo pode esquecer a fonte de qual proveio a informação, nesse modo, não sabe
precisar se vivenciou os acontecimentos ou se apenas ouviu falar sobre eles.
Um exemplo é quando se tem certeza que ouviu uma notícia de um amigo,
quando na verdade obtivemos a informação pela televisão, com isso, informações
veiculadas pela mídia podem ser introduzidas na memória de longo prazo e
recordamos como se tivessem sido verdadeiramente experiências, eis a grande
problemática do chamado processo penal midiático já alertado por Zaffaroni desde o
final do século XIX.
Essa teoria tem por objetivo julgar a diferença entre a fonte da memória
verdadeira e outras fontes, podendo ser estas últimas internas, como por exemplo, as
emoções da pessoa, seus pensamentos, sentimentos e imagens de que se lembra, ou
externas, como fatos vivenciados pelo sujeito, por exemplo. Deste modo, uma vez
que, por um descuido apenas, a pessoa deixa de monitorar a fonte, informações novas
se confundem com outras já vividas, ou até mesmo com sentimentos, pensamentos,
ocasionando assim, as falsas memórias, por essa razão, ressaltasse que:
A possibilidade de discrimar a fonte da informação lembrada também é suscetível
à interferência da sugestão de falsa informação, tanto acidental quanto deliberada.
Nesses casos, a recuperação precisa da informação é influenciada por informações
geradas antes, durante ou após este evento. A recuperação errônea da fonte de
informação está vinculada à incorporação de múltiplas fontes [...] que distorcem e
atualizam a memória para a informação original (NEUFELD; BRUST; STEIN,
2010, p. 32).

No tocante à sugestionabilidade, ela consiste na tendência de um indivíduo em


incorporar informações distorcidas, provenientes de fontes externas, de forma
acidental ou intencional, às suas recordações pessoais. (in Trindade, 2017).
Depreende-se então, que o fenômeno das falsas memórias pode acontecer em
qualquer pessoa e nos afazeres corriqueiros do dia-a-dia, como ao assistir ao
noticiário e ver uma reportagem na qual os fatos são parecidos com os já vivenciados
pela mesma, ou pela simples sugestão de alguém a lembrar de um acontecimento
passado (Aury Lopes, 2014).
A fixação e a evocação das falsas memórias podem ser influenciadas por
vários fatores, um deles é a repetição do mesmo tipo de sugestão, o que aumenta
consideravelmente a formação da memória falsa. Quanto mais a informação é
repetida, mais ele é introjetada como verdade. No tocante ao processo penal, essa
sugestão pode ser realizada de diversas formas, seja por sugestão de suspeito por
fotografia, seja por perguntas fechadas.
Um exemplo clássico que se vê na maioria dos reconhecimentos é que no
primeiro momento é apresentado um álbum de fotos para a testemunha/vítima e ela
não tem certeza ou não se lembra, Prendem o suspeito predeterminado pela polícia e,
dias depois, é realizado reconhecimento pessoal, dessa vez, a vítima/testemunha
reconhece o suspeito sem sombras de dúvidas. Nesse caso não foi a memória do
evento que foi evocado, mas sim a memória da foto que foi mostrada. Ou seja, não foi
reconhecida a pessoa do evento, mas por sugestionabilidade e repetição foi
reconhecida a pessoa apresentada na fotografia. Pois de uma dúvida razoável no dia
do evento, se transformou em uma certeza sem sombras de dúvidas, e isso acontece
diariamente nas delegacias e é motivo de irresignação, em especial dos advogados,
que labutam contra esse tipo de procedimento que não tem previsão legal. Segundo
Loftus207, a chance de erro nesse tipo de procedimento é maior que 75%.
Ocorre que, nas palavras de Cristina Di Gesu:
Quando o entrevistador está convicto da ocorrência de determinado
acontecimento, molda a sua entrevista, a fim de obter respostas
condizentes com as suas convicções. (p. 177).208

É dizer, basta o investigador ou juiz se convencer da autoria delitiva que a


sugestionabilidade se dará para solucionar o crime com aquele suspeito. Existem duas
maneiras de investigação: a primeira remete a uma análise pormenorizada da cena do
crime e, com dados objetivos, coletar provas e iniciar a busca pelo suspeito; segundo
maneira é encontrar alguém e fazer com que todas as provas se encaixem para

207
Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/falsas-memorias-e-erros-judiciarios-
entrevista-com-elizabeth-f-loftus/> Acesso em: 05 set. 2019.
208
STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 176-177 e 179.
determinada pessoa, por óbvio a segunda maneira não é correta, porém é nossa
realidade.
Dito isso, agora passaremos a análise de um caso de falsas memórias em um
julgamento em que o plenário do júri condenou o réu em 12 anos de prisão em regime
fechado.

3. Psicologia Forense aplicada: estudo de caso concreto


Por questões didáticas e para preservação da identidade das partes, os nomes
serão referidos de maneira fictícia no presente estudo de caso.
A peça acusatória inicial (denúncia) narra um homicídio duplamente
qualificado em que o réu havia efetuado disparos de arma de fogo contra a vítima com
recurso que dificultou a defesa da vítima e por motivo torpe.
Os fatos foram narrados pela única testemunha ocular, a namorada da vítima,
que assim o fez: “que é era domingo, a vítima e sua namorada estavam voltando de
Porto Alegre, quando passou dois rapazes de moto e ficaram encarando a vítima,
nisso a própria vítima questionou para os dois rapazes de moto, “o que está
olhando?” momento em que os motoqueiros pararam e falaram “quer ver a gente te
apagar agora?”.
Após, o Caroneio desceu da moto sem retirar o capacete e com uma arma em
punho ameaçou a vítima, momento em que a namorada implorou pela vida dos dois e,
então, por cima dela, o réu efetuou dois disparos na cabeça da vítima.
O réu teria retornado pra moto e subiram a rua se vangloriando e cantando
vitória, relados da testemunha ocular.
Pra exemplificar melhor o contexto do delito, a vítima tinha uma desavença
com o irmão do réu, que estava preso, e a suspeita era de que esse rapaz que estava
preso fosse o mandante do crime. Todos eram vizinhos e se conheciam, inclusive a
vítima conhecida o réu da época dos bailes, pois já haviam saído em festas juntos.
No mesmo dia dos fatos, a testemunha ocular e namorada da vítima foi prestar
depoimento na delegacia, momento em que afirmou que não reconhecia quem efetuou
o disparo, e não tinha condições de realizar qualquer reconhecimento, porem afirmou
que o autor dos disparos tinha um metro e noventa209 e que ambos estavam de
capacete.

209
No caso em questão a testemunha afirmou que o atirador tinha 1,90cm, entretanto a pessoa
reconhecida, processada e condenada tinha 1,75cm.
Dois dias depois desse primeiro depoimento a testemunha voltou na delegacia
e surpreendentemente reconheceu o autor dos disparos sem sombras de dúvidas,
assinou o termo de reconhecimento e prestou novo depoimento.
Com isso, foi dado início a uma investigação criminal, expedido mandado de
busca e apreensão pra casa deste suspeito, nada foi encontrado.
O suspeito reconhecido foi chamado na delegacia para prestar depoimento e
negou ter efetuado os disparos, pois no mesmo dia do delito estava no aniversário da
madrinha de sua esposa.
Não só isso, o suspeito levou as testemunhas que estavam com ele no dia do
aniversário, mesmo dia e hora dos delitos. Não só isso, comprovou com identidade o
aniversário da madrinha, o qual prestou depoimento e garantiu que o suspeito estava
sim em sua casa, em outra cidade dos fatos, no dia e horário do evento criminoso.
Mesmo o suspeito comprovando que não havia sido ele o autor daquele crime,
foi expedido mandado de prisão e cumprido, o suspeito foi preso preventivamente,
onde lá ficou por mais de um ano.
Foi dado início ao processo, oferecida denuncia, marcada audiência de
instrução para ouvir as vítima e testemunhas, policiais da investigação, testemunha de
defesa e o réu.
As cinco testemunhas de defesa ratificaram o que falaram em fase policial, que
o réu estava no aniversário no mesmo dia, que foi uma confraternização e
comprovaram a data de aniversário. Que o réu permaneceu lá o tempo todo e só saiu
na segunda feira de manhã quando foi trabalhar.
Iniciada a audiência o depoimento da namorada da vítima, única testemunha
ocular, foi no seguinte sentido: referiu que era namorada da vítima na época, estavam
voltando do gasômetro por volta das 20h20min, desceram a rua, quando passou dois
caras numa moto e ficaram cuidando, depois voltaram outros dois e param e
começaram a discutir e ela havia colocado ele pra trás dela defende-lo.
Nesse meio tempo foi interpelada pela juíza de quem teria atirado no seu
namorado, e a testemunha afirmou que foi o réu. Em sequência, a juíza interpelou
então se a testemunha tinha certeza disso, a resposta foi sincera: certeza eu não tenho.
Continuou, dizendo que os policiais haviam lhe perguntado por que ela não falou
quem era quando foi dar o primeiro depoimento na delegacia e mais uma vez ela
afirmou que não sabia quem era, mas que um primo havia lhe falado que foi o réu.
Mais uma vez a juíza questiona se ela não tinha visto na hora que tinha sido o
réu, e a resposta foi negativa mais uma vez, afirmando que ela só olhava para a arma.
A conhecida teoria do foco na arma210
A inquirição continuou, nesse momentos todos querendo saber como ela
reconheceu em delegacia e agora não teria mais aquela certeza. Então a testemunha
afirma, vê eu não vi, depois a polícia descobriu e disseram pra eu falar que tinha sido
ele.
Referiu ainda que no primeiro dia havia falado que não reconhecia, mas depois
foi chamada uma segunda vez, e afirmou que não sabia quem teria efetuado os
disparos, nesse meio tempo os policias disseram que tinha sido ele e ai então a
testemunha só confirmou.
Diante de todo esse cenário a testemunha foi interpelada sobre quem tinha dito
pra ela que foi o réu, e ela inovou, respondendo que quem falou foi o pai da vítima. E
esse foi o depoimento corrompido da única testemunha ocular do delito.
Passaram então a ouvir o pai da vítima nesse caso, que pouco contribuiu, pois
não havia presenciado, entretanto a juíza queria esclarecer quem, afinal, falou que foi
o réu, ele respondeu que ficou sabendo que foi o réu pela testemunha ocular, ela falou
que foi ele.
Ouvida outra testemunha de acusação, neste momento o delegado de polícia
que presidiu o inquérito, o qual afirmou que quem trouxe o nome do suspeito foi a
própria testemunha ocular em seu segundo depoimento. E o delegado só havia tomado
convicção por que ela trouxe o nome e disse que já conhecia ele anteriormente em
épocas de baile.
Conclusão: a única testemunha ocular afirma inicialmente que ficou sabendo
por que ouviu dizer de outras pessoas que foi o réu o autor dos disparos que levaram a
óbito seu namorado, ficou sabendo do autor pelo pai da própria vítima, pois ouviu

210
Em casos com uso de arma a sequência visual das pessoas em cenas traumáticas é diversa da
acontecida em situações normais, dado que a fixação dos olhos se dá justamente no que lhe é estranho,
causador de temor e medo. Um roubo praticado com arma faz com a vítima tenha em seu campo visual
um objeto raro e que convoca a percepção, a saber, o movimento ocular se direciona na arma, a qual
passa a ser objeto direto da percepção. Não raro a vítima consegue descrever com rigor a cor e os
detalhes da arma utilizada, tendo pouca capacidade perceptiva dos demais detalhes da cena (local,
roupa e rosto do acusado). Esse fenômeno foi estudado pelos autores de psicologia e denominado como
fator “foco da arma”, pelo qual o objeto raro (arma) converge a atenção da vítima e faz com que em
nome da sobrevivência a sequência visual preocupe-se basicamente com seu movimento.
dizer na comunidade em que morava. Logo depois, afirmou que ficou sabendo pelos
policiais, que eles já tinham descoberto quem foi e pediu pra ela confirmar.
Na palavra do pai da vítima, apenas afirmou que ficou sabendo não por
populares, mas pela testemunha ocular. Os policiais quando inquiridos também
afirmaram que tomaram conhecimento através daquela testemunha.
Diante de tudo isso, o réu foi a julgamento diante do plenário do júri e foi
condenado por 12 anos de prisão em regime fechado.
Analisando o procedimento adotado, tendo em vista os depoimentos, percebe-
se que foi criada uma falsa memória, tanto sob o viés do erro do monitoramento da
fonte quanto sugestionabilidade. Denota-se que a testemunha ocular já não sabia mais
de onde ficou sabendo sobre a autoria do delito, qual foi sua fonte, se os policiais ou
se ouviu dizer que havia sido o réu que cometeu o delito.
Sob o viés da sugestionabilidade, e não pode ser afirmada a ocorrência
acidental ou proposital, ao que passo a testemunha ouviu dizer que o autor teria sido o
réu e, como ele morava no mesmo bairro ela sabia a fisionomia do réu. Portanto,
quando apresentado um foto à testemunha, não reconheceu o autor dos disparos, mas
sim o “jesus” por que todos disseram que foi ele, ainda que analisasse outras fotos a
imagem foi criada por sugestionamento exterior. Foi sugestionado à testemunha e
repetido várias e várias vezes que o autor teria sido o “jesus”, como podemos perceber
não foi reconhecido a lembrança do fato, mas sim a lembrança de uma fisionomia que
construíram na memória.
E por esse motivo, pela inconsistência dos depoimentos, pela falsa memória
criada pela testemunha que ouviu dizer, que o Tribunal de Justiça anulou a
condenação do réu, devendo, por questões legais e pela soberania do Júri, participar
de novo julgamento.

Considerações Finais
Memoria não é filme com sequência em cenas ou capítulos, memoria é
bagunçada, e vamos buscando as imagens e completando as lacunas com sugestões e
nossa vivencia.
A formação de falsas memórias costuma ocorrer quando há uma exigência
(pressão) social para que o indivíduo recorde determinada informação. Nesse caso era
solucionar a morte de seu namorado, achar um culpado.
Nesse contexto de Processo Penal, se exige um grau de certeza acima da
dúvida razoável para uma condenação, ainda mais em se tratar de penas tão altas, o
estudo das falsas memória possui particular importância na busca de evitar processos
contra inocentes e corrigir injustiças. Como já advertiu Martin Luther King, a
injustiça em um lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar.

Referências

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TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do


Direito. Jorge Trindade. 8. Ed. Ver. Atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2017.
O PROTOCOLO DE ENTREVISTA DO
NICHD: CONSTATAÇÕES, LIMITAÇÕES E
CRÍTICAS

Marina Kayser Boscardin211


Elise Karam Trindade212
Patrícia Cantisani Schäffer Pires213

Introdução
O abuso sexual infantil (ASI) trata-se de uma forma de violência na qual um
adulto utiliza a criança ou adolescente para fins de estimulação sexual. O ASI nem
sempre corresponde a um ato que envolve violência, podendo se dar através de
carinhos inapropriados, beijos, exibição ou exposição da criança à masturbação ou a
um ambiente em que ela presencie a prática de atos sexuais (PELISOLI &
PICCOLOTO, 2010)214.
A detecção do ASI é uma tarefa complexa, pois não existe um indicador
específico que represente inequivocamente que uma criança foi sexualmente abusada.
Por se tratar de um crime silencioso, na maioria dos casos o relato da vítima é a única

211
Psicóloga, inscrita no CRP sob nº 07/21107, graduada em Psicologia (Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS), especialista em Perícia Psicológica Forense (Universidade
Autônoma de Barcelona - UAB), Pós-graduada em Psicopatologia Clínica (Universidade de Barcelona
- UB), Mestre em Psicologia com ênfase em Cognição Humana (Escola de Humanidades da Pontificia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS), Membro da Sociedade Brasileira de Psicologia
Jurídica (SBPJ), Diretora da Associação Brasileira Criança Feliz (ABCF-POA), Sócia do Instituto de
Psicologia Prof. Jorge Trindade.
212
Psicóloga inscrita no CRP sob nº 07/15329; graduada em Psicologia (Universidade Luterana do
Brasil - ULBRA); especialista em técnicas psicoterápicas psicanalíticas com crianças e adolescentes
(NUSIAF - Universidade de Coimbra, Portugal); diplomada em Estudos Avançados (DEA -
Universidade da Extremadura, Espanha); doutoranda na área de intervenção psicológica em saúde e
educação (Instituto Superior Miguel Torga, Portugal); especialista em Psicologia Forense (IMED);
membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica (SBPJ) e da Asociación Latino-americana de
Magistrados, Funcionarios, Profesionales y Operadores de Niñez, Adolescencia y Familia (Argentina);
Sócia do Instituto de Psicologia Prof. Jorge Trindade.
213
Psicóloga, inscrita no CRP sob n° 07/27.849. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia e Saúde da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Especialista em Psicologia Clínica (FTEC/IBGEN Instituto Brasileiro de Gestão e Negócios).
Administradora de Empresas (PUC-RS), especialista em Finanças (PUC-RS) e Marketing (PUC-RS).
Extensão em Aconselhamento de Carreira (UFRGS) e Direitos Humanos, Prevenção da Violência e
Mediação de Conflitos (UFCSPA). Atuou como consultora em Gestão de Pessoas realizando
Recrutamento, Seleção, Treinamentos, Desenvolvimento de Pessoas e Grupos, Orientação Profissional
e Planejamento de Carreira. Membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica (SBPJ). Sócia no
Instituto de Psicologia Prof. Jorge Trindade. Possui experiência em Avaliação Psicológica e
Neuropsicológica em contextos clínicos, judiciais e de orientação vocacional, além da atuação como
assistente técnica no âmbito do Direito Civil, Familiar, Trabalhista e Criminal.
214
PELISOLI, C.; PICCOLOTO, L. B. Prevenção do abuso sexual infantil: Estratégias cognitivo-
comportamentais na escola, na família e na comunidade. Revista Brasileira de Terapias
Cognitivas, 6(1), 108-137, 2010.
prova que resta. Assim, a avaliação psicológica multidisciplinar ganha uma posição
de extrema importância para a detecção do ASI (CUNNINGHAM, 2009)215.
Para evitar que as crianças sejam revitimizadas ao passarem por repetidas
entrevistas, foram idealizadas algumas metodologias como o Depoimento Especial,
por exemplo (PELISOLI, DOBKE & DELL’AGLIO, 2014)216. Porém, a proteção das
crianças vai muito além de simplesmente diminuir o número de oitivas realizadas.
Nesse sentido, os métodos utilizados para tais oitivas devem ser adequados, contando
com técnicas que favoreçam o mínimo de sugestionabilidade e indução (GOODMAN
& QUAS, 2008)217.
O uso de questões abertas em entrevistas investigativas com crianças é
indicado por reconhecidamente propiciar a evocação de relatos mais fidedignos e
detalhados (LAMB, HERSHKOWITZ, ORBACH & ESPLIN, 2008) 218 . Porém,
mesmo que existam vastas pesquisas e conhecimento científico sobre quais as
melhores práticas a serem adotadas nas entrevistas investigativas infantis, algumas
pesquisas demonstram que os entrevistadores pouco utilizam tais recomendações em
sua prática (CEDERBORG, ORBACH, STERNBERG, & LAMB, 2000)219.
Com o objetivo de criar instrumentos que melhorassem a qualidade dos relatos
de crianças/adolescentes vítimas de violência, ao longo dos anos foram criados
diversos modelos de entrevista forense, como a Entrevista Cognitiva, a Entrevista
Cognitiva Aprimorada, a Entrevista Passo-a-Passo, o Guia de Entrevista Achieving
Best Evidence in Criminal Proceedings, o Protocolo de Entrevista Forense da
CornerHouse (RATAC) e o Protocolo de Entrevista Forense do National Institute of
Child Health and Human Development (NICHD) (PEIXOTO, RIBEIRO &
MAGALHÃES, 2013)220.
Apesar da existência de diversos protocolos de entrevista investigativa,
215
CUNNINGHAM, A. A escuta de crianças abusadas sexualmente para compreensão do processo de
revelação. In: L. C. A. WILLIAMS & E. A. C. ARAÚJO (Eds.). Prevenção do abuso sexual infantil:
um enfoque interdisciplinar (pp. 84-97). Curitiba: Juruá, 2009.
216
PELISOLI, C.; DOBKE, V.; DELL'AGLIO, D. D. Depoimento especial: para além do embate e
pela proteção das crianças e adolescentesvítimas de violência sexual. Temas em Psicologia, 22(1), 25-
38, 2014.
217
GOODMAN, G. S.; QUAS, J. A. Repeated interviews and children's memory: It's more than just
how many. Current Directions in Psychological Science, 17(6), 386-390, 2008.
218
LAMB, M. E.; HERSHKOWITZ, I.; ORBACH, Y.; ESPLIN, P. W. The psychology of crime,
policing and law. Tell me what happened: Structured investigative interviews of child victims and
witnesses. Hoboken, NJ, US, 2008.
219
CEDERBORG, A.; ORBACH, Y., STERNBERG, K. J.; LAMB, M. E. Investigative interviews of
child witnesses in Sweden. Child Abuse & Neglect, v. 24, n. 10, p. 1355-1361, 2000.
220
PEIXOTO, C. E.; RIBEIRO, C.; MAGALHÃES, T. Entrevista forense de crianças alegadamente ví
timas de abuso. Agressões sexuais: Intervenção pericial integrada, p. 75-102, 2013.
atualmente o Protocolo do NICHD parece ser o mais reconhecido no que diz respeito
ao cumprimento dos objetivos de um procedimento desta natureza, bem como a sua
validade e fiabilidade empírica (PEIXOTO, RIBEIRO & ALBERTO, 2013)221.
Atualmente o Protocolo do NICHD tem sido utilizado em vários países, como
Israel, Estados Unidos, Suécia, Canadá, Reino Unido, Portugal e Brasil.
Neste capítulo primeiramente será abordado do que se trata o Protocolo do
NICHD e, posteriormente, serão tecidas algumas críticas à metodologia, de forma a
elucidar suas fragilidades, contribuindo para aprimoramentos futuros.

1. O Protocolo do National Institute of Child Health and Human


Development (Nichd)
O Protocolo do NICHD foi desenvolvido após a constatação de que muitos
profissionais enfrentam dificuldades em aderir às boas-práticas em entrevista
investigativa, utilizando perguntas sugestivas e passíveis de indução (CEDERBORG,
ORBACH, STERNBERG & LAMB, 2000) 222 . Dessa forma, consiste em uma
entrevista estratégica para estimular a construção de narrativas acerca de possíveis
eventos traumáticos (ROBERTS, BRUBACHER, POWELL & PRICE, 2011)223.
De acordo com seus idealizadores, o Protocolo do NICHD privilegia a
utilização de questões abertas, com o objetivo favorecer a memória de
reconhecimento, prevenindo a sugestionabilidade mais direta. Por outro lado, a
utilização de questões de múltipla escolha levaria a criança a fornecer informações
que não decorrem da sua memória episódica, mas de acontecimentos supostamente
vivenciados.
O Protocolo do NICHD apresenta algumas semelhanças com a Entrevista
Cognitiva (EC), mas conta com um número maior de questões abertas, que buscam
facilitar o acesso à memória de eventos específicos, tornando o relato mais preciso
(LAMB, HERSHKOWITZ, ORBACH & ESPLIN, 2008)224.

221
PEIXOTO, C. E,; RIBEIRO, C.; ALBERTO, I. O Protocolo de Entrevista Forense do NICHD:
contributo na obtenção do testemunho da criança no contexto português. Revista do Ministério Público,
v. 134, p. 1, 2013.
222
CEDERBORG, A.; ORBACH, Y., STERNBERG, K. J.; LAMB, M. E. Investigative interviews of
child witnesses in Sweden. Child Abuse & Neglect, v. 24, n. 10, p. 1355-1361, 2000.
223
ROBERTS, K. P.; BRUBACHER, S. P.; POWELL, M. B.; PRICE, H. L. Practice
narratives. Children’s testimony: A handbook of psychological research and forensic practice, 129-145,
2011.
224
LAMB, M. E.; HERSHKOWITZ, I.; ORBACH, Y.; ESPLIN, P. W. The psychology of crime,
policing and law. Tell me what happened: Structured investigative interviews of child victims and
witnesses. Hoboken, NJ, US, 2008.
Atualmente o Protocolo do NICHD tem sido um dos protocolos mais
indicados para entrevistas investigativas, principalmente quando existe suspeita de
abuso sexual infantil (DION & CYR, 2008)225. É considerada uma técnica adequada
para atingir uma larga faixa etária, compreendida dos 4 aos 13 anos de idade.
Entretanto, sua aplicação pressupõe a capacitação dos profissionais e seu constante
aprimoramento, assim como rigorosos critérios de monitoramento e feedback, o que
supõe um permanente trabalho de supervisão.
Lamb e colegas (2007)226 estruturaram o Protocolo do NICHD em duas
partes distintas: a fase pré-substantiva e a fase substantiva.

1) Fase pré-substantiva: esta etapa foi idealizada com o intuito de preparar as


crianças/adolescentes para as tarefas que terão que executar durante a fase substantiva
da entrevista 227 , contando com duas etapas: Etapa Introdutória e Construção do
Vínculo.
2) Fase substantiva: nesta etapa o entrevistador deverá abordar o tema foco
da entrevista. No caso de violência contra a criança, é nesta fase que o entrevistado
será incentivado a falar sobre o acontecimento traumático.

O esquema a seguir visa representar, os passos e procedimentos do protocolo


NICHD.

225
DION, J.; CYR, M. The use of the NICHD protocol to enhance the quantity of details obtained from
children with low verbal abilities in investigative interviews: A pilot study. Journal of Child Sexual
Abuse, 17, 144-162, 2008.
226
LAMB, M. E.; ORBACH,Y; HERSHKOWITZ, I.; ESPLIN, P.W.; HOROWITZ, D. A structured
forensic interview protocol improves the quality and informativeness of investigative interviews with
children: A review of research using the NICHD Investigative Interview Protocol. Child Abuse &
Neglect, v. 31, n. 11-12, p. 1201-1231, 2007.
227
SAYWITZ, K. J.; GEISELMAN, R. E. Interviewing the child witness: Maximizing completeness
and minimizing error. Truth in memory, p. 190-223, 1998.
NICHD

I Pré-substantiva II Substantiva

5. Investigação do
1. Introdução 2. Rapport 4. Transição incidente

1.2 Verdade x 2.1 Conhecendo 4.1 Motivo da 5.a Questões 5.b Questões
1.1Apresentação mentira melhor entrevista abertas específicas

5.c Formato geral


3. Treino Memória das questões 5.1 Separação de
Esporádica diretas incidentes

5.2 Explorando
incidentes 5.2a Questões
3.1 Evento especial específicos em abertas
multiplos incidentes

5.2b Questões 5.2c Formato geral


3.1.1 Ontem específicas de questões diretas

7. Obtendo
3.1.2 Hoje 6. Intervalo informaçoes não
mencionadas

7.1Formato geral de
questões específicas
NÃO mencionadas

8. Se não mensionar 9. Informaçoes


informações sobre a revelação

8.1 Dicas relevantes

10. Encerramento 11. Tópico neutro

2. Críticas às Limitações do Protocolo do Nichd


2.1 Análise da fase pré-substantiva
Ainda que se saiba da importância deste tipo de trabalho e se reconheça a
necessidade da constante busca por aperfeiçoamento, existem diversas críticas
pertinentes ao Protocolo do NICHD. Tais críticas não visam apenas sinalizar a
fragilidade do instrumento, mas, sobretudo, apontar alguns aspectos que carecem de
ajustes para que o protocolo seja mais adequado à sua real finalidade.
De acordo com o Protocolo do NICHD, na Etapa Introdutória o entrevistador
deve se apresentar à criança/adolescente e esclarecer a tarefa a ser realizada,
explicando a diferença entre verdade e mentira, reforçando, assim, a importância de
dizer a verdade. Ainda nessa fase, o entrevistador explica as regras básicas,
esclarecendo que a criança/adolescente deve dizer que não se lembra de algum
evento, que não sabe a resposta, que não entendeu a pergunta ou que corrija o
entrevistador quando for apropriado.
De acordo com a versão brasileira do Protocolo do NICHD (WILLIAMS,
HACKBARTH & BLEFARI, 2012) 228 nessa parte as seguintes instruções são
recomendadas:

“Parte do meu trabalho envolve falar com crianças (jovens) sobre as coisas
que aconteceram com elas. Eu me encontro com muitas crianças (jovens) e assim elas
podem me contar a verdade sobre coisas que lhe aconteceram”.

Com a verbalização anteriormente exposta, o entrevistador pretende


estabelecer um laço de confiança, naturalizando o momento e sinalizando que outras
crianças/jovens também já estiveram naquele contexto. No entanto, observa-se que a
narrativa proposta, a priori já conduz o entrevistado a uma expectativa, ou seja, de
que para ser como as outras crianças (jovens) é necessário contar “algo que
aconteceu”.
Do ponto de vista da deferência 229 , a expectativa gerada faz com que,
independente de qualquer coisa, o entrevistado sinta-se na condição de que,
sobretudo, algo seja contado.
Logo após, com o intuito de verificar a compreensão da criança/jovem sobre
o que é verdade e o que é mentira, o protocolo propõe a seguinte orientação:

“Se eu disser que meus sapatos são vermelhos (ou verdes), isso é verdade ou
é mentira?” (esperar pela resposta e depois dizer).
“Isso não pode ser verdade, pois os meus sapatos são (pretos, azuis, etc.). E
se eu disser que agora estou sentado(a), isso é verdade ou mentira (certo ou errado)?
(esperar pela resposta).
“Isso é verdade porque você pode ver que estou de fato sentado(a)”.

228
WILLIAMS, L. C. A; HACKBARTH, C.; BLEFARI, C. A.; PADILHA. Guia de Entrevista
Forense NICHD. Versão Português–Brasil, 2012.
229
A deferência decorre da crença de crianças/jovens de que os adultos têm mais conhecimentos do
que eles. Devido a essa crença, os adultos encontram facilidade em transmitir sua própria visão de um
acontecimento, o que acaba sendo aceito como verdade absoluta pela criança/jovem (BOSCARDIN,
M. K. & TRINDADE, E. K. A entrevista investigativa em denúncias de abuso sexual no contexto da
alienação parental. TRINDADE, J.; MOLINARI, F. Temas de Psicologia Forense. Porto Alegre:
Imprensa Livre, 2015).
“Já vi que você compreende o que significa contar a verdade. É muito
importante que hoje você me diga só a verdade. Você deve me falar só das coisas que
realmente aconteceram com você”.
Com tal intervenção há um direcionamento com relação à verdade de uma
correspondência entre o enunciado - meu sapato é vermelho - e a realidade exterior - a
cor do sapato do entrevistador. No entanto, essa categorização de verdade material
não pode ser aplicada de maneira tão simplória aos conceitos associados a outros tipos
de verdade, dentre eles a da realidade psíquica que, sem dúvida, é muito mais
complexa.
A distinção entre a realidade de fato e a realidade psíquica é superada pela
relação dialética que ambas mantêm. Assim, a realidade psíquica corresponde a uma
realidade interna ao sujeito, que é mediada por uma realidade externa, o que
proporciona uma assimilação entre as representações do mundo exterior e interior.
Deste modo, supor que uma criança/jovem fará um relato verídico baseando-
se no fato de esta ser capaz de compreender a diferença entre verdade e mentira
objetiva ao mundo externo é absolutamente equivocado, visto que “as coisas que lhe
aconteceram” correspondem, sobretudo e inegavelmente, à sua realidade psíquica.
Pontualmente, sobre a realidade psíquica, convém frisar que Sigmund Freud
estabeleceu as diferenças entre uma realidade e outra para, assim, tornar mais
evidente o alcance da realidade psíquica. Nesse sentido, foi instituído o conceito de
realidade psíquica como “núcleo irredutível do psiquismo, registro dos desejos
inconscientes dos quais a fantasia é a expressão máxima e mais verdadeira
(ROUDINESCO, 1998, p. 224)230.
Ademais, não se pode olvidar que, para além das fantasias e desejos próprios
intrínsecos ao sujeito, tanto em nível consciente quanto inconsciente, a realidade
psíquica pode sofrer influências de outros fatores intervenientes internos e externos,
dentre eles a construção de falsas memórias.
As falsas memórias referem-se a crenças de que determinados fatos
aconteceram, sem efetivamente terem ocorrido. As evidências que se têm são no
sentido de que as recordações originais contêm mais informações de contexto e mais

230
ROUDINESCO, E.; PLON, M.. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
detalhes sensoriais, enquanto as recordações falsas possuem informações
idiossincráticas da pessoa e são mais subjetivas (STEIN, 2009)231.
Feitas as observações pertinentes às fragilidades impostas ainda na primeira
parte da fase pré-substantiva, damos prosseguimento à análise estrutural do protocolo,
que segue a partir da premissa da construção do vínculo, que compreende duas
subdivisões:
I) Rapport: criar um ambiente descontraído e de apoio entre a
criança/adolescente e o entrevistador;
II) Treino da Memória Episódica: requerer que a criança/adolescente
descreva experiências recentes e eventos neutros em detalhes, objetivando que se
familiarize com as questões abertas e com as técnicas que serão utilizadas nas etapas
seguintes.
Para o estabelecimento do Rapport, a versão brasileira do Protocolo do
NICHD recomenda que seja utilizada a seguinte frase:

“Eu queria mesmo te conhecer melhor. Preciso que você me conte coisas
que gosta de fazer”.

A instrução, conforme proposta, pressupõe uma necessidade, ou seja, algo


que é imprescindível, indispensável. Nesse sentido, chama a atenção o imperativo
proposto, cabendo à criança/adolescente apenas seguir aquilo que o adulto requer, o
que se apresenta como uma exigência que deve ser seguida, dentro destes moldes e
sem qualquer outra possibilidade.
Considerando que o objetivo do Protocolo do NICHD recai sobre a intenção
de tecer “boas recomendações” é importante que as mesmas sejam estruturadas com o
maior cuidado e criteriosidade possível. Deste modo, a escolha das palavras,
entonação e condições situacionais deveriam, pelo menos em tese, ser selecionadas
em prol do entrevistado e não em beneficio do entrevistador.
Dito isso, se o objetivo da etapa do Rapport é estabelecer um ambiente
descontraído, parece que o mais adequado seria compor uma situação de colaboração,
na qual, ao invés do entrevistador impor aquilo que ele “precisa” que seja feito, o

231
STEIN, L. M. Falsas memórias: Fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas.
Artmed Editora, 2009.
entrevistado fosse colocado em um papel mais ativo, podendo trazer à entrevista os
aspectos para ele pertinentes.
Na etapa do Rapport seria adequado utilizar questionamentos que
colocassem o entrevistado numa condição verdadeiramente importante e participativa,
tais como “Sobre o que você gostaria de conversar?” ou “Aqui podemos falar sobre o
que você quiser, tem alguma ideia?”. Com esses questionamentos seria muito mais
propícia a criação de um ambiente de cooperação e não de imposição, tornando,
assim, a entrevista passível de maior interesse e disposição para o entrevistado, que
não pode ser posta a serviço do entrevistador.
Já para a etapa denominada Treino da Memória Episódica, a versão
brasileira do Protocolo do NICHD indica o seguinte:

“Antes da entrevista, identifique um acontecimento recente que a criança


tenha vivido – primeiro dia na escola, festa de aniversário, celebração de um feriado,
etc, e em seguida faça perguntas. Se possível, escolha um acontecimento que tenha
ocorrido na mesma época que o suposto ou alegado abuso. Se o abuso aconteceu
durante um dia ou evento particular, pergunte sobre outro acontecimento”.

Verifica-se que o Treino da Memória Episódica proposto pelo Protocolo do


NICHD se trata de um método simplório de verificação da percepção da capacidade
mnemônica do entrevistado, buscando fazer uma correlação com as condições de
recordação do evento traumático. Novamente, o que se tem é um processo bastante
válido e recomendado, mas que, na forma como é apresentado, torna-se pouco eficaz.
A memória é uma função cognitiva complexa e não pode se comparar
registros da memória emocional àqueles desenvolvidos por outros tipos de registros
da memória.
A respeito da modulação da memória emocional, é possível afirmar que
“um grande número de estudos convergem, apoiando o ponto de vista de que a
memória relacionada a eventos emocionais é modulada por um sistema regulador
endógeno mediado, ao menos em parte, por hormônios de estresse e pela
amígdala cerebral. Acredita-se que esse sistema seja evolutivamente adaptativo,
reforçando memórias na proporção de sua importância para a sobrevivência. Em
condições de estresse emocional extremo, a operação desse sistema adaptativo
pode possibilitar a formação de memórias fortes e intrusas, características do
Transtorno de Estresse Pós-Traumátivo, o que pode, inclusive implicar em
amnésia temporária ou permanente” (QUEVEDO, FEIER, AGOSTINHO,
MARTINS & ROESLERA, 2003)232.

Deste modo, parece que a relação da mensuração da habilidade mnêmica


através de um evento neutro não corresponde em nada à capacidade de recordação do
evento traumático. As memórias do evento traumático trazem aspectos afetivos
associados à realidade psíquica do sujeito e não a uma recordação fática.
A exposição ao estresse, como é o caso do abuso sexual na infância ou
adolescência, resulta em um estado persistente de medo e, desta forma, pode causar
efeitos negativos ao neurodesenvolvimento (FILIPAS & ULLMAN, 2006)233. Tal
trauma pode resultar no surgimento de diferentes patologias e sintomas durante os
períodos críticos do processo de maturação e organização cerebral que, por sua vez,
podem acarretar prejuízos cognitivos importantes em diferentes esferas
234
(KRISTENSEN, PARENTE & KASZNIAK) .
Nesse sentido, negar a gravidade das recorrentes implicações cognitivas
resultantes de eventos traumáticos em crianças/jovens vítimas de violência,
priorizando a verificação da preservação da memória esporádica de um evento neutro,
não parece ser a forma mais assertiva para a compreensão sobre a validade do relato.
Sendo assim, podemos afirmar que uma questão bem mais relevante seria
analisar, ainda que sumariamente, as condições cognitivas gerais do entrevistado,
verificando se há algum prejuízo significativo - e de qual ordem e intensidade - que
possa, de alguma forma, interferir no relato realizado, prejudicando sua qualidade.

2.2 Análise da fase substantiva


Já no que se refere à fase substantiva, a qual tem a intenção de coletar
informações acerca do suposto evento traumático, a versão brasileira do protocolo do
NICHD recomenda que seja iniciada com a pergunta chave:

232
QUEVEDO, J. FEIER, G.; AGOSTINHO, F. R.; MARTINS, M. R.; ROESLERA, R. Consolidação
da memória e estresse pós-traumático. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 25, n. Supl I, p. 25-30,
2003.
233
FILIPAS, H. H.; ULLMAN, S. E. Child sexual abuse, coping responses, self-blame, posttraumatic
stress disorder, and adult sexual revictimization. Journal of Interpersonal Violence, v. 21, n. 5, p. 652-
672, 2006; COHEN, J. A.; MANNARINO, A. P.; DEBLINGER, E. Treating trauma and traumatic
grief in children and adolescents. Guilford Publications, 2016.
234
KRISTENSEN, C. H.; PARENTE, M. A. M. P.; KASZNIAK, A. W. Transtorno de estresse pós-
traumático e funções cognitivas. Psico-USF, v. 11, n. 1, p. 17-23, 2006.
"Agora que conheço você um pouco mais, queria falar sobre porque você
veio aqui hoje".

Se a criança/adolescente não falar sobre o suposto evento traumático, o


Protocolo do NICHD recomenda que se utilize a seguinte questão:

“Eu entendo que pode ter acontecido alguma coisa com você. Me conta tudo
o que aconteceu desde o início até o fim”.
Se, ainda assim, a criança/adolescente não falar sobre o suposto evento
traumático, recomenda-se a seguinte abordagem:

“Como eu já te contei, o meu trabalho consiste em falar às crianças sobre as


coisas que podem ter acontecido com elas. É muito importante que você me conte por
que (você está aqui/veio aqui/eu estou aqui). Me conta por que você acha que (a sua
mãe, o seu pai, a sua avó) te trouxe aqui hoje (ou ‘por que você acha que eu estou
conversando com você hoje’)”.

Cumpre observar que todas as tentativas de abordagem à temática sugerem a


presença de um marcante viés confirmatório235, no qual o entrevistador possui um
conhecimento prévio de um fato que ele deseja que o entrevistado narre. Este “pré-
suposto” rompe com todo e qualquer processo de espontaneidade visto que, se o
entrevistado narrar um fato qualquer, que não aquele que “deve”, o entrevistador
realizará o redirecionamento para o motivo da entrevista, ou seja, o evento traumático
que já acredita, de antemão, haver acontecido.
Sendo assim, parece que a crítica fundamental que se pode tecer não apenas
ao Protocolo do NICHD, mas a todos os protocolos de entrevista investigativa
aplicados a crianças e adolescentes supostamente vítimas de violência, recaem
justamente sobre a estrutura em si, ou seja, sobre a pretensão de que o entrevistado
fale aquilo que se deseja ouvir dele, e não aquilo que ele, efetivamente, deseja falar.

235
A heurística de viés confirmatório consiste na tendência a buscar apenas elementos que confirmem a
opinião já formada previamente devido às informações obtidas anteriormente (OSWALD, M. E.;
GROSJEAN, S. Confirmation bias. Cognitive illusions: A handbook on fallacies and biases in
thinking, judgement and memory, v. 79, 2004).
Após a abordagem acima referida, se ainda assim a criança/adolescente não
falar e se, de acordo com as palavras do próprio protocolo, “o entrevistador saiba que
existiu algum contato prévio com a rede de proteção”, recomenda-se o seguinte:

“Ouvi falar que você conversou com (médico/professor/assistente


social/outro profissional) no (data e local). Me conta sobre o que falaram”.

A seguir, se o entrevistado, ainda assim, não fizer qualquer alegação, o


Protocolo do NICHD recomenda que sejam utilizados os seguintes questionamentos:

“Alguém anda te incomodando?”.


“Aconteceu alguma coisa com você no/em (local/data do alegado
incidente)”
“Alguém fez alguma coisa com você que você achou que não era certo?”

Diante de tantas tentativas a fim de obter as respostas desejadas – isto é,


aquelas que confirmem o evento abusivo – pode-se perceber uma insistência, com a
qual possivelmente qualquer um, mesmo adulto – quanto mais uma criança – ao fim e
ao cabo, se sinta fortemente impelido a ceder.
Nesse sentido, aponta-se para uma ação amplamente revitimizatória236, na
qual o entrevistado não só não deixa de ser poupado de revivenciar e descrever o
evento traumático mas, sobretudo, é coagido a fazê-lo, até que finalmente satisfaça as
necessidades do entrevistador.
O que se tem, deste modo, é justamente o oposto ao que se recomenda em
todo e qualquer âmbito protetivo, no qual há muito já se entende como inexorável a
todos os processos de escuta que as medidas de proteção à criança/adolescente sejam
tomadas, para que desde logo sejam amenizadas as sequelas da violência vivenciada,
proporcionando a preservação da integridade do entrevistado.

236
A revitimização ocorre quando a vítima é submetida a processos que levam a reviver a violência ou
agressão sofrida. Pode ocorrer, entre outras situações, durante um depoimento na delegacia, na
repetição do ato que sofreu diante de órgãos de proteção, diante do juiz ou até mesmo diante da família,
que em muitos casos faz com que a criança repita por várias vezes o relato do abuso sofrido, esperando
que ela confirme ou negue o que acabara de afirmar. Dessa forma, a repetição de caracteres do ciclo de
violência leva a criança a vivenciar novamente aspectos da violência que sofreu (VILELA, L. F.
Contextualizando a Negligência na Família. Enfrentando a violência na Rede de Saúde Pública do
Distrito Federal. Brasília: Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, 2005).
Após, o Protocolo do NICHD recomenda que o entrevistador faça uma
pausa, perguntando para o entrevistado se ele está preparado para seguir ou se
gostaria de fazer um intervalo. Se o entrevistado optar por seguir a entrevista, o
entrevistador é orientado a formular versões específicas das seguintes perguntas,
utilizando-se dos fatos disponíveis antes da entrevista:

“Alguém (fazer breve sumário das alegações ou suspeita sem adiantar


nomes para o alegado ofensor ou providenciar pormenores demasiados). Por
exemplo: ‘Alguém te bateu?’ ou ‘Alguém mexeu no seu pipi?’ ou ‘outras partes
privadas do seu corpo?’”.

Ao utilizar-se de “fatos disponíveis antes da entrevista” mais uma vez se


reforça o viés confirmatório, pois a mensagem transmitida ao entrevistado é de que o
entrevistador já tem conhecimento sobre “o que aconteceu”. Assim, reforça a
tendência de que o entrevistado busque emitir o seu relato de acordo com o que é
esperado, e não necessariamente em conssonância aos fatos realmente vivenciados.
Para além disso, o fato do entrevistador, após tanta insistência, finalmente
revelar ao entrevistado que “já sabia” todos os dados e informações que estavam
sendo veementemente requisitados a serem narrados pelo entrevistado, podem
implicar em sentimentos de desconforto, desconfiança, menosvalia, insegurança e
desamparo, o que vai na contramão de toda e qualquer intenção de proteção e
preservação dos entrevistados, os quais supostamente já vivenciaram sofrimento
suficiente.
Após essa intervenção, como se não bastasse, se o entrevistado não
confirmar ou não fizer qualquer alegação, o Protocolo do NICHD recomenda a
formulação da seguinte questão:

“O/A teu/tua professor/a (médico(a)/psicólogo(a)/vizinho(a) me contou/me


mostrou (‘que você mexeu no pipi de outras crianças/um desenho que você fez’) e eu
queria saber se alguma coisa aconteceu com você. Alguém (fazer breve sumário das
alegações ou suspeitas sem adiantar nomes do suposto ofensor ou sem dar muitos
detalhes). Por exemplo: (‘Alguém na tua família te bateu?’ ou ‘Alguém mexeu no teu
pipi?’ ‘ou outras partes do seu corpo?’”.
Somente após todos estes questionamentos, se a criança/adolescente seguir
não confirmando ou fazendo qualquer alegação, o Protocolo do NICHD recomenda
que o entrevistador aborde um tópico neutro, e encaminhe a entrevista para o
fechamento.
Caso a criança/adolescente fale sobre o suposto abuso, o Protocolo do
NICHD orienta que, durante o relato, o entrevistador utilize a frase "Me conta mais
sobre...", a fim de incentivar que o entrevistado fale mais sobre o suposto evento
traumático, utilizando as mesmas palavras do entrevistado e fazendo referência a
detalhes mencionados por ele, tomando cuidado para não contaminar as memórias
referentes ao suposto evento. Observa-se que isso geralmente não acontece, pois,
muitas vezes, as informações adquiridas anteriormente pelo entrevistador acabam se
misturando com o relato proferido pela criança, sendo bastante comum a inclusão,
ainda que inconsciente, destas referências.
Quanto à parte das perguntas diretas, o Protocolo do NICHD recomenda os
seguintes questionamentos:

“Quando você me contou sobre aquela vez na garagem, você disse que ele
tirou a calça dele. Aconteceu alguma coisa com as suas roupas?”.
“Quando você me contou sobre a última vez, contou que ele te tocou. Ele te
tocou por cima da tua roupa?”
“Ele te tocou por baixo da tua roupa?”

Ainda na fase de questionamento direto, o Protocolo do NICHD recomenda


que, “se a criança não mencionar as informações esperadas”, sejam utilizadas as
intervenções descritas:

“Me contaram que você falou com (...) no (data/local). Me conta sobre o que
falaram”.
“Me contaram (ele/ela me disse) que você disse (resuma a alegação
específica, porém se possível, sem mencionar detalhes incriminatórios)”.
“Me contaram que alguém viu (...). Me conta tudo sobre isso”.
O Protocolo orienta, ainda, que o entrevistador “prossiga com outras dicas
abertas”. Se, ainda assim, a criança negar, o Protocolo do NICHD orienta que seja
perguntado:

“Aconteceu alguma coisa com você em/no (tempo/espaço)? Me conta tudo


sobre isso”.

Novamente o que se pode perceber é uma insistência incessante, que busca a


todo o custo obter as informações desejadas, quando o que deveria ser oferecido seria
uma assistência, no sentido de oferecer suporte à suposta vítima para esta se sentir à
vontade para relatar, bem como elaborar o evento traumático caso tenha sido
vivenciado.
Deste modo, ainda que alguns estudos refiram acerca da eficácia do
Protocolo do NICHD, afirmando que sua utilização resultaria na redução de
questionamentos diretos e sugestivos, aumentando o uso de perguntas abertas e o
número de detalhes extraídos de crianças/adolescentes (por exemplo, Lamb &
Garretson, 2003237 e Orbach et al., 2000238), ao nosso ver, trata-se de mais uma
ferramenta indutiva e, sobretudo, invasiva, que se preocupa mais com a obtenção de
uma prova para o meio jurídico do que com a proteção da vítima e o necessário
processo de elaboração e redução de danos. Assim, por meio da análise dos
questionamentos recomendados pelo Protocolo do NICHD, resta claro que não se
trata de uma forma neutra de abordagem.

Considerações Finais
A simples apresentação do Procotolo do NICHD evidencia sua limitação
intrínseca e extrínseca, deixando às claras o risco de simplificação, de indução ou
premência sobre a resposta esperada: o viés confirmatório, a grande desejabilidade,
revitimização e uma forte insistência em prol da assistência à suposta vítima. Estes
são fatores que, se presentes, podem tirar a credibilidade do protocolo enquanto
instrumento a ser utilizado no âmbito da justiça.
237
LAMB, M. E.; GARRETSON, M. E. The effects of interviewer gender and child gender on the
informativeness of alleged child sexual abuse victims in forensic interviews. Law and Human
Behavior, v. 27, n. 2, p. 157-171, 2003.
238
ORBACH, Y.; HERSHKOWITZ, I.; LAMB, M. I. E; STERNBERG, K. J.; ESPLIN, P. W.;
HOROWITZ, D. Assessing the value of structured protocols for forensic interviews of alleged child
abuse victims. Child Abuse & Neglect, v. 24, n. 6, p. 733-752, 2000.
Ademais, o Protocolo de Entrevista do NICHD, por si só, não garante a
diminuição da sugestionabilidade interrogativa, nem consegue certificar que a
testemunha seja capaz de prestar depoimento (GONÇALVES, 2013)239.
Este trabalho constitui um ponto de partida para novas investigações,
centradas nas potencialidades e limitações do Protocolo de Entrevista Forense do
NICHD. O intuito é possibilitar que através das críticas tecidas, sejam realizadas
adaptações – inclusive mais pertinentes para a população brasileira –, bem como
sejam realizados estudos que procurem, com maior detalhe, por exemplo averiguar
quais os fatores que levam os adolescentes a apresentarem maior tendência para a
confabulação do que as crianças mais pequenas e o tipo de questão que pode
predispô-los a tal (LA ROOY, BRUBACHER, AROMÄKI-STRATOS, CYR,
HERSHKOWITZ, KORKMAN & STEWART, 2015)240.
Apesar do Protocolo do NICHD ser uma técnica bastante utilizada em
contexto forense, pesquisadores alertam que deve ser utilizada com cautela, pois,
conforme demonstrado ao longo deste capítulo, pode-se considerar que as
intervenções do protocolo podem gerar sugestionabilidade, levando à criação de falsas
memórias, o que diminui consideravelmente a fidedignidade do relato (CRONCH,
VILOJEN & HANSEN, 2006).241
Por outro lado, não se pode negar a importância da utilização dos protocolos
de entrevista investigativa. Ainda que não sejam ideais, sendo passiveis de críticas e
carecendo de aprimoramento, tais protocolos representam uma possibilidade de
padronização, sendo sua utilização possivelmente mais segura do que uma entrevista
livre, ou seja, sem qualquer orientação e roteiro técnico.
Nesse sentido, cumpre destacar que os estudos científicos sobre o Protocolo do
NICHD alertam quanto à necessidade de exigir que os entrevistadores que utilizam a
metodologia participem de supervisão contínua, pois, caso contrário, corre-se o risco

239
GONÇALVES, S. F. Contributo para a adaptação do protocolo de entrevista forense do NICHD ao
contexto português. Tese de Doutorado, 2013.
240
LA ROOY, D.; BRUBACHER, S. P.; AROMÄKI-STRATOS, A.; CYR, M.; HERSHKOWITZ, I.;
KORKMAN, J.; STEWART, H. The NICHD protocol: A review of an internationally-used evidence-
based tool for training child forensic interviewers. Journal of Criminological Research, Policy and
Practice, v. 1, n. 2, p. 76-89, 2015.
241
CRONCH, L. E.; VILJOEN, J. L.; HANSEN, D. J. Forensic interviewing in child sexual abuse
cases: Current techniques and future directions. Aggression and Violent Behavior, 11(3), 195-207,
2006.
de as técnicas serem mal empregadas, resultando em prejuízos no relato obtido
(LAMB & GARRETSON, 2003242; ORBACH et al., 2000243)
É importante reforçar que cabe à psicologia forense, como fonte de
conhecimento transdisciplinar, realizar questionamentos pertinentes aos temais atuais,
não com o objetivo de desqualificar os trabalhos até então desenvolvidos mas,
sobretudo, com a finalidade de corroborar com o aprimoramento dos mesmos.
Por fim, cabe destacar que compete tanto à psicologia quanto ao direito o
cuidado e preservação da saúde mental tanto das vítimas quanto dos acusados, sendo
estas inquietações de extrema valia. Somente assim será possível transcendermos o
conhecimento teórico, possibilitando um novo olhar para o futuro, principalmente
mais humanizado.

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A PSICOLOGIA FORENSE NO TRIBUNAL
DO JÚRI: PARÂMETROS PARA A
FORMAÇÃO DO CONSELHO DE
SENTENÇA

Carlo Velho Masi 244

Guilherme Poletto 245

Introdução
A influência da Psicologia sobre o Tribunal do Júri pode ser observada sob
diferentes aspectos e em distintas fases do procedimento que o regula. O domínio dos
conhecimentos de ordem psicológica é de vital importância ao jurista que busque
atuar com segurança e desenvoltura no âmbito desta instituição milenar.
O Tribunal do Júri consiste em um julgamento onde a prova é produzida
oralmente, perante um corpo de juízes leigos, os jurados, cidadãos escolhidos dentre
os membros da comunidade. Estima-se que os selecionados para exercer essas
funções apresentem condições psicológicas favoráveis ao cumprimento da tarefa de
julgar, de tal modo que o façam de uma maneira justa, isto é, que formulem uma
crítica adequada e proveniente de uma decisão imparcial no tocante à situação que
lhes seja apresentada. Para tanto, consideraremos três aspectos fundamentais: o
pensamento lógico, o juízo crítico e os afetos (emoções).
Ao pensarmos na condição psíquica destes cidadãos leigos implicados em
proferir uma decisão de mérito, cabem alguns questionamentos. Como se estrutura o
pensamento – em termos formais – voltado à busca de um juízo aceito como válido
por uma coletividade? Quais alterações de pensamento – em termos de conteúdo –
podem produzir distorções significativas no ato de julgar criticamente alguém? Qual o
papel do afeto, provocado pela contratransferência, diante da análise probatória do
material exposto pelas partes?

244
Advogado criminalista. Advogado Criminalista. Mestre em Ciências Criminais (PUCRS).
Especialista em Ciências Penais (PUCRS), Processo Penal (UNISINOS), Política Criminal (UFRGS) e
Direito Penal Econômico (Universidade de Coimbra). Conselheiro Federal da ABRACRIM. Membro
da Diretoria Estadual do IBCCRIM no RS.
245
Psicólogo clínico. Graduado pela UNISINOS. Curso de Formação em Psicologia Jurídica pela
SBPJ.
1. O Rito Processual do Tribunal do Júri e seus possíveis contatos com a
Psicologia
Por imposição constitucional (art. 5º, XXXVIII, “d”, da CF), o Júri hoje no
Brasil julga os crimes dolosos contra a vida, ou seja, crimes nos quais o sujeito ativo
atua com vontade livre e consciente de causar a morte de outrem, previstos nos artigos
121 a 126 do Código Penal: homicídio; induzimento, instigação ou auxílio ao
suicídio; infanticídio; aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento; e
aborto provocado sem o consentimento da gestante.
O procedimento especial relativo aos processos da competência do Tribunal
do Júri no Brasil divide-se em duas fases (art. 406 e seguintes do CPP): o chamado
“juízo de acusação” (judicium accusationis), fase que se estende desde o recebimento
da acusação formal (denúncia) até a decisão interlocutória de pronúncia (comumente
denominada de “sentença de pronúncia” na práxis forense); e o chamado “juízo de
sentença” (judicium causae), que se inicia com a preparação do processo para o
julgamento em plenário, onde caberá ao Conselho de Sentença julgar a causa e, ao
final, ao juiz de direito presidente prolatar uma decisão, declarando o que o corpo de
jurados decidiu e, em caso de condenação, aplicar a pena ao réu.
Na primeira etapa do procedimento, não há participação de jurados, sendo ela
toda presidida por um juiz de direito (“juiz togado”), que recebe a inicial acusatória e
colhe pessoalmente as provas que as partes indicam para serem produzidas. Nesta
fase, é comum a produção de provas documentais e testemunhais. As testemunhas são
inquiridas mediante requerimento das partes em audiências judiciais, designadas para
tanto, onde as partes lhes formulam perguntas e o juiz tem a faculdade de
complementar os questionamentos com indagações do juízo, a fim de esclarecer
pontos que entenda terem ficado obscuros.
Sob o ponto de vista da Psicologia, as provas apresentam narrativas de seus
autores sobre o fato em discussão na causa e, em virtude disso, sofrem influências das
condições pessoais a que aqueles que a produzem estão submetidos.
Importante observar que esta etapa inicial se destina a produzir um
convencimento no magistrado acerca da possibilidade de o réu poder ser
encaminhado, ou não, a julgamento pelo Tribunal do Júri, perante um Conselho de
Sentença, que constitui-se no juízo natural para decidir o mérito do processo. A
Constituição prevê que os veredictos do júri são soberanos, de modo que só em
hipóteses muito restritas podem ser modificados por um outro órgão superior do
Poder Judiciário.
Então, num primeiro momento, as provas servem para persuadir o juiz de que
uma determinada situação jurídica faz-se presente, de acordo com os interesses
adversos das partes no processo. Evidente que as partes, ao produzirem suas provas ao
longo do feito, visam a que estas possivelmente venham a ser utilizadas
posteriormente, de algum modo, em plenário, diante dos jurados. Antes disso, porém,
o juiz fará um filtro, a partir de requisitos previstos expressamente em lei.
Ao final da instrução processual, apresentadas as alegações finais da acusação
e da defesa, o juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da
materialidade (existência) do fato e da presença de indícios suficientes de autoria ou
de participação no(s) crime(s) imputado(s). Não se convencendo da presença destes
elementos, o juiz impronunciará o acusado, que, nesta hipótese, não será encaminhado
a julgamento pelo Júri, porém, enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade,
poderá ser novamente denunciado, caso surjam provas novas. Ainda, convencendo-se
de que está provado que o fato não ocorreu, que o acusado não é autor ou partícipe do
fato, que o fato não constitui crime, ou que existe causa de isenção de pena246 ou de
exclusão do crime 247 , o juiz deverá, desde logo, absolver sumariamente o réu,
substituindo-se ao júri.
Uma fez preclusa a pronúncia, seja pela ausência de recursos ou pela
manutenção da mesma em sede recursal, o processo avança para a fase de preparação
para o julgamento em plenário, quando as partes poderão arrolar testemunhas que irão
depor perante os jurados, juntar documentos e requerer diligências. Note-se que,
durante o julgamento, não é permitida a leitura de documento ou a exibição de objeto
que não tiver sido juntado aos autos com antecedência mínima de três dias úteis,
dando-se ciência à outra parte.
Portanto, existe toda uma preocupação do legislador com a influência
psicológica sobre a imparcialidade do jurado das provas a serem produzidas em
plenário, algo que a Psicologia pode auxiliar o Direito a melhor compreender.

246
Excludentes de culpabilidade: a) erro de proibição (art. 21, CP); b) coação moral irresistível (art. 22,
CP); c) obediência hierárquica (art. 22, CP); d) embriaguez acidental (art. 28, §1º, CP); e)
inimputabilidade (art. 26, caput, CP).
247
Excludentes de ilicitude: a) estado de necessidade (art. 23, I, art. 24, CP); b) legítima defesa (art. 23,
II, art. 25, CP); c) exercício regular do direito (art. 23, III, CP); d) estrito cumprimento do dever legal
(art. 23, III, CP).
Após a elaboração de um suscinto relatório dos autos, o magistrado determina
a inclusão do processo em pauta da reunião do Tribunal do Júri.

2. A Função do Jurado e a Formação do Conselho de Sentença


O Tribunal do Júri é composto por um juiz togado, que exerce a presidência
dos trabalhos, e por vinte e cinco jurados que serão sorteados dentre os alistados,
sendo que sete deles serão sorteados para constituir o Conselho de Sentença em cada
sessão de julgamento.
O alistamento anual de jurados é feito pelo juiz presidente de acordo com o
número de habitantes da comarca. O juiz requisita às autoridades locais, associações
de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em
geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários a
indicação de pessoas que reúnam as condições para exercer a função de jurado.
Uma vez organizada a pauta de julgamento, com a designação das datas de
cada julgamento, conforme ordem legal expressa de preferências (réus presos
primeiro), o juiz intima o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil e a
Defensoria Pública para o sorteio dos vinte e cinco jurados que participarão das
reuniões periódicas. Estes serão individualmente convocados para o dia de cada
reunião.
É fundamental compreender que o serviço do júri é uma atividade obrigatória
para os que forem convocados. A lei processual penal veda qualquer tipo de
discriminação a jurado, em razão de cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe
social ou econômica, origem ou grau de instrução. Nada obstante, só pode ser jurado
o cidadão maior de 18 anos, com “notória idoneidade”. Em linhas gerais, o jurado
deve estar em pleno gozo dos direitos políticos (ser eleitor); não ter sido processado
criminalmente e prestar o serviço gratuitamente (voluntário). Embora não expressos
na lei, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)248, decorre de sua
interpretação a vedação (impedimento) a que sejam jurados os analfabetos, os surdos-
mudos, os surdos, os cegos249 e os inimputáveis (que possuírem doença mental), bem

248
CNJ. CNJ Serviço: entenda como funciona o Tribunal do Júri. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/81520-cnj-servico-entenda-como-funciona-o-tribunal-do-juri>.
Acesso em: 18 ago. 2019.
249
Segundo a Organização Nacional de Cegos do Brasil, há notícia de cegos participando a contento
como jurados, desde que efetuadas as devidas adaptações para que possa compreender todas as provas
e participar do julgamento. Disponível em: <http://www.oncb.org.br/node/22>. Acesso em 18 ago.
2019.
como aqueles que residirem em comarca diversa daquela em que vai ser realizado o
julgamento.
Aquele que, uma vez convocado, recusar-se imotivadamente a servir como
jurado fica sujeito a multa de um a dez salários mínimos, de acordo com sua condição
financeira.
São isentos do serviço do júri o Presidente da República e os Ministros de
Estado; os Governadores e seus respectivos Secretários; os membros do Congresso
Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras Distrital e Municipais; os
Prefeitos Municipais; os Magistrados e membros do Ministério Público e da
Defensoria Pública; os servidores do Poder Judiciário, do Ministério Público e da
Defensoria Pública; as autoridades e os servidores da polícia e da segurança pública;
os militares em serviço ativo; os cidadãos maiores de setenta anos que requeiram sua
dispensa; e aqueles que o requererem, demonstrando justo impedimento. Advogados
não são isentos de servirem como jurados.
Aqueles que recusarem-se a servir, em função de convicção religiosa,
filosófica ou política, deverão prestar serviço alternativo (exercício de atividades de
caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, no Poder
Judiciário, na Defensoria Pública, no Ministério Público ou em entidade conveniada
para esses fins), sob pena de suspensão dos direitos políticos, enquanto não prestar o
serviço imposto.
O Estado reconhece que quem serve como jurado exerce serviço público
relevante e tem presumida sua idoneidade moral. Inclusive, atribui-se ao jurado
preferência, em igualdade de condições, nas licitações públicas e no provimento,
mediante concurso, de cargo ou função pública, bem como nos casos de promoção
funcional ou remoção voluntária.
No exercício da função, o jurado será responsável criminalmente nos mesmos
termos em que o são os juízes togados250.
São impedidos de servir no mesmo Conselho de Sentença marido e mulher (ou
companheiros); ascendente e descendente; sogro e genro ou nora; irmãos e cunhados,
durante o cunhado; tio e sobrinho; padrasto, madrasta ou enteado.
Aos jurados são aplicáveis as mesmas causas de impedimento, suspeição e
incompatibilidades dos juízes togados251.

250
Nos termos do art. 327 do CPP, considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem,
embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
Não poderá servir o jurado que tiver atuado em julgamento anterior do mesmo
processo, independentemente da causa determinante do julgamento posterior; no caso
do concurso de pessoas, houver integrado o Conselho de Sentença que julgou o outro
acusado; ou que tiver manifestado prévia disposição para condenar ou absolver o
acusado.
Existe, pois, uma preocupação legal com que o jurado não tenha uma pré-
concepção sobre o fato específico em julgamento, o que poderia macular a sua
imparcialidade para o julgamento, prejudicando uma das partes.
Até o momento de abertura dos trabalhos da sessão, o juiz presidente decidirá
os casos de isenção e dispensa de jurados e o pedido de adiamento de julgamento,
mandando consignar em ata as deliberações. O juiz presidente verificará se a urna
contém as cédulas dos vinte e cinco jurados sorteados, mandando que o escrivão
proceda à chamada deles. Comparecendo, pelo menos, quinze jurados, o juiz
presidente declarará instalados os trabalhos, anunciando o processo que será
submetido a julgamento. O oficial de justiça fará o pregão, certificando a diligência
nos autos. Os jurados excluídos por impedimento ou suspeição serão computados para
a constituição do número legal. Não havendo o número mínimo, proceder-se-á ao
sorteio de tantos suplentes quantos necessários, e designar-se-á nova data para a
sessão do júri.
Antes do sorteio dos membros do Conselho de Sentença, o juiz presidente
esclarecerá sobre os possíveis impedimentos, a suspeição e as incompatibilidades. O
juiz presidente também advertirá os jurados de que, uma vez sorteados, não poderão
comunicar-se entre si e com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo,
sob pena de exclusão do Conselho e multa.
A incomunicabilidade do jurado, que está prevista na Constituição, através da
garantia do sigilo das votações, garante que seu voto não será conhecido pelas partes e
que ele poderá decidir conforme sua íntima convicção. Além disso, a vedação de o
jurado falar sobre a causa em julgamento com outros (inclusive, ter acesso a notícias
que estejam sendo veiculadas pela mídia sobre o caso, durante o julgamento) é uma
tentativa de conferir o máximo de imparcialidade possível ao ato de julgar.
Verificando que se encontram na urna as cédulas relativas aos jurados
presentes, o juiz presidente sorteará sete dentre eles para a formação do Conselho de

251
Arts. 144 a 148 do CPC.
Sentença. À medida que as cédulas forem sendo retiradas da urna, o juiz presidente
consulta a defesa e, depois dela, o Ministério Público, que poderão recusar
imotivadamente até três jurados sorteados.
As recusas imotivadas constituem um elemento essencial da estratégia das
partes no procedimento do júri, havendo séria disparidade de armas quando a
acusação ou a defesa possuírem informações privilegiadas sobre jurados que não
estejam disponíveis à parte adversa. Neste ponto, a Psicologia pode fornecer subsídios
relevantes ao operador do Direito para a formação do Conselho de Sentença que possa
estar mais apto a julgar de forma justa um determinado fato.
Formado o Conselho de Sentença, o presidente, levantando-se, e, com ele,
todos os presentes, fará aos jurados a seguinte exortação: “Em nome da lei, concito-
vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo
com a vossa consciência e os ditames da justiça”. Os jurados, nominalmente
chamados pelo presidente, responderão “Assim o prometo”. Note-se a importância de
que o jurado faça um juramento, comprometendo-se legal e moralmente a exercer sua
função com imparcialidade. Ademais, invocam-se os ditames da “justiça” para
fundamentar a decisão do jurado, o que vai muito além de uma apreciação meramente
legalista do caso concreto e avança sobre um terreno subjetivo, no qual novamente a
Psicologia poderá fornecer explicações e análises que melhor possibilitem a
compreensão dos juristas.

3. O Julgamento do Réu em Plenário


Prestado o compromisso pelos jurados, será iniciada a instrução plenária
quando o juiz presidente, o Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor
do acusado tomarão, sucessiva e diretamente, as declarações do ofendido, se possível,
e inquirirão as testemunhas arroladas pela acusação. Para a inquirição das
testemunhas arroladas pela defesa, após o juiz presidente, o defensor do acusado
formulará as perguntas antes do Ministério Público e do assistente.
As partes e os jurados poderão requerer acareações, reconhecimento de
pessoas e coisas e esclarecimento dos peritos, bem como a leitura de peças que se
refiram, exclusivamente, às provas colhidas por carta precatória e às provas
cautelares, antecipadas ou não repetíveis. A seguir, será o acusado interrogado.
Os jurados formularão perguntas à vítima, às testemunhas e ao réu por
intermédio do juiz presidente. Perceba-se que, agora, nesta etapa, o destinatário da
prova é o jurado, aquele que deve formar sua convicção, a partir do que lhe for
apresentado e/ou de outros aspectos que lhe orientem a decidir com justiça sobre a
causa.
Encerrada a instrução plenária, será concedida a palavra ao Ministério
Público, por até 1h30min252, que fará a acusação, nos limites da pronúncia ou das
decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, sustentando, se for o caso, a
existência de circunstância agravante. O assistente falará depois do Ministério
Público. Finda a acusação, terá a palavra a defesa, também por 1h30min. A acusação
poderá replicar e a defesa treplicar, com 1h para cada, sendo admitida a reinquirição
de testemunha já ouvida em plenário.
É a chamada fase de debates orais, durante a qual as partes não poderão, sob
pena de nulidade, fazer referências à decisão de pronúncia, às decisões posteriores
que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como
argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado; ao silêncio do
acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo; e
a qualquer documento ou objeto que não tiver sido juntado aos autos com a
antecedência mínima de três dias úteis, dando-se ciência à outra parte.
Aqui, também, existe todo um cuidado do legislador em tentar evitar ao
máximo que aspectos externos ao julgamento possam, em si, influenciar na decisão
do jurado. É na fase de debates onde a garantia da plenitude de defesa (art. 5º
XXXVIII, “a”, da CF), que é superior à ampla defesa, mostra-se mais relevante, pois,
ao passo que a acusação está limitada pela pronúncia, a defesa pode explorar um
infindável número de teses, com os mais diversos recursos, até porque o réu encontra-
se em posição presumidamente desfavorável em relação ao Estado que o acusa.
Os jurados podem, a qualquer momento e por intermédio do juiz presidente,
pedir ao orador o esclarecimento de fato por ele alegado.
Concluídos os debates, o presidente indagará dos jurados se estão habilitados a
julgar ou se necessitam de outros esclarecimentos. Se houver dúvida sobre questão de
fato, o presidente prestará esclarecimentos à vista dos autos. Nesta etapa, os jurados
podem examinar os autos e os instrumentos do crime se solicitarem ao juiz presidente.
Estando aptos, os jurados são conduzidos à sala especial de votações, onde o
réu e o público externo não podem acompanhar. O juiz presidente advertirá as partes

252
Havendo mais de um acusado, o tempo para a acusação e a defesa será de 2h30min e a réplica e a
tréplica terão até 2h cada.
de que não será permitida qualquer intervenção que possa perturbar a livre
manifestação do Conselho e fará retirar da sala quem se portar inconvenientemente.
O Brasil adota um sistema misto de quesitação aos jurados. Ao final do
julgamento, apresentados os fatos, as provas e as teses das partes cada jurado vota
individualmente quesitos que dizem respeito à matéria de fato e à absolvição ou
condenação do acusado. Os quesitos são perguntas afirmativas redigidas pelo juiz
presidente de forma simples e que devem ser respondidos mediante votação em uma
urna com uma cédula, contendo as palavras “sim” ou “não”, sem qualquer
necessidade de justificação. O jurado precisa decidir sobre a materialidade do fato, a
autoria ou participação do réu, se o acusado deve ser absolvido, se existe causa de
diminuição de pena alegada pela defesa, e se se existe circunstância qualificadora ou
causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que
julgaram admissível a acusação.
Encerrada a votação, o juiz presidente proferirá a sentença, que, em caso de
condenação, fixará a pena; e, em caso de absolvição, revogará as medidas cautelares
impostas e imporá medida de segurança ao réu que for considerado inimputável. A
sentença é lida pelo juiz em plenário antes de encerrada a sessão.

4. Aportes psicológicos para uma melhor compreensão dos motivos que


embasam as decisões dos jurados
O campo do decisionismo do jurado é terreno fértil para a intervenção da
Psicologia, a fim averiguar quais parâmetros interferem para que um indivíduo, via de
regra leigo em Direito, decida sobre a absolvição ou condenação do acusado.
Prioritariamente, cabe-nos analisar que o jeito (a forma) de pensarmos um
problema necessita ser regido pela razão. Para Aristóteles, a razão é baseada na
lógica 253 e esta obedece a três regras fundamentais que garantem ao sujeito
coerência254 no raciocínio. Tais preceitos exprimem-se da seguinte maneira:

a) Princípio da identidade: cada ser é igual a si próprio; logo, o ser é. No


contexto proposto ao Tribunal do Júri, o fato jurídico é um “ser” único, ou
seja, existe enquanto narrativa sobre o fato real, mas não o é pois o crime já

253
No sentido de lógica formal; estudo da forma concreta dos argumentos para que eles se tornem
válidos.
254
Harmonia entre as premissas e a conclusão de um raciocínio.
ocorreu. Assim, temos como consequências a(s) vítima(s) e o(s) réu(s). O
“ser” que se julga é o mérito da questão, que reside no confronto das
narrativas referentes ao fato jurídico.

b) Princípio da não-contradição: uma coisa não pode ser e não ser ao


mesmo tempo. As provas apresentadas tanto pela acusação quanto pela
defesa não podem coexistir simultaneamente. Por conseguinte, uma das
teses será “falsa” e a outra será “verdadeira” (mais distantes ou mais
próximas do fato real), cabendo ao jurado sentenciar o réu, atribuindo-lhe,
ou não, a autoria do delito.

c) Princípio do terceiro excluído: uma coisa (objeto) é ou não é, e não há


nada “entre o ser”, isto é, não existe uma “terceira hipótese”. Qualquer
“elemento” que o jurado “acrescente” fora da análise do objeto (provas
periciais, documentais e testemunhais) já não será, em tese, o objeto em
discussão. Ocorre que os seres humanos apresentam sentimentos quanto ao
que escutam e ao que analisam; sendo assim, inevitavelmente, os júris
enfrentam consideráveis cargas emocionais. Isso permite conjecturar da
existência de um campo psicológico-analítico que compreende influências
de variáveis conscientes (perceptíveis ao pensamento tais como raciocínio
lógico e juízo crítico) e inconscientes (não identificadas claramente na nossa
percepção, dentre elas a contratransferencia255).

Quanto ao conteúdo daquele que ajuíza256, faz-se necessário considerarmos


uma estreita ligação entre duas funções do ego, o pensamento e o juízo crítico, uma
vez que, salvo alterações patológicas das mesmas, é normal existirem variações de
ideias e de princípios éticos. Assim, o pensamento crítico é essencialmente subjetivo,
ao passo que é produzido pela transgeracionalidade257 e pela historicidade (contexto

255
Horácio Etchegoyen descreve contratransferência como “a resposta emocional do analista aos
estímulos que provém do paciente” (ETCHEGOYEN, 2004. p. 156). Transpondo ao universo jurídico,
diríamos que a contratransferência é a resposta emocional do jurado ao que provém do material
apresentando pelas partes.
256
Quem ajuíza algo; refere-se ao conteúdo de uma proposição que, por meio de uma análise de
conteúdo (conhecimento do objeto), pode-se descobrir a veracidade da mesma (se é falsa ou
verdadeira).
257
Segundo a Psicanálise, vincular a subjetividade se dá na construção com o outro através da presença
real de pessoas, o que, por si, gera um vínculo. O que se transmite de geração a geração são “(...)
sociocultural) do sujeito. Jorge Trindade exemplifica a abrangência da constituição
psíquica do ser humano:

O ser humano não pode se despir da subjetividade inerente do existir nem


da historicidade que o compõe nem das experiências e vivências escritas na
trajetória existencial de vida, seja pela vertente dos fatores ambientais
(sociais econômicos e políticos...), seja pela via daqueles elementos que
estruturam o registro hereditário, patrimônio genético e mesmo
perigenético. (TRINDADE, Jorge. 2014 em Ortega y Gasset, 1984, p.52).

O juízo crítico também está presente no psiquismo, na medida em que nos


damos conta de que um ser existe ou não (com auxílio da percepção), distinguindo-o
da nossa imaginação, bem como quando aferimos a qualidade do objeto “ser”
(depositamos um valor agregado ao que se é examinado). Logo, é possível julgarmos
se uma proposição é verdadeira ou falsa; contudo, não podemos negar a probabilidade
de que haja equívocos na execução do ato (juízos falseados).
Os tipos de distorções de juízo crítico mais comuns são os preconceitos258, as
superstições259, as crenças culturalmente sancionadas260, as ideias prevalentes261; a
ignorância (desconhecimento) e a indução (influência) de terceiros. Culturalmente,
pertencemos ao nosso tempo (o presente, o aqui e o agora), ainda que tenhamos
influências do passado (cultura ocidental judaico-cristã), em constante oposição a
pensamentos e comportamentos vigentes de caráter globalista e/ou revolucionários.
Sempre ocorrerão, em algum grau, variações na formação do juízo crítico de
cada pessoa, dada a complexidade do ser humano. De todo modo, de um jurado
espera-se que suas crenças pertençam a valores reconhecidamente civilizatórios262.
Assim, mesmo se houvesse uma breve análise de conteúdo da interpretação deste ou
daquele juízo, faz-se necessário que esteja fundamentado em raízes antropológicas,

afetos, representações, fantasias, sistemas de relações de objetos, sistemas de ideais e valores,


mecanismos de defesa, culpas dívidas, mitos, [...] tudo o que assegura a manutenção de vínculos.”
(PIVA & COL., 2006. p.07).
258
Trata-se, geralmente, de um juízo a priori, sem reflexão, com bases em premissas falsas, “uma
opinião precipitada que transforma-se numa prevenção” (PAIM, 1993. In: DALGALARRONDO,
2018). Preconceitos geralmente são produzidos socialmente por determinados grupos sociais que
almejam privilégios e superioridade em relação aos demais grupos sociais. Exemplos de preconceitos
são o racismo, o sexismo e o etnocentrismo (DALGALARONDO, 2018).
259
É um tipo de crença culturamente sancioanada, porém motivada por afetos (desejos, temores, etc.).
260
Crenças que são compartilhadas por um agrupamento cultural (religioso, político, étnico, grupos de
jovens, agrupamentos sociais) (DALGALARRONDO, 2018).
261
A ideia prevalente (sobrevalorada) está impregnada a personalidade do sujeito quê cotidianamente a
tem, isto é, a pessoa não se dá conta tal idéia já faz parte do seu repertório subjetivo e social; é
comparável a muitas ideias obsessivas. (DALGALARRONDO, 2018).
262
Valores que expressem um consenso de preservação a vida e a cultura humanas tais como os
contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
religiosas e sociológicas. Paulo Dalgalarrondo atenta que parte considerável das
distorções do juízo crítico decorrem da interferência do afeto:

Os erros são passíveis de serem corrigidos pela experiência, pelas provas e


pelos dados que a realidade oferece. Uma boa parte dos erros de
ajuizamento, de apreciação, é determinado por situações afetivas intensas
ou dolorosas, que impedem que o indivíduo analise a experiência de forma
objetiva e lógica. (DALGALARRONDO. 2018. p. 205).

Ora, para que as emoções se sobressaiam ante a razão é preciso levar em conta
a presença de fortes sentimentos contratransferenciais suscitados desde o início do
julgamento. Normalmente, segundo o rito do Júri, através da exposição da tese
acusatória é compreensível que os jurados sintam comiseração pela vítima e ódio pelo
suposto autor (réu), já que é perfeitamente humano identificar-se com o ofendido,
solidarizar-se com os respectivos familiares, e, concomitantemente, sentir ódio pelo
suposto agressor. Nesta fase inicial, corre-se o risco de haver um pré-julgamento
(passional) pelo jurado, sem sequer considerar os argumentos da defesa (o
contraditório). Desta forma, inconscientemente, tomado por fortes emoções, a análise
probatória fica prejudicada pela incapacidade de o sujeito colocar-se empaticamente
no lugar do réu (ao menos para conjecturar a motivação e as circunstâncias – contexto
– pelos quais o indivíduo foi acusado de cometer o crime).
Por conseguinte, sob esse ponto de vista, é de se esperar que o jurado
“condene” o réu, de antemão, antes de, propriamente, escutar os argumentos da
defesa. No entanto, não é incomum, por exemplo, que crimes dolosos contra a vida
sejam praticados quando o agente se encontre sob efeito de substâncias psicoativas
e/ou por estados emocionais intensos, como o medo. Daí discutir-se no Direito Penal
a intencionalidade (dolo), bem como a imputabilidade (culpabilidade) do réu.
Analisando delitos justificados pelo excesso em legítima defesa, Luciano Iob ressalta
o efeito da dimensão emocional quando o algoz pratica o crime sob efeito do medo:

[...] tentamos demonstrar que o excesso na legítima defesa (real ou


putativa), onde o sujeito erra sobre a intencionalidade da agressão [...],
sendo um comportamento nascido do medo deve ser entendido pelo
Direito como algo inato, sendo, portanto, inexigível conduta diversa, com a
exclusão de sua culpabilidade.” (IOB, Luciano, 2018. p. 285).
Considerações Finais
Sendo assim, há de se considerar no julgamento do mérito do fato os
argumentos trazidos por ambas as partes, sopesando as teses conflitantes e excluindo-
se aquela que mais se afasta da provável verdade do fato ocorrido. Enfim, para que
cada jurado julgue o objeto (fato jurídico) e tome uma decisão imparcial, e não
passional, o conhecimento das principais variáveis psicológicas presentes na formação
do campo analítico psicológico (os sentimentos advindos das partes – acusação e
defesa –; as crenças subjetivas e a história do sujeito; e as noções básicas de
raciocínio lógico) pode contribuir como uma ferramenta de critérios psicológicos de
formação do corpo de jurados, de modo que a decisão tomada por cada um dos
componentes do Conselho de Sentença seja o mais contemplativa e justa possível.
Portanto, o aporte da Psicologia pode trazer à lume variáveis determinantes do
comportamento humano que, clarificadas aos operadores do Direito, colaborem tanto
na escolha de pessoas capacitadas a servir como jurados quanto nas eventuais
dispensas e aceitações de jurados durante a formação do Conselho de Sentença.
Esperamos que a exposição dessa questão permita aos juristas
contextualizarem as influências psicológicas externas ao Direito, mas intrínsecas ao
processo da tomada de decisão (juízo) no Júri, análise esta que inegavelmente
demanda o desenvolvimento de estudos ainda mais específicos na esfera do fértil
campo da Psicologia Jurídica.

Referências

CNJ. CNJ Serviço: entenda como funciona o Tribunal do Júri. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/81520-cnj-servico-entenda-como-funciona-o-
tribunal-do-juri>. Acesso em: 18 ago. 2019.

TRINDADE, Jorge (org.) Psicologia Forense: Novos Saberes. Porto Alegre:


Imprensa Livre. 2018.

TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do


Direito. 7ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos


Mentais. 3. Ed. Porto Alegre: ArtMed. 2018.

COTRIM, Gilberto. Fudamentos da Filosofia: História e Grandes Temas. 17ª.


Ed. São Paulo: Saraiva. 2013.
ETCHEGOYEN, Horácio R. Fundamentos da Técnica Psinanalítica. 2 Ed.
Porto Alegre: Artmed. 2004.

PIVA & Col. Transmissão Transgeracional e a clínica vincular. São Paulo:


Casa do Psicólogo.2006.
A INIMPUTABILIDADE DO
ESQUIZOFRÊNICO: UM ESTUDO DE
CASO SOB O OLHAR DA PSICOLOGIA
FORENSE

Kátia Denny Osorio Goelzer263

“Não existe linha mais tênue do que aquela que divide o


normal do patológico” (Trindade, Elise, 2012)

Introdução
As doenças mentais sempre existiram na sociedade. Ao longo do tempo foram
tratadas das mais diferentes formas. Em cada época, variam os conceitos dessas
pessoas e da ocorrência de fatos sociais que as envolvia o direito penal passou a
regulamentar essas questões. No entanto, questiona-se qual o tratamento dado aos
doentes mentais e o que explica o fato das mesmas serem consideradas inimputáveis.
O objetivo principal deste artigo é analisar a questão da inimputabilidade dos
doentes mentais diagnosticados com esquizofrenia. Para isso foram traçados alguns
objetivos específicos tais como: (1) identificar o que é e os tipos de esquizofrenia
segundo CID-10; (2) apontar evolução da inimputabilidade dos doentes mentais ao
longo da historia do Direito Penal Brasileiro; (3) apresentar um estudo de caso de um
sujeito esquizofrênico considerado inimputável; (4) verificar o tratamento dado pelo
Direito a esses indivíduos.
A importância deste estudo deve-se, sobretudo, ao alto índice de criminalidade
que a sociedade brasileira tem convivido. Muitos desses crimes são cometidos por
pessoas portadoras de doenças mentais ou transtornos de personalidade. Para o
desenvolvimento deste artigo foi realizado uma pesquisa de caráter bibliográfico por
meio de livros, artigos científicos e estudo de caso de um sujeito com medida de
segurança.

263
Psicóloga inscrita no CRP 07/4037. Graduada pela Unisinos 1987, Pós-Graduada pela Unijuí em Administração Estratégica
em Saúde Mental Coletiva. Perita em avaliação psicológica de trânsito, credenciada junto ao DETRAN/RS. Credenciada Policia
Federal para manuseio de Arma de Fogo. Psicóloga da Secretaria de Saúde do Estado RS. Formação em Psicologia Forense pela
Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica.
1. Esquizofrenia
1.1 Conceituação
A definição atual de esquizofrenia indica uma psicose crônica e idiopática,
apresentando ser um conjunto de diferentes doenças com sintomas que se assemelham
e sobrepõem. A esquizofrenia é de origem multifatorial onde os fatores genéticos e
ambientais parecem estar associados a um aumento no risco de desenvolver a doença
A esquizofrenia, Transtorno Esquizofreniforme e o Transtorno Esquizoafetivo,
dentre outras manifestações psicóticas, estão contemplados no DSM-5 (2014, p.87),
são definidos por anormalidades em uma ou mais dos cinco domínios a seguir
descritas: delírios, alucinações, pensamento desorganizado, comportamento motor
grosseiramente desorganizado ou anormal, incluindo catatonia e sintomas negativos.
O Espectro da Esquizofrenia e outros Transtornos Psicóticos incluem:
Transtorno (Personalidade) Esquizotípico; Transtorno Delirante; Transtorno Psicótico
Breve; Transtorno Esquizofreniforme; Esquizofrenia; Transtorno Esquizoafetivo;
Transtorno Psicótico induzido por substância ou medicamento.
Na classificação de Transtornos Mentais e de comportamento CID-10 (1993,
p.83):
“à tipologia da Esquizofrenia está organizada dentro do bloco que pertence ao
item F20, denominado Esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e delirantes, da
seguinte maneira: F20 Esquizofrenia; F20.0 Esquizofrenia Paranóide; F20.1
Esquizofrenia Hebefrênica; F20.2 Esquizofrenia Catatônica; F20.3 Esquizofrenia
Indiferenciada; F20.4 Depressão Pós-esquifofrênica; F20.5 Esquizofrenia
Residual; F20.6 Esquizofrenia Simples; F20.8 Outra Esquizofrenia; F20.9
Esquizofrenia, não especificada”.
“A Esquizofrenia se trata de uma condição mental grave que afeta
profundamente o funcionamento mental do individuo esquizo = divisão; frenos =
Alma, muitas vezes inabilitando-o para o exercício do direito (capacidade de
fato). Além disso, na esfera do direito penal, este transtorno pode conduzir as
condições de que trata o artigo 26 do Código Penal (2008).

O que entendemos por esquizofrenia hoje é o fruto de um conceito que sofreu


também muitas transformações. Uma cronologia dos fatos que nos últimos 100 anos
influíram decisivamente para o desenvolvimento desse conceito (Tabela).
Tabela – Cronologia do desenvolvimento de conceito de esquizofrenia (Elkis, 2000):
ANO EVENTO
1893 Emil Kraepelin descreve o quadro clínico da demência precoce na 4
edição de seu ‘Tratado de Psiquiatria’.
1908/1911 Eugen Bleuler publica um artigo sobre o prognostico da demência
precoce seguido do livro “Demência Precoce: o grupo das
esquizofrenias”.
1913 Publicação da u e ultima edição do tratado de Kraepelin com a descrição
dos dois principais componentes da demência precoce
1930/1940 Descrição de vários subtipos de esquizofrenia na Europa e EUA
1948 Kurt Schneider publica a Psicopatologia Clinica descrevendo os
“sintomas de primeira ordem”
1965/1970 Projeto colaborativo EUA – Reino Unido
1966/1973 Estudo piloto internacional da Esquizofrenia
1968 2 edição do ‘Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders’
(DSM II) Associação Psiquiátrica Americana
1972 Critérios diagnósticos da Universidade de Washington.
1974 Sintomas positivos e negativos.
1975 9 edição da Classificação Internacional das Doenças (CID-9),
Organização Mundial da Saúde.
1978 Research Diagnostic Criteria (RDC)
1980 Conceito de duas síndromes da esquizofrenia (Crow) publicação da
DSM III
1993/1994 CID-10 e DSM IV

A designação Esquizofrenia foi atribuída a Eugen Bleuler em 1908, que


evidenciou a presença dos chamados sintomas fundamentais, que ficaram conhecidas
como as características dos quatro “AS”: (a) alucinação, perda da associação das
ideias; (b) afeto embotado; (c) ambivalência; (d) autismo).
Na realidade, trata-se de um transtorno muito complexo, e seus sintomas
ultrapassam em quantidade e qualidade e maioria das experiências das pessoas
normais. Segundo Cordeiro (2011, p.38) catedrático da universidade de Lisboa, a
esquizofrenia tende a ocorrer nas populações de nível sócio econômico mais baixo,
mas não é a pobreza que gera a esquizofrenia. Pelo contrário, a existência da doença
está relacionada com a baixa capacidade ocupacional para trabalhos especializados e
bem remunerados, pelo fato da desorganização geral da personalidade que provoca
condições precárias e desorganizadas da vida.

“A esquizofrenia inclui sintomas cognitivos, tais como: (a) Alucinações:


alterações senso – perceptivas, sem fundo de realidade, que podem ser do tipo
auditivo, visual, táctil, ustativa ou olfativa. A pessoa ouve vozes que lhe
expressam ordens ou comandos, vê objetos, animais inexistentes, percebe cheiros
de coisas que estão ausentes, sente gostos que não correspondem com a realidade
ou experimentam sensações corpóreas de queimadura na pele, por exemplo; (b)
Delírios: São alterações do conteúdo dos pensamentos que se manifestam através
de crenças equivocadas que são mantidas a pesar das evidências em contrario.
Dentre os diversos tipos de delírios, os de conteúdo persecutório de traição, ou de
ciúme, são aqueles que com mais freqüência aparecem como justificativa para o
cometimento de crimes, pois a pessoa acredita estar sendo perseguida ou traída e,
então age para se defender desta crença errônea, para si como real e verdadeiro.
Estes aspectos devem ser considerados pelos operadores do direito, uma vez que
podem preencher os requisitos do artigo 26 do código penal, dando causa para
isenção ou diminuição da pena; (C) processos de pensamento desorganizado:
consiste na ruptura ou no afrouxamento das cadeias associativas do pensamento
lógico. Por isso usam palavras de modo aleatório desprovido do seu sentido
comum e comunicacional. O uso de palavras desconexas expressas à confusão no
nível do pensamento e a esquizofrenia, eventualmente pode ser confundida com
quadro de demência; (D) Inundação cognitiva: Trata-se de uma sobrecarga de
estímulos semelhante a uma inundação de atividade cerebral, que, entretanto, não
chega ser organizada ou metabolizada pelo sujeito; (e) alterações do afeto
(humor): consiste em uma modulação do afeto num nível rígido, embotado, não
modulado; (f) sintomas somáticos: manifestações corpóreas do caos psíquico
interior; (g) alterações motoras: imobilidade por longo período de tempo,
agitação, movimentos aleatórios e sem destino ( Trindade, p.142, 2017).

De acordo com DSM-5 (2014, p.99):


“os critérios diagnósticos da esquizofrenia são os seguintes: (A) dois ou mais
itens a seguir, cada um presente por uma quantidade significativo de tempo
durante um período de um mês ou menos se tratados com sucesso, pelo menos um
deles deve ser apresentados: delírios; alucinações; discurso desorganizado;
comportamento grosseiramente desorganizado ou catatônico; sintomas negativos
(expressão emocional diminuída). (B) por período significativo de tempo desde o
aparecimento da perturbação, á nível de funcionamento em uma ou mais área
importante, como trabalho, relações interpessoais ou autocuidado, está
acentuadamente abaixo do nível alcançado antes do início ou quando o início se
dá na infância ou adolescência, incapacidade de atingir o nível esperado de
funcionamento interpessoal, acadêmico ou profissional. (C) sinais contínuos de
perturbação persistem durante, pelo menos, seis meses. Esse período de seis
meses deve incluir no mínimo um mês de sintomas (ou menos, se tratadas com
sucesso) que precisam satisfazer ao critério (A) isto é, sintomas da fase ativa e
pode incluir períodos de sintomas prodrômicos ou residuais, os sinais da
perturbação podem ser manifestados apenas por sintomas negativos ou por dois
ou mais sintomas listados no critério (A) presentes em uma atenuada por
exemplo: crenças esquisitas, experiências perceptivas incomuns. (D) Transtorno
Esquizoafetivos e Transtorno Depressivo ou Transtorno Bipolar com
características psicóticas são descartados: 1) não ocorreram episódios depressivos
maiores ou maníacos concomitantemente com sintomas da fase ativa, ou 2) se
episódios de humor ocorreram durante os sintomas da fase ativa, sua duração total
foi breve em relação aos períodos ativo e residual da doença. (E) a perturbação
pode ser atribuída aos efeitos fisiológicos de uma substância (droga de abuso,
medicação) ou a outra condição médica. (F) se há história de transtorno do
aspectro autista ou de um transtorno da comunicação, iniciado na infância, o
diagnóstico adicional de esquizofrenia é realizado somente se delírios ou
alucinações proeminentes, além dos demais sintomas exigidos de esquizofrenia,
estão também, presentes por pelo menos um mês.

1.2 Tipos
A esquizofrenia é dividida nos seguintes tipos: Tipo Paranóide; Tipo
Desorganizado; Tipo Catatônico; Tipo Indiferenciado; Tipo Residual
(Kaplan;Sadock, 1984).
Dentre estes tipos, a mais relevante para este estudo á a esquizofrenia
paranóide, devido à presença de delírios de perseguição. Essa condição pode conduzir
a prática de delitos, pois o indivíduo ouve vozes de comando que determinam
comportamentos, alguns deles eventualmente de natureza criminosa.
Neste contexto, a esquizofrenia pode vir associada com diversos outros
transtornos e possui um vasto espectro sintomatológico. O afeto inadequado costuma
vir acompanhada do riso com expressão facial toda devido a ausência de um estímulo
adequado, alteração do ritmo do sono, desorganização, troca do dia pela noite. Outra
característica frequente é o andar a esmo, sem rumo, geralmente acompanhado por
uma fala desconexa em tom baixo e linguajar com tartamudeio. Reverberação,
ecolalia, puerilismo, movimentos automáticos geralmente estão presentes na
esquizofrenia.
Também, pode haver desorientação auto e alopsíquica. A possibilidade de
comportamentos de risco para si e para os outros devido a desorganização geral do
funcionamento mental. Conflitos interpessoais, comportamentos bizarros, agressão e
violência podem coincidir a situações jurídicas, devendo o operador do direito
diferenciar o comportamento causado pela esquizofrenia enquanto doença mental,
uma vez que essa condição pode levar, ao tempo da ação ou da omissão, à
incapacidade de compreender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo
com esse entendimento, conforme previsto no artigo 26 do código penal.

2. Inimputabilidade de acordo com o Código Penal Brasileiro

De acordo com o que determina o artigo 26 do Código Penal:


“é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental
incompleto ou retardado, era ao tempo da ação ou da omissão inteiramente
incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com
esse entendimento”. Cuida-se, portanto, de inimputabilidade quando ocorre a
exclusão da imputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental
incompleto ou retardado (Trindade, p.571, 2017).

Conforme Trindade:
“a imputabilidade penal constitui o tema de fundo, isto é, o ponto de direito
material (penal) sobre o qual o Incidente de Insanidade Mental se processa, mas a
questão da ocorrência de doença mental (caput do artigo 26 Código Penal) ou de
perturbação mental interessa ao direito, mesmo quando essas situações acontecem
fora dos limites temporais do momento da ação ou da omissão que constitui o fato
delituoso” ( p.572, 2017).

Como adverte Cuello Calón (1980):


“ o agente, antes de ser culpável, há de ser imputável, ou seja, o modo de ser do
agente, o seu estado espiritual, que tem por fundamento a concorrência de certas
condições psíquicas, biológicas e morais, e se traduzem em consciência e vontade
consolidadas em grau necessário para que o agente possa responder por seus atos
com conhecimento e querer “ (p.426).

Neste viés, Imputabilidade e responsabilidade são duas condições colocadas


uma em frente à outra como a causa e o efeito. Enquanto, Garcia (imput. Trindade,
2017) destaca os aspectos diferenciais na medida em que considera a responsabilidade
uma decorrência da imputabilidade, ou seja, a imputabilidade é um pressuposto da
responsabilidade que se trata de duas noções que se entrosam, que são equivalentes,
podendo, com idêntico sentido, ser consideradas “in abstrato” ou “in concreto”, a
priori ou a posteriori.
Também, para Calón (1980, p.426) “a responsabilidade é o dever jurídico que
incumbe ao indivíduo imputável de responder pelo fato praticado e de sofrer suas
consequências jurídicas”. Ao assim, considerar, deixa explícito que, enquanto a
imputabilidade é uma possibilidade, a responsabilidade representa uma realidade, e
que o estado de imputável é anterior á comissão do fato, enquanto a responsabilidade
nasce no momento de sua perpetração. Para a sociedade de modo geral, a noção de
responsabilidade é mais ampla, e engloba a de imputabilidade.
O sistema jurídico americano apresenta um critério cronológico, pode-se
perceber a evolução do conceito. Representados abaixo por Trindade, 2017:

Nome/Ano Característica

1843 Esta regra sustenta que um individuo pode ser


Regra de M’Naghen: declarado insano mental se, no momento do crime, ele
(conhecimento do certo e não sabia o que estava fazendo ou não sabia que isso
do errado); era errado;

1954 Essa regra ampliou o conceito de insanidade indicando


Regra Durhan: produto da que qualquer comportamento ilegal que resulte de uma
doença; doença ou defeito mental pode ser considerado produto
de insanidade;
1972 Essa regra flexibilizou ainda mais o conceito de
Regra Instituto de Direito insanidade mental, pois segundo ela, uma pessoa não é
Americano: falta de responsável se, no momento, de cometer a conduta em
capacidade substancial decorrência de doença ou defeito mental, carecer de
para reconhecer e adaptar capacidade substancial para reconhecer o caráter
a conduta; criminoso de sua conduta ou para adaptar essa conduta
às exigências legais;

O sistema penal brasileiro adotou o critério biopsicológico normativo como


método de aferição da imputabilidade. Significa dizer que o agente era ao tempo de
ação ou da omissão, portador de doença mental ou de perturbação da saúde mental
e/ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, na expressão do art. 26 do
código penal. Mas não é só: significa também que deve haver relação de causalidade
entre a sua condição psicológica e o crime praticado e que, tanto esse ato, quanto a
condição mental, esteja demonstrado através de prova pericial.
A situação causadora da inimputabilidade deve existir no momento do
conhecimento da ação ou da omissão. Não basta se afirmar que o agente é portador de
doença mental de perturbação da saúde mental ou de desenvolvimento mental
incompleto ou retardado. É necessário ainda que sua ação ou omissão tenha decorrido
dessa condição psicológica: que faltou ao agente a capacidade intelectivo (de
entender) ou volitivo (de querer). Em outros termos, o sistema biopsicológico exige o
nexo de causalidade entre a condição mental/psicológico e o delito praticado, sendo
para isso a causa contemporânea do evento criminoso, privando-o da capacidade
intelectivo ou volitivo (TRINDADE, p. 574, 2017).

3. Medida de Segurança para a inimputabilidade


O juiz deverá promover a substituição da pena por medida de segurança para o
agente declarado semi-imputável nos termos do parágrafo único do art.26 do Código
Penal, que será de internação ou tratamento ambulatorial conforme previsto no art.98
do código penal, e pelo espaço de tempo mínimo de um a três anos no caso de o
sujeito necessitar de especial tratamento curativo. Na hipótese de inimputabilidade,
não se trata da figura jurídica de condenado, posto que o agente foi isento de pena, e,
portanto, absolvido de maneira que se denomina impróprio. O sistema penal vigente
aboliu o duplo-binário, isto é, aplicação da pena da medida de segurança, em troca do
modelo ou medida de segurança para o imputável, quanto para o sujeito inimputável
(TRINDADE, p.575, 2017).
É válido salientar o ensinamento do professor Roque de Brito Alves (2015) ao
afirmar que:
“nossa doutrina penal e o nosso sistema legal em vigor, não há duvida no sentido
de que medidas de segurança é prevenção, de tratamento e assistência social
relativas ao estado perigoso do autor do crime, que seja inimputável ou semi-
inimputável, que cometeu ação ou omissão definido como típica, punível,
delituoso perante nossa lei penal vigente”.

Teoricamente, tanto a responsabilidade penal quanto a civil pressupõe a noção


de imputabilidade, sendo que a imputabilidade penal não é somente uma relação de
causa e efeito, senão que também um conjunto de condições psíquicas, enquanto a
imputabilidade civil é somente uma relação de causalidade, uma vez que nesta não
estão presentes as condições psíquicas daquela, que interessam à questão da
capacidade do agente como um dos requisitos essenciais para a validade dos atos
jurídicos.
Na determinação da inimputabilidade, o Código Penal Brasileiro adotou o
sistema biopsicológico ou misto, que consiste na verificação da real existência de
nexo causal entre o estado mental (doença mental, desenvolvimento mental
incompleto ou retardado ou perturbação mental) e a prática do delito, havendo,
portanto, de serem considerados três elementos: a) elemento biológico; b) elemento
temporal (cronológico); c) efeito sobre a volição ou determinação.
O método biopsicológico exige a conjugação de diversos fatores, motivo pelo
qual a determinação da inimputabilidade constitui uma tarefa complexa. Para sua
elucidação é necessário recorrer á conhecimentos de psicopatologia, psicologia
jurídica e psiquiatria forense. Nesse contexto considerado disciplinas auxiliares do
Direito na medida em que servem para iluminar seus próprios fins.
A medida de segurança não tem finalidade punitiva, mas curativa e de
reintegração do individuo na sociedade. O problema levantado por muitas é que os
locais para o cumprimento da medida de segurança parecem não estar adequadamente
preparados para oferecer o eficaz tratamento ao qual se destina.
O tema questiona não só o aspecto social, mas também a avaliação de um dos
fundamentos do estado democrático de Direito, que é a dignidade da pessoa humana
(Art 1, inciso III, da constituição Federal, 1988). É de esperar que o legislador, no
futuro, possa incorporar esses conceitos postos á disposição da ciência jurídica, e de
seu aperfeiçoamento. Por enquanto, a lei está em vigor a psicologia jurídica não tem
por tarefa questionar a lei, que deve prevalecer ate sua revogação, embora possa
impulsionar avaliações criticas e reflexivas sobre ela.
“Com a Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/2001), teve início no Brasil o
processo de substituição dos antigos manicômios por uma rede de serviços
substitutivos. Somado a isso, desde 2011 há uma recomendação expressa do
Conselho Nacional de Justiça de que as pessoas em medida de segurança
cumpram seu tratamento em meio aberto, segundo os princípios da Reforma
Psiquiátrica. Mesmo assim, ultrapassar a logica manicomial para as pessoas em
situação de sofrimento psíquico que possuem processo criminal ainda é um
desafio em nossa sociedade” (ENTRELINHAS, n 75, 2017).

Para avaliar os casos de inimputabilidade e de semi-imputabilidade do ponto


de vista jurídico processual penal, existe o instituto do incidente de insanidade mental
(art. 149) na resolução do qual a psiquiatria forense e a psicologia jurídica
desempenham um papel de relevância para auxiliar a justiça a elucidar a questão da
normalidade psíquica e da doença mental e seus reflexos no âmbito do Direito.

4. Estudo de Caso
Este capitulo abordará um estudo de caso de um adulto, masculino, residente
com os pais, é o terceiro de uma prole de três filhos, todos homens. Nasceu de parto
normal e hospitalar, desenvolvimento normal, nunca teve doença grave e nem foi
submetido a cirurgia. Na infância apresentou-se retraído, tímido e com dificuldades de
aprendizagem. Foi à escola com 07 anos, apresentando atraso na fala, havendo uma
dificuldade na linguagem expressiva., tendo frequentado até o final do ensino médio.
Paciente nega patologias orgânicas graves agudas ou crônicas até o presente
momento, nunca esteve internado em Hospitais Psiquiátricos até o momento. Há cerca
de um ano, iniciou tratamento psiquiátrico com Médica que não recorda do nome,
tendo usado a medicação “invega sustena”. Pois começou a “ouvir vozes que faziam
com ele não conseguisse se controlar ou mesmo pensar direito. O avaliado
compareceu nas consultas na frequência mensal, sendo que “vozes desapareceram”.
Teve apenas uma namorada, tendo ela terminado o namoro. Iniciou vida sexual com a
idade de 18 anos, sendo que está sem vida sexual ativa desde a sua prisão.
Com o passar do tempo, as “vozes voltaram e houve aparecimento de
pensamento de perseguição”, tendo cometido o delito e houve internação para iniciar
tratamento psiquiátrico por decisão judicial. Quando investigado, disse que “não tem
ideia de onde as vozes vinham”, referindo que acredita não ser acometido de nenhuma
enfermidade mental, acreditando não precisar usar qualquer tipo de medicamento
psiquiátrico.
A respeito de sua vida profissional, no passado trabalhou em marcenaria e,
após, como vigilante, No passado, ele nunca esteve em situação de concubinato,
nunca usou drogas ilícitas, assim como usa álcool de forma moderada. Relatou que
não há membros tanto da linhagem paterna, quanto materna que sejam acometidos de
enfermidades psiquiátricas.
4.1 Histórico do Tratamento atual
O examinado negou todos os fatos da ação criminosa, no período da ação
criminosa, o réu relatou que estava trabalhando. Quando ocorreram os fatos
denunciados pelo Ministério Público, o avaliado estava em tratamento psiquiátrico há
três meses, sendo que, “ainda estava com vozes e com pensamento de perseguição”.
Quando estava internado usava Haldol Decanoato uma ampola a cada 15 dias na
forma intramuscular, Neozine 100 mg á noite, Risperidona 6 mg ao dia, Biperideno 4
mg ao dia.
Apresentou-se ao exame, mostrando um bom cuidado de sua aparência e
higiene, aparentando maior idade que a real. Suas vestes estavam adequadas para o
seu nível socioeconômico, porém, em desalinho. Sua atenção estava sem alteração,
orientado quanto ao espaço e quanto á pessoa, no espaço e no tempo. A memória
encontrava-se com algumas falhas para fatos tardios em função do surto psicótico no
período da ação criminosa em seus dois fatos. O pensamento mostrava-se algo
concreto no momento, sem produção delirante. No passado, em função do quadro
psicótico crônico agudizado, houve vários períodos de produção delirante de cunho
persecutório e pensamento confuso, basicamente como ocorreu no período das ações
criminosas. O humor mostrou alteração, havendo relativo embotamento afetivo. A
linguagem mostrou-se algo empobrecida. A inteligência mostrou-se clinicamente sem
anormalidades importantes. Na sensopercepção, não mostrou alterações no momento
da entrevista pericial, porem em seu histórico, há relato de alucinação auditiva,
principalmente no período das ações criminosas. Conduta: em sua história passada, há
alterações em função da presença de sintomas agudizados de sua enfermidade
psicótica: aumento da impulsividade (como ocorreu no período das ações delituosas),
principalmente do impulso agressivo. Juízo crítico: não apresentava nenhum juízo
crítico para o fato de ser um individuo que apresenta um quadro psicótico crônico que
precisa de uso de antipsicóticos de forma sistematizada, assim como não havia juízo
critico para a etiologia de sua produção alucinatória. O juízo crítico de forma geral
apresentou-se muito comprometido, muito deficitário. O funcionamento mental do
periciado é de cunho psicótico crônico.
Entrou em surto psicótico no horário de visitas. Bateu em seu pai e quando os
agentes penitenciários foram contê-lo mesmo arrebentou a algema ao meio e agrediu
também um dos agentes. Ficou muito agressivo e descontrolado. Tentou o suicídio
varias vezes dentro da cela onde estava alojado.
Os dados compilados mostram que o requerido é portador de Transtorno
Mental cuja característica essencial é a presença de uma alteração primaria do
pensamento. A referida enfermidade que o avaliado é acometido, caracteriza-se, por
apresentar sintomas positivos como delírios e alucinações visuais e auditivas. Em
função do aspecto temporal no aparecimento dos sintomas, ainda não é possível fazer
o diagnostico do Transtorno Esquizofrênico, em que pese o esperado no caso em tela,
haja uma evolução para ser confirmado tal diagnostico no futuro. O periciando
apresenta uma história, dados dos Autos do Processo e Exame Psiquiátrico
compatível com Transtorno Esquizofreniforme (DSM IV – TR e CID 10).
Na atualidade e no período da ação criminosa, transtorno esquizofreniforme
(CID – 10 F20.8), o réu apresenta e apresentava no período da ação criminosa, quadro
clinico compatível com Transtorno Esquizofreniforme. O referido quadro citado
acima é entendido na linguagem médico-legal como sendo o examinado portador de
Doença Mental que pode determinar alteração relevante, inclusive de anulação das
capacidades de entendimento e volição o que ocorreu com o examinado na ação
criminosa em seus dois fatos.
Por isso, deve-se entender que há nexo entre os delitos cometidos com a
enfermidade mental do réu. O examinado deve ser considerado totalmente
inimputável para a ação delituosa, situação que se enquadra no que abrange o artigo
26 do Código Penal Brasileiro em seu Caput. Está indicada tratamento para o
requerido no IPF, em função de seu alto grau de periculosidade.
Era ao tempo da ação criminosa, totalmente incapaz de entender o caráter
ilícito de sua ação e totalmente incapaz de se determinar de acordo com este
entendimento. O perito relator necessita explicitar ao Juízo que está indicada
tratamento para o requerido no IPF, em função de seu alto grau de periculosidade.
Após, um ano e quatro meses no IPF foi requerido na avaliação psicológica e
psiquiátrica, que o mesmo apresentava condições de seguir tratamento domiciliar,
tendo alcançado nível de resiliência que permitiu ser posto em liberdade sem
apresentar risco de surto, fazendo acompanhamento pelo serviço de atendimento
psicossocial (psicoterapia semanal; acompanhamento familiar; quimioterápico). Os
profissionais da saúde mental assumem responsabilidade técnica pelo tratamento, para
a determinação da concessão da liberdade do réu.

Considerações Finais
De acordo com os estudos realizados vimos que a esquizofrenia é uma doença
mental grave, de curso crônico, na maior parte das vezes debilitante, com distintas
manifestações psicopatológicas. Desse modo, as diferentes manifestações clinicas da
esquizofrenia, bem como sua gravidade vão determinar o enquadramento legal do
paciente, se o mesmo estiver em situação de conflito com a lei penal. O que importa
para isso, não é a doença em si, mas sim sua manifestação clínica do paciente, o que
denota a necessidade de um estudo de caso, pois a aplicação da lei dependerá de uma
avaliação clínica e pericial minuciosa.
O indivíduo que apresenta esquizofrenia e que, em decorrência disso,
apresenta comprometimento do entendimento do caráter típico e antijurídico de sua
ação ou omissão, ou comprometimento de sua capacidade de autodeterminação de
acordo com seu entendimento, será considerado inimputável. Quando isso acontece o
individuo deverá ser absolvido da prática de crime e ser submetido à aplicação de
Medida de Segurança. A imputabilidade deve ser verificada no momento em que o
crime é cometido, sendo considerado inimputável aquele indivíduo que age sem
consciência, ou seja, sem a representação exata da realidade (nexo causal). O critério
biopsicológico, apresentar a doença mental, e ela tem que comprometer sua
capacidade de entendimento.
No estudo de caso apresentado, o delito foi motivado pelos sintomas da
doença (o examinado estava apresentando alucinações e interpretações delirantes).
Nesse caso, não há duvida quanto ao diagnostico e ao nexo de causalidade, portanto o
examinando foi considerado inimputável e após avaliação do Instituto Psiquiátrico
Forense (IPF), como medida de segurança foi encaminhado para tratamento no CAPS
(Centro de Atenção Psicossocial) de forma ambulatorial recebendo cuidados de
equipe multiprofissional.
Referências
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BRASIL. Código de Processo Penal. Lei 3689/41. Planalto.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do
Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
BARROS, Daniel e Teixeira, Eduardo. Manual de Perícias Psiquiátricas.
Artes Médicas, Porto Alegre, 2015.
DSM-V. Manual Diagnóstico e estatístico de Transtornos Mentais. 5 edição.
Porto Alegre. Artmed, 2014.
ELKIS, Hélio. A evolução do conceito de esquizofrenia neste século. Revista
Brasileira Psiquiátrica vol.22 s.1 São Paulo, 2000.
ENTRELINHAS. Revista do Conselho Federal de Psicologia, 2017.
EY, H., BERNARD, P., & BRISSET, C. (1985). As psicoses esquizofrênicas.
In Manual de psiquiatria (pp. 535-615). Rio de Janeiro: Masson.
KAPLAN, HAROLD. Compendio de Psiquiatria dinâmica (por) Harold I.
Kaplan (e) Benjamin J. Sadock. Trad. De Helena Mascarenhas e Souza, Maria
Cleonice L. Schaun, Maria Cristina R. Goulart, Maria Luiza Silveira e Silvia Ribeiro.
3 ed. Porto Alegre, Artes Médicas, 1984.
Organização Mundial da Saúde. Classificação dos Transtornos Mentais e do
Comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
TRINDADE. J e Molinari. F (org.) Psicologia Forense: Novos Sabores. Ed.
Imprensa Livre. Porto Alegre, 2018.
TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do
direito. 8 edição. Porto Alegre, livraria do advogado, 2017.
ROVINSKI, Sonia L. R. Fundamentos da perícia psicológica forense. 3°
edições, São Paulo: vetor, 2013.
COMUNIDADES URBANAS, PREVENÇÃO
CRIMINAL E DIAGNÓSTICO LOCAL DE
SEGURANÇA264

Ana Sani265, Laura M. Numes266 e Sónia Caridade267


* Texto original de Portugal

Introdução
O crescimento das cidades contemporâneas é um dado indesmentível em vários
países, incluindo Portugal. Os dados reportados pelo Departamento dos Assuntos
Económicos e Sociais das Nações Unidas no relatório de 2018, relativo às perspetivas
da Urbanização Mundial, alertam-nos para o facto de que, até 2050, 30 (entre estes
Portugal) dos 233 países ou áreas analisadas verão as suas populações rurais
diminuírem em pelo menos 30% (UNITED NATIONS, 2019). A urbanização dos
espaços e a consequente adaptação ao estilo de vida das cidades é uma realidade em
muitos países, que traz vantagens (associadas às tecnologias, celeridade no acesso a
bens e serviços), mas acarreta também desvantagens para a população,
designadamente insegurança e crime (NUNES et al., 2017).
Com o crescimento das cidades, produto da industrialização, surgem novos
atores sociais e novas questões de segurança e ordem pública começam a ser
conjeturadas (FERNANDES; RÊGO, 2017). As mudanças sociais trazem, por vezes,
algum desassossego e receio de que a segurança no espaço de convívio social deixe

264
Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a
Tecnologia no âmbito do projeto PTDC/DIR-DCP/28120/2017.
265
Professora Associada da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando
Pessoa (UFP) no Porto, Portugal. Doutorada em Psicologia da Justiça pela Universidade do Minho
(UM). Coordenadora do Mestrado em Psicologia da Justiça: Vítimas de violência e de crime.
Cocoordenadora da Unidade de Psicologia Forense da Clínica Pedagógica de Psicologia da UFP.
Membro integrado externo no Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC) na UM.
Cocoordenadora do Observatório Permanente Violência e Crime (http://opvcufp.com/) da UFP. E-mail:
anasani@ufp.edu.pt
266
Professora Auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa
(UFP) no Porto, Portugal. Doutorada em Ciências Sociais / Psicologia / Linha de Investigação
Delinquência. Membro integrado do Centro de Investigação em Ciências Sociais e do Comportamento
(FP-B2S) da UFP. Cocoordenadora do Observatório Permanente Violência e Crime
(http://opvcufp.com/) da UFP. E-mail: lnunes@ufp.edu.pt
267
Sónia Caridade, Professora Auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade
Fernando Pessoa (UFP) no Porto, Portugal. Doutorada em Psicologia da Justiça pela Universidade do
Minho. Cocoordenadora da Unidade de Psicologia Forense da Clínica Pedagógica de Psicologia da
UFP. Membro integrado do Centro de Investigação em Ciências Sociais e do Comportamento (FP-
B2S) da UFP. Investigadora no Observatório Permanente Violência e Crime (http://opvcufp.com/) da
UFP. E-mail: soniac@ufp.edu.pt
de estar presente no dia-a-dia e que fenómenos desviantes e criminais passem a
caracterizar o meio urbano. Empurrados para as periferias das grandes cidades, alguns
indivíduos conhecem as dificuldades de sobrevivência e assumem para as suas vidas
formas marginais de subsistir (FERNANDES; MATA, 2015). Como referido por
TRINDADE (2017), a vida nas cidades tornou-se uma “experiência repleta de
insegurança, reflexo próprio da incerteza do mundo em que elas se inserem” (p.193).
Nas sociedades industrializadas a desigualdade social está em ascensão,
designadamente através da exclusão social (HOPE; KARSTEDT, 2003). Os processos
de exclusão podem reduzir as oportunidades de um indivíduo ter um percurso
normativo, que se coadune com o respeito pela lei (TILLEY, 2013) e a rotulagem,
muitas vezes imprimida a quem se pauta pelo desvio (MUNCIE, 2013), pode alterar a
identidade da pessoa, tornando-a um outsider, como preconiza o interacionismo
simbólico (DIAS, 2016). O risco de que múltiplos contatos com o sistema de justiça
criminal pode, involuntariamente, fornecer os “degraus” para um maior envolvimento
com o crime (TILLEY, 2013), especialmente entre os grupos mais marginalizados.
Assim, partindo de uma abordagem mais ampla do sistema de justiça criminal
(que inclui as polícias, os tribunais e o sistema prisional) é nossa intenção, neste
capítulo, focar não o indivíduo, mas o grupo (população), não um espaço privado,
mas o espaço das relações sociais (comunidade), e incidir a discussão final deste livro
no tema da prevenção criminal.
Assumindo a definição adaptada pelas Nações Unidas, considera-se a
‘prevenção criminal’ como envolvendo as estratégias e medidas que visam reduzir o
risco de ocorrência de crimes e seus potenciais efeitos nocivos sobre os indivíduos e a
sociedade, incluindo o medo do crime, intervindo para influenciar as suas múltiplas
causas (ECOSOC RESOLUTION 2002/13; ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS
SOBRE DROGA E CRIME, 2010).

1. Os Prismas da Prevenção Criminal


A prevenção criminal tem sido um dos mais profícuos temas de debate social
(GARCIA-PABLOS DE MOLINA, 2009; NUNES; SANI, 2014), dada a necessidade
de um olhar que contemple a proatividade, com ênfase na antecipação, em vez de na
remediação de situações-problema. A realização de estudos que visem o diagnóstico
do fenómeno criminal, a análise das suas especificidades, a identificação dos alvos e
agentes criminais e articulação estratégica e contextualizada para solução de
problemas revelam-se essenciais para a uma atuação preventiva do crime. Estas têm
sido as orientações vertidas pelas instâncias internacionais (ESCRITÓRIO DAS
NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGA E CRIME, 2010), que referem que “há
evidência clara de que estratégias bem programadas de prevenção ao crime não só
previnem contra a criminalidade e a vitimização, como também promovem a
segurança da comunidade e contribuem para o desenvolvimento sustentável dos
países” (p. 3).
A prevenção criminal pode ser olhada de diferentes prismas. De acordo com
TILLEY (2002) a análise para prevenção do crime difere da análise de prevenção do
crime. A primeira está mais voltada para a estudo do que foi e está a ser feito para
tentar evitar o crime, estando mais orientada para a eficácia como parte de uma ampla
agenda de reforma social, enquanto que a segunda está mais preocupada em informar
objetivamente dos esforços para identificar e lidar com ameaças específicas de crimes
em horários específicos e lugares. De acordo com o mesmo autor, a análise de
prevenção do crime pode passar por três estratégias: i) identificar focos de
criminalidade que possam constituir um campo para esforços preventivos; ii) buscar
de meios de prevenção mais eficientes, eficazes e, talvez, equitativos; iii) antecipar os
problemas futuros de criminalidade com o objetivo de desenvolver estratégias
preventivas (Rogerson et al., 2000; Pease, 1997 as cited TILLEY, 2002). Tais
medidas podem compreender uma abordagem que atende aos três níveis de
prevenção: primário, secundário e terciário (SAMMONS; PUTWAIN, 2019).
A prevenção primária é dirigida a toda a população visando o seu bem-estar
social e qualidade de vida, independentemente da sinalização de quaisquer riscos, que
se pretendam evitar a médio e longo prazos (GARCIA-PABLOS DE MOLINA,
2009). Trata-se de uma abordagem proactiva que procura o fortalecimento de fatores
de resiliência que ajudem os indivíduos a evitar o fenómeno criminal (SAMMONS;
PUTWAIN, 2019). Neste nível de prevenção incluem-se, também, as ações de
desenvolvimento social, que pretendem a sensibilização e resistência de sujeitos
através de programas de educação nas escolas ou de alerta ao público geral sobre
violência (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGA E CRIME,
2010). Alguns exemplos de medidas que se enquadram neste nível de prevenção
passam pela educação da população para a adoção de medidas de prevenção
individuais, pela participação do cidadão na segurança da comunidade, pela
adequação dos espaços físicos e arquitetónicos, aumento da iluminação pública. A
criação de ambientes seguros apresenta múltiplos benefícios, especialmente para as
populações mais pobres e está diretamente relacionada com a redução da pobreza e
exclusão social (DIREÇÃO GERAL DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, 2009),
logo apoia a prevenção criminal.
A prevenção secundária está orientada para a identificação e gestão de fatores
de risco com o propósito de conter o desenvolvimento de fenómenos criminais a curto
e médio prazos. A atuação ocorre quando começam a surgir sinais exteriores de risco
e há uma atuação com vista a conter esses mecanismos potenciadores do desvio, por
exemplo através de programas dirigidos a adolescentes com características
problemáticas e associações a pares desviantes, proporcionando-lhe o contacto com
modelos pró-sociais, suporte académico (SAMMONS; PUTWAIN, 2019) e atividade
de desenvolvimento pessoal que favoreçam o autoconhecimento, a resolução de
problemas e o não envolvimento em comportamentos desviantes (SIMÕES, MATOS,
EQUIPA PROJECTO AVENTURA SOCIAL, 2018). Pode ainda incluir-se neste
nível de prevenção algumas ações desenvolvidas pelas entidades policiais, ações de
controlo dos media, certas transformações arquitetónicas identificadas como
propiciadoras do delito (GARCIA-PABLOS DE MOLINA, 2009), o que nos remete
para a prevenção situacional (COHEN; FELSON, 1979; MACKEY, 2013).
A prevenção situacional centra-se na redução das oportunidades para o crime,
assim como no aumento dos riscos de detenção e minimização dos benefícios
associados ao desvio (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGA E
CRIME, 2010). Esta forma de prevenção tem como um dos seus pilares a Teoria das
Atividades Rotineiras, que enfatiza a importância das atividades quotidianas dos
ofensores e dos alvos (REBOCHO, 2016), assim como a ideia de que a observância
que possa ser ou não feita das mesmas influencia a ocorrência do evento criminal. De
acordo com esta teoria, o crime ocorre quando convergem, no espaço e no tempo, três
elementos fundamentais: a presença de um ofensor motivado para o crime, a
existência de um alvo (pessoa ou objeto) adequado e a ausência de guardiões capazes
de prevenir o evento (MCLAUGHLIN, 2013). O crime pode, assim, resultar da
existência de um conjunto de oportunidades que reunidas são favorecedoras de
ocorrência criminais. A prevenção secundária visa a identificação de eventuais
elementos que, sendo fatores mais ou menos dinâmicos, podem ser modificados com
o propósito de prevenção. Algumas das intervenções a este nível podem, por exemplo,
passar pelo redesenhar os espaços ambientais e o fornecimento de assistência e
informação às vítimas e eventuais vítimas (prevenção vitimal) (GARCIA-PABLOS
DE MOLINA, 2009).
Na prevenção terciária caracteriza-se por uma atuação quando o problema já
existe, sendo o objetivo uma ação a curto prazo com vista a minimizar os efeitos que
possam decorrer da presença do mesmo (GARCIA-PABLOS DE MOLINA, 2009).
Este tipo de prevenção envolve uma atuação junto de pessoas ou contextos já
rotulados pelo desvio. Estas intervenções que implicam, já, muitas vezes, o contacto
com o sistema de justiça, as polícias, o sistema prisional, o apoio social são as que
acarretam mais custos financeiros associados ao agente criminal (e.g., tratamento,
reabilitação), à vítima (e.g., saúde, produtividade), à reabilitação dos contextos (e.g.,
segurança, policiamento) (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGA
E CRIME, 2010; MACKEY, 2013).
Prevenir o crime implica, para além da redução da sua ocorrência, a diminuição
da insegurança e medo das pessoas, sendo para tal necessário intervenções que atuem
sobre os fatores de risco que originam essas situações (DIREÇÃO GERAL DA
ADMINISTRAÇÃO INTERNA, 2009). É importante reconhecer que, por vezes, uma
ação preventiva demasiado opressiva pode produzir, precisamente, o contrário.
Compete ao Estado garantir a segurança e não fazer temer por ela, daí que é crucial
que se analise e reflita sobre o tipo de mecanismos e propostas que, muitas vezes, são
sugeridas para a realização de prevenção criminal. Por exemplo, uma elevada
repressão não é garantia de redução do crime. Uma estratégia deste tipo, que não
considere vários aspetos teoricamente estudado em criminologia, pode dar origem a
novos comportamentos criminais, resultantes do contornar pelos agentes criminais das
dificuldades, entretanto, impostas pela lei. Neste sentido, o conhecimento científico
sobre o crime, a sua génese, a dinâmica e as variáveis permitem pensar em planos e
estratégias mais adequados para prevenir o fenómeno criminal (GARCIA-PABLOS
DE MOLINA, 2009).
A necessidade de se adaptar uma abordagem de base empírica, que apoie a
tomada de decisão sobre as políticas sociais, o policiamento e o sistema de justiça,
exige o desenvolvimento de investigação de elevada qualidade, capaz de uma
avaliação rigorosa dos programas destinados à redução do crime (HOPE;
KARSTEDT, 2003; SAMMONS; PUTWAIN, 2019). O Diagnóstico Local de
Segurança (DLS) é um instrumento com potencialidades de prevenção ao permitir,
pelo levantamento das necessidades da população, um planeamento de medidas de
segurança ajustadas a essa mesma comunidade (SANI; NUNES, 2013a).

2. Diagnóstico Local de Segurança na esfera da prevenção do crime


O conhecimento de áreas geográficas específicas, considerando os diversos
indicadores (objetivos e subjetivos), como sejam as incivilidades, as tipologias
existentes de crime, o sentimento (in)segurança, a perceção do controlo social formal
(SANI; NUNES, 2013a), que poderão ser fornecidos pela população local, constituem
um excelente ponto de partida para eventuais propostas de prevenção criminal. Este
tipo de levantamento que visa a recolha de informação para melhoria da qualidade de
vida e segurança dos cidadãos tem sido descrito como um Diagnóstico Local de
Segurança (DLS), cujo objetivo de acordo com DIREÇÃO GERAL DE
ADMINISTRAÇÃO INTERNA (2009) é propiciar análises contextualizadas que
visem intervenções fundamentadas conducentes ao desenvolvimento e segurança da
área concreta avaliada (NUNES; SANI, 2014). O DLS serve também para comprovar
a eficácia de medidas e serviços já implementados, no sentido de concluir se os
resultados esperados foram ou não alcançados (DIREÇÃO GERAL DA
ADMINISTRAÇÃO INTERNA, 2009).
O DLS pode ser tanto mais enriquecedor, quanto mais essa avaliação for
conduzida com olhares multidisciplinares, capazes de focar diferentes aspetos
associados à experiência real ou percebida das populações. O estabelecimento de
parcerias com entidades locais, como por exemplo os municípios ou as polícias,
podem favorecer uma melhor definição de estratégias de atuação dessas mesmas
entidades, com vista à segurança nos espaços locais frequentados pelos cidadãos
(SANI; NUNES, 2017a). É na base de compromissos como estes, que visem a
redução e a prevenção do crime nas cidades contemporâneas (NUNES et al., 2017)
que uma intervenção comunitária resulta ser mais eficaz, pois permite à população
dessa comunidade participar no projeto de segurança pública da sua área geográfica
(ARAÚJO; BRAGA, 2008; SILVA, 2010). Foi com esse propósito que têm sido
desenvolvidos uma série de estudos de DLS junto de populações diversas
comunidades (NUNES; SANI, 2014; SANI; NUNES, 2013a; 2016; 2017b), inclusive
tendo como amostra elementos pertencentes ao próprio sistema de controlo formal
(cf. SANI; NUNES, 2013b).
A experiência da equipa de investigação tem permitido expandir os seus estudos
até áreas geográficas mais longínquas como foram a Guiné-Bissau (SANI; NUNES,
2017b) ou o Brasil, junto da população do Bairro Guajuviras, situado na cidade de
Canoas, pertencente à metropolitana de Porto Alegre, do Estado do Rio Grande do Sul
numa parceria com Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica (SBPJ).
Em curso, em Portugal, no âmbito do Projeto LookCrim (financiado pela
Fundação para a Ciência e a Tecnologia - PTDC/DIR-DCP/28120/2017), está a ser
implementado um DLS com foco na área geográfica do Centro Histórico da cidade do
Porto (Portugal). Este projeto pretende através da análise de informação proveniente
de diferentes indicadores (estatísticas oficiais, inquéritos de autorrelato e observação
espacial) examinar uma perspetiva holística e integrante, de cariz multifacetado e
multissistémico, o fenómeno criminal. O projeto pretende contribuir para a definição
de novas políticas de prevenção criminal, assim como para a reabilitação dos espaços
que se revelam com caraterísticas que possam potenciar tais ocorrências. Baseado na
abordagem que refere que as características espaciais podem ser potenciadoras (ou
minimizadoras) do crime através dos designados programas Crime Prevention
Through Environmental Design (CPTED), considerando as estatísticas oficiais do
crime reportado, e atendendo ao relato da população sobre eventuais ocorrências
criminais não reportadas às autoridades, o projeto LookCrim procura triangular toda
esta informação para traçar um retrato do Centro do Porto e, finalmente, o partilhar
com o poder local e as forças policiais no sentido de que se repensem planos de
prevenção criminal adequados àquela área tão específica. Tais planos deverão incluir
medidas estrategicamente adaptadas ao Centro Histórico e às populações que o
povoam, replaneamento urbano de adaptação dos espaços de forma a não potenciarem
o crime, assim como modalidades de policiamento realmente ajustadas ao centro de
uma cidade com origem milenar.
Tendo presente que a abordagem de prevenção criminal envolve também a ação
das polícias, queremos discutir a importância do modelo de policiamento adotado, na
medida em que há evidências de que a confiança existente entre a população e a
polícia é proporcionalmente direta ao contato que se tem entre os dois atores sociais
(SANI; NUNES, 2013b). O modelo de policiamento comunitário é uma abordagem
que tenciona atingir essa relação de proximidade entre Estado e sociedade, sendo
mencionado como um dos preditores de alta eficácia na adoção de uma postura
preventiva ao crime (ARAÚJO; BRAGA, 2008).
3. Policiamento Comunitário: da proximidade entre o Estado e a Sociedade
O DLS produzido através do inquérito às populações tem evidenciado através
da das investigações, já mencionadas, a pertinência da cooperação entre o Estado e a
sociedade para a prevenção criminal. Uma abordagem à prevenção do crime impõe
que se considere como poderá a dimensão "social" pode ser apreciada em termos da
redução do crime (HOPE; KARSTEDT, 2003).
As alterações sociais que se têm verificado, a par da urgência em impedir um
aumento da criminalidade, requerem a mudança para uma polícia que funcione em
sintonia com os anseios das comunidades locais (BENGOCHEA et al., 2004). Tais
mudanças nas práticas operacionais de policiamento fizeram emergir uma nova
realidade a nível tático e estratégico conhecido por modelo de policiamento
comunitário ou de proximidade. A premissa central que norteia esta modalidade de
policiamento reside na atuação do público de forma mais ativa e coordenada na
obtenção da segurança (SKOLNICK; BAYLEY, 2006). Segundo estes autores foram
quatro as características do policiamento comunitário adotadas: i) o protagonismo da
comunidade na organização da prevenção do crime; ii) a reorientação das atividades
de patrulhamento; iii) o aumento da responsabilização dos integrantes das
comunidades e a iv) descentralização do comando.
O policiamento de proximidade descreve a atividade das forças de controlo
social, que se caracteriza por uma atitude voluntária de aproximação aos cidadãos e às
comunidades locais. Na prática decorre do desenvolvimento pela polícia de ações de
prevenção através das quais os agentes procuram conhecer profundamente as áreas
geográficas pelas quais são responsáveis. Desta forma, os elementos policiais detêm
um papel relevante na dinâmica que envolve a própria comunidade, ao nível da
prevenção do crime e da atenção à vítima (CUSSON, 2000). Em termos de prevenção
criminal, um relacionamento positivo, de proximidade e reciprocidade entre polícia e
sociedade é um fator chave na prevenção do crime. Importa, porém, considerar o que
a sociedade influencia e molda aquilo em que a polícia se torna e esta, por seu turno,
afeta aquilo em que a sociedade se poderá vir a tornar (BAYLEY, 2006), o que
significa que essa proximidade nem sempre é bem conseguida.
O policiamento de proximidade rege-se por uma filosofia impulsionadora do
planeamento de estratégias sustentadas pelo recurso sistemático a parcerias e a
técnicas de resolução de problemas numa perspetiva proativa, que visa a criação de
condições para a segurança das populações, relativamente a questões como o crime, o
medo do mesmo e as desordens sociais (COMMUNITY ORIENTED POLICING
SERVICES, 2009).
O policiamento de proximidade é, também, um modelo tão exigente quanto
complexo, que impõe um cuidadoso e atento processo de mudança, envolvendo as
questões relacionadas com a gestão e a administração policiais, assim como o saber
lidar com pressões externas (e.g., media, tribunais, organizações não governamentais)
e deter um conhecimento apurado das condições de cada local (GOLDSTEIN, 2003).
Assim, há uma multiplicidade de fatores a considerar na planificação da atuação
policial, pelo que uma abordagem científica junto dos diversos atores sociais através
do diagnóstico local de segurança (DIRECÇÃO GERAL DE ADMINISTRAÇÃO
INTERNA, 2009) lança, indubitavelmente, bases sérias para a definição de políticas
de prevenção criminal.

Considerações Finais
Com a urbanização que se processa de forma rápida em diversos países do
mundo, a prevenção do crime é uma prioridade nas políticas de vários Estados. Uma
análise para prevenção do crime ou de prevenção do crime exige um conhecimento de
base empírica, fundado na evidência científica, mas também o envolvimento do
“social” como uma das dimensões, potencialmente promotoras de garantia da eficácia
da segurança de uma comunidade. Elaborar projetos de prevenção para determinadas
áreas urbanas obriga à conjugação de visões múltiplas, de agentes sociais com ou sem
expertise, de diferentes áreas e com estatutos diferenciados. Conhecidas as
necessidades da comunidade por meio da realização de um diagnóstico local de
segurança, da reunião de saberes poderão surgir soluções para os problemas do crime.
No sentido de melhorar essas soluções, alguns projetos de investigação na área da
criminologia têm sido criados em universidades, cultivando redes de parcerias
nacionais e internacionais, fazendo com que as políticas criminais possam ser testadas
em diversos países. O interesse único e final é o bem público, daí que as medidas
propostas de prevenção criminal devam ser ponderadas, tendo por base a ciência
criminológica. A responsabilidade da criminologia é a de apresentar descobertas
confiáveis, bem fundamentadas e empiricamente comprovadas.
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O QUE NOS MOVE?

Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler268

Introdução
Este artigo é a produção de 8 desenhos livres, sem a pretensão de ato estético
de beleza e de livre associação para a autora e livre interpretação para os leitores. O
método utilizado foi intuitivo, ou seja, na observação das coisas e fatos da vida e
apoiado em experiências vividas, e não em teorias e métodos científicos. Foram
utilizados 4 papeis para fazer os desenhos, metade de folha branca A4, e 2 canetas de
tinta nanquim preta, 1.0. A forte referência para o trabalho foi o filme, A Invenção de
Hugo Cabret, drama, filmado em 2011, com a direção de Martin Scorsese. Hugo é um
garoto de 12 anos que vive numa estação de trem em Paris, no início do século 20.
Seu pai, um relojoeiro que trabalha em um museu, morre depois de mostrar para seu
filho uma descoberta: um androide. Assim, a aventura discorre sobre a vida do grande
cineasta francês, George Méliès, sendo o filme uma grande homenagem ao criador
das trucagens e dos efeitos especiais da sétima arte, que é o cinema.
O presente trabalho é uma modesta homenagem da autora aos seus pais,
Carlos e Flávia. O pai, advogado, é cinéfilo e apaixonado pela cultura francesa; a
mãe, artista plástica, é talentosa pintora e desenhista. Dessa união, o título do artigo
sugere: o que nos move? A resposta, posso oferecer nas considerações finais.
A interlocução do Direito e Psicologia foi alvo de estudo dos últimos dois
anos da autora, sempre com o enfoque contemplativo e filosófico, para exercitar a
transdisciplinaridade como característica de um profissional que lida com as
singularidades de problemas e sempre disposto a servir a quem precisa de ajuda nas
questões existenciais e patrimoniais ou negociais. A corrente do pensamento aberto

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Advogada. Especialista em Processo Civil. Mediadora e Conciliadora. Pós Graduada em Psicologia
Forense. Facilitadora de Justiça Restaurativa e de Círculos de Construção de Paz. Líder do Núcleo
Jurídico do Instituto do Câncer Infantil/RS. Integrante da Comissão da Saúde OAB/RS. Integrante do
Grupo de Estudos em Processo Civil da AJURIS. Integrante do Instituto Brasileiro de Direito de
Família- IBDFAM. Integrante do Movimento Porto Alegre Inquieta- Divisão Inovação Social.
Associada do Centro de Estudos Luis Guedes- estudos em saúde mental. Associada da Escola Waldorf
Brasil. Técnica em Transações Imobiliárias. Multiplicadora da metodologia Dragon Dreaming,
Comunicação Não Violenta, Programação Neuro Linguística, Constelação Familiar, Meditação e
demais práticas sistêmicas, pessoais, de diálogo, compartilhamento, improvisação, facilitação e co-
criação de inovação. Produtora Musical Artística e Executiva. E-mail: marianainternet@gmail.com.
produz inúmeras perguntas com várias opções de respostas e verdades de cada um.
Com esse viés plural, romper a barreira da disciplina é a provocação. O rigor das
normas da escrita é dispensado pela autora.
O diálogo entre o antigo e o novo, entre o científico e o empírico é possível!
Eis a arte para nos salvar do determinismo e da prisão do pensamento dogmático. O
processo criativo artístico detona emoções e ideias que fogem de qualquer
possibilidade antes imaginada. A autora não possui talento ou habilidade artística e
por que ela não pode tentar desenvolver esse recurso? A expressão transcende a
beleza dos trabalhos a seguir e comunicam o que o intérprete quiser entender. Poder-
se-ia dizer, até, que os desenhos podem apresentar respostas a um dado problema sem
que se tenha essa pretensão.
Como advogada, ter a mente aberta ajuda a autora a ajudar e desconstruir
conceitos e crenças que podem contaminar a fala e a escrita na hora de trabalhar e se
relacionar. Quando a pessoa não se desenvolve de forma integrada e nem se permite o
autoconhecimento, o viés cognitivo do trabalho pode falar mais sobre a pessoa do que
sobre os fatos narrados. Os vieses são as tendências que podem levar o
comportamento humano onde a pessoa só reconhece como verdade o que ela acredita
e no que ela crê. A conexão do Direito com a Psicologia poderia se chamar arte.
Por isso, olhem atentamente para as imagens a seguir e permitam-se achar os
desenhos feios, ridículos, bonitos, surpreendentes, errados, maravilhosos, borrados,
tortos, engraçado, infantis, tolos ou irregulares, porque todas as impressões serão
muito bem vindas e acolhidas com coragem.
Não se trata de lição de moral, mas sim ajudar a cada um a se tornar o artista
do próprio trabalho e da sua vida. Se tornar seu mestre, mesmo sem a admiração e
com ou a decepção de quem quer que seja.
Encerrada a apresentação resta à autora a tentativa de deixar nascer a doçura
da mulher empírica e do valor como ser humano em constante e eterno estado de
restauração e autolapidação.

AQUI INSERIR OS DESENHOS.. 1 POR PÁGINA!!!

Considerações
Uma das funções da arte, cremos, seja fazer pensar a obra e o artista. No
decurso da vida perdemos pedaços de nós, de células, de pessoas que conhecemos,
das coisas e de muitas oportunidades. Não ocorre lapidação humana sem um pouco de
dor. A homenagem aos pais, simbolizam o medo de que a autora tem de perdê-los. O
que nos move, título do artigo, é o amor recebido por esses pais todos os dias e a
vontade de sempre agradar e honrar ao clã, embora saiba que não tem como fugir de
si mesma, por ninguém.
O cinema imita a vida, e as ilusões e truques de George Méliès, deflagram a
guerra interna em que vivemos. A disputa da pessoa com ela mesma. Somos nossos
maiores terroristas e nos autoboicotamos, muitas vezes, imputando aos outros a
responsabilidade sobre nossas escolhas. Através dos desenhos, a autora pode ver
como se sentia irritada quando o traço não saía como ela tinha previsto. Percebeu que
ela não controlava nem o seu próprio punho. Foi interessante sentir a angústia e o
cansaço de ficar debruçada sobre uma expectativa de um risco que não se realizou no
lugar certo, do jeito querido. Borrar a folha branca fez com que o sentimento de
fracasso na missão de querer controlar o incontrolável causasse um desconforto e
mais o sentimento de vergonha. Sugiro que todos se prestem a desenhar algo e sintam
na vivência como é frustrante perceber a própria falta de talento para uma habilidade
manual e, mesmo assim, com muito amor e esforço, acreditar que foi o melhor que
pôde ser feito. O autoperdão pela insensatez de ter escolhido fazer desenhos quando
sequer a pessoa sabe desenhar bem. Despir-se dos próprios padrões de qualidade e
experimentar ser quem não se é, é exercitar a virtude da simplicidade.
O convite da autora, em revisitar os próprios conceitos, suas origens e
ressignificar as imagens antes e depois de prontas teve o efeito especial que George
Méliès tanto soube explorar. O retorno ao princípio, aos conceitos originais da nossa
história é a reflexão. A responsabilidade que todo inventor submete à criação. O
visionário Méliès teve uma gama de profissões; foi desenhista, mágico, ator, cineasta,
decorador, entre outras. Ele rompeu totalmente com a barreira da disciplina e do
permitido ou presumido. Até hoje suas invenções são usadas em estudos de gravações
com o uso das luzes artificiais e dos espaços cênicos. Quem sabe todos se permitissem
admitir os próprios artifícios para atrair a atenção do público. Quem sabe todos
admitissem que as expectativas não passam de ilusões. Quem sabe a autora admita
que perpetuar a profissão do pai, de certa forma, à prende e fixe, ao invés de
desenvolver seu próprio roteiro e destino.
Oh, Méliès, onde quer que você esteja, agradecemos pela inspiração que
provocou a descoberta de que o que nos move é o grande amor pelos pais e descobrir
de que é a serviço deles que servimos aos outros. O eterno retorno ao nosso passado e
a nossa história é o marco que nos define como seres humanos.

Direito + Psicologia = Arte

Movida pelo amor de um homem por uma mulher, a autora encerra o artigo
dizendo que não está inventando nada de novo do que muitos filhos não sintam por
seus pais. O amor paterno e materno não é tão desconhecido por todos. Agora, quem
sabe pedimos permissão para sair dessa dualidade genital e construir a nossa própria
história androide. Semelhante a esse homem e essa mulher, com movimentos
autômatos que os imitam, mas com suas peculiaridades e complexidades de uma
articulada ginoide. Na vida, assim como no cinema, tudo é possível.
A arte não me provoca a perfeição, provoca a expressão!

Referências

A Invenção de Hugo Cabret. Filme de Martin Scorsese, vencedor de 5 Oscar,


2012.https://youtu.be/-f6qot6uSRw

COMTE- Sponville, André. Pequeno tratado das grandes virtudes/ André


Comte- Sponville: tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2009.

CONTE, Júlio. Beckett/ Bion: a criação do futuro/ Júlio Conte; série dirigida
por Lucas Kruger. Porto Alegre: Artes & Ecos, 2019.

FERENCZI, Sándor. Sonhos, melodias e sintomas/ Sàndor Ferenczi (seleção


de textos e tradução de Lucas Kruger, Eduardo Spieler e Felipe Gerchman); série
dirigida por Lucas Kruger. Porto Alegre: Artes & Ecos, 2019. (Série Escrita
Psicanálitica).

FRANCO, Maria Dorothea Barone. Quando o urbano se faz poesia. Porto


Alegre: wwlivros, 2016.

GEBRIM, Patricia. Palavra de Criança: coisas que você pode aprender com
sua criança interior. São Paulo: Pensamento, 1998.

HARARI, Yuval Noah. Lições para o século 21/ Yuval Noah Harari;
tradução Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
KRUG, JEFFERSON. Brincando com a psicanálise/ Jeffersons Krug; série
dirigida por Lucas Kruger. Porto Alegre: Artes & Ecos, 2019. (Série Escrita
Psicanalítica.

MOLINARI, Fernanda; TRINDADE, Jorge. Psicologia Forense: novos


saberes. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2018.

FABÃO. O amor é pra todos nós. Reggae. 2009. Disponível em:


<https://youtu.be/GJHnRoosiE. Acesso em: 28 ago. 2019.

IBDFAM Revista. Direito e Arte. E vice-versa: conexões entre duas grandes


áreas do conhecimento. Edição 34. 2017.

Exposição Imagina um ser humano- Diversidade. Pinacoteca da AJURIS. Dia


26, ago. 2019

Exposição Miniarte Enigma. Projeto Miniarte Internacional. 36 e 37ª edições.


Coordenação Clara Pechansky. Galeria Gravura. Dia 07, ago, 2019.

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