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COLEÇÃO TEMAS DE PSICOLOGIA FORENSE

PSICOLOGIA FORENSE

- Novos Saberes-

Jorge Trindade
Fernanda Molinari (org.)
SUMÁRIO

Apresentação

CAPÍTULO I
Alienação Parental: uma forma de violência psicológica - Fabiana Ribeiro e
Fernanda Molinari

CAPÍTULO II
A Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental: apresentação do
instrumento e levantamento dos resultados - Elise Karam Trindade e Jorge
Trindade

CAPÍTULO III
A avaliação psicológica no âmbito da justiça e sua especificidade em casos de
Alienação Parental - Camila Machado de Oliveira

CAPÍTULO IV
O que afeta o Testemunho? - Constanza Prehn Borille e Gicela Nicolini Hansen

CAPÍTULO V
A vulnerabilidade do Depoimento Infantil: falsas memórias no crime de abuso
sexual - Gabriela Nunes Barbará Dias e Isabela Ancinello Nogueira

CAPÍTULO VI
Depoimento Especial: Prejuízo ou benefício para a criança vítima de violência
sexual? - Paula Motta Coelho Silva

CAPÍTULO VII
O processo como sintoma: a mediação como método autocompositivo adequado -
Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler

CAPÍTULO VIII
Mediação: via adequada à abordagem de conflitos de casal separado com filhos -
Paulo D’Oliveira

CAPÍTULO IX
Mediação Familiar: um viés reconstrutivo social no contexto de violência
doméstica - Denice Machado de Campos
CAPÍTULO X
“Essa vaga não é sua, nem por um minuto!”: estudos sobre os direitos jurídicos e
psicológicos da criança com necessidades especiais - Deise Lopes Craide

CAPÍTULO XI
Autonomia de vontade da pessoa com espectro autista frente ao Estatuto da
Pessoa com Deficiência – uma interlocução entre Psicologia e Direito - Carlos
Eduardo Lamas

CAPÍTULO XII
Deficiência Mental e Autismo: tendência ao Divórcio frente ao diagnóstico do
filho e repercussões na disputa de guarda – Marina Kayser Boscardin e Patrícia
Cantisani Schaffer Pires

CAPÍTULO XIII
Crime e Saúde Mental – Fausto Amaro

CAPÍTULO XIV
O Incidente de Insanidade Mental nos casos de Stalking: análise fenomenológica
e jurídica no contexto brasileiro - Viviane Nery Viegas e Fernanda Mansur

CAPÍTULO XV
Inexigibilidade de conduta diversa como causa legal de exclusão da culpabilidade
no excesso de legítima defesa em decorrência do medo - Luciano Iob

CAPÍTULO XVI
O Biograma como método biográfico interativo: entre o ofensor e o ofendido -
Laura M. Nunes, Ana Isabel Sani e Sónia Caridade
AUTORES

Ana Isabel Sani


Camila Machado de Oliveira
Carlos Eduardo Lamas
Constanza Prehn Borille
Deise Lopes Craide
Denice Machado de Campos
Elise Karam Trindade
Fabiana Ribeiro
Fausto Amaro
Fernanda Mansur
Fernanda Molinari
Gabriela Nunes Barbará Dias
Gicela Nicolini Hansen
Isabela Ancinello Nogueira
Jorge Trindade
Laura M. Nunes
Luciano Iob
Marina Kayser Boscardin
Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler
Patrícia Cantisani Schaffer Pires
Paulo D’Oliveira
Paula Motta Coelho Silva
Sónia Caridade
Viviane Nery Viegas
APRESENTAÇÃO

Lançamos agora o 4º volume sequencial da coleção Psicologia Forense (2015,


2016 e 2017), fruto de contribuições decorrente do IXX Curso de Formação de
Psicologia Forense (2018).
Este volume apresenta a peculiaridade de coincidir com as atividades de
comemoração dos 10 anos da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica (SBPJ) e
demonstra que já foi percorrido um longo caminho. Sim, andamos, e andamos muito.
Porém, ainda não saímos da nossa infância epistemológica.
Paradoxalmente, no mundo do conhecimento, quando sabemos, sabemos que
não sabemos; quando crescemos nos damos conta de que, como dizia Heráclito, por
mais que andemos não suficiente para encontrarmos o logos. Isso, só isso, já constitui
um imenso progresso, pois o mundo se divide entre aqueles que não sabem que não
sabem e aqueles que sabem que não sabem.
Portanto, muitos são os motivos que temos para comemorar. A participação
dos colaboradores estrangeiros, nomeadamente da Profª. Hilda Marchiori, Catedrática
de Criminologia da Universidade de Córdoba (Argentina), com o capítulo .....; do
Prof. Fausto Amaro, Catedrático da Universidade de Lisboa, com o tema crime e
saúde mental; e das professoras Ana Sani, Laura Nunes e Sónia Caridade, da
Universidade Fernando Pessoa (Porto, Portugal), com o capítulo o biograma como
método biográfico interativo: entre o ofensor e o ofendido, mostram a dimensão
alargada de nosso propósito, que transcendeu os limites individuais e mesmo de uma
pequena equipe de trabalho e estudos que partilha um interesse comum, para
transgredir fronteiras, tanto geográficas quanto epistêmicas, quanto afetivas.
Enquanto organizadores deste volume, e como membros da Sociedade
Brasileira de Psicologia Jurídica (SBPJ) que neste ano festeja seu 1º decenário, por
qualquer lado que olhamos, temos somente que agradecer. Agradecer enquanto uma
maneira de reafirmar nosso compromisso cognoscente com a Psicologia Forense, e
repetidas vezes dizer a todos muito obrigado como uma forma de selar nossos
vínculos de carinho e amizade com nossos alunos e professores. Destacamos, não por
acaso, as palavras alunos e professores, porque todos nós, quando caímos no mundo,
somos eternos aprendizes e mestres uns dos outros, iluminamos e somos iluminados
reciprocamente, desvelamos e somos desvelados no mais íntimo e profundo do nosso
ser-aí.

Porto Alegre/Lisboa/Porto e Córdoba, agosto de 2018.

Jorge Trindade e Fernanda Molinari


Organizadores do Livro
ALIENAÇÃO PARENTAL: UMA FORMA DE
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA

Fabiana Ribeiro1

Fernanda Molinari2

A condição humana compreende algo mais que as condições


nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres
condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em
contato torna-se uma condição de sua existência.
Arend (1999, p. 46).

Introdução
A temática da Alienação Parental e suas consequências jurídicas e psicológicas
a muito tem sido debatida e estudada, não sem motivo, uma vez que o número de
casos que chegam ao judiciário continua a crescer, mesmo com a publicação da Lei
12.318/2010 (Lei que dispõe sobre Alienação Parental no Brasil).
A legislação que objetivou inibir novos casos, visto que prevê medidas para
atenuar seus efeitos - e não ações que visam penalizar o alienador - tem se mostrado
uma importante ferramenta jurídica para auxiliar, sobretudo, os profissionais da área
jurídica a reconhecer esse fenômeno, uma vez que ele também permeia o campo da
psicologia.
Após a Lei de Alienação Parental entrar em vigor, ainda despontaram outras
alterações legislativas e novas leis, como por exemplo, o artigo 699 do Novo Código
de Processo Civil e a Lei 13.431/2017, que reforçaram a relevância do constante
estudo e atenção à Alienação Parental, bem como a importância do apoio de outras
áreas diversas do direito, podendo citar a psicologia e a assistência social.

1
Advogada. Especialista em Direito de Família Contemporâneo e Mediação pela FADERGS.
Especializanda em Psicologia Forense pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica. Coordenadora
Adjunta da Comissão da Infância e Juventude do IBDFAM/RS. Membro da Comissão da Mulher
Advogada da OAB/RS. E-mail: fabiribeiro85@gmail.com
2
PhD em Psicologia Forense pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal). Mediadora de Conflitos
pela CLIP. Advogada. Psicanalista Clínica. Presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica e
da Sociedade Sul-Brasileira de Psicanálise. Vice-Presidente da Associação Brasileira Criança Feliz.
Diretora do IBDFAM/RS. Coordenadora do Curso de Formação em Psicologia Forense (SBPJ). Sócia
do Instituto de Psicologia Prof. Jorge Trindade. Coordenadora do Núcleo de Mediação em contextos de
Alienação Parental da CLIP. Membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança, na
Universidade do Minho/Portugal. E-mail: fernanda.molinari@outlook.com
Com isso, apresenta-se o presente capítulo que visa evidenciar o ato de
Alienação Parental como abuso psicológico. Para tanto, realizaremos uma abordagem
por duas perspectivas: jurídica (legislativa) e psicológica.
Primeiramente, é necessário compreender o que é a Alienação Parental e
verificar, brevemente, alguns pontos da Lei 12.318/2010 (lei que dispõe sobre a
Alienação Parental o Brasil). Por conseguinte, abordaremos a Lei 13.431/2017, que
trouxe a Alienação Parental para o rol de violência psicológica. Por fim, será
abordado os efeitos psicológicos e emocionais nas crianças vítimas de atos
alienatórios.
“[...]Do convívio levaram o fogão. Da ingenuidade, tiraram as rodas da
frente. Do afeto roubaram a pilha. Mesmo assim eu estava pronto para o
mínimo. Julguei ter encontrado o meu limite. Nada e ninguém me faria me
perder de mim. Não mais brigaria. Ainda restava o mínimo. Um elo entre
ela e eu. Único e suficiente, intocável. Isto nos bastava! Uma fresta para
se ver, para se falar, para se ouvir, para sentir. Um elo entre ela e eu! Mas
esse elo virou fetiche, território de conquista.
Dele fizeram um adorno, ele ganhou uma orelha, ganhou as ruas e sumiu.
Assim o nosso amor virou um brinco. E o elo se foi. Em apenas um corte,
13 meses se passaram. Sem olhar sem ouvir, sem cheiro sem gosto e sem
contato, sem sentido. No fim deste período meu papel mudou... como
inimigo me vi diante de uma outra menina, que não aquela que não existe
mais [...]3”

1. Compreendendo a Alienação Parental


No Brasil, a Lei da Alienação Parental foi promulgada em 26 de agosto de
2010 sob o número 12.318/2010.
De acordo com o artigo 2º da referida Lei, o ato de Alienação Parental refere-
se à interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, que é
persuadido por um dos genitores, pelos avós, por quem tenha a sua guarda, vigilância
ou que exerçam algum papel de autoridade, para que rejeite um de seus pais,
provocando, dessa forma, a quebra dos vínculos afetivos.
No mesmo artigo, parágrafo único, a Lei ainda exibe uma lista de atos de
Alienação Parental. Vale dizer que as condutas ali descritas são exemplificativas, ou
seja, a Lei não apresenta um rol fechado, apenas indica algumas das práticas mais
recorrentes, vejamos:

I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no


exercício da paternidade ou maternidade;
II - dificultar o exercício da autoridade parental;
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
3
http://www.caraminhola.com.br/a_morte_inventada.html
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência
familiar;
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes
sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações
de endereço;
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou
contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança
ou adolescente;
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a
dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor,
com familiares deste ou com avós.

Conforme já mencionado, os atos aludidos no parágrafo único do artigo 2º da


Lei de Alienação Parental são práticas mais usuais, que podem ser desdobradas em
outras condutas, como por exemplo: Inventar e criar compromissos para os filhos nos
dias e horários em que deveriam estar com o outro genitor; Não passar informações da
escola ao outro genitor - como festas, entrega de boletim escolar, passeios e reuniões;
Deixar os filhos sob os cuidados dos avós, padrinhos, tios e até mesmo de amigos
quando necessário se ausentar, ao invés de deixar com o genitor.
Importante referir que, apesar de ser mais comum – já que na maioria das
vezes os pais é quem possuem a guarda dos seus filhos - nem sempre a Alienação
Parental acontece na relação entre pais e filhos (genitora afastando os filhos do
genitor ou genitor afastando os filhos da genitora). Outras pessoas do convívio da
criança e do adolescente, que exerçam papel de cuidadoras ou de autoridade, também
podem praticar atos de alienação, tais como avós e tios, é o que chamamos de
Alienação Parental familiar.
Isso porque, além dessas outras pessoas de referência da criança e do
adolescente poderem ser nomeadas como “alienadores” (uma vez que podem realizar
atos alienatórios), por outro lado, integram também a relação de familiares que podem
ser “alienados” juntamente com a criança ou adolescente. Em razão de que, quando a
criança ou adolescente é afastada de seu genitor, por exemplo, todo aquele núcleo
familiar paterno também é distanciado (avós, tios, primos, etc).
Relevante mencionar que, muitas vezes os avós, tios, etc. acabam por aderir a
campanha de segregação porquanto estão convictos de que o que lhes é narrado pelo
genitor “alienador” é verdade, de que estão “do lado certo”, por confiar no seu
familiar.
Da mesma forma, se faz indispensável esclarecer que a Lei de Alienação
Parental visa proteger a criança e o adolescente, assegurando o seu direito
constitucional de convivência familiar e que, apesar de usar o termo “genitor”, não há
qualquer conotação de gênero. Por isso, leia-se que, quando utilizarmos a palavra
“genitor” ela também pode ser substituída por genitora – o que não fazemos sempre
ao logo do texto para tornar a leitura mais agradável.
Ocorre que, o resultado dessa campanha de depreciação do genitor, acarreta no
afastamento de pais e filhos e a consequente quebra de vínculos. Isso porque, “o
guardião passa a manipular o filho com o uso de táticas verbais e não verbais,
distorcendo a realidade para que passe a acreditar que foi abandonado pelo outro
genitor, acabando por perceber um dos pais totalmente bom e perfeito (alienador) e o
outro totalmente mau4”, fazendo, desta forma, com que o filho passe ele mesmo a
rejeitar o genitor alienado, resultando no que foi denominado de Síndrome da
Alienação Parental.
Pertinente referir que a Síndrome da Alienação Parental, foi nomeada em
1985, por Richard Gardner, professor de psiquiatria clínica do Departamento de
Psiquiatria Infantil, nos Estados Unidos da América, e diz respeito às sequelas
emocionais e comportamentais sofridas pela criança ou adolescente, explicada como
“o transtorno pelo qual um progenitor transforma a consciência dos seus filhos,
mediante várias estratégias, com objetivo de impedir, ocultar e destruir os vínculos
existentes com o outro progenitor, que surge principalmente no contexto da disputa da
guarda e custódia das crianças, através de uma campanha de difamação contra um dos
pais, sem justificação”.
Como se pode perceber, a Alienação Parental não é apenas um fenômeno
jurídico, mas também social e psicológico5. E é exatamente por essa complexidade
que se faz necessário o apoio de especialistas da área da psicologia e da assitência
social, por exemplo.
Na prática forense, a maioria dos processos conta com o apoio destes
profissionais através da realização de perícias. A própria Lei de Alienação Parental
(artigo 5º) prevê que, se necessário, o juiz poderá determinar a perícia psicológica ou
a biopsicossocial a qual poderá alcançar os genitores e seus filhos (alienador e
alienados).

4
ROSA, Conrado Paulino da. Curso de Direito de Família Contemporâneo. 3ª ed. Bahia: Juspodvim,
2017, p. 406.
5
Molinari, Fernanda. Mendes, Modesto. Alienação Parental e Sugestionabilidade Infantil: Um Ohar
Interdisciplinar. In: Direito de família e sucessões: um olhar prático./Org.Conrado Paulino da Rosa,
Liane Maria Busnello Thomé, Rogério Brochado. Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2018.p.177.
Não raro, justamente o resultado do trabalho desses profissionais (perícia,
laudos, avaliações, etc) é que auxiliam os magistrados em suas decisões, esclarecendo
e embasando as condições psíquicas e sociais daquele núcleo familiar.
Ainda na esfera de nossa legislação, a Lei de Alienação Parental também
prevê, para os casos que forem detectados características de atos alienatórios, que o
juiz tome algumas medidas para que os efeitos da Alienação Parental sejam atenuados
(artigo 6º). Para isso, o magistrado deve verificar a gravidade da situação.
Essas providências poderão ser cumuladas ou não, ou seja, dependendo do
caso, o magistrado poderá aplicar mais de uma medida para que a convivência entre a
criança e o adolescente e seu genitor não seja obstaculizada. Podendo ser desde
apenas uma advertência a pessoa que está cometendo os atos alienatórios (alienador)
ou a aplicação de multa, como até, em casos mais severos, determinar a alteração da
guarda da criança ou adolescente e declarar a suspensão da autoridade parental.
Sublinha-se que, mais uma vez, o magistrado encontra respaldo legislativo
para utilização dos profissionais da saúde mental, desta vez, não para que lhe
auxiliem, mas para que assistam as partes, visto que, poderá determinar o
acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial dos envolvidos no processo –
partes (artigo 6º, IV).
Conforme se observou, a Lei 12.318/2010 traz importantes avanços no que diz
respeito a proteção da criança e do adolescente com ferramentas que objetivam a
manutenção do seu direito de convivência familiar e, até mesmo, de proteção do seu
desenvolvimento saudável, uma vez que a consequência dos atos alientórios, podem
acarretar significativos e negativos reflexos psicológicos.

2. Alienação Parental como Abuso Moral e Psicológico e a Lei 13.431/2017


De acordo a Constituição Federal, nossa Lei maior, e o Estatuto da Criança e
do Adolescente – ECA, a criança e o adolescente devem ter assegurados, com
prioridade absoluta, o direito de convivência familiar [artigos 227, CF e 4º do ECA],
sendo dever não somente da família, mas também da sociedade e do Estado assegurar
esse direito.
O ato de Alienação Parental não somente desrespeita essa garantia, uma vez
que objetiva afastar pais e filhos mas, também, segundo a Lei 12.318/2010, constitui
abuso moral contra a criança ou o adolescente (artigo 3º).
No ano passado, em 04 de abril de 2017, foi publicada a Lei 13.431 que
estabeleceu um sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente vítimas ou
testemunhas de violência, popularmente conhecida como a “Lei do depoimento
Especial 6 ou Escuta Especializada7 ”. Assim sendo, esta norma precisou defininir
algumas formas de violência.
Em seu artigo 4º, a referida legislação trouxe um rol de violências contra a
criança e o adolescente, classificadas em violência física, violência psicológica,
violência sexual e violência institucional.
Acertadamente, entendendo e acolhendo a importância do fenômeno, incluiu
nessa relação de violências, o ato de Alienação Parental como forma de violência
psicológica (artigo 4º, II, b).
Assim, configurando o ato de Alienação Parental em uma forma de
violência, a criança e/ou adolescente vítimas dos atos de Alienação Parental poderão
utilizar-se da Lei 13.431/2017, quando forem ouvidas.
Isso porque, no Código de Processo Civil, de 16 de março de 2016, já
constava a previsão de que “quando o processo envolver discussão sobre fato
relacionado a abuso ou a Alienação Parental, o juiz, ao tomar o depoimento do
incapaz, deverá estar acompanhado por especialista” (artigo 699). Ocorre que, apesar
de recomendado pela Resolução 33 do Conselho Nacional de Justiça - que orientou
aos tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e
adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais - ainda não
havia uma normatização do procedimento8.
Com isso, a Lei 13.431/2017, estabeleceu “que as escutas e os depoimentos
sejam realizados em locais apropriados, com ambiente próprio para receber as
crianças e os adolescentes, bem como os profissionais que funcionarão na
formalização do ato, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da
criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência9. Isso porque, conforme já

6
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13431.htm. - Lei 13.431/2017 - Art.
8º Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de
violência perante autoridade policial ou judiciária.
7
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13431.htm. - Lei 13.431/2017 - Art.
7º Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou
adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o
cumprimento de sua finalidade.
8
Direito de família e sucessões: um olhar prático./organização, Conrado Paulino da Rosa, Liane Maria
Busnello Thomé, Rogério Brochado; autora, Luciane Potter. Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2018. p.264.
9
Pais e filhos separados: Alienação Parental e denunciação caluniosa/Paulo Fayet, Bibiana Godoi
Malgarim, Fabiana Ribeiro. – 2.ed.,rev. Porto Alegre: Criação Humana, 2018.p.35.
referido anteriormente, não raro as crianças e adolescentes vítimas de atos de
alienação – em que estejam em um contexto judicial – participam de perícias sociais e
psicológicas e, também são ouvidas no processo.
Ainda, outra inovação trazida pela aludida Lei, é que a criança ou
adolescente vítimas ou testemunhas de violência poderão, através de seu representante
legal, requerer medidas protetivas contra o autor da violência (artigo 6º). Isso quer
dizer, que a criança ou adolescentes vítimas de Alienação Parental, poderão valer-se
de medidas protetivas de urgência dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente
e até mesmo na Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha (artigo 6º, parágrafo único da
Lei 13.431/20170).

3. Efeitos psicológicos e emocionais nas Crianças pela prática da


Alienação Parental
Toda separação pode ser vivenciada como uma perda, especialmente para a
criança, que ainda se encontra na condição de importante dependência física e
psíquica dos pais. Isso aponta no sentido de que a repercussão no desenvolvimento
emocional dos filhos irá depender da maneira como cada membro conduz os fatos
dentro do conflito emocional, e as estratégias de proteção colocadas em prática
(Molinari & Trindade, 2012).
Os efeitos psicológicos e emocionais nas crianças, em decorrência da
separação dos pais, têm sido ao longo dos últimos anos alvo de atenção da
comunidade científica. Estudos realizados por Wallerstein e Kelly (1998), relacionam
o ajustamento das crianças ao divórcio dos pais através da capacidade delas de
compreensão em relação aos motivos da separação. Nas situações em que as crianças
compreendem a decisão da separação, estando presente a manutenção de vínculos
com ambos os genitores, suas reações à separação serão mais adaptativas, pois elas
permanecerão inseridas num contexto afetuoso. Por outro lado, o ajustamento das
crianças fica comprometido quando expostas a situações em que estejam presentes
manifestações de raiva ou de culpa dos pais, pois inevitavelmente se transmite para a
relação com os filhos. Os sentimentos de raiva, mágoa e vingança, que transitam de
um lado para o outro, quase sempre envolvem os filhos, que passam a sofrer mais a
tensão e a sobrecarga da separação, dificultando o encontro de novo equilíbrio.
É relevante ressaltar que as crianças tendem a reproduzir os padrões básicos de
comunicação que os adultos utilizam entre si. Se inseridas em um ambiente de
agressão, chantagens e ameaças, elas reeditam esses comportamentos (Cezar-Ferreira,
2007).
Sob o ponto de vista psicológico, os efeitos prejudiciais que a Síndrome de
Alienação Parental pode provocar nos filhos, variam de acordo com a idade da
criança, com as características de sua personalidade, com o tipo de vínculo
anteriormente estabelecido, e com sua capacidade de resiliência (da criança e do
cônjuge alienado), além de inúmeros outros fatores, alguns mais explícitos, outros
mais recônditos (Cezar-Ferreira, 2007; Freitas, 2014; Machado, 2013; Molinari &
Trindade, 2014).
Em contextos em que esteja presente a Alienação Parental, é comum a criança
sentir conflito de lealdade, configurando a condição de que, quando ela estiver bem
com um dos pais, o outro estará se sentindo com raiva e traído pela sua escolha, o que,
muitas vezes, favorece uma situação de dependência e submissão a um dos
progenitores (Trindade, 2014) No conflito de lealdade a criança recebe a mensagem
de que só pode ficar de um lado, o que representa uma oposição ao seu
desenvolvimento emocional e psíquico saudável (Maldonato, 1986).
A literatura vem demonstrando o impacto da exposição das crianças aos
conflitos familiares, relacionando-o em diferentes áreas do desenvolvimento infantil,
tais como aspectos cognitivos, afetivos e comportamentais (Sani, 2002; 2006).
Embora não apresentando psicopatologia associado ao abuso emocional, a criança é
sempre afetada do ponto de vista psicológico, na sua autoestima, autoconfiança e na
forma como vai estabelecer relações de confiança com os outros (Sani, 2011).
Em estudos relacionados com a caracterização de sintomas de exteriorização
do dano emocional na criança, Victor Reis (2009) refere:
a) Transtornos cognitivos: Atraso no desenvolvimento da linguagem,
alterações mnêmicas, baixa autoestima, sentimentos de inferioridade,
alterações da concentração, atenção e dificuldades de aprendizagem;
b) Transtornos afetivos: Choro incontrolado, sentimentos de vergonha, culpa,
timidez, medos concretos ou imaginário, inadequação na maturidade e
dificuldade para lidar com situações de conflito;
c) Transtornos comportamentais: Déficit de capacidade para brincar,
excessiva ansiedade ou dificuldade nas relações afetivas interpessoais,
relações sociais passivas, escassas ou conflituosas e comportamento
desviante;
d) Alterações psicológicas: Agitação, hiperatividade, ansiedade, depressão,
mudanças súbitas de comportamento e humor, neuroses, alterações da
personalidade e regressões no comportamento.

Pesquisas realizadas por Sani (2011, p. 122), sobre crianças vítimas de


violência interparental, em que foram abordados os impactos do fenômeno e as
representações feitas pelas crianças, referem que:
As consequências detectadas pela criança revela o quão negativo pode ser
para ela, quer a interiorização do problema no sistema familiar, quer a
exteriorização deste para além dos limites que o definem. Nos casos de
violência interparental, a deslocação do problema para fora do sistema,
tenderia a comprometer a identidade familiar, antevendo-se por isso uma
referência às consequências, com um grau devido de distanciação em
relação à criança. Todavia, a fusão que parece existir entre identidade
familiar e da criança, motivada pela existência de conflitos na família,
ocasiona um relato personalizado dos efeitos, demonstrativo do impacto a
nível pessoal. Nos casos de vitimização direta, apercebemos rapidamente
a identificação de consequências de ordem pessoal (físicas e psicológicas)
e outras que afetam a criança a nível interpessoal, devido à passagem do
problema para o domínio público.

Com mais um importante reconhecimento nesse sentido de violência


interparental é que a Alienação Parental foi incluída na Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, o CID-11, que entrará
em vigor em janeiro de 2022.
Essa classificação é publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e
visa normatizar e registrar doenças possibilitando o acompanhamento e o
mapeamento de problemas de saúde.
A inclusão da Alienação Parental no CID-11, viabilizará que um profissional
da área da saúde utilize o código QE52.0 quando necessário indicar o diagnóstico de
Alienação Parental.
“A Alienação Parental aparece na condição de sinônimo ou descritivo de
problemas persistentes de relacionamento da criança com o cuidador que
resultam em sintomas/danos. Ela é considerada pelo CID um outro nome
para problemas relacionais da criança com o cuidador10”

Por essa razão, quando se indaga acerca das consequências ou das sequelas da
Alienação Parental, pode-se supor infinitas formas de expressão. Porém,
simbolicamente, talvez a pior de todas seja a criança estar condenada a conviver com
a mentira sobre a imago de seu pai ou de sua mãe. Se o que constitui o sujeito é o
discurso do outro, a fala imposta pelo alienador vai ‘constituindo/desconstituindo’ de
10
http://www.ibdfam.org.br/noticias. Acesso em 15 de setembro de 2018.
tal forma a criança - depois adolescente, amanhã adulto – que chegará a uma condição
onde não saberá mais o quê ela ‘é’, senão essa constituição/desconstituidora que fez a
refração à imagem parental do alienado (Trindade, 2014).

Considerações Finais
Quando estamos diante de um contexto de Alienação Parental, é fundamental
que tenhamos uma percepção de pluralidade, de interdisciplinaridade, ou seja, que
tenhamos consciência da importância da relação entre o Direito e a Psicologia.
O Direito, dentro da perspectiva da Lei de Alienação Parental, auxiliará na
proteção da criança e do adolescente, garantindo o cuidado e respeito absoluto
enquanto seres em desenvolvimento, com o escopo na garantia de uma convivência
familiar. Por sua vez, a Psicologia possibilitará que se compreenda o contexto
psicológico emocional da criança e/ou adolescente, evitando danos no seu
desenvolvimento.
Desde o ano de 2010 com a promulgação da Lei 12.318/2010 há uma
crescente de providências no sentido de conscientizar, inibir e interromper o
transcurso da Alienação Parental, como as já citadas inclusão do artigo 699 do Novo
Código de Processo Civil e a Lei 13.431/2017. Ainda, no âmbito da saúde, a inclusão
da Alienação Parental na Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde, o CID-11, restando demonstrada a importância do
constante estudo deste fenômeno.
A literatura tem evidenciado que um dos preditores mais significativos da
variabilidade do ajustamento de uma criança após a ruptura conjugal é a continuidade
do conflito dos pais e a intensidade com que está exposta a essas situações conflitivas
(Sani, 2006). O conflito interparental após a ocorrência da separação, associado à
presença de outros fatores de risco e estressores, é uma dimensão importante para a
compreensão dos efeitos psicológicos e emocionais da criança ao divórcio, embora o
impacto varie de acordo com o seu estágio de desenvolvimento (Sani, 2011).
Neste aspeto, não é a ruptura conjugal, por si só, que cria os conflitos familiares de
longo alcance, mas as circunstâncias específicas da separação, em que se deve levar
em consideração que os reflexos daí decorrentes possuem uma repercussão direta em
relação ao desenvolvimento dos filhos.
Dentro desse contexto, reforçamos a relevância da Lei 12.318/2010 (Lei de
Alienação Parental), que no Brasil, foi (e é) um grande referência e marco para o
início de uma efetiva proteção da criança e do adolescentes vítimas de atos
alienatórios, para além, uma importante ferramenta para a manutenção de vínculos
familiares.
Por fim, importa sublinhar a necessidade do olhar multidisciplinar, não apenas
para uma compreensão maior e melhor da conflitualidade que envolve adultos num
processo de divórcio, mas, principalmente, para entender a criança, cuja proteção
deve ser integral.
Inegável que a psicologia, nesse campo, tem muito a dizer ao direito. Não
apenas porque dividem o mesmo objeto, mas, principalmente, porque direito e
psicologia necessitam estabelecer um diálogo permanente para que os frutos da justiça
possam ser plenamente alcançados.

Referências

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1998.
A ESCALA DE INDICADORES LEGAIS DE
ALIENAÇÃO PARENTAL: APRESENTAÇÃO DO
INSTRUMENTO E LEVANTAMENTO DOS
RESULTADOS

Elise Karam Trindade11


Jorge Trindade12

Introdução
A Alienação Parental é um evento que pode ocorrer no contexto dos divórcios
litigiosos, caracterizando-se pelo comportamento praticado por um dos genitores
(genitor alienador) de denegrir a imagem do outro genitor (genitor alienado) perante
o(s) filho(s) (TRINDADE, 2017). Essa campanha de desmoralização pode gerar
contradição de sentimentos e destruição do vínculo entre genitores e filhos, levando
ao surgimento da chamada Síndrome de Alienação Parental (GARDNER, 2002).
Cumpre ressaltar que esse desfecho pode provocar sequelas emocionais e
comportamentais, algumas vezes irreversíveis, diante do desgaste ou ruptura dos laços
afetivos existentes entre pais e filhos.
A compreensão da Alienação Parental implica o reconhecimento de um
fenômeno multidisciplinar e se faz altamente relevante tanto no âmbito psicológico
quanto jurídico, cabendo aos operadores do direito conhecer a dinâmica que envolve
essa ocorrência, a fim de serem capazes de identificar sua presença no contexto
processual (FRANÇA, 2004). Ocorre, no entanto, que nem sempre os sinais de
Alienação Parental são facilmente observáveis e, muitas vezes, a carência de
preparação técnica por parte dos profissionais da área jurídica e mesmo da saúde pode
dificultar sua detecção.

11
Psicóloga inscrita no CRP sob nº 07/15329. Graduada em Psicologia (Universidade Luterana
doBrasil - ULBRA); especialista em técnicas psicoterápicas psicanalíticas com crianças e adolescentes
(NUSIAF - Universidade de Coimbra, Portugal); diplomada em Estudos Avançados (DEA -
Universidade da Extremadura, Espanha); doutoranda na área de intervenção psicológica em saúde e
educação (Instituto Superior Miguel Torga, Portugal); especialista em Psicologia Forense (IMED);
membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica (SBPJ) e da Asociación Latino-americana de
Magistrados, Funcionarios, Profesionales y Operadores de Niñez, Adolescencia y Familia
(ALAMFPyONAF, Argentina); Sócia do Instituto de Psicologia Prof. Jorge Trindade.
12
Pós-doutor em Psicologia Forense e do Testemunho. Doutor em Psicologia Clínica; Doutor em
Ciências Sociais; Livre-docente em Psicologia Jurídica; Mestre em Psicologia/Desenvolvimento
Comunitário. Psicólogo e advogado. Membro da Academia Brasileira de Filosofia, titular da Cadeira
Nº. 10.
Sendo assim, devido à imprescindibilidade de expandir e divulgar a existência
da Alienação Parental, surgiu a ideia de criar um instrumento que fosse capaz de
verificar se as partes envolvidas em conflito estão sofrendo Alienação Parental e
mensurar os indicadores e possíveis danos causados por essa prática. Diante dessa
demanda, ainda reprimida é verdade, em 2014, foi lançada a Escala de Indicadores
Legais de Alienação Parental, um questionário digital, composto de 21 questões que
avaliam os aspectos legais da Alienação Parental. O questionário pode ser respondido
individual e autonomamente através do site www.escaladealienacaoparental.com,
tanto pelos genitores, quanto pelos sujeitos que desejam verificar se estão sob a
condição legal de Alienação Parental.
Assim, este estudo teve dois (2) objetivos: i) apresentar a Escala de
Indicadores Legais de Alienação Parental, ressaltando a importância de haver um
instrumento objetivo de mensuração capaz de identificar e quantificar esse fenômeno;
ii) apresentar os resultados obtidos através desse instrumento, três anos após seu
lançamento (de outubro de 2014 a outubro de 2017).
Primeiramente, será abordado o conceito de Alienação Parental e os seus
entendimentos psicológicos e jurídicos. A seguir, será apresentada a Escala de
Indicadores Legais de Alienação Parental, bem como os resultados dos questionários
digitais respondidos até o presente momento. A principal razão deste estudo é, ao fim
e ao cabo, demonstrar que a Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental é
uma ferramenta importante na identificação de Alienação Parental, possibilitando aos
operadores do direito e aos trabalhadores sociais e da psicologia maior assertividade
na detecção de sua ocorrência.

1. A Alienação Parental
Após a ruptura conjugal, quando o nível dos conflitos é intenso e os genitores
se encontram emocionalmente debilitados, pode-se instaurar uma crise capaz de
desencadear o processo de alienação em um dos cônjuges. Tal fenômeno, embora tão
antigo quanto à própria conflitualidade humana, foi nomeado apenas em meados dos
anos 80 pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner, quando passou a observar a
complexa condição que se estabelecia nas disputas pela custódia de crianças e
adolescentes.
Essa situação foi denominada por Richard Gardner (1985) Alienação Parental,
e seu entendimento compreende a presença de um genitor alienador, que programa
imotivadamente o filho para denegrir a imagem do outro genitor, o alienado.
Na Alienação Parental, o objetivo do genitor alienador muitas vezes é
perpassado por questões judiciais, como, por exemplo, o desejo de obter a guarda
definitiva do filho. No entanto, também podem estar presentes fortes motivadores
emocionais, já que, na maioria das vezes, a alienação é utilizada como instrumento de
vingança contra o outro genitor (WARSHAK, 2015). Evidencia-se, portanto, uma
questão multidisciplinar, vez que se interligam aspectos jurídicos, psicológicos e
sociais.
Apesar de a Alienação Parental já constituir um quadro teoricamente
estabelecido, ainda são muitas as limitações frente à sua detecção. Tais dificuldades
comprometem diretamente decisões relativas à guarda e ao convívio familiar,
podendo ainda, muitas vezes, estar associada a falsas denúncias de abuso sexual
(BOSCARDIN e TRINDADE, 2016).

1.1 Conceitualização psicológica e compreensão psicodinâmica


Do ponto de vista psíquico, pode ocorrer um conjunto de sinais relacionados
com a dificuldade de um dos cônjuges em elaborar adequadamente o luto da
separação e o sentimento de rejeição, fazendo surgir o desejo de vingança que
desencadeia um processo de repúdio do outro (DIAS, 2006; PAULO, 2011). A esse
conjunto de sintomas se atribui a designação de Síndrome de Alienação Parental
(SAP).
Embora seja hoje de consenso que esse evento pode envolver não apenas a
figura dos genitores, mas também de outras pessoas, tais como avós, tios, etc., e que o
evento pode ser eliciado por cuidadores e profissionais que exercem alguma forma de
influência sobre a criança, a maior incidência é sobre o outro genitor (o alienado),
sobre ele recaindo grande parte do prejuízo que se instaura, tendo em vista que
desconstitui significativamente a adequação dos vínculos parentais (SÁ e SILVA,
2011).
O filho passa, portanto, a ser utilizado como instrumento de manifestação da
agressividade do genitor, sendo induzido a odiar e repudiar o outro genitor (DIAS,
2008). Conforme Trindade (2017), a Síndrome de Alienação Parental é a vertente
psicológica engendrada por uma campanha de desmoralização, na qual a criança é
conduzida ao afastamento de um de seus pais, gerando contradição de sentimentos,
culpa e destruição do vínculo entre ambos.
Àquele que busca arredar a presença do outro genitor da esfera de
relacionamento com o filho, outorga-se o nome de genitor alienador; e, ao outro, de
cujo contato se subtrai à criança, de genitor alienado. Segundo a noção historicamente
conhecida de que a mulher seria mais indicada para exercer a guarda dos filhos,
geralmente a posição de genitor alienante é tributada à mãe e o de alienado, ao pai
(GARDNER, 1998), embora isso não chegue a configura nenhuma regra, mas seja o
significado de uma decorrência situacional.
O entendimento psicodinâmico da Síndrome de Alienação Parental abarca a
compreensão de que o genitor alienador vê no outro cônjuge um invasor que deve ser
afastado do filho, a qualquer preço (CALÇADA, 2014; CHALUD, TABORDA e
ABDALLA-FILHO, 2004). Dessa forma, de acordo com Souza (2014), emerge o
intuito de excluir, separar, dividir e afastar o outro genitor da vida do filho, o que
pode vir a se concretizar na medida que o alienador educa e programa o filho no ódio
contra o outro (seu pai ou sua mãe), até conseguir que eles, de modo próprio, levem
adiante essa situação (VELLY, 2010).
Na Síndrome de Alienação Parental geralmente se institui um pacto de
lealdade entre o alienador e o filho. O genitor que detém a guarda, por com frequência
ser aquele que possui mais tempo de contato direito com a criança, é percebido pelo
filho como protetor, e seus argumentos passam a ser considerados um ato de cuidado.
Já ao outro genitor cabe um papel mais distanciado, no qual se encontra implicado o
dano e a vitimização da criança. Nesse sentido, o alienador, “honrando seu papel”,
protege a criança do “monstro” que ele próprio criou, produzindo falso sentimento de
afeto e cuidado (LÓPEZ, IGLESIAS e GARCÍA, 2014).

1.1.1 A Síndrome de Alienação Parental (SAP)


Já assinalamos que a Síndrome de Alienação Parental corresponde a conjunto
de sintomas. Cabe, portanto, acrescentar que a Síndrome de Alienação Parental deve
ser entendida como a consequência da Alienação Parental. Conforme Boscardin e
Trindade (2016), a SAP corresponde às consequências emocionais e comportamentais
que os filhos vêm a padecer diante dos comportamentos alienantes de um dos
genitores.
A SAP pode ser definida, portanto, como o conjunto de sinais ou sintomas
presentes na desordem infantil desenvolvida quase que exclusivamente em contextos
de disputa de guarda e custódia, sendo sua expressão resultante da programação feita
pelo genitor alienador e pelas contribuições próprias que passam a ser adquiridas pela
criança em relação ao genitor alienado (GARDNER, 2002).
De acordo com Smith (2016), ainda que a sintomatologia da SAP seja
vivenciada pelo filho (criança), ela pode ser considerada como um distúrbio de ordem
familiar, visto que sua presença permeia a programação do genitor alienador sobre o
genitor alienado (vítima), sob o qual igualmente repercutem os danos e sofrimentos
psíquicos.
Objetivamente, as características apresentadas na SAP são verificadas através
de um conjunto de oito indicativos presentes nos filhos e que são descritos por
Gardner (2002) da seguinte forma:
a) campanha denegritória contra o genitor alienado;
b) racionalizações fracas, absurdas ou frívolas, para a depreciação;
c) falta de ambivalência;
d) fenômeno do “pensador independente”;
e) apoio automático ao genitor alienador no conflito parental;
f) ausência de culpa sobre a crueldade e/ou exploração contra o genitor
alienado;
g) presença de encenações “encomendadas”;
h) propagação da animosidade aos amigos e/ou à família extensa do
genitor alienado.

Ademais, Gardner (2002) estabeleceu três estágios evolutivos para esse


evento: leve, moderado e grave. No estágio leve, as características mais comuns
compreendem a constatação de campanhas de desmoralização do alienador contra o
alienado, mas ainda de maneira bastante sutil. Estão instaurados sentimentos de
ambivalência e de culpa, e situações artificiais e fingidas são pouco frequentes. De
forma geral, não estão presentes, ainda, a obstaculização no exercício do direito de
visitas.
Já no estágio moderado, ocorre a intensificação das características iniciais,
surgindo os problemas com a visitação. O filho passa a apresentar comportamentos
hostis e inadequados, fingindo motivações fúteis para justificar o impedimento da
convivência e dificultando, ainda, o manejo na relação com o genitor alienado
(TRINDADE, 2017).
Por fim, no estágio mais agravado – grave –, evidenciam-se as fortes
campanhas de desmoralização contra o alienado, e o filho começa a compartilhar
com o genitor alienador os mesmos fantasmas paranoicos em relação ao genitor
alienado, ficando altamente prejudicado o vínculo entre eles. Os sentimentos de
repúdio passam a ser estendidos à família e a todos aqueles que rodeiam o alienado.
Nesse estágio, a culpa e a ambivalência inicialmente presentes já não existem mais,
prevalecendo apenas raiva e ódio, que impedem qualquer tipo de convivência
familiar (GOMES, 2016).
Ademais, é de extrema importância ressaltar que a identificação de
indicadores precoces de Alienação Parental permite intervenções igualmente precoces
de modo a oportunizar a prevenção primária, evitando a instalação da Síndrome, ou,
secundariamente, minorando suas consequências.
Após constatada a presença da SAP, a possibilidade de remissão dos sintomas
cai para 5%, de modo que a detecção precoce constitui fator preventivo primordial
(FONSECA, 2006).

1.2 Conceitualização jurídica


Ainda que a Alienação Parental seja uma ocorrência tão antiga quanto à
própria sociedade, somente nos últimos 30 anos, com o aumento das disputas
judiciais, que ela pôde ser teoricamente definida e tecnicamente observada
(MOLINARI e TRINDADE, 2014). Associada ao sofrimento advindo da dificuldade
de elaboração do processo de separação e das reminiscências conflitivas do casal, a
Alienação Parental aparece como necessidade de vingança e retaliação de um dos
genitores em relação ao outro, com reflexos no contexto jurídico, reforçando a
necessidade de uma postura multidisciplinar (TRINDADE, 2017).
No contexto familiar, os filhos são os membros mais vulneráveis e, diante das
vivências conflitivas e litigiosas dos adultos, podem se tornar personagens do
processo judicial. Por não possuírem autonomia nem plena capacidade de defesa e
resolutividade, acabam mais expostos do que os adultos, requerendo dos operadores
do direito um olhar protetivo, capaz de privilegiar, sobre todos os outros, o Melhor
Interesse da Criança (GOMES, 2016). Conforme referido por Silva (2003, p. 112):

Nas Varas de Família e das Sucessões dos Foros Regionais e dos Tribunais
de Justiça estaduais, priorizam-se casos em que há filhos envolvidos (direta
ou indiretamente) nas relações processuais. Isso porque, como membro da
família afetivamente mais sensível, a criança percebe mais facilmente os
efeitos nocivos de uma desestruturação familiar, e por esse motivo sofre os
maiores prejuízos emocionais e comportamentais.

Sendo assim, a Alienação Parental viola o Princípio da Dignidade da Pessoa


Humana e o Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente, pois
configura uma forma de abuso emocional e de jogo psicológico que deixa os filhos
desprotegidos, podendo causar-lhes graves transtornos psíquicos (BAKER, 2005;
STOCKER, 2016).
Dessa forma, com o intuito de definir o que é Alienação Parental, mediante a
fixação de parâmetros para a sua caracterização, bem como estabelecer medidas para
inibir sua prática, em 26 de agosto de 2010, foi publicada a Lei nº 12.31813, que versa
sobre a Alienação Parental, alterando o artigo 236 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de
1990.
Observa-se, na descritiva legal, que são citados aspectos circunstanciais e
comportamentais que configuram os atos considerados prática de Alienação Parental.
Molinari (2016) refere que tais atos, ainda que perpetrados pelo genitor alienador para
com o genitor alienado, resultam, sobretudo, no prejuízo significativo do
desenvolvimento da criança/adolescente, nomeadamente no que se refere à
estruturação de suas vinculações parentais, ferindo assim o direito fundamental da
convivência familiar saudável.
Diante de tais aspectos, não resta alternativa senão a de compreender a
fundamental importância das conexões entre direito e psicologia e os inúmeros
benefícios que podem advir da instrumentalização técnica na construção desse novo
saber (ANDRADE e NOJIRI, 2016; TRINDADE, 2017).

2. A Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental 14


A Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental consiste em um
instrumento de natureza quantitativa/qualitativa que se apresenta na modalidade
digital sob a forma de Escala e pode ser livremente acessado através do site
www.escaladealienacaoparental.com.

13
BRASIL. Lei de Alienação Parental. Lei nº 12.318/2010, Brasília, DF, Senado Federal, 2010.
14
A Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental foi idealizada por equipe multidisciplinar
composta pelos seguintes profissionais e pesquisadores do Instituto de Psicologia Prof. Jorge Trindade:
Alcina Barros (médica psiquiatra), Elise Karam Trindade (psicóloga), Fernanda Molinari (advogada e
mediadora de conflitos) e Jorge Trindade (advogado e psicólogo).
Por se tratar de questão que interessa ao Direito de Família, que abrange no
mínimo três envolvidos (filho e genitores), a Escala é composta por três modelos. Os
dois primeiros se destinam ao filho, que, dependendo de suas habilidades e
competências, poderá responder separadamente, mas de maneira igualitária, a
questões sobre os comportamentos da mãe e/ou do pai. O terceiro modelo deverá ser
respondido por um ou ambos os genitores (ou terceiros que tenham a guarda da
criança) e compreende a análise da criança ou adolescente em questão. Os três
modelos, ainda que na maioria das vezes sejam utilizados separadamente, interligam-
se sistemicamente na busca convergente de indicadores legais de Alienação Parental
e, quando respondidos por todos os envolvidos, poderá trazer assertividade nos
resultados.
Trata-se, portanto, de um instrumento destinado a auxiliar as famílias que
vivenciam a Alienação Parental, mas também os profissionais que compõem as
equipes multidisciplinares de que trata o artigo 5º, parágrafo 2º 15 , da Lei nº
12.318/2010, na identificação de situações que, detalhadas na literatura científica
sobre o tema da Alienação Parental, são sugestivas desse evento.

2.1 Objetivo da Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental

O objetivo das Escalas de Indicadores Legais de Alienação Parental é


mensurar de forma objetiva, quantitativa e qualitativamente, a presença de indicadores
de Alienação Parental, conforme constantes na Lei nº 12.318/2010.

Assim, o instrumento visa a avaliar a incidência dos indicadores legais de


Alienação Parental, constatando a intensidade da Alienação Parental e analisando os
tipos de indicadores predominantes. No caso da escala ter sido respondida por mais de
um membro da família, é possível, ainda, verificar a consistência dos achados através
do cruzamento dos resultados obtidos na descrição dos indicadores de Alienação
Parental.

15
Art. 5o Havendo indício da prática de ato de alienação parental, em ação autônoma ou incidental, o
juiz, se necessário, determinará perícia psicológica ou biopsicossocial. § 2o A perícia será realizada por
profissional ou equipe multidisciplinar habilitados, exigido, em qualquer caso, aptidão comprovada por
histórico profissional ou acadêmico para diagnosticar atos de alienação parental.
2.2 Elaboração técnica da Escala de Indicadores Legais de Alienação
Parental
A Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental foi embasada nos
requisitos fornecidos pela Lei Brasileira nº 12.318/2010. A escolha desse viés de
padronização deu-se pela excelência dos parâmetros constantes no texto legal, os
quais que têm sido utilizados, na seara jurídica, para a verificação de casos práticos
em que são detectados indicadores de Alienação Parental.
Sendo assim, a Escala é composta por três diferentes questionários: i) Escala
para a criança/adolescente em relação à mãe; ii) Escala para a criança/adolescente em
relação ao pai; e iii) Escala para os genitores em relação ao filho – com 21 itens cada
uma delas. Os itens elaborados correspondem às sete formas exemplificativas de
Alienação Parental descritas na Lei 12.318/2010.
Para cada forma exemplificativa, foram construídos três enunciados que
representam indicadores situacionais. Dois deles são apresentados de forma afirmativa
e uma de maneira negativa, garantindo, assim, as questões técnico-científicas de
verificação. As questões foram distribuídas ao longo dos questionários de forma
aleatória, estando descritas nas tabelas a seguir.

Tabela 1: Afirmativas contidas na Escala de Indicadores Legais de Alienação


Parental que representam as formas exemplificativas de Alienação Parental - Realizar
campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou
maternidade.

I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da


paternidade ou maternidade
Escala para a Escala para a Escala para os
criança/adolescente criança/adolescente genitores em relação ao
Em relação à mãe Em relação ao pai filho
1- Minha mãe diz que 1- Meu pai diz que 1- Meu filho(a) me
meu pai é uma pessoa minha mãe é uma pessoa considera uma pessoa
boa. boa. boa.
12- Meu filho(a)
12- Minha mãe diz que 12- Meu pai diz que
considera que fiz
meu pai fez coisas erradas minha mãe fez coisas
muitas coisas erradas e
e por isso eu não gosto erradas e por isso eu
por isso não gosta de
dele. não gosto dela.
mim.
21- Minha mãe diz que 21- Meu pai diz que 21- Meu filho(a)
meu pai não me ama e minha mãe não me ama considera que eu não
não se interessa por e não se interessa por o(a) amo e não me
mim. mim. interesso por ele(a).
Fonte: Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental
Tabela 2: Afirmativas contidas na Escala de Indicadores Legais de Alienação
Parental que representam as formas exemplificativas de Alienação Parental -
Dificultar o exercício da autoridade parental.
II - dificultar o exercício da autoridade parental;
Escala para a Escala para a
Escala para os genitores
criança/adolescente criança/adolescente
em relação ao filho
Em relação à mãe Em relação ao pai
5-Meu filho(a)
5- Minha mãe diz que é 5- Meu pai diz que é
considera que eu não
somente ela quem pode somente ele quem pode
tenho autoridade sobre
mandar em mim. mandar em mim.
ele.
13- Quando faço coisas 13- Quando faço coisas 13- Quando preciso
erradas e meu pai me erradas e minha mãe me repreender meu filho(a)
repreende, minha mãe o repreende, meu pai a ele reconhece que o
apoia e mostra que ele está apoia e mostra que ela faço por estar
preocupado com a minha está preocupada com a preocupado com a sua
educação. minha educação. educação.
20- Minha mãe diz que 20- Meu pai diz que não 20- Meu filho(a) não
não devo obedecer meu devo obedecer minha me obedece, pois
pai, pois ele não merece mãe, pois ela não considera que eu não
respeito. merece respeito. mereço respeito.
Fonte: Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental.

Tabela 3: Afirmativas contidas na Escala de Indicadores Legais de Alienação


Parental que representam as formas exemplificativas de Alienação Parental - Realizar
campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou
maternidade.
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
Escala para a Escala para a Escala para os
criança/adolescente criança/adolescente genitores em relação ao
Em relação à mãe Em relação ao pai filho
2- Quando estou com 2- Quando estou com
minha mãe e meu pai meu pai e minha mãe
2- Quando não estou
quer falar comigo, ela quer falar comigo, ele
com meu filho(a) e
diz que eu não posso diz que eu não posso
tento falar com ele, não
falar ou estou ocupado falar ou estou ocupado
consigo contatá-lo.
mesmo não sendo mesmo não sendo
verdade. verdade.
8- Quando não estou
8- Minha mãe diz que não 8- Meu pai diz que não
com meu filho(a) não
devo falar com meu pai por devo falar com minha mãe
consigo falar com ele
telefone ou pela internet por telefone ou pela
por telefone ou pela
(MSN, Skype, Facebook, internet (MSN, Skype,
internet (MSN, Skype,
etc.). Facebook, etc.).
Facebook, etc.).
15- Meu pai incentiva 15- Meu filho(a) me
15- Minha mãe incentiva
que ligue ou encontre liga ou vai ao meu
que ligue ou encontre o
minha mãe quando encontra quando
meu pai quando ficamos
ficamos tempo sem nos ficamos tempo sem nos
tempo sem nos vermos.
vermos. vermos.
Fonte: Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental.
Tabela 4: Afirmativas contidas na Escala de Indicadores Legais de Alienação
Parental que representam as formas exemplificativas de Alienação Parental -
Dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar.
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência
familiar;
Escala para a Escala para a
Escala para os genitores
criança/adolescente criança/adolescente
em relação ao filho
Em relação à mãe Em relação ao pai
10- Minha mãe não 10- Meu pai não gosta
10- Meu filho(a) não
gosta que eu conviva que eu conviva com a
convive comigo e com
com o meu pai e a minha mãe e a família
os meus familiares.
família dele. dela.
17- Quando estou com 17- Quando estou com meu
17- Quando vou rever
minha mãe e tenho que pai e tenho que encontrar a
meu filho(a) acontece
encontrar o meu pai, ela minha mãe, ele inventa
alguma coisa que ele
inventa alguma coisa e eu alguma coisa e eu acabo
acaba não podendo ir.
acabo não podendo ir. não podendo ir.
18- Minha mãe faz com 18- Meu pai faz com que 18- Para meu filho estar
que ver meu pai seja uma ver minha mãe seja uma comigo é uma coisa boa,
coisa boa, que ocorre de coisa boa, que ocorre de que ocorre de maneira
maneira fácil e tranquila. maneira fácil e tranquila. fácil e tranquila.
Fonte: Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental.

Tabela 5: Afirmativas contidas na Escala de Indicadores Legais de Alienação


Parental que representam as formas exemplificativas de Alienação Parental – Omitir
deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou
adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço.
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais
relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e
alterações de endereço;
Escala para a Escala para a
Escala para os genitores
criança/adolescente criança/adolescente
em relação ao filho
Em relação à mãe Em relação ao pai
6- Quando meu filho(a)
6- Quando eu vou ao 6- Quando eu vou ao
vai ao médico e não o
médico com minha mãe ela médico com meu pai ele
acompanho, sou
informa para o meu pai o informa para a minha mãe
informado(a) sobre o que
que houve na consulta. o que houve na consulta.
houve na consulta.
7- Se acontece alguma 7- Se acontece alguma
7- Se acontece alguma
coisa importante comigo é coisa importante na vida
coisa importante comigo é
só a minha mãe que fica do meu filho(a) eu fico
só o meu pai fica sabendo.
sabendo. sabendo.
19- Minha mãe esconde 19- Meu pai esconde da 19- Não sou informado
do meu pai o que minha mãe o que sobre o que acontece
acontece comigo na acontece comigo na com meu filho(a) na
escola.. escola. escola.
Fonte: Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental.
Tabela 6: Afirmativas contidas na Escala de Indicadores Legais de Alienação
Parental que representam as formas exemplificativas de Alienação Parental -
Apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para
obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente.
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares
deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a
criança ou adolescente;
Escala para a Escala para a Escala para os
criança/adolescente criança/adolescente genitores em relação ao
Em relação à mãe Em relação ao pai filho
3- Eu não convivo com 3- Eu não convivo com a 3- Eu não convivo com
meu pai porque minha minha mãe porque meu meu filho, pois ele
mãe insiste que ele me pai insiste que ela me acredita que lhe fiz
faz mal. faz mal. mal.
9- Quando me machuco, 9- Quando me machuco, 9- Quando meu filho se
minha mãe insiste em dizer meu pai insiste em dizer machuca, a mãe/pai
que foi por culpa do meu que foi por culpa da dele (a) diz que a culpa
pai. minha mãe. foi minha.
14- Meu filho(a)
14- Minha mãe diz que 14- Meu pai diz que
considera que cuido
meu pai cuida bem de minha mãe cuida bem de
bem dele.
mim e não me faria mal. mim e não me faria mal.
Fonte: Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental.

Tabela 7: Afirmativas contidas na Escala de Indicadores Legais de Alienação


Parental que representam as formas exemplificativas de Alienação Parental - Mudar o
domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da
criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa,
visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro
genitor, com familiares deste ou com avós.
Escala para a Escala para a
Escala para os genitores
criança/adolescente criança/adolescente
em relação ao filho
Em relação à mãe Em relação ao pai
4- Minha mãe não se 4- Meu pai não se 4- Meu filho(a) não se
mudaria para um lugar mudaria para um lugar mudaria para um lugar
em que eu ficasse longe em que eu ficasse longe que ficasse longe de
do meu pai. da minha mãe. mim.
11- Meu filho(a) muda
11- Minha mãe muda de 11- Meu pai muda de casa
de casa, dificultando a
casa e isso dificulta que eu e isso dificulta que eu
convivência dele
conviva com meu pai e a conviva com minha mãe e
comigo e com a minha
família dele. a família dela.
família.
16- Minha mãe troca de 16- Meu pai troca de 16- O pai (mãe) do meu
casa e meu pai não fica casa e minha mãe não filho(a) troca de casa e
sabendo. fica sabendo. eu não fico sabendo.
Fonte: Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental.
Com o intuito de facilitar e padronizar a operacionalização das respostas, foi
instaurado um modelo de frequência baseado em 5 hipóteses para cada um dos
comportamentos descritos (Escala Likert). Dessa forma, o sujeito deverá responder a
escala, assinalando a frequência em que determinada situação ocorre e considerando a
existência de 10 episódios, conforme modelo apresentado na Tabela 8.

Tabela 8. Modelo de frequência baseado em 5 hipóteses para cada um dos


comportamentos de Alienação Parental descritos.
Entre 10 episódios
10 9-7 6-4 3-1 0
Sempre Frequentemente Às vezes Raramente Nunca
Fonte: Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental.

2.3 Aplicabilidade da Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental


A Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental deve ser autoaplicada,
sempre que possível, por ambos os genitores e filho(s) envolvido(s), fornecendo,
assim, uma percepção mais assertiva e solidificada dos achados. O uso
individualizado, no entanto, é plenamente plausível, desde que seja levada em
consideração a unilateralidade dos resultados obtidos.
Antes de iniciar o procedimento de autorresposta, devem ser respondidos
adequadamente os dados de identificação que visam a fornecer informações
quanti/qualitativas para armazenamento de banco de dados e aprimoramento de
pesquisas futuras.
A Escala para a criança/adolescente em relação à mãe e a Escala para a
criança/adolescente em relação ao pai podem ser utilizadas em crianças de qualquer
idade, desde que alfabetizadas e com capacidade de compreensão para responder o
instrumento com autonomia. Crianças que não detenham essa condição podem
responder a Escala com o auxílio de profissional comprovadamente qualificado na
área de Alienação Parental. Essas escalas compreendem a avaliação da criança em
relação às atitudes apresentadas cotidianamente por cada um dos genitores.
A Escala para genitores em relação ao filho(a) é respondida,
preferencialmente, por ambos os genitores, sendo nela avaliados os indicadores legais
de Alienação Parental pertinentes ao filho(a). As Escalas, em caso de necessidade e
com o devido cuidado, podem ser adaptadas para a avaliação de outras pessoas que
detenham a guarda da criança/adolescente e estejam diretamente envolvidas no
processo de apuração de Alienação Parental.
Ao término, é oferecido o resultado objetivo da existência ou não de
indicadores legais de Alienação Parental, podendo ainda ser adquiridos resultados
qualitativos simplificados, ou descritivos, na forma de parecer digitalizado.

2.4 Validação estatística da Escala de Indicadores Legais de Alienação


Parental

O estudo de classificação para validação da Escala de Indicadores Legais de


Alienação Parental foi realizado pela empresa especializada Siqueira Campos
Associados. Para esse trabalho foi utilizada uma amostra de 50 famílias envolvidas
em processos litigiosos em que se apresentavam questões jurídicas pertinentes à
Alienação Parental. As escalas foram respondidas pelo filho sobre pai e mãe e
também por ambos os genitores, totalizando 200 questionários.
Inicialmente, foi estabelecida a matriz de correlação dos itens e seus
resultados, e logo após foi realizada a análise no alfa de Cronbach global, na qual se
obteve o resultado 0,9906, que é maior do que o valor de Benchmark comumente
utilizado de 0,7, e, portanto, sugestivo de que os itens correlacionados medem o
mesmo construtor. Utilizando o coeficiente de correlação linear de Pearson, foi
avaliada a correlação entre o Total da linha (soma das pontuações do questionário) e o
padrão estabelecido, sendo resultante um coeficiente de correlação igual a 0,91
(p=0,000), uma consideração correlação forte e significativa.
A fim de verificar a exatidão do construto, foi analisada a Curva ROC, através
da qual se observou que o resultado está bastante próximo ao eixo vertical, ou seja,
denota maior sensibilidade na detecção da Alienação Parental, com baixa
possibilidade de falso positivo. Desse modo, os resultados da curva sinalizaram a
probabilidade de que o resultado do teste de um caso positivo escolhido
aleatoriamente exceda o resultado de um caso negativo escolhido aleatoriamente. No
estudo, tem-se 0,979, com IC95% (0,946;1,000). Como a significância é inferior a
0,05 (p=0,000), sugere que o teste é significativamente melhor do que o caso
aleatório. Assim, observou-se que a exatidão do teste se encontra entre 94,6% e
100,0%, com um nível de confiança de 95%.
Por fim, foi realizada a definição do ponto de corte, estabelecida como
aproximadamente 59,5, visto que, utilizando esse ponto de corte, há uma sensibilidade
de 1,000 e 1- especificidade de 0,040. Assim, aproximadamente 100% das amostras
positivas seriam corretamente identificadas como tal, e apenas 4% das amostras
negativas poderiam ser incorretamente identificadas como positivas.

2.5 Exemplo de apresentação dos resultados da Escala de Indicadores


Legais de Alienação Parental

Os resultados obtidos através do preenchimento da Escala de Indicadores


Legais de Alienação Parental indicam a ausência (até 59 pontos) ou a presença (a
partir de 60 pontos) de Indicadores de Alienação Parental. Na segunda hipótese, os
resultados sinalizam o estágio em que a Alienação Parental se encontra, descrito como
leve (60 a 80 pontos), moderado (81 a 95 pontos) ou grave (acima de 95 pontos).
Os respondentes podem obter, portanto, o gráfico dos resultados, conforme
observado no exemplo a seguir:

Indicadores de
Alienação Parental

Leve Moderado Grave

Gráfico 1: Exemplo de resultado qualitativo de intensidade obtido através da Escala


de Indicadores Legais de Alienação Parental.

Ademais, é fornecida uma breve interpretação descritiva dos resultados,


expressa nos modelos a seguir descritos:
Quadro 1: Descrição da interpretação de Alienação Parental em estágio leve.
Leve: Interferência na adequação da estrutura familiar que desfavorece o
estabelecimento saudável das relações parentais e na adequação da concepção filial,
podendo contribuir para a desconstrução do genitor alienado em favor do conflito de
lealdade estabelecido com o genitor alienador.
Fonte: Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental
Quadro 2: Descrição da interpretação de Alienação Parental em estágio moderado.
Moderado: significativa interferência na adequação da estrutura familiar que
desfavorece fortemente o estabelecimento saudável das relações parentais e na
adequação da concepção filial, restando instaurada a desconstrução do genitor
alienado em favor do conflito de lealdade estabelecido com o genitor alienador.
Fonte: Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental

Quadro 3: Descrição da interpretação de Alienação Parental em estágio grave.


Grave: massiva interferência na adequação da estrutura familiar que impede o
estabelecimento saudável das relações parentais e na adequação da concepção filial,
estando já instaurada a desconstrução do genitor alienado em favor do conflito de
lealdade estabelecido com o genitor alienador e intensamente prejuízo intenso no
desempenho e na qualidade de vida dos envolvidos.
Fonte: Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental

Do ponto de vista qualitativo é verificada, ainda, a pontuação obtida em cada


um dos itens exemplificativos da Lei, sinalizando as condutas e respectivas
representatividades, sendo os resultados apresentados conforme demonstrado no
gráfico abaixo.
Indicadores Legais de Alienação Parental

Mudança domiciliar
Realização de falsa denúncia
Omissão de informações
Obstaculização da convivência
Obstrução do contato
Dificultação da parentalidade
Desqualificação
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15

Gráfico 2: Exemplo de resultado qualitativo de frequência do tipo de indicadores


obtidos através da Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental.

Juntamente com o gráfico, é oferecida a breve descrição de cada um dos


indicadores, a fim de que o respondente possa compreender melhor os aspectos
avaliados, tal como pode se observar a seguir:
Quadro 4: Breve descrição de cada um dos indicadores de Alienação Parental.
Desqualificação: Consiste na realização de campanha de desqualificação da
conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade.
Dificultação da parentalidade: Avalia a tendência do alienador em dificultar
o exercício da autoridade parental do sujeito alienado;
Obstrução do contato: Verifica condutas do alienador que visem a dificultar
o contato de criança ou adolescente com genitor;
Obstaculização da convivência: Refere-se à busca do alienador em
obstaculizar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;
Omissão de informações: Diz respeito à tendência do alienador de omitir
deliberadamente ao genitor alienado informações pessoais relevantes sobre a criança
ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;
Realização de falsa denúncia: Verifica a intenção do alienador de apresentar
falsa denúncia contra o genitor alienado, contra seus familiares ou contra os avós,
para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;
Mudança domiciliar: Consiste na mudança domiciliar do alienador para local
distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou
adolescente com o genitor alienado, com seus familiares ou com avós.
Fonte: Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental

2.6 Considerações éticas sobre a Escala de Indicadores Legais de


Alienação Parental

Os aplicadores da Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental, ao


fazerem uso individual ou ao comporem as equipes multiprofissionais a que se refere
o art. 5º, parágrafo 2º, da Lei nº 12.318/2010, devem observar, além dos princípios
jurídicos, legais e processuais da área forense, os princípios éticos, técnicos e
normativos da categoria profissional a que pertencem.
Adverte-se que a Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental não
constitui um teste psicológico, mas um instrumento desenvolvido para auxiliar na
identificação de indicadores legais comumente presentes em situações compatíveis
com Alienação Parental, nos termos da Lei nº 12.318/2010.
Cabe ressaltar que a Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental é um
instrumento organizado para preenchimento de autorresposta, portanto passível de
manipulação. Desse modo, a utilização inadequada ou com desvio de finalidade é de
inteira responsabilidade do usuário, que, antes de utilizá-la, deverá firmar um Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido.
Além disso, a Escala não pode ser utilizada exclusivamente como prova
jurídica, devendo ser devidamente contextualizada e corroborada por outros achados.
Nesse sentido, reforça-se a importância do acompanhamento por profissional com
conhecimento, experiência e treinamento especializado em Alienação Parental.
Em qualquer hipótese, deve ser observado o Princípio do Sigilo Profissional e
de suas respectivas exceções, sendo esse compromisso extensivo a todo e qualquer
profissional que, em razão de sua função ou mister, direta ou indiretamente, tenha
acesso ao material decorrente da Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental,
cujo uso é restrito ao objetivo e à finalidade ínsita do instrumento, que somente deve
ser utilizado dentro dos limites deontológicos, jurídicos, legais e técnicos.

3. Levantamento e Discussão dos Resultados obtidos através do


preenchimento das Escalas

3.1 Quanto à presença e ao estágio dos Indicadores Legais de Alienação


Parental.
Desde o lançamento da Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental,
em outubro de 2014, até a data final deste estudo (outubro de 2017), transcorreram
três anos, período em que foram respondidos 2928 questionários. O levantamento dos
resultados indicou que 45% (n= 1321) desses questionários sinalizaram a presença de
Indicadores Legais de Alienação Parental, sendo 28% (n= 826) deles em nível leve,
12% (n= 354) em nível moderado, e apenas 5% (n= 141) em nível grave. Os demais
questionários respondidos, com representatividade de 55% (n= 1607), constataram
pela ausência de Indicadores Legais de Alienação Parental.
5% Resultados (out 2014- out 2017)

12%
Ausência
Leve
28% 55% Moderado
Grave

Gráfico 3: Resultados obtidos através dos preenchimentos da Escala

Nesses resultados, foi possível observar que um percentil menor do que


metade dos respondentes (45%) da amostra não apresentou presença de Indicadores
Legais de Alienação Parental. Tal constatação, embora em uma primeira avaliação
possa ser sugestiva de um sinal alarmante, logo se dissipa, pois não corresponde à
população geral, de modo que se faz fundamental a compreensão de que se trata de
uma amostra estatisticamente enviesada, sendo provável que os respondentes da
Escala, em sua maioria, tiveram acesso ao questionário já por conhecerem o tema,
seja devido a vivências diretas ou indiretas relacionadas com questões pertinentes à
Alienação Parental, seja por algum outro aspecto de especial interesse.

Verificou-se, igualmente, que nos casos respondidos prevaleceu o nível leve, o


que permite inferir: i) por um lado, a sutileza das condutas alienantes e/ou a
dificuldade de identificação e percepção desses comportamentos; ii) por outro, a
condição da Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental estar a atingir os seus
objetivos, quais sejam a) a detecção precoce da Alienação Parental, facilitando o
enfrentamento do problema em estágio ainda inicial; b) uma intervenção preventiva
capaz de obstruir a instauração da Síndrome de Alienação Parental.

3.2 Quanto ao sexo dos genitores respondentes em relação aos resultados

Outro dado que merece atenção refere-se ao sexo dos genitores respondentes,
visto que o levantamento apontou para uma amostra geral bastante homogênea, com
49% dos participantes (n= 1426) pertencendo ao sexo feminino e 51% (n= 1502) ao
sexo masculino.
Sexo da amostra geral respondente

Homens
49% 51% Mulheres

Gráfico 4: Sexo da amostra geral de respondentes da Escala.

Não obstante, quando analisados exclusivamente os casos em que há presença


de Alienação Parental, essa proporção altera-se para 41% de mulheres (n= 545) e 59%
(n= 776) de homens.

Sexo da amostra com presença de AP

Homens
41% 59%
Mulheres

Gráfico 5: Sexo da amostra de respondentes com presença de Alienação


Parental na Escala

Nesse sentido, os dados obtidos são consentâneos com a literatura de


embasamento teórico que indica os homens como mais propícios à vitimação de
Alienação Parental, uma vez que as mulheres, por razões de ordem sociocultural, são,
na maioria das vezes, as detentoras da guarda. Nesse sentido é o ensinamento de
Palermo (2013),

Embora ainda não haja números precisos sobre o tema, alguns dados
ajudam a entender por que a mãe tem mais chance de se tornar alienadora.
De acordo com as Estatísticas de Registro Civil, divulgadas em 2010 pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 87,3% dos casos
são elas que detêm a guarda dos filhos em casos de separação. Nesse
contexto, ainda segundo o IBGE, cerca de 1/3 dos filhos perde contato com
os pais, sendo privados do afeto e do convívio com o genitor ausente. (p.
12).
Essa constatação permite inferir que o regime de guarda compartilhada,
possibilitando a participação efetiva de ambos os genitores, seja uma alternativa
importante para a prevenção da Alienação Parental, visto que a guarda compartilhada
faculta a educação homogênea por parte dos pais, sugerindo um fator de proteção a
práticas alienantes, já que o contato e a convivência familiar tendem a ser mantidos de
forma mais ou menos semelhante àquela da relação existente antes do rompimento
conjugal (NOGUEIRA, 2015).

Considerações Finais

O presente capítulo, portanto, pretendeu, ainda que de forma sumária,


apresentar a Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental, explorando seu
objetivo, construto de elaboração, validação estatística, questões éticas pertinentes e
exemplificação da apresentação dos resultados. Apresentou também os resultados
obtidos através dos questionários digitais respondidos no período de 2014 a2017.
A Escala de Indicadores Legais de Alienação Parental, criada com base na Lei
nº 12.318, tem a intenção de auxiliar pessoas da comunidade em geral que se
encontram no contexto de Alienação Parental, assim como servir aos profissionais das
mais diversas áreas que operam nessa complexa temática, cada vez mais evidente nas
relações sociais e familiares, com manifestas consequências jurídicas sobre adultos,
adolescentes e crianças.
Desse modo, observa-se que os estudos estatísticos referenciaram a Escala de
Indicadores Legais de Alienação Parental como uma ferramenta válida e capaz de
auxiliar na detecção do desfecho.
Como observado pela análise dos resultados colhidos através dos questionários
da Escala de Indicadores Legais de Alienação preenchidos de outubro de 2014 até o
termo final deste estudo (outubro de 2017), na amostra positiva específica houve
predominância de alienação parental no estágio leve. Isso permite refletir no sentido
da eficácia do instrumento como ação preventiva, visto que, nesse estágio, as chances
de remissão por estratégias de detecção e de intervenção precoce apresentam
resultados mais efetivos do que nos estágios mais avançados de alienação.
Por fim, cumpre recordar que o desfecho Alienação Parental constitui uma
questão multidisciplinar, e que, embora já existam importantes estudos publicados
sobre o tema, é sempre oportuno aprofundar o debate a fim de contribuir para a
adoção de estratégias para aperfeiçoar o Sistema Geral de Justiça (do Direito de
Família ao Direito Processual Civil), mas principalmente o Sistema de Proteção à
Infância, nomeadamente com o propósito de diminuir a vitimação de crianças e
adolescentes em decorrência de práticas de Alienação Parental.

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567-em-15-anos-no-brasil
A AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA NO ÂMBITO DA
JUSTIÇA E SUA ESPECIFICIDADE EM CASOS
DE ALIENAÇÃO PARENTAL

Camila Machado de Oliveira16

Introdução
A Psicologia Jurídica é uma área da Psicologia que converge com o Direito e
faz com que a Justiça leve em consideração aspectos psicológicos dos sujeitos
envolvidos. “A Psicologia Jurídica é um grande e específico campo de relações entre
as esferas do Direito e da Psicologia, nos aspectos epistêmicos, explicativos e de
pesquisa, como também na aplicação, na avaliação e no tratamento” (SANTOS;
POHLENZ, 2012, p. 12).
Com o aumento no número de separações conjugais, tem crescido também o
interesse pelas consequências trazidas por este processo, dentre elas a alienação
parental. O estudo da Alienação Parental é importantíssimo para a sociedade atual,
pois envolve a relação familiar onde o interesse maior são os filhos, para tanto, há de
haver uma maior interação de profissionais como psicólogos e assistentes sociais,
auxiliando, em determinados casos, os profissionais da área jurídica, sejam eles
advogados, promotores ou juízes.
É notável a interdisciplinaridade entre o Direito e as ciências que estudam o
ser humano, dessa forma, não seria diferente com a psicologia, que traz grande
contribuição para o direito, e de maneira considerável para a área do direito de
família.

1. A Psicologia e o Direito
Psicologia e Direito, mesmo constituindo-se em disciplinas distintas, possuem,
como ponto de intersecção: o interesse pelo comportamento humano. Contudo,
embora possuam o mesmo objeto material, diferem quanto ao seu objeto formal:

16
Psicóloga em formação pela Universidade Luterana do Brasil e com formação em Psicologia Forense
pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica – SBPJ.
Enquanto o Direito se dedica ao estudo do dever ser, a Psicologia se preocupa com o
estudo do ser (ROVINSKI, 2013).
Assim a forma de compreender as pessoas e suas condutas difere
significativamente quando analisada por um psicólogo e quando estudada por um
legislador. Mas não se pode negar que os planos do ser e do dever ser se entrelaçam e
se justapõem, tornando um saber complementar ao outro. A psicologia busca,
incessantemente, compreender a chave do comportamento, enquanto que o direito é
um conjunto de regras que busca regular esse comportamento, determinando formas
de conduta e soluções de conflito. Assim, o comportamento humano tornou-se objeto
de estudo cientifico de vários saberes simultâneos (TRINDADE, 2017, p. 30),
sobretudo levando-se em consideração a necessidade e papel da ciência na
intervenção com foco no sofrimento humano.
É com a intenção de ser eficiente, igualitário e justo que o juiz se mune de
subsídios para fundamentar a sua decisão de forma lógica e estruturada por meio de
uma exposição coerente de fatos e provas, a fim de que não paire dúvidas sobre os
critérios adotados pelo julgador e que determinam sua decisão. Nesse sentido, o apoio
do psicólogo jurídico, elaborando um saber técnico sobre as partes litigantes
envolvidas nos processos, é um importante instrumento subsidiário na decisão dos
juízes na busca de um justo desfecho do conflito, assegurando direitos e dignidade das
partes envolvidas.
Nesse sentido, a psicologia possui atuação privilegiada, agindo em dimensões
objetivas e subjetivas do ser humano. Esse campo de saber pode ser definido como:
[...] o estudo científico do comportamento e dos processos mentais.
Comportamento é aquilo que caracteriza ações do ser humano, como falar,
caminhar, ler, escrever, nadar, etc. E processos mentais são caracterizados
por todas as experiências processadas internamente e individualmente,
como sentimentos, lembranças, afetos, desejos e sonhos. (TRINDADE,
2017, p. 27).

Desde os anos 80 do século passado, a psicologia e o direito se interessam


sobre o estudo da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, havendo, a parir
daí, um significativo impacto não apenas sob o prisma do ato infracional e as medidas
dele decorrentes, na também, na ótica do princípio da proteção integral, no que
respeita a criança e ao adolescente enquanto vítimas de abuso sexual. Tal interesse
coincidiu, no âmbito do direito das famílias, com novos conceitos e novas
configurações, atraindo para a psicologia forense a necessidade de um
reaparelhamento mais adequado às novas constelações, em especial as ações
relacionadas com o divórcio e a guarda dos filhos (TRINDADE, 2017, p. 34).

2. Avaliação Psicológica Jurídica


A avaliação psicológica representa e difunde a psicologia enquanto ciência na
sociedade. Atualmente, a discussão cientifica centra-se na elaboração de indicadores,
critérios e instrumentos dirigidos às necessidades cada vez mais distintas
(NORONHA; ALCHERI, 2002). Portanto, é necessário atentar a algumas
especificidades que a avaliação psicológica jurídica apresenta, principalmente quando
se avaliam famílias em conflito.
O psicodiagnóstico no contexto jurídico, tem como objetivo estabelecer um
nexo-causal entre a saúde mental e a incapacidade de gerenciar a própria conduta e
responder por ela. O psicodiagnóstico pericial se destina a caracterizar insanidade,
capacidades mentais, capacidade para exercer determinadas funções, avaliar
capacidade de autodeterminação, incapacidade ou alterações psicopatológicas. Fatores
esses, que apresentam elevada correlação com condutas delituosas e transgressão à
lei. (SERAFIM; SAFFI. 2012)
No contexto jurídico, a avaliação psicológica se configura como uma prática
integrante da perícia psicológica, que permite incluir nos autos informações que são
desconhecidas pelo juiz já que ultrapassam seu conhecimento técnico-jurídico e
quando solicitada pelo magistrado, surge como forma de elucidar o problema e não se
constitui como uma verdade absoluta (ROVINSKI, 2007). A perícia Psicológica para
o Direito Processual serve como meio de prova, o que permite que o perito utilize
diversas fontes para isto, como documentos ou depoimentos de testemunhas (SILVA,
2006).
Art. 465- novo CPCP/ 2015.
“O juiz nomeará perito especializado no objeto da perícia e ficará de
imediato o prazo para a entrega do laudo”.
Art. 473- novo CPC/2015. [...]
[...]
§3º Para o desempenho de sua função, o perito e os assistentes
técnicos podem valer-se de todos os meios necessários, ouvindo
testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam
em poder da parte, de terceiros ou em repartições públicas, bem como
instruir o laudo com planilhas, mapas, plantas, desenhos, fotografias ou
outros elementos necessários ao esclarecimento do objeto da perícia.
(BRASIL, 2015, p. 158).
O psicólogo que atua nesta área pode enfrentar limitações quanto aos recursos
existentes, demandando uma atualização de seu conhecimento acerca dos casos em
questão, como por exemplo família, abuso sexual, alienação parental, periculosidade
etc., assim como também deverá ter conhecimento sobre o sistema jurídico,
identificando jurisdições, instâncias, legislações e normas referentes à sua atividade
atual (ROVINSKI, 2007).
Relacionam-se, levando em consideração as atribuições do Psicólogo em geral
e para realização de atividades jurídicas segundo o novo Código de Ética Profissional
do Psicólogo, os seguintes artigos:
Art.1º São deveres fundamentais do psicólogo:
b) Assumir responsabilidades profissionais somente por
atividades para as quais esteja capacitado pessoal, teórica e tecnicamente.
f) Fornecer, a quem de direito, na prestação de serviços
psicológicos, informações concernentes ao trabalho a ser realizado e ao seu
objetivo profissional;
g) Informar, a quem de direito, os resultados decorrentes da
prestação de serviços psicológicos, transmitindo somente o que for
necessário para a tomada de decisões que afetem o usuário ou beneficiário;
h) Orientar a quem de direito sobre os encaminhamentos
apropriados, a partir da prestação de serviços psicológicos, e fornecer,
sempre que solicitado, os documentos pertinentes ao bom termo do
trabalho;
Art. 2º Ao psicólogo é vedado:
g) Emitir documentos sem fundamentação e qualidade técnico-
científica;
k) Ser perito, avaliador ou parecerista em situações nas quais seus
vínculos pessoais ou profissionais, atuais ou anteriores, possam afetar a
qualidade do trabalho a ser realizado ou a fidelidade aos resultados da
avaliação;
Art. 9º – É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim
de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas,
grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional.
Art. 10 – Nas situações em que se configure conflito entre as
exigências decorrentes do disposto no Art. 9º e as afirmações dos
princípios fundamentais deste Código, excetuando-se os casos previstos
em lei, o psicólogo poderá decidir pela quebra de sigilo, baseando sua
decisão na busca do menor prejuízo. Parágrafo único – Em caso de quebra
do sigilo previsto no caput deste artigo, o psicólogo deverá restringir-se a
prestar as informações estritamente necessárias.
Art. 11 – Quando requisitado a depor em juízo, o psicólogo
poderá prestar informações, considerando o previsto neste Código
(CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2014, p. 8-13).

TAVARES (2003) destaca que a avaliação não é tarefa fácil, uma vez que
nossas inferências psicológicas sobre cada pessoa devem ser consubstanciadas a cada
passo, mediante confirmações independentes. É preciso compreender a complexidade
do processo de avaliação, o que exige competência na observação clínica, nos
procedimentos de entrevista, no emprego de conhecimentos em psicopatologia,
psicodinâmica, teorias do desenvolvimento, etc.
Para a realização da perícia psicológica, o psicólogo tende a utilizar os
mesmos métodos de investigação utilizados na clínica. Dentre os instrumentos temos
a entrevista, aplicação de testes, a observação, levantamento de informações de
familiares etc. Esta perícia é feita por meio de uma solicitação com foco determinado
pelo sistema legal sendo essa solicitação pode ser feita por juízes, ou advogados, por
exemplo. Desta forma, o primeiro ponto relevante a ser considerado na observação é
que, o entrevistado é alguém que está sendo “obrigado(a)” a estar naquela situação
por uma imposição judicial, sendo assim, a simulação e dissimulação por partes dos
envolvidos podem estar presentes (ROVINSKI, 2007).
Princípios básicos de atuação do psicólogo como Perito Forense
(Trindade,2017):
1. Dispor dos conhecimentos e experiência necessários;
2. Revisão objetiva do expediente forense (processo);
3. Mínima intervenção, média descrição e máximo respeito à
intimidade das pessoas;
4. Prudência e cautela ao utilizar avaliações e perícias de outros
profissionais;
5. Observar ao Princípio da Equidade;
6. Exercer a atividade com Imparcialidade;
7. Solicitar ao interessado permissão para colaborar
(consentimento informado);
8. Observar o Princípio do Melhor Interesse da Criança (quando a
demanda envolver criança ou adolescente).
Silva (2012, p. 353) define os objetivos do psicodiagnóstico, onde o psicólogo
deve se familiarizar com os fatos pertinentes à solicitação do processo e elaborar um
plano de avaliação, procurando identificar quais os recursos (técnicas e testes) que
melhor permitem responder às hipóteses ou questionamento iniciais postos pela
demanda jurídica e social, realizando inclusive, testes psicológicos.
[...] Os testes psicológicos são ferramentas exclusivas dos Psicólogos e tem
como relevância dar cientificidade e ajuda a obter um diagnóstico. Os
testes que são mais utilizados no Setor são: Palográfico, HTP, Quati, Staxi-
2 e BFP. (SOARES, 2014, p. 12).
O psicólogo precisa analisar o que está sendo levado em questão no processo,
para ter a uma visão no contexto geral dos envolvidos. Tomando o que for relevante e
significativo com aspectos do sujeito, usando obviamente a ética profissional
conforme as leis do Conselho Federal de Psicologia.
Segundo Silva (2012, p. 383), o relatório psicológico deve conter, no mínimo,
cinco itens:
• Identificação: É a parte superior do primeiro tópico do
documento com a finalidade de identificar o psicólogo que irá elaborar o
relatório, identificando-se com as respectivas inscrições no conselho
regional. Indicará, também, o nome de do autor do pedido, seja solicitação
da justiça ou de outras entidades e o assunto do motivo do pedido para a
intervenção do acompanhamento e/ou avaliação psicológica.
• Descrição da demanda: É a narração feita pelas partes
referentes à problemática apresentada e os motivos do processo, que
produziram o pedido do documento. Apresentam-se as razões pelo qual as
partes recorreram à justiça, analisam-se os autos do processo para obter
informações das partes na visão dos magistrados, justificando o
procedimento adotado.
• Procedimento: São apresentados os instrumentos técnicos
utilizados, para colher dados e informações das partes do processo. Nos
quais envolvem o número de encontros realizados, a escuta das pessoas
envolvidas no processo etc. Esse procedimento ocorre com o objetivo de
avaliar a complexidade do que está sendo demandado.
• Análise: É a etapa do processo de avaliação onde é feita a
exposição descritiva de forma metódica, objetiva e fiel dos dados coletados
e das vivências relacionado com a demanda em sua complexidade. Na
análise são avaliadas as questões históricas, sociais, econômicas e políticas
das partes, pois esses elementos são tidos como determinantes do
comportamento e na subjetividade do sujeito analisado. É um processo
realizado com base em testes psicológicos, usados como instrumentos
coletores de informações e dados das partes envolvidas.
• Conclusão: O psicodiagnóstico é dado após a correção dos
testes e das considerações a respeito da investigação feita no decorrer dos
atendimentos, e a partir das referências que subsidiaram o trabalho. As
considerações geradas pelo processo de avaliação psicológica devem
transmitir ao solicitante a análise da demanda em sua complexidade e do
processo de avaliação como um todo. Após a narração conclusiva, o
documento é encerrado, com indicação do local, data de emissão,
assinatura do psicólogo e o seu número de inscrição no CRP.
Portanto, em nenhum momento se admite a possibilidade de que o psicólogo
perito, que esteja realizando uma avaliação psicológica, emita opiniões, apresente
“conclusões” que mais se assemelham a “sentenças” ou “julgamentos”, pois esses são
posicionamentos carregados de juízos de valor, que se afastam completamente da
Psicologia, enquanto Ciência e Profissão.

3. Alienação Parental
3.1. A prática da alienação parental
A alienação parental, trata-se de um construto comumente presente na
psicologia jurídica, em especial nas ações de disputa de guarda dos filhos nas Varas
de Família. A alienação parental define-se como um conjunto de comportamentos,
conscientes ou não, que podem provocar uma perturbação na relação entre o filho e
um dos genitores. Definição semelhante pode ser encontrada nos artigos 2º e 3° da Lei
Brasileira nº 12.318/2010 que estabelece as ações que tipificam a alienação parental:
Art. 2° Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação
psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um
dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob
a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que
cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além
dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados
diretamente ou com auxílio de terceiros:
I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no
exercício da paternidade ou maternidade;
II - dificultar o exercício da autoridade parental;
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência
familiar;
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre
a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de
endereço;
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou
contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou
adolescente;
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a
dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor,
com familiares deste ou com avós.
Art. 3° A prática de ato de alienação parental fere direito fundamental da
criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, prejudica a
realização de afeto nas relações com genitor e com o grupo familiar,
constitui abuso moral contra a criança ou o adolescente e descumprimento
dos deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de tutela ou
guarda.
Por fim, o alienante obcecado manipula a criança de tal forma que acaba por
inserir nele seus próprios sentimentos, deixando de lado o melhor interesse do menor
e afastando a criança do genitor, para que não se possa estabelecer nenhum tipo de
relação com aquele (COSTA; LIMA, 2013). A Alienação Parental é considerada
como uma forma de abuso à integridade da criança, podendo afetar significativamente
sua saúde emocional e desenvolvimento social. As adversidades de lealdade perante
seus genitores podem ser classificadas como um tipo de violência contra essas
crianças e adolescentes (LUZ; GELAIN; LIMA, 2014).

3.2. A Síndrome da Alienação Parental


Para compreendermos o conceito de Síndrome da Alienação Parental (SAP),
torna-se necessário retornar ao autor que a definiu, em meados da década de 1980. O
psiquiatra norte-americano Richard Gardner, definiu a SAP como sendo um distúrbio
infantil que ocorreria em crianças expostas às disputas por guarda de filhos no âmbito
judicial. A manifestação da então considerada ‘patologia’, segundo Gardner, seria
uma acentuada rejeição da criança a um dos genitores, sem que houvesse algo que
justificasse tal rejeição. O distúrbio psiquiátrico seria resultado de uma combinação de
instruções do genitor alienante que realizaria uma ‘lavagem cerebral, doutrinação ou
programação’ na criança que, por sua vez, desenvolveria um sentimento de
hostilidade para com o outro genitor. (GARDNER, 2002).
Referente a Síndrome da Alienação Parental (SAP), Maria Berenice Dias,
explica:
“O fato não é novo: usar filhos como instrumento de
vingança pelo fim do sonho do amor eterno. Quando da
ruptura da vida conjugal, se um dos cônjuges não consegue
elaborar adequadamente o luto da separação, o sentimento de
rejeição ou a raiva pela traição, surge um enorme desejo de
vingança. Desencadeia um processo de destruição, de
desmoralização, de descrédito do ex-parceiro perante os
filhos. Promove verdadeira “lavagem cerebral” para
comprometer a imagem do outro genitor, narrando
maliciosamente fatos que não ocorreram ou não aconteceram
da forma descrita. O filho é programado para odiar e acaba
aceitando como verdadeiras as falsas memórias que lhe são
implantadas. Assim afasta-se de quem ama e de quem também
o ama. Esta é uma prática que pode ocorrer ainda quando o
casal vive sob o mesmo teto. O alienador não é somente a mãe
ou quem está com a guarda do filho. O pai pode assim agir,
em relação à mãe ou ao seu companheiro. Tal pode ocorrer
também frente a avós, tios ou padrinhos e até entre irmãos.
Nesse jogo de manipulações, todas as armas são utilizadas,
inclusive - com enorme e irresponsável frequência - a
alegação da prática de abuso sexual.”

O termo “Síndrome” foi usado por Gardner (2002) porque ele observou um
conjunto de sintomas que costumam aparecer em crianças vítimas desse processo. São
eles: Campanha de descredito; Justificativas fúteis; Ausência de ambivalência;
Fenômeno de independência (a criança afirma que ninguém o influenciou);
Sustentação deliberada (o filho adota a defesa do genitor alienador); Ausência de
culpa sobre crueldade do genitor alienado; Presença de situações fingidas;
Generalização de animosidade a outros membros da família extensiva do genitor
alienado.
Para que se configure efetivamente o quadro da SAP, Silva (2006) destaca que
é preciso ter certeza de que o genitor alienado não mereça ser rejeitado pela criança,
por meio de comportamentos tão depreciáveis. Gardner (2002) aponta ainda que a
SAP se caracteriza pelo fato de o alienador programar o filho para denigrir a imagem
do outro genitor e pelas contribuições criadas pela própria criança, que sustentam essa
desmoralização do genitor alienado. Sem essa contribuição da criança, não é possível
falar em SAP, pois a mesma só se estabelece mediante a complementariedade entre
destruição da imagem pelo genitor e pelo próprio filho, ainda que influenciado
primeiro.
3.3. A avaliação psicológica em casos de indícios de Alienação Parental
O artigo 5º da Lei nº 12.318/2010 prevê que o juiz, ao detectar indícios de
ocorrência de alienação parental, deverá determinar perícia psicológica ou
psicossocial, por profissional ou equipe multiprofissional habilitados, exigido, em
qualquer caso, aptidão comprovada por histórico profissional ou acadêmico para
diagnosticar atos de alienação parental.
O laudo pericial terá base em ampla avaliação psicológica ou psicossocial,
conforme o caso, compreendendo, inclusive, entrevista pessoal com as partes, exame
de documentos dos autos, histórico do relacionamento do casal e da separação,
cronologia de incidentes, avaliação da personalidade dos envolvidos e exame da
forma como a criança ou adolescente se manifesta acerca de eventual acusação contra
genitor.
Para o diagnóstico da Síndrome de Alienação Parental, Gardner (2002)
ressalta a importância de realizar entrevistas conjuntas, com todas as partes
envolvidas e em todas as combinações possíveis. É durante as entrevistas conjuntas
que o examinador tem a possibilidade de confrontar as informações e investigar
verdade. De acordo com Motta (2007), o relacionamento entre crianças e o genitor
acusado é diminuído e quase sempre interrompido durante as investigações para
realização da perícia, que podem durar meses ou anos na tentativa de se atingir um
nível de certeza considerável. Assim, além de diagnosticar a SAP, é importante que os
psicólogos busquem formas de intervenção que possam amenizar os efeitos causados
por esse fenômeno.

Considerações Finais
A partir deste artigo, pôde-se compreender melhor sobre a aplicação da
Psicologia Jurídica no âmbito da justiça e na questão da alienação parental, sendo
possível identificar, também, situações que os profissionais necessitam resolver
visando o bem-estar e a saúde psicológica das partes envolvidas.
Na psicologia jurídica, há uma predominância de elaboração de laudos,
perícias, pareceres e relatórios, presuma-se que compete à psicologia uma atividade
de cunho avaliativo e de auxílio aos juízes. Essas atividades competem ao psicólogo,
pois esse, por meio de um saber técnico diferenciado é capaz de direcionar questões
conflituosas às conclusões mais adequadas e justas. Essa instrumentalidade técnica
possibilita à psicologia intervir e contribuir de forma mais contundente na decisão
judicial final, sendo essa de forma interdisciplinar com o campo do direito.
Porém, é evidente a importância de mais pesquisas e publicações nesta área,
que viabilizam a ampliação do conhecimento cientifico e discussões a respeito das
práticas da psicologia no contexto judicial e mais especificamente da alienação
parental, visando resguardar a integridade psíquica, física e moral da criança.

Referências

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República, 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
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TRINDADE, J. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito.


7.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.

TRINDADE, J. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito.


4.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
O QUE AFETA O TESTEMUNHO?

Constanza Prehn Borille17


Gicela Nicolini Hansen18

Introdução
O comportamento humano corresponde ao elo de interlocução entre o Direito
e a Psicologia, é de longa data que ocorre esta intersecção entre os saberes desses dois
campos de conhecimento. Enquanto a Psicologia tenta entender e explicar o
comportamento humano, o Direito trabalha com a regulação desse comportamento,
tentando criar regras e soluções para os conflitos com foco na vida social (Trindade,
2017).
A Psicologia do testemunho representa uma área de atuação com papel
importante no campo jurídico, pois serve de subsídio aos magistrados e advogados.
De forma a colaborar com os operadores da justiça, os psicólogos são convocados a
usar seu conhecimento sobre a conduta humana para analisar os depoimentos de
testemunhas e suspeitos.
Avaliar a credibilidade do testemunho, como ele ocorre e quais suas falhas
constituem um vasto campo de interesse tanto no Direito quanto na Psicologia. A
necessidade de se verificar a veracidade do que é narrado, pelo indivíduo que
testemunha, tem uma relação direta com implicações judiciais. Auxiliar os operadores
do Direito na condução de uma entrevista, mais qualificada, com a testemunha do fato
é papel importante da Psicologia. Para tal, é necessário compreender como ocorre o
processo psicológico da tarefa de testemunhar.
Os processos internos que dificultam ou propiciam a veracidade do relato das
testemunhas a respeito do que foi vivenciado também podem ser examinados do
ponto de vista psicológico. Neste artigo, temos como objetivo discorrer sobre as

17
Psicóloga. Graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.
Especializanda em Psicologia Clínica pelo Instituto Fernando Pessoa. Formação em Psicologia Forense
pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica - SBPJ
18
Psicóloga. Graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Formação em
Psicoterapia de Orientação Psicanalítica pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia – IEPP.
Formação em Psicologia Forense pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica - SBPJ. Formação
em Licenciatura Plena em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –
PUCRS.
funções mentais percepção, memória, atenção e sobre a narrativa do fato no campo
jurídico. Visto que esses processos mentais tem grande influência nos relatos das
testemunhas.

1. A importância das funções mentais para o testemunho


Segundo Mira Y Lopes (2009) o depoimento testemunhal necessita de
indivíduos capazes de recordar, evocar, conservar e fixar eventos ocorridos, para que
se possa consumá-lo. No conceito jurídico, as testemunhas fornecem o relato de suas
memórias do fato que foi presenciado por elas.
Tendo que depor em juízo, aquilo que é dito tem valor jurídico. Podem depor
sobre o que escutaram ou viram, sem a necessidade de qualificar tecnicamente ou
demonstrar o significado que foi atribuído ao acontecimento. Não cabe à testemunha
julgar ou tomar parte de algum lado, e sim apenas descrever o acontecimento
(Marinoni e Arenhart, 2008).
Ainda de acordo com Marioni e Arenhart (2008), a testemunha deve declarar
se o acontecimento julgado foi ou não realizado, sendo não necessário e nem
obrigatório utilizar o que foi dito como uma prova testemunhal, mas sim como um
indício para o decorrer do processo.
Para Psicologia, as funções mentais superiores - sensação, percepção, atenção,
memória, pensamento, linguagem e emoção - são mecanismos complexos envolvidos
no desencadeamento do comportamento, onde se estruturam a realidade psíquica de
cada indivíduo. A construção da visão de mundo, a percepção do que acontece, a
interpretação e o comando dos comportamentos pode ser compreendida a partir desses
fundamentos (Fiorelli & Mangini, 2018).
Segundo Mira Y Lopez (2009), citado por Butierres e Sani (2017), há cinco
fatores fundamentais com forte influência no depoimento de uma testemunha sobre
um fato ocorrido: a) a percepção do acontecimento; b) a conservação da memória; c) a
evocação da memória do fato; d) como quer expressar o ocorrido; e) como pode
expressar o ocorrido. Esses fatores fundamentais – percepção, memória e a expressão
do fato ou narrativa – podem ser afetados por alguns fatores e estes, por conseguinte,
influenciar na qualidade do testemunho – a exatidão e a credibilidade do fato
ocorrido. De acordo com Trindade (2017) o testemunho representa um modo de
transferir conhecimento, por pertencer à esfera da psicologia forense acaba gerando
efeitos jurídicos. Este autor ainda ressalva a importância da atenção, adendando como
mais um fator importante para o testemunho.

1.1 Percepção
A percepção está relacionada com a forma como o indivíduo percebe o mundo
exterior e a possível intenção dos outros, também inclui o modo como a pessoa
enxerga a si própria, a sua imagem corporal, as suas representações e o seu sentimento
de identidade (Zimerman, 1999). De acordo com Trindade (2017), a percepção sofre
variações e está sujeita a incontáveis fatores reais ou fantasiosos, conscientes ou
inconscientes. Por estar sujeita a tantas variações é complexo e difícil fazer sua
avaliação no campo do Direito. A percepção passa por processos que envolvem a
evocação da memória, a transformação em pensamento e exposta por meio da
linguagem, gerando a prova pericial (Trindade, 2017). A narrativa do indivíduo é
oriunda de sua subjetividade, que por sua vez surge de sua individualidade e de suas
experiências (Butierres & Sani, 2017).
Conforme Fiorelli e Mangini (2018) a percepção é o produto da interpretação
da imagem mental derivada da sensação. Os estímulos sensoriais tornam-se
conscientes por meio deste processo mental, podendo ocorrer diversas percepções em
pessoas diferentes, sendo que cada um reagirá de forma variada aos estímulos.
Ainda de acordo com Fiorelli e Mangini (2018) existem fatores que afetam a
percepção. O estímulo visual predomina sobre os demais sentidos, caso ocorra um
conflito entre a visão e os demais sentidos. Características particulares do estímulo
que possam estabelecer diferenciações auxiliam uma melhor percepção. O
reconhecimento de detalhes é influenciado por experiências anteriores com estímulos
iguais ou semelhantes. Crenças, valores e conhecimentos prévios também afetam a
percepção. O estado emocional do indivíduo tem forte influência sobre a percepção, a
fixação da memória e, também, sobre a evocação ulterior do evento ocorrido. Caso o
indivíduo esteja envolvido na cena em questão, sua percepção será diferente daquela
em que ele não faz parte do ocorrido.
Segundo Mira Y Lopez (2009), a percepção é afetada pelas expectativas do
indivíduo e por seus hábitos (automatismos mentais). No que diz respeito às
expectativas, a consciência considera que ocorreu algo que ainda não aconteceu ou
que aconteceu em parte. Visto que, a tendência do cérebro é a de preencher lacunas.
Já os hábitos ou automatismos mentais, ainda segundo Mira y Lopez (2009),
impossibilitam o indivíduo de testemunhar de forma mais detalhada sobre a presença
ou ausência de especificidades do fato que passaram despercebidas. A interferência
disso é algo involuntário, a menos que a pessoa foque estritamente em algum detalhe,
a tendência é lembrar – se do acontecimento como um todo.
Alguns fatores podem atrapalhar a qualidade do testemunho no tocante à
percepção do fato ocorrido. O indivíduo que está voltado para a própria defesa em
decorrência de estresse elevado ou de violência sofrida tem a capacidade de
observação das informações reduzidas. Estar sob efeito de substâncias químicas que
alteram a consciência no ato da percepção do fato ocorrido, também desqualificam o
testemunho (Ambrosio, 2010).

1.2. Memória
A memória é o armazenamento de informações obtidas através de experiências
vividas, tendo capacidade de conservação e evocação das informações gravadas em
nosso cérebro, fazendo com que cada indivíduo seja como é (Izquierdo, 2006). Por
tratar-se de um processo reconstrutivo e retrospectivo, a memória é considerada a
função psíquica de maior destaque com relação à prova testemunhal, segundo a
literatura (Trindade, 2017).
A capacidade de fixar, conservar, evocar e reconhecer os acontecimentos
constituem a memória. Cada uma dessas capacidades corresponde a uma etapa:
fixação, conservação, evocação e reconhecimento do fato passado. Estabelecer
associações entre um fenômeno ocorrido e um novo corresponde ao que chamamos de
fixação. A literatura aponta que fatos vivenciados com maior carga afetiva tendem a
ser fixados mais facilmente, sendo que o processo de conservação da memória da
experiência do fato acontece de forma compartimentada. Já a evocação torna
consciente o que foi fixado e conservado anteriormente e o reconhecimento é a
reprodução do ocorrido, diferenciando as lembranças verdadeiras das falsas
(Trindade, 2017).
De acordo com Mira Y Lopez (2009), as condições orgânicas influenciam
fortemente o processo de armazenamento das informações. A reconstrução na mente
da experiência vivida (processo evocador) é influenciada pela vida afetiva. Segundo
Rovinski (2009), a complexidade do processo da memória humana está relacionada
com os cruzamentos entre o evento, o contexto, o estado de espírito e o conhecimento
do observador a respeito dos fatos ocorridos.
Eventos traumáticos por terem uma tendência significativa à repressão
apresentam uma maior dificuldade para serem lembrados. Segundo Mira Y Lopez
(2009), a repressão funciona de modo fragmentário, dificultando a evocação das
lembranças. Aparecem de forma incompleta ou deformada, pois vão se misturando
com as outras vivências do indivíduo.
No contexto forense, o depoimento é dramático, muitas vezes de situações
bastante difíceis e complexas. A testemunha é convocada a recordar e descrever um
evento que ocorreu há um determinado tempo e a esclarecer circunstâncias e detalhes
em um processo judicial. Quanto mais emotiva e intensa for a cena ou acontecimento
em questão, maior será a dificuldade da testemunha lembrar. Entram em ação os
mecanismos de defesa inconscientes do indivíduo de forma impositiva, sendo que os
fatos traumáticos e dolorosos acabam sendo esquecidos.
Não é aconselhável forçar ou ameaçar as testemunhas envolvidas em situações
intensas emocionalmente, pois a probabilidade do esquecimento involuntário é
elevado devido às circunstâncias de carga emocional intensa. Mecanismos psíquicos
inconscientes do indivíduo entram em ação para protegê-lo dos fatos traumáticos e
dolorosos, fazendo com que ocorra uma espécie de bloqueio das lembranças. Desta
forma, não é possível evocar a memória do que ocorreu para ser narrado.
Outro fator relevante que atua diretamente sobre a memória está relacionado
com o espaço temporal. O período de tempo entre o fato ocorrido e o testemunho terá
forte influência na evocação da memória, pois ocorrerá uma diminuição na fixação
das informações à medida que é ampliado esse período. Desta forma, quanto maior o
espaço temporal entre o evento e a narrativa do testemunho, menos preciso será a
memória evocada.
Mira Y Lopez (2009) aponta para outro fator importante com influência no
testemunho, a idade. Segundo o autor, as crianças são bastante sugestionáveis e os
idosos tendem a lembrar do passado mais distante de sua realidade e não tanto
passado recente.

1.3. Atenção
Segundo Kandel (2009), a atenção significa dar foco a algum acontecimento
que acontece ao nosso redor, assim como, também ter a capacidade de ignorá-lo.
Para o autor a atenção funciona como um filtro, a partir do qual alguns itens
ganham maior destaque em relação a outros. Em todos os momentos, estamos
envoltos por muitos estímulos sensoriais. Acabamos selecionando alguns estímulos
para o processamento, pois a capacidade do nosso cérebro de mensurar o ambiente
é maior do que em processar todos os estímulos.
Para Sternberg (2000) a atenção é o fenômeno pelo qual processamos
ativamente uma quantidade limitada de informações do grande número de
estímulos disponíveis por meio de nossos sentidos, de nossas memórias
armazenadas e de outros processos cognitivos. O fenômeno psicológico da atenção
nos possibilita o uso criterioso de nossos limitados recursos mentais.
Na Psicologia do testemunho, em função da atenção, versões distintas
podem ser apresentadas. Isso ocorre, pois, cada pessoa, por vezes não
intencionalmente, é capaz de atentar-se a particularidades descoincidentes em
relação a um mesmo evento (Trindade, 2017).
Conforme Sternberg (2000) a atenção elevada também abre caminho para
os processos de memória, de forma que sejamos mais capazes de memorizar a
informação à qual prestamos atenção do que a informação que ignoramos,
mostrando a importância e complementação da atenção às demais funções mentais.
O autor também cita que o sistema de atenção desempenha outras funções, além de
ignorar os estímulos conhecidos e sintonizar os novos.
Os dados sobre o que não se presta atenção geram enganos e informações
carentes de detalhes. Na hora do testemunho, a distraibilidade do indivíduo acarreta
dificuldades para referenciar o fato ocorrido. Entende-se distraibilidade como a
incapacidade de fixar a atenção sobre determinado estímulo (Trindade, 2017).

2. Narrativa do Fato
A linguagem verbal (palavra falada e escrita) e a não verbal (gestos,
expressões faciais) formam o que chamamos de comunicação humana. No Direito,
a comunicação jurídica utiliza-se dessa comunicação para seu trabalho (Trindade,
2017). Logo, a testemunha faz uso da linguagem verbal e não verbal para narrar a
memória do fato observado.
Não é comum as pessoas conseguirem observar com exatidão todos os
detalhes daquilo que foi presenciado e, ainda, reter na memória exatamente o
ocorrido e reproduzir com veracidade através da evocação consciente (Ambrosio,
2010). A transmissão da percepção e da memória daquilo que foi vivenciado
ocorre de maneira diferente para cada pessoa.
Sabe-se que o emocional afeta a expressão daquilo que é lembrado, por isso
pressionar ou ameaçar não ajuda na narrativa da testemunha. Ao contrário pode
surtir efeito contrário ao desejado, a testemunha acaba se retraindo. Um relato
espontâneo apresenta menos deformações, podendo revelar a linha de pensamento
e a intenção de quem está testemunhando (Trindade, 2010). O tipo de ambiente
onde está ocorrendo o interrogatório também tem influência, quanto mais hostil
representa ser o ambiente menos confortável a testemunha ficará. A linguagem
utilizada e os tipos de perguntas de quem está interrogando também são
importantes de serem observadas, pois linguagem muito técnica ou difícil de
entender pode atrapalhar a testemunha em sua narrativa Ambrósio (2010).
O que se pretende alcançar em um testemunho é uma descrição objetiva, no
entanto cada testemunha irá apresentar a sua versão. Visto que cada indivíduo
apresente de forma diferente suas perspectivas, foco nos detalhes, emoções, formas
de responder ou até mesmo de entender as perguntas que lhe foram feitas (Queirós,
2011 como citado em Ribas, 2011, p.41).

Considerações Finais
A Psicologia e o Direito compartilham os componentes psicológicos, os
sociais e os jurídicos relacionados à conduta humana, sob seus determinados pontos
de vista e que dialogam entre si. Para uma melhor atuação do psicólogo na área
jurídica é necessário que não fique limitado aos conhecimentos oriundos da
Psicologia, mas que busque compreender o campo jurídico. Buscar uma interlocução
com o Direito capaz de aumentar a compreensão do comportamento humano em sua
totalidade, levando em conta aspectos legais, afetivos e de comportamento. O mesmo
vale para os operadores do Direito que podem entender melhor a dinâmica do ser
humano estreitando a comunicação com o campo psicológico, tendo desta forma mais
subsídios para seu campo de atuação além do conhecimento jurídico.
O que é dito no campo do Direito tem um peso de verdade absoluta, leva a
consequências legais. É possível que um testemunho contenha erros de percepção, de
memória, de atenção e até mesmo de narração dos fatos. Fatores de ordem psicológica
afetam diretamente a qualidade do testemunho, por isso entender o funcionamento da
testemunha pode auxiliar no que está sendo investigado. O indivíduo, ao testemunhar
um fato, com certeza, interpreta-o em concordância com suas próprias vivências.
Logo a narrativa do que ocorreu será diferente para cada indivíduo, mesmo que tenha
presenciado o fato ao mesmo tempo.
A principal questão a se observar e refletir a partir da Psicologia do
testemunho, é a subjetividade da análise dos fatos e da escuta em Juízo. No sentido de
que é possível resumir essa análise à percepção, à atenção, à memória e à expressão
dos fatos. E que dessa maneira, existe a probabilidade de ser originadas dessas
funções mentais erros, excessos ou falhas. Também levando em consideração fatores
mais específicos, como condições sociais, familiares, sexo e idade. Para o Direito, a
testemunha para ser capacitada, necessita além de ter vivenciado o fato, ter a clareza
de expô-lo, para que só assim, possa ser tomada a decisão judicial. Lembrando que
qualquer relato que não caracterizar uma prova testemunhal pode ser usado como
indício.

Referências

AMBROSIO, G. (2010). Psicologia do testemunho. Revista Direito


Econômico Socioambiental, 1(2), 395-407.
BUTIERRES, M. C. & SANI, A. I. (2017). O depoimento de testemunhas em
contextos judiciais: aspectos psico-forenses. In: Trindade, J. & Molinari, F. e
colaboradores. Psicologia Forense: Novos Caminhos. Porto Alegre: Artmed.
FIORELLI, J. O. & MANGINI, R. C. R. (2018). Psicologia jurídica. São
Paulo: Editora Atlas.
IZQUIERDO, I. (2006). Memória. Porto Alegre: Artmed.
KANDEL, E. R. (2009). Em busca da memória. São Paulo: Companhia das
Letras.
MARINONI E ARENHART (2008). Processo de Conhecimento. São Paulo.
Editora Revista dos tribunais.
MIRA Y LOPEZ, E. (2009). Manual de psicologia jurídica. São Paulo: Vida
Livros.
RIBAS, C. A. B. D. (2011). A credibilidade do testemunho: a verdade e a
mentira nos tribunais. Dissertação de mestrado, Instituto de Ciências Biomédicas
Abel Salazar Universidade do Porto, Cidade do Porto, Portugal.
ROVINSKI, S. L. R. & CRUZ, R. M. (2009). Psicologia jurídica:
perspectivas teóricas e processos de intervenção. São Paulo: Vetor.
STANBERG, R. (1996). Psicologia Cognitiva, Porto Alegre: Artmed.
TRINDADE, J. (2017). Manual de psicologia jurídica para operadores do
direito. Porto Alegre: Livraria do advogado Editora.
ZIMERMAN, D. (1999). Fundamentos Psicanalíticos: teoria, técnica e
clínica. Porto Alegre: Artmed.
A VULNERABILIDADE DO DEPOIMENTO
INFANTIL: FALSAS MEMÓRIAS NO CRIME DE
ABUSO SEXUAL

19
Gabriela Nunes Barbará Dias
Isabela Ancinello Nogueira20

Introdução
Este capítulo tem como escopo evidenciar a vulnerabilidade do depoimento
infantil em casos de abuso sexual. Deve-se mencionar que, muitas vezes, esses
infantes sofrem, além do abuso sexual, um grande dano em suas vidas. A palavra da
vítima cumpre um papel decisivo nos crimes desta ordem, sendo a espécie probatória
mais relevante. A facilidade de distorções deste meio de prova se mostra justamente
por depender da recordação fidedigna dos fatos a serem lembrados pela pessoa que
depõem.
A definição de abuso sexual não pode ser considerada como simples de ser
detectada, haja vista que os limites entre os contatos físicos naturais familiares, por
exemplo, que também são importantes para um desenvolvimento saudável da criança
e aqueles que têm por objetivo satisfazer a lascívia dos adultos, não serem percebidos
facilmente. É no tocante a fragilidade da palavra das crianças que o fenômeno das
falsas memórias ganha destaque.
Neste caso especifico, é necessário enfatizar que o não relato de uma
experiência traumática, ou um relato incompleto, pode ocorrer por outros fatores que
não se relacionam diretamente com a memória, mas sim, por ter sido uma vivência
que ocasiona sentimentos de medo, vergonha ou culpa. Ainda neste capítulo, será
explanado o status que o entrevistador possui nestes crimes, fator determinante no
momento da coleta do depoimento, pois a criança está propensa a aceitar, direta ou

19
Advogada. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pós-
Graduada em Direito Penal e Processual Penal pelo IMED. Especialista em Psicologia Forense pela
Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica.
20
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pós-Graduanda
em Direito Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público. Especialista em Psicologia
Forense pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica.
indiretamente, o seu não saber, podendo ser induzida, pelas expectativas, crenças e,
principalmente, pelo poder que o entrevistador exerce nestes casos ao acolher um
discurso produzido para ser a verdade.
Por fim, será feita uma análise de como as falsas memórias são formadas,
assim como as causas mais frequentes que as ocasionam. Um dos mecanismos de
contaminação é o fenômeno da autossugestão, baseado naquilo que a própria criança
constrói na sua memória, acreditando ser verdadeira a deformação de um fato. Mas é
na indução mediante a sugestionabilidade que há a maior preocupação, que consiste
na incorporação de fatos distorcidos, de forma intencional ou acidental, que tendem a
induzir a memória da criança acerca do fato.

1. A Vulnerabilidade do Depoimento Infantil no Crime de Abuso Sexual

A violência sexual contra crianças é um tema que tem se tornado alvo de


diversas discussões no cenário mundial diante da sua peculiaridade quando se trata
do processo de revelação pelos infantes. Pois, nesse momento, é difícil encontrar
pilares para um diagnóstico baseado em evidências físicas, por ser um crime, no qual
a palavra da vítima é bastante valorizada. Em sua grande maioria, as crianças
apresentam um sentimento de aversão em prestar depoimentos, por temer
consequências contra si, tendo em vista que se sentem ameaçadas entre outros
anseios, o que gera dificuldade para uma investigação ser realizada.
Segundo Francesco Carnelluti, “Um dos encargos do processo penal está
justamente em identificar se o imputado é inocente ou culpado”.21
O depoimento da vítima deve ser analisado com extrema cautela, situação
justificada pela facilidade da criança em formar uma narrativa fantasiosa ou
induzida do que realmente aconteceu, haja vista a fragilidade da memória dos
infantes, na maioria dos casos em plena fase de desenvolvimento.
A Promotora de Justiça Patrícia Pimentel de oliveira Chambers Ramos, que
atua na Promotoria da Infância e da Juventude no Rio de Janeiro, leciona:
O tema é complexo, uma vez que identificar a autoria e a materialidade
do abuso sexual não é simples. A criança vítima de abuso sexual pode
não apresentar sintomas físicos, mas apenas psicológicos. Além disso, a
violência sexual nem sempre é realizada de forma agressiva, pelo
contrário. As carícias, os beijos, o toque suave, as promessas de
presentes, a atenção trazem para a criança um sentimento dúbio, no qual

21
CARNELLUTTI, Francesco. Misérias do processo penal. São Paulo: Pilares, 2006. p. 61.
ela própria imagina ter consentido com o ato.22

Nas palavras de Luciane Potter, “Entender a linguagem infantil requer


especialidades, principalmente quando se trata de uma entrevista no âmbito judicial,
em busca da “verdade” de fatos tipificados como crime”.23
Portanto, avaliar a confiabilidade do testemunho infantil exige sensibilidade
e percepção, visto seu caráter probatório significativo no procedimento processual
criminal, pois a criança, figura exposta no processo, estará prestando suas alegações
a respeito do crime cometido contra ela. Como bem menciona Aury Lopes Júnior,
“É necessário respeitar-se a dignidade da pessoa ouvida como testemunha. Esta
característica decorre diretamente do fundamento constitucional de forma a vedar a
utilização de práticas reprováveis”.24
A Promotora Lúcia da Silva de Melo entende que a sensibilidade do
profissional que lida com as situações de abuso sexual contra infante deve ser “mais
apurada” e afirma o seguinte: “Não são crimes como os demais. Percebi que a
formação jurídica que recebemos e a experiência trazida na atuação em outras áreas
de investigação penal não ajudariam em praticamente nada naquele momento”.25
O ato de testemunhar significa manifestar-se a respeito de um fato, para
assim alcançar sua veracidade. Nas palavras de Gustavo Noronha de Ávila:

Em diversas situações, a única prova de que a justiça dispõe é o


depoimento de uma testemunha. Sob outro viés, a única prova de que a
justiça dispõe são lembranças armazenadas pela testemunha acerca dos
fatos. Nos crimes em que não existem evidências materiais (como
ocorrem em muitas situações de abuso sexual), uma prova consistente
implica uma entrevista bem conduzida com a testemunha.26

O testemunho infantil nestes casos funciona como a “peça chave” no


procedimento da coleta da prova testemunhal. Segundo Lilian Milnitsky Stein:

O relato de uma criança pode ser a única evidência num processo


criminal. Em sua maioria, as crianças que testemunham estão
envolvidas em situações de violência e seus relatos dizem respeito a

22
PAULO, Beatrice Marinho e col. Psicologia na prática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p
229.
23
POTTER, Luciane. Vitimização secundária infanto juvenil e violência sexual intrafamiliar. Por uma
Política Pública de Redução de Danos. 2. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016. p. 207.
24
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 100.
25
PAULO, Beatrice Marinho e col. Psicologia na prática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p
246.
26
ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e sistema penal a prova testemunhal em xeque.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 126.
lembranças de experiências muitas vezes traumáticas. Com o propósito
de chegarem a conclusões confiáveis, os profissionais envolvidos na
avaliação de caso de abuso sexual infantil devem reunir o maior número
de elementos disponíveis sobre a suspeita levantada, o que inclui o
relato da criança sobre o episódio vivenciado, o exame de suas
condições físicas e psicológicas.27

Deve-se analisar o fato de que a memória apresenta inúmeras


peculiaridades, desde as situações mais cotidianas, até as situações que exigem
maior grau de importância. Com isso, é imprescindível ponderar quão fidedignas às
recordações das crianças podem ser.
Segundo José Osmir Fiorelli e Rosana Cathya Ragazzoni: “A memória e
o tempo não convivem em harmonia; daí a importância de se realizarem entrevistas,
reconstituições da cena e outras providências que possam estar relacionadas com as
lembranças, tão logo quanto possível”.28
Os traumas vividos por infantes podem acarretar em prejuízos ao processo
de recordação, o que, muitas vezes, torna o depoimento ambíguo. Assim, a
credibilidade do testemunho, dentre outros fatores, se baseia no resgate da
lembrança de um fato passado, porém, por estarmos tratando de seres humanos, que
são suscetíveis a falhas, devemos nos ater não só a memória da criança, mas
também a forma como está é abordada pelo entrevistador.
Nas palavras de Lilian Milnitsky Stein:

Muitas dessas crianças são abordadas de formas impróprias, tanto com


relação à sua condição de sujeitos em desenvolvimento, com perguntas
que não compreendem quanto com relação à sua condição de sujeitos
que foram vítimas de violência, com perguntas desnecessárias,
intrusivas e constrangedoras.29

A autora Marcia Ferreira Amendola, em seu livro “Crianças no labirinto das


acusações sustenta”, aponta que “se a criança não estiver motivada a revelar, entende-
se que ela possa estar assustada demais, provavelmente por ameaças do abusador,
ou possa estar resistente, seja por falta de confiança no entrevistador, seja por culpa
ou vergonha”.30

Ademais, as recordações naturais, sem induções externas tendem a ser

27
STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010. p. 158.
28
FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Psicologia jurídica. 8. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 345.
29
STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010. p. 180.
30
AMENDOLA, Marcia Ferreira. Crianças no labirinto das acusações – falsas alegações de abuso
sexual. Curitiba: Juruá, 2009. p. 87.
válidas, enquanto que respostas a perguntas específicas, onde há a probabilidade de
distorções são mais suscetíveis há um depoimento baseado em memórias falsas. É o
que se constata com as entrevistas com crianças entre dois e cinco anos de idade,
cujas perguntas são abertas, do tipo: o que aconteceu? Assim, obtém-se uma precisão
nas respostas, cuja incidência cai drasticamente quando os questionamentos são feitos
de maneira específica.
Daniel L. Schacter afirma:

Perguntas feitas ao participante em forma aberta, ou narrativa, resultam


em relatos mais acurados, porém, menos completos sobre os eventos.
Ao contrário, perguntas tendenciosas, que sugerem à pessoa uma
resposta, prejudicam a acuidade do relato.31

Desta maneira, o infante, não tendo uma capacidade cognitiva completa,


tende a aceitar ou inventar histórias. Na transcrição abaixo, apresentada por Rich
Lowry no seu livro “Creating Victims – False Charges of Sexual Abuse of
Children”, o autor demonstra a situação da entrevista de revelação do crime de
abuso sexual, realizada por dois investigadores (I¹ e I²) e a criança (C):

I¹: Ela colocou o garfo em seu ânus? Sim ou


não? C: Eu não sei, eu esqueci... eu te odeio.
I¹: Ah, vamos lá, Peter, se você me responder só isso, você poderá ir.
C: Eu te odeio!
I¹: Oh, não, você não
me odeia. C: Sim, eu te
odeio.
I¹: Você me ama eu sei. Foi só isso que ela fez com você? O que ela fez
com o seu ânus?
I²: O que ela fez com o seu ânus? Então você pode
ir. C: Eu esqueci.
I¹: Conta pra mim o que a Kelly fez no seu ânus e então você poderá
ir. Se você me disser o que ela fez com o seu ânus, vou deixar você ir.
C: Não
I¹: Por favor.
C: Tá bom, tá bom.
I²: Conta pra mim agora... O que a Kelly fez no seu
ânus? C: Vou tentar lembrar.
I²: Ela colocou alguma coisa em seu
ânus? C: Um garfo?
I²: Doeu muito?
Sangrou? C:
Não.32 (Grifos
nossos).

31
SCHACTER, Daniel L. The seven sins of memory: insgithts from cognitive neuroscience.
American Psychologist, v. 54, p. 182, 1999.
32
LOWRY, Rich. Creating victims – false charges of sexual abuse of children.Estados Unidos:
National Review, 1994. Feita por especialistas do Departamento de Serviços da Infância e Família
(DepartamentofYouthand Family Services – DYFS). (Transcrição feita do livro “Crianças no labirinto
das acusações – Falsas alegações de abuso sexual”. Curitiba: Juruá, 2009. p. 97).
Nota-se a desqualificação da palavra da vítima, transformando o processo de
revelação do abuso em um “jogo de adivinhação”. Rich Lowry assevera ainda que na
situação das perguntas não serem respondidas, os entrevistadores tendem a repeti-
las, incentivando-as a especular sobre o que poderia ter ocorrido.33
Segundo José Queiroz Telles de Camargo Aranha:

A maneira de perguntar tem profunda força influenciadora nas


respostas. Certos inquiridores, por violência psicológica, conduzem a
testemunha para onde desejam, obtendo a resposta pretendida. A
pergunta prepara a resposta desejada. Este questionamento deve sempre
estar livre de vícios de inteligência (sugerindo, insinuando) ou de
vontade (coação), admitindo-se, no entanto, que não há qualquer forma
conhecida de perguntar que não traga uma maior ou menor força
sugestória, sendo necessário observar aquelas que tenham menor grau
insinuatório.34

Logo, o principal objetivo do momento da revelação do abuso sexual está


fundamentado na análise de critérios de dignidade humana, principalmente no que
tange ao cuidado da imagem da criança entrevistada. Por serem as figuras
vulneráveis no processo, os infantes tendem a ser manipulados pelos entrevistadores
que em sua grande maioria utilizam um padrão destinado à confirmação de um abuso
sexual, alegando informações falsas ou questionamentos evasivos e mal formulados.
Lilian Milnitsky Stein sustenta:

Mesmo se tratando de episódios únicos de abuso sexual, os resultados


dos estudos são importantes, pois nos alertam que, ao relatar uma
experiência de abuso sexual uma criança não está apenas recordando
uma experiência única ou repetida, mas também está falando sobre algo
do qual ela usualmente não quer falar, por medo, sentimento de culpa ou
outros fatores. E é, justamente por isso, pelo fato de se tratar de um
assunto delicado e difícil para uma criança falar, que a forma como uma
criança é questionada e entrevistada é de extrema relevância, não apenas
por motivos técnicos, no sentido de se obter um relato de melhor
qualidade, mas especialmente por motivos éticos, no sentido de se
proteger a criança de questionamentos abusivos, muitas vezes
desnecessários e tecnicamente pouco válidos. A técnica de entrevista
utilizada para coletar o depoimento de uma criança vítima de abusos
sexuais pode ser um dos fatores que contribuem para aumentar a
resistência da criança a falar sobre o que aconteceu. A inexistência de
uma fase preparatória de entrevista, de um ambiente adequado para falar
e especialmente a falta de treinamento adequado do entrevistador pode
comprometer a qualidade do relato testemunhal, além de constranger a
criança que está testemunhando, gerando-lhe mais sofrimento35

33
AMENDOLA, Marcia Ferreira. Crianças no labirinto das acusações – falsas alegações de abuso
sexual. Curitiba: Juruá, 2009. p. 96.
34
ARANHA, Adalberto José Queiroz Telles de Camargo. Da prova no processo penal. 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 2006. p. 173.
35
STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010. p. 202-203.
Em seu livro “Prova Penal e Falsas Memórias”, Cristina Di Gesu afirma: “Há
tendência, por parte daquele que interroga o imputado e colhe declarações das
vítimas e testemunhas, se houver, em explorar unicamente a hipótese acusatória,
induzindo os questionamentos”.36
Alfred Binet analisou inúmeros erros com crianças que prestam depoimentos
a respeito do abuso sexual vivenciado. Alegando que:

O grau de sugestionabilidade das crianças mais jovens é


significativamente mais alto, em razão de dois fatores diferentes: a)
cognitio ou autossugestão, porque a criança desenvolve uma resposta
segundo sua expectativa do que deveria acontecer; e b) outro social, que
é o desejo de se ajustar às expectativas ou pressões de um
entrevistador.37
E é sob essa perspectiva que, reiteradamente, destaca-se a importância de se
ter a noção da sensibilidade necessária no momento do contato com a criança que irá
prestar seu depoimento. Ana Lúcia da Silva Melo refere:

Não devemos perder de vista que se trata de um ser humano em


formação. Um ser que certamente ficará afetado com toda aquela
estrutura da Justiça, onde até um adulto se sente constrangido muitas
vezes. Para a criança, tudo é maior e mais ameaçador. Seu silêncio ou
mudança de depoimento, em uma situação como essa, de forma alguma
poderá ser visto como verdade absoluta, sobre aquela primeira
manifestação colhida em fase inquisitorial, quando ele teve muito maior
proteção, ao falar a seu tempo, em ambiente propício, com profissional
habilitado. É inadiável que nós, operadores do Direito, tenhamos
conhecimento desses aspectos e de todas as variáveis envolvidas nessa
temática.38

Para ser reconstruído, o crime depende de um depoimento livre de opiniões


externas ao processo, considerando a relevância destas alegações para a tomada da
decisão. Nesse aspecto, Cristina di Gesu afirma:

Um dos grandes problemas da prova está na contaminação da


reconstrução de fatos passados, principalmente pelo modo como a prova
é colhida. O desvio do escopo do processo, ou seja, a procura desmedida
por uma “verdade real” –, acaba por influenciar a memória das pessoas
que depõem no processo e até mesmo antes dele.39

36
DI GESU, Cristina. Prova penal e falsas memórias. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2014.p. 19.
37
BINET, Alfred, apud PISA, Osnilda. Psicologia do testemunho: os riscos na inquirição de crianças.
Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade) - Programa Pós-Graduação em
Psicologia, Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2006. p. 13.
38
PAULO, Beatrice Marinho e col. Psicologia na prática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p
251.
39
DI GESU, op. cit., p. 165.
Existem diversos fatores de contaminação no tocante a coleta do
depoimento da vítima. Enrico Altavilla potencializou quais seriam os maiores
fatores de sua deformação, tais como:

A localização no tempo e no espaço (quando uma recordação é colocada


entre outras duas, pode-se errar ao determinar esses pontos de
referência); a reprodução verbal ou escrita (a imagem fixada, conservada
e evocada deve ser reproduzida verbal ou graficamente. Nesse processo
de tradução, pode ocorrer, além das alterações normais,
sugestionamento do observador).40

Osnilda Pisa e Lilian Milnitsky Stein alertam para o fato do uso do


sentimentalismo no momento da inquirição:

Os entrevistadores, presumindo estabelecer uma relação encorajadora


estão, na realidade, configurando um tom sentimental à entrevista pelo
uso, implícito ou explícito, de ameaças, subornos e recompensas. Por
exemplo, em contextos forenses, a fim de obter informações de crianças
testemunhas, os entrevistadores, às vezes fazem algumas das seguintes
declarações como “nós sabemos que algo ruim aconteceu, não é bom
deixar pessoas tocarem em você, você se sentirá melhor falando” ou
“não tenha medo de falar”. Eles fazem estas declarações para ajudar a
criança a revelar fatos que elas podem estar assustadas ou envergonhadas
para contar. No entanto, essas declarações encorajadoras podem criar
riscos de confiabilidade, porque, em alguns contextos, elas podem ser
ambíguas. Isto é, estas declarações podem, de fato, criar um tom
acusatório, que lhe reflete o viés do entrevistador, e um contexto que
pode promover revelações falsas.41

Nesse contexto, é nítido que existem diversos fatores que podem alterar o
verdadeiro teor do depoimento prestado. Entre os maiores riscos estão às falsas
memórias, pois versam nas lembranças de eventos que jamais ocorreram e que os
indivíduos acreditam ter vivenciado.

2. Falsas Memórias

O fenômeno das falsas memórias de acordo com Lilian Milnitsky Stein:

Podem apresentar consequências decisivas na vida dos indivíduos, como


por exemplo nos casos de abuso sexual, no qual os acusados foram
julgados e condenados, no entanto, posteriormente, outras evidências
apontaram que as acusações eram baseadas em falsas recordações. A

40
ALTVILLA, Enrico. Psicologia judiciária. Tradução de Fernando de Miranda. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 1945. v. V, p. 43.
41
PISA, Osnilda; STEIN, Lilian Milnitsky. Entrevista forense de crianças: técnicas de inquirição e
qualidade do testemunho. Porto Alegre: Artmed, 2006. p. 231-232.
criança acredita possuir lembranças de um ato libidinoso, mas que na
verdade nunca ocorreu.42

São reconhecidas pelo fato de estarem inseridas não só no contexto


psicológico, mas também no criminal. Conforme aponta a autora Giuliana Mazzoni,
“No caso das falsas memórias, o indivíduo narra fatos que não correspondem com a
realidade, porém obra de total boa-fé: age desta forma porque se recorda de dados
falsos, alheio ao fato de que suas lembranças foram modificadas e distorcidas.”43

O termo falsas memórias eclodiu em 1881, em Paris, quando foi empregado


por Theodule Ribot para avaliar o caso de um indivíduo de 34 anos que se lembrava
de fatos nunca ocorridos. A partir deste momento, as pesquisas a respeito da sugestão
na memória foram geridas por Alfred Binet em 1900, na França, e com Stern em
1910, na Alemanha. Estes estudiosos foram os primeiros a realizar uma pesquisa
aprofundada, comprovando a ilusão ou falsificação da lembrança em crianças.
Após vários estudos, surgiu nos anos de 1970, Elizabeth Loftus, uma das
maiores estudiosas do tema. Foi com ela que houve a inserção de um novo método
de pesquisa das falsas memórias, consistente na sugestão do falso conhecimento, o
que se denominou de Procedimento de Sugestão de Falsa Informação ou Sugestão.
Segundo a autora, cuida-se da inclusão de uma recordação falsa no meio de um
acontecimento que a pessoa vivenciou ou não, que causa o denominado efeito “falsa
informação”, no qual o indivíduo confia genuinamente ter vivido uma experiência
não verdadeira.
Em seu livro “As falsas lembranças”, Elizabeth Loftus relata ter realizado
centenas de experiências com mais de 20 mil pessoas, a fim de constatar como a
exposição a informações falsas distorce a memória. Ela verificou através da pesquisa
que “A informação errônea pode se imiscuir em nossas lembranças quando falamos
com outras pessoas, quando somos interrogados de maneira evocativa, ou quando
uma reportagem nos mostra um evento que nós próprios vivemos.”44

Assim sendo, através do estudo deste fenômeno, o que se pretende não é


aludir que todas as nossas memórias são falsas, e sim, procurar identificar essa
problemática, podendo, assim, buscar alternativas de uma melhor solução para os

42
STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010. p. 22.
43
MAZZONI, Giuliana. Se puede creer a um testigo? El testimonio y lãs trampas de la memória.
Madrid: Trotta, 2010. p. 17.
44
LOFTUS, Elizabeth. As falsas lembranças. In: Viver mente e cérebro, São Paulo, ano 2, n. 162, p.
90, 2006.
relatos de abuso sexual através de depoimentos mais confiáveis e seguros.

Neste contexto, o testemunho infantil, meio probatório mais utilizado no que


se refere aos crimes de abuso sexual, gera maiores anseios, pois há uma excessiva
confiança que é depositada na memória da criança. Fato esse que gera um grande
déficit no processo, pois, além de estar lidando com crianças que possuem uma
memória vulnerável não só pelo seu desenvolvimento, também pelo trauma e situação
constrangedora vividos. Alexandre Morais da Rosa e Gustavo Noronha de Ávila
asseveram: “A nossa memória não funciona como um gravador de vídeo, que possa
ser rebobinada e reprisada, pelo contrário a memória é cambiável”.45
A memória acerca de um fato pode ser influenciada a partir de informações
equivocadas sobre fatos que jamais ocorreram, como também pode haver alterações
de acontecimentos realmente vividos. Assim, “as falsas memórias podem ser
formadas de maneira natural, através da falha na interpretação de uma informação ou
ainda por uma falsa sugestão externa, acidental, ou deliberada, apresentada ao
indivíduo”.46
De acordo com os estudos de Loftus, existem dois tipos de falsas memórias:
as que decorrem de fatos que não existiram e o ressurgimento de recordações
reprimidas a partir da inflação da imaginação. Ainda conforme Loftus: “as falsas
lembranças são elaboradas pela combinação de lembranças verdadeiras e de
sugestões vindas de outras pessoas”.47
As falsas memórias possuem uma classificação, que advém de uma
distorção interna da memória ou de uma falsa informação criada pelo ambiente
externo no qual a criança convive. Estão classificadas como Espontâneas e como
Sugeridas.

As falsas memórias espontâneas são resultantes de distorções


endógenas, ou seja, internas ao sujeito. Essas distorções, também
denominadas de autossugeridas, ocorrem quando a lembrança é alterada
internamente, fruto do próprio funcionamento da memória, sem
interferência de uma fonte externa à pessoa. No que tange as falsas
memórias sugeridas, elas advêm da sugestão de falsa informação

45
ROSA, Alexandre Morais da; ÁVILA, Gustavo Noronha de. Memória é como diamante: quanto
mais falsa, mais perfeita”. Disponível em: <http://justificando.com/2014/09/08/memoria-e-como-
diamante-quanto-mais-falsa-mais-perfeita/>. Acesso em: 30 ago. 2017.
46
BARBOSA, Cláudia. Estudo experimental sobre emoção e falsas memórias. Porto Alegre, 2002.
Dissertação (Mestrado em Psicologia), Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002. p. 27.
47
LOFTUS, Elizabeth. As falsas lembranças. In: Viver mente e cérebro, São Paulo, ano 2, n. 162, p.
93, 2006.
externa ao sujeito, ocorrendo devido à aceitação de uma falsa
informação posterior ao evento ocorrido e a subsequente incorporação
na memória original.48
A autossugestão consiste no processo interno de cada indivíduo, no qual
acredita ser verdade aquilo que a sua memória lembra. Neste aspecto, as falsas
memórias são desenvolvidas de uma forma natural através de falhas na compreensão
de um fato ou informação que a pessoa recorda como se fossem verdadeiras.
Diferentemente do que ocorre com a mentira, que é um processo consciente de
inventar ou escamotear a realidade. “Assim, enquanto a mentira ou simulação por
pressão social tem base social, a falsa memória, sugerida ou espontânea é um
fenômeno de base mnemônica, mais precisamente uma lembrança.”49
Conforme leciona Cristina Di Gesu: “A testemunha não consegue separar o
verdadeiro do falso ou se deixa levar até a deformação dos fatos, sem uma
50
consciência clara acerca da deformação”. Portanto, as falsas memórias
autossugeridas decorrem de fatores endógenos, ou seja, uma distorção da memória
criada pela própria criança.
As falsas lembranças sugeridas, por sua vez, versam na tendência de um
indivíduo incorporar informações falsas, a partir de induções realizadas por outra
pessoa, ou ainda através da mídia, às suas reais recordações de forma intencional ou
acidental. Para Lilian Stein e Giovanni Pergher “Nestes casos, ocorre a sugestão à
pessoa de uma informação falsa, a qual não faz parte da sua experiência passada,
mas com ela apresenta compatibilidade, tornando-se, desta forma, plausível”.51
Conforme Gudjonsson e Clark “O efeito da sugestionabilidade da memória
pode ser definido como uma aceitação e subsequente incorporação na memória de
falsa informação posterior à ocorrência do evento original”.52

A presença de crianças nos Tribunais, como vítimas ou testemunhas, foi


chamando a atenção não só de operadores do direito, mas também do ramo da
psicologia, em especial, os estudiosos da memória, pois importa saber não apenas o

48
STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010. p. 167.
49
NEUFELD, Carmen B.;BRUST, Priscila G.; STEIN, Lilian M. Compreendendo o fenômeno das
falsas memórias. Falsas memórias. Fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto
Alegre: Artmed, 2010. p. 27.
50
DI GESU, Cristina. Prova penal e falsas memórias. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2014. p. 137.
51
STEIN, Lilian Milnitsky; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Criando falsas memórias em adultos por
meio de palavras associadas. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 354, 2001.
52
GUDJONSSON, Gisli H.; CLARK, Noel K. Suggestibility in police interrogation: a social
psychological model.Personality, Individual and Differences, v. 7, n. 1, p. 195-196, 1986.
que as crianças são capazes de lembrar, mas é imprescindível avaliar o quão preciso e
confiáveis podem ser as suas recordações. Após inúmeros estudos realizados no
âmbito da sugestionabilidade infantil, já existe a probabilidade de haver a identificação
de alguns fatores que contribuem para o surgimento deste fenômeno. Estes fatores
são classificados em duas categorias: relacionados às características das próprias
crianças (fatores cognitivos) e relacionados ao contexto da entrevista (ou fatores
sociais).
Dentre os principais fatores que contribuem para a sugestionabilidade
infantil, ganham destaque aqueles relacionados às características das crianças.
Conforme Lilian Stein:

Com relação ao desenvolvimento, é sabido que crianças em idade pré-


escolar são mais suscetíveis aos efeitos da interferência externa,
aceitando a sugestão de uma falsa informação e, portanto, apresentando
maior possibilidade de distorcer o seu relato em comparação a crianças
mais velhas, adolescentes e adultos.53

Sendo assim, “Depreende-se, então, que a sugestionabilidade é maior durante


os primeiros anos da infância, ou seja, em crianças entre 04 e 05 anos, e tende a
sofrer reduções, razão pela qual crianças de 10 a 12 anos são menos
sugestionáveis.”54

Com base nos estudos conduzidos no âmbito da Psicologia do


Desenvolvimento, Saywitz e Lyon associam a especial vulnerabilidade das crianças
pequenas aos efeitos da sugestionabilidade em três fatores:

• Crianças pequenas têm dificuldades em tarefas de recordação livre


quando são solicitadas a lembrarem dum evento, sem qualquer
estímulo ou pista;
• Crianças pequenas são deferentes, tendendo a respeitar e se submeter
às vontades dos adultos;
• As crianças possuem dificuldades de identificar a fonte da
informação recordada, se foi algo que elas viram ou que ouviram
alguém dizer.55

Cumpre destacar que a sugestionabilidade, de forma corriqueira, é motivada,


principalmente, pelos entrevistadores que são responsáveis por um contato maior com
a criança.

53
STEIN, LilianMilnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010. p. 168.
54
BADDELEY, Alan; ANDERSON, Michel; EYSENCK, Michel. Memória. Tradução de
ComéliaStolting. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 306.
55
SAYWITZ; LYON, 2002 apud STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas,
2010. p. 169.
Nas palavras de Lilian Milnitsky Stein:

Quando o entrevistador diz: “Não tenha medo de dizer o que


aconteceu...”, por exemplo, supõe, implicitamente, que há algo que
aconteceu que deve ser dito, sem ainda saber se este é o caso”.
“Outra forma sutil de contaminar o clima da entrevista ocorre quando o
entrevistador aumenta seu status de desigualdade em relação à criança.
As crianças são especialmente deferentes aos adultos, tendendo a
respeitar e a se submeter aos desejos deles, sendo este fator uma das
causas mais importantes da suscetibilidade à sugestão evidenciada nas
crianças”.56

De acordo com Aury Lopes Júnior:

É nos crimes sexuais o terreno mais perigoso da prova testemunhal (e,


claro, da palavra da vítima), pois é mais fértil para implantação de uma
falsa memória. Isso dá uma dimensão do que é possível criar em termos
de falsas memórias e das graves consequências penais e processuais que
elas podem gerar.57

Com isso, diante da eclosão das falsas memórias no processo penal, pretende-
se buscar novas alternativas de investigação com o fim de blindar a confiabilidade
do testemunho, preservando o depoimento de contaminações e garantindo um
procedimento fidedigno aos fatos.

Considerações Finais
Através desse estudo, viu-se que por trás de um depoimento é necessário
analisar os primórdios da sua realização, pois em crimes envolvendo crianças e
adolescentes, como é o caso do abuso sexual, o valor do meio probatório,
principalmente no que concerne a palavra da vítima, exige de seus operadores não
só o simples conhecimento da lei, mas sim a legítima capacidade de percepção
perante as alegações da criança vítima da violência. Porém, o sistema judiciário
vem apresentando inúmeras falhas no procedimento de coleta de depoimento com
os infantes, ante a incapacitação de seus operadores para dar o tratamento adequado
para as crianças que presenciaram um evento traumático.
No capítulo seguinte, cabe ressaltar que dentre a verdade legítima e a
mentira intencional, é que as falsas memórias têm auferido espaço. Pois, a
facilidade de induzir ou distorcer um fato ou falsa informação durante a má
realização do depoimento é enorme, e com isso a possibilidade de contaminar

56
STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010. p. 174.
57
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Porto
Alegre: Lumen Juris, 2011. v. I, p. 659.
totalmente a confiabilidade da prova prestada e ainda comprometer de forma decisiva
o andamento do processo. Ademais, sendo o depoimento da criança a principal
forma de se chegar a uma possível verdade, tendo em vista a dificuldade de outros
meios probatórios nos crimes dessa espécie, no qual não se deixam vestígios, deve
haver uma atenção na escuta da criança, ou seja, como a prática é realizada com os
menores, considerando- se a figura “autoritária” que o entrevistador representa no
momento da coleta de depoimento, pois sendo as crianças figuras vulneráveis, há
mais facilidade das falsas memórias se manifestarem, tanto de forma espontânea
como sugerida. Analisando a conjuntura do “labirinto” na qual a criança se encontra,
pudemos constatar que as fraturas se encontram da forma na qual os métodos de
oitiva são realizados, ainda que existam artifícios que visam à redução de danos nos
depoimentos prestados pelos infantes. E, a partir dessa concepção, não se deve
pensar em unicamente extrair verdades e alcançar condenações.
Assim, na forma como se opera a oitiva de crianças e adolescentes, resta
evidenciada a preocupação unicamente em se obter o resultado de condenação do
suposto abusador, e ainda a utilização da criança como meio de prova. Dessa
maneira, há o risco de que a louvável tentativa em lidar com a violência
institucional, possa ter como efeito outros traumas, pois a busca contínua da
“confirmação” de um crime pode acarretar em transgressões de direitos e ocasionar
ainda mais danos ao processo e seus envolvidos: vítima e réu.

Referências

ALTVILLA, Enrico. Psicologia judiciária. Tradução de Fernando de


Miranda. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1945. v. V.
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Tradução de ComéliaStolting. Porto Alegre: Artmed, 2011.
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Personalidade) - Programa Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Psicologia,
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STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas,
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; PERGHER, Giovanni Kuckartz.Criando falsas memórias em adultos


por meio de palavras associadas. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 14,
n. 2, p. 354, 2001.
DEPOIMENTO ESPECIAL: PREJUÍZO OU
BENEFÍCIO PARA A CRIANÇA VÍTIMA DE
VIOLÊNCIA SEXUAL?

Paula Motta Coelho Silva58

Introdução
Desde o primórdio, na sociedade medieval, assim como em épocas anteriores, a
criança que conseguisse sobreviver era inserida no mundo adulto e tratada como um
deles. Não possuíam os direitos básicos, desde muito pequenos adquiriam algum
ofício diário ou ajudavam os pais na lida, eram espancados, violentados sexualmente e
negligenciados. Mas a partir de 1914, em nível mundial, iniciativas começaram a ser
feitas em prol das crianças.
Na legislação brasileira, crianças e adolescentes passaram a ser considerados
sujeitos de direitos apenas em 1988, com o nascimento da Constituição Federal,
marco fundador na história do Brasil democrático. Além do reconhecimento como
sujeitos dos direitos básicos, como, à vida, à saúde, à educação, ao lazer, são
destinatários de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado.
Apesar das condições previstas na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do
Adolescente, diariamente, crianças e adolescentes têm seus direitos violados.
O presente estudo trata da criança ao longo da história, tanto no cenário
internacional como no Brasil. Também, aborda as diversas formas de violência
praticadas contra esses sujeitos e a dificuldade para a produção de provas nos crimes
sexuais. Por fim, analisa se o depoimento especial traz benefícios ou prejuízos ao
inquirir crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, adequando as práticas
jurídicas a população infantil, mesmo que as vítimas já tenham passado por uma
experiência traumática e tenham que se expor relatando os fatos.

58
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS.
Graduanda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS.
Formada em Psicologia Forense pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica – SBPJ.
1. A Criança ao longo da História
1.1 A Criança no Cenário Internacional

Não há muitos documentos que revelam o comportamento dos pais diante dos
seus filhos ao longo da história da humanidade, tornando-se um tanto complicado
escrever sobre a história da infância. Porém, é certo que crianças e adolescentes,
algum dia, sofreram ações criminosas ou omissões praticadas pelos seus próprios pais
ou responsáveis, independente da época ou cultura.59
Nas antigas civilizações, diversas formas de violência contra à criança estavam
legisladas, como corroboram o Código de Hamurábi (1728 - 1686 a.C), as Leis de
Rômulo, a Lei das XII Tábuas (303 - 304), entre outras. Na primeira legislação citada,
no Oriente Médio, as crianças teriam sua mão ou língua cortada em consequência de
ofender seus pais; na segunda, determinava que o filho pudesse ser morto pelo genitor
ao nascer disforme se houvesse o julgamento de cinco vizinhos e; na terceira, em
Roma, o chefe de família tinha o poder de castigar a mulher e os filhos e condená-los
a prisão.60
Foi em 1914 que aconteceu a primeira iniciativa, a ativista britânica Eglantyne
Jebb, criou a Save The Children Fund International Union e, um ano após, a Union
Internationale de Secourx aux Enfants, realizada em Genebra, com o objetivo de
buscar proteção às crianças vítimas da primeira Guerra Mundial. Alguns anos depois,
em 1921, foi criada a Union Internationale de Protection del´ Enfance, em Bruxelas.
Dois anos mais tarde, em agosto de 1923, Eglantyne apresentou um trabalho de
proteção à infância, em forma de carta, que foi adotada pelo Conselho Geral da União
Internacional de Socorro às crianças.61
A Declaração de Genebra abriu caminho para novas conquistas no cenário
internacional, sendo uma delas a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Passados mais de dez anos da Declaração dos Direitos Humanos, tem-se a Declaração
dos Direitos da Criança, em 20 de novembro de 1959. Foi através do trabalho da
Comissão dos Direitos Humanos da ONU que ocorreu a elaboração de dez princípios

59
ALBERTON, Mariza Silveira. Violação da infância: crimes abomináveis: humilham, machucam,
torturam e matam! Porto Alegre: AGE, 2005. p. 40.
60
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Inquirição da criança vítima de violência sexual: proteção ou
violação de direitos? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 24.
61
MONTEIRO, Lígia Cláudia Gonçalves. Educação e Direitos da Criança: perspectiva histórica e
desafios pedagógicos. Dissertação submetida à Universidade de Minho, Portugal, julho 2006. p. 117.
básicos proclamando então, a Declaração dos Direitos da Criança.62 Decorridos vinte
anos da Declaração em questão, em 1979, foi criado um grupo, formado por
representantes de quarenta e três países, organizado pela Comissão de Direitos
Humanos da ONU, para debater e traçar princípios comuns às crianças. Este grupo
compôs um texto que deu origem, somente dez anos após, em 20 de novembro de
1989, à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, composta por 54
artigos que garantiam os direitos dos menores de dezoito anos.63
Essa Convenção foi o primeiro instrumento que fez com que os Estados
obtivessem o mínimo de obrigação para com a criança, pois constituía-se em um
tratado de direito internacional público.64 Foi a Convenção, em 1988, que influenciou
a mudança na legislação brasileira quanto aos direitos da população infanto-juvenil.
Ao mesmo tempo em que o processo de reconhecimento foi lento, obteve iniciativas
elementares como a da ativista britânica Eglantyne Jebb. As medidas adotadas no
âmbito internacional refletiram-se, inclusive, no Brasil.

1.2 A Criança no Brasil no período posterior à Constituição Federal de


1988
Após um longo período de abandono e maus tratos às crianças na sociedade
colonial, imperial e no período republicano, é no início do século XX que começa a
ocorrer algumas mudanças relacionadas à infância nas leis brasileiras.
Pode-se dizer que, em 1988, o Brasil adotou uma nova postura, inclusive para
o cenário internacional. O reconhecimento da criança como sujeito de direito foi um
marco na história da sociedade brasileira, mas esse era só o primeiro passo de uma
longa trajetória. Muitas ações ainda foram feitas em prol da infância, sendo uma delas
o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Com a nova Constituição passa a ser exigida uma revisão dos direitos e
princípios nela previstos, entre esses, destaca-se a dignidade da pessoa humana,
prioridade absoluta à infância e o princípio do interesse maior da criança. O país
estava em um período de mobilizações sociais em busca de uma legislação que
beneficiasse a proteção integral da infância. O Código de Menores, que vigorava

62
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Inquirição da criança vítima de violência sexual: proteção ou
violação de direitos?. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 33-35.
63
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Inquirição da criança vítima de violência sexual: proteção ou
violação de direitos? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 35.
64
Ibidem, p. 36.
desde 1979, foi revogado em 1990, e, em 13 de julho do mesmo ano, é publicada a
Lei nº 8.069, Estatuto da Criança e do Adolescente, com o intuito de proteger, dar
assistência, direitos e deveres a toda criança.65
Além dos Conselhos Tutelares, outras mudanças foram observadas ao longo
dos anos. Houve mais proteção quanto ao trabalho do adolescente, a extinção do
trabalho infantil, as políticas públicas tornaram se mais eficazes, maior consciência e
denúncias em relação ao abuso e a exploração sexual de crianças, entre outras.
Embora a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente tenham dado
um largo passo, é sabido que há milhares de crianças espalhadas pelo mundo sendo
exploradas, discriminadas, negligenciadas e violentadas todos os dias.

2. A Criança Vítima de Violência


Nos dias de hoje, em nível mundial, crianças e adolescentes são violentadas
diariamente. Qualquer forma de maus-tratos à criança afetará sua dignidade e seu
desenvolvimento, especialmente, se a violência for contínua e se o agressor for
parente ou conhecido da vítima.
A palavra violência quando mencionada, geralmente, remete para a ideia de
violência física, porém, ela se apresente em diversas configurações e também pode ser
caracterizada como violência psicológica, fatal, sexual, dentre outras. A violência
física corresponde a uma ação que causa dor física, podendo ser desde um tapa
superficial até uma surra fatal. Normalmente os agressores são os próprios
responsáveis que utilizam este método para a educação de seus filhos.66
A violência física, por deixar marcas, torna-se mais fácil de ser detectada,
diferentemente da violência sexual. Há casos em que a violência sexual contra
crianças ou adolescentes engloba todos os tipos de violência. Quando o abusador não
consegue seus propósitos por meio de sedução e carinho, violenta a criança por meio
de força física, do terror, do domínio psicológico e da ameaça, podendo causar a
morte da vítima.67 A violência sexual está sujeita a acontecer em todas as classes
sociais, econômicas e culturais. As vítimas são crianças e adolescentes de ambos os
sexos, porém esta violência é entendida como uma violência de gênero, pois atinge
65
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Inquirição da criança vítima de violência sexual: proteção ou
violação de direitos? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 46-47.
66
AZEVEDO, Maria Amélia e GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Mania de bater: a punição
corporal doméstica de crianças e adolescentes no Brasil. São Paulo: Editora iglu,
2001.
67
Ibidem, p.123.
mais as meninas. A relação pode ocorrer entre pessoas do mesmo ou de diferentes
sexos.68
A violência sexual é classificada como extrafamiliar ou intrafamiliar. A
primeira é aquela praticada por pessoas que não fazem parte do convívio familiar, mas
podem ser conhecidas da vítima. Já a segunda, também conhecida por violência
sexual doméstica, é praticada contra uma criança ou adolescente por pessoas que
tenham algum grau de parentesco, relações de afinidade ou de responsabilidade com a
vítima. Em se tratando de violência intrafamiliar, o maior agente violador é o pai
biológico, seguido do padrasto.69
Mariza Alberton sustenta ainda, que a violência sexual intrafamiliar: “[...] é
revestida de um pacto, o chamado “complô do silêncio”, que beneficia os agressores,
mantendo o caso na invisibilidade. ”70
Quando o abuso sexual é praticado por algum parente ou responsável da
vítima, a situação se torna mais complicada, requerendo um cuidado maior da
intervenção terapêutica.71
A vítima, em geral, acaba por não revelar o abuso sexual para não gerar um
desequilíbrio familiar, também, por medo de não ser mais protegida, de ser castigada
por seus responsáveis e de ser taxada de mentirosa pela mãe, quando o abusador no
caso é o pai biológico ou padrasto, ou por seus parentes próximos.72
De acordo com site do Ministério Público do Paraná: “[...] o dito "complô do
silêncio", pode ser entendido como o silêncio mantido tanto pelos agentes das
agressões quanto pelos vitimizados, assim como pelos demais membros da família”.73
Nas palavras de Maria de Fátima Araújo:
O pai abusador, ao impor a lei do seu desejo, transgride a lei cultural que
proíbe o incesto, trai a confiança da criança e se aproveita da sua
vulnerabilidade e imaturidade. Garante o silêncio da vítima muitas vezes
com promessas, cumplicidade ou mesmo ameaças, e, frequentemente, se
beneficia da conivência ou cegueira da mãe e dos outros membros da
família. A criança vive uma situação traumática e conflituosa, permeada
por diferentes sentimentos onde se misturam medo, raiva, prazer, culpa e
desamparo. Tem raiva da mãe por não protegê-la e tem medo de contar,
com receio de que não acreditem nela ou a considerem culpada. A mãe,

68
ALBERTON, Mariza Silveira. Violação da infância: crimes abomináveis: humilham, machucam,
torturam e matam! Porto Alegre: AGE, 2005, p. p. 123.
69
Ibidem, p. 127-128.
70
Op. cit., p. 128.
71
Ibidem, p.124.
72
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violência sexual intrafamiliar: é possível proteger a criança?
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, 181p, p.101.
73
ROMERO, Karen Richter dos Santos. Crianças vítimas de abuso sexual: Aspectos psicológicos da
dinâmica familiar. Disponível em: <http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/livros/Vitimas_de_Abuso.pdf>.
por sua vez, também vive uma situação de muita confusão e ambiguidade
diante da suspeita ou constatação de que o marido ou companheiro abusa
sexualmente da filha. Frequentemente nega os indícios, denega suas
percepções, recusa-se a aceitar a realidade da traição do marido. Vive
sentimentos ambivalentes em relação à filha: ao mesmo tempo que sente
raiva e ciúme, sente-se culpada por não protegê-la. Na verdade, ela
também é vítima da violência familiar. Negar, desmentir a filha ou culpá-la
pela sedução é uma forma de suportar o impacto da violência, da desilusão
e da frustração diante da ameaça de desmoronamento da unidade familiar e
conjugal. Pode acontecer também estar a negação da mãe relacionada com
uma cumplicidade silenciosa, muito frequente em casais com conflitos
sexuais, onde a criança ocupa um lugar (função sexual) que não é dela,
amenizando assim o conflito conjugal. Em qualquer das situações, o
desmentido materno, a afirmação de que nada aconteceu, é o pior que pode
acontecer a uma criança que denuncia o abuso sexual.74

Todos os tipos de violência contra a criança, principalmente as domésticas,


independente do grau, deixarão marcas no seu desenvolvimento, mas são difíceis de
ser identificadas quando inexistem provas do fato. A violência sexual, por suas
particularidades, causam maiores dificuldades em seus aspectos físicos e psicológicos,
na sua identificação, avaliação e atendimento à criança.

3. A Violência Sexual: Dificuldades para a identificação, avaliação e


atendimento
A grande dificuldade para a identificação em casos de abuso sexual contra
crianças e adolescentes é a maneira sigilosa como acontece os fatos. Mas, assim como
na violência física, na violência sexual também há indicadores usados pelos
especialistas para a identificação de maus-tratos. Mariza Alberton (2005) refere como
indicadores as doenças sexualmente transmissíveis, infecções urinárias de repetição,
dor, inchaço e/ou escoriações na área genital ou anal, mudanças bruscas de
comportamento, depressão, comportamento agressivo, comportamento sexualizado
inadequado, aversão ao contato físico, entre outros.75
Esses indicadores servem para facilitar a identificação de uma violência
sexual, sendo investigados cuidadosamente por profissionais da área da saúde, pois se
analisados isoladamente não determinam a ocorrência do abuso. A violência sexual,
como já foi tratada anteriormente, na maioria das vezes vem acompanhada do complô
do silêncio, ou seja, a criança ou adolescente não vai falar da violência sofrida através

74
ARAUJO, Maria de Fátima. Violência e abuso sexual na família. Psicologia em estudo. Maringá,
v.7, n.2, p.3-11, jul./dez. 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pe/v7n2/v7n2a02.pdf>.
75
ALBERTON, Mariza Silveira. Violação da infância: crimes abomináveis: humilham, machucam,
torturam e matam! Porto Alegre: AGE, 2005, p.130.
das palavras, mas sim, do seu comportamento. Ao desconfiar que a criança esteja
sendo vítima de violência, o indicado é conversar de maneira acolhedora para que ela
possa se sentir confortável em falar sobre o assunto.
Ainda há carência quanto aos instrumentos de avaliação usados em casos de
abuso sexual contra a criança. A consolidação da avaliação envolve profissionais de
diversas áreas e diferentes formas de investigação, a fim de obter mais informações
que levem a descoberta, ou não, da violência.76
Claudio Simon Hutz e Débora Frizzo Macagnan da Silva (2002) acreditam
que um dos principais e mais difíceis desafios dos profissionais da área estão em
relação aos escassos métodos e técnicas disponíveis para a detecção de casos de abuso
sexual. Os autores afirmam que, além de escassos, na grande maioria, os instrumentos
não são adaptados para a realidade brasileira.77
A entrevista, o questionário e o exame clínico são métodos de avaliação que
ainda geram discussões quanto ao seu uso, qual a sua melhor forma de obter mais
informações e, ao mesmo tempo, a melhor forma de proteger a criança. Mas, vale
salientar que esses métodos, de alguma forma, ajudam as crianças e adolescentes a se
libertarem do abuso, e muitas vezes, é com o auxílio de atendimento profissional.
Mesmo as técnicas de avaliação sendo escassas e havendo muitas dificuldades
para a identificação, não há dúvidas de que o número de denúncias aumentou
gratativamente com as diferentes formas de atendimento as vítimas de violência. É
sabido que as dificuldades para a notificação dos casos de violência sexual contra
crianças ou adolescentes são muitas, começando pelo complô do silêncio, fazendo
com que muitos casos continuem na invisibilidade.

3.1 A Dificuldade para a Produção da Prova


A violência sexual contra crianças e adolescentes é um delito de difícil
investigação, comprovação material e de testemunho, pois, geralmente, ocorre entre
quatro paredes só havendo o testemunho da vítima. A ausência de marcas visíveis
ocasiona dificuldades nos atendimentos, por isso, a palavra da vítima tem sido de
suma importância para o processo penal.

76
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de; FERREIRA, Maria Helena Mariante. Violência sexual contra
crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 176.
77
HUTZ, Claudio Simon; SILVA, Débora Frizzo Macagnan da. Avaliação psicológica com crianças e
adolescentes em situação de risco. Avaliação psicológica, v. 1, n. 1, p. 73-79, 2002.
Nas palavras de Maria Helena Mariante Ferreira e Maria Regina Fay de
Azambuja:
A inexistência de vestígios físicos, a falta de testemunhas presenciais, uma
vez que a violência sexual intrafamiliar praticada contra a criança
geralmente se dá na clandestinidade, aliadas à negação que se faz presente
nos relatos da vítima, do abusador e dos demais familiares, levaram os
Tribunais a valorizar a palavra da vítima, o que pode acarretar a sua
exposição a inúmeros depoimentos no afã de produzir a prova e possibilitar
a condenação do réu. [...] A posição adotada pelos tribunais data de várias
décadas antecedentes à Constituição Federal de 1988. Nesse tempo, não se
questionava, nos efeitos judiciais e extrajudiciais, o melhor interesse da
criança. Desconhecia-se a amplitude dos prejuízos que o depoimento
infantil – colhido com o fim de produzir a prova da materialidade de um
crime, em regra, praticado por um familiar (pai, padrasto, avô, tio, irmão)
ou pessoa de suas relações – pudesse causar à vítima, bem como os danos
que a violência sexual acarreta e seu desenvolvimento social e, de forma
especial, a seu aparelho psíquico.78

De acordo com os artigos 202 79 e 208 80 do Código de Processo Penal,


qualquer pessoa pode ser testemunha, mas os menores de 14 anos são dispensados do
compromisso de falar a verdade. Já no Direito da Criança e do Adolescente, o
depoimento vem referido no artigo 1281 da Convenção Internacional sobre os Direitos
da Criança de 1989, estabelecendo que a criança possui o direito de ser ouvida no
processo judicial se afetada, assim como, no artigo 28, § 1º82 do Estatuto da Criança e
do Adolescente.
Maria Regina Fay de Azambuja destaca que há uma diferença:

É preciso distinguir a hipótese inovadora do artigo 28, § 1º, do ECA, da


inquirição cogente da criança presente nos processos criminais em que se
apura a existência de violência sexual. [...] No primeiro caso - feitos que
discutem a colocação em família substituta, - a oitiva da criança tem por
objetivo conhecer seus sentimentos e desejos, permitindo ao Julgador
considerá-los por ocasião da decisão; no segundo, diferentemente, o
objetivo da inquirição é a produção da prova, hipótese que não encontra
respaldo na aludida Convenção Internacional e tampouco no ordenamento
jurídico pátrio.83

78
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de; FERREIRA, Maria Helena Mariante. Violência sexual contra
crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 55.
79
Art. 202 - Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm
80
Idem. Art. 208.
81
Art. 12. - Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm
82
Art. 28, §1º. - Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l8069.htm.
83
AZAMBUJA, Maria Regina Fay. A Inquirição da Vítima de Violência Sexual Intrafamiliar à Luz do
Superior Interesse da Criança. Disponível em: http://www.mp.rs.gov.br/infancia/doutrina.
A doutrina brasileira é divergente acerca da obrigatoriedade do depoimento da
criança vítima de violência sexual no processo penal. 84 Alguns juristas negam a
inquirição como meio de prova às suas declarações, enquanto outros a consideram.85
Para amenizar o sofrimento da vítima incapaz de narrar o abuso com suas
próprias palavras, seja por sua idade ou pelo trauma sofrido, algumas delegacias de
proteção à criança contam com salas lúdicas, ou seja, salas apropriadas para crianças,
com brinquedos e materiais de pintura, fazendo com que elas relatem a situação
através da brincadeira. A vantagem desse depoimento é que é menos intimidadora,
evita a revitimização e a criança está acompanhada de psicólogos especializados e
assistentes sociais.86
Fernando Luz, pesquisador do Programa Nacional de Enfrentamento da
Violência Sexual contra crianças e Adolescentes, defende que para evitar a
revitimização a Justiça deva aceitar a produção antecipada de provas, colhidas por
psicólogos peritos no assunto. E que caso seja necessário ouvir a vítima durante o
julgamento, acredita que a melhor maneira é fazer em uma sala anexa à da audiência,
sem a presença do agressor, do juiz, do promotor e do público, ou seja, a criança ser
inquirida através do depoimento especial.87
A difícil revelação dos fatos pode se dar por inúmeros motivos, seja pelo
vínculo de afetividade com o abusador, por medo de perder a proteção materna ou
pela dificuldade dos familiares lidarem com seu depoimento, este necessita de
aprimoramento para tornar-se um meio de produção de provas qualificado, sem haver
a revitalização e mais sofrimento por parte da vítima.

4. O Depoimento Especial
O Depoimento Especial, antigamente chamado de Depoimento sem Dano, foi
criado em maio de 2003 pelo magistrado gaúcho, José Antônio Daltoé Cézar, da 2ª
Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre. A técnica implantada destina-se a
inquirição de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violências, na maioria

84
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de; FERREIRA, Maria Helena Mariante. Violência sexual contra
crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 60.
85
NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1997, 25.ed.
p. 144-145.
86
FALTA de provas materiais dificulta investigação de crimes sexuais infantojuvenis. Correio
Braziliense, Brasília, 07 fev. 2010. Disponível em:
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2010/02/07/interna_brasil,171965/falta-de-
provas-materiais-dificulta-investigacao-de-crimes-sexuais-infantojuvenis.shtml.
87
Idem.
dos casos sexuais, com o intuito de evitar que as vítimas passem por mais uma
inquirição durante o andamento do processo judicial.88
Enquanto o Juiz, o Ministério Público, os advogados, o acusado e os
servidores judiciais estão na sala de audiência, a realização da inquirição da criança
acontece em uma sala anexa, com o acompanhamento de um técnico treinado,
psicólogo ou assistente social. A sala é apropriada para a criança, aconchegante e com
brinquedos, onde o profissional especializado, usando fones de ouvido, toma o
depoimento, permitindo que o magistrado faça perguntas direcionadas à criança. As
salas são integradas através de um sistema de áudio e vídeo, facilitando o
acompanhamento do relato. O depoimento da criança é filmado, transcrito e anexado
ao processo como meio de prova e para fins de consulta.89
Um dos argumentos mais fortes para a implementação do Depoimento
Especial é a dificuldade de provas, acarretando, consequentemente, um número
pequeno de condenações. Por o abuso sexual intrafamiliar ocorrer entre quatro
paredes, não havendo testemunhas, apenas a vítima, que no caso é menor de idade,
torna-se este a principal e única prova a ser produzida.90
Outro argumento bastante utilizado é que o Depoimento Especial evita a
revitimização e o constrangimento das crianças, uma vez que, já foi gravado e
anexado ao processo, não tendo que repeti-lo, pois geralmente, o depoimento acontece
mais de uma vez ao longo do processo judicial.91 O técnico-entrevistador age dessa
forma acolhedora para mostrar a criança que ela não é apenas um meio de chegar à
prova, mas sim, uma criança valorizada e dotada de direitos.92
O advogado Ângelo Carbone é defensor desse método e acredita que no
denominado caso de Isabella, que ocorreu em São Paulo em abril de 2008, o
depoimento do irmão Pietro de 3 anos era crucial para a solução do crime. O
advogado não acredita que possa haver traumas futuros ou possibilidade de
contestação do depoimento.93

88
NASCIMENTO, André. Depoimento sem dano: considerações jurídico-processuais. Disponível em:
http://www.aasptjsp.org.br/sites/default/files/Depoimento%20sem%20dano%20-
%20semin%C3%A1rio%2018-set-09.pdf.
89
Idem.
90
BRITO, Leila Maria Torraca de. Diga-me agora... O Depoimento sem Dano em análise. Psicologia
Clínica, Rio de Janeiro, vol. 20, n. 2, p.113-125, 2008.
91
Ibid., p.113-125.
92
Ibid., p.77.
93
CHRISTÓFARO, Danilo Fernandes. Depoimento de criança é quase "uma sessão de tortura",
comenta o Prof. Luiz Flávio Gomes ao site Última Instância. 2008. Disponível em:
http://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20080623165544843&mode=print.
Os que são favoráveis ao Depoimento Especial acreditam que é uma forma
rápida de inquirir as crianças a fim de obter a prova, moderna, eficiente e que evita a
revitimização. Porém, essa forma de inquirição não agradou a todos, havendo
discordâncias quanto à proteção da criança e a participação dos profissionais da área
da saúde.
Leila Maria Torraca de Brito (2008) aponta que além de não ser uma tarefa
para psicólogos, a revitimização da criança pode ocorrer tanto pela ausência como
pelo excesso de intervenções, bem como por intervenções inadequadas.94
Nas palavras de Maria Regina Fay de Azambuja:

Não estamos a sustentar que a criança deva ser mantida à margem do


processo judicial. Afirmamos, no entanto, que o tratamento a ela dispensado
precisa estar em consonância com a Convenção das Nações Unidas sobre os
Direitos da Criança, sendo-lhe oportunizado ser levada à presença da
autoridade judiciária sempre que desejar revelar fatos e fazer pedidos, em
respeito a sua condição de pessoa em fase especial de desenvolvimento.
Nesse sentido, o item XI da Resolução nº 20/2005 assegura a participação da
criança nas audiências e julgamentos desde que previamente planejada e
assegurada a continuidade do seu relacionamento com os profissionais que
vêm mantendo contato com ela durante todo o desenrolar do processo.
Direito de participar e de ser ouvida são garantias da criança, o que não pode
ser confundido com o dever de ser inquirida com o fim de produzir prova de
fato em que figura como vítima.95

Uma vez que a criança é levada para depor em uma sala separada, mas
continua sendo observada pelo juiz, promotor, advogados e pelo réu, pode ser
induzida a acreditar que está sozinha na companhia da psicóloga e contar sobre a
violência sofrida. Mas essa técnica inquisitória cessa com a dignidade e o respeito à
criança e ao adolescente, violando a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do
Adolescente.96
Submeter a criança à inquirição pela facilidade na produção de prova só faz
com que os princípios que fundamentam a Constituição Federal, o Estatuto da Criança
e do Adolescente e a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito da Criança e do
Adolescente caminhem a passos lentos na contramão. Fazer com que a criança seja
avaliada por uma equipe interdisciplinar, composta por psicólogos, assistentes sociais,

94
BRITO, Leila Maria Torraca de. Diga-me agora...O Depoimento sem Dano em análise. Psicologia
Clínica, Rio de Janeiro, vol. 20, n. 2, p.113-125, 2008.
95
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Inquirição da criança vítima de violência sexual: proteção ou
violação de direitos? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 177-178.
96
ALEIXO, K. C. A extração da verdade e as técnicas inquisitórias voltadas para a criança e o
adolescente. Psicologia Clínica, v. 20, n. 2, p. 103-111, 2008.
psiquiatras mostra-se o caminho mais adequado para a proteção da criança e para a
não revitimização.97
Resta considerar que para a inquirição ser benéfica diante das vítimas de
violência sexual, é preciso que novas estruturas sejam analisadas e testadas e,
enquanto isso não ocorrer o princípio da dignidade da criança continuará sendo ferido
e a proteção não será alcançada.

Considerações Finais
Ao estudar a criança ao longo da história, percebe-se que a relação com seus
pais, seus direitos adquiridos, seu bem estar e sua proteção não são apenas sinais de
uma sociedade civil, mas também indicadores importantes para o futuro do nosso
país. Os últimos 30 anos mostram as grandes mudanças ocorridas em favor da
população infantil, que passou a ser vista pelo mundo como sendo o futuro da nação,
o interesse maior da sociedade em relação à proteção da criança, principalmente seus
direitos adquiridos, podendo ser livres de qualquer forma de maus-tratos.
Ficou demonstrado que existem inúmeras formas de violência contra a
criança, que sua identificação é difícil, principalmente, em casos de abusos sexuais
intrafamiliares que, via de regra, vem acompanhado do complô da negação. Também,
mostra que a principal problemática no campo da violência sexual é a produção de
prova, conferindo à vítima a obrigação de prestar seu depoimento em juízo, ficando
responsável pela condenação ou absolvição do agressor, que muitas vezes é seu
familiar.
A análise do material estudado aponta para o Depoimento Especial como
forma de inquirição a fim de descobrir se a violência de fato ocorreu ou não. O
Depoimento Especial é um avanço para alguns juristas que necessitam dessa prova
para condenação do agressor. Entretanto, há quem diga que este método utilizado é
prejudicial para a criança, fazendo lembrar e relatar os traumas, sofrendo mais uma
vez.
Portanto, acredito que a melhor maneira para obter a prova em casos de
violência sexual é através de uma avaliação com uma equipe interdisciplinar,
capacitada para desenvolver o trabalho, protegendo todos os direitos da criança e do

97
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de; FERREIRA, Maria Helena Mariante. Violência sexual contra
crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 55.
adolescentes descritos na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito da Criança e
do Adolescente, na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. O
Sistema de Justiça mostra-se atento ao seu papel a medida que a nova legislação (Lei
nº 13.431/17) assume um compromisso com o oferecimento de suporte psicológico
especializado à vítima, bem como limitações as intervenções. É importante que o
sistema legal busque conciliar suas necessidades a realidade do funcionamento
psicológico das crianças e adolescentes.

Referências

ALBERTON, Mariza Silveira. Violação da infância: crimes abomináveis:


humilham, machucam, torturam e matam! Porto Alegre: AGE, 2005.
ALEIXO, K. C. A extração da verdade e as técnicas inquisitórias voltadas para
a criança e o adolescente. Psicologia Clínica, v. 20, n. 2, 2008.
ARAUJO, Maria de Fátima. Violência e abuso sexual na família. Psicologia
em estudo. Maringá, v.7, n.2, jul./dez. 2002. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/pe/v7n2/v7n2a02.pdf>.
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de; FERREIRA, Maria Helena Mariante.
Violência sexual contra crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011.
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Inquirição da criança vítima de violência
sexual: proteção ou violação de direitos? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violência sexual intrafamiliar: é possível
proteger a criança? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
AZEVEDO, Maria Amélia e GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Mania
de bater: a punição corporal doméstica de crianças e adolescentes no Brasil. São
Paulo: Editora iglu, 2001.
BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>.
BRITO, Leila Maria Torraca de. Diga-me agora... O Depoimento sem Dano
em análise. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, vol. 20, n. 2, 2008.
CHRISTÓFARO, Danilo Fernandes. Depoimento de criança é quase "uma
sessão de tortura", comenta o Prof. Luiz Flávio Gomes ao site Última Instância. 2008.
Disponívelem:<http://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=2008062316554
4843&mode=print>.
FALTA de provas materiais dificulta investigação de crimes sexuais
infantojuvenis. Correio Braziliense, Brasília, 07 fev. 2010. Disponível em:
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2010/02/07/interna_brasil,171
965/falta-de-provas-materiais-dificulta-investigacao-de-crimes-sexuais-
infantojuvenis.shtml.
HUTZ, Claudio Simon; SILVA, Débora Frizzo Macagnan da. Avaliação
psicológica com crianças e adolescentes em situação de risco. Avaliação psicológica,
v. 1, n. 1, 2002.
MONTEIRO, Lígia Cláudia Gonçalves. Educação e Direitos da Criança:
perspectiva histórica e desafios pedagógicos. Dissertação submetida à Universidade
de Minho, Portugal, julho, 2006.
NASCIMENTO, André. Depoimento sem dano: considerações jurídico-
processuais. Disponível em:
<http://www.aasptjsp.org.br/sites/default/files/Depoimento%20sem%20dano%20-
%20semin%C3%A1rio%2018-set-09.pdf>.
NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de direito processual penal. São
Paulo: Saraiva, 1997, ed. 25.
ROMERO, Karen Richter dos Santos. Crianças vítimas de abuso sexual:
Aspectos psicológicos da dinâmica familiar. Disponível em:
<http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/livros/Vitimas_de_Abuso.pdf>
O PROCESSO COMO SINTOMA: A MEDIAÇÃO
COMO MÉTODO AUTOCOMPOSITIVO
ADEQUADO

Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler 98

“Ser ou não ser”. Hamlet – Peça de William Shakespeare

Introdução
Narrativas são sempre fragmentos de memórias. Reminiscências. Recortes.
Mas quem fala e escreve pensa uma coisa e quem lê e ouve, entende o que quiser.
Sendo assim, a comunicação, a linguagem nada provam senão que a sociedade é
transdisciplinar, pluralista, enlaçada em conhecimentos próprios de várias profissões e
visões de mundo. Considerando a diversidade de relações ambientais, os conflitos
humanos, muitas vezes decorrem da falta de comunicação e auto responsabilidade
entre os sujeitos. Sendo assim, cada um tem a sua verdade, algo que diz mais sobre o
sujeito do que sobre os fatos. O presente trabalho visa repensar a supremacia do
método científico no Direito, muito utilizado da ciência jurídica, mas esquecido da
ciência social. Repensar o que são realmente os fatos de direito e de fato no contexto
de conflituosidade e a consideração dos sentimentos, fé e emoções nesses conflitos.
O convite é dar luz a novos ângulos de tempo e espaço que admitam múltiplas formas,
pontos de vista e necessidades. A proposta é um novo paradigma para o Direito que
será desconstruído e distorcido da noção atual.
A interrelação de Direito aplicado à Psicologia Jurídica ou Forense, com
enfoque ora científico contemplativo, ora empírico, ora filosófico, ora teológico, para
98
Advogada. Especialista em Processo Civil. Mediadora. Conciliadora. Consultora. Palestrante.
Articulista, Líder do Núcleo Jurídico do Instituto do Câncer Infantil/RS. Membro da Comissão da
Saúde OAB/RS. Aluna Ouvinte no PPG/UFRGS. Integrante do Grupo de Estudos em Processo Civil
AJURIS. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família- IBDFAM. Técnica em Transações
Imobiliárias- TTI. Membro da Anistia Internacional. Integrante da Cruz Vermelha. Pós Graduanda em
Psicologia Forense. Produtora Musical Artística e Executiva. Parceira Voluntária. Facilitadora de
grupos e processos regenerativos para inovação e sustentabilidade sistêmica. Multiplicadora da
metodologia Dragon Dreaming, Comunicação Não Violenta, Programação Neuro Linguística,
Inteligência Emocional, Constelação Familiar, Coach, Barra de Acess, Design Thinking, Art of
Holsting, Círculos de Paz, Justiça Restaurativa, Sagrado Feminino, Meditação e demais práticas
sistêmicas, pessoais, de diálogo, compartilhamento, improvisação, facilitação e co-criação de inovação.
Ouvinte no Círculo Psicanalítico Centro Luis Guedes. E-mail: marianainternet@gmail.com.
exercitar a transdisciplinaridade, a imparcialidade, sem juízos de valor, por outras
perspectivas do que as próprias medidas, garantindo a integridade da diversidade e
mantendo a ecologia das relações entre o homem e seu meio físico, moral, social e
energético.
O processo judicial, muitas vezes, é um sintoma, pois por trás do conflito
jurídico, existe a lide social, que é muito maior e mais complexa do que aparece no
processo. O maior sintoma é a crescente judicialização dos problemas serem julgados
pelo Poder Judiciário. Sintoma de que ninguém é responsável por nada e tem sempre
alguém culpado pelos descontentamentos e frustrações de expectativas e idealizações
das crenças e opiniões que causam a ausência de efetividade e legitimidade do Poder
Judiciário. Judicialização não é saúde, é sintoma de doença! Estamos em crise com o
excesso de processos, com a educação, com a família, com o trabalho, com a saúde,
com o método científico. O sistema está com infecção generalizada devido a
linguagem e desconsideração da pessoa com um ser integrado. Viciado. O processo
como sintoma revoluciona o conceito de que acesso à justiça é diferente de acesso ao
Poder Judiciário. O processo como sintoma representa, também, a necessidade de
manutenção de vínculo entre as pessoas que seja por amor ou ódio ou,
reconhecimento ou conhecimento, fazem o ser e o dever ser, se confundirem, servindo
o aparato judiciário como palco. Nesse cenário do mundo como palco, a mediação
surge como ferramenta adequada que consagra a diversidade e facilita a gestão da
justiça em se apropriar da psicologia para criar ilimitadas opções de entendimento,
acolhendo a sustentabilidade emocional e social da demanda.
A transdisciplinaridade é aberta e possível para ser construída na área de
conhecimentos diversos, pois ao mesmo tempo que mantém o rigor epistemológico
(mesmo que filosófico ou científico contemplativo) é flexível à mutações,
reconhecendo a pluralidade de horizontes. Cruzamento esse, heterogêneo, não linear,
híbrido, tecendo uma rede de geometria variável. A transdisciplinaridade leva ao
pensamento sistêmico porque pode parecer caótico, mas a desordem (entropia)
estimula os processos de auto-organização. A estética e geometria do irregular, do
quebrado, do retorcido, do enredado está presente nos nossos estudos. Todas as visões
de mundo são bem vindas.
1. Fundamentos de Fato e de Direito
Todo o processo judicial obedece uma forma lógica prescrita em lei, um
procedimento, um padrão, protocolo que tem as regras escritas no Código de Processo
Civil. Os fundamentos de fato e de direito obedecem ao princípio da demanda,
obrigatório em todos os pedidos judiciais e nas razões da decisão, isto é na sentença.
Investigar os fundamentos que, de fato, levaram a pessoa a litigar, a pleitear por algo é
reconhecer a natureza humana e a psicologia. Acolher o sentimento e a emoção no
meio judicial gera um impacto social no processo porque contextualiza cada história e
narrativa com razões maiores do que qualquer lei ou doutrina ou jurisprudência possa
alcançar. A Psicologia Forense é uma ferramenta que uxilia a investigar o Direito, a
rever sua conduta, pois ele não se sustenta através dos fundamento de direito. Fatos
devem ser provados. Todo processo busca provar a verdade de visões recortadas. No
entanto, a atualidade exige romper com âmbito das visões fragmentadas, responsáveis
por abordagens reducionistas. A conexão de saberes ensina que julgar não é o mais
importante. Avaliar, reconhecer a observação e a comunicação convida a buscar pela
essência. Afinal na maior parte das ações judiciais se busca ter razão, a lógica, e não a
felicidade. A hierarquização dos argumentos jurídicos aos sociais, à ciência, ao
empirismo desempodera o Direito e reforça a sociedade de competição e de padrões.
Os dogmas do Direito estão muito concentrados na ciência jurídica, onde a
cultura é ganhar ou perder. Há uma insustentabilidade de recursos, de palavras, de
prazos de espaço e de tempo no processo. Na cultura da abundância a ordem é ganhar
ou ganhar. O juiz tem a função de julgar, de fazer juízo de valor e fundamentar as
razões de fato e de direito que acarretaram numa judicialização perigosa para a saúde.
O próprio princípio da imparcialidade é questionável. Todos os seres humanos são
orientados por sua base ideológica. No entanto, sua base ideológica pode ser inclusiva
ou exclusiva. Os operadores dos Direito, diante do diagnóstico devem se reinventar.
Fatos são atos de conhecimento. Como se usam as palavras para descrever as coisas.
O juiz é o último narrador. O discurso jurídico extenso, com vocabulário inintendível
afasta qualquer possibilidade de compreensão.
O Código de Processo Civil de 2015 autorizou o saneamento compartilhado
do processo, que é a forma pela qual as partes podem opinar e auxiliar na organização
processual e na produção de provas. Esta intervenção, que antes era uma decisão
solitária do juiz, passou a ser colaborativa e integrada, mostrando que é possível um
processo mais humanizado. O saneamento tem o objetivo de dar maior eficiência ao
processo e evita que a demanda evolua sem condições reais de prosseguir até a
sentença de mérito. Os fundamentos jurídicos utilizados na decisão devem ser
justificados, no sentido de que o magistrado tem o dever de consultar as partes, sobre
questões de fato, inclusive sobre questões jurídicas relevantes à solução da causa que
não tiverem sido levantadas. No novo modelo, o saneamento compartilhado será
utilizado, a critério do juiz, quando a matéria apresentar complexidade de fato ou
direito, o que é inovação e saudável saber que os juízem já podem se apropriar da
ferramenta sistêmica. O saneamento compartilhado apresenta-se como resultado das
premissas que pautam o Código de Processo Civil de 2015, consignando as conquistas
da Constituição Federal, que está comemorando 30 anos. Constituição cidadã, que
empoderou os direitos e convidou a participação efetiva das pessoas. O estudo desta
base legal identifica que é lícito e possível ser juiz sistêmico e operador do direito
colaborativo, conduzindo ao um processo mais sustentável e humanizado.

2. Multidisciplinaridade
O olhar sistêmico exige o estudo e desenvolvimento de várias disciplinas ao
mesmo tempo e acolhe todas as possibilidades. Foi assim que muitos métodos de
trabalhos colaborativos surgiram e foram desenvolvidos pela autora ao longo dos
últimos anos, entre eles o Dragon Dreaming, Terapia Comunitária, a Art of Holting,
Constelação Familiar e Sistêmica, Mindfulness, Mediação de Conflitos, Círculos de
Construção de Paz, Justiça Restaurativa, Comunicação Não Violenta, Programação
Neurolinguística, Danças Circulares Sagradas e Desing Think. Muitas expressões
estrangeiras reforçam a impresso de que muitos modelos são compatíveis com a
grande diversidade de valores e culturas, embora nosso modelo de justiça seja o
modelo europeu. O nosso sistema processual tem correntes americanas, europeias e
nacionais. É plural. Nosso Estado é laico. Não apoia nem discrimina religião. Assim,
nesse contexto a mediação é consagrada como modelo sistêmico devido aos vários
modelos de práticas de mediação: modelo tradicional linear de Harvard (mediação
tradicional), modelo narrativo, transformativo, warratiano, avaliativo.
Todas as vivências supracitadas possuem metodologias próprias, com
vocabulário específico, uso da palavra e do silêncio, para realizar projetos criativos,
colaborativos e sustentáveis com alto engajamento e conexão dos participantes. No
Brasil, as ferramentas vêm sendo utilizadas nas empresas, bancos, universidades,
órgãos governamentais, em empreendimentos indígenas, movimentos populares,
escolas, ecovilas, organizações sem fins lucrativos, startups e rompe com a
hierarquização nos espaços, por isso, são formas disruptivas porque rompem com um
padrão.
Quando o indivíduo se abre e fala sobre o que lhe aconteceu, sai da posição de
vítima para uma posição de humanidade, de perceber que faz parte da existência
perder, ganhar, se apegar e desapegar. Valorizar a dimensão terapêutica, a herança
cultural dos nossos antepassados indígenas, aborígenes, gerações de familiares, a
história, as religiões, filosofias, ideologias, bem como o saber produzido pela
experiência de vida de cada um rompe o padrão. O saber popular é valorizado no
sentido de se exigir um respeito entre todas as formas de saber, numa perspectiva
complementar, sem ruptura com a tradição e sem negar as contribuições da ciência
moderna. Roda de partilha e experiências de sabedorias. O cultivo da prática de
conversas significativas que geram ações e bons resultados em grupos. A liderança
compartilhada com a observação do estado de espírito das pessoas e da confiança no
potencial da inteligência coletiva e da empatica. O uso da inteligência coletiva e auto-
organização e responsabilidade convidam ao real engajamento de todos para a
mediação dos conflitos, desde os individuais aos coletivos, internos e externos.
A mediação é a única ferramenta sistêmica supracitada regulamentada em lei e
permite o uso de todas as outras ferramentas referidas de forma implícita através do
mediador. A Constituição Federal tem como fundamento o pluralismo político, sendo
um dos nossos objetivos da república, construir uma sociedade livre, justa e solidária
e promover o bem de todos. Os princípios constitucionais da prevalência dos direitos
humanos, autodeterminação dos povos, defesa da paz e da solução pacífica dos
conflitos consagram a mediação e humanização do processo como remédio, isto é,
meio adequado de solução de conflitos. A mediação, ou negociação assistida possui
vários métodos, é sistêmica por natureza.
Existem três métodos de resolução de conflitos: autocomposição,
heterocomposição e autotutela. No modelo autocompositivo as pessoas criam suas
próprias soluções para atender seus interesses, chegando a um consenso. Pode haver
participação de terceiro (mediador ou conciliador). No método heterocompositivo, a
dos argumentos de fato e de direito requeridos, onde o juiz ou árbitro (jurisdição e
arbitragem) tem poucas opções de escolha se o processo não for bem saneado, senão
aquelas ventiladas por escrito no processo. Isso exige tempo, dinheiro e energia. A
autotutela é a forma mais primitiva de resolver os conflitos, pois não tem julgador e a
imposição de uma parte em detrimento da outra dá-se pelo poder ou força no cenário
de conflito .
A mediação pode acontecer em qualquer circunstância. Antes, durante ou
depois de um processo. Na esfera comunitária, no ambiente escolar, penal, trabalhista.
Assim, essa obrigatoriedade do sistema oferecer o procedimento da mediação
incentiva a mudança de cultura dos operadores do direito de forma construtiva ao
novo paradigma da mediação de conflitos ou de opiniões e posições.

3. Sustentabilidade e Gestão de Emoções


A inteligência humana, racional, emocional ou artificial pode ser observada tal
qual um microssistema. Biologicamente, os homens são comparados às plantas. O
“homo sapiens” é igual um animal ou vegetal do ponto de vista biológico. A ciência
humana e ciência natural convivem no mesmo universo de sistema geral de
classificação/categoria. Desde o nome próprio do sujeito, a sociedade binária
classifica o ser, os grupos, como sistema classificatório. Assim, muito da identidade
se perde, pois se excluem muitas amostras para criar uma referência, um padrão.
Com a ciência social a tônica é a mesma da biologia. Nossos arquivos históricos de
classificação são apenas fragmentos, partes, recortes, reminiscências, pedaços de
histórias, mas não são toda a historia.
Olhando sob o ponto de vista da sustentabilidade, a inteligência da vida é não
binária, nem classificatória. Sustentabilidade é a capacidade de sustentação ou
conservação de um processo ou sistema. O Direito como está sendo aplicado é
insustentável devido à judicialização.
Com a globalização, a constituição de vínculos empáticos não está mais
limitada à territorialidade. Essa nova mentalidade participativa, mais preocupada com
a felicidade do que com a razão, é a tônica de reconhecer a abundância e valorizar a
qualidade de vida. Nessa realidade, a mediação é sustentável porque constrói modelos
mais plásticos com mais precisão para evitar o desperdício de tempo, dinheiro e
energia.
Lidar com as emoções, através do senso comum, é muito desafiador. Como
possibilidade de mudança, o budismo, por exemplo, ensina a analisar quais
pensamentos nos são úteis, construtivos ou benéficos, que nos deixam mais calmos,
relaxados e que nos dão a tranquilidade de espírito, em vez de cultivar pensamentos
que criam medo, inquietação e frustração. Aliás, essa técnica, aprendemos na
psiquiatria e na psicologia, onde o pensamento negativo é esvaziado e reenquadrado,
focando-se em pensamentos positivos e construtivos, tal qual no luto, medo e perdas.
O tempo só cura o que você decidiu transformar.
A sustentabilidade jurídica é urgente e necessária, por isso o Direito precisa
ser mediado. Os procedimento do direito precisam ser mediados.

Considerações Finais
A psicologia contribui muito para a auto responsabilidade e para o
autoconhecimento. A saúde mental repercute direto na pessoa, na família, na
comunidade, na sociedade, no país, seja na medicina, na economia e no Direito.
Tentar esmiuçar esse espaço tempo com a atuação de equipes de apoio matricial
constrói outra realidade. Sem consciência a sociedade está mergulhada no mínimo em
espaço, tendo o tempo como uma quarta dimensão. Mas a abertura de outras
dimensões ocorre na fala, dando espaço a infinitas possibilidades espaço-temporais.
Os sintomas, nas pessoas, têm a ver com a linguagem, e o que as letras organizam
revelam as conexões num movimento dialético das palavras além do discurso. O
sistema sem considerar e validar o sentimento não é humano. No espaço-temporal, no
qual dentro e fora, passado e presente se confundem, não interessa a coisa em si, mas
a estória que se conta dela quer para revelar uma verdade do inconsciente, quer para
construir uma cena para ocultá-la. A simbologia do corpo tomada na linguagem é
matéria da psicanálise. Psicanálise e Direito é um diálogo possível e necessário. O
Direito flerta com todas as profissões porque os conflitos são sempre
consubstanciados em várias matérias e visões de mundo porque é social. É holístico.
A psicanálise, assim como a arte, a literatura faz bom uso da palavra e organiza a
visão sobre o fato humano. Formular questões e quesitos sobre a justiça, liberdade de
pensamentos, diante de tantos paradoxos, indeterminações e sofrimentos, é urgente.
Na mediação, seja endo ou pré processual, tal desenvolvimento do tempo e
espaço, do passado e do futuro é estimulado. A natureza humana é plural e na
mediação, a qualquer tempo, pública ou privada, aquilo que se busca pode ser ou pode
não ser verdadeiro. Mas o que é a verdade senão um juízo de valor!. Mais ainda, pode
ser e não ser, o indecidível, entre duas posições. Admitir a ambivalência e
vulnerabilidades revoluciona e transforma a noção de Ética, do Direito, da Política. Se
abrir pra a alteridade, para a mistura, se abrir para a interdisciplinaridade na direção
da transdisciplinaridade, é o que tem mais de contemporâneo no pensamento crítico,
de inspiração filosófica, teológica, contemplativa, empírica, rompendo com os
dogmas do Direito.
Ser reconhecido como integrado, por inteiro, com suas dimensões
psicológicas, biológicas e sociais é preciso. Quanto maior for a integração dentro de
uma sociedade, maior será o nível de concordância entre seus membros e maior será a
estabilidade social na comunidade. O despertar coletivo não idolatra uma doutrina,
teoria ou ideologia. Os sistemas de pensamento são meios de orientação; eles não são
a verdades absolutas. Aprender a praticar o desligar de pontos de vista e opinião e
estar aberto a receber o ponto de vista dos outros é desafiador à luz do Direito.
Na mediação, fica claro que convencer o outro é impossível. Por mais que o
outro seja claro, que seja provável, verossímil, uma situação exige argumentos de
fatos com artifícios de linguagem, com manipulação das palavras. Porque situação de
fato não e só clareza. Não se trata de concordar ou discordar, trata-se de conferir. A
pessoa pensa dizer uma coisa e diz outra. O outro não ouve e faz o que entende. A
linguagem é muito propícia para as pessoas não se entenderem. A conversa é um
espaço de conexão necessária. As palavras se prestam para o jogo de poder, de ver
quem tem razão, do que é verdade, do que é certo. Entrar no consenso, construir uma
possibilidade de uma verdade em comum, compartilhada é criação e inovação. Toda
fala pode ser de um sim. A nossa humanidade perde muito a todo instante pelo não
contato e pela não contaminação afetiva. Não querer ouvir por não querer sentir. O
que nos protege pode ser o que adoece. Isolamento afetivo. Lutar pelos espaços de
compartilhamento é mediação. A fala é por excelência o espaço de
compartilhamento. Um fala e outro ouve e assim se descortina qualquer contexto
nebuloso ou conflituoso. O estado de abertura e da autenticidade e vulnerabilidade da
pessoa se mostrar é indicativo de situação mediável.
Pelo método científico contemplativo, a mediação é disruptiva e inovação e
tecnologia no Direito. No mundo das verdades absolutas, dos dogmas, da prova, dos
fatos e que busca a verdade, inovar e aderir á tecnologia é legal! Acontece que a
criatividade esbarra no problema jurídico, que desvenda a realidade da relação entre
os agentes e impõe as normas aplicáveis conforme o comportamento. A melhor
maneira de evitar surpresas é realizar uma análise completa da legislação aplicável a
determinadas relações e atividades, eventualmente também a atividades-meio que as
orbitem, sempre desconstruindo ações e fatos intrínsecos para poder reduzir a
exposição por meio de ajustes, instrumentos e expedientes disponíveis. Ter noções de
Direito e Psicologia permitem essa compliance e checagem de dados. Por isso,
mediação é tecnologia no Direito, pois é disruptiva.. Aliás, a compliance da psicologia
forense ultrapassa a mediação e convoca a formação jurídica e de comportamento
como habilidades para potencializar a efetividade, produtividade e confiança,
diagnóstico, esse, que gerou o processo como sintoma.
O Direito é muito comprometido com a verdade e a verdade, pode ser ou pode
não ser e, poder ser e pode não ser; portanto, a verdade não importa tanto assim.
Existe melhor verdade? Reproduzida, reinterpretada, a memória da verdade. Por fim,
com gratidão, cumprimento a Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica pelos seus
10 anos de fundação. Sob o enfoque da ciência contemplativa, concluímos que
existem muitas formas de conhecimento e que nenhuma é melhor do que a outra, ou
mais verdadeira. Fazer as pazes com as vastas teorias manifestadas na natureza de
forma intuitiva. Em princípio, não existe nada que seja incompatível entre a
contemplação e a ciência. A ciência contemplativa busca reintegrar 3 elementos por
meios totalmente empíricos: a religião, filosofia e ciência. Com espírito
contemplativo, findo que não pretendemos provar nada para ninguém, porque provar
é coisa da ciência e do mundo jurídico. O artigo apenas se propôs ser diferente, ou não
ser, eis a questão.
O método científico não é suficiente e o saber é aberto, em constante
evolução, a ser construído e vivenciado de forma plural, sem rótulos, com identidade
não binária, de gênero neutro ou sem gênero, sem discriminação. Desenvolver
virtudes com habilidades para dizer mais sim do que não, vamos nos redimir!
Desconstruir é construtivo. Desconstruir é ser responsável para concluir, sobre
o epígrafe, dizem que a célebre frase na tragédia de Hamlet, ser ou não ser (to be, or
not to be) não é bem assim na redação original. Os registros indicam que a produção
original não era essa a frase e que a maioria das edições de Hamlet conhecidas é
composta com base no texto da segunda edição. A primeira edição tem sido ignorada
pelas publicações da dramaturgia, ou seja, não é verdade que seja de William
Shakespeare essa frase. Ou é?
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MEDIAÇÃO: VIA ADEQUADA À ABORDAGEM
DE CONFLITOS DE CASAL SEPARADO COM
FILHOS.

Paulo D’Oliveira99

“It takes a village to raise a child100”

Introdução
O presente capítulo tem o sentido de repercutir como contributo para à
reflexão dos operadores do Direito de Família, sejam advogados, juízes, promotores,
delegados, psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, assistentes sociais, o entendimento
da prática da abordagem adequada aos conflitos (às lides) de casais com filhos. E esta
abordagem adequada de que se trata é a mediação101, considerando-se ainda quando
agravados a partir das novas relações afetivas dos pais separados, como fator estressor
do conflito102. Para que surta esta finalidade, o texto busca trazer à atenção dois vieses
de análise: considerações sobre o regramento do instituto da guarda, o seu contexto e
os peculiares interesses em questão e o da realidade do judiciário no tocante à
eficiência na administração da justiça em cotejo àqueles peculiares interesses. Para
tanto, necessário o desafiar da análise e do estudo para enfoque interdisciplinar do
Direito de Família. Cabe ressaltar: “O escopo final do Direito de Família e do
advogado familiarista não é vencer ou derrotar, nem determinar vítimas ou algozes,
como brutal e insensivelmente tem-se constatado na atuação mais superficial do
Judiciário, e a redescoberta da psicanálise, como ciência capaz de auxiliar a atividade
jurídica, tem-se revelado fundamental na definição de um novo conceito de família,
menos vinculado a papéis rigidamente estruturados, ou atuações previamente

99
Advogado familiarista. Mestre e Doutorando.
100
Provérbio africano que significa, em tradução livre, ser necessário uma comunidade interagindo em
benefício ao desenvolvimento da criança. https://en.wikipedia.org/wiki/It_takes_a_village (acesso em
08/08/2018).
101
MOLINARI, Fernanda. Mediação de conflitos e alienação parental – fundamentos teóricos e
práticos. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2016.
102
Ibidem. p. 215.
estabelecidas, mas, antes, dominado pelo inconsciente, base impulsionadora de toda
ação humana”103.

1. A Guarda (Com)Partilhada
Compartilhar significa ter parte em algo, participar de algo ou partilhar algo
com alguém. Portanto, no compartilhar há o partilhar, que, por seu turno, significa
dividir, repartir, distribuir ou participar. No que concerne ao instituto guarda, tem-se
que a legislação evoluiu para o dever de que seja estabelecida na forma compartilhada
como standard (padrão) e que, do ponto de vista jurídico, se revela ser a melhor, pois
atribui iguais responsabilidades, direitos e obrigações sobre os filhos a ambos os
genitores. Sob o ponto de vista prático permanece a necessidade de se encontrar
caminhos de como ela será exercida, como será organizada quanto a sua divisão,
quanto a efetiva distribuição da convivência dos filhos com os genitores separados.
Portanto, o ideal de compartilhamento ocorrerá no plano jurídico, que se relaciona
com o direito/dever ao exercício da responsabilidade e das decisões sobre os assuntos
que envolvam os interesses dos filhos crianças ou adolescentes. A lei impõe a ambos
os genitores separados que este exercício deva ser de forma concomitante e
idealmente cooperativa. Já a partilha da convivência ocorrerá no nível prático, vale
dizer, como ela se organizará na vida real. Neste sentido, a guarda unilateral atribuída
normalmente à mãe, e que já não mais deve ser utilizada como forma padrão, talvez
não trouxesse tanto impacto a gerar conflitos incidentes na separação da relação
conjugal como se pressupõe que ocorra na guarda compartilhada, pois naquela, depois
de estabelecida, a discussão se limita ao regramento das visitas do genitor não
guardião e se inicia o seu processo de gradativa desvinculação parental. Este processo
deve ser evitado e, portanto, retoma-se o caminho do compartilhamento das funções
parentais.
A mudança de paradigmas operada no sistema jurídico a partir da Constituição
Federal de 1988, marco em que se iniciou a interpretação do Código Civil 1916 a
partir dos princípios constitucionais – o que se chamou de “a virada de Copérnico”, e
após com a promulgação do atual Código Civil, o regramento do instituto da guarda
também acompanhou este fenômeno hermenêutico. Assim, de forma comum, até

103
LEITE, Eduardo de Oliveira. Capítulo XXIII – A Psicanálise e o Advogado (Familiarista). In:
ZIMERMAN, David; MATHIAS, Carlos Antônio (Org.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. 3.
ed. Campinas: Millennium Editora, 2010. p. 256.
início dos anos 2000, se estabelecia forte disputa da guarda dos filhos nos processos
de separação judicial ou divórcio e, também de forma comum, como referido, os
filhos eram entregues ao cuidado da mãe, tanto jurídico quanto em relação à custódia
de fato (guarda unilateral).
No intuito de fornecer breve perspectiva histórica, somente a partir da
promulgação da Constituição Federal em outubro de 1988 é que se alterou
drasticamente o regime jurídico da família, até então espelhada naquela típica imagem
oitocentista, originada exclusivamente pelo casamento, patriarcal, patrimonial e
hierarquizada. Esta perspectiva serve para apontar a profunda guinada recente no
modo de pensar o Direito de Família que, a par desta experiência da mudança de
paradigmas, e que também é dada a relativismos e extremos, deve ser estudado
sempre com o espírito inquieto para abstrair-se de preconceitos que são atemporais.
Este contexto, importante ressaltar novamente, está inserido no sistema
principiológico constitucional a partir de 1988 que passou a priorizar e proteger de
forma especial o desenvolvimento de filho(s) criança(s) e/ou adolescente(s). Desde
1989, por meio da Convenção Internacional do Direito da Criança, existe o princípio
supralegal do melhor interesse da criança, recepcionado no Brasil com a promulgação
do Decreto 99.710/90 e com regramento específico a partir do Estatuto da Criança e
do Adolescente (Lei 8.069/90). Este princípio impôs, e impõe, a todos a busca do
caminho mais adequado para as disputas oriundas dos novos arranjos familiares,
contando com isto o necessário envolvimento interdisciplinar. Todos os esforços
serão poucos, tratando-se de pessoas em desenvolvimento. Poucos? Estas pessoas
serão o futuro das nossas relações humanas.
A família, portanto, reconhecida pelo direito civil da codificação do século 18
era aquela concebida pelo casamento, onde o pai detinha o direito absoluto sobre as
pessoas e os bens, pois se estabelecia para o alargamento dos negócios e não para a
realização, formação e respeito a seus integrantes. As pessoas serviam à família, e não
o contrário. E era legítimo para a época. A Constituição Federal vigente, promulgada
na antevéspera da virada para este século no recente mês de outubro de 1988,
contando com apenas trinta anos, trouxe uma nova tábua axiológica também para o
Direito de Família que, deslocando-se a sua interpretação do regramento privado
codificado, passou a ser visto a partir do princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana e que, em capítulo próprio sobre a família, traduz-se nos princípios da
pluralidade de conformações afetivas entre as pessoas (casamento, união estável,
união homoafetiva, família monoparental), da igualdade de direitos entre homem e
mulher, da igualdade entre filhos naturais e adotivos, da prioridade dos direitos e da
proteção integral e especial à criança e ao adolescente, entre outros direitos até então
impensáveis. Mudança de paradigmas, derrubada de dogmas e cuidado para não se
por outros no lugar.
Neste passo, busca-se traçar reflexões sobre o estágio atual do instituto da
guarda e as consequências à formação de pessoa em desenvolvimento, conforme o
conceito trazido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente104. Refere-se aqui, claro,
as consequências do atual estabelecimento da guarda compartilhada como um padrão
nos conflitos originados quando da separação de casal genitor/adotante. Nem um
problema haverá enquanto a guarda for estabelecida de forma consensual, no sentido
de acordada com observação e respeito aos legítimos interesses das pessoas
envolvidas, primordialmente os interesses dos filhos (crianças ou adolescentes), o que
é naturalmente oportunizado quando se vivencia o procedimento de mediação105. A
situação tende a resultar complexa quando este consenso se dá somente no âmbito
jurídico-formal do processo judicial: a lei dispõe que, em não havendo contrariedade
dos pais, ambos estando aptos e com vontade de exercê-la, a guarda judicial será
(deverá ser) decretada na forma compartilhada106. E viveram felizes para sempre?
O Código Civil traz o regramento sobre a guarda no Capítulo X - depois de
tratar em capítulo imediatamente anterior sobre a dissolução da sociedade e do
vínculo conjugal - que é destinado à proteção da pessoa dos filhos dentro do Livro do
Direito de Família, do Título do Direito Pessoal e do Subtítulo do Casamento. Esta
localização tem sentido para demonstrar que a guarda tratada aqui é aquela relativa à
decisão dos pais separados sobre a situação do(s) filho(s) comuns a partir desta
ruptura na relação conjugal. Portanto, não se trata da guarda estabelecida em
consequência da suspensão, destituição ou perda do poder familiar por abandono ou
maus tratos à prole. Mesmo após uma dissolução do vínculo conjugal, o poder
familiar permanece hígido. Aqui, trata-se da guarda relacionada ao exercício deste
poder107. Importa referir que, na separação da relação conjugal, e esta que se desfaz,

104
Art. 3º da Lei 8.069/90 (ECA).
105
MOLINARI, Fernanda. Op. cit., p. 277.
106
Art. 1.584 e § 2°do Código Civil.
107
Art. 1.634 do Código Civil.
não a parental; portanto, os pais separados devem ser respeitados e permanecerem
atuantes nesta função sem sofrerem interferências externas108.
Atualmente, repete-se, a guarda se estabelece na forma compartilhada como
padrão partir de 2014. A Lei 13.058/2014, que introduz nova redação ao §2° do artigo
1.584 do Código Civil de 2002, em linhas gerais, dispõe que a guarda só não será na
forma compartilhada se um dos pais renunciar expressamente a esse direito. E, mesmo
se não houver acordo entre os pais em divórcio sobre outra espécie de guarda que
adotarão (unilateral), ainda assim será determinada na forma compartilhada e, claro,
considerando que ambos os pais estejam aptos ao exercício da função de poder, de pai
e de mãe, na família.
Mas qual é a família que se fala? Importa antes referir: a família é secular,
aliás, primordial. A célula mater da sociedade por que o lugar onde a pessoa aprende
a primeira lei estruturante e que a impulsiona às atividades cívicas e sociais; portanto,
aos limites convencionais e relacionais: a proibição do incesto109. A história da
família se confunde com a própria história da civilização. Desde as remotas origens da
humanidade ao caminho da civilidade, tal estrutura gregária e íntima vem se
transformando como grupamento dinâmico, fundante das pessoas e com característica
de ser imortal. Sempre existiu e sempre existirá. Pois então, atualmente, afirma-se,
que a família se caracteriza por ser um núcleo reduzido formado pelos genitores e
poucos filhos; que se está verificando mais comumente esta peculiar formatação de
família na sociedade do consumo. É a que se apelidou de a família light.
Esta família, light, como dito, se constitui de um número reduzido de
integrantes, normalmente de três a quatro membros, composta pelos pais e filhos, ou
por apenas um dos pais e filhos (famílias monoparentais). Vitimada pelos ataques a
seus valores éticos, no tocante à responsabilidade dos seus integrantes, e à afetividade
que deve existir entre eles e ser construída em termos de plena convivência. Muito
prejudicada pela falta de tempo para este convívio, pela falta de recursos econômicos,
educacionais e científicos, e pelo contexto de sobrecarga tecnológica e da cultura do
individualismo e do sucesso a qualquer custo. A ausência deste convívio sadio tolhe a
afetividade e o exercício das reais funções distribuídas entre seus integrantes. Para
108
Art. 1.636 do Código Civil. O novo cônjuge/companheiro/namorado/ficante tem impedimento para
interferir na educação, cuidado, proteção; e sua contribuição deverá ser subsidiária, reservada à
solicitação expressa do genitor e dada em respeito do vínculo parental já existente e prioritário.
109
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A primeira lei é uma lei de Direito de Família: A lei do pai e o
fundamento da lei. In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito
de Família e Psicanálise – rumo a uma nova epistemologia. Imago Editora, 2003. p. 17-30.
além do devido respeito entre si e igualdade de direitos, tão decantados em um Estado
Social de Direito, os integrantes dessa família light apresentam uma confusão nos
papéis a serem exercidos, para a educação, disciplina e organização na criação dos
filhos. Esta família se encontra, por isto, com dificuldades de impor limites à pessoa
em formação, de buscar a socialização das crianças durante as primeiras experiências,
construtoras do caráter pelas naturais alegrias e frustrações, e de formar uma rede de
apoio; desaguando os “cuidados” para a iniciativa privada ou, até mesmo, para o
Estado (autoridade policiar ou judiciário).
Assim se disse: “A família que era um continente viu se transformar num
arquipélago de seres insulares ligados por frágeis laços do destino. Embora seja um
reducionismo, é correto sustentar que esse arquétipo familiar sem latitude para as
relações dialógicas tem sido produzido pelas atuais condições materiais e econômicas
da sociedade.”. [...] Nessa debilidade de vínculos e de sujeitos, a família se resume a
um sítio de poucos intercâmbios sociais e culturais, e se insere no sintoma do “curto
prazo” que decreta a morte do sentido sorvido somente com dedicação e tempo. Essa
é a “lógica do vazio” e da “passión por la nada”, como detectou o psiquiatra espanhol
Enrique Rojas.”110.
Em meio a este contexto familiar light vem surgindo, como importante “efeito
colateral” da pós-modernidade, diagnóstico da Síndrome da Alienação Parental111 e da
Síndrome do Imperador 112
nas crianças vítimas deste ambiente conflitivo.
Respectivamente, estas síndromes têm causas em fenômeno como o do presenteísmo
(fixar a felicidade no objeto), que é uma compensação que se dá de forma subliminar
à culpa dos pais diante da falta do convívio sadio com os filhos imposta pela
necessidade de os pais buscarem sucesso profissional e competitividade para
estabelecer o melhor cuidador; e em fenômeno como o da implantação gradativa de
falsas memórias à criança vítima da extrema litigiosidade vivida entre o casal,
sobremaneira os separados ou em vias de, a qual, nesse contexto belicoso, passa a
criar fantasias e a sentir repulsa e revolta pelo genitor não guardião que, diante desses
sentimentos deletérios do filho e também pela ausência de um real convívio, desiste

110
Artigo do Min. Luiz Edson Fachin. In http://www.gazetadOpovo.com.br/Opiniao/artigos/a-
sindrome-da-familia-light-br3fguebs3mqvtdiczh7hs1fy (acesso em 13/07/2018).
111
TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do Direito. 8. ed. rev. atual. e
ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017. p. 216-234.
112
Ibidem, p. 246-253.
do desejo de manter uma relação sadia com esse filho, fato este que possibilitaria
encerrar a mentira plantada.
O presenteísmo é fenômeno que significa buscar satisfazer de forma imediata
os desejos dos filhos, sem dar necessário espaço ao desenvolvimento do sentimento
tolerância a frustrações (resiliência)113, sentimento que deve existir no seio da família
para a formação daqueles que, ao fim e ao cabo, irão preencher, agora capacitados, as
posições sociais de uma maneira mais justa, igualitária e fraterna. E o fenômeno atual
da extrema litigiosidade nas separações, aliada à continuidade de abordagem e manejo
inadequados nesse momento complexo do ponto de vista emocional, pode fomentar a
confusão entre os vínculos envolvidos e a manipulação de filhos por parte dos
genitores.
E neste ambiente conflagrado, quando acontece efetivamente a ruptura do
vínculo conjugal? O processo psicológico de uma separação conjugal normalmente
tem início antes do jurídico e costuma se manter por mais tempo que este (processo
judicial); aliás, não raras vezes, também se estende em razão de que uma das partes
pretende se manter, de uma certa forma, vinculado114. Vale dizer: a decisão de se
separar é tomada, antes de exteriorizar-se, no âmbito subjetivo. É um “processo
psicológico que corresponde a um conjunto de sentimentos, pensamentos e
comportamentos destinados à resolução do conflito emocional entre duas pessoas.
Este é de natureza interna e sua resolutividade depende da personalidade, dos
mecanismos conscientes e principalmente inconscientes que são utilizados para a
busca do equilíbrio, bem como das estratégias que cada pessoa, na parte mais
recôndita da sua existência e de sua alma, põe em ação para superar a perda, elaborá-
la e aproveitá-la como uma experiência de vida interior”115. E, afinal, cada um tem o
seu tempo necessário e peculiar para tentar conseguir elaborar o próprio luto.
E quais as consequências da dissolução do vínculo conjugal? Neste conflito
instaurado entre o casal, acaso bater as portas do judiciário – é situação que se agrava
em uma família light -, é comum as partes procurarem desqualificar-se
reciprocamente nos papéis de parceiros afetivos e, não raras vezes, nos papeis de pais.
E, concomitantemente, se auto intitularem qualificados no exercício da parentalidade

113
Ibidem, p. 252.
114
ZIMERMAN, David. Capítulo XIII – O Processo Judicial Pode Estar Sendo uma Forma de
Manutenção do Vínculo do Casal? In: ZIMERMAN, David; MATHIAS, Carlos Antônio (Org.).
Aspectos psicológicos na prática jurídica. 3. ed. Campinas: Millennium Editora, 2010. p. 149-160.
115
TRINDADE, Jorge. Op. cit., p. 415.
para obterem a guarda dos filhos comuns. Muito comum também haver, nestas
disputas, a tentativa de deformação e desinformação dos fatos, provocada pelo
ressentimento. E, em caso da saída prematura de um dos pais do lar comum, “o nível
de conflitualidade pode chegar a extremos que reclamam uma rápida redefinição de
papéis dentro da família, embora a idealização da família unida promova fantasias e
desejos, conscientes ou inconscientes, de reconciliação.”116
Mas, e os filhos, estão preparados para o conflito dos pais? “Não há dúvidas,
entretanto, que essas crianças, em tese, precisariam de mais recursos em termos de
cuidados e assistência psicológica do que aquelas que vivem em famílias intactas. Por
certo, isso constitui uma presunção, mas uma presunção que, pelo menos em
princípio, faz algum sentido”.117 Os efeitos diretos nos filhos estão na surpresa pela
ausência, agora, daquela relação afetiva dos pais, no medo, na contradição, na
contextual ambivalência, na culpa, na ansiedade e no desejo que será frustrado de
reparação do status quo. Estes efeitos geram consequências negativas no
desenvolvimento dos filhos, visível nas atividades escolares, pelo desinteresse,
desmotivação, isolamento e estereótipos negativos entre os colegas, rendimento
avaliativo prejudicado; no âmbito pessoal, não conseguem compreender o que se
passa e tendem a interpretar a ausência, normalmente do pai, em termos de abandono
e culpa. Para minorar isto, importante fazer com que os filhos se envolvam e sejam
participados da decisão em direção ao divórcio tomada, que pode ser compartilhada
por meio de um ritual de passagem, onde poderão receber reforços emocionais dos
próprios pais quando solicitados, cada um deles, a se dirigirem aos filhos e poderem
falar “sobre o momento que nasceram e o que significou para eles esse momento.
Cada um dos filhos responde a cada um dos pais ou aos dois juntos. Depois, a palavra
volta aos pais para que respondam para cada um dos filhos o que pensam ser o mais
importante a ser dito” 118.
Também, deve ser apontado novamente, por ocasião da decisão de um dos
cônjuges/companheiros de externar este conflito que causou a ruptura da relação, a
tendência é ser cada vez mais reduzido o tempo dos pais na dedicação e cuidados aos
filhos exatamente por conta desse contexto belicoso, o que acarreta neles (filhos) um

116
TRINDADE, Jorge. Op. cit., p. 418.
117
Idem.
118
GONÇALVES, Nair Teresinha. Capítulo LII – O Ritual do Divórcio, Uma Vivência de Grupo com
Profissionais da Área do Direito. In: ZIMERMAN, David; MATHIAS, Carlos Antônio (Org.).
Aspectos psicológicos na prática jurídica. 3. ed. Campinas: Millennium Editora, 2010. p. 543-552.
sentimento de impotência em relação aos fatos e à expectativa da reconciliação. O
divórcio transforma a organização da estruturação familiar, gera a mudança na
situação econômica, pode exigir um novo lar e, por isto, novos vizinhos. Por
consequência, nos filhos pode se perceber condutas agressivas, incontinência urinária,
excessivas queixas e solicitações (“chamar a atenção”), ou se tornam excessivamente
cooperativos (“buscando valorização”). Podem ocorrer comportamento disruptivo e
antissocial, condutas repetitivas como forma de trazer sensação do controle da vida
nesta fase instável; e sensação de culpa - exatamente quando a criança está na fase de
absorver a primeira lei (proibição do incesto) -, de medo e de depressão com
somatização; também preocupações intensas com abandono, doença, insônia,
isolamento, inapetência, até mesmo ideias de suicídio.
Evidencia-se estas sensações e sentimentos enquanto se está atravessando a
instabilidade do processo da separação conjugal, e que tende a desaparecer quando o
contexto se normaliza no futuro. Entretanto, se estas posturas se tornam persistentes
no tempo, mesmo depois da normalização do contexto, passa-se a se encarar a
possibilidade da separação ter sido um evento traumático (muito comum quando se
leva o conflito ao judiciário), e se deve bem avaliar a hipótese a tempo de auxiliar a
criança, e a família, que não está elaborando o ritual de passagem entre a ruptura
conjugal e a necessária mantença do vínculo parental. Muito provavelmente deve
estar havendo confusão entre estas duas espécies de vínculos: o conjugal e o parental,
podendo estar havendo a evitação do luto.
Nos extremos, como já referido, podem ocorrer conflitos de lealdade quando
as crianças são usadas e manipuladas para serem partícipes na batalha judicial
conjugal. E, longe de serem raras, uma das condições atuantes para estas
consequências na pessoa dos filhos do divórcio está exatamente no surgimento de um
novo relacionamento afetivo de um dos pais, ou de ambos. Ou seja, exatamente no
aparecimento de novo núcleo afetivo externo à família original, e que se intenciona
conviver, é que se verificam abusos inconfessos aos filhos, em que pese a frustração
já vivenciada na ruptura dos pais como afetos, e agora vistos, no extremo comum dos
casos levados ao judiciário, como desafetos.
Ressalta-se, portanto, o entendimento, e agora também corroborado com a
previsão legal a partir de 2016119, de que a mediação é a via adequada para esta

119
Art. 694 e § único do Código Civil.
abordagem120, e, a partir desta, outros encaminhamentos, tanto à homologação judicial
de eventual acordo ou mesmo à propositura de demandas judiciais julgadas
necessárias, quanto a terapias no campo da psicologia.

2. Panorama de uma realidade do Judiciário


Se faz necessário também alçar um olhar sobre a realidade do procedimento da
mediação no sistema jurídico e judiciário brasileiros, no tocante aos processos
judiciais em tramitação, que, quando se tratam de causas de Direito de família,
peculiarmente são processos que abarcam todas essas repercussões e vieses
psicológicos tratados acima; portanto, da ordem do subjetivo. Nesse passo, portanto,
importa trazer a situação atual em que se inserem, no sistema judiciário e processual,
a “lide de família”. Segundo reportagem encartada em jornal de grande circulação em
Porto Alegre/RS, cuja manchete estampou o título “Judiciário Gaúcho Abarrotado”,
há 2,78 milhões de processos acumulados na Justiça Estadual no encerramento do ano
de 2016, com média de um caso para cada quatro habitantes, atrasando soluções e
alimentando a má fama de lentidão do sistema121.
Consta na notícia: o judiciário busca solucionar esse problema implementando
gradativa organização para as demandas repetitivas e as ações coletivas, também
empregando maior rigor para a concessão da gratuidade judiciária, além de referir
sobre a via alternativa da conciliação. Por seu turno, a Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), tendo papel fundamental e pelo qual busca contribuir para mudar essa
situação calamitosa, diagnosticando que tal abarrotamento processual traz prejuízo
para a advocacia e para a cidadania, cria a Casa de Mediação. A Defensoria Pública
do Rio Grande do Sul, por sua vez, divulga também investimento em centro de
mediação e conciliação, que inicialmente atuará na área de conflitos familiares.
Oficialmente, o Poder Judiciário, por seu turno, divulga o relatório do
Conselho Nacional da Justiça (CNJ), chamado de “Justiça em números”, que também
traz tal situação, mas sob outro viés; qual seja, relativamente ao nível de atendimento
à demanda em todo o sistema judiciário brasileiro122. Esta mirada, por seu turno, está a
indicar um excelente serviço prestado. “(...) o Poder Judiciário finalizou o ano de
2015 com quase 74 milhões de processos em tramitação. Mesmo tendo baixado 1,2

120
MOLINARI, Fernanda. Op. cit., p. 277.
121
Jornal ZH de 19/06/2017, página 6 e 7.
122
(http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros). Acesso em 21/06/2017.
milhão de processos a mais do que o quantitativo ingressado (índice de atendimento à
demanda de 104%), o estoque aumentou em 1,9 milhão de processos (3%) em relação
ao ano anterior. Tais resultados são basicamente um reflexo direto da Justiça Estadual,
que abarca 80% dos processos pendentes. (...) Dessa forma, mesmo que o Poder
Judiciário fosse paralisado sem ingresso de novas demandas, com a atual
produtividade de magistrados e servidores, seriam necessários aproximadamente 3
anos de trabalho para zerar o estoque”.
Este é um dos graves problemas enfrentados pelos jurisdicionados na relação
com o Poder Judiciário: a enorme e crescente litigiosidade e, consequentemente,
enorme e crescente número de demandas judiciais. A escalada da conflitualidade
(litigiosidade) social é apontada como catalisador desse problema e que está
negativamente imbricado, interligado, com a ideia da necessidade do processo
judicial. Há a impressão corrente no consciente coletivo de que, onde houver uma
pretensão resistida123 (disputa, conflito), o judiciário deve alcançar a solução. É o que
se poderia chamar de “a terceirização dos conflitos”. E os pais - cabe o comentário -,
atualmente assoberbados pelas multitarefas e responsabilidades profissionais na
sociedade de mercado e consumo, além de terceirizarem a educação e cuidados dos
filhos, também, neste contexto, entendem legítimo terceirizarem os problemas
conjugais. E o próprio sistema de administração da justiça contribui a que essa
impressão que se adere a uma cultura persista124, fazendo-se detentor do monopólio
das soluções dos conflitos sociais, só não se sabe até quando isto será possível.
No relatório CNJ retro referido demonstra-se a importância, relativamente a
números de processos judiciais, que detém as ações de conflitos de família sobre a
demanda geral. Dos assuntos mais demandados em todo o Poder Judiciário brasileiro,
classificados em 20 categorias, os conflitos de família é assunto que ocupa a sexta
colocação com 836.634 processos (1,97%). Como se verifica abaixo, se não houvesse
especificação por assuntos, o direito de família estaria pontuando as primeiras
colocações em número total de demandas.
Dos assuntos mais demandados em toda a Justiça Estadual do país,
classificados em 20 categorias, o Direito de Família/Alimentos vem na quinta posição
123
Expressão que se atribui ao termo lide processual, aquele interesse não atendido e que se traduz em
uma ação judicial (processo).
124
O acesso ao sistema judiciário no Brasil é extremamente facilitado pela Assistência Judiciária
Gratuita, hoje acertadamente sendo revista no que toca aos requisitos para sua efetiva concessão; o
ensino do Direito, na maioria das faculdades, instiga o trato com o litígio através do processo judicial e,
somente em raras exceções, há estudo sobre a Teoria do Conflito.
com 835.440 processos (3,19%), o Direito de Família/Casamento vem na décima
primeira posição 462.475 processos (1,76%) e o Direito de Família/Relações de
Parentesco vem na décima sétima posição 436.813 processos (1,67%). No segundo
grau da Justiça Estadual do país, o Direito de Família está na décima sexta posição,
Família/Alimentos com 46.876 (1,28%). Dos assuntos mais demandados nas varas de
primeiro grau da Justiça Estadual do país (classificados em 20 categorias), o Direito
de Família/Alimentos vem na terceira posição 776.805 (4,87%), o Direito de
Família/Casamento vem na quinta posição 428.864 (2,69%) e Direito de
Família/Relações de Parentesco vem na sétima posição 411.072 (2,58%).
E, a partir da CF 88 e a par desta realidade em crise, a interpretação às
disposições processuais passa pelos princípios, dentre os quais o da boa-fé processual
(lealdade, cooperação). Parte-se para a necessidade de incentivar a busca da
comunicação e do consenso para dirimir os conflitos125. Também para enfrentar o
desafio de desafogar o próprio judiciário. E o processo de mediação tem aqui papel
importante. A partir de 2016, então, ao juiz se impôs a obrigação de designar
audiência de conciliação ou de mediação - esta aconselhável para os conflitos
familiares -, ao despachar a inicial apta, sem pedido de tutela de urgência ou tendo tal
pedido já sido indeferido 126. Clara a importância que se atribui ao processo da
mediação para que as partes se comuniquem de forma efetiva e possam buscar
construir entre si e de comum acordo - voluntariamente portanto -, com auxílio de um
terceiro (mediador) capacitado, alternativas ao conflito existente, com benefícios
ainda incompreendidos pela maioria da população, por que ainda incrustrada naquela
cultura de conflitualidade e terceirização da solução, e, sendo este um regramento
recentíssimo no Código de Processo Civil, ainda em processo de implantação
gradativa na prática forense. Um caminho razoável a se trilhar com o objetivo de se
encontrar solução à inúmera e crescente litigiosidade social que adentra o Poder
Judiciário127.
Ora, essa obrigação ao juiz para que designe audiência de mediação, acarretará
na mediação judicial. O mediador judicial é o auxiliar da Justiça que atua perante

125
Como bem ilustrado nos primeiros dispositivos do Código de Processo Civil: §§2º e 3º do art. 1º.
126
Art. 334 CPC.
127
Existem causas cuja natureza demandam serem julgadas pelos tribunais: causas coletivas, políticas
públicas, afirmação de princípios constitucionais em abstrato. In FISS, Owen. Um novo processo civil
– estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. Coordenação e tradução Carlos
Alberto de Salles; tradução Daniel Porto Godinho da Silva, Melina de Medeiros Rós. – São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004.
Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) 128, sendo o
responsável pela realização da sessão de mediação designada pelo juiz da causa, de
conformidade com o regulamento do Tribunal respectivo e observadas as normas do
Conselho Nacional de Justiça. Para essa sessão de mediação judicial, o juiz poderá
valer-se de mediador privado 129 , o qual, para esta designação (judicial), deverá
também estar inscrito em cadastros nacional e do respectivo tribunal. Esse registro de
mediadores será mantido, com a indicação dos profissionais capacitados130, com a
indicação de cada área profissional (servidores públicos, advogados, assistentes
sociais, psicólogos, entre outros interessados). Importante referir, de outro lado, a
previsão legal que outorga liberdade às partes para que optem, previamente ao
processo judicial ou incidentalmente, pelo procedimento da mediação extrajudicial
(ou privada); e, portanto, liberdade para que escolham de comum acordo o mediador
ou câmara privada de mediação, que podem ou não constar do cadastro no tribunal131.
E atenção para a hipótese processual judicial: somente se passar in albis o
prazo legal132 para as partes escolherem o mediador privado de sua confiança, ou, se
neste prazo, as partes manifestarem a opção de prosseguirem com a demanda, o juiz
determinará o seguimento da tramitação do processo judicial, com a consequente
distribuição do caso para ou audiência de conciliação ou de mediação judicial a partir
de sua acuidade e critério133. Ao juiz se incumbe fornecer a informação abertamente às
partes sobre o inteiro teor do artigo 168 do Código de Processo Civil. E, para além
disto, também convém que assine prazo razoável para que as partes possam exercer
essa liberdade de opção. Trata-se aqui da mediação extrajudicial (ou privada).
A lei não excluiu, e nem poderia fazê-lo, essa possibilidade de ser alcançada a
via da resolução adequada dos conflitos, notadamente os de família, através de
mediação privada, por profissionais autônomos ou dentro de câmaras privadas,
conforme lei específica que trata da matéria134. Daí se vislumbra a razoabilidade
daquela previsão processual, como requisito da petição inicial, de manifestação do

128
Segundo relatório CNJ Justiça em números, em 2015 a Justiça Estadual passou de 362 para 649
CEJUSCs, o que representa um aumento de 79%, e cerca de 24% dos centros estão localizados no
estado de São Paulo.
129
Existe previsão da criação do cargo público para o exercício da função de mediador judicial, o que
seria, nesse cenário, a situação ideal. O que dispõe o § 6o do art. 167 CPC.
130
Resolução CNJ 125.
131
Art. 168 e 695 CPC.
132
Se o juiz não assinar prazo, será de 5 dias para esta manifestação. O que dispõe o §3º do Art. 218
CPC.
133
Que será aprazada dentro das possibilidades de pauta dos CEJUSC ou NUPEMEC.
134
Art. 9o da Lei 13.140/15.
autor sobre a opção em se submeter, ou não, à audiência de mediação judicial135. Ora,
a avaliação acerca da possibilidade de se encontrar solução à causa de forma
construída e dialogada, notadamente na área de família, deve ser, antes de qualquer
outra, da competência do advogado136 (como “primeiro juiz da causa” no dizeres de
Francesco Carnelutti), como atividade que está em permanente fiscalização do órgão
de classe137, que também podem indicar e necessariamente acompanhar seu cliente ao
procedimento de mediação extrajudicial (ou privada), ou até mesmo buscar o
consenso em determinados casos.
Para que esta regra processual seja observada a contento, as partes, insiste-se,
devem receber completa informação sobre o seu teor, para que tenham ampla
liberdade para optarem pela via da mediação extrajudicial (ou privada) e para
escolherem mediador de sua confiança, - claro se isto já não ocorreu de forma exitosa
naquelas hipóteses de ação judicial consensual de família, em que as partes
manifestaram, já na petição inicial, a opção pela homologação do respectivo acordo -,
e, em caso positivo, devem receber prazo razoável para que a busquem na iniciativa
privada da forma como lhes aprouver, onde haverá celeridade para o início das
sessões e flexibilidade em benefício às partes.
Entretanto, é preciso nesse ponto registrar, a mediação extrajudicial (privada),
como o próprio nome informa, nada tem com o judiciário. Já se disse: “o melhor meio
de lidar com a Justiça é evitando-a”138. Ao fim e ao cabo, o recrudescimento da
litigiosidade e, por consequência, o do número de demandas ingressante no judiciário
deve ser almejado e incentivado não só pelo judiciário, mas, de igual modo, pelos
operadores do Direito, notadamente os do Direito de Família, e por toda a sociedade.
Na experiência diária de assessoria jurídica na área de família se pode constatar que a
postura e a conduta do advogado no sentido de buscar conectar a outra parte
envolvida, ou o advogado constituído, no sentido de construir, cooperativamente,
caminhos viáveis em face do conflito e em cotejo com os princípios e peculiaridades
retro mencionados para a área de atuação é, ainda, vista com desconfiança; ao invés

135
Inciso VII do Art. 319 CPC.
136
E, então, quando encontra-se assessorando a outra parte colega também especializado no Direito de
Família, a possibilidade de solução extrajudicial é alargada.
137
Inciso VI do § único do Art. 2º do Código de Ética e Disciplina da OAB indica como princípio
deontológico estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração
de litígios.
138
Frase do Min. João Otávio de Noronha, então Corregedor CNJ, ao se referir que todos devem buscar
a Justiça como última instância, depois de se tentar de todas as formas possíveis o consenso. In
https://www.youtube.com/watch?v=CQ9EpqJqn0w (acesso em 31/05/17).
de serem, postura e conduta, necessariamente valorizadas. Os envolvidos no conflito,
e por isto mesmo com improvável chance ao discernimento, são incentivados a
“promoverem o desejo de vingança”, apesar dos filhos.
Os operadores do direito atuantes na área do Direito de família, por que
cônscios do amplo benefício às partes, devem buscar evitar com todos os esforços e
competência o processo judicial litigioso. Isto não significa impedir o acesso à
Justiça 139 , apenas que esse acesso deve ser resguardado às situações realmente
necessárias140. O próprio sistema legal já abre permissivo para a realização do divórcio
por ato notarial, desde que haja consenso entre as partes e que não haja filhos
menores141. Indaga-se aqui se já não é momento para que se possibilite a casais ou
companheiros, mesmo tendo filhos menores, a realização do divórcio também por
essa via, se, claro, estiverem acordados; e deixando-se para à judicialização os casos
de extrema litigiosidade ou denúncias.
Os advogados de família devem buscar e acompanhar a prática da mediação de
forma preponderante na esfera privada. Evita-se “acidente de percurso” a pessoas em
momento da vida extremamente difícil e importante, como por exemplo, obter uma
sentença judicial imposta e que não consegue abarcar as peculiaridades e dinâmicas
do conflito. Assim, permitindo sua permanência, o consequente retrabalho processual
a cada pretensão resistida em um campo movediço como o das relações de família, a
indesejada formação da cultura da “relação processual litigiosa afetiva” que se
pereniza em ciclo vicioso dos ressentimentos, vale dizer, a mais pura banalização do
acesso ao judiciário. Evidentemente que o caminho da mediação não é garantia de
Paraíso, e não é isto que se busca por meio dele, mas uma necessária transformação.
Para se unirem em relações conjugais, as pessoas se utilizam de solenidades, rituais e
cortes sem necessitar da lei. Também devem receber oportunidades a que se utilizem
de similares para ressignificarem contextos por ocasião do encerramento destas
necessárias e importantes relações afetivas conjugais, notadamente quando resultaram
filhos.

139
Inciso XXXV do Art. 5º CF.
140
O relatório CNJ: apenas 11% de todas as sentenças são homologatórias de acordos. E aponta
esperança na aplicação do novo Código de Processo Civil que impõe a realização de audiências de
conciliação e de mediação. Melhores dias virão?
141
Lei 11.441/2007.
Considerações Finais
Muito importante acenar para que a mediação seja na prática a abordagem
adequada ao conflito conjugal/parental como alternativa ao processo judicial, dadas a
sua importância e o seu protagonismo fora dos muros forenses desde a década de 70, e
agora em face da recente legislação processual que a introduz como um caminho
jurídico. Como meio adequado para esta abordagem ao peculiar conflito de casal com
filhos, e, diante do mandamento constitucional no sentido da proteção integral e
prioridade dos direitos da criança e do adolescente, que todos os operadores do
Direito de Família efetivamente se mobilizem e busquem esta via com todas as
responsabilidades e esforços possíveis.
O que deve ser caro são exatamente a busca da sustentabilidade das relações
parentais, da pacificidade social – que não se confunde com passividade -, e da
economia em todos sentidos (emocional, tempo, recursos financeiros, etc.). Em
realidade, pela (im)possibilidade de atendimento da crescente demanda de processos
no judiciário, outros caminhos são possíveis e que redundam na ideia de não
monopólio à solução dos conflitos na área de família. O judiciário, visto com
soberania revigorada, deve ser acessado em última instância nestas peculiares
circunstâncias no tocante a questões de família, notadamente por ocasião do divórcio
com filhos. Somente deve ser acessado no momento em que, após infrutíferas as
tentativas de se (res)estabelecimento da comunicação entre as pessoas em conflito e
de transformação da crise em uma nova relação, ainda se verificar necessidade tutelas
de urgência a depender da avaliação criteriosa do advogado.
Como deve, então, ser a abordagem às questões da infância e juventude em
face dos processos disruptivos de casais com filhos? Uma mudança de paradigma
pode ser compreendida e necessariamente valorizada por meio da leitura atenta ao
trecho de estória, como uma parábola, que nos permite refletir. A criança e o jovem
devem vivenciar situações e ambientes que lhes favoreçam o pleno desenvolvimento
das capacidades e do sentimento de pertencimento: “Camilo voltou a acender a luz e
viu o quarto. Viu simplesmente o seu quarto e reparou em como era atento cada
pormenor, com aquilo de que necessitava, com as suas coisas tão guardadas. Tinha os
livros do avô Alfredo e a sua fotografia com a avó Carminda e estava tudo guardado
ali como uma memória viva, como se a sua cabeça tivesse o tamanho do quarto e já
passasse mesmo o tamanho do quarto, porque havia muito que lhe pertencia pela casa
fora. E até já o estar o mar ali lhe dizia respeito, porque começava a saber tudo das
traineiras e do que fazia o Crisóstomo e parecia-lhe que a vida era aprender, saber
sempre mais e mudar para aceitar sempre mais. O rapaz pequeno percebeu que,
depois de um ano, era dali. Ganhara raízes. O corpo deitava-lhe domínios pela cama
abaixo, pelas paredes acima, até para lá da porta. Apagou a luz para sorrir com o
tamanho sempre infinito da escuridão. Também ele tinha um tamanho cada vez mais
infinito. E não caía. Sentia que se levantava”142.
Uma narrativa que nos remete, de forma sutil e figurativamente, a esse
ambiente favorável à criança e ao sentimento de pertencimento que ela deve nutrir em
lugar de desunião, desagregação, etc, e que serve à reflexão sobre onde este ambiente
e sentimento pode ser construído: no processo judicial ou no de mediação? Ainda,
para uma avaliação eminentemente prática, pode ser referido que o tempo médio de
tramitação dos processos judiciais baixados no primeiro grau na Justiça Estadual em
todo o país é de aproximadamente oito anos e onze meses!143 Ora, com dez por cento
deste período dispensado à aplicação de procedimento de mediação já se poderia
antever transformação social na abordagem destes conflitos144. Não se trata de terapia,
mas por certo terá efeitos terapêuticos.
Pensamos que poderá ocorrer na prática da mediação como verdadeira
transformação dos conflitos conjugais/parentais em proteção e priorização aos direitos
dos filhos do divórcio. Via a ser incentivada e acessada para a permanência dos
vínculos parentais fundamentais de forma organizada. A mediação já está inserida no
estatuto processual civil e lei específica e se constitui da aplicação, através de sessões
de mediação com a participação de mediadores e advogados em recomendável
colaboração, de procedimento profissional e específico a permitir e facilitar a
retomada e/ou melhoria da comunicação entre todos os envolvidos. Portanto,
recomendável e adequadamente aplicável às causas de família para a mantença
daqueles vínculos contínuos145.
Procedimento que traz inúmeras vantagens e benefícios em todos os aspectos –
a formação de cultura da paz, o aprendizado, a corresponsabilidade, o protagonismo
decisório (controle das decisões), a sensível economia de tempo, de recursos humanos
e financeiros, a simplificação processual, e, principalmente o cuidado permanente
142
MÃE, Valter Hugo. O Filho de Mil Homens. Biblioteca Azul Editora. P. 191.
143
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83679-fase-de-execucao-e-a-que-mais-aumenta-tempo-de-
tramitacao-de-processos (acesso em 08/08/2018).
144
MOLINARI, Fernanda. Op. cit., p. 206.
145
HAINES, John M. e MARODIN, Marilene. Fundamentos da Mediação Familiar. Editora Artes
Médicas. Porto Alegre. 1996. p. 11.
com os filhos do divórcio. Para tanto, necessário empreender estudo interdisciplinar,
notadamente da contribuição da psicologia jurídica que pode “auxiliar ainda a Justiça
a se tornar mais ágil e eficaz, assim como evitar a judicialização de fatos passíveis de
serem resolvidos na instância da mediação, promovendo a superação da crise no
sentido da reconstrução familiar. Como a família é um lugar de transformações, a
Psicologia Jurídica deve acompanhar as mudanças e evitar a banalização do processo
jurídico de divórcio.”146

Referências

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Internacional de Filosofia del Derecho, Etica y Política. México, D. F. Universidad

146
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1996.
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Campinas: Millennium Editora, 2010.
MEDIAÇÃO FAMILIAR: UM VIÉS
RECONSTRUTIVO SOCIAL NO CONTEXTO DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Denice Machado de Campos147

Introdução
Em agosto de 2006 a Lei 11.340 foi sancionada. Entrava em vigor a Lei
Maria da Penha, um marco histórico e concreto na legalização do crime de violência
contra mulher.
A nova legislação passou a tratar crime há muito cometido apaisana, velado e
encoberto dentro dos lares das mais diversas famílias, nas diversas classes sociais.
A entrada em vigor da lei travou um embate público, uma nova era de busca
de efetividade, cumprimento e políticas públicas da nova lei. Com isso, todo um
sistema de novas regras, sanções, punições ao agressor foi instituído. Em muito se fez
ao longo desses 12 anos e há ainda uma longa caminhada a percorrer.
A legislação institui diversas medidas de proteção a mulher vítima de
agressão doméstica, sendo o afastamento do agressor do lar e do convívio familiar a
medida mais brusca e eficaz no rompimento do convívio agressor/vítima, trazendo um
alívio imediato e uma rede de segurança antes não havida.
Mas o afastamento do agressor de fato é medida eficaz, definitiva e compraz
a solução de toda celeuma que envolve o ambiente violento nas suas diferentes
esferas: física e psicológica?
Cremos que não. O contexto familiar vai além do dito, do falado, do
palpável. Trata também de sentimento, de expectativas, de realidade, de amor, de
núcleo familiar, que com o afastamento do agressor do lar acaba por tornar a família
"objeto" intangível.
Em muito já se discutiu e leu sobre a resistência das mulheres em fazer
queixa e denuncia do agressor ou até mesmo em dar continuidade ao processo
judicial. E a que se atribui tal silêncio e aquiescência? Temor, amor, receio de novas
represálias, aceitação, não aceitação do rompimento do vínculo afetivo?

147
Advogada e pós graduada em Direito de Família e Sucessões.
São todos, nenhuma ou estas e demais tantas possibilidades? O fato é que o
direito como ciência legislativa, não dá conta de responder e resolver esse
emaranhado de questões que permeiam o complexo aparato familiar, individual e
afetivo.
Poder-se-ia questionar a extensão de eficácia legislativa?
Entendemos que a resposta é afirmativa. No viés protetivo não há duvidas
que a legislação é um marco positivo que deve ser mantido, ampliado, reescrito tantas
vezes quantas forem necessárias afim de efetivar e colocar fim a violência doméstica
e agressão contra mulher.
E no viés afetivo, psicológico, sentimental, de que forma podemos dar
efetividade e voz ao sentimento e sentido da vida do ser agredido e do núcleo familiar
existente?
Há muito e a passos lentos se discute a necessidade da interdisciplinariedade
da ciência legislativa com outros saberes. “A legislação protetiva contra a violência
familiar está posta na lei, no entanto o poder judiciário não oferece um espaço
adequado de escuta aos envolvidos no conflito familiar.” (THOMÉ, 2013) E no
âmbito da violência doméstica essa necessidade se denota mais premente a considerar
toda organização e alicerce familiar.
E exatamente neste aspecto e ponto que se faz importantíssimo a inserção de
mecanismos de outras ciências a prestar engrandecimento e efetividade à legislação.
Nesse ponto a mediação familiar seria a base de retomada de reconstrução individual,
dos vínculos afetivos, familiares que regem a vida da pessoa humana e a formação
digna da sociedade.
Assim e diante deste contexto faremos analise legislativa da violência
doméstica e suas consequências, bem como, analisaremos este contexto
familiar/afetivo na pessoa da vítima e do agressor, traçando um paralelo entre o
conflito, sanção punitiva com consequência da desestrutura familiar e a possibilidade
de retomada da convivência, entendimento e tratamento das partes envolvidas através
da mediação.

1. Violência Doméstica e suas nefastas consequências no âmbito familiar


Como já referido, há 12 anos a coibição e sanção contra a violência
doméstica criou formato e tornou-se legislação específica, com criação de políticas
públicas afirmativas de coibição de condutas agressoras, repressoras havidas no
contexto familiar. Importante destacar que antes da criação da lei 11.340/2006 havia
em tipificação e sanção para condutas insurgidas contra a mulher no Código Penal,
Processual Penal de forma genérica e ineficaz.
A criação de lei específica para o crime de violência doméstica deu corpo,
nome e voz às condutas dos agressores. A legislação tratou de conceituar e enumerar
exemplificativamente o rol de condutas que passaram a ser tipificadas como crime
contra a mulher, enumerando e dividindo-as nas seguintes esferas: I- violência física;
II – violência psicológica; III – violência sexual; IV – violência patrimonial e V –
violência moral.
As condutas agressoras se dão de forma conjunta, extensiva ou apenas em
um dos campos enumerados pela lei. Acontecendo qualquer tipicidade elencada está a
mulher protegida e amparada pela legislação, devendo de forma imediata denunciar a
agressão e seu agressor. Vale lembrar que a violência contra a mulher tratada pela Lei
Maria da Penha ocorre dentro do lar, no ambiente familiar, com alguém que a
agredida tem vínculos de afeto, intimidade e convivência permanente.
Em sendo assim, o agressor não é terceiro estranho as partes, a família da
agredida e a ela mesma. Num contexto geral, o agressor tem papeis familiares
importantíssimos na vida daquele ser que convive, inclusive da própria agredida.

O agressor geralmente desempenha vários personagens no sistema em que


a criança ou o adolescente estão inseridos:pai-provedor-agressor, pai-
provedor-companheiro-agressor, irmão--filho-agressor, avó-provedor-pai-
agressor. Enfim, suprimir o personagem que o autor da agressão representa
significa também se ausentar de outras personificações importantes para as
vítimas e outros componentes de sua rede familiar. (DAMASIO. P8)

Talvez por esse contexto, que se dá exatamente entre vítima e aquele com
quem detém uma relação de proximidade, de amor e muitas vezes de dependência que
as denúncias ou prosseguimento das ações criminais, conforme veiculado nos
informativos e noticiários, ainda sejam consideradas diminutas. Há uma
complexidade de papéis, sentimentos envolvidos nos contextos de violência contra
mulher que vão do local de ocorrência ao papel que o agressor desempenha em sua
vida: pai, namorado, irmão, marido, etc.
Assim, ocorrendo a agressão, prestando a agredida queixa e fazendo a
denúncia, algumas medidas protetivas e imediatas podem ser concedidas de ofício
pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou mesma a requerimento da
ofendida148, sendo aplicáveis ao agressor:

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a


mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao
agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas
de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao
órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de
2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando
o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer
meio de comunicação;
c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade
física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a
equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

E outras, de forma ou não cumulativas aplicáveis à ofendida:

Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou
comunitário de proteção ou de atendimento;
II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao
respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos
relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV - determinar a separação de corpos.

Vê-se que em boa medida, quase em sua totalidade as medidas judiciais


constituem-se em afastamento ou mesmo impedimento de convivência entre agressor
e agredida. Rompendo o vínculo familiar entre ambos e entre o agressor e seus
descendentes e demais familiares.
Desta aparato protetor denota-se a limitada ingerência e efetividade
legislativa no complexo contexto familiar. Pois bem, com o afastamento do agressor
do lar, de forma imediata temos a “solução” do problema.
Mas a extensão desse afastamento vai além da questão física. Como ficam a
psiqué da agredida, seus filhos e do próprio agressor? O alcance legislativo está
aquém das efetivas e reais necessidades dos envolvidos no contexto de violência
doméstica.

148
Artigo 19 da Lei 11.340/2006
Tratar a psiqué da agredida nos casos de violência doméstica é questão
salutar, trazer o enfrentando pessoal, empoderamento e reconhecimento próprio
dentro deste contexto cria um novo cenário, um novo paradigma, uma nova
perspectiva para assim criar uma nova realidade, que será extensiva aos seus.

2. O Agressor: um olhar interdisciplinar para com a conduta e o agente


– um possível resgate
Indiscutível a necessidade de mecanismos interdisciplinares a tratar a
agredida e os demais figurantes deste contexto familiar. Mas e neste aparato doentio
e perverso que se constitui a violência doméstica, há tratamento e remédio possível ao
agressor? Há como retornar a convivência com este ser humano que de forma direta
ou indireta destruiu os mais diversos sonhos e afetos da agredida e da família.
Há concepção pré estabelecida de que a conduta se dá de forma voluntária,
desejada e pré determinada, em analisando este contexto poder-se-ia inferir que a falta
de empatia, humanidade do ser agressor o impediriam de uma mudança eficaz e
retomada de vínculo familiar.
Contudo, devem ser questionadas e trazidas a análise as condições familiares
e pessoais pregressas do agressor. O ser humano, tem a habilidade de reproduzir sem
questionar as situações e contextos aos quais fora exposto, ou mesmo ao ambiente em
que fora criado. Nessa analise percebe-se que há um contexto muito maior a ser
avaliado na pessoa no agressor do que propriamente o fato isolado de uma agressão
específica.
Nesse contexto, desde o início, a família tem enorme influência no
desenvolvimento da criança. Os vínculos formados durante a primeira
infância afetam a capacidade de estabelecer relacionamentos íntimos
posteriores ao longo de toda a vida, marcando as experiências seguintes
enquanto expressões emocionalmente reeditadas de acordo com os padrões
preestabelecidos nas relações afetivas dos vínculos precoces (attachment).
(TRINDADE, 2017)

Neste ponto, imprescindível extrair da entrevista concedida por Maria da


Penha à revista IBDFAM. Maria da Penha é mãe, mulher, farmacêutica, que no ano
de 1983 fora alvejada por seu ex companheiro e pela denúncia do crime realizou
incansável busca por justiça, levou seu nome a legislação que é referência mundial no
combate contra violência doméstica.
Na busca incansável por justiça, legislação efetiva, de recuperação,
empoderamento, reconhecimento da mulher asseverou a necessidade de extensão
deste mesmo tratamento e auxílio ao agressor: “Isso, é cultural. O homem também
precisa ser assistido pela lei [...] para os conscientizar da necessidade de mudar. Os
homens e as mulheres foram criados pegando duas gerações atrás, em um ambiente
vendo o pai batendo na mãe e o avô batendo na avô.” (IBDFAM Maio 2018)
O tratamento de uma sociedade doente não é advindo de uma legislação
sancionatória e punitiva. A lei trata o efeito, mas sua causa é precedente, é
preexistente. Dessa forma, pode-se inferir que se não tratadas as causas, o ser humano
e seu âmago, não haverá lei penal/punitiva capaz de acabar com este cenário. Teremos
condutas reiteradas e uma conduta cíclica agressora dentro dos lares.
Ante este cenário, o enfrentamento, tratamento e analise dessa condição é
imprescindível, seja para uma reeducação psicológica e física do agressor e do(a)
agredido, seja para não repercussão e repetição dessa conduta.
É neste contexto que a interdisciplinaridade e uso de outras ciências se torna
imprescindível no contexto da violência doméstica. Não se trata aqui de solucionar a
totalidade dos casos com acompanhamento e tratamento apenas da psiqué, mas de não
dissociar essa realidade e abordagem.
E é a partir deste contexto que se cria uma nova realidade, vários são os
mecanismos de solução de conflitos, salutares em situações como as de agressão
doméstica, dentre eles a psicologia, psicanálise, e nos quais nos deteremos por ser
solução conjunta familiar de conflitos: A MEDIAÇÃO.

3. Mediação como forma de construção de uma nova realidade


Há mais de 20 anos se discute e se busca introduzir no ordenamento jurídico
brasileiro o instituto interdisciplinar da Mediação. Desde 1995 estudos são realizados
e medidas foram propostas com bases nas vertentes da legislação europeia pautada na
mediação como transformação do conflito e vertente norte americana, esta visando o
desafogamento do judiciário. Após longos anos de estudos, práticas e tentativas de
consolidação em 26 de junho de 2015 foi sancionada a Lei 13.140/2015, que
conceitua e institui a Mediação em nosso ordenamento jurídico. A legislação
conceitua mediação como: “p. ú. Art.º1.Considera-se mediação a atividade técnica
exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas
partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a
controvérsia.”
Em que pese legalmente instituído o instituto seja em lei específica, seja pela
determinação instituída pelo Código de Processo Civil sua aplicação e utilização é
facultativa e não obrigatória entre as partes, limitando-se a tratar apenas sobre direitos
disponíveis, tendo como princípios básicos:
Art. 2º A mediação será orientada pelos seguintes princípios:
I - imparcialidade do mediador;
II - isonomia entre as partes;
III - oralidade;
IV - informalidade;
V - autonomia da vontade das partes;
VI - busca do consenso;
VII - confidencialidade;
VIII - boa-fé.

A considerar seu caráter autônomo, imprescindível que a mediação seja


sugerida e não imposta, por se tratar de um meio alternativo e autônomo de vontades,
o instituto somente será utilizado se as partes envolvidas no conflito concordarem, dai
o princípio de autonomia da vontade das partes.
No mais, ainda que concordem em participar, podem os mediandos a
qualquer tempo desistir de continuar com o procedimento da mediação 149 .
Imprescindível que se diga que o objetivo fim do instituto é possibilitar e
reestabelecer o diálogo entre as partes, que a partir deste novo cenário, podem ou não
traçar nossos caminhos e métodos possíveis de conduta, convivência ou diálogo
naquele ambiente de conflito.
Não há na mediação qualquer condição ou obrigatoriedade de estabelecer
acordo, tratativa ou mesmo solução para o conflito existente. A mediação não tem
como finalidade acordar e pôr fim ao conflito judicial, mas sim, propiciar as partes
que estas através de suas próprias vivências, certezas, necessidades estabeleçam o
diálogo.
No contexto da mediação as partes não estão como oponentes, mas como
colaboradores, não são tratadas como autor/réu, mas de forma igualitária como
mediandos. Não falam através de terceiro, como ocorre nos processos judiciais, que
são representadas por advogados e por estes tem suas versões e supostos direitos
representados, na mediação as partes são quem por sua própria representação colocam
os pontos divergentes e convergentes e através destes o mediador auxiliará para que
os mediandos acessem e criem por si só uma nova realidade e paradigma150.

149
§2º do artigo 2§ da Lei 13.140/2015
150
§1º do artigo 4º da Lei 13.140/2015
O procedimento da mediação é confidencial e todo o tratado e falado nas
reuniões de mediação ficará entre as partes envolvidas, não podendo inclusive, ser
levado os fatos falados na sessão mediação para dentro do processo judicial, a menos
que em sentido diverso os mediandos acordem. É vedado também aos profissionais e
partes envolvidas prestarem depoimento ou liberarem informações tratadas nas
sessões de mediação 151 ou assessorar e/ou representar qualquer das partes pelo
período de 01(um) ano após encerrado o procedimento152. As sessões de medição
podem ser realizadas em conjunto ou separadamente com os mediandos, de acordo
com a necessidade e conveniência do caso e das necessidades de cada um153.
Como se observa há uma indiscutível nova conjuntura estrutural de solução
dos conflitos através da mediação.
O instituto da mediação fora instituído e introduzido no ordenamento jurídico
como ferramenta e forma de solução de conflitos a ser utilizado nas ações cíveis e de
direito de família, como se denota explicitamente pela legislação específica e pelo
artigo 694 do Código de Processo Civil: “Art. 694: Nas ações de família, todos os
esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o
juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a
mediação e conciliação.
A flagrante e irrefutável necessidade de ampliação dos institutos e
mecanismos para eficácia e efetivação legislativa, institui-se por intermédio da Lei
13.140/2015 a Mediação nos contextos judicias nas diferentes esferas e entende-se sua
extensão e aplicabilidade também nos contextos penais.
E a que se atribui deveras importância a inclusão do instituto no cenário
jurídico atual? Para Dra. Sandra Inês Feitor, advogada e representante da Comissão de
Mediação do IBDFAM “importância da inserção da interdisciplinaridade nas
questões envolvendo conflitos familiares é questão de suma relevância. A
objetividade do Direito jamais dará conta da solução destes conflitos repletos de
subjetividades”.
Crê-se que o instituto da Mediação fora instituído para efetivar, para
solucionar de forma eficaz os conflitos levados ao judiciário. Explica-se: na mediação
como antes referido, ao inverso do decorrente nas ações judiciais, onde as partes não

151
Artigo 7º da Lei 13.140/2015
152
Artigo 6º da Lei 13.140/2015
153
Artigo 19 da Lei 13.140/2015
atuam diretamente, mas sim através de terceiros, advogado, promotor, defensor, sem
contudo, serem ouvidos ou mesmo ter por eles, partes, contadas suas histórias, o que
por questões óbvias determina um ganhador e um perdedor, no contexto da mediação
o cenário se inverte, sendo neste contexto as próprias partes que figurarão de forma
ativa e em nome próprio na defesa de suas reinvindicações. (MOLINARI, 2016)
E no que efetivamente constitui dar voz e ouvidos as partes envolvidas num
conflito judicial? Via de regra, são levadas ao judiciário aquelas questões em que as
partes por convergência autônoma não conseguem decidir, chegar a um consenso,
ouvir e ser ouvidas. Assim, procuram profissionais habilitados para que judicializem
conflitos. Neste contexto, o profissional terá acesso a parte do problema, das
informações, munido dessas informações adequará fatos ao direito e formulará um
andamento processual em que a parte adversa (em se tratando de judiciário passamos
a ter adversários) falará através de terceiro, profissional também habilitado, sua
versão da história.
Claramente verifica-se que as partes originariamente envolvidas no conflito
“perdem voz” passando a representação de terceiro. Ocorre, que nem sempre a
solução judicial é eficaz e cumprida, na medida em que é imposta a parte “perdedora”
que não raro sente-se injustiçada com o decidido.
Ocorre, que em todas as esferas e searas da vida humana o diálogo,
autoconhecimento e autopercepção deve ser a regra para qualquer solução eficaz, daí
então o questionamento e necessidade de implementar-se o instituto também no
âmbito do processo penal, especificamente nos casos de violência doméstica, que
notória e indiscutivelmente se trata de relação familiar.
Como já tratado a Lei Maria da Penha como toda lei penal atua como ultima
ratio, como sanção punitiva e controladora a conduta e ao agente, não tendo condão
ou viés reestruturatório familiar ou mesmo reconstrutivo das pessoas envolvidas.
Nos processos que envolvem violência doméstica o diálogo que presume-se
era precário ou inexistente com a aplicação das medidas protetivas judiciais passa a
ter uma ruptura total, não só na relação agredida/agressor, mas também entre os
demais membros daquele núcleo familiar. Com isso, obviamente não só o vínculo
agressor/vítima é rompido, mas todo o vínculo afetivo/familiar também. Assim, se
põe fim ou da solução a um ponto em especifico – a agressão - e cria-se um novo
cenário de ruptura e sofrimento.
E este é o ponto fulcral, o qual retomamos, a necessidade de aplicação de
medida alternativa eficaz que lei punitiva não dá conta de alcançar. Considerando que
o instituto da medição não tem como carácter a solução do conflito, mas sim
reestabelecer o diálogo entre as partes, para que estas se percebam enquanto pessoas e
se percebam naquele cenário, crê-se que instituindo a mediação neste contexto
teremos uma mudança de cenário, não apenas da situação, mas de consciência do
agressor, de se perceber e perceber os seus neste contexto. É um trabalho e tratamento
que se realiza para além do momento atual, mas que cria uma nova perspectiva e
consciência, inclusive social.
Há, contudo uma resistência de aplicabilidade do instituto no processo penal,
a considerar e entender que as condições físicas e psicológicas da mulher não são e
não podem ser negociáveis ou mesmo passíveis de resolução que não à sanção penal.
Estar-se-ia a negociar um direito adquirido com muita luta, sofrimento e vidas e que
portanto, tal medida não seria aplicável a lei penal, em especial Maria da Penha.
Contudo, este entendimento, nos parece escorreito e limitado, a considerar
todo o contexto que envolve o ambiente familiar e os desejos intrínsecos de cada ser,
que é único em habilidades, vontades, desejos e anseios. No mais a própria lei de
Mediação estatui em seu §1º do artigo 3º que: “§ 1o A mediação pode versar sobre
todo o conflito ou parte dele.” Assim, em que pese inegociável a conduta e sanção
aplicável ao agressor, todo o contexto familiar, de convivência que envolve as partes
pode e deve ser tratado.
No mais como brilhantemente esclarece a advogada e mediadora Águida
Arruda Barbosa: “É preciso compreender que o poder simbólico do Judiciário e o
ambiente da audiência constituem um ritual que encoraja as partes a uma mediação,
cuja função é dar voz à pessoa para que possa dispensar a tradução de seu
sofrimento pela palavra do advogado ou da sentença”.
Em sendo assim, necessário e compraz utilizarmos deste cenário e contexto
para promover uma mudança de atitude, mas mais que isso, de consciência no âmbito
destas relações, considerando a faculdade de composição do conflito por intermédio
da mediação, que não visa pôr fim ao cenário contextualizado e judicializado da
violência doméstica, mas sim promover o diálogo o reestabelecimento de algumas
condutas e até mesmo do próprio convívio familiar.
A mediação caracteriza-se como procedimento informal, voluntário, não
adversarial, dotado de linguagem interdisciplinar, com foco prospectivo e
embasado em uma lógica ganhador-ganhador, no qual um terceiro
imparcial (mediador), por meio da escuta qualificada, auxilia os mediandos
a restabelecer a comunicação que havia sido rompida e a encontrar a
melhor solução para o impasse em que se encontravam. (GOMES, 2017)

Há que se lembrar que violência doméstica ocorre dentro do ambiente


familiar, e que a família constitui a base organizacional da nossa sociedade, e que os
institutos jurídicos visam proteger e amparar este contexto. Dessa forma, ainda que
inegociável, irrenunciável a proteção a dignidade da mulher, seu direito a denúncia,
representação, não são diametralmente opostos ao reestabelecimento de um diálogo,
de um tratamento humanizado entre as partes envolvidas.
A que se considerar que a própria condição da agredida a coloca em situação
de inexpressão de vontades, sentimentos, desejos, que se veem reprimidos pelo
agressor. Propor as partes a Mediação é dar voz a quem sofreu por longo tempo
calado. É permitir, que a vítima possa de forma segura exteriorizar diretamente ao seu
agressor o tanto que lhe agrediu, ofendeu a psiqué.
Dá mesma forma, colocar o agressor a analisar o contexto que está inserido,
suas condutas, para que assim possa se avaliar, se perceber e expressar o que sente e o
motiva.

A mediação fundamenta-se teoricamente em linguagem própria, que não


comporta julgamento e exclusão, mas, compreensão e inclusão. (...) é
regida pela conjunção e – aditiva – comportando infinitas alternativas para
uma determinada situação, de acordo com os recursos pessoais dos
litigantes e do mediador.
(...)
A mediação não visa ao acordo, mas sim à comunicação entre os
conflitantes, com o reconhecimento de seus sofrimentos e, principalmente,
com a possibilidade que o mediador oferece aos mediandos de se
escutarem mutuamente. (...) [Visa à] recuperação da responsabilidade [dos
mediandos] por suas escolhas e pela qualidade de convivência para a
adequada realização da relação jurídica que os vincula, usando como
técnica o deslocamento do olhar que se move do passado e do presente
para se voltar ao futuro. (GOMES, 2017)

Não há como se estabelecer justiça, calando a voz de alguém. Não há justiça


efetiva, quando se retira do ser humano sem dar-lhe espaço de reconhecimento aquilo
que lhe dá dignidade e sentido: o ser. E em busca dessa nova construção individual é
que se criará uma nova e possível realidade social.

Considerações Finais
Sem dúvidas é de considerar o efetivo e valoroso avanço no combate e
medidas de defesa contra a mulher desde a promulgação da Lei Maria da Penha.
A importância do cumprimento efetivo e de políticas públicas de combate a
violência doméstica é salutar para o desenvolvimento e crescimento de uma nova era
social. Juntamente com os avanços legislativos, devem advir políticas de
conhecimento, reconhecimento e intensificação da interdisciplinaridade das ciências
no contexto de violência. Em especial nas áreas afetas ao direito de família,
exatamente no contexto de ocorrência da violência doméstica, que ocorre no âmbito
familiar, exatamente onde se encontra o cerne da nossa sociedade.
Tratar o problema, sem tratar a causa é manter a engrenagem abusiva e de
certa forma, corroborar com tais condutas.
O ser humano é complexo, é feito e constituído de um passado, de uma gama
de influências e referências e mudando e trazendo esta consciência para a sociedade,
para o indivíduo agressor abrir-se-á portas e caminhar-se-á para solução efetiva e
construção de uma sociedade justa e igualitária.
A mediação no contexto de violência doméstica constitui abertura para o
diálogo, consciência e voz daqueles envolvidos, que por si só podem através de
diálogo chegar a soluções para convivência, paternidade efetiva e cessação do círculo
agressor.
A complexidade do contexto de violência doméstica necessita da composição
de ciências de naturezas distintas ao direito. E a mediação está a serviço e para este
panorama é forma efetiva e inicial para solução efetiva dos conflitos.
A interdisciplinaridade é considerada como a mais recente tendência da
teoria do conhecimento, decorrência obrigatória da modernidade, por se tratar de um
saber oriundo da predisposição para um “encontro” entre diferentes pontos de vista
(diferentes consciências), o que pode levar, criativamente, à transformação da
realidade. (ALMEIDA, 2003).
É indiscutível uma abordagem interdisciplinar, do direito, da psicologia, quer
para a compreensão das dinâmicas existentes nos contextos de agressão intrafamiliar,
quer na perspectiva deste olhar interdisciplinar com relação à utilização da mediação
nestes contextos. A interdisciplinaridade nada mais é do que a pluralidade de vias
reconstrutivas do ser que é plural e único na essência.
Referências

BARBOZA, Águida Arruda. A Política Pública Da Mediação E A


Experiência Brasileira. Disponível em:
<http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/204.pdf, acessado em 26/08/2018
as 19hs.
BRASIL. Lei 11.340/2006. Lei Maria da Penha. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
BRASIL. Lei 13140/2015. Lei da Mediação. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13140.htm
CRISTIANO CHAVES DE FARIAS. Família e Sucessões sob um Olhar
Prático. Coordenação: Delma Silveira Ibias; Diego Oliveira da Silveira. Porto Alegre:
IBDFAM/RS: Letras&Vuda, 2013. p. 262/280.
GOMES, Jesus Tupã Silveira. A Mediação como Instrumento de Recuperação
dos Vínculos Afetivos estabelecidos nas Relações Familiares. In: ROSA, Conrado
Paulino da (Org.). Olhares Interdisciplinares sobre Família e Sucessões. Porto
Alegre: RJR, 2015, p. 67-88
IBDFAM. Porque Vidas Importam. Abril/maio. 2018. Disponível em:
http://www.ibdfam.org.br/publicacoes/leitor/1216 <acessado em 30/07/2018 as 17hs>
IBDFAM. O Poder da Mediação. Método Alternativo para Solução de
Conflitos. Dez2017/Jan2018. Disponível em:
http://www.ibdfam.org.br/publicacoes/leitor/1214 <acessado em 28/07/2018 as
16hs.>
JESUS, Damasio. Violência contra a mulher: aspectos criminais da Lei n
11340/2006. 2 ed. – São Paulo: Saraiva, 2015.
MOLINARI, Fernanda. Mediação de Conflitos e Alienação Parental. Porto
Alegre: Imprensa Livre, 2016. p. 129/154.
TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do
Direito. 8ed. Ver. Atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 87/95.
“ESSA VAGA NÃO É SUA, NEM POR UM
MINUTO!”: ESTUDOS SOBRE OS DIREITOS
JURÍDICOS E PSICOLÓGICOS DA CRIANÇA
COM NECESSIDADES ESPECIAIS

Deise Lopes Craide154

Introdução
O presente capítulo tem como objetivo, realizar uma análise sobre os direitos
jurídicos e psicológicos de crianças com necessidades especiais, mais
especificamente, crianças com dificuldades físicas, cadeirantes.
Como profissional da Psicologia, observamos inúmeras situações no
consultório e na sociedade, em que muitos direitos estão sendo violados. Partiremos
de situações reais (todas com prévia autorização) vivenciadas por crianças cadeirantes
e suas famílias, como uma reflexão para que todos nós tenhamos um olhar e atitudes
de respeito com todos os seres humanos, tendo, cada um, as suas mais variadas
particularidades.
Iniciamos trazendo uma cena típica muito comum. Pensemos:O que você sente
quando tenta estacionar o seu carro, numa vaga para automóveis, e essa vaga está
ocupada por uma motocicleta? Vontade de derrubar a moto? Chamar os ‘azuisinhos’
para multar a moto? Chamar um caminhão guincho para levar a moto embora?
Lembrar educadamente o motoboy que essa vaga não é dele? Pois as vagas de
estacionamento dedicadas a pessoas com necessidades especiais, muito seguidamente
estão ocupadas por motoboys ou automóveis que não estão com pessoas com
necessidades especiais.
“-Moço! Por gentileza, tu estás com uma pessoa cadeirante aí no carro?”
“– Não!”

154
Psicóloga formada na UNISINOS em 1995, trabalhando com Atendimento Clínico no município de
Lajeado/RS, há 22 anos. Especialização no Atendimento Clínico da Infância e Adolescência, concluída
no CEAPIA (Centro de Estudos, Atendimento e Pesquisa da Infância e Adolescência) em 1998.
Formação em Mediação de Conflitos, concluída na CLIP (Clínica de Psicoterapia e Instituto de
Mediação) em 2013. Especialista em Psicologia Forense – XIX Edição do Curso promovido pela
Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica, no Instituto de Psicologia Professor Jorge Trindade.
Membro do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) / RS – Núcleo de Lajeado. E-
mail:deisecraide@hotmail.com.
“– Então, por favor, me dá licença nessa vaga, pois preciso desembarcar
minha filha cadeirante?”
“- Mas é só um minutinho... meu colega só foi buscar um documento e já
volta!”
“- Essa vaga não é sua, nem por um minuto!” – é a resposta que sempre dá
vontade de dizer...
Já sabemos o quão difícil é, no nosso país, as leis serem cumpridas.
Lembremos o uso do cinto de segurança, que causou tanta resistência até que fosse
internalizada a idéia, sabendo de sua importância para segurança de todos, evitando
maiores danos à saúde dos motoristas e passageiros.
Com esse mesmo intuito de segurança e saúde, também foi criado o Estatuto
da Pessoa com Deficiência, estabelecendo regras de proteção às pessoas com
deficiências, para serem incluídas na sociedade, exercendo seus direitos, em igualdade
de condições.
Os autores Heloísa Helena Barboza e Vítor Almeida ao escreverem sobre o
reconhecimento, a inclusão e a autonomia das pessoas com deficiência, apresentam-
nos novos rumos na proteção dos vulneráveis. Os autores lembram a incorporação à
ordem constitucional brasileira da Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, que, por força do Decreto nº
6.949, de 25 de agosto de 2009, revolucionou essa questão, colocando-a no patamar
dos direitos humanos e adotando o modelo ‘social’ sobre o entendimento de
deficiência. “Os direitos humanos são fruto de árduo processo histórico de conquistas
de liberdades e garantias inerentes à condição humana que foram amealhadas desde o
início da era moderna, mas intensificados após o fim da Guerra Mundial”.155
Os autores nos lembram que o reconhecimento se torna peça fundamental para
o processo de inclusão social da pessoa com deficiência.
Inicialmente, faremos uma reflexão, junto a importantes autores da Psicologia,
analisando vivências fundamentais ao Desenvolvimento Infantil.

155
BARBOZA, Heloísa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JÚNIOR, Vítor de
Azevedo. O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência/ Heloísa Helena Barboza, Bruno
Lima de Mendonça Vítor de Azevedo Almeida júnior (coordenadores) – Rio de Janeiro: Processo,
2017. p. 03.
1. O reconhecimento psicológico como peça fundamental à construção de
todos os vínculos e ao desenvolvimento infantil
Ao falarmos de inclusão social, é necessário refletirmos sobre a inclusão social
do ser humano, o que nos remete aos estudos do Desenvolvimento Psicológico
Infantil.
Fraiberg156 nos diz que com o nascimento de um filho, os pais reatualizam
suas experiências dos cuidados precoces que eles receberam, reeditando as relações
pais-filhos que viveram no passado.
Conforme Brazelton e Cramer 157, as características do próprio bebê e as
reações deste, especialmente à mãe, vão construindo o vínculo afetivo do bebê com o
mundo, de modo que a mãe vai dando um significado ao comportamento do bebê, o
qual, por sua vez, vai respondendo aos significados que lhe foram conferidos.
Mahler158 descreve que o nascimento psicológico do bebê inicia gradualmente
num período de separação-individuação, precedido de uma fase simbiótica normal,
onde a necessidade que a criança tem da mãe, é absoluta, e a necessidade que a mãe
tem da criança, é relativa. A autora propõe que a inserção de experiências cenestésicas
globais da mãe para com o bebê (abraçar, tocar, amamentar, olhar, sorrir, falar e
cantar com o bebê) auxiliam o bebê a formar o núcleo do eu, onde as sensações
internas do bebê diante dessas experiências vão estabelecer um “sentido de
identidade”.
Winnicott, partindo de sua clínica, dedica-se ao estudo da importância do
papel da mãe no desenvolvimento do bebê. O autor nomeia essa forma particular de
ser capaz de cuidar de um bebê, como “Preocupação Materna Primária”, na qual:“[...]
a mãe fornece um setting no qual a constituição do bebê pode se mostrar, suas
tendências de desenvolvimento podem começar a se revelar e o bebê pode
experimentar um movimento espontâneo e dominar as sensações apropriadas a esta
fase inicial da vida.”159

156
FRAIBERG, S. et al. Fantasmas no quarto do bebê. IN: Publicação CEAPIA. Porto Alegre,nº7.
1994.
157
BRAZELTON B. CRAMER B. As primeiras relações. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
158
MAHLER, M. Simbiose e Individuação: o nascimento psicológico do bebê (1974). In: O Processo
de Separação-Individuação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982.
159
WINNICOTT, D. O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In: O brincar
e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1973. p. 495.
Anne Alvarez 160 , ao investigar a existência de contrapartes normais do
relacionamento cuidador-bebê, refere-se a Wilfred Bion, um importante psicanalista
britânico, que descreve o conceito de Continência Materna, onde a mãe, através de
seu reverie, faz um tipo de digestão mental que, devido aos seus processos digestivos
mentais mais maduros, possibilita-lhe vivenciar de uma forma suportável, a angústia,
a raiva ou o medo do bebê, chamando esse processo de atividades “reivindicatórias”,
que são as atividades de mães comuns com bebês comuns, onde as mães fazem o
primeiro movimento e seus bebês parecem sentir prazer nessa oportunidade de
comunicação.
Brazelton e Cramer161, descrevendo a interação mãe-bebê, também conferem
grande importância ao que o bebê oferece à sua mãe, que confere grande significado
ao menor gesto por parte da criança, sendo que é a esse “significado injetado” que
reagem. Nesse jogo, o que está em ação, é o mundo subjetivo da mãe (sua história
passada, seus conflitos e seus valores) e também as características inatas do bebê
(sexo, aparência, capacidade de relação homeostática,...) que confortam as fantasias
que os pais desenvolvem em relação ao seu filho.
David Zimerman, renomado psicanalista brasileiro, nos descreve quatro
sentimentos presentes ao se desenvolver a construção do vínculo afetivo. O autor
parte de Bion, que destacou três vínculos fundamentais: o Amor, o Ódio e o
Conhecimento, propondo um quarto vínculo – o Reconhecimento “[...] por acreditar
que os quatro estão sempre juntos, inseparáveis e interagindo entre si – de modo que,
conforme a predominância da qualidade dos vínculos – se sadia ou patológica – são
determinados o nosso comportamento e a nossa qualidade de vida.”162
Revendo os estudos de Mahler163, no Desenvolvimento Psicológico da criança,
à medida em que o bebê começa a ter mais autonomia, desenvolvendo e crescendo, a
mãe, simultaneamente, vai se gratificando com seu filho, acreditando que está sendo
uma boa mãe, o que enriquece a relação entre ambos, onde, então, a mãe passa a ser
um parceiro pós-simbiótico, colaborando no processo de separação-individuação do

160
ALVAREZ, Anne. Companhia Viva: Psicoterapia Psicanalítica com Crianças Autistas, Borderline,
Carentes e Maltratadas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
161
BRAZELTON B. CRAMER B. As primeiras relações. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
162
ZIMERMAN, David. Os Quatro Vínculos: Amor, Ódio, Conhecimento, Reconhecimento na
Psicanálise em nossas vidas. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 26.
163
MAHLER, M. Simbiose e Individuação: o nascimento psicológico do bebê (1974). In: O Processo
de Separação-Individuação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982.
bebê. A mãe passa a reconhecer o seu bebê, como um sujeito individualizado, com
desejos próprios e história de vida única.
Zimerman afirma que na atualidade, não só a mãe, mas também o pai, irmãos,
e todas as pessoas que interagem diretamente com a criança, formam o grupo
familiar, que exercerá “[...]uma profunda e decisiva importância na estruturação do
psiquismo da criança [...].”164
Mas e quando o bebê nasce com malformações, deficiências físicas, como os
pais irão lidar com seus sentimentos diante desse novo bebê?
Klaus e Kennel enfatizam a importância dos pais discutirem o diagnóstico do
bebê e a real anormalidade do mesmo: “Se o processo de luto cristaliza-se num clima
permanente na família, o fantasma do bebê desejado, esperado e saudável continua a
interferir na adaptação da família à criança imperfeita”.165
Os autores relatam cinco estágios vivenciados por pais de bebês nascidos com
malformações. Os autores descrevem que a resposta inicial da maioria dos pais às
notícias sobre a anomalia de seu filho é o “choque esmagador”, uma época de
comportamento irracional, com muito choro, sentimentos de desamparo e,
ocasionalmente, uma ânsia por fugir da realidade que se apresenta. O segundo estágio
seria uma tentativa de “evitar a admissão” de que seus bebês apresentavam alguma
anomalia, ou amortecer o golpe, negando a situação, seguidos por um estágio de
“tristeza, cólera e ansiedade”, onde os pais sentem-se culpados pela anomalia de seu
bebê. À medida que os sentimentos de angústia emocional dos pais diminui, esses
notam uma capacidade e confiança em cuidar do bebê, chamado estágio de
“equilíbrio”. O quinto e último estágio é o da “reorganização”, no qual os pais lidam
com responsabilidade pelos problemas de seu filho.
Podemos afirmar, que todos esses sentimentos irão construindo o vínculo
afetivo entre a criança e sua família, base fundamental para o seu desenvolvimento.
Após essas considerações do ponto de vista Psicológico, sobre o
desenvolvimento da criança, das vinculações, do seu reconhecimento, passaremos
agora a expor uma abordagem do ponto de vista mais jurídico, uma vez que temos um
olhar interdisciplinar.

164
ZIMERMAN, David. O Grupo Familiar: Normalidade e Patologia da Função Materna. In:
Fundamentos Psicanalíticos: Teoria, técnica e clínica – uma abordagem didática. PortoAlegre:
Artmed, 1999. p. 103.
165
KLAUS, M. KENNEL, J. Atendimento aos Pais de um Bebê com Malformação Congênita. In:
Pais/Bebê: A Formação do Apego. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. p. 251.
2. Direitos Jurídicos e Sociais das Crianças com Deficiências
Na área do Direito, o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n. 8069/90 -
cria um novo olhar social às crianças, representando um marco de consolidação dos
direitos da criança e do adolescente no Brasil. Esse processo foi iniciado com a
Constituição Federal.
Em sua obra – “Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8.069/90 –
Comentado artigo por artigo – Luciano Rossato e demais autores nos escrevem:
De acordo com suas premissas, a criança e o adolescente não mais
ostentam a condição de meros objetos de proteção, conforme dispunha o
revogado Código de Menores. Ao contrário, são considerados sujeitos de
direitos, que, além de serem titulares das garantias expressas a todos os
brasileiros, também ostentam direitos especiais, como é o direito de
brincar. 166

Analisando o “Direito Internacional dos Direitos Humanos da Criança e do


Adolescente”, os autores lembram que após vários documentos, entre Declarações e
Convenções, surgidos no século XX, que passam a reconhecer a criança como objeto
de proteção (Declaração de Genebra) ou sujeitos de direitos (Declaração de Direitos e
Convenção sobre os Direitos), tal como todos os seres humanos:
“As crianças são titulares de direitos humanos, como quaisquer pessoas. Aliás,
em razão de sua condição de pessoa em desenvolvimento, fazem jus a um tratamento
diferenciado, sendo correto afirmar, então, que são possuidoras de mais direitos que
os próprios adultos.”167
Seguindo sua análise, no capítulo referente às “Crianças com deficiência e
Atendimento Especializado (art.11, parágrafos 1º e 3º)”, os autores referem que:
A Convenção do Direitos da Criança, em seu art.23, determina que os
Estados-Partes reconheçam que a criança portadora de deficiência física ou
mental, deverá desfrutar de uma vida plena e decente em condições que
garantam sua dignidade, favoreçam sua autonomia e facilitem sua
participação ativa na comunidade.168

Cabe aqui, refletirmos e diferenciarmos os termos “portadora de deficiência” e


“com deficiência”.
166
ROSSATO, Luciano Alves. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n. 8.069/90 – comentado
artigo por artigo/ Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo Lépore, Rogério Sanchez Cunha – 10 ed. –
São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 35.
167
ROSSATO, Luciano Alves. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n. 8.069/90 –comentado
artigo por artigo/ Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo Lépore, Rogério SanchezCunha – 10 ed. –
São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 39.
168
ROSSATO, Luciano Alves. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n. 8.069/90 –comentado
artigo por artigo/ Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo Lépore, Rogério SanchezCunha – 10 ed. –
São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 113.
A autora Iara Antunes de Souza169nos traz a história do Estatuto da Pessoa
com Deficiência que se inicia em 2003, quando o Senador Paulo Paim apresentou o
Projeto de Lei do Senado n.6, apelidado de Estatuto do Portador de Deficiência:
Em sua redação original, a caracterização da deficiência se daria nos termos da
Constituição da República de 1988 e nos termos de regulamentação da lei a ser
elaborada:
Art.1º. [...]Parágrafo único. Para efeito desta lei entende-se por portador de
deficiência aquele tipificado na Constituição Federal.

Art. 2º Os diversos graus e peculiaridades que caracterizam a condição de


portador de deficiência serão definidos na regulamentação desta lei,
baseados e definições técnico-científicas, devendo-se considerar, sempre
que possível, os padrões internacionais.

A autora segue seu resgate histórico, trazendo que em 2006, o Senador Flávio
Arns exarou parecer na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa,
concluindo pela aprovação do Projeto de Lei do Senado n. 6/2003, considerando um
Projeto de lei substitutivo, alterando a nomenclatura de “portador de deficiência”,
para “pessoa com deficiência” e a própria conceituação de deficiência:
[...] toda restrição física, intelectual ou sensorial, de natureza permanente
ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades
essenciais da vida diária e/ou atividades remuneradas, causada ou agravada
pelo ambiente econômico e social, dificultando sua inclusão social[...]. 170

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de


2009, documento normativo que rompe com um antiquado modelo médico de
tratamento das deficiências, segundo o qual se devia buscar a reabilitação dos
deficientes, para que pudessem se adequar à sociedade. O enfoque é exatamente o
contrário: Deve-se preparar a sociedade para receber as pessoas com deficiências,
promovendo o respeito pela sua dignidade humana.
Rossato e seus colegas citam os princípios gerais da Convenção Internacional
sobre os Direitos da Pessoas com Deficiência:
a) o respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a
liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas;
b) a não discriminação;
c) a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade;
d) o respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência
como parte da diversidade humana e da humanidade;
e) a igualdade de oportunidades;

169
SOUZA, Iara Antunes de. Estatuto da Pessoa com Deficiência: curatela e saúde mental –conforme a
Lei: 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência/ 13.105/2015 – novo Código de Processo Civil
– Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016.
170
BRASIL. Projeto de Lei n. 7.699/2016. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/sileg/integras/432201.pdf>. acesso em 20/07/2018
f) a acessibilidade;
g) a igualdade entre o homem e a mulher;
h) o respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com
deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua
identidade.171

Citando esses mesmos princípios da Convenção Internacional das Nações


Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, os autores Barbosa e
Almeida172, lembram, que no plano infraconstitucional, foi promulgada, em 06 de
julho de 2015, a Lei nº 13.146/2015, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência
– marco legal e sem precedentes no Brasil. Segundo os autores:
É com base nos propósitos e princípios albergados na Convenção, de
inegável estatura constitucional, que as prescrições do Estatuto devem ser
interpretadas de modo a buscar a sua máxima efetividade para o processo
de inclusão social da pessoa com deficiência, no qual o reconhecimento se
torna peça fundamental.173

Os autores fazem um resgate histórico da evolução da inserção das pessoas


com deficiência na sociedade do Brasil, lembrando que:
O Brasil aderiu à Convenção em 2007, a qual foi ratificada pelo Congresso
Nacional em 09 de julho de 2008, conforme Decreto Legislativo nº 186, e
promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Já se encontra
desde então, formalmente incorporada, com força, hierarquia e eficácia
constitucionais, ao plano do ordenamento positivo interno do Estado
brasileiro, nos termos do art. 5º parágrafo 3º, da Constituição Federal.174

Os autores nos trazem 3 modelos distintos do entendimento de deficiência. O


primeiro, designado “Modelo Moral”, que se caracteriza por uma justificação
religiosa da deficiência, em que a pessoa com deficiência nada tem a contribuir para a
sociedade. O segundo modelo é o “Modelo Médico” ou “Modelo Reabilitador”, que
encara a deficiência como condição patológica, de natureza individual. Nesse modelo,
a pessoa deveria ser tratada através de intervenções médicas, ser “reparada”, para
tornar-se o quanto possível “normal” e “rentável” socialmente.

171
ROSSATO, Luciano Alves. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n. 8.069/90 – comentado
artigo por artigo/ Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo Lépore, Rogério Sanchez Cunha – 10 ed. –
São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 114.
172
BARBOZA, Heloísa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JÚNIOR, Vítor de
Azevedo. O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência/ Heloísa Helena Barboza, Bruno
Lima de Mendonça Vítor de Azevedo Almeida júnior (coordenadores) – Rio de Janeiro: Processo,
2017.
173
BARBOZA, Heloísa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JÚNIOR, Vítor de
Azevedo. O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência/ Heloísa Helena Barboza, Bruno
Lima de Mendonça Vítor de Azevedo Almeida júnior (coordenadores) – Rio de Janeiro: Processo,
2017. p. 07.
174
BARBOZA, Heloísa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JÚNIOR, Vítor de
Azevedo. O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência/ Heloísa Helena Barboza, Bruno
Lima de Mendonça Vítor de Azevedo Almeida júnior (coordenadores) – Rio de Janeiro: Processo,
2017. p. 13.
Em 2015, quando da aprovação do EPD, lei elaborada sob os ditames da
CDPD, se inicia então, o terceiro modelo – “Modelo Social” no Brasil, ou seja, a
deficiência é um problema social, que exige intervenções na sociedade.
Esse Modelo Social, provoca efeitos na sociedade, segundo Barbosa e
Almeida, sendo que o primeiro efeito é “[...] a inversão da perspectiva na apreciação
da deficiência, que deixa de ser uma questão unilateral, do indivíduo, para ser
pensada, desenvolvida e trabalhada como relação bilateral, na qual a sociedade torna-
se efetivamente protagonista, com deveres jurídicos a cumprir.”175 O segundo efeito é
o de: “[...] assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos
direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua
inclusão social e cidadania.”176. O Modelo Social convoca instituições públicas e
privadas para o processo de inclusão.
Ao se tratar de crianças com deficiências, um dos assuntos mais polêmicos, é a
“inclusão escolar”. Lembro de uma família, com um menino, cadeirante, com 6 anos,
angustiados, após percorrer 6 escolas privadas, na cidade onde residiam, sendo negada
a matrícula do mesmo na 1ª série. Todas as escolas alegavam “não ter vaga” para a 1ª
série do Ensino Fundamental!
Cabe ressaltar, que muitas vezes não são barreiras arquitetônicas (como por
exemplo, faltas de rampas) que impedem a liberdade de expressão e movimento das
pessoas com deficiências, mas sim, “barreiras atitudinais”, entendidas como atitudes
que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em
igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas.
Trago outro exemplo, de uma menina cadeirante, que estava com sua mãe
numa festa de aniversário, quando necessitou ir ao banheiro. A mãe a conduziu, até o
banheiro para “Pessoas com deficiência”, muito felizes ao perceberem que nesse
local, havia um banheiro adaptado. No entanto, ao abrirem a porta do banheiro, esse
estava totalmente ocupado por mesas e cadeiras que “sobraram”, que não foram
utilizadas na festa!

175
BARBOZA, Heloísa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JÚNIOR, Vítor de
Azevedo. O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência/ Heloísa Helena Barboza, Bruno
Lima de Mendonça Vítor de Azevedo Almeida júnior (coordenadores) – Rio de Janeiro: Processo,
2017. p. 17.
176
BARBOZA, Heloísa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JÚNIOR, Vítor de
Azevedo. O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência/ Heloísa Helena Barboza, Bruno
Lima de Mendonça Vítor de Azevedo Almeida júnior (coordenadores) – Rio de Janeiro: Processo,
2017. p. 17.
Num outro local, um restaurante muito conhecido de uma capital brasileira, ao
abrir a porta do banheiro de cadeirantes, uma cadeirante foi impedida de entrar, pois o
mesmo estava sendo utilizado como depósito de materiais de limpeza: baldes,
vassouras, sacos de lixo, papéis toalha e papéis higiênicos, ... impediam a ocupação
do banheiro. Esses são típicos exemplos de barreiras atitudinais!

3. ‘Entrelaçando’ o reconhecimento psicológico ao reconhecimento social


para o desenvolvimento saudável de crianças com deficiências
O autor Jorge Trindade ao examinar o papel das emoções na criação do
Direito, escreve que as normas morais e jurídicas possuem um conteúdo psíquico,
emocional. “Criadas pelos homens, a eles se destinam[...]. A emoção, fazendo o
sujeito aprovar ou desaprovar uma forma de conduta, transporta-o da ordem dos fatos
para a ordem das normas.”177 Trindade refere que: “[...] é possível elaborar uma teoria
do direito construída também com bases psicológicas e analisar os motivos do agir
humano, pois a consciência jurídica individual é um fator da fenomenologia
social.”178 O autor refere também que, na linha teórica, os juízos normativos fundam-
se sobre emoções provocadas pelos acontecimentos da vida.
Entrelaçando os direitos jurídicos ao direitos psicológicos das pessoas, e aqui
nesse estudo, em especial, das crianças com deficiências físicas, podemos pensar, de
maneira interdisciplinar, na importância do reconhecimento psicológico e social para
todos os seres humanos se desenvolverem de forma saudável, cada sujeito com sua
história única, sentindo-se incluído na sociedade.
Lembramos novamente os autores Barbosa e Almeida, ao escreverem sobre
“O Reconhecimento como fator indispensável à inclusão”, onde citam Charles Taylor,
para quem “o reconhecimento não é somente uma cortesia que devemos às pessoas,
ele é uma necessidade humana vital.”179

177
TRINDADE, Jorge. O Papel das Emoções na criação do Direito. In: Manual de Psicologia Jurídica
para operadores do Direito/ Jorge Trindade. 8. ed. rev. atual.e ampl. – Porto Alegre:Livraria do
Advogado Editora, 2017. p. 49
178
TRINDADE, Jorge. O Papel das Emoções na criação do Direito. In: Manual de Psicologia Jurídica
para operadores do Direito/ Jorge Trindade. 8. ed. rev. atual.e ampl. – Porto Alegre:Livraria do
Advogado Editora, 2017. p. 49
179
BARBOZA, Heloísa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JÚNIOR, Vítor de
Azevedo. O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência/ Heloísa Helena Barboza, Bruno
Lima de Mendonça Vítor de Azevedo Almeida júnior (coordenadores) – Rio de Janeiro: Processo,
2017. p. 18.
Lembro aqui, de mais um exemplo numa festa de aniversário, onde foi retirada
a rampa móvel, de acesso ao banheiro, segundo o garçom, “-Por estar atrapalhando a
passagem das pessoas em frente ao banheiro”. O mesmo dirigiu-se a uma criança
cadeirante e sua mãe, dizendo que quando a menina precisasse ir ao banheiro, eles
colocariam a rampa de volta. Na mesma hora, a menina, esperta, disse:
“-Mãe, acho melhor a gente ir agora ao banheiro, porque até eles colocarem
a rampa de volta, eu vou estar com ‘muita’ vontade de ir no banheiro!”
Os autores citam, que para Taylor:
[...] a negação do reconhecimento não corresponde somente a uma
demonstração de desrespeito, pois ela tem uma conseqüência grave que é a
de diminuir a capacidade que a pessoa, ou grupo de pessoas, que é objeto
dessa negação, tem de construir sua auto-estima. 180

Cristiano Farias 181 , ao comentar sobre a Acessibilidade das pessoas com


deficiência, descreve que: “Cuida-se, pois, de um conceito amplo, a abarcar todo e
qualquer instrumento capaz de propiciar a inclusão do deficiente em igualdade de
condições com os demais.” O autor cita o maravilhoso trabalho realizado por Rita
Bersch 182 que dedica-se ao estudo, pesquisa e atendimento a pessoas com
deficiências, buscando recursos de inclusão na educação, no trabalho, no lazer na
cultura e na sociedade. Em seu trabalho Introdução à tecnologia assistiva, estuda
sobre recursos tecnológicos para pessoas com deficiências. Rita Bersch cita
Radabaugh que escreve: [...]para as pessoas sem deficiência a tecnologia torna as
coisas mais fáceis. Para as pessoas com deficiência, a tecnologia torna as coisas
possíveis.

Considerações Finais
Observamos muitos direitos das crianças com necessidades especiais, sendo
violados, o que se vê como desrespeito ao reconhecimento dessas crianças.
Podemos citar muitos outros exemplos assim como os já citados, que ocorrem
em locais sociais, em escolas ou nas ruas, como o primeiro exemplo citado na

180
BARBOZA, Heloísa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JÚNIOR, Vítor de
Azevedo. O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência/ Heloísa Helena Barboza, Bruno
Lima de Mendonça Vítor de Azevedo Almeida júnior (coordenadores) – Rio de Janeiro: Processo,
2017. p. 18.
181
FARIAS, Cristiano Chaves de. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado artigo por artigo –
Cristiano Chaves de Farias, Rogério Sanches Cunha, Ronaldo Batista Pinto. 3.rev.ampl. E atual. –
Salvador: Ed. JusPodivm, 2018.
182
BERSCH, Rita. Introdução à Tecnologia Assistiva. In: www.asistiva.com.br. Porto Alegre:RS,
2013.acesso em 30/07/2018
Introdução e ao longo desse capítulo. Vemos muitas vagas de estacionamento para
cadeirantes sendo ocupadas por “não cadeirantes”. Uma das mais absurdas que vi, foi
uma dessas vagas sendo ocupadas por um caminhão guincho!!! Quem é que vai
guinchar um caminhão guincho estacionado em local inapropriado? Vemos também
muitas vagas de estacionamento para cadeirantes com obstáculos, como árvores,
postes e lixeiras junto às calçadas dessas vagas, impedindo o desembarque adequado.
Da mesma forma, restaurantes, clubes sociais ou instituições públicas que fazem
rampas de acesso com uma angulação extremamente alta, impedindo totalmente o
acesso à mesma.
Ou seja, pensando na Área do Direito, se cumpre a lei, de oferecer vagas de
estacionamento, de fazer rampas e banheiros adaptados, mas sem a menor
consideração de colocar-se no lugar do outro, para que o mesmo exerça seu direito de
“ir e vir”. Assim, não havendo o “reconhecimento”, citado por autores da Psicologia o
do Direito, como sentimento fundamental ao ser humano!
Lembrando mais uma vez ou autores Barbosa e Almeida, que nos escrevem:
“... reconhecer pode significar desde notar a presença de outra pessoa por sinais
corporais, como também quer dizer ‘honrar alguém por seu valor’, como ocorre com
o reconhecimento público de um grande artista”, como algo que entendemos por
respeito!”183
Os autores citam Daniel Sarmento, que sintetiza: “O olhar do outro nos
constitui”.184
Nesse momento, podemos lembrar novamente dos autores psicanalíticos:
Winnicott, ao falar que o olhar da mãe se constitui como um espelho ao bebê: “Olho
eu sou visto, logo, existo. E passo agora a olhar, e me constituo como sujeito”185e
também de Zimerman186 ao escrever sobre a importância do Reconhecimento nos
vínculos afetivos.

183
BARBOZA, Heloísa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JÚNIOR, Vítor de
Azevedo. O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência/ Heloísa Helena Barboza, Bruno
Lima de Mendonça Vítor de Azevedo Almeida júnior (coordenadores) – Rio de Janeiro: Processo,
2017.p. 19.
184
SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 19.
185
WINNICOTT, D. O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In: O brincar
e a realidade. Rio de Janeiro: imago, 1973. p. 32.
186
ZIMERMAN, David. O Grupo Familiar: Normalidade e Patologia da Função Materna. In:
Fundamentos Psicanalíticos: Teoria, técnica e clínica – uma abordagem didática. Porto Alegre:
Artmed, 1999.
Podemos vincular os autores da Psicologia aos autores do Direito: Barbosa e
Almeida, que nos escrevem: “O reconhecimento apoia-se numa visão de sociedade
‘amigável às diferenças”.187
Isso significa, reconhecer as pessoas com deficiências, como iguais em
respeito e consideração, sujeitos com desejos próprios. Como nos lembra o autor
Cristiano Chaves de Farias188, que em sua participação no Congresso Mercosul do
IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) no ano de 2018, nos fala que o
Estatuto da Pessoa com Deficiência nos fornece regras de proteção para a inclusão e a
emancipação. É preciso oferecer recursos para a pessoa exercer seus direitos em
igualdade de condições.
No Brasil, vemos que ainda nos faltam muitos recursos tecnológicos,
arquitetônicos e principalmente, “atitudinais” para essa igualdade de condições.
É fundamental o olhar interdisciplinar entre as áreas do Direito e da
Psicologia. Pensando em crianças, que são seres humanos em processo de
desenvolvimento, merecendo proteção, as crianças com deficiências físicas merecem
nossa redobrada atenção, proteção e respeito, para que se desenvolvam como sujeitos
de sua história única!
Se vale a pena todo esse trabalho? Termino relatando uma cena real,
vivenciada:
“Numa noite, após 10 horas de trabalho, uma mãe chega em casa e atende sua
filha de 8 anos, cadeirante, em sua alimentação, higiene, banho, vestuário.
Acomodando-a em sua cama, às 23 horas, a mãe diz à filha:
‘- Agora tu não me chamas, pois eu vou tomar o meu banho, ok?’
Ao virar-se de costas, em direção à porta, saindo do quarto da filha, a mãe
ouve a menina chamar:
‘- Mãe!’
E nesse momento a mãe se vira de volta para a filha e pergunta:
‘- Minha filha, tu estás alimentada, de banho tomado, quentinha na tua
cama... o que está faltando?’

187
BARBOZA, Heloísa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JÚNIOR, Vítor de
Azevedo. O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência/ Heloísa Helena Barboza, Bruno
Lima de Mendonça Vítor de Azevedo Almeida júnior (coordenadores) – Rio de Janeiro: Processo,
2017.p. 20.
188
FARIAS, Cristiano Chaves de. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado artigo por artigo –
Cristiano Chaves de Farias, Rogério Sanches Cunha, Ronaldo Batista Pinto. 3.rev.ampl. E atual. –
Salvador: Ed. JusPodivm, 2018.
E a menina respondeu, esticando a mãozinha:
‘- Boa noite, mãe! Eu te amo!’ ”

Referências

ALVAREZ, Anne. Companhia Viva: Psicoterapia Psicanalítica com Crianças


Autistas, Borderline, Carentes e Maltratadas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
BARBOZA, Heloísa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA
JÚNIOR, Vítor de Azevedo. O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência/
Heloísa Helena Barboza, Bruno Lima de Mendonça Vítor de Azevedo Almeida júnior
(coordenadores) – Rio de Janeiro: Processo, 2017.
BERSCH, Rita. Introdução à Tecnologia Assistiva. In: www.asistiva.com.br.
Porto Alegre: RS, 2013, acesso em 30/07/2018.
BRASIL. Projeto de Lei n. 7.699/2016. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/sileg/integras/432201.pdf>.
BRAZELTON B.CRAMER B. As primeiras relações. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
FARIAS, Cristiano Chaves de. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado
artigo por artigo – Cristiano Chaves de Farias, Rogério Sanches Cunha, Ronaldo
Batista Pinto. 3.rev.ampl. E atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2018.
FRAIBERG, S. et al. Fantasmas no quarto do bebê. IN: Publicação CEAPIA.
Porto Alegre, nº7. 1994.
KLAUS, M. KENNEL, J. Atendimento aos Pais de um Bebê com Malformação
Congênita. In: Pais/Bebê: A Formação do Apego. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
MAHLER, M. Simbiose e Individuação: o nascimento psicológico do bebê
(1974). In: O Processo de Separação-Individuação. Porto Alegre: Artes Médicas,
1982
ROSSATO, Luciano Alves. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n.
8.069/90 – comentado artigo por artigo/ Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo
Lépore, Rogério Sanchez Cunha – 10 ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana. Belo Horizonte: Fórum,
2016.
SOUZA, Iara Antunes de. Estatuto da Pessoa com Deficiência: curatela e saúde
mental – conforme a Lei: 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência/
13.105/2015 – novo Código de Processo Civil – Belo Horizonte: Editora D’Plácido,
2016.
TAYLOR, Charles. The Politics of Recognition. In: TAYLOR, Charles;
GUTMANN, Amy. Multiculturalism.: examining the polictics of recongnition. New
Jerssey: Princeton, 1994. P. 25. Disponível em:
<http://elplandehiram.org/documentos/JoustingNYC/Politics_of_Recognition.pdf>.
TRINDADE, Jorge. O Papel das Emoções na criação do Direito. In: Manual de
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ampl. – Porto alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.
ZIMERMAN, David. Os Quatro Vínculos: Amor, Ódio, Conhecimento,
Reconhecimento na Psicanálise em nossas vidas. Porto Alegre: Artmed, 2010.
ZIMERMAN, David.O Grupo Familiar: Normalidade e Patologia da Função
Materna. In: Fundamentos Psicanalíticos: Teoria, técnica e clínica – uma abordagem
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WINNICOTT, D. O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento
infantil. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: imago, 1973.
WINNICOTT, D. W. Preocupação Materna Primária. (1956). In: Textos
Selecionados: Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: F. Alves, 1978.
AUTONOMIA DE VONTADE DA PESSOA COM
ESPECTRO AUTISTA FRENTE AO ESTATUTO
DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA – UMA
INTERLOCUÇÃO ENTRE PSICOLOGIA E
DIREITO

Carlos Eduardo Lamas189

“Fiquei muito feliz em pegar o meu diagnóstico, fiquei mega feliz,


eu estava com 33 anos, agora eu me conheço, agora eu sei por que
eu fazia algumas coisas e as outras pessoas não faziam. Vou ser um
modelo para o meu filho, dizer pra ele: olha aonde tua mãe chegou,
sou concursada da UFPEL, passei em vários concursos, fiz tudo
isso sem ter um laudo, sem saber que eu tinha alguma coisa, eu fiz
tudo isso sem ter o acompanhamento que hoje meu filho tem, então
acho que sou um modelo para meu filho, para outras famílias,
então eu fico muito feliz por ser autista, tenho muito orgulho
disso...”190

Introdução
Em julho do ano de 2015 foi promulgada a Lei 13.146 que popularmente ficou
conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência. A referida Lei visa concretizar
as idéias de igualdade, dignidade, complacência, cidadania e liberdade, de forma a
efetivar a inclusão social das pessoas com qualquer deficiência, seja ela intelectual
psíquica ou física.
A partir de tais codificações, pretendemos no presente capítulo justamente
analisar a interlocução da psicologia com o direito, no sentido de existir a
necessidade/possibilidade ou não de curatela para a efetivação da autonomia de
vontade das pessoas com Transtorno de Espectro Autista – TEA.
Salutar a intenção do legislador em enfatizar a busca pela percepção da pessoa
humana como protagonista de sua própria história, ao contrário dos anteriores
diplomas legais que rebaixavam as pessoas com deficiência física, intelectual e
189
Advogado, Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS). Presidente do Núcleo Pelotas do Instituto Brasileiro de Direito de
Família IBDFAM – Seção RS. Diretor da Associação Brasileira Criança Feliz - ABCF na cidade de
Pelotas/RS. Formado em Psicologia Forense pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica –SBPJ.
190
Nádia dos Santos Gonçalves Porto, diagnosticada com Asperger aos 33 anos de idade, mãe de
Eduardo, diagnosticado com Transtorno de Espectro Autista. Nádia é Graduanda no Programa de
Mestrado em Educação Matemática da Universidade Federal de Pelotas
psíquica em meros coadjuvantes de um filme que a estrela principal deveria ser ele
mesmo.
Nesse diapasão, as palavras de Pietro Perliengieri191 são exemplares quando
diz que “todo homem, enquanto tal, é titular de situações existenciais representadas
no status personae, das quais algumas, como o direito à vida, à saúde, ao nome, à
própria manifestação de pensamento, prescindem das capacidades intelectuais”.
A doutrina que advoga em perspectiva civil-constitucional, mais atenta ao
princípio da dignidade da pessoa humana, ao tratar da tutela da pessoa com certa
vulnerabilidade, já identificava a necessidade de um olhar humanitário, respeitando
sempre, na medida do possível, a autonomia de vontade da pessoa com deficiência
física, psíquica ou intelectual, muito principalmente ao que concerne às de cunho
existencial, o que discorreremos em especial neste capítulo.
Atento a esta moderna doutrina é que o legislador intentou o Estatuto da
Pessoa com Deficiência, que de forma corajosa alterou um dos pilares da teoria geral
do direito, reformando a teoria das incapacidades.
Essa alteração é de profunda importância para que possamos analisar a real
possibilidade do exercício da autonomia de vontade de pessoas com deficiência, em
especial aquelas com espectro autista.
Será esse sistema novel protecionista ou desprotegerá as pessoas com TEA?
Qual a real possibilidade das pessoas com espectro autista de exercerem sua
autonomia de vontade quando chegarem à maioridade? De que forma o trabalho
interdisciplinar poderá auxiliar o judiciário a resolver estas questões?
Estas são algumas questões que tentaremos responder, claro, sem a pretensão
de exaurir o tema, mas buscando sempre alavancar o estudo no sentido de promover
uma vida digna para estes cidadãos.

1. O espectro autista: Uma visão psicológica

“Os autistas representam o próximo passo evolutivo moral


do ser humano, eu acho que a sociedade precisa de cura e
não os autistas.”192

191
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
192
Idem, 2
A expressão Autismo foi usada pela primeira vez por Eugene Bleuler,
psiquiatra suíço, em 1911, para designar a perda de contato com a realidade com
dificuldade ou impossibilidade de comunicação, comportamento esse que foi, por ele,
observado em pacientes diagnosticados com quadro de esquizofrenia.193 No ano de
1943, o psiquiatra infantil, Kanner, publicou o artigo “Distúrbios autísticos do contato
afetivo”, descrevendo onze casos de crianças que tinham em comum o isolamento
extremo desde muito cedo na vida e a obsessão por rotinas, não aceitando mudanças,
salientando em seu artigo as dificuldades de socialização e de comportamentos
diferenciados. Asperger, psiquiatra austríaco, descreveu casos com comportamentos
semelhantes, mas em paciente com capacidade intelectual normal ou superior,
publicando em 1944 seu artigo “Psicopatia autista na infância”. Em 1980, Asperger
teve seu artigo traduzido para o inglês, tendo a partir de então um reconhecimento
pioneiro dos estudos sobre o autismo, sendo denominados como Síndrome de
Asperger os casos sobreponíveis à sua descrição.194
Em meados da década de 50, acreditava-se que o autismo era causado ou era
influenciado pela falta de afeto dos pais aos filhos, surgindo então a expressão
pejorativa “mãe geladeira”, muito corroborada pelos psicanalistas da época,
principalmente por Bettelheim. 195 No ano de 1952, a Associação Americana de
Psicanálise, pela primeira vez, publicou o Manual Diagnóstico e Estatístico de
Doenças Mentais (DSM-I), e os sintomas autistas foram classificados dentro da
esquizofrenia infantil e não como uma entidade com diagnóstico próprio.
Somente no DSM-III que o autismo foi reconhecido como uma nova classe de
transtornos do desenvolvimento, sendo denominado de Transtornos Invasivos do
Desenvolvimento (TID). No DSM-IV, em 1994, foram introduzidos novos critérios
na definição do autismo, assim como das várias condições candidatas a serem
incluídas na categoria TID. A Síndrome de Asperger foi importada ao transtorno,
ampliando o espectro do autismo, que passou a incluir casos mais leves, em que
indivíduos tendem a ser mais funcionais.
No ano de 2013, foi lançado o DSM-5, no qual os subtipos dos transtornos do
espectro autista são eliminados, sendo todos os casos diagnosticados em um único
193
ASSUMPÇÃO JUNIOR, Francisco Baptista. Autismo Infantil: novas tendências e perspectivas. 2.
Ed. – São Paulo: Editora Atheneu, 2015.
194
ROTTA, Newra Tellechea. Transtornos da aprendizagem: abordagem neurobiológica e
multidisciplinar. – 2. Ed. – Porto Alegre: Artmed, 2016.
195
BETTELHEIM, The empty fortress: infantile autism and the birth of the self. New York: The Free
Press, 1967.
espectro com diferentes níveis de gravidade, abrigando então todas as subcategorias
da condição em um único diagnóstico denominado Transtorno do Espectro Autista
(TEA).
Conforme o referido DSM-5, os critérios de diagnósticos dos Transtornos do
Espectro Autista (F84.0) são especificamente as deficiências persistentes na
comunicação e interação social; limitação na reciprocidade social e emocional;
limitação nos comportamentos de comunicação não verbal utilizados para interação
social; limitação em iniciar, manter e entender relacionamentos, variando de
dificuldades com adaptação de comportamento para se ajustar às diversas situações
sociais.
Também, ainda referindo-se ao DSM-5, como critério de diagnóstico, pela
história clínica ou a partir de alguns padrões restritos e repetitivos de comportamentos
e interesses, pelo menos dois dos seguintes aspectos deverão ser contemplados: 1.
Movimentos repetitivos e estereotipados no uso de objetos ou fala; 2. Insistência nas
mesmas coisas, aderência inflexível às rotinas ou padrões ritualísticos de
comportamentos verbais e não verbais; 3. Interesses restritos que são anormais na
intensidade e foco; 4. Hiper ou hiporreativo a estímulos sensoriais do ambiente.
Os sintomas causam prejuízos clinicamente significativos na área social,
ocupacional ou outras áreas importantes de funcionamento da pessoa com TEA.
Logo, o TEA vem a ser considerado um transtorno global do
neurodesenvolvimento muito evidenciado devido à sua taxa de prevalência.196
Pesquisas realizadas estimam que na população mundial, um a cada oitenta e
oito nascidos vivos apresenta TEA, e no Brasil há incidência em dois milhões de
pessoas.
Conceituar o autismo é matéria das mais difíceis, mas encontramos na
197
literatura de Greenspan que “autismo é um transtorno complexo do
desenvolvimento que envolve atrasos e comprometimentos nas áreas de interação
social e linguagem, incluindo uma ampla gama de sintomas emocionais, cognitivos,
motores e sensoriais.”

196
MARTINS, Crislayne Borba; LIMA, Renata Cristina de. Transtorno do espectro autista: a
influência da parceria Família e escola. Faculdade Ciências da Vida – FCV.
197
GREENSPAN, S. I.; WIEDER, S. Engaging autism: using floortime approach to help, children
relate, communicate, and think. Cambridge: Da Capo Press, 2006
Assim, o TEA se caracteriza por dois principais grupos de critérios: déficit na
comunicação e interação social e padrão de comportamentos, interesses e atividades
restritas e repetitivas.
A maior novidade na atual classificação, a caracterização de gravidade de
quadros clínicos, muito interessa quando for feita a análise da possibilidade e/o
necessidade de nomear curador para a pessoa com TEA, conforme expressa o quadro
abaixo:

Nível de Gravidade Comunicação Social Comportamentos restritos e


repetitivos
Nível 3 - “exigindo Déficits graves nas habilidades de
Extrema dificuldade em lidar com a
apoio muito comunicação social verbal e não
substancial” verbal causam prejuízos graves de mudança ou outros comportamentos
funcionamento, limitação em restritos/repetitivos interferem
iniciar interações sociais e acentuadamente no funcionamento
resposta mínima a aberturas em todas as esferas. Grande
sociais que partem de outros. sofrimento/dificuldade para mudar o
foco ou as ações.

Déficits graves nas habilidades de Dificuldade de lidar coma mudança


Nível 2 - “exigindo
comunicação social verbal e não ou outros comportamentos
apoio substancial” verbal, prejuízos sociais aparentes restritos/repetitivos aparecem com
mesmo na presença de apoio, frequência suficiente para serem
limitação em dar início a óbvios ao observador casual e
interações sociais e resposta interferem no funcionamento em uma
reduzida ou anormal a aberturas variedade de contextos.
sociais que partem dos outros. Sofrimento/dificuldade para mudar o
foco ou as ações.

Nível 1 - “Exigindo
Na ausência de apoio, déficits na Inflexibilidade de comportamento
apoio”
comunicação social causam causa interferência significativa no
prejuízos notáveis. Dificuldade funcionamento em um ou mais
para iniciar interações sociais e contextos. Dificuldade em trocar de
exemplos claros de respostas atividade. Problemas para
atípicas ou sem sucesso a organização e planejamento são
aberturas sociais dos outros. Pode obstáculos à independência."
aparentar pouco interesse por
interações sociais

O prognóstico da pessoa com TEA é muito variável, pois vai depender de uma
série de fatores, como diagnóstico precoce, gravidade dos sintomas, tratamento
adequado, adequação ao tratamento, suporte familiar e outros problemas coexistentes,
psiquiátricos ou não.
Ainda não existe um tratamento específico para o Autismo, sendo indicada a
elaboração de um projeto individual de tratamento de acordo com as habilidades e
dificuldades de cada indivíduo.
Por tratar-se de um quadro complexo, é recomendado por especialistas um
tratamento por equipe multidisciplinar para acolher e trabalhar nas áreas de
linguagem, interação social, aprendizagem e diminuição de comportamentos
inadequados, visando um maior nível de autonomia e desenvolvimento possível.198
Uma boa avaliação psicológica com certeza é um dos elementos mais úteis
durante o processo diagnóstico, uma vez que fornecerá informações detalhadas acerca
do funcionamento cognitivo e adaptativo da criança, o que é essencial para a
formulação de um plano de intervenção individualizado.
O acompanhamento do autista desde a infância até a idade adulta mostrou que
o prognóstico se relaciona muito ao nível de habilidades cognitivas e de linguagem, e
que era possível encontrar adultos independentes em 5% a 10% dos casos; com
progresso considerável em 25% e com déficits significativos em 65% a 70%. Já uma
pesquisa japonesa, realizada em 1992, encontrou um prognóstico bem mais favorável,
em que adultos autistas, em 27% dos casos, estavam empregados e eram
independentes.199
A independência e o exercício da autonomia de vontade da pessoa com TEA é
um grande desafio para os profissionais da área da saúde, pois em tese, diante de uma
sociedade extremamente materialista e funcionalista estes cidadãos são excluídos do
mercado de trabalho por suas dificuldades, são pré-julgados por terem, por vezes,
mais dificuldades de expressar suas emoções e, por conseguinte fantasia-se que essas
pessoas não têm sentimentos ou desejos.
Como já citado anteriormente, o autismo apresenta grande espectro em relação
à forma e a intensidade de sintomas, podendo apresentar comprometimentos leves,
moderados ou graves na área de socialização, comunicação e comportamento, com
interesses restritos. Mas não é por isso que a pessoa com autismo deve ficar
marginalizada nos seus anseios pessoais e profissionais, devendo exercer suas
vontades de forma a ser preservada sua dignidade como pessoa humana.

198
Idem, 6.
199
Idem, 3.
2. A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e o Estatuto
da Pessoa com Deficiência no ordenamento Jurídico Brasileiro
O eixo personalista da Constituição Federal de 1988 é a cláusula geral da
Dignidade da Pessoa Humana, potencializando o princípio da autonomia e
consequentemente o direito fundamental à capacidade civil.200
Tais princípios tornaram-se mais veementes com o diploma do Estatuto da
Pessoa com Deficiência, que vêm embasado e muito caracterizado nos termos da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, realizado na cidade de
Nova York, no ano de 2007, sendo aprovado pelo Brasil, ingressando no ordenamento
jurídico através do Decreto Legislativo nº 186, de 09/07/2008, que veio a ser
aprovado com a promulgação do Decreto Presidencial nº 6.949, de 25 de agosto de
2009, com estatura equivalente às Emendas Constitucionais, naturalmente vindo a se
sobrepor à normas infraconstitucionais, invalidando qualquer norma subalterna que vá
de encontro a efetiva igualdade das pessoas com deficiência.
Temos como ponto de referência da Convenção a busca pelo equilíbrio entre a
exigência de tutela dos espaços residuais de autonomia decisória do sujeito na
tentativa de preservar sua liberdade pessoal, e de outro, a proteção da própria pessoa
com deficiência e da segurança do tráfego jurídico.
A Convenção trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro algumas
instruções fundamentais, como o novo conceito de pessoa com deficiência, conforme
desponta o art. 1º201, que trata dos propósitos do tratado.
A nova codificação – EPD - inova o direito brasileiro no que condiz à teoria
das capacidades, normas de acessibilidade, saúde e educação.
Para ilustrar tais alterações, faz-se importante ressaltar que o nascimento
atribui ao ser humano personalidade jurídica202, ou seja, aptidão para ser titular de
direitos e obrigações. E para que possa exercer pessoalmente esses direitos, a ordem

200
ROSENVALD, Nelson. Curatela. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.). Tratado de Direito das
Famílias. 2ª edição. Belo Horizonte: IBDFAM, 2016.
201
Art. 1º CDPD. “Pessoas com deficiência são aquelas quer têm impedimentos de longo prazo de
natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais
pessoas.”
202
Artigo 2º Código Civil. “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas lei
põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”
jurídica exige que, além da personalidade, a pessoa humana seja dotada de
capacidade.203
Christiano Cassettari bem elucida a capacidade quando diz que:
“é a aptidão de exercer por si os atos da vida civil, dependendo, portanto, do
discernimento, cujo critério é prudência, juízo, inteligência, e, sob o prisma
jurídico, a aptidão que tem a pessoa de distinguir o lícito do ilícito, o
conveniente do prejudicial.”204
Essa capacidade pode sofrer restrições legais quanto ao modo de seu exercício,
em exemplo às pessoas com algum tipo de transtorno mental, físico ou psíquico, em
especial a pessoa com espectro autista, tema central do presente trabalho.
A restrição da capacidade jurídica às pessoas com deficiência, privava-lhes
vários direitos fundamentais, como o direito ao voto, ao matrimônio, ao
estabelecimento de família, aos direitos reprodutivos, à autoridade parental, ao
consentimento ao tratamento médico e à liberdade.
Com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência as hipóteses das
incapacidades foram alteradas. A incapacidade, por sua vez, dividiu-se em duas
vertentes: a incapacidade relativa e a incapacidade absoluta. Por força do Estatuto da
Pessoa com Deficiência, hoje em dia temos a incapacidade absoluta somente àqueles
menores de 16 anos de idade, conforme preleciona o art. 3º do Código Civil.205
Já a situação dos relativamente incapazes é diversa, ocupando no Código Civil
o art. 4º. O rol, extraído do antigo art. 3º (absolutamente incapazes, alterado por força
da Lei 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência), versa que serão
relativamente incapazes os menores com idade entre 16 e 18 anos, os viciados em
tóxico, os ébrios habituais, os pródigos e aqueles que, por causa transitória ou
permanente, não puderem exprimir sua vontade.
Os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário
discernimento para a prática dos atos não mais constam do artigo 3º (incisos I e II da
redação original), em sendo assim, à princípio, podemos lhes considerar pessoas
capazes.

203
SCHREIBER, Anderson. Manual do Direito Civil Contemporâneo. – São Paulo: Saraiva Educação,
2018.
204
CASSETTARI, Christiano. Elementos do Direito Civil. – 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação,
2018.
205
Art. 3º Código Civil: São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os
menores de 16 (dezesseis) anos.
O art. 2º da Lei 13.146/2015 veio a equiparar todo e qualquer tipo de
deficiência ao dizer que pessoa com deficiência é aquela que tem impedimento de
longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação
com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na
sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Logo, podemos considerar a pessoa com Transtorno de Espectro Autista
(TEA) como deficiente, uma vez que trata de um transtorno no desenvolvimento da
pessoa, caracterizado pelas significativas na comunicação, interação social e
comportamento.206
Sendo assim, pelo exposto no art. 6º207 do Estatuto da Pessoa com Deficiência,
independente do tipo e grau da deficiência o Estatuto garante que não será afetada a
capacidade civil plena, inclusive para atos de cunho existencial.
Pablo Stolze208 é cirúrgico ao definir que em verdade o Estatuto pretendeu,
homenageando o princípio da dignidade humana, fazer com que a pessoa com
deficiência deixasse de ser “rotulada’ como incapaz, para ser considerada em uma
perspectiva constitucional isonômica dotada de plena capacidade legal, ainda que haja
necessidade de adoção de institutos assistenciais específicos, como a Tomada de
Decisão Apoiada e, extraordinariamente, a curatela, para prática de atos da vida civil.
O que o Estatuto da Pessoa com Deficiência disciplina, e com toda razão, é
que existem pessoas que possuem algum tipo de deficiência, mas que podem exprimir
vontades, o que afasta, decisivamente, a incidência da incapacidade relativa.209 É o
exemplo de uma pessoa com Espectro Autista, que de fato tem algum discernimento
psíquico ou intelectual reduzido, mas que não perde o controle sobre sua vontade e
tem capacidade civil plena.

206
FONTANA, Andressa Tonetto Fontana. Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. v. 23. – Belo
Horizonte: IBDFAM, 2017
207
Art. 6. A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I - casar-se e constituir união estável;
II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas
sobre reprodução e planejamento familiar;
IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária;
208
STOLZE, Pablo. Estatuto da Pessoa com Deficiência e sistema de incapacidade civil. Revista Jus
Navigandi, Teresina, ano 20. Disponível em : http://jus.com.br/artigos/41381. Acesso em
209
FARIAS, Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald. Curso de Direito Civil: Famílias. – 8 ed. rev. e
atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
Dentro desta nova visão, podemos entender que essa pessoa é plenamente
capaz, podendo praticar todos os atos jurídicos independentemente de representação
ou assistência.
Mas não são todos os juristas que vêem com bons olhos as alterações trazidas
pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Na visão de José Simão210, quando confrontado se o Código Civil de 2002 era
um instrumento de opressão das pessoas com deficiência ou fonte de discriminação,
exalta que o Código Civil atual, antes da alteração trazida pelo Estatuto da Pessoa
com Deficiência, era um Código protecionista, no sentido de que protegia as pessoas
que, segundo concepção histórica, necessitam de proteção, e com a entrada em vigor
do referido estatuto acaba por gerar um abandono jurídico de uma importante parcela
da população que dela necessita.
Especialmente quanto ao direito de família, principalmente nas questões
existenciais, o Estatuto da Pessoa com Deficiência nos parece ter grande avanço, pois
de forma expressa gera uma inclusão plena das pessoas com deficiência,
principalmente pelo que é determinado pelo art. 6º, que versa diretamente sobre
questões existenciais.
Se a capacidade é a regra, ela deverá sempre ser preservada. Já a incapacidade
deverá ser comprovada e somente reconhecida para os atos que de fato a pessoa
portadora de deficiência precisar de assistência.
A partir da nova legislação, é retirado de vez do ordenamento jurídico a
possibilidade de ligar o transtorno da pessoa deficiente como critério de uma
incapacidade, ou seja, a doença, o transtorno mental não gera automaticamente a
incapacidade.
Partimos da idéia de que não deve ser a norma a apresentar as hipóteses da
incapacidade, seja absoluta ou relativa, mas sim, tal posição deva ser exercida pela
equipe multidisciplinar que irá analisar acerca da existência de discernimento total ou
parcial para os atos da vida civil, delimitando a extensão da curatela a partir do grau
de discernimento analisado.

210
SIMÃO, José Fernando. Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade (Parte I).
Disponível em:https://www.conjur.com.br/2015-ago-06/jose-simao-estatuto-pessoa-deficiencia-causa-
perplexidade. Acesso em 02 de agosto de 2018.
Nesse sentido, Iara Antunes de Souza211, diz que pelo sistema atual não
poderíamos ter a figura do representante, uma vez que a incapacidade absoluta dar-se-
ia somente para os menores de dezesseis anos, entretanto, se a definição de existência
ou não de discernimento e em que grau isso se dá não é uma função do Direito, mas
sim de equipe multidisciplinar, é que se justifica o fato de se defender que, ainda que
não exista previsão de incapacidade absoluta, a representação será possível quando a
equipe multidisciplinar concluir que a pessoa não tem discernimento para sozinha
exercer sua autonomia de vontade para aquele ato específico e ainda não puder ser
ajudada para a consecução desse desiderato, o que se entende excepcional, mas
possível.
O que podemos concluir do referido Estatuto é que as pessoas com deficiência
psíquica foram oportunamente removidas do rol das absolutas e dos relativamente
incapazes, estando libertas do regime da curatela, pela via de uma ação de interdição.
Não mais se cogita de incapacidade jurídica, relativa ou absoluta, decorrente de uma
deficiência física ou mental por si só, conforme preconiza o art. 6º do EPD quando diz
que “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”. 212
Resta claro também que caberá sempre ao magistrado, atento ao caso
concreto, em sua sentença, graduar a incapacidade, fazendo com que a curatela venha
a incidir somente sobre determinados atos, sem nunca afetar os interesses existenciais
da pessoa com deficiência, conforme preconiza o art. 85 quando diz que “a curatela
afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e
negocial.

3. A Autonomia de Vontade das pessoas com Transtorno Espectro Autista


frente ao Estatuto da pessoa Com Deficiência
Ana Carolina Brochado Teixeira213, com excelência, diz que hoje em dia
consolida-se uma nova arquitetura para a autonomia privada adequada à situações
existenciais, devendo investigar-se o limite da atuação do Estado ou de terceiros nas
liberdades individuais destes cidadãos.

211
SOUZA, Iara Antunes de. Estatuto da Pessoa com Deficiência: curatela e saúde mental – Conforme
a Lei 13.146/2015 – Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016.
212
FARIAS, Cristiano Chaves de. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado artigo por artigo. –
Salvador: ED. JusPodivm, 2016.
213
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Autonomia Existencial. Revista Brasileira de Direito Civil –
RBDCivil – Belo Horizonte, v. 16, junho de 2018.
A condição de liberdade da pessoa com TEA é fundamental para que esse
indivíduo possa viver de maneira digna, respeitando inclusive um dos objetivos do
Estado, que é a realização da dignidade da pessoa humana. Claro, sempre deverá ser
considerada a liberdade dentro dos limites de suas particularidades, ou seja, dentro do
limite que o transtorno impõe ao indivíduo com TEA, que deverá ser analisado com
astúcia pelo juiz de direito no caso concreto, auxiliado por equipe multidisciplinar.214
Ordenar judicialmente a curatela à pessoa com TEA não nos parece
concretamente tirar sua liberdade, tirar seu poder de fazer sua própria história, mas
dependendo da situação, principalmente naqueles casos de pessoas com TEA em nível
de gravidade muito alto acaba por protegê-lo e mais importante, o coloca em
igualdade de condição social com as demais pessoas. O que defendemos, é que para
que seja respeitada a dignidade desta pessoa, bem como sua proteção social, deverá o
magistrado, ao analisar o caso concreto, muito com o apoio da equipe
multidisciplinar, determinar os limites específicos da curatela, sempre buscando dar a
maior liberdade possível aos atos de cunho existenciais.
O discernimento então passa a ter importância central no regime das
incapacidades, sua concepção e as limitações dele advindas é resultado de uma
dimensão adquirida nos últimos tempos dentro do direito, em vários planos jurídicos,
em especial do direito internacional. 215 Na Alemanha (Lei 48/90), por exemplo,
decidiu-se que ninguém seria submetido a um procedimento de incapacidade, pois
além de considerar discriminatório e vexatório, era desnecessário, pois não contribuía
com nada para o sujeito com alguma deficiência.
Quando passamos a entender que o fato jurídico da deficiência é apenas uma
característica da pessoa humana, nesta sua particularidade, atrelada a uma limitação
ambiental, começamos a entender que isto não é um pressuposto para a sua
incapacidade, passamos por fim a aplicar o fundamento constitucional, elevando o
reconhecimento da dignidade da pessoa humana.
A própria Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência em seu art.
3º, “a”, quando alimenta seus princípios é enfática ao alavancar a dignidade da pessoa

214
Art. 84: Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei”. §
3º - A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária,
proporcional às necessidades e às circunstâncias de
cada caso, e durará o menor tempo possível”
215
ROSENVALD, Nelson. A curatela como a terceira margem do rio. Revista Brasileira de Direito
Civil –RBDCivil. Belo Horizonte, v. 16, abr./jun. 2018.
humana, dizendo que “o respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual,
inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas”.
Nota-se, pelo dispositivo, que a dignidade da pessoa com deficiência só vai ser
contemplada no momento que este sujeito puder fazer suas próprias escolhas,
exercendo sua autonomia de vontade, dentro do limite de seu discernimento.
Podemos observar, com clareza, que após o advento do Estatuto da Pessoa
com Deficiência, o sujeito com TEA poderá ser considerado uma pessoa com
deficiência216.
É clara a diferença do tratamento dado as pessoas com TEA antes e depois do
referido Estatuto, quando antes estes poderiam ser tido como absolutamente incapaz,
causa que geralmente lhe era atribuída à interdição total, hoje não mais, pois é
considerado pessoa plenamente capaz, todavia, ao nosso entender, dependendo do
nível do espectro, poderá ser considerado relativamente incapaz para apenas alguns
atos da vida, de preferência para atos especificamente patrimoniais, vindo a ser
assistido por curador nomeado judicialmente.
Assim, hoje em dia, por força da inserção no ordenamento jurídico da
Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência, bem como com o advento do
Estatuto da Pessoa com Deficiência, o indivíduo com autismo é considerado
civilmente capaz, podendo eventualmente, ser curatelado, dependendo do nível do seu
transtorno.
Defendemos que o grau de discernimento da pessoa com TEA é que indicará
sua aptidão para o exercício de sua autonomia de vontade, tanto para atos patrimoniais
como extrapatrimoniais, quando deverá ser assistido pela pessoa do curador ou dos
apoiadores quando da Tomada de Decisão Apoiada. 217
Se as pessoas com deficiência têm capacidade legal, elas podem constituir
família, o que repercutiu, inclusive, com a revogação da previsão de que o enfermo
mental não pode casar, do art. 1.548, inc. I, do Código Civil,218 o que se estende ao

216
Artigo 2º do Estatuto da Pessoa com Deficiência: “Considera-se pessoa com deficiência aquela que
tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em
interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em
igual condições com as demais pessoas”.
217
Tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2
(duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe
apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações
necessários para que possa exercer sua capacidade.
218
XAVIER, Marília Pedroso, PUGLIESE, William Soares. O Estatuto da Pessoa com Deficiência e a
união estável: primeiras reflexões. In: MENEZES, Joyceane Bezerra (org.): Direito das pessoas com
mesmo tempo à constituição de união estável, por força da normativa constitucional
que equipara as instituições familiares. Ainda mais quando se tem que a união estável
é constituída sem nem mesmo haver exigência de manifestação literal de vontade das
partes.
Como já salientado, há presunção de que a pessoa com TEA é plenamente
capaz, ou seja, a deficiência não é pressuposto de incapacidade, mas observa-se que a
falta de discernimento para o ato pode gerar nulidade, pois deveria, dependendo do
nível do TEA, ser assistido por um curador ou até mesmo através da tomada de
decisão apoiada, conforme prevê o art. 84, § 2º 219 do Estatuto da Pessoa com
Deficiência.
Nessa perspectiva, para que uma pessoa com TEA venha a se casar, por
exemplo, é necessário somente a expressa manifestação de vontade de contrair o
matrimônio. Não havendo demonstração, cabe ao Registrador Civil, dentro de suas
atribuições, negar-se a efetivar o matrimônio.
Na mesma linha de inclusão vem o direito de adotar ou de exercer a guarda
dos filhos, previsto no art. 6º do EPD, com a especificidade de nesse caso não tratar-
se mais de escolhas que repercutirão somente em sua própria vida, mas também na
vida de outros, a saber, o filho, ou a pessoa que estiver sob sua guarda.
Nestes casos devemos ter em mente que o interesse do assistido (filhos) vem
antes do que a da pessoa com TEA, ou seja, o interesse do assistido é prevalecente,
devendo-se a partir desse aspecto avaliar a o nível do transtorno para saber se
realmente existe algum impedimento para que seja exercida a guarda ou até mesmo
seja deferido pedido de adoção.
Nota-se que a análise é inclusiva e não exclusiva. Primeiro se analisa a
possibilidade do exercício da guarda ou da possibilidade para adoção, não levando em
conta a deficiência como um estigma que desqualifica a pessoa autista, mas sim a
possibilidade que se tem de efetivamente exercer esse direito independente da
deficiência ou não.220

deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas – Convenção sobre os direitos da pessoa com
deficiência e Lei Brasileira de Inclusão –Rio de Janeiro: Processo, 2016.
219
Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em
igualdade de condições com as demais pessoas. § 2º. É facultado à pessoa com deficiência a adoção de
processo de tomada de decisão apoiada.
220
SECO, Thaís Fernanda Tenório. Direito de adotar e de exercer a guarda, a tutela e a curatela. In:
MENEZES, Joyceane Bezerra (org.): Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas
relações privadas – Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão
–Rio de Janeiro: Processo, 2016.
Sob o aspecto exclusivo do exercício da guarda, geralmente visto em disputas
entre genitores, cabe destacar que com o advento da Lei nº 13.058/2014 a regra
passou a ser o compartilhamento da guarda, que será unilateral apenas quando um dos
genitores não puder exercê-la ou quando algum genitor declarar que não deseja ter a
guarda. Entendemos que deverá ser determinada a guarda compartilhada mesmo no
caso de litígio entre os genitores.
É o que possivelmente poderá ocorrer em caso de disputa de guarda em que
um dos genitores é autista, quando o outro não permitirá a guarda conjunta
possivelmente alegando o TEA, e acaso o juiz venha a decidir pela guarda unilateral
em desfavor da pessoa com o espectro, baseado tão somente no seu transtorno, estará
indo na contramão do que propõe o Estatuto da Pessoa com Deficiência e a nova Lei
da Guarda Compartilhada. Assim, dentro do critério da referida lei, a pessoa com
TEA somente deixara de ter a guarda compartilhada quando for impedida
judicialmente de exercê-la por conta do nível de seu transtorno, ou ainda quando não
desejar.
Nestes casos, empenhamos categoricamente que seja feito um estudo
psicossocial de excelência, para que seja analisada profundamente a possibilidade ou
não do exercício da guarda pelo genitor que tenha o TEA.
Podemos observar então que o TEA não é óbice para o exercício da autonomia
de vontade, principalmente quando versa sobre atos de cunho existencial.

Considerações Finais
Tanto a Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência como o
Estatuto da Pessoa com Deficiência abraçam a idéia de inclusão.
Essa teoria abrange toda pessoa com TEA, que deverá ter suas vontades e
desejos preservados nos seus mais íntimos aspectos.
Nessa perspectiva, vê-se a importância da interlocução entre o direito e a
psicologia, pois será através da interatividade destas áreas que ver-se-á a possibilidade
de protagonismo na vida da pessoa com TEA.
É induvidoso que a questão relativa à capacidade/discernimento da pessoa
com TEA exige um diálogo profundo entre direito e psicologia, pois somente a
interdisciplinaridade poderá apresentar ao julgador elementos capazes de auxiliá-lo a
ter um juízo valorativo no processo, pois existem fatos em que o juiz não tem
conhecimento técnico para a avaliação, mas que por profissionais especializados da
área da psicologia não passam despercebidos.
Toda norma jurídica voltada para a saúde mental deverá ser interpretada no
sentido de proteção, promoção na melhora de vida e na concretização da dignidade da
pessoa que tenha deficiência, e isso só será efetivado e concretizado através do
trabalho harmonizado do direito e da psicologia.
O estudo psicológico em conjunto com a aplicação do Estatuto da pessoa com
Deficiência é o meio mais eficaz para que a pessoa com TEA venha exercer sua
autonomia de vontade. Verifica-se que o judiciário, sozinho, não é o meio indicado
para auferir a capacidade da pessoa com TEA, e isso significa dizer que o Estado
deverá sempre ser auxiliado por profissionais das mais variadas vertentes, como
psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, entre outros, dependendo da necessidade
que exige o caso concreto.
Essa indispensabilidade reforça a essencialidade da psicologia para o direito.
Ainda ao que se refere à progressão social da pessoa com Autismo, temos a
absoluta certeza que o tratamento envolvendo múltiplos profissionais (psicólogo,
fonoaudiologista, terapeuta ocupacional, psicopedagoga, neurologista, psiquiatra)
permitirá uma potencialização na melhora gradativa desta pessoa, de forma que
através destes tratamentos, muito ainda com a psicanálise, se conseguirá efetivar o
protagonismo da vida afetiva, social e profissional destes indivíduos.
Quanto ao Estatuto da Pessoa com Deficiência, se evidenciam muitas
alterações para o direito brasileiro, porém não tem força para mudar as deficiências de
cada cidadão, não altera a realidade de limitação da pessoa com TEA, logo, a lei não
torna o sujeito com TEA apto ou não para discernir sobre fatos e emitir vontade
jurídica, todavia, permite que cada pessoa com o espectro seja individualmente
considerada em suas limitações psíquicas e intelectuais - muito através do trabalho de
interlocução entre a psicologia e o direito - e ao mesmo tempo reconhece a
possibilidade de que cada cidadão com Autismo é apto também para entender e querer
realizar atos que lhe dizem respeito, partindo do princípio que antes de serem
considerados incapazes são inteiramente capazes de expressar e realizar seus desejos,
seja eles de cunho existencial ou patrimonial, cabendo analisar juridicamente, se for o
caso, o discernimento demonstrado pela pessoa ainda que não se encaixe no conceito
de normalidade, sendo que ao verificar a falta deste, que seja determinada a curatela
com o intuito específico de proteger e de efetivar o princípio da igualdade previsto em
nossa Constituição Federal.

Referências

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DEFICIÊNCIA MENTAL E AUTISMO:
TENDÊNCIA AO DIVÓRCIO FRENTE AO
DIAGNÓSTICO DO FILHO E REPERCUSSÕES NA
DISPUTA DE GUARDA

Marina Kayser Boscardin221


Patrícia Cantisani Schaffer Pires222

Introdução
A família constitui o primeiro universo de relações sociais da criança. A
influência da família no desenvolvimento infantil se dá, primordialmente, através das
relações estabelecidas pela comunicação. A família constitui-se, portanto, como um
grupo com dinâmicas de relação muito diversificadas, cujo funcionamento muda em
decorrência de qualquer alteração que venha a ocorrer em algum de seus membros.
Para muitos casais, a mudança associada à paternidade e à maternidade é,
provavelmente, a mais difícil que enfrentam. Em algumas situações o impacto pode
ser percebido muito antes que os filhos sejam realmente concebidos.
Quando se trata de um filho com deficiência, no entanto, a situação passa a ser
ainda mais delicada. Segundo Silva e Dessen (2001), a chegada de uma criança com
algum tipo de deficiência quase sempre é traumática, podendo causar forte
desestruturação na estabilidade familiar.

1. Impactos da Deficiência do Filho na Relação Parental


A descoberta de uma deficiência psíquica em um filho pode ser considerada
um estressor social. Fina (1994) refere-se a estressor como quaisquer circunstâncias,
cuja presença supõe mudanças na forma de vida atual do indivíduo.

221
Psicóloga incrita no CRP sob nº 07/21107, especialista em psicologia forense (UAB - Universidade
Autônoma de Barcelona, Espanha), pós-graduada em psicopatologia clínica (UB - Universidade de
Barcelona, Espanha), membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica (SBPJ), mestre em
psicologia com ênfase em cognição humana (GPPC-PUCRS), diretora da Associação Brasileira
Criança Feliz (ABCF-POA) e sócia do Instituto de Psicologia Prof. Jorge Trindade.
222
Psicóloga inscrita no CRP sob nº 07/27849, cursa especialização em psicologia clínica (FTEC-
IBGEN -Instituto Brasileiro de Gestão de Negócios); administradora de Empresas (PUC-RS), pós-
graduada em Finanças (PUC-RS) e Marketing (PUC-RS) e sócia do Instituto de Psicologia Prof. Jorge
Trindade.
O momento inicial de aceitação é indiscutivelmente um dos mais difíceis para
as famílias, as quais devem buscar sua reorganização interna tanto enquanto grupo,
quanto individualmente. Neste contexto, o processo passa pela necessidade de
elaborar a perda de um filho imaginário para se preparar e receber o filho real. Diante
deste difícil processo, muitos pais acabam sendo incapazes de investir em seus filhos,
visto que a presença de uma deficiência não corresponde às suas expectativas.
Diante do diagnóstico de uma deficiência, Fina (1994) aponta que os pais
geralmente passam pelas seguintes fases: choque, negação, depressão e reação. A fase
de choque ocorre no momento em que os pais recebem o diagnóstico de seu filho.
Nesta etapa os pais podem ficar sem reação, como se alguém da família tivesse
morrido, pois é algo inesperado, para o qual não estavam preparados. A fase seguinte
é a negação, e perpassa pelo momento de descrença dos pais sobre o diagnóstico,
sendo este questionado na esperança de que não seja verdadeiro. É uma fase muito
delicada e crítica, pois as famílias tendem a buscar diversos outros profissionais com
o desejo de que seu filho tenha um diagnóstico mais “aceitável”. Já na fase de
depressão, se inicia uma aceitação diagnóstica, na qual os pais admitem que o
problema é real, reconhecendo que o enfrentamento será difícil, surgindo um
abatimento emocional. Na última fase, chamada de fase de reação, há aceitação plena
do diagnóstico e inicia-se a busca por soluções para ajudar a criança a superar as
dificuldades e favorecer, sobretudo, um prognóstico mais positivo.
Ocorre, no entanto, que os pais não vivem, necessariamente, cada fase ao
mesmo tempo. Estas diferenças podem gerar conflitos entre o casal, justamente por
não compreenderem os sentimentos e atitudes que o outro está vivenciando naquele
determinado momento. Pode ser que um dos pais nunca aceite o problema, não
avançando nas fases e criando conflitos familiares.
Sendo assim, a reorganização familiar fica mais fácil quando há amparo mútuo
entre o casal, o que contribui para o crescimento e desenvolvimento da criança
deficiente. Cada família restabelece seu equilíbrio de acordo com seus recursos
psicológicos. Ainda assim, existem outras variáveis que afetam o desenvolvimento da
criança como renda familiar, grau de instrução dos pais e profissão, qualidade das
interações e relações familiares e rede de apoio.
Silva e Dessen (2001) analisaram alguns estudos onde as mães apresentaram
níveis superiores de estresse em relação aos pais, devido ao fato de ficarem
responsáveis pela maior parte dos cuidados relacionados à criança. A situação
vivenciada pela família com um filho deficiente pode se agravar quando os pais
observam em seu filho um distanciamento progressivo dos padrões gerais de um
desenvolvimento considerado normal. No caso da deficiência mental, tal
distanciamento aumenta à medida que a criança cresce e os pais tendem a se sentir
desiludidos e pessimistas.
Conforme Horjales y Lorente (1993), os pais e mães de crianças deficientes
têm mais problemas relacionados à depressão e à saúde em geral, podendo apresentar
isolamento social e dificuldades nas relações conjugais. Pais de filhos com deficiência
tendem a apresentar, ainda, baixa autoestima, menor confiança em seu papel parental
e experimentam redução da capacidade de convívio e estabelecimento de vínculos
afetivos com seu filho, quando comparados aos pais de filhos saudáveis. Os pais que
mostram maior estresse, por exemplo, tendem a adotar um maior número de
estratégias para a fuga e evitação do problema.

1.1 O divórcio como resultado do impacto na relação conjugal de pais de


filhos com deficiência
Os casais que têm filhos com algum tipo de deficiência são mais propensos à
separação quando comparados a pais de crianças saudáveis, pois o diagnóstico gera
repercussão no funcionamento familiar, que nem sempre o casal está preparado para
lidar. Os esquemas familiares são modificados e o impacto dos efeitos causados por
essas alterações dependerá da estrutura familiar pré-existente (RISDAL & SINGER,
2004). Na maioria dos casos quando o casal sobrevive aos dois primeiros anos de vida
do filho deficiente, o risco de divórcio diminui consideravelmente. De acordo com
Hartley, Barker e Seltzer (2010), a gravidade das condutas da criança e o fato de
terem mais de um filho com deficiência, evidentemente, são fatores associados a
maior risco de divórcio.
Pesquisas realizadas nos Estados Unidos buscaram determinar os efeitos que
uma criança deficiente pode gerar nas famílias. A partir do levantamento dos dados,
constatou-se que 20% dos pais de crianças deficientes estavam separados
(HORJALES, I.; LORENTE, 1993). Apesar disso, há autores que defendem que a
deficiência de um filho não é um fator que pode causar o divórcio de um casal. Há
estudos que revelam uma nova visão das famílias, onde se reconhece a contribuição
positiva das pessoas com deficiência para suas famílias fazendo com que laços sejam
fortalecidos, favorecendo o aumento da felicidade e amor, proporcionando um maior
conhecimento sobre as dificuldades, além do aprendizado voltado à tolerância,
paciência e sensibilidade. Estes elementos contribuem positivamente e favorecem o
crescimento e domínio pessoal das famílias e seus integrantes (SPROVIERI &
ASSUMPÇÃO JUNIOR, 2001).
Neste mesmo sentido, Sobsey (2004) indica que, apesar de estudos sugerirem
que o estresse, a dor e outros fatores associados com a parentalidade de filhos
deficientes resultarem em alto risco de discórdia, insatisfação e divórcio dos pais, essa
noção não tem suporte. O autor defende que pais de crianças deficientes têm
casamentos que passam pelas mesmas dificuldades identificadas na população em
geral.
Por outro lado, uma cuidadosa revisão de estudos empíricos referentes às taxas
de divórcio de casais com e sem filhos deficientes sugere que há uma relação
estatística indicando um pequeno aumento do risco de divórcio de pais com filhos
deficientes. Sobsey (2004) reforça que, mesmo que esta estatística se comprove, isso
não pode ser utilizado como evidência de que as dificuldades do casamento são
provenientes da deficiência do filho. Embora os estudos referentes à temática
busquem demonstrar que os filhos deficientes são, de alguma maneira, prejudiciais ao
casamento de seus pais, há pouco interesse em estudar a maneira que os “maus
casamentos” podem afetar a criança deficiente.
Risdal y Sinfer (2004), ao realizarem uma revisão histórica da literatura sobre
o impacto familiar do diagnóstico de um filho deficiente, descrevem consequências
negativas, mantendo a visão de que uma deficiência inevitavelmente prejudica os pais
e outros membros da família. Já Joesch y Smith (1997) demonstram que o risco de
divórcio em pais de filhos deficientes é afetado positiva ou negativamente
dependendo do tipo de deficiência. Hodapp (2008) afirma que, ainda que se acredite
que o divórcio é mais frequente nas famílias de crianças deficientes, uma meta análise
dos estudos existentes acerca da temática revelou que a média de divórcios de pais de
filhos deficientes é apenas 6% maior que nos casamentos com filhos sem qualquer
deficiência. Isso indica que, apesar de os divórcios serem mais frequentes em casais
que possuem filhos deficientes, a diferença é realmente pequena quando comparado a
casais com filhos saudáveis.
Por fim, em estudo citado por Fina (1994), desenvolvido para compreender as
estratégias de enfrentamento de mães de crianças com deficiência e sua satisfação
conjugal, foi observado que quanto maior a satisfação conjugal percebida pelas mães,
maior era o grau de estratégias de enfrentamento (coping). Para cada faixa etária, as
famílias adquirem novos conhecimentos, necessitam de novas formas de suporte,
apoio e recursos, devendo todos esses fatores serem considerados na análise do
impacto familiar causado pela presença de filhos deficientes.

2. O Transtorno do Espectro Autista


No DSM-5, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) faz parte dos Transtornos
do Neurodesenvolvimento e caracteriza-se por déficits persistentes na comunicação
social e na interação social em variados contextos, incluindo déficits na reciprocidade
social, em comportamentos não verbais de comunicação usados para interação social
e em habilidades para desenvolver, manter e compreender relacionamentos. Além dos
déficits na comunicação social, o diagnóstico do TEA implica a presença de padrões
restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades.
Como os sintomas mudam com o desenvolvimento, deve-se considerar que
podem ser mascarados por mecanismos compensatórios. Também se observam
sintomas como a capacidade de manipular o mesmo objeto por longos períodos de
tempo, conduta reiterativa e falta de imaginação.
No TEA, o comprometimento da interação social geralmente se dá pelo
fracasso em desenvolver relacionamentos com pares, com pouco ou nenhum interesse
em estabelecer amizades. Também se percebe dificuldade na utilização de linguagem
não verbal (contato visual direto, expressões faciais e postura). Frequentemente, a
percepção da existência dos outros pelo indivíduo autista encontra-se bastante
comprometida, havendo dificuldade em estabelecer empatia. Os primeiros sintomas
percebidos pelos cuidadores desde os primeiros anos de vida da criança com TEA
são: estereotipias motoras e verbais, hiperatividade, labilidade emocional, baixa
resistência à frustração, acessos de raiva, destrutividade, agressividade, autoagressão,
distúrbios do sono e distúrbios alimentares (FINA, 1994).

2.1 Abalos da conjugalidade diante do Transtorno do Espectro Autista


Os pais de crianças com TEA têm pior desempenho em uma variedade de
medidas de bem-estar quando comparados a pais de crianças sem deficiência, assim
como em comparação com pais com filhos que têm outros tipos de deficiência.
Algumas explicações para o pior bem-estar dos pais de filhos com TEA são: a
incerteza sobre o diagnóstico e o prognóstico, a natureza estressante dos sintomas
autistas e problemas associados à incompreensão e intolerância da sociedade em
relação aos comportamentos apresentados por tais crianças. Os pais podem achar
difícil enfrentar o desafio de criar filhos com o TEA, podendo aumentar o risco de
uma ruptura familiar, incluindo o divórcio.
O diagnóstico de um filho com TEA representa um grande desafio e pode
trazer prejuízos para as relações conjugais. O estresse parental e a satisfação dos pais
estão mais fortemente associados ao comportamento das crianças do que as
dificuldades mentais da ordem da aprendizagem (HARTLEY, BARKER &
SELTZER, 2010). Em contraste com a maioria dos casos, os pais de crianças com
autismo continuam a experimentar um alto nível de demandas parentais e relatam
aumento de estresse na adolescência e na idade adulta dos filhos. O casal pode
experimentar um período prolongado de vulnerabilidade ao divórcio, que começa na
infância da criança e persiste na adolescência e na idade adulta. Lyons e colegas
(2010) referem que o grau de severidade da patologia é um dos principais fatores que
impactam no estresse parental.
Quando um casal descobre que seu filho é autista é como se o “projeto de
filho” tivesse sido destruído. As mães geralmente aceitam melhor o problema,
tendendo a superproteger a criança (HARTLEY, BARKER & SELTZER, 2010),
enquanto os pais acabam por se afastar e não se interessar pela criança, pois com isso
evitam a frustração.
Ao contrário de outras síndromes, como a Síndrome de Down, por exemplo, o
autismo não pode ser detectado antes do nascimento. Deste modo, até os primeiros
anos de vida, na maioria dos casos o autismo passa despercebido, pois não é possível
identificar a sintomatologia e a discrepância do desenvolvimento nos paramentros da
normalidade. Apenas após os primeiros anos de vida, pelas dificuldades evidenciadas
em seu desenvolvimento, que os pais começam a perceber que seu filho tem algo
diferente dos demais. Isso ocorre, pois as crianças autistas não falam, são solitárias e
tem dificuldade em aceitar o contato físico. É então, neste momento, que os pais
começam a se preocupar e fazem movimentos no sentido de buscar algum tipo de
orientação.
Esse tipo de transtorno altera profundamente a dinâmica familiar e produz,
inevitavelmente, mudanças importantes. A necessidade de envolvimento nos
tratamentos e os cuidados com a criança autista pode gerar sentimentos negativos
como raiva e irritação. Em grande parte dos casos, ocorre uma liderança predominante
da figura materna, muitas vezes em tempo integral, levando-a a viver em função da
criança e acarretando anulação para outras áreas de sua vida, inclusive a conjugal.
(SPROVIERI & ASSUMPÇÃO JUNIOR, 2001)
Sendo assim, o que se observa é que ainda que em alguns casos o diagnóstico
de autismo também possa contribuir no sentido de unir os casais, grande parte resulta
na separação. Em muitos casos, o nascimento de uma criança com TEA caracteriza a
destruição dos sonhos e expectativas geradas em função dele. Assim os casos de
divorcio após o diagnóstico são mais recorrentes, principalmente frente à tendência de
culpabilização do outro pela doença.
De acordo com Sprovieri e Assumpção Jr. (2001) o autismo do filho coloca os
pais frente a emoções de luto pela perda da criança saudável que esperavam. Com
isso, podem apresentar sentimentos de desvalia por terem sido escolhidos para viver
essa experiência dolorosa.
Os conflitos frequentemente se ampliam na medida em que se estabelece uma
insegurança acerca do diagnóstico. Há sensação de solidão, incluindo a falta de
serviços e de redes de apoio que ajude as famílias sobre a melhor maneira de lidar
com o problema. Com isso, muitos pais acabam desorientados. A orientação e apoio
são fundamentais para diminuir o estresse e manter a união da família.
Inegável, portanto, que o autismo leva o contexto familiar a viver rupturas por
interromper suas atividades sociais normais, transformando o clima emocional
vivenciado. Os pais se defrontam com comportamentos estereotipados da criança,
isolamento e a ausência do brincar, que frequentemente, acabam culminando com o
afastamento familiar do convívio social anteriormente estabelecido. A família sente-
se, então, frustrada e diminuída frente ao meio. Pais e a criança passam a se sentir
desvalorizados e a comunicação conjugal pode ser agressiva.
Tunali e Power (1993) relatam a existência de dificuldades em mães de
crianças autistas prosseguirem em sua carreira profissional, uma vez que a criança
demanda um tempo excessivo de cuidados e há carência de cuidadores. Por outro
lado, o principal aspecto de satisfação e desempenho materno seria justamente o fato
de ser mãe. As expectativas em relação ao cônjuge seria o de receber suporte físico e
emocional, o que muitas vezes, infelizmente não ocorre.
Fávero e Santos (2005) concluíram que as principais apreensões com a
gravidade dos sintomas e com a agressividade do filho fazem do estresse da família
com a criança autista ser maior quando comparado com famílias com crianças
portadoras da outras deficiências. A dificuldade diagnóstica, a multicausalidade deste
transtorno e a ausência de um componente definido como é o caso do TEA podem
estar relacionados a um sentimento de culpa constatado em pais de autistas.
Recentes estudos sobre a resiliência parental em processos diagnósticos de
autismo revelam um sistema de crenças parentais, envolvendo atitudes, convicções e
valores acerca do desenvolvimento de seus filhos. Semensato e Bosa (2017) propõem
a compreensão de vivências que despertavam um senso de amparo ou desamparo nos
pais na busca do diagnóstico.
O senso de amparo foi expresso através da esperança na relação coparental,
justiça na divisão de tarefas e responsabilidades, bem como boa comunicação nos
aspectos relacionados ao filho. Caberia destacar aqui as expectativas sobre o respeito
às diferenças no cuidado com a criança, o aprendizado com o parceiro e a
possibilidade de desenvolvimento atribuindo-se um novo sentido a essa vivência.
Já o senso de desamparo foi relacionado à sobrecarga de tarefas de um dos
parceiros, à falta de comunicação e negociação e sentimentos de injustiça na divisão
das responsabilidades. Tais aspectos expressam-se através da baixa tolerância frente
às diferenças entre os parceiros, busca por culpados, hostilidade na comunicação,
sentimento de não ser entendido pelo parceiro, baixa colaboração na resolução de
problemas e pouca capacidade ou interesse de reconciliação. Quanto à conjugalidade,
existe possibilidade de surgirem sentimentos relacionados à falta de esperança na
relação afetiva com a crença de que o autismo acaba com o romantismo e com o
companheirismo. Nestes casos, o filho com autismo ou exclusivamente um dos
parceiros seria considerado como o problema do casal, dificultando-se com isso, a
percepção de conflitos pré-existentes.

3. O Divórcio e a Disputa de Guarda envolvendo filhos Autistas


Especialmente nos casos de divórcio de casais que possuem um filho com
diagnóstico de TEA, seria indicada a realização de uma avaliação psicológica
específica tanto dos pais quanto da criança. A partir disso, é possível esclarecer quais
as melhores alternativas em relação a questões como guarda e visitação, por exemplo,
considerando as necessidades especiais da criança. Nestes casos é fundamental que a
criança tenha um lar que facilite seu desenvolvimento sendo que a avaliação das
capacidades parentais se destina justamente a este fim (HARTLEY, BARKER &
SELTZER, 2010).
No entanto, em alguns casos, as necessidades especiais da criança podem ditar
as disposições de custódia, o que é aparentemente contraditório com os objetivos
gerais. Por exemplo, a capacidade de um pai para prover as necessidades materiais de
uma criança autista ou treinamento especial para um dos pais para lidar com o
problema da criança pode ter um peso especial e compensar outras deficiências
(HODAPP, 2008).
De forma geral, crianças autistas terão maior dificuldade no processo de
crescimento e desenvolvimento e, por isso, é extremamente necessário que os pais
sejam compreensivos e aceitem o diagnóstico do filho (HODAPP & KRASNER,
1995). Independentemente da guarda e custódia estar com o pai ou com a mãe, uma
criança autista precisa ter pais sadios, que lhe proporcione referências. Sendo assim,
seria aconselhável a elaboração de um calendário de visitas ao genitor que não detém
a custódia, já que estas crianças são muito rígidas e intolerantes às mudanças,
necessitando de uma rotina organizada (FREEDMAN, KALB, ZABLOTSKY &
STUART, 2012).
As investigações indicam que, na maioria dos casos, as crianças autistas se
beneficiam quando a guarda é dada à mãe. Tal fato, no entanto, é bastante
questionável, pois há pais que têm mais capacidades do que as mães para gerenciar o
transtorno e estabelecer o vínculo. Independentemente de a custódia estar em poder
do pai ou da mãe, uma criança autista precisa ter pais dispostos a acolher suas
necessidades, fornecendo as referências necessárias visto se tratarem de crianças
muito intolerantes com baixa capacidade de frustração.
Quanto à necessidade de participação da criança no processo judicial, é
importante avaliar o grau e a gravidade do transtorno. Se o diagnóstico não for
comprometedor em termos das condições cognitivas e emocionais, a criança com
poderá participar, havendo a necessidade de contextualizar suas peculiaridades ao
processo e ter pelo menos 12 anos, conforme determina o Código Civil Brasileiro.
No caso do autista de altas habilidades (também chamado de autista de alto
funcionamento), no qual a criança compreende melhor o mundo ao seu redor,
desenvolvendo-se de forma menos restritiva e, chegando a apresentar um estilo de
vida social, ainda que visivelmente diferenciado (KLIN, 2006). Fina (1994)
desaconselha a participação no processo, uma vez que eles tentem a entender melhor
as situações que acontecem ao seu redor e são capazes de expressar suas opiniões e
desejos. O autor afirma que, ao contrário do critério comum, não são todos os autistas
que não se relacionam com o ambiente externo, referindo que os autistas de alto
funcionamento muitas vezes passam a vida inteira sem serem diagnosticados como
tal, já que suas dificuldades não os limitam tão seriamente.
Deste modo, a disputa pela custódia de crianças autistas pode afetar mais ainda
a criança se ela tiver um autismo de alto funcionamento. Se o autismo é de baixo
funcionamento, a criança não entende a situação bem o suficiente podendo diversos
aspectos passarem despercebidos, já nos autista de alto funcionamento, diante das
características de alto cuoficiente intelectual, problemas de relação social (habilidades
sociais comprometidas), ausência de empatia, rigidez, vocabulário culto, entre outros
as repercurssões negativas podem ser mais propícias.
É primordial que diante da separação destes casais, se chegue a um acordo de
guarda e visitação que vise atender, acima de tudo, o melhor interesse da criança. Faz-
se essencial que ambos os pais, após divorciados estejam engajados na missão
parental, redesenhando seus papéis de maneira a colocar as necessidades do filho em
primeiro lugar, distinguir as questões parentais das pessoais e descobrir maneiras de
comunicação eficazes um com o outro (TRINDADE, 2017).
Ademais, considerando que o autismo é uma condição crônica, com
manifestações que permanecem por toda a vida, cabe aos país, divorciados ou não, se
investirem na melhora das habilidades sociais e de linguagem do filhos almejado uma
vida um pouco mais independente e com menos sinais do distúrbio (CAVALCANTI
& ROCHA, 2007).
Sendo assim, estruturar o ambiente ajuda a criança autista a se identificar com
as atividades que necessita fazer, sendo sugerido, para tal a manutenção de estratégias
visuais, tais como desenhos, fotografias e símbolos, elementos muito positivos e que
oferecem grande ajuda a estas crianças, tanto para seu aprendizado quanto para a
melhora de sua compreensão e regulação da conduta (MARTÍNEZ GUILLEM, 2015).
Da mesma forma, recomenda-se o desenvolvimento de agenda de atividades
que anuncie à criança a sequência do que irá realizar em cada dia e em cada momento.
Os país devem atentar também ao nível de exigência, devendo este estar acordo com
aquilo que a criança é capaz de oferecer, respeitando o ritmo de adaptação e
aprendizagem e evitando metas inatingíveis que resultem em frustrações.
Por fim, mas não menos importante, é a necessidade de manter a constância,
buscando utilizar sempre as mesmas frases, procedimentos e rituais. Ademais,
antecipar eventos, favorecendo a adaptação às mudanças e dirimindo possíveis
problemas diminui muito as chances posteriores de desorganização.
Sendo assim, a participação ativa da família, escola e comunidade na
estruturação e manutenção de uma rotina estruturada e previsível para a criança
autista é fundamental. Tal planejamento visa proporcionar um ambiente que favoreça
o pleno desenvolvimento da criança, devendo ser evitados ao máximo estímulos e
situações que possam vir a gerar crises devendo tais aspectos serem ainda mais
reforçados nos casos de divorcio aonde a situação por si só já é bastante ansiogênica e
desestruturante.

Considerações Finais
A partir da realização deste estudo foi possível compreender a importância que
as famílias representam no desenvolvimento das crianças e ao longo da vida,
principalmente no que se refere aos cuidados, estímulos, possibilidade de interações e
ensinamentos. Há de se destacar que, diante de um contexto de deficiência e,
especialmente, de autismo, as famílias podem necessitar de maior apoio devido ao
envolvimento parental a elas exigido. Não há dúvidas que a doença da criança
influencia o ambiente familiar.
Salienta-se a importância da busca de apoio psicológico para aceitação dos
filhos e uma melhor compreensão do diagnóstico recebido. No caso das famílias com
crianças portadoras do TEA, o prejuízo cognitivo seria o principal fator de estresse
parental. A dinâmica familiar sofre modificações que abrangem de aspectos
financeiros até aqueles relacionados à qualidade de vida física, psíquica e social dos
cuidadores. Os tratamentos precoces para transtornos permanentes podem melhorar a
qualidade de vida do sujeito e de sua família, uma vez que proporcionam adaptação,
habilidades de enfrentamento e influenciam o próprio funcionamento dos membros
familiares.
As experiências relacionadas aos cuidados com filhos com autismo são
capazes de proporcionar um novo sentido à vida, onde os pais tem a oportunidade de
realizar uma revisão de valores e prioridades dentro da família.
Os casos de divórcio em casais com filhos diagnosticados com TEA devem ser
entendidos a partir de suas peculiaridades, de modo que a cisão provocada pela
separação dos genitores interfira o minimamente nas necessidades do filho.
Diante da recomendação da agenda, planejamento, constância, rituais e
presivibilidade inerente aos sujeitos com TEA os genitores divorciados devem atentar
para que, independentemente do tipo de guarda, custodia ou visitação as combinações
sejam mantidas e as transições adequadas evitando desorganizações desnecessárias e
preservando a integridade emocional, que por si só é facilmente abalada.
Neste sentido, Trindade (2017) ressalta que o interesse dos pais, que muitas
vezes era posto em primeiro lugar, deve ceder espaço para as preocupações com a
formação dos filhos. Este cuidado toma dimensão ainda maior quando os filhos
apresentam algum tipo de deficiência, cujas peculiaridades exigem ainda mais atenção
e cuidados.
Ambos os pais são muito importantes para o desenvolvimento de uma base
segura de afeto a partir da qual a criança poderá explorar o mundo de forma
satisfatória, sem maiores sofrimentos (BOWLBY, 2008). Assim, se a criança
deficiente tiver a oportunidade de ser criada ao lado de pais afetivos, contando com
apoio incondicional, conforto e proteção, conseguirá desenvolver estruturas
suficientemente fortes e seguras para enfrentar as dificuldades inerentes à sua
condição.

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CRIME E SAÚDE MENTAL

223
Fausto Amaro
*Texto original de Portugal

Introdução: Crime e transtornos mentais


A ideia de que o indivíduo que sofre de transtornos mentais é perigoso, ou
pelo menos potencialmente perigoso, é uma ideia bastante espalhada. A ideia de
perigosidade associada aos transtornos mentais é também reforçada pelos media ao
relatarem crimes, especialmente se apresentam certas formas de crueldade ou uma
completa irracionalidade “só possíveis em pessoas loucas”.
Outra ideia igualmente popular é a da associação entre crime e transtorno
mental.
Contudo, como afirma Bénézech et al.:
“Embora haja por vezes alguma coisa de verdadeiro nestas ideias
largamente espalhadas é preciso abandonarmos o mito do louco
potencialmente assassino. E se os doentes mentais cometem atos
antissociais, a delinquência patológica representa apenas uma pequena
parte da criminalidade geral.” (1981)

Também Pedro Polónio, que fez estudos nesta área, em Portugal, é da mesma
opinião: “as doenças psiquiátricas não predispõem ao crime, pelo contrário a sua
criminalidade geral é inferior à média.” (POLÓNIO, 1975, p. 452).
O mesmo tipo de conclusão é documentado também por outros autores. Como
escreve Stephen Jones, “ Embora haja clara evidência que certos tipos de transtornos
mentais estão associados a criminalidade, não temos nenhuma certeza de que em
muitos destes casos o comportamento criminal tenha ocorrido como resultado do
transtorno mental” (JONES, 2006, p. 396).
As ideias apresentadas por estes autores não traduzem, porém, o consenso
entre os especialistas. Fernando Almeida (ALMEIDA, 2018) fez uma revisão alargada
da literatura e encontrou evidência em muitos estudos para uma associação entre
transtornos mentais e comportamentos criminais. Um dos estudos largamnente citado

223
Sociólogo. Professor catedrático e pesquisador do Centro de Administração e Políticas Públicas,
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa. Presidente da Escola
Superior de Saúde Atlântica (Portugal) e Presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidologia.
que apoia a ideia de haver maior probabilidade de comportamento criminal entre as
pessoas portadoras de transtornos mentais em comparação com a população geral, é a
pesquisa realizada na Dinamarca por Hodgins et al. (1996). O estudo incidiu sobre
uma cohort de 324.401 indivíduos tendo sido identificados aqueles que estiveram
internados em estabelecimentos psiquiátricos e que vieram a ser alvo de condenação
por crimes violentos. O estudo mostrou que entre 1978 e 1990, 6,7% dos homens e
0,9% das mulheres com doença mental grave tinham sido condenados por crimes
violentos, enquanto que entre aqueles que não tinham estado internados em
estabelecimento psiquiátrico apresentavam um menor número de condenações, sendo
1,5% no caso dos homens e 0,1% no caso das mulheres.(HODGNIS et al. apud
SCHUG e FRADELLA, 2014, p.4).
O estudo de Hodgnis e colaboradores foi alvo de diversas críticas. Wessely e
Castle (1998, p. 86) observaram que apesar da grande dimensão da amostra, o estudo
pode ser criticado do ponto de vista metodológica devido ao enviesamento originado
no modo de seleção dos casos. Em primeiro lugar, nem todos os portadores de doença
mental grave são internados podendo haver pessoas que sofriam de doença mental e
que não cometeram qualquer tipo de violência; em segundo lugar os que tiveram
comportamento violento têm maior probabilidade de ser internados e de ter contacto
com a polícia e por consequência podem aumentar o número dos que são condenados
por violência.
Schug e Fradella também reconhecem as limitações do estudo, considerando
que os dados não são generalizáveis para outros países (SCHUG e FRADELLA,
2014, p.4).
Os estudos que procuram explicar o crime pelo transtorno mental levantam
várias dificuldades metodológicas. Em primeiro lugar há considerar o conceito de
crime e os vários tipos de crime os quais são distintos de outros comportamentos
desviantes igualmente punidos pelos tribunais. Por isso não podemos correlacionar
transtornos mentais e condenações em tribunal, sem distinguir do que se trata. O
conceito de crime envolve várias perspetivas de natureza legal, social e moral e
refere-se a comportamentos considerados como graves pela sociedade. Em Portugal,
do ponto de vista legal o conceito de crime é definido na alínea a), art.º 1.º do Código
de Processo Penal, como o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao
agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais. O crime tem que estar
definido na lei penal antes da realização do comportamento do agente; este deve ter
agido com pleno conhecimento da ilicitude do ato ao qual deve corresponder uma
pena.
A segunda dificuldade metodológica reside no facto de alguns
comportamentos criminais constituírem critério diagnóstico para a definição de um
transtorno específico. É o caso do transtorno pedofílico, da cleptomania ou da
piromania, cujas prevalências na população em geral são desconhecidas, mas que nos
casos diagnosticados de cleptomania representam valores significativos, calculando-se
que representem entre 4 a 24% dos indivíduos presos por furtos em lojas. Já no caso
da piromania apenas foram encontrados 3,3% de indivíduos que correspondiam ao
dignóstico, numa amostra de pessoas que chegaram ao sistema judicial. (AMERICAN
PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014).
O caso das drogas é ainda mais complexo devido ao facto de muitos
utilizadores serem também traficantes e o consumo ser penalizado em muitos países.
Em Portugal, num estudo realizado em 2005 entre a população de dois
estabelecimentos prisionais da região de Lisboa, abrangendo 717 reclusos dos dois
sexos verificou-se que 43% dos homens e 24,5% das mulheres já tinham consumido
cocaína, o mesmo acontecendo coma heroína, em 18% dos homens e 9,9% das
mulheres (AMARO, 2005, p. 8-9). No mesmo ano, um estudo de Anália Torres e
Maria do Carmo Gomes revelava que 72,9% das situações de detenção nas cadeias
portuguesas estavam relacionadas direta ou diretamente com drogas (TORRES e
GOMES, 2005, p. 24).
Em 2017, nas cadeias portuguesas, 17,2% dos reclusos estava a cumprir pena
por crimes relacionados com estupefacientes (PORTUGAL, 2018, p.2).
Outra situação que merece um comentário é o caso do Transtorno da
Personalidade Antissocial. Entre os 7 critérios de diagnóstico do grupo A indicados
pela DSM-5 dois permitem também identificar a conduta do sujeito como infrator.

Um padrão difuso de desconsideração e violação dos direitos das outras


pessoas que ocorre desde os 15 anos de idade, conforme indicado por três
(ou mais) dos seguintes:
1. Fracasso em ajustar-se às normas sociais relativas a comportamentos
legais, conforme indicado pela repetição de atos que constituem motivo de
detenção.
(…)
4. Irritabilidade e agressividade, conforme indicado por repetidas lutas
corporais ou agressões físicas (AMERICAN PSYCHIATRIC
ASSOCIATION, 2014, p. 659).
Sendo difícil desenhar estudos que estabeleçam uma relação de causalidade
entre os transtornos mentais e o crime em geral, muitos estudos procuraram pesquisar
quais os transtornos mentais que mostram maior associação com o crime.

1. Patologia Mental na População Carcerária


Estudar a patologia mental das pessoas presas tem sido uma linha de pesquisa
com dois objetivos principais. O primeiro visa aprofundar o conhecimento sobre a
relação entre o crime e a patologia mental; o segundo procura conhecer melhor a
patologia mental da população prisional para se poder organizar melhor o apoio no
domínio da saúde mental.
Quais são os principais tipos de transtorno mental encontrados na população
prisional?
Seena Fazel e Katharina Seewald fizeram uma meta-análise de 109 amostras
de populações prisionais relativas a estudos entre 1996 e 2010 e abrangendo 33 588
presos em 24 países. As autoras encontraram 3,6% de psicoses entre presos do sexo
masculino e 3,9% em presos do sexo feminino. A depressão tinha uma prevalência de
10,2% nos homens e 14,1% nas mulheres. (FAZEL e SEEWALD, 2012).
No Brasil vários estudos mostram igualmente uma levada prevalência da
depressão na população carcerária, acompanhada de níveis de estresse também
elevados (CONSTANTINO et al., 2016).
A prevalência dos transtornos mentais parece mais elevada na população
carcerária do que na população em geral, tendo sido referenciados principalmente,
psicoses, depressão e transtornos de ansiedade para além de transtornos relacionados a
substâncias, transtornos aditivos e transtornos de personalidade (ALMEIDA e JESUS,
2018, p.497).
Os dados relativos à prevalência dos transtornos mentais na população
prisional podem levantar, contudo, dificuldades de interpretação no que respeita à
relação dos transtornos mentais com o crime.
Os transtornos mentais podem ter existido numa situação de pré-condenação e
ser causa ou consequência do crime, ou podem ter evoluído a partir da própria
experiência prisional; ou ainda a experiência da prisão pode ter contribuído para o
agravamento do transtorno mental e desenvolvido co morbilidades diversas.
Para além dos problemas relacionados com a pesquisa, os estudos sobre a
prevalência de transtornos mentais entre a população carcerária podem ter o maior
interesse para a melhoria dos serviços de saúde mental dirigidos a essa população.
É hoje consensual a necessidade de os presos disporem de apoio de serviços
de saúde mental, seja no interior do próprio estabelecimento prisional seja na
comunidade.
O apoio dos serviços de saúde mental, como aliás, da saúde em geral, constitui
um direito do preso ao qual vários organismos internacionais tem dado atenção, numa
perspetivo de direitos humanos.
O primeiro texto, intitulado Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos,
foi adotado pelo Primeiro Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime
e o Tratamento dos Delinquentes, realizado em Genebra em 1955 (NAÇÕES
UNIDAS, 1955).
Os direitos dos reclusos têm sido reafirmados em textos posteriores das
Nações Unidas, como “As Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento
dos Reclusos (Regras de Nelson Mandela)” (2015); da União Europeia e do Conselho
da Europa, tendo sido consignados na legislação nacional de vários países. É o caso
de Portugal onde o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da
Liberdade (PORTUGAL, 2017) consagra várias disposições sobre esta matéria.
Claro que nem todos os paíse têm adotado e implementado as boas práticas
nas prisões em matéria de saúde, nomeadamente de saúde mental, mas pensamos que
o desenvolvimento da pesquisa nesta área poderia contribuir não só para uma maior
consciencialização do problema por parte das administrações penitenciárias e
respetivos governos, como contribuiria para uma menor taxa de reincidência criminal
quando os reclusos voltassem a gosar de liberdade na comunidade.

2. Esquizofrenia e tipos de crime


Vários transtornos específicos como a esquizofrenia, a depressão, o transtorno
bipolar, os transtornos da personalidade, nomeadamente a personalidade antissocial,
os transtornos aditivos e outros, têm sido estudados na sua relação com o crime.
Neste curto capítulo faremos apenas referência à esquizofrenia, transtorno
mental geralmente associado pela opinião pública ao crime violento.
Tennent et al. (1974), num total de 178 indivíduos admitidos no Hospital de
Broadmoor, em Inglaterra, como indivíduos perigosos, encontrou 108 (61%) que
sofriam de esquizofrenia, os quais tinham praticado os seguintes tipos de delito:
• Homicídio : 6,4%
• Tentativa de homicídio: 11,1%
• Homicídio involuntário: 10,2%
• Outros atos violentos: 30,6%
• Delitos sexuais. 7,4%
• Incêndio e destruições: 12%
• Roubos: 12%
• Outros: 4,6%
• Desconhecido: 5,6%

Em Portugal, Pedro Polónio estudou 463 casos de esquizofrenia no período de


1962 a 1972, tendo verificado que só 4% foram considerados imputáveis, sendo os
restantes considerados ou com imputabilidade reduzida (4%) ou não imputáveis
(92%).
Quanto aos tipos de delito, em primeiro lugar estavam os delitos contra
pessoas, com 68,5%, seguindo-se os homicídios frustrados em 15% dos casos e os
delitos contra propriedade, com 12,8%.
No que respeita aos crimes de homicídio que representaram 9% no período de
1942 a 1962 e 1% no período de 1962 a 1972, a sua forma mais frequente foi a do
parricídio e do matricídio (POLÓNIO, 1975: 452).
Os estudos mais recentes continuam a assinalar os crimes de homicídio,
sobretudo na forma de matricídio, como os tipos de crime mais frequentes entre os
indivíduos portadores de esquizofrenia (SCHUG e FRADELLA, 2015, p 190-191).
Em Portugal, segundo alguns autores, a taxa de homicídios entre os portadores
de esquizofrenia e psicose paranoide é superior à da população geral (ALMEIDA e
CARVALHO, p. 295), mas no Brasil, Eduardo Teixeira e colaboradores tendo feito
uma revisão de 54 artigos mais relevantes, chegaram à conclusão que só uma pequena
parcela da violência social pode ser atribuída a estes doentes (TEIXEIRA et. al., 2007,
p. 132).
As diferenças encontradas nos dados empíricos sobre a relação da
esquizofrenia com o crime podem dever-se a diferenças na metodologia utilizada ou
estar relacionadas com a incidência do crime na população em geral, em diferentes
contextos socioculturais, como é o caso do Brasil e Portugal.

3. Inimputabilidade e perigosidade
A imputabilidade “É a condição de ser responsabilizado pelo Estado em
decorrência da prática de um delito, crime ou contravenção penal, uma vez que o
agente ativo possui plena capacidade de entender o carácter elícito do facto e de
derminar-se de acordo com esse entendimento” (TRINDADE, 2016, p 258).
Definir se o sujeito pode ser considerado ininmputável em razão de anomalia
psíquica é uma questão de grande interesse para a Psiquiatria e para a Justiça, uma vez
que a aplicação da pena exige o reconhecimento da imputabilidade do delito no
sentido acima referido.
No caso português, o Código Penal estabelece expressamente no n.º 1 do seu
artigo 20.º que “É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for
incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se
determinar de acordo com essa avaliação”.
Como escreve Marques-Teixeira, que considera a inimputabilidade um
conceito central da Psiquiatria Forense pericial, a
“Psiquiatria Forense atua nos casos em que haja qualquer dúvida sobre a
integridade ou a saúde mental dos indivíduos, procurando esclarecer a
justiça, se há ou não uma perturbação ou doença mental e quais as
implicações da existência ou não de um diagnóstico psiquiátrico”. (2018 p.
XXVI).

A declaração de inimputabilidade é baseada em pareceres de especialistas cuja


objetividade e rigor está dependente do estado de evolução da ciência psiquiátrica.
Apesar da fiabilidade que tem sido conseguida com os modernos sistemas de
diagnóstico as dificuldades continuam a existir como referem Sunana Fernandes e
colaboradores, a propósito da publicação do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM-5). Este manual foi publicado em 2013 pela American
Psychiatric Association e fez uma revisão dos critérios de diagnóstico que segundo
aqueles autores: “relativamente a algumas das entidades nosológicas poderão
dificultar, pela sua rigidez, o resultado da avaliação pericial, enquanto em relação a
outras poderá verificar-se o contrário” (FERNANDES, 2014, p. 133).
Voltando ao Código Penal português, quem tiver sido declarado inimputável
na sequência de ter praticado um facto ilícito típico, “é mandado internar pelo tribunal
em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da
anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que
venha a cometer outros factos da mesma espécie” n.º 1, art.º 91.º). O mesmo artigo
estabelece que se o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra
pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco
anos, o internamento tem a duração mínima de três anos, salvo se a libertação se
revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
O inimputável não pode ficar internado por um período superior ao da pena
correspondemnte ao tipo de crime cometido. Mas o tribunal pode prolongar o
internamento se considerar que não cessou o estado de perigosidade que lhe deu
origem. Torna-se por isso necessário nova intervenção dos peritos para definir a
perigosidade do sujeito.
Em Portugal, em 31.12.2017 estavam internados em estabelecimentos
psiquiátricos 137 pessoas inimputáveis, dos quais, 119 (86,9%) eram homens e 18
(13,1%) eram mulheres.

4. A Reabilitação de Reclusos
Todo o crime pressupõe uma pena que na maior parte dos casos se traduz em
pena de prisão efetiva. As pessoas condenadas a penas de prisão são por vezes já
portadoras de transtorno mental o qual tende a agravar-se com a vida de reclusão. E
mesmo os que não são portadores podem vir a desenvolver distúrbios mentais, dado o
impacto que pode ter no indivíduo o conjunto de características psicossociais do
ambiente prisional.
Por outro lado, o controlo do crime baseado no cumprimento de penas de
prisão tem-se verificado pouco eficaz e grande número de ex-reclusos volta á senda
do crime, praticando muitas vezes os mesmos tipos de crimes pelos quais foram
condenados a primeira vez. Isto tem lavado os especialistas a desenvolver novas
estratégias de intervenção tendo em vista a prevenção da reincidência criminal e uma
abordagem mais humanista dos problemas psicológicos dos reclusos e ex-reclusos.
Esta nova abordagem é designada por reabilitação e é dirigida às causas e
consequências do comportamento criminal ao nível individual. O que se pretende é ir
ao encontro das necessidades psicológicas do indivíduo de modo a resolver as
questões que estiveram associadas à prática do crime e conseguir que após a saída da
prisão, o indivíduo seja um cidadão integrado na sociedade, respeitador da lei e
podendo contribuir para o seu bem estar e da comunidade.
A reabilitação é, assim, o processo pelo qual o indivíduo adquire as atitudes,
comportamentos e competências necessárias à sua reinserção na sociedade, de forma
digna e responsável, de modo a não reincidir criminalmente.
No processo de reabilitação está incluído o eventual tratamento psiquiátrico e
a cura das dependências de álcool e drogas, a par da aquisição de competências
pessoais, da formação profissional e da formação académica.
A reabilitação tem sido orientada segundo vários modelos, desde modelos
psicológicos baseados na terapia cognitivo comportamental, até modelos mais
sociológicos visando a reintegração social do ex-recluso, através da resolução dos
seus problemas e carências educacionais, culturais, de emprego e habitação.
No caso português o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da
Liberdade estabelece, no seu artigo 128.º que:
No caso de aplicação de medida de segurança privativa da liberdade ou de
internamento de imputável em estabelecimento destinado a inimputáveis, é
obrigatória a elaboração de plano terapêutico e de reabilitação, estruturado
em função das necessidades, aptidões individuais e avaliação de risco.

O plano terapêutico e de reabilitação do internado deve promover o


envolvimento do próprio e dos seus familiares, compreendendo atividades
ocupacionais e terapias individuais ou de grupo.
Uma medida particularmente importante é que o plano terapêutico deve criar
“as condições necessárias para a continuidade do tratamento após a libertação” (Art.º
128, n.º 2, alínea e).

Considerações Finais
Os estudos sobre a relação entre os transtornos mentais e crime têm sido
realizados principalmente entre populações carcerárias, para determinar a prevalência
de transtornos mentais, ou entre pacientes mentais para estudar o grau de
envolvimento na prática do crime.
Num caso e noutro os resultados das pesquisas empíricas têm levado a
conclusões diferentes, certamente relacionadas com o tipo de metodologia usada nos
diversos estudos.
Por isso a explicação do crime pelos transtornos mentais continua sendo uma
questão controversa, exigindo pesquisas mais sofisticadas e a identificação de várias
que possam ser mais facilmente operacionalizadas.
Uma questão que, certamente estará presente em pesquisas futuras é saber
porque é que um determinado transtorno mental pode ser a causa do crime nuns casos
e em outros não.
A temática da reincidência e da prevenção criminal é também um campo
importante de pesquisa sobretudo no que se relaciona com o tipo de reabilitação
psicossocial que lhe pode ser proporcionado.

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O INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL NOS
CASOS DE STALKING: ANÁLISE
FENOMENOLÓGICA E JURÍDICA NO
CONTEXTO BRASILEIRO

Viviane Nery Viegas224

Fernanda Mansur225

Introdução
A violência é um fenômeno comum na vida em sociedade, podendo ser
perpetrada de diversas formas e possuir contornos mais, ou menos, impactantes nas
relações humanas em sociedade. No contexto brasileiro não é diferente, culminando
em uma preocupação constante da sociedade e do poder público.
Há diversos formatos em que a violência pode se apresentar, como, por
exemplo, violência psicológica, sexual, física; seja contra mulher, idoso, seja contra
criança ou adolescente, entre outros. Nesta perspectiva, diante desta diversidade de
condutas violentas (ou não necessariamente violentas), destaca-se o fenômeno do
stalking.
O stalking apresenta-se através de uma série de diversos comportamentos, nos
quais, o indivíduo (stalker) que os pratica, age com máxima persistência e de forma
obsessiva contra uma determinada pessoa (vítima). Entre as muitas condutas que um
stalker poderá praticar, encontram-se, desde o envio de várias mensagens para a
vítima, durante um curto período, podendo, inclusive, resultar em casos mais graves,
como a violência física ou até mesmo a morte da ofendida.
Em que pese as condutas caracterizadoras do stalking não sejam novidades nas
relações humanas, o fenômeno ainda é pouco explorado do ponto de vista científico,
especialmente na área jurídica. A partir disto, a relevância prática desta pesquisa é a
de discutir e compreender o fenômeno, com vistas à interpretação jurídica deste,
especialmente na relação que pode ser estabelecida entre o incidente (processual
penal) de insanidade mental e os casos de stalking.

224
Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa, Portugal. Mestre em
Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, Brasil. Delegada de Polícia Civil do
Estado do Rio Grande do Sul. Professora Universitária. (viviane.viegas@gmail.com).
225
Graduanda do Curso de Direito da Faculdade Ftec/Ibgen – Instituto Brasileiro de Gestão de
Negócios, em Porto Alegre/RS, 2018-1. (fermansur2018@gmail.com).
A importância do estudo desse fenômeno impacta em diversas áreas do
conhecimento (como, por exemplo, Psicologia, Sociologia), mas, sobretudo do
Direito, que, por sua vez, necessita dar conta desses comportamentos, os quais, muitas
vezes não configuram nenhum tipo penal, tornando indispensável compreender as
condutas que juntas integram o stalking para verificar a (im)possibilidade e a
(in)viabilidade jurídica de suscitar o incidente de insanidade mental, com vistas ao
reconhecimento da inimputabilidade penal do acusado.
Dentro deste contexto, o incidente de insanidade mental, exame psiquiátrico
forense, realizado em decorrência da prática processual, poderá ser a linha divisória
para que seja determinado um dos elementos da culpabilidade: a imputabilidade.
Assim, a presente pesquisa tem como objetivo principal explicitar o fenômeno
do stalking, em cotejo com as disposições legais que tratam do incidente de
insanidade mental, de modo a verificar as possibilidades de aplicação do incidente
nestes casos, a partir da análise da jurisprudência, em um primeiro momento, dos
Tribunais brasileiros e, em um segundo momento, do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul.
A pesquisa enfrenta dois desafios importantes: (i) a ausência de definição
doutrinária do mesmo (pacificação); (ii) a caracterização e a construção da prova das
condutas (comportamentos). E, para cumprir com os objetivos propostos nesta
pesquisa, de natureza exploratória (qualitativa), escolheu-se a técnica de pesquisa
documental indireta de material bibliográfico e jurisprudencial, utilizando o método
de abordagem dedutivo.

1. O stalking: abordagem fenomenológica e jurídica


A palavra stalking tem origem no inglês antigo, sendo traduzida para o
português como “caçada”, “espreita”, “perseguição”, conforme o entendimento de
Thompson Flores.226 O uso do termo stlaking deu-se em meados dos anos 80, como
resultado dos acontecimentos e da atuação da mídia na época.227
Segundo Mullen, Pathé e Purcel, 228 o stalking compreende condutas de
proximidade e comunicabilidade para com a vítima, de forma inconveniente e

226
THOMPSON FLORES, Carlos Pereira. A Tutela Penal do Stalking. Porto Alegre: Elegantia Juris,
2014, p. 24.
227
THOMPSON FLORES, op. cit., p. 24.
228
MULLEN, Paul E.; PATHÉ, Michele; PURCELL, Rosemary. The prevalence and nature of stalking
in the Australian community. Journal Australian & New Zealand Journal of Psychiatry: vol. 36, issue
persistente, causando-lhe medo e insegurança. Para Trindade 229 , o stalking se
caracteriza por ações ou condutas reiteradas ou, ainda, se tratam de uma constelação
de comportamentos por parte do stalker para com a vítima, de forma insistente e
agressiva.
O conceito doutrinário do stalking é relativamente novo no Brasil, pois possui
pouquíssima produção científica a respeito do tema e pede discussão, especialmente
no campo do Direito, uma vez que na seara da Psicologia, já é fonte de discussão há
algum tempo. “Muitos dos assim denominados institutos próprios da Psicologia
Jurídica se referem a comportamentos que estão presentes na sociedade desde seus
primórdios ou, como se refere o ditado popular, desde que o mundo é mundo”.230. As
condutas que configuram o stalking ocorrem há muito tempo na vida cotidiana, bem
como nas interações entre os indivíduos.
É certo que as relações humanas são complexas, que possuem diversos
meandros, principalmente nas relações íntimas. Bauman231 ao tratar dos mistérios das
fragilidades nas relações humanas, sobretudo nos relacionamentos afetivos, o que
refere que são como “bênçãos ambíguas”, podendo alternar entre “o sonho e o
pesadelo”, não sendo possível identificar quando “um se transforma no outro”.
O comportamento de um stalker é semelhante ao de um caçador que
continuamente persegue sua presa, a qual tem ciência que está sendo perseguida,
porém não consegue prever quais serão as próximas atitudes de seu
232
perseguidor. Portanto, um dos grandes desafios dos operadores do Direito é
identificar as condutas e comportamentos que configuram um stalker.
As relações humanas, ao longo do tempo, sofreram transformações, chegando
ao ponto em que a ciência passou a voltar o olhar para elas. Em um primeiro
momento através da Psicologia e, agora, por meio do Direito que tem a incumbência
de solver conflitos, pois essas relações vão gerar o que se chama de risco. Segundo
Giddens233, a modernidade é um acontecimento que apresenta dois vieses. Se por um
lado ela trouxe oportunidades e progresso aos indivíduos, por outro lado trouxe

1, 2002, p. 114 – 120: “Stalking involves repeatedly imposing unwanted contacts and/or
communications to such an extent that the victim fears for his or her safety”.
229
TRINDADE, op. cit., p. 254.
230
TRINDADE, op. cit., p. 254.
231
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004, p. 10.
232
TRINDADE, op. cit., p. 255.
233
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo:
Editora UNESP, 1991. p. 13.
também riscos o que, para o autor, vem a ser a face mais obscura da sociedade
moderna.
A complexidade do fenômeno do stalking caracteriza-se pelos riscos gerados,
em face de algumas premissas: (i) apresenta inúmeros comportamentos diferentes; (ii)
a vítima, em regra, tem ciência do que ocorre, mas nem sempre o reconhece como
comportamento desviante; (iii) os comportamentos são imprevisíveis.
Corroborando com o delineamento acima, em Portugal, no ano de 2011, foi
desenvolvido um Inquérito de Vitimização por Stalking através da Universidade do
Minho e sob a coordenação de Marlene Matos. O estudo envolveu uma amostra de
mil duzentos e dez indivíduos de ambos os sexos e com idade igual ou superior a 16
(dezesseis) anos, com o objetivo de “desocultar” a realidade sobre o fenômeno
caracterizando-o, investigando os impactos causados nas vítimas e quais fontes elas
recorriam para buscar auxílio.
As autoras da pesquisa fizeram descobertas importantes, concluindo que o
fenômeno entre os cidadãos portugueses é mais comum do que se imaginava: um a
cada cinco dos entrevistados disse já ter sido vítima de stalking. Também foi
constatado que as vítimas tendem a apresentar algum tipo de abalo em decorrência do
contato com o fenômeno, mas, sobretudo, verificou-se que determinar a definição do
stalking é algo complexo, demandando a análise de diversas categorias de pesquisa.234
Há uma série de comportamentos que um stalker pode perpetrar: vigiar os
passos da vítima seja no local de trabalho ou onde a vítima reside; enviar
constantemente mensagens indesejadas - através dos mais diversos meios de
comunicação; efetuar diversas ligações para a vítima; fazer ameaças às pessoas mais
próximas da mesma; entre outros.235 A vítima, por sua vez, desenvolve sentimentos de
temor, inquietação e opressão, muitas vezes obrigando-se a mudar os hábitos
diários.236
O tempo de duração determinado para a permanência do cometimento desses
comportamentos é, de acordo com o Inquérito realizado em Portugal, “entre duas
semanas (21.7%) a seis meses (31.9%)”, e apenas “para 15.3% dos participantes a
situação se manteve por mais de dois anos”.237 O que traz prejuízos à vítima são as

234
MATOS, op. cit., p. 68.
235
SANTOS, Bárbara Fernandes Rito dos. Stalking. Parâmetros da tipificação e o bem jurídico da
integridade psíquica. Coimbra: Almedina, 2017. p. 55.
236
TRINDADE, op. cit., p. 255.
237
MATOS, op. cit., p. 48.
repetidas condutas de perseguição, dentro de um lapso temporal, por parte do
perseguidor. Assim, se fossem condutas isoladas não configurariam o stalking e nem
causariam impacto na pessoa ofendida.238
Haja vista o fenômeno stalking não possuir comportamento específico e
apresentar-se de forma complexa, é possível verificar a presença de alguns
indicadores que são desviantes em relação à possibilidade de determinadas patologias,
embora não se tenha um conceito próprio.
Nessa perspectiva, se faz necessária a compreensão do conceito de doença
mental. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5
(DSM-5) transtorno mental “é uma síndrome caracterizada por perturbação
clinicamente significativa na cognição, na regulação emocional ou no comportamento
de um indivíduo que reflete uma disfunção nos processos psicológicos, biológicos ou
de desenvolvimento subjacentes ao funcionamento mental”. 239 Neste passo, a
importância de se compreender os diferentes tipos de stalking, visando delinear os
comportamentos que poderiam se caracterizar como doença mental.
O australiano Paul Mullen,240 especialista em perseguição, em parceria com
Michele Pathé e Rosemary Purcell, analisou o comportamento obsessivo de
assediadores diagnosticados de uma clínica que atende stalkers na Austrália e, com
base nessas análises, Mullen desenvolveu e classificou cinco tipos de stalkers,
conforme esclarece Trindade, que são: o stalker rejeitado, o stalker ressentido, o
stalker apaixonado mórbido, o stalker pretendente incompetente e o stalker
predatório.
O stalker rejeitado não raramente é fruto de um término de relacionamento
imposto por parte da futura vítima. Assim, o perseguidor sentindo-se rejeitado passa a
perseguir a vítima com o objetivo de represália ou com intuito de reatar a relação.
O stalker ressentido, ao contrário do rejeitado, geralmente configura-se por ser
um sujeito alheio ao conhecimento da vítima. Assim, podem ocorrer duas situações:
ou a vítima não tem o menor conhecimento da existência deste ou, se tiver, não
haverá qualquer tipo de relação entre ambos.

238
AMIKY, Luciana Gerbovic. “Responsabilidade Civil pela Prática de Stalking”. In: Revista
Brasileira de Direito Civil e Relações de Consumo, v.5, n. 17, jan-mar. 2013.
239
DMS – 5. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. American Psychiatric
Association. Porto Alegre: Artmed, 2014, p. 62.
240
MULLEN, Paul E.; PATHÉ, Michele; PURCELL, Rosemary. Stalkers and Their Victims, 1ed.
Nova Iorque, NY, EUA: Cambridge University Press, 2000.
O stalker pretendente incompetente é motivado pelo desejo de manter um
relacionamento com a vítima. Esse tipo de perseguidor possui um diferencial: ele não
consegue compreender ou é indiferente às regras do bom convívio social.
O stalker apaixonado mórbido é movido pela ideia de que viverá um
relacionamento com a vítima, ou ainda, segundo Trindade, nos piores casos aquele
que acredita estar vivenciando um relacionamento real com a mesma. Trata-se do tipo
de stalker com o maior número de graves patologias mentais.
O stalker predatório apresenta os mais diversos perfis de sexo, idade, classe
social e, apesar de ser o menos frequente de acontecer, é o tipo mais violento, segundo
entendimento do jurista. Geralmente, é um desconhecido de sua vítima que não possui
nenhum amor próprio e muito menos um bom convívio social. O predatório tem
prazer em controlar suas vítimas e seus ataques sempre estão ligados a conotações de
cunho sexual, garante o autor.
O sistema de Mullen compõe apenas de uma primeira parte sobre a tipologia
do stalking. Assim, é importante que se leve em consideração a relação do opressor
com a ofendida e seu grau de patologia, ficando clara a complexidade do fenômeno.
Por fim, é importante destacar que, ao contrário do levantamento empírico
realizado por Matos e outros,241 Trindade afirma que muito embora a maior parte das
vítimas sejam mulheres, o stalking não configura uma característica de gênero. E
destaca ainda Trindade que não se pode esquecer as relações homoafetivas, bem como
aqueles casos em que no papel da vítima temos um homem e no papel do stalker uma
mulher.242
A partir desse delineamento, importa referir que, do ponto de vista jurídico, as
condutas descritas e outras tantas que podem configurar o fenômeno do stalking
podem se caracterizar como diversos crimes, tais como contra a vida como homicídio
e lesões corporais, crimes contra a honra como calúnia e difamação, crimes contra a
liberdade pessoal como ameaça e violação do domicílio, crimes de natureza sexual
como assédio sexual e o estupro, crimes contra o patrimônio como furto e o dano a
propriedade alheia; em que pese inexista um tipo penal específico para a conduta de
perseguição.243

241
MATOS, op. cit., p. 12.
242
TRINDADE, op. cit., p. 255.
243
Veja-se a proposta de tipificação do Projeto de Reforma do Código de Processo Penal: “Art. 147.
Perseguir alguém, de forma reiterada ou continuada, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica,
restringindo-lhe a liberdade de locomoção ou, qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de
No entanto, se por um lado a criminalização do stalking tem por objetivo
coibi-lo, por outro lado a punição dos perpetradores poderá encontrar obstáculos, pois
é necessário que se detecte a linha divisória entre as condutas criminosas destes e
aquelas condutas que não constituem crime. “O comportamento do ofensor nem
sempre constitui algo tido como ilegal. Às vezes consiste em acompanhar a vítima a
distância e às escondidas, vigiar, andar atrás dela sem ser percebido (...)”.244 E, em
que pese este não seja o ponto fulcral de discussão nesta pesquisa (criminalização da
conduta do stalker) é deste foco que surge a questão processual ora discutida, já que
somente com a compreensão de que o fenômeno do stalking não se configura com um
único comportamento e que as condutas podem beirar a normalidade (licitude), se
poderá enfrentar a dimensão processual do incidente de insanidade mental em
situações como essas. A partir daí, então, será possível discutir como o Poder
Judiciário está compondo o conteúdo material do incidente para fins de
reconhecimento da inimputabilidade ou semi-imputabilidade penal.

2. O incidente de insanidade mental e os casos de stalking


O incidente de insanidade mental caracteriza-se como a forma de verificar as
condições mentais em que se encontra o agente de determinado crime, tanto no
momento do cometimento deste quanto na sua capacidade de compreensão durante a
averiguação do exame.245
O incidente de insanidade mental, procedimento de perícia médico-legal, faz
parte dos incidentes processuais, devendo ser resolvido antes da decisão final do
processo. É através deste importante instituto que o Estado poderá aplicar as
chamadas medidas de segurança o que para Cirino dos Santos246 é uma forma “de
proteger a comunidade e o cidadão contra fatos puníveis (...)”. A medida é realizada a
fim de impedir que ocorra uma condenação àqueles sujeitos que a lei denomina como
inimputáveis.
Para que se possa fazer uma possível análise relacionando o stalking e o
incidente de insanidade mental, é necessário compreender a forma que o sistema
liberdade ou privacidade: Pena – prisão, de dois a seis anos. Parágrafo único. Somente se procede
mediante representação”. SARNEY, José. Projeto de lei do Senado n. 236, de 2012. Altera o Decreto –
Lei n° 2848, de 07 de dezembro de 1940 – Código Penal. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404>. Acesso em: 02 jun. 2018.
244
TRINDADE, op. cit., p. 256.
245
TRINDDE, op. cit., p. 578.
246
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris,
2008, p. 653.
jurídico tem enfrentado essas situações. Trindade esclarece que, nos casos de stalkers
inimputáveis não se pode tratar um stalker como um delinquente habitual, bem como
não se pode deixar a vítima à mercê do mesmo sem um respaldo do Poder Judiciário.
Para fins metodológicos, foi realizada uma busca em todos os Tribunais
estaduais brasileiros utilizando os dois termos “stalking” e “incidente de insanidade
mental”, porém, não foram encontrados julgados com esses dois indicadores. Assim,
tendo em vista o limite espacial da descrição desta pesquisa e o interesse científico
das autoras, foi realizado um recorte para a busca de arestos de jurisprudência,
durante o período entre 2006 a 2018, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande
do Sul. Em razão do volume de material encontrado, bem como ao fato dessa
pesquisa ser qualitativa, foi realizado o recorte temporal a partir da entrada em vigor
da Lei Maria da Penha.
Na busca realizada, foram localizados três julgados envolvendo o incidente de
insanidade mental e contendo as possíveis condutas relacionadas ao fenômeno
stalking, todas as decisões proferidas pela Terceira Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul. Frise-se que, nessa primeira busca (pesquisa nº 1), não
foram encontrados julgados com a expressão stalking.
O primeiro julgado analisado é o Habeas Corpus n° 70065554115 247
impetrado, em julho de 2015, pela defesa do paciente. De acordo com acórdão, o réu
intimidou, perseguiu e agrediu sua ex-companheira por meio de socos, chutes e
puxões de cabelo, configurando assim os crimes de ameaça e lesão corporal, motivo
pelo qual, o mesmo encontrava-se privado de liberdade desde 1° de fevereiro de 2015.
No período em que o paciente esteve segregado, a vítima teria recebido
ligações telefônicas contendo ameaças e, em contrapartida, a defesa alegou que o réu
estaria recebendo cartas de amor da ofendida, enquanto recluso. Devido às
circunstâncias trazidas ao processo, o Magistrado, em nova audiência, determinou
indispensável a realização de avaliação psicológica através de incidente de insanidade
mental, tanto para o acusado quanto para a vítima.
O segundo julgado trata-se de recurso de Apelação nº 70069476828248 em
favor do réu, solicitando nulidade da sentença, bem como a reabertura de instrução
para instauração do incidente de insanidade mental sob a alegação de cerceamento de

247
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n° 70065554115.
248
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação n° 70069476828.
defesa. No dia 02 de agosto de 2012, o paciente agrediu sua ex-companheira por meio
de socos e chutes, bem como lhe ameaçou de morte apontando-lhe uma arma.
A defesa, anteriormente, já havia solicitado pedido de instauração de incidente
de insanidade mental no que foi negado pelo magistrado a quo, por inexistir dúvida
razoável. O apelante, então, anexou aos autos documentação atestando sofrer de
esquizofrenia e retardo mental leve no ano de 2014, fato que trouxe ao processo o que
se chama de dúvida razoável. Assim, o relator decide seguir o que disciplina o jurista
Gustavo Henrique Badaró:
Essa dúvida poderá surgir de ‘sintomas que façam supor estar acometido
de alguma enfermidade mental’. Assim a existência de internações prévias,
o fato de o acusado ter sido interditado no campo civil, a constatação da
inimputabilidade em exame anterior, por crime diverso, a própria forma ou
a motivação do delito, são fatores que poderão ser levados em conta e,
gerando um estado de dúvida, o juiz deverá determinar o exame.249

O relator entendeu que, embora o laudo apresentado tenha sido de período


posterior ao fato delituoso, as patologias ali apresentadas mereciam atenção. Neste
sentido, concluiu o Magistrado com base nos artigos 149 e 152 do Código de
Processo Penal pelo acolhimento de instauração do incidente de insanidade mental,
bem como pela desconstituição da sentença.
O terceiro aresto de jurisprudência também trata de Habeas Corpus nº
70063059786250 impetrado em fevereiro de 2015 pela defesa do paciente. De acordo
com acórdão, o réu tentou matar sua ex-companheira com golpes de faca,
configurando, assim, o crime de tentativa de homicídio duplamente qualificado,
motivo pelo qual o mesmo encontrava-se privativo de liberdade desde 12 de abril de
2013. Em audiência, foi decidido pela instauração do incidente de insanidade mental,
pois a mãe do réu afirmou que o mesmo já havia sido diagnosticado com
esquizofrenia catatônica, durante o período em que esteve internado para tratamento
contra uso de drogas.
No primeiro caso, referido anteriormente, as condutas do agente levaram ao
pedido do incidente de insanidade mental. Porém, nos demais julgados, além dos
comportamentos dos acusados, houve outros fatores que contribuíram para que o
incidente fosse suscitado: em um deles a presença de atestado médico, e em outro
julgado a informação, trazida pela mãe de um dos pacientes, alegando diagnóstico de

249
Decisão referida extraída do recurso de Apelação nº 70069476828, podendo ser acessada no
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
250
RIO GRANDE DO SUL. op.cit., 2015.
esquizofrenia, confirmando assim a dúvida razoável. É notório nos arestos de
jurisprudência apresentados que os julgadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul têm enfrentado essas situações, mas foram necessários elementos adicionais,
não bastando apenas os comportamentos que caracterizassem eventualmente o
fenômeno do stalking.
Ainda que não haja referência efetiva da questão do fenômeno stalking nos
acórdãos analisados, talvez, por falta de elementos de conjunto probatório, é possível
verificar que os crimes cometidos pelos réus também se vislumbram nas condutas
praticadas por um stalker. Assim, o conjunto probatório constituído nos processos que
envolvam condutas potencialmente configuradoras do stalking demanda uma análise
mais detalhada dos comportamentos, sendo essencial terem-se relatos ricos de
elementos fáticos contextualizados nas provas coletadas na esfera policial e
processual.
Outrossim, é importante referir que em outros arestos de jurisprudência,
encontrados, durante uma segunda busca (pesquisa nº 2), em que não se vislumbra a
figura do incidente de insanidade mental instaurado, porém, com condutas
semelhantes as apresentadas nos casos anteriores como: ameaça, perseguição,
violência e descumprimento de medidas protetivas, o Poder Judiciário reconhece a
configuração do stalking. Um exemplo está na Apelação Criminal n° 70074325432251
em que o paciente, prevalecendo-se de relações domésticas com a ofendida e ex-
companheira, passou a persegui-la, ameaçá-la de forma violenta, descumprindo,
assim, várias medidas protetivas de urgência. O que para o Magistrado restou
configurado como “caso penal em discussão da figura jurídico-penal denominada
Stalking”.
Salienta-se que, em que pese as condutas dos stalkers não se resumirem a
violência doméstica como já referido, as situações de violência doméstica que
envolvem os três casos de jurisprudência apresentados são de situações flagrantes em
que houve uma perseguição ou um conjunto de condutas anteriores que culminaram
nos crimes apurados.

251
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação n° 70074325432.
Considerações Finais
A pesquisa desenvolvida analisou a possibilidade da aplicabilidade do
incidente de insanidade mental, exame psiquiátrico forense, nos casos de stalking.
Este importante instituto é de grande valia para os profissionais da Psicologia e, em
especial, os operadores do Direito. Instaurado sempre que houver dúvidas sobre a
integridade mental de determinado agente, apresentará resultado relevante para o
prosseguimento do feito.
A partir disto, optou-se pela análise de arestos de jurisprudência extraídos do
site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, entre os períodos de 2006
a 2018, que envolvesse os dois temas apresentados nesta pesquisa.
As conclusões obtidas pela análise qualitativa dos casos de instauração de
incidente de insanidade mental resumem-se em: (i) a ausência de elementos fáticos
probatórios suficientes, durante a instrução processual, para embasar a caracterização
do stalking; (ii) a instauração do incidente de insanidade mental diante de casos de
violência doméstica.
Nas decisões judiciais examinadas, é possível verificar a configuração de
violência doméstica e familiar envolvendo diversas condutas pertinentes aos stalkers,
motivo pelo qual os Magistrados não hesitaram em ordenar a instauração do incidente
de insanidade mental. Resta claro, nos arestos analisados, que diante de casos em que
houver o princípio do in dubio pro reo, ou seja, havendo dúvida razoável quanto à
culpabilidade do réu, prevalece a presunção de inocência.
Verifica-se, portanto, a importância de tratar do tema stalking para auxiliar na
avaliação dos operadores do Direito, especialmente na coleta da prova testemunhal e
documental, seja na fase pré-processual ou processual de modo a detalhar os fatos
relevantes anteriores ao apurado, denotando as condutas que possam levar a um
diagnóstico de stalking.
É necessário estudar e compreender o fenômeno contemporâneo para que faça
parte da rotina de coleta probatória dos operadores do Direito, em especial no sistema
penal, indo além das patologias que normalmente são apontadas, como esquizofrenia
e retardo mental, entre outras; conforme se verifica nos julgados analisados de modo a
qualificar a coleta dos elementos probatórios, contextualizando-os em seu tempo e
espaço.
Por fim, observou-se, como resultados desta pesquisa, que, uma vez suscitado
o instituto do incidente de insanidade mental nos casos de stalking, torna-se viável: (i)
a efetividade no reconhecimento da existência de patologias, tornando possível uma
medida adequada ao acusado, embora exista uma discussão a respeito da adequação
da medida de segurança ou de penas alternativas que possam ocorrer; (ii) sanar os
possíveis danos sofridos pelas vítimas, sejam psíquicos ou fisicos; (iii) reequilíbrio
entre as partes.

Referências

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TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do
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INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA
COMO CAUSA LEGAL DE EXCLUSÃO DA
CULPABILIDADE NO EXCESSO DE LEGÍTIMA
DEFESA EM DECORRÊNCIA DO MEDO

Luciano Iob252

Introdução
Desde a antropologia criminal até a criminologia crítica busca-se estudar o
delito e suas causas, consequências e punições, compreendendo seus efeitos nos
indivíduos e na sociedade, bem como verticalizando as avaliações inerentes às
finalidades da pena253.
Todavia, há muito se sabe que autoria e materialidade não são suficientes para
ensejar uma condenação criminal. É preciso analisar o grau de reprovabilidade do
crime e da conduta, é preciso examinar de modo exauriente o desvalor da conduta do
acusado, a chamada culpabilidade.
Para analisar a culpabilidade, Enrico Ferri já em 1895 alertava que a
responsabilização criminal, como consequência, depende de uma obduração
antropológica e, sobretudo, psicológica do acusado254.
As causas de exclusão da antijuridicidade estão previstas no artigo 23, do
nosso Código Penal:
Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:
I - em estado de necessidade;
II - em legítima defesa;
III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Tem-se, portanto, dentre as causas de excludentes de antijuridicidade: o estado
de necessidade, a legítima defesa e o estrito cumprimento de dever legal ou no
exercício regular de direito.

252
Advogado criminalista. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UniRitter, com
formação em Psicologia Forense pela Sociedade Brasileira de Psicologia Forense.
253
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1999, p. 39.
254
FERRI, Enrico. Os criminosos na arte e na literatura. Porto Alegre: Ricardo Lenz Editor, 2001, p.
7.
E, por legítima defesa, nosso Código Penal, no artigo 25, conceitua que:
Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários,
repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Todavia, o parágrafo único, do artigo 23 do Código Penal aduz que: O agente,
em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.
O excesso por defeito na dimensão intelectual da conduta constitui erro de
representação, pelo qual o sujeito representa como existente realidade inexistente
(por exemplo, a continuação de agressão cessada), configurando erro de tipo
permissivo, com imediata exclusão do dolo – podendo excluir também a culpa, se
“plenamente justificado pelas circunstâncias” (art. 20, § 1º, Código Penal) –, e pode
ocorrer na legítima defesa real e na legítima defesa putativa.
O excesso de legítima defesa real por erro de representação pode ser intensivo
ou extensivo: no excesso intensivo de legítima defesa real o autor erra sobre a
intensidade da agressão e, por isso, utiliza meio de defesa superior ao necessário
(disparo sobre o peito do agressor, quando bastava atirar nas pernas); no excesso
extensivo de legítima defesa real o autor erra sobre a atualidade da agressão, que
ainda não é atual (disparo sobre o agressor que se preparava para a agressão) ou já
não é mais atual (pontapés em agressor caído e inconsciente).
O excesso de legítima defesa real ou putativa por defeito na dimensão
emocional das ações humanas, produzido por medo, susto ou perturbação,
determinantes de descontrole psicomotor do sujeito, não constituem hipóteses de erro
de proibição, mas situações de exculpação legais por inexigibilidade de
comportamento diverso.
A partir de uma análise interdisciplinar, buscar-se-á estudar, no presente
trabalho, a exclusão (exculpação) da culpabilidade por inexigibilidade de conduta
diversa, em decorrência do medo, no excesso da legítima defesa.

1. A teoria do delito em brevíssima análise


Incorporando a ideia de Marion Bach255, Direito e Psicologia se relacionam de
modo intenso e perene. Se entrelaçam de modo tão consistente que desafiam a Lei de

255
Advogada Criminal, Professora da Escola da Magistratura do Paraná, escreveu o texto: Direito e
Literatura: A arte de produzir ciência (ou a ciência de produzir arte). In: PRAZERES, Angela dos;
LEÃO, Liana de (org.). O Julgamento de Otelo, o mouro de Veneza: direito e literatura: edição
comemorativa Shakespeare 400 anos. 1. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 132-137. No
Newton: dois corpos que quase ocupam o mesmo espaço. Ou, conforme Jorge
Trindade: “é fácil constatar que o direito e a psicologia possuem um destino comum,
pois ambos tratam do comportamento humano”256.
Diz-se isso porque simplesmente não se compreende de fato o fenômeno
jurídico, sem levar em consideração aspectos da natureza humana: angústia, medo,
inveja, raiva, paixão, ciúme, orgulho, vaidade e tantos outros sentimentos tipicamente
humanos257.
Para Janaína Andreia da Rosa, as emoções e os sentimentos são absolutamente
diferentes de pessoa para pessoa, e a manifestação destes geralmente é acompanhada
por uma alteração fisiológica no funcionamento do organismo, sendo relacionada
diretamente à vivência de cada indivíduo, estando intimamente ligado ao processo de
educação pelo qual as pessoas passam258.
Em sede de dogmática jurídico-penal, é consenso que o direito penal é do fato
e não do agente. Assim, a construção da teoria do delito ou teoria do crime incide
sobre o fato punível.
Portanto, a verificação concreta de um fato punível passa, necessariamente,
pelo procedimento sequencial representado pelos estágios da tipicidade, da
antijuridicidade e da culpabilidade – ou seja, no Direito Penal, a relevância de um
comportamento típico depende de sua realização antijurídica por um autor culpável.
Na atualidade, a literatura alemã está dividida entre o modelo bipartido e o
modelo tripartido de crime; no resto da Europa e na América Latina, o modelo
tripartido de fato punível é dominante.
A concepção tradicional assume o modelo tripartido do conceito de crime,
como ação típica, antijurídica e culpável. Já no modelo binário, crime é fato típico e
culpável, estando a antijuricidade dentro da própria tipicidade.

seu texto, a professora Marion refere-se ao Direito e literatura. Com a devida vênia, me parece ser
plenamente possível fazer a mesma assertiva com relação ao Direito e a Psicologia.
256
TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídico para operadores do direito. 7. ed. Porto Alegre:
livraria do advogado, 2014, p. 29.
257
MELIM, Claudio. In prefácio de SILAS FILHO, Paulo. O Direito pela Literatura: algumas
abordagens. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 13.
258
ROSA, Janaina Andreia da. A influência das emoções na relação advogado e cliente: uma
abordagem interdisciplinar, In: TRINDADE, Jorge; MOLINARI, Fernanda (org.). Psicologia Forense
novos caminhos. Porto Alegre: Editora Imprensa Livre, 2017, p. 323-335.
O tipo penal, para Zaffaroni 259 , é um instrumento legal, necessário e de
natureza preponderantemente descritiva, com função de individualizar condutas
humanas penalmente relevantes (por estarem penalmente proibidas).
Dessa forma, uma vez caracterizado o fato como típico, o seguinte passo é a
análise da antijuridicidade, em cujo âmbito corresponde determinar se a conduta típica
é contrária ao Direito, isto é, ilícita, e constitui um injusto. O termo antijuridicidade
expressa, portanto, um juízo de contradição entre a conduta típica praticada e as
normas do ordenamento jurídico260.
Conforme já adiantamos, não é suficiente caracterizar uma conduta apenas
como típica e antijurídica para atribuição da responsabilidade penal a alguém. Para
que esse juízo de valor esteja de fato completo é necessário levar em consideração as
características individuais do autor do injusto. Ou seja, necessário se faz averiguar a
culpabilidade do autor. Enquanto no tipo de injusto (fato típico e antijurídico)
podemos representar pela pergunta: o quê imputamos?; na culpabilidade
perguntamos: por quê imputamos?
No ensinamento de Juarez Cirino dos Santos261:
A culpabilidade, como juízo de reprovação, tem por objeto o tipo de
injusto, e por fundamento: a) a imputabilidade, como conjunto de
condições pessoais mínimas que capacitam o sujeito a saber (e controlar)
o que faz, excluída ou reduzida em hipóteses de menoridade ou de doenças
e anomalias mentais incapacitantes; b) o conhecimento do injusto, como
conhecimento concreto do valor que permite ao autor imputável saber,
realmente, o que faz, excluído ou reduzido em casos de erro de proibição;
c) a exigibilidade de conduta diversa, como expressão de normalidade das
circunstâncias do fato e concreta indicação do poder de não fazer o que
fez, excluído ou reduzido nas situações de exculpação.
Esse conceito de culpabilidade, como juízo de reprovação do autor pela
realização do tipo de injusto, parece representar a expressão
contemporânea dominante do conceito normativo de culpabilidade: um
juízo de reprovação sobre o sujeito (quem é reprovado), que tem por objeto
a realização do tipo de injusto (o que é reprovado) e por fundamento (a) a
capacidade geral de saber (e controlar) o que faz, (b) o conhecimento
concreto que permite ao sujeito saber realmente o que faz, e (c) a
normalidade das circunstâncias do fato que confere ao sujeito o poder de
não fazer o que faz (porque é reprovado).

259
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro, volume: 1: parte geral, 6 ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 381.
260
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal parte geral 1, 20 ed., rev., ampl. e atual.
São Paulo: Saraiva, 2014, p. 388.
261
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral, 7 ed., rev. atual. Florianópolis: Empório do
Direito, 2017, p. 275/276.
2. Excludentes de antijuridicidade ou causas de justificação
A doutrina utiliza uma terminologia variada para determinar as causas legais
de exclusão de antijuridicidade, tais como causas excludentes de ilicitude, causas
excludentes de antijuridicidade, causas de justificação, entre outras. O legislador
nacional optou pelo uso da terminologia “exclusão da ilicitude”. Contudo,
consideramos mais adequado, sob a perspectiva dogmática, o uso do termo exclusão
da antijuridicidade e, em consequência, da expressão causas de exclusão da
antijuridicidade, como sinônimo de causas de justificação.
Como já mencionamos na introdução do presente artigo, o Código Penal
brasileiro acolheu expressamente as seguintes excludentes de antijuridicidade: o
estado de necessidade (art. 24), a legítima defesa (art. 25) e o estrito cumprimento de
dever legal ou no exercício regular de direito (art. 23, III).

2.1 Legítima Defesa


Os elementos subjetivos da legítima defesa têm por objeto a situação
justificante (agressão injusta, atual ou iminente, a bem jurídico próprio ou de
terceiro).
Agressão é toda ação humana de violência real ou ameaçada dirigida contra
bens jurídicos do agredido ou de terceiro. Injusta é a agressão imotivada ou não
provocada pelo agredido. Atual é a agressão em realização ou em continuação;
iminente é a agressão de realização imediata – assim, a legítima defesa pressupõe
agressão em realização, em continuação ou imediata. Direito próprio ou de outrem são
os bens jurídicos, as necessidades ou interesses individuais ou sociais que recebem
proteção do Direito.
Já os elementos objetivos da ação justificada consistem no emprego moderado
de meios de defesa necessários contra o agressor.
Conforme já sinalizamos, a legítima defesa é uma causa de exclusão de
antijuridicidade.
Entretanto, conforme já adiantado, o excesso de legítima defesa (tanto o
intensivo pelo uso de meio desnecessário ou o extensivo pelo uso imoderado de meio
necessário), bem como a legítima defesa putativa, por defeito emocional das ações
humanas, produzido pelo medo (objeto no nosso trabalho) não configuram situações
de justificação, mas hipóteses de exculpação legal ou de erro de tipo permissivo,
estudadas na categoria da culpabilidade.
3. A inexigibilidade como fundamento geral de exculpação
A normalidade das circunstâncias do fato é o fundamento concreto da
exigibilidade de comportamento conforme ao direito, como terceiro estágio do juízo
de culpabilidade.
A anormalidade das circunstâncias do fato que fundamenta a inexigibilidade
de comportamento diverso incide sobre situações de exculpação concretas, nas quais
atua um autor culpável ou reprovável que, contudo, deve ser ex- ou desculpado
porque o limite da exigibilidade jurídica é determinado pelo limiar mínimo de
dirigibilidade normativa ou de motivação conforme a norma, excluída ou reduzida em
situações de exculpação legais ou supralegais.
Em primeiro lugar, as situações de exculpação constituem hipóteses concretas
de inexigibilidade de comportamento diverso porque podem excluir ou reduzir a
dirigibilidade normativa, como demonstram antigos argumentos de WELZEL262: a)
circunstâncias externas podem impedir a livre determinação da vontade (a coação
irresistível, por exemplo); b) o instinto de conservação pode afetar a capacidade de
agir conforme ao direito (o excesso de legítima defesa por medo, susto ou
perturbação); c) pressões psíquicas excepcionais podem limitar o poder de motivação
jurídica (a obediência hierárquica).
Em segundo lugar, as situações de exculpação constituem hipóteses de dupla
redução da culpabilidade e do injusto, conforme JESCHECK/WEIGEND263: redução
da culpabilidade por força da pressão psíquica do acontecimento concreto; redução
do injusto, porque a lesão de um bem jurídico tem por objetivo proteger outro bem
jurídico.
Em terceiro lugar, as situações de exculpação configuram casos de
desnecessidade de prevenção geral ou especial, segundo a teoria dos fins da pena de
ROXIN264.
De um modo geral, a ideia de inexigibilidade de comportamento diverso pode
fundamentar situações de exculpação legais e supralegais, conforme previsão
explícita ou implícita no ordenamento jurídico.

262
VER: SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral, 7ª ed., rev. atual., Florianópolis:
Empório do Direito, 2017
263
IDEM
264
IDEM
As situações de exculpação legais compreendem (a) a coação irresistível, (b) a
obediência hierárquica, e (c) o excesso de legítima defesa real e o excesso de legítima
defesa putativa – ambos determinados por medo, susto ou perturbação.
Admite-se a possibilidade de utilização da causa exculpante da inexigibilidade
de conduta diversa, pois o poder de agir de modo diverso constitui umas das essências
da culpabilidade, só podendo ser reprovado penalmente quem podia agir de modo
diferente e acabou optando por agir contra o direito. Isso porque o Direito não pode
exigir condutas heroicas e não pode impor uma pena, quando em situações extremas
alguém prefere realizar um fato proibido por uma lei penal, antes de sacrificar sua
própria vida ou integridade pessoal. Dito de outra maneira tem-se que o
reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa como causa de exclusão de
culpabilidade representa uma decisão de política criminal, tendo por fundamento o
convencimento de que é inútil socialmente impor-se uma sanção que ninguém quer e
que não serve aos seus propósitos265.

4. Excesso de legítima defesa real ou putativa por defeito na dimensão
emocional: medo
O excesso de legítima defesa pode ser exculpado por defeito na dimensão
emocional do tipo de injusto, determinado por medo, susto ou perturbação na pessoa
do autor (os chamados afetos astênicos/fracos) – mas não por ódio ou ira (os
chamados afetos estênicos/fortes), segundo várias teorias.
Historicamente, o estudo do medo e seus análogos, como ansiedade, raiva,
fobia, estresse, entre outros, tem início a partir dos relatos de Darwin no livro A
expressão das emoções no homem e nos animais. Darwin inferiu que as emoções,
presentes em nós e em todos os animais, inclusive as de medo, eram inatas, ou seja,
herdadas do mesmo modo que as características morfológicas266.
A importância de Darwin também é destacada por Robert L. Leahy267:

265
CAPPELLARI, Mariana Py Muniz. Lei n. 12.850/13 e inexigibilidade de conduta diversa: a quem
compete a carga probatória?, In: AZEVEDO, Bernardo de; SOTO, Rafael Eduardo de Andrade (org.).
Ciências criminais em debate: perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2015, p. 293-307.
266
SAMPAIO, Italo Abrantes. Medo: fronteira entre o sobreviver e o viver. 3. ed. Canoas: Ed. Ulbra,
2011, pag. 31.
267
LEAHY, Robert L. Regulação emocional em psicoterapia: um guia para o terapeuta cognitivo-
comportamental. Porto Alegre: Artmed, 2013, pág. 25.
As emoções são vistas na teoria da evolução de Darwin como processos
adaptativos que permitem aos indivíduos avaliar o perigo (ou outras
condições), ativar comportamentos, comunicar- se com outros membros da
espécie e incrementar aptidões adaptativas. Por exemplo, o medo, emoção
universal, é uma resposta adaptativa a um perigo natural, como a altura.
Ele pode paralisar o animal, motivá-lo a fugir ou evitar e oferecer os meios
de expressão facial e vocal para alertar os outros acerca do perigo
iminente.

Freud assinala a existência de uma angústia real que é enlaçada ao reflexo de


fuga e [que] podemos considerar como uma manifestação do instinto de conservação.
A tal sentimento é atribuída a designação de medo268. Já para Foucault, o medo é
reação ao perigo exterior269.
Medo sinaliza perigo; dor indica lesão ou doença. Todos os sentimentos e
sensações servem à orientação e têm um objeto de referência. Sentimentos podem
“errar”: pode-se temer, sem que haja perigo; o medo pode cessar, ainda que pendure o
perigo270.
Na sua tese de doutoramento, Maria Helena da Silva Gil da Costa271 afirma
que: “O medo segundo António Damásio, é uma das cinco emoções básicas, é um
sinal valioso, a nossa resposta natural em situações de perigo. As suas reacções
automáticas desencadeiam tensão muscular, aceleração dos batimentos cardíacos,
alterações nos sistemas digestivo e imunitário, aumento da adrenalina e dos
corticorteróides para enfrentar a ameaça”.
O medo, apesar de desconfortável, é uma emoção útil e importante para a
sobrevivência dos seres humanos, uma vez que mobiliza a pessoa, ampliando a sua
capacidade de agir diante de situações ameaçadoras272.
Fisiologicamente, o medo pode produzir, no corpo humano, taquicardia,
taquipneia, vasoconstrição cutânea e paralisação das atividades digestórias, todas
visando a maior provimento de sangue e oxigênio para músculos e sistema nervoso;

268
BRUM, Ronaldo Moreira. Estudos sobre a loucura. Porto Alegre: Edita, 2002, p. 101/102.
269
FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000, p. 50.
270
FABRICIUS, Dirk, Culpabilidade e seus fundamentos empíricos. In: COUTINHO, Jacinto Nelson
de (org.). Direito e psicanálise: Interseções a partir de “O Processo” de Kafka. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2010, p. 21.
271
COSTA, Maria Helena da Silva Gil da. O Medo e o Desenvolvimento: Uma proposta de Educação
de Adultos desde a inter-relação Criatividade e Motricidade Humana para uma vida “serena, útil e
corajosa”. 2008. (Doutorado em Educação) - Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real,
p. 20.
272
PICON, Patrícia; COSNER, Annelise Formel Couto; GAUER Gabriel José Chittó. Fobias
específicas e transtorno de ansiedade social. In: CATALDO NETO, Alfredo; GAUER, Gabriel José
Chittó; FURTADO, Nina Rosa (org.). Psiquiatria para estudantes de medicina. Porto Alegre:
Edipucrs, 2013, p. 384.
dilatação das pupilas (midríase), aumento do campo visual; suor frio e piloereção
visando ao aumento da troca de calor entre o meio intra e extracorpóreo, estimulação
do sistema linfático e aumento da produção de glicose, por estimulação dos
hormônios cortisol e adrenalina, visando atender à alta demanda energética,
necessária à luta ou à fuga273.
Para a Neurobiologia, o medo está associado ao sentimento de dor e pode
desencadear movimentos de recuo, imobilização, fechamento, retração e levar ao
distanciamento do meio ambiente. O medo pode apresentar-se sob diferentes
configurações e expressões: emoção e sentimento primários (medo); sentimento de
emoções universais subtis (pânico, timidez); emoção e sentimento secundários
(embaraço, vergonha, culpa); emoção e sentimento de fundo (dor, mal-estar...);
humor. Enquanto emoção, o medo é uma resposta reflexa. Enquanto sentimento, o
medo permite a criação de uma estratégia de proteção alargada – desempenha, por
isso, um papel regulador que conduz à criação de circunstâncias vantajosas para o
organismo. O medo é responsável por modificações na paisagem corporal (sistema
visceral, vestibular e músculo-esquelético) e na paisagem cerebral (circuitos
cerebrais). Pode ser detectado através de manifestações (mesmo que subtis) na (1)
postura corporal (perfil dos movimentos, precisão, frequência e amplitude dos
membros ou do corpo inteiro); nas (2) expressões faciais (quantidade e velocidade dos
movimentos oculares e grau de contração dos músculos faciais); e na (3) linguagem
(música da voz, prosódia e cadência do discurso). Por força da aprendizagem e da
cultura, o medo pode sofrer alterações nas suas formas de expressão e no seu
significado – pode ser acionado pela exposição a um estímulo específico ou por
razões e situações dependentes da experiência individual e cultural. Constitui, por
isso, uma representação única, individual e personalizada.
De acordo com Ítalo Abrantes Sampaio, a emoção de tem medo inicia quando
os estímulos que chegam até o encéfalo, o córtex e ao tálamo, são conduzidos à
amígdala, onde são gerados os comandos para o hipotálamo e o tronco cerebral
executarem as respostas comportamentais e fisiológicas adaptativas de resposta a essa
emoção. No entanto, explica o autor, há um atalho no nosso cérebro que nos permite
dar respostas infinitamente mais rápidas e, no que tange ao medo, o fator
determinante é a amígdala.

273
SAMPAIO, Italo Abrantes. Medo: fronteira entre o sobreviver e o viver, 3. ed. Canoas: Ed. Ulbra,
2011, p. 60.
A amígdala é uma pequena inclusão no sistema límbico (região cerebral
constituída pelo tálamo, hipotálamo, hipófise, hipocampo e a própria amígdala) em
forma de amêndoa, que está profundamente implicada, tanto na agressividade quanto
no medo274.
A amígdala ativa a nossa reação de medo ao ser informada de um estímulo
ameaçador, real ou imaginário, fazendo-nos fugir ou lutar, mesmo ates de termos
consciência do estímulo causador do medo.
Em “Quatro Gigantes da Alma”, Mira López explica que a imaginação é uma
poderosa aliada do medo humano, na medida em que é serva de tendências positivas
ou negativas, gerando, quanto a estas, temores. Esses temores geram um dos mais
temíveis efeitos do medo, ou seja, o medo imaginário, contra o qual pouco se pode
fazer. Assim, “o que não existe oprime mais do que aquilo que existe”. Existe,
portanto, na imaginação, criado por quem o sofre, que justamente por isso dele não
pode fugir, pois seria necessário fugir de si próprio.
Contudo, de acordo com o autor: em geral, todos os objetos, estímulos ou
agentes temidos, o são muito mais pelo mal que se supõe poderem ocasionar, do que
pelo que realmente ocasionam, em um dado momento. E isso se deve a que nossa
reação pessoal se orienta, sempre, por um presente psíquico (imaginário-prospectivo),
que não é o presente cronológico, isto é, que não corresponde ao instante mesmo em
que se vive.

Considerações Finais
No contexto da emoção do medo há situações em que agimos primeiro,
pensamos depois. É assim que a amígdala, ao deflagrar a nossa emoção de medo sem
uma análise mais refinada, faz-nos responder, em milésimos de segundo,
adaptativamente, com comportamento de fuga ou luta, conforme já mencionamos.
Neste cenário, o ser humano não pode simplesmente se despir da sua
subjetividade (do existir), nem da sua historicidade (que o compõe), nem mesmo das
suas experiências e vivências inscritas na sua trajetória (existencial) da vida, seja em
decorrência dos fatores ambientais (sociais, econômicos, políticos...) seja por causa
dos elementos que estruturam o seu registro hereditário (o patrimônio genético e

274
CROCE, Delton, Manual de Medicina Legal. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 649.
mesmo perigenético). É inerente ao ser humano tudo aquilo que inscreve (o sujeito)
na dimensão espaço-temporal de sua própria sujeição275.
Ainda ignorados por muitas áreas profissionais, como no Direito, os padrões
comportamentais são características inequívocas e conservadas na espécie humana
tanto quanto qualquer outro padrão morfológico.
Tal fato inquestionavelmente leva-nos a reconhecer e a explicar a transmissão
da herança genética também a padrões comportamentais, inclusive de medo e os que
dele decorrem, pelo mesmo processo de seleção e da mutação.
Assim, tentamos demonstrar que o excesso na legítima defesa (real ou
putativa) onde o sujeito erra sobre a intensidade da agressão (utilizando meio de
defesa superior ao necessário) ou erra sobre a atualidade da agressão (ainda não é
atual ou já não é mais atual), sendo um comportamento nascido do medo deve ser
entendido pelo Direito como algo inato, sendo, portanto, inexigível conduta diversa,
com a exclusão da sua culpabilidade.

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O BIOGRAMA COMO MÉTODO BIOGRÁFICO
INTERATIVO – ENTRE O OFENSOR E O
OFENDIDO

Laura M. Nunes276, Ana Isabel Sani277 e Sónia Caridade278

*Texto original de Portugal

Resumo
No trabalho com populações forenses importa que o processo de avaliação
assuma intencionalidade e se implemente de forma já interventiva, contemplando a
especificidade de indivíduos que, em ocorrência criminal, assumem os papéis
diametralmente opostos de ofensor e ofendido. O biograma surge como uma
ferramenta que permite agir sobre vítimas e ofensores de forma reflexiva, potenciando
a ação terapêutica de modo a produzir melhores resultados do que os meramente
punitivos. O presente capítulo propõe-se descrever/explicar o desenvolvimento do
biograma, identificar o(s) momento(s) mais oportuno(s) para a este recorrer, e
explorar a sua aplicabilidade a ofensor e ofendido, tendo o objetivo de melhorar a
forma como a Justiça gere algumas situações de crime. Procuraremos ainda discorrer
sobre as principais vantagens e limitações do instrumento.

276
Doutorada em Ciências Sociais/Psicologia/Linha de Investigação-Delinquência, é docente na
Universidade Fernando Pessoa – Porto – Portugal e conta com a publicação de 12 livros nos
panoramas português e internacional. Entre as obras publicadas, destaque para o dicionário temático
“Crime, Justiça e Sociedade”, de que é uma das coordenadoras, sendo também autora. para além
de artigos vários, a investigadora conta ainda com a publicação de capítulos de livros, publicados em
Portugal, no Brasil, em Espanha e nos Estados Unidos da América. É investigadora do Behaviour and
Social Sciences Research Center (FP-B2S), e cocoordenadora do Obervatório Permanente Violência e
Crime da Universidade Fernando Pessoa, onde coordena e desenvolve linhas de investigação dos
domínios da Psicologia Jurídica e da
Criminologia: http://www.degois.pt/visualizador/curriculum.jsp?key=4117840706162865.
277
Professora Associada da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando
Pessoa (UFP); Doutorada em Psicologia da Justiça pela Universidade do Minho; Coordenadora do
Mestrado em Psicologia da Justiça: Vítimas de violência e de crime; Co-coordenadora da Unidade de
Psicologia Forense da Clínica Pedagógica de Psicologia da UFP, onde exerce intervenção psicológica e
realiza perícias psicológicas forenses, sobretudo nas áreas da vitimização infantil; Investigadora em
vários estudos nacionais e internacionais. E-mail: anasani@ufp.edu.pt
278
Doutorada em Psicologia da Justiça. Professora Auxiliar na Universidade Fernando Pessoa (UFP)
do Porto, Portugal. Co-coordenadora da Unidade de Psicologia Forense da Clínica Pedagógica de
Psicologia da UFP e Investigadora do Behaviour and Social Sciences Research Center (FP-B2S) e do
Obervatório Permanente Violência e Crime (OPVC) desta mesma universidade. Desenvolveu a sua tese
de doutoramento na área da violência das relações íntimas juvenis e é autora de diversas publicações,
nacionais e internacionais, neste domínio e nas áreas da Psicologia da Justiça e Vitimologia. É revisora
em várias revistas nacionais e internacionais.
Introdução
A avaliação (psicológica, sociológica, comunitária, ou de outra natureza)
cruza-se muitas vezes com a intervenção, num registo em que avaliar é, desde logo,
intervir afetando o alvo de análise e, indubitavelmente, em certas populações como as
desviantes, esse paradigma de avaliação-intervenção deve obedecer a um plano
imbuído de intencionalidade. Esta constatação remete para a especificidade de
indivíduos que, estando em posições aparentemente contrárias, participam tantas
vezes no mesmo momento – o da ação criminosa - embora vivido de forma
diametralmente oposta. Referem-se, aqui, ofensor e ofendido, em que a avaliação
pode e, não raras vezes, deve conduzir a um processo de intervenção, no sentido de
ajudar vítima e agressor.
Na sequência do que acabámos de afirmar, este capítulo procura apresentar um
dos variadíssimos métodos biográficos, tão frequentemente usados em contexto da
Psicologia Jurídica, e em que se encontram características deveras interessantes e
adaptadas ao regime de avaliação-intervenção, sendo mais uma estratégia que pode
contribuir para a adoção do paradigma da Justiça Restaurativa, para além de que, dado
o seu poder interventivo em cada ator social participante da ação delituosa, também se
pode considerar com algum poder no campo da Justiça Terapêutica. Focamo-nos,
aqui, no designado biograma.
Assim, neste capítulo o grande objetivo é descrever/explicar como se constroi
o biograma, quando é mais adequado a ele recorrer, como melhor se aplica a ofensor e
ofendido, e quais as suas vantagens e limitações. Nesta lógica de exploração do
biograma coloca-se logo como ponto de partida a definição de alguns conceitos
básicos. Portanto, comecemos por definir avaliação como o conjunto de
procedimentos sequenciais e ancorados no recurso a díspares técnicas, conducente à
obtenção de toda (e apenas) a informação que nos possibilite melhor conhecer uma
determinada situação, de forma cientificamente apoiada e estrategicamente pensada
para poder originar uma conclusão identificadora do(s) problema(s) e definidora de
um plano de intervenção. Tratando-se de um processo complexo, deve, segundo
NUNES et al. (2015) contemplar as especificidades do(s) avaliado(s), do seu
comportamento e do contexto de exteriorização daquele.
Entenda-se, ainda, Justiça Terapêutica como uma modalidade de aplicação da
Justiça num clima positivo, de respeito e colaboração entre as partes
implicadas/envolvidas, procurando-se um efeito reabilitador do ofensor, com claros
benefícios para todos (FARIÑA, no prelo; FARIÑA, LÓPEZ e REDONDO, 2016).
Este conceito de Justiça procura não apenas a resolução de casos judiciais, como
também as causas e motivações das ações criminosas, levando a que a aplicação da
Lei se constitua também numa oportunidade para a sociedade, para acusadores e
acusados e, ainda, para ofensores e ofendidos (FARIÑA, 2016).
Para que se possa avançar para a ideia do recurso ao biograma em contexto de
Justiça, e no âmbito da avaliação em contexto forense, importa ainda definir
brevemente Justiça Restaurativa como um novo padrão de pensamento, num olhar
diferente do tradicional e com aproximações à noção de Justiça Terapêutica, sendo
que, de acordo com MARQUES (2016), a primeira, igualmente recente nos domínios
da Vitimologia e da Criminologia, visa promover a participação ativa de vítimas e
ofensores, comunidades e atores sociais implicados, numa análise conducente à
manifestação do experienciado por parte da vítima junto do ofensor, possibilitando a
este último a compreensão das consequências e da gravidade do seu ato, num registo
de assunção reflexiva de responsabilidade e de mudança.
Uma vez apresentada esta contextualização introdutória, impõe-se que
avancemos para a exploração do designado biograma, enquanto instrumento de
avaliação/intervenção, expondo-se em que consiste, como se edifica, qual o seu poder
e como pode levar a uma ponte entre ofensor e ofendido.

1. Definindo e construindo o Biograma


A definição e a exposição do processo de construção do biograma devem ser
antecedidas de um brevíssimo enquadramento a respeito do uso de métodos
biográficos, quer por parte da Sociologia, quer por outros domínios científicos como a
Psicologia e a Antropologia. Efetivamente, a ideia de biografia interpretativa
mediante o recurso a narrativas de experiências vividas pelos próprios, acabou por se
revelar muito útil, no âmbito da investigação científica como no da avaliação e
intervenção, junto de populações muito específicas (SMITH, 2012), como é o caso de
vítimas e ofensores. Ora, é nesta ideia que, de certa forma, se inspira o biograma,
enquanto modalidade de registo de informação biográfica e instrumento de
avaliação/intervenção.
As abordagens biográficas, na verdade, podem remeter para uma grelha
interpretativa compreensiva, em que se procura uma inteligibilidade ligada a díspares
acontecimentos, proporcionando-nos o acesso à compreensão de um determinado
percurso ou trajetória. Evidentemente, e de acordo com DENZIN (1989), esse acesso
faz-se pela análise qualitativa do discurso e do verbal, bem como do que
sequencialmente é apresentado na (re)construção biográfica. Não significa isto que se
esteja a procurar uma explicação causal no sentido positivista do termo (DIGNEFFE e
BECKERS, 2005), perseguindo-se, antes, o sentido que o próprio dá ao ocorrido e por
ele narrado. Já o precursor das chamadas “biografias orais”, Dilthey, referia que o
social apenas se poderia apreender através de uma abordagem compreensiva,
empenhada em decifrar o sentido que o sujeito atribui às suas ações (RUQUOY,
2005). O biograma configura-se, assim, numa síntese esquemática de uma história de
vida, que permite colher elementos espácio-temporais, dimensões-chaves, marcos e
pessoas relevantes, capazes de gerar conhecimento sobre aspetos do presente e do
passado e reflexões tendentes a tomadas de decisão, com possibilidade de reconstruir
e reparar factos significativos na experiencia de vida da pessoa (DOMINGO
SEGOVIA; DOMINGO-MARTOS e MARTOS-TITOS, 2017).
Após tal enquadramento, definamos, agora e de forma algo genérica, o
biograma como um instrumento com o potencial para recolher, registar e organizar,
em torno de um eixo cronológico, as informações apresentadas como pequenas
narrativas sequenciais, em que o próprio narrador é também o protagonista e o
intérprete de tais narrativas, mediante a sua perceção das diferentes etapas e/ou áreas
da sua vida, num registo organizativo que entra com antecedentes, momentos fulcrais
(pontos de continuidade e de inflexão) e consequentes, das diferentes fases/áreas
narradas, sempre sob a perspectiva do próprio (AGRA e MATOS, 1997). Pode
afirmar-se que o biograma se traduz num instrumento biográfico, multipotencial, que
muito tem sido utilizado na investigação, tal como na intervenção, em domínios tão
específicos como a toxicodependência e a delinquência, sendo igualmente eficaz quer
com vítimas quer com ofensores (MANITA, 2001) e adequando-se inclusivamente a
contextos diversos como o prisional (PINA, 2012). Tal instrumento é gerado ao longo
de sessões com um técnico, preferenciamente do domínio do comportamento, que vai
apenas apoiando, no registo e na forma, a manifestação dos conteúdos narrados.
Na verdade, e segundo diversos autores (e.g., AGRA e AGRA, 2012; AGRA e
MATOS, 1997; MANITA, 2001; NUNES et al., 2015) o biograma sistematiza e
organiza as (ir)regularidades biográficas, identificando os aspetos fulcrais de diversas
áreas de vida, segundo a perspectiva do próprio sujeito. Importa atender à perpectiva
do próprio já que essa racionalidade dos sujeitos possibilita a captura dos fenómenos
sociais, numa abordagem compreensiva (GUERRA, 2006). Efetivamente, os
fenómenos sociais encontram-se “para lá” da definição de regras funcionais
entendidas como leis capazes com poder preditivo das eventuais ocorrências por via
das relações causais entretanto estabelecidas. No plano social (como no campo
psicológico) está-se, precisamente, no universo da compreensão do comportamento e,
portanto, no domínio da explicação interpretativa (WEBER, 2005).
Entenda-se que, para alguns (e.g., TÓJAR, 2006) o biograma surge entre
diversos instrumentos de coleta de dados biográficos, como a entrevista (narrativa), o
diário autobiográfico ou o registo de trajetória de vida, muito embora a edificação do
biograma possa, também, assentar no uso da técnica da entrevista, nomeadamente
através da obtenção das já referidas narrativas. Em suma, o biograma constitui-se num
instrumento que, construído pelo próprio que viveu a(s) ocorrência(s), implica o apoio
e acompanhamento do técnico que se dedica, assim, à recolha de informação com a
qual, como veremos adiante, transitará de um patamar de avaliação para um plano
interventivo, bem como de uma abordagem individual para uma aproximação
envolvendo as partes, através da obtenção e posterior reflexão sobre pequenas
narrativas focadas no que o sujeito considere crucial para a situação em que se
encontra no momento. Portanto, é fundamental que o técnico domine este método
biográfico, a fim de melhor nortear o desenvolvimento do processo de criação de um
biograma que se revele potenciador do alcance dos objetivos traçados para cada
situação. As narrativas, feitas na primeira pessoa (MANITA, 2002), poderão incluir
diversas áreas de vida do indivíduo, desde a história familiar, de afetos, trajetória
desviante, acontecimentos de vida considerados mais significativos, história de
condutas antissociais e/ou delituosas e, também, antecedentes e/ou consequentes
imediatos da ocorrência perpetrada por um e sofrida por outro, num movimento de
aproximação do sujeito a um olhar retrospetivo conducente à reflexão.

1.1. O Biograma: Potencial Avaliativo e Interventivo, Individual e


Comparativo
Ao potencial avaliativo do biograma, numa primeira fase da sua construção
(TINOCO e PINTO, 2001), junta-se o seu poder interventivo, em etapas subsequentes
(TINOCO e PINTO, 2003), através da tradução biográfica que abarca a sequência de
acontecimentos de vida (AGRA e MATOS, 1997) e a identificação do que possa estar
implicado na situação a que o sujeito chegou. Em simultâneo com esta coleta de
informação que possibilita a avaliação do sujeitro e da forma como ele perceciona o
ocorrido, vai-se organizando ao longo do tempo todas as pequenas narrativas, bem
como os dados de natureza qualitativa que vão abrindo portas à compreensão do que
se poderá ter passado, sempre biograficamente contextualizado e sob a perpectiva
daquele que é narrador e protagonista da história que conta.
A estrutura entretanto construída vai sendo complementada através da
orientação no sentido das três grandes ordens do biograma que lhe conferem esse
poder de transitar da avaliação para a intervenção, num movimento de aproximação à
abordagem de tratamento e preparação para a mudança, que se pretende no âmbito da
Justiça Terapêutica. Vejamos, ainda que sumariamente, de que constam os níveis do
biograma (TINOCO e PINTO, 2003):
i) No biograma de primeira ordem, o foco é colocado sobre a recolha de
informação, segundo a perceção do narrador, com registo conjunto em que este último
participa ativamente na localização da informação ao longo de um eixo cronológico;
ii) Já no biograma de segunda ordem, parte-se do entretanto construído no
âmbito do biograma de primeira ordem para, então, se retrabalharem os conteúdos
com o sujeito, numa análise da informação factual, abrindo-se assim a possibilidade
de o próprio começar a aceder a uma visão mais alargada e holística desses dados,
procurando-se com isso uma melhor compreensão sob os pontos de vista afetivo,
emotivo e cognitivo. Pode afirmar-se que, neste ponto, se está já a avaliar e a transitar
para um plano interventivo, pois tal análise conduz ao reconhecimento e à
reorganização do que o indivíduo pensa e se sente a respeito dos factos narrados;
iii) Seguidamente, no designado biograma de terceira ordem, encontramo-nos
claramente ao nível da intervenção, em que o sujeito é confrontado com o que revelou
e refletiu a respeito dos registos dos aspetos por ele considerados como fulcrais para a
sua chegada à situação do momento, com ponderação sobre antecedentes e, sobretudo,
consequentes para o próprio, num registo de pensamento potenciador da reflexão
crítica, autocorretiva e de reformulação de alguns significados que o próprio perceba
ter de rever.
Trata-se, este último momento de uma abordagem individual através do
biograma, de uma etapa de mudança mais consistente e em que se devem procurar
indicadores de tomada de consciência e vontade de mudança por parte do ofensor
(estamos perante um modo de pensar que nos leva ao paradigma da Justiça
Terapêutica) e, no que à vítima diz respeito, para ser o momento de pensar
conjuntamente na possibilidade de ver o ponto de vista do outro (atrevendo-nos nós a
sugerir a eventual possibilidade de abertura de ambas as partes para participarem num
processo que se inscreva na modalidade de Justiça Restaurativa).
Portanto, face à definição dos termos dos biogramas de primeira, segunda e
terceira ordens, pode reafirmar-se o poder de avaliar e de intervir junto destas
populações, sendo igualmente possível perceber o potencial para transição entre o
processo individual e conjunto, abarcando, numa etapa de maior abertura, a análise
integrada, comparada e compreensiva do revelado por vítima e ofensor, abrindo-se
portas para uma mais fácil cicatrização do sofrimento da vítima, bem como para uma
possível abertura à mudança e à autorresponsabilização por parte do ofensor.

Conclusões
Uma vez aqui chegados, importa reforçar a ideia de que o biograma tem um
poder avaliativo/interventivo, que lhe permite agir sobre vítimas e ofensores de forma
reflexiva e, portanto, conducente à mudança num registo de abertura à Justiça para
que, através deste modelo de atuação, potenciar a sua ação terapêutica e produzir
melhores resultados do que os meramente punitivos. De facto, desta forma, pode
alcançar-se um conjunto de resultados de índole mais reabilitativa do que punitiva.
Portanto, está-se perante uma modalidade de atuação que se aproxima do que se
pretende com o paradigma da Justiça Terapêutica.
A esse propósito, refira-se o poder catártico das verbalizações/narrativas do
sujeito que, ao edificar o biograma, é conduzido num processo de seleção da
informação subjetivamente mais relevante para o ocorrido. Segue-se, então, a
organização de tal informação em termos temporais e, por isso, também em termos
sequenciais, com subsequente ligação entre tais narrativas que encerram a atribuição
de significados. Prossegue-se, também, com a análise reflexiva e crítica de tais
elementos para, depois, se reverem os significados atribuídos e a interpretação do até
então narrado, procurando-se, finalmente despertar a abertura para análise de um
outro ponto de vista: o que se apresenta no biograma da figura social oposta –
ofendido / ofensor ou ofensor /ofendido.
Surgindo o momento para reanálise e comparação de pontos de vista, de
elementos antecedentes e conducentes à situação de crime, bem como de
consequências mais ou menos diretas de tal ocorrência, procurar-se-á integrar a
aproximação e contacto ofensor – ofendido, envolvendo-se outros elementos e
mediadores conforme o referido em âmbito de Justiça Restaurativa. Estabelecem-se
pontes que possibilitem a oportunidade de revisão dos factos e compensação da vítima
através da assunção de responsabilidades e reconhecimento de danos causados por
parte do ofensor, verificando-se também a possibilidade de a vítima se sentir com
disponibilidade para olhar de frente o rosto, e as diversas facetas, de quem a atingiu.
A própria comunidade, através de eventuais representantes que participem, terá acesso
a duas perceções do mesmo acontecimento crítico, através do contacto entre as duas
figuras que, à partida e em contexto tradicional, se encontram em posições
diametralmente opostas, mas cujo encontro revela novas nuances a respeito do papel
de cada um e da ocorrência em geral.
A Justiça, mais do que um sistema de vigilância e punição de quem transgride,
tende a assumir um papel mais socialmente consciente e humanamente
contextualizado, através destes novos paradigmas que, como se pretende aqui expor,
têm a beneficiar com o recurso a instrumentos e técnicas tão específicas quanto
eficazes como o biograma.
Como já antes foi sendo tentado através de várias análises ao que se pretende
da Justiça para além de punir o ofensor, com o biograma é possível uma
reaprendizagem de como pensar a vida aproveitando o que a sua própria história pode
trazer de mutável e reflexivo, numa tentativa de reformulação de sentidos e
significados, quer na forma como o ofensor vê os seus atos, quer na maneira como a
vítima perceciona o que lhe aconteceu.

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Tel.: + 55 51 30268613 | Porto Alegre | RS | Brasil
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