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A Justiça Restaurativa

Um Modelo de Reacção ao Crime Diferente da Justiça Penal


Porquê, Para Quê e Como?

CLAUDIA CRUZ SANTOS


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Para o meu filho Filipe

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NOTA BREVE E AGRADECIMENTOS

Este livro corresponde, com escassas alterações, à dissertação de doutoramento


submetida à apreciação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em Maio
de 2012 e examinada em provas públicas, no dia 10 de Outubro de 2013, por um júri
presidido pelo Senhor Prof. Doutor António Santos Justo e integrado pelos Senhores
Profs. Doutores Teresa Beleza (arguente), Mário Monte (arguente), Manuel da Costa
Andrade, José de Faria Costa, José Manuel Aroso Linhares, Maria João Antunes e
Pedro Caeiro.
Devo sublinhar o facto de me ter sido atribuída, entre 1 de Outubro de 2010 e 30
de Setembro de 2011, uma Bolsa de Investigação concedida pela Fundação para a
Ciência e a Tecnologia. E beneficiei, antes disso, de um período de dispensa de serviço
docente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que também cumpre
vincar.
Serei breve nas referências àqueles a quem quero agradecer. Se, por um lado, sei
que são muitos aqueles que deveria mencionar (um estudo prolongado beneficia
necessariamente do contributo, por uma ou outra forma, daqueles que nos rodeiam),
julgo, por outro lado, que não é este o espaço indicado para lhes manifestar a minha
gratidão. Referirei, por isso, apenas aqueles que influenciaram directamente a conclusão
deste estudo.
Em primeiro lugar, agradeço muito ao meu orientador, o Senhor Prof. Jorge de
Figueiredo Dias. Há muitos anos, quando era aluna da licenciatura em direito e estava
quase a desistir de ser jurista, foi a descoberta do seu pensamento que me fez querer ser
penalista. O seu olhar sobre as ciências criminais e a generosidade da sua abertura aos
outros guiaram sempre as minhas reflexões.
Agradeço, logo de seguida, à Senhora Prof. Maria João Antunes, cujas aulas de
direito processual penal, no início da década de noventa, muito contribuíram para o
despertar do especial interesse – que mantenho – nas questões processuais. Quando
agora olho para esses tempos e reflicto sobre a influência que tiveram na minha
formação, dou-me conta da importância que tem querer-se ser professor e saber-se sê-lo.
Mas agradeço-lhe, sobretudo, a amizade e o estímulo permanentes. E também o facto de
me ter explicado, na altura certa, que há trabalhos em que tem que se pôr um ponto
final, mesmo que nunca pareçam acabados.
Quero agradecer à minha família. Sobretudo aos meus pais, Teresa e Carlos, por
tantas razões que aqui não cabem. Mas também à minha avó Helena, que esteve sempre
(e continua a estar) à frente do seu tempo. E devo uma palavra especial ao Nuno, que
encheu de alegria e de optimismo os muitos dias, nem sempre fáceis, que antecederam a
discussão pública deste estudo.

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Os meus amigos estiveram sempre presentes. Alguns estão-no mesmo que
estejam do outro lado deste nosso oceano. O Alberto Silva Franco, o Claudio Bidino, a
Débora Melo e o Pedro Bueno de Andrade atravessaram-no quando precisei. E
inspiraram este estudo de muitas formas. A Teresa Carvalho e o Fernando Rocha
Andrade, que me acompanham desde os tempos de Liceu, reviram algumas das suas
páginas. O Miguel Caeiro ajudou-me a descobrir muitos livros e partilhou comigo o
interesse por eles. E a Gabriela Figueiredo Dias, minha amiga querida, ocupou-se das
outras coisas de que a vida sobretudo é feita.
Falta uma referência aos meus alunos. Os que foram, os que são e os que virão a
ser. Foi só por causa deles que concluí esta tarefa. Não fui bafejada com as virtudes da
persistência e da paciência que favorecem os escritos muito longos. Prefiro os textos
breves. Mas sabia que, para poder continuar a entrar na sala de aulas e a olhar para
rostos atentos que me recordam sempre o espanto da juventude, tinha que ser assim. Ou
mais ou menos assim. Só por eles o fiz. E também por mais isso lhes sou grata.

Aveiro, final de Novembro de 2013

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Apresentação feita por ocasião das Provas Públicas de Doutoramento, a 10 de
Outubro de 2013

A partir dos anos setenta do século passado foram surgindo referências à justiça
restaurativa como um modelo de resposta ao crime que seria diferente da justiça penal.
A designação “justiça restaurativa” engloba construções teóricas de natureza sobretudo
criminológica e político-criminal, assim como um conjunto diferenciado de normas e de
práticas de reacção ao conflito criminal, estas sujeitas ao denominador comum da
reparação dos danos causados à vítima através de uma responsabilização voluntária do
agente da infracção. Afasta-se a possibilidade de condenação a pena de prisão, afirmam-
se as vantagens para a reintegração do agente e invoca-se a satisfação das necessidades
das vítimas. E ainda se alega que assim se contribuiria para a pacificação da
comunidade.

Num momento inicial, foi esta possibilidade de uma reacção ao crime que
restringisse a punição aquilo que me interessou. Tinha aprendido nas minhas primeiras
aulas de direito penal, aqui na Faculdade e há mais de 20 anos, que a história do direito
penal é a história da sua contenção. Tinham-me ensinado que em cada conceito da
teoria geral do crime vivem séculos de luta pela liberdade. E a proposta restaurativa
parecia convir-me, sob esse enfoque, como instrumento para essa desejada contenção da
justiça penal.

Quando iniciei este estudo tinha algumas ideias sobre o sistema penal mas sabia
muito pouco sobre a justiça restaurativa. Por isso, na procura de uma compreensão do
seu sentido e, sobretudo, da forma como poderia coexistir e relacionar-se com a justiça
penal na reacção ao crime, fiz três perguntas principais: Porquê? Para Quê? Como?
Cada uma destas interrogações preside a uma das três partes principais em que se
estrutura a minha dissertação.

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A primeira questão, a do Porquê, prende-se com a justificação do surgimento e
da vigência da proposta restaurativa. Procurei, num momento inicial, afastar a ideia da
sua predominância histórica como fonte legitimadora. E sustentei, em vez disso, que a
justiça restaurativa surgiu no amparo de várias correntes críticas da justiça penal que
têm sido associadas a uma sua crise. A justiça restaurativa nasce da confluência
sobretudo da criminologia crítica e do abolicionismo penal com a vitimologia, com o
pensamento feminista na criminologia e com a criminologia de pacificação.

Ainda nesta primeira parte da dissertação, sob a interrogação genérica do


Porquê, questionei se a justiça restaurativa corresponderia ainda a uma ideia de justiça
ou se, pelo contrário, se esgotaria num conjunto de práticas orientadas para a economia
de meios e para a celeridade, porventura com prejuízo para outros valores. O
pensamento a que, a esse propósito, acredito que a investigação conduziu é o de que na
justiça restaurativa está implícita uma certa ideia de realização da justiça cujas pautas
não são apenas as da utilidade. O sentido daquilo que é responder ao crime com justiça
vem sendo alargado, tornando-se mais exigente precisamente na medida – permita-se-
me a redundância – em que incorpora mais exigências: a resposta ao crime, para ser
justa, não pode prescindir de uma limitação da punição pela culpa, não pode ignorar a
obrigação de oferta ao agente, pelo Estado, de oportunidades de reintegração, mas
também não pode tomar o mal causado à vítima apenas como um pretexto para a
protecção de vítimas futuras. A reparação dos danos causados à vítima entra na equação
da justiça. Todavia, aquilo que parece existir de específico na compreensão restaurativa
é a ideia de que uma reacção justa ao crime pressupõe o reconhecimento de uma sua
dimensão (inter)pessoal, que não se confunde com a dimensão pública inerente à sua
definição como ofensa a bens jurídicos cuja vigência tem de ser reafirmada. Nesta
medida, convergem na proposta restaurativa a valorização da subjectividade, da
alteridade e da comunicação que constituem património de correntes filosóficas e
sociológicas contemporâneas associadas à teorização sobre o sentido da justiça.

Reconheço, todavia, que pode haver uma certa “estranheza” quando se confronta
a proposta restaurativa com as exigências da justiça. E essa estranheza relaciona-se,
sobretudo, com a possibilidade de falharem à justiça restaurativa duas notas que se
associam a uma reacção justa ao delito: a verdade e a proporcionalidade. Estas notas
surgem, no direito penal e no direito processual penal, ligadas às duas grandes questões

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inerentes ao julgamento – a questão da culpa e a questão da sanção. A verdade
pressupõe uma certa confirmação do acontecido através da prova admissível, que talvez
se não baste – essa verdade – com uma versão da realidade acordada pelos sujeitos. A
proporcionalidade impõe uma limitação da reacção ao crime à luz de uma ponderação
de desvalores, que parece exigir uma intervenção imparcial e desapaixonada de um
terceiro dotado de autoridade e vinculado por uma lei que estabelece limites para a
sanção e critérios para a sua determinação concreta. A um primeiro olhar, estas
exigências de verdade e de proporcionalidade não vinculam a justiça restaurativa,
porque não há uma comprovação da culpa em julgamento nem há a intervenção de um
juiz na definição de uma sanção. Suscita-se, a partir daqui, a principal crítica à justiça
restaurativa, que é a da sua possível incompatibilidade com um conjunto de princípios
garantísticos que modelam a reacção ao crime. Ao longo da dissertação, procurei dar
voz também aos críticos da justiça restaurativa. Alguns referem-se a ela como uma
“utopia regressiva”, outros apodam-na de “canto de sereia”, referindo-se à ambiguidade
da sua formulação, à pluralidade das suas promessas, à desconsideração das garantias
processuais.

Impôs-se, a partir daqui, a ponderação de princípios tão estruturais como o da


culpa, o da oficialidade, o da legalidade ou o da reserva de juiz. A reflexão sobre cada
um destes princípios pareceu conduzir, porém, à verificação de que as práticas
restaurativas, por força das suas especificidades face à reacção punitiva, não são
necessariamente incompatíveis com o núcleo garantístico daqueles princípios.

A interrogação sobre o Para Quê da justiça restaurativa presidiu à segunda parte


da dissertação. A ideia que procurei testar e depois sustentar foi a de que as finalidades
da solução restaurativa não coincidem com as finalidades preventivas que se atribuem à
pena. Ainda que, quer a justiça penal, quer a justiça restaurativa, tenham objectivos de
pacificação, encontrei respostas diversas para as questões sobre aquilo que se pretende
pacificar e sobre a forma como se pretende pacificar. A justiça penal ocupa-se da
dimensão pública do conflito. Por isso, na teleologia da resposta penal prevalece o
interesse comum no não cometimento de crimes no futuro, assim se justificando as
finalidades preventivas das sanções penais. Já na resposta restaurativa prevalecem os
interesses individuais daqueles que estão envolvidos no conflito interpessoal que o
crime também é. A afirmação desta linha de fronteira entre as finalidades da justiça

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penal e da justiça restaurativa não preclude, porém, a compreensão da possibilidade de
que, através da resposta dada por cada uma delas ao conflito criminal, se cumpram
também, ainda que de forma mediata, as finalidades da outra. Daqui decorre a
necessidade de ponderação de modelos de relacionamento da resposta penal e da
resposta restaurativa, sobretudo para procurarmos compreender em que moldes pode a
resposta restaurativa conter a resposta penal.

Pode acontecer que a obtenção das finalidades restaurativas – através de uma


reparação que tem um sentido muito amplo – tenha como consequência a
desnecessidade de punição, porque já não existem necessidades preventivas relevantes.
Nestas hipóteses, a solução restaurativa do conflito criminal contribuirá para a limitação
da intervenção penal, favorecendo o seu carácter de ultima ratio. Noutros casos, porém
– sobretudo em alguma da criminalidade mais grave imputada a agentes mais perigosos
–, a condenação pode revelar-se indispensável, surgindo a eventual aplicação da justiça
restaurativa em moldes que não são os da alternatividade, mas antes os da
complementaridade. A possibilidade de práticas restaurativas pós-sentenciais parece
comprovar, nestas hipóteses, a diversidade das finalidades penais e restaurativas.

Finalmente, depois de ter reflectido sobre o porquê e sobre o para quê da justiça
restaurativa, enfrentei o problema do seu como. Apesar de serem conhecidas outras
práticas restaurativas, centrei a análise na mediação penal, por ter sido o instrumento
restaurativo escolhido pelo legislador português e por ser também o dominante nos
países do nosso contexto cultural.
É inequívoca, face a uma análise do regime jurídico da mediação penal de adultos
em Portugal, a sua restrição ao universo dos conflitos criminais, sendo os sujeitos
principais da mediação apenas o arguido e o ofendido, e não todo e qualquer
prejudicado pela ocorrência do ilícito. Não existem, para além disso, dúvidas quanto à
conexão desta mediação penal com o modo de funcionamento da justiça penal, no qual
tem surgido sobretudo enquanto mecanismo de diversão. Optou-se pela criação de um
sistema público de mediação que vinca o cariz não estritamente privado desta prática
restaurativa e que assume a possibilidade da sua relevância na solução da questão penal.

Uma análise deste regime jurídico que toma a mediação como forma de diversão
processual revela uma opção minimalista quanto aos seus âmbitos de aplicação. No que

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respeita ao âmbito material, restringiu-se a possibilidade de mediação penal a alguns
crimes particulares em sentido amplo, todos eles enquadráveis na criminalidade de
pequena e média gravidade. No que tange ao âmbito temporal, só se admite o envio do
processo para mediação penal durante a fase de inquérito.

A excepção ao que se vem de afirmar resulta da aceitação de práticas restaurativas


posteriores à fase de inquérito, que o legislador português já reconheceu. Admitiu um
“encontro restaurativo” posterior à suspensão provisória do processo ou à condenação
por crime de violência doméstica. Por outro lado, com um âmbito mais genérico (sem a
previsão de qualquer “catálogo de crimes”), admitiu que o condenado a pena de prisão
participe, “com o seu consentimento, em programas de justiça restaurativa,
nomeadamente através de sessões de mediação com o ofendido”. Decorridos quatro
anos, nenhuma destas duas hipóteses tem ainda concretização prática.

O sentido que atribuí à justiça restaurativa e aos modos pelos quais se pode
relacionar com a solução dada ao conflito pela justiça penal aconselharia o alargamento
da mediação penal, enquanto mecanismo de diversão, a outros crimes, nomeadamente a
crimes públicos de pequena e média gravidade. Aconselharia, também, a adopção
efectiva de práticas restaurativas no universo dos crimes públicos (e da criminalidade
mais grave) em momentos posteriores à fase de inquérito, já não como solução
alternativa ao funcionamento da justiça penal, mas sim como solução complementar.

Por coincidência, comemora-se hoje o Dia Mundial Contra a Pena de Morte. Isso
recorda-me um excerto do pensamento de Nils Christie, que vou citar: “não parece certo
cortar dedos como forma de punição, já não. Achávamos (na Noruega) que era aceitável
até 1815, altura em que foi removido do Código Penal enquanto pena. A mim também
não me parece certo que tenhamos 2 800 pessoas na prisão. Somos livres para decidir
qual é o nível de sofrimento que achamos aceitável”. Julgo que esta é a ideia sobre a
qual se constrói a justiça restaurativa.

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Três pensamentos [ou três declarações de princípios, ou um enquadramento do estudo
pretendido, ou o resumo de (quase) tudo]

«En estos coloquios no se ha querido desconocer que del derecho, del proceso,
del tribunal, de la penitenciaria, no podemos prescindir; sin ellos, desgraciadamente, los
hombres serian todavia peores de lo que son. El prejuicio, por no decir la superstición,
contra la que se ha combatido, no es que el derecho sea necesario, sino que el derecho
sea suficiente (…). Nos hemos convertido en adoradores del derecho. Ahora bien, no
existe una experiencia tan idónea como la experiência penal para apartarse de esta
idolatria. Las miserias del proceso penal son un aspecto de la miseria fundamental del
derecho (…). “Más allá del derecho” es la expresión de la civilidad».

Francesco CARNELUTTI, Las miserias del proceso penal, Bogotá: Editorial Temis,
2005, ps. 103-4.

«Para a Criminologia o delito apresenta-se, antes de tudo, como problema social


e comunitário, que exige do investigador uma determinada atitude (empatia) para se
aproximar dele. Mas ambos os postulados necessitam de alguns comentários.
O crime recebeu várias definições dos penalistas, filósofos, moralistas,
sociólogos, políticos, etc.
Para o penalista, não é senão o modelo típico descrito na norma penal: uma
hipótese, produto do pensamento abstracto. Para o patologista social, uma doença, uma
epidemia. Para o moralista, um castigo do céu. Para o perito em estatística, um número,
uma cifra. Para o sociólogo, uma conduta irregular ou desviada.
A Criminologia, por seu turno, deve contemplar o delito não só como
comportamento individual, mas, sobretudo, como problema social e comunitário,
entendendo esta categoria reflectida nas ciências sociais de acordo com a sua acepção
original, com toda a sua carga de enigma e relativismo. Porque, conforme puseram em
destaque Oucharchyn-Dewitt e outros, um determinado facto ou fenómeno deve ser
definido como “problema social” somente se nele concorrem as seguintes
circunstâncias: que tenha uma incidência massiva na população; que a referida
incidência seja dolorosa, aflitiva; persistência espácio-temporal; falta de um inequívoco

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consenso a respeito da sua etiologia e eficazes técnicas de intervenção e consciência
social generalizada a respeito da sua danosidade.
Todas estas notas próprias de um “problema social” podem ser observadas
efectivamente no delito. Afecta toda a sociedade (não só os órgãos e instâncias oficiais
do sistema legal), isto é, interessa e afecta a todos nós. E causa dor a todos: ao infractor,
que receberá o seu castigo, à vítima, à comunidade. Temos consciência, todavia, de que
precisamos de aceitar a realidade do crime como inseparável da convivência. Que não
existem soluções milagrosas nem definitivas. Que a sua explicação tem muito mistério e
o seu controlo, razoável ou satisfatório, bastante de utopia, de irrealidade. Estamos a
retornar ao ponto zero do saber criminológico – dizia um autor há poucos anos – e o
delito continua a ser um enigma. Por tudo isto é um problema social e comunitário. É
um problema “da” comunidade, nasce “na” comunidade e nela deve encontrar fórmulas
de solução positivas. É um problema da comunidade, portanto, de todos: não só do
“sistema legal”, exactamente porque o delinquente e a vítima são membros activos
daquela. Nada mais erróneo do que supor que o crime representa um mero embate
simbólico entre o infractor e a lei. E que o delito – obra do delinquente – preocupa e
interessa só ao sistema, isto é, Polícia, Juízes, Administração Penitenciária, etc.
Os problemas sociais reclamam uma particular atitude do investigador, que a
escola de Chicago denominou “empatia”. O crime, também. Mas empatia, desde logo,
não significa simpatia nem cumplicidade com o infractor e o seu mundo, antes interesse,
apreço, fascínio por um profundo e doloroso drama humano e comunitário: um drama
próximo, mas ao mesmo tempo enigmático e impenetrável. A referida paixão e a atitude
de compromisso com o cenário criminal e os seus protagonistas são perfeitamente
compatíveis com a distância do objecto e a neutralidade (…). Contrária à empatia é a
atitude indiferente e fatigada, tecnocrática, dos que tratam do fenómeno delituoso como
de qualquer outro problema, esquecendo a sua natureza aflitiva, a sua amarga realidade
como conflito interpessoal e comunitário. Ou a atitude estritamente formalista que vê no
delito um mero comportamento típico previsto na norma penal, ou um antecedente
lógico da consequência jurídica, que fundamenta a inexorável pretensão punitiva do
Estado. E, evidentemente, a resposta insolidária dos que olham para o delito como um
“corpo estranho” na sociedade, produto da anormalidade ou patologia do seu autor. O
crime não é um tumor nem uma epidemia ou doença social, muito menos um corpo
estranho alheio à comunidade ou uma anónima magnitude estatística referida ao fictício
e irreal “delinquente médio”, mas sim um doloroso problema humano e comunitário.

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Quando se afasta o crime da nossa visão (como a grande cidade afasta da sua todos os
vestígios do sofrimento: prisões, hospitais, cemitérios, etc.) tornando-o uma patologia –
o crime e os seus protagonistas – e um anátema, para justificar a intervenção dos
psiquiatras ou o bisturi da pena, ou dissimulando com uma cifrada linguagem estatística
a carga conflitual e aflitiva que está na sua base – pessoal e comunitária –, não ocorre
uma análise científica válida e útil do problema criminal. Pois a referida análise não
pode perseguir prioritária ou exclusivamente o castigo do infractor mas antes outros
objectivos: a explicação convincente do próprio facto delituoso, a reparação satisfatória
dos males que causou e a sua eficaz prevenção ou razoável controlo no futuro».

António GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, In António García-Pablos de Molina/Luís


Flávio Gomes, Criminologia, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 7.ª Edição,
2010, ps. 69-70.

“Another rule would be: inflict as little pain as possible. Look for alternatives to
punishments, not only alternative punishment (…). My position can be condensed into
views that social systems ought to be constructed in ways that reduce to a minimum the
perceived need for infliction of pain for the purpose of social control. Sorrow is
inevitable, but not hell created by man”

Nils CHRISTIE, Limits to Pain – The Role of Punishment in Penal Policy, Oregon:
Wipf & Stock, 2007, p. 11.

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Notas introdutórias

1.   A escolha do tema e do título

A forma como se elege um assunto que vai merecer uma reflexão que não deve
ser superficial durante um período de tempo demasiado longo para se poder considerar
supérfluo parece merecer alguma justificação. O que primeiramente se interroga é,
assim, a razão pela qual, no universo dos muitos temas que poderiam ter sido eleitos
como objecto de uma dissertação de doutoramento em ciências jurídico-criminais, se
escolheu a justiça restaurativa.
Em bom rigor, deve reconhecer-se que foram várias as razões que conduziram à
opção por este tema. Entre as que merecem ser partilhadas porque se não limitam à
poeira dos dias ou a meras subjectividades não explicáveis neste contexto, sublinho
apenas duas.
Em primeiro lugar, destaco uma razão atinente ao próprio sentido do meu
interesse pela questão criminal. Aquilo que desde os momentos iniciais como aluna da
minha primeira aula de direito penal logo me chamou a atenção foi a contradição
inerente a um sistema1 cuja prática admite as mais intensas de todas as limitações de

1
Recorrer-se-á, ao longo da investigação, aos conceitos de “sistema penal” e de “justiça penal” com o
intuito de neles se abranger quer um conjunto de normas, quer um conjunto de teorias, quer um conjunto
de práticas, tendencialmente coerentes e orientados por finalidades não antagónicas. Sendo esta a precisão
que se julga necessária, não se adentrará a reflexão sobre a questão, que se sabe complexa, da definição
de sistema, e utilizar-se-á o conceito de “sistema penal” apesar de não se desconhecer que ele pode ser
classificado como um subsistema do sistema jurídico. Diga-se, apenas, que uma das obras que se julga
poder constituir ponto de partida para o estudo do tema é da autoria de Claus-Wilhelm CANARIS,
Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Teoria do Direito (introdução à edição portuguesa e
tradução de Menezes Cordeiro, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3.ª edição, 2002). Na introdução,
Menezes CORDEIRO (ob. cit., p. LXIV) reconhece que “a ideia de sistema em Direito provoca dúvidas e
discussões. Como hipótese de trabalho – e tal como faz Canaris – é, em regra, utilizada a noção de Kant:
sistema é a unidade, sob uma ideia, de conhecimentos diversos ou, se se quiser, a ordenação de várias
realidades em função de pontos de vista unitários”. Na acepção que se dá a “sistema penal” ao longo deste
estudo tem-se em conta uma certa resposta em sentido amplo a um problema que é o crime. Essa resposta
é dada através de procedimentos que pressupõem normas e que pressupõem teorias. Assim, esta
compreensão de sistema é abrangente na medida em que nele se não vê apenas um conjunto harmonioso
de normas suportado por uma teoria, introduzindo-se-lhe a dimensão de aplicação ao problema. O sistema
é, nessa medida, sistema aberto ao problema, quer porque há de facto uma resposta dada a um problema,
quer porque as próprias estruturas teóricas e normativas foram elas próprias determinadas pelo
pensamento do problema. Ver-se-á, em momento posterior, que uma compreensão do sistema jurídico
associada a uma cisão entre o sistema e o problema esteve no epicentro de críticas à justiça penal que se
julga que condicionaram o aparecimento da proposta restaurativa.

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direitos fundamentais, enquanto a sua teoria se continua a centrar na afirmação da
defesa das liberdades2.
Inicialmente, acreditei que a contradição era apenas aparente: se a defesa de cada
um de nós perante os mais graves dos males impunha a existência das sanções penais,
era então preferível que a sua previsão, aplicação e execução surgissem no contexto
desse sistema construído a partir da ideia nuclear do respeito pelos direitos
fundamentais das pessoas. Todavia, a partir de certa altura comecei a interrogar-me
sobre se essa contradição seria, de facto, meramente aparente e sobre se não haveria
uma relação entre essa contradição e a hoje tão afirmada crise da justiça penal3, crise
essa que parece não ser irrelevante para a compreensão do próprio surgimento da
proposta restaurativa. A pergunta que desde então não deixou de me afligir é a seguinte:
como pode uma doutrina em cujos conceitos vivem séculos de luta pela liberdade (foi
assim que, logo nessas primeiras aulas de direito penal na Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, ouvi dizer) continuar a coexistir com uma prática de privação
da liberdade cujo ritmo, em muitos países, não conhece abrandamento4? Como pode um
pensamento centrado na defesa da liberdade das pessoas conviver com uma prática de
efectivo sancionamento penal que parece não ser por inteiro coerente com as finalidades

2
Tenha-se em conta a afirmação de Winfried HASSEMER de que “o Direito Penal é o instrumento do
Estado que determina os limites da liberdade no caso concreto e, neste sentido, pode dizer-se que ele é um
instrumento da liberdade. É um instrumento da liberdade por meio da repressão. Isto parece um pouco
absurdo mas penso que, vistas as coisas assim, pode compreender-se perfeitamente que a ideia do Direito
Penal era originariamente uma ideia de liberdade. Porque só a liberdade em segurança – não a liberdade
caótica ou a liberdade do estado de natureza – pode sobreviver. E a segurança da liberdade é o Direito
Penal” (“Processo penal e direitos fundamentais”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos
Fundamentais, Coord. Científica Maria Fernanda Palma, Coimbra: Almedina, 2004, p. 18).
3
A conexão que se pode estabelecer entre o surgimento da justiça restaurativa e a ideia de crise talvez
deva ser, porém, mais profunda do que a atinente à afirmação de uma crise apenas da justiça penal.
Deverá antes ponderar-se “a actual circunstância da juridicidade”, no sentido afirmado por António
CASTANHEIRA NEVES, “enquanto essa circunstância nos põe perante uma profunda situação
problemática do direito, a justificar um forte pessimismo – há que falar aí de crise, no exacto sentido
desta categoria, e pelo ruir do modelo ou paradigma moderno-iluminista que por quase três séculos seria a
chave da compreensão e da tentada realização da juridicidade”. Também com grande interesse para
aquele que será o objecto deste estudo, enfatiza o Autor o facto de que “nessa social realidade actual e
futura se estão a forjar efectivamente alternativas ao direito, soluções diferentes e contrárias à solução-
direito (…) para o mesmo problema da nossa existência humano-social”. (in “O direito interrogado pelo
tempo presente na perspectiva do futuro”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXXIII, Universidade
de Coimbra: 2007, ps. 3-4).
4
Segundo Anabela Miranda RODRIGUES (“A propósito da introdução do regime de mediação no
processo penal”, Revista do Ministério Público, ano 27, Jan-Mar. 2006, n.º 105, p. 129), “o sistema penal
é hoje cruzado por algumas ambiguidades e incoerências. Basto-me com referir, neste contexto, o
incremento que continua a conhecer a utilização da pena de prisão, mau grado os esforços desenvolvidos
para inverter ou, pelo menos, travar, este movimento: quer do lado das novas correntes penológicas, que
investem em programas intensivos de monitorização, vigilância e controle; quer do lado dos que
continuam a defender a socialização, que reforçam a utilização de sanções comunitárias como alternativas
à prisão, e não como seu complemento”.

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que aquela teoria assume como sendo as das penas? Neste questionamento havia uma
teoria que apenas se começava a conhecer e havia uma prática que se julgava intuir nas
suas grandes linhas, mas que na realidade se desconhecia.
O reconhecimento das várias insuficiências do saber que prejudicavam a
reflexão sobre aquela contradição que logo se quis compreender esteve na origem
daquela que se pensa ser a segunda razão fundante da escolha da justiça restaurativa
como objecto da investigação. Julgou-se que tais insuficiências poderiam ser em parte
colmatadas por uma análise do pensamento criminológico e por uma análise do
pensamento político-criminal. Pensou-se que assim se dariam passos no sentido de se
lograr uma visão mais global da questão criminal. Essas incursões nos domínios
criminológico e político-criminal, que se iniciaram com a ponderação da categoria
criminológica do “crime de colarinho branco”5, estiveram na origem dos primeiros
contactos com a proposta restaurativa.
A justiça restaurativa como tema para este estudo surge, assim, na exacta
intersecção de dois factores: o relevo atribuído pelo pensamento penal à necessidade de
contenção da punição mas que a prática das instâncias formais de controlo nem sempre
corrobora; a consideração das contemporâneas correntes do pensamento criminológico e
político criminal que se ocupam de modelos de reacção ao crime distintos do modelo
punitivo tradicionalmente associado à justiça penal.
A definição do tema de estudo não tornou incontroversa, porém, a opção atinente
ao título que se lhe deveria dar. As divergências em torno daquilo que é a justiça
restaurativa vertem-se, com frequência, em divergências terminológicas. Assim,
começaram por surgir dúvidas quanto à conveniência de se referir a “justiça
restaurativa” ou antes a “proposta restaurativa”, o que logo se julga vincar a diferença
entre analisar o que já existe e aquilo que, em um plano também político-criminal, se
defende que venha a existir. Por outro lado, não se julgava evidente a opção pelo
conceito de “justiça restaurativa” em detrimento do conceito de “práticas restaurativas”,
desde logo por parecer pertinente a dúvida sobre se a proposta restaurativa se esgota em
um conjunto articulado de procedimentos orientados para uma gestão mais eficiente do
conflito criminal ou se corresponde, antes, a um específico modo de realização da

5
Cfr. Cláudia Cruz SANTOS, “O crime de colarinho branco (da origem do conceito e sua relevância
criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal), Stvdia Ivridica, 56,
Universidade de Coimbra/Coimbra Editora, 2001.

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justiça. Finalmente, eram conhecidas referências a “justiça restaurativa”, a “justiça
restauradora” ou a “justiça reparadora”.
Perante estas e outras dúvidas que se espera que a reflexão posterior contribua
para auxiliar a esclarecer, optou-se pela adopção da solução que se julga mais simples,
escolhendo como título do estudo “a justiça restaurativa”. Achou-se que esta opção, não
sendo inquestionável6, era todavia suportada por dois argumentos fortes: o conceito de
“justiça restaurativa” adquiriu um valor de uso nos já muitos estudos que lhe são
dedicados, não só entre nós, mas sobretudo no plano internacional, parecendo
desaconselhável, em um momento em que aquilo que se pretende é uma certa
sedimentação de conhecimentos, vir propor outras formulações; a eleição deste título
não deve prejudicar o questionamento, ao longo do estudo, das várias questões
suscitadas.
Depois deste esclarecimento quanto ao título principal, cumpre ainda referir que
a ele acrescem – em jeito de subtítulo e também nas formulações mais sintéticas a que
se conseguiu chegar – as três interrogações principais em que se julgou que o estudo da
justiça restaurativa devia ser decomposto (porquê, para quê e como). Cada uma dessas
interrogações constituirá objecto de uma das três partes desta dissertação, mas só
através da consideração integrada de todas as respostas se logrará, espera-se, encontrar
um sentido coerente de resposta para a pergunta “o que é a justiça restaurativa?”.
Deste modo, procurar-se-á em primeiro lugar compreender o que é a justiça
restaurativa através da ponderação das circunstâncias da sua origem. A pertinência da
questão mostra-se através da mera verificação da dimensão das divergências sobre o
conceito. Assim, sob a designação “o porquê” da justiça restaurativa, esconde-se a
pretensão de compreensão do conceito de justiça restaurativa a partir de uma reflexão
sobre as razões que condicionaram o seu surgimento.
De seguida, na segunda parte deste estudo, enfrentar-se-á a questão que também
se julga essencial do modo como esta outra forma de responder ao crime deve
relacionar-se com a resposta que a justiça penal já dá ao crime. Terá, ademais, de se
interrogar a sua compatibilidade com os princípios que devem estruturar os modelos de
6
Como exemplo de uma opção terminológica diversa, considere-se a referência feita à justiça reparadora
por Mylène JACCOUD (“As medidas reparadoras”, Tratado de Criminologia Empírica, coord. Marc Le
Blanc/Marc Ouimet/Denis Szabo, Lisboa: Climepsi Editores, 2008, p. 581). Ainda que sob distinta
designação, a Autora refere-se aproximadamente a um mesmo conteúdo, na medida em que entende que
“a justiça reparadora pode ser definida como uma forma de justiça que privilegia a reparação dos danos
vividos na sequência de um conflito ou de uma infracção; favorece, idealmente, a participação das partes
directamente atingidas pelo acontecimento problemático para que encontrem em conjunto uma solução e
modos satisfatórios de reparação do conflito”.

20
reacção ao delito, o que porventura não iludirá a necessidade de diferenciação dos
problemas suscitados por respostas ao crime punitivas ou não punitivas. Procurar-se-á,
ainda, distinguir a proposta restaurativa da justiça penal através de uma reflexão sobre
os seus espaços de coincidência e sobre os principais elementos do seu desencontro. De
qualquer modo, julga-se que é já possível identificar a ideia forte que se esconde por
trás daquela que será a parte II do estudo: o paradigma penal de reacção ao crime, de
vocação liberal e herdado do iluminismo, não tem sido desafiado apenas pelas
exigências da dita “sociedade do risco”7 – com as consequentes ameaças, só a título de
exemplo, para a concepção da função do direito penal como protecção subsidiária de
bens jurídicos ou para a trave-mestra que é o princípio da legalidade da lei penal –, mas
surge também posto em causa pela negação da exclusividade da dimensão pública do
crime. Desta negação decorrem dificuldades para a justificação de opções tão diversas
como as atinentes às finalidades da pena ou à oficialidade da promoção processual.
Mas a afirmação da existência de uma dimensão interpessoal do crime que sustentaria
um procedimento de pacificação do conflito alicerçado no consenso e alheio à coacção
não deixa de ser problemática, ainda, sob o enfoque de outros princípios,
nomeadamente os da culpa ou da reserva de juiz.
A verificação destas linhas de tensão para um determinado modelo de reacção ao
crime não terá de significar a sua absoluta negação, mas pressuporá uma sua certa
evolução8. Nesta medida, a proposta restaurativa não pode deixar de se confrontar (para
depois de conciliar) com o direito penal de protecção do bem jurídico e o direito

7
O conceito de “sociedade do risco” foi sobretudo divulgado a partir do pensamento de Ulrich BECK,
que enfatizou o modo como uma modernização demasiado bem sucedida teria contribuído para a criação
de riscos ainda não inteiramente compreendidos. A transição da sociedade industrial para a sociedade do
risco caracteriza-se pela incapacidade de avaliação inicial dos próprios riscos com uma ausência de
conhecimento dos seus processos causais. A teoria da sociedade do risco surge precisamente com a
pretensão de crítica pela própria sociedade do seu funcionamento, reflectindo-se sobre a irracionalidade –
por surgir como uma ameaça à vida – de um certo modelo de desenvolvimento (Cfr. Ulrich BECK, World
Risk Society, Cambridge: Polity Press, 1999, p. 73 ss). O que aqui se quer enfatizar é, apenas, que a
“pressão” a que um certo modelo de justiça penal vem sendo sujeito tem múltiplas origens e
manifestações. Assim, se o pensamento das alternativas sustentado pela proposta restaurativa se
relacionava, numa fase inicial, sobretudo com uma criminalidade dita “tradicional” e de menor gravidade,
existe uma outra linha de fractura associada à configuração de “alternativas” àquela reacção penal gizada
pelo Iluminismo também no que respeita à criminalidade “nova” e mais grave. A este propósito, Ulrich
SIEBER refere o surgimento de “um novo direito da segurança”, por força de um reconhecimento dos
limites funcionais do direito penal face a riscos cada vez maiores e mais complexos (“Limites del derecho
penal”, Revista Penal, n.º 22, Julho de 2008, sobretudo p. 138 ss).
8
Sobre o assunto e não enjeitando liminarmente uma certa superação do paradigma do direito penal
iluminista que não tem de equivaler, porém, ao abandono dos seus postulados essenciais, cfr. Jorge de
FIGUEIREDO DIAS, «O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco”», Estudos
em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Stvdia Ivridica 61, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p.
591.

21
processual penal que é garantista e “assunto da comunidade. A justiça restaurativa
poderia ser vista, sob certa perspectiva, como um dos factores de erosão daquele modelo
iluminista e liberal. Procurar-se-á sustentar que não é necessariamente assim.
Finalmente, na terceira e derradeira parte do estudo, considerar-se-ão as práticas
restaurativas, mas em moldes nunca desligados da ponderação das duas questões
anteriores. Como se verá, o próprio conceito de justiça restaurativa (analisado na parte
I) não é alheio à problemática das práticas restaurativas (tratada na parte III), que lhe
são em certo sentido prévias, para além de que estas práticas têm hoje de ser modeladas
a partir de uma compreensão segura dos seus fundamentos – o que marca a ponte entre a
primeira e a terceira parte da investigação. Ademais, traçada uma orientação geral
quanto aos distintos sentidos da justiça restaurativa e da justiça penal e os seus
autónomos “para quê” (na Parte II), a definição dos vários modos pelos quais os
diversos procedimentos se interligarão (na Parte III) depende em muito da avaliação
exacta das respectivas finalidades – o que vinca a conexão entre as partes II e III do
estudo.
Dedicar-se-á particular atenção à mediação penal, que se foi tornando, pelo
menos nos países do sistema dito europeu continental, a principal (ou, em alguns casos,
a única) prática restaurativa e questionar-se-ão os moldes em que o legislador português
passou a admitir, desde 2007, a denominada mediação penal “de adultos”. Procurar-se-á
demonstrar que a “redução” da mediação penal a mecanismo de diversão processual no
âmbito dos crimes menos graves não é uma inevitabilidade para, de certo modo, se
retomar em outros moldes – vertendo na prática da justiça restaurativa uma certa teoria
da justiça restaurativa, e averiguando da sua coerência – a questão do fundamento e das
finalidades da intervenção restaurativa.
Não se desconhece que na eleição dos assuntos a estudar e na construção dos
argumentos que visam sustentar determinada posição vai já implícito um certo ponto de
vista9. Esse ponto de vista assume relevância hermenêutica – na medida em que pode
condicionar a própria interpretação dada às ideias alheias – e influencia as opções
metodológicas. Assim, o reconhecimento de que a actividade de investigação é domada

9
Maria Fernanda PALMA vinca a necessidade de, para que as questões sejam formuladas com rigor, se
justificar perante os destinatários a sua eleição. Assim, se a definição das questões “não deverá ser pura
expressão do poder de quem questiona”, já parece adequado que as mesmas sejam expostas e aclaradas
em função, também, da “experiência pessoal ou de uma convicção íntima” de quem as formula, pelo
menos em um primeiro momento (“Constituição e Direito Penal (As Questões Inevitáveis)”, in
Perspectivas Constitucionais (nos 20 Anos da Constituição de 1976), org. de Jorge Miranda, vol. II,
Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 227.

22
ou aprisionada pelos diques que são as nossas próprias representações do mundo e da
vida impele a que se parta para esta concreta investigação sempre com as palavras de
Karl POPPER (no contexto de uma reflexão sobre o historicismo) em mente: «a
selecção do tema tratado é sempre muito mais uma questão de escolha pessoal do que o
seria, digamos, num tratado científico. De certo modo, porém, esta diferença é uma
questão de grau. Mesmo uma ciência não é meramente um “corpo de factos”. Será, no
mínimo, uma colecção, e como tal depende dos interesses do coleccionador, depende de
um ponto de vista. Em ciência, esse ponto de vista é normalmente determinado por uma
teoria científica; isto é, seleccionamos dentre a infinita diversidade de factos e dentre a
infinita variedade de aspectos dos factos aqueles factos e aqueles aspectos que são
interessantes porque estão ligados a uma dada teoria científica mais ou menos
preconcebida. Certa escola de filósofos do método científico concluiu, a partir de
considerações como estas, que a ciência argumenta sempre num círculo e que “damos
connosco a perseguir as nossas próprias caudas”, segundo a expressão de Eddington,
visto que podemos extrair da nossa experiência factual aquilo que nós mesmos lá
pusemos, sob a forma de teorias».
Também por se reconhecer o risco afirmado por Karl Popper se quis deixar
claro, desde o início, qual era o ponto de vista de que se partia. Procurar-se-á, porém, ao
longo deste estudo confrontá-lo com outros pontos de vista, encarando-o como uma
hipótese de trabalho que, se condicionou a posição e a orientação do holofote10, não
deverá lograr impedir a mobilidade da luz também na direcção de espaços que
permaneciam obscuros.

2. A delimitação do problema e a sequência da análise

Apesar de serem desde há algumas décadas conhecidas várias tendências de


crítica da justiça penal – relembrem-se, quer pelo nível de sistematização que atingiram,

10
Karl POPPER refere a “teoria da ciência holofote” para ilustrar a sua ideia de que “todas as descrições
científicas de factos são altamente selectivas” (e, por maioria de razões, o serão as ponderações mais de
ideias do que de factos inerentes a estudos com o objecto que é o objecto deste estudo). Para o Filósofo,
«a situação poderá ser melhor entendida se a compararmos com um projector (a “teoria da ciência
holofote”, como normalmente a designo, em contraposição à “teoria do balde da mente”). O que o
holofote torna visível dependerá da sua posição, da orientação que lhe dermos e da sua intensidade, cor,
etc., embora também dependa, em larga escala, das coisas iluminadas por ele. Similarmente, uma
descrição científica dependerá, em ampla medida, do nosso ponto de vista, dos nossos interesses, que
estão, em regra, relacionados com a teoria ou a hipótese que pretendemos testar; mas também dependerá
dos factos descritos». Cfr. Karl POPPER, A Sociedade Aberta e os seus Inimigos, vol. II, Lisboa:
Fragmentos, 1993, trad. de Teresa Curvelo, ps. 255-6.

23
quer pelo impacto que tiveram, correntes do pensamento criminológico tão influentes
como o foram, e de alguma forma continuam a ser, a criminologia crítica, o
abolicionismo penal ou a vitimologia – pode afirmar-se que o que agora há de novo, e
com crescente pujança a partir do final do século passado, é a mutação desse conjunto
de objecções e de repúdios num movimento – criminológico mas, para além disso,
político-criminal – organizado.
Dito da forma que se pretende mais simples: nos últimos anos, os grandes
movimentos de contestação do sistema penal – que passam (I) pelo acentuar do cariz
criminógeno da intervenção penal sob o ponto de vista da sua inaptidão para a não
dessocialização do agente, (II) pelo realçar da desconsideração dos interesses da vítima
na reparação em sentido lato ou (III) pelo sublinhar da incapacidade da justiça penal
para assegurar a segurança e a pacificação de comunidades com índices de
criminalidade frequentemente crescentes11 – foram objecto de uma consideração

11
Heinz MESSEMER e Hans-Uwe OTTO, procurando explicar as origens da proposta restaurativa,
fazem-na remontar à década de setenta e ao “crescente cepticismo sobre os supostos efeitos de prevenção
especial e geral das reacções criminais formais” (“Restorative Justice: Steps on the Way Toward a Good
Idea”, Restorative Justice on Trial, Pitfalls and Potentials of Victim-Offender Mediation – International
Research Perspectives, Eds. Messmer/Otto, Dordrecht: Kluwer, 1992, p. 1). A ideia da ineficácia das
sanções criminais é vincada por vários Autores, nomeadamente por Tulio PADOVANI (L’Utopia
Punitiva, Milão: Giuffré, 1981, p. 66), que entende que o fenómeno criminal não parece ser influenciado
ou controlado pelas penas criminais e nomeadamente pela privação da liberdade. A crítica à justiça penal
que se refere por se julgar que ela é essencial à compreensão do surgimento da proposta restaurativa
deveria, em rigor, ser apresentada no plural. Não se trata de uma, mas de várias críticas e de várias crises
que se vêm genericamente associando a diversos factores, como a crise do Welfare State ou a “crise do
modelo tradicional de justiça”. No que aqui agora sobretudo interessa, importa referir que essas crises
devem ser relacionadas com um problema de legitimação da intervenção penal, problema esse que se
avoluma quando a legitimidade está associada (como se julga que deve estar) a critérios funcionais de
necessidade e de utilidade sociais que começam a ser questionados. Sobre este conceito de legitimação da
intervenção penal, cfr. a afirmação de Jorge de FIGUEIREDO DIAS de que “não pode hoje ser vista
como unicamente advinda de qualquer ordem transcendente e absoluta de valores, mas tem de ser coada
por critérios funcionais de necessidade (e de consequente utilidade) social” (Direito Penal – Parte Geral,
Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora: 2007, p. 31). Muito recentemente, Jorge de FIGUEIREDO DIAS, em
um estudo onde se pondera a possibilidade de reconhecimento dos “acordos sobre a sentença”, afirma que
“o povo português perdeu a confiança no seu sistema de justiça, em particular da justiça criminal, e este
tem-se revelado incapaz de estabilizar as expectativas comunitárias na sua correcção e funcionalidade”. O
Autor elenca, no mesmo estudo, um conjunto de “sintomas da crise avassaladora que em Portugal
desabou sobre o processo penal” (Acordos sobre a Sentença em Processo Penal – O “Fim” do Estado de
Direito ou um Novo “Princípio”?, Porto: Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, 2011, p.
13 ss). Na reflexão sobre a ciência do direito penal, também Enrico PALIERO afirma a existência de
várias crises, distinguindo três espécies principais: uma crise “de transparência” face a certa criminalidade
especialmente “vistosa”; uma crise de “incapacidade”; uma crise de “complexidade” (“La
autocomprensión de la ciencia del derecho penal frente a los desafios de su tiempo - comentario”, in La
Ciencia del Derecho Penal ante el Nuevo Milenio, coord. da versão alemã: Eser/Hassemer/Burkhardt/;
coord. da versão espanhola: Muñoz Conde, Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 106-7). No panorama
criminológico, as várias crises (a da própria sociedade, a do Estado de Direito social, a da justiça penal, a
da própria criminologia…) têm sido objecto de grande debate; a título de exemplo, considere-se apenas a
afirmação de Georges PICCA de que «houve um tempo, não muito distante, em que era comum a
denúncia, no mundo ocidental da “crise” da política criminal, depois da crise da sociedade. Essa crise não
terminou: ela apenas se instalou, traduzindo uma certa inadaptação da justiça penal ao controlo das

24
concertada e articulada que veio a dar lugar a uma proposta de resposta ao crime que
se pretendeu diversa. A esse novo modelo – que reluto em denominar como modelo de
justiça penal, por não parecer evidente que o seu objectivo primeiro seja o de encontrar
a solução justa para o caso concreto à luz das finalidades penais, ainda que talvez se não

evoluções contemporâneas» (“Pour une criminologie d’avenir”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Jorge de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra Editora: 2010, p. 1338-9). O que também se julga, porém, é
que apesar de haver períodos de “exacerbamento das crises” (ou, por vezes, das análises que delas se
fazem), a incontornabilidade da criminalidade como problema social esteve, ao longo dos tempos, com
frequência associada ao apontar da ineficácia da justiça penal. Ainda a título de exemplo, não deixam de
ser a tal propósito esclarecedoras as palavras de António CASTELLO BRANCO publicadas no já
longínquo ano de 1888: “está prestes a sumir-se na voragem do tempo o século XIX, e o problema da
criminalidade ainda não alcançou uma solução definitiva (…); as estatísticas, com fria e implacável
severidade, demonstram que os exforços teem sido frustrados, que o crime prevalece contra a penalidade
e que, saindo ovaante da lucta, segue o seu caminho insidioso e manchado de sangue, acompanhando o
movimento ascensional da civilisação”. Depois de associar a “inneficacia da pena” ao aumento da
reincidência, reconhecido por “eminentes criminalistas europeus”, menciona a “necessidade instante de
um novo estudo do delicto e dos systemas penaes mais efficazes para a repressão” (in Estudos
Penitenciários e Criminaes, Lisboa: Typographia Casa Portugueza: 1888, p. 7-8). Aquilo que se pretende
significar é que não existe nenhuma pretensão de afirmar as mencionadas crises da justiça penal dos
nossos tempos como únicas ou excepcionais, mas tão-somente a necessidade de as referir e ponderar,
precisamente porque, sendo as destes tempos, transportam em si um potencial de crítica e de transgressão
que é útil à evolução que se espera da justiça penal dos tempos futuros. Entre nós, vários estudos recentes
têm sido orientados para a reflexão sobre a “crise da justiça” no seu todo, outros especificamente para a
crise da justiça penal. Dedicada à reflexão sobre a crise da justiça, cfr., a título de exemplo, a obra (que
reúne textos de vários autores) de Jorge Bacelar GOUVEIA e António Barbas HOMEM (O Debate da
Justiça – Estudos sobre a Crise da Justiça em Portugal, Lisboa: Vislis, 2001, ps. 8-9), crise esta que
revela, segundo este último, também uma crise da democracia, na medida em que “o regime democrático
não foi capaz de gerar um sistema de justiça consensual para a maioria dos seus cidadãos”. Aquilo que
neste momento se quer sublinhar – até na medida em que introduz reflexão, remetida para momento
posterior, sobre uma certa incompatibilidade da proposta restaurativa com o sistema moderno-iluminista
da juridicidade – é o questionamento da crise deste modelo. Nas palavras de António CASTANHEIRA
NEVES, «o que haverá de trazer-se aí à consciência crítico-reflexiva é pura e simplesmente a crise (…)
da concepção ou sistema (comummente se diria “paradigma”) moderno-iluminista da juridicidade.
Concepção ou sistema esses a centrar compreensivelmente (e criticamente também) em duas dimensões
capitais, e que lhe constituíam respectivamente o seu sentido do direito, por um lado, e o seu modelo do
pensamento jurídico, por outro lado. O sentido do direito ia no legalismo, o modelo do pensamento
jurídico traduzia-o o normativismo» (in “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do
futuro”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXXIII, Universidade de Coimbra: 2007, p. 7). Se a
ideia de crise encontra refracções nas várias ciências jurídicas e também nas ciências criminais, não será
irrazoável, em um estudo sobre a proposta restaurativa, evidenciar uma especial crise do direito
processual penal. Nas exactas palavras de Manuel da COSTA ANDRADE, “dificilmente se encontraria
marcador mais consensual para caracterizar a experiência jurídica contemporânea no domínio da justiça
criminal do que a ideia de crise. Uma crise que avulta sobretudo do lado do processo penal”. O Autor
refere-se à crise do paradigma processual “que mergulhava as suas raízes na ruptura histórico-cultural,
civilizacional e epistemológica do iluminismo e crescera ao longo dos últimos séculos, ao ritmo da
afirmação e das vicissitudes do Estado de Direito” [“Métodos ocultos de investigação (plädoyer para uma
teoria geral)”, Que Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário
(dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra
Editora, 2009, p. 525-7]. Uma nota última para vincar a necessidade de, na reflexão sobre as crises da
justiça penal, não se desconsiderar a problemática da actuação dos media sobre a consciência colectiva,
contribuindo aqueles para uma entrada da justiça no “quotidiano dos cidadãos”, que criam uma relação
“emotiva” com o seu funcionamento (cfr. Maria Fernanda PALMA, Direito Constitucional Penal,
Coimbra: Almedina, 2006, p. 82).

25
deva bastar com uma solução manifestamente injusta sob aquele distinto enfoque –
chamaram alguns autores o novo paradigma restaurativo12.
A ideia de que o pretendido é muito mais do que uma simples reconsideração
superficial do sistema de justiça penal actual é evidente no pensamento dos cultores
daquele paradigma restaurativo. As palavras de Ezzat FATTAH13 são, a esse propósito,
particularmente elucidativas. O Autor começa por inquirir se há alguma altura melhor
do que o princípio de um novo milénio para reexaminar e questionar as “vacas
sagradas” da sociedade. Afirma que o actual sistema de justiça criminal é “uma dessas
instituições arcaicas e antiquadas”, um “vestígio de uma era passada”, que
manifestamente não cumpre os seus objectivos. Considera, de seguida, que “apesar de a
evolução das ciências sociais ter sido bastante notável, a lei criminal e o sistema de
justiça criminal permanecem de algum modo congelados no tempo. Continuam a
basear-se e a operar de acordo com a filosofia abstracta e as noções metafísicas do
Iluminismo”14.
O movimento restaurativo desponta, assim, com uma pretensão de resposta ao
crime diferente da fornecida pelo sistema penal estadual (e, na opinião dos seus
defensores, uma resposta melhor), alicerçada na recusa do autoritarismo e da coerção e
na promoção de soluções mais humanistas que garantam (I) a reparação do(s) mal(es)
sofrido(s) pela vítima; (II) a reintegração do agente no grupo através de uma sua
participação responsabilizante no processo de busca da solução; (III) o envolvimento da
comunidade na diluição do conflito em moldes que demonstrem o seu empenhamento
na satisfação das necessidades das pessoas concretamente fragilizadas e que permitam a
pacificação individual e colectiva.

12
Entre nós, Jorge de FIGUEIREDO DIAS [Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Questões
Fundamentais; A Doutrina Geral do Crime, 2.ª ed., Coimbra Editora: 2007, p. 59] refere a existência de
um «”novo” conjunto de ideias, radicado em uma concepção emergente da política criminal» e reconhece
que “ele deve e pode, na verdade, integrar-se num mais amplo paradigma político-criminal que começa a
correr sob o designativo da justiça restaurativa”.
13
Ezzat FATTAH, “From philosophical abstraction to restorative action, from senseless retribution to
meaningful restitution: just deserts and restorative justice revisited”, Restorative Justice – Theoretical
Foundations, Eds. Elmar WEITEKAMP/Hans-Jürgen KERNER, Portland: Willan Publishing: 2002, ps.
308-9.
14
A necessidade de uma reponderação do sentido e da forma da intervenção penal é assumida também
por muitos cultores da dogmática penal. Veja-se, a título de exemplo, o que afirma Luigi STORTONI
sobre a oportunidade de, no umbral do novo milénio, se reconsiderarem “as interrogações de fundo do
direito penal para verificar de novo o seu papel e a sua razão de ser”. O Autor refere ainda as mudanças
inexoráveis que “afectam precisamente a justificação do instrumento penal” e considera que “a própria
função da pena entra em crise pondo-se em causa a sua própria superação e, em consequência, também a
obsolescência do próprio direito penal” (in apresentação de Crítica y justificación del derecho penal en el
cambio del siglo, El análisis crítico de la Escuela de Frankfurt, coord. Arroyo Zapatero/Neumann/Nieto
Martín, Colección Estúdios, Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2003, p. 13).

26
Um dos problemas centrais do estudo que agora se inicia surge, porém, na
medida em que, apesar de na sua origem o movimento restaurativo assumir de forma
clara a sua inspiração abolicionista, pretendendo apresentar-se como uma alternativa a
um inevitavelmente mau sistema de justiça penal, a orientação actual vai
dominantemente no sentido de se aceitar – e mesmo defender – a convivência das duas
formas de resposta ao crime. Neste sentido, o problema já não será tanto o de encontrar
uma resposta ao crime melhor do que a resposta dada pela justiça penal, mas antes o da
compreensão da necessidade de uma resposta ao crime diferente daquela dada pela
justiça penal. A defesa da imprescindibilidade quer do sistema penal estadual15, quer das
práticas restaurativas, desencadeia a reflexão sobre as finalidades de cada uma daquelas
respostas, aquilo que as distingue e os respectivos âmbitos de aplicação. A reflexão
sobre a justiça restaurativa supõe assim, necessariamente, uma reflexão sobre o próprio
sistema penal16.
Caso se logre mostrar uma qualquer efectiva diferença17 e mostrar que a justiça
restaurativa pode satisfazer necessidades a que o sistema penal não logra corresponder
(ou verificando-se, antes, que as práticas restaurativas podem, através de um outro
procedimento, contribuir para realizar as finalidades que o sistema penal persegue), logo

15
Neste direito penal que se associa ao pensamento iluminista, o Estado surge, como relembra Winfried
HASSEMER, quer no papel de quem protege a liberdade, quer no papel de quem a limita: “a nossa
tradição interpreta o Estado, de forma gráfica e utilizando a expressão do representante da filosofia
política, Thomas Hobbes, como a encarnação do Leviathan bíblico. O Leviathan, que da mesma forma
ameaça e protege os seus cidadãos, tem que ser domado, preso com uma corrente. Os direitos
fundamentais dirigem-se, como direitos de garantia, contra o Leviatham ameaçador e os cidadãos
levantam-se em defesa da sua liberdade. O Estado é aquele que reparte tanto esperança como temor, que
cuida e castiga, cuja omnipotência tem que ser quebrada e conseguir através da lei vigente que se
transforme em servidor das liberdades dos cidadãos. Esta é a tradição da filosofia do Estado liberal” (in
Persona, Mundo y Responsabilidad – Bases para una Teoria de la Imputación en Derecho Penal, Trad.
de Francisco Muñoz Conde e Maria Díaz Pita, Valência, tirant lo Blanch: 1999, ps. 269-270).
16
Cândido da AGRA e Josefina CASTRO (“Mediação e justiça restaurativa: esquema para uma lógica do
conhecimento e da experimentação”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano II,
2005, Coimbra: Coimbra Editora, p. 111) concluem que “qualquer experiência nesta matéria deve
contemplar, no processo de avaliação, uma componente de análise e reflexão que interrogue e integre os
dados recolhidos numa visão filosófica acerca dos princípios e objectivos da justiça penal”.
17
Um dos vectores metodológicos para a compreensão da justiça restaurativa não poderá deixar de ser o
da sua comparação com a justiça penal, através de uma ponderação quer das semelhanças, quer das
diferenças. E relembra-se, a este propósito, a afirmação de Miguel MORGADO (Autoridade, Lisboa:
Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010, p. 51) de que “um dos maiores erros na apreensão da
realidade histórica e política consiste em desconsiderar as diferenças e as distinções. É certo que temos
tudo a perder quando impomos diferenças ao que é semelhante. No entanto, também nos afastamos da
lucidez quando perdemos de vista as diferenças do que parece ser semelhante mas não o é. É pela
compreensão das distinções, muitas vezes subtis, e no respeito por elas, que começa a abertura à
realidade”. Como se procurará mostrar ao longo deste estudo, a problemática da distinção entre a justiça
penal e a justiça restaurativa é muito mais complexa do que se poderia julgar, sobretudo por força da
tendência manifestada na evolução de cada uma das propostas de reacção ao conflito para uma certa
importação de finalidades que em princípio lhes seriam alheias.

27
se questionará de que modo a autonomia daquelas duas formas de encarar e de reagir à
criminalidade se repercutirá em um modelo de articulação do seu simultâneo
funcionamento.
Essa forma de articulação entre a resposta penal ao crime e a resposta
restaurativa ao conflito, por supor uma intervenção estadual ao nível mais estruturante
das próprias opções de política criminal e por implicar um envolvimento do Estado em
programas instrumentais do ideário restaurativo, traz consigo a rejeição da compreensão
da justiça restaurativa enquanto mecanismo de privatização da justiça penal18.
Ainda que assim seja, ainda que não esteja em causa uma privatização da
reacção ao crime, parece certo que, para além da já mencionada reflexão sobre os fins
da intervenção, os novos ventos soprados pelo paradigma restaurativo trazem
necessariamente a debate outras opções estruturantes do nosso sistema penal de reacção
ao crime: refiro-me, sobretudo, à irrenuciável natureza pública das infracções
criminais19 e à consequente indisponibilidade da acção penal vertida nos princípios –

18
Veja-se, a título de exemplo, a imposição de os Estados-Membros promoverem, até 22 de Março de
2006, a mediação nos processos penais relativos a infracções que considerem adequadas para este tipo de
medida, devendo os acordos resultantes da mediação ser tidos em conta nesses processos [art. 10.º da
Decisão-Quadro do Conselho de 15 de Março de 2001 (2001/220/JAI). Mais recentemente, vd. a
Directiva 2012/29/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2012, que substitui
aquela Decisão-Quadro de 2001]. Nesta linha de pensamento, José ARZAMENDI procura sossegar
aqueles que temem que a justiça restaurativa conduza a “uma pura reprivatização do Direito penal”,
afirmando que a mediação que é instrumento da justiça restaurativa “não é uma manifestação do
pluralismo jurídico, mas sim uma mediação reparadora (…) submetida ao controlo público e
desenvolvida, por isso, com intervenção estadual no seio de uma política criminal coerente e
democrática” (cfr. prólogo à obra de Gema Varona MARTÍNEZ La mediación reparadora como
estratégia de control social. Una perspectiva criminológica, Granada: Editorial Comares, 1998). Também
entre o pensamento que na Alemanha se tem dedicado à justiça restaurativa se encontra a advertência
sobre os perigos de uma privatização da resposta ao crime através de uma excessiva valorização dos
interesses da vítima em detrimento daqueles do agente. Frieder DÜNKEL, por exemplo, refere o perigo
dessa tendência para a privatização em determinados modelos de mediação penal exclusivamente
orientados para as vítimas. E não deixa de vincar, para além dos princípios constitucionais prejudicados
por essa tendência, a possibilidade de ela nem sequer acabar por beneficiar muitas vítimas (“The victim in
criminal law – on the way from an offender-related to a victim-related criminal justice?”, Victim Policies
and Criminal Justice on the Road to Restorative Justice: Essays in Honour of Tony Peters, ed. E.
Fattah/S. Parmentier, Leuven: Leuven University Press, 2001, p. 167 ss).
19
No contexto de uma reflexão sobre o futuro do direito processual penal, Jorge de FIGUEIREDO DIAS
afirma que «se alguma previsão me atrevo a fazer é só a de que o carácter público do processo penal,
assente na natureza processualmente indisponível dos bens jurídicos (especialmente dos bens jurídicos
“colectivos” contra os quais aquela criminalidade atenta), sofrerá uma nova reacentuação, banindo
progressivamente características “dispositivas” do processo penal e cavando ainda mais o fosso que o
separa do processo civil» (“O Processo Penal, Hoje – Problemas Doutrinários Fundamentais”, Actas da
Conferência Internacional de Processo Penal – Os Desafios do Século XXI, Macau: Centro de Formação
Jurídica e Judiciária, 2007, p. 62). A um primeiro olhar, poder-se-ia julgar que o fortalecimento da justiça
restaurativa contraria esta tendência. Porém, dever-se-á ter em conta que, quando se considera que a
justiça restaurativa tem notas de diversidade face à justiça penal, a expansão daquela não tem de colidir
com a natureza pública desta. Para além de que, dentro do próprio direito processual penal, se deverão
distinguir dois conjuntos merecedores de respostas tendencialmente diferenciadas: um, atinente à
criminalidade mais grave, em que as características de um processo público são inarredáveis; um outro,

28
atinentes à promoção processual – da oficialidade e da legalidade, mas também a
outros princípios tão relevantes como o da culpa, da reserva de juiz ou da publicidade
do processo20.
Desvendado aquele que vai ser o objecto do estudo que agora se inicia, torna-se
desnecessária a justificação da sua natureza não essencialmente dogmática. As águas
por onde se navegará serão essencialmente as da política criminal21 e as da
criminologia22, sem prejuízo de, em certos momentos, haver que adentrar – de forma

relacionado com a criminalidade de pequena e média gravidade, em que algumas concessões ao


“princípio do dispositivo” são admissíveis.
20
Na medida da sua possível (mas ainda por demonstrar) incoerência com princípios que conformam o
contemporâneo sistema de justiça penal, a justiça restaurativa poderia ser um outro sintoma da crise da
justiça penal (a crise que estaria na origem da proposta restaurativa), e ao mesmo tempo um seu factor de
expansão (a crise potenciada pela aplicação da justiça restaurativa). Essa crise é ampla nas suas raízes e
nas suas manifestações, chegando Claus ROXIN a afirmar, no âmbito de uma reflexão sobre a evolução
do direito processual penal alemão, que “descrever o processo penal como estando em crise é, ainda
assim, uma forma embelezada de o caracterizar”. A afirmação é proferida a propósito da
“desformalização”, através da expansão das soluções de oportunidade e, ainda, dos acordos entre o
ministério público, a defesa e o tribunal sobre a sentença (“Sobre o desenvolvimento do direito processual
penal alemão”, Que Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário
(dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra
Editora, 2009, p. 392).
21
É clara a manifestação da preferência, para o futuro e nas exactas palavras de Jorge de FIGUEIREDO
DIAS, por uma “política criminal (…) da qual seja elemento essencial a substituição, em medida
progressivamente mais ampla e até ao limite possível, de uma justiça penal sobretudo punitiva por uma
justiça penal também restaurativa”. E o Autor acrescenta, esclarecendo o seu pensamento, que “a política
criminal que tenho em vista, indo mais longe e mais fundo, deverá implicar a limitação (e, do mesmo
passo, a completação) do próprio processo penal pelo recurso a mecanismos restaurativos” (“O processo
penal português: problemas e prospectivas”, Que Futuro para o Direito Processual Penal?, coord. de
MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia,
Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 815).
22
Mesmo em uma reflexão estruturalmente criminológica e de política criminal impor-se-ão, segundo se
crê, algumas breves incursões em domínios da dogmática penal. Por um lado, porque é impossível
pensar-se em como deveria ser sem se fazer uma análise crítica do que é. No desenvolvimento desta ideia,
porque a criminologia teorética crítica inclui a justiça penal no seu objecto de estudo, e esta não pode ser
compreendida se totalmente desligada da dogmática. Mas também, ainda por outros e em simultâneo pelo
mesmo lado, porque, nas palavras de Jorge de FIGUEIREDO DIAS, «política criminal, dogmática
jurídico-penal e criminologia são assim, do ponto de vista científico, três âmbitos autónomos, ligados
porém, em vista do integral processo da realização do direito penal, em uma unidade teleológico-
funcional. É a esta unidade que continua hoje a convir o antigo conceito de von Liszt de “ciência conjunta
do direito penal”» [in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Questões fundamentais. A doutrina geral do
crime, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 41). Ainda que assim seja, é fácil de compreender a
predominância da criminologia e da política criminal em um estudo que tem por objecto a justiça
restaurativa e os desafios que representa para o sistema penal: (I) o paradigma restaurativo deve ser visto
como uma criação que resulta de uma síntese reconstrutiva de algumas das mais influentes correntes do
pensamento criminológico do século XX; (II) o diálogo crítico entre distintos modos de reacção ao crime
inscreve-se bem naquela que FIGUEIREDO DIAS considera ser a função última da política criminal, a de
“servir de padrão crítico tanto do direito constituído, como do direito constituendo, dos seus limites e da
sua legitimação. Neste sentido se deverá compreender a afirmação de que a política criminal oferece o
critério decisivo de determinação dos limites de punibilidade e constitui, deste modo, a pedra angular de
todo o discurso legal-social da criminalização/descriminalização” (últ. ob. cit., p. 35). Sob o ponto de
vista metodológico, esclareça-se, ainda, a concordância com Augusto SILVA DIAS (mesmo que perante
diverso horizonte problemático) quanto à conveniência de um “pluralismo metodológico”, relacionado
com uma “ligação profícua entre o pensamento jurídico-dogmático e o pensamento jurídico-filosófico e
jurídico-sociológico”. E acompanhe-se ainda o Autor na convicção de que “tal caminho é necessário para

29
necessariamente breve – alguns temas da filosofia penal, da história do direito penal, da
doutrina do Estado, do direito penal em sentido estrito e do direito processual penal23.
Esclareça-se, ainda nesta sede, uma outra limitação: num estudo onde quer a temática
quer os instrumentos conceptuais são essencialmente criminológicos, será apenas da
denominada criminologia teorética que se tratará.
Para além disso, assumem-se desde o início os riscos – como o da possível
superficialidade na consideração de algumas questões – inerentes a um estudo que
supõe a abordagem de matérias que se espraiam por várias e diversas “gavetas do
pensamento”. Em vez de se escolher tentar abrir apenas uma dessas “gavetas” e
vasculhá-la da forma mais intensa que se conseguisse, julgou-se antes que seria
metodologicamente mais interessante, até tendo em conta uma certa juventude do tema,
dar conta da sua dispersão por várias “gavetas”, sem qualquer pretensão de procurar
esvaziar (para depois tentar encher) cada uma delas24. Assim, julgou-se que se não
podem deixar de referir – por força da atinência que têm à proposta restaurativa –
problemas tão amplos e tão tradicionais como o do fim das penas, o do sentido da
justiça, o da autoridade, o da democracia ou o da culpa, sendo que naturalmente cada
um deles não será considerado em si mesmo ou como se fosse o objecto de um estudo

que a dogmática expositiva não opere divorciada de uma dogmática crítica” (in “Delicta in Se” e
“Delicta Mere Prohibita” – Uma Análise das Descontinuidades do Ilícito Penal Moderno à Luz da
Reconstrução de uma Distinção Clássica, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 37).
23
Para além de uma certa preponderância de considerações atinentes à criminologia é à política criminal,
o facto de se dever prestar ainda particular atenção ao direito processual penal prende-se com a
circunstância, já sublinhada por Pablo Galain PALERMO, de actualmente se pretender reagir a um certo
“fenómeno esquizofrénico” da justiça penal sobretudo através daquele direito adjectivo. A
“esquizofrenia” referida pelo Autor relaciona-se com o facto de se aceitar “uma expansão constante do
Direito Penal” enquanto, por outro lado, se pleiteia «por uma maior celeridade e eficácia da justiça penal,
sem que sejam “atingidos” os princípios e as garantias fundamentais do sistema” (“Suspensão do
processo e terceira via: avanços e retrocessos do sistema penal”, Que Futuro para o Direito Processual
Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/MONTEIRO, Fernando
Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 614). A introdução de alterações no rito
processual ordinário, encurtando-o e simplificando-o, tem sido uma das vias através das quais se
perseguem a celeridade e a eficácia. Na medida em que as práticas restaurativas possam ser encaradas
(também, ainda que porventura não só) como mecanismos de diversão processual condicionados por
aquelas finalidades, compreende-se que a “questão processual” ganhe importância.
24
Corroborando a ideia de que o problema se espraia por vários domínios e a propósito da
desjudiciarização mas, sobretudo, da mediação penal, e depois de notar a conexão com a atribuição de um
maior relevo à vítima, Mário Ferreira MONTE refere que o problema “coloca-se em três níveis ou
círculos distintos mas complementares: o do direito substantivo, onde a reparação penal autónoma, como
terceira via, pode e deve ser encarada; o do seio do direito processual penal, em que podem ser
intensificados os espaços de consenso e oportunidade já existentes; o da desjudiciarização, ou seja,
partindo do direito processual penal, em que medidas desformalizadas ou desjudiciarizadas podem ser a
solução para situações tradicionalmente tratadas exclusivamente através do processo penal” (in “Um
olhar sobre o futuro do direito processual penal – razões para uma reflexão”, Que Futuro para o Direito
Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando
Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, ps. 412-3).

30
autónomo, mas antes abordado unicamente nos aspectos que mais directamente
contenderem com a análise da justiça restaurativa. Por outro lado, à consideração destas
matérias porventura mais tradicionais terá de se juntar a ponderação de outros
problemas tão recentes como o das práticas restaurativas, o que não pode prescindir de
uma ponderação do regime jurídico da mediação penal dita “de adultos” em Portugal.
Sabe-se que a abordagem de matérias tão díspares é susceptível de prejudicar a
homogeneidade do estudo, assim como prejudicará o grau de pormenor com que se
esquadrinhará cada uma das gavetas. Julgou-se, porém, que estas desvantagens
poderiam ser suplantadas pelos benefícios inerentes a uma certa visão de conjunto, que
se pretende alcançar.
Postas as coisas na sua mais elementar e genérica formulação, a reflexão que se
propõe versa sobre a antiga e afinal sempre actual procura de modelos de controlo da
criminalidade (em última análise, modelos de controlo social) que sejam
simultaneamente humanos e eficazes – porque, como bem nota Anabela RODRIGUES
quando se interroga sobre as estratégias de controlo da criminalidade para o novo
milénio, «são dois os desafios que, apoditicamente, podemos enunciar: encontrar formas
vertebrantes de uma política criminal comum e não dar cobertura a uma “política
criminal securitária” em detrimento de uma “política criminal de liberdade”25.
Ao longo deste estudo, julga-se que se evoluirá de uma visão adversarial de dois
distintos modelos de reacção ao crime (onde se esgrimem argumentos e se procuram
apresentar as vantagens de uma resposta relativamente à outra) para uma perspectiva de
cooperação que reconhece a forma como a existência daqueles dois (entre vários outros)
modelos de controlo social serve para potenciar as vantagens relativas de cada um deles.
De facto, a expansão progressiva e generalizada das práticas restaurativas, se tem
merecido aplausos e sido objecto de valorações quase sempre muito positivas, começa
já a suscitar algumas interrogações. O que equivale a dizer que o entusiasmo inicial face
à proposta restaurativa começa a ser mitigado pela compreensão das suas próprias
limitações26. Entre estas contam-se, segundo se crê, a desconsideração da dimensão

25
Anabela Miranda RODRIGUES, “Política criminal – novos desafios, velhos rumos”, Liber
Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 221.
26
Hans Jorg ALBRECHT é um dos autores que enfatiza a necessidade de um questionamento muito
crítico da proposta restaurativa face à expansão que tem conhecido em vários países ocidentais. Apesar de
reconhecer algumas vantagens associadas a tal proposta (como a simplificação dos procedimentos, a
reparação dos danos causados à vítima ou uma responsabilização menos estigmatizante do agente), parece
considerar que não está ainda demonstrada nem a necessidade nem a vantagem de uma alternativa
genérica ao funcionamento da justiça penal (“Restorative justice – answers to questions nobody has put

31
pública do crime – ou, pelo menos, de certos crimes –; a dificuldade de actuação face a
vítimas ou agentes não cooperantes; a possibilidade de expansão do controlo efectivo
(contrária à subjacente filosofia menos intervencionista) com a correlata intervenção
sobre o agente que assume deveres, eventualmente muito onerosos, sem a protecção
inerente ao garantismo penal.
Por outro lado, existem vários obstáculos a uma aceitação mais ou menos
generalizada das próprias práticas restaurativas. Assim, ver-se-á que pode haver uma
significativa relutância das instâncias formais de controlo face à introdução de
mecanismos de resolução do litígio vincadamente contrários a uma certa compreensão
daquilo que deve ser a administração da justiça. E, para além dessa resistência, poder-
se-á ainda contar com a dos cidadãos seus destinatários que, paradoxalmente, se vão
dando voz a uma certa descrença face ao modelo tradicional de reacção ao crime, não
deixam por isso de contribuir para uma demanda de mais justiça penal e até de
endurecimento da reacção punitiva27.
O que se vem de dizer pode ser resumido pela afirmação de que tanto a justiça
penal como a justiça restaurativa têm sido alvo de críticas com diversos fundamentos.
Ora, se ao reconhecimento das limitações da justiça penal pode reagir-se procurando
integrar nessa justiça penal uma dimensão restaurativa, também se compreende que
entre os cultores do paradigma restaurativo venha a surgir a tentação de colmatar as
limitações que a este começam a ser apontadas através da importação de algumas das
finalidades e características da intervenção penal. Dito de forma mais simples:
aceitando-se a existência de duas distintas necessidades – a que, por razões de

forward”, Victim Policies and Criminal Justice on the Road to Restorative Justice: Essays in Honour of
Tony Peters, ed. E. Fattah/S. Parmentier, Leuven: Leuven University Press, 2001, p. 295 ss).
27
Paul RICOEUR sublinha “a contradição entre o domínio que a justiça exerce sobre a vida colectiva
francesa e a crise de deslegitimação com a qual se deparam, nos países democráticos, todas as instituições
que exercem qualquer forma de autoridade” (prefácio a O Guardador de Promessas – Justiça e
Democracia, de Antoine Garapon, Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 9). E Antoine GARAPON (ob. cit., p.
102) considera que “o recurso ao direito penal assinala um duplo insucesso: o das regulações sociais
intermediárias como a família, o bairro e o trabalho; e o das soluções, a justiça penal que continua a
manter a prisão no centro do seu dispositivo”. Teresa BELEZA, na doutrina portuguesa, vinca com toda a
clareza a contradição inerente à crítica do funcionamento da justiça penal acompanhada pela reclamação
de “mais justiça penal”: «hoje sabemos, através do estudo empírico da criminalidade real, ou como tal
suposta, que o sistema penal é selectivo, desigual, provavelmente estruturalmente injusto. E no entanto a
fé e a crença no sistema penal como capaz de, entre outras coisas, corresponder à fome e sede de justiça
(social, também) parece inabalável, até fortalecida. Se de um lado parece evidente a descrença no sistema
judicial (penal, em particular) porque moroso e de resultados parcos (leia-se: em termos de condenações
efectivas, o que é acentuado sobretudo nos processos mediáticos), por outro os anseios públicos parecem
concentrar-se cada vez mais na não contestação de fundo desse sistema, mas no seu fortalecimento (“mais
do mesmo”)». Cfr. Teresa BELEZA,“Reconciliação, culpa e castigo. Uma reflexão a partir de Oshima e
Coetzee”, Homenagem de Viseu a Jorge de Figueiredo Dias, coord. Paulo Pinto de Albuquerque,
Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 67.

32
simplificação, agora se chamará necessidade de punir e necessidade de curar –
compreende-se a vontade de a ambas dar resposta através de uma (unitária) forma de
reacção ao crime. O que desemboca em uma justiça penal com a pretensão de curar ou
em uma justiça restaurativa com a pretensão de punir.
Apesar do interesse que – até numa perspectiva de relegitimação da intervenção
penal que pretenda apresentá-la como um bem também para a vítima, num momento
em que parece difícil demonstrar que ela se tem revelado um bem para o agente – pode
existir na proposta de integração de uma vertente restaurativa na justiça penal, não se
me afigura, no início desta investigação, que haja vantagem evidente na aceitação como
uma evidência de um singular modelo de reacção à criminalidade que integre, em pé de
igualdade, todas as finalidades. Ainda que se reconheça uma intenção de curar à justiça
penal e ainda que se aceite que a intervenção restaurativa pode em algumas
circunstâncias tornar desnecessária a punição, inicia-se este estudo com a ideia de que
existirá porventura vantagem na salvaguarda de espaços de autonomia.
A contraposição recorrente entre o punir e o curar que preside a tentativas de
distinção entre a justiça penal e a justiça restaurativa nem sempre tem na base, para
além disso, um questionamento profundo daquilo que se pretende curar. Se aquilo que
se quer referir é o sofrimento individual dos intervenientes concretos no crime, crê-se
que a dimensão curativa da justiça penal tem um âmbito substancialmente menor do que
o pretendido na resposta restaurativa e que, para além disso, a possibilidade de cura
surge limitada pelas necessidades punitivas. Todavia, se por destinatária dessa cura se
tiver antes a norma fundada em valores essenciais – e a norma imposta pela protecção
da vida em comunidade – já se julga possível afirmar a vocação curativa também da
justiça penal.
Por outro lado, uma eventual dimensão punitiva da justiça restaurativa parece
dificilmente compatível com a inexistência de um processo orientado para tal objectivo
e construído à luz de um pensamento das garantias. O que, assim vistas as coisas, talvez
deva conduzir à aceitação de dois distintos modelos de reacção ao crime justificados,
cada um deles, por distintas necessidades individuas e/ou sociais.
Deste modo, a ideia inicial de que uma eventual resposta solitária dada pela
justiça restaurativa seria ainda uma resposta com fragilidades evidentes, combinada com
a aceitação de que a justiça penal não logra, por si só, dar resposta a todas as
necessidades desencadeadas pela ocorrência do crime, relança, agora numa óptica

33
substancialmente distinta da primeiramente assumida pelo pensamento abolicionista, a
questão da justiça penal versus justiça restaurativa.
O estudo que agora se inicia tem, portanto, sobretudo por objecto a tentativa de
compreensão da proposta restaurativa como um outro modo de responder ao fenómeno
criminal. E compreender esse outro modo só parece possível a partir de uma reflexão
sobre aquilo que o aproxima e aquilo que o afasta desse modo de responder ao crime
que é a justiça criminal. No horizonte, ter-se-á sempre a afirmação de Jorge de
FIGUEIREDO DIAS de que “o direito penal constitui apenas um dos componentes do
sistema global de controlo social e se encontra por isso numa rede de múltiplas relações
e interdependências com outras formas de resolução de conflitos sociais”28.
Para o leitor sobretudo familizarizado com o estudo da dogmática penal, talvez
seja surpreendente – e negativamente surpreendente – a ausência de precisão no
tratamento de algumas questões, mormente as atinentes à caracterização da proposta
restaurativa. Ainda que assim se não pretenda desvalorizar ou justificar as insuficiências
que o estudo revelará, aquilo que sobre o seu objecto já se intui não deixa de levar a que
se tenha em mente a afirmação de Aristóteles, na sua Ética a Nicómano, de que
“deveremos procurar a precisão em cada classe de coisas só na medida em que a
natureza do objecto o permite”29.
Talvez exista, porém, uma vantagem na eleição como objecto de estudo de um
tema relativamente tocado pelas notas da novidade e da dúvida. Ela relaciona-se com
um certo reconhecimento da ausência de definitividade de qualquer proposta, sempre
aberta à crítica e à possibilidade de mudança. Em cada tempo, e no tempo que é o de
cada um de nós, o que se nos pode exigir é apenas a revisão e a análise. Como
reconhece Winfried HASSEMER, existem “mudanças constantes nas bases fácticas do
direito penal: medo do perigo e confiança no mundo, necessidade de controlo e desejo
de liberdade movem-se num equilíbrio instável (…). Estas exigências mudam com o
tempo. Ou seja, em cada tempo (…) devemos perguntar-nos o que fizemos e aquilo que
podemos esperar: revisão e análise”30.

28
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I (Questões Fundamentais, A
Doutrina Geral do Crime), 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 25.
29
A afirmação é citada por Amartya SEN no contexto de uma reflexão sobre a frequência com que se põe
“em confronto a presumida precisão dos direitos legais com as inevitáveis ambiguidades presentes nas
pretensões éticas de direitos humanos” (in A Ideia de Justiça, trad. de Nuno Castello-Branco Bastos,
Coimbra: Almedina, 2010, p. 494).
30
Winfried HASSEMER, “La autocomprensión de la ciencia del derecho penal”, in La Ciencia del
Derecho Penal ante el Nuevo Milenio, coord. da versão alemã: Eser/Hassemer/Burkhardt/; coord. da
versão espanhola: Muñoz Conde, Valência: Tirant lo Blanch, 2004, p. 25.

34
Parte I
A Justiça Restaurativa – as origens e o
conceito

35
36
Capítulo I
As origens criminológicas e político-criminais do paradigma restaurativo

1.   O problema

As referências que hoje são feitas a um “paradigma restaurativo”31 obedecem,


segundo se crê, ao propósito de incluir em um conceito amplo realidades tão distintas
como são, numa ordenação que é para já arbitrária, um conjunto de práticas, uma teoria
(ou várias teorias) e um acervo de propostas político-criminais associadas a um
programa restaurativo que ainda está à procura de se afirmar de forma mais plena em
muitos países do nosso contexto cultural.
Uma tentativa de compreensão dessas práticas, dessa teoria e desse programa (e
uma tentativa de compreensão do seu surgimento neste tempo e neste espaço) não deve
prescindir de uma reflexão de índole criminológica e de algumas referências político-
criminais, na medida em que a justiça restaurativa, sobretudo por se apresentar como
um modelo com notas de novidade, não prescinde de uma crítica da justiça penal dita

31
São conhecidas as controvérsias em torno da excessiva utilização do conceito de “paradigma” e mesmo
as dúvidas, que quase de seguida se referirão, sobre a conveniência da sua utilização pelas ciências
sociais. Apesar de assim ser, não se vislumbram razões que justifiquem o “banimento” da utilização da
expressão “paradigma restaurativo”, não só porque ela já adquiriu um certo “valor de uso”, mas sobretudo
porque esse uso vinca a diferença entre a resposta dada ao crime pela justiça penal e aquela outra resposta
que lhe é dada pela justiça restaurativa. E a afirmação dessa efectiva diferença, assim como a procura
daquele que é o seu núcleo, constituem os pilares sobre os quais esta investigação se erigirá. Como
exemplo da utilização recorrente do conceito, cfr. a afirmação de VAN NESS, Daniel/MORRIS,
Allison/MAXWELL, Gabrielle (“Introducing Restorative Justice”, Restorative Justice for Juveniles –
Conferencing, Mediation and Circles, Eds. A. Morris/G. Maxwell, Portland: Hart Publishing, 2003, p. 3)
de que a justiça restaurativa pode ser definida como “um novo paradigma” que “suscita novas perguntas
para as sociedades fazerem e responderem na reacção ao crime”. Para uma análise do sentido que se pode
atribuir a “paradigma”, cfr., entre nós, Cândido da AGRA (“A Epistémè das Ciências Criminais –
Exercício Empírico-Teórico”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias I,
Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 547), que dissocia o paradigma de uma teoria ou de um método,
considerando que ele é, antes, “uma estrutura do pensamento, suficientemente ampla e profunda para no
seu seio emergirem e se desenvolverem orientações teóricas e metodológicas diversas”. Neste momento
de início da reflexão, questiona-se, pensando na expectativa que Alberto SILVA FRANCO manifestou
relativamente ao surgimento de um novo paradigma, se seria este o paradigma que tinha em mente. A
resposta parece ter de ser negativa. Não obstante, talvez na proposta restaurativa caibam elementos que
podem contribuir para um modelo de reacção ao crime mais próximo do defendido pelo Autor. Tem-se
sobretudo em mente o seu prognóstico (ainda não confirmado) de que “o destemperado processo de
criminalização, em face do surgimento de um conflito social, como primeira e única resposta do Estado
cairia em desuso e, com a exclusão da via penal, não ocorreria mais a necessidade de renúncia de
garantias processuais, nem o direito penal teria de mostrar uma capacidade utilitarista de eficácia” (“Na
expectativa de um novo paradigma”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias,
I, Org. Manuel da Costa Andrade e outros, Stvdia Ivridica 98, Universidade de Coimbra/Coimbra Editora,
2009, p. 327).

37
tradicional (no que é suportada, sobretudo, pelos ensinamentos da criminologia crítica
ou “de sessenta”), nem da afirmação de um programa político-criminal cujos vectores
são a reparação dos danos causados à vítima ou a preferência pela solução do conflito
criminal através de um consenso entre aqueles que nele estiveram envolvidos. Com
propósitos simplificadores, talvez não seja inteiramente despropositado afirmar-se que a
justiça restaurativa se nutre do pensamento criminológico na crítica de um certo passado
e de um certo presente do sistema de reacção ao crime e que se alimenta de algumas
orientações político-criminais para esboçar o seu projecto de como se deve responder ao
crime no futuro.
Um dos aspectos que torna mais complexa a reflexão sobre as origens da justiça
restaurativa prende-se com o modo como nela convergem correntes criminológicas e
orientações político-criminais a um primeiro olhar contraditórias. Considerem-se, a
título de exemplo, as dificuldades inerentes à conciliação do abolicionismo penal com a
vitimologia ou, no plano político-criminal, a contradição entre uma reacção ao crime
que aposta na diversão processual através de mecanismos de consenso e, por outro lado,
o endurecimento no sancionamento penal preconizado por alguns para se enfrentar uma
criminalidade que se diz progressivamente mais grave e organizada. Por outro lado,
também em um horizonte mais amplo, aquele em que se reconhece a relevância da
globalização32 e uma certa perda de importância do Estado-Nação33, não pode deixar de

32
A globalização não será, em si mesma, objecto deste estudo, sobretudo por se reconhecer que convoca
problemas tão variados e tão amplos que um seu tratamento mesmo enquanto questão lateral seria,
necessariamente, superficial. O que aqui se quer vincar é tão-somente que a existência de um “mundo
globalizado” pode associar-se à afirmação de José de FARIA COSTA de que “vivemos em um tempo de
crise”, que é também uma crise do próprio direito penal. Sobre a relação entre esse “mundo globalizado”
e a exigência de “menos Estado” que, paradoxalmente, não é de “menos Estado punitivo”, mas antes de
“menos Estado social, menos Estado interventor”, cfr. José de FARIA COSTA (“A criminalidade em um
mundo globalizado: ou plaidoyer por um direito-penal não securitário”, Direito Penal Especial, Processo
Penal e Direitos Fundamentais – Visão Luso-Brasileira, São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 89 ss). Ora, o
que aqui parece pertinente sublinhar é que se a crise da justiça penal associada à globalização poderia
contribuir, por um lado, para explicar o surgimento da justiça restaurativa através da ideia da crise do
próprio Estado-Nação e de uma sua correspectiva perda de funções, o certo é que, seguindo a
argumentação acolhida por José de FARIA COSTA, também se assistiu, de certo modo, a uma evolução
de sinal oposto, vertida numa expansão da intervenção punitiva do Estado. Esta é, porém, questão a que
se deverá retornar em momento posterior, no contexto de uma análise do modo como essa expansão da
punição, sobretudo em alguns países anglo-saxónicos, pode ter favorecido o movimento de sinal contrário
e contribuído, assim, para sustentar a proposta restaurativa. Também no que respeita à relação entre a
globalização e o papel do Estado, Anabela Miranda RODRIGUES refere que “as grandes construções
institucionais e a concentração do poder dão lugar ao declínio dos Estados e a um mundo onde proliferam
as redes”. E acrescenta que «neste contexto, o desaparecimento da “esfera pública” e o surgimento de
novos espaços de “socialização” marcam a contemporaneidade». Todavia, também a Autora distingue a
expansão da intervenção estadual associada ao alargamento e ao endurecimento da intervenção penal, por
um lado, da “política de emagrecimento do Estado providência”; por outro lado «as ligações entre o
declínio do sector social do Estado e o desenvolvimento do seu braço penal são evidentes. Em simultâneo
com o pedido de “menos Estado” na ordenação económica e social exige-se “mais Estado” para encobrir

38
se situar o surgimento da proposta restaurativa. Mesmo a este nível, porém, a análise
parece mais complexa do que decorreria de uma mera associação da tentativa de
devolução do conflito criminal às “partes” (inerente à justiça restaurativa) a um
enfraquecimento do papel do Estado na reacção ao crime. Com efeito, se da justiça
restaurativa deve resultar uma menor incidência da intervenção punitiva do Estado,
talvez ela não signifique necessariamente “menos Estado”, postulando, ao invés, uma
nova incumbência estadual de oferta ao agente e à vítima do crime de uma possibilidade
de pacificação do conflito (inter)pessoal.
Por outro lado, em certa medida – na medida em que se faça sobrepor a justiça
restaurativa apenas à criminalidade menos grave, aquela que hoje menos preocupa um
Estado que se sente em risco sobretudo por força da criminalidade organizada e violenta
e, também, na medida em que se veja na justiça restaurativa uma forma de
aprofundamento do Estado Social –, pode apontar-se a esta justiça restaurativa uma
certa nota de anacronismo e de desadequação a estes tempos. Neste momento do
estudo, não se pretende mais do que suscitar as interrogações originadas pela
verificação de algumas contradições inerentes ao próprio surgimento da proposta
restaurativa. Não se crê que se possa, porém, afirmar sem mais que a justiça restaurativa
restringe necessariamente o seu âmbito de aplicação à criminalidade menos grave (por
mais que se venha a demonstrar que esta corresponde, em termos quantitativos, a uma
fatia significativa da criminalidade que ocupa as instâncias formais de controlo). E, se
não se acredita que a adopção de práticas restaurativas equivalha sempre a uma
poupança de meios, também não se julga inquestionável a opinião de que na proposta
restaurativa prepondera uma nota assistencial que a vincula a um aprofundamento dessa
dimensão social do Estado que parece incontornável restringir em tempos de várias
crises.

e conter as consequências sociais deletérias onde se verifica a deterioração da protecção social» (in
“Globalização, democracia e crime”, Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais –
Visão Luso-Brasileira, São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 280 e p. 290).
33
Sobre o decaimento do Estado-nação, cfr., a título de exemplo, Zygmunt BAUMAN (A Sociedade
Sitiada, trad. de Bárbara Pinto Coelho, Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 17 e 18), que refere «a cada vez
mais evidente, e se calhar irrecuperável, perda da posição privilegiada (e incontestavelmente superior) que
o Estado-nação ocupava ou reclamava ocupar. O Estado, despojado de grande parte da ampla soberania
que outrora foi “total”, muito mais vezes exposto à situação de “não existir alternativa” do que à de
exercer a livre escolha de políticas, e deixando-se fustigar por forças externas em vez de por preferências
democraticamente expressas pelos seus cidadãos, perdeu grande parte do seu encantamento passado”. O
Autor associa o “desvanecimento do Estado-nação” ao “divórcio entre um Estado e uma nação”: “o
Estado-nação era a utopia de uma nação fundida com uma comunidade política; os interesses
comunitários nele dissolvidos e dele indistintos, a raison d’état (…). Peculiaridades culturais, desacordos
religiosos, idiossincrasias linguísticas ou qualquer outra discrepância de crenças e preferências não
deviam ser tidas em consideração”.

39
Esboçadas estas considerações que mais não visam do que chamar a atenção
para algumas perplexidades inerentes ao contexto em que se situa o surgimento da
justiça restaurativa, impõe-se um aprofundamento da reflexão sobre a influência que
nesse surgimento teve a própria evolução do pensamento criminológico.
Poucas áreas do conhecimento terão sido sujeitas a tão profundas transformações
como a criminologia – mais do que em transformações, poderíamos falar em
verdadeiras revoluções, resultantes de uma total reorientação de sentido quanto a
aspectos de tal modo essenciais como a sua própria função, os seus métodos ou o seu
objecto de estudo34. Sobre a decisiva reviravolta do paradigma criminológico35, ocorrida

34
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de (in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais – A
Doutrina Geral do Crime, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 38 ss) sintetiza, no contexto de
uma reflexão sobre as relações que devem interceder entre a dogmática jurídico-penal e a criminologia, a
evolução desta última. Sublinha que no seu nascimento estava “por inteiro subordinada ao paradigma
monista e reducionista das ciências da natureza e, por consequência, na veste de uma ciência puramente
empírica, causal e explicativa”. E tal afirmação justificar-se-ia quer esta criminologia fosse de base
endógena ou exógena. Refere-se depois um outro momento, “quando a criminologia se tornou, de forma
dominante ou mesmo exclusiva, em uma criminologia sociológica”, altura em que “o paradigma monista
e reducionista da criminologia, que a colocava ao mesmo nível de qualquer outra ciência da natureza, se
encontrava ultrapassado”; o Autor salienta que “era reconhecido já então que a criminologia se situava
entre as ciências sociais e humanas e que por essa razão não podia renunciar a referências inevitáveis a
sentidos e a valores”. Momento de decisiva viragem é, todavia, o início da segunda metade do século
passado: «a situação mudou radicalmente com o aparecimento da chamada “criminologia dos anos 60” e
as suas principais manifestações (…). Assim, sem deixar de ser na essência uma ciência empírica e
interdisciplinar, com anseio de integração, o seu objecto não é tanto constituído pelo fenómeno social
enquanto tal, mas reconverte-se em larga medida ao fenómeno jurídico-criminal; deixando todavia, por
outro lado, de se limitar estreitamente à investigação das causas do facto criminoso e da pessoa do
delinquente, para passar a abranger a totalidade do sistema de aplicação da justiça penal, nomeadamente
as instâncias formais (…) e informais (…) de controlo da delinquência; para passar a abranger, numa
palavra, o inteiro “processo de produção” da delinquência». Também Teresa BELEZA, em “A Moderna
Criminologia e a Aplicação do Direito Penal”, sublinha e explica a “reviravolta” que a criminologia deu
sobre si mesma quando de um paradigma que tomava como objecto “as pessoas condenadas pela prática
de crimes” se passou para um outro paradigma centrado nos “mecanismos que levam a essas
condenações”. Nessa medida, apresenta uma criminologia «emancipada dessa sombra tutelar [do direito
penal], ela é seu crivo crítico, seu observador perspicaz, sua instância de “consciência”» (in Revista
Jurídica, n.º 8, Out-Dez. 1986, ps. 41-42). Igualmente da maior importância para a compreensão daquele
que é hoje o papel da criminologia é o estudo de Manuel da COSTA ANDRADE, “O Novo Código Penal
e a Moderna Criminologia”, Jornadas de Direito Criminal, Lisboa: CEJ, 1983, p. 187 ss. Também com
muito interesse para a reflexão sobre a evolução do pensamento criminológico em Portugal, ainda que
apenas até ao primeiro quarto do século passado, cfr. Mário da Silva MALDONADO, “Alguns aspectos
da história da criminologia em Portugal”, Separata do Boletim da Administração Penitenciária e dos
Institutos de Criminologia, 1960, que analisa de forma minuciosa a recepção em Portugal das teorias
criminológicas positivistas. A título de exemplo da forma pela qual essa recepção foi feita (sem o suporte
significativo de estudos empíritos mas intentando-se a transposição das correntes dominantes sobretudo
em Itália), veja-se a referência pelo Autor à recolha por Bernardo Lopes, à semelhança do procedimento
adoptado por Lombroso, de provérbios populares que confirmassem as teorias de predisposição biológica
para o crime (ob. cit., ps. 54-5). O que também se julga merecer ser sublinhado, porém, é o entendimento
de que, apesar de todas as transformações por que passou, a criminologia parece ter mantido uma certa
estabilidade no reconhecimento de alguns seus elementos essenciais (ainda que, em diferentes momentos,
se lhes tenham outorgado diversas importâncias relativas e distintas interpretações). Neste sentido, Álvaro
PIRES afirma a existência de “quatro grandes características” da criminologia, que se manifestaram
muito cedo e que se mantêm, não obstante algumas variações: a criminologia “tem a intenção e a
pretensão (i) de ser uma actividade científica; (ii) de ser interdisciplinar (compreendendo-se aí a inclusão

40
em meados do século passado, FIGUEIREDO DIAS mencionou, no já distante ano de
1981, “uma deslocação fundamental de perspectivas, que se exprime numa radical
alteração dos protagonistas”, justificando tal deslocação através da ideia de que “em
toda a criminologia anterior os protagonistas eram o delito e o delinquente, agora esse
papel cabe também e sobretudo a quem reage ao delito e ao delinquente”36. Todavia,

do saber jurídico); (iii) de estar directamente implicada no domínio dos julgamentos de valor e das
normas jurídicas (…); (iv) de religar a teoria à prática e ser socialmente útil” (“La criminologie d’hier et
d’aujourd’hui”, Histoire des Savoirs sur le Crime et la Peine, Tome I, Christian DEBUYST/Françoise
DIGNEFFE/Jean Michel LABADIE/ Álvaro PIRES, Les Presses de l’Université de Montreal, Les Presses
de l’Université d’Ottawa et De Boeck Université, 1995, p. 13 ss)
35
Este conceito de mudança de paradigma na criminologia é explicado por Alessando BARATTA, por
apelo ao estudo de Keckeisen. Segundo o criminólogo italiano, este “aplica a teoria de Thomas S. Kuhn,
sobre a estrutura das revoluções científicas e sobre as mudanças de paradigma da ciência, à deslocação do
objecto da investigação do estudo dos factores da criminalidade para o estudo da reacção social. Define o
paradigma etiológico e o paradigma do controlo (labelling approach) como incompatíveis, considerados
no seu modelo ideal” (in Criminologia Critica y Critica del Derecho Penal, Buenos Aires: Siglo
Veintiuno Editores, 2002, trad. de Álvaro Búnster, p. 90). Existem, porém, algumas dificuldades na
transposição das ideias de Kuhn e atinentes à mudança de paradigma nas ciências exactas para o campo
das ciências sociais, na medida em que Kuhn se refere à substituição de um paradigma por outro,
considerando muito difícil a sua convivência. Marcelo AEBI (“Crítica de la criminologia crítica: una
lectura escéptica de Baratta”, Serta: In Memoriam Alexandri Baratta, Ed. Fernando Alvarez,
Aquilafuente: Ediciones Universidad de Salamanca, 2004, p. 30) sustenta que “nas ciências sociais a
situação é completamente diferente, já que os paradimas não costumam substituir-se mas adicionar-se”. E
o Autor relembra as dúvidas de Kuhn sobre a possibilidade de o próprio conceito de “paradigma” fazer
sentido nas ciências sociais, tendo em conta as subsistentes divergências quanto a questões essenciais.
Acrescenta que, na sua opinião, nem sequer pode falar-se em revolução, tendo em conta a subsistência, na
actualidade, de correntes criminológicas aparentadas com o pensamento etiológico característico do
positivismo. Apesar de se compreenderem as objecções de AEBI (sobretudo na medida em que se
reconhece a importância de uma perspectiva integradora na criminologia, que alarga o seu objecto ao
crime e à reacção social, ainda que em sentidos não totalmente coincidentes com o positivismo
criminológico e com a criminologia crítica), julga-se que se não pode assacar à subsistência de alguns
estudos de índole apenas positivista ou apenas cítica a negação de uma progunda reformulação do sentido
da maioria das reflexões criminológicas actuais.
36
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, A perspectiva interaccionista na teoria do comportamento delinquente,
Separata do n.º especial do BFDC – “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Teixeira
Ribeiro”, Coimbra, 1981, p. 13. Uma análise detalhada das características de cada um desses paradigmas
criminológicos – o positivista e o crítico – pode encontrar-se em Jorge de FIGUEIREDO DIAS/Manuel
da COSTA ANDRADE, Criminologia, O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena, Coimbra
Editora, 1997 (reimpressão). Também Winfried HASSEMER distingue aquilo que denomina como uma
“microcriminologia” daquilo a que chama “macrocriminologia”. Enquanto a primeira dá relevo
“fundamentalmente ao autor do delito”, ou considerando-o enquanto indivíduo ou situando-o “no grupo
social onde vive e onde aprende os complexos processos socializadores”; já a segunda “ocupa-se mais da
análise estrutural da sociedade da qual surge o delito” (in Francisco MUÑOZ CONDE/Winfried
HASSEMER, Introdução à Criminologia, trad. de Cíntia Chaves, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.
20). Sobre a contemporânea criminologia de integração, que procura conciliar o legado da criminologia
crítica com a herança do positivismo criminológico, em moldes que alargam a função e o objecto
criminológicos, cfr. Cláudia SANTOS, O crime de colarinho branco (da origem do conceito e sua
relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal), Coimbra
Editora: 2001, p. 186 ss. Com interesse para a ponderação do panorama criminológico actual por
referência à criminologia crítica, cujas ideias principais elenca, cfr. Horácio Roldán BARBERO (“Que
queda de la contestación social de los años 60 y 70 en la criminologia actual?”, Revista de Derecho Penal
Y Criminología, N.º 10, 2002, p. 217 ss). O Autor acaba por afirmar que, apesar do embate sofrido pela
criminologia crítica a partir dos anos oitenta do século passado (mas que se teria agravado na década
seguinte), existem princípios inerentes àquela criminologia que importa preservar. Entre aqueles que
sublinha, interessam sobretudo ao objecto deste estudo “a reflexão atenta aos usos do poder em sentido

41
decorrido não muito mais do que meio século e conhecida a profunda crise do
pensamento criminológico documentada pela ideia de Alessandro Baratta de que a
criminologia já não existiria, estaria morta37, voltamos a assistir a uma nova pirueta, a
um outro salto mortal: depois da deslocalização do problema criminológico do agente
para as instâncias formais de controlo, eis que surge agora a vítima como núcleo
aglutinador do mais significativo conjunto das reflexões criminológicas
contemporâneas38.
Desde o seu dealbar, a perspectiva vitimológica tem, ela própria, sofrido
vertiginosas mutações ou evoluções, que passam pela compreensão das causas da
vitimização criminal, pelo estudo das consequências que tal vitimização acarreta, pelo

amplo e das instâncias de controlo; uma aposta na desinstitucionalização gradual” (ob. cit., ps. 259-260).
Muito recentemente, também Eugene MCLAUGHLIN (“Critical criminology: the renewal of theory,
politics and practice”, What is Criminology, Eds. M. Bosworth/C. Hoyle, Oxford: Oxford Univesity
Press, 2011, p. 53 ss) recorda as orientações da criminologia crítica que devem ser preservadas nos dias
de hoje: a negação do crime como uma “realidade ontológica”, a afirmação da injustiça inerente ao
sistema punitivo em expansão, a rejeição da violência estadual e a preocupação com os crimes dos
poderosos.
37
Esta ideia pode ser compreendida sob várias perspectivas. Uma das possibilidades consiste em associá-
la a uma manifestação de desânimo perante a crítica a que a própria criminologia crítica – de que
Alessandro Baratta fora destacado cultor – vinha sendo sujeita. Uma outra possibilidade consiste em
atribuir-lhe um significado meramente terminológico: Baratta rejeitava os conceitos de “crime”, de
“direito criminal” e de “criminologia”, preferindo para esta a denominação de “sociologia jurídico-penal”
(neste sentido, cfr. Marcelo AEBI, “Crítica de la criminologia crítica: una lectura escéptica de Baratta”,
Serta: In Memoriam Alexandri Baratta, Ed. Fernando Alvarez, Aquilafuente: Ediciones Universidad de
Salamanca, 2004, p. 18). A questão da “morte” da denominada criminologia teórica permanece, mesmo
na actualidade, um assunto controvertido. Face à escassez de novas teorias orientadas para a compreensão
do crime no contexto amplo da teoria social, pode defender-se uma vocação eminentemente prática da
criminologia, de mera proposta de concretos programas de combate a manifestações da delinquência a
serem administrados pelas instâncias formais de controlo. Neste contexto, compreende-se bem a
conhecida afirmação de Stanley COHEN [Against Criminology, New Jersey: Transaction Publishers, 4.ª
reimpressão, 2009 (1.ª ed. de 1998), p. 6] – depois de ter elencado as várias correntes criminológicas
antagónicas que se foram sucedendo e a forma como cada uma aponta as insuficiências das restantes –
sobre o complicado passado e o polémico presente desta ciência criminal. Apesar de reconhecer os
factores de crise da criminologia e de compreender quão problemáticas são as dúvidas subsistentes no que
respeita a questões tão essenciais como as do objecto ou do método, vejo na perspectiva integradora dos
contributos positivista e crítico um caminho mais seguro e, sobretudo, útil, para a criminologia teórica
[cfr. Cláudia SANTOS, O crime de colarinho branco (da origem do conceito e sua relevância
criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal), Coimbra Editora: 2001, p.
186 ss]. Esta perspectiva integradora corresponde, de resto, à aceitação de que a moderna criminologia
tem como uma das suas características mais destacadas a “progressiva ampliação e problematização do
seu objecto”, nas palavras de António Garcia-Pablos de MOLINA [em obra conjunta com Luiz Flávio
GOMES, cabe àquele Autor a introdução aos fundamentos teóricos da criminologia (cfr. Criminologia,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 7.ª Edição, 2010, p. 65)], para quem “as investigações
criminológicas tradicionais versavam quase que exclusivamente sobre a pessoa do delinquente e sobre o
delito. Em consequência, o actual redescobrimento da vítima e os estudos sobre o controlo social do
crime representam uma positiva extensão da análise científica para âmbitos outrora desconhecidos”.
38
A este propósito, refere MAIER, Júlio (“La víctima y el sistema penal”, De los delitos y de las víctimas,
Buenos Aires: Ad-Hoc, 2001, reimp., p. 185) que quando hoje se fala na vítima «tem-se a impressão de se
ser impulsionado por uma “nova ola” político-criminal». O Autor menciona ainda a afirmação crítica de
HIRSCH, contrário a este movimento, de que se trataria agora de uma euforia face ao ofendido, por
contraposição à anteriormente direccionada para o agente e para a sua ressocialização.

42
sublinhar genérico dos interesses da vítima que devem ser protegidos na solução do
conflito interpessoal, pela reflexão em torno do seu contributo para o cometimento do
próprio crime, pela desadequação do sistema criminal no seu todo para satisfazer as
mais elementares necessidades da vítima de uma infracção. Ainda que esta evolução do
próprio pensamento vitimológico seja merecedora, em outra sede, de uma análise mais
detida, o que agora se pretende sublinhar é, correndo o risco das simplificações
excessivas, a linear transformação daquele que, em cada momento histórico, é visto
como il cuore do pensamento criminológico: o delinquente; as instâncias formais de
controlo; a vítima.
De alguma forma, o esquecimento a que durante anos a vítima foi votada pode
ser encarado como não inocente. Terá sido antes instrumento para afastar em definitivo
a solução privada dos conflitos, fortalecendo o papel a desempenhar pelo Estado. Nils
CHRISTIE afirma-o, depois de apontar o modo como se procura transformar a imagem
conflitual do caso numa imagem não-conflitual: “uma maneira de reduzir a atenção
prestada ao conflito é a escassa atenção prestada à vítima. Outra é a atenção dada
àqueles atributos do background do delinquente que o terapeuta está particularmente
treinado para manejar. Os defeitos biológicos são ideais. O mesmo sucede com os
defeitos da personalidade quando são registados muito atrás no tempo – afastados do
conflito recente. Outro tanto acontece com toda a lista de variáveis explicativas que os
criminólogos podem oferecer. Trabalhámos em grande medida, ao fazer criminologia,
como ciência auxiliar dos profissionais do sistema de controlo do crime. Concentrámo-
nos no delinquente, convertendo-o em um objecto de estudo, de manipulação e de
controlo. Juntámo-nos a todas aquelas forças que reduziram a vítima a uma não-
entidade e o delinquente a uma coisa. E talvez a crítica não seja só aplicável à velha
criminologia, mas também à nova. Enquanto a primeira criminologia explicava o delito
a partir dos defeitos pessoais e da desvantagem social, a nova explica-o como resultado
dos amplos conflitos económicos. A velha criminologia perdeu os conflitos, a nova
transforma os conflitos interpessoais em conflitos de classe. E são-no. São, também,
conflitos de classe. Mas ao sublinhá-lo os conflitos são novamente arrebatados às partes
directamente envolvidas” 39.
Ora, do surgimento da vítima como objecto da atenção criminológica à ideia de
que o Estado se apropriara de forma indevida do papel que àquela devia caber na

39
CHRISTIE, Nils, “Conflicts as Property”, British Journal of Criminology, 1977, vol. 17, n.º 1, p. 1 ss.

43
solução de um conflito que era seu, foi um passo. E do apontar as armas ao sistema
penal para a afirmação de que estaria a surgir um outro modelo, que se pretendia
alternativo porque seria melhor sob várias perspectivas, foi um novo passo. Acrescenta-
se uma pitada de abolicionismo penal e eis que surge a justiça restaurativa.
Apresentada a questão desta forma, não se compreenderia, porém, qual a
novidade trazida por esta corrente do pensamento face à vitimologia e face ao
movimento abolicionista. E tornar-se-ia pertinente a indagação sobre se a justiça
restaurativa não seria, ela própria, apenas uma mais recente e moderna roupagem
daquele abolicionismo, agora em paradoxal40 simbiose com a vitimologia, para provocar
a substituição da justiça penal por uma resposta também mais adequada às expectativas
da vítima41. Ora, ainda que se reconheça a existência de um espólio comum de ideias
estruturais, mais do que uma recente metamorfose do movimento abolicionista e do
movimento vitimológico, a justiça restaurativa é antes uma espécie de sua herdeira
espiritual. Dito de forma mais simples: caso se pretendesse encontrar para os ideais

40
Não pode esquecer-se a forma como os movimento político-criminais orientados para o endurecimento
da reacção penal se nutrem do argumento de protecção dos direitos das vítimas. Segundo Markus Dirk
DUBBER (Victims in the War on Crime – The Use and Abuse of Victim’s Rights, Nova Iorque:
University Press, 2006, p. 1 e 2), há “dois fenómenos que moldaram a lei criminal americana nos últimos
trinta anos: a guerra ao crime e o movimento dos direitos das vítimas. Estes dois programas políticos
estão relacionados. A guerra ao crime foi fundamentada no interesse das vítimas contra os agressores;
perseguir os criminosos significou perseguir os direitos das vítimas. Ser pró-vítima foi ser anti-crime, e
vice-versa”. Depois de elencar os direitos das vítimas tais como contemplados no pioneiro – “introduzido
na constituição da Califórnia por referendo popular em 1982” – Victims’ Bill of Rights da Califórnia, o
Autor afirma que “a guerra ao crime reivindicou sistematicamente e com sucesso esses direitos através de
uma campanha de incapacitação de massas, que passadas três décadas conduziu à prisão mais de dois
milhões de americanos e deixou outros quatro milhões sujeitos a medidas de controlo penal não
carcerárias”. O que se julga particularmente relevante – e que por isso merecerá tratamento autónomo em
momento posterior – é o modo como, paralelamente a um endurecimento da reacção penal justificado
pela protecção dos direitos das vítimas, surgiu um outro movimento – o restaurativo – também sensível à
protecção dos direitos das vítimas, mas fundado na ideia de que o seu primeiro direito é o direito à
reparação, o qual não é cumprido com a privação da liberdade do agente. E, curiosamente, talvez possa
até concluir-se – como resultará de uma breve reflexão sobre as origens sobretudo “anglo-saxónicas” da
proposta restaurativa – que quanto maior intensidade teve essa acção de endurecimento da repressão
penal, mais intensa foi também a reacção contra tal tendência, o que porventura ajudará à compreensão
da proliferação dos programas restaurativos por exemplo nos Estados Unidos da América.
41
Sobre as possíveis pontes, nem sempre evidentes a um primeiro olhar, entre o abolicionismo e a
vitimologia, cfr. Alberto BOVINO, “La víctima como preocupación del abolicionismo penal”, De los
delitos y de las víctimas, coord. Júlio Maier, Buenos Aires: Ad-Hoc, 2001, p. 263 ss. Muito significativa é
a posição recentemente assumida por Thomas MATHIESEN – um reconhecido cultor do abolicionismo
penal – e por Ole HJEMDAL sobre a forma como a reacção ao crime deve ser orientada para a vítima (e
não já para o agente). A ideia que defendem é a de que “os esforços da sociedade não devem consistir em
atribuir a punição justa ao crime cometido pelo agente, mas devem antes orientar-se para a ajuda correcta
à vítima”. E acrescentam que “em vez de funcionar com uma escala de punição relacionada com a ofensa,
dever-se-ia operar com uma escala de auxílio referida ao mal sofrido pela vítima”. Compreendendo a
semelhança desta orientação político-criminal com a proposta restaurativa, entendem que a diferença está
no maior papel atribuído ao Estado na posição que adoptam, enquanto a justiça restaurativa concederia
mais ao encontro vítima-agressor (“A new look at victim and offender – an abolicionist approach”, What
is Criminology, Eds. M. Bosworth/C. Hoyle, Oxford: Oxford Univesity Press, 2011, ps. 229-230).

44
restaurativos uma filiação, dir-se-ia que ela pode ser encontrada em dois pólos, a
vitimologia, por um lado, e o abolicionismo, por outro lado. Da primeira herdou-se a
preocupação central com o imperativo de reparação (em sentido lato) dos danos que a
prática do crime causou à vítima42. Do segundo proveio a rejeição do sistema de justiça
penal “clássico” ou “tradicional” como forma de solução do conflito que o crime é, por
ser prejudicial para o agente e para a comunidade.
A aceitação destes dois contributos não significa, porém, um acolhimento
integral e acrítico do legado vitimológico e do legado abolicionista. Pelo contrário, deu-
se uma certa mitigação daquelas correntes, com o abandono de alguns dos caminhos
trilhados por cada uma delas e com a eleição de apenas alguns filões do seu
pensamento.
Quando se olha para as origens da justiça restaurativa e se afirma que elas
radicam sobretudo no pensamento abolicionista e no pensamento vitimológico,
vislumbra-se um paradoxo que induz uma interrogação: como pode um modelo de
reacção ao crime pretender ser simultaneamente melhor para o agente do crime e
melhor para a sua vítima? Não são as aspirações de cada um, posteriores à ocorrência do
delito, incompatíveis? A procura de uma resposta para esta interrogação não pode
deixar de levar em conta algumas ideias. Em primeiro lugar, tem-se em conta a
afirmação de José de FARIA COSTA de que “um paradoxo pode ser uma excelente
placa giratória para o estudo e para a análise do que nos preocupa”43. Em segundo lugar,
deve reafirmar-se que os contributos daquelas correntes criminológicas não foram
integralmente utilizados na construção da proposta restaurativa, antes tendendo a surgir
em versões “mitigadas”44. Por último, em plena concordância com o defendido por

42
Para uma análise da inspiração que a justiça restaurativa colheu no pensamento vitimológico, cfr., a
título de exemplo, Robert CARIO, Justice Restaurative. Principes et Promesses, Paris: L’Harmattan, 2.ª
ed, 2010, p. 52 ss. O Autor refere-se, sobretudo, ao fortalecimento da exigência de reparação dos danos
causados às vítimas, simultaneamente como reconhecimento da sua dignidade mas também como
manifestação de preferência por reacções “menos vingativas” relativamente ao agente. O fortalecimento
da vitimologia é apresentado também por Antonio BERISTAIN como fundamento de uma “nova justiça”,
que denomina como “justiça victimal” e que é, essencialmente, uma “justiça reparadora” (in Derecho
Penal, Criminología y Victimología, Curitiba: Juruá Editora, 2007, p. 32 ss).
43
José de FARIA COSTA, “A criminalidade em um mundo globalizado: ou plaidoyer por um direito
penal não-securitáro”, Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais (visão luso-
brasileira), coord.: José de Faria Costa/Marco Marques da Silva, São Paulo, Quartier Latin: 2006, p. 90.
44
Deve admitir-se, de resto, que mesmo dentro de cada uma destas correntes criminológicas são
perceptíveis algumas relativas incoerências nas reivindicações. Olhe-se, a título de exemplo, para a
vitimologia. Depois de enunciar o princípio vitimológico enquanto um dos princípios directores do
programa político-criminal, Jorge de FIGUEIREDO DIAS refere os vectores em que aquele princípio
pode ser decomposto e, logo a propósito do primeiro, sublinha a existência de tensões contrapostas: «o
primeiro vector – e, de um certo ponto de vista, porventura o mais relevante – resolve a sua actuação no
âmbito do movimento da criminalização/descriminalização, onde aliás provocou as mais das vezes,

45
António García-Pablos de Molina, não se vê razão para o entendimento – infelizmente
comum – de que o respeito pelos direitos das vítimas só possa ser logrado à custa de
uma diminuição dos direitos dos agentes de crimes45.
Todavia, se a compreensão do surgimento da proposta restaurativa não deve
prescindir de uma reflexão – ainda que sucinta – sobre as influências da vitimologia e
do abolicionismo penal (e sobre a forma como este, por sua vez, se relaciona com a
criminologia crítica ou de sessenta46), há uma nota mais transversal à própria evolução
da criminologia que, enquanto pano de fundo, não pode deixar de se sublinhar. Essa
nota prende-se com a passagem de uma análise criminológica essencialmente
conformada por uma perspectiva etiológica e sociológica para uma ponderação também
da dimensão individual ou, como prefere Jorge de FIGUEIREDO DIAS, do “sistema
pessoal”. O que equivale a afirmar que não se olha já para o indivíduo sobretudo como
portador de uma carga endógena ou exógena que é a causa do crime (como sucedia na
criminologia positivista, que remetia o indivíduo a objecto de estudo sob a lente do
microscópio do cientista); nem se olha apenas para a sociedade e para a forma como ela,
ao reagir ao crime, pode potenciar o cometimento de crimes futuros. Observa-se o crime
enquanto acontecimento global que envolve, é certo, o agente, a vítima e a reacção
social. Mas, ao considerar-se a pessoa também como sistema individual e como ser
dotado de autonomia, abre-se espaço para uma corrente do pensamento que erige essa

compreensivelmente, tensões contrapostas: requerendo aqui o endurecimento da criminalização e da


penalização, em nome do direito de defesa, de protecção e de compensação das vítimas (e chegando por
aí, inclusivamente, a sufragar dicursos de “guerra ao crime” e de law and order); apoiando além, pelo
contrário – em nome da prevenção da vitimização potencial e de uma nova e mais aprofundada concepção
sobre o interesse de reparação da vítima –, movimentos de diversão, de descentralização e de
participação». O outro vector prende-se com a consideração da vítima enquanto destinatário da política
criminal, o que tem consequências ao nível do seu estatuto face às instâncias formais de controlo (in
Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, reimpressão, Coimbra: Coimbra
Editora, 2005, p. 76).
45
Veja-se, neste sentido, a enfática afirmação de António GARCÍA-PABLOS DE MOLINA
(“Principales centros de interés de la investigación criminológica”, Estudos em Homenagem ao Prof.
Doutor Jorge de Figueiredo Dias, org. Manuel da Costa ANDRADE/Maria João ANTUNES/Susana
Aires de SOUSA, Vol. III, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 1283) de que “o movimento vitimológico
(…) professa um certo anti-garantismo, esquecendo que os legítimos direitos e expectativas das vítimas
não têm de ser satisfeitos à custa daqueles dos infractores”. E o Autor alerta para o risco de que tal atitude
contribua, no âmbito político-criminal, para uma tentativa de imposição ao Estado de maior “veemência,
paixão e emotividade; de um rigor punitivo desmedido nem sempre justificado”.
46
Não pode, porém, deixar de se reiterar a natureza, a um primeiro olhar antagónica, destas duas
influências que se afirmam essenciais à compreensão da proposta restaurativa. Assim, se as correntes do
pensamento vitimológico são, na sua larga maioria, insuspeitas de manifestação de particular simpatia
pelo agente do crime, também a criminologia crítica (que tanto influencia o abolicionismo penal) vem
sendo acusada de um “total esquecimento das vítimas”. Sobre este último aspecto, cfr. Marcelo AEBI
(“Crítica de la criminologia crítica: una lectura escéptica de Baratta”, cit., p. 48).

46
autonomia na gestão do conflito criminal a pedra de toque de uma outra proposta de
reacção ao crime47.

2.   A vitimologia e a justiça restaurativa

A obra de Manuel da COSTA ANDRADE, A vítima e o problema criminal,


antecipa entre nós o reconhecimento da importância da vítima e anuncia, logo no seu
início, que “após uma ausência de séculos, assiste-se ao regresso da vítima ao
pensamento penal”48. Este regresso da vítima49 não significa, porém, um seu retorno nos

47
Nas significativas palavras de Jorge de FIGUEIREDO DIAS, “a criminologia deixa de assumir a
característica quase exclusivamente sociológica que a marcou até aos anos 60 do séc. XX, para abranger
também a consideração da individualidade da pessoa – não só do criminoso, mas de todo o participante
no sistema da justiça penal – e do âmbito de variação das suas possibilidades de decisão. Se é lícito
invocar um pensamento que preside à concretização da última filosofia de Niklas LUHMAN, dir-se-á que
em toda esta criminologia nova, graças à sua ligação privilegiada com a política criminal, à consideração
do sistema social vem juntar-se a consideração do sistema pessoal, a autonomia da pessoa, erigida agora
em um outro sistema auto-referente e auto-legitimador, como ser dotado de um círculo incompressível de
direitos, liberdades e garantias fundamentais” (in Direito Penal, Parte Geral – Tomo I, 2.ª ed. cit., p. 41).
48
Manuel da COSTA ANDRADE, A vítima e o problema criminal, Coimbra: Separata do volume XXI
do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1980, p. 11. Também
para Maria Rosa Crucho de ALMEIDA “a ideia de que a vitimação, hoje não em dia, não pode ser
considerada como mero incidente individual, mas antes como problema de política criminal, é o fio
condutor das reflexões e das práticas que tomam as vítimas como referências” [in “As relações entre
vítimas e sistema de justiça criminal em Portugal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, vol. 3, n.º 1
(1993), p. 103].
49
Impõe-se, nesta sede, um esclarecimento curto das razões pelas quais se elegeu o pensamento
vitimológico como elemento essencial para o recrudescimento da atenção prestada à vítima do crime. Não
vai implícita nessa eleição a ideia da inexistência, em momentos anteriores, da afirmação da necessidade
de reparação dos danos que o crime lhe causou. É sabido que vários autores associam essa linha de
pensamento a outras correntes, nomeadamente à Escola Positivista do Direito Penal. Neste sentido, veja-
se, por exemplo, a opinião de Pablo GALAIN PALERMO e Angélica ROMERO SÁNCHEZ
(“Criminalidad organizada y reparación. Hacia una propuesta político-criminal que disminuya la
incompatilidad entre ambos conceptos”, Universitas Vitae: Homenaje a Ruperto Nuñez Barbero, ed.
Fernando Álvarez et alia, Aquilafuente: Ediciones Universidad de Salamanca, 2007, p. 263) de que “a
escola positivista foi a primeira a considerar a reparação como uma pena que devia ser imposta de forma
coactiva pelo juiz (…). Rafael Garofalo, na sua Criminologia, anunciou que uma forma de repressão
contra determinados delinquentes era coagi-los a repararem o dano causado às vítimas; sustentou-o no
Congresso de Antropologia Criminal e Penitenciária de Roma em Novembro de 1885 e explicou-o
extensamente no seu Riparazione alle vitime del delitto de 1887”. Todavia, uma consideração integrada
das insuficiências do direito penal e do direito processual penal na perspectiva da vítima (a partir de uma
ponderação do seu relacionamento com as várias instâncias formais de controlo) que parece ter tido
consequências amplas no panorama político-criminal terá ficado a dever-se, pelo menos de forma mais
directa, ao pensamento vitimológico posterior à Segunda Grande Guerra Mundial. Não se julga cabida
neste contexto uma reflexão detida sobre as razões pelas quais esse “regresso da vítima” se associa hoje a
um determinado tempo, e não a outro. Essas razões serão, decerto, de várias ordens. É usual apontar-se
Benjamim MENDELSOHN como um dos fundadores do pensamento vitimológico. Professor judeu da
Universidade Hebraica de Jerusalém, proferiu em 1947, em Bucareste, uma conferência intitulada “Um
horizonte novo na ciência biopsicossocial: a vitimologia”, a qual veio a dar origem a uma publicação, em
1956, pela Revue Internationale de Criminologie et de Police Technique, sob o título “Une nouvelle
branche de la Science Biopsycho-sociale: la Victimologie”, 11 (2) p. 95 ss. Nesse estudo,
MENDELSOHN já afirmava que a criminologia tinha “esquecido a vítima por completo”, assim como
vincava a incoerência de uma sociedade que é “muito humana quando se trata daquele que violou a lei”
mas que se “desinteressa da vítima”, a qual ainda tem que “suportar o fardo da produção da prova”. Em

47
exactos moldes em que em épocas pretéritas assumia papel primordial na reacção ao
crime. O reconhecimento daquilo que a vítima não pode representar em um modelo de
reacção ao crime característico de um Estado de Direito – o “paradigma do direito penal
democrático hodierno”50 – deixa, todavia, em aberto a indagação sobre aquilo que ela
deve e pode representar, reflexão que se relega para momento posterior deste estudo. O
que nesta sede se pretende sublinhar é apenas a relevância da “descoberta da vítima”51,

1948, surgiu outra obra de referência para se compreenderem os primórdios da vitimologia, The Criminal
and his Victim, de Hans von HENTIG (New Haven: Yale University Press). O estudo de von HENTIG
não deixa, porém, de reveler o seu cariz vincadamente etiológico ou positivista, partindo o Autor do
entendimento de que se existem causas para o crime relacionadas com características do agente, existem
também causas (exógenas ou endógenas) que se associam à vítima. Nesta medida, The Criminal and His
Victim é uma obra marcante para aquela que se pode considerar uma primeira fase da vitimologia, mas
bastante menos relevante para as correntes vitimológicas que posteriormente escolheram como objecto a
questão da vitimização secundária. Para uma ponderação da importância dos pensamentos de Mendelsohn
e de Von Hentig no surgimento da vitimologia, cfr. Hermann MANNHEIM, Criminologia Comparada,
vol. II, tradução de José de Faria Costa e Manuel da Costa Andrade, Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1986, ps. 998-1003. Na actualidade, podem convocar-se vários factores para a explicação da
relevância crescente da vitimologia, mas talvez deva sublinhar-se, entre eles, o crescente medo de se ser
vítima de um crime, referido por Francisco Bueno ARUS: “existe um fenómeno social que não pode ser
ignorado, e que é a existência de um medo colectivo do delito, provocado quer pelo facto de se ter sido
em alguma circunstância vítima de um crime real, quer pelo medo imaginário que é produto de uma
percepção da realidade defeituosa ou de uma manipulação interessada de terceiros, tanto mais fácil quanto
mais excepcionais forem as circunstâncias económicas e políticas que uma determinada sociedade
atravessa” (in “La posición de la víctima en el moderno sistema penal”, Boletim da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra LXX, 1994, p. 371).
50
Acompanha-se Jorge de FIGUEIREDO DIAS na sua afirmação de que aquele “paradigma do direito
penal democrático hodierno pode (…) reduzir-se a um princípio político-criminal fundamental,
directamente atinente à questão da sua legitimação e susceptível de se traduzir doutrinariamente pela
forma seguinte: todo o direito penal é um direito penal do bem jurídico” («O “direito penal do bem
jurídico” como princípio jurídico-constitucional – da doutrina penal, da jurisprudência constitucional
portuguesa e das suas relações», XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra:
Coimbra Editora: 2009, p. 33). Ora, um direito penal que é um direito penal do bem jurídico não pode ser,
simultaneamente, um direito penal de promoção da vontade da vítima quanto às consequências para o
crime. Todavia, concorda-se com a ideia defendida, entre outros, por Pablo Galain PALERMO de que o
reconhecimento desta função penal de protecção de bens jurídicos não tem de equivaler a uma
desconsideração dos interesses das vítimas concretas. Nas suas palavras e fazendo apelo à linha
argumentativa acolhida por Hassemer, “o conceito de bem jurídico, por mais que possa albergar a
protecção de interesses difusos ou colectivos reconhecidos pela Constituição, deve reconduzir-se sempre
ao indivíduo como único destinatário das normas”. De forma porventura mais enfática, o Autor
acrescenta que “não se pode prescindir da função de protecção de bens jurídicos, ainda que também, num
Estado democrático de direito (social ou liberal) se não possam esquecer as necessidades da vítima directa
pelo mero facto de evitar – no discurso político-criminal – possíveis paradoxos com uma orientação penal
para as vítimas potenciais” (La reparación del daño a la víctima del delito, Valência: Tirant Lo Blanch,
2010, ps. 60 e 67).
51
A razão pela qual se opta pelo conceito “descoberta da vítima” em detrimento da expressão, mais
corrente, “redescoberta da vítima” prende-se com o facto de se julgar que a forma como agora se deve
olhar para a vítima tem escasso paralelismo com o que sucedeu na denominada “idade de ouro da vítima”
anterior ao fortalecimento do Estado punitivo (sobre esse conceito de “idade de ouro” da vítima, cfr.
Stephen SCHAFER, The Victim and His Criminal: A Study in Functional Responsability, Nova Iorque:
Random House Inc, 1968, p. 7 ss). Os direitos que se pensa que devem reconhecer-se à vítima – e que
serão objecto de referência em outro contexto – não radicam na ideia de que lhe cabem juízos finais ou
determinantes na opção pela punição e na modelação dessa punição. Concorda-se, nesta medida, com as
críticas que Autores como Ana SCHMIDT DE OLIVEIRA (in A Vítima e o Direito Penal, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999, p. 56 ss) e Guilherme COSTA CÂMARA (Programa de Política Criminal

48
muito associada ao fortalecimento do pensamento vitimológico, para a compreensão da
génese da proposta restaurativa52.
É bem conhecida a tendência, no próprio âmbito vitimológico, para uma
mudança do enfoque dado ao estudo da vítima. Um pouco à semelhança do que
aconteceu na criminologia com a deslocação da atenção do homem delinquente (no
paradigma positivista) para o funcionamento das instâncias formais de controlo (no
paradigma crítico); também a vitimologia passou por uma fase primeira de concentração
quase exclusiva no estudo da vítima e dos modos pelos quais ela poderia condicionar a
sua própria vitimização, para depois alargar a sua atenção ao modo como as instâncias
formais de controlo se relacionam com a vítima. Poder-se-ia, assim, de certo modo
(simplificado) afirmar que também na vitimologia se detecta uma fase mais positivista
ou etiológica e uma fase mais crítica53.
Todavia, na sua relação com a vitimologia, a justiça restaurativa terá certamente
atribuído menor ênfase à denominada vitimologia penal e ao estudo dos
comportamentos da vítima que contribuem para o surgimento da infracção criminal. A
vitimodogmática54, que poderá ser entendida como uma procura de conclusões sob o

orientado para a Vítima do Crime, Coimbra: Coimbra Editora: 2008, ps. 60-1) tecem ao uso daquela
expressão “redescoberta da vítima”. Nas palavras deste último, “redescobrir indica um movimento de
retorno e (…) a vítima que constitui actualmente objecto de investigação e que se insere de modo cada
vez mais pronunciado no multiversum penal não carrega os mesmos traços e as mesmas marcas das
vítimas das eras mais priscas”. Rejeita-se, pois, a ideia “equivocada de que se estaria, quiçá, a pretender
um retorno ao passado, estremando-se todos os ganhos e aquisições conceituais conquistados na lavra dos
séculos” e opta-se pelo conceito de “moderna perspectivação da vítima”.
52
Sobre esta associação entre a vitimologia e a proposta restaurativa, cfr., a título de exemplo, Robert
CARIO (Justice Restaurative: Príncipes et Promesses, Paris: L’Harmattan, 2.ª ed., 2010, p. 134 ss), que
apresenta como uma das principais promessas da justiça restaurativa a reparação dos danos causados à
vítima, imposta pela “reconsideração da dignidade de cada pessoa” mas conducente, em última análise, à
“restauração da harmonia social”. Veja-se ainda, com uma perspectiva não muito distante, Ignacio José
SUBIJANA, “Las víctimas en el sistema penal. En especial, la justicia restaurativa”, Panorama Actual y
Perspectivas de la Victimologia: La Victimologia y el Sistema Penal, Dir. Juan Pablo GONZÁLEZ,
Consejo General de Poder Judicial, Madrid: 2007, p. 227 ss.
53
Sobre a actual importância da vitimologia no panorama criminológico e sobre a evolução do enfoque
vitimológico, cfr. António GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, “Principales centros de interés de la
investigación criminológica”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias cit., p.
1279 ss.
54
Apesar de serem conhecidas há muito, no âmbito da própria reflexão penal, hipóteses em que se afigura
relevante a interacção vítima-agente – pense-se no exemplo do crime de burla –, é o estudo sistemático de
tais fenómenos, encetado pela vitimologia, que faz surgir a ideia de que o comportamento da vítima
poderia constituir, de algum modo, uma categoria dogmática e, logo, um aspecto de valoração necessária
aquando da sistemática do delito. É certo que o modo como tal comportamento da vítima deve ser
valorado não é pacífico. Numa consideração radical da questão, Bernd SCHÜNEMANN desenvolve o
princípio da auto-responsabilidade, segundo o qual a vítima tem de ser responsabilizada pelo seu próprio
comportamento, no sentido em que deve evitar que ele seja causa do crime, sob pena de cessar o direito
que tem à protecção dos seus interesses caso não tenha tomado as precauções necessárias (o que excluiria
a responsabilidade criminal do agente); já autores como Thomas HILLENKAMP relativizam o relevo que
deve ser atribuído ao comportamento da vítima, remetendo-o para objecto de valoração apenas em sede

49
ponto de vista dogmático a partir da verificação de que alguns delitos ocorreram com a
participação da vítima, será em princípio uma linha de análise pouco cultivada pela
maioria dos defensores da justiça restaurativa. Esta revelará sempre uma menor vocação
para a compreensão daquilo que sucedeu antes do cometimento do crime e uma maior
aptidão para a procura de uma solução para os males que depois dele sobraram. Nessa
medida, a vitimologia geral, mais centrada nas consequências que da infracção resultam
para a vítima, terá sido um maior factor de inspiração55.
Não obstante, agora também sob uma outra perspectiva, pode achar-se que a
justiça restaurativa precisa de cortar pelo menos alguns laços com a vitimologia: ao

de determinação da medida da pena. Os estudos atinentes à vitimodogmática são extensos, não cabendo
nos propósitos deste estudo sequer uma sua resumida apresentação. Todavia, para uma análise da
evolução de tal debate no direito penal alemão, vide SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria, “Consideraciones
victimológicas en la teoría del delito? Introducción al debate sobre la victimodogmática”, Criminologia y
Derecho Penal al servicio de la persona: Libro-Homenaje al Profesor Antonio Berinstain, San Sebastián:
Ed. Instituto Vasco de Criminologia, 1989, p. 617 ss. De forma muito crítica relativamente ao referido
princípio da auto-responsabilidade, BUSTOS, Juan e LARRAURI, Elena, afirmam que “com ele não só
desapareceria o princípio do bem jurídico como categoria garantista material, como também se
desconheceriam os direitos da pessoa (...) e consequentemente as próprias bases de um sistema
democrático de direito actual, fundado numa estrutura de exercício da liberdade por parte dos cidadãos. O
direito penal converter-se-ia no direito dos juizes e dos seus sentimentos e padrões morais ou políticos. E,
nessa medida, o Estado deixaria de cumprir a sua tarefa de organização e de mediação em conflitos (...).
O Estado e o direito não podem exigir por princípio para a protecção dos seus direitos que as pessoas
protejam os seus direitos, isso seria negar o reconhecimento dos seus direitos e passar novamente à ideia
de que os direitos são outorgados (...). Pelo contrário, o dever de proteger é do Estado, na medida em que
se trata de direitos que tem de reconhecer, pois são dos cidadãos” (cfr. Victimología: Presente y Futuro –
Hacia un sistema penal de alternativas, Barcelona: PPU Iura, 1994, p. 27-8). A rejeição daquele princípio
baseia-se, também, na relevância do acordo ou do consentimento que devem, esses sim, ser tidos em
conta aquando da valoração da conduta como típica e ilícita. Como também notam aqueles Autores (ob.
cit., p. 30), “o consentimento não surge do princípio vitimodogmático da auto-responsabilidade, mas sim
da autonomia ética das pessoas, isto é, da consideração geral de um sistema democrático participativo em
que os direitos são das pessoas e, portanto, elas têm a sua disponibilidade”.
55
Sobre essa duplicidade na forma como a vitimologia olhou para a vítima, veja-se a interessante
afirmação de Manuel da COSTA ANDRADE (A vítima e o problema criminal cit., p. 20) de que “ a
vítima entrou simultaneamente pela porta da culpa (reclamando uma quota maior ou menor da
responsabilidade dum evento, dantes imputado por inteiro ao delinquente) e pela porta da simpatia –
protestando contra o ostracismo a que a votava o direito clássico e reivindicando que, para além ou
mesmo antes, de se punir o delinquente, se cuide de fechar as suas próprias chagas”. A evolução no modo
como a vitimologia encarou a vítima é também sublinhada por Elena HIGHTON/Gladys
ALVAREZ/Carlos GREGORIO (Resolución Alternativa de Disputas y Sistema Penal, Buenos Aires: Ad-
Hoc, 1998, p. 47): «começou-se a estudar o papel da vítima no delito, assinalando-se que nem sempre é
inocente, ou regular, ou normal. Segundo certa opinião, conforme às ideias sobre a vítima enquanto
coadjuvante ou colaboradora do infractor naquilo que se denominou a “parelha penal”». Ainda a
propósito destes primórdios da vitimologia, refere que “o reaparecimento da vítima significou partilhar o
drama penal juntamente com o agente”. Para depois se dar conta da mudança no pensamento
vitimológico, afirma-se que “na década de oitenta surge um especial dinamismo em matéria de
vitimologia, caracterizado pela preocupação com as necessidades e os interesses da vítima”. No estudo de
Claudia LÓPEZ DÍAZ, Acciones a Proprio Riesgo – Exclusión de la Tipicidad por Responsabilidad de la
Víctima con Base en una Concepción Funcional Estructural de la Sociedad (Bogotá: Universidad
Externado de Colombia: 2006, p. 23) também se distinguem as “investigações que tendem a estabelecer
uma maior protecção para a vítima do crime ou a reduzir a responsabilidade dos sujeitos que atentam
contra os interesses da vítima quando esta se mostra especialmente descuidada com eles”, esclarecendo a
Autora que a sua própria investigação se insere neste segundo grupo.

50
pretender curar ainda da reparação da paz comunitária e ao desejar fazê-lo garantindo a
participação e o empenho comunitário na solução do conflito, é uma outra entidade a
quem se dá voz na busca da solução para o conflito. Afasta-se o Estado mas chama-se a
comunidade. E entre as muitas e profundas interrogações que daqui nos nascem há uma
que nesta sede parece pertinente: caso o interesse comunitário quanto ao modo de
melhor reparar o mal ocorrido não coincida com o interesse da vítima, qual prevalecerá?
O que leva ao questionamento sobre se o chamamento da comunidade à lide, enquanto
sujeito do diálogo que se pretende reparador, não significará uma necessária, ainda que
relativa, limitação do papel a desempenhar pela vítima. Não se pretende, para já, tomar
posição sobre qualquer uma destas questões, mas apenas deixar a nota de que uma
afirmada “vocação comunitária” da justiça restaurativa – com a qual se não manifesta,
de momento, concordância, até porque subsistem problemas fundos na própria
delimitação do conceito de “comunidade” – pode, pelo menos a um primeiro olhar,
suscitar interrogações no que tange à apresentação da vítima como sujeito preferencial
da solução restaurativa.
Aquilo que agora se pretende vincar é, antes, que a ideia central que a justiça
restaurativa terá ido buscar à vitimologia é precisamente a da recusa da exclusão da
vítima da solução do conflito de que foi parte56. E nem se pode dizer que assim se esteja
perante uma radical novidade: são conhecidas, desde logo nos primórdios do direito
penal, formas de composição nas quais interviriam as vítimas e/ou os seus familiares ou
representantes, assim como se conhece a existência do sistema acusatório privado. O
reconhecimento das desvantagens de tal modelo conduziu, porém, à sua superação e ao

56
A centralidade desta ideia justifica, de resto, a importância do pensamento de Nils CHRISTIE na
teorização da justiça restaurativa. Como o Autor sublinha (“Conflicts as Property”, British Journal of
Criminology, 1977, vol. 17, n.º 1, p. 1 ss), “o que representa a mais significativa pertença subtraída é o
conflito em si mesmo, e não os bens originariamente arrebatados à vítima, ou a ela restituídos. Nas nossas
sociedades, os conflitos são mais escassos do que a propriedade, e imensamente mais valiosos”. Depois
de referir que um dos problemas sérios das sociedades industrializadas é o de conseguir uma organização
dos seus membros que permita que pelo menos uma sua parte considerável se empenhe em alguma
actividade, afirma que «é claramente visível que os conflitos representam um potencial para a actividade,
para a participação. O sistema de controlo punitivo actual representa uma das tantas oportunidades
perdidas de envolver o cidadão em tarefas que têm para si uma importância imediata. A nossa é uma
sociedade de monopolizadores de tarefas. Nesta situação, a vítima é “o” grande perdedor». Este abandono
da vítima seria, assim, de algum modo justificado por uma ideia estruturante do próprio sistema penal, a
de que a resposta ao crime, para ser justa, tem de ser desapaixonada e imparcial. Entre nós, há mais de
duas décadas já Manuel da COSTA ANDRADE se pronunciava sobre o conceito de roubo do conflito,
afirmando que “com esta expressão pretendem alguns criminólogos traduzir o esvaziamento do estatuto
criminal da vítima, num sistema penal que veio a estruturar-se em termos diádicos delinquente-estado,
pela via da hipostasiação dos interesses do Estado e sua progressiva sub-rogação na posição originária da
vítima” [in “Consenso e oportunidade (reflexões a propósito da supensão provisória do processo e do
processo sumaríssimo)”, O novo Código de Processo Penal, Coimbra: Almedina, 1992, p. 331].

51
surgimento do sistema inquisitório, alicerçado na visão de que o sistema penal é um
instrumento do controlo estadual sobre os súbditos. Neste sentido, MAIER57 realça que
«já não interessava aqui o dano real produzido, enquanto restituição do mundo ao statu
quo ante, ou, pelo menos, a compensação do dano sofrido; aparecia a pena estatal como
mecanismo de controlo dos súbditos pelo poder político central, como instrumento de
coacção – o mais intenso – nas mãos do Estado, que o utilizava de oficio, sem
necessidade de uma queixa que lhe fosse externa; o conflito tinha-se “estadualizado”:
por isso se fala, pleonasticamente, em uma “criminalização do Direito Penal”, ou
melhor, da origem do direito penal, tal como hoje culturalmente o conhecemos, ou
melhor ainda, do “nascimento” da pena».
Ainda que se compreendam as críticas dirigidas a um tal modelo à luz da
(esquecida) tutela dos interesses da vítima no processo (doravante exclusivamente
polarizado entre o Estado e o agente da infracção), já parece todavia excessiva uma sua
transposição integral, séculos depois, para estruturas processuais que há muito
abandonaram o sistema inquisitório puro. Em uma estrutura acusatória integrada por um
princípio da investigação – qualificação dada ao actual sistema processual penal
português e que se pode alargar a grande parte dos sistemas processuais penais
contemporâneos que partilham do mesmo contexto civilizacional –, a vítima recuperou
um relevante papel. Pense-se, a título de exemplo, apenas na possibilidade que o
ofendido pela prática de uma infracção tem, entre nós, de se constituir assistente,
adquirindo assim a veste de verdadeiro sujeito processual e as possibilidades de
conformação do desenrolar do próprio processo que lhe são inerentes.
O que justifica a subsistência da acusação de esquecimento da vítima, mesmo
num sistema processual penal aberto à sua participação, parece ser o argumento de que
a tal possibilidade formal de participação não corresponderá uma possibilidade real de
conformação do processo penal que culmine com a satisfação das reais necessidades da
vítima. Ora, constituindo essa dimensão reparadora uma das linhas estruturantes de um
certo pensamento vitimológico que foi incorporada pelo pensamento restaurativo,

57
Júlio MAIER, últ. ob. cit., ps. 185-6. De forma próxima, António BERISTAIN escreve que «no
processo penal o Estado diz que o ofendido é ele e a vítima, por mais que demonstre que sofreu a lesão no
seu corpo, ou que o roubo o sofre no seu património, é ignorada” (“Palacio de Justicia com tejado a cuatro
aguas: derecho penal, criminologia, victimología y religión”, Universitas Vitae: Homenaje a Ruperto
Nuñez Barbero, Ed. Fernando Pérez ÁLVAREZ, Aquilafuente: Ediciones Universidad de Salamanca,
2007, p. 85).

52
compreende-se a importância da criação de programas de mediação vítima-agressor
orientados por tal propósito58.
A preocupação manifestada pela vitimologia com a redefinição do estatuto da
vítima [onde sobrelevam (I) a sua necessária consideração enquanto sujeito do processo
de procura de uma solução para o conflito interpessoal, seja qual for a sua natureza; (II)
a promoção de uma solução efectivamente reparadora dos seus danos, que podem não
ser exclusiva ou essencialmente patrimoniais] não impõe como sua condição necessária
uma qualquer diminuição dos direitos do arguido. A consideração da perspectiva que a
vítima tem do problema criminal não impõe uma menor atenção à óptica do agente (ou
seja, o sinal “mais” relativamente a um não terá de se traduzir num sinal “menos”
relativamente ao outro)59.
Em síntese: sem o contributo e o crescente relevo do pensamento vitimológico,
permaneceria difícil a afirmação – que se julga correcta – de que «a centralidade das
vítimas está no coração mesmo de qualquer resposta dada pela justiça restaurativa. Isso
inclui a possibilidade de expressar sentimentos e pontos de vista sobre a forma como a
reparação pode ser feita. Também inclui a possibilidade de expressar uma opinião sobre
aquilo que deve suceder ao agressor, ainda que não necessariamente determinante do
desfecho do caso. Procurar reparar e “empoderar”as vítimas é um elemento definitório
da justiça restaurativa»60.
Depois de se dar conta de uma certa associação da proposta restaurativa ao
surgimento e fortalecimento de um movimento de descoberta da vítima, deve porém
sublinhar-se que sob esta designação cabem linhas de reflexão muito distintas no que ao
próprio significado dessa descoberta respeita. Assim, não será seguramente o mesmo
ponderar-se essa “descoberta da vítima” na criminologia, no direito penal, no direito
58
Assim, ao analisarem o modelo belga de mediação penal, Cândido da AGRA e Josefina CASTRO
(“Mediação e justiça restaurativa: esquema para uma lógica do conhecimento e da experimentação”,
Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano II, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, ps.
100-1) destacam, entre outras duas modalidades, a mediação com fins reparadores, que caracterizam
como “uma abordagem reparadora face à centração da justiça formal no delinquente, na sua punição ou
na sua reabilitação”. Como notam os Autores, “pretende-se dar à vítima a oportunidade de ser reparada
dos danos materiais e não materiais sofridos, fornecer ao autor do delito a ocasião de se reabilitar junto da
vítima e oferecer à justiça penal a possibilidade de invocar uma solução negociada”.
59
A preocupação em distinguir “a disciplina da vitimologia (a ciência da vítima do crime), que constituiu
uma parte da criminologia”, da actividade de organizações de apoio à vítima (que nem sempre
“mereceram a aprovação integral das associações vitimológicas científicas”, por força da sua parcialidade
e do seu empenho em políticas criminais “hostis ao agente”) é sublinhada por Hans SCHNEIDER
(“Victimological Developments in the World During the Past Three Decades: A Study of Comparative
Victimology”, International Journal of Offender Therapy and Comparative Criminology, 45 (4), 2001, p.
450).
60
Katherine DOOLIN, “But what does it mean? Seeking definitional clarity in restorative justice”,
Journal of Criminal Law, 71 (5), 2007, p. 439.

53
processual penal ou na política criminal. A descoberta da vítima que sobretudo se quis
associar à génese do pensamento restaurativo foi aquela relacionada com uma nova
perspectiva criminológica, a vitimologia, que erige a vítima (e a vítima na sua relação
com as instâncias de controlo) a objecto de estudo. E, porventura consequentemente, a
afirmação da vítima também como destinatária da política criminal e as consequências
que daí decorrem ao nível da necessidade de criação de mecanismos que permitam a
defesa dos seus interesses.
Não se desconhece, porém, que a “questão da vítima” se estendeu a outros
domínios das ciências criminais em sentido amplo, nomeadamente à própria dogmática
penal (por força não só da vitimodogmática, mas também de outras correntes de
argumentação, como a relacionada com a afirmação de um “direito subjectivo da vítima
à punição do agente” que quase eleva a reafirmação da dignidade da vítima a fim da
pena, e que merecerá ponderação em momento posterior deste estudo); à teoria das
consequências jurídicas do crime (nomeadamente através da defesa da reparação como
“terceira via”, para além das penas e das medidas de segurança); ou à teoria do próprio
processo penal (cada vez mais orientada para a reflexão em torno das formas de
participação da vítima no processo ou para a criação de mecanismos de protecção dos
seus direitos, nomeadamente à segurança, no processo e após o processo).
Um dos problemas de fundo que parece imputável a várias linhas de
argumentação “orientadas para as vítimas” prende-se, precisamente, com uma certa
incapacidade de distinguir cada um destes âmbitos, numa “espiral reivindicativa” que é
sempre de mais direitos para a vítima, como se uma admissão de todos eles fosse ainda,
em qualquer caso, compatível com a consecução das finalidades específicas por
exemplo do direito penal ou do direito processual penal.
Ora, precisamente a partir desta ideia, não poderá deixar de constituir objecto da
análise subsequente uma ponderação daquilo que existe de específico na forma como a
justiça restaurativa se propõe reparar os danos causados à vítima do crime, sempre a
partir de uma reflexão comparativa que não desconheça os institutos também orientados
para a vítima já admitidos pelo direito penal e pelo direito processual penal, em uma
linha de análise que se pretende teleológica, ou seja, centrada no pensamento das
finalidades (e, por isso, também dos limites) de cada um dos sistemas.
Essa reflexão conduzirá, porventura e segundo agora se julga, à conclusão de
que aquilo de que pode carecer a vítima de um crime é de naturezas muito diversas,
cabendo ao direito penal e ao direito processual penal apenas uma parcela de

54
responsabilidade na satisfação de algumas dessas necessidades61. Talvez se venha a
concluir que a preocupação com essas necessidades concretas da vítima passada não
corresponde a uma função primeira da justiça penal (o que, se não equivale à defesa da
desconsideração da vítima nessa justiça penal, não deixa porém de impor limites à
forma como a satisfação das suas necessidades pode erigir-se a pedra de toque). O
interesse da vítima é conformador de várias orientações político-criminais e é
contemplado em vários institutos do nosso direito penal e do nosso direito processual
penal. Todavia, os limites que as próprias finalidades do direito penal e do direito
processual penal impõem à prossecução de uma tutela plena de todos os interesses
daquela vítima relançam, segundo também se crê, a forma como algumas das suas
necessidades poderão merecer acolhimento em modelos de reacção ao crime (e à
vitimização) distintos do modelo penal62.

61
Em pesquisa levada a cabo entre Maio de 2009 e Março de 2010 e dedicada ao papel atribuído à vítima
no processo penal brasileiro, foi possível chegar a conclusões bastante claras sobre aquelas necessidades
que as vítimas entendem que são as suas. A pesquisa, a partir da identificação de uma variável comum
que era a “relação de pessoalidade entre réu e vítima”, chegou à conclusão de que a punição do agente
não correspondia às necessidades mais claramente manifestadas pelas vítimas, que referiam, antes, a
reparação dos danos, a protecção e a pacificação do conflito. Aquilo que se pretende vincar nesta
conclusão são sobretudo dois aspectos. Em primeiro lugar, a verificação da especificidade dos conflitos
criminais que pressupõem uma relação de proximidade existencial. Essa especificidade será, porventura,
útil à afirmação posterior da especial adequação da proposta restaurativa a conflitos com esta natureza.
Em segundo lugar, ressalta do estudo a confirmação de que uma maior protecção da vítima não significa
necessariamente um endurecimento do sistema punitivo. A partir da verificação da mencionada variável
da relação de pessoalidade entre o arguido e a vítima, afirma-se que “essa constatação, adicionada aos
próprios resultados da pesquisa, levaram-nos a concluir que o papel desempenhado pela vítima na cena
processual deve ser definido, antes e primeiramente, a partir da qualificação do conflito do qual originou
a sua condição. Isso decorre do facto de que também os seus interesses no curso do processo e em seu
desfecho tendem a variar segundo essa qualificação. Como já apontado nas descrições e análises
empíricas apresentadas, não são sentimentos de vingança e desejos de maior punição que
necessariamente emergem das falas e das representações das vítimas. Ao contrário, pelas entrevistas e
observações realizadas junto às vítimas de crimes interpessoais são, antes de tudo, expectativas de
protecção estatal, resolução do conflito e reparação – material e moral, sem vinculação com o
retributivismo clássico da pena de prisão – que podem ser identificadas nos seus discursos (…). Abrem-
se, deste modo, perspectivas de maior protagonismo para as vítimas no âmbito da justiça penal que não
resvalem para a deriva do populismo penal, ou seja, da instrumentalização da vítima em prol de uma
política criminal de matriz neoconservadora”. Cfr. Marcos ALVAREZ/Alessandra TEIXEIRA/Maria
JESUS/Fernanda MATSUDA/Fernando SALLA/Caio SANTIAGO/Veridiana CORDEIRO (“A vítima no
processo penal brasileiro: um novo protagonismo no cenário contemporâneo?”, Revista Brasileira de
Ciências Criminais, 86, Set-Out. 2010, ano 18, ps. 286-7).
62
A ideia de que a justiça penal não será o lugar por excelência de defesas das necessidades da vítima
concreta e passada parece ser perfilhada por Autores como Cornelius PRITTWITZ que, depois de
reconhecer que “é óbvio que as vítimas de crimes assumiram um papel proeminente no estudo da lei
criminal”, se questiona sobre as razões explicativas desse “interesse recém-descoberto”. Na sequência da
sua afirmação da improbabilidade de que tal estado de coisas seja uma “coincidência”, elenca uma
explicação fácil, mas porventura “trivial”: “o novo foco da lei penal na vítima é uma resposta à nossa
prévia negligência do tópico”. Todavia, com mais interesse para o ponto em análise, considere-se a
afirmação do Autor de que, para além disto, “é difícil identificar a razão para a nova proeminência da
vítima no estudo da lei criminal. Eu acho que é porque não existe razão nenhuma” (“The Resurrection of
the Victim in Penal Theory”, Buffalo Criminal Law Review, 1999, vol. 3, p. 111).

55
3.   O abolicionismo penal e a justiça restaurativa

Na génese do pensamento restaurativo está, como de resto já se foi referindo, a


negação da natureza ontológica63 do crime e a crítica do sistema penal estadual,
acompanhadas pela convicção de que os danos resultantes do cometimento daquilo a
que se quis chamar crime poderiam encontrar solução mais adequada – sob a
perspectiva da vítima, mas também à luz dos interesses do agente e da comunidade –
caso se adoptasse um outro procedimento, mais participado e orientado por objectivos
diversos, que assim substituiria a justiça penal64.
Deste modo, a compreensão do ideário da justiça restaurativa não dispensa, quer
para o esclarecimento daquilo que os une, quer para o esclarecimento daquilo que hoje
os distingue, um voltar de olhos para o pensamento abolicionista. De forma
simplificada, talvez possa antecipar-se a ideia de que a proposta restaurativa tem na sua
origem um património de ideias de inspiração abolicionista, ainda que a certo passo

63
Segundo Nils CHRISTIE, “o crime não existe”, o que não pode ser interpretado como significando que
não existam actos desvaliosos. Para o Autor, “o crime é um produto de processos culturais, sociais e
mentais”. E acrescenta: “o delito pode ser tantas coisas e, ao mesmo tempo, nenhuma. O conceito de
crime é livremente utilizável. O desafio é entender a sua utilização pelos vários sistemas, e através desse
entendimento ser capaz de avaliar a sua utilização e os seus utilizadores” (in A Suitable Amount of Crime,
Londres: Routledge, 2004, p. 10 ss). A conclusão de que aquilo que é uma infracção penal resulta de uma
mera opção humana vertida na actividade criminalizadora é, em regra, sustentada pela afirmação da
relatividade temporal e da relatividade espacial do crime. No fundo, o que se afirma é que se algumas
condutas foram qualificadas como crimes em outo tempo e deixaram de o ser neste tempo e se outras
condutas são tratadas como criminais em determinados lugares mas não já em outros, crime não é aquilo
que o tem de ser por força da sua própria natureza, mas antes aquilo que algumas pessoas escolhem que
seja. Os exemplos apresentados para defender este entendimento associam-se, em regra, à interrupção
voluntária da gravidez, à tentativa de suicídio, à bigamia ou ao consumo de estupefacientes. Ora, se
quanto a estas condutas – e a outras – não se vê como possa negar-se a relatividade da criminalização, já
parece mais difícil alargar tal conclusão a comportamentos como o “matar outrem” (ainda que, mesmo
aqui, possam detectar-se divergências espácio-temporais naqueles actos de matar outra pessoa que
acabam por não se qualificar como criminais, por exemplo por força de juízos sobre a atipicidade ou a
licitude da conduta; assim, por exemplo, aquilo que em certos países de determinado contexto
civilizacional seria considerado crime de homicídio, em outros é justificado enquanto conduta de defesa
da honra, de uma determinada concepção de família, da religião ou da pátria).
64
Na senda, assim, da recorrentemente citada afirmação de Gustav RADBRUCH de que “poderia até (…)
verificar-se que o desenvolvimento do direito penal está destinado a dar-se, um dia, para além já do
próprio direito penal. Nesse dia a sua verdadeira reforma virá a consistir, não tanto na criação dum direito
penal melhor do que o actual, mas na dum direito de melhoria e de conservação da sociedade: alguma
coisa de melhor que o direito penal e, simultaneamente, de mais inteligente e mais humano do que ele”
(in Filosofia do Direito, tradução e prefácio do Prof. L. Cabral de Moncada, vol. II, 3.ª edição, Coimbra:
Arménio Amado Editor, 1953, p. 102). Sem se querer antecipar nesta sede as reflexões que de seguida se
deverão encetar sobre o relacionamento da proposta restaurativa com a justiça penal, talvez possa porém
afirmar-se desde já que correspondem mais à forma como se vê o problema as ideias de que temos que
fazer do Direito Penal algo melhor e de que temos também que fazer coisas diferentes do Direito Penal.

56
comece a trilhar um caminho próprio, por vezes até aberto à custa do reconhecimento
das limitações daquele abolicionismo penal65.
Ora, se parece evidente a impossibilidade de uma qualquer análise, ainda que
superficial, do abolicionismo sem uma referência à obra de Louk Hulsman, também se
afigura clara e marcante a influência da denominada criminologia de 60 no pensamento
deste Autor66. O que equivale a afirmar a importância, mediata ou em muitos casos
mesmo directa, da igualmente chamada criminologia crítica para a compreensão do
espólio de ideias da justiça restaurativa67.
Ainda que não se desconheça o facto de que sob essa denominação de
criminologia crítica68 se agrupam distintas correntes criminológicas – tendo adquirido

65
Sobre uma certa “falência”daquele que considera ter sido o reflexo, em Itália, do pensamento
abolicionista – o direito penal mínimo – e sobre algumas alternativas (como a justiça restaurativa) que
também reconhecem os limites da punição, cfr. Luciano EUSEBI, “Quale oggetto dell’abolizionismo
penale? Appunti nel solco di una visione alternativa della giustizia”, Studi sulla Questione Criminale, n.º
2, 2011, p. 81 ss. Entre as críticas que endereça às penas, sobressaem a de que não reconstrói as relações,
antes aprofundando as divisões e a de que não possibilita uma efectiva reparação da vítima, dando-lhe
uma resposta apenas simbólica.
66
Por mais que sejam notórias várias ideias fortes comuns à criminologia crítica e ao abolicionismo,
sempre se pode dizer que aquela começou por ter particular expressão nos Estados Unidos da América,
enquanto este terá conhecido os seus expoentes máximos entre pensadores europeus, sobretudo no norte
da Europa. Considerem-se os exemplos de Hulsman, Christie ou Mathiesen.
67
A propósito do modo como as ideias centrais da criminologia crítica influenciaram, depois da década
de sessenta, várias correntes do pensamento criminal, veja-se a afirmação de Nilo BATISTA de que
«quando se olhava para o futuro, o prognóstico comum apostava na redução do sistema penal, do qual
cumpria subtrair o maior número possível de conflitos. “Descriminalização”, “desjudicialização” e
“despenalização” eram expressões que pululavam nas publicações especializadas dos anos setenta, ao
lado de “ultima ratio”, “direito penal mínimo”, “abolicionismo” e tantas outras apontadas para a mesma
direcção» («”Só Carolina não viu” – Violência Doméstica e Políticas Criminais no Brasil”, Comentários
à Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, 2.ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora,
2009, p. x).
68
Por criminologia crítica refiro-me, como de resto sucede com frequência, à crítica do positivismo
criminológico surgida no início da segunda metade do século vinte. Não se desconhece, porém, o
pensamento de autores que fazem coincidir tal denominação apenas com a nova criminologia de Taylor,
Walton e Young, expoente da crítica materialista do idealismo criminológico dos anos sessenta [assim,
v.g., LARRAURI, Elena, La Herencia de la Criminologia Crítica, 3.ª ed., Madrid: Siglo Veintiuno de
España Editores, 2000 (1.ª ed. de 1991) p. 139 ss] ou com o surgimento de um conjunto de correntes
criminológicas posteriores à criminologia radical, nomeadamente o realismo de esquerda (neste sentido,
SCHWARTZ, Martin/FRIEDRICHS, David, “Postmodern thouhgt and criminological discontent: new
metaphors for understanding violence”, in Criminology, 1994, vol. 32, n.º 2, p. 222). Também Massimo
PAVARINI utiliza o conceito de “criminologia crítica” de forma mais restrita do que a adoptada na
investigação, não a localizando nunca antes da criminologia marxista ou radical [cfr. PAVARINI,
Massimo/MUÑAGORRI, Ignacio, Control y Dominación, Teorías Criminológicas Burguesas y Proyecto
Hegemónico, 8.ª ed., México D.F.: Siglo Veintiuno Editores, 2003 (1.º ed. em italiano de 1980, 1.ª ed. em
espanhol de 1983), p. 155 ss]. A justificação para o entendimento mais amplo que se opta por dar à
denominação “criminologia crítica”, bem como uma análise mais detida das principais linhas que a
caracterizam, pode encontrar-se em SANTOS, Cláudia, O crime de colarinho branco (da origem do
conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal),
Coimbra: Coimbra Editora: 2001, p. 135 ss). De forma resumida, porém, deve dizer-se que se julga que a
grande mudança do paradigma criminológico resultou da crítica do paradigma positivista encetada pelos
criminólogos que escolheram como objecto de estudo a crítica das instâncias formais de controlo, o que

57
particular predominância o interaccionismo simbólico associado ao labeling approach69
e depois a criminologia radical, também chamada “marxista” –, ter-se-ão em conta
alguns aspectos comuns a estas orientações criminológicas70. Serão, porém, aqui
referidos apenas na medida em que tenham condicionado o abolicionismo e,
mediatamente, o pensamento restaurativo.
Ao focar a atenção criminológica não já no delinquente e nas características
endógenas ou exógenas que condicionariam o cometimento de crimes mas antes nas
instâncias formais de controlo, abre-se espaço na criminologia para a análise crítica do
sistema penal, reflexão essa que virá depois a estar na base do pensamento abolicionista,
a influenciar a “segunda vitimologia” e ainda, em momento posterior, a estar também na
base do pensamento restaurativo71.
O abolicionismo penal herdou, seguramente, a ideia de Edwin Lemert de que
não é a deviance que provoca o controlo social, mas antes o controlo social que provoca
a conduta desviada72. É, assim, fácil de compreender a profunda relação entre esta

surgiu com o interaccionismo simbólico e com a teoria da etiquetagem, julgando-se que a criminologia
posterior apenas radicalizou esta crítica.
69
Sobre esta matéria, relacionando a teoria criminológica dita da “etiquetagem” com a teoria sociológica
do interaccionismo simbólico, vd. Jorge de FIGUEIREDO DIAS, “A perspectiva interaccionista na teoria
do comportamento delinquente”, Separata do n.º especial do BFD – Estudos em Homenagem ao Prof.
Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro, 1981.
70
Na verdade, tais ideias terão constituído como que um pano de fundo comum ainda a outras correntes
criminológicas, também habitualmente agrupadas sob a denominação “criminologia crítica”, de que é
exemplo a etnometodologia, particularmente relevante para a compreensão do pensamento abolicionista,
na medida em que criticou o formalismo característico do processo penal através do conceito de
“cerimónias de degradação pública”. Com efeito, Harold GARFINKEL, Autor cuja obra está na génese
desta corrente criminológica, sublinha a ironia de um sistema que pretende combater a criminalidade e
que, ao apreciar e sancionar o comportamento ilícito do agente, lhe retira a possibilidade de adoptar de
futuro um comportamento conforme ao direito. E é assim na medida em que tais cerimónias – de que será
exemplo por excelência a audiência de julgamento –, se reforçam o sentimento de solidariedade da
comunidade em torno dos valores dominantes, por outro lado degradam aquele que delas é objecto (cfr.
GARFINKEL, Harold, “Conditions of successful degradation ceremonies”, American Journal of
Sociology, n.º 61, 5, 1956, p. 420 ss).
71
Por outro lado, julga-se que aquele ideário da criminologia crítica condicionou também propostas de
melhoria, por dentro, do próprio sistema penal, podendo radicar aqui movimentos como o da apologia das
penas de substituição (baseadas na ideia de que a pena de prisão deve constituir uma sanção excepcional,
aplicada quando nenhuma outra solução for suficiente); ou a defesa das formas especiais do processo por
razões de celeridade, consenso e desformalização.
72
Cfr. Edwin LEMERT, Human Deviance, Social Problems and Social Control, New Jersey: Prentice-
Hall, 1967. Alguns dos principais estudos de Edwin Lemert foram compilados e comentados por Charles
LEMERT/Michael WINTER (Crime and Deviance – Essays and Innovations of Edwin M. Lemert,
Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, Inc, 2000), que introduzem a obra com a ideia de que o final
do século XX trouxe novidades que impõem que se “olhe para trás no tempo”, porque há coisas, como o
crime, que “nunca mudam” (ob. cit., p. 1). Outro Autor cujo pensamento é indispensável para a
compreensão da ideia de “etiquetagem” é Howard BECKER, para quem são os grupos sociais que
escolhem determinados comportamentos como “desviados”, etiquetando como “outsiders” aqueles que
sujeitam às instâncias de controlo. Para BECKER, o criminoso é apenas alguém a quem o rótulo é
aplicado com sucesso e o comportamento desviado aquele que assim é classificado pelos grupos sociais

58
concepção do inadequado funcionamento do sistema penal, que etiqueta o agente como
delinquente e que culmina com a aplicação de uma sanção que será uma espécie de
profecia que se cumpre a si mesma, e os subsequentes movimentos de rejeição de tal
sistema. Uma vez condenado, o agente aceita a rotulagem e a estigmatização, vindo a
corresponder-lhe, em muitos casos, com a prática de outros crimes, assim surgindo a
deviance secundária73.
Por outro lado, a afirmação de que o sistema clássico, estadual, funciona de
forma desigual74, além de reforçar a ideia de que estigmatizados são apenas os mais
frágeis75, põe em causa um dos pilares do modelo penal clássico: o princípio da
igualdade. Ao fazê-lo, faz também vacilar a crença na rejeição total (e velha de séculos)
da composição privada dos conflitos, com base na ideia de que assim prevaleceriam
sempre os interesses dos mais fortes. Dito de forma mais simples: se também a justiça
penal administrada pelo Estado e, logo, por um terceiro exterior ao conflito e imparcial,
não defende plenamente aquele valor da igualdade, pergunta-se qual a legitimidade para
continuar a rejeitar a composição privada dos conflitos com base no desrespeito por
aquele princípio. E eis como uma conquista aparentemente inquestionável começa, pelo
menos, a ser questionada.
De todo o modo, aquilo que sobretudo se pretende vincar é que, para além da
influência que algumas ideias fortes associadas à criminologia crítica tiveram no
surgimento da proposta restaurativo, o principal contributo que se lhe pode assacar é,

dominantes [cfr. Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance, Nova Iorque: The Free Press, 1991 (1.ª
ed. de 1963), ps. 1-4]
73
Para uma crítica do determinismo ainda subjacente a tal concepção, vd. Cláudia SANTOS (O Crime de
Colarinho Branco cit., p.141 ss) e a citação da ideia de AKERS de que “às vezes tem-se a impressão (...)
de que as pessoas andam pelo mundo, cada qual com a sua ocupação, e de repente aparece a sociedade
malvada para aplicar um rótulo estigmatizante. Forçado a assumir o papel de desviado, o indivíduo não
tem outra possibilidade para além de o ser”. Para um maior desenvolvimento da crítica muito cedo feita
por Ronald AKERS à teoria da etiquetagem (que, se rechaçava o determinismo da criminalidade
“primária” que imputava às teorias criminológicas positivistas, não lograva afastá-lo na explicação da
criminalidade “secundária” ou provocada pela sujeição à punição penal), cfr. o seu “Problems in the
sociology of deviance: social definitions and behavior” (Social Forces, vol. 46, n.º 4, 1968, p. 455 ss).
Neste estudo, o Autor enfatiza a diversidade de comportamentos que pessoas expostas às mesmas
definições sociais podem adoptar, concluindo pela necessidade de explicações plurifactoriais.
74
Recorde-se que a comprovação desta desigualdade e o alerta para a necessidade de a combater terão
sido os principais objectivos de Edwin SUTHERLAND e de toda a sua teoria sobre a criminalidade de
colarinho branco. O Autor manifesta a sua indignação face ao tratamento desigualitário e que favorecia
alguns agentes (in White-Collar Crime, The Uncut Version, New Haven: Yale University Press, 1983,
v.g. ps 6-7).
75
Segundo Manuel da COSTA ANDRADE (“O novo Código Penal e a Moderna Criminologia”, in
Jornadas de Direito Criminal I, Lisboa: CEJ, 1983, p. 198), “a descoberta de delinquentes que, apesar de
o serem, preservam a integridade da sua imagem de respeitabilidade, continuam a liderar a sociedade e a
simbolizar os seus valores e virtudes, tem valido à perspectiva interaccionista como reforço da tese de que
delinquente é, afinal e apenas, quem a sociedade estigmatiza como tal”.

59
segundo se crê, mais fundo. Ele prende-se com o fortalecimento de uma outra atitude
perante o sistema de regulação de conflitos que é a justiça penal, uma atitude que é
crítica do seu todo, para além de crítica das suas partes. O que com isto se quer
significar é que os criminólogos críticos abriram espaço para um questionamento do
direito penal em sentido amplo enquanto modelo de resposta ao crime, para além do
questionamento dos seus vários momentos de actuação associado à reflexão sobre as
instâncias formais de controlo. Doravante, rejeitar a natureza ontológica do crime
significa não só questionar as concretas leis penais76, mas também abrir a possibilidade
de ponderação crítica do sistema penal no seu todo.
A radicalização da criminologia crítica com o surgimento da criminologia
marxista77 estreita os vínculos com o pensamento abolicionista. Na obra porventura
mais representativa desta corrente criminológica – The New Criminology, For a Social
Theory of Deviance, de Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young78 – é já clara a ideia de
que o essencial é questionar as estruturas económicas e políticas que favorecem a

76
Ignacio Berdugo GÓMEZ DE LA TORRE (“Estudiar derecho hoy”, Universitas Vitae: Homenaje a
Ruperto Nuñez Barbero, Ed. Fernando Pérez ÁLVAREZ, Aquilafuente: Ediciones Universidad de
Salamanca, 2007, p. 78) é apenas um dos muitos Autores que destacam a importância que hoje assume
essa atitude crítica perante a lei penal, a partir da verificação de que “as leis, quando regulam alguma
coisa, estão a dar forma jurídica a ideias anteriores a elas, cujo conteúdo supõe opções sobre como
ordenar a sociedade ou sobre a solução que se dá aos conflitos que nela se produzem”.
77
Sobre a criminologia socialista (que “representa o conjunto dos trabalhos de investigação criminológica
dos países do Leste europeu, bem como os de autores de países não socialistas mas que se situam em
idênticos parâmetros teóricos e metodológicos” e enquanto ciência que “procura analisar – nas suas
manifestações e nas suas causas – o fenómeno da criminalidade nas sociedades socialistas e contribuir
para a sua redução e completa eliminação na forma superior de vida que será a sociedade comunista”),
cfr. Manuel da COSTA ANDRADE, “Notas sobre a criminologia socialista”, Separata da Revista de
Direito e Economia, n.º 1 de Janeiro-Junho de 1976, p. 59 ss. O Autor refere a “assunção pela
criminologia socialista duma tarefa radicalmente nova”, na medida em que “se a criminologia burguesa,
por força da sua metodologia positivista, não pode dirigir-se à crítica dum sistema em que o crime é por
definição imanente e tem de limitar-se, no melhor dos casos, a atenuar a sua pressão, já a criminologia
socialista pode legitimamente aspirar à eliminação dum fenómeno que vale como resíduo ou rudimento
de formas superadas de vida económica, social e cultural” (ob. cit., p. 68).
78
O estudo de Ian TAYLOR, Paul WALTON e Jock YOUNG foi primeiramente publicado em 1973, em
Londres, mas foi consultado na edição tornada disponível em 2003 pela Taylor & Francis e-Library.
Posteriormente, Michael LYNCH (in Radical Criminology, Sudbury: Dartmouth Publishing Company,
1997, xviii) sintetizou o pensamento daqueles Autores, afirmando que ser um criminólogo radical é
“assumir um compromisso com a história”. Uma perspectiva histórica da origem e evolução da
criminologia marxista pode encontrar-se em Albert CARDARELLI e Stephen HICKS, “Radicalism in
law and criminology: a retrospective view of critical legal studies and radical criminology”, Journal of
Criminal Law and Criminology, 1993, vol. 84, n.º 3, p. 502 ss. Mais recentemente, Michael LYNCH e
Raymond MICHALOWSKI retomam a discussão da criminologia radical, definindo-a como “uma forma
de fazer criminologia que enfrenta o problema do crime nos termos das forças sociológicas da classe,
raça, género, cultura e história”. Afirmam as “mudanças dramáticas” da actual criminologia radical e
pretendem discutir a sua “história, temas centrais e direcções possíveis”. Reafirmam, porém, o núcleo da
criminologia radical enquanto “criminologia de resistência”, na medida em que se assume o dever de
desafiar o “status quo de distribuição de riqueza e poder”, não se pretendendo apenas compreender o
mundo, mas também mudá-lo (in Primer in Radical Criminology – Critical Perspectives on Crime,
Power and Identity, 4.ª ed., Monsey: Criminal Justice Press, 2006, p. 4 e 5).

60
subsistência das desigualdades sociais. O criminólogo não deve contribuir com os seus
estudos para melhorias superficiais do sistema penal que existe, o que se impõe é antes,
diz-se, um seu empenhamento na superação do sistema capitalista. São as contradições
inerentes a tal sistema (decorrentes da propriedade privada dos meios de produção e do
trabalho assalariado, que geram uma tensão entre as forças produtivas e as relações de
produção assim estruturadas) que justificam a existência da criminalidade. A superação
do sistema capitalista tornaria desnecessária a justiça penal, na medida em que
desapareceriam os conflitos interpessoais como consequência do fim da estratificação
em classes e do fim das desigualdades.
Para os criminólogos radicais ou marxistas, o sistema penal é um instrumento ao
serviço dos interesses das classes dominantes79, um instrumento de defesa da própria
propriedade privada, pelo que a sua perpetuação só servirá os interesses daqueles
grupos, contribuindo para a permanência do jugo dos desfavorecidos.
A influência da criminologia marxista parece inegável no abolicionismo penal,
ainda que porventura de forma mais vincada no pensamento de alguns autores
abolicionistas do que no de outros. Segundo a classificação de Zaffaroni, uma das
variantes do abolicionismo penal seria precisamente a marxista representada por
Thomas Mathiesen80. Mas identifica, para além desta, a tendência estrutural-historicista
de Michel Foucault; a concepção fenomenológico-historicista de Nils Christie e a
perspectiva fenomenológica de Louk Hulsman81.
Julga-se que o pensamento de HULSMAN merece referência especial, sobretudo
na medida em que muitas das suas afirmações sobre o conflito criminal parecem manter
plena actualidade na teoria restaurativa. O Autor82 começa por descrever o sistema

79
Como refere GARCÍA-PABLOS DE MOLINA (Criminologia, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 7.ª edição reformulada, actualizada e ampliada, 2010 p. 291), “o Direito representa os
valores e interesses das classes ou sectores sociais dominantes, não os gerais da sociedade, aplicando a
justiça penal e as leis de acordo com os referidos interesses; o comportamento delituoso é uma reacção à
desigual e injusta distribuição do poder e riqueza na sociedade”.
80
Thomas MATHIESEN manteve-se sempre um intransigente opositor da pena privativa da liberdade.
Na sua obra Prison on Trial (3.ª ed., Winchester: Waterside Press, 2006), depois de verificar a expansão
do recurso à prisão nos países ocidentais, analisa os estudos que confirmam o seu fracasso na perspectiva
da socialização (p. 174 ss), mas também da prevenção geral (p. 179 ss).
81
Cfr. Eugenio Raul ZAFFARONI, Em Busca das Penas Perdidas – A Perda de Legitimidade do Sistema
Penal, trad. de Vânia Pedrosa/Amir Conceição, Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 98 ss. Se pareceria
questionável a inclusão de Foucault neste rol, na opinião de Zaffaroni a sua reflexão sobre o sistema
carcerário é incontornável para se compreender o núcleo do abolicionismo penal. Nas suas palavras,
“embora não possa ser considerado um abolicionista no sentido dos demais autores aqui analisados,
Michel Foucault foi, sem dúvida, um abolicionista” (ob. cit., p. 101).
82
Louk HULSMAN/Jacqueline B. de CELIS, Penas perdidas. O sistema penal em questão, Niterói:
Luam Editora, 1993, p. 57-8.

61
penal: “existe o Código Penal, que descreve – e limita – as condutas puníveis; existe o
Código de Processo penal, que garante que nenhum cidadão poderá ser preso
arbitrariamente; os juízes são independentes do Poder Executivo; os processos são
públicos...e os Tribunais velam pela regularidade de todo o procedimento”. Mas, logo
de seguida, questiona tal descrição, afirmando “eu sei: é isto que se explica na
Universidade. E este tipo de raciocínio, repetido no discurso oficial de outras
instituições, é propalado tal e qual na sociedade pelos meios de comunicação social.
Mas, será que todas estas regras formais, todos estes princípios que pretendem edificar
uma justiça serena e imparcial, realmente protegem as pessoas de qualquer
constrangimento arbitrário? E será que são válidos para a sociedade actual? É preciso
olhar para o que se passa na prática, indagar se princípios como o da igualdade perante a
lei penal, ou a regra da intervenção mínima da máquina repressiva, são aplicados aos
factos”.
Ora, os factos, na opinião de Hulsman, são na verdade outros. O sistema penal é
apresentado como uma máquina composta por um conjunto de peças que não interagem,
que funcionam de forma desligada e não concertada, tolhidas por objectivos e
representações corporativistas83.
Mas não é só o processo penal que é apresentado como um “non sense”84 – na
medida em que os próprios intervenientes no mesmo não compreendem o seu sentido,
aceitando sem questionar, mesmo que a não perfilhem na sua vida pessoal, uma
concepção “maniqueísta e herdeira da teologia do juízo final”. Também a condenação a
pena de prisão – com a qual, muitas vezes, culmina aquele processo – é vista como um
outro, porventura mais grave, non sense. Depois de se descrever os vários males
associados à prisão e de explicar as razões pelas quais ela constitui um enorme
sofrimento para o recluso, HULSMAN afirma que o que torna a prisão “um mal social

83
Louk HULSMAN, últ. ob. cit., p. 61, afirma que “é como se estivéssemos numa linha de montagem,
onde o acusado vai avançando: cada um dos encarregados aperta o seu parafuso e, no final da linha de
montagem, sai o produto final do sistema – em cada quatro pessoas, um prisioneiro”.
84
O carácter irracional do sistema penal é apontado por HULSMAN (últ. ob. cit., ps. 27 a 29), que chega
a compará-lo com a forma como, na civilização romana, se faziam depender as decisões do voo das aves
ou do aspecto das entranhas de aves sacrificadas. O Autor explica que, em determinado momento,
compreendeu que “o que fazemos com o Direito parece-se com o que os romanos faziam com os seus
pássaros e as suas aves. Vi que o direito, a teologia moral, a interpretação das entranhas, a astrologia…,
no fundo, funcionam da mesma forma”. Continuando a explicar esta ideia (a ideia de que se desliga a
solução para o problema das características do problema, procurando-a antes em categorias irrazoáveis), o
Autor acrescenta que guardou das leituras de Ortega y Gasset “uma imagem importante: a de que
construímos sistemas abstractos para nos sentirmos em segurança como civilização e trabalhamos para
aperfeiçoar esses sistemas; mas, elaboramo-los com tantos detalhes e as condições para as quais foram
criados mudam tanto que, com o tempo, toda esta construção não serve para mais nada. A distância entre
a vida e a construção torna-se tão grande que esta acaba por se desmoronar”.

62
específico” é o facto de ela constituir um “sofrimento estéril”: “nem todo o sofrimento é
um mal. Há sofrimentos benéficos, que fazem progredir no conhecimento de nós
mesmos, abrindo novos caminhos, aproximando-nos dos outros e tornando-nos
melhores. O encarceramento, porém, é um sofrimento não criativo, desprovido de
sentido”85.
Finalmente, é comum no pensamento abolicionista a ideia de que a sujeição a
uma pena de prisão constitui um sofrimento que nem sequer pode ser justificado com a
alegação de que assim se estaria a reagir a um grande mal causado pelo agente à
comunidade: Louk HULSMAN partilha com os criminólogos críticos a rejeição do
carácter ontológico da infracção criminal, salientando antes a relatividade daquilo que
em cada tempo e em cada espaço é qualificado como um “facto punível”, considerando
que “é a lei que cria o criminoso”. E isto sucede em dois níveis: um, mais formal,
relacionado com a criminalização ou descriminalização das condutas; um outro, que se
considera mais preocupante, relacionado com a interiorização pelo agente do processo
do “etiquetamento legal e social”86.
Se assim se manifesta a influência das ideias essenciais da criminologia crítica
sobre o pensamento abolicionista, existem afirmações de HULSMAN que virão a ser,
poucos anos depois, quase decalcadas pelos cultores da justiça restaurativa, assumindo
um carácter simbólico, como que de bandeira do próprio movimento restaurativo. É o

85
Louk HULSMAN (últ. ob. cit., ps. 62-3) conclui que “na prisão, os homens são despersonalizados e
dessocializados”.
86
Louk HULSMAN, últ. ob. cit., ps. 63-4. A crítica da pena de prisão com base na negação do carácter
ontológico da infracção criminal parece, porém, menos forte do que aquela outra radicada na sua
consideração enquanto um mal sem sentido. Se é difícil negar o desvalor em princípio intrínseco a
condutas como matar outra pessoa – só para recorrer ao mais evidente de todos os exemplos – já será
menos questionável a afirmação da desadequação da pena de prisão aos fins que com ela o sistema
procura atingir. Depois de afirmar que o mal da pena de prisão continua a desafiar-nos, José de FARIA
COSTA [“Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapável do homo dolens, enquanto
corpo-próprio, com o direito penal), Mal, Símbolo e Justiça (Actas das Jornadas Internacionais
realizadas em Coimbra nos dias 8 e 9 de Dezembro de 2000), Faculdade de Letras, Coimbra: Almedina,
2001, ps 42-5] refere que “todos sabemos, até o mais desatento dos cidadãos no que se refere à res
publica o percebe, que a pena de prisão é uma instituição que se apresenta, nos dias de hoje e já de há
muito tempo, talvez desde sempre, incapaz de responder aos anseios mais profundos da política criminal
que envolve a aplicação e a execução da pena privativa de liberdade (a chamada pena de prisão). Ela é
criminógena, dificilmente ressocializa e, por consequência, também de forma muito escassa cumpre os
desideratos da chamada prevenção especial”. O facto de “a pena de prisão continuar a ser a pena central
de todo o sistema punitivo” agudiza a relevância dos deméritos que lhe são apontados. O Autor, depois de
afirmar que a pena de prisão ascendeu a poena regina a partir do século XVIII – apesar de ter
desempenhado algum papel na Idade Média “enquanto verdadeira pena e não como mera custódia” – faz
uma interessante análise do modo como a prisão é ainda “uma pena limitadora do corpo-próprio”. Ora,
por este ser “lugar de encontro com o tempo social” e porque «o corpo-próprio ganha a sua diferenciação
conforme os instantes de realização com o “outro”», conclui-se que «a pena de prisão rasoira, é óbvio, o
“tempo-com” – que é, reafirmemo-lo, seu elemento essencial – à dignidade chã, fragmentada e coactiva
do convívio carcerário e à vigiada temporalidade das visitas de familiares e amigos».

63
que sucede com a crítica, igualmente desenvolvida por Nils Christie, de que “o sistema
penal rouba o conflito às pessoas directamente envolvidas. Quando o problema cai no
aparelho judicial, deixa de pertencer àqueles que o protagonizaram”87.
A conclusão a que se chega é a de que “é preciso abolir o sistema penal”, na
medida em que “um sistema desta natureza é um mal social. Os problemas que ele
pretende resolver – e que, de forma alguma, resolve, pois nunca faz o que pretende –
deverão ser enfrentados de outra maneira”. Nesta perspectiva, o fim do sistema penal
estadual de luta contra o crime equivaleria a uma libertação, permitindo “dar vida às
comunidades, às instituições e aos homens”88.
Não se tem a pretensão de uma qualquer reflexão mais desenvolvida sobre o
abolicionismo do que aquela que resulta de evidenciar a conexão óbvia entre a sua
rejeição da justiça penal como forma de reagir à “situação-problema” que é o crime e o
surgimento de uma proposta – a restaurativa – que pretende ser uma alternativa à justiça
penal. Por ser assim, não caberá aqui uma análise dos “vários abolicionismos”, mais ou
menos radicais. Em certo sentido, todo o abolicionismo é radical, porque leva a sério a
ideia de CHRISTIE de que “é preciso encontrar alternativas aos castigos e não só
castigos alternativos”89, o que supõe uma rejeição em bloco da justiça penal.

87
Louk HULSMAN, ob. cit., ps. 82-3. O Autor explica que a vítima perde a oportunidade de
«compreender e assimilar o que realmente se passou; não participa de nenhuma forma na medida que será
tomada a respeito do “autor”; não sabe em que condições estará a família dele a sobreviver; não faz
nenhuma ideia das consequências reais que a experiência negativa da prisão trará para a vida desse
homem; ignora as rejeições que ele terá de sofrer ao sair da prisão». Por ser assim, perde-se também a
perpectiva evolutiva da situação de facto, na medida em que “quando o sistema penal se apropria do
“assunto”, congela-o, de modo que jamais seja interpretado de uma forma diferente da que foi no início.
O sistema penal ignora totalmente o carácter evolutivo das experiências interiores. Assim, o que se
apresenta perante o tribunal, no fundo, nada tem a ver com o que vivem e pensam os protagonistas no dia
do julgamento. Nesse sentido, pode dizer-se que o sistema penal trata de problemas que não existem».
88
Louk HULSMAN, ob. cit., ps. 91-2. A substituição do conceito de “crime”, com a carga negativa que
lhe está associada, pelo de “situação problemática”, permitiria a sua abordagem sob uma diversa
perspectiva. O Autor (ob. cit., p. 100), para ilustrar a sua rejeição da intervenção punitiva, recorre a um
exemplo: «cinco estudantes moram juntos. Num determinado momento, um deles arremessa-se contra a
televisão e danifica-a, partindo também alguns pratos. Como reagem os seus companheiros? (...) O
estudante número 2, furioso, diz que já não quer viver com ele e fala em expulsá-lo de casa; o estudante
número 3 declara: “o que se tem de fazer é comprar uma nova televisão e outros pratos e ele que pague”.
O estudante número 4, traumatizado com o que acabou de presenciar, grita: “ele está evidentemente
doente, é preciso procurar um médico, levá-lo a um psiquiatra, etc.”. O último, enfim, sussurra: “nós
achávamos que nos entendíamos bem, mas devem estar erradas algumas coisas na nossa comunidade,
para permitir um gesto como este...vamos fazer juntos um exame de consciência”. HULSMAN entende
que temos aqui exemplos do estilo punitivo, do estilo compensatório, do estilo terapêutico e do estilo
conciliador, deixando clara a sua rejeição do primeiro. Sobra, todavia, pelo menos uma interrogação,
relacionada com o que deve suceder se o estudante que partiu a televisão se recusar a pagar uma nova, se
recusar a procurar um psiquiatra e se recusar a participar numa análise da sua vida naquela comunidade.
89
Nils CHRISTIE, Limits to Pain, The Role of Punishment in Penal Policy, Eugene: Wipf and Stock
Publishers, 2007, p. 11 (1ª ed. de 1981).

64
É certo que, em diversa acepção, se podem admitir “outros abolicionismos”,
mais moderados, que não rejeitam toda a resposta punitiva estadual, mas apenas
algumas manifestações dessa resposta, de que é exemplo por excelência a pena privativa
da liberdade90. Julga-se, porém, que deve evitar-se a confusão entre o abolicionismo
enquanto tal, que rejeita a resposta penal, com outras formas de compreensão, que
admitem a sua existência mas pretendem tornar mínimo o seu âmbito91.

90
Mesmo no seio do pensamento dos autores abolicionistas não radicais (que não rejeitam toda a resposta
penal, mas apenas a prisão como pena) são patentes algumas divergências. Sobre o assunto, cfr. Elena
LARRAURI, “Abolicionismo del Derecho penal: las propuestas del movimiento abolicionista”, Poder y
Control, 3, Barcelona: PPU, 1987, p. 95 ss. A Autora, a partir de uma associação da resposta penal ao
conceito de “castigo”, distingue-a de outras formas de resposta ao crime que o tratam como problema
social ou como problema individual. Abolicionistas, em sentido amplo, são todos aqueles para quem
existem modelos de resposta ao crime mais adequados do que o castigo. Os moderados só não aceitariam
a prisão como castigo, mas admitiriam os restantes castigos penais. Os radicais rejeitariam todo o castigo,
preferindo outras soluções. Entre estas soluções distinguem-se algumas possibilidades, como sejam a
terapêutica ou a reparadora. LARRAURI alerta, não sem razão, para que um dos problemas está em
demonstrar que estas soluções não são, elas próprias, ainda um castigo.
91
Neste sentido, Alberto BOVINO, “La víctima como preocupación del abolicionismo penal” cit., p. 264,
que entende que “deve diferenciar-se o abolicionismo penal – também chamado abolicionismo penal
radical – do abolicionismo institucional, que circunscreve o objecto da sua crítica e da sua acção política à
instituição carcerária e a outras instituições penais de segregação – como o hospital psiquiátrico judicial”.
Acrescenta-se que apenas o primeiro defende “a abolição da totalidade do sistema de justiça penal”. Em
sentido não muito distante, Elena HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos GREGORIO (Resolución
Alternativa de Disputas y Sistema Penal, Buenos Aires: Ad Hoc, 1998, p. 32) vincam a diferença entre o
abolicionismo penal e o minimalismo: “as correntes e doutrinas são variadas e têm matizes que as
diferenciam. Não obstante, pode atribuir-se ao abolicionismo a negação da legitimidade dos sistemas
penais tal como operam na realidade social actual e, como princípio geral, também de qualquer outro que
possa projectar-se no futuro enquanto modelo formal e abstracto de solução de conflitos, postulando-se
uma abolição radical dos mesmos e a assunção da resolução dos conflitos por instâncias ou mecanismos
informais; e o minimalismo que, sendo igualmente deslegitimador, mantém a proposta de uma alternativa
mínima que se considera necessária como mal menor (…). O minimalismo não abarca apenas a fase
judicial, mas antes uma política criminal (…) que conjuga a menor quantidade possível de intromissão
estadual com a maior quantidade alcançável de garantias. O minimalismo reduz as respostas aos casos
mais graves e extremos”. A distinção entre o abolicionismo e a defesa de um direito penal mínimo é
também vincada por Paolo BECCHI [“Alessandro Baratta (1933-2002) in memoriam”, Doxa, 25 (2002),
p. 33], a partir de uma contraposição entre o pensamento abolicionista de Hulsman e o “reducionismo” de
Baratta: «Baratta desenvolveu uma política criminal radicalmente alternativa, cujo objectivo final
implicava a superação do sistema punitivo, como o próprio expressava – retomando com frequência uma
frase de Radbruch (…) dizendo que “aquilo de que precisamos não é um direito penal melhor, mas sim
algo melhor do que o direito penal”. Todavia, dado que a substituição do direito penal por algo melhor só
seria possível se se substituísse a nossa sociedade por uma sociedade melhor, Baratta defendeu para o
curto e o médio prazo (…) um direito penal mínimo, pelo menos capaz de promover uma vasta e
progressiva obra de despenalização. Este artigo apareceu em um número especial da revista Dei delitti e
delle pene, em que se apresentavam e se discutiam duas correntes do pensamento diferentes mas
complementares: o reducionismo (defendido por Baratta) e o abolicionismo (do qual Louk Hulsman pode
ser considerado a figura mais representativa)». Por outro lado, cumpre também reconhecer que a
moderação associada a este reconhecimento da impossibilidade de um abolicionismo radical e a
indeterminação quanto às opções que ficavam em aberto esteve na origem de algumas críticas a Baratta.
Neste sentido, veja-se, por exemplo, a opinião de MARINUCCI, que alegou a incapacidade de Baratta
para sustentar uma política criminal em defesa das “classes subalternas” e um efectivo comprometimento
com o seu projecto realista de esquerda (cfr. Giorgio MARINUCCI, “L’abbandono del codice Rocco: tra
rassegnazione ed utopia”, La Questione Criminale, II, Bolonha, 1981, p. 297 ss). A crítica deu, de resto,
origem a uma resposta detalhada de Alessandro Baratta, na qual fica claro o seu progressivo afastamento
do pensamento abolicionista (cfr. Alessandro BARATTA, «Criminologia critica e riforma penale.

65
Sem prejuízo de uma análise posterior e mais detida da forma como uma justiça
penal estadual e uma justiça restaurativa podem coexistir enquanto formas distintas de
reacção ao crime, sempre se deverá esclarecer, desde já, que tem havido, entre os
cultores da proposta restaurativa, um certo afastamento do abolicionimo penal mais
radical. Neste sentido, não deixa de ser particularmente significativa a afirmação de
John BRAITHWAITE de que, assim como os abolicionistas, também muitos cultores da
justiça restaurativa consideram “retrógrados a maior parte dos elementos centrais da
justiça criminal”. Todavia, acrescenta o Autor, “diversamente das formas mais radicais
do abolicionismo, a justiça restaurativa vê vantagem na manutenção de um papel
estadual como guardião dos direitos e admite que, para uma pequena percentagem das
pessoas que estão nas nossas prisões, pode ser realmente necessário proteger a
comunidade através do seu encarceramento”92.

4. O pensamento feminista na criminologia e a criminologia de pacificação


(peacemaking criminology)

A corrente crítica das instâncias formais de controlo e o pensamento


abolicionista são, por sua vez, vistos como condicionantes do surgimento de uma
corrente criminológica, a denominada peacemaking criminology, que se julga merecer
uma breve referência na medida em que é apontada por vários autores como uma
influência com algum peso na origem do movimento restaurativo. Mais do que isso, a
peacemaking criminology condicionará, ainda hoje, uma certa forma de estruturar o
pensamento restaurativo, forma essa em parte alicerçada em fundamentos religiosos ou
espirituais e em uma ideia de perdão, que assume particular relevância nos países anglo-
saxónicos, sobretudo nos Estados Unidos da América93.

Osservazioni conclusive sul dibattito “Il Codice Rocco cinquant’anni dopo e risposta a Marinucci”, La
Questione Criminale, III, Bolonha, 1981, p. 349 ss).
92
John BRAITHWAITE, “Restorative Justice”, The Handbook of Crime and Punishment, Ed. Michael
Tonry, Nova Iorque/Oxford: Oxford University Press: 1998, p. 336. Na doutrina penal contemporânea, a
rejeição do abolicionismo radical e a afirmação da necessidade do direito penal é visível, por exemplo, no
estudo de Edgar Alberto DONNA, “Puede haber un Estado de Derecho sin Derecho Penal?” (Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, I, Org. Manuel da Costa Andrade e outros,
Stvdia Ivridica 98, Universidade de Coimbra/Coimbra Editora, 2009, p. 301 ss.), no qual o Autor apoda
de “ingénua” e “romântica” a compreensão contrária.
93
Uma análise desta dimensão espiritual ou religiosa que a justiça restaurativa assume essencialmente
entre alguns pensadores do tema nos Estados Unidos pode encontrar-se, a título de exemplo, em The
Spiritual Roots of Restorative Justice, uma obra coordenada por Michael HADLEY e editada em 2001
pela State University of New York Press, onde se encontram reflexões de vários autores que incidem,
entre outros temas, sobre as influências no pensamento restaurativo do cristianismo, do budismo, do

66
Os defensores da criminologia de pacificação94 começam por sublinhar que uma
atitude pacificadora – com raízes em vários e antigos movimentos religiosos e
espirituais – deve nortear a reflexão e a acção em domínios vários, desde os mais
pessoais até aos sociais, passando pela reacção ao crime. O objectivo genérico é a
procura da paz, quer num plano individual, quer num plano comunitário. Mas, no que
tange à questão específica da resposta à criminalidade, a aproximação face ao
pensamento restaurativo é visível em ideias como a defendida por BRASWELL,
FULLER e LOZOFF: “se estamos em paz e a nossa comunidade está em paz, a justiça
criminal permanece largamente inactiva e funciona apenas como um aviso àqueles que
poderiam considerar a hipótese de causar um mal a outros. Nos casos em que é
cometido um crime, o sistema de justiça criminal tenta realizar a justiça e punir os

islamismo, do hinduísmo, do judaísmo ou da tradição sikh. HADLEY começa por explicar o surgimento
de um projecto interdisciplinar e internacional de estudo daquilo que as “principais religiões (em um
sentido lato) dizem, em textos, na tradição e na sua prática habitual sobre a justiça criminal em geral, e
sobre a justiça restaurativa em particular”; acrescenta que a justificação para uma tal análise se encontra
no facto de “as tradições religiosas continuarem a moldar a realidade e a experiência humanas, sendo por
isso centrais para o diálogo social e para a coesão social” (ob. cit., p. 2). Apesar de se compreender o
relevo sociológico que tal análise pode assumir e de se conhecer o impacto que tem no pensamento
criminológico em outros contextos jurídico-culturais, o “factor religioso”, o “factor espiritual” ou o
“factor tradição” não merecerão aqui mais do que esta breve referência, sobretudo por não se julgar que
deva procurar-se decisiva inspiração em tais domínios para a resposta ao problema da criminalidade.
Julga-se, porém, que existe uma diferença entre a necessária autonomia do sistema penal face a
constelações de valores como os religiosos e a separação (que talvez já não tenha de ser sempre tão
profunda) entre outras formas de resposta à criminalidade e tais valores. Mas, mesmo no que ao sistema
penal respeita, a ideia de laicização é sujeita a duras críticas, sobretudo entre os Autores anglo-saxónicos:
enquanto Harvey Cox clama que “o mito da secularização está morto”; Jerold Auerbach afirma que “a lei
é a nossa religião nacional; os juristas são os nossos sacerdotes; o tribunal é a nossa catedral onde os
dramas passionais contemporâneos têm lugar”, aproveitando a linguagem jurídica conceitos tão imbuídos
de religiosidade como o de culpa ou de retribuição; e Duncan Forrester considera que “uma esfera pública
da qual a religião é excluída fica privada de uma grande fonte de determinação, esperança e visão”,
recordando ainda que a aplicação estrita do princípio da secularização “teria excluído o sonho de Martin
Luther King da vida pública americana” (apud Michael HADLEY, ob. cit., p. 3 ss).
94
A peacemaking criminology foi esquematizada por John FULLER através de uma pirâmide a que
chamou “peacemaking pyramid paradigm”. Na base, está a ideia de não-violência. Num segundo nível,
surge a ideia de justiça social, que nos leva a rejeitar as soluções que, sendo aparentemente pacíficas
(porque são peacekeeping), não resolvem no entanto a injustiça que lhes é subjacente. Em terceiro lugar,
encontra-se o conceito de inclusão, que supõe a possibilidade de uma participação efectiva de todos os
envolvidos na busca de uma solução para o conflito. De seguida, surge a exigência de que o processo
decorra de acordo com meios correctos, o que, transposto para o processo penal, impõe a não
desconsideração de direitos fundamentais dos intervenientes. Num quinto nível, exige-se o recurso a
critérios compreensíveis ou averiguáveis: o processo através do qual se procura uma solução para o
conflito deve ser organizado através de actos acessíveis aos interessados e nunca através de conceitos para
eles ininteligíveis (como, na opinião do Autor, seria frequente no processo penal). Para ocupar o topo da
sua pirâmide, FULLER recorre ao conceito kantiano de imperativo categórico, afirmando que “em uma
perspectiva de pacificação, a solução para problemas específicos da justiça criminal deve implicar um
raciocínio moral fudamental, de modo a que essa solução pudesse ser aplicada em outros tempos e em
outros locais. O imperativo categórico kantiano procura estabelecer princípios que transcendam as
circunstâncias particulares dos casos individuais e que possam servir como guias para um comportamento
moral” (John FULLER, Criminal Justice: a Peacemaking Perspective, Boston: Allyn and Bacon, 1997, p.
57 ss).

67
agressores para bem da vítima e do resto da comunidade. Uma justiça de pacificação e
restaurativa procuraria incluir a compaixão na equação da justiça”95. De forma mais
específica, sublinha-se a preocupação da peacemaking criminology com o regime
sancionatório inerente ao sistema penal e elencam-se algumas ideias fortes: a rejeição da
pena de morte; a limitação do encarceramento em condições de solidão; o imperativo
para o Estado de fornecer aos reclusos oportunidades de reabilitação; a necessidade de
recurso a práticas restaurativas; um tratamento dos condenados digno e humanista; a
exigência de que se garanta ao recluso um sentimento de segurança pessoal face aos
outros reclusos96.
Para além do pensamento crítico, do pensamento humanista, de concepções
religiosas onde sobressai a ideia de perdão, aqueles Autores reclamam também a
influência do pensamento feminista97 na construção do ideário pacificador e restaurativo
de resposta ao crime.

95
Michael BRASWELL/John FULLER/Bo LOZOFF, Corrections, Peacemaking and Restorative Justice
– Transforming Individuals and Institutions, Cincinnati: Anderson Publishing Co, 2001, ps. 4-5. Os
Autores acrescentam (ob. cit., p. 29) que “a perspectiva pacificadora é, em primeiro lugar e antes de tudo
o resto, uma filosofia pessoal que começa no coração do indivíduo”. É, todavia, possível a extensão de tal
filosofia ao contexto institucional e cultural. A efectividade daquela perspectiva supõe que se permita que
“a bondade e a integridade individuais sejam carreadas para acções colectivas”. Afirma-se ainda que “o
indivíduo é o ponto de partida necessário. A mudança pessoal, todavia, deve conduzir à transformação
social e institucional para se atingirem os objectivos de paz e justiça social”. A ideia de que as
transformações pessoais no sentido do aperfeiçoamento da tolerância e da capacidade de perdão são
fundamentais para a obtenção da paz através da realização da justiça, assim como o ideal de reacção ao
crime através de uma reacção ao sofrimento individual, são elementos nucleares da criminologia de
pacificação realçados por Harold PEPINSKY e Richard QUINNEY logo nas considerações iniciais da sua
colectânea Criminology as Peacemaking, Bloomington: Indiana University Press, 1991. A esta
perspectiva parece subjazer a ideia de que a reacção ao mal que é o crime com a imposição de um mal ao
agente apenas serve para perpetuar essa cadeia de males com elos vários. Ainda que num contexto
ligeiramente distinto, os criminólogos da pacificação poderiam transpor para o sistema penal a
interrogação ampla formulada por Adauto SUANNES: «considerando que o processo civilizatório
implica, antes e acima de tudo, uma revisão dos valores pelos quais os grupos humanos traçam a sua
conduta, buscando-se a evolução do homem de um “ser menos” para um “ser mais”, quais os valores que
temos nas sociedades ditas civilizadas hoje em dia? Saímos, realmente, da barbárie?» (cfr. “Entre a
civilização e a barbárie”, Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2003, p. 69).
96
BRASWELL/FULLER/LOZOFF, ob. cit., p. 71 ss.
97
BRASWELL/FULLER/LOZOFF (ob. cit., p. 30 ss), depois de apresentarem o feminismo como “uma
filosofia que defende que os homens e as mulheres devem ser iguais em termos políticos, económicos e
sociais”, acrescentam que esta é uma causa que também os homens podem abraçar (ser-se feminista não
supõe, pois, que se seja do género feminino), até porque em uma sociedade patriarcal “há custos tanto
para os homens como para as mulheres”. Apesar de considerarem que esses custos são ainda muito mais
severos para as mulheres, afirmam que uma tal sociedade é prejudicial para todos: “os homens vivem
vidas mais curtas, estão sujeitos a mais stress, estão alienados das suas famílias e vivem vidas tornadas
disfuncionais pelas exigências irrealistas e frequentemente disfuncionais daquele que é visto como o
papel masculino contemporâneo”. Entre nós, também Vera RAPOSO (o Poder de Eva – O princípio da
igualdade no âmbito dos direitos políticos. Problemas suscitados pela discriminação positiva, Coimbra:
Almedina, 2004, ps. 283-4) considera que “emergem situações em que a posição de supremacia outorgada
aos homens acaba por funcionar contra si. A imagem masculina, veiculada pela sociedade e confirmada
pelo direito, reprimiu as suas emoções, impediu os homens de desfrutar plenamente dos filhos, colocou

68
Se olharmos para a definição dos elementos nucleares do feminismo proposta
por M. Kay HARRIS compreendemos mais facilmente quais os elos que são comuns à
proposta restaurativa: “o feminismo oferece e é um conjunto de valores, crenças e
experiências – uma consciência moral, uma forma de olhar para o mundo. O feminismo
deve ser visto não apenas como uma prescrição para a garantia de direitos às mulheres,
mas como uma perspectiva muito mais ampla. Existem várias tendências no seio do
pensamento feminista98, mas subsistem alguns valores cruciais que transcendem essas
diferenças. Entre os princípios-chave do feminismo contam-se três crenças simples –
todas as pessoas têm idêntico valor como seres humanos; a harmonia e a felicidade são
mais importantes do que o poder e o património; o pessoal é o político”99.

sobre eles o peso do sustento familiar, coagiu-os a adquirir treino militar e a combater em nome da pátria,
vinculou-os a um papel de herói e de mártir que nem sempre conseguiram desempenhar. Assim, se as
mulheres foram prejudicadas, sobretudo no que toca à participação no mercado de trabalho e à
intervenção na esfera pública e política, os homens também sofreram prejuízos, nomeadamente na sua
participação na vida familiar (da qual foram privados)”.
98
Pode acrescentar-se que, além de existirem várias tendências no seio do pensamento feminista, existem
distintas linhas de investigação orientadas para objectos diversos na própria criminologia feminista.
Assim, se a relevância da criminologia feminista para a compreensão da proposta restaurativa se orienta
sobretudo para a questão do género ao nível da reacção social ao crime, existem, na criminologia
feminista, outros estudos orientados para a ponderação da relevância do genéro no cometimento do delito.
Um exemplo interessante deste outro modo de abordagem da questão do género na criminologia – que
aqui se sublinha apenas para vincar a sua existência e a sua diversidade – pode ser encontrado no estudo
de Kathleen DALY, “Gender, Crime and Criminology”, The Handbook of Crime and Punishment, Ed.
Michael Tonry, Nova Iorque/Oxford: Oxford University Press, 1988. Com interesse, a Autora afirma uma
certa tendência, a partir dos anos noventa do século passado, para estudar a participação da mulher no
crime enquanto agente, e não já como vítima (em análises feministas «mais interessadas na “autoria
feminina”, não querendo ser “vítimas”» (ob. cit., p. 101). A propósito da multiplicação na criminologia
dos “estudiosos que se dedicam a assuntos femininos” e da diversidade dos enfoques adoptados, vd.
Teresa BELEZA, “A Mulher no Código Penal de 1982”, Colectânea de Textos de Parte Especial do
Direito Penal – Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, 6, Lisboa: aafdl, 2008, ps.
29-30.
99
M. Kay HARRIS, “Moving into the New Millennium: Toward a Feminist Vision of Justice”, in
Restorative Justice – Critical Issues, Ed. McLaughlin/Fergusson/Hughes/Westmarland, Londres: Sage
Publications, 2003, ps. 33-4. Por “não separação entre o público e o privado” pretende-se significar que
“os valores centrais devem ser vividos e aplicados quer na vida pública quer nos espaços privados”.
Segundo a Autora, o feminismo “rejeita a tendência de oferecer um conjunto de valores para guiarem as
interacções nos domínios privado e pessoal e um outro conjunto de valores para presidirem às interacções
nos mundos públicos da política e do poder. A empatia, a compaixão e os valores afectuosos, sadios e
orientados para as pessoas devem ser tidos em conta e aplicados não só no seio da família e em casa mas
também nos salões onde se põem em prática as políticas públicas, a diplomacia e a ciência política”. Entre
nós, Teresa BELEZA esclarece que «sob a designação “Feminismo” é possível agrupar uma série muito
diversificada de correntes e movimentos. O denominador comum consiste basicamente numa
preocupação com a situação social das mulheres, que é vista como desfavorecida em relação à dos
homens, e em tentativas de vária ordem no sentido de melhorar essa mesma situação. Mas as razões de
ser e o programa de correcções desse estado de coisas variam profundamente, de posições liberal-
reformistas às opções mais radicais e revolucionárias (AMARAL, 1990). Uma possível tipologia
enunciará cinco espécies de Feminismo: liberal, marxista, radical, cultural e desconstrucionista». Para
uma análise do sentido de cada uma destas tipologias, vd. Teresa BELEZA, Mulheres, Direito, Crime ou
A Perplexidade de Cassandra, Lisboa: AAFDL, 1993, p. 30 ss.

69
A ideia simples de que se deve reagir com tolerância face ao que é diferente do
padrão dominante – diferente do padrão masculino dominante mas também diferente da
atitude conformista dominante relativamente às normas100 – acaba assim por transpirar
do pensamento feminista em geral para o pensamento feminista na criminologia101 e
para a criminologia de pacificação. E surge, desta forma, uma oposição entre uma
justiça que seria masculina e punitiva e uma outra justiça que seria feminina e “de
cuidado” com o outro. A justiça restaurativa surgiria, assim, como uma “care (or
feminine) response to crime”, enquanto o sistema penal se apresentaria como uma
“justice (or masculine) response to crime”102. Enquanto a primeira valorizaria o diálogo

100
É em certo sentido enganosa a diferenciação entre o “padrão masculino dominante” e o padrão de
“actuação conformista perante as normas” face a uma das linhas orientadoras do pensamento feminista
que se prende, precisamente, com a identificação entre o padrão de comportamento inerente às normas e o
padrão masculino. Sobre aquilo a que chama “estrutura androcentrista do direito”, cfr. Olga ESPINOZA,
A mulher encarcerada em face do poder punitivo, São Paulo, IBCCRIM: 2004, p. 58 ss.
101
Prefere-se a referência a um “pensamento feminista na criminologia” ao invés do recurso ao conceito
de “criminologia feminista”. Como vinca Teresa BELEZA (Mulheres, Direito, Crime ou a Perplexidade
de Cassandra cit., p. 75), fazendo apelo a uma ideia também defendida por GELSTHORPE e MORRIS,
“não pode existir uma Criminologia feminista, dada a multiplicidade de perspectivas teóricas em que se
desdobra o próprio Feminismo. Será mais correcto falar-se em perspectivas feministas em Criminologia,
havendo no entanto um cerne essencial: uma posição anti-positivista e crítica de imagens estereotipadas
de mulheres e uma preocupação decisiva com as mulheres, sendo os métodos utilizados determinados por
estas características”. Distinta desta perpectiva feminista na criminologia e também desejável, segundo a
Autora (ob. cit., p. 271-2), será uma “teoria feminista do Direito, que consista fundamentalmente na
análise crítica do sistema jurídico de um ponto de vista feminista, ou seja, de defesa dos interesses das
mulheres”. Esta Teoria Feminista do Direito (conhecida, sobretudo nos Estados Unidos da América,
como Feminist Jurisprudence) definir-se-ia como “reflexão filosófico-jurídica que analisará e informará –
como é próprio da Teoria do Direito e da Jurisprudência (consoante a genealogia intelectual anglo-
saxónica ou alemã) – os preceitos legais, a Dogmática, a jurisprudência, as práticas jurídicas de outros
níveis, sempre de um ponto de vista crítico feminista”. Esta distinção entre o pensamento feminista na
criminologia e a teoria feminista do direito esbater-se-á parcialmente, segundo creio, com a compreensão
de que em um paradigma criminológico crítico das instâncias formais de controlo uma reflexão feminista
não incidirá apenas naquilo que distingue o criminoso do género masculino da criminosa do género
feminino, centrando-se também na forma como a lei e a sua aplicação geram e perpetuam desigualdades.
A diferença entre aquelas duas manifestações do pensamento feminista retrocederia, deste modo, para a
incidência do feminismo na criminologia apenas na crítica do sistema penal, enquanto a teoria feminista
do direito consideraria, como de resto nota Teresa BELEZA, “todos os níveis de produção e de
investigação jurídicas, do Direito Constitucional ao Penal, Familiar, Fiscal e das decisões do Tribunal
Constitucional ou Assentos do Supremo Tribunal de Justiça às sentenças do Tribunal de Polícia ou às
práticas das Repartições de Finanças e modelos de passaporte”. Mais recentemente, Teresa BELEZA
justifica a existência de uma disciplina de Direito das Mulheres e da Igualdade Social, em cujo programa
o centro será “a questão da diferenciação jurídica em termos de género”. A Autora esclarece, ainda, que
“o Direito das Mulheres tem uma dupla genealogia: os Women’s Studies de um lado e os Critical Legal
Studies de outro. Dos Estudos sobre as Mulheres herdou não só o campo de investigação e um conjunto
de preocupações mas também, em larga medida, a própria razão de ser (...). Dos Estudos Críticos do
Direito bebeu a sua vocação crítica e ligação ao activismo social e politico” (Direito das Mulheres e da
Igualdade Social. A Construção Jurídica das Relações de Género, Coimbra: Almedina, 2010, p. 36, p.
48).
102
Kathleen DALY (“Restorative Justice: The Real Story”, Punishment and Society, 2002, vol. 4, n.º 1, p.
55 ss) relembra esta «”care” and “justice” dichotomy» popularizada por GILLIGAN na sua obra de
1982, In a Different Voice [obra que é, de resto, apontada por Teresa BELEZA (Mulheres, Direito, Crime
cit., p. 32) como um dos livros mais influentes do denominado “feminismo cultural”, «em que a autora
apresenta as suas conclusões de investigação sobre o desenvolvimento psicológico feminino e masculino

70
como forma de encontrar uma solução para o conflito que satisfizesse os interesses
concretos daqueles particulares indivíduos, a última suporia manifestações de
autoritarismo (ou de paternalismo) na reacção ao crime, visíveis no desnivelamento
entre os atingidos pela infracção (vítima e agente) e o Estado punitivo, na ausência de
diálogo, na imposição de uma sanção que desconsidera as necessidades concretas dos
sujeitos, na prevalência dos padrões de generalidade sobre os padrões individuais, na
entronização do racional em detrimento do emocional103.
Segundo se crê, a forma como Teresa BELEZA simboliza o feminismo cultural
através da figura feminina de Antígona resume na perfeição o modo como se
interpenetram o pensamento feminista, a peacemaking criminology e o pensamento
restaurativo: «desafiando as leis do Estado, cumprindo a sua missão de cuidar dos
mortos (do morto seu irmão) ela afirma: – “Nasci para retribuir o amor, não o ódio”
(SÓFOCLES, 1988: 2.º episódio)»104.
De todo o modo, por muito que alguns autores salientem que uma outra forma
de ver o mundo e também a reacção ao crime, considerada mais feminina porque mais
predisposta à conciliação e à pacificação – nesse sentido, menos “bélica” e punitiva –
é condicionante do pensamento restaurativo, sempre sobra a interrogação quanto à
conveniência da manutenção de uma bipartição dos seres humanos em dois grupos105
que sublinhe as distintas características de cada um dos sexos106. Esta dúvida em nada

e as diferenças que os separam, concluindo pela existência de uma “voz” ética de responsabilidade por e
ligação aos outros que será característica das mulheres – enquanto os homens terão um sentido ético de
separação e liberdade face às outras pessoas»]. Kathleen DALY sublinha a “inversão de poder” visível na
ideia de que a justiça restaurativa seria uma “forma superior de justiça” na qual se reveriam
primeiramente os grupos subordinados ou marginalizados, como as mulheres ou as populações indígenas.
103
Segundo M. KAY HARRIS (ob. cit., p. 33-4), no centro do pensamento feminista estão os valores
supremos da felicidade e da harmonia que impõem o cuidado, a partilha, o amor pelo outro. Tais
considerações «contrastam largamente com uma orientação que valora o poder e o controlo acima de tudo
o resto. Onde o objectivo central é o poder, o poder concebido como “poder sobre” ou controlo, não
sendo as pessoas e as coisas vistas como fins em si mesmas mas como instrumentos para a detenção desse
poder».
104
Teresa BELEZA, Mulheres, Direito, Crime ou a Perplexidade de Cassandra, AAFDL, 1993, p. 32.
105
Este questionamento resulta de forma que se julga exemplar das palavras do Dom Rigoberto de Mario
Vargas LLOSA (em Os Cadernos de Dom Rigoberto, 3.ª ed., Lisboa: Dom Quixote, 2010, ps. 64 a 66),
que apresenta o feminismo como uma “categoria conceptual colectivista, ou seja, um sofisma, pois
pretende encerrar dentro de um conceito genérico homogéneo uma vasta colectividade de
individualidades heterogéneas, nas quais diferenças e disparidades são pelo menos tão importantes
(seguramente mais) que o denominador comum clitórico e ovárico”. E, de seguida, resumindo o seu
próprio pensamento, conclui Dom Rigoberto: “todo o movimento que pretenda ultrapassar (ou relegar
para segundo plano) o combate pela soberania individual, antepondo-lhe os interesses de um colectivo –
classe, raça, género, nação, sexo, etnia, igreja, vício ou profissão – me parece uma conjura para refrear
ainda mais a maltratada liberdade humana”.
106
Os conceitos de “género” e de “sexo” (feminino ou masculino) não são coincidentes, podendo afirmar-
se que a pertença a um sexo é uma realidade biológica (nasce-se do sexo feminino ou do sexo masculino,
se exceptuarmos os casos de ausência de uma total determinação sexual à nascença), enquanto a pertença

71
prejudica, note-se bem, a afirmação empenhada da necessidade de evidenciar tal
diferença – para a rejeitar – sempre que ela se traduza em uma desigualdade de direitos
ou de possibilidades fácticas107. O que já se questiona são as vantagens inerentes à
afirmação das diferenças “naturais” ou “estruturais” entre o ser-se homem ou ser-se
mulher (pretensamente transponíveis para a forma como cada um, em função do seu
género, encara a realização da justiça) que, ainda que tendencialmente acertadas à luz de
um pensamento das maiorias, pode acabar por se traduzir em uma ditadura do que é ser-
se do género feminino ou do género masculino que desconsidera as efectivas diferenças
entre as várias mulheres (as singulares especificidades que fazem de uma mulher uma
pessoa distinta das outras mulheres) e entre os vários homens108.
O que se defende, pois, é que o reconhecimento de algumas diferenças em
função do sexo ou género não prejudique a necessária igualdade de estatuto. Sem

a um género resulta de um processo de socialização em que cada indivíduo vai adquirindo as


características próprias do ser-se mulher ou do ser-se homem, acabando – em regra – por se dar uma
coincidência entre o sexo e o género. Simone De BEAUVOIR hiperboliza o factor de socialização em
detrimento do factor biológico afirmando que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” [cfr. O segundo
sexo, Parte II: A experiência vivida, tradução de Sérgio Milliet, revisão de Manuel Peres Newton, Lisboa:
Bertrand, 1976 (original de 1949), p. 13]. Sobre os conceitos de “sexo” e de “género”, Teresa BELEZA
afirma que “nenhum deles é isento de problemas ou questões”. Acrescenta que “o género é um conceito
eminentemente relacional. Por isso mesmo, prefiro utilizar a expressão relações de género a falar nos
(dois) géneros como qualquer coisa de pré-existente, objectiva e pré-determinada, fora do(s) nosso(s)
olhar(es) e discurso(s). Por isso mesmo também, não faz para mim sentido prefigurar o género como
qualquer coisa de estático e inerente a determinado ser, mas antes como uma caracterização instável e em
constante alteração que se determina por contraposição ao seu oposto ou correspondente, também ele
próprio não fixo mas moldável e susceptível de mudança” (Direito das Mulheres e da Igualdade Social
cit., ps. 63-65).
107
O sublinhar da diferença adquire relevo sempre que dessa diferença resulte um tratamento
desigualitário e injusto. Nessa medida, deve apontar-se a diferença de se ser mulher quando a essa
diferença corresponder uma indevida privação de direitos. E, historicamente, não pode deixar de notar-se,
como o notou Alberto SILVA FRANCO, que “a mulher foi ostensivamente discriminada e tal
discriminação tornou-se a mais significativa e abrangente de todas na medida em que correspondia, do
ponto de vista quantitativo, à metade da própria humanidade” (prefácio à obra A mulher encarcerada em
face do poder punitivo, da autoria de Olga Espinoza, IBCCRIM, São Paulo: 2004, p. 13).
108
Teresa BELEZA (Mulheres, Direito, Crime cit., p. 37) dá conta dessa dificuldade de fundo em optar
pela negação de uma diferença em função do género (que conduz à conclusão de que homens e mulheres,
por serem iguais no essencial, merecem idênticos direitos e oportunidades) ou pela afirmação da diferença
feminina: «as correntes feministas oscilam entre a tendência para a diluição da identidade definida em
termos de género e o reforço dessa mesma identidade, fortificada numa exaltação separatista. Aquela
perspectiva tenderá a filiar-se numa generalogia liberal e a favorecer, no contexto pós-estruturalista, uma
prática exegética desconstrucionista. Esta será mais cara às versões radicais e do feminismo cultural,
investindo na celebração das “virtudes femininas” e na afirmação, porventura essencialista e
frequentemente naturalista, da superioridade moral da mulher – ou, pelo menos, da ética feminina».
Também Vera RAPOSO (O Poder de Eva – O princípio da igualdade no âmbito dos direitos políticos.
Problemas suscitados pela discriminação positiva, Almedina: 2004, p. 458)) refere a existência dessa
“questão primordial: será que o sexo é uma questão assim tão relevante? Não será que acima de todas as
qualificações resta apenas uma: a de ser humano? Apenas esta categoria releva aquando da atribuição de
direitos e obrigações. Não se negam as diferenças irrefragáveis entre homens e mulheres. Mas no fundo
todos os seres humanos são diferentes entre si e não é o sexo que necessariamente molda o indivíduo”.
Esta é uma ideia que associo também a uma composição de Tom Zé e de Ana Carolina intitulada
“Unimultiplicidade” e à afirmação de que “cada homem é sozinho a casa da humanidade”.

72
prejuízo de a situação concreta em que cada pessoa se encontra (a sua diferença
enquanto sua circunstância) poder impor tratamentos de excepção, no sentido da sua
protecção (e nem se diga, como tradicionalmente se afirmava, que o que está em causa é
a menor resistência física da mulher ou a sua maior permeabilidade ao cansaço ou à
doença, porque uma pessoa do sexo masculino poderá merecer, em função da sua
situação específica, idênticas medidas de cuidado; no fundo, o mesmo se passa em
relação à protecção da maternidade: se a mulher deverá beneficiar dos direitos inerentes
à procriação ou à amamentação, também o homem, em determinadas situações, deverá
ver protegida a sua paternidade). O que se julga é que, em um contexto sócio-cultural
em que as mulheres são ainda, por razões tantas, as pessoas que mais diferenças
apresentam face ao padrão de vida desejado, no exacto sentido em que se encontram em
situações de maior desprotecção ou fragilidade, essa diferença deve ser tida em conta
pelas estruturas sociais e também pelo direito109.
Mas o reconhecimento de algumas diferenças biológicas inerentes ao nascer-se
mulher ou ao nascer-se homem e o reconhecimento de algumas subsistentes diferenças
culturais inerentes ao ser-se socializada como mulher ou ser-se socializado como
homem não parecem suficientes para legitimar, segundo se crê, uma distinção de fundo
entre uma justiça restaurativa de cuidado com o outro, assistencial, com laivos de
emotividade e afectividade, vocacionada para a pacificação – uma “justiça restaurativa
feminina” – e uma justiça penal repressiva, hierarquizada, fortemente punitiva, de

109
Como refere Teresa BELEZA, “a eventual desigualdade em função do género que exista no direito, na
sua feitura e na sua aplicação, não é um fenómeno independente e em si contido”. Essa desigualdade é
condicionada por outras espécies de desigualdades, por exemplo em função da “classe social” ou da
“raça”, assim como por outros mecanismos de controlo social sobre a mulher (“A Mulher no Código
Penal de 1982”, Colectânea de Textos de Parte Especial do Direito Penal 6, Lisboa: aafdl, 2008, p. 32).
A Autora aponta a subsistência, no direito e na jurisprudência penais, de estereótipos prejudiciais à
mulher, como a crença em que “a criminalidade é um topos da masculinidade”, pelo que a inversão de
papéis e o aparecimento da mulher como agente do crime leva à sua qualificação como “monstro” ou
como “louca”; a relevância assumida pela sua sexualidade; as dificuldades especiais que enfrentam
“quando são alvo da justiça penal”. Teresa BELEZA acrescenta, sob este enfoque, que “é claro que o
estudo da construção jurídica das relações de género é ainda uma forma de promover o ideal democrático
de igualdade, contrariando o peso das hierarquias em função do sexo construídas ou fortemente apoiadas
pelo próprio discurso jurídico” (“Anjos e monstros – a construção das relações de género no direito
penal”, Ex Aequo, Revista da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, n.º 10, 2004, p. 29
ss). O pensamento de Tove Stang DAHL [O Direito das Mulheres – uma introdução à teoria do direito
feminista, prefácio e coordenação de tradução de Teresa Beleza, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1993, p. 4] é paradigmático na demonstração de como o Direito das Mulheres permanece indispensável
mesmo em uma sociedade a tantos títulos mais igualitária do que a média, como será a sociedade
norueguesa: “enquanto vivermos numa sociedade onde os percursos e as condições de vida, as
necessidades e as oportunidades forem diferentes para os homens e para as mulheres, é óbvio que as leis
afectam uns e outros de forma diferente. O silêncio acentua ainda mais a desigualdade e a injustiça,
independentemente da intenção do legislador. É esta complexa articulação do Direito com a vida que a
investigação no domínio do Direito das Mulheres tenta apresentar e compreender, no intuito especial de
contribuir para uma verdadeira igualdade e libertação”.

73
conflito e gizada com desconsideração dos aspectos emocionais e afectivos – a “justiça
penal masculina”110.
Seria, de resto, paradoxal que o pensamento feminista, depois de uma longa luta
no sentido do afastamento da crença nas diferenças biológicas e/ou intelectuais que
fariam da mulher um ser menor 111, pretendesse agora vincar a existência de diferenças
biológicas e/ou intelectuais que fariam da mulher um ser maior – ou, talvez com mais
propriedade, um ser melhor e capaz de inspirar um modelo de reacção ao crime também
melhor112.
A ideia de Carol GILLIGAN113 de que os quadros mentais masculinos se
estruturam com base numa “ética de justiça” que privilegia os conceitos formais e

110
Essa associação da justiça penal a uma justiça masculina poderia ser simbolizada pela afirmação de
Carol SMART de que “o direito é masculino”, porque é construído a partir de valores tipicamente
masculinos, como a racionalidade, a objectividade e a capacidade de neutralidade do sujeito perante um
objecto que lhe é exterior (“La mujer del discurso jurídico”, Mujeres, Derecho Penal y Criminologia,
coord. Elena Larrauri, Madrid: Siglo Veintiuno, 1994, p. 173). Todavia, o que se julga é que o
entendimento de que um determinado modelo de justiça se alicerçava em valores que interessavam
sobretudo ao homem (e não a qualquer homem, mas ao homem que se localiza nos estratos sociais mais
privilegiados) e era aplicado sobretudo por homens que partilhavam das características eleitas como
“normais”, não tem de equivaler à afirmação de “qualidades” exclusiva e intrinsecamente masculinas nas
quais esse modelo se reveria, por oposição às “qualidades” ditas femininas, nada valorizadas ou menos
valorizadas.
111
Com interesse para a compreensão da forma como a participação das mulheres foi historicamente
desvalorizada no âmbito da própria justiça penal, através da assimilação de um juízo de diferença a um
juízo de menoridade, cfr. Marina GRAZIOSI, “En los orígenes del machismo jurídico. La idea de
inferioridad de la mujer en la obra de Farinacio”, Serta: in memoriam Alexandri Baratta cit., p. 1067 ss.
Entre vários outros aspectos, a Autora analisa a tendência, durante a Idade Média, para se excluir a
mulher da possibilidade de intervir no processo penal como testemunha, assim como da possibilidade de
acusar. E GRAZIOSI acrescenta que «a preclusão das mulheres do direito de acusar manteve-se também
naquela que foi a primeira declaração solene de direitos. O artigo 54 da Magna Charta Libertatum dispôs
que: “no one shall be taken or imprisoned upon the appeal of a woman for the death of anyone except her
husband”».
112
Reconhece-se, de resto, no próprio pensamento feminista, a importância da negação dessa
desvalorização da mulher associada à afirmação da sua diferença biológica, cognitiva ou emocional.
Nessa medida, parece incoerente a associação da justiça penal a qualidades vistas como masculinas e a
atribuição à justiça restaurativa das qualidades ditas femininas. A importância da rejeição dessa
categorização é acentuada por Olga ESPINOZA, A mulher encarcerada cit., p. 58: «o movimento
feminista ocidental surgiu como tentativa de desconstruir os padrões “únicos” e de “normalidade” que
estimularam a submissão da mulher. Tais padrões instituíram características hierarquizadas, baseadas na
oposição entre sujeito e objecto, razão e emoção, espírito e corpo, correspondendo o primeiro termo às
qualidades masculinas e o segundo às femininas”.
113
Ao pensamento que Carol GILLIGAN defende ao longo da sua obra In a Different Voice:
Psychological Theory and Women’s Development subjazem as investigações que desenvolvera
essencialmente ao longo da década anterior e que apontavam para a existência de diferenças intelectuais
entre as crianças do sexo masculino e do sexo feminino desde momentos muito precoces, o que excluiria
a possibilidade de imputar aquela “ética do cuidado” tipicamente feminina a factores de socialização.
Todavia, não deixa de ser interessante reflectir sobre a própria evolução do pensamento da Autora e do
seu conceito de “voice”. Na introdução às edições mais recentes, GILLIGAN parece deslocar o núcleo
daquele conceito para a capacidade não só de se expressar, mas também de ser ouvido e compreendido,
fazendo supor que a distinção entre a voz “masculina” e a voz “feminina” está mais na reacção que
desencadeia nos outros (na sua “ressonância”) do que nas suas próprias características (cfr. In a Different

74
abstractos (as escolhas morais masculinas dar-se-iam com base em uma orientação para
a justiça e para os direitos, concebendo-se a moralidade enquanto respeito pelas normas
à luz de um modo de pensar que repousa num conceito de hierarquia e de poder), por
oposição aos quadros mentais femininos (alicerçados numa “ética do cuidado”
valorizadora de uma teia de relações e interdependências e do conceito de
responsabilidade pelo outro, procurando-se a solução para os problemas não na regra
que hierarquiza os interesses, fazendo prevalecer os de um sobre os do outro, mas no
diálogo que pode satisfazer parcialmente todos os envolvidos) está –
compreensivelmente, também à luz dos argumentos supra aflorados – hoje em crise.
Por razões várias – que não cabe nesta sede aprofundar – mas, sobretudo, porque se
concorda sem titubear com Teresa BELEZA na sua afirmação de que «a divisão entre os
géneros é uma bipolarização “artificial”»114.
Ora, sendo assim, a bipolarização de duas formas de reacção ao crime em função
de características inerentes ao género terá de ser, também ela, artificial. Pode dizer-se,
de facto, que a contraposição defendida por alguns cultores do paradigma restaurativo
entre uma justiça penal “masculina” (e merecedora de críticas várias) e uma justiça
restaurativa “feminina”115 (e merecedora de aplausos vários) radica em uma

Voice: Psychological Theory and Women’s Development, Cambridge: Harvard University Press, 38.ª
edição, 2003, p. XVI).
114
No final da sua obra Mulheres, Direito, Crime cit., p. 549 ss, a Autora elenca as suas teses “sobre o
género”. Reproduzo aqui aquelas que considero essenciais como pano de fundo para a rejeição da
distinção entre uma justiça (restaurativa) feminina e uma justiça (penal) masculina: «1. O género é um
conceito relacional. 2. O género é socialmente construído. (…) 5. O sexo e a raça têm efeitos reais na
esfera pessoal, social, política. 6. O mundo não se divide entre homens e mulheres. O mundo foi dividido
entre homens e mulheres. Neste sentido, uma posição filosófica nominalista é mais “realista”, jogando
com as palavras». No que respeita às teses propugnadas “sobre a igualdade”, existem algumas – mais uma
vez, pelo acerto que revelam – que aqui não podem deixar de se mencionar: «29. As pessoas não nascem
livres nem iguais. 30. O Direito deve ajudar à criação da liberdade. 31. O Direito deve fomentar a
igualdade para a criação livre das diferenças. 32. A igualdade formal pode reforçar a desigualdade
material. 33. A democracia implica o direito à igualdade e à diferença. 34. rectius: a democracia implica a
igualdade no direito à diferença. Ou melhor: às diferenças. 35. Não se trata de abolir a diferença mas de
multiplicar as diferenças».
115
Assim, v.g., Guy MASTERS e David SMITH (“Portia and Persephone Revisited: Thinking about
Feeling in Criminal Justice”, Theoretical Criminology, vol. 2, n. 1, ano 1998, p. 5 ss), que associam a
justiça restaurativa à referida ética de cuidado, segundo eles simbolizada por Perséfone. Esta figura da
mitologia grega (que corresponde à deusa romana Proserpina) foi levada por Hades para o mundo
subterrâneo sem o consentimento da mãe da donzela, Demeter, deusa da agricultura. A tristeza desta
reflectiu-se na esterilidade das terras e na escassez de alimentos. Um acordo contornou esta situação,
devendo Perséfone passar um período com Hades no mundo dos mortos e outro período com sua mãe,
tempo este que coincidiria com a Primavera. Perséfone associa-se por isso ao renascimento e à
regeneração, na medida em que o seu regresso na Primavera faz as plantas florescerem, os animais
procriarem e as pessoas experimentarem mais sentimentos de solidariedade e amor. Os Autores
sublinham as vantagens de uma justiça relacional e apresentam alguns dados empíricos em matéria de
mediação e Family Group Conferencing para concluírem pela necessidade de um incremento do recurso a
tais procedimentos no sistema anglo-saxónico de reacção ao crime.

75
compreensão do pensamento feminista já ultrapassada. Como refere Kathleen DALY116,
a teoria de Gilligan sobre a diferente voz de homens e de mulheres foi ultrapassada, no
final dos anos oitenta e na década de noventa, por análises muito mais complexas em
matéria de ética e de moral, desviando-se as atenções dos criminólogos feministas das
reflexões dicotómicas em torno das (pretensamente) diversas características inerentes ao
sexo para considerações mais profícuas sobre as relações de poder e as desigualdades
em função do género perpetuadas pelo sistema de justiça. A necessidade de
compreender a forma como as mulheres se relacionam com as instâncias formais de
controlo – enquanto objecto mas também enquanto sujeito, nas várias formas em que
cada uma destas categorias se pode, em função da perspectiva que adoptarmos,
desdobrar – prestando atenção às suas (distintas) vozes não significa, pois, a existência
de uma universal voz feminina em matéria de realização da justiça.
Esta afirmação não equivale, porém, à rejeição liminar das vantagens de uma
forma de compreensão da justiça que se dizia ser tipicamente feminina. Significa apenas
que essa forma de compreensão da justiça – que sublinha a importância do diálogo, da
atenção ao concreto e aos sentimentos dos envolvidos, da procura de uma solução que
realmente os satisfaça e pacifique – pode ser um projecto de natureza humanista,
independentemente de uma referência ao género.
Algumas notas breves e últimas: a reflexão sobre os aspectos de cariz mais
subjectivo a considerar na tarefa de realização da justiça, a atenção a prestar ao caso
concreto e às circunstâncias e necessidades reais e irrepetíveis dos envolvidos, não
significa a pretensão de substituir uma qualquer lógica de justiça por uma lógica do
cuidado alicerçada na emoção117. O que se defende é antes que na interpretação e

116
Kathleen DALY, “Restorative Justice: The Real Story”, Punishment and Society, 2002, vol. 4, n.º 1, p.
55 ss. A Autora, num posterior estudo conjunto com JULIE STUBBS, apesar de rejeitar a compreensão
da justiça restaurativa como uma “resposta feminina ao crime”, defende a reflexão sobre a justiça
restaurativa à luz de algumas preocupações características do pensamento feminista e advoga a
necessidade de alargar tais análises para além dos domínios habituais da criminalidade sexual, da
violência familiar ou dos maus tratos conjugais. O que está em causa não deve continuar a ser
exclusivamente a possibilidade ou a vantagem de a reacção a tais infracções ocorrer através de práticas
restaurativas (cfr. Kathleen DALY e Julie STUBBS, “Feminist engagement with restorative justice”,
Theoretical Criminology, vol. 10, n.º 1, ano 2006, p. 9 ss).
117
O que é reconhecido mesmo entre autores que valorizam o referido “outro olhar” (feminino, de
cuidado) na realização da justiça. Segundo M. KAY HARRIS (ob. cit., p. 34) seria um erro defender essa
substituição e a consequente eliminação da ética (masculina) de justiça “focada nos direitos”, até porque
“especialmente no momento presente, quando existem tão vastas diferenças na repartição do poder entre
as pessoas, não estamos em posição de acreditar que os interesses dos menos poderosos serão protegidos
na ausência de normas designadas para garantir essa protecção”. A Autora reconhece ainda que tanto os
homens como as mulheres são capazes de recorrer quer a uma ética de justiça quer a uma ética de
cuidado, não havendo razão para acreditar que os diferentes pesos atribuídos a cada uma delas sejam
inatos ou biológicos. E conclui que “precisamos de trabalhar para encontrar formas de integração mais

76
aplicação da norma ao caso se não desconsidere a dimensão do concreto118 (em
situações-limite, tal desconsideração tornar-se-á patente quando a aplicação do direito
desembocar em soluções manifestamente injustas, o que deverá sensibilizar o aplicador
para uma reconsideração do caso).
Esta linha de raciocínio pode ser inscrita na crítica de um pensamento
sistemático desinteressado da justeza da solução concreta que se encontra para o
problema. A pertinência dessa crítica – patente, nomeadamente, na obra de
criminólogos críticos tão influentes como Alessandro Baratta119 – é hoje reconhecida no
seio da própria doutrina penal. Nas tão expressivas palavras de Jorge de FIGUEIREDO

total das noções abstractas de justiça e de direitos com as noções contextuais de cuidado e de
relacionamento”. À luz de uma análise que vinca os elos de ligação entre a criminologia de pacificação e
o pensamento feminista na criminologia, HARRIS (ob. cit., ps. 36-7) reconhece as dificuldades de fundo
que estas correntes têm de enfrentar quando confrontadas com o problema do controlo da criminalidade.
Depois de afirmar que o sistema penal (que assenta na aplicação ao criminoso de um mal cuja intensidade
não será muito diferente daquele que foi infligido à vítima e que tem na sua estrutura um princípio de
poder do Estado sobre o indivíduo) não tem qualquer vocação pacificadora, antes conflitual, questiona a
forma como o pensamento feminista se pode afirmar neste contexto: “como podemos satisfazer a séria e
muito real necessidade de protecção contra a violência sem violarmos os nossos valores e aspirações
pacifistas? Como podemos responder com efectividade às pessoas que causam danos e sofrimento aos
outros sem utilizarmos o mesmo guião e os mesmos meios que eles usaram? Como podemos satisfazer as
necessidades imediatas de segurança sem elevarmos essas necessidades acima da necessidade de recrear a
moralidade, as relações entre as pessoas e a concepção de justiça na nossa sociedade”. Apesar de se
reconhecerem as dificuldades (enormes), afirma-se que uma condição indispensável para que o futuro
seja diferente é começar a imaginá-lo diferente, podendo o feminismo apresentar algumas orientações
iniciais para nos aproximarmos desse futuro (parafraseando Boulding, a Autora recorda que “imaginar o
futuro dá-nos ideias de acção para o presente”). A tarefa será, “não a descoberta de como erradicar o
crime, mas a descoberta de como adoptar um comportamento que realize os nossos valores e desejo de
harmonia”. Esta ideia é de seguida concretizada em algumas proposições que sublinham, nomeadamente.
a importância de não coisificar o delinquente ou de o castigar através da imposição de um mal que lhe
causa um sofrimento inútil, o relevo da assunção pela comunidade das suas responsabilidades na gestão
do bem comum sem o recurso permanente a conceitos de “poder, controlo ou dominação”, o empenho na
busca de soluções “participadas, democráticas, cooperativas”.
118
Essa desconsideração do concreto varia, naturalmente, em função da compreensão que se adopte sobre
várias matérias, nomeadamente a doutrina geral do crime. Para Vincenzo MILITELLO, a ciência do
direito penal «ao prestar uma atenção preferencial ao mundo das normas induz a perder de vista o papel
que a matéria regulada desempenha em sede de elaboração dogmática. De facto, a mais importante
objecção à escola clássica do direito penal – o institucionalizar da noção de delito esquecendo, todavia, o
autor “de carne e osso” – suscita um problema ainda mais árduo: a relação entre normativismo e
naturalismo que, também para o método técnico-jurídico, permanece como um dilema não resolvido»
(“Dogmática penal y política criminal en perspectiva europea”, Crítica y Justificación del Derecho Penal
en el Cambio del Siglo, El análisis crítico de la Escuela de Frankfurt, coord. Arroyo
Zapatero/Neumann/Nieto Martín, Colección Estúdios, Ediciones de la Universidad de Castilla-La
Mancha, 2003, p. 45).
119
No sentido da compreensão desta crítica na obra de Baratta, Massimo PAVARINI (“Para una crítica
de la ideologia penal. Una primera aproximación a la obra de Alessandro Baratta”, Serta in Memoriam
Alexandri Baratta cit., p. 129) afirma que “o sentido último das suas reflexões sobre essas categorias da
dogmática penal, sob um ponto de vista puramente intra-sistemático, traduzia-se no convencimento
enraízado da incapacidade da ciência dogmática para a auto-reflexão. Baratta tinha chegado à convicção
de que a ciência jurídico-penal entre os séculos XVIII e XIX acabou por produzir um saber técnico auto-
referencial e fechado, incapaz não só de evoluções, mas gerador, também, de inultrapassáveis
dificuldades lógicas internas”.

77
DIAS120, “no contexto deste Estado de Direito material a função e a tarefa da dogmática
jurídico-penal transformam-se profundamente. O jurista deixa de ser considerado um
simples fazedor de silogismos, que se limita a deduzir do texto da lei as soluções dos
concretos problemas jurídicos da vida, para se tornar em alguém sobre quem recai a
indeclinável responsabilidade de procurar e encontrar – se bem que de modo jurídico-
formalmente válido – a solução mais justa para cada um daqueles problemas. Deste
modo, a questão metodológica volta a adquirir particular ressonância, nomeadamente
quanto a saber – dizendo-o através de uma forma aproximativa, mas que ganhou foros
de cidadania na mais recente metodologia – até onde o pensamento do problema se
pode introduzir no (ou mesmo sobrepor ao) pensamento do sistema, em geral dominante
na dogmática jurídico-penal”121. Em sentido não divergente, Luigi FERRAJOLI, depois

120
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I cit., p. 26. O Autor não deixa,
porém, de sublinhar a importância do “pensamento do sistema”: «o lugar cimeiro que assim se concede ao
“pensamento do problema” na dogmática jurídico-penal não significa porém negligenciar ou sequer
minimizar o papel irrecusável que nela continua a pertencer ao pensamento do sistema», imposto por
“razões de segurança na aplicação do direito” e por constituir condição para se encontrar “uma solução
justa e adequada para um caso jurídico-penal” (últ. ob.cit., p. 30). A superação do positivismo jurídico e a
reflexão sobre o possível conflito entre a justiça e a segurança do direito são objecto da obra de Giuliano
VASSALLI, Formula di Radbruch e diritto penale. Note sulla punizione dei “delitti di Statto” nella
Germania postnazista e nella Germania postcomunista, Milão: Giuffrè Editora, 2001, obra que depois
mereceu o comentário de Eugenio Raúl ZAFFARONI em «Una investigación notable de Giuliano
Vassalli: la “fórmula de Radbruch”», Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 163 ss. Parece interessante notar que Gustav Radbruch, tendo em
conta a globalidade do seu pensamento e conhecendo-se a evolução que terá sofrido no período pós II
Grande Guerra, não deve qualificar-se enquanto Autor que vinca uma separação absoluta entre a justiça e
o direito. Apesar de afirmar que a segurança também é inerente à justiça e de alertar para os perigos de
superação do positivismo de um modo que levasse a um estado de não direito, reconhece que há casos em
que o direito é injusto e não tolerável e que existem ainda outros casos em que o direito positivo deve, por
força da sua injustiça extrema, ser qualificado como “não direito”. Na sua fórmula, depois de começar por
afirmar que o conflito entre a justiça e a segurança do direito deve resolver-se com a predominância do
direito positivo mesmo que injusto e inadequado, RADBRUCH considera que já não deve ser assim
quando aquele conflito atinja uma dimensão tão intolerável que tem de conduzir à cedência do direito
injusto perante a justiça. A fórmula de Radbruch tem sido acusada, com fundamento, de extrema vagueza
na determinação do ponto a partir do qual a injustiça do direito positivo se torna intolerável. Para
VASSALLI, os problemas maiores nem existem quando estiverem em causa normas excessivamente
punitivas: elas deverão ser não aplicadas e depois derrogadas. As dificuldades principais surgirão, isso
sim, quando, em um momento posterior, se pergunta como punir uma conduta claramente desvaliosa mas
ocorrida no contexto de sistemas normativos que no momento da sua prática a aceitavam como não ilícita
(pense-se no exemplo da denominada criminalidade de Estado característica de tantos regimes não
democráticos). O limite último para a rejeição do direito positivo em nome de superiores e evidentes
considerações de justiça parece radicar na proibição da retroactividade que desfavoreça o agente.
121
Fernando José Pinto BRONZE refere-se a “uma praxis de rosto humano, na medida em que, no seu
âmbito, é sempre do mérito problemático do conhecido que se avança para a disquisição do mérito
problemático do desconhecido ou do menos bem conhecido”. E acrescenta que se aquilo que assim
afirmou vale «para o “mundo da vida”, também se mostra ajustado à realidade do “mundo do direito”, em
que a nota especificante é, obviamente, apresentarem-se os aludidos problemas e referentes como
juridicamente intencionados» (“A metodonomologia (para além da argumentação)”, Ars Iudicandi,
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, org. Jorge de Figueiredo Dias, José
Joaquim Gomes Canotilho, José de Faria Costa, Stvdia Jvridica 90, Boletim da Faculdade de Direito,
Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 353). Por seu turno, Nicolás García RIVAS (El Poder Punitivo en el

78
de explicar que a aplicação da lei penal supõe dois elementos cumulativos, que designa

Estado Democrático, Cuenca: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 1996,


p. 97 ss) dá conta, com interesse ainda que de forma resumida, da passagem de uma compreensão
estritamente positivista da dogmática para uma fase de abertura ao pensamento das finalidades. Sobre
aquela, afirma que “submetida aos limites estreitos do positivismo do princípio do século, a ciência penal
ocupou-se fundamentalmente da criação de um sistema explicativo dotado de coerência, virando as costas
(…) à relação do direito penal com a sociedade, a cuja protecção afirma dirigir-se”. Para enfatizar a
mudança de perspectiva, RIVAS recorda a afirmação de Gimbernat de que “os tempos idílicos em que
aquilo que aparentemente importava era se o dolo pertencia ao tipo ou à culpa foram-se para sempre”.
Nicolás RIVAS sustenta, ainda, a relevância do contributo de Würtemberger, a meio do século XX, para a
compreensão da necessidade de se conciliar o pensamento sistemático e o pensamento problemático,
citando a sua afirmação de que “só a partir de uma análise atenta das necessidades derivadas da situação
concreta pode [o jurista] permitir-se a adopção de uma decisão tanto no âmbito científico como na ordem
prática (…). Por isso, a estrutura metodológica da ciência penal deve vir determinada pela realidade de
modo muito mais penetrante do que tem sucedido até ao momento e os conceitos e estruturas sistemáticos
por ela elaborados têm que vincular-se aos problemas vitais, sem os considerar a priori alheios à própria
realidade”. Em sentido próximo do de RIVAS, e também com pertinência sob o ponto de vista da
ponderação da importância do problema em comparação com a importância do sistema, Jesus-Maria
SILVA SANCHEZ entende que «desde os contributos de Roxin parece ter-se assumido muito
maioritariamente que a dogmática da teoria do delito deve tratar de afastar o apriorismo e abrir-se à
argumentação político-criminal, isto é, à consideração do seu contributo para a obtenção, em geral e em
cada caso, das finalidades próprias do direito penal. Neste momento, já parece possível advertir que
apenas na medida em que isto vingue, isto é, desde que o sistema estruturado continue a aproximar-se da
prática, poderá evitar-se o epíteto de “folgenlose Dogmatik”, que ultimamente preocupa, e com razão, a
doutrina e que poderia conduzir à efectiva irrelevância do pensamento sistemático». Deve sublinhar-se
que o Autor tece estas considerações a propósito do desafio representado pela “internacionalização do
direito penal”, parecendo resultar que a abertura da teoria do delito do sistema europeu continental à
consideração também do problema (sem que isso signifique o abandono do “sistema estruturado do
delito”) pode atenuar a distância face ao sistema anglo-saxónico (“Retos científicos y retos políticos de la
ciência del Derecho Penal”, Crítica y justificación del derecho penal en el cambio del siglo, El análisis
crítico de la Escuela de Frankfurt, coord. Arroyo Zapatero/Neumann/Nieto Martín, Colección Estúdios,
Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2003, ps. 31-3). Cumpre, porém, sublinhar que a
abertura da dogmática ao pensamento das finalidades e a atenção ao problema que daí pode decorrer não
é, para outros autores, garantia de obtenção de uma decisão mais justa. Assim, por exemplo Guillermo
Portilla CONTRERAS, referindo-se às teses de Jakobs ou de Silva-Sánchez, considera que “nestas teses
não existe uma referência à legitimação externa do direito penal, não existe, consequentemente, uma
discussão sobre a validade do direito, só interessa a sua facticidade, ou seja, a produção do direito
conforme a critérios de funcionalidade que podem ser contrários a uma referência de justiça” (“La
influencia de las ciencias sociales en el derecho penal: la defensa del modelo ideológico neoliberal en las
teorías funcionalistas y en el discurso ético de Habermas sobre selección de los intereses penales”, in
Crítica y justificación del derecho penal en el cambio del siglo cit., p. 107). Por outro lado, importa
também vincar a não coincidência entre a reflexão sobre a “orientação para o problema” que, como se
verá, é vector do pensamento restaurativo, e a “orientação para as consequências” que caracteriza as
correntes funcionalistas da justiça penal. Aquele “problema” é o dos intervenientes no conflito jurídico-
penal, o agente, a sua vítima e, eventualmente, os seus próximos. Estas “consequências”, pelo contrário,
relacionam-se com a eficácia na protecção de bens jurídicos. Winfried HASSEMER (in Persona, mundo
y responsabilidad. Bases para una teoria de la imputación en Derecho Penal , trad.de Muñoz Conde e
Díaz Pita, Valencia: tirant lo blanch, 1999, p. 25) procura no pensamento de Feuerbach as raízes para esta
compreensão funcionalista: «como afirmava o próprio Feuerbach, o indivíduo inclinado para o mal
deveria ser preso a uma corrente para não poder levar a cabo as suas inclinações perversas; mas como
isto, dizia, é impossível, haverá que procurar uma espécie de corrente psicológica que faça com que o
indivíduo que racionalmente calcula as vantagens e os inconvenientes do seu comportamento se abstenha
de cometer delitos. Isso conseguir-se-ia fazendo com que a gravidade da pena a que poderia ser
condenado fosse mais determinante do que o possível proveito associado ao cometimento do crime. Esta
teoria da “coacção psicológica” demonstra que a filosofia jurídico-penal surgida da Ilustração tinha
abandonado o conceptualismo orientado input, próprio da filosofia idealista, vinculando o direito penal a
uma orientação output». O Autor conclui que “esta estruturação preventiva do direito penal” revela um
“parentesco com o utilitarismo que é evidente”.

79
como “verificação” e como “compreensão”, considera que esta última “requer a não
indiferença, ou seja, aquela participação na situação de facto objecto da incriminação
que se expressa na benevolência, na compaixão, na pietas”, acrescentando ainda que é
sobretudo no exercício desta actividade que “se manifesta a sensibilidade, a inteligência
e a moralidade do juiz”122.
A importância atribuída a essa dimensão do concreto é, de resto, elemento
fundamental de reflexões jusfilosóficas contemporâneas tão relevantes como a de
Emmanuel LÉVINAS, que centra a sua análise da justiça na responsabilidade pelo
outro, que surge com o reconhecimento do apelo do rosto do outro123. Para o filósofo,
uma das razões explicativas da injustiça do sistema é a desconsideração do homem na
sua “singularidade e unicidade”, por se partir erroneamente de uma concepção de justiça
equitativa e distributiva assente na ideia falsa de que a comunidade é composta por
«uma pluralidade de “eus” idênticos»124. O Autor deixa, a propósito da pretensão de

122
Luigi FERRAJOLI (Derecho y Razón – Teoria del Garantismo Penal, 9.ª ed., Madrid: Editorial
Trotta, 2009, ps. 162-3) rejeita quer a “justiça formal da exclusiva sujeição do juiz à lei”, quer a “justiça
substancial do caso concreto livre de vínculos legais rígidos”, considerando que “as duas aproximações
são na realidade defeituosas”. Acrescenta que «o chamado “formalismo” da primeira aproximação é na
realidade uma forma, muito difundida no mundo judicial, de obtusidade legalista, que se manifesta na
falta de compreensão dos casos concretos e das razões humanas que os explicam e caracterizam». Mas
considera, também, que «o chamado “antiformalismo” da segunda é uma forma, não menos difundida no
mesmo mundo, de arbítrio substancial, que se expressa na falta de verificação da previsão legal de um
facto enquanto delito para além das características concretas reprováveis nele reconhecidas». E o Autor
conclui que “a aplicação da lei ao caso concreto é na realidade uma actividade cognoscitiva que requer,
enquanto duas condições necessárias e cada uma delas insuficiente, tanto a verificação como a
compreensão”, acrescentando, porém, que “é sobretudo a prudentia ou compreensão das conotações
singulares [do facto] o que caracteriza a função judicial, distinguindo-a de qualquer outra função
burocrática ou meramente executiva. E é através dela que entram – e devem entrar – no juízo o contexto
ambiental do facto, as efectivas circunstâncias humanas e sociais nas quais reside a sua concretude e a sua
particularidade e que o tornam distinto de todos os outros, por mais que, como alguns outros, esteja
abrangido pelo mesmo nomen ou tipo de crime”. Fazendo agora apelo a uma outra espécie de discurso,
pode ainda considerar-se que a preocupação com o problema e não já apenas com o sistema será elemento
importante para que se realize a aspiração de Eduardo GALEANO (“O direito ao delírio”, De Pernas Pró
Ar – A Escola do Mundo ao Avesso, Porto Alegre, L&PM Editores, 8ª edição, 2005, ps. 342-3) para o
novo milénio: “a justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas tornarão a unir-se,
bem juntinhas pelas costas”. A influência do pensamento feminista é patente em vários passos da obra do
Escritor urugaio que, no próprio texto citado, formula ainda os seguintes votos: “será incorporado aos
códigos penais o delito da estupidez, cometido por aqueles que vivem para ter e para ganhar, ao invés de
viver apenas por viver, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que
brinca; (…) uma mulher, negra, será presidenta do Brasil, e outra mulher, negra, será presidenta dos
Estados Unidos da América; e uma mulher índia governará a Guatemala e outra o Peru”.
123
Emmanuel LÉVINAS, Éthique et Infini, Dialogues avec Philippe Nemo, Paris: Librairie Arthème
Fayard, 1982, p. 101 ss. Não pode, porém, deixar de se referir que também no pensamento de outros
autores, como Pierre BOURDIEU, é manifesta essa preocupação com a pretensão de universalidade do
direito, associada a uma razão escolástica e à “competição” entre a ciência e o direito no sentido de lograr
o maior distanciamento do concreto e a maior progressão no sentido daquela universalidade (“Ésprits
d’État – Genèse et structure du champ bureaucratique”, in Raisons Pratiques, Paris: Éditions du Seuil,
1994, p. 99 ss).
124
Para uma análise do pensamento de Lévinas sobre a justiça, vd. Etelvina NUNES, “Para uma nova
justiça”, Revista Portuguesa de Filosofia, 1996, vol. 52, n.º 1-4, p. 617 ss. A Autora, depois de explicitar

80
“universalismo” da justiça, uma significativa interrogação: “como opor com a mesma
arrogância os princípios universais – isto é, visíveis – ao rosto do outro, sem recuar
perante a crueldade da justiça impessoal? E como não introduzir então a subjectividade
do eu como única fonte possível da bondade?”125.
Na intersecção da criminologia de pacificação e do pensamento feminista na
criminologia surge uma outra ideia forte que se cristalizará depois no paradigma
restaurativo: o sistema penal de resposta ao crime assenta em uma estrutura
hierarquizada onde se vinca a supremacia do Estado e dos seus agentes (dos titulares da
autoridade punitiva) sobre o indivíduo. O conceito de poder sobre o outro aparece assim
como estruturante. Aquele Estado sujeita este indivíduo a um mal (porque ele causou
um mal a outrem) que se traduz, pelo menos nos casos de privação da liberdade, num
como que ser banido (ainda que temporariamente) do grupo. Ora, esta forma autoritária
e não participada (logo, dificilmente pacificadora) de decidir a sorte do infractor é um
dos nódulos centrais da crítica que o pensamento restaurativo faz ao sistema penal
clássico. Neste sentido, pode afirmar-se, com M. KAY HARRIS, que “precisamos de
dar um passo atrás para reconsiderar se devemos ou não punir e não apenas para nos
questionarmos sobre como punir”126.

o intento de Lévinas de «fundamentar uma justiça que veja para além da “linha recta da justiça”», vinca o
entendimento do filósofo no sentido de que se deve criar “uma justiça que possa julgar a partir da relação
directa com o outro, a partir da sua situação concreta e não a partir de um anonimato, do geral. No sistema
totalitário, o eu não tem direito à palavra, e isto seria já, de per si, uma injustiça. Para Lévinas, a
verdadeira justiça estaria já na rectidão do face-a-face: acolhimento do rosto e reconhecimento do outro
como único”.
125
Emmanuel LÉVINAS, Totalidade e Infinito, Biblioteca de Filosofia Contemporânea, Lisboa: edições
70, 1988, p. 280.
126
M. KAY HARRIS, ob. cit., p. 38. A Autora considera que esta questão nos deve fazer meditar, ainda
que “continuemos convencidos de que algo é preciso para cumprir a função declaratória da lei criminal,
algo que nos diga o que podemos ou não podemos fazer”. E ainda que continuemos a achar que “há a
necessidade de uma qualquer forma de processo através do qual as pessoas sejam responsabilizadas pelas
suas más acções”. A necessidade de considerar outras formas, mais harmoniosas, de reacção ao conflito
existirá, segundo HARRIS, mesmo que não logremos encontrar modos para definitivamente erradicar a
imposição de alguns constrangimentos aos delinquentes. Recusa, porém, a pena de prisão (e afirma que a
privação da liberdade deve ter menos a ver com edifícios e com grades e mais com os contactos e relações
humanos, sugerindo a possibilidade de pequenos grupos de pessoas assumirem temporariamente a
responsabilidade por aquele que é considerado perigoso para os seus semelhantes). O exercício de poder
sobre o outro inerente à administração da justiça penal é visto como elemento de um processo que está já
em mutação. E o paradigma restaurativo será, de algum modo, elemento essencial dessa transição para
uma outra filosofia na resposta ao crime. Muito do seu conteúdo repousa já, porém, no pensamento de
autores feministas como HARRIS, que acentua as ideias de cuidado com o outro, de comunidade e de
entreajuda, de capacidade de escolha e de recriar as relações interpessoais como elementos essenciais de
uma resposta diferente aos conflitos. As palavras com que M. KAY HARRIS conclui o artigo citado são
elucidativas e, para não perderem muito do significado e da força de que vêm animadas, opta-se por aqui
as transcrever na versão (inglesa) original: “we should refuse to return evil with evil. Although we have
enemies, we should seek to forgive, reconcile and heal. We should strive to find within ourselves
outrageous love, the kind of love that extends even to those it is easiest to fear and hate. Love frequently
is seen as having little relevance outside the personal realm. Yet the power ethic has failed to serve

81
As dúvidas expressas na criminologia feminista sobre a legitimidade e a
conveniência do sancionamento penal alargam-se, porém, ao questionamento da própria
eficácia do modelo à luz dos seus próprios objectivos (a questão já não radica, assim,
apenas na sua incapacidade para pacificar, mas também na sua ineficácia mesmo
quando o propósito é punir). Nas palavras de HUDSON, “os falhanços da justiça
criminal estão bem documentados, especialmente no caso da violência contra as
mulheres”127.
Ora, uma consideração superficial destas críticas (distintas e quase opostas)
provindas do pensamento feminista na criminologia poderia levar a uma refutação dessa
criminologia feminista, por ser contraditória. O argumento seria: não se pode pedir ao
sistema de resposta ao crime uma coisa e o seu contrário (por um lado, a substituição
de um modelo punitivo por um modelo de pacificação alicerçado em reacções de
natureza não eminentemente penal, rejeitando-se a pena de prisão; por outro lado, a
maior eficácia da resposta penal, com um endurecimento das sanções – logo, um
aprofundamento da intervenção punitiva – no que tange à criminalidade contra as
mulheres e à violência que subjaz a uma discriminação racial)128. Se bem se vêem as
coisas, esta contradição não parece ser nem definitiva, nem inultrapassável: é possível
reclamar-se menos justiça penal e reclamar-se melhor e mais justa (no sentido de menos

human happiness. To have a harmonious society, we must act in ways designed to increase harmony, not
to further fragments, repress and control. There is no other way. The means and the end are the same”.
127
Barbara HUDSON (“Restorative Justice: the challenge of sexual and racial violence”, A Restorative
Justice Reader, Ed. Gerry Johnstone, Devon: Willan Publishing, 2005, ps. 438-9 e 442) acrescenta que a
justiça penal não deu resposta à criminalidade de cariz sexual e racial por existirem obstáculos específicos
e não superados ao nível das denúncias, das acusações e das condenações. A Autora afirma que tal
falhanço se relaciona também com o facto de o sistema penal não ter investido em “formas alternativas de
realização da justiça”. E conclui que “a criminalização significa que a maioria dos agressores é deixada
em liberdade para continuar as suas actividades e que a maioria das vítimas é deixada sem protecção”.
Nota-se, porém, em alguns trechos deste estudo de HUDSON o eco de uma contradição que por vezes
sobressai quando se faz um estudo comparado do pensamento feminista na criminologia: enquanto alguns
autores, como M. Kay Harris, mais empenhados em promover uma criminologia de pacificação, rejeitam
de forma genérica e com os argumentos já resumidos a resposta penal ao crime; outros sustentam a
necessidade de o sistema penal dar uma resposta ainda mais punitiva a certas manifestações da
criminalidade, nomeadamente aquela criminalidade de que as mulheres são vítimas. Neste sentido,
HUDSON diz que, depois de se ter verificado que, por exemplo, a criminalidade patrimonial era objecto
de um tratamento mais severo do que a violência sexual ou racial, grupos de feministas e de defensores da
não discriminação racial “têm pedido não só índices mais elevados de detenção e de acusação, mas
também penas de prisão efectivas e mais severas para os agentes de crimes que envolvem violência
doméstica, racial e sexual”, num verdadeiro movimento por aquilo que considera a “tolerância zero”.
128
Sobre esta associação da criminologia feminista a dois movimentos à primeira vista opostos (o que
advoga a tolerância no modelo de resposta ao crime e o que defende o endurecimento da repressão penal),
cfr. Maria Lúcia KARAM, “Violência de Género: o Paradoxal Entusiasmo pelo Rigor Penal”, Boletim do
IBCCRIM, ano 14, n.º 168, Novembro de 2006, ps. 6-7.

82
desigualitária) justiça129. As alegadas vantagens de uma filosofia pacificadora sobre
uma filosofia punitiva não significam, necessariamente, que aquela seja sempre viável.
Nem significam que uma intervenção punitiva não possa ter nunca um qualquer
resultado pacificador. Sempre que se mantenha estritamente necessária a resposta penal,
a exigência de eficácia continua, quanto a ela, a fazer sentido. E sempre que for mais
adequada outra forma de resposta, deve ser-lhe dada preferência.
Por outro lado, também não deve escamotear-se a opinião de que as orientações
político-criminais advogadas pelas correntes criminológicas feministas talvez não
devam ser imunes à passagem do tempo e às mudanças, quer do sistema de justiça
penal, quer da realidade da vida de cada uma das mulheres ou das vítimas. Assim, se era
compreensível uma exigência veemente de regulação pública – nomeadamente através
do incremento do sancionamento penal – da violência contra as mulheres em tempos em
que se procurava confinar essa violência a espaços privados130, agora que esse direito à
resposta penal se vem tornando crescentemente adquirido (ainda que nem sempre nem
em todos os lugares), talvez seja altura de reclamar a possibilidade de escolha de uma
outra resposta para um conflito que assume, com frequência, uma dimensão
essencialmente interpessoal. Se bem se vê o problema, trata-se, ainda aí, de um passo
em frente na conquista no respeito pela autodeterminação esclarecida das mulheres que
são vítimas de crimes131.

129
Dando-se conta desta aparente incoerência no seio do pensamento feminista, Liv FINSTAD (“Sexual
Offenders Out of Prison: Principles for a Realistic Utopia”, International Journal of the Sociology of
Law, 1990, vol. 18, p. 157 ss) reconhece que, na Escandinávia, as mulheres que reclamam condenações a
penas de prisão mais severas para os maus tratos conjugais, a violência familiar ou a violência sexual,
estariam de acordo com soluções muito mais brandas para a criminalidade patrimonial “dos pobres”.
Procurando ultrapassar as dificuldades que tal entendimento causa à corrente que no seio do pensamento
feminista mais se aproxima do abolicionismo, considera que, mesmo para aqueles crimes que julga
particularmente danosos, há que pensar em alternativas à prisão. Torná-las exequíveis relativamente à
criminalidade mais grave daria aos abolicionistas óptimos argumentos para uma sua generalização na
reacção às condutas menos desvaliosas.
130
A este propósito, Nilo BATISTA entende que “diante das opressões a que estavam historicamente
submetidas no âmbito privado (com legitimação pública), opressões frequentemente letais (…), era
compreensível que lideranças feministas e grupos ou partidos integrados no movimento depositassem
alguma esperança no emprego do poder punitivo, naquela conjuntura do sistema penal exercido pelo
Estado Previdenciário, e portanto um aparelho repressivo que operava em baixa intensidade, e, segundo o
vaticínio comum de juristas e criminólogos, em franco processo de redução e perda de competências (in
«”Só Carolina não viu” – Violência Doméstica e Políticas Criminais no Brasil», Comentários à Lei de
Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, 2.ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora 2009, p.
xii).
131
Sobre a questão, com mais detalhe, vejam-se, na Parte III deste estudo, as considerações tecidas a
propósito da violência doméstica e da mediação penal.

83
84
Capítulo II
Uma perspectiva histórico-cultural do pensamento restaurativo

1.   Delimitação do problema

Se parece clara a forma como os cultores da justiça restaurativa acolheram um


conjunto de ideias que constituíam o pano de fundo de um certo estado das coisas
criminológico, é também evidente que o seu esforço de fundação de um novo modelo de
reacção à criminalidade procurou apoios em determinadas experiências culturais132,
passadas ou contemporâneas, de solução do conflito sem intervenção do Estado
Punitivo. De certo modo, a crise de legitimidade do sistema penal133 – desencadeada
sobretudo pelas acusações de ineficácia no combate à criminalidade e, pior do que isso,
pelas acusações de que o sistema penal seria, ele próprio, gerador da denominada
delinquência secundária – abriu espaço para uma busca de alternativas. Essa busca deu-
se, em muitos casos, através de um olhar para o passado, para experiências anteriores ao
advento do Estado punitivo tal como hoje o conhecemos. Em outros casos, ocorreu
através de um olhar para o lado, para experiências contemporâneas de composição
privada ou comunitária dos conflitos presentes em distintos contextos civilizacionais134.
Uma reflexão orientada por tais propósitos – o propósito de olhar para trás e o
propósito de olhar para o lado – pode transportar consigo a vantagem de nos ajudar a

132
Na opinião de John BRAITHWAITE, “Restorative Justice and a Better Future”, A Restorative Justice
Reader, Ed. Gerry Johnstone, Devon: Willan Publishing, 2003, p. 90, “a criminologia científica nunca
descobrirá uma boa forma de aplicação universal da justiça restaurativa”, já que esta resulta de uma
pluralidade de diversas experiências culturais organizadas em torno de valores que o Autor afirma, esses
sim, universais. Considerando que os valores da reparação (dos danos causados às pessoas e à
propriedade, à segurança, à dignidade, à harmonia e à paz da comunidade) são transversais (na medida em
que são vitais à nossa sobrevivência emocional enquanto seres humanos porque indispensáveis à
subsistência sem um constante medo da violência), defende que a justiça restaurativa tem de ser vista
como um movimento social culturalmente diversificado que acomode uma larga pluralidade de estratégias
na prossecução daqueles valores gerais de reparação.
133
Sobre as possibilidades de transição para aquilo que denomina uma “ciência pós-moderna” abertas
precisamente por essa crise, cfr. Boaventura de Sousa SANTOS, “O Estado e o direito na transição pós-
moderna: para um novo senso comum sobre o Poder e o Direito”, Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º
30, Junho de 1990, p. 13 ss. Com pertinência tendo em conta o objecto deste estudo, o Autor considera
que “no domínio da sociologia do direito, os dois fenómenos mais importantes da oscilação anti-
formalista são a desregulação e a informalização da justiça. A primeira questiona directamente o Estado-
Providência, enquanto a segunda questiona a forma jurídica em que ele se apoiou. O movimento da
informalização da justiça, sob designações várias (justiça informal, justiça comunitária) teve um impacto
muito importante na sociologia do direito”.
134
Com acerto, Elena LARRAURI (“Tendencias actuales de la justicia restauradora”, Revista Brasileira
de Ciências Criminais, ano 12 n.º 51, Nov-Dez. de 2004, p. 71) afirma, inspirada nos estudos de Bottoms,
que aquela crise de legitimidade «se acentua nos países onde existem grupos sociais que viram como as
suas formas de justiça tradicionais eram desconhecidas pelo sistema penal actual, que foi catalogado
como “colonial”, pelo que os países onde a justiça restaurativa tem mais impacto são aqueles onde
existem minorias culturais significativas, como a Austrália, a Nova Zelândia ou o Canadá».

85
repensar o próprio sistema de justiça penal, questionando a sua forma actual como uma
inevitabilidade e levando-nos a perspectivá-lo, antes, como um produto histórico-
espacialmente situado e, nessa medida, como um construído135. A compreensão da
forma como as sociedades ocidentais hoje maioritariamente tratam a criminalidade
enquanto invenção histórica permite que tal invenção seja interrogada. Ou, vista a
questão sob um outro prisma, a conclusão de que as práticas restaurativas terão sido
(segundo alguns) dominantes algures no passado e são ainda hoje preponderantes em
alguns pontos do globo (sobretudo nas denominadas “sociedades primitivas” da África,
da Ásia e da América136) afasta a estranheza inicial com que, à luz da nossa consciência
colectiva, tenderão a ser encaradas.
Quando se pretende olhar para o passado e não se é um historiador, não deve
deixar de se reconhecer que a análise a que se procederá não é uma análise histórica,

135
A afirmação de que o actual sistema penal é um construído (rectius: a afirmação de que os vários
modelos de resposta ao crime que hoje existem em tão distintos pontos do globo são produto de um
espaço e de um tempo) é uma evidência que não transporta necessariamente consigo a afirmação da
possibilidade de abandono de uma resposta punitiva ao crime. Como nota José de FARIA COSTA, “a
dimensão humana só tem o limite da historicidade. O crime e a pena são essentialia do nosso viver
comunitário, mas não são absolutos a-históricos. São, como aliás todo o humano, realidades que vivem
em mutação constante dentro da própria história e que são por ela moldadas ou conformadas» [in Noções
Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta iuris poenalis), 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora: 2009, p.
15]. Enquanto continuarem a existir comunidades formadas por homens que não são inteiramente anjos
nem inteiramente demónios subsistirá a necessidade de sancionar os grandes males individualmente
imputáveis, sejam quais forem as características de que essa forma de sancionamento se revista. Recorde-
se uma pequena parte das linhas de José de FARIA COSTA sobre a forma como o direito penal hoje
desempenha esse seu papel punitivo: «Está em cena sozinho. Todos lhe exigem que continue a
desempenhar o seu “papel”. Mas (…) ninguém vai ver a peça, ninguém vai ao teatro. Só os actores
continuam a representar (…). De sorte que, o direito penal, sem heroicidades nem lamentos, continua a
representar. E a fazê-lo com a consciência crítica da sua infinita fragilidade porque detentor de um dos
últimos e mais terríveis poderes: o poder de punir». Conclui-se – e é o que, neste ponto, particularmente
interessa – que a representação do direito penal é “uma representação (…) sem a qual a humanidade
deixaria de ser” [in “Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapável do homo dolens,
enquanto corpo-próprio, com o direito penal)”, Mal, Símbolo e Justiça (Actas das Jornadas
Internacionais realizadas em Coimbra nos dias 8 e 9 de Dezembro de 2000), Faculdade de Letras,
Coimbra, 2001, ps 46-7].
136
Apesar de terem perdido a predominância, as práticas restaurativas têm ainda particular expressão em
civilizações tão antigas e complexas como a chinesa, a japonesa ou a indiana. Uma reflexão interessante
sobre a justiça restaurativa na China antiga é a levada a cabo por Jianhong LIU, in “Principles of
restorative justice and Confucian philosophy in China”, Newsletter of the European Forum for
Restorative Justice, Março de 2007, vol. 8, p. 2 ss. Segundo a Autora, o pensamento de Confúcio sobre o
controlo social do crime assenta na distinção entre os conceitos de li e de fa. O primeiro (li) enfatiza a
existência de um código moral de conduta associado a uma ideia de fortalecimento das relações sociais e
da ordem social através de uma educação moral para a criação de uma sociedade justa e harmoniosa. O
segundo (fa) é associado à lei. Enquanto os formalistas ou legalistas advogavam o uso da fa como meio
de controlo social dominante, Confúcio defendia que “comandadas pela fa ou lei, as pessoas saberão
apenas como evitar a punição, mas não terão nenhum sentido da vergonha. Guiadas pelas virtudes e pela
li, o código moral, não só terão o sentido da vergonha como aprenderão a corrigir os seus maus actos por
força da sua própria vontade”. O conceito de li não pode ser adequadamente compreendido, porém, sem
fazer apelo à noção central de ren, que Confúcio definia como a capacidade de amar os outros, e que é o
“espírito interior” da ideia de li. Quando se esquece a ideia de ren, a ideia de li torna-se uma pura
formalidade.

86
mas porventura apenas uma reflexão possível sobre um passado que não deixa de ser
uma construção em si mesma. Consciente dessa dificuldade, José GOMES
CANOTILHO escreveu palavras que aqui se tomarão como advertência, afirmando não
ser um historiador e não querendo improvisar-se historiador, por ter «perfeita
consciência do aviso lançado há anos por P. Veyne: “o perigo da história é que ela
parece fácil e não o é”». Por outro lado, também se segue GOMES CANOTILHO na
afirmação da relevância da “boa questão”, acompanhando o Autor o entendimento de F.
Furet de que “a boa questão, o problema bem colocado, são mais importantes – e são
mais raros – do que a habilidade ou paciência em trazer à luz do dia um facto
desconhecido, mas marginal”137. Deste modo, não se pretendendo catalogar como “boa”
a questão que é posta, sempre se julga necessário esclarecer o sentido dessa questão,
sobretudo com o intuito de precisar que ela não se prende com um qualquer “recontar”
da história das respostas ao crime. A questão é outra e prende-se, antes, com a
verificação de uma certa divergência entre a forma como essa história é contada pelos
cultores das ciências criminais e pelos defensores da proposta restaurativa para, a partir
dessa não coincidência, procurar encontrar para ela uma justificação ou um sentido de
compreensão.
Apesar de a justiça restaurativa, enquanto movimento social orientado para a
proposta de um modelo de reacção ao crime distinto da justiça penal, ter origens muito
recentes, é recorrente que os estudos sobre tal movimento sublinhem a sua maior
antiguidade. Assim, BRAITHWAITE considera que “a justiça restaurativa foi o modelo
dominante na justiça criminal durante a maior parte da história da humanidade para
todos os povos do mundo”138. Algumas vozes, porém, opõem-se a tal visão da história,
questionando a forma como a progressiva expansão da justiça restaurativa em direcção
ao futuro é acompanhada por uma inelutável tendência dos seus defensores para a
alicerçarem no passado. E questiona-se, sobretudo, o facto de o descontentamento face à
apresentação do paradigma restaurativo como um “recém-chegado” conduzir ao

137
José Joaquim GOMES CANOTILHO, «O círculo e a linha – Da “liberdade dos antigos” à liberdade
dos modernos na teoria republicana dos direitos fundamentais», Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade
Humana, coord. Jorge Miranda/Marco António Marques da Silva, São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.
178.
138
John BRAITHWAITE, “Restorative Justice”, The Handbook of Crime and Punishment, Ed. Michael
Tonry, Nova Iorque/Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 323.

87
intencional delinear de uma história muito mais longa do que a das escassas décadas que
o movimento restaurativo efectivamente teria139.
Seja como for, em grande parte dos estudos em que são ponderadas as origens
não estritamente criminológicas da justiça restaurativa olhando para o passado ou para o
lado, tende a adoptar-se um “modo de olhar secular” ou antes um “modo de olhar
religioso”. A razão pela qual se julga metodologicamente pertinente esta advertência
prende-se com o facto de, sendo conhecidas várias análises das spiritual ou religious
roots of restorative justice140, dever reconhecer-se que o modo de olhar que de seguida
se adoptará será essencialmente secular141.
Por outro lado, nos relanceares de olhos que a seguir se esboçarão, quer sobre o
passado, quer essencialmente sobre a forma como se olha para esse passado, ter-se-ão
sempre no horizonte as palavras de Emmanuel LEVINAS: “o histórico não se define
pelo passado – e o histórico e o passado definem-se como temas de que se pode falar.
São tematizados, precisamente porque já não falam. O histórico está para sempre
ausente da sua própria presença. Queremos dizer com isso que ele desaparece por
detrás das suas manifestações – o seu aparecimento é sempre superficial e equívoco, a

139
Neste sentido, Douglas SYLVESTER (“Myth in restorative justice history”, Utah Law Review, 2003,
n.º 1, ps. 493-4), que sublinha ainda o facto de as origens da justiça restaurativa enquanto sistema
institucional coincidirem com o programa levado a cabo pelo Minnesota Restitution Center, em 1972, ou
com a utilização em Ontário a partir de 1974 de programas de reconciliação vítima-agressor [“victim-
offender (VOR) programs]. Acrescenta, todavia, que a justiça restaurativa só em meados dos anos 90
adquiriu grande visibilidade e sustentabilidade. Também Anthony BOTTOMS critica a afirmação de
Braithwaite, considerando que “se a justiça restaurativa (ou algo parecido com ela) foi uma importante
forma de justiça em muitas sociedades pré-modernas, não foi certamente dominante no sistema de justiça
criminal dos Estados ocidentais modernos desde o Renascimento em diante” (“Some Sociological
Reflections on Restorative Justice”, in Restorative Justice & Criminal Justice – Competing or
Reconciliable Paradigms?, Ed. A. Von Hirsch/J. Roberts/A. Bottoms/K. Roach/M. Schiff, Oxford: Hart
Publishing, 2003, p. 79).
140
Provavelmente a partir da ideia – correcta – de que os conceitos de “spiritual roots” e de “religious
roots” não são sobreponíveis [sobretudo se valorarmos em um conceito mais estrito de “religião” a sua
origem em “religio” ou religação do homem a Deus], na obra The Spiritual Roots of Restorative Justice
(ed. Michael HADLEY, State University of New York: 2001) incluem-se estudos de vários autores
dedicados às raízes restaurativas encontradas nas “ três religiões do livro” (o judaísmo, o cristianismo e o
islamismo), mas também, por exemplo, na cultura chinesa ou no budismo.
141
A partir dessa divisão entre análises religiosas e análises seculares das origens da justiça restaurativa,
Elena HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos GREGORIO (ob. cit., p. 78 ss) referem que “os partidários
desta tese [a espiritual ou a religiosa] afirmam que os elementos do procedimento de mediação estão
presentes há muito tempo, tanto na teologia judia e cristã, como na filosofia de Confúcio (…). A título de
exemplo, assinalam que para Confúcio a resolução óptima de uma disputa obtinha-se mais através da
persuasão moral e do acordo do que pela coacção do soberano; que os anciãos do Velho Testamento são
modelos de solucionadores de conflitos; e que os apóstolos do Novo Testamento expressam a necessidade
de resolver os conflitos dentro da congregação em vez de os levar a tribunais seculares”. Tão relevante
como o reconhecimento da existência destas análises das raízes também espirituais ou religiosas das
práticas restaurativas parece ser o reconhecimento de que, em outros países, se podem distinguir os
programas restaurativos postos em funcionamento por instituições seculares daqueles que surgem
associados a instituições de índole religiosa (assim, por exemplo, nos Estados Unidos, onde existem
programas restaurativos promovidos por congregações religiosas).

88
sua origem, o seu princípio estão sempre noutro lugar. É fenómeno – realidade sem
realidade”142. Aquilo sobre que de seguida se pensará não é, pois, essencialmente sobre
o que foi, o que está ausente e já não fala. Julga-se, porém, que o modo como hoje se
tematiza sobre o que foi será, pelo menos em certa medida, revelador daquilo que agora
é143.

2.   Um olhar para o passado

  2.1. O passado tal como o vêem alguns cultores da proposta restaurativa

Não constituindo – como já se referiu – propósito desta reflexão um qualquer


recontar da história dos modelos de reacção ao crime, o que se pretende é antes
questionar144 os diversos modos como penalistas e cultores da proposta restaurativa
tendem a contar e a avaliar essa história145.

142
Emmanuel LEVINAS, Totalidade e Infinito, Biblioteca de Filosofia Contemporânea, Edições 70, 1988
(edição no original de 1980), trad. José Pinto Ribeiro, p. 52.
143
Uma das ideias de que se partirá é a de que a forma como se conta a hitória pode revelar algo sobre
quem a conta e as razões pelas quais a conta assim. Sublinhar-se-á, assim, a não coincidência entre a
escolha dos factos e a avaliação que deles se faz quando se pondera o passado dos modelos de reacção ao
crime com “olhos de penalista” ou com ”olhos de restaurativo”. Julga-se, por outro lado, que essa
pluralidade de olhares é, em si mesma, vantajosa, por fomentar a crítica. Sobre a vantagem da abertura da
história do Direito Penal e das suas instituições a outros modos de a contar, cfr., a título de exemplo, José
Merêa Pizarro BELEZA [“A pena de prisão, a reforma das cadeias e o Ensayo sobre o Plano mais
Conveniente para a Fundação das Cadêas (notas para a história do direito penal vintista)”, Liber
Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra Editora: 2003, p. 365]: “durante muito
tempo contada, quase exclusivamente, por juristas, a história do Direito Penal e das suas instituições vem
sendo ultimamente objecto de estudo de historiadores, e há que reconhecer que só beneficiou com isso,
não só pela extensa e variada documentação pela primeira vez revelada e utilizada, como pela abertura a
novos registos de compreensão, nomeadamente pelas relações que esses autores estabeleceram com a
história do pensamento político e das estruturas de organização do poder”.
144
A este intuito de questionar o que vai implícito em distintos modos de olhar para o passado subjaz um
certo pensamento que vê na história uma possibilidade de crítica do direito, mas sempre a partir de uma
compreensão crítica da própria história, porque tanto o direito como a história que dele se faz são afinal
construídos e mutáveis. O “contador da história” é, pelo menos até certo ponto, um “refém do seu próprio
tempo”. Nas palavras de José de FARIA COSTA, “o tempo é o limite absoluto da humana condição de
ser-com-os-outros, assumindo-se, assim, como barreira, limitação, constrição, escravatura mas, porque
nele e por ele – e não em qualquer outro tempo – o “eu” que é “nós” é abertura e possibilidades infinitas,
então, esse mesmo tempo, que é já temporalidade (…), é também e simultaneamente a condição primeira
da nossa liberdade” [“O direito penal e o tempo (algumas reflexões dentro do nosso tempo e em redor da
prescrição)”, Boletim da Faculdade de Direito, Volume Comemorativo do 75º Tomo do BFD, Coimbra,
2003, ps. 1142-3]. Sobre o assunto cfr., ainda, António HESPANHA (Panorama Histórico da Cultura
Jurídica Europeia, Mem Martins: Publicações Europa América, 1997, p. 18 ss), que vinca precisamente a
necessidade de uma história crítica do direito assumir o carácter construído da sua própria narrativa, o
papel legitimador que por vezes se quer atribuir ao discurso histórico e o carácter também construído do
direito (que é, nessa medida, não intemporal, não racional e não universal).
145
Parta-se, para ilustrar o que se pretende tratar, de um exemplo, o da publicização da justiça penal. Ora,
se no juízo que na ciência penal hoje se cultiva o advento dessa publicização é saudado enquanto pedra
essencial de um modelo mais evoluído de reacção ao crime, a mesma ocorrência é merecedora de

89
Para este fim, parece útil começar pela verificação de que estes – muitos dos
defensores do modelo restaurativo – partem do princípio de que as práticas restaurativas
foram as dominantes em certos períodos históricos e que esses períodos merecem um
juízo mais favorável do que os restantes. Ora, se para se narrar a história do direito
penal se conhece a “tradicional divisão entre Época Clássica, Idade Média, Idade
Moderna e Idade Contemporânea”146, a cisão que para os propósitos assumidos é
metodologicamente útil parte antes da separação dos tempos com base em um
específico critério: o da existência ou não de uma centralização do poder punitivo,
ficando esse poder de punir nas mãos de entidade externa aos intervenientes no conflito
criminal ou, pelo contrário, cabendo a modelação dessa reacção ao crime aos
intervenientes no conflito e aos seus próximos. É certo que, para proceder à
desconstrução do complexo e do múltiplo que aqui vai implicada, considerar-se-ão
apenas as grandes tendências, o que faz com que quase todas as afirmações devam vir
acompanhadas de um “sobretudo, mas não só”. Por outro lado, correndo o risco de se
exagerar a simplificação, sempre se poderá considerar que, tendencialmente, os
restaurativos farão centrar na história dos denominados “povos primitivos” e na Idade
Média (e essencialmente na Alta Idade Média) esses tempos de modelação da reacção
ao crime pelo agente, a vítima e os seus próximos147, tempos esses merecedores de
avaliação positiva por se associarem a uma predominância das práticas restaurativas148.

avaliação diametralmente oposta entre vários autores que sustentam a proposta restaurativa. Assim,
nomeadamente, Elena HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos GREGORIO (ob. cit., p. 43) afirmam que
«em geral, nos tempos medievais, as práticas foram restitutivas e as ofensas solucionavam-se
informalmente com o auxílio de um terceiro desinteressado que “mediava” entre a vítima e o agressor,
determinava qual a reparação devida e controlava que se fizessem os pagamentos à vítima. Quando o
senhor feudal tomava conhecimento disto, exigia uma participação. Em seu nome, um “fiscal” intervinha
no processo para recolher a percentagem do seu amo, nascendo daqui a concepção de “crime conta o
Estado”». Essa publicização originou, ainda na opinião dos autores, “uma lamentável revitimização da
vítima”.
146
José de FARIA COSTA, Noções Fundamentais de Direito Penal, 2.ª ed. cit., p. 150.
147
A relevância da reparação durante a Idade Média é sublinhada, na história da justiça penal,
nomeadamente por Américo Taipa de CARVALHO, que aponta o facto de, entre os séculos VIII e XII,
preponderar um conceito de “solidariedade familiar”. A este propósito, refere que «a ofensa cometida
sobre um membro da comunidade doméstica era considerada como agravo a toda a família. Assim, a
“obrigação” de reparar as ofensas sofridas recaía não apenas sobre o ofendido mas também sobre toda a
colectividade familiar – solidariedade penal activa. Por outro lado, os efeitos do direito de vingança, que
era reconhecido pela ordem jurídica à família da vítima (direito penal de autotutela ou de justiça privada),
estendiam-se, por vezes, aos próprios familiares do criminoso – solidariedade penal passiva»
(“Condicionalidade sócio-cultural do direito penal”, Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M.
Paulo Merêa e G. Braga da Cruz, II, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LVIII, Coimbra, 1982, ps.
1051-2).
148
Deve, porém, reconhecer-se que esse período histórico a que os defensores da proposta restaurativa
fazem corresponder um juízo de mérito e que coincide, tendencialmente, com o conceito de “Idade de
Ouro da vítima” (terminologia que, em momento posterior deste estudo, se represtinará e questionará) não
é, em rigor, um período histórico, por força da sua descontinuidade e fluidez. Associa-se-lhe,

90
Como nota Elmar WEITEKAMP149, a partir de uma cisão entre as denominadas
sociedades acéfalas (sem Estado) e as sociedades organizadas em Estado, aquelas – que
foram cronologicamente as primeiras – supõem a resolução dos litígios sem recurso a
um sistema legal formal. A simplicidade destas pequenas comunidades não excluía a
ocorrência de problemas, a que, na opinião do Autor, procuravam reagir reforçando o
conceito de grupo, fazendo prevalecer o interesse colectivo na sobrevivência em
detrimento da satisfação dos interesses individuais – o que, de algum modo, prejudica a
imagem de uma “vítima solitária” quer na sua vitimização quer na reacção a ela e
também perturba a contraposição entre uma “idade de ouro” da vítima em que a reacção
ao crime seria orientada pela tutela exclusiva dos seus interesses e uma “idade das
trevas” para a vítima em que a reacção ao crime seria gizada em função do interesse da
comunidade150. A aceitação frequente da responsabilidade colectiva e a existência de
laços sociais e económicos entre os dois grupos – o do agressor e o da vítima –
impunham uma solução expedita do conflito que permitisse o regresso à normalidade
quotidiana. Ora, não obstante a actuação contra o agente poder assumir a natureza de
vingança ou a natureza de reparação, WEITEKAMP afirma que a restituição ou a
reparação eram as formas mais comuns de sanar os incidentes, por serem as que mais
eficazmente permitiam o reatar das relações entre os dois clãs151. E acrescenta que

habitualmente, a experiência dos povos primitivos, afirma-se o seu decaimento com as civilizações
clássicas e menciona-se depois o seu renascimento com a queda do Império Romano e a sua nova
derrocada com o fortalecimento primeiro dos senhores feudais e depois do Rei. Todavia, se é frequente
atribuir-se a Schafer a descoberta vitimológica desse conceito de “Idade de Ouro da vítima” (neste
sentido, por exemplo, Myriam HERRERA MORENO, La hora de la víctima. Compendio de
victimología, Madrid: Edersa, 1996, p. 28), também é certo que o Autor faz caber na sua “golden age of
the victim” apenas a primeira Idade Média e o seu instituto da “composition”, apresentado como
demonstrativo da predominância dos interesses da vítima na reacção ao crime (cfr. Stephen SCHAFER,
The victim and his criminal cit., p. 7).
149
Elmar WEITEKAMP, “The history of restorative justice”, A restorative justice reader, Ed. Gerry
Johnstone, Devon: Willan Publishing, 2003, p. 111.
150
A ideia de que não se pode absolutizar, no período medieval, a vingança no exclusivo interesse da
vítima é aprofundada por José de FARIA COSTA a partir de uma reflexão sobre o conceito central de
“paz”, admitindo-se que as várias formas de paz conhecidas ao tempo correspondiam a um “movimento
típico de sobrevivência”, através da criação, pelas comunidades, dos “mecanismos institucionais próprios
à sua preservação” (A Caução de Bem Viver. Um subsídio para o estudo da evolução da prevenção
criminal, Separata do volume XXI do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, 1980, p. 19 ss).
151
Esta restituição ou reparação, ainda segundo Elmar WEITEKAMP (ob. cit., p. 112 ss), que nesta
matéria segue os ensinamentos de NADER e COMBS-SCHILLING, seria claramente orientada por
propósitos de justiça restaurativa, na medida em que tinha por objectivos: (1) prevenir a ocorrência
futura de conflitos mais graves entre aquelas pessoas; (2) reabilitar o agente, levando-o a ser acolhido no
seio do grupo e evitando um estigma maior; (3) satisfazer as necessidades da vítima; (4) restaurar os
valores da comunidade demonstrando que a preocupação expressa com o agente e com a vítima significa
um desejo de justiça para todos os membros do grupo; (5) socializar os membros da comunidade
reforçando a importância das suas normas e valores; (6) fornecer tanto uma regulação como um modelo
de desencorajamento aos membros da comunidade. O Autor reconhece, porém, que a ausência do Estado

91
existia uma certa pressão no sentido de se encontrar uma solução entre as duas famílias
ou grupos, de modo a evitar-se uma contenda de consequências sangrentas: depois do
cometimento do crime, era usual a imposição de um período de tréguas, para
arrefecimento dos ânimos, durante o qual se tomavam algumas medidas de protecção do
agente – em certas comunidades o agressor teria mesmo direito a permanecer em
santuário enquanto se desenrolavam as negociações tendentes à composição. Para
intermediar os contactos entre os dois grupos procurava-se alguém com ligações quer ao
agressor quer à vítima – e podia tratar-se de um líder religioso ou, com frequência, de
um membro da família do agente que tivesse contraído casamento com um elemento da
família da vítima. Só no caso de incumprimento do acordo em que se traduzia essa
compositio (normalmente associado a uma reparação), a vítima do crime e os seus
próximos poderiam exercer o direito à vingança.
O interesse desta análise parece estar sobretudo no questionamento a que sujeita
a ideia comum de que a forma primeira de lidar com a criminalidade radicava na
punição do agente exclusivamente orientada para a retribuição do mal antes causado
através de uma violência contra a pessoa152. A hipótese que com esta reflexão se

colocava menos problemas ao tratamento da criminalidade nas sociedades primitivas: as comunidades


eram muito mais igualitárias; a proximidade nas oportunidades e nas dificuldades conjugada com a
inexistência de excedentes retiravam relevo à criminalidade patrimonial; o contributo de cada um era
essencial para o próprio grupo, o que evitava a estigmatização; o facto de as comunidades serem pequenas
favorecia a criação de laços entre os seus vários elementos, por isso mais interessados na rápida
pacificação dos conflitos; a importância atribuída à sobrevivência da colectividade fazia com que a
criminalidade fosse encarada como um problema de todos, que supunha um envolvimento comunitário
para a sua superação. Em sentido não coincidente, António Manuel de ALMEIDA COSTA (O Registo
Criminal, Coimbra: 1985, p. 13) sublinha a concepção ético-retributiva associada à realização da justiça
penal nesta época, apesar de não excluir um pendor utilitário “de apaziguamento da ira divina e de
obstáculo a futuras retaliações de índole sobrenatural para com o criminoso ou a colectividade”.
152
Não se pretende – quer por se duvidar da relevância científica da questão, quer por se duvidar da
possibilidade de lhe dar uma resposta sólida – encontrar aqui solução para o enigma de qual terá sido,
historicamente, a primeira de todas as formas de lidar com os conflitos interpessoais mais graves. Entre os
cultores da justiça restaurativa, é frequente a ideia de que terão sido os mecanismos restaurativos os
pioneiros – tendo em conta, sobretudo, a necessidade de sobrevivência do próprio grupo e a importância
de cada um dos seus membros para a subsistência colectiva, o que os compeliria a encontrar uma solução
pacificadora. Pelo contrário, é frequente na ciência penal a ideia de que a retribuição terá sido a primeira
forma de lidar com o crime. Assim, v.g., Eduardo CORREIA, Direito Criminal, Tomo I (com a
colaboração de Jorge de FIGUEIREDO DIAS), Almedina: 1971, p. 76, afirma que «muitos autores
colocam a vingança privada, a vingança de sangue (“Blutrache”) no início da evolução das instituições
criminais. Nos tempos primitivos seriam os próprios particulares que vingariam as ofensas que lhes eram
feitas”. Ainda segundo este Autor, só posteriormente, tendo em conta as consequências dramáticas que
frequentemente daqui advinham, sucedeu ao período da vingança “o da composição pecuniária,
livremente negociada: o agressor pagava uma certa quantia ao ofendido ou à família deste, enquanto, por
outro lado, poderia ser expulso da família a que pertencia ou ser-lhe retirada a protecção do chefe”. De
qualquer modo, ainda que se aceite esta primazia cronológica da vingança privada, também parece claro
que a sua existência isolada não pode ser extraordinariamente duradoura. Na verdade, como nota Jean-
Marie CARBASSE, Introduction Historique au Droit Penal, Paris: PUF, 1990, p. 9, “esta concepção de
uma sociedade primitiva totalmente anómica parece muito teórica (…); com efeito, se o grupo social

92
pretende suscitar é a de que talvez a reparação dos danos sofridos pela vítima e o
restabelecimento da paz comunitária tenham constituído já, mesmo nos tempos mais
remotos, o objectivo primordial da intervenção posterior à prática de uma infracção.
Com relevo, surge nesta versão da história da reacção ao crime um eixo de
valoração orientado para a satisfação da vítima – de forma muito simplificada, poder-
se-ia julgar que um bom modelo de reacção ao crime é um modelo que é bom para a
vítima concreta e passada. Ora, se, sob esta perspectiva, é inequívoco que um modelo se
torna melhor quando conduz à reparação dessa vítima, também fica por vezes
subentendido que o próprio exercício da vingança através da retribuição do mal causado
reposiciona a vítima na posição de sujeito. Ou seja: se um modelo de reacção ao crime a
que aquela vítima é alheia faz dela primeiro objecto do crime e depois objecto da
reacção ao crime, já uma resposta ao crime na dependência da sua vontade a reafirma
enquanto sujeito153.
Apesar da afirmação de que as primitivas sociedades acéfalas encontraram
formas de lidar com o crime154 baseadas na composição, reparação e restituição, o mais
comum na literatura criminológica é centrar na Idade Média o auge das práticas
restaurativas de resposta à delinquência155.

pretende subsistir, deve muito rapidamente canalizar o exercício da vingança privada organizando
sistemas reguladores (…); tais mecanismos são inerentes a toda a organização social, mesmo que
rudimentar, porque constituem a condição da sua sobrevivência”.
153
Cfr. Françoise ALT-MAES, para quem “a vítima (…) não foi sempre a pessoa que padecia, mas a
pessoa que se vingava” (in “Le concept de victime em droit civil et en droit penal”, Revue de Science
Criminelle et de Droit Pénal Comparé, 1994, n.º 1, p. 35 ss).
154
Como é evidente, utiliza-se nesta sede o conceito de “crime” com uma acepção diversa da que
hodiernamente se lhe atribui: é sabido que até à Idade Média este era um conceito impreciso e não
delimitado pelo princípio da legalidade, onde se misturavam práticas que, sob o denominador comum de
serem consideradas reprováveis, encontravam os mais diversos fundamentos para a sua indesejabilidade.
É usual associar-se a origem do princípio da legalidade à Magna Carta inglesa, de 1215. Veja-se, neste
sentido, por todos, Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra
Editora: 2007, ps. 177-8. O Autor afirma que «o princípio da legalidade da intervenção penal encontra já
de algum modo expressão na Magna Charta Libertatum de João sem Terra (1215) e mais tarde, de forma
particular, no Bill of Rights (1689). Mas a sua consagração em termos modernos ocorre pela primeira vez
– fruto, também ela, dos princípios do Iluminismo Penal e em especial da doutrina do “contrato social” –
na Constituição de alguns dos Estados Unidos da América (Virgínia, Maryland) no ano de 1776 e
encontra a sua expressão definitiva na Déclaration des droits de l’homme et du citoyen francesa de 1787,
daí tendo derivado para, pode dizer-se, a totalidade dos instrumentos internacionais de protecção dos
direitos humanos (…) e das Constituições dos Estados democráticos».
155
Assim, Elmar WEITEKAMP, “The history of restorative justice”, ob. cit., p. 114 ss, que faz uma
análise comparativa de vários estudos sobre as origens da justiça restaurativa. O Autor sublinha, porém, a
necessidade de olhar mais para trás, muito antes do período medieval, para as mencionadas sociedades
acéfalas. E refere, por outro lado, que já em comunidades organizadas, posteriores àquelas sociedades
acéfalas mas anteriores ao período medieval na Europa, se encontravam formas de restituição como
importante mecanismo de reacção à criminalidade. Assim, por exemplo, na Antiga Mesopotâmia, com o
Código de Hamurabi, onde se contemplava a possibilidade de compensação individual, ainda que em
princípio restrita às infracções patrimoniais. O Autor considera curioso o facto de, nos anos 70 e 80, os
estudos sobre justiça restaurativa limitarem a sua aplicação à criminalidade contra o património,

93
Muito antes, porém, em comunidades não já acéfalas, antes organizadas e
regidas por formas de poder político com alguma complexidade, encontram-se
institutos, como o da reparação ou o da restituição, com algumas proximidades dos
hodiernamente preconizados pelos cultores da justiça restaurativa.
As mais antigas compilações de leis conhecidas têm origem no Oriente Médio.
Ainda que se não possa afirmar que tenha sido o primeiro código da humanidade, pode
dizer-se que aquela que actualmente é apresentada como a primeira compilação de leis
conhecida é o denominado Código de Ur-Nammu, datado de cerca de 2050 antes de
Cristo. O rei que dá o nome a esta compilação e que inicia a III e última dinastia
suméria, a dinastia de Ur, criou um império de cariz mais comercial do que militar.
Aponta-se, de resto, esse interesse do monarca pelo comércio em detrimento da guerra
como possivelmente inspirador das soluções progressistas que podem encontrar-se nas
suas leis: as compensações monetárias atribuídas à vítima surgem como sanções
previstas mesmo para os delitos contra as pessoas, ao invés da punição através da morte
ou das mutilações que se julgava serem então dominantes.
O Código de Hamurabi merece, neste contexto, uma referência particular, desde
logo porque a sua extensão e o bom estado de conservação com que chegou aos nossos
dias fazem dele a mais relevante compilação de leis da antiga Mesopotâmia. Trata-se de
um conjunto de leis – cuja data de produção exacta é incerta mas que alguns julgam
poder situar entre 1770 e 1790 antes de Cristo – que visavam homogeneizar a realização
da justiça nas várias cidades do império babilónico. Este código, mais do que uma
compilação de normas gerais e abstractas à semelhança do que sucede nos sistemas
jurídicos continentais, revela maior proximidade com aquela a que nos nossos dias se
chama tradição da common law, por se tratar de uma compilação das decisões de justiça
do rei.
Todavia, o que aqui se pretende destacar é que, apesar de ser frequente a
apresentação do Código de Hamurabi como exemplo de um sistema sancionatório
estruturado com base no princípio do talião156 – prescrevendo-se que se faça ao Autor

excluindo do seu âmbito as infracções contra as pessoas. Estranha, de facto, que assim seja na medida em
que “o Código de Hamurabi é a única fonte na literatura histórica sobre restituição onde o conceito de
restituição se restringe aos crimes contra a propriedade. Em todas as outras fontes, este conceito é
aplicado quer aos crimes contra o património, quer aos crimes contra as pessoas”. Conclui-se que “a
limitação da reparação e da justiça restaurativa aos delitos patrimoniais, que dominou o movimento da
justiça restaurativa durante a maior parte dos anos 70 e 80, não tem qualquer explicação lógica”.
156
Têm sido sublinhadas as vantagens do princípio do talião no contexto temporal em que surgiu,
sobretudo na medida em que radica em uma certa ideia de proporcionalidade e reconhece a natureza
pessoalíssima da pena.

94
do crime o mesmo que ele fez à vítima –, sublinha-se entre os cultores da justiça
restaurativa que muitas das sanções aí previstas assentam numa ideia de reparação,
sendo que destas a maioria tem natureza pecuniária. E é assim, desde logo, porque o
critério de aplicação das penas varia em função da posição social da vítima (distinguem-
se três “classes sociais”: a dos homens livres, a dos escravos e uma classe intermédia
denominada muskenu que pode ser definida como a dos servos), sendo que o princípio
do talião só se aplica se o agressor não for de uma classe social superior à da vítima; por
exemplo, se o agente for um homem livre e a vítima um escravo, a sanção será, regra
geral, pecuniária.
Entre os romanos, o facto de o sistema sancionatório ter uma natureza híbrida,
radicando numa distinção entre os crimes públicos e os delitos privados157, permite que
estas últimas infracções (definidas em função dos interesses – privados – que são
ofendidos e em função da inexistência de um dever para as autoridades públicas de
desencadearem de forma autónoma a sua persecução penal) dêem origem, regra geral,
apenas ao pagamento de uma quantia pecuniária158. Com efeito, nos casos em que à
prática de um delito privado se segue uma acção de natureza penal, é frequente a
condenação a uma poena, que deve exceder o valor do dano causado assumindo, assim,
uma natureza claramente sancionatória159. Por outro lado, é ainda à própria Lei das
Doze Tábuas160 que os cultores da história da justiça restaurativa vão buscar exemplos
das finalidades reparadoras em sistemas de justiça passados, apontando o facto de na

157
Sobre esta questão, José de FARIA COSTA, Noções Fundamentais de Direito Penal, 2.ª ed. cit., p.
156, afirma que “em este período histórico, as ofensas tidas como públicas eram aquelas que se referiam
aos comportamentos contra a ordem pública ou social (como a alta traição), sendo as privadas as que se
relacionavam com comportamentos interpessoais”. Com importância para o objecto da nossa reflexão,
acrescenta que “o poder punitivo não interferia – através da manifestação de um poder punitivo ou
repressivo – na esfera das relações pessoais entre os membros da comunidade. Não há ainda um
movimento de publicização do direito penal, razão, aliás, que justifica que o direito penal e o direito civil
não fossem encarados como ordenamentos normativos diferentes”.
158
Como nota Jean Marie CARBASSE, «a palavra “penal”, deriva, aliás, do latim poena que, no seu
primeiro sentido, designa justamente a composição pecuniária – assim como a palavra grega “poiné”» (in
Histoire du Droit Penal et de la Justice Criminelle, Paris: PUF, 2000, p. 12).
159
Esta natureza sancionatória é, de resto, reforçada pela obrigatoriedade (que CARBASSE, ob. cit., p.
12, afirma caracterizar pelo menos a primitiva Roma) para a vítima de aceitação daquela composição
pecuniária, sobretudo no âmbito dos delitos menos graves. Compreende-se bem tal obrigatoriedade no
contexto de uma tentativa de restrição da vingança.
160
A Lei das Doze Tábuas (Lex Duodecim Tabularum ou, apenas, Duodecim Tabulae) surge em Roma
por volta do ano 450 antes de Cristo, correspondendo a uma aspiração antiga dos plebeus de
conhecimento prévio das normas que regulariam as suas vidas, de forma a poderem combater o arbítrio a
que vinham sendo sujeitos (o facto de as leis passarem a ser escritas e públicas minimizaria a
manipulação que a sua transmissão até então por via exclusivamente oral permitia aos patrícios). Supõe-
se que a Lei das Doze Tábuas tenha recebido a influência do sistema legal grego e, especialmente, das
Leis de Sólon. E sabe-se que veio a ser, durante séculos, um documento inspirador para vários sistemas
jurídicos ocidentais.

95
Tábua VIII, que versaria a matéria dos delitos, se prever como sanção para o delito de
furto o pagamento do dobro do valor da coisa subtraída161. Em rigor, em tais soluções
parece não dever vislumbrar-se apenas uma finalidade de reparação, na medida em que
existe uma sanção que ultrapassa o valor do dano causado ao ofendido.Todavia,
compreende-se aquilo que os defensores da proposta restaurativa pretendem destacar:
em vez de uma pena que é alheia aos interesses concretos da vítima na reparação (como
sucederá, na sua linha de pensamento, relativamente às penas de prisão ou de multa),
admite-se aqui uma solução orientada em primeira linha para a satisfação desses
interesses.
Sobre esta Lei das XII Tábuas, com interesse para a compreensão de um ponto
que virá a revelar-se essencial ao objecto deste estudo e que se prende com a
delimitação, no crime, de uma esfera pública e de uma outra de índole mais interpessoal
ou privada, deve considerar-se a afirmação de António VIEIRA CURA de que «a Lei
das XII Tábuas (…) continha já, ainda que de forma embrionária, a distinção
fundamental entre delitos privados (qualificados como “delicta” ou “maleficia”) e
delitos públicos (designados, tecnicamente, como “crimina”), que veio a ganhar
contornos mais precisos na época republicana tardia (ou seja, em pleno período
clássico)». E, com relevo particular para a clarificação de que, neste período, se
compreendia já a existência de ilícitos criminais que se podiam distinguir à luz do
critério dos interesses primeiramente atingidos, o Autor acrescenta que «enquanto os
“crimina” eram os factos ilícitos mais graves, perseguidos pelo Estado (por afectarem,
em primeira linha, a própria comunidade), por meio dos órgãos investidos da jurisdição
criminal, e sancionados com pena pública (de natureza corporal ou patrimonial), os
“delicta” eram perseguidos pelo ofendido (por incidirem sobre interesses privados), nas
formas de processo privado (para o que dispunha de uma actio) e sancionados com pena
privada, sempre pecuniária, que o lesante estava obrigado a pagar (constituindo, assim,

161
António VIEIRA CURA, no contexto de uma reflexão sobre os delitos privados e os crimes públicos
no direito romano clássico (em que elenca, entre os delitos privados, precisamente o delito de furto), faz
remontar a sua análise a momento anterior e afirma que “a Lei das XII Tábuas já distingue o furtum
manifestum e o furtum nec manifestum, distinção que se mantém no direito clássico” (o primeiro associa-
se, tendencialmente, ao conceito de furto em flagrante delito). Acrescenta que “na época clássica, por
força do edictum praetoris, o furto manifesto era punido (…) com uma poena igual ao quádruplo do valor
da res furtada, enquanto o furto não manifesto era punido com a pena do dobro do valor da coisa
subtraída (como já acontecia desde a lex duodecim tabularum)”. Depois de considerar os delicta e de
esclarecer que “pertenciam, portanto, ao direito privado”, o Autor ocupa-se dos crimina, entre os quais
refere o crime de lesa majestade; os crimes contra a vida; o adultério, o estupro e o lenocínio (in “Crimes,
delitos e penas no Direito Romano Clássico”, Ut par Delicto Sit Poena, Crime e Justiça na Antiguidade,
Theoria Poiesis Praxis/Universidade de Aveiro, 2005, p. 188 ss).

96
fonte de obligationes denominadas, por isso, ex delicto) e era devida exclusivamente ao
cidadão lesado»162.
Todavia, como se referiu antes, o período histórico que parece assumir decisiva
importância no estudo das origens da justiça restaurativa – pelo menos na perspectiva
dos cultores da proposta restaurativa – é a Alta Idade Média. Na Europa medieval,
essencialmente entre o século VI e o século XI163, eram frequentemente as próprias
pessoas que, reunidas, aplicavam as regras com relevância criminal à luz da
“consciência comum” do grupo. Os próprios direitos e deveres resultavam muito menos
de normas formalizadas através da escrita e da compilação do que daquela consciência
colectiva que reflectia os valores comunitários. De algum modo, tratar-se-ia de uma “lei
viva” que, apesar de com frequência ser vaga, confusa ou tecnicamente deficiente, era
criativa e adequada às necessidades humanas164.
Nas palavras de Harold BERMAN, “a lei, como a arte e o mito e a religião, e
como a própria linguagem, era para os povos da Europa, nos mais jovens estádios da
sua história, não primariamente uma questão de criação e aplicação de regras para
determinar a culpa e fixar a sanção, não um instrumento para separar as pessoas umas
das outras com base num conjunto de princípios, mas sim uma forma de juntar as
pessoas, uma forma de reconciliação. A lei era primariamente concebida como um

162
António VIEIRA CURA, “Crimes, delitos e penas no Direito Romano Clássico”, Ut par Delicto Sit
Poena, Crime e Justiça na Antiguidade, Theoria Poiesis Praxis/Universidade de Aveiro, 2005, ps. 185-6.
163
A escolha destes dois marcos temporais para a delimitação daquele que no pensamento restaurativo
parece ser encarado como o seu momento de ouro histórico é justificável. A queda do Império Romano
do Ocidente permitiu a abertura de um novo ciclo punitivo, com o desaparecimento da centralização
estadual própria de Roma e a consequente fragmentação do poder, também jurisdicional. Abriu-se assim
um espaço para o retorno da composição privada dos conflitos. A partir do século XII, como bem nota
Guilherme BRAGA DA CRUZ (“O movimento abolicionista e a abolição da pena de morte em Portugal”,
Pena de Morte – Colóquio Internacional Comemorativo do Centenário da Abolição da Pena de Morte
em Portugal, II, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1967, p. 423), inicia-se a publicização
do ius puniendi, associada ao renascimento do direito romano e ao fortalecimento do poder real, que “deu
lugar em todos os países da Europa à formação de sistemas penais em que a pena de morte, mandada
aplicar pelos tribunais ou directamente pelo rei, ocupava um lugar proeminente no quadro da repressão
criminal”. No contexto de uma reflexão sobre a história do direito penal, Américo Taipa de CARVALHO
relaciona com a Alta Idade Média (que associa ao período de tempo compreendido entre o século VIII e o
século XII) a predominância da autotutela ou da justiça privada e da reparação, considerando que a Baixa
Idade Média (que situa entre os séculos XII e XV) «constitui como que a charneira entre um direito penal
de justiça privada (alta Idade Média) e um direito penal público (Idade Moderna). O direito penal, vigente
no período que vai do séc. XIII ao séc. XV, revela-se como um sistema misto: ao lado de um direito penal
público que, sob a influência do direito justinianeu e do direito canónico atribui à autoridade real o “ius
puniendi” (…), sobrevive, até ao período das monarquias absolutas, um direito penal de autotutela, de
cariz germânico» (“Condicionalidade sócio-cultural do direito penal”, Estudos em Homenagem aos Profs.
Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga da Cruz, II, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LVIII, Coimbra,
1982, ps. 1067-8).
164
Neste sentido, Harold BERMAN, (“The background of the western legal tradition”, A Restorative
Justice Reader, Ed. Gerry Johnstone, Devon: Willan Publishing, 2003, p. 108), recordando a análise de
Fritz Kern em Kingship and Law in the Middle Ages.

97
processo de mediação, um modo de comunicação, e não como essencialmente um
processo de produção de regras e um processo de produção de decisões”165.
A importância da reparação como sanção durante este período histórico é bem
patente nas leis tribais dos germanos, promulgadas pelo rei Clóvis no final do século V,
assim como nas leis saxónicas de Ethelbert de Kent, datadas do inicio do século VII.
Têm como denominador comum a intenção de evitar a vingança de sangue,
considerando-se que cada delito é um crime contra a família ou o clã da vítima e que a
família ou o clã do agressor são, conjuntamente com ele, responsáveis pela reparação
dos danos causados166. Quer os francos, quer os saxões, dispunham de detalhados
catálogos onde faziam corresponder a cada infracção uma determinada sanção in
pecunia, variável em função da posição que a pessoa ofendida ocupava no grupo. Essa
reparação patrimonial devia ser atribuída ao ofendido ou aos seus familiares, sendo que
apenas reverteria para o tesouro real caso estes não existissem. O desrespeito por estas
normas por parte do clã ou família ofendidos e a sua opção pela vingança privada
seriam objecto de sanção, a menos que o agressor se recusasse a reparar o dano, caso em
que perderia toda a protecção, tornando-se um estranho ao grupo, que qualquer um
poderia matar.
Em jeito de síntese, pode sublinhar-se o facto de os povos que protagonizaram as
invasões bárbaras e que causaram a derrocada romana terem uma compreensão da

165
Harold BERMAN, ob. cit., ps. 108-9.
166
Nesta breve exposição sobre a Lei Sálica dos Francos e as Leis de Ethelbert de Kent seguir-se-á ainda
o estudo de Elmar WEITEKAMP, “The history of restorative justice” cit., p. 116 ss. O Autor refere o
sistema de compensação constante das Leis de Ethelbert de Kent e que se baseava na distinção entre os
conceitos de wergild (pagamento feito à família pela morte de um dos seus membros), de bot (pagamento
feito à família por ofensas causadas a um dos seus membros que não tivessem originado a perda da vida)
e de wite (quantia paga a um mediador como remuneração pela sua actividade de conciliação, de
organização e de vigilância do plano de reparação). Os poucos crimes relativamente aos quais não se
admitia a sanção pecuniária, como o homicídio qualificado não confessado, eram denominados botless e
“tornavam necessário para a família da vítima o recurso à vingança de sangue”. Acrescenta-se que o
pagamento denominado wergild “devia ser feito pelo agente, frequentemente com a ajuda de amigos e da
família, no prazo de 12 meses. Se o agressor falhar no pagamento da compensação, fica sujeito a suportar
as consequências de uma vendetta”. O Autor dá ainda exemplos de diferentes compensações pecuniárias a
pagar em casos vários de ofensas à integridade física, desde “a perda dos quatro dentes da frente” – que,
nas Leis de Ethelbert de Kent, valeriam 6 shillings cada um – até à perda ou amputação dos “dedos
polegares, unhas dos polegares, dedos indicadores, dedos médios, dedos anelares, dedos mínimos e as
suas respectivas unhas, todos diferenciados e com a previsão de um específico bot para cada um”. Os
conceitos de wergild (ou de wergeld) e de wite não são, porém, objecto sempre de idêntica definição,
mesmo entre os defensores da reparação como consequência mais justa para o crime. Thane
ROSENBAUM (The Myth of Moral Justice, Nova Iorque: Harper Collins Publishers, 2005, p. 215), se
define wergeld como a quantia paga pelo homicida à família da vítima, já chama wite à quantia paga ao
rei. Todavia, o que importa a este estudo é a afirmação da existência medieval de um dever de pagamento
também à vítima e à sua família e a crítica, por ambos os Autores, do facto de, a partir de certa altura, a
reparação da vítima ter desaparecido, sendo substituída pela pagamento de uma única multa ao rei,
“deixando-se a família da vítima sem nada”.

98
realização da justiça substancialmente diferente da dos seus antecessores. Passaram a
ser muito escassas as condutas merecedoras de uma punição severa promovida pela
comunidade e em primeira linha orientada para a defesa da própria comunidade e não já
das vítimas (aquelas condutas que impunham a aplicação de uma sanção que seria, em
regra, a morte ou a expulsão do grupo limitavam-se quase sempre às ofensas aos deuses
e à violação das normas de coragem e entreajuda em momentos de combate). Regra
geral, a tradição jurídica germânica, pelo menos nos seus primórdios, impedia a
condenação dos homens livres à pena capital e às penas corporais, dando-se preferência
às sanções patrimoniais. Enfatizava-se a dimensão particular dos conflitos, sendo que a
existência de um qualquer procedimento dependeria da manifestação de vontade do
ofendido, que assim renunciaria à faida ou vingança privada.
Compreende-se facilmente a simpatia que os cultores da justiça restaurativa
manifestam por este período histórico: vêem-no, de algum modo, como o momento
último de privatização da resposta à criminalidade167, como o momento derradeiro de
procura de uma solução para o problema por parte daqueles que nele se encontraram
envolvidos. A “perda do conflito” pelos particulares terá ocorrido depois, com a
substituição de uma organização societária baseada no comunitarismo tribal por uma
outra organização societária hierarquizada nos moldes do sistema feudal. Esta
organização hierárquica tendeu, como é sabido, a um gradual fortalecimento do vértice
da pirâmide (que foi progressivamente evoluindo, centrando-se inicialmente na nobreza,
passando depois a ser ocupado pelo rei e, finalmente, pelo próprio Estado através dos
seus representantes)168. Ora, com isto o que se pretende significar é a profunda

167
Com utilidade para se obter uma visão mais ampla do sistema punitivo medieval, veja-se o que sobre
ele escreve José de FARIA COSTA (in Noções Fundamentais de Direito Penal, 2.ª ed. cit., p. 156).
Depois de reconhecer a “profunda instabilidade” que marca a Alta Idade Média, o Autor afirma que ela se
espelha “também em um direito penal de Justiça privada”, “pois que a falta de uma autoridade pública
forte acabava por, de algum modo, entregar a realização da justiça aos membros da comunidade”. Numa
perspectiva distinta daquela que é mais habitual sobre o princípio de Talião, acrescenta que «outro
desenvolvimento a que se assiste nesta altura, que vem a significar os primórdios do princípio da
proporcionalidade da pena, é a Lei de Talião. Como ainda hoje se utiliza em linguagem popular, “olho
por olho, dente por dente”, o talião traduzia-se em a vingança não poder exceder o mal causado pelo
agente ou delinquente. Podemos, assim, afirmar que o talião corresponde a uma evolução positiva
relativamente ao instituto da perda de paz».
168
No que respeita à história do direito penal português, parece poder afirmar-se que esse fortalecimento
do poder punitivo estadual começou a ocorrer cedo: nas Cortes de Coimbra, em 1211, foram promulgadas
leis penais gerais por D. Afonso II. De acordo com as Posturas deste monarca, os crimes de dano ou
injúrias ficaram fora da alçada da vingança privada, passando a sua repressão a caber à autoridade
pública. Progressivamente, foi-se procurando retirar relevo às tradicionais práticas privadas de realização
da justiça, assumindo particular importância a imposição por D. Afonso V – com quem nascem as
primeiras Ordenações, as Afonsinas – de que toda a aplicação de penas fosse consequência da intervenção
de um tribunal. Parece também indissociável desta crescente publicização da justiça penal a progressiva
preponderância, agora em uma perspectiva processual, do modelo inquisitório, com o carácter oficioso do

99
reformulação do próprio conceito de crime: de ofensa contra uma vítima passou a ser
compreendido como ofensa ao soberano e, mais tarde, como ofensa à comunidade
inteira representada pelo Estado.

2.2. Uma crítica possível desta perspectiva: os “mitos”169 na história da justiça


restaurativa
É significativa, e porventura merecedora de alguma reflexão, a divergência nas
análises históricas feitas por juristas (historiadores do direito ou penalistas170) ou por

processo, a perda da sua natureza popular, a profissionalização do julgador e o secretismo, a primazia do


interesse da descoberta da verdade associada ao particular relevo probatório da confissão. Esta é uma
tendência que se reforça na época moderna e que autores como António HESPANHA, depois de a
associarem aos séculos XVI, XVII e XVIII, caracterizam enquanto fase de transição do feudalismo para o
capitalismo e como período de “assunção pelo Estado de funções antes desempenhadas pela nobreza ou
pelas corporações”, de que seriam exemplos “a assunção das funções de defesa exterior e interior, da
aplicação da justiça e da administração civil”, mas também “a função de controle da actividade
económica” (“O Estado Absoluto – Problemas de interpretação histórica”, Estudos em Homenagem ao
Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, II, Boletim da Faculdade de Direito, n.º especial, Coimbra, 1979, ps.
207-8).
169
A palavra “mitos” surge propositadamente entre aspas porque, apesar de se reconhecer que teria sido
porventura preferível a adopção de outros vocábulos (que oscilassem entre os conceitos de “inverdade” e
de “incerteza”), optou-se por aqui a referir tendo em conta a história que ela própria já tem na literatura
criminológica dedicada às origens da justiça restaurativa. De facto, merecem neste contexto analítico
particular destaque a construção de Kathleen DALY em torno dos “myths about restorative justice” (in
“Restorative justice: the real story”, Punishment and Society, (2002), vol. 4, nº 1, p. 55 ss) e o estudo de
Douglas SYLVESTER precisamente intitulado “Myths in restorative justice history” (in Utah Law
Review (2003), n.º 1, p. 471 ss). Mas também vários outros Autores, como John PRATT, parecem
concordar com DALY e SYLVESTER, juntando-se àquela crítica dos “mitos sobre as origens da justiça
restaurativa” (cfr. John PRATT, “Beyond evangelical criminology: the meaning and significance of
restorative justice”, Institutionalizing Restorative Justice, Eds. I. Aertsen/T. Daems/L. Robert, Devon:
Willan Publishing, 2006, p. 49). Apesar de se ter julgado que não se devia, por força desta quase
“tradição” na rejeição da construção de uma certa tradição [o “mito”] para a justiça restaurativa,
escamotear o termo, impõe-se o esclarecimento de que a definição de “mito” vem geralmente associada
ao “relato das proezas de deuses ou de heróis, susceptível de fornecer uma explicação do real,
nomeadamente no que diz respeito a certos fenómenos naturais ou a algumas facetas do comportamento
humano” ou a “narrativa fabulosa de origem popular” (assim, por exemplo, no Dicionário da Língua
Portuguesa da Porto Editora, Infopédia). Nesta acepção, o termo “mito” seria indevidamente utilizado na
reflexão sobre as origens da justiça restaurativa. Todavia, reconhece-se nas fontes consultadas que por
“mito” se pode também definir uma “representação falsa e simplista, mas geralmente admitida por todos
os membros de um grupo” ou as “crenças comuns (consideradas sem fundamento objectivo ou
científico)”, o que parece tornar menos censurável a adopção do conceito para referir algumas inverdades
geralmente associadas à origem da justiça restaurativa. Nos estudos de DALY ou de SYLVESTER, a
referência aos “mitos” na história da justiça restaurativa prende-se com a tentativa, comum, de a
apresentar como o modelo dominante de reacção ao crime na história da humanidade. Todavia, também
na doutrina penal existem estudos orientados para a demonstração de que a ideia da inevitabilidade da
pena é um “mito” (o que não deixará de interessar à sustentação da proposta restaurativa). Neste sentido,
veja-se a afirmação de Sebastian SCHEERER de que “a tese do carácter universal da pena criminal não é
mais do que um mito cujas raízes e função são fáceis de identificar”. O Autor afirma que é “indiscutido”
o facto de “o direito penal e as penas criminais não serem, de modo nenhum, formas universais de
controlo social” e acrescenta que “sem normas ou sanções não pode existir nenhuma sociedade – mas sim
sem penas criminais. As normas são algo universal, mas não as normas jurídicas; as sanções mas não as
penas (…)” (in “La pena criminal como herencia cultural de la humanidad”, La Ciencia del Derecho
Penal ante el Nuevo Milenio, coord. da versão alemã: Eser/Hassemer/Burkhardt/; coord. da versão
espanhola: Muñoz Conde, Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, ps. 378-9).

100
cultores da justiça restaurativa (com as mais variadas formações) sobre o sistema de
reacção ao crime, sobretudo na Alta Idade Média171. Enquanto uns vêem neste período

170
Deve, porém, sublinhar-se a existência de historiografias do direito penal, narradas por penalistas, que
não comungam dessa concepção maniqueísta alicerçada na distinção entre períodos históricos bons e
maus, sob o ponto de vista dos modelos de reacção ao crime. Assim, José de FARIA COSTA, nas suas
Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta Iuris Poenalis), 2.ª ed. cit., p. 149 a 155, partindo da
“tradicional divisão entre Época Clássica, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea”, reflecte
sobre a importância da paz jurídica e analisa as principais características que assumiu em cada época
histórica. Ao invés de apresentar o período medieval como época exclusivamente de trevas, reconhece a
existência de vários institutos orientados para a paz e para a concórdia: “”a concórdia representava a
situação de equilíbrio em que cada senhor, incluindo o próprio monarca, participava numa troca de bens
que essencialmente se definiam como serviços e em que o elemento de pessoalidade se mostrava
inequívoco. Por outros termos, a concórdia seria, se assim nos podemos exprimir, o elemento formal
dentro da arquitectura do sistema social, enquanto que a paz compartilharia, indiscutivelmente, mais dos
elementos materiais, melhor dizendo, dos componentes da própria estrutura interna do todo social”. O
Autor acrescenta, ainda a propósito da Alta Idade Média, que «sempre a definição de uma qualquer “paz”
– v.g. a paz do território, a paz da cidade – não era mais do que uma limitação à vindicta privada,
consequentemente um reforço para a publicização da justiça». E esclarece que a noção de paz que se
perfilha “está imbuída de um forte conteúdo comunitário. Se se atende à pessoa que é perturbada na sua
paz não se o faz tanto em honra de valores individuais mas antes tendo em consideração os valores
sociais. O que se teme quando alguém é ofendido na paz é o desencadear de uma reacção de tal modo
incontrolável que faça perigar o viver da comunidade”. Por outro lado, também se admite que com o
advento da Baixa Idade Média, se “há uma evolução francamente positiva” e “um reforço das instituições
políticas e do poder público”, verificou-se também “alguma arbitrariedade do direito de punir”: depois de
se registar que ganhara “importância progressiva a composição pecuniária, em que o ofensor pagava uma
determinada quantia – livremente negociada – à vítima ou à família desta”, reconhece-se também que “o
progressivo movimento de publicização do direito penal veio a implicar a avocação do ius puniendi por
parte do rei, o que acabou por se reflectir em alguma arbitrariedade do direito de punir. O processo de
centralização política a que se assiste neste período – e se prolonga até ao final da Idade Moderna – faz
com que o direito penal possa ser visto como um instrumento ao serviço do poder”. Também no seu O
Perigo em Direito Penal. Contributo para a sua Fundamentação e Compreensão Dogmáticas, Coimbra:
Coimbra Editora, 1992 (reimpressão em 2000), p. 69 ss, o Autor referira já uma certa incompreensão,
pelos contratualistas, da existência, prévia ao fortalecimento do Estado punitivo, de instrumentos diversos
para uma “gestão socialmente pertinente da violência”. Nas “sociedades simplificadas”, quando o
ofendido se vinga, “fá-lo sempre em nome de uma instituição na qual se dissolve em individualidade”. E
acrescenta-se que “nesta perspectiva, o verdadeiro senhor da potestas que acompanha o ius puniendi não
é por certo um rei ou o abstracto Estado dos nossos dias, mas não deixa de ser uma entidade que, não
obstante ser parte, no momento da aplicação da vingança se sente comunitariamente legitimada e, como
tal, simbolicamente distanciada do próprio conflito”.
171
Essa divergência, mesmo que porventura não tão exasperada, manifesta-se ainda naquilo que se
considera essencial ou distintivo em momentos históricos mais recuados. Assim, por exemplo, enquanto a
história “clássica” da justiça penal sublinha a violência da punição orientada por concepções retributivas
nos primórdios da história punitiva, os narradores da história da justiça restaurativa sublinham o pendor
restitutivo ou reparador que nesses tempos se verificaria. Autores como RADBRUCH e GWINNER
[Historia de la Criminalidad (Ensayo de una Criminologia Histórica), Bosch, Barcelona: 1955, p. 21]
referem, por exemplo, a extrema violência punitiva do período a que chamam “protohistória germânica” e
lembram o carácter sacramental da pena de morte e a forma como com frequência era encarada enquanto
sacrifício aos deuses: recordam os apedrejamentos, os enforcamentos, os sepultamentos de condenados
ainda vivos, as amputações de membros e castrações, os afogamentos. Autores como Elmar
WEITEKAMP contam-nos uma outra versão da história. Como sublinha Gerry JOHNSTONE
(introdução a “The background: legacies and frameworks”, A Restorative Justice Reader, Devon: Willan
Publishing, 2003, p. 102), WEITEKAMP mostra que a imagem antes apontada (e que nos apresenta
comunidades sem ordem, com os seus membros envolvidos em sucessivas retaliações e vinganças, sem
quaisquer momentos de paz, até o Estado reinvindicar o monopólio da violência e pacificar a sociedade) é
“completamente errónea”. Howard ZEHR (Changing Lenses: a New Focus for Crime and Justice,
Ontário: Herald Press, 2005, p. 97 ss) vai mais longe, afirmando que alguns historiadores do direito
retrataram intencionalmente a antiga justiça penal como vingativa e bárbara, em contraste com o cariz
mais racional e humano da justiça moderna. Um sinal paradigmático do abismo que separa as duas visões

101
sobretudo a violência e a desordem, outros vêem nele uma reacção à criminalidade mais
humana e menos severa (na medida em que dá predominância à reparação, através das
sanções patrimoniais) e, sobretudo, participada. Enquanto uns atribuem ao poder central
que se fortalecerá gradualmente a partir do século XII um papel de moderação e de
pacificação172, outros destacam na sua intervenção em matéria penal a
institucionalização e o monopólio da violência.
Os primeiros sublinham a ideia de que a ausência de um terceiro imparcial na
gestão do conflito interpessoal, na posse daquela auctoritas punitiva, desembocaria
necessariamente em vinganças privadas, que seriam expressão não da solução mais
justa, mas da solução desejada pelo mais forte173. Vêem, pois, com alívio o advento do
Estado Punitivo, apresentado como um verdadeiro avanço civilizacional que virá a

dos sistemas punitivos mais remotos pode encontrar-se na forma como os cultores do paradigma
restaurativo elegem o Código de Hamurabi como exemplo de compilação de leis ainda norteadas por uma
ideia de reparação. Pelo contrário, tal código é em geral apresentado na história do direito penal como
aquele onde se encontram os primeiros indícios do talião. Ora, é este princípio do talião patente naquele
Código de Hamurabi que Claus ROXIN considera estar “por trás” da teoria da retribuição. Numa
perspectiva da justiça penal passada manifestamente diversa da advogada por Braithwaite ou Weitekamp,
Claus ROXIN entende que aquele princípio do “olho por olho, dente por dente descreve a evolução da
pena de forma perfeitamente correcta também sob o ponto de vista histórico”, sendo que “se desvinculou
a pena estatal da vingança privada, assim como das hostilidades entre famílias e tribos, de tal modo que o
direito à retribuição passou para as mãos de uma autoridade pública neutral, que actuava segundo regras
formais e que por isso criava paz” [in Derecho Penal, Parte General, Tomo I (Fundamentos. La
estructura de la Teoria del Delito), tradução da 2ª Edição alemã, Madrid: Civitas, 2003, p. 82].
172
Segundo Massimo DONINI – sendo que esta ideia é patente, com formulações não muito distantes, no
pensamento de vários outros autores – “o direito penal é uma contínua tentativa de racionalizar a
necessidade de defesa-vingança” (“La relación entre derecho penal y política: método democrático y
método cientifico”, Crítica y Justificación del Derecho Penal en el Cambio del Siglo, El análisis crítico
de la Escuela de Frankfurt, coord. Arroyo Zapatero/Neumann/Nieto Martín, Colección Estúdios,
Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2003, p. 72).
173
Neste sentido, Jean-Marie CARBASSE (Introduction Historique au Droit Penal, PUF: 1990, p. 79)
considera que “esta justiça com fundamentos anárquicos não é a mesma para todos: tímida na perspectiva
dos fortes para quem a vingança é mais do que nunca um direito, ela exerce sobre os humildes uma
districtio quase arbitrária”. Também COELHO DA ROCHA (apud Eduardo CORREIA, Estudos sobre a
Evolução das Penas no Direito Português, Separata do vol. LIII do BFDUC, 1979, p. 9) referia, a
propósito de normas de conteúdo penal dos visigodos, que elas “foram ditadas não com as vistas da
emenda do delinquente e da utilidade pública; mas por um sistema de terror, ou antes de vingança
arbitrária, unicamente modificada pela consideração da pessoa do delinquente ou do ofendido, ser servo
ou ingénuo, nobre ou peão”. Para um desenvolvimento destas considerações em torno da (des)igualdade,
vd. Cláudia SANTOS, O crime de colarinho branco (da origem do conceito e sua relevância
criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal) cit., p. 15 ss. Deve, porém,
notar-se a possibilidade de se distinguirem realidades várias no âmbito desse conceito de vingança
privada, nomeadamente a partir da ideia de que esta pode ser “ilimitada” ou “limitada”: enquanto à
vingança privada ilimitada faltava “qualquer medida ou proporção”, “imperando a lei do mais forte”, já
na vingança privada limitada se procurava uma proporcionalidade da reacção face à ofensa. Sobre o
assunto, Guilherme COSTA CÂMARA (Programa de Política Criminal Orientado para a Vítima do
Crime, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 27) afirma ainda que “a partir do momento em que a
ampliação dos meios de subsistência tornou possível a realização de uma composição pacífica entre
vítima e ofensor, paulatinamente, deu-se uma passagem de um modelo de vingança privada ilimitada,
para um modelo baseado na proporcionalidade da vingança em relação à ofensa produzida (vingança
limitada) (…). De forma que quando as tribos se tornaram comunidades mais estáveis, a compensação
veio a mitigar a vingança de sangue, oferecendo uma alternativa satisfatória para as vítimas”.

102
tornar mais tarde possível uma conformação do sistema penal orientada pelo princípio
da igualdade. O veredicto de BRAGA DA CRUZ sobre a substituição do estado de
coisas vigente durante a Alta Idade Média em matéria de realização da justiça penal é
claro e nada coincidente com a avaliação positiva que do mesmo período histórico
fazem Autores como Weitekamp: “chamando a si o direito de punir, o poder político
prestava ao progresso e à paz interna dos povos um serviço de altíssimo relevo, pondo
cobro às antigas formas de auto-defesa, dominantes na Alta Idade Média, de que eram
expressões acabadas a vingança privada e a perda de paz”174.
Os segundos, pelo contrário, afirmam que a vingança possível era quase sempre
apenas um instrumento para dar início à negociação (que supunha, em regra, o
pagamento de uma sanção pecuniária) e à reconciliação. A vingança acarretaria
consequências tão desastrosas que a paz violada teria de ser restabelecida através da
diplomacia, sendo o objectivo de reconciliação, ainda aqui, muito mais relevante do que
a formulação de um juízo sobre o certo e o errado ou sobre o justo e o injusto175.
Afirmam que a reparação negociada era muito mais comum do que a vingança de
sangue, para todos os crimes, inclusivamente para o homicídio176. A resposta dada ao
delito durante a Alta Idade Média na Europa é merecedora de um juízo genericamente
positivo, por significar o empenhamento individual e o empenhamento comunitário na

174
Guilherme BRAGA DA CRUZ, ob. cit., ps. 423 e 424, aponta como características da Alta Idade
Média o facto de o direito de represália ser da vítima ou da comunidade ofendida e o facto de serem
dominantes as ideias de vingança, de retribuição do mal com o mal, de expiação pessoal e de intimidação
geral. Ainda segundo o Autor, estas notas ter-se-iam de resto mantido, em toda a Europa e até ao século
das Luzes, com a especificidade de ter passado para as mãos do Estado o exercício do direito de punir.
175
Harold BERMAN, ob. cit. p. 109, ilustra esta ideia, que apresenta como norteadora da resposta à
criminalidade na Europa medieval até finais do século X, com um episódio retirado de outro contexto
civilizacional mas que, como se verá, apresenta pontos de contacto relativamente a esta orientação
pacificadora dos conflitos. Segundo o Autor, uma das histórias da tradição Sufi (que terá nascido no
Médio Oriente, por volta do século VIII, baseada em uma compreensão não punitiva do divino, com o
qual cada um poderia comunicar através da meditação, da reclusão, da dança, da poesia ou da música)
mostra o Mulla Nasrudin como um magistrado ocupado com o seu primeiro caso. A acusação apresenta
tão bem as suas alegações que ele exclama: “acredito que tem razão”. Advertido para o facto de que não
deveria formular o seu juízo antes de ouvir a defesa, escuta atentamente estas outras alegações. No final
das mesmas, exclama: “acredito que tem razão”. Dizem-lhe que é impossível afirmar que ambos têm
razão. Nasrudin diz a quem lhe chama a atenção para tal facto: “acredito que tem razão”. Mas continua,
de novo centrado no caso que deve apreciar: «têm ambos razão, apesar de não poderem ter ambos razão.
A resposta não deve ser procurada fazendo a pergunta “quem tem razão?” A resposta deve ser encontrada
salvando a honra dos dois lados e restaurando, assim, o relacionamento adequado entre eles».
176
Gerry JOHNSTONE, últ. ob. cit., p. 102. Neste sentido, Elmar WEITEKAMP (últ. ob. cit., p. 115 ss)
recorda os contributos de vários Autores que estudaram os mecanismos de realização da justiça penal
durante a alta Idade Média e que concluíram que a solução dos conflitos, mesmo dos mais graves – os que
se relacionavam com o cometimento de crimes de homicídio – se obtinha, quase exclusivamente, através
da negociação e do pagamento de sanções pecuniárias. Afirma-se que era assim em todo o mundo
ocidental. Explica-se aquela que terá sido uma ideia forte entre os povos germânicos: “até o homicídio é
reparado através de uma determinada multa em gado e em ovelhas; e toda a família aceita esta
compensação no interesse do bem público, uma vez que as rixas são um grande perigo num estado livre”.

103
solução de problemas que eram vistos como interpessoais mas simultaneamente
colectivos, procurando-se uma resposta criativa e orientada para o caso concreto. A
chegada do século XII traz à Europa a extinção dos até aí vigentes mecanismos de
justiça restaurativa e a generalização da aplicação da pena de morte. E o Poder Punitivo,
em vez de ser visto como o instrumento de realização da justiça e da pacificação, é
encarado antes como o responsável pela escalada da violência punitiva, pelo
desinteresse relativamente à reintegração do agente do crime e à satisfação das
necessidades da vítima. As necessidades do Estado, acusam os cultores da proposta
restaurativa, foram ganhando cada vez mais espaço face às necessidades da vítima. A
compreensão pelo poder central de que a tarefa de realização da justiça teria uma
contrapartida económica, tornando-se uma das fontes do seu próprio financiamento, terá
contribuído para a promoção do entendimento do crime não já como ofensivo em
primeira linha dos interesses de uma concreta vítima, mas antes como primordialmente
lesivo dos interesses da colectividade. A ideia de que cada pessoa pertence não a si
própria, à sua família ou clã mas antes à comunidade no seu sentido mais lato legitima a
aplicação da sanção pela comunidade e no interesse da comunidade – o que, em termos
muito práticos, leva alguns Autores à conclusão de que o que se passou foi a
transferência do direito à compensação das mãos da vítima ou dos seus familiares para
os cofres do senhor feudal, do rei ou do Estado177. E recusa-se, naturalmente, este
sistema no qual “a vítima não tinha lugar”178.

177
Não deixa de merecer destaque, porém, a verificação de que, no próprio pensamento penal português
já posterior à influência do Iluminimo Penal (e, por isso, já confortado com os fundamentos teóricos
essenciais para a publicização do direito de punir, nomeadamente a teoria do contrato social), se
reconhecia a existência de interesses patrimoniais na evolução da titularidade do direito de punir. Neste
sentido, julgam-se particularmente significativas as palavras de Afonso COSTA (Commentario ao
Código penal Portuguez, I – Introdução, Escolas e Princípios de Criminologia Moderna, Coimbra:
Imprensa da Universidade, 1895, ps. 23-4), quando, depois de se referir à evolução do exercício
individual da vingança para a assunção da mesma pela tribo ou pelo grupo e ao surgimento da
compensação, reflecte sobre a passagem do poder de punir das mãos da vítima e do seu grupo para as
mãos dos chefes: “mais tarde, quando se operou a primeira absorpção das energias individuaes pelo
despotismo dos chefes, começaram estes a avocar a si as compensações. Se a offensa feita ao individuo
era sentida pelo grupo inteiro, e se o grupo estava condensado nas mãos do príncipe, nada mais lógico do
que receber este, ao menos, uma parte dos valores que resgatavam os delinquentes da punição dos seus
crimes. Como, porém, os offendidos reagissem contra o estorvo assim levantado à integridade do seu
goso, crearam os chefes, ao lado das compensações, as multas senhoriaes, e inventaram, para
multiplicação dos seus rendimentos, uma infinidade de crimes de natureza essencialmente política e
religiosa. A lei era, de resto, a tradução dos seus caprichos, e a justiça, por eles próprios administrada,
exprimia a sua vontade ou dava conta das superstições reinantes, mas raro seguia um rumo constante e
invariável”. O Autor conclui, com grande importância para a questão que aqui se trata (e em sentido que,
até certo ponto, corrobora algumas opiniões dos modernos cultores da proposta restaurativa sobre o
sentido não essencialmente ético da exclusão da vítima do modelo de resposta ao crime) que “d’estas
transformações era natural resultar que a acção prejudicial, atacando em princípio o próprio indivíduo,
passasse a considerar-se uma offensa ao soberano e à lei. Nos velhos códigos, as compensações cedem o

104
Uma tão radical cisão na forma como se percepciona e como se avalia um
determinado período histórico179 talvez não resulte, porém, apenas das diferentes
perspectivas em que se posicionam juristas, por um lado, e cultores da justiça
restaurativa, por outro, mas antes das diferentes motivações e metodologias adoptadas
por historiadores ou por outros, com frequência não historiadores, que pretendem olhar
para o passado como forma de encontrar esteio para concepções da vida e do mundo
que preconizam para o presente e/ou para o futuro.
No interessante estudo intitulado “Myth in Restorative Justice History”,
Douglas SYLVESTER afirma que as narrativas que empolam a vertente restaurativa na
história não são na verdade narrativas históricas, baseando-se em metodologias
suspeitas, quer na escolha dos factos180 quer na interpretação que lhes é dada181.

campo, cada vez em maior escala, às multas, e o offendido, primeiro despojado do valor da offensa
recebida é, afinal, destituído do próprio direito de executar a decisão do príncipe. E por esta forma, o
interesse individual é sacrificado ao interesse collectivo, e a justiça desce do alto como do céu desce,
fulminante, o raio”. Ao contrário do que parecem julgar alguns defensores da justiça restaurativa, vê,
porém, aqui, uma certa evolução de cariz positivo: “é ainda cruel e atroz como a vingança, mas,
envolvendo já o elemento social, é menos desordenada e arbitrária”.
178
Cfr. Elmar WEITEKAMP, últ. ob. cit., ps. 117 a 119, que aponta o facto de o sistema vigente até ao
século XII, de reparação directamente à vítima, não ter sido voluntariamente abandonado pelas
populações, antes conquistado a ferros pelos senhores feudais e pelo rei. E acrescenta que estes usaram
arbitrariamente esse poder de realização da justiça – afirma-se até que se em alguns casos se conseguiu
atingir o objectivo de pacificação, com grande frequência tal não ocorreu graças à obtenção de uma
solução justa –, aproveitando tal prerrogativa para uma punição dupla, assente quer no confisco de bens
quer nos castigos corporais ou na privação da liberdade, sem que a vítima a nada tivesse direito. A
questão da reparação é remetida para o direito civil, na opinião do Autor com escasso sucesso.
179
Elmar WEITEKAMP (últ. ob. cit., p. 119) procura retirar relevância à discordância na análise das
instituições penais medievais afirmando que ambas as correntes têm razão e que o distanciamento é
apenas aparente. Segundo o Autor, o que justifica esta divergência é o esquecimento de que na Idade
Média se podem distinguir dois grandes períodos: um deles, aproximadamente entre o século VI e o XII,
que merece pelas razões antes expostas uma valoração positiva; um outro, que situa entre os anos 1100 e
1500, relativamente ao qual julga merecidas as críticas de anomia e atrocidade. O Autor parece considerar
que aqueles que olham para a Idade Média como um período de trevas no que respeita à realização da
justiça se referem apenas a este período, em que ocorre o declínio das práticas restaurativas e ainda não se
estabeleceu com eficácia um sistema centralizado e de controlo estadual da justiça criminal. Não
englobariam, pois, aquela a que chama “a idade de ouro da vítima”. Esta análise, por mais bem
intencionada que seja, não parece aplicável a todas as análises críticas das instituições penais medievais,
que com frequência balizam de forma clara as objecções, dirigindo-as também àquele período que os
cultores da justiça restaurativa mais elogiam. A divergência não é, pois, tão facilmente ultrapassável,
desde logo porque as distintas valorações dos momentos históricos são suportadas, elas próprias, por
diversas escalas de valores, como se procurará mostrar.
180
Douglas SYLVESTER (ob. cit., p. 501 ss) considera que os cultores desta história da justiça
restaurativa “apenas arranharam a superfície da literatura antropológica”, tendo desconsiderado os
inúmeros estudos sobre a predominância da punição orientada por uma ideia de retribuição (referem-se,
de resto, alguns desses estudos, nomeadamente sobre os clãs de esquimós ou sobre os índios Yurok da
Califórnia) e tendo escolhido, nas reflexões sobre a vigência da reparação em tempos passados, apenas os
exemplos que seriam mais favoráveis à tese que pretendiam provar e que, na opinião daquele Autor, se
decompunha em três proposições: (1) a preponderância em muitos momentos do passado da reparação
como reacção (principal) ao crime; (2) o carácter orientado-para-a-vítima da reparação; (3) a intenção de
através da reparação se procurar, não a punição do agente, mas a restauração da paz nas comunidades
afectadas. Acrescenta que a ideia de que, em tempos passados, a reparação era uma resposta mais liberal,

105
Acrescenta que tais narrativas “usam o passado de forma fantasiosa, organizando de
forma selectiva os dados e caracterizando os actores e as culturas relevantes como
estando imbuídos de profundos poderes de perdão e de misericórdia”. O Autor recorda,
ademais, que esta crítica ao tom dominante das reflexões sobre as origens da justiça
restaurativa surgiu no seu próprio seio, graças a um estudo de Kathleen DALY,
criminóloga muito renitente relativamente à construção deste “mito original” da justiça
restaurativa182.

iluminada e misericordiosa ao crime desconsidera o facto de que se impunham sanções em função da


posição social dos intervenientes, favorecendo determinados grupos, e desconsidera as consequências
bárbaras da inaptidão do agente para pagar (agravada pelo facto de o valor a restituir ser quase sempre
muito superior ao dano efectivamente causado), consequências essas que poderiam passar por uma vida
de escravidão em função da dívida para o agressor, para os seus filhos ou para outros membros da sua
família, ou mesmo pela morte. O Autor (ob. cit., p. 513 ss) faz ainda uma análise detida dos vários
exemplos de reparação que os cultores da justiça restaurativa encontram já nas sociedades organizadas em
Estado para demonstrar que o que se refere por exemplo a propósito dos Códigos de Ur-Nammu, de
Hammurabi, da Lei das Doze Tábuas ou das Leis de Ethelbert de Kent e dos saxões, durante a Alta Idade
Média, é profundamente redutor da realidade punitiva. Apresenta, para o demonstrar, vários casos em que
a sanção é de uma violência extrema e orientada para a vingança.
181
Considere-se o exemplo da reparação pecuniária no período medieval: enquanto os defensores do
paradigma restaurativo elegem este facto para demonstrar a preocupação com a satisfação das
necessidades da vítima, outros sublinharam anteriormente que, naqueles tempos, a sanção pecuniária era
pensada no interesse do delinquente e, portanto, nada orientada para a vítima. Neste sentido, Herbert
EDELHERTZ (apud SYLVESTER, ob. cit., p. 497) afirma, no contexto de uma reflexão histórica sobre a
reparação, a “evidência histórica de que a protecção dos agressores e dos grupos sociais dos agressores,
não os benefícios para as vítimas, era o objectivo principal de tais figuras nas sociedades primitivas e
ancestrais”. E afirma-o sublinhando – aqui de forma coincidente com autores como Weitekamp ou
Berman – a intenção de com a sanção pecuniária se evitar a vingança privada e o consequente
derramamento de sangue. Seja como for, existe uma plataforma comum aos que defendem a existência de
uma reparação orientada para a vítima ou de uma reparação orientada para o agressor: todos defendem a
admissibilidade de tal sanção também em nome do interesse colectivo. E, fosse qual fosse a intenção
primordial que presidisse à reparação, pode afirmar-se que ela se traduziria, em regra, em vantagens para
a vítima, para o agressor e para a comunidade. De qualquer modo, toda a valoração positiva associada à
reparação enquanto sanção na Alta Idade Média parece ser posta em causa pelas reflexões de Schafer e de
Edelhertz, que apontam o cariz hegemónico, não liberal e excessivamente punitivo daquela forma de
reacção ao crime. SYLVESTER vinca, para além disso, que o movimento em favor da reparação surgiu e
existiu durante algum tempo de forma autónoma face ao paradigma restaurativo, tendo posteriormente
vindo a ser consumido por este. Na verdade, podem encontrar-se defensores da reparação com uma
perspectiva da mesma claramente diversa da que vem a ser assumida na teorização do modelo
restaurativo: neste, rejeita-se a punição enquanto objectivo da reparação, configurada como
exclusivamente orientada para a satisfação das necessidades da vítima; naquela outra perspectiva,
argumenta-se que a reparação deve continuar a centrar-se no agente e que os benefícios que da mesma
decorram para a vítima são puramente laterais. Como se julga que esta divergência constitui um nódulo
problemático central até para aferir da forma como se devem relacionar o sistema criminal e a justiça
restaurativa, merecerá consideração em momento posterior. Não sem antes se avançar com a ideia de que
a reparação pode surgir em diferentes vestes, ambas teoricamente defensáveis: se for configurada como
sanção criminal, não pode prescindir de uma orientação para o agente; se for configurada como medida
assistencial, deve ser orientada para a vítima. Parece existir, todavia, sobretudo na doutrina restaurativa, a
ideia de que a reparação pode ser configurada como reacção criminal e que ainda assim deve ser orientada
para a vítima.
182
Douglas SYLVESTER (“Myth in restorative justice history”, Utah Law Review, n.º 1, 2003, p. 474),
depois de enfatizar a ideia “deixem a história para os historiadores”, chama a atenção para o facto de que
esta acusação feita por DALY de criação de um mito quanto às origens históricas da justiça restaurativa
significa mais do que a inaptidão para a reflexão histórica; ela equivale antes a uma intencional
reconfiguração do passado para influenciar os eventos presentes; significa a pretendida introdução de

106
Por outro lado, aqueles estudos são acusados de uma definição nem sempre
correcta de conceitos nucleares e permanentemente revisitados. Quando se menciona a
“vítima”, por exemplo, não há uma determinação dos seus exactos contornos nem se
esclarece que algumas vítimas seriam incapazes de exigir a reparação ou a vingança, em
função da sua própria fragilidade; outras seriam suficientemente poderosas para
evitarem os mecanismos compensatórios e conseguirem a aplicação de sanções mais
severas. O próprio conceito de “reparação” não parece ser objecto de uma compreensão
global, na medida em que é sistematicamente apresentado na sua dimensão patrimonial,
desconsiderando-se os factos referidos em algumas fontes históricas que apresentam
como formas de evitar a aplicação de sanções mais graves – e, nessa medida, ainda
como formas de reparação do dano sofrido em um sentido lato – as dívidas pagas com a
aceitação de uma posição de escravatura ou a entrega frequente de filhos183.
Naturalmente, idênticas objecções poderão ser dirigidas a muitos estudos
daquela a que SILVESTER chama “forensic history” quando narrada não por
defensores do paradigma restaurativo mas por partidários de outras tendências ou
correntes jurídicas em sentido muito amplo184. O conhecimento das circunstâncias em
que surgem tais análises históricas e a possibilidade de nos darem visões
excessivamente simplificadas do passado, com a eleição dos factos úteis à prova de uma
determinada tese em detrimento daqueles outros que lhe são menos convenientes, não
será, todavia, suficiente para uma sua rejeição liminar. Desde que sejam tidas em conta

elementos de fantasia na história. Segundo aquele Autor (ob. cit., p. 479), que faz apelo nesta sede ao
pensamento de Robert GORDON, a tentação de recorrer à história como forma de condicionar o presente
e o futuro existe porque as experiências pretéritas surgem frequentemente como “uma fonte de autoridade
que nos garante que aquilo que fazemos agora flui continuamente desde o passado”. Ou, dito de outra
forma, os cultores da justiça restaurativa, que pugnam por uma alteração do sistema penal e das leis
penais, teriam procurado justificar tal mudança também através de uma legitimação histórica. A história
apareceria, assim, nas palavras de SYLVESTER (ob. cit., p. 495) como “mais uma ferramenta no arsenal
da justiça restaurativa”.
183
Cfr. Douglas SYLVESTER, ob. cit., p. 520.
184
Na verdade, o intencional apagamento, na história, de determinados factos ou episódios ultrapassa as
reflexões históricas sobre o direito. Entre nós, Teresa BELEZA (Mulheres, Direito, Crime ou A
Perplexidade de Cassandra, Lisboa, Faculdade de Direito, AAFDL, 1993, ps. 20-21) notou-o a propósito
da forma como “a presença feminina foi silenciada” na história. Nas suas próprias palavras: «no início do
Livro do Riso e do Esquecimento, Milan KUNDERA (1984:3) fala da fotografia em que a imagem de
Clementis, um patriota checo caído em desgraça sob o estalinismo, foi deliberadamente suprimida (…).
Tornou-se hoje óbvia a técnica estalinista (stricto e lato sensu) de re-escrever a História, silenciando os
factos, as referências, as imagens inconvenientes ou incómodas. De modo mais subtil – não
necessariamente ínvio, porque muitas vezes “inconsciente” – a presença feminina foi silenciada (e, como
a dos negros, frequentemente silenciosa – Tinhorão, 1988) para emergir episodicamente (…). Por isso
alguma historiografia crítica e muitos escritos teóricos feministas, incluindo os de índole jurídica e
algumas perspectivas jurídicas críticas (…) recorrem esporádica ou sistematicamente à utilização das
hidden histories, ou seja, à arqueologia de histórias e saberes que foram soterrados pelo discurso oficial
que apresentou a versão dos factos que conhecemos e assim estrutura socialmente a nossa percepção».

107
e assumidas as limitações inerentes àquela que se considera uma “aproximação mais
maleável à história”, tais reflexões podem ainda ser de alguma utilidade aos debates
contemporâneos185. Assim, desde que advertidos das suas limitações, uma análise
histórico levada a cabo por autores que defendem o paradigma restaurativo e que
sustentam as origens remotas das práticas restaurativas é ainda idónea a desencadear
alguns efeitos iluminadores.
Um dos cuidados que me parecem essenciais nestas reflexões sobre o passado
assenta na distinção entre a história da justiça restaurativa tal como
contemporaneamente surgiu186 e subsiste (ou seja, enquanto sistema de reacção ao crime
que tem raízes críticas de um modelo punitivo que é hoje o dominante, que recusa a
punição autoritária e que promove uma reparação sedimentada no consenso) e a história
– essa, sim, mais longa – dos institutos da reparação ou da restituição. Estes existiram
– e podem até ter sido dominantes – em vários momentos, quer do passado mais remoto,
quer de um passado mais próximo187.
Desta afirmação não poderá, porém, concluir-se que o recurso à reparação como
reacção ao crime faz dos sistemas de justiça penal assim orientados, em um passado
mais ou menos longínquo, sistemas restaurativos, necessariamente mais humanos e

185
Douglas SYLVESTER, últ. ob. cit., p. 475 a 481. O Autor considera o modo dinâmico como se utiliza
a história e afirma que os cultores da justiça restaurativa recorreram largamente a uma consideração do
passado orientada por dois objectivos distintos mas complementares: “(i) a demonstração de que a forma
como as coisas hoje são não é a forma como sempre foram; e (ii) a demonstração de que a forma como as
coisas costumavam ser era melhor”.
186
O termo “restorative justice” terá sido usado pela primeira vez apenas em 1977, num artigo da autoria
de Albert EGLASH e intitulado “Beyond Restitution: Creative Restitution”, Restitution in Criminal
Justice, Eds. Joe HUDSON e Burt GALAWAY, Lexington: Lexington Books: 1977, p. 91-2. Concorda-
se com o entendimento de Daniel VAN NESS e de Karen STRONG (Restoring Justice – An Introduction
to Restorative Justice, 4.ª Edição, Cincinnati: Anderson Publishing: 2010, p. 21 ss) de que
particularmente interessante neste estudo é a forma como o Autor distingue três “modalidades” da justiça
criminal: a justiça retributiva, que se basearia na punição; a justiça distributiva, baseada numa intervenção
terapêutica sobre o agente; a justiça restaurativa, baseada na reparação. Enquanto as primeiras se
centrariam no agente, recusariam a participação da vítima no processo e esperariam do agente uma
participação meramente passiva, a última – a justiça restaurativa – centrar-se-ia nos danos causados pelo
comportamento do agente e suporia um envolvimento activo do agente e da vítima na reparação e
reabilitação.
187
As vantagens associadas à reparação dos danos causados pelo crime foram objecto de análise em
vários encontros científicos internacionais no final do século XIX e no início do século XX (assim, v.g.,
no Congresso de Estocolmo de 1878, no Congresso de Roma de 1885, no Congresso de São Petersburgo
de 1890, no Congresso de Kristiansand, Noruega, em 1891 e no Congresso de Bruxelas de 1900). Stephen
SCHAFER, “Victim compensation and responsability”, Southern California Law Review, 1970, n.º 43, p.
55 ss, analisa as conclusões obtidas em alguns destes encontros e sublinha quer a rejeição que então se fez
da escassa atenção dada pelo sistema penal aos danos sofridos pelas vítimas, quer a necessidade de se
encontrarem mecanismos que permitissem a sua reparação. Esta linha de pensamento é, de resto, coerente
com ideia antes defendidas por FERRI ou GAROFALO, que destacaram as vantagens de impor ao
criminoso a necessidade de reparar o prejuízo que causou, assim como evidenciaram a responsabilidade
do próprio Estado na protecção dos direitos das vítimas.

108
mais atentos às necessidades dos envolvidos no conflito jurídico-penal. Com efeito,
quando os cultores da justiça restaurativa afirmam que a reparação existia como forma
de evitar a vingança de sangue, reconhecem de forma implícita as consequências
negativas que poderiam ocorrer sempre que aquela reparação não fosse, por razões
várias, possível. Para além disso, todos aqueles casos em que a reparação in pecunia se
assumisse como draconiana, por ultrapassar em muito o valor do prejuízo causado à
vítima, suscitam fundadas dúvidas sobre o carácter restaurativo daquela sanção,
sobrelevando antes a sua dimensão largamente punitiva.
Por outro lado, a confusão entre a história da reparação e a história da justiça
restaurativa radica, de algum modo, na confusão entre dois conceitos que não são
inteiramente coincidentes. O paradigma restaurativo acolheu e absorveu, de algum
modo, o prévio movimento vitimológico em prol da reabilitação da reparação como
reacção ao crime, mas não se confunde com ele. Dito de forma mais simples: ainda que
a reparação dos danos sofridos pela vítima seja uma ideia central do pensamento
restaurativo, este assume uma dimensão muito mais vasta, configurando-se como um
sistema de resposta à criminalidade orientado também por finalidades outras e,
sobretudo, regido por uma ideia muito própria quanto ao procedimento188 (participado,
não impositivo e pacificador) através do qual os objectivos pretendidos devem ser
atingidos. O que equivale a afirmar que uma reparação obtida através de um processo
coactivo e desrespeitador dos direitos do agente da infracção, por exemplo, não será
inteiramente restaurativa. O que equivale também a afirmar que se podem atingir
resultados restaurativos sem que ocorra uma reparação tal como tradicionalmente era
concebida (ou seja, uma reparação susceptível de quantificação in pecunia).

2.3. Um outro olhar, não já para o passado mas antes para os olhares sobre o
passado

Aquilo que com esta reflexão definitivamente se não pretende é apresentar


argumentos que favoreçam qualquer uma das duas “teses históricas” antagónicas189.

188
A conhecida definição que Tony MARSHALL (“The evolution of Restorative Justice in Britain”,
European Journal on Criminal Policy and Research, 4, 1996, p. 37) dá da justiça restaurativa enfatiza,
precisamente, esse aspecto procedimental.
189
A esse propósito, Martin WRIGHT (Editorial, Newsletter of the European Forum for Restorative
Justice, Março de 2007, vol. 8, issue 1, p. 1) afirma que “podemos deixar os académicos discutir essa
questão [a questão de saber se historicamente tem predominância a justiça penal ou, pelo contrário, a

109
Crê-se, por um lado, que há um certo grau de verdade em cada uma destas duas visões
da história em confronto e julga-se, por outro lado, que a análise histórica supõe uma
autonomia que é com grande probabilidade prejudicada quando feita no âmbito de
reflexão sobre distintos paradigmas, em que para a prova do ponto de vista que a cada
um mais interessa se encontram facilmente factos, ainda que isolados ou desligados de
um contexto. É, pois, essa instrumentalização da historiografia que aqui se não pretende
cultivar190.
Assim, o que neste ponto se visa sublinhar é que talvez as duas concepções
referidas percam pela sua pretensão de exclusividade ou de predominância e, sobretudo,
percam quando do passado pretendem retirar ilações quanto ao presente e ao futuro.
Dito da forma mais simples: talvez em comunidades onde inexistisse uma centralização
e uma publicização do poder punitivo os modelos de reacção ao crime não tenham sido
tão humanistas e tão vocacionados para a reconciliação e a reparação como nos fazem
crer alguns cultores da justiça restaurativa, mas talvez também não tenham sido sempre
tão desumanos, tão cruéis e tão desigualitários como ensinam alguns cultores da
“história clássica da justiça penal”. Em vez de se destacar apenas a reparação ou apenas
a mais violenta retribuição, talvez seja legítimo supor que nesses períodos, com
flutuações condicionadas pelo próprio tempo e também pelo espaço, terá sido possível
encontrar soluções justas (no sentido de não desproporcionadas face à gravidade da
conduta e face ao juízo de censura de que o agente seria merecedor) e humanas (no
sentido em que a reparação do dano precludiria a condenação à morte, às penas
corporais ou infamantes) para alguns delitos. Em muitos outros casos, ter-se-ão
encontrado soluções nem justas nem humanas191. E se é legítimo procurar, num
momento histórico, uma determinada tendência de reacção ao crime, afirmando-se por
exemplo a predominância da reparação ou da retribuição, o que já se deve recusar é que
para se fazer tal análise se elejam apenas determinados factos, permanecendo os

restaurativa]; o que é certo é que [a justiça restaurativa] foi largamente usada durante um longo período
de tempo, apesar de não se poder negar que a punição também tem uma longa história”.
190
Ainda que, como antes se sublinhou, se aceite uma certa simplificação da complexidade histórica, na
medida em que tal simplificação persiga objectivos pedagógicos e de esclarecimento. O que já não se
compreende tão bem é que o paradigma restaurativo careça, para a sua legitimação actual, de apresentar
raízes históricas em um período muito remoto, que se pretende apresentar como exemplar sob o ponto de
vista do modelo de reacção ao crime. Os fundamentos legitimadores do pensamento restaurativo deverão
encontrar-se, se bem se vê o problema, antes em um “dever ser” que pode hoje e no futuro devir um “ser”.
191
Não se desconhecem as críticas possíveis à formulação de juízos actuais de justiça e humanidade
relativamente a factos passados. Sabendo que estes conceitos são datados, sobretudo o de humanidade no
sancionamento penal, assumem-se os riscos inerentes a todos os olhares para o passado com os olhos do
presente por se julgar que uma tal análise, desde que conhecida esta sua limitação, comporta ainda
alguma utilidade.

110
restantes na obscuridade, de modo a dar-se a determinada tendência punitiva uma
aparência de exclusividade ou de enorme predominância.
Rejeitam-se, deste modo, quer as tentativas monopolistas de enquadramento da
história em concepções actuais sobre o modelo desejado de reacção ao crime, quer a
posterior utilização de argumentos históricos assim construídos como formas de
legitimação desse modelo que se pretende defender192.
Assumida esta posição e feita esta advertência, deve questionar-se a utilidade
das várias janelas para o passado que se foram abrindo. O interesse de tal reflexão
parece ser essencialmente um: demonstrar que visões da história de tal modo
divergentes podem radicar na eleição exclusiva e tendenciosa de determinados factos
históricos, mas que não radicarão apenas nisso. O essencial será, em última análise, a
interpretação e a valoração que desses factos históricos é feita.
Ora, é essa cisão em torno dos valores que se pretende fazer sobressair com
estes dois olhares para o passado: aqueles que saúdam o fortalecimento do Estado
punitivo, fazem-no porque acreditam que com ele se veio tornar possível a consagração
de princípios estruturantes de um modelo humanista de reacção ao crime. A forma como
alguns cultores da justiça restaurativa olham para a história parece indiciar uma
divergência quanto a esses valores ou quanto aos melhores modos de os atingir. Quando
se elogia o facto de, durante a Alta Idade Média, existir uma lei “viva, criativa e
adequada às necessidades humanas”, parece revelar-se um escasso entusiasmo face ao
posterior princípio da legalidade, que tem como fundamento a igualdade de todos
perante uma mesma lei geral e abstracta. E quando se valora de forma muito positiva o
facto de os intervenientes no conflito o resolverem por si próprios, são princípios
processuais tão relevantes como os da oficialidade e o da legalidade que entram em
crise. Por outro lado, o entusiasmo revelado pelo enorme âmbito de aplicação da
reparação (e, sobretudo, pela reparação de cariz exclusivamente patrimonial cujo relevo
durante os tempos mais recuados da Idade Média é sublinhado) indicia uma

192
Sobre a relação entre o direito e a história, cfr. ainda a reflexão de Ana GAUDÊNCIO que, no
contexto de uma análise do pensamento de Castanheira Neves, afirma que “se o direito surge para dar
resposta a um problema universal, o da coexistência/convivência humana, as soluções apresentadas para a
resolução desse problema hão-de ser historicamente contingentes. O direito é condicionado pela evolução
histórica e, simultaneamente, condiciona-a”. A Autora acaba, todavia, por concluir que apesar da
influência recíproca entre a história e o direito, “o direito não há-de ser mero reflexo da história, nem um
seu mero instrumento” (“Do historicismo materialista à historicidade da sociedade aberta: poderá o
direito ser reflexo ou instrumento da história?”, Ars Ivdicandi, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
António Castanheira Neves, Stvdia Jvridica 90, Vol. I, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra:
Coimbra Editora, 2008, ps. 516-7, p. 549).

111
compreensão sobre a própria questão dos fins das penas que, reconhecidamente, não é
indiscutível193: se tal entendimento parece problemático à luz do pensamento da
retribuição, também existem dificuldades face às exigências de prevenção, sobretudo no
que respeita à criminalidade mais grave.
É precisamente aquilo que estes distintos olhares sobre o passado revelam sobre
os modos de olhar no presente que com a reflexão pretérita se pretende destacar. E, ao
destacá-lo, estabeleça-se desde já uma ponte com aquela que constituirá parte da
reflexão que a seguir se encetará: em que medida são (in)conciliáveis os valores
estruturantes do sistema penal “tradicional” com os valores essenciais revelados pelo
paradigma restaurativo? Será essa divergência tão intransponível que a eleição de um
daqueles paradigmas significa necessariamente a derrocada do outro?
Finalmente, do olhar esboçado sobre os distintos olhares para o passado resulta
uma outra ideia, que se crê central, essa sim, na perspectiva metodológica com que se
pretende um estudo – este estudo ou outro estudo – sobre propostas que querem ser
inovadoras no tratamento de conflitos sociais. Essa é uma ideia a que se pode chamar de
transitoriedade194 ou de ausência de definitividade195 e dela decorre a imposição de um
certo desapego a compreensões que, no nosso tempo e no nosso espaço, se tendem a
julgar inatacáveis e que com frequência se protegem do questionamento sob o manto da
designação “conquista civilizacional”196. Esta é, compreende-se, bem, uma afirmação

193
É sabido – e não se pretende fazer nesta sede qualquer valoração de tal entendimento – que a
composição pecuniária como forma de lidar com o desvalor causado pelo cometimento do crime suscita
resistências de vária ordem, em regra relacionadas com a objecção de que permitiria a alguns a compra de
uma solução para os seus delitos. Autores como CARBASSE, que refere o exemplo dos ABKHAZE do
Cáucaso, que “se recusavam a fazer negócio com o sangue dos seus irmãos”, e como António Manuel de
ALMEIDA COSTA, que refere a carga negativa que a composição pecuniária por vezes assumiu,
mencionando “o carácter infamante da renúncia ao exercício da vingança”, dão voz a algumas vertentes
dessa rejeição (apud Cláudia SANTOS, O crime de colarinho branco cit., p. 21).
194
A impossibilidade de dissociar um certo direito penal de um certo espaço e de um certo tempo
constitui objecto da reflexão de Américo TAIPA DE CARVALHO, “Condicionalidade Sócio-Cultural
do Direito Penal. Análise Histórica. Sentido e Limites”, cit. p. 1039 ss.
195
A ideia exposta aproxima-se do explicado por José de FARIA COSTA relativamente ao carácter não
estático do direito penal. O Autor afirma que o direito penal “ não se remete a uma fossilização
dogmática, procurando, sempre e mais, responder aos desafios que lhe vão sendo colocados pela
contemporaneidade”. E esclarece que “é este constante fluir que tem que ser percebido, não como algo
degenerativo que torne a ciência do direito penal insusceptível de apreensão e captação metódica mas, ao
invés, como um dado em relação ao qual devem ser aperfeiçoados os instrumentos de análise e
compreensão. A mutabilidade em si mesma e, fundamentalmente, os seus patamares de variação, devem
ser apercebidos como uma outra qualquer qualidade, certamente específica, que reivindica para si um
modo de olhar diferente” (in Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta iuris poenalis), 2.ª
edição, Coimbra Editora: 2009, p. 207).
196
É essa representação da possibilidade de mutação mesmo de um modelo que em determinado contexto
se julga o melhor que se afasta da afirmação feita por Luís ARROYO ZAPATERO de que
“acreditávamos que tínhamos chegado ao fim da História, no sentido de Fukuyama”. Mas o Autor
também reconhece, depois, que, afinal, “nos encontramos perante um novo solo e perante novos enfoques

112
perigosa e que pode ser sujeita a utilizações indevidas. Esclareça-se, portanto, que com
ela se não pretende relativizar em absoluto a relevância e a indispensabilidade de tais
conquistas no sentido da humanização do modelo de reacção ao crime. Muito pelo
contrário. O que se pretende significar é que em nenhum momento se pode deixar de

metodológicos”, acabando por se afastar da “convicção arrogante de que os valores estão estabilizados e
garantidos” (in Apresentação de Crítica y justificación del derecho penal en el cambio del siglo, El
análisis crítico de la Escuela de Frankfurt, coord. Arroyo Zapatero/Neumann/Nieto Martín, Colección
Estúdios, Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2003, p. 19). Deve, porém, acrescentar-se
que talvez não possa imputar-se a Francis Fukuyama e à sua obra de 1992, The End of History and The
Last Man, nem a afirmação exacta de que a história chegou ao fim, nem a descoberta de que assim é. Por
um lado, é o próprio Autor que reconhece a influência que colheu sobretudo no pensamento hegeliano,
onde já se admitiria o fim dos processos históricos enquanto processos de mudança, fim esse que seria
associado à conquista pela humanidade de um determinado equilíbrio. Muito depois, a queda do Muro de
Berlim foi apresentada por Fukuyama como símbolo da vitória da democracia liberal ocidental sobre
outros modelos e, nessa medida, como “fim da história”. Porém, uma tal afirmação é susceptível de
distintas interpretações, e o Autor veio posteriormente esclarecer aquela que enjeitava. Assim, na sua obra
Depois dos Neoconservadores – A América na Encruzilhada (Lisboa: Gradiva, 2006, p. 53),
FUKUYAMA rejeita a interpretação da sua ideia do “fim da história” como sendo a afirmação de que “há
uma fome de liberdade em todas as pessoas que inevitavelmente as levará à democracia liberal, e que
vivemos no meio de um movimento transnacional, em aceleração, rumo à democracia liberal”. Pelo
contrário, afirma que “o Fim da História é, em última análise, um argumento sobre modernização. O que
é inicialmente universal não é o desejo de uma democracia liberal, mas o desejo de viver numa sociedade
moderna, com a sua tecnologia, a sua qualidade de vida, cuidados de saúde e acesso a um mundo mais
vasto (…). A democracia liberal é um dos subprodutos deste processo de modernização, algo que se torna
uma aspiração universal apenas ao longo do curso da História. Nunca apresentei como certa uma versão
dura da teoria da modernização, com etapas de desenvolvimento rígidas ou resultados economicamente
determinados. As contingências, as lideranças e as ideias desde sempre constituíram factores de
complicação, que fazem com que os retrocessos sejam possíveis, se não mesmo prováveis”. Com estas
referências, o que aqui se quis significar, de forma incipiente, foi apenas o facto de que se hoje se vivem
tempos de crítica e de desorganização dos modelos (e a justiça restaurativa não deixa de suscitar
problemas, como se verá, a algumas ideias que caracterizam o modelo de justiça herdado do iluminismo
penal), tal não tem de significar nem a renúncia total ao modelo ainda dominante, nem, no pólo oposto, a
renúncia a toda e qualquer possibilidade de mudança. De forma simplificada: se a história não parou e
continua a ser possível a mudança, também não tem de se fazer tábua rasa de todo o conhecimento
anterior, admitindo-se um futuro amputado das descobertas do passado. Assim, se não se acompanha
inteiramente a afirmação de Boaventura de SOUSA SANTOS de que “o futuro prometido pela
modernidade não tem, de facto, futuro”, também se não crê num futuro que prescinda (no âmbito
específico dos modelos de reacção ao crime) de uma certa evolução face àquelas que foram as conquistas
da modernidade. Com interesse para a compreensão do desânimo de SOUSA SANTOS quanto ao estado
de coisas do século passado, veja-se a sua afirmação de que “o século XX ficará na história (ou nas
histórias) como um século infeliz. Alimentado e treinado pelo pai e pela mãe, o andrógino século XIX,
para ser um século-prodígio, revelou-se um jovem frágil, dado às maleitas e aos azares. Aos catorze anos
teve uma doença grave que, tal como a tuberculose e a sífilis de então, demorou a curar e deixou para
sempre um relógio. E tanto que aos trinta e nove anos teve uma fortíssima recaída que o privou de gozar a
pujança própria da meia idade. Apesar de dado por clinicamente curado seis anos depois, tem tido desde
então uma saúde precária e muitos temem uma terceira recaída, certamente mortal. Uma história clínica
tem-nos vindo a convencer (…) que, em vez de um século-prodígio, nos coube um século idiota,
dependente dos pais, incapaz de montar casa própria e ter uma vida autónoma”. Note-se, porém, que
SOUSA SANTOS não deixa de reconhecer, em momento posterior da análise, que “a relação entre o
moderno e o pós-moderno é (…) uma relação contraditória. Não é de ruptura total, como querem alguns,
nem de linear continuidade como querem outros. É uma situação de transição em que há momentos de
ruptura e momentos de continuidade”(cfr. Boaventura de SOUSA SANTOS, Pela Mão de Alice – O
Social e o Político na Pós-Modernidade, Porto: Edições Afrontamento: 1999, 7.ª edição, p. 75, p. 103 e p.
277).

113
inquirir se as soluções actuais são suficientes, quer no seu conteúdo garantista quer na
aplicação que a tal conteúdo acaba por ser dada197.
A razão pela qual se quis enfatizar a mudança na forma como as sociedades vão
lidando com o crime prende-se com a necessidade de se vincar a ideia de que se não
deve rejeitar liminarmente um modelo apenas por ele comportar notas de
desconformidade relativamente ao modelo dominante. Esboçadas algumas
considerações sobre as razões que condicionaram o seu surgimento, partir-se-á para uma
análise da proposta restaurativa já na posse de alguns elementos que contribuem para a
compreensão da sua diversidade. A propósito da justiça restaurativa, Anabela
RODRIGUES afirma que «na sua natureza mais profunda, este modelo revela-se como
o fruto de uma revolução coperniciana de carácter lato sensu abolicionista (A.
Bernardi): a tendencial aceitação da reparação como meio idóneo para produzir efeitos
preventivos, a progressiva atenuação do carácter público do processo, a lenta
reconsideração do papel da pessoa ofendida no processo ou a crescente consciência da
necessidade de um “direito penal moderado”, pelo menos para a criminalidade de
pequena e média gravidade, têm a marca deste movimento»198.
Parece certo que existem vectores de mudança na proposta restaurativa. E quis
deixar-se claro que a mudança é conatural à história da reacção ao crime. Todavia, se
não parece legítimo recusar-se de imediato qualquer proposta apenas por aquilo que ela
comporta de diferente, também se deve combater a tendência contrária de olhar para o
“novo” como se a sua novidade o tornasse necessariamente melhor. Destarte, as cautelas
inerentes ao reconhecimento prévio de um certo grau de novidade impõem que, depois
de se olhar para trás, se olhe para o lado. De seguida, na parte II deste estudo, dever-
se-á olhar para dentro, até para se confirmar (ou não) essa ideia de novidade. “Para
dentro” da proposta restaurativa e “para dentro” da justiça penal dita tradicional, na

197
Nils CHRISTIE vinca esta ideia recorrendo a um exemplo: “não parece certo cortar dedos como forma
de punição, já não. Achávamos [na Noruega] que era aceitável até 1815, altura em que foi removido do
código penal enquanto pena. A mim também não me parece certo que tenhamos 2,800 pessoas na prisão.
Somos livres para decidir qual é o nível de sofrimento que achamos aceitável. Não há orientações,
excepto nos valores” (Crime Control as Industry, Towards Gulags, Western Style, 3.ª ed., revista e com 2
novos capítulos, Londres e Nova Iorque: Routledge, Taylor and Francis Group: 2000, p. 202).
198
Anabela Miranda RODRIGUES, “A propósito da introdução do regime de mediação no processo
penal”, Revista do Ministério Público, ano 27, n.º 105, Jun-Mar 2006, p. 132. Em reflexão, que também
importa referir neste ponto da análise, sobre a origem e a expansão da proposta restaurativa, a Autora
acrescenta que “o êxito e o acolhimento do modelo de justiça inspirado na mediação e na reparação
inserido no sistema penal um pouco por toda a Europa – sirvam de exemplo os sistemas alemão,
austríaco, francês ou belga – resulta de uma convergência de exigências, de um lado, eminentemente
práticas, de racionalização e simplificação do sistema de justiça penal e, de outro lado, de natureza
principial: humanização das respostas penais, igualdade na sua aplicação, desburocratização e
repersonalização dos procedimentos”.

114
medida do necessário à compreensão das suas especificidades e das formas pelas quais
poderão ser conciliadas em um modelo mais amplo de reacção ao crime.

3.   Um olhar para o lado

Concorda-se com o entendimento de autores como Amartya SEN quanto à


importância de se compararem experiências de realização da justiça, o que pressupõe o
conhecimento de outras sociedades e, tendo em conta o objecto deste estudo, a forma
como reagem ao cometimento de crimes. A necessidade de uma reflexão “não
paroquial” é sustentada por SEN com base em vários argumentos, mas também com
alguns limites. Entre os argumentos em favor do juízo comparatístico, sobressaem o de
que a comparação é motivada pelas exigências de objectividade e o de que, na busca de
sentidos para a justiça, mais útil do que encontrar um modelo de “justiça perfeita” será a
descoberta, progressiva e através de comparações, das soluções menos injustas. Entre os
limites, o Autor vinca a ideia de que «dar ouvidos a vozes distantes, que é parte do que
faz Adam Smith com a sua operação do “espectador imparcial”, não requer que
respeitemos todos os argumentos que possam chegar-nos de fora. Estar-se bem disposto
a tomar em consideração um argumento proposto noutras paragens fica muito aquém de
uma predisposição para aceitar todas essas propostas”199.
Existem riscos associados à reflexão comparatística. Aquele porventura mais
óbvio, seguindo-se de perto o pensamento de David DOWNES na apresentação da obra
Penal Systems – A Comparative Approach200, é o de se fazerem castelos de areia a partir
de “montanhas de dados sem uma base clara de análise”, o que se pode associar a uma
certa tendência para o “turismo criminológico” vertida na compilação de elementos
superficiais de sistemas diversos.
 

199
Cfr. Amartya SEN, A Ideia de Justiça, trad. de Nuno Castello-Branco Bastos, Coimbra: Almedina,
2010, p. 532-3.
200
Cfr. David DOWNES, prefácio da obra de Michael CAVADINO/James DIGNAN Penal Systems – A
Comparative Approach, Londres: Sage Publications, 2006, p. viii. Segundo o estudo de CAVADINO e
DIGNAN, orientado para aquilo que designam como “penologia comparatística”, o que sobressai na
contemporaneidade é a convivência de uma pluralidade de estratégias de reacção ao crime com contornos
muito diversificados. Os Autores agrupam-nas em três tendências principais: uma “estratégia A
marcadamente punitiva”; “uma estratégia B” que classificam como “managerialista” e caracterizada pela
transposição para a política criminal de um modelo racional e quase empresarial de gestão de riscos (e
que consideram a “porventura mais poderosa de todas as tendências penais no final do século XX”); e
uma “estratégia C”, orientada para os direitos humanos, na qual se incluem “variantes” como a justiça
restaurativa ou o modelo da não-intervenção (ob. cit., p. 8).

115
3.1. O sentido do olhar para o lado (ou uma explicação sobre os lados para que
se olha)

Na literatura cujo objecto é a justiça restaurativa, para além de ser comum a


ideia antes referida de que esta resposta à criminalidade foi a dominante no passado, é
também frequente a referência à sua predominância contemporânea em sistemas de
justiça considerados mais rudimentares, de que seriam exemplo os vigentes em algumas
comunidades africanas201 ou entre as populações indígenas na Austrália ou na Nova
Zelândia202.
Apesar de se conhecer o interesse que tais práticas suscitaram, sobretudo no final
da década de setenta e na década de oitenta, em muitos defensores do paradigma
restaurativo – que, de algum modo, as apontavam como modelo no qual os sistemas de
justiça penal estaduais poderiam buscar inspiração –, julga-se que tal análise perdeu
hoje grande parte da sua relevância. Por um lado, porque se difundiram por
variadíssimos países inúmeros programas restaurativos externos àquelas tradições,
muitas vezes promovidos ou apoiados pelo próprio Estado. Por outro lado, porque há
alguma razão nas críticas de que tal fascínio por formas rudimentares de realização da
justiça desconhecia a complexidade das sociedades modernas – não sendo, pois, tais
modelos facilmente transponíveis para estas sociedades. Finalmente, porque se crê que,
mais do que impossível, tal transposição é, em larga medida, indesejável, desde logo

201
Segundo Ann SKELTON e Cheryl FRANK, “até o mais atrás que a história oral nos pode levar, as
comunidades africanas viram a justiça através de lentes restaurativas”. As Autoras vincam as semelhanças
entre o modelo de justiça comum nas zonas rurais da África do Sul e as tradições aborígenes em países
como a Nova Zelândia ou o Canadá, que admitem a intervenção dos elementos mais idosos da
comunidade na procura de soluções que permitam uma reparação dos danos ocasionados pelo crime
(“Conferencing in South Africa: Returning to our Future”, Restorative Justice for Juveniles –
Conferencing, Mediation and Circles, Eds. A. Morris/G. Maxwell, Portland: Hart Publishing, 2003, ps.
103-4).
202
A transposição dessas formas de resposta ao crime das comunidades indígenas para círculos mais
vastos é referida por Jim CONSEDINE (Restorative Justice: Healing the Effects of Crime, Nova
Zelândia: Ploughshares Publications, 1995, p. 99), que sublinha o facto de na Nova Zelândia estar a ser
aplicado um novo paradigma de justiça “que é muito tradicional na sua filosofia, ainda que revolucionário
nos seus efeitos. Uma filosofia restaurativa da justiça substituiu a retributiva. Ironicamente, 150 anos
depois da abolição em Aotearoa das tradicionais práticas restaurativas dos maoris, o sistema penal juvenil
está de novo a operar com base na mesma filosofia”. Para uma reflexão sobre modelos de reacção ao
crime distintos do ocidental e que se julga que apresentam algumas vantagens para as vítimas, cfr.
também JOUTSEN, Matti, “Changing victim policy: international dimensions”, Victims and Criminal
Justice, vol. 52-2, Ed. Günther KAISER, Freiburg in Breisgau, Max-Planck-Institut für ausländisches und
internationales Strafrecht, 1991, p. 765 ss.

116
sempre que contender com avanços civilizacionais relacionados com a tutela de direitos
fundamentais203.
Sobretudo por estas razões, não será um olhar para todos os lados aquele que se
procurará esboçar, muito menos um olhar com um interesse tendencialmente
“folclórico” associado ao espanto que suscitam as práticas de reacção ao crime
adoptadas em comunidades particularmente distintas da nossa204. O que pressupõe a
afirmação de que a reflexão comparatística só parece metodologicamente sustentada se
se esclarecer o critério usado para eleger os termos da comparação. E esse critério só
pode ser eleito por referência à finalidade da comparação.
Assim sendo, e à luz do propósito que preside a este estudo – de compreensão do
sentido da justiça restaurativa (do seu fundamento, das suas finalidades e das suas
203
Neste sentido, Kathleen DALY, “Restorative Justice: The Real Story”, Punishment and Society, vol.
4, n.º 1, 2002, p. 55 ss, que aponta o facto de tal “reverência” e “visão romântica” do passado ignorar um
conjunto de práticas a que o moderno pensamento no ocidente “civilizado” se oporia necessariamente,
como sejam as severas punições corporais ou a expulsão do grupo. A Autora relaciona, de resto, a ideia
da predominância das práticas restaurativas no passado e a ideia da subsistência dessa “boa justiça” entre
populações indígenas com base na intenção de fomentar a oposição e o contraste entre uma “má justiça”
(a retributiva) e uma “boa justiça” (a restaurativa) que, tendo sido a primeira forma de responder ao crime
que o Homem encontrou, teria sido depois desalojada pelo fortalecimento do Estado e pelos fenómenos
de colonização. Algumas “comunidades esquecidas” lograriam, porém, preservar aquela “forma superior”
de justiça. Apesar de rejeitar tais ideias, que considera “mitómanas”, DALY compreende o seu
surgimento e afirma que não há nelas “má fé”: os defensores do movimento restaurativo “estão a tentar
introduzir uma ideia na arena política e judiciária e isso pode impor a utilização de uma oposição simples
entre a boa e a má justiça, juntamente com um mito original”. O que já não aceita é a homogeneização
dessas formas de realização da justiça em várias sociedades que considera pré-modernas, as quais pouco
teriam em comum; afirma, com BLAGG e CAIN, que se deu uma “apropriação de práticas de realização
da justiça indígena” com o objectivo de fortalecer determinadas posições pró-movimento restaurativo.
Pode, todavia, ir-se ainda mais longe no cepticismo quanto a estas práticas alegadamente inspiradas em
sistemas de justiça ancestrais: autores como Harry BLAGG – que fez previamente uma análise da forma
como na Austrália foram aplicadas, até meados dos anos noventa, as “shaming conferences” e outras
figuras “revivalistas”, considerando-as irrelevantes ou mesmo, em alguns casos, perigosas para os
interesses dos membros da população indígena – rejeitam as vantagens de uma sua importação pelo
sistema penal, perguntando mesmo aquele Autor se não estaremos a sublimar os valores culturais
daqueles povos “apenas para preencher a nossa própria nostalgia nestes tempos de pessimismo e de
melancolia” (cfr. Harry BLAGG, “Restorative visions and restorative justice practices: conferencing,
ceremony and reconciliation in Australia”, Current Issues in Criminal Justice, vol. 10, n.º 1, 1998, p. 12).
Em outro estudo, BLAGG, depois de reconhecer que os aborígenes da Austrália estão entre as
comunidades com maiores níveis de encarceramento do mundo, manifesta as suas dúvidas quanto à
suficiência da adopção de procedimentos restaurativos, considerando que estes têm desviado a atenção
das questões, mais relevantes, das suas “privações, crises e aspirações” (“Aboriginal youth and restorative
justice: critical notes from the australian frontier”, Restorative Justice for Juveniles – Conferencing,
Mediation and Circles, Eds. Allison Morris/Gabrielle Maxwell, Portland: Hart Publishing, 2003, p. 227
ss).
204
O que aqui também se pretende significar é que se concorda com a crítica feita por Adam
CRAWFORD a uma metodologia de “coleccionador de borboletas” adoptada em vários estudos sobre a
justiça restaurativa. Ela consiste na eleição de exemplos exóticos de práticas restaurativas, que são
retirados do seu contexto espácio-temporal, despojados de eventuais aspectos negativos, e depois
expostos com o intuito de ilustrar e promover determinadas orientações político-criminais, como se as
mesmas fossem oriundas “das selvas da Papua Nova Guiné” (Adam CRAWFORD, “The state,
community and restorative justice: heresy, nostalgia and butterfly collecting”, in Restorative Justice and
the Law, Ed. Lode WALGRAVE, Devon: Willan Publishing, 2002, p. 111).

117
práticas) –, o que se julga metodologicamente útil é a ponderação das diferenças mais
essenciais205 entre os países do sistema dito europeu continental e os países anglo-
saxónicos ou de influência anglo saxónica, sobretudo a dois níveis: em primeiro lugar, a
forma como se concebe a relação entre a justiça penal e a proposta restaurativa e o
modo como esta é definida; em um segundo plano – que é, em certa medida,
consequência do primeiro – a distância entre as várias práticas restaurativas
conhecidas nos países anglo-saxónicos por oposição à quase hegemonia da mediação
penal enquanto instrumento da justiça restaurativa no sistema europeu continental.
Como ponto de partida para as reflexões seguintes, o que parece poder afirmar-
se com alguma segurança é, nos países anglo-saxónicos, a existência de uma
contraposição (quer conceptual, quer no que respeita ao modo de aplicação) mais segura
entre a justiça penal e a justiça restaurativa e, por outro lado, um campo particularmente
fértil para práticas restaurativas com diversas características. Esses países acabaram,
assim, por assumir certo pioneirismo e certa predominância, quer na implementação de
programas restaurativos, quer na elaboração teórica sobre a justiça restaurativa que
tendeu a acompanhá-los206.
As razões para tal predominância são várias e procurar-se-á elencar, em
momento posterior, aquelas que parecem mais relevantes. Sublinhem-se, porém e desde
já, a inexistência de um pensamento dogmático-penal com o grau de complexidade do

205
Não se desconhece que, sobretudo no direito processual penal – onde a contraposição entre os dois
sistemas era mais evidente –, as diferenças têm vindo a esbater-se. Neste sentido, Jorge de FIGUEIREDO
DIAS afirma que “nas últimas décadas passos decisivos têm sido dados no sentido de uma sua
aproximação”. A título de exemplo, refere-se a recepção, no sistema anglo-saxónico da “figura e a função
de um Ministério Público politicamente autónomo e processualmente objectivo, apenas interessado na
descoberta da verdade material e na realização da justiça do caso”. Por outro lado, a influência no sistema
europeu continental de institutos associados ao modelo anglo-saxónico é também clara (porventura, ainda
mais): «princípios e institutos muito próximos do processo penal anglo-americano vêm encontrando
acolhimento na doutrina, nas codificações mais recentes, e sobretudo na “prática” do processo penal de
modelo europeu continental: desde uma realização mais cabal do princípio acusatório a uma mais larga
aceitação do princípio da oportunidade do exercício da acção penal; desde uma tendência para a
realização processual possível da “igualdade de armas” à reconformação mais adversarial do modelo da
audiência; desde a aceitação do princípio do fair trial à prática, limitada embora, da plea bargaining» (in
“O processo penal português: problemas e prospectivas”, Que Futuro para o Direito Processual Penal?,
coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO,
Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 807). De forma muito crítica quanto à influência anglo-
saxónica no processo penal alemão, vd., a título de exemplo, Barbara HUBER, “Ultimas tendencias en
materia de negociaciones en el processo penal alemán”, Revista Penal, n.º 22, Julho de 2008, p. 43 ss.
206
Jacques FAGET refere-se a esta “predominância” anglo-saxónica no que respeita à justiça restaurativa
e relaciona-a com uma certa”ignorância”, em França, quer do conceito, quer das práticas. Apesar de os
franceses conhecerem a mediação penal, o Autor considera que ela “colide com as fundações de um
sistema legal dominado pelo culto da lei e estruturado de um modo vertical” («The French phantoms of
restorative justice: the institutionalization of “penal mediation”», Institutionalizing Restorative Justice,
Eds. I. Aertsen/T. Daems/L. Robert, Devon: Willan Publishing, 2006, ps. 151 e 164.

118
europeu continental e o menor relevo atribuído à teoria do delito207 ou tenha-se em
conta a aceitação de uma promoção processual não orientada por uma busca da “justiça
absoluta” e, por isso, mais aberta às soluções de oportunidade e a possibilidades de
negociação208. E acrescente-se a estas grandes linhas distintivas dos dois sistemas a
ideia de que o juiz anglo-saxónico tende a procurar uma solução orientando-se em
primeira linha “para uma solução justa do caso, em que se tenham em consideração os
diferentes interesses conflituantes”, enquanto “para o juiz continental as categorias,
subcategorias e regras do sistema tradicional do delito aparecem, pelo contrário,
sobretudo como uma técnica de justificação de decisões”209.

207
Veja-se, sob este enfoque, a análise de George FLETCHER da dogmática jurídico-penal alemã,
partindo o Autor da interrogação sobre as razões pelas quais “alguns sistemas jurídicos mostravam uma
inclinação para o pensamento filosófico, sistemático, e outros, pelo contrário, não”. Segundo o Autor, “o
que é seguro é que o mundo da Dogmática jurídico-penal apresenta-se completamente diferente consoante
se contemple a partir do ponto de vista do círculo jurídico americano ou do alemão”. Entre os países em
que se perfilha aquele ponto de vista assumido na dogmática penal alemã contam-se, segundo o Autor,
para além da Alemanha, um primeiro círculo de “países católico-romanos (…) que levaram a peito a
dogmática jurídico-penal alemã. Entre eles estão a Espanha, Portugal, a Itália e toda a América Latina
(…) Sempre que um investigador alemão do direito penal se encontra com um jurista em Buenos Aires,
Lisboa ou Palermo, podem manter facilmente, em alemão ou na língua local (…), uma discussão sobre a
última doutrina desenvolvida na ciência alemã” (“La dogmática jurídico-penal alemana vista desde
fuera”, La Ciencia del Derecho Penal ante el Nuevo Milenio, coord. da versão alemã:
Eser/Hassemer/Burkhardt/; coord. da versão espanhola: Muñoz Conde, Valencia: Tirant lo Blanch, 2004,
ps. 256-258). FLETCHER desenvolve, no seu estudo, alguns dos principais aspectos de dissonância entre
a ciência penal alemã dominante neste “grupo nuclear de países” e o pensamento do direito penal nos
países anglo-saxónicos. E conclui com a opinião, merecedora de reflexão, segundo a qual “no século XX,
nós, os penalistas, parecemos mais sacerdotes de uma comunidade de fiéis, tratando de preservar-nos das
influências das outras crenças, ou de outros sistemas jurídicos. No próximo século XXI daremos passos
seguros em direcção a uma dogmática comum, pensada para além de todos os nossos preconceitos
nacionais” (ob. cit., p. 277).
208
Para uma análise da forma como o direito processual penal português está indissoluvelmente ligado ao
direito constitucional (e em moldes que pressupõem uma estrutura acusatória mas integrada por um
princípio da investigação que não é inteiramente coincidente com a opção anglo-saxónica), cfr. José de
FARIA COSTA, “Um olhar cruzado entre a Constituição e o Processo Penal”, in A Justiça nos dois lados
do Atlântico. Teoria e prática do processo criminal em Portugal e nos Estados Unidos da América,
Lisboa: Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 1998, p. 187 ss. Sobre o modo como a
admissão dos juízos de oportunidade e o instituto da plea bargaining facilitaram a aplicação das práticas
restaurativas nos países anglo-saxónicos, cfr. Luis Gordillo SANTANA, La justicia restaurativa y la
mediación penal, Madrid: Iustel, 2007, p. 264 ss.
209
Cfr. Jesus-María SILVA SÁNCHEZ (“Retos científicos y retos políticos de la ciência del Derecho
Penal”, Crítica y justificación del derecho penal en el cambio del siglo, El análisis crítico de la Escuela
de Frankfurt, coord. Arroyo Zapatero/Neumann/Nieto Martín, Colección Estúdios, Ediciones de la
Universidad de Castilla-La Mancha, 2003, ps. 31-4). Com relevo para o objecto desta análise, SILVA-
SÁNCHEZ distingue as diversas “fontes de legitimação” das decisões do juiz continental e do juiz anglo-
saxónico: “a derivação da lei (classicamente a subsunção silogística) no caso do juiz continental; a
razoabilidade da resolução do conflito, no caso do juiz anglo-saxónico”. Cumpre reiterar que esta
tradicional orientação do juiz anglo-saxónico para a busca da melhor solução para o caso concreto sem o
arrimo de uma vinculação à lei (e sem uma teoria do delito estruturada em moldes semelhantes ao que
sucede no sistema europeu continental) ajuda em muito a compreender o pioneirismo e a maior expansão
da justiça restaurativa nos países de tradição anglo-saxónica, assunto que se retomará em momento
posterior. Deve também acrescentar-se que Autor reconhece, porém, que mesmo nos países do sistema
europeu continental, nem sempre o problema é resolvido em função das regras de imputação da teoria do
delito, surgindo estas apenas em momento posteior como instrumento de fundamentação e legitimação: “a

119
Uma das análises mais interessantes das diferenças entre os dois modos olhar
para o direito consoante se considere o juiz vinculado sobretudo pela lei ou sobretudo
pelos precedentes continua a ser a feita por Alexis de TOCQUEVILLE na sua obra Da
Democracia na América: “o jurista inglês ou americano procura saber o que foi feito; o
francês, o que se devia ter feito; um quer decisões, o outro razões”. Ora, ainda na
opinião do Autor, daqui decorre uma maior estabilidade do sistema anglo-saxónico, na
medida em que “é essa espécie de abnegação que os juristas inglês e americano fazem
do seu próprio juízo que os leva a reportar-se ao dos seus antepassados. É essa espécie
de servidão na qual são obrigados a manter o seu pensamento que confere hábitos mais
tímidos aos seus espíritos e os leva a adoptar tendências mais estáveis do que em
França”.
A partir daqui, poder-se-ia estranhar a maior amplitude da mudança representada
pelo advento das práticas restaurativas nos países anglo-saxónicos210. Todavia, a
inexistência de uma compreensão da legalidade semelhante à que subsistiu nos países
do sistema continental europeu, permite um espaço de criação que também é

inversão da forma lógica que caracteriza a nossa jurisprudência não seria senão uma outra manifestação
de como, na realidade, o sistema aparece muitas vezes antes de mais como um obstáculo que o juiz se
sente obrigado a salvar depois de ter adoptado uma resolução de modo intuitivo, directamente a partir da
lei e dos factos”. Acrescenta-se, todavia, que talvez se anteveja uma mudança no sentido da atribuição
pelo juiz de maior importância às “regras de imputação” logo no momento de “descoberta” da decisão: a
“perda de taxatividade e as deficiências técnicas de muitos textos legais, assim como a crescente
complexidade dos problemas” contribuirão para isso. Já no que respeita ao caso específico dos Estados
Unidos, Elena HIGHTON/Gladys ÁLVAREZ/Carlos GREGORIO (Resolución Alternativa de Litígios
cit., p. 156) apontam ainda razões de outra índole para a expansão dos programas restaurativos: “o
sistema federal constitucional norte-americano facilita a incorporação de práticas de mediação, pois o
governo central apenas tem algumas funções especializadas em matéria de administração da justiça
criminal e cada Estado define o conteúdo dos delitos dentro do seu território, tem a responsabilidade de os
investigar e perseguir e também de castigar os culpados. Em consequência, os poderes locais puderam
ensaiar alternativas e modos informais de combater a criminalidade (…), sem uma lei que assim o
dispusesse. Para além disso, a tradicional prática norte-americana de justiça negociada anterior ao
julgamento através da plea bargaining (…) permitiu que se assimilassem facilmente figuras como a
mediação penal”.
210
Esta é uma afirmação que merece esclarecimento: a maior amplitude que se refere prende-se com o
facto de as práticas restaurativas terem surgido com maior vigor nos países do sistema anglo-saxónico do
que nos outros. Todavia, nesses sistemas anglo-saxónicos, a novidade ou a diferença relacionadas com o
surgimento das práticas restaurativas são menores, na medida em que se conserva uma matriz de
inspiração germânica medieval do processo que lhe reconhece certa disponibilidade em função da
actuação das partes. Bernd SCHÜNEMANN toma o sistema americano como exemplo e refere que “o
procedimento penal norte-americano representa um maior desenvolvimento do processo de partes tomado
da época germânica, no qual a vítima ou a sua família acusavam o autor perante os tribunais do rei”. A
propósito do modelo anglo-saxónico, o Autor acrescenta que neste “chamado adversary system a forma
de produzir a prova depende das partes (…), a supervisão fica a cargo do juiz profissional, mas este não
participa pessoalmente na decisão sobre a culpa e, no caso de condenação pelos jurados (verdict) deve
apenas fixar a pena (sentence)”. Pelo contrário, assinala-se que “o processo penal continental europeu
surgiu a partir do processo inquisitório, no qual o acusado era o único objecto do processo de instrução,
levado a cabo por juízes estaduais” (in “Crisis del procedimiento penal? Marcha triunfal del
procedimiento penal americano sobre el mundo?”, Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal
después del Milénio, Madrid: Editorial Tecnos, 2002, ps. 288-9).

120
reconhecido por Alexis de TOCQUEVILLE: “as nossas leis escritas são frequentemente
difíceis de perceber, mas todos podem interpretá-las; ao invés, não há nada de mais
obscuro do que uma legislação fundada em precedentes (…). O jurista francês não passa
de um sábio, mas o inglês ou o americano parecem-se, de certo modo, com os
sacerdotes do Egipto: tal como estes, são os únicos intérpretes de uma ciência oculta”. E
acrescenta, com particular interesse para o ponto que agora interessa e que se relaciona
com a possibilidade de surgimento e de crescimento de distintas formas de reacção ao
crime: “a legislação inglesa é como uma árvore antiga na qual os juristas foram
enxertando constantemente os rebentos mais estranhos, na esperança de que, dando
frutos diferentes, eles acabassem por confundir pelo menos a sua folhagem com o
tronco venerável que os suporta”211.
Em moldes ainda muito gerais, pensa-se que a compreensão do facto de a
proposta restaurativa ter encontrado terreno mais fértil no sistema anglo-saxónico não
prescinde também de uma reflexão genérica sobre as distintas formas de consideração
do papel do Estado e o particular relevo que o pensamento liberal terá assumido naquele
sistema e não já, pelo menos nos mesmos moldes, nos países da Europa continental.
Como nota António HESPANHA, “nascido na Alemanha, um ambiente cultural e social
pouco tocado pelo liberalismo anglo-saxónico, o estadualismo pós-liberal abandona o
imaginário da mão invisível, realçando, pelo contrário, a necessidade de intervenção
activa do Estado na prossecução da harmonia social e na realização do bem público”212.
Assim, o diverso modo de conceber a relação entre o papel do Estado e a
liberdade dos cidadãos no sistema anglo-saxónico – uma concepção que tende a
restringir o espaço de intervenção do Estado e a expandir o espaço de liberdade dos
cidadãos na gestão dos seus próprios interesses – é, logo a um primeiro olhar, mais
coerente com uma proposta restaurativa que supõe um retraimento da intervenção
punitiva do Estado e um alargamento do espaço de solução dos conflitos pelos cidadãos
que neles são intervenientes. O que equivale a afirmar, procurando-se a maior
simplificação possível, que, na ponderação feita em cada um dos sistemas daquilo que

211
Alexis de TOCQUEVILLE, Da Democracia na América, prefácio de João Carlos Espada, tradução de
Carlos Oliveira, Estoril: Princípia Editora Lda, 2007, ps. 316-7.
212
António HESPANHA, Guiando a Mão Invisível – Direitos, Estado e Lei no Liberalismo Monárquico
Português, Coimbra: Almedina, 2004, ps. 526-7. O Autor acrescenta, quanto a este estadualismo pós-
liberal nascido na Alemanha, que ele se manifesta «na teoria política, pela explícita recusa do “atomismo
liberal”, dissolvente da solidariedade natural, da busca do interesse público e da ordem social. As ideias
de dirigismo económico, social e político são, agora, as linhas orientadoras do imaginário político e
constitucional (…)». A referência ao pensamento liberal e ao pensamento da solidariedade deverá, porém,
ser alargada em momento posterior deste estudo.

121
deve considerar-se público ou “assunto do Estado” e daquilo que deve considerar-se
privado ou “assunto dos indivíduos”, quanto maior amplitude for dada a este último
termo maior tenderá a ser o campo de aplicação da proposta restaurativa.
Por outro lado, parece ser merecedora de ponderação a relevância do realismo
jurídico moderno, mormente do americano. Sobre este, afirma Luís do VALE que “é
contra o formalismo, assim subrepticiamente infiltrado no mundo jurídico americano,
que reage o realismo jurídico, apregoando uma viragem para o real, para a vida e
actividade dos juízes e dos tribunais”. O Autor resume, ademais e na senda de Carla
Faralli, as características deste realismo jurídico americano nas ideias de “valorização
da mudança em desfavor da estabilidade, no que respeita à realidade jurídica; concepção
do direito, não como um fim, mas como um meio para atingir escopos sociais;
reconhecimento da actividade criativa dos juízes; atitude científica voltada para uma
observação neutral dos factos e crítica dos conceitos jurídicos tradicionais,
designadamente da noção de norma”213.
Esclareça-se, finalmente – e antes de se adentrarem aqueles dois modos de olhar
para o lado – que, na medida em que em momento posterior deste estudo se procurará
justificar o sentido e as funções que a proposta restaurativa deve assumir em um sistema
como o português e se almejará, ainda, ponderar criticamente as suas práticas, o que se
julga dever caber neste espaço – até para se evitarem repetições desnecessárias – será
sobretudo a apresentação sucinta das notas de diversidade que a proposta restaurativa
assume nos países do sistema anglo-saxónico. Ou seja: não se dirá agora “é deste
modo no sistema anglo-saxónico e daquele outro modo no sistema europeu
continental”, porque tal juízo de comparação deverá decorrer do que em momento
posterior se afirmará. Fica, porém, a ressalva de que, por se tratar de um olhar para o
lado (para outro lado), as notas caracterizadoras que se elencarão comportam,
naturalmente, certo grau de desconformidade relativamente ao que temos ou
deveríamos ter nas práticas restaurativas conhecidas no sistema europeu continental.

213
Luís do VALE, “O realismo normativista de Enrico Pattaro (subsídios para uma análise)”, Ars
Ivdicandi, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Stvdia Ivridica 90, vol.
I, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, ps. 1185-7.

122
3.2. A distância entre a justiça penal e a justiça restaurativa nos países anglo-
saxónicos

Encontramos hoje – quer nas análises teóricas de política criminal, quer na


aplicação prática que elas vão conhecendo nos vários sistemas de justiça penal – linhas
de orientação antagónicas sobre a forma como se deve reagir ao crime. Assim, enquanto
surgem propostas – de que é exemplo a justiça restaurativa – alicerçadas na tolerância
face ao crime e na rejeição da privação da liberdade enquanto reacção criminal por
excelência, surgem, no lugar oposto (o lugar lógico, não o espacial), discursos punitivos
fundados na pretensa expansão do fenómeno criminal, na sua maior gravidade e na
necessidade de o combater através de um endurecimento da reacção punitiva
estadual214.
A estes distintos discursos correspondem distintas práticas que, por vezes,
convivem até no mesmo tempo e no mesmo espaço: assim, por exemplo, nos Estados
Unidos, as últimas duas décadas do século vinte foram pano de fundo quer para o
surgimento de variados programas restaurativos que procuraram substituir a punição
pela reparação voluntária dos danos causados às vítimas, quer – como de seguida se
aprofundará – para um alargamento sem precedentes do número das pessoas
condenadas a penas de prisão215.
Ora, o que se julga curioso – e o que merece, também por isso, ser sublinhado –
é que aquela contraposição entre um “modo tolerante” e um “modo securitário” de
reagir ao crime216, se pode ser tendencialmente transposta para determinados espaços

214
Os riscos inerentes a este discurso que toma o crime como algo que é preciso combater e adopta
conceitos como os de “luta” contra o crime ou “repressão do crime”, erradicando o de “colaboração”
foram, há já longa data, sublinhados por Winfried HASSEMER (“El destino de los derechos del
ciudadano en un derecho penal “eficaz”, trad. de Muñoz Conde, Doctrina Penal. Teoria Y Práctica de las
Ciencias Penales, Buenos Aires: ediciones Depalma, 1990, p. 193 ss).
215
Hans BOUTELLIER refere, a este propósito, que “em praticamente todos os países ocidentais,
assistiu-se a um crescimento exponencial do sistema prisional desde os anos oitenta”. Menciona um
aumento de cerca de 500% da população prisional por 100.000 habitantes nos EUA e afirma que, na
Holanda, o número de presos passou de 4.037 para 12.401 entre os anos de 1970 e 2000. Segundo o
Autor, este crescimento da prisão não está relacionado com qualquer convicção da sua eficácia para
melhorar o comportamento dos condenados, sendo antes uma pura forma de incapacitação e de resposta
às exigências de punição. E conclui que “o sistema prisional se expandiu até se tornar um massivo e
aparentemente incontornável elemento de controlo da ordem social” (“The vital context of restorative
justice”, Institutionalizing Restorative Justice, Eds. I. Aertsen/T. Daems/L. Robert, Devon: Willan
Publishing, 2006, p. 28).
216
Loïc WACQUANT compara esta actuação securitária a uma actuação pornográfica, desde logo porque
“é concebida e executada não por ela mesma mas antes com o objectivo expresso de ser exibida e vista
(…): a prioridade absoluta é o espectáculo, no verdadeiro sentido do termo. Por isso, o discurso e a acção
securitários devem ser metodicamente orquestrados, exagerados, dramatizados, até ritualizados. O que
explica que, tal como nos embates carnais que enchem os filmes pornográficos, sejam

123
geográficos – o que levaria a considerar que há partes do mundo onde se reage aos
delitos de forma menos punitiva ou mais punitiva –, pode também ser comprovada
dentro de um mesmo espaço geográfico217.
Escolha-se, para ilustrar o que se acabou de afirmar, o exemplo dos Estados
Unidos: em um mesmo período histórico, desenvolveu-se um novo modelo de reagir ao
crime (a justiça restaurativa) e expandiu-se a intervenção punitiva do Estado, através de
um alargamento da sua área de intervenção, vertida nomeadamente em um muito maior
número de condenações a pena de prisão e a um desligamento da prisão do
cumprimento de quaisquer funções socializadoras218.
Compreender esta realidade é de grande importância para se perspectivar o
modo como, na literatura anglo-saxónica, se procura definir a justiça restaurativa
através de uma contraposição radical com uma justiça penal merecedora das avaliações
mais críticas. Neste contexto, o que se afirma é que a justiça restaurativa não é nem
deve ser aquilo que a justiça penal é: uma resposta ao crime que é desvaliosa para o
agente do crime porque favorece a sua privação de liberdade e não a sua socialização, e
que é desvaliosa para a vítima porque não permite a sua participação e a sua
reparação219. Ora, por se associar aquilo que a justiça penal é àquilo em que ela se

extraordinariamente repetitivos, mecânicos, uniformes e, por isso, marcadamente previsíveis” (in Punir
les Pauvres – Le nouveau gouvernement de l’insécurité sociale, Marselha: Agone, 2004, p. 11).
217
Michael TONRY (“The prospects for institutionalization of restorative justice initiatives in western
countries, The intermediate position of restorative justice: the case of Belgium”, Institutionalizing
Restorative Justice, Ed. I. Aertsen/T. Daems/L. Robert, Devon: Willan Publishing, 2006, p. 1 ss) refere a
forma como as políticas criminais variam consoante os países, dando o exemplo dos Estados Unidos, que
ultrapassam o número de 700 presos por 100.000 pessoas, ou o dos “quatro maiores países escandinavos”,
que têm entre 60/70 presos por 100.000 habitantes. Através de uma análise do aumento ou decréscimo da
criminalidade e do aumento ou decréscimo da prisão, o Autor conclui pela falsidade da afirmação de que
é o crescimento da criminalidade que provoca a expansão da condenação a pena privativa da liberdade.
Relativamente aos Estados Unidos, afirma a variedade dos “contextos penais” e considera que há uma
maior receptividade aos programas restaurativos nos Estados em que se condena menos a penas de prisão
(como o Maine, Minnesota, Washington, Oregon ou Vermont) do que naqueles com maiores índices de
encarceramento (como o Texas, a Califórnia ou Oklahoma).
218
A expansão do encarceramento nos Estados Unidos foi tão clara que deu origem a reflexões sobre o
novo papel do Estado junto das comunidades pobres e minoritárias, precisamente por se julgar que uma
percentagem significativa dos jovens do sexo masculino que as integravam estão presos, havendo que
considerar medidas de apoio às famílias. Sobre o assunto, cfr. PATTILLO, Mary/WEIMAN,
David/WESTERN, Bruce, Imprisoning America: The Social Effects of Mass Incarceration, Nova Iorque:
Russell Sage Foundation, 2004, que partem da ideia de David GARLAND de que “há um ponto em que o
nível de encarceramento é tão grande dentro de certos grupos que os efeitos não são sentidos apenas pelos
indivíduos, mas também por grupos demográficos mais amplos”. Referem-se a uma população prisional
em que “nove em cada dez presos são homens, a maioria tem menos de quarenta anos, os afro-americanos
têm sete vezes mais probabilidade de estar na prisão do que os brancos, e quase todos os reclusos não
dispõem de qualquer escolaridade para além do liceu” (ob. cit., ps. 2 e 3).
219
Aquilo que se quer vincar é a maior facilidade com que a proposta restaurativa se autonomiza
conceptualmente da justiça penal em contextos em que é mais clara a acusação de esquecimento da vítima
ou de desfavorecimento do agente. Dedica-se, no estudo, algum espaço à demonstração do espantoso
crescimento do encarceramento nos EUA durante as últimas décadas ao abrigo de uma política criminal

124
tornou – sobretudo nos Estados Unidos, no último quarto do século passado – e por se
perspectivar esse modelo como o oposto daquilo que a proposta restaurativa quer ser,
adquire relevo a consideração – ainda que sucinta – de alguns traços caracterizadores
dessa justiça penal.
Ponha-se a questão na sua forma mais simples: quer na sua definição, quer nas
suas práticas, a justiça restaurativa, tal como surgiu nos países anglo-saxónicos, foi
decisivamente influenciada por uma certa justiça penal, face à qual pretende ser uma
forma de reacção e, em certo sentido, um lugar oposto220. O que não parece, de resto,
difícil de compreender: semeadas pela criminologia crítica de sessenta as ideias de
tolerância face ao crime, e aprofundados tais ideais pela criminologia radical e pelo
abolicionismo penal sobretudo ao longo dos anos setenta, é um duro revés para tais

de law and order. Não se quer, porém, deixar de sublinhar que, também na perspectiva das vítimas,
parece mais clara, no sistema anglo-saxónico, a contraposição entre uma justiça penal que exclui
amplamente a sua participação, e uma proposta restaurativa que assenta nessa participação constitutiva.
Sobre essa exclusão, cfr., na doutrina portuguesa, Maria Leonor ASSUNÇÃO, “A participação central-
constitutiva da vítima no processo restaurativo – uma ameaça aos fundamentos do direito penal
estadual?”, in Que Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário
(dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra
Editora, 2009, p. 337. Nas palavras da Autora, «o processo penal americano recusa obstinadamente
qualquer abertura, mínima que seja, que possibilite a entrada da vítima como “sujeito” ou “parte” (…). O
argumentário que suporta tal obstinação parece poder reconduzir-se a uma ideia: “quebra de racionalidade
do sistema”. E Maria Leonor ASSUNÇÃO acrescenta, como «factores de quebra de racionalidade do
sistema processual penal trazidos pela participação da vítima a abertura a sentimentos de vingança
privada e o prejuízo para os direitos de defesa, a possibilidade de conflitos com o procurador, a
perturbação do funcionamento do processo e da eficiência na sua resolução a que acresce, ainda, o
entendimento de que a visão da vítima nem sequer representa, necessariamente, a visão comunitária,
sendo que é a “ofensa à comunidade que está em causa com a prática do crime”».
220
Não deixa de ser curioso notar, de resto, como os programas restaurativos começaram por se expandir
apesar de um contexto sócio-político que com frequência lhes era adverso. Neste sentido, Elena
HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos GREGORIO (Resolución Alternativa de Disputas y Sistema
Penal, Buenos Aires, Ad-Hoc: 1998, ps. 17-8) referem a oposição que tais práticas podem merecer
perante uma opinião pública maioritariamente preocupada com a segurança e crente no endurecimento da
repressão penal como forma para a obter: “é certo que os cidadãos se mostram muitas vezes partidários de
uma solução de crescente exercício da autoridade para combater a escalada delituosa, sem sequer se
preocuparem com os axiomas democráticos, os direitos fundamentais (…): pede-se-lhes rapidez, maior
endurecimento e persecução, aumento das penas, menores possibilidades de uma sua flexibilização,
cumprimento efectivo das sanções, etc. Todavia, estudos actuais dão conta de que a sanção penal nem
sempre dissuade e a sua expansão leva aparelhada mais violência”. Nesta senda, sem desvalorizarem a
importância para os cidadãos da segurança, o que os Autores jugam é que ela pode ser perseguida por
outras vias: “é necessário encontrar caminhos para que a comunidade recupere a confiança no sistema
jurídico (…), tenha uma sensação de segurança suficiente e crença na possibilidade de convivência; mas
os caminhos devem ser novos e não sempre mais do mesmo”. Também Alessandro BERNARDI (“La
evolución de la política criminal italiana entre opciones represivas y soluciones minimalistas”, Cahiers de
Défense Sociale, O Direito Penal entre o Abolicionismo e a Tolerância Zero, Homenagem a Louk
Hulsman, 2003, p. 93) considera que as alternativas à resposta punitiva estadual se afirmaram em
“território hostil”. De facto, depois de explicar a associação da ideia de reparação e o advento da
mediação ao pensamento abolicionista, refere a coexistência de tais orientações com o aumento do
recurso à pena de prisão

125
orientações o advento dos objectivos de law and order ou a broken-windows theory221
que sustentam o endurecimento punitivo subsequente. Nesta medida, talvez se possa
reconhecer algum acerto à ideia de Lode WALGRAVE de que a justiça restaurativa é,
ainda, um produto do seu tempo, correspondendo à crescente tomada de consciência da
escalada da punição e da exclusão social que, na sua opinião, conduziriam a “uma
espiral de falta de segurança, desconforto e descontentamento”222.

221
David GARLAND (La Cultura del Control, trad. de Máximo Sozzo, Barcelona: gedisa editorial, 2005,
p. 32) afirma que “a trajectória histórica do controlo do delito na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos nas
últimas três décadas foi quase exactamente o oposto do que se antecipava em 1970”. O exemplo mais
citado de uma teoria que, transposta para a prática, vinca essa oposição, é o da “Broken Windows
Theory”. Esta adquiriu particular importância na medida em que foi escolhida pelos neoconservadores
americanos como símbolo das orientações político-criminais que defendiam. Sob o título “Broken
Windows – The police and neighborhood safety”, George KELLING e James Q. WILSON deram à
estampa na revista Atlantic Magazine, em Março de 1982 (p. 1-9), um pequeníssimo artigo no qual
sustentam o “elevado valor” que os cidadãos atribuem à manutenção da ordem pública, afirmando ser da
polícia o papel “chave” na prossecução desse objectivo. Sustentam a necessidade de um aumento do
policiamento e consideram errada a concentração de esforços essencialmente na criminalidade
considerada grave, vendo antes como “uma tarefa vital a manutenção da ordem em situações precárias”,
até na medida em que entendem que “a embriaguez pública, a prostituição de rua e as exibições
pornográficas podem destruir uma comunidade mais depressa do que qualquer equipa de ladrões
profissionais”. Uma ideia a que atribuem relevância é, ainda, a de que a polícia deve proteger a
comunidade para além dos indivíduos, “mantendo intactas comunidades sem janelas partidas”. No seu
estudo sobre as raízes do neoconservadorismo (e sobre a sua evolução em moldes que tinha deixado de
conseguir apoiar), Francis FUKUYAMA elege precisamente James Q. Wilson como o exemplo de um
“posicionamento neoconservador”, referindo-se aos seus “extensos escritos sobre o crime”, nos quais
“argumentava que era insensato acreditarmos que a política social poderia tratar as alegadas causas
principais do crime como a pobreza e o racismo, e que políticas sensatas de combate ao crime tinham de
lidar com os sintomas atenuantes de curto prazo”. Todavia, FUKUYAMA também reconhece a
dificuldade de uma caracterização mais precisa daquele neoconservadorismo, na medida em que “o
entrelaçar do neoconservadorismo com outros elementos do conservadorismo americano tornou difícil
identificar as posições especificamente neoconservadoras. Os inimigos contemporâneos do
neoconservadorismo enfatizam, exageradamente, a falta de uniformidade de posições que tem prevalecido
no seio do grupo dos que se auto-identificam como neoconservadores desde a década de 1980”. Todavia,
voltando à questão que a este ponto do estudo especificamente interessa, deve notar-se que a forma de
olhar para a questão criminal que se tornou dominante nos Estados Unidos nas últimas duas décadas do
século XX – e que é aqui simbolizada pelo pensamento de James Q. Wilson – não pode, porém, ser
desligada do modo (neo)conservador de considerar a política social. Assim, ainda segundo
FUKUYAMA, “se há um tema que abarca as críticas à política social interna (…), esse tema é o dos
limites da engenharia ou construção social. Os esforços ambiciosos em busca da justiça social,
argumentavam estes autores [neoconservadores], deixaram com frequência as sociedades em pior estado
do que inicialmente, pois ou exigiam uma intervenção estatal maciça que perturbava as relações sociais
orgânicas (por exemplo, transportar de autocarro jovens para outra área que não a da sua residência, para
que estudantes de diferentes raças pudessem ser ensinados em conjunto), ou provocavam consequências
imprevistas (tais como um aumento no número de famílias monoparentais como resultado da previdência
social)” (cfr. Francis FUKUYAMA, Depois dos Neoconservadores – A América na Encruzilhada,
Lisboa: Gradiva, 2006, ps. 26-7, p. 42). A descrença naqueles mecanismos de “engenharia ou construção
social”, se prejudicou o investimento em programas de prevenção da criminalidade relacionados com o
combate à exclusão social, ajuda também a compreender o decaimento da ideia de socialização como
finalidade da pena, com consequências evidentes nas opções atinentes à condenação a pena privativa da
liberdade e, sobretudo, à forma da sua execução.
222
Lode WALGRAVE, Restorative Justice, Self-interest and Responsible Citizenship, Devon: Willan
Publishing, 2008, p. 1.

126
Abra-se um curto parêntesis para deixar claro que esta incoerência (só aparente,
como se quis aclarar) entre a proposta restaurativa e o endurecimento do sistema
punitivo estadual através de uma sua expansão (que atinge quer a criminalização, quer a
punição) não é exclusiva da realidade anglo-saxónica. A partir de uma análise do direito
penal próprio de países da Europa continental, autores como Eduardo CRESPO vincam
a oposição entre uma teoria que advoga a descriminalização e o crescimento das
alternativas à pena de prisão, por um lado, e o recrudescimento punitivo, por outro.
Com particular interesse, o Autor refere no contexto dessas alternativas à prisão a
reparação dos danos causados às vítimas, mas parece considerar que o escasso sucesso
desse propósito está relacionado com «a “utilização” das vítimas para reivindicar o
programa político-criminal maximalista subjacente [àquele recrudescimento punitivo]».
A esta afirmação da utilização das vítimas para reclamarem mais punição (e menos
reparação) adiciona o Autor de imediato uma exclamação que deverá merecer
ponderação em momento posterior deste estudo: «como se o Direito pudesse, com o
castigo, restaurar a “justiça material”»223.
A razão, porém, pela qual aqui se optou por considerar o exemplo anglo-
saxónico prende-se com o facto de essa incoerência ou contradição entre uma proposta
menos punitiva e uma tendência para o alargamento da punição parecer, em países
como os Estados Unidos, exacerbada, quer pelo maior número e maior diversidade de
programas restaurativos, quer pela maior expansão da punição, sobretudo do
encarceramento224.
Compreender a diversidade da justiça restaurativa no sistema anglo-saxónico –
quer do conceito, quer das práticas – supõe, portanto, uma consideração breve desse

223
Eduardo CRESPO, «”Del derecho penal liberal” al “derecho penal del enemigo”, Serta: in memoriam
Alexandri Baratta, cit., p. 1036. A apresentação dos principais números e a ponderação das grandes
tendências da justiça penal espanhola entre a década de oitenta e os primeiros anos do século XXI podem
também ser encontradas no estudo de Luís ARROYO ZAPATERO, “Criminalidad y contexto urbano en
España”, Universitas Vitae – Homenaje a Ruperto Núñez Barbero, Ed. Fernando Alvarez et alia,
Aquilafuente/Ediciones Universidad de Salamanca, 2007, p. 37 ss. Confirma-se, nessa análise (p. 51), um
aumento significativo da população prisional entre 1984 (cerca de 14 mil reclusos) e 2003 (cerca de 56
mil reclusos).
224
Essa expansão da punição nos Estados Unidos, não justificada por necessidades preventivas
relacionadas com um aumento significativo da criminalidade, é objecto da reflexão de Michael TONRY,
para quem “as políticas contemporâneas relativas ao crime e à punição são as mais severas na história da
América e de qualquer país ocidental” (“Crime and punishment in America”, The Handbook of Crime
and Punishment, Ed. Michael Tonry, Oxford University Press: 1998, p. 3). Acrescenta, a partir de uma
análise dos números da criminalidade e do número de arguidos condenados a penas de prisão, que os
últimos vinte e cinco anos do século XX se caracterizaram por um “aumento sem precedentes do número
de pessoas nas prisões” (ob. cit., p. 10).

127
modo de actuação da justiça penal, sobretudo nos Estados Unidos e no final do século
XX, por oposição ao qual a proposta restaurativa pretende afirmar-se.
A adopção de uma política criminal que tem sido apodada de estritamente
retributiva teve como consequência um enorme aumento da população encarcerada –
um aumento que não é apenas enorme em si mesmo, mas que também é enorme porque
parece não corresponder a um aumento significativo da criminalidade225 e porque é
desproporcionadamente centrado nos grupos sociais mais excluídos, sobretudo os afro-
americanos226. Depois de WILSON e de MARTINSON terem apontado a ineficácia da
intervenção ressocializadora e se ter alegado que “o isolamento e a punição”227 eram as
finalidades principais da intervenção penal, a população prisional norte-americana
aumentou, entre 1972 e 2003, cerca de 500%, para um crescimento populacional, no
mesmo período, de apenas cerca de 37%228.

225
E, por sobretudo, trata-se de um aumento do encarceramento que não se explica pela condenação a
pena de prisão de agentes de crimes particularmente graves. Segundo James AUSTIN e John IRWIN (It’s
About Time – America’s Imprisonment Binge, São Francisco: The Wadsworth Contemporary Issues in
Crime and Justice Series, 2.ª edição, 1997, p. 32 ss e p. 54 ss), a maioria dos prisioneiros foi condenada
por crimes “medíocres e patéticos”, a que são alheios quer a violência física quer a causação de danos
patrimoniais graves. O que se julga surpreendente é, porém, essencialmente a comparação entre os
números que comprovam o crescimento das condenações a pena de prisão e os números que certificam a
diminuição dos níveis da criminalidade conhecida. Sobre o assunto, cfr. Steven LEVITT e Stephen
DUBNER (Freakonomics – A Rogue Economist Explores the Hidden Side of Everything, Nova Iorque:
Harper Coller Publishers, 2005, p. 117 ss. A questão tem sido também objecto de reflexão por Autores
europeus, podendo consultar-se, a título de exemplo, Marzio BARBAGLI (“Introduzione. Perché è
diminuita la criminalità negli Stati Uniti?”, in Perché è diminuita la criminalità negli Stati Uniti?,
Bolonha: Il Mulino, 2000, p. 11 ss), que parte de uma ponderação sobre a diferença entre os conceitos de
fear of crime (que associa a um temor pessoal de ser vítima de um crime) e de concern about crime
(definido como uma preocupação social com a criminalidade).
226
Neste sentido, por exemplo, May Lydia YEH, para quem o “a actual orientação retributiva nos Estados
Unidos resultou em um número desproporcionado de afro-americanos condenados à prisão” (“Restorative
justice, affirmative action sentencing legislation and the Canucks: lessons from our northern neighbor”,
Washington University Global Studies Law Review, Vol. 7, n.º 3, 2008, p. 681).
227
Cfr. James Q. WILSON, Thinking about Crime, Nova Iorque: Basic Books, 1975, p. 172.
228
Estes números são apontados por May Lydia YEH (ob. cit., p. 661-2), e resultam de uma análise do
estudo de Marc MAUER, Race to Incarcerate: The Sentencing Project, Nova Iorque: The New Press, 2.ª
edição, 2006. De um número de presos abaixo dos 200 000 em 1972, ter-se-ão atingido os cerca de 1 400
000 em 2003. Afirma-se que, entre 1985 e 2000, ter-se-á inaugurado, em média, um estabelecimento
prisional por semana para fazer face a este extraordinário aumento da população prisional. O Autor
pronuncia-se especificamente sobre a excessiva representação da população afro-americana nas
estatísticas prisionais (ob. cit., p. 130 ss) e sobre a forma como a “war on drugs” contribuiu para esse
facto (ob. cit., p. 157 ss). Olhando para um espectro temporal mais curto, também James AUSTIN e John
IRWIN (It’s About Time – America’s Imprisonment Binge cit., p. 1) dão conta do significativo aumento
dos condenados à prisão nos Estados Unidos: “entre 1980 e 1998, a população prisional aumentou de
329,821 para 1,302,019 – um crescimento de 295 por cento”. O que, ainda segundo os Autores, coloca os
Estados Unidos no topo da lista dos países com mais presos por 100 000 habitantes, tendo passado,
naquele período de tempo, dos 138 para os 461. Os números mais recentes parecem confirmar a tendência
para a expansão do encarceramento nos E.U.A. Segundo Thomas MATHIESEN e Ole Kristian
HJEMDAL (“A new look at victim and offender – an abolicionist approach”, What is Criminology, Eds.
M. Bosworth/C. Hoyle, Oxford: Oxford Univesity Press, 2011, p. 224), em 30 de Junho de 2008 havia 2
396 140 presos nos Estados Unidos, o que significa um crescimento de cerca de 19% desde o final de
2000 (e aproximadamente 789 presos por 100 000 habitantes). Apesar de todos os estudos consultados

128
A preocupação com a segurança em detrimento da orientação para a não
dessocialização faz com que a actuação do sistema punitivo aprofunde a exclusão social
de grande parte dos cidadãos condenados229. Segundo Loïc WACQUANT, «a filosofia
penal hoje dominante nos Estados Unidos pode ser resumida através desta expressão
muito utilizada entre as profissões penitenciárias: “Make prisoners smell like
prisoners”», assim se compreendendo a reintrodução de elementos, ao nível da
execução da pena, ou com o mero intuito de causar sofrimento, ou com um valor
simbólico de humilhação230.
O que se julga surpreendente é, porém, essencialmente a comparação entre os
números que comprovam o crescimento das condenações a pena de prisão nos Estados
Unidos e os números que certificam a diminuição dos níveis da criminalidade conhecida
no mesmo país, pelo menos até ao final do século passado.
Questionando esta diminuição a partir da verificação do incumprimento da
previsão (feita por alguns criminólogos de direita) de que o aumento do crime
provocaria nos Estados Unidos um “verdadeiro banho de sangue” antes do final do
século, Steven LEVITT e Stephen DUBNER justificam esse decréscimo do crime desde
os anos noventa do século passado a partir da verificação da relativa irrelevância do
funcionamento da justiça penal para lograr atingir tal objectivo. A explicação que
encontram é, pelo contrário, sobretudo baseada em um certo desenvolvimento
económico, no crescimento do emprego e em factores de natureza demográfica231.

confirmarem o aumento de presos, os números nem sempre são coincidentes; uma explicação para isso
pode encontrar-se no facto de alguns estudos só se referirem às pessoas presas em cadeias federais ou
estaduais, enquanto outros englobam, ainda, os presos em “local jails”. Assim, por exemplo, Mathiesen e
Hjemdal (ob cit., p. 224) distinguem, no número total de 2 396 140 presos (em Junho de 2008), 1 610 584
pessoas presas em cadeias federais ou estaduais e 785 556 presos em cadeias locais.
229
Loïc WACQUANT, Punir les Pauvres – Le Nouveau Gouvernment de l’ Insécurité Sociale, Marselha,
Agone: 2004, p. 150, dá o exemplo dos sítios na Internet que disponibilizam fotografias e outros
elementos pessoais (como o endereço dos condenados entretanto libertados) de reclusos. O Autor ilustra
esta realidade com o endereço electrónico “corrections offender network”, da administração penitenciária
da Florida – inaugurado em 1998 e que já teria recebido, segundo Wacquant e no momento do seu
estudo, mais de 12 milhões de visitantes – e dá, depois, conta da extrema relutância (comprovada em
vários estudos) dos empregadores americanos em contratarem cidadãos condenados.
230
Loïc WACQUANT (Punir les Pauvres – Le nouveau gouvernement de l’insécurité sociale, Marselha,
Agone: 2004, ps. 198-9) dá os exemplos da “reintrodução dos uniformes listados”, dos “apelos para se
restaurarem os castigos corporais”, o regresso dos “chain gangs” (equipas de prisioneiros que trabalham
com os pés agrilhoados) ou os trabalhos forçados por longos períodos de tempo e sob condições
climatéricas extremas. Ao mesmo tempo, desenvolvem-se sistemas sofisticados de controlo dos reclusos,
cujo aplicação em vários estabelecimentos prisionais é descrita por Sasha ABRAMSKI em American
Furies – Crime, Punishment and Vengeance in the Age of Mass Imprisonment, Boston: Beacon Press
Books, 2007. O Autor (ob. cit., p. 5) refere-se, a esse propósito, ao “fascínio da América pela ciência do
encarceramento”.
231
Cfr. Steven LEVITT e Stephen DUBNER Freakonomics – A Rogue Economist Explores the Hidden
Side of Everything, Harper Coller Publishers: Nova Iorque, 2005, p. 117 ss. Esta análise é corroborada por

129
O que se deve sublinhar – para se compreender, repita-se, quer o surgimento da
proposta restaurativa nos países anglo-saxónicos, quer a sua rápida expansão e a
pluralidade das suas práticas – é, assim, também a expansão da intervenção punitiva
estadual através da justiça penal. Mas uma certa expansão, ou uma expansão portadora
de características epecíficas. Em primeiro lugar, uma intervenção punitiva em que
decaem os ideais de ressocialização e de reparação. Em segundo lugar, uma intervenção
punitiva crescente e feroz que não parece ter sido desencadeada por um qualquer
alarmante crescimento da criminalidade. Em terceiro lugar – e com especial relevo,
segundo se julga –, uma intervenção punitiva que não se crê ter sido a principal
responsável pelo decréscimo da criminalidade que se terá verificado nos Estados Unidos
da América sobretudo na década de noventa do século passado. Em síntese: (I) uma

Loïc WACQUANT (Punir les Pauvres cit., p. 279 ss). O Autor rejeita a afirmação – que classifica como
“neoconservadora” – de que “a baixa contínua da estatística criminal nos Estados Unidos ao longo dos
últimos dez anos seria devida à acção enérgica e inovadora das forças da ordem, depois de terem sido
finalmente libertadas dos tabus ideológicos e das camisas de força legais que as limitavam até então, e
cujo paradigma é a espectacular mudança da situação operada em Nova Iorque pelo Mayor republicano
Rudolph Giuliani”. Pelo contrário, segundo WACQUANT, o certo é que “o decréscimo da violência
criminal em Nova Iorque sucedeu três anos antes da subida ao poder de Giuliani no final de 1993” e “o
refluxo da criminalidade violenta é ainda maior nas cidades que não aplicaram a política nova-iorquina da
tolerância zero, nomeadamente as que optaram por uma orientação diametralmente oposta como Boston,
São Francisco ou São Diego”. Para o Autor, há seis factores, “todos independentes da actividade da
polícia e da justiça, que se combinaram para reduzirem fortemente a incidência dos crimes violentos nas
metrópoles dos Estados Unidos”. Entre esses factores, pode destacar-se, naquele período, “a baixa rápida
do desemprego que explica 30% da queda da criminalidade ao nível nacional”; a “transformação da
economia da droga”, que se estruturou e estabilizou, recorrendo menos à violência; uma alteração
demográfica relacionada com a diminuição das pessoas na faixa etária entre os 18 e os 24 anos,
nomeadamente; um “efeito de aprendizagem denominado pelos criminólogos «síndroma do irmão mais
novo», em virtude do qual as novas gerações de jovens nascidos depois de 1975-1980 se afastaram das
drogas duras e de um estilo de vida perigoso que lhes está associado por rejeitarem o destino macabro que
viram atingir os seus irmãos mais velhos, primos e amigos”. Loïc WACQUANT (ob. cit., p. 288 ss)
desacredita, ainda, o facto de aquela política criminal de tolerância zero ter como suporte uma qualquer
“teoria criminológica cientificamente validada, a famosa broken-window theory”. Segundo o Autor, esta
“teoria” nunca obteve qualquer comprovação empírica depois de ter sido publicada – na revista The
Atlantic Monthly, uma publicação generalista – em um curto texto de nove páginas. Este ponto de vista é
partilhado por Bernard HARCOURT (Illusion of order: the false promise of broken windows policing,
Cambridge: Harvard University Press, 2001, p. 248), que aponta em primeiro lugar a inexistência de
dados empíricos que comprovem a eficácia da política criminal radicada na “broken windows theory”; em
um segundo momento procede à sua crítica teórica para, finalmente, propor alternativas na ponderação do
fenómeno criminal – alternativas que não são, de resto, alheias ao próprio património ideológico
restaurativo, por terem na base o reconhecimento do mal inerente ao crime, mas também do mal da
própria punição, que “pode afectar, positiva ou negativamente, o sujeito da punição”. A perspectiva
inversa fora sustentada por George KELLING e por Catherine COLES (Fixing Broken Windows:
restoring order and reducing crime in our communities, Nova Iorque; Simon & Schuster, 1997), ao que
se julga de forma pouco conseguida, por não se lograr mais do que a descrição de alguns projectos de
intervenção policial ou comunitária cujos resultados se apresentam como positivos. No prefácio, de James
Q.WILSON, continua a sustentar-se que “as pequenas desordens conduzem a desordens cada vez
maiores, e talvez até ao crime” (p. xv). E uma das ideias centrais dos Autores – que não admitem a
existência de um decréscimo da criminalidade – é a da importância de uma maior presença policial nas
comunidades (“fora dos seus carros”) para, com o auxílio dos cidadãos cumpridores, se melhorar a
“qualidade de vida da vizinhança” (ob. cit., p. 6).

130
maior e mais severa intervenção punitiva que não foi justificada por uma criminalidade
maior e (II) uma intervenção punitiva que não foi condicionante de uma criminalidade
menor. Factores estes que, combinados, não deixam de explicar a descrença na resposta
– rectius, nessa resposta – dada pela justiça penal e o surgimento de uma outra resposta,
que se pretende tão diversa que seria até definida como o oposto.

3.3. A pluralidade das práticas restaurativas nos países anglo-saxónicos

É comum na literatura restaurativa a afirmação de que as práticas restaurativas,


que se foram expandindo depois de meados da década de setenta a partir de experiências
pioneiras sobretudo em países anglo-saxónicos, colheram inspiração em modelos de
reacção ao crime já existentes nesses contextos espaciais e reservados a comunidades à
época minoritárias mas com tradições diversas e ancestrais.
Ora, se não se julga que o tema seja merecedor de tratamento detalhado
sobretudo por se não acreditar que haja vantagem ou sequer possibilidade de
transposição de tais práticas para realidades sociais manifestamente diferentes, já se
pode admitir que algumas dessas tradições tenham sido inspiração, de facto, para
programas de reacção ao crime desligados da existência de decisão por um terceiro
dotado de autoridade232.
O surgimento dos programas restaurativos ditos pioneiros foi já objecto, mesmo
na doutrina portuguesa233, de referência e de tratamento, localizando-os na década de
setenta e, sobretudo, nos sistemas de justiça neo-zelandês, australiano e canadiano.

232
Se bem se vê a questão, o cerne da discussão não deveria centrar-se tanto na conveniência e/ou
possibilidade de transposição dessas “práticas ancestrais” distintas da resposta penal contemporânea para
as comunidades ditas “civilizadas”, mas antes na razoabilidade de impor sem mais o modelo de reacção
ao crime dominante nestas sociedades – a justiça penal – a pessoas que fazem parte de grupos
minoritários que não partilham dos valores que fundam aquela intervenção, antes assumindo outros
valores e outras formas de reacção àquilo que definem como crime. Sobre a lacuna democrática que essa
“aplicação cega” da justiça penal pode representar, cfr. Melissa WILLIAMS, “Criminal justice,
democratic fairness and cultural pluralism: the case of aboriginal peoples in Canada”, Buffalo Criminal
Law Review, 2002, vol. 5, p. 451 ss.
233
Sobre o assunto, cfr. Maria Leonor ASSUNÇÃO, “A participação central-constitutiva da vítima no
processo restaurativo – uma ameaça aos fundamentos do direito penal estadual?”, in Que Futuro para o
Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando
Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, ps. 342-350. A Autora refere, ainda,
experiências restaurativas na África do Sul, em Singapura, na Inglaterra e na Irlanda do Norte. Menciona
também alguns afloramentos do pensamento restaurativo, maioritariamente no âmbito da justiça de
menores, na Áustria, Bélgica, Alemanha, Espanha ou Holanda. Refere, porém, que a existência desses
programas “não significa (…) uma rendição, pelo menos incondicional, ao paradigma puro de justiça
restaurativa”, tendo sobretudo em conta o “âmbito limitado quanto aos crimes abrangidos e quanto ao
momento processual em que é admissível a sua utilização”.

131
Ainda que se possam apontar elementos de diversidade aos vários programas (desde
logo quanto ao universo dos seus destinatários, ora menores, ora adultos), ser-lhes-ão
denominadores tendencialmente comuns as ideias de diversão, o relevo atribuído às
especificidades culturais, o reconhecimento da importância da participação dos
familiares e “próximos” do agente e da vítima, a preocupação com a restauração dos
vínculos sociais prejudicados pelo cometimento do crime.
A forma muito sintética pela qual se vai fazer referência a esses instrumentos
restaurativos adoptados sobretudo nos países anglo-saxónicos tem um único propósito,
sob o ponto de vista metodológico: demonstrar a diversidade dessas práticas, por
contraposição à hegemonia quase absoluta de que a mediação penal (que merecerá
reflexão autónoma na parte terceira deste estudo) se vem revestindo sobretudo nos
países do sistema europeu continental.
Um dos instrumentos tipicamente restaurativos que teriam sido inspirados em
práticas de justiça ancestrais ainda vigentes em comunidades indígenas seriam as
conferences. Segundo Kathleen DALY234, porém, esta ideia não corresponde à verdade
histórica. Aquela figura não existiria previamente nas comunidades indígenas neo-
zelandesas, sendo antes uma criação, nos anos oitenta, de um sistema de justiça (ainda
“branco e burocrático”) que entendeu que os grupos familiares dos Maori (denominados
“whanau”235) deveriam participar de algum modo nas tomadas de decisão de que os
agentes criminais maori fossem destinatários. Terá havido, pois, uma busca de
flexibilização do sistema de justiça penal estadual, e de acomodação no seu seio de
elementos culturais minoritários, mas não a simples importação de uma previamente
existente prática indígena que seriam as conferências. Tratar-se-ia, pois, de estabelecer
ex novo um instrumento de realização da justiça culturalmente adequado aos costumes
de grupos minoritários e não de restabelecer um instituto indígena e pré-moderno.
O que hoje parece seguro poder afirmar-se é que essas conferências alastraram,
enquanto práticas restaurativas, surgindo o conceito de “conferencing” acompanhado

234
Cfr. Kathleen DALY, “Restorative Justice: The Real Story”, Punishment and Society, 2002, vol. 4, n.º
1, p. 55 ss.
235
Um dos programas restaurativos cujos destinatários são os maoris neo-zelandeses é o Projecto Te
Whanau Awhina, descrito por Allison MORRIS e Gabrielle MAXWELL (“Restorative Justice in New
Zealand”, Restorative Justice & Criminal Justice – Competing or Reconciliable Paradigms?, Ed. A. Von
Hirsch/J. Roberts/A. Bottoms/K. Roach/M. Schiff, Oxford: Hart Publishing, 2003, p. 260 ss). Neste caso,
para além do agente, dos seus familiares e amigos, o procedimento supõe a participação de três pessoas
com actividade no marae (um centro comunitário associado aos maori), sendo que o mais velho
(kaumatua) assume a direcção das actividades. Não se impõe a participação directa da vítima, apesar de o
objectivo do procedimento ser a confrontação dos agentes com o mal que lhe causaram, assim como com
o mal que causaram a si próprios, às suas famílias e à comunidade maori.

132
por várias denominações, como “family group”, “community” ou “restorative”236. O
que em primeiro lugar as caracteriza, por oposição à mediação vítima-agressor, é a
participação de um número maior de pessoas, ainda que por vezes isso suceda a partir
de uma prévia experiência de mediação, à qual os intervenientes consideram útil fazer
acrescer a participação de pessoas próximas do agente do crime e da sua vítima, que
pretendam dar o seu apoio e prestar o auxílio possível. A estes juntam-se, em alguns
casos, os advogados quer da vítima, quer do agente, e eventualmente profissionais da
assistência social.
Merecedores de uma ponderação autónoma deverão ser os sentencing circles –
descritos, entre outros, também por Martin WRIGHT e relacionados com as
experiências que se dizem restaurativas em algumas partes do Canadá, porque nestes
têm lugar, para além das pessoas antes referidas, também o magistrado do Ministério
Público e o Juiz. Daqui decorre a possibilidade de este procedimento culminar com a
aplicação coerciva de uma sanção ao agente, “inclusivamente a prisão”, já que “como o
juiz está presente, não há qualquer limitação à gravidade dos casos que podem ser assim
tratados”237. Ora, por oposição ao pensamento de Martin WRIGHT, não se julga que
estes sentencing circles possam ser, em rigor, apelidados de procedimentos típicos da
justiça restaurativa, por lhes serem alheias as notas essenciais da voluntariedade da
participação e da finalidade reparadora e não já punitiva. O que se crê é que eles
constituirão ainda forma de administração da justiça penal – mesmo que imbuída de
algumas finalidades restaurativas – e porventura merecedores de algumas críticas238.
Não preside à reflexão, neste ponto, qualquer propósito de descrição detalhada e
crítica de cada uma das várias práticas qualificadas como restaurativas em países que
associamos ao sistema anglo-saxónico. O que se quis vincar foi, antes, a sua pluralidade
e o seu enquadramento em um sistema de reacção ao crime considerado diverso do
sistema dito tradicional (apodado, mesmo, de justiça “diferente” da “justiça
tradicional”). Pelo contrário, nos países do sistema dito europeu continental, assiste-se a

236
Neste sentido, vd. Martin WRIGHT, (“How far have we come”, Restorative Justice and its Relation to
the Criminal Justice System, Actas da Segunda Conferência do European Forum for Victim-Offender
Mediation and Restorative Justice, Bélgica, 2002, p. 91).
237
Cfr., ainda, Martin WRIGHT, últ. ob. cit., p. 92.
238
Apesar de reconhecerem, à época, a falta de estudos sérios sobre os sentencing circles, Jo-Anne
WEMMERS e Marisa CANUTO (Victim’s experiences with, expectations and perceptions of restorative
justice: a critical review of the literature, International Centre for Comparative Criminology, Université
de Montréal/ Policy Centre for Victim Issues/Research and Statistics Division, Department of Justice,
Canadá, 2002, p. 23) referem o “escasso envolvimento da vítima” como principal objecção a estas
práticas.

133
uma preponderância clara da mediação penal enquanto instrumento restaurativo, sendo
que os programas de mediação penal surgem mais articulados com o sistema de justiça
penal tradicional, aparecendo com frequência configurados como formas de diversão
processual penal.
O pioneirismo, a maior diversidade e o maior âmbito das práticas restaurativas
em países como o Canadá, a Austrália ou a Nova Zelândia não podem deixar de ser
referidos no contexto de toda uma outra compreensão dos modos como se pode reagir
ao crime239.
Ora, se não constitui propósito deste estudo analisar as práticas restaurativas
naquele sistema anglo-saxónico, já é seu objecto inarredável a ponderação das
dificuldades e dos limites com que a proposta restaurativa é confrontada por um
conjunto de princípios estruturantes do modo como no sistema europeu continental se
reage ao crime. A referência – brevíssima – àquele sistema anglo-saxónico e às várias
práticas restaurativas que conhece justifica-se, assim, apenas na medida em que se
relaciona com as dificuldades de definição da própria justiça restaurativa (questão sobre
a qual se reflectirá de seguida) e na medida em surge como contraponto dos obstáculos
que a proposta restaurativa enfrenta no sistema europeu continental. Vincando, nessa
medida, precisamente as características deste sistema que se opõem a certas formas de
aprofundamento dos mecanismos restaurativos. Procurar-se-á, em momento posterior,
analisar este segmento problemático, considerando a (in)compatibilidade da justiça
restaurativa com os princípios da culpa, da oficialidade e da legalidade da promoção
processual ou da reserva de juiz.

239
Pablo GALAIN PALERMO, preocupado com esta contraposição entre os dois modelos e a sua
pertinência à ponderação da mediação penal, refere, precisamente, que nos sistemas pertencentes ao
“continental law” existe uma “luta pela legalidade”. E acrescenta que “esta luta pela legalidade no direito
penal material sustentava-se, precisamente, no princípio da legalidade, na culpabilidade pelo acto, na
proporcionalidade entre o injusto e a pena e nas regras de dosimetria da pena. Já no direito penal formal
deve-se mencionar os princípios da não retroactividade, favor rei, in dubio pro reo, nemo tenetur, entre
outros, os quais pretendiam proteger o indivíduo das arbitrariedades do sistema”. Pelo contrário, destaca
nos “sistemas de common law” factores como a existência de “partes verdadeiras enfrentadas
processualmente, cujo poder sobre a essência do litígio e sobre as garantias e princípios permitia a
negociação da solução mais conveniente pelas partes; dispunham, para tanto, do objecto do processo,
aceitavam a culpabilidade sem prova em contrário”. E conclui que “as diferenças entre ambos os sistemas
eram substanciais: enquanto um centrava-se na legalidade, o outro fundava-se sobre fórmulas menos
rígidas (que permitiam soluções do conflito com maior celeridade e custos mais baixos)” (“Mediação
penal como forma alternativa de resolução de conflitos: a construção de um sistema penal sem juízes”, in
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra Editora: 2010, ps.
828-9).

134
Capítulo III
A justiça restaurativa: análise do conceito

1. A delimitação do problema: muitas práticas à procura de uma teoria

O primeiro esclarecimento que se deve fazer quando se inicia uma reflexão


sobre o conceito de justiça restaurativa é o de que ele não existe, pelo menos de forma
relativamente solidificada e pacífica quanto àqueles que seriam os seus elementos
essenciais240. Não será propósito deste estudo procurar definir com precisão um modelo
que alguns apodam de selvagem ou anárquico241. O objectivo será, antes, a procura de
um rumo por entre as várias e muito distintas propostas de definição da justiça
restaurativa. E sabe-se que, ao percorrer este caminho, serão excluídas do conceito de
justiça restaurativa várias notas que vêm sendo apresentadas como essenciais e com as
quais se não concorda.
Ou seja: na incipiente, plural e confusa teoria da justiça restaurativa existem
construções teóricas que serão afastadas – antecipe-se, por exemplo, a rejeição das
correntes do pensamento agrupadas sob a denominação de maximalistas ou aquelas que
trazem a comunidade para o núcleo do modelo. E existem, paralelamente, notas que
parecem essenciais e que não têm vindo a merecer o devido destaque no pensamento
restaurativo.
Por outro lado, estando o conceito de justiça restaurativa a ser construído, com
frequência, por oposição àquela que os seus cultores julgam ser a definição de justiça
penal, um dos problemas que se põe é o de um certo desconhecimento das

240
Vd., a título de exemplo, a opinião de Katherine DOOLIN de que “o conceito de justiça restaurativa é
objecto de intenso debate”, havendo uma “significativa discordância quanto à forma como os conceitos
fundamentais da justiça restaurativa são definidos e usados” [“But what does it mean? Seeking
definitional clarity in restorative justice”, The Journal of Criminal Law, 71 (5), 2007, p. 427]. Elmar
WEITEKAMP, por seu turno, refere-se à justiça restaurativa como um umbrella term, por reconhecer que
ela “significa coisas diferentes, dependendo do país, do estado e da comunidade em que tais programas
[restaurativos] existem” (“Restorative justice: present, prospects and future directions”, Restorative
Justice – Theoretical Foundations, Eds. Elmar Weitekamp/Hans-Jürgen Kerner, Devon: Willan
Publishing, 2002, p. 322).
241
Neste sentido, Leonardo SICA afirma que “mediação e justiça restaurativa são dois conceitos quase
anárquicos, abertos, flexíveis, polissémicos, multifuncionais” (Justiça Restaurativa e Mediação Penal – o
novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime, Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2007, p. 2).
Também Martin WRIGHT enfatiza as dificuldades de definição da justiça restaurativa, recorrendo à
metáfora da “criança em crescimento: logo que os seus pais lhe compram algumas roupas, ela cresceu e
outras são necessárias. Acrescenta-se que “os seus avós, por assim dizer, têm proveniências diversas; e
muitos deles estavam mais relacionados com a prática do que com a teoria” (“How far have we come”,
Restorative Justice and its Relation to the Criminal Justice System, Actas da Segunda Conferência do
European Forum for Victim-Offender Mediation and Restorative Justice, Bélgica, 2002, p. 91).

135
características essenciais dos sistemas penais modernos pelo menos nos países ditos
ocidentais242. Ora, paradoxalmente e como se verá, a rejeição dessa justiça penal (que
poderá já não ser, em alguns casos, a justiça penal que temos) ocorre à custa de uma
proposta de justiça restaurativa que, por se pretender tão ampla que possa substituir
aquela justiça penal, acaba por incorporar as funções desta e por se tornar muito
próxima daquilo que, no início, se enjeitava – é o que se julga suceder, antecipe-se, com
as concepções maximalistas de justiça restaurativa.
As razões para a proliferação e confusão de conceitos de justiça restaurativa são
várias e apenas as principais merecerão uma referência breve.
O primeiro factor a ter em conta é o tempo. Se o termo “restorative justice”
parece ter sido usado pela primeira vez já na segunda metade da década de setenta do
século passado e se os primeiros programas restaurativos surgiram nos primeiros anos
daquela década, a verdade é que o tema só começou a merecer relativo entusiasmo nos
anos oitenta e, sobretudo, ao longo da década seguinte243.
Em segundo lugar, parece decisivo o facto de este modelo de reacção ao crime
ter essencialmente surgido a partir de experiências variadas que foram despontando em

242
Mais do que algum desconhecimento, existe com frequência uma certa simplificação das notas que
caracterizariam – com base numa oposição entre uma justiça “má” e uma justiça “boa” – a justiça penal e
a justiça restaurativa. De forma muito crítica quanto a esta tendência no pensamento restaurativo, cfr.
John PRATT, “Beyond evangelical criminology: the meaning and significance of restorative justice”,
Institutionalizing Restorative Justice, Eds. I. Aertsen/T. Daems/L. Robert, Devon: Willan Publishing,
2006, p. 44 ss. Na sua opinião, o “fervor” com que os cultores da proposta restaurativa defendem as suas
vantagens – como se elas fossem uma “evidência” – causa alguma cegueira relativamente a aspectos que
não podem ser desconsiderados. De forma mais ampla, criticando a mesma tendência mas agora na
criminologia “geral”, cfr. Pat CARLEN (“Against evangelism in academic criminology: for criminology
as a scientific art”, What is Criminology, Eds. M. Bosworth/C. Hoyle, Oxford: Oxford Univesity Press,
2011, p. 96 ss), que refere os riscos que daí decorrem para a consideração de perspectivas não
coincidentes e para o “debate aberto”.
243
É usual associar-se o surgimento do conceito de “restorative justice” ao artigo de Albert Eglash de
1977, “Beyond restitution, creative restitution”, e as primeiras práticas restaurativas “contemporâneas” a
experiências ocorridas nos estados norte-americanos do Minnesota e do Ohio, em 1972, e no Canadá, em
Ontário, em 1974. Martin WRIGHT (“How far have we come”, Restorative Justice and its Relation to the
Criminal Justice System, Actas da Segunda Conferência do European Forum for Victim-Offender
Mediation and Restorative Justice, Bélgica, 2002, p. 91) caracteriza em traços largos estes dois
programas restaurativos, esclarecendo que o primeiro foi uma iniciativa conjunta de um magistrado do
Ministério Público e de um professor universitário, tendo aquele começado a promover a diversão
processual de vários crimes relacionados com disputas interpessoais, intervindo alguns alunos da
licenciatura em direito como mediadores. No segundo caso, o Victim-Offender Reconciliation Program,
em Kitchener, Ontário, foram membros da comunidade, preparados para esse efeito, que desempenharam
o papel de mediadores. É usual referir-se que o programa de Ontário teve origem no denominado caso
Elmira: em 1974, dois jovens consumidores de drogas reconheceram que destruíram mais de vinte
automóveis, em Kitchener, tendo o acontecimento provocado consternação na comunidade, de pequena
dimensão. Apesar da inexistência de qualquer previsão legal nesse sentido, admitiu-se que os jovens
contactassem com as suas vítimas e que ponderassem formas de reparação do dano causado, o que veio a
ocorrer num prazo de tempo relativamente curto. Para uma descrição mais detalhada deste caso Elmira,
cfr. Howard ZEHR, Changing Lenses cit., ps. 158-160.

136
diversos pontos do globo244. Ora, o facto de tais programas assentarem em práticas
distintas – que de forma simplificada se reduzem a três modalidades principais,
denominadas mediação, conferências e círculos245 – faz com que as teorias que a partir
delas se foram desenvolvendo assumam, também elas, notas diversas246.
Por outro lado, a influência da criminologia crítica no paradigma restaurativo
não se manifesta exclusivamente na sua vertente de crítica do sistema penal. Sobretudo
na sua dimensão mais radical, de assunção de um compromisso com a história através
de uma intervenção de cariz político, aquela corrente criminológica encontra eco na
visão da justiça restaurativa, por muitos dos seus cultores, como verdadeiro movimento
social, que propõe uma reconsideração da forma como a comunidade lida com o
indivíduo mas também uma reconformação do modo de cada um estar com os outros,
em que a tolerância e o cuidado se tornam princípios orientadores da acção interpessoal.
Nos estudos de referência sobre as práticas restaurativas, ao invés de uma natureza
objectiva e asséptica, assume-se o compromisso com uma determinada visão do mundo.
Vinca-se, assim, o carácter comprometido da reflexão247.

244
Neste sentido, Leonardo SICA (in Justiça Restaurativa cit., p. 10) entende que “mais do que uma
teoria ainda em formação, a justiça restaurativa é uma prática ou, mais precisamente, um conjunto de
práticas em busca de uma teoria”. Também Daniel Van NESS e Karen STRONG (Restoring Justice – An
Introduction to Restorative Justice, 4.ª ed., Cincinnati: Anderson Publishing, 2010, p. 23) esclarecem que
as práticas de mediação vítima-agressor, conferências e círculos restaurativos tiveram início antes e de
forma independente face à teoria restaurativa, que foi influenciada por eles.
245
Cfr., a título de exemplo e neste sentido, Paul McCOLD, “Primary restorative justice practices”,
Restorative Justice for Juveniles – Conferencing, Mediation and Circles, Eds. Allison Morris/Gabrielle
Maxwell, Portland: Hart Publishing, 2003, p. 41 ss. Cada uma destas práticas restaurativas pode
comportar, porém, experiências não inteiramente coincidentes. O assunto merecerá desenvolvimento na
terceira parte deste estudo, sobretudo no que respeita à mediação.
246
A propósito do surgimento da proposta restaurativa, também Conrad BRUNK refere o contributo de
“pessoas com um envolvimento imediato e prático no sistema de justiça criminal, que se tornaram
impacientes com as suas muitas falhas e injustiças e que começaram a pensar de forma criativa sobre
outras formas de aproximação à justiça penal. São pessoas com experiência na resolução de conflitos
comunitários, na suspensão da execução da pena e na liberdade condicional, na execução da pena de
prisão, na justiça aborígene, na aplicação da lei, nos processos judiciais. Partilham um comum
desconforto com a forma como o sistema de justiça criminal não serve os interesses das vítimas, dos
agressores e de toda a comunidade” (in “Restorative Justice and the Philosophical Theories of Criminal
Punishment”, The Spiritual Roots of Restorative Justice, Ed. Michael HADLEY, State University of New
York Press, 2001, p. 33). Elena HIGHTON/Gladys ÁLVAREZ/Carlos GREGORIO (ob. cit., ps. 122-3),
por sua vez, dão conta de que alguns dos “primeiros programas de justiça restaurativa – quando nem
sequer se utilizava esta terminologia – estruturaram sessões de diálogo entre pequenos grupos de presos,
em instituições prisionais nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, e vítimas de crimes, mas não com as
específicas vítimas de cada crime. Só depois é que se desenvolveram programas que foram mais longe, os
actuais, em que os encontros envolvem a vítima e o agressor”.
247
Julga-se ilustrativa a seguinte afirmação de John BRAITHWAITE: “a justiça restaurativa (…) envolve
uma transformação radical. Nesta perspectiva radical, a justiça restaurativa não é simplesmente uma
forma de reformar o sistema de justiça criminal, é antes uma forma de transformar todo o sistema legal, a
vida das nossas famílias, a nossa conduta no local de trabalho, as nossas práticas políticas. Esta é uma
visão de mudança holística da forma como se faz justiça no mundo” (“Principles of Restorative Justice”,

137
Esta compreensão recorrente da justiça restaurativa enquanto movimento social
amplo – aliada ao facto de não existir por trás dela uma história suficientemente longa
para permitir uma maturação dos conceitos e uma sua pacificação – justifica,
porventura, uma certa vagueza na abordagem conceptual e a inexistência de uma
definição uniforme248. A busca de uma definição, ainda que genérica, é muito
dificultada pelo facto de a justiça restaurativa, também por procurar apresentar-se
enquanto movimento social ainda a lutar por se impor contra um paradigma que é
dominante, ter propósitos tão amplos e variados que nela se podem distinguir dimensões
várias e potencialmente conflituantes, que vão desde a dimensão ética a uma dimensão
instrumental, passando por uma dimensão comunitária. Acresce que cada uma destas
dimensões é por vezes sobrevalorizada ou subvalorizada, não assumindo idêntico peso
relativo nos vários contextos espaciais e temporais, variando de resto em função dos
estudos ou dos programas de aplicação prática em cada um daqueles contextos.
Finalmente, as dificuldades de compreensão daquilo que a justiça restaurativa é
relacionam-se com a tendência que já antes se referiu para procurar defini-la como não
sendo aquilo que a justiça penal é (ou, porventura com mais exactidão, como não sendo
aquilo que muitos cultores da justiça restaurativa acham que a justiça penal é). Aquilo
que aqui se quer destacar é a insuficiência da definição de justiça restaurativa através da
afirmação recorrente de que ela não é retributiva, como a justiça penal é, ou de que a
justiça restaurativa se ocupa do futuro enquanto a justiça penal se centra no passado249.

in Restorative Justice & Criminal Justice, Eds. Von Hirsch/Roberts/Bottoms/Roach/Schiff, Oxford: Hart
Publishing, 2003, p.1).
248
Adolfo CERETTI e Grazia MANNOZZI (“Restorative Justice, Theoretical Aspects and Applied
Models”, A/CONF.187/NGO.1, Contributos para o Tenth United Nations Congress on the Prevention of
Crime and the Treatment of Offenders, publicado em 2000 pelo Centro Nazionale di Prevenzione e
Difesa Sociale, com o apoio da FIPP, p. 55) afirmam que “definir a justiça restaurativa não é uma tarefa
fácil”. Acrescentam que o debate que se iniciou há muito com «a crise do modelo “tradicional” de
justiça» apresenta actualmente uma multiplicidade de ramificações labirínticas, onde cada um dos vários
temas se encontra, se mistura e depois diverge. Em sentido próximo, Cândido da AGRA e Josefina
CASTRO (“Mediação e justiça restaurativa: esquema para uma lógica do conhecimento e da
experimentação”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano II, 2005, ps. 104-5)
consideram que “os termos mediação e justiça restaurativa constituem noções de tal modo vastas e vagas
que é possível incluir nelas quase tudo e o seu contrário”.
249
Um dos Autores com maior destaque no panorama restaurativo, Howard ZEHR, alterou, em momento
mais recente, o seu pensamento inicial de que a justiça restaurativa se oporia à penal por esta ser
retributiva e aquela não. O que agora reconhece é que aquela polarização pode conduzir a compreensões
indevidas. E acrescenta que “a retribuição e a reparação não são pólos opostos. De facto, têm muito em
comum”. Esses pontos comuns radicam, para ZEHR, na afirmação de que tanto o pensamento retributivo
como o pensamento restaurativo assumem como objectivo principal “vingar através da reciprocidade”,
diferindo apenas quanto àquilo que vai efectivamente “endireitar a balança”. Assim, ambas as teorias
partilhariam o entendimento básico de que o crime desequilibrou a balança, pelo que “a vítima merece
alguma coisa e o agressor deve alguma coisa”. Diferem, porém, quanto àquilo que julgam que deve fazer

138
Tais afirmações, muito frequentes na teoria restaurativa, desconhecem, nomeadamente,
a importância que as finalidades preventivas assumem no pensamento penal. Ainda que
se compreenda, pelo menos em parte, a confusão inerente àquelas afirmações – julga-se
que muitos restaurativos associam “punição” exclusivamente a “retribuição” e vêem na
exigência de culpa só uma preocupação com a expiação de um mal pretérito250 –, parece
impor-se a ideia de que a resposta penal, que rejeita a punição sem culpa em nome da
protecção da dignidade humana, é uma resposta preocupada com o futuro, sobretudo
porque é uma resposta que almeja defender a comunidade da ocorrência de crimes
futuros. O que acaba, de forma algo incoerente e a outros propósitos, por ser
reconhecido no seio do próprio pensamento restaurativo, quando acusa a justiça penal
de esquecer a vítima concreta e passada, ocupando-se apenas da protecção das vítimas
futuras.
De grande interesse para a rejeição daquela contraposição entre justiça penal e
justiça restaurativa a partir de distinção entre a centralidade do passado e a centralidade
do futuro é a reflexão levada a cabo por Guy CASADAMONT e Pierrete PONCELA
que, de algum modo, inverte o sentido daquela recorrente afirmação. Os Autores
procuram, com inspiração no pensamento de Foucault, catalogar “os discursos com
pretensão teórica sobre a pena em torno de duas grandes racionalidades punitivas”. Ora,
um dos critérios adoptados nesta catalogação é precisamente o da “temporalidade”. E, a
esse propósito, distinguem uma “racionalidade prospectiva”, em que “a pena é
portadora de um projecto para o futuro: evitar a reincidência, dissuadir os outros de
cometerem infracções, eliminar ou neutralizar, mas também educar, ressocializar ou
reinserir os condenados”; de uma “racionalidade restitutiva”, em que “a pena, medida
pelo ilícito cometido ou pelo dano causado, aspira à equivalência, quase ao apagamento.
As noções de retribuição, de expiação, de vingança e de reparação estão-lhe
associadas”251. Veja-se, pois, como de forma oposta à dominante no pensamento
restaurativo, se remete a finalidade de reparação para o campo do “apagamento” de um

regressar a harmonia aos pratos dessa balança (in The Little Book of Restorative Justice, Intercourse:
Good Books, 2002, ps. 58-9).
250
Advirta-se, porém, para a não absoluta coincidência dos conceitos de “expiação” e de “retribuição”.
Nas palavras já distantes de Wilhelm SAUER, “a retribuição associa-se a uma dimensão objectiva do
delito, prejudicial para a sociedade, isto é, ao acto ilícito; pelo contrário, a expiação refere-se mais ao
elemento subjectivo, ético-socialmente reprovável, do delito”. Para o Autor, o pensamento da retribuição
corresponde a uma “elaboração posterior” (Derecho Penal – Parte General, trad. de Juan del Rosal e José
Cerezo, Barcelona: Bosch, 1955, p. 18).
251
Guy CASADAMONT e Pierrette PONCELA, Il n’y a pas de peine juste , Paris, Odile Jacob: 2004, ps.
11-12.

139
passado indevido (à semelhança do que se afirma ocorrer com o discurso retributivo
tradicional), associando-se antes as finalidades preventivas a uma orientação punitiva
voltada para o futuro.
A razão pela qual esta construção teórica merece, segundo se julga, referência,
não se prende, porém, com o facto de se considerar absolutamente segura uma
contraposição de modelos de reacção ao crime a partir de uma distinção entre a
orientação para o passado e a orientação para o futuro. Julga-se, pelo contrário, que em
cada uma das propostas convivem ambos os elementos (ainda que porventura em
distinta proporção ou hierarquia). O que justifica a relevância que nesta sede se atribuiu
a tais considerações é, antes, a necessidade de não se aceitar sem crítica, como se julga
suceder na doutrina restaurativa dominante, aquele critério de diferenciação que associa
a resposta penal ao passado e a justiça restaurativa ao futuro (aceitação que é feita em
bases que se julgam erróneas).
Por outro lado, deve notar-se que a tentativa de aprisionar os elementos
essenciais da proposta restaurativa na afirmação de que ela não é aquilo que a justiça
penal é pode sintetizar-se em dois vectores principais: uma oposição no que respeita às
finalidades e uma oposição no que respeita aos procedimentos252.
Quanto ao primeiro aspecto, dir-se-ia que a justiça restaurativa não é punitiva-
retributiva como a justiça penal é253. E, quanto ao segundo, afirmar-se-ia que os

252
Como bem nota Kathleen DALY (in “Restorative Justice: The Real Story”, Punishment and Society
(2002), vol. 4, n.º 1, p. 55 ss), um conjunto muito significativo de Autores apresenta a justiça retributiva
como aquilo que a justiça restaurativa definitivamente não é. A Autora sintetiza as alegadas diferenças
fundamentais entre as duas espécies de resposta à criminalidade fazendo apelo àquelas a que eu chamaria
as divergências quanto aos fins (I) e as divergências quanto à estrutura do procedimento (II e III). Assim,
(I) enquanto a justiça retributiva se caracterizaria por ter como objectivo principal a punição do agente do
crime, a justiça restaurativa centrar-se-ia na reparação do mal causado pelo crime. Por outro lado, (II)
enquanto a justiça retributiva suporia um processo estruturado com base em relações adversariais entre os
vários intervenientes, a justiça restaurativa caracterizar-se-ia pelo diálogo e negociação entre as partes.
Finalmente, (III) enquanto a justiça retributiva seria administrada pelo Estado em representação da
comunidade, a realização da justiça restaurativa imporia a assunção de papeis mais activos por membros
ou organismos da comunidade. Apesar da frequência com que entre os defensores do paradigma
restaurativo se recorre a esta forma antitética de perspectivar a reacção ao crime, concorda-se com a ideia
de DALY de que tal oposição é simplista e que “é usada para vender a superioridade da justiça
restaurativa”. Depois de sublinhar a oposição comum entre a “atitude de hostilidade face ao infractor” –
que vê o agente como um inimigo e potencia a sua repressão e exclusão – que caracterizaria a resposta
retributiva e a “atitude de reconstrução” própria da justiça restaurativa, a Autora critica a compreensão
redutora do sistema de justiça penal. Afirma, julga-se que com razão, que mencionar, para o caracterizar,
apenas aquela atitude de hostilidade perante o agente é não olhar para mais do que uma sua caricatura.
Acrescenta-se, em jeito de conclusão, que o sistema de justiça penal não pode ser aprisionado em um
único termo, o da “justiça retributiva”.
253
Uma das imagens que é utilizada com alguma frequência para ilustrar esta contraposição entre uma
finalidade má (a punitiva) e uma finalidade boa (a reparadora) é a da vítima de um crime acabado de
cometer que jaz por terra. Em jeito apologético, afirma-se que enquanto a justiça penal corre atrás do
agressor, deixando a vítima a esvair-se em sangue, a justiça restaurativa preocupa-se, antes, em auxiliar

140
processos da justiça restaurativa não são autoritários como o processo penal é. Neste
contexto argumentativo – porventura algo maniqueísta – apresentar-se-ia como boa a
finalidade reparadora e como má a finalidade punitiva e valorar-se-ia como bom o
processo a que é alheio um terceiro decisor e dotado de autoridade e como mau o
processo de estrutura vertical.
O problema – ou um dos problemas – é que, apesar de esta tentativa de
autonomização definitória da justiça restaurativa parecer confortavelmente arrumada e
até estruturada de forma lógica, não logra corresponder de forma satisfatória àquela que
se julga ser a realidade dos sistemas penais do nosso contexto cultural. Estes
apresentam, hoje, traços de muito maior complexidade do que faria supor a imagem que
deles é dada pelos cultores da proposta restaurativa. Em primeiro lugar porque, ao nível
das finalidades, parece incorrecto – como se já afirmou – a sua limitação à expiação de
um mal passado. Por outro lado, a reparação – mesmo que não enquanto finalidade
autónoma, mas antes como solução autónoma que pode ser útil às finalidades penais –
vem ganhando cada vez mais espaço. Para além disso, as fronteiras entre reparação e
punição podem considerar-se, em certo sentido, nem sempre totalmente estanques:
segundo se crê, se a reparação pode ser sentida como uma forma de punição, também a
punição pode ser compreendida pela vítima como elemento indispensável à reparação
do seu sentimento de segurança e à restauração do seu sentido de justiça. E, agora já no
plano do processo, sempre se deve notar a expansão dos mecanismos de consenso ou de
relevância da vontade dos sujeitos processuais254.

aquela vítima. O que parece dever questionar-se, porém, é se a punição do agente do crime não poderá ser
um dos elementos que a própria vítima, pelo menos em alguns casos, crê indispensáveis para sentir
reparados a sua necessidade de segurança e o seu sentimento de justiça. Por outro lado, não serão
necessárias, pelo menos em alguns casos, ambas as formas de resposta (a punitiva e a reparadora)? É que,
se nos limitarmos a socorrer a vítima, deixando o seu agressor fugir, talvez corramos o risco de que, no
futuro, outras pessoas sejam vitimizadas. Este exemplo, colhido no discurso restaurativo, parece ser útil
para demonstrar a incoerência da afirmação (também corrente na teoria restaurativa) de que a justiça
penal só se ocupa do passado.
254
Por outro lado, há que reconhecer algumas limitações à relevância absoluta do consenso,
nomeadamente por força da própria natureza pública da resposta penal relacionada com a essencialidade
dos valores que têm de ser protegidos. Essas limitações são, além disso, patentes quando se faz uma
análise crítica das próprias imagens a que os defensores da proposta restaurativa recorrem para sustentar a
vantagem do “seu” processo não autoritário. Uma dessas imagens é a de uma mãe que assiste a um
conflito entre as suas duas filhas porque, existindo apenas uma laranja, ambas as crianças a reclamam
para si. Se adoptasse uma abordagem tipicamente penal, a mãe perguntaria qual delas é responsável pela
inexistência de mais laranjas, por ter comido todas as restantes ou por ter omitido o dever de comprar
mais fruta e, apurada qual a filha culpada, esta seria punida e ficaria sem a laranja, que seria entregue à
irmã. Caso a mãe adoptasse um procedimento restaurativo, ouviria as meninas sobre as razões para a
existência do conflito e sobre as formas pelas quais poderia ser resolvido: dizendo uma das filhas que
queria fazer sumo de laranja e a outra que precisava da raspa para cozinhar um bolo, ambas acordariam
que a primeira ficaria com os gomos da laranja e a segunda com a sua casca. As interrogações que,

141
Assim sendo, uma linha de orientação que se crê nuclear é a da rejeição de uma
definição da proposta restaurativa pela negativa, a partir da ideia de que ela não é
aquilo que a justiça penal é, sobretudo quando se parte de uma concepção errónea ou
insuficiente daquilo que caracteriza a justiça penal do nosso tempo e do nosso espaço255.
O que não equivale, note-se, a um abandono da pretensão de compreender a justiça
restaurativa enquanto modelo de reacção ao crime diverso da justiça penal. Só a
compreensão dessa especificidade e a demonstração da necessidade dessa outra forma
de reagir ao crime podem fundar, segundo se crê, a proposta restaurativa. Essa
refundação deve assentar, porém, em outros alicerces.
O que sobretudo se pretendeu sublinhar a traço grosso foi a impossibilidade de
contrapor justiça penal a justiça restaurativa com base na afirmação de que aquela é
retributiva e esta não é. De facto, em certo sentido, parece poder até afirmar-se que a
proposta restaurativa está, a alguns níveis de análise, mais próxima do pensamento
retributivo do que muitos dos seus cultores parecem julgar. Existe, como antes se viu,
no pensamento retributivo e no pensamento restaurativo uma preocupação com a
neutralização do mal passado que parece mais estranha às concepções preventivas, essas
sim mais orientadas, na linha cronológica a que simplificadamente se vem recorrendo,
para o futuro. Por outro lado, parece subjazer, quer ao pensamento retributivo, quer ao
pensamento restaurativo, uma certa recusa da instrumentalização do agente, como forma
de dissuadir ilícitos futuros hipoteticamente cometidos por outros. Na compreensão que
se perfilha, a justiça restaurativa encontra o seu cerne na existência de um conflito
(inter)pessoal carecido de pacificação, centrando-se os principais efeitos pretendidos nas
pessoas dos agentes criminais e das suas vítimas. Assim, a “intervenção” restaurativa –
e só impropriamente assim se lhe pode chamar – tem um universo de “destinatários”

considerada esta história, todavia sobram, são sobretudo duas: e se ambas as meninas quisessem beber
sumo de laranja?; e se o conflito girasse em torno de valor de muito maior importância do que a posse de
uma laranja? O que equivale a dizer que este processo de solução do conflito exclusivamente alicerçado
na vontade daqueles que nele são intervenientes pode confrontar-se com grandes dificuldades – de
natureza prática mas também de índole teórica – quando existir um conflito real (o da história é
meramente aparente) relativamente ao qual as expectativas não sejam conciliáveis e/ou quando no centro
desse conflito estiver a lesão de valores não inteiramente disponíveis.
255
O facto de assim se pensar não equivale, porém, à rejeição metodológica de construções como a de
Howard ZEHR que, antes de procurar definir o que é a justiça restaurativa, explicita aquilo que
“restorative justice is not”. E a rejeição não se justifica, desde logo, porque o Autor não contrapõe o que
a justiça restaurativa não é àquilo que a justiça penal é. Pelo contrário, para ZEHR, “restorative justice is
not” um sinónimo de mediação; não é dirigida em primeiro plano a combater a reincidência; não é um
programa específico; não é exclusivamente dirigida à criminalidade menos grave e a agentes “primários”;
não é uma ideia inteiramente nova e anglo-saxónica; não é uma panaceia ou um substituto do sistema
penal; não é necessariamente uma alternativa à prisão; não é necessariamente o oposto de retribuição (in
The Little Book of Restorative Justice, Good Books: 2002, ps. 8-13).

142
directos muito mais estreito do que o que resulta das concepções preventivas dos fins
das penas e aproxima-se, quanto a este ponto e por mais paradoxal que possa parecer,
das concepções retributivas que os seus cultores tão frequentemente apresentam como o
seu oposto.
Feitas, porém, estas ressalvas sobre as dificuldades de aprisionamento do
conceito de justiça restaurativa através da mera contraposição a uma justiça penal
retributiva, olhe-se – já com as cautelas devidas – para tentativas várias de definição e
de procura dos valores-coração da proposta restaurativa, antes de se procurar explicitar
quais os alicerces que se julga serem os essenciais.

2. Algumas propostas de definição, entre o minimalismo e o maximalismo

Já se disse que não constitui objectivo desta reflexão fixar uma definição de
justiça restaurativa. As dificuldades inerentes à tarefa de definir são potenciadas, no
caso, quer pela variedade das práticas admitidas pela justiça restaurativa, quer,
porventura com maior relevância, pelos muito diversos entendimentos daquilo que a
justiça restaurativa deve ser. Nessa medida, não parece irrazoável a afirmação de
WALGRAVE de que “a justiça restaurativa é um produto inacabado”256. Todavia, não é
por força das dificuldades inerentes à “juventude” e à “diversidade” da justiça
restaurativa que se relutará em propor uma sua “fórmula” com as características –
nomeadamente a de síntese – inerentes ao processo de definir. Não é que se pretenda
escapar a uma explicitação daquilo que se julga que caracteriza a justiça restaurativa.
Acredita-se é que será porventura mais frutífero – e metodologicamente mais sustentado
– ir construindo essa imagem a partir de uma reflexão crítica sobre algumas propostas
mais influentes para, no final, se não iludir a tarefa de deixar claro aqueles que se julga
serem o fundamento, as finalidades e os modos de actuação da justiça restaurativa.
O ponto de partida para uma tentativa de compreensão das várias propostas de
definição da justiça restaurativa prende-se com a sua catalogação em dois grandes
grupos: existem definições que enfatizam o processo; outras definições enfatizam os
resultados que devem ser atingidos. Tendencialmente, as primeiras são associadas a
uma compreensão minimalista e as segundas a um entendimento maximalista da justiça
restaurativa.

256
Lode WALGRAVE, Restorative Justice, Self-interest and Responsible Citizenship, Devon: Willan
Publishing, 2008, p. 11.

143
A definição mais frequentemente citada de justiça restaurativa – e uma definição
a que com frequência se imputa uma excessiva orientação para o processo257 – é, muito
provavelmente, a de Tony MARSHALL, que a vê como um “processo através do qual
todas as partes implicadas em uma específica infracção se juntam para resolver em
conjunto como lidar com o resultado da ofensa e com as suas implicações no futuro”258.
Esta proposta de definição tem merecido, porém, críticas várias259. A mais comum
sublinha o seu cariz exclusivamente formal, a sua compreensão enquanto puro
procedimento cindido dos objectivos que com ele se pretendam atingir. Outros Autores,
para além disso, consideram-na demasiado estreita, entendendo que com ela se
abrangeriam apenas os encontros face-a-face (ou a denominada mediação vítima-
agressor) e que se excluiria toda a possibilidade de certas respostas coercivas que,
segundo alguns, poderiam ser necessárias para a reparação do mal causado com o crime.
Muito conhecida é também a proposta definitória de Howard ZEHR, para quem
a “justiça restaurativa é um processo dirigido a envolver, na medida do possível, todos
os que tenham um interesse numa particular ofensa, e a identificar e atender
colectivamente os danos, necessidades e obrigações decorrentes daquela ofensa, com o
propósito de os sanar e remediar da melhor maneira possível”260. Esta formulação pode,
suscitar, porém, também ela algumas interrogações, desde logo por força da abrangência
do conceito “todos os que tenham um interesse numa particular ofensa”, devendo
questionar-se que espécie de interesse deve ser esse e que limites devem ser impostos à
legitimidade para condicionar a solução restaurativa. Paralelamente, também se não crê
pacífica aquela referência a “colectivamente”, sobretudo por se entender que as práticas
restaurativas se fundam na necessidade de restauração da relação interpessoal que foi
prejudicada, só mediatamente relevando o interesse colectivo. O que se pretende

257
Cfr., v.g., Katherine DOOLIN [“But what does it mean? Seeking definitional clarity in restorative
justice”, The Journal of Criminal Law, 71 (5), 2007, p. 428] que, depois de afirmar que “um dos pontos
de maior desentendimento entre os proponentes da justiça restaurativa é saber se a justiça restaurativa
deve ser definida de uma forma que enfatiza o processo a ser usado ou os resultados a serem atingidos”,
recorre à definição de Marshall como exemplo de definição que “enfatiza o processo”.
258
Tony MARSHALL, “The evolution of restorative justice in Britain”, European Journal on Criminal
Policy and Research, 4, 1996, p. 37.
259
Assim, por exemplo, John BRAITHWAITE (Restorative Justice and Responsive Regulation, Oxford:
Oxford University Press: 2002, p. 11 ss) e Kathleen DALY [“Restorative Justice: The Real Story”,
Punishment and Society (2002), vol. 4, n.º 1, p. 55 ss]. Cfr., tb, Cláudia SANTOS, «A mediação penal, a
justiça restaurativa e o sistema criminal – algumas reflexões suscitadas pelo anteprojecto que introduz a
mediação penal “de adultos” em Portugal», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2006, ano 16, n.º 1,
p. 94.
260
Howard ZEHR, The Little Book of Restorative Justice cit., p. 37. O Autor reconhece, porém, sobretudo
a importância dos princípios e preocupa-se com “a arrogância e o interesse de estabelecer um significado
rígido”, apresentando a sua definição apenas como uma sugestão e uma “proposta de trabalho”.

144
significar com esta argumentação é que talvez se não acompanhem por inteiro os
moldes em que Howard ZEHR posiciona os intervenientes no conflito e a comunidade
no tabuleiro da justiça restaurativa. Apesar de nos princípios fundamentais da justiça
restaurativa – que, juntamente com Harry MIKA261, cunhou – surgir, logo em primeiro
lugar, a afirmação de que “o crime é essencialmente uma ofensa contra as pessoas e as
relações interpessoais”, a verdade é que depois também se afirma que “o processo da
justiça pertence à comunidade”262, o que se julga poder suscitar fundadas dúvidas sobre
a hierarquia que os interesses de cada um (indivíduo e comunidade) assumem nas
práticas restaurativas (e, também, na concepção que perfilho, sobre a diferença
qualitativa entre a justiça penal e a justiça restaurativa).
Uma outra tentativa de definição, agora já de cariz mais “maximalista”, é a de
Gordon BAZEMORE e Lode WALGRAVE, Autores que abrangem sob a designação
de justiça restaurativa “toda e qualquer acção que seja primeiramente orientada para a
realização da justiça através da reparação do mal causado pelo crime”263.
Para se compreender a variedade de concepções actualmente defendidas sobre a
justiça restaurativa, não é inútil a sua catalogação como perspectivas “maximalistas” ou
“minimalistas”, na medida em que assim se distinguem duas formas não coincidentes de
conceber o sentido e o âmbito da proposta restaurativa e, consequentemente, a sua
relação com a justiça penal.
Com o intuito de atingir uma simplificação ou depuração dos modelos que
permita uma compreensão sobretudo daquilo que os distingue, julga-se poder afirmar
que o modelo maximalista, também apresentado como modelo “centrado nos
resultados”, assume enquanto seu elemento central a reparação e admite a coerção como
forma de atingir esse objectivo. Este é um modelo de “tendência abolicionista” – e que,

261
Howard ZEHR/Harry MIKA, “Fundamental Concepts of Restorative Justice”, The Contemporary
Justice Review, vol. 1, n.º 1 (1998), p. 47 ss.
262
A afirmação do envolvimento comunitário enquanto “core value of restorative justice” é recorrente.
Neste sentido, a título de exemplo, cfr. Katherine DOOLIN [“But what does it mean? Seeking definitional
clarity in restorative justice”, The Journal of Criminal Law, 71 (5), 2007, p. 430], que também sustenta
que “as vítimas, os agressores e a comunidade afectada são os intervenientes principais e a sua
participação e contributo devem ser maximizados em qualquer processo restaurativo”.
263
Gordon BAZEMORE/Lode WALGRAVE, “Restorative juvenile justice: in search of fundamentals
and an outline for systemic reform”, in Restorative Juvenile Justice: Repairing the Harm of Youth Crime,
org. Bazemore/Walgrave, Nova Iorque, Criminal Justice Press: 1999, p. 48. Ressalve-se, porém, o facto
de tal definição ter sido pensada no âmbito de uma reflexão exclusivamente direccionada para infracções
praticadas por jovens. Por outro lado, WALGRAVE considera, sob diverso enfoque classificatório, a sua
própria perspectiva como minimalista, na medida em que só os conflitos criminais seriam destinatários da
justiça restaurativa (in Lode WALGRAVE, Restorative Justice, Self-interest and Responsible Citizenship,
Devon: Willan Publishing, 2008, p. 6 ss).

145
pretende, por isso, substituir-se à justiça penal como modelo de reacção ao crime264 –
que chama a si um vastíssimo âmbito de aplicação (o que logo torna compreensível a
denominação “maximalista”), considerando-se aplicável nomeadamente aos crimes
mais graves cometidos pelos agentes mais perigosos265.
O modelo minimalista, por sua vez, é um modelo centrado no procedimento, que
não prescinde da voluntariedade na participação e na conformação da solução para o
conflito, radicando por isso na autonomia da vontade dos intervenientes naquele
conflito266. A crítica mais comum a esta proposta relaciona-se com a sua escassa
ambição: por pressupor a voluntariedade, excluir-se-ia a resposta restaurativa sempre
que o agente do crime e a sua vítima “recusassem o encontro” e sempre que a gravidade

264
Como assume Lode WALGRAVE (“Imposing Restoration Instead of Inflicting Pain: Reflections on
the Judicial Reaction to Crime”, in Restorative Justice & Criminal Justice – Competing or Reconciliable
Paradigms, Eds. Von HIRSCH/ROBERTS/BOTTOMS/ROACH/SCHIFF, Oxford: Hart Publishing,
2003, p. 62), a versão maximalista da justiça restaurativa “almeja uma cobertura integral do sistema de
justiça, em consequência orientado para fazer justiça através da restauração. A longo prazo, contribuirá
para substituir os existentes sistemas de justiça punitivos ou reabilitadores”.
265
Um dos estudos de referência em que se sustenta esta concepção maximalista é precisamente
“Imposing Restoration Instead of Inflicting Pain: Reflections on the Judicial Reaction to Crime” (in
Restorative Justice & Criminal Justice – Competing or Reconciliable Paradigms, Eds. Von
HIRSCH/ROBERTS/BOTTOMS/ROACH/SCHIFF, Oxford: Hart Publishing, 2003, p. 61 ss), de Lode
WALGRAVE. O Autor reconhece que “a qualidade da reintegração será consideravelmente melhor se o
agressor cooperar livremente (…). A concordância livre do agente em reparar ou compensar expressa a
sua compreensão dos erros que cometeu e dos males que causou, assim como a sua vontade de os
remediar (…). Todavia, a cooperação voluntária não é um valor em si mesma, mas antes um meio de
melhorar a qualidade da reparação possível” (ob. cit., p. 62). Depois de se afirmar que a manifestação
daquela vontade de participação nem sempre é possível e nem sempre é suficiente, conclui-se que “a
coerção pode ser necessária. Ela só pode ser imposta pelo sistema judicial”. Ora, a ser assim, não se
compreende bem o que distingue a justiça restaurativa tal como a compreende WALGRAVE de uma
justiça penal que admita, por exemplo, a reparação como consequência jurídica autónoma do crime e que
prescinda da voluntariedade (o que alguns autores não aceitam mesmo no contexto da justiça penal). O
que é interessante notar é que o próprio WALGRAVE tem consciência desta objecção de fundo à sua
concepção de justiça restaurativa, reconhecendo que “a aceitação de sanções restaurativas coercivas,
impostas na sequência de processos judiciais (…) parece deixar poucas ou nenhumas diferenças entre tais
sanções e a punição tradicional”. E WALGRAVE acrescenta que”McCOLD, por exemplo, rejeita a
inclusão de sanções coercivas na proposta restaurativa porque isso iria transformar a justiça restaurativa
em punitiva”. Todavia, apesar de assim de reconhecer, procura distinguir a punição da reparação
coerciva – o que constitui propósito central daquela reflexão de WALGRAVE, sobretudo com o intuito
de absolver a proposta maximalista da acusação de se confundir com a justiça penal tradicional – através
da ideia de que aquela (a punição) se centra na imposição intencional de um sofrimento, enquanto a esta
(a reparação) é alheia tal intenção. Acrescenta-se que “a punição é um meio e que a restauração é um
objectivo” e que a punição se orienta para uma comunicação apenas com a comunidade enquanto a
restauração significa uma comunicação bem sucedida com o agente do crime e a sua vítima. Ainda que se
compreendam algumas das ideias em que WALGRAVE funda esta sua tentativa de distinguir a reparação
coerciva da punição, não se vê como pode construir-se a partir daqui uma proposta restaurativa que tenha
autonomia face a uma justiça penal que vem absorvendo, pouco a pouco e por muitas formas, o objectivo
da reparação. Ora, um dos problemas inerentes a tal ausência de autonomia é a perpetuação da
desconsideração dessa outra dimensão do crime – enquanto conflito interpessoal ou intersubjectivo – que
funda a proposta restaurativa.
266
Entre os defensores deste entendimento minimalista contam-se, por exemplo, Tony MARSHALL,
“The Evolution of Restorative Justice in Britain” cit., p. 21 ss ou Paul McCOLD, “Toward a Holistic
Vision of Restorative Juvenile Justice. A Reply to the Maximalist Model”, Contemporary Justice Review,
3, 2000, p. 357 ss.

146
da ofensa impedisse uma solução alicerçada no consenso. Assim, diz-se, este modelo
minimalista padeceria de um grave defeito: a sua inaplicabilidade aos crimes mais
graves, justamente aqueles em que a maior dimensão do dano mais tornaria necessária a
reparação.
Outros aduzem contra este entendimento a fluidez do conceito de
“voluntariedade” e os inconvenientes dessa indeterminação face à centralidade que
assume para os partidários da concepção minimalista. Questionam, nomeadamente, se
essa voluntariedade se deve considerar excluída quando o agente optar pelas práticas
restaurativas apenas porque se sente constrangido a evitar a condenação ou a sujeição a
uma consequência que lhe é mais desfavorável267.
Finalmente, deve distinguir-se uma terceira hipótese de compreensão da justiça
restaurativa, em que se não prescinde nem da especificidade do resultado (ou finalidade,
como parece preferível) nem da especificidade do procedimento. À luz deste
entendimento – o único que se julga compatível com aquilo que se crê que que funda a
necessidade e a autonomia da proposta restaurativa –, a justiça restaurativa supõe uma
finalidade de reparação e a sua prossecução através de um procedimento alicerçado na
autonomia das vontades e no consenso. Este constitui, é certo, um modelo ainda mais
restrito do que o anterior ou, como alguns Autores preferem, purista268.
Assume-se, de antemão, uma clara preferência por este último conceito de
justiça restaurativa – o que, espera-se, se tornará mais compreensível depois da
exposição daqueles que se julga serem o seu fundamento, as suas finalidades e o seu
modo de actuação –, desde logo porque se não vê como deva cindir-se a conformação
específica de um determinado procedimento da orientação que lhe é fornecida pelo

267
Neste sentido, cfr. Katherine DOOLIN [“But what does it mean? Seeking definitional clarity in
restorative justice”, The Journal of Criminal Law, 71 (5), 2007, ps. 429-430], que manifesta a sua
preferência pelo alargamento do conceito de justiça restaurativa a todas as hipóteses em que se alcançam
resultados restaurativos, independentemente da existência ou não de coerção. Apesar de atribuir particular
ênfase ao resultado de reparação (que considera o “valor determinante”), a Autora não retira, porém, toda
a relevância à questão do procedimento.
268
Como nota Mylène JACCOUD (“Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça
Restaurativa”, Justiça Restaurativa, Brasília: MJ/PNUD, 2005, p. 171), “os mais puristas consideram que
a justiça restaurativa é definida (…) através de processos negociados e através de finalidades
restaurativas. Este terceiro modelo adopta uma visão mais restrita da justiça restaurativa”. A Autora não
é, porém, partidária desta compreensão – parece, ao invés, perfilhar um entendimento maximalista –, na
medida em que “introduzir a boa vontade como critério absoluto de encaminhar os casos aos programas
restaurativos conduz inevitavelmente a confinar a justiça restaurativa à administração de infracções
sumárias o que, evidentemente, reduz o seu potencial de acção”. Não se compreende, porém, esta crítica
que regra geral suporta a rejeição daquela perspectiva de justiça restaurativa alicerçada quer na finalidade
quer no procedimento: a reparação alicerçada na vontade pode existir também no contexto da
criminalidade mais grave, ainda que aqui de forma paralela à eventualmente necessária intervenção penal.

147
pensamento das finalidades269. Se um processo é um conjunto encadeado de actos que
só se compreendem – em si mesmos e na forma como se interligam – por apelo às
finalidades que os orientam, a proposta restaurativa, enquanto modelo de resposta ao
crime diverso do penal, não pode prescindir de uma definição em função das suas
específicas finalidades e dos seus específicos procedimentos.
Assim, sempre se deve deixar claro que, na concepção que perfilho, se um
qualquer procedimento consensual entre o agente e a vítima de um crime não almejar
uma reparação dos danos causados através de uma responsabilização do agente, esse
procedimento não merecerá o qualificativo de plenamente restaurativo; mas também a
obtenção de um resultado de reparação como consequência de outras formas de
procedimento, nomeadamente aquelas que suponham a coerção, não será uma
manifestação da justiça restaurativa270. Deste modo, a condenação do agente, no âmbito
de um processo penal, à reparação dos danos causados à vítima, não será coincidente
com o sentido de uma intervenção restaurativa. O que só se logra compreender, segundo
269
A cisão da conformação do processo relativamente a considerações de justiça material é pensável em
uma perspectiva lógica, mas destituída de interesse quando transposta para a análise das estruturas
processuais penais concretas, gizadas à luz de uma ponderação das finalidades. Com interesse para o
problema, John RAWLS refere-se à justiça processual pura, que se aplica “quando não há critério
independente para o resultado justo: em vez disso, existe um processo correcto ou equitativo que permite
que o resultado, seja ele qual for, será igualmente correcto ou equitativo desde que o processo tenha sido
devidamente respeitado”. Pelo contrário, num processo que seja orientado por uma determinada
concepção do justo que se assume como finalidade, há um critério que é exterior ao próprio processo e
que permite avaliar a sua adequação. A justiça processual que aí se tem em conta é, ainda segundo
RAWLS, imperfeita, na medida em que permite que se chegue a um “resultado errado”. O Autor elege, de
resto, o exemplo do julgamento em processo criminal para ilustrar esta sua ideia da justiça processual
imperfeita (sendo certo que, nas suas palavras, “a justiça processual perfeita é rara, se não impossível, em
situações que tenham interesse prático”): “a justiça processual imperfeita é exemplificada pelo
julgamento em processo criminal. O resultado desejado é que o réu seja considerado culpado se, e apenas
se, cometeu o crime de que é acusado. Neste sentido, o processo de julgamento é orientado para a busca e
a determinação da verdade. Mas parece ser impossível o traçar das regras jurídicas de forma a que elas
conduzam sempre ao resultado correcto. A teoria do processo penal determina quais os procedimentos e
as regras de prova que estão melhor colocados para assegurar este objectivo, respeitando os outros fins do
direito consoante as circunstâncias. Há diferentes regras de julgamento das quais se pode esperar que
produzam os resultados desejados, se não sempre, pelo menos na maioria dos casos. Um julgamento é,
portanto, uma manifestação de justiça processual imperfeita. Ainda que a lei seja rigorosamente
respeitada e que o processo seja justo e correctamente conduzido, pode chegar-se a um resultado errado;
um inocente pode ser condenado, o culpado pode ser julgado inocente”. Em síntese, RAWLS considera
que “a característica da justiça processual imperfeita é que, embora haja um critério independente para o
resultado correcto, não há qualquer processo prático que assegure que ele será atingido” (in Uma Teoria
da Justiça, trad. de Carlos Pinto Correia, Lisboa: Editorial Presença, 2001, 2ª ed., p. 86). Todavia, se a
pureza enquanto desligamento de uma finalidade obstaria a este juízo de imperfeição, tornaria – o que se
julga definitivamente pior – o procedimento arbitrário e, nesse caso sim, uma manifestação do “non
sense” que alguns críticos já imputaram à justiça penal.
270
Tais hipóteses não merecerão, pelo menos, a qualificação como “fully restoratives”, na terminologia
proposta por Daniel VAN NESS (“The shape of things to come: a framework for thinking about a
restorative justice system”, Restorative Justice – Theoretical Foundations, Eds. Elmar
WEITEKAMP/Hans-Jürgen KERNER, Devon: Willan Publishing: 2002, p. 11 ss). O Autor não enjeita,
porém, a utilidade mesmo de respostas ao crime que sejam só “moderadamente restaurativas” ou
“minimamente restaurativas”, encarando-as como um continuum.

148
se julga, quando se apreendem as complexas formas de interpenetração entre um
resultado e o procedimento que a ele conduziu: se o procedimento é conformado e
estruturado em função dos resultados a atingir, também os resultados não são
independentes, em si mesmos, da forma como foram atingidos. E na proposta
restaurativa essa interligação é particularmente notória na medida em que a mera
existência de um processo com as características que devem ter os encontros
restaurativos pode ser, por si própria e independentemente de qualquer ocorrência
posterior, já reparadora. Pondere-se, a título de exemplo, o relevo que o
“empowerment” da vítima na procura de uma solução para o conflito – que é inerente a
práticas restaurativas como a mediação penal – pode assumir para a reintegração de
aspectos emocionais, nomeadamente os atinentes à sua auto-estima, respeito próprio e
autonomia (com frequência abalados pela própria experiência de vitimização) Assim,
uma das questões que se julga merecedora de ponderação em momento posterior deste
estudo é, precisamente, a da especificidade da reparação “restaurativa” – especificidade
essa, repita-se, que não pode ser desligada de um também específico procedimento271.
Esclareça-se, por outro lado, que não se compreendem aquelas objecções,
esboçadas pelos defensores da concepção maximalista e orientadas para a rejeição da

271
As divergências na definição do próprio conceito de justiça restaurativa são, inevitavelmente,
transponíveis também para a teoria da mediação penal, relativamente à qual uns acentuam a
essencialidade da obtenção de um acordo reparador e outros tendem a valorizar como suficiente a
existência de um procedimento que permita o encontro e o “empoderamento” dos intervenientes no
conflito. Referindo-se à existência de “três percepções da mediação” que se manifestam através de três
modelos, Michael ALBERSTEIN (“Forms of mediation and law: cultures of dispute resolution”, Ohio
State Journal on Dispute Resolution, 22, 2, 2007, p. 321 ss) distingue o “modelo pragmático”, o modelo
“transformador” e o modelo “narrativo”. Relativamente ao primeiro, associa-o à obra de Roger FISHER e
de William URY Getting to Yes, e apresenta-o como um modelo orientado para a solução de problemas e
centrado na obtenção de um acordo. O segundo modelo – dito “transformador” –, cuja formulação é
atribuída a Robert BUSH e a Joseph FOLGER em meados da década de noventa do século passado,
assenta numa concepção “terapêutica-relacional”, mais vocacionada para o sublinhar das vantagens que o
encontro vítima-infractor pode transportar numa perspectiva de “empoderamento” pessoal e cura
relacional, desvalorizando-se a efectiva obtenção de um acordo. O modelo “narrativo”, cuja origem é
associada a WINSLADE e MONK em 2001, enfatiza a possibilidade de, através da mediação, haver um
recontar da história que permite uma sua reconstrução em moldes mais satisfatórios (modelo este que é
apodado por ALBERSTEIN de “construtivista” e baseado numa visão da realidade pós-moderna). De
forma perfunctória, parece poder – pelo menos tendencialmente – associar-se aquele “modelo
pragmático” às definições de justiça restaurativa maximalistas ou orientadas para os resultados, enquanto
os dois últimos estarão mais próximos das concepções que enfatizam o procedimento. A equiparação é,
porém, apenas tendencial porque, em certo sentido, todos estes modelos de mediação pretendem atingir
um resultado, diferindo sobretudo na compreensão de qual o resultado que se pretende obter: se o modelo
“pragmático” elege como resultado a obtenção de um acordo que é visto como uma solução para um
problema, os modelos “transformador” e “narrativo” centram-se na obtenção de outros resultados,
porventura menos visíveis porque associados a uma transformação individual ou relacional, ou a uma
diversa construção pelo indivíduo do acontecimento. Este é, porém, assunto a que se deverá retornar na
terceira parte deste estudo, justificando-se esta nota apenas pela conveniência de vincar as repercussões
que o conceito de justiça restaurativa eleito terá ao nível da teoria da mediação penal.

149
limitação da proposta restaurativa a um domínio muito restrito, que associam às
hipóteses em que há vontade por parte dos intervenientes em um conflito jurídico-penal
pouco grave de o resolverem de modo diverso do modo especificamente penal.
De facto, em princípio a concepção minimalista só será compatível com a
exclusividade da intervenção restaurativa quanto à criminalidade menos grave,
reveladora de menor necessidade de punição do agente. Mas, mesmo quando à luz de
uma consideração dos fins das penas se julgue incontornável o sancionamento penal, o
modelo minimalista não exclui a existência de práticas restaurativas cumulativas com a
normal actuação da justiça penal.
Já o modelo maximalista, pelo contrário, por pretender substituir-se à justiça
penal de forma plena, acaba por ter de encontrar formas de responder autonomamente a
toda a criminalidade. Nessa medida, tem de chamar a si a realização das finalidades da
intervenção penal e não logra escapar a uma aproximação das características do
processo penal, nomeadamente a coacção272. Este é um entendimento que se julga
merecedor de críticas em uma tripla perspectiva.
Por um lado, se é preciso sancionar – e sancionar de forma largamente restritiva
de direitos fundamentais –, parece preferível que sejam o direito penal e o direito
processual penal a regular essa intervenção (como reconhecem defensores do modelo
restaurativo tão empenhados como Howard ZEHR, “o modelo de justiça penal do
mundo ocidental” tem os seus “pontos fortes – tais como a promoção dos direitos
humanos”, que são “consideráveis”273).
Por outro lado, assacar à justiça restaurativa tais finalidades penais
(nomeadamente as preventivo-especiais e gerais) e tal procedimento coercivo significa
um seu esvaziamento face à justiça penal: a assunção das finalidades penais e dos
procedimentos penais priva de autonomia a proposta restaurativa e aproxima-a
inexoravelmente de um modelo de reacção ao crime cujas insuficiências, precisamente,
deveria pretender colmatar. Esta concepção maximalista impede assim, segundo se crê,
que a justiça restaurativa se assuma, como deveria, enquanto outra resposta a uma
outra dimensão do crime.
272
John BLAD vaticina, com preocupação, a possibilidade de a justiça restaurativa vir a tornar-se um
“outro método punitivo”, definido pelas “agências de política criminal, pelos políticos e pelos
académicos”, sendo que neste “processo vai perder todo o potencial competitivo e acabar por expandir e
reforçar a cultura punitiva. Isto também aconteceu com tantas outras alternativas ao sistema penal que
foram propostas pelos pensadores abolicionistas” (“Institutionalizing restorative justice? Transforming
criminal justice? A critical view on the Netherlands”, Institutionalizing Restorative Justice, Eds. I.
Aertsen/T. Daems/L. Robert, Devon: Willan Publishing, 2006, p. 111).
273
Howard ZEHR, The Little Book of Restorative Justice cit., p. 60.

150
Finalmente, quando se defende que qualquer solução que garanta uma reparação
dos danos causados à vítima é restaurativa, independentemente da forma coactiva como
foi atingida, parece legitimar-se a afirmação de que várias soluções já conhecidas pelo
direito penal e pelo direito processual penal são, afinal, soluções da justiça restaurativa.
Ora, com isso, apesar de se pretender um esvaziamento da justiça penal e um
consequente alargamento da justiça restaurativa, corre-se paradoxalmente o risco de um
apagamento da justiça restaurativa a partir da ideia de que ela corresponderia já a um
segmento – e a um segmento em expansão, como em momento posterior se verá – da
intervenção penal.

3. Uma antecipação da proposta: aquilo que a justiça restaurativa deve ser

A reflexão sobre aquilo que a justiça restaurativa não é e não pretende ser não
logra tornar dispensável, porém, a reflexão sobre aquilo que a justiça restaurativa é e
pretende ser.
Segundo se crê, a proposta restaurativa distingue-se da justiça penal enquanto
modelo de reacção ao crime por força do seu específico fundamento, das suas
específicas finalidades e do seu específico modo de actuação ou procedimento. Julga-se
que as respostas ao “porquê”, “para quê” e “como” da justiça restaurativa não são
coincidentes com as respostas encontradas quando se confronta a justiça penal com as
mesmas interrogações.
O fundamento da proposta restaurativa radica na compreensão de que o crime
pode ter uma dimensão relacionada com os aspectos subjectivo e intersubjectivo do
conflito274. Esta dimensão desdobra-se, segundo se crê, em duas vertentes: uma vertente
subjectiva referente à situação que para cada indivíduo decorre da sua intervenção num
conflito criminal; uma vertente intersubjectiva atinente ao aspecto relacional que pode
interceder entre esses vários indivíduos. De forma muito simples, o que com esta
afirmação se pretende significar é a (re)descoberta de que o crime não é apenas a ofensa
a bens jurídicos que merecem e devem ser protegidos, ele pode significar também a
274
Permanece incontornável, para a compreensão da génese desta ideia, a ponderação do pensamento de
Howard ZEHR sobre o modo como a justiça penal olha para o crime enquanto “violação da lei”,
desconsiderando o facto de o crime pressupor também danos causados ou sofridos por um agente e por
uma vítima. No sistema de justiça penal, “desde que o Estado é definido como vítima, não é
surpreendente que as vítimas sejam tão consistentemente deixadas fora do processo (…). Porque
deveriam as suas necessidades ser reconhecidas? Nem sequer são parte da equação do crime” (Changing
Lenses – a new focus for crime and justice, 3ª ed. (1ª ed. de 1990), Ontario: Herald Press, 2005, ps. 80-
82).

151
ofensa a direitos concretos de uma vítima identificável, que assim pode passar a ter
necessidades também elas concretas275. Por outro lado, o crime pode estar também
associado a padecimentos e a necessidades de um agente concreto. E, se entre o agente
do crime e a sua vítima se puder afirmar a existência uma qualquer proximidade,
avolumar-se-á em princípio a necessidade de uma intervenção restaurativa, então
dirigida não apenas à restauração da situação de cada um, mas também à restauração da
relação de um com o outro276. É, por isso, a este nível da pessoalidade em primeiro
lugar e das relações interpessoais em segundo lugar que se descortina o sentido da
proposta restaurativa.
Quando, depois de se enfrentar o porquê, se interroga o para quê e surge a
questão das finalidades da justiça restaurativa, julga-se que a resposta está na
pacificação daquele conflito de dimensão (inter)pessoal que também pode existir no
crime, em princípio através de uma reparação dos danos causados à vítima relacionada
com uma assunção de responsabilidade do agente que, neutralizando os males que
causou, se “repara” também a si próprio enquanto cidadão responsável277.

275
Não se julga pertinente, tendo em conta o objecto deste estudo, uma qualquer análise detida dos
conceitos de “bem jurídico”, de “interesse” ou de “direito”. Sob o ponto de vista metodológico, porém, o
que já se julga dever ser esclarecido é que apenas a referência a “bem jurídico” obedecerá sempre a uma
intenção “técnico-jurídica”, em moldes que permitam a distinção entre uma função – que é penal – de
protecção de bens jurídicos e uma outra função, já não primeiramente penal, de reparação ou restauração
das necessidades surgidas por causa do cometimento de um crime. Essas necessidades ocasionadas pelo
crime poder-se-iam denominar, porventura e consoante as circunstâncias, expectativas, interesses ou até
direitos. Não é, todavia, essa catalogação que a esta análise interessa, porque o que se pretende é antes
sublinhar a distinção entre a protecção de bens jurídicos que, ainda que tenham um referente individual
passado, são protegidos e relevam não com o fim primeiro de tutela dessa individualidade já atingida, mas
antes com uma “orientação colectiva e para o futuro”; e, por outro lado, a protecção de necessidades
tendencialmente individuais que podem projectar-se no futuro mas que são já o presente daqueles que
foram “tocados” pelo crime. E opta-se pela utilização mais frequente deste conceito de “necessidade” em
detrimento daquele outro de “interesse” também por se não julgar conveniente ou útil um qualquer
adentrar da polémica em torno da distinção entre “bem” e “interesse”. Sobre “a pluralidade de
significados ou acepções que comporta” o conceito de interesse e sobre a possibilidade de uma sua
utilização nessa sua pluralidade, cfr., por exemplo, Augusto SILVA DIAS, “Delicta in Se” e “Delicta
Mere Prohibita” – Uma Análise das Descontinuidades do IlícitoPenal Moderno à Luz da Reconstrução
de uma Distinção Clássica, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, ps 17-8.
276
É fundadamente que se pode duvidar quer da conveniência quer da eficácia da resposta penal como
forma adequada ao restabelecimento das relações interpessoais. Antoine GARAPON critica, de resto,
uma “judicialização” que “acaba por impor uma versão penal a qualquer relação – política,
administrativa, comercial, social, familiar e até amorosa – doravante descodificada na perspectiva binária
e redutora da relação vítima/agressor” (O Guardador de Promessas – Justiça e Democracia, Lisboa:
Instituto Piaget, 1998, p. 24).
277
Sobre as finalidades da justiça restaurativa, tenha-se em conta, na doutrina portuguesa, o entendimento
de Maria Leonor ASSUNÇÃO, sobretudo na medida em que dele parece resultar a especificidade das
finalidades restaurativas face às penais. Assim, a Autora considera que «a finalidade última do processo
[restaurativo] é (…) a restauração desses vínculos sociais que almeja concretizar-se através de um
procedimento negocial informado, que se desenrola entre os directos intervenientes no conflito, seja
perante um mediador, seja no âmbito de uma “conferência” ou de um “círculo” em que intervêm
representantes da comunidade, com vista à reparação dos danos e à reconciliação» (cfr Maria Leonor

152
Sobre o específico modo de actuação da justiça restaurativa, dedicar-se-á em
momento posterior autónomo espaço à reflexão sobre as suas práticas. De qualquer
modo, deve sublinhar-se que o que têm em comum é serem fundadas na autonomia da
vontade dos intervenientes no conflito, quer quanto à participação, quer quanto à
modulação da solução.
Feitas estas considerações iniciais que, em simultâneo, traçam o rumo e são já
quase que um resumo de tudo o que a seguir se dirá, olhe-se agora mais de perto para
aquilo que a justiça restaurativa é.
Ela começa por ser, segundo se crê, uma forma de resposta à criminalidade
orientada por objectivos curativos, (i) quer dos males sofridos pela vítima, (ii) quer do
diminuído sentido de responsabilidade do infractor perante os deveres vistos como
essenciais no grupo a que pertence, (iii) quer da abalada relação de proximidade
existencial entre o agente e a vítima, assim como da sua “comunidade de próximos”.
Ao conceber a intervenção posterior ao crime nesta vertente curativa mas ao
rejeitar qualquer forma de intervenção coactiva ou contrária à compreensão de uma
comunidade pluralista e composta por homens livres nos seus valores individuais, a
justiça restaurativa desvenda-se como uma resposta de vocação pacificadora. Dito da
forma mais simples: a cura daquelas feridas várias e/ou a reconciliação pretendidas são
bens almejados, mas não são objectivos impostos à luz de uma qualquer terapêutica
social. E, em certo sentido, pode até afirmar-se que não constitui objectivo da justiça
restaurativa a reconciliação entre o agente e a sua vítima, por razões várias. Em
primeiro lugar, pode não existir qualquer relação anterior passível de ser atingida pela
ocorrência criminal. Em segundo lugar, mesmo que tal relação tivesse existido, deve ser
reconhecida aos sujeitos do conflito a liberdade de não pretender retomá-la através de
uma qualquer reconciliação. Nesta medida, a reconciliação que a proposta restaurativa
escolhe como meta é, sobretudo, uma reconciliação de cada indivíduo interveniente no
conflito consigo próprio. E, no que tange à vertente relacional que pode existir em
alguns casos, o objectivo está mais na oferta de uma possibilidade de pacificação (que
pode incluir ou não uma reconciliação) do que no reatamento de laços entre os
indivíduos.

ASSUNÇÃO, “A participação central-constitutiva da vítima no processo restaurativo – uma ameaça aos


fundamentos do direito penal estadual?”, in Que Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de
MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia,
Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 338)

153
A afirmação da pacificação enquanto objectivo da justiça restaurativa é
recorrente, ainda que nem sempre se consiga clarificar de forma suficiente este conceito,
sobretudo por contraposição a uma certa ideia de pacificação que é inerente à prevenção
geral positiva enquanto finalidade especificamente penal. Sem prejuízo de em momento
posterior se dever retornar à questão, diga-se para já apenas que parecem existir
diferenças entre uma pacificação que é em primeira linha jurídica (na medida em que a
reafirmação contrafáctica da validade das normas violadas almejará um certo consenso
quanto à subsistência da vigência dessas normas), ainda que tenha por objectivo
contribuir para a paz social precisamente através de uma reafirmação da vigência de
valores comuns e, por outro lado, uma pacificação que é em primeira linha pessoal ou
interpessoal e que não prescinde de uma procura de afastamento do conflito entre o
agente e a sua vítima, precisamente por se julgar que a harmonia pessoal e a pacificação
interpessoal se repercutirão na obtenção da paz social278.
À luz desta dimensão reparadora e pacificadora da justiça restaurativa, se
começou por se sublinhar a necessidade de olhar para os danos sofridos pela vítima279,
deu-se depois um alargamento de modo a procurar encontrar respostas também para as
necessidades do agente da infracção. A preocupação com a participação do agente na
busca de uma solução para o conflito radica ainda na ideia de que o seu empenho é útil à
recuperação do seu sentido de dever e à sua própria pacificação. Como bem notam
Cândido da AGRA e Josefina CASTRO, a lógica subjacente é a de que “as necessidades
do delinquente não são incompatíveis com a satisfação das necessidades das vítimas”280.

278
Ainda que em moldes não inteiramente coincidentes, também Pablo GALAIN PALERMO recorre à
contraposição entre paz jurídica e paz social (“Mediação penal como forma alternativa de resolução de
conflitos: a construção de um sistema penal sem juízes”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge
de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 840).
279
A referência a esta finalidade de reparação dos danos sofridos pela vítima, recorrente ao longo do
discurso, não deve prescindir do constante sublinhar da sua não coincidência com o simples ressarcimento
das perdas materiais. A vitimologia vem enfatizando o relevo da dimensão psicológica desses danos. E o
que se julga particularmente relevante é que se a reparação daquelas perdas materiais pode ser
determinada de forma suficiente através de uma decisão de outrem – maxime, uma decisão judicial –, já a
reparação possível daqueles danos de índole imaterial tende a carecer, pelo menos em certos casos, do
encontro característico dos procedimentos restaurativos. Assim poderá suceder, nomeadamente, com o
medo tal como foi compreendido por Zygmunt BAUMAN: “o medo é mais assustador quando difuso,
disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivo claros; quando nos
assombra, sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser
vislumbrada em toda a parte, mas em lugar algum se pode vê-la” (in Medo líquido: sobre a origem, a
dinâmica e os usos do medo, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, p. 8). A possibilidade de, através
do encontro restaurativo, compreender os motivos ou as circunstâncias do outro, contribuirá, em alguns
casos, para atenuar aquele medo que é maior quando é um medo sem rosto.
280
Os Autores (in “Mediação e justiça restaurativa: esquema para uma lógica do conhecimento e da
experimentação”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano II, 2005, Coimbra
Editora, ps. 102-3) acrescentam que “a reinserção social daquele [o delinquente] passa pelo

154
Pode afirmar-se ainda, nesta busca de compreensão do conceito por sucessivas
aproximações àquele que se crê constituir o seu cerne, que a justiça restaurativa é uma
resposta à criminalidade radicada numa ideia de tolerância com o outro. Esta ideia de
tolerância não equivale a desresponsabilização do agente pelos actos que praticou – pelo
contrário, suporá a assunção dos mesmos e um juízo de auto-crítica (ou, pelo menos,
uma assunção daqueles factos negativos que o agente julga que lhe são imputáveis, em
uma visão pessoal que não é necessariamente coincidente com a da vítima) . Mas supõe,
isso sim, um esforço de compreensão das circunstâncias do outro que não desconheça o
facto de que, ao longo dos percursos individuais, quase todos vão sendo
simultaneamente vítimas e agentes de males vários281.

reconhecimento destas [necessidades da vítima] e pela aceitação das suas responsabilidades para com elas
[as vítimas]”. Afirmam ainda que a desapropriação do conflito também relativamente ao agente (e não já
apenas quanto à vítima) “se traduz na sua desresponsabilização”. No âmbito de uma reflexão mais vasta
sobre os programas de mediação penal em contexto penitenciário, a forma como explicam as
consequências deste afastamento do agente relativamente aos danos que causou é tão eloquente que se
julga dever citá-la na íntegra: “a reclusão não favorece o encontro do indivíduo com o seu acto. Pelo
contrário, durante a reclusão o que se lhe pede é que olhe para o futuro, que esqueça o passado; em suma,
que esqueça o crime e cuide da sua reinserção. Em nenhum momento se favorece a tomada de
consciência das consequências do crime, do impacto do mesmo sobre a vítima e, muito menos, da
assunção das suas responsabilidades para com ela. Deste modo, o próprio indivíduo torna-se estranho ao
seu próprio acto, que nunca chegou verdadeiramente a interiorizar. Muitas vezes o acto só é lembrado
quando, por altura de uma apreciação para liberdade condicional, os profissionais voltam a ler o acórdão e
dão conta do desfasamento entre a imagem do bom recluso, ou pelo menos do recluso conforme às
normas institucionais, e do delinquente que praticou actos de tão grande violência. É também por isso que
muitos libertados sentem que a pena não acabou com a saída da prisão. Talvez não seja por acaso que a
maior parte dos homicidas que se suicidam o fazem após a saída da prisão. Como se esta os tivesse
protegido de si próprios e do confronto com o seu acto. Esquece-se que também o delinquente pode
precisar de gerir a culpa e o medo, pode necessitar de apoio para ultrapassar as circunstâncias e os
conflitos subjacentes ao acto, pode clamar por uma oportunidade de acção correctora”.
281
Como em momento posterior se verá de forma mais detida através de uma referência ao pensamento
de LÉVINAS, no próprio núcleo do conceito da justiça restaurativa está o reconhecimento do outro como
um igual na qualidade de pessoa e de cidadão. Só esse reconhecimento justifica a finalidade de reparação
dos danos causados à vítima (o que supõe a responsabilização da pessoa que é o agente e o
reconhecimento da qualidade de pessoa da vítima, qualidade da qual deriva a justeza da reintegração das
suas expectativas ofendidas pelo crime). E é a partir dessa igualdade na qualidade de pessoa que também
se conforma o procedimento restaurativo. Nesta medida, a centralidade do reconhecimento do outro como
cidadão afasta a proposta restaurativa dos próprios fundamentos filosóficos do denominado “direito penal
do inimigo”, cujas bases JAKOBS terá encontrado numa interpretação (por vezes descontextualizada) do
pensamento de contratualistas como Hobbes e Kant, optando por não seguir “a concepção de Rousseau e
de Fichte; pois na sua separação radical entre o cidadão e o seu direito, por um lado, e o ilícito do
inimigo, por outro, é demasiado abstracta. Em princípio, um ordenamento jurídico deve manter dentro do
direito também o criminoso”, não se partindo do pressuposto que se imputa a Rousseau e a Fichte, aquele
de que “todo o delinquente é de per si um inimigo”. Por conseguinte, JAKOBS afirma acompanhar antes
os entendimentos de Hobbes e de Kant, que “conhecem um direito penal do cidadão – contra pessoas que
não praticam crimes de modo persistente, por princípio – e um direito penal do inimigo contra quem se
desvia por princípio; este exclui, aquele deixa incólume o status de pessoa” (Günther JAKOBS e Manuel
CANCIO MELIÁ, Derecho penal del enemigo, Madrid: Thomson/Civitas, Cuadernos Civitas, 2003, ps.
28, 29 e 32). Um resumo das principais notas caracterizadoras do direito penal do inimigo pode
encontrar-se, por exemplo, no estudo de Manuel Cancio MELIÁ («De nuevo: “Derecho Penal “ del
Enemigo?» (in Derecho Penal del Enemigo – El discurso penal de la exclusión, 1º vol., coord. Cancio
Meliá/Gómez-Jara Díez, Buenos Aires: Euros Editores, 2006, p. 356-7), que lhe aponta três elementos:

155
Por outro lado, este conteúdo da justiça restaurativa impõe uma determinada
forma que, nessa medida, é dele inseparável. A reconciliação/pacificação de cada um
dos de algum modo tocados pela prática do crime, consigo próprios e com o outro ou
com cada um dos outros, exige um processo que possibilite o encontro – o encontro
consigo e com o outro –, que não seja sofrido como um mal sem sentido do qual nada

uma ampla antecipação da punibilidade com a assunção pelo direito penal de uma perspectiva prospectiva
(orientada para o futuro) e não retrospectiva (orientada para o passado); a previsão de penas
desproporcionadamente elevadas; a supressão ou a limitação de garantias processuais. Sobre o assunto, só
entre nós, cfr., a título de exemplo, Anabela Miranda RODRIGUES (“Globalização, democracia e crime”,
Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais cit., São Paulo: Quartier Latin, 2006, p.
295 e ss), que faz remontar a base de legitimação escolhida por JAKOBS sobretudo à ideia de Kant que
“admite tratar como inimigo e não como pessoa quem se recusa a participar de uma comunidade legal;
partindo daí, Jakobs afirma que o inimigo não pode (não deve) ser tratado pelo Estado como pessoa, pois
não oferece garantias cognitivas suficientes de um comportamento pessoal. Em consequência, o inimigo
fica excluído do estatuto de pessoa, beneficiando apenas das regras de limitação da força que o Estado
quiser impor a si próprio”. Também recentemente, o conceito de “direito penal do inimigo” tal como
surge na teoria do penalista alemão de Bona, JAKOBS, é descrito e criticado por Augusto SILVA DIAS,
no seu estudo “Os criminosos são pessoas? Eficácia e garantias no combate ao crime organizado”, no qual
analisa a definição de inimigo como “aquele que adopta duradouramente um programa de acção contrário
ao Direito” (in Que Futuro para o Direito Processual Penal?, coord. de MONTE, Mário
(dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra
Editora, 2009, p. 690). Ainda na doutrina publicada em língua portuguesa e igualmente de forma muito
crítica face a uma tendência que julga dificilmente reversível e que classifica como “estrutural”, cfr.
Cornelius PRITTWITZ, “O direito penal entre direito penal do risco e direito penal do inimigo:
tendências atuais em direito penal e política criminal”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 47,
Março-Abril, 2004, p. 41 ss. De qualquer modo, pode encontrar-se na publicação conjunta de Günther
JAKOBS e de Manuel CANCIO MELIÁ uma síntese clara dos argumentos que sustentam aquele “direito
penal do inimigo” e daqueles que o contrariam [nas palavras introdutórias de JAKOBS, “as nossas
posições diferem de forma considerável, ainda que não tanto no diagnóstico como no que se refere às
consequências que se podem esperar ou que inclusivamente devem postular-se”(últ. ob. cit., p. 15)]. O
recurso por JAKOBS ao pensamento contratualista enquanto sustentação filosófica para a sua proposta é
visível na sua afirmação de que “são especialmente aqueles autores que fundamentam o Estado de modo
estrito mediante um contrato os que representam o crime no sentido em que o delinquente infringe o
contrato, de modo que já não participa nos benefícios deste: a partir desse momento, já não vive com os
demais dentro de uma relação jurídica” (ob. cit., p. 26). Com especial interesse para o objecto deste
estudo, veja-se a opinião do Autor alemão de que a perda daquela qualidade de cidadão não deve
considerar-se a regra e pondere-se, sobretudo, a sua associação da qualidade de cidadão do criminoso a
um dever de reparação: “o delinquente tem o dever de proceder à reparação, e também os deveres têm
como pressuposto a existência de personalidade, dito de outro modo, o delinquente não pode despedir-se
arbitrariamente da sociedade através do seu acto” (últ. ob. cit., p. 28). Para uma descrição clara dos
antecedentes filosóficos do “direito penal do inimigo” e das traves-mestras do pensamento de JAKOBS,
cfr. também Kai AMBOS (“Derecho Penal del Enemigo”, in Derecho Penal del Enemigo – El discurso
penal de la exclusión, 1º vol., coord. Cancio Meliá/Gómez-Jara Díez, Buenos Aires: Euros Editores,
2006, p. 119 ss), que sustenta o modo como JAKOBS tomou o conceito sobretudo enquanto “categoria
analítico-descritiva para criticar o direito penal expansivo”, e não já como “programa político-criminal”, o
ponto onde “radica o alarmante e o perigoso”. Em sentido coincidente, Ulfried NEUMANN afirma que o
surgimento, em 1985, da contraposição entre “direito penal do inimigo” e “direito penal do cidadão”
pressupunha que aquela fosse “uma categoria analítica com potencial crítico” (“Derecho penal del
enemigo”, Derecho Penal de Enemigo – El discurso penal de la exclusión, 2.º vol., coord.
Cancio Meliá/Gómez-Jara Díez, Buenos Aires: Euros Editores, 2006, p. 391). Em conferência
proferida na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra a 17 de Fevereiro de 2012, o próprio
JAKOBS corrobora esta ideia, associando os seus primeiros escritos sobre o “direito penal do inimigo”
precisamente a uma crítica de um conjunto de soluções de emergência admitidas no direito alemão até
meados dos anos oitenta como forma de reagir a manifestações particularmente graves da criminalidade e
que, na opinião do Autor, não tinham já razão para subsistir.

156
de bom advirá para qualquer um dos intervenientes, que seja sentido como uma forma
de ultrapassar e sanar o conflito e não como um meio de exteriormente se lhe pôr cobro
sujeitando o agente a um mal do qual parece não decorrer directamente para a vítima
um qualquer bem.
Este conceito de encontro surge, segundo se julga, como elemento central para a
compreensão da justiça restaurativa e representa, também, a necessária interligação
entre um conteúdo e uma forma: a almejada reparação da vítima (também em uma
dimensão emocional, que não meramente patrimonial) e a pretendida assunção de
responsabilidade pelo agente que deve desencadear uma sua atitude pacificadora
supõem esse encontro através de um procedimento que o facilite. A compreensão desta
ideia parece, todavia, aqui facilitada pela expressão daquilo que a justiça restaurativa
não pretende. E que coincide, segundo se crê, com a crítica de GARCÍA – PABLOS
DE MOLINA à justiça penal, na medida em que gera a “a alienação da vítima em
relação ao sistema”, relacionada com uma “atitude de desconfiança” e um sentimento de
“impotência”, que “explicam, provavelmente, a sua escassa colaboração com as
instituições e o índice muito baixo de notícia dos delitos”282.
A importância que o procedimento facilitador do encontro assume à luz das
próprias finalidades últimas das práticas restaurativas parece desaconselhar, por isso, a
total diluição desta forma nessa outra forma que é a do processo penal283. Ou,

282
António GARCÍA–PABLOS DE MOLINA/Luís Flávio GOMES, Criminologia cit., p. 105. O Autor
acrescenta que «são muitos os factores que contribuem para a decisão da vítima de “não noticiar” o delito.
Uns derivam do impacto psicológico que o próprio delito causa à vítima: temor, abatimento, depressão.
Muitas vezes desencadeiam-se mecanismos de atribuição interna ou auto-responsabilização como
possíveis respostas a um evento que a vítima não consegue explicar (…). Outro factor relevante é o
sentimento de impotência ou de indefesa pessoal que experimenta a vítima (“nada pode ser feito”), unido
ao de desconfiança em relação a terceiros: a vítima crê na inutilidade e na ineficácia do sistema legal. E
deveríamos reconhecer que não lhe faltam razões».
283
Nesse sentido, Lode WALGRAVE (“Restorative justice for juveniles: Just a technique or a fully
fledged alternative?”, The Howard Journal of Criminal Justice, vol. 34, n.º 3, 1995, p. 240 ss) preocupa-
se com a possibilidade de a absorção da justiça restaurativa pelo sistema penal tradicional transformar
aquela num mero conjunto de técnicas ou expedientes, perdendo-se a sua visão enquanto um ideal de
justiça que decorre de um ideal de sociedade. Entre nós, Cândido da AGRA e Josefina CASTRO
(“Mediação e justiça restaurativa: esquema para uma lógica do conhecimento e da experimentação”,
Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano II, 2005, Coimbra Editora, ps. 99-100), a
propósito da análise da experiência belga e de um modelo de mediação penal que apelidam de
“judiciário” ou “oficial” – na medida em que “se integra plenamente no próprio processo formal, sendo
conduzido e executado pelos próprios agentes do sistema” – questionam a existência “no coração deste
modelo, de uma lógica verdadeiramente distinta da lógica da justiça convencional”. Os Autores
perguntam se “estaremos, neste caso, perante um modelo de justiça distinto dos modelos retributivo e
reabilitador” e mencionam resultados da avaliação daquelas práticas que “mostram que elas estão ainda
muito centradas no delinquente e, consequentemente, numa perspectiva reabilitadora ou punitiva”.
Salientam ainda que, apesar de “em 90% dos casos haver cumprimento do acordo, existem dados que
apontam para uma insatisfação ao nível do processo: talvez pelo número elevado de casos e pela pressão
inerente ao próprio sistema, o processo de mediação reveste-se de um carácter marcadamente

157
porventura com maior simplicidade: (I) a crítica do funcionamento das instâncias
formais de controlo é uma das traves-mestras da génese do pensamento restaurativo; (II)
a por alguns desejada e pensada abolição da máquina da justiça penal e a sua integral
substituição por outros mecanismos de resposta ao crime não é ainda possível para
manifestações várias da criminalidade e, em muitos casos, não é sequer desejável na
medida em que o sistema penal transporta consigo os mecanismos garantísticos sem os
quais a aplicação das sanções criminais mais graves seria potencialmente violadora de
direitos fundamentais; (III) essa “máquina” tradicional de administração da justiça penal
pode ser aperfeiçoada e tem sido aperfeiçoada mas, por ser pensada como instrumento
de administração da justiça penal pelo Estado – e ineliminável, no estádio actual das
nossas civilizações – é inadequada à administração da justiça restaurativa; assim sendo,
(IV) as práticas restaurativas, sempre que sejam possíveis, devem ocorrer no seu
próprio ambiente, que é, se bem se vêem as coisas, outro.
Esta consideração ainda relativamente embrionária do conceito de justiça
restaurativa não logrará uma maior concretização sem que antes se compreenda aquilo
que ela realmente pode representar enquanto novidade face ao sistema penal. Uma tal
reflexão impõe-se à luz de várias linhas do pensamento: (i) se a justiça restaurativa
surge da crítica ao sistema penal, o que lhe acrescenta na abordagem do conflito
interpessoal? (ii) a definição da justiça restaurativa através de uma contraposição com o
sistema de justiça penal radicará na verdade em uma diferença essencial dos modelos?
O problema agudiza-se e as linhas distintivas tornam-se menos nítidas, segundo
creio, porque a fonte onde bebeu a justiça restaurativa na sua génese foi também
conhecida pelo sistema penal. O pensamento crítico do sistema de justiça penal foi
objecto de análise interna e o sistema penal no seu todo – quer na sua dimensão
substantiva, quer na sua dimensão adjectiva – foi sofrendo alterações/aperfeiçoamentos
que o tornaram menos vulnerável àquelas críticas. Assim, uma adequada consideração
de questões tão nucleares como a das finalidades da própria intervenção penal, a das
características do sistema sancionatório, a do papel desempenhado pelo ofendido no
próprio processo ou a das formas do processo penal torna – pelo menos em um sistema

administrativo e estandardizado, afastando-se da ideia de um processo de comunicação”. Acrescentam


que a reparação assume nestes casos quase sempre uma natureza financeira e que é “raro o encontro face
a face entre vítima e agressor” (a vítima pode não estar presente nas sessões de mediação, fazendo-se
representar). Por último, afirmam o “carácter moralista” que “assume frequentemente” a última sessão de
mediação, conduzida pelo ministério público, “assemelhando-se a um mini-julgamento” e o facto de as
condições impostas por aquele magistrado não serem sempre coerentes com “o resultado do trabalho de
mediação realizado pelo mediador com a vítima e o ofensor”.

158
penal como o português e como aqueles que partilham de um idêntico contexto
civilizacional – menos pertinentes as críticas oriundas do pensamento restaurativo.
Tidos em conta alguns institutos do nosso sistema penal, talvez se possa até considerar
que a justiça penal que temos é já, em certos aspectos, parcialmente restaurativa284.
Algumas das rejeições do actual sistema de justiça penal no nosso contexto
civilizacional radicarão, segundo se crê, em um desconhecimento da forma como ele
próprio evoluiu e das características que actualmente vem assumindo. Outras – comuns
no pensamento restaurativo – adequar-se-ão preferencialmente a outros sistemas
jurídicos mais dominados por uma filosofia de just deserts.
A reflexão que se propõe – de delimitação e diferenciação do sistema penal que
temos face a um modelo restaurativo com pretensões de resolver outros males
originados pelo crime – não será, pelo que antes se disse, tão simples como se poderia
julgar (pelo menos, à luz de uma leitura menos crítica do pensamento restaurativo e à
luz de uma leitura mais superficial do sistema de justiça penal). A pretendida
compreensão daquilo que o paradigma restaurativo de facto pode representar – e, nessa
medida, daquilo em que poderá tornar melhor a resposta ao crime (o que se não deve
confundir com uma melhor resposta penal ao crime) – supõe, pois, uma análise
comparativa daquilo que ele se propõe realizar (e daquilo que, em algumas experiências
pioneiras, em alguns países do mundo já foi realizando) e daquilo que o sistema penal
se propõe realizar e realiza (ou não)285. No final, talvez a conclusão se afaste quer da
impressão frequente de que os dois modelos são presididos por finalidades e formas de

284
O que legitima a interrogação sobre a possível existência de uma justiça penal que procura ainda ser
restaurativa por oposição a práticas restaurativas que não têm de ser necessariamente justas. A questão
adquire especial pertinência se considerarmos que, mesmo no seio do pensamento restaurativo, existem
de facto tensões internas entre algumas das suas dimensões. Assim, a uma sua dimensão que combina
aspectos éticos de responsabilização individual e colectiva, aspectos democráticos e comunicacionais que
supõem a participação num processo de justiça horizontal e não já desnivelado, parece opor-se por vezes
uma sua outra dimensão, mais instrumental, assente em uma lógica de racionalização dos recursos
direccionados para a gestão dos conflitos. Ora, se o objectivo de simplificação do sistema penal é legítimo
e pode ser atingido através da desjudiciarização, o que já se afigura perigoso é a utilização de programas
pretensamente restaurativos para que, sem o entrave que representam os princípios garantísticos do
sistema penal, se atinjam finalidades punitivas (v.g. através da assunção pelo agente de obrigações
severas, com uma voluntariedade pouco esclarecida ou mitigada e em situações que poderiam ter sido, no
seio do sistema penal, de arquivamento) ou se coajam as vítimas a formas de concertação não desejadas.
Julgo, porém, que estes programas “restaurativos” orientados exclusivamente por aquela lógica
instrumental poderão não conduzir a resultados justos e poderão não atingir sequer, em muitos casos, as
suas finalidades pretensamente restaurativas. Para uma reflexão sobre algumas práticas restaurativas
inscritas “numa lógica securitária de extensão do controlo social formal”, vd., entre nós, Cândido da
AGRA/Josefina CASTRO, últ. ob. cit., p. 108.
285
A abertura deste parêntesis não é inocente: parece haver um efectivo distanciamento entre muitas
tentativas legislativas de alteração do sistema penal com o objectivo de o tornar menos dessocializador,
mais célere e mais informal e a forma como na prática tal sistema é aplicado.

159
actuação radicalmente diferentes, quer do entendimento de que as finalidades são as
mesmas e é apenas o procedimento adoptado para as atingir que difere: a possibilidade
de autonomização no crime de duas distintas dimensões não prejudica, em definitivo,
uma sua certa unicidade, pelo que apesar de as finalidades da intervenção serem
distintas e conformadas a partir de cada uma daquelas dimensões, a obtenção de umas
poderá contribuir para a concretização mediata das outras (hipótese em que uma das
respostas poderá tornar desnecessária a outra).
Mas, ainda que assim seja, crê-se que se concluirá pela subsistência de algumas
especificidades. Mais: julga-se que se defenderá que tais especificidades se devem
manter na exacta medida em que correspondem a respostas a diferentes necessidades
suscitadas pela ocorrência de um crime. Dito de forma mais simples: haverá casos em
que a pacificação dos intervenientes e a cura daqueles males causados por aquele
específico crime serão suficientes (desde que assim consideradas pelos próprios); outros
casos existirão em que a resposta punitiva se imporá também (para além da curativa) em
nome da necessidade de protecção de outros que não apenas os intervenientes naquele
conflito (pelo que não será suficiente o mero juízo sobre a melhor defesa dos interesses
destes últimos).
O que agora se disse permite intuir uma diferença que pode vir a revelar-se
crucial na compreensão dos conteúdos e fronteiras da justiça penal e da justiça
restaurativa: aquela justiça penal é, em primeira linha, uma resposta punitiva ao crime
encarado na sua dimensão pública; esta justiça restaurativa será, em primeira linha, uma
resposta curativa face ao dano em sentido amplo sofrido por cada pessoa envolvida no
crime e uma resposta curativa da relação interpessoal.
Muitas das dificuldades sentidas pelo sistema penal, ao longo da sua história, e
pela justiça restaurativa, mais recentemente, radicarão porventura na incompreensão das
dificuldades de querer curar ao punir – poder-se-á, de facto, transformar a imposição de
um mal que é a pena na obtenção de um bem ou dever-se-lhe-á apenas exigir a não
causação de um mal maior? –, assim como nos problemas associados a pretender punir
através da cura286. Essas dificuldades poderão aconselhar a manutenção de uma certa
autonomia de cada uma das respostas ao crime.

286
Ainda que os efeitos do cumprimento da pena se venham a revelar um bem, é difícil configurar a
própria execução da pena – e refiro-me sobretudo à sanção criminal clássica, a pena de prisão – como um
bem. Com esta afirmação não se pretende, todavia, deixar cair o ideal socializador enquanto elemento
norteador da resposta punitiva – que assim pareceria, ainda, curativa. O que se pretende é tão somente
afirmar (i) que não será nunca a privação da liberdade que socializa (ainda que eventualmente os valores e

160
A possibilidade de confusão entre o sistema de justiça penal e o modelo
restaurativo radicará, assim, sobretudo nas tendências de expansão ou alargamento a
que cada um deles vem sendo sujeito. Enquanto no sistema penal se vem assistindo à
crescente reclamação sobre a necessidade de tratar das necessidades da vítima, surgem
vozes no seio do próprio movimento restaurativo que defendem a sua adequação
também ao sancionamento do agente. Deste modo, parecem aniquilar-se as diferenças
essenciais entre o sistema penal e a resposta restaurativa, na medida em que ambos se
orientariam pelos mesmos objectivos: a pacificação da comunidade, o sancionamento
não dessocializador do agente, a reparação dos danos sofridos pela vítima. Nesta visão
em que cada um dos sistemas quer tudo, a diferença pareceria radicar, de facto, apenas
na ordem de prioridade pela qual se elenca tudo aquilo que se quer.
No que respeita à justiça restaurativa, esta ambição quanto aos fins pode
encontrar justificação quer nas suas diversas fontes de inspiração criminológicas, quer
na necessidade de – enquanto movimento recente e com pretensões de expansão – se
apresentar com amplitude suficiente para cativar apoios em alas diversas. De facto,
como antes se referiu, na génese do pensamento restaurativo confluem quer o
movimento vitimológico – e, logo, as preocupações com a tutela dos interesses da
vítima –, quer o movimento abolicionista – e, logo, as preocupações com um tratamento
mais humano do agente. Por outro lado, como bem notam Cândido da AGRA e Josefina
CASTRO, «o poder de sedução e a expansão deste movimento podem ser explicados
pelo seu carácter versátil e flexível (pode funcionar em qualquer fase do processo de
justiça criminal formal, pode adequar-se a crimes de natureza e gravidade muito
diferentes e as suas regras adaptam-se facilmente a diferentes culturas), por outro lado,
devem-se também à ambivalência traduzida habitualmente pela fórmula “agradar a
gregos e a troianos. Perspectivas diversas de justiça criminal, ideologias e interesses
muito diferentes e até contraditórios podem ser servidos por este movimento: pode, por
exemplo, agradar aos que acusam o Estado de permissividade relativamente à
delinquência e reclamam respostas mais duras face ao delinquente e maior protecção da

competências que durante ela se adquiram o possam e devam facilitar); (ii) a verificação de que
hodiernamente a execução da pena de prisão raramente será ressocializadora não é suficiente, no actual
estádio de resposta à criminalidade, para prescindir da sua aplicação, o que significa a prevalência da
necessidade punitiva sobre a vontade curativa; (iii) admitida esta prevalência, em última análise, da
dimensão punitiva da sanção criminal, não se lhe deve retirar a ambição de, só na medida do possível mas
em toda a medida do possível, ter ainda uma dimensão curativa.

161
vítima, e aos que exigem maior atenção aos direitos do delinquente, que consideram
insuficientemente salvaguardados pelo sistema formal»287.
As dificuldades surgem, segundo se julga, por existirem crimes para os quais
não é possível encontrar uma resposta única que satisfaça todos aqueles objectivos (ou
que, pelo menos, os satisfaça de igual forma, a todos de forma plena). Assim sendo, há
que hierarquizar prioridades. E, se bem se vê o problema, a prioridade do sistema penal
deve continuar a ser o sancionamento justo do agente – sem que a sanção, aplicada no
final de um processo que não desrespeite direitos fundamentais, ultrapasse a medida
permitida pela culpa – de modo a defender os valores essenciais da comunidade e a
socialização do agente. A prioridade das práticas restaurativas deve ser a reparação dos
danos sofridos pelos intervenientes no conflito e a oferta de uma possibilidade de
pacificação do conflito (inter)pessoal. Ora, se há casos em que os resultados a que se
chega através de cada uma das respostas podem influenciar-se reciprocamente (sendo
pensável uma interpenetração dos respectivos procedimentos), outros casos são
pensáveis em que cada uma daquelas respostas deverá ou só poderá existir em solidão.
Feita esta aproximação ao conceito de justiça restaurativa através de uma sua
diferenciação face à justiça penal, há agora que enfrentar dois dos elementos
pretensamente caracterizadores do paradigma restaurativo que desde o início se intuíram
mais problemáticos: a dimensão de realização da justiça, por um lado; a dimensão
comunitária, por outro lado. Considere-se primeiramente esta última – a dimensão
comunitária – que talvez acabe por justificar uma correcção (ou, porventura com mais
exactidão, um aditamento excepcional) àquela proposta de compreensão da justiça
restaurativa, que se julga mais correcta e que se funda na existência, no crime, de um
conflito de natureza (inter)pessoal, cuja possibilidade de pacificação deve ser oferecida.

4. O “problema da comunidade”

O chamamento frequente da comunidade288, enquanto actriz principal, ao palco


da justiça restaurativa, desencadeia, segundo se crê, várias dificuldades, quer do ponto

287
Cândido da AGRA/Josefina CASTRO, últ. ob. cit., p. 105.
288
Entre os cultores do pensamento restaurativos é recorrente a referência à importância da comunidade,
o que faz com que com frequência se associe justiça restaurativa a justiça comunitária. Mais
recentemente, porém, podem notar-se algumas cautelas mesmo entre Autores, como Lode WALGRAVE,
para quem é essencial o “ideal comunitário”. De facto, este acaba por reconhecer que esse ideal
comunitário tem de ser compatibilizado com um modelo de Estado, porque “se não houvesse Estado, não
haveria direitos, e cada um dependeria da boa vontade dos outros ou do seu próprio poder de competir

162
de vista de um enquadramento teórico do sentido da sua intervenção, quer ao nível de
uma conformação mais pragmática do modo como essa intervenção pode ocorrer.
Em primeiro lugar, o facto de esse chamamento289 da comunidade e da vítima ao
processo para, enquanto sujeitos principais e ao lado do agente, contribuírem para a
solução do conflito, não é tão evidente sob o ponto de vista de uma reflexão teorética
como à primeira vista resultaria de uma adesão imediata à ideia de “roubo do conflito
pelo Estado” de Nils CHRISTIE, na medida em que o Autor, se rejeita a intervenção
usurpadora do Estado, já pretende a intervenção empenhada da comunidade290.
Com efeito, parece que este entendimento de CHRISTIE supõe a rejeição da
ideia clássica de intervenção do Estado como entidade derivada dos direitos dos
cidadãos e de exercício desses direitos. Veja-se, de facto, a distância que vai da opinião
de CHRISTIE – para quem o Estado usurpou o direito à resolução do conflito – à
concepção perfilhada por HASSEMER, que acredita que o Estado não é (e deve
continuar a não ser) usurpador, na medida em que “o Estado é apenas uma instituição
derivada dos direitos dos cidadãos, é deles que recebe a sua legitimação e eles são, ao
mesmo tempo, os limites do seu poder. O contrato social não permite nenhum poder
autónomo, nem usurpador. Precisamente por isto, é preciso limitar o poder estatal do
modo mais enérgico no ponto onde mais claramente se manifesta, ou seja, no direito

com os outros e oprimi-los”. Todavia, o Autor também considera que “se só houvesse Estados, não
haveria confiança, e o outro seria considerado um rival, uma ameaça para o território de cada um” (in
“Imposing Restoration Instead of Inflicting Pain” cit., p. 76).
289
Com este conceito de chamamento da comunidade pela justiça restaurativa não se abrangem as
questões atinentes à intervenção da comunidade como “parceira na promoção e na aplicação dos
programas restaurativos” [na terminologia de Mylène JACCOUD (“Princípios, Tendências e
Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa” cit., p. 177)], mas antes reflectir sobre o sentido da sua
intervenção nas próprias práticas restaurativas.
290
A propósito do sentido da intervenção da comunidade na justiça restaurativa, Mylène JACCOUD
(ibidem, p. 176) sublinha que “se trata de uma orientação que desloca a aproximação clássica punitiva na
qual o Estado é constituído como a entidade prejudicada pelo crime para uma aproximação adaptada à
realidade: as pessoas concretas (as vítimas), mas também as comunidades às quais pertencem, sofrem os
golpes da criminalidade”. A referência frequente à centralidade da comunidade na proposta restaurativa
não logra, porém, em regra, a destrinça daquilo que essa centralidade significa. Segundo se crê, deve
autonomizar-se a questão da pacificação da comunidade como finalidade da intervenção restaurativa
(suportada pela ideia de que a própria existência de um conflito e a sua superação no contexto de um
processo de “encontro” podem ser vantajosas para a harmonia comunitária) da questão da participação da
própria comunidade nas práticas restaurativas, e dos moldes em que essa participação pode ocorrer.
Relativamente ao primeiro aspecto, cfr. Eduard VINYAMATA (Conflictología. Curso de Resolución de
Conflictos, 2.ª ed., Barcelona: Ariel, 2006, p. 39 ss), que procura sustento em algumas reflexões
filosóficas para aquela ideia de que o conflito e a sua superação em moldes não autoritários são
importantes para a coesão da comunidade.

163
penal, que deve ser configurado a partir do ponto de vista dos direitos individuais, como
uma forma de protecção, a mais enérgica e contundente, dos mesmos”291.
Todavia, a pretendida participação da comunidade na justiça restaurativa suscita
ainda outro tipo de problemas, porventura de natureza mais prática. Como compreender
esse paradoxo que radica em cada vez se clamar mais pela participação da comunidade
na reacção ao crime quando uma das características dos tempos de hoje parece ser o
individualismo e a desagregação dos laços comunitários292? Como se define a
comunidade com legitimidade para intervir nas práticas restaurativas? Como garantir a
não preponderância dos interesses dos mais fortes sobre os interesses dos mais fracos?
O que se pretende exactamente dessa intervenção comunitária na busca de uma solução
para o conflito? O que está em causa é garantir a participação da comunidade no
processo contribuindo para uma solução que repare os danos sofridos pela vítima e que
seja efectivamente aceite e compreendida pelo agente? Ou o que está em causa é
encontrar através das práticas restaurativas uma solução que satisfaça a comunidade293?
As dificuldades que os próprios cultores do paradigma restaurativo têm sentido
na procura de respostas para estas interrogações são evidentes. A título de exemplo,

291
Winfried HASSEMER/Francisco MUÑOZ CONDE, La responsabilidad por el producto en derecho
penal, Valência: tirant lo blanch, 1995, p. 21. Pelo menos sob um ponto de vista teórico, podemos
distinguir aqueles que nem sequer aceitam o conceito de contrato social com a consequente limitação das
liberdades individuais daí decorrentes daqueles outros que o aceitam mas que pretendem limitar ao
mínimo as perdas daí decorrentes para o indivíduo. Ana Paula ZOMER SICA, que parece poder ser
incluída neste segundo grupo, considera que “o contrato social não nos obriga a sermos espectadores das
nossas vidas e destinos; é hora de, em todas as frentes, encararmos o desafio” (in “Participação cidadã na
administração da justiça”, Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2003, p. 117).
292
Chamando a atenção para esta contradição, veja-se Adam CRAWFORD, que não deixa de referir
outros problemas inerentes a este “apelo comunitário”, nomeadamente a “natureza problemática do
conceito de comunidade” ou a fragmentação do Estado (The Local Governance of Crime. Appeals to
Community and Partnerships, Oxford: Oxford University Press, 2004, ps. 148 ss e 202 ss).
293
Cândido da AGRA e Josefina CASTRO (“Mediação e justiça restaurativa: esquema para uma lógica
do conhecimento e da experimentação”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano
II, 2005, Coimbra Editora, p. 108 ss) dão voz a algumas destas dificuldades suscitadas pela alegada
dimensão comunitária da justiça restaurativa. Concordo, em larga medida, com a forma como elencam os
problemas, como ultrapassam alguns deles e com a forma como, por parecerem considerar incontornáveis
certas objecções suscitadas, limitam o papel da comunidade no palco restaurativo. Assim, se começam
por lembrar que “community is not a place”, pelo que mesmo em sociedades urbanas, individualistas e
anónimas “existem redes de suporte susceptíveis de serem mobilizadas e co-responsabilizadas neste
processo” – não tendo a comunidade que corresponder a “nenhuma entidade física ou geográfica
particular” – , já temem a visão da comunidade como “a aceitação nostálgica de um retorno ao passado,
como se este fosse um paraíso perdido, conduzindo-nos à imitação de formas de justiça incompatíveis
com a nossa ideia de justiça, de liberdade, de democracia e de direitos fundamentais”. Concluem
recordando a opinião de alguns cultores do pensamento restaurativo para quem “estas iniciativas não
podem dispensar as virtudes do estatismo liberal – os direitos, a justiça procedimental, a protecção dos
mais vulneráveis contra o domínio dos mais fortes – e afirmam a necessidade de criar mecanismos legais
de enquadramento e de regulação destas práticas, designadamente a definição da sua posição no seio do
processo penal”.

164
considere-se o pensamento de Katherine DOOLIN, que refere o “envolvimento
comunitário” como “desafio” e reconhece que “na literatura relativa à justiça
restaurativa existem com frequência diversas definições dadas ao conceito de
comunidade, que são com frequência demasiado vagas e imprecisas”294. Parece oscilar-
se, de facto, entre definições de entono mais “geográfico”, que associam o conceito de
comunidade a um lugar onde estão o agente e a vítima e atribuem assim relevo à
comunidade como lugar onde se vive, à comunidade só de vizinhos ou à comunidade
laboral, por exemplo; e outras de vocação não espacial mas antes centradas na
existência de uma estrutura de afectos ou de cuidados relacionada com um sentimento
de pertença por parte do agente ou da vítima àquele grupo. Esta última concepção é,
regra geral, associada ao título do estudo de McCOLD e WACHTEL, “Community is
Not a Place: A New Look at Community Justice Iniciatives”295. Outro ponto de
divergência – mas que não se julga inteiramente desligado da clivagem anterior, ainda
que não sejam sobreponíveis – prende-se com a opção por um conceito de “micro-
comunidade” ou de “macro-comunidade” (aquela menos distante de uma comunidade
de vizinhos, de colegas de trabalho ou mais genericamente “de afectos”; esta mais
próxima da ideia de “comunidade local”)296.
Apesar de ser um partidário do comunitarismo na proposta restaurativa, Lode
WALGRAVE reconhece que essa comunidade é “difícil de definir”. E, além disso,
elenca um conjunto de vários outros problemas suscitados por aquele apelo à
participação comunitária (parecendo, por outro lado, que não consegue explicar de
forma satisfatória em que moldes deve essa participação acontecer): afirma que a
pertença a uma comunidade tem natureza “mais psicológica do que geográfica”, o que é
difícil de avaliar; afirma que a existência de comunidades que possam desempenhar um
papel na justiça restaurativa está “longe de ser uma evidência”, pelo menos em um
conjunto muito significativo de casos297; sustenta que as comunidades não são
necessariamente “boas em si mesmas”298.

294
Katherine DOOLIN (“But What Does It Mean? Seeking Definitional Clarity in Restorative Justice”
cit., p. 435).
295
Cfr. Paul McCOLD/Benjamin WACHTEL, “Community is not a Place: A New Look at Community
Justice Initiatives”, Contemporary Justice Review, 1998, vol. 1, n.º 1, p. 71 ss. Segundo os Autores,
construir uma comunidade implica a criação de elos entre os seres humanos. Sem a percepção da
existência desses elos, “não há comunidade”.
296
Para uma ponderação da divergência entre os conceitos de micro e de macro-comunidade, cfr. Paul
McCOLD, “Restorative Justice and the Role of Community”, Restorative Justice: International
Perspectives, eds. B. Galaway/J. Hudson, Nova Iorque: Criminal Justice Press, 1996, p. 85 ss.
297
Lode WALGRAVE (“Imposing Restoration Instead of Inflicting Pain”, Restorative Justive &
Criminal Justice cit., p. 68) dá o exemplo, para ilustrar esta ideia, de um roubo cometido na rua, em que o

165
De qualquer forma, talvez possa partir-se da ideia de que a participação
comunitária que não seja a da comunidade democraticamente representada pelo Estado
é menos problemática em procedimentos que não são determinados em primeira linha
pela intenção de punir. Parece poder entender-se, como linha orientadora, que deve
aceitar-se o auxílio da comunidade para curar, mas já não para castigar aplicando uma
sanção com determinado grau de severidade. Dito de outra forma: a participação da
comunidade em programas restaurativos causa menos problemas e compreende-se
melhor se houver participação voluntária de agentes e vítimas que sabem que o processo
não pode culminar com a aplicação de uma sanção coactiva orientada por finalidades
essencialmente punitivas.
Ainda que assim seja – ainda que a participação comunitária pareça menos
problemática no contexto de programas flexíveis e informais que almejam a restauração
e que a vêem como mais provável com uma intervenção lata de todos aqueles cujo
auxílio seja possível garantir –, subsistem obstáculos consideráveis, segundo se crê, à
percepção da comunidade enquanto “sujeito principal” das práticas restaurativas. Sobra
uma perplexidade que se não logra, pelo menos na sua plenitude, ultrapassar e que é
susceptível de enunciação simples: se o modelo de reacção ao crime que é a justiça
penal constitui “assunto sobretudo da comunidade” e não já “assunto sobretudo da
vítima”, e se esse despojamento da vítima é trave-mestra da crítica restaurativa, como
pode depois pretender-se que também as práticas restaurativas tenham no seu núcleo a
comunidade?

agente e a vítima vivem a muitos quilómetros de distância um do outro e pertentem a contextos sociais
muito diversos. Sustenta que muitos crimes ocorrem em ambientes de “ausência de comunidades”, tendo
as soluções de ser encontradas na ausência desse enquadramento comunitário. O Autor procura, porém,
contornar os problemas trazidos pela inexistência de comunidade ou pela existência de comunidades
muito diversificadas e com atitudes que nem sempre são de inclusão, através de uma metodologia que
pressupõe uma desvalorização da comunidade concreta e uma valorização de um ideal de vida em
comunidade. O que interessa na ideia de comunidade são “os contributos éticos e os valores” que lhe são
inerentes e cuja compreensão é essencial quando se crê, como o Autor, que “a justiça restaurativa é muito
mais do que uma perspectiva técnica de fazer justiça”, “ é um ideal de justiça num ideal utópico de
sociedade”. Esses valores ou “elementos sócio-éticos” inerentes a tal concepção de sociedade são,
sobretudo, os de respeito, solidariedade e responsabilidade, que WALGRAVE procura definir e
distinguir. Procura, para além disso, mostrar que se “cumprem melhor” com uma justiça restaurativa do
que com aquilo que designa como “justiça retributiva”.
298
Uma visão céptica relativamente às vantagens da participação de pelo menos algumas comunidades
nas práticas restaurativas é a de George PAVLICH (“The Force of Community”, Restorative Justice and
Civil Society, Eds. H. STRANG/J. BRAITHWAITE, Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p.
56 ss), que refere a sua possível tendência para a exclusão daqueles que são vistos como diferentes porque
“exteriores” ao grupo. Afirma-se o perigo de a comunidade comportar um “paroquialismo” que pode
conduzir a exclusões “atrozes” e “totalitárias”.

166
O cerne da questão está, portanto, em não se conseguir vislumbrar como pode
um modelo de reacção ao crime que critica na justiça penal a solução do conflito no
interesse da comunidade (com desconsideração da vítima) pretender depois a
intervenção da comunidade (com um papel principal) nas práticas restaurativas.
Por ser assim, talvez deva antes reconhecer-se que da defesa dos interesses da
comunidade já trata o Estado através da administração da justiça penal299. E é, de resto,
por tais interesses – vertidos nas finalidades preventivas da pena – nem sempre serem
coincidentes com os interesses da vítima concreta do crime que dificilmente se pode
erigir a defesa destes últimos interesses enquanto finalidade principal da resposta penal
ao delito.
Se um dos fundamentos da resposta restaurativa deve ser encontrado na ideia de
devolução do conflito àqueles que nele foram os intervenientes300, não se vê como
podem, nas práticas restaurativas, por-se em pé de igualdade as necessidades concretas
do agente e da sua vítima e também as necessidades da comunidade.
Assim, o aqui se quer enfatizar é a inadequação que parece existir entre a defesa
do comunitarismo ao nível das práticas restaurativas – com o que se pretende significar
a elevação da comunidade a sujeito principal de tais práticas – e aqueles que se julga
serem o fundamento e as finalidades da justiça restaurativa301.

299
Esta afirmação, decorrente da aceitação da função de protecção de bens jurídicos que cabe ao direito
penal, não deve, porém, impedir a interrogação sobre se, em cada momento, o exercício pelo Estado do
seu ius puniendi é, de facto e como deveria, conformado pela defesa da comunidade ou se, pelo contrário,
a forma como esse poder punitivo se exerce vem a revelar-se não coincidente com o interesse da
comunidade na segurança e com o respeito pelos direitos fundamentais de cada um dos seus indivíduos.
Ou seja: a ideia de que cabe à justiça penal o desempenho de um determinado papel não pode fazer-nos
perder o sentido crítico sobre se efectivamente ela o desempenha. Assim, a título de exemplo, considere-
se a criação de normas penais em sentido amplo (que podem abranger, nomeadamente, disposições de
índole processual penal ou atinentes à execução das penas) que são mais punitivas e apresentadas como
mais eficazes na protecção de determinados valores, mas que se revelam menos adequadas à protecção
desses valores. Nestes casos, não poderá afirmar-se uma coincidência real entre o interesse da
comunidade e o exercício estadual do ius puniendi, correspondendo antes aquela actuação a um interesse
político de demonstração de eficácia na “guerra contra o crime” que se afasta do interesse comunitário na
segurança, na reafirmação dos valores e na promoção dos direitos fundamentais dos indivíduos.
300
Esta ideia é recorrente na doutrina restaurativa, pelo que não se considera necessária (ou porventura
sequer exequível) uma listagem exaustiva dos Autores que a defendem. Em jeito de exemplo, recorde-se
apenas a afirmação de Ezzat FATTAH e de Tony PETERS de que “o acto criminoso já não é visto como
uma ofensa ao Estado ou à sociedade, mas como um acto prejudicial, ofensivo para a vítima, como um
conflito entre duas partes” (in Support for Crime Victims in a Comparative Perspective, Eds. Ezzat
Fattah/Tony Peters, Leuven: Leuven University Press, 1998, p. 11).
301
Entre os Autores que manifestam dúvidas sobre a relevância da participação comunitária (ainda que
não exactamente pelas mesmas razões a que aqui se atribui primazia), cfr. Adam CRAWFORD, “The
state, community and restorative justice: heresy, nostalgia and butterfly collecting”, in Restorative Justice
and the Law, Ed. Lode WALGRAVE, Devon: Willan Publishing, 2002, p. 101 ss. Na sua opinião, “o
papel da comunidade como força de coesão social está limitado pela realidade corrente da desigualdade
geográfica, a concentração espacial de riqueza e de pobreza e a aumentada polarização social”. A
verificação de que algumas comunidades estão mais providas do que outras para auxiliar os seus

167
É conhecida a afirmação de Ana MESSUTI de que “a vítima, em particular,
sofreu um despojamento por parte do sistema penal. Esta tirou à verdadeira vítima tal
qualidade, para investir a comunidade nesta qualidade. O sistema penal substituiu a
vítima real e concreta por uma vítima simbólica e abstracta: a comunidade”302.
Esquematize-se a questão em moldes quase geométricos: se na justiça penal não
for actriz principal, mas antes meramente secundária, talvez deva reconhecer-se que é
nas práticas restaurativas que a vítima recuperará esse papel de protagonista da sua
própria história. Resultará daqui, de forma necessária, um total apagamento da
comunidade nas práticas restaurativas? A resposta é negativa: sobra à comunidade um
espaço de intervenção, ainda que porventura já não principal e ainda que se lhe deva dar
definição diversa daquela que subjaz à afirmação de que o processo penal é assunto da
comunidade. A comunidade em que sobretudo se pensa no contexto das práticas
restaurativas é, se bem se vê o problema, outra.
Assumindo-se o risco de uma simplificação porventura excessiva, talvez possa
afirmar-se que a comunidade interveniente nas práticas restaurativas é mais estreita do
que a “comunidade toda” no interesse de quem se administra a justiça penal: enquanto
esta se destina tradicionalmente à defesa de todos os cidadãos agrupados em
determinado contexto espacial que tende a coincidir com o do Estado, já aquela outra
comunidade que pode participar em práticas restaurativas deve ser vista como uma mera
comunidade de próximos.
O que se vem de afirmar não prescinde, porém, de alguns esclarecimentos
adicionais, até porque se julga impor-se a distinção entre dois níveis de relevância
destas duas distintas comunidades, ora na justiça penal303, ora nas práticas restaurativas:
por um lado, pensa-se na pertença do interesse em nome do qual se procura a solução
para o conflito; por outro lado, tem-se em mente a legitimidade para se ser
interveniente nos procedimentos que visam dirimir o conflito.

membros leva CRAWFORD a concluir que uma justiça restaurativa dependente da comunidade pode não
contribuir para a justiça distributiva (ob. cit., ps. 110-1).
302
Ana MESSUTI, O Tempo como Pena, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 72.
303
A compreensão daquele que é, a estes dois níveis, o relevo da comunidade na justiça penal (para a
partir daí se vislumbrar o muito distinto carácter que assume nas práticas restaurativas) resulta com
particular clareza da afirmação de Jorge de FIGUEIREDO DIAS, a propósito do direito penal, de que
“porventura em nenhuma outra disciplina jurídica como nesta surgirá uma tão nítida relação de supra-
infra ordenação entre o Estado soberano, dotado do ius puniendi, e o particular submetido ao império
daquele; como em nenhuma outra será tão visível a função estadual de preservação das condições
essenciais da existência comunitária e o poder estadual de, em nome daquela preservação, infligir pesadas
consequências para a liberdade e o património (…) dos cidadãos” (in Direito Penal cit., 2.ª edição,
Coimbra Editora: 2007, ps. 13-4).

168
Quanto ao primeiro aspecto – o da titularidade do interesse cuja satisfação é
vista como finalidade da intervenção –, o que parece razoável defender-se é que
enquanto a justiça penal é primeiramente administrada no interesse daquela comunidade
ampla, já as práticas restaurativas não têm, regra geral, como finalidade principal a
defesa do interesse daquela comunidade estreita, mas antes a defesa dos interesses da
vítima e do agente na solução do conflito em que intervieram, sendo que a pacificação
daquela comunidade de próximos surgirá, eventualmente, apenas como objectivo
mediato ou como condição favorecedora da restauração, seja da vítima, seja do agente.
No que respeita ao segundo aspecto, as diferenças entre a forma como a
comunidade participa na justiça penal e nas práticas restaurativas avolumam-se, tendo
em conta a diversidade essencial de ambos os procedimentos. No processo penal, a
defesa do interesse da “comunidade toda” surge associada ao Estado, cujos
representantes exercem autoridade em um processo de estrutura vertical. Nas práticas
restaurativas, aquela “comunidade de próximos” não tem a prerrogativa de qualquer
exercício de poder, antes se integrando por formas diversas em procedimentos de
estrutura horizontal. Por outro lado, urge sublinhá-lo, diversamente do que sucede na
justiça penal, nas práticas restaurativas a intervenção daquela comunidade assume um
carácter de eventualidade, não sendo de natureza essencial (como se comprova, por
exemplo, com a mediação vítima-agressor).
Julga-se que existem, porém, situações de excepção – ou, pelo menos, de
excepção àquela concepção da proposta restaurativa como primariamente orientada para
a pacificação do conflito (inter)pessoal – em que um conjunto de cidadãos ou uma
comunidade podem adquirir um papel principal nas práticas restaurativas.
Será assim, se bem se vê o problema, em um primeiro conjunto de casos em que
se admitam práticas restaurativas no contexto de uma criminalidade a que em sentido
muito amplo se pode chamar “sem vítima”: quando se aceita que as práticas
restaurativas são um modo adequado de reagir a infracções que não ofendem os
interesses de pessoas determinadas, mas antes os interesses de um grupo mais ou menos
amplo de pessoas tendencialmente indetermináveis, parece poder cogitar-se a
participação de representantes desse grupo em um procedimento que tem como
finalidade precisamente a restauração daquele interesse ofendido que é de todos304.

304
A discussão em torno da admissibilidade das práticas restaurativas no âmbito dos crimes sem vítima
(conceito que aqui se usa com o sentido muito lato de incluir todas aquelas infracções em que não é
possível identificar individualmente os ofendidos que deveriam ser chamados a participar na busca de

169
Uma outra hipótese em que se admite que a comunidade possa tornar-se sujeito
principal – quer quanto ao fim da intervenção, quer quanto à participação nos
procedimentos – das práticas restaurativas prende-se com contextos muito específicos,
por exemplo de comunidades “afastadas” do Estado, que não consegue regular os
conflitos ou renuncia a fazê-lo305.

uma solução) deverá merecer, porém, tratamento autónomo, por ser com frequência utilizada para
demonstrar os limites da justiça restaurativa.
305
A existência de ghettos em sentido amplo, enquanto espaços alheios à efectiva regulação estadual e
também à administração da justiça penal, pode fomentar (e justificar, pelo menos em parte) outras formas
de reacção ao conflito que seria criminal. Ainda que não caiba nos propósitos desta reflexão uma qualquer
reflexão sobre o controvertido conceito de ghetto, deve registar a existência de Autores, como Loïc
WACQUANT, que recusam a mera associação do conceito a “zona segregada”, “espaço de grande
pobreza” ou “espaço habitado por pessoas com comportamentos anti-sociais” e que centram a definição
no exacto ponto que é pertinente a este estudo (cfr. Punir les Pauvres cit., p. 237). Assim, segundo
WACQUANT, o que caracteriza o ghetto é o facto de ser “um dispositivo sócio-espacial que permite a
um grupo estatutário dominante a exploração e a ostracização de um grupo dominado que é portador de
um capital simbólico negativo”. As quatro principais notas definitórias seriam, assim, o estigma, o
constrangimento, o “fechamento” territorial e a exclusão institucional. O que conduz à afirmação de “um
espaço distinto que contem uma população com homogeneidade étnica que se vê constrangida a
desenvolver no interior desse perímetro reservado e fechado um conjunto de instituições que dupliquem o
quadro institucional da sociedade envolvente”. Todavia, como o Autor também reconhece, na construção
dessas “instituições” podem funcionar estratégias sociais específicas. Ora, é isso que nos aproxima, face à
inexistência de uma resposta para o crime dada pela justiça penal estadual, do surgimento ou de outras
formas de autoridade, ou de modos de solução alheios à existência de uma decisão autoritária a cargo de
um terceiro e antes centrados no encontro e no diálogo dos intervenientes naquele conflito. A título de
exemplo, registe-se que a questão tem sido tratada a propósito de algumas comunidades situadas na
periferia das grandes cidades brasileiras. Procurando caracterizar aquela que é a ausência do Estado
nesses contextos, Alberto SILVA FRANCO refere a existência de “buracos negros onde o regramento
jurídico é abandonado e substituído pelas regras dos que fazem uso da força; são hiatos onde o Estado se
mostra totalmente ausente. Há bairros periféricos na cidade de São Paulo, com mais de 600.000
habitantes, sem nenhuma presença estatal” (Conferência Final do Colóquio em Homenagem ao
IBCCRIM, que teve lugar na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 13 e 14 de Abril de
2007, e que deu origem à publicação Justiça Penal Portuguesa e Brasileira – Tendências de Reforma,
2008, ps. 167-8). Esta é, de resto, uma ideia que já chegou à própria cultura popular brasileira e que está
vertida, por exemplo, na sua música. Os Cidade Negra cantam que “Nos barracos da cidade/Ninguém
mais tem ilusão/No poder da autoridade/De tomar a decisão/E o poder da autoridade/Se pode, não faz
questão/Se faz questão, não consegue/Enfrentar o tubarão” (“Nos barracos da cidade”, Liminha e Gilberto
Gil). O assunto foi também tratado por Boaventura de SOUSA SANTOS que, a propósito da realidade
das favelas brasileiras, refere a forma como as associações de moradores (e antes delas, os “leaders
locais”) assumiram funções de “ratificação de relações jurídicas e a resolução das disputas ou litígios
delas emergentes”. A propósito da favela de Paságarda (uma das mais antigas favelas do Rio de Janeiro),
afirmava a existência de “um direito paralelo não oficial, cobrindo uma interacção jurídica muito intensa
à margem do sistema jurídico estatal (o direito do asfalto, como lhe chamam os moradores das favelas,
por ser o direito que vigora apenas nas zonas urbanizadas e, portanto, com pavimentos asfaltados)”. Com
particular interesse na perspectiva daquele que é o objecto deste estudo, SOUSA SANTOS refere-se
especificamente a um processo de decisão centrado na mediação: “ainda que uma das partes possa ser
mais vencedora do que outra, o resultado nunca é de soma-zero, ao contrário do que sucede na forma de
adjudicação (vencedor/vencido), que é hoje largamente dominante nos sistemas jurídicos oficiais dos
estados capitalistas (se não mesmo do estado moderno, em geral). A estrutura da mediação é a topografia
de um espaço de mútua cedência e de ganho recíproco”. O Autor explica a relevância que a mediação
assume neste contexto através da ideia de que “dada a precaridade do aparelho coercivo ao serviço deste
direito [o direito de Paságarda], a reprodução da juridicidade tem de assentar na cooperação, e a
probabilidade de que esta ocorra e se acumule de modo alargado é maximizada pela adopção de um
modelo mediacional na decisão jurídica” (in “O discurso e o poder – Ensaio sobre a sociologia da retórica

170
Deve realçar-se, para além destes, um terceiro conjunto de hipóteses em que
determinadas comunidades são alçadas a sujeitos principais das práticas restaurativas.
Isso vem sucedendo, e já com algum relevo, no contexto de conflitos – por exemplo de
natureza étnica e/ou religiosa – que envolvem comunidades carecidas de uma
possibilidade de pacificação, como já sucedeu na África do Sul na fase pós-apartheid,
na Irlanda do Norte ou no Ruanda.
Feitas estas ressalvas e trazida então a comunidade – algumas comunidades –,
em circunstâncias muito específicas, a título principal (ou seja, como verdadeiro
interveniente no conflito e não já como suporte dos concretos sujeitos que participaram
no conflito e que através das práticas restaurativas se encontram) para o palco
restaurativo, sublinhe-se que aquilo que o fundamenta é, na primeira e na terceira
hipóteses, o facto de nestes casos tais comunidades serem directamente ofendidas pelo
crime (a ofensa é intencionalmente perpetrada contra o todo, aparecendo cada um dos
sujeitos apenas como instrumento para se atingir esse todo). Já na segunda hipótese
elencada, muito distintamente, o que sobretudo funda a participação comunitária no
modo restaurativo de lidar com o crime é a ausência da resposta que devia ser dada pelo
Estado – o que suscitará, segundo se crê, um conjunto de dificuldades muito específicas,
nomeadamente na compatibilização daquele interesse que será o da comunidade e
daqueles interesses que serão os dos sujeitos concretos.
Finalmente, deve reiterar-se que a comunidade que participa como sujeito –
nestas situações excepcionais – nas práticas restaurativas o faz a título muito diverso da
comunidade representada pelo Estado na justiça penal, essa comunidade cujos valores
essenciais são tutelados pela incriminação penal e depois reafirmados graças ao
processo penal estadual. O Estado, que deve representar a comunidade toda, actua no
processo penal no uso da sua auctoritas e do seu ius puniendi. Aquelas comunidades,
quando participantes nas práticas restaurativas, intervêm despidas de qualquer forma de
autoridades sobre o outro ou os outros (com excepção, em certa medida, da segunda
hipótese).
Em jeito de síntese e com um mero intuito de simplificação (que neste caso se
justifica pela “desordem” com que tão frequentemente se inclui a comunidade na
definição da justiça restaurativa), talvez haja que, no seguimento do que antes se
afirmou, distinguir várias hipóteses. Em um primeiro conjunto de casos – aqueles que

jurídica”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, II, Boletim da Faculdade de
Direito, número especial, Coimbra: 1979, ps. 238-9, ps. 245-7).

171
são os em primeira linha destinatários da proposta restaurativa – há um conflito de que
são sujeitos directos pessoas individualizáveis que ocupam os papéis de agente e de
vítima, sendo que a comunidade poderá ser considerada uma espécie de “vítima
indirecta”. Em outras hipóteses, no sentido que antes se referiu de alguma
excepcionalidade, existe um conjunto de pessoas interligadas por determinados vínculos
– nesse sentido, uma comunidade – que é, enquanto grupo, sujeito directo do conflito.
Ora, naquele primeiro grupo de situações em que a comunidade só pode ser vista como
vítima indirecta – na medida em que a quebra da paz dos intervenientes no conflito se
repercute em uma perda de paz para a comunidade – ela, essa comunidade, não será
sujeito principal das práticas restaurativas nem estas se orientarão para a satisfação, em
primeira linha, das necessidades colectivas. O que não equivale a uma exclusão da
comunidade da resposta restaurativa, mas antes a compreensão da sua participação
como suporte e factor de auxílio para o agente do crime e a sua vítima. No segundo
grupo de casos, quando a comunidade é, enquanto tal, interveniente directa no conflito,
ela será já sujeito principal das práticas restaurativas e intervirá, não como suporte para
a resolução do conflito que é de outros, mas no papel central de quem reivindica uma
reparação ou de quem assume o dever de a propiciar.
Estas hipóteses de intervenção da comunidade como sujeito do conflito não
constituem, porém, o objecto deste estudo. Têm especificidades que justificariam um
outro estudo. Na justiça restaurativa que aqui se estuda visa-se a pacificação de um
conflito (inter)pessoal, um conflito que envolve determinado (s) agente(s) e vítima (s).
A comunidade participará, aqui, apenas eventualmente e em plano secundário.
Mesmo feita esta delimitação da comunidade que, assim, importa analisar, deve
assumir-se, como antes se referiu, a inexistência de unanimidade na sua definição306.
Para além disso, uma análise das múltiplas práticas restaurativas – vigentes em pontos
muito distintos do globo – é reveladora de opções que vão desde uma total inexistência

306
Apesar da indeterminação do conceito de “comunidade”, parece que na teoria restaurativa ele assume
um sentido diverso daquele que seria o de “sociedade”, na medida em que se é porventura mais restrito
quanto ao círculo dos abrangidos, parece mais exigente na afirmação dos laços de solidariedade entre
esses sujeitos. Neste sentido, parece coerente com tal diferenciação “restaurativa” a ideia de Virgílio
CARVALHO sobre a contraposição entre comunidade e sociedade: «na comunidade temos uma
referência a um “Nós” de pessoas que têm algo em comum; na sociedade, a referência ao “Eles”, os
indivíduos concorrentes-cooperantes na sociedade”. Para o Autor, a sociedade é “um princípio moderno
individualista, de associação mecânica e contratual ou contratualizada, objectivada e aberta”. A
comunidade, pelo contrário, enquanto “conceito axiológico”, referir-se-ia a uma “subjectividade
partilhada” (in Pessoa Humana e Ordem de Direito, Coimbra, 1998, p. 109 ss). A questão é, porém,
complexa e deve permanecer exterior aos limites deste estudo.

172
de participação da comunidade até modelos em que a sua participação se dá através de
um círculo crescente de intervenientes.
Todavia, parece relativamente seguro afirmar-se que por comunidade – nos
casos de práticas restaurativas relativas a conflitos em que seja possível a identificação
de vítimas individuais – se deve entender community of concern, o que abrange aquele
conjunto de pessoas que demonstram uma preocupação ou com o agente do crime ou
com a sua vítima que deve ser vista como relevante.
Ora, a conclusão a que se julga poder chegar é precisamente a de que na maioria
dos estudos orientados para a justiça restaurativa que sublinham a sua vertente
comunitária, o que em regra se pretende é tão-somente sublinhar a participação, nas
práticas restaurativas, de pessoas para além do agente do crime e da vítima, que os
acompanham com o intuito de os apoiar e de favorecer a sua aceitação na comunidade
depois do cometimento do delito. O critério que se julga dever ser usado para delimitar
quais as pessoas que devem ser incluídas nesta “comunidade de próximos” talvez seja,
porém, mais amplo. Segundo se crê, a intervenção destas pessoas não almeja apenas
facilitar a reintegração comunitária; a sua participação nas práticas restaurativas pode
ser também fundada na aptidão que manifestarem enquanto facilitadores da
comunicação, nomeadamente porque a sua presença contribui para a tranquilidade e
para a segurança, quer do agente do crime, quer da vítima. Nesta medida, os “próximos”
serão aqueles que puderem dar um contributo para a reparação dos danos sofridos pela
vítima (através do próprio processo e através dos resultados que ele visar) e para uma
assunção da responsabilidade pelo agente que favoreça a reparação do seu sentido de
pertença ao grupo e a sua reintegração.
Trata-se, nessa medida, apenas da participação de uma “comunidade de
próximos”307 que, assim delineada, em nada significa uma prevalência do interesse
comunitário na solução do conflito em detrimento dos interesses individuais do agente e
da vítima. Pelo contrário: na definição daqueles que participarão nas práticas
restaurativas como “próximos” deverá sobrelevar, ainda, a vontade do agente do crime e
da vítima. Sendo conhecidas as possibilidades de que estes – porventura em um maior
número de casos, o agente – olhem para a comunidade como instância autoritária,

307
Katherine DOOLIN (“But What Does It Mean? Seeking Definitional Clarity in Restorative Justice”
cit., p. 436) dá exemplo das pessoas que podem considerar-se incluídas neste conceito de “comunidade de
próximos”: os familiares, os amigos, os líderes religiosos e, quando a infracção envolver jovens, os seus
professores, treinadores desportivos ou responsáveis.

173
intolerante e repressiva, a pergunta que não pode deixar de se fazer é quem são esses
próximos nas perspectiva do agente do crime e da sua vítima.
A conclusão que parece sobressair destas considerações breves sobre o sentido
da intervenção da comunidade na justiça restaurativa é a de que a existência de um
factor de indeterminação quanto ao próprio sentido de “comunidade” prejudica a
formulação de proposições mais claras sobre o assunto. Ora, aquilo que se quer
sublinhar é que no próprio conceito de comunidade há uma certa indeterminação, o que
permite a inclusão, aí, de realidades muito diversas, desde as mais amplas às mais
estreitas. Assim, se em sentido muito amplo se poderá cogitar a existência de uma
comunidade de todos os homens (tendencialmente coincidente com o conceito de
humanidade), existirão depois comunidades “internacionais” que agrupam sujeitos de
vários Estados portadores de denominadores comuns, existirá a comunidade
representada pelo Estado e existirão comunidades mais estreitas e que podem ser
compreendidas em função da existência de vínculos específicos, de que serão meros
exemplos a proximidade geográfica, a identidade religiosa ou a pertença a determinada
etnia.
A jurisdição penal do Estado constituiu objecto da análise detida de Pedro
CAEIRO que, a propósito da destrinça do seu fundamento num plano material, entende
que “tal fundamento encontra-se na responsabilidade de certo ente pela paz e a
segurança da sua comunidade, entendida como dever de ordenar as condições da sua
convivência através da cominação e aplicação de penas por um poder público. O que
significa que a jurisdição penal tem como critério de legitimidade intrínseco (material) a
congruência dos poderes ali incluídos com o título em que assenta aquela
responsabilidade (não necessariamente a soberania) e, consequentemente, com os meios
(normativos, institucionais e pragmáticos) de que a dita entidade dispõe para se
desempenhar dela”. O que também se julga particularmente interessante é que, ainda
segundo o Autor, a soberania não é critério único da jurisdição penal, pelo que se
suscita “a questão de saber quem afere dessa legitimidade”.
Pedro CAEIRO reconhece que “é possível construir, de acordo com o tipo de
vínculos que ligam os seus membros, várias espécies de comunidades”, mas acrescenta
que “a vocação totalizante (concentração, supremacia e exclusividade dos poderes) e a
força expansiva da jurisdição estatal introduzem uma diferença qualitativa em relação
às jurisdições periféricas: precisamente porque lhe cabe garantir a paz e a segurança
geral da sua comunidade, a jurisdição estatal reivindica para si o poder de medir a

174
legitimidade do exercício dos poderes por parte daquelas e, mesmo, a própria
legitimidade da sua subsistência”308.
O propósito desta longa citação prende-se, sobretudo, com a intenção de
sublinhar que não é essa comunidade (a que corresponde uma jurisdição central
associada à figura do Estado) que assume um papel principal na teoria e na prática
restaurativas309. A essa comunidade representada pelo Estado pode caber uma função de
promoção dos mecanismos restaurativos, assumindo aquele Estado tarefas na criação de
disposições normativas e de meios logísticos que os favoreçam310.
Todavia, não se tratando agora, na reflexão sobre a justiça restaurativa, de uma
qualquer ponderação sobre a jurisdição penal, sobressai precisamente a possibilidade de
consideração de uma dimensão do conflito criminal por forma diversa da inerente ao
exercício daquela jurisdição penal, o que parece ter como consequência a
impossibilidade de pôr nos mesmos termos a “questão da comunidade” e da
legitimidade da sua intervenção.
Finalmente, vinque-se que o problema que aqui se quis tratar foi, apenas, o do
sentido e da legitimidade da participação da comunidade, como sujeito, nas práticas
restaurativas. Questão diversa é a da possibilidade de, em um plano organizacional, tais

308
Pedro CAEIRO (Fundamento, Conteúdo e Limites da Jurisdição Penal do Estado – O Caso
Português, Coimbra: Wolters Kluwer Portugal/Coimbra Editora: 2010, ps. 209-211) resume uma das
linhas da sua investigação afirmando que “onde houver um agrupamento de pessoas que possam
qualificar-se de comunidade política, e sejam quais forem os critérios que adoptemos para lhe dar essa
qualificação, há sempre uma – e só uma – entidade responsável pela sua segurança geral, sc., pela
generalidade dos aspectos da sua vida quotidiana. Essa entidade, a que chamamos jurisdição central,
corresponde hoje à figura do Estado”.
309
Não é, de resto, totalmente improvável que a diferença entre o discurso comunitarista mais vincado
entre os cultores anglo-saxónicos da justiça restaurativa se prenda sobretudo com uma diferente forma de
compreensão do Estado e da Comunidade. Lode WALGRAVE vinca a diferença de perspectivas,
afirmando o relevo que os anglo-saxónicos põem na ideia de comunidade enquanto peça central da
proposta restaurativa, por contraposição com a visão dominante no sistema europeu continental de que a
excessiva confiança na comunidade “é ingénua ou até perigosa”. Todavia, o Autor aduz que parte da
explicação pode estar no facto de os europeus continentais verem no Estado a formalização da
comunidade, enquanto muitos anglo-saxónicos se sentiriam “menos representados pelo Estado,
frequentemente visto como uma estrutura burocrática de cobrança de impostos, um opositor da liberdade,
localizado a uma distância intransponível da vida real” (Lode WALGRAVE, Restorative Justice, Self-
interest and Responsible Citizenship, Devon: Willan Publishing, 2008, p. 6). Sob esta perspectiva, talvez
seja mais compreensível a forma como os anglo-saxónicos tendem a aceitar a comunidade como elemento
da justiça restaurativa: essa comunidade não é, para eles, o Estado que exerce, através da justiça penal, o
seu ius puniendi. É, nessa medida, de outra comunidade que se trata.
310
Sobre «a construção do Estado como “ente imaginário”», cfr. António Manuel HESPANHA, Guiando
a Mão Invisível – Direitos, Estado e Lei no Liberalismo Monárquico Português, Coimbra: Almedina,
2004, p. 27 ss. O Autor acentua a ideia de que “a forma contemporânea de Estado, tal como os juristas
oitocentistas o configuraram, apenas existiu entre os finais do século XVIII e os meados do século XX”.
E acrescenta que «a ideia de Estado incorpora, a partir dos finais do século XVIII, uma referência muito
forte à monopolização do poder político, à constituição de um centro político único na sociedade; a qual,
por isso, fica vazia de poder de imperium e organizada, apenas, por relações políticas paritárias, entre
cidadãos iguais, de natureza contratual (“sociedade civil”, “sociedade civil sem império”)».

175
práticas surgirem na dependência de estruturas comunitárias e não directamente
inseridas no sistema estadual311. Sendo essa uma realidade conhecida em outros
contextos geográficos, não será, porém, objecto deste estudo, sobretudo na medida, pelo
menos neste tempo, da sua exterioridade ao caso português.

5. O “problema da realização da justiça”

5.1. A delimitação do problema

O que se veio questionando sobre o sentido da intervenção da comunidade na


realização da justiça e sobre as diversas definições de que aquela comunidade se
reveste, na justiça penal e na justiça restaurativa, acaba por nos conduzir, de forma mais
ou menos inevitável, para a questão de saber se com as práticas restaurativas aquilo que
se almeja é ainda a realização da justiça.
Não se ignora a complexidade da intersecção dos nódulos problemáticos
“indivíduo”, “comunidade” e “justiça”. É conhecida a forma como as últimas décadas
do século XX foram palco para o debate sobre a justiça estabelecido entre os liberais,
por um lado, e os comunitaristas, por outro, constituindo exemplos de cada uma das
orientações a obra Uma Teoria da Justiça, de John RAWLS, e a obra O Liberalismo e
os Limites da Justiça, de Michael SANDEL312. Ora, se esta é temática cujo

311
Afirmando o princípio de que as iniciativas restaurativas não têm de caber apenas ao Estado, podendo
e devendo localizar-se tembém em outros espaços de cidadania, cfr., a título de exemplo, Chris
CUNNEEN/Carolyn HOYLE, Debating Restorative Justice, vol I de Debating Law, Oxford: Hart
Publishing, 2010, p. 36.
312
A contraposição entre o liberalismo e o comunitarismo não é, ela própria, isenta de dificuldades, desde
logo por não serem inteiramente pacíficas as definições dos nódulos essenciais de cada uma das correntes.
É nesse sentido, de resto, que SANDEL questiona o rótulo de “comunitarista” que é aposto ao seu O
Liberalismo e Os Limites da Justiça: existem acepções do comunitarismo com as quais se não identifica,
pelo que aquela sua catalogação só será correcta, segundo o próprio, na medida em que um dos seus
argumentos centrais é o da insuficiência do liberalismo contemporâneo para oferecer uma explicação
adequada da comunidade. Na medida em que na própria teoria restaurativa se entrechocam duas
concepções, uma mais “comunitarista” e outra mais “individualista” – e na medida em que se já enjeitou a
afirmação de que a justiça restaurativa é sobretudo uma justiça comunitária, quer no que respeita aos
sujeitos de decisão do conflito, quer no que tange às finalidades que presidem a essa solução –, parece
pertinente uma referência às notas centrais que distinguem o pensamento dos liberais e dos
comunitaristas. Michael J. SANDEL resume de forma adequada o debate, considerando que ele pode ser
visto como uma discussão entre “aqueles que prezam a liberdade individual e aqueles para quem os
valores da comunidade ou a vontade da maioria devem prevalecer sempre; ou, então, entre os que
acreditam em direitos humanos universais e os que insistem em que os valores que enformam as
diferentes culturas e tradições se encontram acima de qualquer crítica ou juízo”. SANDEL não é adepto
de um “comunitarismo” que seja assim concebido como uma forma de “maioritarismo [jacobinismo]”,
nem considera que os direitos devam decorrer dos valores predominantes numa dada comunidade num
certo período de tempo, como também tende a conceber-se sob aquele enfoque comunitarista. Para

176
Michael SANDEL, a questão de fronteira é outra: “o que está em causa no debate entre o liberalismo
rawlsiano e a perspectiva que apresento (…) não é saber se os direitos são importantes, mas sim saber se
os direitos podem ser identificados e justificados de um modo que não pressuponha uma qualquer
concepção particular de vida boa. Não está em causa saber se são as exigências do indivíduo ou as
exigências da comunidade que possuem maior peso, mas sim se os princípios da justiça que governam a
estrutura básica da sociedade podem ser neutrais relativamente às distintas convicções morais e religiosas
que os seus cidadãos apresentem. A questão fundamental, por outras palavras, é saber se o justo é anterior
ao bom”. A partir da afirmação de que para RAWLS, tal como para KANT, há uma prioridade do justo
sobre o bom, SANDEL desmembra essa prioridade em duas pretensões. A primeira, que não contesta, é a
de que alguns direitos individuais “são tão importantes que nem sequer o bem-estar geral pode passar por
cima deles”. O que SANDEL já sujeita a crítica é a segunda pretensão em que RAWLS faz assentar
aquela prioridade do justo sobre o bom, a «pretensão de que os princípios da justiça que fixam os nossos
direitos não dependem, para a sua justificação, de qualquer concepção da vida boa ou, no dizer recente de
Rawls, de qualquer concepção moral ou religiosa “abrangente”». Na definição de SANDEL do
“liberalismo deontológico”, entende-se que a tese nuclear é a de que “sendo a sociedade composta por
uma pluralidade de pessoas, cada uma com os seus objectivos, interesses e concepções do bem, estará
mais bem organizada quando for governada segundo princípios que, em si mesmos, não pressupõem uma
qualquer concepção do bem. Aquilo que justifica estes princípios de organização e de regulamentação
social não é, acima de tudo, o facto de maximizarem o bem-estar social ou promoverem o bem de outro
modo qualquer, mas o facto de partirem do conceito de justo, uma categoria moral a que aqui é atribuída
prioridade sobre o bem e que é perspectivada como sendo independente dele”. Pelo contrário, SANDEL,
aproximando-se dos comunitaristas, crê que a justiça não é independente do bem, decorrendo, antes, dele.
Todavia, esforça-se ainda por precisar que a sua forma de fazer derivar a justiça do bem não é a com mais
frequência associada ao comunitarismo, porque existem dois modos essenciais de conceber aquela
derivação. No primeiro, amarra-se a justiça a concepções de bem através da ideia de que “a força moral
dos princípios da justiça deriva dos valores comummente abraçados ou amplamente partilhados numa
comunidade ou numa tradição concretas. Esta maneira de associar a justiça ao bem é comunitária no
sentido em que são os valores de uma comunidade que definem o que é justo ou injusto, mas é uma
compreensão que SANDEL considera “insuficiente”. A forma pela qual faz decorrer a justiça do bem é
outra, porventura menos obviamente comunitarista, fazendo sustentar a justiça na ideia de que os seus
princípios “dependem do valor moral ou do bem intrínseco das finalidades que servem. Nesta perspectiva,
o argumento para o reconhecimento de um direito depende da capacidade de se demonstrar que esse
direito honra ou promove um bem humano importante. Não será decisivo saber se um tal bem é
amplamente apreciado ou se encontra implícito nas tradições de uma comunidade”. O que leva SANDEL
a concluir que, mais do que comunitarista, esta compreensão pode ser classificada como “teleológica” ou
“perfeccionista”. Pretendeu-se, deste modo, aclarar da forma mais sucinta possível as principais formas
pelas quais se contrapõe o pensamento liberal e o pensamento comunitarista, ambos necessariamente
convocados para uma reflexão crítica sobre o sentido da justiça, e também necessariamente implicados na
controvérsia sobre o próprio sentido da justiça restaurativa. Esclareça-se, porém, que apesar da corrente
associação de SANDEL àquela segunda linha de compreensão, o certo é que o Autor procura sustentar
um outro caminho, afastando-se quer do liberalismo, quer do comunitarismo mais “comum”: “os
argumentos acerca da justiça e dos direitos acarretam inevitavelmente um juízo de valor. Os liberais, que
crêem que a defesa dos direitos deve ser neutral relativamente às doutrinas morais e religiosas
substantivas, e os comunitaristas, para quem os direitos devem decorrer dos valores sociais dominantes,
cometem o mesmo erro; ambos procuram evitar emitir um juízo de valor sobre as finalidades promovidas
pelos direitos. Porém, estas não são as únicas alternativas possíveis. Há uma terceira possibilidade, mais
plausível, em meu entender, segundo a qual a justificação dos direitos depende da importância moral das
finalidades que estes servem” (O Liberalismo e os Limites da Justiça, Fundação Calouste Gulbenkian,
trad. de Carlos Pacheco do Amaral, Lisboa: 2005, ps. 9-12, 21). Segundo se crê, SANDEL não logra,
porém, clarificar de forma suficiente o fundamento no qual se poderá sustentar essa importância moral
das finalidades servidas pelo direito, sobretudo se pretender dissociá-lo da moral dominante numa dada
comunidade histórico-espacialmente situada, a qual adquiriria predominância, isso sim, no comunitarismo
das maiorias que parece enjeitar mas de que, por esta via, se tende a aproximar. A procura rawlsiana de
um “ponto de Arquimedes” que funcione como parâmetro da justiça não desconhece a dificuldade da
tarefa: quando se avalia a justiça em função dos valores dominantes numa dada comunidade, perde-se o
potencial crítico porque se mistura o padrão da avaliação com o objecto da avaliação; todavia, quando se
ajuíza a justiça em função de um conceito apriorístico do que é o justo, corre-se o risco da inexistência de
uma sustentação sólida e não arbitrária para esse conceito do que é o justo. Também SANDEL tem
consciência da perplexidade de “encontrar uma perspectiva que não esteja nem comprometida pelas suas

177
aprofundamento reflexivo não cabe nos limites estabelecidos para este estudo, também
não pode deixar de se sublinhar a forma como, mesmo na teoria sobre a justiça
restaurativa, se podem contrapor concepções que vincam a sua dimensão comunitária
(atribuindo-lhe a finalidade de promoção de valores essenciais para a comunidade e/ou
promovendo formas de participação comunitária nas práticas restaurativas, o que parece
ter na base a ideia da justiça como o bem para o maior número possível de indivíduos) a
outras, como aquela que se procura sustentar, que enfatizam a sua ligação (quer no
plano dos fundamentos, quer no plano das finalidades) sobretudo aos sujeitos concretos
do conflito que é o crime, atribuindo prevalência à protecção da sua liberdade e à
reparação dos seus danos. Nessa medida, talvez não seja desadequada a afirmação da
existência de compreensões da justiça restaurativa mais comunitaristas, e de outras mais
individualistas (e também mais liberais).
Por outro lado, cumpre registar que a questão do “sentido da justiça”, ao invés
de se esgotar em um plano puramente teórico, pode assumir importantes consequências

implicações com o mundo, nem dissociada dele e, por isso mesmo, desqualificada pelo seu
distanciamento” (últ. ob. cit., ps. 41-2). Com a clivagem entre o pensamento liberal e o pensamento
comunitarista entrecruza-se (ainda que sem uma sobreposição absoluta) uma outra clivagem, aquela que
opõe as teorias éticas às teorias utilitaristas. O pensamento de John RAWLS é, ainda a este propósito,
exemplo por excelência de uma compreensão que é liberal e que é ética. Logo nas considerações iniciais
da sua obra Uma Teoria da Justiça (trad. de Carlos Pinto Correia, Editorial Presença, 2ª ed., Lisboa:
2001, p. 27), deixa claro que “cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a qual
nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um todo poderá ser eliminada. Por esta razão, a
justiça impede que a perda da liberdade para alguns seja justificada pelo facto de outros passarem a
partilhar um bem maior. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos sejam compensados pelo
aumento das vantagens usufruídas por um maior número”. E, de forma porventura mais enfática, vem
depois aclarar que o seu objectivo é definir uma teoria da justiça que seja alternativa ao pensamento
utilitário em geral, escolhendo como paradigma da compreensão a contraditar a “doutrina clássica estrita”
do utilitarismo e das doutrinas teleológicas, que colhe na ideia central de Sidgwick de que “a sociedade
está bem ordenada e, portanto, é justa quando as suas instituições principais estão ordenadas de forma a
conseguir a maior soma líquida de satisfação, obtida por adição dos resultados de todos os sujeitos que
nela participam”. Com interesse, veja-se ainda a sua catalogação das doutrinas teleológicas. A partir da
afirmação de um núcleo comum que é a busca de uma finalidade que se associa a um bem (e que não tem
de coincidir com o justo), o Autor distingue, dentro das concepções teleológicas, várias correntes, em
função da definição de “bem”: o perfeccionismo, em que o bem está na realização daquilo que no homem
há de excelente “através de várias formas de cultura”; o hedonismo, que define o bem como prazer; o
eudemonismo que o associa à felicidade; ou, segundo “o princípio da utilidade na sua forma clássica, o
bem é definido como a satisfação do desejo racional”. De seguida, John RAWLS, em moldes que tornam
ainda mais nítida a sua oposição ao pensamento utilitarista, associa-se antes à defesa da ideia, por “muitos
filósofos, aparentemente apoiados pelas convicções do senso comum, que há uma distinção de princípio
entre as exigências da liberdade e da justiça, por um lado, e, por outro, do interesse no crescimento do
bem-estar social”, sendo que aquelas devem ter um “peso preponderante” relativamente ao segundo.
Como enfaticamente também afirma, cada membro da sociedade é concebido como possuindo uma
inviolabilidade baseada na justiça ou, como alguns dizem, nos direitos naturais que nem sequer em nome
do bem-estar de todos os outros membros poderá ser afastada. É contrário à justiça que a perda da
liberdade para alguns seja compensada pela partilha de um bem maior entre os restantes. O raciocínio que
compara os ganhos e perdas de diferentes sujeitos como se eles fossem um só deve ser excluído. Assim,
numa sociedade justa, as liberdades públicas são um dado adquirido e os direitos garantidos pela justiça
não estão sujeitos à negociação política e ao cálculo dos interesses sociais” (últ. ob. cit., ps. 40-44).

178
ao nível da prática, nomeadamente na medida em que se demonstre que um recurso
limitado às práticas restaurativas, sobretudo à mediação penal – e parecem ser
diminutos os processos enviados, entre nós, para mediação penal, sobretudo se
compararmos esses números com o do universo de processos relativamente aos quais tal
envio seria possível –, é condicionado por uma certa representação da justiça que se
tende a julgar incompatível com aquela forma de solução para o conflito.
A verdade parece ser que, entre nós, os números relativos ao funcionamento do
sistema público de mediação penal não podem julgar-se particularmente
encorajadores313. Ora, talvez se possa afirmar que uma determinada representação do
que é a solução justa para o crime314 – uma visão afeiçoada pelo iluminismo penal e
pela sua concepção de base da natureza pública da pena – terá porventura sido factor
que influenciou este relativo insucesso (pelo menos em uma avaliação quantitativa e até
ao momento).
Não pode desvalorizar-se, portanto, o facto de que um dos porventura mais
fortes obstáculos que a proposta restaurativa tem de enfrentar é a estranheza que pode
representar face a determinadas concepções do que é reagir ao crime com justiça. Essas
concepções – numa primeira análise, tão distantes do modelo restaurativo – podem

313
Dando cumprimento ao disposto na Resolução da Assembleia da República n.º 99/2010, de 11 de
Agosto, o Gabinete para a Resolução Alternativa de Litígios do Ministério da Justiça promove a
divulgação das estatísticas relativas aos meios de resolução alternativa de litígios no dia 12 de cada mês
ou no primeiro dia útil seguinte. Os números tidos em conta constam da actualização datada de 13 de
Março de 2012 e disponível no endereço electrónico do GRAL. No âmbito do Serviço de Mediação Penal
Pública, podem considerar-se em primeiro lugar os pedidos de mediação: 95 em 2008, 224 em 2009; 261
em 2010; 90 em 2011. De seguida, pode ponderar-se, relativamente ao número de processos de mediação
findos em cada ano, o número em que houve acordo e aquele em que o não houve: em 2008, 16 com
acordo e 14 sem acordo; em 2009, 47 com acordo e 40 sem acordo; em 2010, 71 com acordo e 87 sem
acordo; em 2011, 35 com acordo e 50 sem acordo. Nos dois primeiros meses de 2012 foram feitos 10
pedidos de mediação e, nesse mesmo período de tempo, houve 5 processos de mediação findos, 2 com
acordo e 3 sem acordo. A ponderação destes elementos parece evidenciar que houve um aumento dos
pedidos de mediação desde a entrada em funcionamento do Serviço de Mediação Penal Pública no início
de 2008, mas que esse aumento se concentrou nos dois anos seguintes: 2009 e 2010. Parece, porém,
preocupante o acentuado decréscimo de pedidos de mediação registado em 2011. Por outro lado, talvez
deva ainda considerar-se um certo crescimento percentual (de 45,9% em 2009 para 58,8% em 2011) do
número de processos de mediação que não culminaram com a celebração de acordo.
314
Já em 1985, José de FARIA COSTA alertava que “convém não esquecer, como característica
fundamental, que Portugal foi um dos países europeus que mais cedo viveu uma forte tendência
centralizadora na aplicação da justiça. O que em termos de inconsciente colectivo não deixa de marcar os
seus sulcos e onde, à partida, se pode detectar um terreno refractário à aplicação pelo menos da
mediação” (in “Diversão…” cit., ps. 8-9). Também Leonor ASSUNÇÃO considera “compreensível a
eventual reacção cautelosa de procuradores e juízes às iniciativas legislativas de mediação, muito
provavelmente com origem em alguma perplexidade face à imagem que esses instrumentos de mediação
projectam de um arquétipo processual que desvirtua insidiosamente o modelo que lhes foi dado, onde se
inscreve o seu estatuto e a sua função” (in “A participação central-constitutiva da vítima no processo
restaurativo – uma ameaça aos fundamentos do processo penal estadual?”, in Que futuro para o direito
processual penal, Coimbra Editora: 2009, p. 352).

179
ajudar a compreender algumas resistências, por parte nomeadamente da magistratura do
Ministério Público, a quem o legislador português atribuiu papel decisivo na “abertura
da porta” da mediação penal315.
Antes de se adentrar a reflexão sobre a possibilidade de se considerar a proposta
restaurativa enquanto proposta de reacção ao crime ainda orientada por um propósito de
realização da justiça, vinque-se, uma outra vez, a ideia de que é alheia aos objectivos
deste estudo uma qualquer resposta à pergunta sobre o sentido da justiça. Essa seria
uma interrogação demasiado ambiciosa face ao objecto de investigação que se elegeu.
Mas, por outro lado, também se não tem a certeza de que as interrogações “o que é a
justiça?” ou “o que é uma sociedade justa” sejam um bom ponto de partida, na medida
em que desconsidera o carácter evolutivo dos padrões valorativos, assim como a
diversidade que assumem em contextos geográficos não coincidentes. Talvez se possa

315
Uma certa resistência da magistratura face à mudança de opções legais seria tema eventualmente
merecedor de reflexão e aprofundamento. Numa perspectiva histórica, veja-se, a título de exemplo, a
afirmação de José Merêa Pizarro BELEZA [“A pena de prisão, a reforma das cadeias e o Ensayo sobre o
Plano mais Conveniente para a Fundação das Cadêas (notas para a história do direito penal vintista)”,
Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora: 2003, p. 376] de que “por várias
vezes foi comentada no Congresso a prática da magistratura no primeiro Vintismo”, não se tendo evitado
“a acusação de que era um dos obstáculos à nova ordem liberal”. Opinião coincidente e relacionada com
o mesmo período histórico fora já expressa por José SUBTIL (“Sistema Penal e Construção do Estado
Liberal: Algumas Questões em Torno da Revolução de 1820”, Penélope, Edições Cosmos, n.º 5, 1991, p.
88), para quem “o aparelho judicial – manifestamente conservador – luta por não perder os privilégios
que a revolução lhes subtraía, transformando-se em poderosa força de retorno ao absolutismo ou, no
mínimo, oferecendo resistência às medidas inovadoras”. E o Autor não hesita em afirmar que “o fracasso
da Revolução de 1820 passou pelo papel decepcionante que – para o liberalismo – desempenhou o poder
judiciário. A verdade é que o Estado liberal, imerso na categoria da lei, não podia prescindir do trabalho
destes profissionais, tanto mais que a legislação herdada do Antigo Regime se mostrava inútil e estéril. A
urgente necessidade de colmatar o vazio legal, sob pena de as instituições paralisarem, catapultou a
magistratura para um lugar de destaque. Mas este papel que a revolução parecia reservar, naturalmente,
para os magistrados, veio a mostrar-se incompatível com a realidade política e social dos mesmos”. No
contexto de uma reflexão sobre a primeira metade do século XIX, António HESPANHA também afirma
que “o poder judicial estava na mira dos revolucionários. Não apenas porque alguns deles viam nos
tribunais a suprema garantia de todo o sistema constitucional, como antes se viu, mas, sobretudo, porque
as queixas contra os tribunais eram muitas, quer as induzidas por ferozes críticos dos juízes e dos juristas,
como J. Bentham, quer as que decorriam do carácter pouco edificante da imagem comum acerca dos
tribunais e do mundo do direito, em geral” (in Guiando a Mão Invisível – Direitos, Estado e Lei no
Liberalismo Monárquico Português, Coimbra: Almedina, 2004, p. 111). Por outro lado, não deixa de ser
interessante que, em um diverso contexto espacial, também Alexis de TOCQUEVILLE tenha afirmado
que “no fundo da alma dos juristas reencontramos, escondida, uma parte dos gostos e dos hábitos da
aristocracia. Tal como ela, eles têm uma tendência instintiva para a ordem, um gosto natural pelas
formalidades, uma certa repugnância pelos actos da multidão e desprezam secretamente o governo do
povo (in Da Democracia na América, prefácio de João Carlos Espada, tradução de Carlos Oliveira,
Estoril: Princípia Editora Lda, 2007, ps. 313-4). Sem querer reduzir a simplificações indevidas uma
matéria merecedora de tratamento mais detido, sempre se julga que essa resistência à mudança pode
relacionar-se, entre vários outros factores, com uma certa concepção que a magistratura poderá ter de si
própria enquanto “guardiã” de um certo estado de coisas. A pergunta que já se julga pertinente prende-se
com a determinação do conteúdo daquilo que deve ser guardado. E, a esse propósito, tende a preferir-se
uma certa orientação para um futuro mais justo inerente, por exemplo, à concepção que Antoine
GARAPON tem do magistrado enquanto “guardador de promessas” (Cfr. O Guardador de Promessas
cit.).

180
apenas, mais modestamente, contribuir para a comparação de várias soluções possíveis,
procurando a menos injusta316.
Finalmente, cumpre admitir que muito do suporte filosófico que se procura
reconhecer na proposta restaurativa perpassa já várias construções contemporâneas da
justiça e do direito. A título de exemplo e apenas na doutrina portuguesa, são
exemplares as considerações (que não prescindem da referência a alternativas ao
direito) de CASTANHEIRA NEVES sobre a “condição ética” enquanto condição
constitutiva da emergência do direito e a forma como dela decorre que a pessoa seja “o
referente e o titular da humana prática jurídica”317. O Autor, mesmo no contexto de uma
reflexão sobre a indispensabilidade do juiz para a realização do direito (o que, a um
primeiro olhar, logo se afastaria da proposta restaurativa), não deixa, porém, de afirmar
que “necessário é que o direito se compreenda no seu sentido autêntico, não mero
imperativo do poder, não simples meio técnico de quaisquer estratégias, mas validade
em que a axiologia e a responsabilidade do homem se manifestam”318. Tenha-se, ainda,
em conta a ideia de AROSO LINHARES, centrada na reflexão sobre a alteridade
proposta por Levinas, de que o direito se deve “submeter” ao “apelo de um (certo)
pensamento da alteridade e de dar atenção aos discursos-verba que o traduzem – se não
de reconhecer a promessa que estes constroem”319. Esclareça-se, pois, que se não
pretende apresentar como “própria” da proposta restaurativa uma certa linha de
argumentação que é assumida na filosofia do direito mas, mais exactamente, mostrar o
quanto a proposta restaurativa pode ser, ainda, pelo menos parcialmente harmoniosa
com essa linha de compreensão e de argumentação.
Em jeito de introdução àquilo sobre que de seguida se reflectirá, talvez possa
afirmar-se que o surgimento da proposta restaurativa é coerente com a valorização da
316
Neste sentido, cfr. Amartya SEN, A Ideia de Justiça, trad. de Nuno Castello-Branco Bastos, Coimbra:
Almedina, 2010, p. 163. Esta ideia do Autor será, porém, aprofundada em momento posterior do estudo.
317
António CASTANHEIRA NEVES, “Pessoa, Direito e Responsabilidade”, Revista Portuguesa de
Ciência Criminal, Coimbra, ano 6, fasc. 1, Jan-Mar, 1996, ps. 38-9.
318
António CASTANHEIRA NEVES, «Entre o “Legislador”, a “Sociedade” e o “Juiz” ou entre
“Sistema”, “Função” e “Problema” – os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do
Direito», Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LXXIV, Coimbra, 1998, ps. 43-4.
319
José Manuel de Aroso LINHARES, “O Dito do Direito e o Dizer da justiça. Diálogos com Levinas e
Derrida”, Entre Discursos e Culturas Jurídicas, Coord. José Joaquim Gomes CANOTILHO/Lenio
STRECK, Stvdia Ivridica, 89, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 182. O mesmo Autor, no contexto de
uma reflexão sobre o pensamento de Derrida e também de Levinas, refere o “assumir de uma sequência
(inextricável) de promessas – de delicadezas (politesse) e de responsividade (responsiveness), de
hospitalidade e de perdão, de democracia e de emancipação (affranchissement, libération), enfim, last
but not least, de responsabilidade… e de justiça” (“Autotranscendentalidade, desconstrução e
responsabilidade infinita – Os enigmas de force de loi”, in Ars Ivdicandi, Estudos em Homenagem ao
Prof. Doutor António Castanheira Neves, vol. I, Stvdia Ivridica 90, Boletim da Faculdade de Direito,
Coimbra: Coimbra Editora, 2008, ps. 589-590).

181
ideia de alteridade que sucede (rectius, que acresce) ao papel central atribuído à
individualidade pelo pensamento moderno. Esta individualidade, nas palavras de
CASTANHEIRA NEVES, significa que a pessoa compreende “como fundamentos
únicos do seu saber e da sua acção, respectivamente, a razão (e/ou experiência) e a
liberdade”320. Todavia, o fortalecimento da ideia de alteridade leva à verificação de que
o homem “existe coexistindo”321. A ideia de alteridade pressupõe o reconhecimento de
um Outro que é diverso do sujeito322, mas que é um igual na fruição do mundo e
relativamente ao qual se afirma uma ética de responsabilidade. A vulnerabilidade,
enquanto capacidade de compreender e acolher a alteridade do Outro, deve ser seguida
pela aceitação da responsabilidade por esse Outro.
Quando se procura o cerne do problema, simplificando-o até se atingirem os
seus elementos nucleares, talvez possa afirmar-se que existem sobretudo duas razões
para a estranheza que a proposta restaurativa de reacção ao crime suscita sob o enfoque
da realização da justiça. A um primeiro olhar, parecem poder falhar-lhe duas das notas
que se julga que devem associar-se à realização da justiça: a verdade e a
proporcionalidade. Estas surgem, no direito processual penal, ligadas às duas grandes
questões inerentes ao julgamento – a questão da culpa e a questão da sanção. A verdade
pressupõe uma certa demonstração do acontecido através da prova, que se não basta
com uma versão da realidade acordada pelos sujeitos323. A proporcionalidade impõe
uma limitação da reacção ao crime à luz de uma ponderação de desvalores, que parece
exigir uma intervenção imparcial e desapaixonada de um terceiro dotado de autoridade e
vinculado pela lei que estabelece limites máximos para a sanção e critérios para a sua
determinação concreta.

320
António CASTANHEIRA NEVES, “A imagem do homem no universo prático”, Digesta – Escritos
acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e outros, vol. 1, Coimbra: Coimbra
Editora, 1995, p. 325.
321
António CASTANHEIRA NEVES, “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do
direito – ou as condições da emergência do Direito como Direito”, Digesta – Escritos acerca do Direito,
do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e outros, vol. 3, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 15.
322
Sobre a importância da ideia de não “redução do Outro ao Mesmo” no pensamento de Levinas, cfr.
Carlos Torres ALMEIDA, Da indiferença à proximidade. Contributo de Emmanuel Lévinas para uma
nova ética, Coimbra: Gráfica de Coimbra 2, 2007, p. 100.
323
Uma das reflexões sobre os limites da verdade obtida através do processo penal e sobre as notas de que
não pode prescindir é a de Luigi FERRAJOLI (Derecho y Razón – Teoria del Garantismo Penal, 9.ª ed.,
Madrid: Editorial Trotta, 2009, p. 45 ss). A propósito dos modelos de justificação da decisão penal, o
Autor refere que «não basta que recebam o consenso da comunidade: nem uma amplíssima maioria e nem
sequer a totalidade dos consensos podem justificar que se aceite como pressuposto de uma decisão penal
uma tese não provada ou não passível de sujeição a prova (…). No direito penal, a única justificação
aceitável das decisões é a representada pela verdade dos seus pressupostos jurídicos e fácticos, entendida
a “verdade” precisamente no sentido da “correspondência” o mais aproximada possível da motivação com
as normas aplicadas e os factos julgados» (ob. cit., p. 68).

182
Na última parte deste estudo, orientada para a compreensão das práticas
restaurativas, procurar-se-á justificar a possibilidade de uma modelação de tais práticas
de modo a não se postergarem por completo a verdade e a proporcionalidade. Tentar-se-
á, assim, de certo modo demonstrar que tais práticas não têm que ser injustas. Antes
disso, porém, tecer-se-ão algumas considerações sucintas sobre a evolução do
pensamento sobre a justiça, na medida do necessário ao ajuizamento da proposta
restaurativa.

5.2. O Iluminismo Penal e uma certa ideia de justiça

A compreensão do que é reagir ao crime com justiça está, ainda hoje,


decisivamente influenciada, na senda do racionalismo iluminista324 e do racionalismo
liberal325 326, pela pedra de toque do contrato social e da alienação ao Estado da menor

324
Considerado um precursor da profunda reforma do sistema penal português ocorrida depois da
revolução liberal de 1820 (e concretizada, por sobretudo, primeiro com a actividade das próprias Cortes
Constituintes e, depois, com a aprovação pelo Governo de Saldanha do Código Penal de 1852, em 10 de
Dezembro desse mesmo ano), Pascoal de Melo Freire encabeça os representantes do Iluminismo Penal
entre nós. O jurista de Coimbra foi incumbido por D. Maria I, em 1783 (tinha sido criada por Decreto de
31 de Março de 1778 uma Junta de Jurisconsultos para a reforma de toda a legislação) da reforma atinente
ao Direito Público e Direito Criminal, o que implicava toda a reponderação dos Livros II e V das
Ordenações do Reino, assim como da legislação extravagante relacionada com aquelas matérias. Maria
José MOUTINHO (“Liberalismo, legislação criminal e codificação. O Código Penal de 1852. Cento e
cinquenta anos da sua publicação”, Revista da Faculdade de Letras, Porto, III Série, vol. 3, 2002, p. 98),
em estudo dedicado ao processo que conduziu à codificação e à avaliação dos resultados dessa
codificação, refere a apresentação, pelo jurista, de “dois projectos de Códigos, um de Direito Público e
outro de Direito Criminal”. Nenhum desses projectos vingou. Melo Freire foi influenciado pelo
pensamento de Beccaria, afirmando a exigência da proporcionalidade entre o crime e a sanção, o carácter
pessoal da pena ou a recusa das penas cruéis, mas não aceitando a teoria do contrato social enquanto
fundamento para o poder de punir.
325
O propósito de analisar “qual o grau de inovação do nosso primeiro liberalismo em matéria penal” e,
especialmente, a discussão do “problema da estruturação de um Estado de Direito versus uma Monarquia
de Privilégios” (o que, segundo SUBTIL, “nos conduz, necessariamente, às questões da legitimação do
poder e do uso que dele se faz, ou seja, o que se castiga, como se castiga e para que se castiga”) é
concretizado por José SUBTIL, “Sistema Penal e Construção do Estado Liberal: Algumas Questões em
Torno da Revolução de 1820”, Penélope, Edições Cosmos, n.º 5, 1991, p. 77 ss. O Autor atribui mais essa
modernização da justiça penal, em Portugal, aos feitos do século XIX (e sobretudo ao vintismo) do que à
obra de iluministas como Pascoal de Melo Freire: “as medidas com o brilho da modernidade, enquadradas
na construção de uma nova ordem política, pertencerão ao triénio vintista, algumas consagradas, outras
mantidas como desejos por todo o século XIX, cujas concretizações foram, invariavelmente,
interrompidas” (ob. cit., p. 83). Especificamente sobre o sistema penal português no século XIX, cfr. José
António BARREIROS (“As instituições criminais em Portugal no século XIX: subsídios para a sua
história”, Análise Social, vol. XVI (63), 1980 – 3.º, p. 587 ss), para quem “a actividade mais significativa
derivou do imediato labor das Cortes Constituintes, que logo aprovaram um corpo de medidas com
relevância ao nível das instituições criminais”.
326
Não cabe a este estudo qualquer propósito de ponderação da pluralidade de sentidos que o conceito de
“racionalismo” assume. Tal como em outros momentos da reflexão, cumpre, porém, sublinhar essa
pluralidade, reconhecida, entre tantos outros, por Karl POPPER (in A Sociedade Aberta e os Seus
Inimigos, vol. II, Lisboa: Fragmentos, Colecção Problemas, trad. de Teresa Curvelo, 1993, ps. 221-2),
para quem «os termos “razão” e “racionalismo” são vagos». Por essa razão, de resto, o Autor sente a

183
parcela possível de liberdade por parte de cada indivíduo para que esse Estado tome nas
mãos a defesa do remanescente da liberdade e a garantia dos direitos individuais327. Sob
esta perspectiva não cabe, portanto, a cada cidadão a defesa do seu direito violado pelo
crime, porque é apenas o Estado o portador dessa prerrogativa. Nas palavras de Jorge de
FIGUEIREDO DIAS a propósito do Iluminismo Penal, “a legitimação do direito de
punir só podia provir agora dos termos do contrato social”328.

necessidade de explicar o sentido em que os utiliza, sentido que é lato e que por isso aqui se reproduz: os
termos «são usados de modo a cobrir não só a actividade intelectual mas também a observação e a
experimentação. É necessário ter esta observação em mente, pois “razão” e “racionalismo” são usados,
muitas vezes, em sentido diferente e mais restrito, não em oposição ao “irracionalismo”, mas ao
“empirismo”; usado deste modo, o racionalismo exalta a inteligência em detrimento da observação e da
experimentação, e poderá, portanto, ser preferível designá-lo por “intelectualismo”. Mas quando falo aqui
de “racionalismo”, uso sempre a palavra num sentido que inclui tanto o “empirismo” como o
“intelectualismo”, do mesmo modo que a ciência tanto faz uso da experimentação como do pensamento.
Em segundo lugar, uso a palavra “racionalismo” a fim de indicar, em traços gerais, uma atitude que
procura resolver tantos problemas quanto possível por meio de um apelo à razão, isto é, ao pensamento
claro, e à experiência, em vez de apelar para as emoções e paixões». Procurando concretizar esta ideia,
POPPER aduz que «o racionalismo é uma atitude de predisposição para ouvir raciocínios críticos e
aprender com a experiência. É fundamentalmente uma atitude em que se admite que “eu posso estar
errado e tu podes estar certo, e, com um esforço, poderemos aproximar-nos da verdade”».
327
A relevância do contrato social para a compreensão do iluminismo é sublinhada, entre outros, por José
de FARIA COSTA, “A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a distinção
entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social”, Revista de Direito e Economia, ano IX, 1983,
n.º 1-2, p. 20 ss. E a importância do iluminismo para a compreensão do direito penal que é ainda o nosso
não deixa, também, de ser enfatizada pelo Autor: “o Iluminismo é, a todos os títulos, um momento de
viragem no contexto da história política, económica e cultural do mundo ocidental. E é aqui que
encontramos os alicerces do direito penal moderno, razão, aliás, que justifica que ainda hoje se afirme que
temos um direito penal de matriz liberal” (Noções Fundamentais de Direito Penal cit., p. 158). O
reconhecimento desta relevância do Iluminismo Penal não equivale, porém, à desconsideração de outros
contributos para a modernização do direito penal. Chamando a atenção para a influência do pensamento
correccionalista, veja-se José Merêa Pizarro BELEZA [“A pena de prisão, a reforma das cadeias e o
Ensayo sobre o Plano mais Conveniente para a Fundação das Cadêas (notas para a história do direito
penal vintista)”, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora: 2003, p. 367):
«para a “compressão” da nossa história penal de Oitocentos, no relato que dela têm feito os juristas, terão
sobretudo contribuído, por um lado, a eleição do pensamento iluminista como origem e matriz
praticamente exclusiva da reforma moderna do nosso direito penal; por outro, a sobrevalorização da
influência do pensamento correccionalista».
328
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral –Tomo I, 2. ªed. cit., p. 66. Note-se, porém,
que a fundamentação do direito de punir por recurso à teoria do contrato social não terá merecido, em
nenhum momento, acolhimento unânime na doutrina lusa. Augusto SILVA DIAS (“Delicta in Se” e
“Delicta Mere Prohibita” cit., p. 98) sublinha que “a fundamentação contratualista não é acolhida pela
doutrina jurídico-penal iluminista” e exemplifica com a divergência de Pascoal de Melo Freire
relativamente a tal entendimento. E particularmente significativas (ainda que de sentido não coincidente
com a opinião de Melo Freire, que defende ainda uma “concepção absoluta do poder”) são também as
palavras de António AYRES GOUVEIA a esse propósito, ao recorrer sistematicamente ao fundamento da
“natureza humana”, desconsiderando a referência ao pacto social: “o fundamento do direito de punir é a
natureza do homem. O direito de punir é uma condição para o desenvolvimento, e para attingir o destino
racional. O ir buscar-lhe fundamento na justiça divina é (…) quererem esconder as mãos ensanguentadas
nas víctimas de penas barbaras, atribuindo-as a Deus. N’este systema (se não há pejo em lhe dar tal nome)
finge-se justiça do céu o furor feroz de derramar sangue: o juiz é o delegado de Deus, o carrasco o
substituto do anjo S. Miguel. O tribunal adaptado a tal systema é a inquisição. Insulta-se a Divindade,
imputando-lhe o crear seres para expiarem em pavorosas hecatombes. Baixados os olhos dos céus, ir
procural-o no estado ou mesmo na sociedade, se é proceder menos hypocrita, não é, sem dúvida, menos
estólido. Como conceber-se que a somma encerre mais do que as parcellas que a constituem, ou

184
Uma das razões pelas quais se considera que esta afirmação é merecedora de
ponderação em um estudo que versa sobre a proposta restaurativa afigura-se clara: a
legitimação da intervenção punitiva estadual através da ideia de contrato social não
parece coerente, pelo menos a um primeiro olhar, com a habitual apresentação crítica
(no pensamento restaurativo) da resposta penal como uma resposta definitivamente
autoritária, por contraposição à resposta radicada na autonomia da pessoa que seria a
restaurativa. O pensamento contratualista inerente à ideia de pacto entre cada cidadão e
o Estado é, ainda, um pensamento radicado na autonomia e na liberdade.
Todavia, por mais que se pretenda estribar ainda na liberdade (e na razão) do
homem essa intervenção punitiva do Estado que aplica o direito penal (afastando-se, por
essa via, a sombra da intervenção autoritária), sempre se crê que a manifestação de
liberdade que cada indivíduo teria quando, através do contrato social, alienava uma
parte dela para garantir a preservação da restante é, apesar de tudo, uma liberdade muito
mais longínqua, evanescente ou ficcionada329 do que a liberdade de conformação da
solução para o concreto conflito que os cultores da proposta restaurativa defendem.
Já na segunda metade do século XIX existiam, na literatura portuguesa,
interrogações sobre a legitimidade punitiva alicerçada em um pacto social. Julgam-se
paradigmáticas, a este propósito, as palavras de Camilo CASTELO BRANCO: “ao
homem desamparado não se lhe podem pedir contas do pacto social, porque a sociedade
não quis aliança com ele quando o desamparou”330.

elementos diversos dos d’aquellas? Se o direito não está n’um homem, como há de estar em dez, em cem,
em mil, em milhões, quando todos têm idêntica natureza? (…). N’uma palavra, nem no Estado, nem na
sociedade, reside o fundamento do direito de punir” (in A Reforma das Cadeas em Portugal – Resposta
ao Ponto proposto pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1860, p.16). Sublinhe-se, finalmente, um outro aspecto que, no pensamento do Autor, se
julga muito relevante na perspectiva da publicização do direito de punir e que se prende com a concepção
do direito como “absoluto” ou como “natural”: “o direito, como já o declarámos, não é facultativo e,
portanto, não poderia furtar-se a utilisal-o (…). Todos conclamam, que os direitos absolutos (na phrase
vulgar) são inalienáveis e não estão sujeitos à vontade do indivíduo” (ob. cit., p. 17).
329
Fernanda PALMA sublinha a “concepção liberal, antropocêntrica e contratualista da sociedade” que se
associa à fundamentação da validade e da legitimidade do direito e trata o exemplo do criminoso por
convicção enquanto figura que “corrói (…), inevitavelmente, uma fundamentação do Direito na
autonomia ética formulada nos moldes tradicionais”. A Autora enfatiza ponto que merece concordância –
e que se relaciona com uma ideia que aqui deve ser forte – quando aponta uma certa artificialidade e um
carácter algo contraditório à afirmação de que é na “autonomia” e no “interesse racional de cada um” que
se deve procurar o fundamento para a vinculatividade do direito. A Autora encontra tal fundamento,
antes, na “responsabilidade individual pelo reconhecimento do outro”, colhendo inspiração no
pensamento de Lévinas (a questão é, porém, merecedora de ponderação em um outro momento deste
estudo). Cfr. Fernanda PALMA, “Crimes de terrorismo e culpa penal”, Liber Discipulorum para Jorge de
Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, ps. 236 e 244.
330
A afirmação é feita no âmbito de uma reflexão sobre a miséria associada à falta de emprego e à escassa
remuneração do trabalho, que dá origem à exclamação “e, depois, admiram-se que o roubo e o assalto
seja um modo de vida, especialmente naquelas imediações! A inércia da autoridade, que não se lhe

185
No contexto de uma reflexão sobre o contributo de HOBBES331 – apontado
como “o primeiro grande contratualista integral” – “para a transformação radical que a
noção de autoridade sofreu” e sobre o seu papel “decisivo para o surgimento do
pensamento político democrático nos tempos modernos”, Miguel MORGADO recorda
também o reconhecimento cerca de um século depois, por ROUSSEAU, de que “o
poder, sim, mas a vontade não se transmite nem se representa”332. Ou seja: o facto de se
encontrar, através da ideia de representatividade, um fundamento democrático para a
autoridade, não parece permitir que depois “se dê o salto” que significa a imputação
do exercício da autoridade “contra o indivíduo” ainda a uma manifestação de vontade
deste mesmo indivíduo.
Além disso, não deve desconsiderar-se a crítica a que a própria teoria do
contrato social foi sujeita por Autores cujo pensamento teve influência na proposta
restaurativa, nomeadamente os associados à criminologia crítica. Entre estes, parece
constituir exemplo merecedor de reflexão a opinião de Alessandro BARATTA, que vê
no contrato social uma mistificação de um contrato universal333, na medida em que lhe

perdoa, é talvez a consciência de que ninguém se deixa morrer de fome, enquanto o braço pode dedicar-se
a um trabalho qualquer, embora desonroso”. A propósito dos grupos de salteadores que actuavam nos
concelhos limítrofes de Amarante, Camilo CASTELO BRANCO ainda acrescenta: “esses desgraçados,
que se entregam ao roubo, são aqueles que não têm um tecto, nem umas palhas, nem um salário que lhes
alimente a vida com honra”. E, logo de seguida, critica a punição enquanto solução, afirmando que “a
experiência tem mostrado que não é por meio da perseguição que se moralizam esses homens. A morte de
um ou dois não desorganiza as maltas. A prisão dalguns o mais que faz é aumentar a estatística das
enxovias, anulando para a sociedade alguns homens que o ar corrompido das cadeias acabou de perder”.
O Autor vê no trabalho bem remunerado o único remédio contra o crime: “o trabalho, bem remunerado, é
o único expediente que pode reconciliar com a sociedade os que a exploram com desonra, porque ela não
lhes dá um emprego honesto” (“Política Interna”, Vida do José do Telhado – Extrahida das “Memorias
do Carcere”, Frenesi, Lisboa MMIX, ps. 6-9, excerto de O Porto e a Carta, de 10 de Fevereiro de 1855).
331
O filósofo do século XVII estabelece a ligação entre o exercício da autoridade e os interesses dos
indivíduos através da figura da representação, considerando que aquela autoridade decorria de uma
relação de representação, em que os autores eram os indivíduos representados, sendo o representante
então empossado da autoridade apenas um actor. É essencial, nesta compreensão, a ideia de que o
exercício da autoridade está “ao serviço” dos interesses dos representados, o que, se o legitima em outros
moldes, também o sobrecarrega com a reponsabilidade e torna passível de controlo a sua conformidade
com a defesa daqueles interesses..
332
Miguel MORGADO, em momento posterior do seu estudo, acrescenta, ainda que de forma não
detidamente justificada, que “foi, no entanto, observado por críticos do contratualismo que, se esta
corrente podia justificar a autoridade do árbitro, só com muito maiores dificuldades conseguiria justificar
a do juiz” (in Autoridade, Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010, p. 89 e p. 92). Nas
palavras de Jean Jacques ROUSSEAU, “ je dis donc que la souveraineté, n’étant que l’exercice de la
volonté générale, ne peut jamais s’aliéner, et que le souverain, qui n’est qu’un être collectif, ne peut être
représenté que par lui-même; le pouvoir peut bien se transmettre, mais non pas la volonté” (Du Contrat
Social ou Principes du droit politique, Livro II, Amsterdão, 1762. Usada edição digital, Soares, Sálvio M.
(Ed.), MetaLibri, 2008, p. 16).
333
Em sentido não coincidente, veja-se a afirmação de António Pedro MESQUITA [Liberalismo,
Democracia e o Contrário – Um século de pensamento político em Portugal (1820-1920), Lisboa:
Edições Sílabo, Colecção Sophia, 2006, ps. 151-2], a partir de uma interpretação da filosofia política de
Rousseau, de que “o contrato social não é uma utopia. Não narra a história de como a sociedade foi no

186
subjaz a tutela dos interesses de apenas alguns: os contraentes correspondem ao
estereótipo do homem caucasiano, proprietário e adulto, o que significa desde logo a
exclusão de uma fatia significativa da humanidade O Autor sustenta, de resto, a
substituição do conceito de “contrato” pelo de “aliança”, que abrangeria os excluídos do
pacto e significaria também uma aliança do homem com a natureza para protecção das
gerações futuras. E, a partir dessa raiz contratual, enceta uma procura dos princípios que
seriam objectivo de uma escolha racional, assim vinculando a sua teoria da justiça a
uma teoria da escolha racional334.

início (num início mítico, precisamente sem tempo nem lugar – in illo tempore), nem tão-pouco projecta
o que ela haveria de ser num futuro ideal e sempre forçosamente adiado”. Na opinião do Autor, o “não-
ser-ainda ou já-ter sido (conceitos que só se explicam pelo próprio contrato social) não são precisamente
históricos, e portanto também não são utópicos, quer no mito do ante-passado, quer na idealizaçãoa do
porvir: revelam antes o desajuste constitutivo de uma sociedade que violou aquilo em que unicamente
assenta (o contrato social propriamente) e que, por isso mesmo que não está sendo o que é, já tem de ter
sido ou de vir a ser, porque não é pensável que pura e simplesmente não seja, sendo dado que justamente
é agora”. E conclui, nesta linha de argumentação, que “a passagem do estado natural ao estado civil, que
a celebração do contrato social promove, não constitui um acontecimento historicamente datável, ainda
que como mera reminiscência lendária ou sequer como exigência apriorística de uma reconstituição
coerente da história pela qual unicamente lhe atribuíssemos sentido reconduzindo-a a um episódio
inaugural e efectivo. Pelo contrário, o pacto social é, em cada momento, o fundamento constante e
constitutivo de haver sociedade – o que significa que em cada momento o contrato social está a ser
celebrado, sob a forma do seu reconhecimento tácito, ainda quando, por usurpação, ele é despoticamente
esmagado e a sociedade, dissolvendo-se de direito, sobrevive apenas como mero estado de facto”. A
razão pela qual se julgou adequada a porventura excessivamente longa citação do pensamento do Autor
merece ser enfatizada. A invocação do carácter ficcional ou utópico do contrato social parece favorecer a
argumentação, pelos restaurativos, de que a resposta dada ao crime pela justiça penal não manifesta
qualquer ponto de conexão com a autonomia do indivíduo, porque esse concreto indivíduo nunca se
manifestou, de facto, sobre os moldes em que aliena parte da sua liberdade para a protecção do essencial
da sua liberdade e da liberdade dos outros. A afirmação da natureza não utópica do contrato social parece
contradizer a crítica restaurativa ao ius puniendi estadual. Não se julga, porém, que esta seja uma
conclusão inequívoca. As razões pelas quais MESQUITA invoca o contrato social como fundamento
constante e constitutivo de haver sociedade – daí ter-se julgado metodologicamente adequada a sua longa
reprodução – não parecem determinar a verificação de uma real escolha individual dos termos e das
consequências desse contrato, mas antes uma opção de natureza mais colectiva, mais associada a uma
vontade geral do que a uma vontade individual, em dado tempo e em dado espaço. Tende, assim, a tomar-
se como boa a ideia de Karl POPPER, no contexto de uma sua análise do pensamento marxista, de que
“os homens (…) são mais o produto da vida em sociedade do que os criadores desta. Há que admitir que a
estrutura do nosso enquadramento social é feita pelo homem em certo sentido; que as suas instituições e
tradições não são obra de Deus nem da natureza, mas o resultado de acções e decisões humanas, e
alteráveis por acções e decisões humanas. Isto não significa, porém, que todas elas obedeçam a um plano
consciente, que sejam explicáveis em termos de necessidades, esperanças ou motivos” (A Sociedade
Aberta e os seus Inimigos, vol. II, Lisboa: Fragmentos, Colecção Problemas, 1993, trad. de Teresa
Curvelo, p. 95).
334
Alessandro BARATTA, “El Estado-Mestizo y la Ciudadanía Plural, Consideraciones sobre Una
Teoria Mundana de la Alianza”, Identidades Comunitárias y Democracia, Ed. Héctor Gorsky, Madrid:
Trotta, 2000, p. 185 ss. O Autor reflecte sobre a crise da modernidade a partir de um vector que merecerá
consideração autónoma em momento posterior e que se prende com a antinomia entre o pensamento da
anulação da violência no direito e a praxis de reprodução da violência: a contradição, portanto, entre a
teoria e a prática. Apesar do seu cepticismo quanto ao pensamento pós-moderno (cujo nihilismo,
associado ao relativismo e à inexistência de um projecto de sociedade, favorecem, a seu ver, a
manutenção de um mau estado das coisas), Baratta aponta o incumprimento da promessa do direito
moderno de redução da violência, o que, ainda segundo o Autor, desencadeou uma perda de confiança na
razão e no progresso da humanidade.

187
Acrescente-se, por outro lado, que mesmo quando se adopta uma “posição de
raiz contratual” e se procura “apresentar uma concepção da justiça que generaliza e
eleva a um nível superior a conhecida teoria do contrato social” – como sucede com
John RAWLS –, se reconhece que há uma posição de igualdade original que é
meramente hipotética e que é tida em conta sobretudo como pressuposto necessário a
uma determinada compreensão da justiça. Ou seja: aceita-se que essa “posição original”
que conduziu ao contrato social não tem a concretude de uma qualquer situação
histórica, assumindo antes um valor sobretudo simbólico na modelação de um certo
conceito de justiça335.
John RAWLS encontra, porém, várias razões que justificam a conveniência do
apego ao conceito de “contrato” em uma teoria da justiça, como sejam a sua associação
a uma ideia de escolha racional; o reconhecimento da pluralidade de pessoas e de
grupos e a ideia-base de que a divisão adequada dos benefícios e das desvantagens deve
obedecer a princípios de justiça que possam ser reconhecidos por todos; a publicidade
desses princípios que é conatural à ideia de contrato. O que também se julga
interessante – e que permite que se compreenda a centralidade dessa “raiz contratual”
no pensamento do Autor – é o modo como aquele contrato social estabelecido numa
posição original que é hipotética (e que o é também quando ficciona uma posição de
participação, num plano de igualdade, de todos os indivíduos) se relaciona com a ideia
do primado do justo sobre o bem (essa prioridade do justo que RAWLS nunca deixa de
afirmar já como “um elemento central da ética de Kant”). É porque cada indivíduo
aceita antecipadamente os princípios de justiça, antes da ponderação dos seus interesses
particulares e daquilo que seria útil ao seu bem, que há uma concordância implícita com
a ideia de que não se farão exigências que sejam directamente contrárias àqueles
princípios336.

335
John RAWLS, Uma Teoria da Justiça, Lisboa: Editorial Presença, trad. de Carlos Pinto Correia, 2.ª
ed., 2001, ps. 33-37. Nas suas próprias palavras, “na teoria da justiça como equidade, a posição da
igualdade original corresponde ao estado natural na teoria tradicional do contrato social. Esta posição
original não é, evidentemente, concebida como uma situação histórica concreta, muito menos como um
estado cultural primitivo. Deve ser vista como uma situação puramente hipotética, caracterizada de forma
a conduzir a uma certa concepção da justiça”. No desenvolvimento da sua concepção da justiça como
equidade, o Autor outorga relevância particular à determinação dos princípios da justiça, que atribui
àquela hipotética posição original. Considera que os sujeitos colocados nessa posição “escolheriam dois
princípios bastante diferentes: o primeiro exige a igualdade na atribuição dos direitos e deveres básicos,
enquanto o segundo afirma que as desigualdades económicas e sociais, por exemplo as que ocorrem na
distribuição da riqueza e poder, são justas apenas se resultarem em vantagens compensadoras para todos
e, em particular, para os mais desfavorecidos membros da sociedade”.
336
John RAWLS, ibidem, ps. 46-7, que esclarece também que “aquele que descobre que gosta de ver os
outros em situação de menor liberdade compreende que não pode ter qualquer pretensão à realização

188
Outra das razões pelas quais se não pode deixar de referir o Iluminismo Penal337
e a teoria do contrato social338 – e uma razão porventura mais relevante – prende-se com
o seu enfoque na ideia de que a reacção justa ao crime é uma reacção pública e
proporcionada, ideias que regra geral se apresentam como conflituantes com o sentido
da proposta restaurativa339.
Da ideia de pacto social como fonte de legitimação do poder estadual de punir
decorre a conformação da punição como instrumento para a protecção da esfera de
liberdade de cada cidadão contra crimes futuros e de protecção da sociedade, mas não já
os interesses da vítima concreta e passada no núcleo da reacção ao crime340.

desse prazer. O prazer que retira das privações alheias é, em si mesmo errado: a sua satisfação viola um
princípio ao qual daria o seu acordo na situação original. Os princípios do justo, e, portanto, também os
da justiça, limitam os desejos cuja satisfação pode ter valor, impõem restrições quanto ao que possam ser
as concepções razoáveis do bem de cada um”.
337
Apesar de se concordar com a afirmação de José de FARIA COSTA de que “houve vários
iluminismos”, aquilo que agora se pretende sublinhar com esta referência ao “iluminismo penal” no
singular é um núcleo de ideias principais que (ainda que com diversas formulações e especificidades)
podem associar-se a este movimento e a um dado período histórico (cfr. José de FARIA COSTA, “Ler
Beccaria Hoje”, ensaio introdutório a Dos Delitos e das Penas, de Cesare BECCARIA, trad. de José de
FARIA COSTA, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p. 12 ss).
338
Também não se desconhece a existência não de um, mas de vários entendimentos do contrato social.
Sobre o assunto, entre nós, cfr. a título de exemplo, José de SOUSA E BRITO (“A Lei Penal na
Constituição”, Estudos sobre a Constituição II vol., Coord. Jorge Miranda, Lisboa: Petrony, 1978, p. 197
ss), que enfatiza a distinção entre um entendimento de índole mais liberal (associado a Voltaire) e um
outro democrático-jacobinista (atribuído a Rousseau). Também John RAWLS considera que “há muitas
teorias contratuais diferentes”, desde logo em função da forma como se concebem as partes contratantes,
daqueles que se julga serem os seus interesses e das alternativas abertas pela tentativa de conciliação de
tais interesses (Uma Teoria da Justiça cit., p. 110). De qualquer modo, deve ter-se em mente que não é a
teoria do contrato social, em si mesma, que constitui objecto deste estudo, mas antes os modos pelos
quais se repercute nas possibilidades de compreensão da justiça restaurativa.
339
Pretende-se, assim, contrapor uma concepção de justiça orientada para a protecção de bens jurídicos e,
nessa medida, primariamente definida pelo seu intuito de protecção da “comunidade toda” e uma outra
concepção de justiça mais atenta à satisfação das necessidades dos intervenientes concretos no conflito.
Jorge de FIGUEIREDO DIAS associa a origem desse “paradigma do direito penal democrático hodierno”
que é um direito penal do bem jurídico ao “pensamento filosófico ocidental a partir do século XVII – no
racionalismo cartesiano, no individualismo liberal, na mundividência antropocêntrica e humanista – e,
pelo que directamente respeita à doutrina jurídico-penal, no movimento do Iluminismo penal” (O “direito
penal do bem jurídico” como princípio jurídico-constitucional – da doutrina penal, da jurisprudência
constitucional portuguesa e das suas relações”, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa,
Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 33).
340
Neste sentido, José SUBTIL (últ. ob. cit., p. 85) considera que se institucionaliza, com o iluminismo
penal e depois com o liberalismo do século XIX, “uma nova ordem legitimada em concepções
radicalmente diferentes, de que destacamos os conceitos de pacto social, finalidades das penas e/ou papel
desempenhado pelo sistema penal. O direito de punir passa a fundamentar-se, exclusivamente, no pacto
social, o que implica que é à mesma sociedade que cabe a legitimidade para castigar, não para reparar a
ofensa do particular, mas para reproduzir as condições da liberdade e, obviamente, a segurança do
cidadão. Por isto mesmo deixam de ter cabimento a maioria das penas consagradas nas Ordenações, na
medida em que os castigos passam a revestir carácter de utilidade pública”. Com interesse, pode verificar-
se que essa cisão entre o pensamento da punição e o pensamento da reparação é já clara na obra de Levy
Maria JORDÃO “O Fundamento do Direito de Punir. Dissertação Inaugural apresentada na Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, no ano de 1853” (Boletim da Faculdade de Direito, vol. 51, 1975, p.
307), na sua afirmação de que “a acção material da pena deve traduzir-se na reparação do damno, porque
só assim se póde restabelecer o estado-de-direito perturbado em relação ao lesado: a acção moral deve

189
Ora, para ilustrar essa concepção do que seria reagir ao crime com justiça, ainda
sob esse enfoque iluminista que se julga preservar grande influência no actual modelo
dominante de reacção ao crime, parece essencial aquilo que Cesare BECCARIA, em
jeito de conclusão da sua obra Dos Delitos e das Penas341, há já cerca de dois séculos e
meio, afirmou sobre a pena: “para que toda a pena não seja uma violência de um ou de
muitos contra um cidadão particular, deve ser essencialmente pública, pronta,
necessária, a mais pequena possível nas circunstâncias dadas, proporcional aos delitos,
fixada pelas leis”342.
Sublinhe-se, para o objecto que a este estudo sobretudo interessa, essa afirmação
primeira de que a pena deve ser pública. Um traço distintivo da evolução da justiça
penal é, todos o sabemos, o da sua publicização: o crime deixa progressivamente de ser
visto como um assunto da vítima, da sua família ou grupo, e passa a ser entendido como
um assunto da sociedade que vem a ser representada pelo Estado.
Para BECCARIA, “a única e verdadeira medida dos delitos” é “o dano à
sociedade” – e não a “intenção de quem os comete”, nem “a dignidade da pessoa
ofendida”, nem “a gravidade do pecado”. Depois de distinguir três espécies de delitos
(aqueles que “destroem imediatamente a sociedade ou quem a representa”; aqueles que
“ofendem a segurança privada de um cidadão na sua vida, bens ou honra”; aqueles que
são “acções contrárias àquilo que cada um é obrigado pela lei a fazer, ou a não fazer,
com vista ao bem público”), o Autor reafirma que “todo o delito, mesmo privado,
ofende a sociedade”343.

resolver-se na reparação da perturbação toda moral do estado-de-direito na sociedade e no próprio


criminoso. A pena tem por isso dous elementos distintos, a reparação (em relação ao effeito material do
crime) e a pena, propriamente dicta (em relação ao effeito moral). A reparação porém não é objecto da
sciencia penal, e os Códigos, que d’ella se occupam (como o nosso, a tantos respeitos por certo
defeituosíssimo), não comprehendem verdadeiramente a sua missão, nem se elevam à philosophia da
verdadeira penalidade”. Para um aprofundamento da reflexão sobre a vida e a obra do Penalista, cfr.
Pedro CAEIRO, que refere, entre vários outros aspectos, “a associação entre os trabalhos de reforma do
Código de 1852 e a pessoa de Levy Maria Jordão (“Levy Maria Jordão, Visconde de Paiva Manso. Notas
bio-bibliográficas”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXI, 1995, p.
363).
341
Sobre a obra “Dos Delitos e das Penas”, afirmou Giorgio MARINUCCI que pertence a um género de
livros – o das obras seminais (“a partir das quais começaram e não mais deixaram de começar tantas
coisas”), “que fazem do seu autor um perene contemporâneo” (“Cesare Beccaria, um nosso
contemporâneo”, ensaio introdutório a Dos Delitos e das Penas, de Cesare BECCARIA, trad. de José de
Faria Costa, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p. 29).
342
Cesare BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, tradução de José de Faria Costa, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian: 1998, p. 163.
343
Cesare BECCARIA, ob. cit., ps. 75-8.

190
Nesta medida, ao afirmar-se enquanto “manifesto do garantismo”344 e ao pôr o
“acento daquilo que pode merecer o nome de delito” no dano à sociedade345, a obra Dos
Delitos e das Penas assume papel decisivo na configuração do paradigma liberal da
justiça penal, que reserva um espaço diminuto aos interesses da vítima concreta do
crime.
Posteriormente, aprofunda-se essa hipervalorização do bem da sociedade, que
passa a ser vista como um ser em si mesma, como que com uma vida própria e
interesses também específicos, um ser que é mais do que a mera soma dos indivíduos
que o compõem. Essa tendência, associada ao surgimento das concepções organicistas
da sociedade – que SILVA DIAS bem apresenta como “difundidas no século XIX sob o
impulso do movimento romântico e idealista, da escola histórica, da filosofia de Hegel e
do positivismo sociológico”346 –, contribui para o aguçar da concepção da justiça penal

344
Para José de FARIA COSTA (“Ler Beccaria hoje”, cit., p. 8), “esta pequena obra (…) pode ser vista
como o Manifesto do garantismo, ou seja: como manifesto das garantias, em direito e processo penais,
nas suas relações com o Estado detentor do ius puniendi”.
345
Giorgio MARINUCCI, últ. ob. cit., p. 35.
346
Augusto SILVA DIAS, “Delicta in se” e “Delicta mere Prohibita” cit., p. 149. O Autor refere o
reflexo destas concepções organicistas da sociedade “no plano da filosofia do Direito Penal: a primazia do
todo social sobre o indivíduo e a perspectiva inerente de defesa da sociedade perante o delinquente”. E
sublinha a influência principal do positivismo sociológico de Comte e de Spencer e da filosofia hegeliana.
Quanto a esta, vinca a ideia de que se parte do princípio de que “o crime representa uma rebelião da
vontade individual contra a vontade universal materializada na lei”, afirmação que reveste interesse na
perspectiva da evolução da compreensão da lei penal como lei que defende essa universalidade que é a
comunidade, e não já cada um dos indivíduos que a compõem. Com muito interesse, veja-se a forma
como o Autor distingue a defesa da sociedade subjacente ao pensamento da escola clássica e aquele outro
subjacente à escola positiva, precisamente a partir de uma concepção não organicista ou organicista de
sociedade. Assim, começa por referir que, para o positivismo naturalista, “a sociedade é concebida à
semelhança de um organismo vivo, como uma totalidade que pode ser ameaçada ou ferida por
comportamentos agressivos de agentes nocivos que nela se desenvolvem”. Vinca-se, assim, “a conexão
estreita entre teoria do Direito Penal e teoria da sociedade”. Poder-se-ia tender a uma certa parificação da
escola clássica e da escola positiva com base nesta função comum de defesa da sociedade. Todavia,
SILVA DIAS sublinha que, para além dessa função, tudo o resto é diverso: “é verdade que tanto Beccaria
e Carrara como Garofalo estabelecem uma relação de finalidade entre a pena e a defesa da sociedade.
Mas em tudo o resto, desde o fundamento teórico ao significado prático da defesa social, vence a
diferença. A perspectiva de defesa social da escola clássica inscreve-se numa concepção da sociedade
como conjunto de indivíduos detentores de direitos e liberdades que só devem ser restringidos pelo
Estado quando isso se mostrar necessário para salvaguardar outros direitos e liberdades. A ameaça penal
serve para garantir a ordem social enquanto ordem da liberdade (…). O destinatário das leis penais é visto
como sujeito racional (…). Por seu turno, a concepção de defesa social do positivismo naturalista insere-
se (…) numa teoria organicista da sociedade, na qual o indivíduo é reduzido ao papel de micro-
organismo, que, do mesmo modo que a totalidade é regida por leis da causalidade, é determinado à acção
por factores endógenos e exógenos” (ob. cit., ps. 161-2). A razão pela qual se julgou dever atribuir ênfase
a esta explicação prende-se com a sua relevância para a compreensão da progressiva neutralização do
indivíduo como sujeito do conflito criminal, em detrimento de uma gradual prevalência do interesse da
sociedade, e de uma sociedade já não vista como uma soma dos indivíduos que a compõem. Noutra
perspectiva, agora desligada de uma reflexão especificamente jurídico-penal, mas também vincando a
prevalência da sociedade sobre o indivíduo em algumas correntes do pensamento oitocentista, António
Pedro MESQUITA [Liberalismo, Democracia e o Contrário – Um século de pensamento político em
Portugal (1820-1920), Lisboa: Edições Sílabo, Colecção Sophia, 2006, p. 40-1] afirma “um aspecto
particular”: “é que a sociedade não é vista (…) apenas como um todo, ainda que único concreto perante a

191
como um assunto da comunidade, e um assunto desligado daqueles que são os
intervenientes no conflito criminal, cujos “assuntos concretos” perdem relevância.
Tendo como pano de fundo um tal entendimento sobre a bondade associada ao
carácter público e indisponível da justiça penal, o que se deve agora questionar é se na
proposta restaurativa vive ainda um modelo de reacção ao crime que é um modelo de
justiça ou se, pelo contrário, essa proposta se esgota em um conjunto de práticas de
gestão dos conflitos alheias à consideração do justo e sobretudo admitidas em nome de
finalidades de celeridade e de eficácia, em sistemas incapazes de reagir a todos os
crimes com base naquela que é a resposta tradicional.

5.3. A procura da justiça na opinião dos cultores da proposta restaurativa

É frequente, entre Autores influentes no panorama restaurativo, a ideia de que


“na justiça restaurativa aquilo de que se trata é de lutar contra a injustiça (…). Assim
concebida, ela almeja a redução da injustiça; ver nela apenas um objectivo de
diminuição do crime empobrece a sua missão. Ela aspira a oferecer orientações práticas
sobre a forma como podemos conduzir a nossa vida de uma forma correcta, como
cidadãos democráticos, combatendo a injustiça”347.
O que pode perguntar-se é se nesta opinião vai subjacente um diverso
entendimento daquilo que é reagir com justiça ao episódio criminal – o que suporia,
pelo menos até certo ponto, a afirmação das insuficiências da justiça penal de raiz
iluminista e uma intenção de a ultrapassar – ou se, pelo contrário, ainda se aceita aquela
representação de justiça e apenas se considera que o sistema de justiça criminal não é o
meio indicado para a atingir, defendendo-se a maior aptidão da proposta restaurativa na
prossecução de finalidades que seriam, assim, as mesmas.

evanescência do particular abstracto, mas como um todo que está para lá da parte, que vale por si,
independentemente de todos e de cada um dos seus membros, porque é uma realidade orgânica, um
grande ser vivo em que, tal como os que inspiram a analogia na natureza, o corpo animado não é colecção
nem cadáver e, portanto, não coincide com a mera soma, justamente inorgânica, das partes”. E o Autor
acrescenta que aqui vai implícita “uma nova e importante diferença com a tese jacobina (…), para a qual
o todo é aritmético e, portanto, não é justamente senão a soma das partes”.
347
Cfr. John BRAITHWAITE, “Principles of Restorative Justice”, in Restorative Justice & Criminal
Justice cit., p. 1. A compreensão desta afirmação do Autor supõe o conhecimento da sua opinião sobre a
injustiça do modelo tradicional de resposta ao crime, que considera estigmatizante e potenciador das
desigualdades associadas à “pobreza, ao racismo e ao sexismo”. Ilustra essa crítica com uma referência ao
sistema prisional. Também Michael WENZEL/Tyler OKIMOTO/ Norman FEATHER/Michael
PLATOW [“Retributive and Restorative Justice”, Law and Human Behavior, (2008), 32, p. 376]
consideram que “a justiça restaurativa na verdade almeja a reconstrução de um sentimento de justiça (e
não só modificar o comportamento)”, o que “suscita um desafio interessante à psicologia da justiça”.

192
O problema que neste ponto do estudo se deve considerar é o de saber se,
quando os cultores da proposta restaurativa a apresentam como uma exigência de
justiça na reacção ao crime, têm em mente sobretudo aquelas compreensões de justiça
que têm moldado as finalidades penais de retribuição ou de prevenção, considerando
que as práticas restaurativas cumprem melhor essas finalidades ou se, pelo contrário,
invocam novas finalidades como decorrência de uma diversa compreensão do que é
reagir ao crime com justiça. Entre os primeiros, pode tomar-se como exemplo o
pensamento de Conrad Brunk. Os segundos, entre os quais parecem sobressair as
reflexões de Braithwaite, admitem que para além de considerações de justiça comutativa
ou de justiça distributiva (que associam, respectivamente, ao pensamento da retribuição
e ao pensamento da socialização), um modelo de reacção ao crime que se pretenda justo
não pode ignorar as exigências da restauração.
Refira-se, em primeiro lugar, o pensamento daqueles que não vêem na proposta
restaurativa o instrumento de uma outra justiça, mas apenas uma forma mais eficaz à
obtenção das finalidades impostas por uma compreensão da justiça que também é a
inerente ao sistema penal. Ao contrário daquela que parece ser a opinião de Braithwaite
– e da sua concepção de uma outra dimensão da justiça, mais orientada para a
satisfação das necessidades concretas das pessoas envolvidas no conflito a partir de uma
ideia de tolerância e de reparação –, existem defensores da proposta restaurativa que
optam antes por a apresentar como uma forma melhor de obtenção daquelas finalidades
que são perseguidas pelo sistema criminal, ainda coerentes com as compreensões da
justiça dominantes desde o iluminismo penal. Estes Autores esboçam uma defesa da
proposta restaurativa, procurando explicar as razões pelas quais, no seu modo de ver, ela
responde adequadamente às exigências tradicionais da filosofia da punição348. Não é

348
Neste sentido, cfr. Conrad BRUNK (“Restorative Justice and the Philosophical Theories of Criminal
Punishment”, in The Spiritual Roots of Restorative Justice, Ed. Michael HADLEY, State University of
New York Press, 2001, p. 31 ss). O Autor assume o propósito de mostrar que “o conceito e a prática da
justiça restaurativa abordam de forma muito mais satisfatória as questões a que as tradicionais teorias
filosóficas da punição procuraram responder”. Depois de procurar caracterizar as duas tendências de
resposta dominantes até ao século XX através de uma referência à “corrente retribucionista” e à corrente
“utilitarista”, menciona o fortalecimento, nesse século, de uma corrente “reabilitadora” e de uma corrente
“restitutiva”, esta última associada ao fortalecimento do movimento vitimológico. Sublinha uma certa
proximidade entre este pensamento da restituição e o da retribuição, considerando que em ambos há uma
preocupação com “tornar certo o errado”, agora já não “através da imposição de um sofrimento ao
agressor mas através de uma compensação da vítima”. A partir de uma análise destas quatro correntes,
tenta sumariar as “preocupações a que um sistema de justiça criminal deve dar resposta”. Em primeiro
lugar, afirma que ele deve proteger os cidadãos dos males que a lei visa evitar, garantindo uma “ordem
moral” que permita que “todos vivam em relativa paz, segurança e bem-estar”. Em segundo lugar,
entende que os agentes de crimes devem receber o seu “just desert”, não devendo a punição constituir
“nem mais nem menos” do que aquilo que eles merecem. Finalmente, considera que a resposta ao crime

193
este, por razões que se espera que venham a tornar-se mais claras ao longo deste estudo,
o ponto de vista de que se parte. Não se julga que a justiça restaurativa deva assumir
como finalidades suas as finalidades preventivas, elegendo-as como referenciais
primeiros para os seus modos de actuação. E também não se julga que, caso fossem
essas as suas finalidades, pudesse afirmar-se como regra a sua maior adequação à
prossecução das mesmas. Partindo do pressuposto de que os fundamentos e as
finalidades da intervenção restaurativa são, afinal, outros, o que deve questionar-se é se
neles vai ainda implícita uma ideia de realização da justiça.
A consideração deste problema – nascido da aparente conflitualidade entre duas
muito distintas representações da justiça ou, então, apenas da diferenciação entre dois
sistemas que, por meios diversos, se orientam para o mesmo ideal de justiça – remete-
nos para uma reflexão (limitada, claro está, pelo seu sentido e função no contexto deste
estudo) sobre o sentido da justiça e sobre a sua partição – muito frequente entre os
cultores da proposta restaurativa – em justiça comutativa (ou retributiva), justiça
distributiva (ou reabilitadora) e justiça restaurativa349.

tem de significar uma reparação da injustiça cometida, o que deve ser assumido pelo agente, que
“recoloca bem aquilo que fez de mal”. A estas três “preocupações” que, segundo crê, devem presidir ao
modelo de reacção ao crime acaba por acrescentar uma outra: «a punição não pode tornar o agressor uma
pessoa “pior”. Idealmente deve, até, torná-lo uma pessoa melhor». A conclusão a que BRUNK chega é
que todas as teorias mencionadas (e não é isenta de dúvidas, desde logo, esta classificação) – a retributiva,
a utilitarista, a reabilitadora e a reparadora – não logram responder a todas aquelas preocupações,
privilegiando umas e prescindindo de outras. Já a proposta restaurativa, na sua opinião, consegue fazê-lo:
respeitaria a ideia de just desert porque trata o agressor como “moralmente responsável”, devendo
assumir as suas acções e responder por elas; protegeria a sociedade e evitaria a reincidência porque, numa
avaliação do “longo prazo”, a reacção construtiva ao crime pacifica mais a comunidade e reintegra mais o
agente; seria mais reabilitadora do agente porque só aquela responsabilização construtiva é compatível
com a reabilitação; garantiria a reparação dos danos causados à vítima na medida daquilo que a própria
vítima assume como as suas necessidades. Não cabe no propósito desta referência ao pensamento de
BRUNK uma crítica nem da sua catalogação das finalidades de um modelo de reacção ao crime, nem das
respostas que lhes foram sendo dadas por cada uma das teorias da punição que elenca, nem da forma
como descreve cada uma delas, e muito menos das conclusões a que chega sobre os seus méritos
relativos. O que aqui se quer sublinhar é coisa diversa: ao contrário do que o Autor defende importando
para a justiça restaurativa todas as finalidades referidas – as finalidades da intervenção penal –, não se
julga nem possível nem desejável que um único modelo de resposta ao crime dê satisfação a todas as
necessidades decorrentes do crime. E é assim na medida em que essas finalidades forem – como podem,
em muitos casos, ser – conflituantes. Portanto, diversamente do que defende o Autor, a ideia de que se
parte – e que a seguir se procurará explicar – é a de que a justiça penal e a justiça restaurativa procuram
responder a dimensões diferentes das exigências de justiça na forma como se reage ao crime.
349
Conhecem-se várias tentativas de teorização da história da justiça que partem de uma bipartição entre
concepções retributivas e distributivas (cfr., a título de exemplo, D. D. RAPHAEL, Concepts of Justice,
Oxford, Nova Iorque: Oxford University Press, reimp., 2006, p. 5, que refere a contraposição entre as
ideias de “dar às pessoas aquilo que merecem” ou “dar às pessoas aquilo de que precisam para se
tornarem mais iguais”). Na doutrina restaurativa, ou se vinca a distância da justiça restaurativa face às
concepções retributivas e se sublinha a maior proximidade da justiça distributiva, ou se opta por uma
classificação tripartida. Esta tripartição é patente logo no pensamento de Albert EGLASH, pioneiro do
discurso restaurativo. No seu estudo “Beyond Restitution: Creative Restitution” (in Restitution in
Criminal Justice, Eds. GALAWAY/HUDSON, Lexington, MA: DC Health and Company, 1977, p. 91

194
Aquilo que se deve começar por sublinhar, a traço muito grosso, é que não
constitui – não pode constituir, naturalmente – propósito deste estudo uma qualquer
reflexão sobre os conteúdos actuais, a história e a evolução daqueles conceitos de
justiça comutativa e distributiva. Aquilo que se pretende é, muito mais modestamente,
dar conta da tentativa recorrente, na literatura restaurativa, de radicar a proposta
restaurativa numa dimensão da justiça distinta da comutativa e da distributiva. Neste
sentido, o que se pode antecipar é que, caso se associe a realização da justiça apenas
àquela sua dimensão comutativa – se por justiça se entender apenas a justiça absoluta
associada ao pensamento retributivo –, parece claro que se deve substituir o conceito de
“justiça restaurativa” por coisa diversa, de que pode ser exemplo a expressão “práticas
restaurativas”. A opinião sustentada por Zehr, Walgrave ou Jaccoud vai no sentido
oposto, o da afirmação de uma outra dimensão da justiça, que apodam de restaurativa.
Todavia, o que talvez possa questionar-se é o fundamento e a necessidade dessa
afirmação. Ou seja, o que pode perguntar-se é se a proposta restaurativa não
incorporaria, já, segmentos das próprias ideias de justiça comutativa e de justiça
distributiva.

ss), o Autor considera que se podem identificar três modelos de justiça: a justiça punitiva que se centra no
castigo; a justiça distributiva voltada para o tratamento do delinquente; a justiça restitutiva, orientada para
a reparação. Estas categorias, ainda que por vezes com ligeiras especificidades definitórias, foram depois
retomadas por autores como Howard ZEHR, no seu Changing Lenses: a New Focus for Crime and
Justice cit., que se centrou essencialmente na distinção entre retribuição e reparação, ou Lode
WALGRAVE, no seu estudo significativamente intitulado “Au-delà de la Rétribution et de la
Réhabilitation: la Réparation comme Paradigme Dominant dans l’Intervention Judiciaire contre la
Délinquance des Jeunes?” (in La Justice Réparatrice et Les Jeunes, J.F. GAZEAU/V. PEYRE,
Vaucresson: 9ièmes journées internationales de criminologie juvénile, 1993, p. 5 ss). WALGRAVE
procura caracterizar, sublinhando a sua oposição, um direito penal, um direito reabilitador e um direito
restaurador (ob. cit., p. 12). Também Mylène JACCOUD enceta uma busca dos elementos distintivos de
cada um dos modelos: «só o direito restaurador concede às vítimas um lugar central, o direito punitivo e o
reabilitador oferecem-lhes apenas um lugar secundário.Os critérios utilizados para avaliar o alcance dos
objectivos atribuídos a cada tipo de direito são muito diferentes. O penal está centrado na noção de
“justa” pena (princípio da proporcionalidade), o reabilitador na adaptação do indivíduo delinquente,
enquanto que o direito restaurativo encontra os seus objectivos a partir da satisfação vivenciada pelos
principais envolvidos na infracção. O contexto social no qual o direito penal evolui é um contexto no qual
o Estado é opressor, o direito reabilitador é marcado por um contexto onde o Estado é uma providência
estatal; o direito reparador expressa-se através de um contexto onde o Estado responsabiliza os principais
envolvidos» (in “Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa”, Justiça
Restaurativa, MJ e PNUD, Brasília: 2005, p. 168). Por sua vez, Elena HIGHTON/Gladys ÁLVAREZ/
Carlos GREGORIO (ob. cit., p. 89 ss), retomando a distinção entre justiça retributiva, justiça distributiva
e justiça restaurativa, estabelecem a diferenciação entre as duas últimas a partir da ideia de que “a justiça
restaurativa relaciona-se com a noção de compor erros, de desagravar relações ou refazer situações o
melhor que se possa depois do prejuízo ou da acção contrário ao bem-estar. Enquanto a justiça
distributiva se refere à obtenção de benefícios positivos, a restaurativa encarrega-se dos aspectos
negativos, procurando um remédio para o dano e o sofrimento. A justiça distributiva é preventiva, a
justiça restaurativa é reparadora”.

195
O que agora se problematiza tem de ser enfocado no contexto da introdução que
antes se esboçou sobre aquilo que a justiça restaurativa não é e da opinião comum entre
os seus cultores de que aquilo que ela não pretende ser é justiça retributiva. Mesmo que
se compreenda, pelo menos em parte, tal afirmação, ela não resolve de forma total o
problema que agora se suscita: ainda que a finalidade retributiva não condicione a
proposta restaurativa, pode esta pretender ainda assim contribuir para realizar a justiça.
Retribuição e realização da justiça não terão de ser, pois, sinónimos, tal como o não são
retribuição e punição. Julga-se, pois, que se pode punir realizando a justiça à luz de
finalidades outras que não a retributiva, desde que se não desrespeite a função
limitadora da punição desempenhada pela culpa. E julga-se que se talvez se possa reagir
ao crime sem punição ou para além da punição em moldes ainda suportados pelo juízo
do que é o justo.
O que se pretende mostrar é, portanto, que a finalidade primeira do paradigma
restaurativo não é, nem a retribuição, nem sequer a punição orientada por finalidades
outras de índole preventiva e que, ainda assim, talvez deste modo se possa contribuir
para uma solução mais justa do conflito que o crime é.
Ainda que para chegar a conclusões com as quais se não concorda inteiramente,
também subjaz ao pensamento de Kathleen DALY a distinção entre retribuição e
realização da justiça penal, vista como mais abrangente. A partir deste entendimento, a
Autora parece considerar, porém, que quer na realização da justiça penal, quer na
realização da justiça restaurativa, não é possível prescindir de elementos retributivos. As
premissas de que parte são (I) a que de a justiça restaurativa pretende efectivamente
realizar a justiça; (II) a de que a retribuição é ainda finalidade desta forma de realização
da justiça. Afirma que “os princípios aparentemente contrários da retribuição e da
reparação devem ser vistos como dependentes um do outro” e considera que “a parte
retributiva do processo” é uma “fase crucial”, quer para a reintegração do agente na
comunidade, quer para a efectiva reparação da vítima350.
A partir daqui, porém, a compreensão do seu pensamento torna-se difícil porque
a Autora, reconhecendo a pluralidade de entendimentos dados aos conceitos de
“retribuição” e de “punição”, não logra esclarecer qual é a sua interpretação dos
mesmos. Pretendendo rejeitar a oposição entre justiça retributiva e justiça restaurativa,
considera que aqueles conceitos supõem um continuum de significados e que é mais útil

350
Kathleen DALY, “Restorative Justice: The Real Story”, Punishment and Society, 2002, vol. 4, n.º 1, p.
55 ss.

196
recorrer à contraposição entre old justice (conceito no qual “abrange a justiça
administrada pelos tribunais, não se permitindo a interacção entre a vítima e o agente,
cabendo as decisões aos actores legais e outros peritos com o objectivo de punir ou, por
vezes, reformar o agressor”) e new justice (que caracteriza como envolvendo “uma
variedade de práticas recentes, as quais supõem, em regra, a participação de vítimas,
agressores e outras pessoas, num processo em que tanto os leigos como os actores legais
tomam decisões, e em que o objectivo é reparar o mal sofrido pelas vítimas, pelos
agressores e eventualmente por outros membros da comunidade”), de que a justiça
restaurativa seria uma das manifestações.
Apesar de ser patente no pensamento de DALY a rejeição (correcta) da
contraposição entre a justiça penal dita tradicional e a justiça restaurativa com base no
critério retributivo, que apenas eivaria a primeira, parece clara na sua distinção entre old
justice e new justice uma diferença ao nível das finalidades (“punir ou reformar o
agressor”, num dos casos; “reparar o mal” no outro caso). Assim, apesar de a Autora
considerar que as novas práticas de realização da justiça contêm em si muito das
antigas, parece aceitar uma tendencial diferença entre elas logo ao nível dos objectivos.
Diferença essa no que respeita aos fins que não se vê que seja definitivamente
prejudicada pela sua afirmação de que “devemos esperar encontrar nos discursos e
práticas dos participantes no processo de realização da justiça objectivos mistos [de
punição do agente e de reparação dos danos]”.
Mesmo que se possa mostrar que alguns dos participantes em práticas
restaurativas se norteiam ainda por ideias de retribuição, não se vê que se possam
confundir eventuais motivações individuais com aquelas que devem ser vistas como as
finalidades do próprio processo. A crítica de DALY à definição comum da justiça
restaurativa por aquilo que ela não é (retributiva), por oposição àquilo que a justiça
penal seria (retributiva) merece, pois, um juízo de concordância quanto à conclusão.
Não é possível estabelecer a diferença entre as duas formas de resposta à
criminalidade com base em tal critério. Mas não sobretudo porque, como julga DALY,
também nas práticas restaurativas haja um elemento retributivo associado à aceitação de
um mal como forma de neutralizar outro mal. O que impossibilita a radical distinção
entre justiça penal e justiça restaurativa com base no critério da retribuição é antes o
facto de que, segundo se julga, nem na justiça penal o factor retributivo tem de tomar-se
como exclusivo.

197
Quando se olha de modo crítico para a proposta restaurativa e se pergunta se
nela vai vertida ainda uma forma de realização da justiça, a ideia que começa por
sobressair é a de que não se julga – contrariamente ao pensamento, antes citado, de
Autores que contrapõem justiça comutativa, justiça distributiva e justiça restaurativa –
que viva neste modelo restaurativo uma proposta radicalmente contrária a todos os
vectores condicionantes da dita justiça comutativa e da denominada justiça distributiva,
em regra associadas, respectivamente, ao pensamento da retribuição e ao pensamento da
prevenção especial de socialização do agente.
De forma singela, pode dizer-se que a proposta restaurativa revela alguma
proximidade com certas ideias inerentes à justiça dita comutativa porque, a partir de um
eixo temporal que numa linha recta distingue os momentos anteriores ao crime dos
momentos que lhe são posteriores, se preocupa com a neutralização dos males
posteriores e almeja uma repristinação da situação de paz anterior a partir de um
reconhecimento pelo agente da sua responsabilidade. Nesta medida, a proposta
restaurativa parece mais próxima do pensamento da retribuição do que dos ideais
preventivos, naturalmente orientados, nesse eixo temporal, para o futuro.
Todavia, também não se julga que elementos nucleares do pensamento
distributivo sejam alheios à proposta restaurativa, “forçando” o surgimento de um novo
conceito de justiça dita unicamente restaurativa e doravante oposto ao de justiça
comutativa e ao de justiça distributiva. Ou seja: se talvez se possa dizer que se
enfatizam dimensões distintas da justiça em cada uma das propostas, isso não significa
que cada uma delas seja insensível ao conteúdo das outras.
Se já se procurou estabelecer uma ponte entre o pensamento restaurativo e a
justiça dita comutativa, adopte-se agora idêntico exercício metodológico no que tange à
justiça dita distributiva. Tome-se, para o efeito, a sua associação à ideia de que “no seu
sentido moderno, a justiça distributiva requer do Estado a garantia de que a propriedade
seja objecto de distribuição por todos no meio social, de modo a garantir que todos
possam alcançar certo patamar de recursos materiais que lhes propicie uma vida digna”
e admita-se que “o conceito moderno funciona independentemente do mérito de cada
um no meio social, isto é, o direito das pessoas a essa distribuição não depende do seu
esforço pessoal, do seu contributo em alguma medida ou em algum sentido, para a

198
valorização do todo social. Ou seja, ele funciona supondo que todos mereçam aceder a
bens independemente do seu mérito”351.
Na justiça penal, este direito que cada cidadão tem ao mínimo necessário a uma
vida digna independentemente daquele que foi o seu contributo individual até ao
momento surge associado ao pensamento da socialização e à afirmação do dever para o
Estado que pune de oferecer ao condenado hipóteses reais de uma reintegração na vida
colectiva em moldes responsáveis. Ora, esta identificação preferencial do núcleo da
justiça distributiva com o pensamento da socialização do agente – e não com o
pensamento da reparação da vítima – tem justificado, pelo menos em parte, a convicção
de que a proposta restaurativa não pode alicerçar-se em ideais de justiça distributiva,
tendo de procurar suporte e apoio em algum outro lugar do pensamento do justo.
Todavia, não se julga que deva ser necessariamente assim. A compreensão da vítima
como indivíduo que, por causa do crime, pode ter sido remetido a uma situação de
necessidade, acaba por, em certo sentido, a aproximar do agente enquanto pessoa
também carecida de uma intervenção de cariz distributivo. Com isto não se pretende
significar que tem de ser assumida pelo Estado, a título principal, a reparação dos danos
sofridos por aquela vítima. O que se quer afirmar é antes que o reconhecimento de que a
vítima do crime pode ser uma pessoa deixada em situação de carência pode – e talvez
deva – associar-se ao pensamento da distribuição e à ideia de que cabe ao Estado
oferecer-lhe condições para que possa aceder à reparação possível dos danos sofridos,
mormente através de um encontro restaurativo com o agente do crime.
Feitas estas considerações breves, o que sobretudo se quer sublinhar é que o
sentido daquilo que é reagir ao crime com justiça se vem alargando, tornando-se mais
exigente precisamente na medida – permita-se a redundância – em que incorpora mais
exigências: a resposta ao crime, para procurar merecer o apodo de “justa”, não pode
prescindir de uma limitação da punição do agente associada à demonstração da sua
responsabilidade ou culpa; não pode ignorar a obrigação que o Estado tem de oferecer

351
João Ricardo CATARINO, O liberalismo em questão – justiça, valores e distribuição social,
Universidade Técnica de Lisboa/Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa: 2009, ps. 18-
19. O Autor chega a esta proposta definitória a partir de uma distinção entre o sentido pré-moderno e
moderno de justiça distributiva, tomando como exemplo daquele sentido pré-moderno sobretudo o
pensamento aristotélico, a propósito do qual afirma que «o sentido aristotélico de “justiça distributiva
impunha que os sujeitos merecedores fossem recompensados de acordo com os seus méritos, pelo que era
o estatuto político que se tratava de distribuir, a partir de alguma dose de mérito moral ou social». Depois
de situar no século XVIII “uma mudança assinalável na atitude para com os mais desfavorecidos” e de
afirmar que “cabe também ao Estado intervir nas situações de pobreza”, o Autor pondera alguns
contributos essenciais, nomeadamente os de Rousseu, Smith, Kant, Babeuf ou Paine (ob. cit., p. 28 ss).

199
ao agente do crime uma possibilidade de reintegração na vida comunitária; não pode
tomar o mal ocasionado à vítima concreta e passada apenas como um pretexto para uma
intervenção que seja de defesa da comunidade, antes lhe competindo promover, na
medida do possível, a reparação dos males vários que aquela vítima concreta e passada
sofreu. Ora, neste sentido, a busca de uma solução justa para o conflito criminal não
deve prescindir de elementos associados nem ao pensamento da justiça comutativa, nem
ao pensamento da justiça distributiva, nem ao pensamento da justiça dita reparadora ou
restaurativa.

5.4. A justiça restaurativa na intersecção de algumas contemporâneas


compreensões da justiça

Mesmo que, sob o ponto de vista metodológico, se conheçam os riscos inerentes


à dispersão do pensamento, afigura-se útil – e útil neste preciso ponto da análise – uma
reflexão (ainda que limitadíssima) sobre o sentido da justiça.
As interrogações para as quais se procurará algum esclarecimento – afastadas,
por maioria de razões em matérias desta índole, quaisquer pretensões de resposta de
natureza definitiva (ainda que só temporariamente definitiva) ou completa – prendem-se
com duas ordens de necessidades: (I) inquirir se a resposta dada ao crime pela justiça
penal que é a do nosso tempo e a do nosso espaço corresponde de forma adequada às
exigências postas pela justiça; (II) inquirir se a resposta restaurativa ao crime se justifica
ainda à luz de exigências de justiça.
Enquanto a justificação da pertinência da segunda questão se afigura
desnecessária tendo em conta o objecto deste estudo, já a consideração da primeira
interrogação parece impor-se, desde logo, pela acusação de injustiça ou de não justiça
esgrimida pelos defensores do paradigma restaurativo contra o sistema punitivo
estadual352.

352
Esta crise da justiça – e da justiça penal – não deve ser compreendida desacompanhada da referência a
um certo “desencanto da razão jurídica”. O assunto é abordado por Pierre GUIBENTIF (“Teorias
sociológicas comparadas e aplicadas – Bourdieu, Foucault, Habermas e Luhmann face ao Direito”,
Revista Novatio Iuris, ano II, n.º 3, Julho de 2009, p. 12 ss), que considera tal desencanto “comum” ao
pensamento dos quatro Autores. Depois de recordar que «com o Iluminismo se tinha assistido ao que
também poderíamos chamar um “encantamento do direito”», associa esse entusiasmo à ideia de que “o
direito, com as suas novas características, poderia ser o instrumento pelo qual os homens iriam fazer a sua
história. Esta ideia entusiasmou não apenas filósofos, mas também juristas e os que chamaríamos hoje em
dia de políticos do direito». Na sua opinião, Bourdieu, Foucault, Habermas e Luhmann têm em comum o
“pôr em causa esta representação do direito como instrumento pelo qual os sujeitos fazem a sua história”.

200
Esta acusação ampla – é sabido – decompõe-se num conjunto de críticas
parcelares, que abrangem o questionamento da justiça inerente às opções
criminalizadoras, o questionamento da justiça inerente ao processo penal e o
questionamento da justiça inerente às sanções penais, maxime da pena privativa da
liberdade353.
Por outro lado, as acusações de injustiça, sobretudo nos dois últimos níveis, que,
com frequência, o pensamento penal tende a remeter para o plano da prática, parecem
ter em muitos casos raízes mais fundas: não se põe em causa apenas o concreto
funcionamento do processo penal mas também a sua estrutura; não se questiona
somente a execução inadequada da pena de prisão mas ainda o próprio sentido da
privação da liberdade. Sendo impossível proceder nesta sede a um tratamento detido
destas críticas várias, almeja-se tão-somente dar conta delas – e é certo que ao longo
deste estudo algumas têm sido, a propósito de questões várias, abordadas – e,
eventualmente, caso seja possível, fazer da reacção penal uma avaliação genérica, ou
seja, ajuizar da sua conformidade com as exigências nucleares postas pela justiça.
Numa outra perspectiva, falta ainda aprofundar a reflexão sobre se a proposta
restaurativa reclama enquanto objectivo seu um contributo autónomo para a realização
da justiça. À luz de uma primeira reflexão, a resposta que me parecia mais clara era a de
que o paradigma restaurativo se traduziria tão-somente em um conjunto de práticas
restaurativas (naturalmente associadas a uma vasta elaboração teórica sobre as mesmas)
orientadas para a solução do conflito através da máxima satisfação possível daqueles
que com ele tiveram algum contacto. De tais práticas não teria que resultar uma solução
justa (ou a solução justa), mas apenas uma solução que os envolvidos no conflito
sentissem como satisfatória (o que, eventualmente, apenas se aproximaria de certos
conceitos utilitaristas de justiça).
Esta resposta parece-me, porém, cada vez menos evidente. Por um lado, porque
não será, mesmo a uma primeira análise, razoável supor que os vários intervenientes no
conflito considerem satisfatória uma solução que vejam como manifestamente injusta
(uma solução injusta que pudesse ser satisfatória para um deles, dificilmente o seria para
ambos ou para todos). Por outro lado, porque para uma solução ser justa pode não bastar

353
Cf., a título de exemplo, Melissa WILLIAMS (“Criminal justice, democratic fairness and cultural
pluralism: the case of aboriginal peoples in Canada”, Buffalo Criminal Law Review, 2002, vol. 5, p. 451 a
495), que questiona a compatibilidade da criminalização, do processo e da punição com as exigências
democráticas.

201
que seja ditada por um terceiro imparcial que aplica uma lei geral e abstracta de forma
adequada; não será ainda exigível, para se “fazer justiça”, que a solução encontrada pelo
sistema seja avaliada como não injusta e como adequada por aqueles que são os seus
destinatários? Eis aquele que, segundo se julga, é um dos cernes do problema.
O ponto de que se parte para a reflexão sobre estas questões é o do
reconhecimento da impossibilidade de um seu tratamento completo. Este não é um
estudo sobre a teoria da justiça. Acredita-se, porém, que, assumindo-se essas certezas
quer da incompletude quer da impossibilidade de aprofundamento dos vários nódulos
problemáticos, ainda assim se justifica uma sua consideração que, se não pretende
aprofundar os vários problemas, pelo menos pretende deixar nota de que eles existem e
de que não devem continuar a ser largamente ignorados por uma teoria restaurativa que,
com frequência, apresenta a justiça restaurativa como um sistema imposto,
precisamente, por uma ideia de justiça. Existindo inúmeras teorizações sobre a justiça,
referir-se-ão, de modo sucinto, apenas algumas daquelas que se julga serem
especialmente pertinentes sob o enfoque restaurativo. Se o problema do direito, e
também do direito penal, pressupõe, nas palavras de CASTANHEIRA NEVES, o
354
“pensar o sentido do encontro do homem com outros homens também no mundo” ,
considerar-se-ão apenas algumas das linhas desse pensamento que se julgam mais
pertinentes à luz da perspectiva restaurativa, essa perspectiva que, de certo modo,
“multiplica” o encontro, por o pressupor quer a montante, quer a jusante.
A razão pela qual se optou por não se autonomizar neste momento o
questionamento do pensamento de Emmanuel Levinas prende-se, sobretudo, com o
facto de ele surgir como necessariamente transversal neste estudo. Julga-se que a sua
compreensão daquilo que deve ser a justiça é, a vários níveis, tão relevante para a
proposta restaurativa que algumas das afirmações do filósofo merecem ser ponderadas
em diversos momentos da reflexão. Apesar de assim ser, existem algumas ideias na sua
obra que aqui se devem evidenciar, ainda em jeito de introdução às considerações que
de seguida se tecerão.
Na filosofia de LEVINAS, a reflexão sobre a justiça não ocupa o lugar central.
A sua preocupação principal parece dirigir-se, antes, para a relação inter-humana vista
como o encontro de cada um com o rosto do outro, aquele por quem se é responsável.

354
António CASTANHEIRA NEVES, “Pensar o direito num tempo de perplexidade”, Liber Amicorum
de José de Sousa e Brito em comemoração do 70ª aniversário, Org. Augusto Silva Dias, Coimbra:
Almedina, 2009, p. 4.

202
Todavia, o Autor reconhece que, quando ao lado do outro surge um terceiro, “nasce a
preocupação com a justiça”. Nas suas palavras, «não vivo num mundo onde só há um
“primeiro a chegar”; há sempre no mundo um terceiro: ele também é o meu outro, o
meu próximo. Por conseguinte, importa-me saber qual dos dois passa à frente: um não é
perseguidor do outro?»355. A partir da associação da justiça ao “cuidado com o
terceiro”, LEVINAS admite a necessidade de uma intervenção estadual que pode
comportar alguma violência: “há uma certa medida da violência necessária a partir da
justiça; mas, se falamos de justiça, é necessário admitir juízes, é necessário admitir
instituições como o Estado; viver num mundo de cidadãos, e não só na ordem do face a
face”356.
Não obstante – e esta é uma das linhas argumentativas de LEVINAS que se crê
que assume importância fundamental na sustentação filosófica da justiça restaurativa –,
a existência de um espaço de intervenção estadual na realização da justiça não pode
prejudicar a relação interpessoal, devendo, antes, cumprir relativamente a ela um papel
de certo modo subsidiário. De novo nas palavras do Filósofo, “um Estado em que a
relação interpessoal é impossível, em que ela é por antecipação dirigida pelo
determinismo próprio do Estado, é um Estado totalitário. Há, pois, limite para o
Estado”. Porventura de forma ainda mais enfática e com enorme pertinência sob o
enfoque restaurativo, o Autor acrescenta: “há no Estado uma parte de violência que,
todavia, pode comportar a justiça. Isto não quer dizer que não é necessário evitá-la, na
medida do possível; tudo o que a substitui na vida entre os Estados, tudo o que se pode
deixar para a negociação, para a palavra, é absolutamente essencial, mas não se pode
dizer que não haja nenhuma violência que seja legítima”357. Entre as várias
consequências que, na teoria restaurativa, esta afirmação do filósofo poderia assumir,
conta-se uma que se crê principal, atinente ao modo de relacionamento entre a própria
justiça restaurativa e a justiça penal e relacionada com a ideia, não do abolicionismo

355
Confrontado com esta interrogação, Emmanuel LEVINAS acrescenta que “neste caso a justiça é, pois,
anterior à assunção do destino do outro. Devo emitir juízo ali onde devia antes de tudo assumir
responsabilidades (…). Mas é sempre a partir do Rosto, a partir da responsabilidade por outrem, que
aparece a justiça, que comporta julgamento e comparação, comparação daquilo que, em princípio, é
incomparável, pois cada ser é único, todo o outrem é único. Nesta necessidade de se ocupar com a justiça
aparece esta ideia de equidade, sobre a qual está fundada a ideia de objectividade” (in Entre Nós –
Ensaios sobre a Alteridade, trad. Pergentino Pivatto (coord.) e outros, Petrópolis: Editora Vozes, 5.ª ed.,
2010, ps. 130-1).
356
Emmanuel LEVINAS, últ. ob. cit., p. 132.
357
Emmanuel LEVINAS, últ. ob. cit., ps. 132-3.

203
penal, mas da redução da intervenção punitiva do Estado ao mínimo, o que seria
facilitado pela pacificação do conflito criminal através dos procedimentos restaurativos.

5.4.1. As teorias de Habermas e de Luhmann e a sua (des)adequação à


compreensão da justiça restaurativa

São conhecidas várias propostas de transposição da teoria do discurso de


Habermas para a reflexão em torno da legitimação do direito penal358. Apesar de se
saber que assim se persegue essencialmente a criação de um sistema democrático de
produção de normas – o que equivale a afirmar, de forma simplificada, que a norma não
será válida se não lograr convencer cada um dos destinatários da sua razoabilidade –,
poderá constituir tarefa metodologicamente útil uma reflexão “a partir de Habermas”
agora orientada para o campo da proposta restaurativa359. Ou seja: deve reconhecer-se a
tentativa frequente de encontrar uma justificação filosófica da proposta restaurativa
através do pensamento habermasiano e deve-se procurar compreendê-la360.
É sabida a importância atribuída por Habermas – assim como por grande parte
dos filósofos da contemporaneidade – à questão da linguagem. Ou seja, distingue-se da

358
Recentemente e no âmbito do direito processual penal, tenha-se em conta a reflexão de Paulo Dá
MESQUITA “Pensar o exercício do poder punitivo do Estado com Habermas”, Processo Penal, Prova e
Sistema Judiciário, Coimbra: Wolters Kluwer Portugal/Coimbra Editora, 2010, ps. 13-81. O Autor afirma
que “Habermas teve oportunidade de abordar directamente a questão do direito processual penal em
Faktizitat und Geltung, podendo inferir-se uma preferência pelo sistema processual penal adversarial em
detrimento do juiz investigador, activo e monologicamente empenhado na busca da verdade com o auxílio
das partes” (ob. cit., p. 49).
359
Sendo conhecidas as tensões argumentativas entre as teorizações sobre o direito a que procederam
quer Habermas quer Luhmann, parece clara a maior pertinência, no contexto da proposta restaurativa e da
sua fundamentação, da primeira. A ideia de Luhmann de que a sociedade “não é constituída por seres
humanos”; a compreensão do direito como sistema autopoiético que se sustenta a si próprio; e a
afirmação de que as operações jurídicas nada devem aos sujeitos porque encontram toda a sua substância,
a sua necessidade e as suas condições de possibilidade nas operações jurídicas anteriores; são aspectos
que parecem afastar em muito o Autor do modo de reacção ao conflito criminal que é a proposta
restaurativa [cfr. Pierre GUIBENTIF (“Teorias sociológicas” cit., p. 13 ss), que resume estes segmentos
do pensamento de Luhmann].
360
Entre nós, a pertinência dos conceitos habermasianos de “acção comunicacional” e de “democracia
deliberativa” à justiça restaurativa foi já sublinhada por André Lamas LEITE (“Justiça prêt-à-porter?
Alternatividade ou complementaridade da mediação penal à luz das finalidades do sancionamento”, RMP,
ano 30, n.º 117, Jan-Mar 2009, p. 89 ss), para quem «os fundamentos filosóficos da justiça restaurativa e,
em especial, da mediação penal, podem ser encontrados em variadas correntes ou, dito de outro modo,
este perspectivar da administração da justiça vai sendo sustentado através do recurso a diversas visões
jusfilosóficas. De entre elas assume especial relevo a concepção de Jürgen Habermas, vazada nos dois
conceitos [de “acção comunicacional” e de “democracia deliberativa”]». Antes, porém, já Anabela
Miranda RODRIGUES mencionara uma “orientação ética” da justiça restaurativa, na qual “estão
presentes as marcas da teoria da comunicação de Habermas”. E a Autora acrescentara que «deste ponto de
vista, recupera-se a dimensão axiológica, posta entre parêntesis pelo positivismo, “obcecado pelo
cientismo mítico dos factos, puros e purificados de valorações”» (“A propósito da introdução do regime
de mediação no processo penal”, Revista do Ministério Público, ano 27, Jan-Mar. 2006, n.º 105, p. 130).

204
interrogação sobre as coisas em si mesmas a questão da forma como se olha para as
coisas e como se pensa e se fala sobre elas. Haveria, assim, como que uma construção
do real por meio da linguagem, o que tornaria esta linguagem ela própria um objecto
preponderante da investigação filosófica. Nesta linha, Habermas outorga importância
fulcral à questão da acção comunicacional, e fá-lo a partir de uma distinção basilar entre
a mera fala (que pressupõe a aceitação pelo destinatário da afirmação feita pelo emissor,
inexistindo maiores problematizações e vislumbrando-se, logo à partida, uma situação
de consenso) e o discurso. Este, diversamente, assenta em um horizonte inicial de
conflito, em que há uma problematização pelo receptor da afirmação do conteúdo da
mesma, sendo que aqueles que são intervenientes nesse conflito vêm a sentir a
necessidade de recurso a argumentos e sua organização, para efeitos de sustentação de
uma posição que não é ab initio pacífica. O objectivo do discurso é o convencimento,
do outro por meio pacífico e alheio à coacção, gerando-se, por essa via, o consenso361.
Ora, se é inequívoca a facilidade de transposição desta linha de pensamento
assente na relevância da comunicação e na possibilidade de obtenção do consenso
através do discurso para a proposta restaurativa (enquanto proposta maioritariamente
alicerçada na busca de uma solução para o conflito criminal através da comunicação
vítima-agressor orientada para o consenso), também não será irrelevante o modo como
Habermas compreende a dimensão ética e a dimensão moral, e sobretudo o modo como
as relaciona. De forma ainda muitíssimo simplificada, parece poder afirmar-se que o
Filósofo limita a dimensão ética em função da dimensão moral (dimensão moral essa
que relaciona com o uso da razão prática no que respeita à delimitação dos deveres
perante os outros), acreditando que cada um deve projectar aquilo que é valioso, bom ou
correcto para si próprio (o que corresponderia a uma dimensão ética), todavia sem lhe
ser possível desconsiderar aquilo que é justo ou correcto relativamente aos outros (o que
associaria à antes referida dimensão moral). Preponderariam, assim, os deveres de cada
um relativamente aos outros, em condições de igualdade, de liberdade e de respeito.

361
Uma enunciação resumida da ideia de Jürgen HABERMAS da acção comunicacional pode ser
encontrada na sua obra Direito e Moral (Lisboa: Instituto Piaget, 1999, ps. 56-7): «Karl-Otto Apel e eu
propusemos (…) compreender a própria argumentação moral, como o procedimento mais adequado à
formação volitiva racional. A prova de hipotéticas pretensões de validade representa um processo
semelhante pois, cada um que quer argumentar, seriamente, tem de aceitar as suposições ideais de uma
forma exigente de comunicação. Cada participante numa praxis de argumentação tem, justamente, que
antever, de forma pragmática que, em princípio, todos os indivíduos possivelmente atingidos, poderiam
participar como livres e iguais, numa procura cooperativa da verdade, na qual, somente, a coesão do
melhor argumento teria a possibilidade de vencer».

205
Também nesta medida se poderão estabelecer pontes com o pensamento restaurativo –
ainda que não só – e a sua afirmação da centralidade da responsabilidade pelo outro.
A partir destas considerações brevíssimas e porventura excessivamente
simplificadas – que, todavia, se julgaram pertinentes na medida em que a associação da
proposta restaurativa ao pensamento habermasiano surge, com frequência,
desacompanhada de uma enunciação dos pontos de aproximação – sobre o discurso e
sobre a moral, deve agora fazer-se referência à questão, mais próxima do núcleo do
objecto desta reflexão, do discurso moral. Tratar-se-á, aqui, de uma argumentação
racional em torno de um enunciado moral (logo, um enunciado atinente ao ser com os
outros) que suscitou divergências ou que por algum motivo se tornou problemático.
Para além da racionalidade, aquela argumentação, para cumprir os requisitos de
validade que se associam a um discurso moral, deve ser ainda, entre outras coisas,
inteligível, verdadeira e sincera. A validade de um determinado discurso moral será
maior ou menor em função da verificação destes elementos. Existem, porém, duas notas
essenciais que se não podem deixar de aduzir. Segundo o princípio do discurso, só são
válidas aquelas normas que puderem receber o assentimento de todos os afectados à luz
de um discurso racional, depois de se ponderarem os vários argumentos. Todavia,
Habermas distingue deste princípio do discurso um outro, o denominado princípio de
universalização, pertinente precisamente no âmbito do discurso moral, e mais exigente,
na medida em que à necessidade de assentimento dos interessados em torno da validade
da norma, acresce a ideia de que a norma só será válida quando, tidos em consideração
os efeitos da sua observância, ela merece o assentimento de todos (e não já apenas dos
interessados), obtido a partir de um discurso racional.
O que a este propósito se não pode deixar de apontar é, uma outra vez, a
relevância que estes conceitos de racionalidade, inteligibilidade, verdade e até
sinceridade também assumem na teoria da mediação penal362, ou seja, no pensamento e

362
Com interesse para o aprofundamento desta ideia, cfr. Stephen CHILTON/Maria Stalzer WYANT
CUZZO (“Habermas’s theory of communicative action as a theoretical framework for mediation
practice”, Conflict Resolution Quarterly, 22, 3, 2005, p. 325 ss). Em rigor, deve notar-se que o recurso
pelos Autores ao pensamento de Habermas não visa apenas o enquadramento filosófico da mediação
penal, mas antes das várias formas de mediação enquanto mecanismo de resolução alternativa de litígios.
Todavia, os pressupostos da opção pela solução alternativa de litígios são, em larga medida, comuns ao
pensamento restaurativo e parece poder afirmar-se a existência de uma teoria da mediação que será
também comum às suas várias modalidades, pelo que a reflexão esboçada por CHILTON e CUZZO
parece pertinente, ainda que sujeita a eventuais “reduções”, neste domínio específico da mediação penal e
da justiça restaurativa. Um dos aspectos que os Autores procuram transpor para a teoria da mediação
relaciona-se com a ideia habermasiana da ponderação dos “pressupostos de argumentação” e de
“condições para a comunicação”. Retiram daqui consequências relevantes quanto ao sentido da própria

206
na modelação do principal instrumento da justiça restaurativa (como, de resto, mais
detidamente se ponderará na Parte III deste estudo). Mais do que isso, pode até avançar-
se que várias das críticas que o pensamento de Habermas tem merecido resumem,
grosso modo, as principais objecções que se vêm fazendo à proposta restaurativa363.
Elas prendem-se, essencialmente, com o apontar da incompreensão das desigualdades,
manipulações ou jogos de poder que são inerentes aos discursos reais, nessa medida tão
distantes das formas de comunicação idealizadas pelo Filósofo; ou, com grande
relevância, com a afirmação de que nem todas as divergências logram obter solução
através do diálogo, havendo conflitos que são inultrapassáveis através do consenso,
tornando-se imperativa uma decisão coactiva e, possivelmente, não merecedora do
assentimento de todos.
Mas, por sobretudo, o que se pretende sublinhar a traço muito grosso é a
distinção, no próprio pensamento habermasiano, de um discurso racional orientado
para a obtenção do assentimento dos interessados, e de um outro discurso racional
ordenado ao convencimento de todos sobre a validade de uma norma. A diferenciação
destas duas esferas revelar-se-á, segundo se crê, de grande utilidade na compreensão das
especificidades da justiça penal e da justiça restaurativa: enquanto a comunicação
inerente à justiça penal assenta em discursos orientados por uma pretensão de
universalidade; já a comunicação inerente às práticas restaurativas é menos ambiciosa,
almejando em primeira linha a superação do conflito através de uma argumentação
racional (de um discurso) que logre o assentimento dos intervenientes concretos nesse
conflito.
Todavia, esboçadas estas notas brevíssimas sobre as razões pelas quais com
frequência se procura na filosofia habermasiana uma fundamentação para a justiça
restaurativa, aquilo que em primeira linha aqui se pretende deixar claro é que tanto a
justiça penal como a justiça restaurativa supõem interacção e comunicação. E que

intervenção do mediador, que não deve privar os verdadeiros afectados pelo conflito da possibilidade de
uma discussão efectiva, alicerçada na argumentação ampla devida a cada um. Caberá ao mediador, por
sobretudo, a comprovação dos “pressupostos de argumentação” e a criação das “condições de
comunicação”.
363
De forma uma outra vez muito simplificada, talvez possa afirmar-se que essas objecções se
relacionam, maioritariamente, ou com a impossibilidade frequente de uma comunicação nos termos
habermasianos, ou com a impossibilidade de através dela se gerar um convencimento generalizado
relativamente a determinada solução, pelo que o pensamento de Habermas acaba por ser qualificado por
alguns como utópico (a democracia deliberativa não surge como uma realidade, mas antes como uma
ideologia através da qual se explica o processo histórico). Não obstante, apontam-se méritos à utilização
da teoria da acção comunicativa como instrumento para a reprodução do ideal democrático no contexto da
modernidade. Cfr., sobre o assunto, Juan Fernando SEGOVIA, Habermas y la Democracia Deliberativa:
una Utopia Tardomoderna, Madrid: Marcial Pons, 2008, p. 22 ss.

207
nenhuma prescinde de um certo reconhecimento da justeza das soluções. Não obstante,
o que se julga distinguir as duas propostas é sobretudo o âmbito ou o círculo a que essa
interacção e essa comunicação se referem: enquanto a justiça penal carece
potencialmente da aceitação dos seus imperativos pelos membros todos de uma
comunidade toda (ou dirige a todos a sua pretensão de aceitação de dada solução), já a
justiça restaurativa é alicerçada em uma comunicação mais estreita, aquela que supõe a
interacção entre o agente do crime e a sua vítima. O que se vem de dizer terá
consequências a vários níveis, nomeadamente na compreensão da importância do
procedimento restaurativo de “encontro” para efeitos da própria definição da proposta
restaurativa, assim como na distinção entre a culpa penal e a culpa restaurativa364.
Nesta medida, se uma transposição ampla da teoria do discurso de Habermas
para a compreensão sociológica do mundo do direito penal pode ser confrontada com
dificuldades, ela encontrará terreno porventura mais fértil no campo restaurativo. O
direito penal parece ser, de resto, um daqueles em que o pensamento de Habermas365,
pelo menos em um certo sentido, mais resistências encontrará: sendo o direito da
coacção por excelência, talvez não seja evidente pretender legitimá-lo através de uma
aceitação racional, por todos, das suas soluções, obtida através da comunicação366. De
certo modo, isso equivaleria ou a afirmar a falta de legitimidade da intervenção penal
quando aquela aceitação não existisse, ou então a advogar a aceitação-regra do
condenado à coerção, necessariamente apresentado como convencido (ou vencido)
pelos argumentos racionais do sistema.

364
Como em momento posterior se verá, a culpa penal não prescinde de uma demonstração da
responsabilidade através do processo, demonstração essa que supõe o convencimento de terceiros, mas
não necessariamente o reconhecimento da culpa pelo próprio agente. A comunicação é, assim, mais
ampla, mas porventura “menos exigente” quanto a cada um dos envolvidos. Pelo contrário, a culpa
restaurativa é a culpa que o agente do crime reconhece ser a sua, num círculo de comunicação mais
restrito porque se não exige (ou nem sempre se exige) o convencimento de todos os outros relativamente
a essa responsabilidade.
365
Faça-se, a propósito desta referência ao “pensamento de Habermas”, uma advertência que, em rigor,
deve valer para todos os momentos deste estudo em que se pretenda cristalizar o pensamento de qualquer
Autor: existe, nesse procedimento metodológico, uma inequívoca margem de inexactidão, porque tal
referência ao pensamento de um Autor sempre suporia uma consideração integral das opiniões
manifestadas nas suas várias obras e, além disso, sempre tal pensamento surgiria mediatizado pela
interpretação que se lhe quisesse dar. O que equivale a reconhecer que o pensamento pode mudar e que a
forma como ele é interpretado também está sujeita a mudanças. Sublinhem-se, portanto, as cautelas com
que sempre deve ser lida, neste estudo, qualquer afirmação relativa àquele que é o pensamento de outrem.
366
A este propósito, Pierre GUIBENTIF (“Teorias sociológicas” cit., p. 16) afirma que “é em Habermas
que encontramos a interpretação mais próxima da dos autores iluministas; ou seja, a representação mais
encantada da razão jurídica (…). Habermas adquire a convicção, ao reconstituir o papel do direito nas
sociedades modernas, que a razão, isto é, os meios semânticos de dominarmos a nossa história, não pode
resultar directamente de um sujeito individual (…). A razão não advém de um sujeito, advém da
comunicação, da discussão entre sujeitos, que, aliás, se constituem nesta discussão”.

208
Existem, porém, no pensamento de Jürgen HABERMAS outros segmentos que
merecem ser ponderados quando se reflecte sobre a proposta restaurativa enquanto
solução ainda de justiça para o conflito criminal. Entre eles, sobressai a relevância
atribuída à solidariedade na compreensão habermasiana da moral. Recupere-se a clareza
do discurso do Autor: “como as morais estão moldadas à susceptibilidade dos seres
vivos, que se individualizam por acção da socialização, têm sempre de cumprir duas
tarefas de uma só vez: sublinham a intangibilidade dos indivíduos, na medida em que
reclamam igual respeito pela dignidade de cada um; protegem, em igual proporção, as
relações intersubjectivas do reconhecimento recíproco, através das quais se preservam
os indivíduos enquanto membros de uma comunidade. A estes dois aspectos
complementares correspondem os princípios da justiça e da solidariedade. Enquanto um
postula respeito e direitos iguais para cada indivíduo, o outro reclama empatia e cuidado
em relação ao bem-estar do próximo. Em sentido moderno, a justiça diz respeito à
liberdade subjectiva de indivíduos inalienáveis; em contrapartida, a solidariedade
prende-se com o bem-estar das partes irmanadas numa forma de vida partilhada
intersubjectivamente”367. Os conceitos de “empatia” e de “cuidado em relação ao bem-
estar do próximo” pressupõem um sentido que é inerente ao próprio núcleo de uma
proposta restaurativa de reacção ao conflito criminal centrada no reconhecimento do
outro como um igual, cujos sentimentos e necessidades devem ser valorizados na
construção de uma resposta que seja pacificadora.
Um aspecto a que se atribui particular relevância no pensamento de Habermas
sob o enfoque da proposta restaurativa prende-se com as considerações que tece (a
partir da interrogação sobre se haverá “um lugar para o bom na teoria do justo”) em
torno da “ética da benevolência”, retratada essencialmente por apelo ao pensamento de
Kohlberg. Recorda-se o papel que Carol Gilligan desempenhou na “dramatização da
controvérsia”, contrapondo uma ética da justiça a uma ética da benevolência. E o
próprio HABERMAS relaciona aquela ética da justiça com a “imagem de Kant”,

367
Jürgen HABERMAS, Comentários à Ética do Discurso, trad. de Gilda Lopes Encarnação, Lisboa:
Instituto Piaget, Colecção Pensamento e Filosofia, 1999, ps. 19-20. O que se quer enfatizar através da
citação deste segmento do pensamento do Autor é mais a sua ideia da incindibilidade da justiça e da
solidariedade enquanto tarefas da moral e menos a forma como conceptualmente as autonomiza,
adoptando uma definição de justiça que pode parecer restritivamente liberal. A “íntima relação” entre a
justiça e a solidariedade é, sublinhe-se, mencionada por HABERMAS, referindo que “o motivo
fundamental das éticas da compaixão desenvolve-se de modo a tornar nítida a íntima relação entre os dois
princípios morais, que anteriormente sempre haviam constituído, na filosofia da moral, um ponto de
partida para tradições antagónicas. As éticas do dever especializaram-se no princípio da justiça, as éticas
do bem no bem-estar geral. Já Hegel reconhecera que a unidade do fenómeno fundamental da moral se
perde quando separamos um aspecto do outro e opomos um princípio ao outro”.

209
considerando-se a validade moral associada ao carácter vinculativo das obrigações, com
uma absoluta dissociação face “às condições de vida concretas, relações pessoais e
identidades”. Pelo contrário, exemplifica a ética da benevolência através das afirmações
de Kohlberg sobre o “princípio da preocupação pelo bem-estar do outro” e sobre
“compaixão, amor pelo próximo, solicitude no sentido mais lato e também espírito de
solidariedade”. Jürgen HABERMAS, apesar de não manifestar concordância com toda a
argumentação de Kohlberg, parece reconhecer que “os homens só se individualizam
pela socialização”, só se transformam em indivíduos porque vivem num “universo
partilhado intersubjectivamente”. E é absolutamente claro na afirmação de que “o ponto
de vista complementar ao igual tratamento a nível individual não é a benevolência, mas
antes a solidariedade”. Ainda nas suas palavras, “a justiça entendida numa perspectiva
deontológica exige como contrapartida a solidariedade. Não se trata de dois momentos
que se complementam, mas antes de dois aspectos da mesma realidade”368.
Se esta ideia da solidariedade é importante para a compreensão da finalidade
restaurativa de reparação em sentido muito amplo dos danos associados ao crime, uma
outra afirmação do Autor, que pressupõe o distanciamento da ética processual do
discurso face ao modelo contratual, assume relevo quer na compreensão do sentido que
deve ter o procedimento restaurativo, quer na definição da reparação como finalidade
restaurativa. Nas palavras de HABERMAS, “o modelo da assunção de papéis
convertidos ao discurso não é (…) equivalente ao modelo contratual. A ética processual
terá um cunho unilateral enquanto a ideia do acordo entre sujeitos originariamente
isolados não for substituída pela ideia de uma formação racional da vontade no seio de
um universo de indivíduos socializados”. Ora, se o procedimento restaurativo não é o
procedimento inerente à celebração de um contrato, também a reparação que pode
resultar do acordo não deve ser vista como uma solução puramente ressarcitória de
danos avaliados sob um enfoque apenas indemnizatório.

368
Jürgen HABERMAS (Comentários cit., ps. 63-71) acrescenta, a este propósito, que “toda a moral
autónoma tem de resolver dois problemas de uma só vez: acentuar a intangibilidade dos indivíduos
socializados, na medida em que requer um tratamento igual e respeito uniforme em relação à dignidade de
cada um; e proteger as relações intersubjectivas de reconhecimento recíproco, na medida em que reclama
solidariedade por parte dos indivíduos enquanto membros de uma comunidade em que foram
socializados. A justiça tem a ver com as iguais liberdades de indivíduos inalienáveis e que se
autodeterminam, enquanto a solidariedade tem a ver com o bem-estar das partes irmanadas numa forma
de vida partilhada intersubjectivamente”.

210
A distinção entre a ética do bem e a moral da justiça, que HABERMAS
retoma369, parece constituir também um ponto de partida interessante para a reflexão
sobre a justiça restaurativa, levando ao questionamento sobre se aquilo que a sustenta é
apenas a ideia de que através das suas práticas cada um dos intervenientes encontra uma
solução que é melhor para ele, ou se, pelo contrário, o empenhamento na pacificação do
conflito corresponde ainda a um dever associado a fazer aquilo que é o correcto. A
interrogação assume particular interesse quando orientada para o sentido da participação
do arguido nas práticas restaurativas: este participa se achar que essa é uma solução boa
para ele, na medida em que evitará a sujeição possível a uma sanção penal; ou participa
porque isso é aquilo que deve fazer? Apesar de se julgar que se não pode prescindir da
voluntariedade como requisito para a existência de práticas restaurativas – o que
permitirá, por parte do agente e da vítima do crime, um ajuizamento quanto ao seu
próprio interesse –, isso não obsta a que a participação nessas práticas possa ser sentida,
sobretudo pelo agente, como a solução mais correcta, por permitir uma sua
responsabilização associada à reparação dos danos que causou.
De qualquer modo, o que sempre se quer sublinhar é que uma determinada
decisão pode corresponder, em simultâneo, quer a um ajuizamento ético, quer a uma
avaliação moral, aparecendo simultaneamente como a melhor (numa perspectiva ainda
utilitarista, no plano individual ou colectivo) e como a mais correcta. E esta é uma linha
de compreensão que tem, também ela, suporte no pensamento habermasiano, na medida
em que o Autor afirma que “a teoria do discurso relaciona-se de forma diferente com as
questões morais, éticas e pragmáticas”370.

369
Segundo HABERMAS, “o ponto de vista moral implica que a razão prática se afaste de questões do
tipo «o que é bom para mim/para nós?” e se concentre em questões de justiça do tipo “O que se deve
fazer?” (…). O ponto de vista moral exige uma diferenciação entre o Correcto e o Bom (…). Ao contrário
da ética do bem, a moral da justiça contrapõe o dever à inclinação». De forma simplificada e ainda
seguindo HABERMAS, poder-se-ia escolher como exemplo da valorização do “correcto” o pensamento
de Kant sobre a moral, e como exemplo da valorização do “bom” a ética aristotélica. Em momento
posterior, o Autor acrescenta que “as questões éticas do bem viver distinguem-se das questões morais
mediante uma determinada auto-referencialidade. Referem-se ao que é bom para mim ou para nós (…).
O facto de as questões éticas serem implicitamente informadas por questões de identidade e de auto-
compreensão pode explicar a razão por que não podem ter uma resposta vinculativa para todos”. Ainda na
opinião de HABERMAS, o imperativo categórico dá uma resposta do ponto de vista moral, por postular
que uma máxima só é justa quando todos puderem desejar que seja cumprida por todos em situações
análogas. Nesse sentido, opõe-se a uma regra, ainda egocêntrica, como a de que “não deves fazer aos
outros aquilo que não queres que te façam a ti” (Comentários à Ética do Discurso cit., ps. 82-3, p. 92, p.
108).
370
O Autor reconhece, aliás, que “é possível que o termo ética do discurso tenha dado origem a um
equívoco”. E afirma que “a ética do discurso situa-se (…) na tradição kantiana, sem, contudo, se expor
àquelas objecções que desde sempre foram dirigidas a uma ética abstracta da convicção. É, sem dúvida,
servindo-se de um conceito limitado de moral que ela se concentra em questões da justiça. No entanto,
não tem de descurar o cálculo das consequências da acção, que foi correctamente sublinhado pelo

211
A reflexão sobre a decisão penal não pode, sobretudo no sistema europeu
continental arreigado à ciência do direito penal, comprender-se com total alheamento do
pensamento do sistema de Luhmann371. Não será, de resto, sem razão que Pierre
BOURDIEU afirma, a propósito da “noção de sistema tal como a desenvolve
Luhmann”, que “a teoria dos sistemas apresenta com um nome novo a velha teoria do
sistema jurídico que se transforma segundo as suas próprias leis”, pelo que se
compreende que “ela forneça hoje um quadro ideal à representação formal e abstracta
do quadro jurídico”372. Por outro lado, a legitimação através da argumentação racional
prescrita por Habermas jogará papel essencial nas práticas restaurativas373, ainda que
não deva considerar-se totalmente alheia à justiça penal, sobretudo a uma justiça penal
progressivamente mais empenhada no alargamento dos espaços de consenso.
Não cabe a este estudo qualquer propósito de aprofundamento do pensamento de
Luhmann sobre o direito como subsistema social autopoiético que não seja o atinente à
demonstração da forma como a sua linha de reflexão se afasta do modo como a
proposta restaurativa encara a reacção ao conflito criminal, visto como conflito
essencialmente interpessoal. Apesar de Luhmann também atribuir papel essencial à
comunicação enquanto elemento constitutivo do sistema social, essa comunicação não é
pensada – diversamente do que sucede com Habermas – como uma comunicação entre
sujeitos, mas sim como “um processamento anónimo de selecções”374. De resto, a
própria forma de compreensão do sujeito – enquanto sistema psíquico, também

utilitarismo, nem tem que, por outro lado, excluir as questões do bem viver, privilegiadas pela ética
clássica, da esfera do debate discursivo” (Comentários à Ética do Discurso cit., ps. 101-2).
371
O que não obsta, naturalmente, ao reconhecimento da importância do pensamento de Habermas para a
compreensão de uma justiça penal cada vez mais orientada para a busca de soluções de consenso. Neste
sentido, cfr. Manuel da COSTA ANDRADE, “Consenso e oportunidade” cit., p. 326, que rejeita as
“concepções que negam ao consenso todo o relevo processual”. E aponta como exemplo de tais
concepções a teoria da legitimação através do processo (legitimation durch Verfahren) de NIKLAS
LUHMANN, que “encara o processo como sistema de acção que tem por função tornar as decisões
(judiciais) aceitáveis pelos seus destinatários”. Acrescenta que, para Luhmann, “a atitude do destinatário
da decisão, nomeadamente a sua convicção quanto ao respectivo bem-fundado e validade intrínseca,
carece de relevo autónomo em sede de legitimação. Isto é, o seu relevo circunscreve-se apenas ao
contributo que pode oferecer para aquela aceitação fáctica”.
372
Pierre BOURDIEU, O Poder Simbólico, trad. Fernando Thomaz, Lisboa: Difel, 1989, p. 211.
373
A referência feita por Habermas à vantagem das “operações simples de reparação” e a sua admissão da
possibilidade de pôr fim ao conflito através de uma solução de “consenso” é sublinhada mesmo por
aqueles Autores que, como Guillermo PORTILLA CONTRERAS, consideram “muito perigosas para as
garantias do processo as negociações sobre a pena das doutrinas do discurso e da consensualidade” (“La
influencia de las ciências sociales en el derecho penal: la defensa del modelo ideológico neoliberal en las
teorias funcionalistas y en el discurso ético de Habermas sobre selección de los intereses penales”, in
Crítica y justificación del derecho penal en el cambio del siglo cit., p. 111).
374
Sobre a questão, cfr. Augusto SILVA DIAS, “Delicta in se” e “delicta mere prohibita” cit., p. 437.

212
autopoiético e “despido de conotações antropológicas” – é, no pensamento luhmaniano,
específica375.
Por outro lado, o desiderato de redução da complexidade social inerente à
existência dos sistemas e dos subsistemas (e a sobrevalorização da sua função376 em
detrimento da estrutura), que funcionam de acordo com códigos específicos gerados e
reproduzidos no interior do próprio sistema – que assim se reorganiza e perpetua, num
movimento de adaptação que lhe outorga uma natureza dinâmica e autónoma –, afasta
esse subsistema social que é o direito do crime enquanto “fenómeno em si”, sendo que
este é antes reconstruído a partir de códigos orientados por dadas funções377. Ora, em

375
Para uma análise mais detida desse “novo conceito de sujeito”, cfr. Claudia LÓPEZ DÍAZ, Acciones a
Proprio Riesgo cit., p. 63 ss.
376
Claudia LÓPEZ DIAZ (Acciones a Proprio Riesgo cit., p. 147) reflecte pormenorizadamente sobre a
influência exercida pelo pensamento de Niklas Luhmann na “nova teoria do delito desenhada pelo
Professor Günther Jakobs”, que procura superar a perspectiva ontológica de Welzel e que “parte de um
enfoque funcional estrutural em que os conceitos de sociedade, sistema, pessoa, papel, norma, vigência da
norma, comunicação, competência, organização, posição de garante, risco permitido, princípio da
confiança, competência da vítima, são tomados da sociologia luhmaniana e trazidos ao direito penal para
configurar uma nova teoria do delito e da imputação”. Sublinha-se a ideia de que os conceitos “devem ser
definidos com base na função que o direito cumpre na sociedade e não com base em estruturas lógico-
objectivas pré-jurídicas”.
377
Sobre o direito como subsistema social orientado para a redução da complexidade através da
generalização e estabilização de expectativas, cfr. Niklas LUHMANN, El Sistema Jurídico y la
Dogmática Jurídica, trad. Ignacio Pardo, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid: 1983, p. 45 ss.
Uma análise mais detida dessa complexidade que justifica a necessidade do direito é encetada por
LUHMANN em A Sociological Theory of Law (trad. Elizabeth King-Utz e Martin Albrow, Londres:
Routledge & Kegan Paul, 1985), ocupando-se o Autor da dilucidação do conceito central de
“complexidade”, assim como do de “contingência”: «por complexidade pretende-se significar que
existem sempre mais possibilidades do que aquelas que podem ser concretizadas. Por contingência quer-
se significar que as indicadas possibilidades de uma experiência posterior podem correr de modo
diferente do que era esperado». Associa-se, assim, a complexidade a uma “necessidade de escolher” e a
contingência a “um risco de decepção e à necessidade de correr riscos” (ob. cit., p. 25 ss). A necessidade
de normas relaciona-se com a importância que a gestão das expectativas assume para a manutenção da
paz social. Essa gestão opera-se sobretudo através de um mecanismo de “reducionismo”, na medida em
que os sistemas sociais “estabilizam objectivamente as expectativas válidas de acordo com as quais cada
um se orienta a si próprio”. É precisamente a possibilidade de a expectativa – como antecipação do futuro
– não se cumprir por força daquela contingência que leva à necessidade de o sistema criar meios para a
sua manutenção quando a expectativa e a realidade não são coincidentes. Distinguem-se, neste contexto,
as expectativas cognitivas, cuja defraudação deve produzir conhecimento e conduzir à assunção de novas
expectativas, e as expectativas normativas, cujo incumprimento impõe a defesa do sistema através de uma
reafirmação daquela expectativa e através do combate ao seu incumprimento. De forma muitíssimo
simplificada, talvez possa afirmar-se que o direito existe, segundo o Autor, sobretudo para assegurar essas
expectativas mesmo contra os factos que as desrespeitam. A questão tem merecido tratamento na doutrina
portuguesa graças a estudos de vários Autores. A título de exemplo, considere-se a afirmação de Anabela
Miranda RODRIGUES (A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra: Coimbra
Editora, 1995, p. 436) de que “para Luhmann, o problema central de qualquer sistema social é o de
neutralizar os efeitos psicológicos nocivos induzidos pelos comportamentos dos outros; o que poderia
realizar-se, ou mediante uma estratégia cognitiva (modificando as expectativas frustradas), ou mediante
uma estratégia normativa (conservando as expectativas, mesmo perante uma sua eventual falta de
realização). Escolhida esta última perspectiva, surge entretanto como indispensável, segundo Luhmann,
canalizar as inevitáveis frustrações das expectativas sociais estabilizadas em veste normativa, objectivo
em relação ao qual virá a assumir um papel proeminente a pena”. Todavia, o relevo assumido no
pensamento de LUHMANN pela questão da funcionalidade do sistema parece não ter sido acompanhado

213
um estudo voltado para uma tentativa de compreensão da proposta restaurativa, não
pode deixar de se recordar a crítica – inerente ao pensamento restaurativo – a esta
conformação do direito enquanto subsistema social: relembre-se, agora em diferente
contexto, a referência feita por HULSMAN, por exemplo, precisamente ao “non sense
do sistema penal”, associado pelo Autor à existência de “sistemas que têm a sua lógica
própria, uma lógica que não tem nada a ver com a vida ou com os problemas das
pessoas. Em cada um destes sistemas, fazem-se depender as respostas de signos que
nada têm a ver com as verdadeiras questões dadas”378.
O alheamento do direito face aos problemas reais dos intervenientes no conflito
(inter)pessoal que parece associar-se à teoria sistémica de Luhmann revestir-se-á, até, de
uma nota de intencionalidade. É o próprio HABERMAS que, numa análise crítica do
pensamento de Luhmann, sublinha o facto de os procedimentos jurídicos contribuírem
para tornar o indivíduo isolado e despersonalizado, paralisando-o e absorvendo as suas
decepções, pelo que, nessa medida, tais procedimentos jurídicos se tornam
“desarmantes” para a intervenção efectiva numa solução do conflito que tenha em conta
os seus interesses379.
Se antes já se mencionou a opinião de Pierre Bourdieu sobre a particular
adequação do pensamento luhmaniano à perpetuação de uma compreensão do direito
como sistema autónomo e, em certa medida, cindido das restantes estruturas sociais – e
se essa menção teve sobretudo por objectivo vincar a ideia de que essa adequação da
obra de Luhmann ao “mundo do direito” não pode ser transposta para a afirmação de
uma sua idêntica coerência com o pensamento da solução alternativa de conflitos –,
cabe ainda registar que a crítica desta desadequação foi já introduzida por Autores

por um idêntico aprofundamento da questão da justiça do sistema. Apesar de o tema ter merecido alguma
reflexão do Autor deve, porém, acrescentar-se que a associação feita por LUHMANN da justiça
essencialmente à igualdade (através da referência a um outro código binário, “igual/desigual”, que no
sistema se aplica à ponderação do caso e do tratamento que lhe é dado) deixa limitado espaço para
considerações de outra índole, nomeadamente as associadas à ideia de solidariedade e que norteiam a
proposta restaurativa (sobre a questão, cfr. o seu Law as a Social System, trad. Klaus Ziegert, Oxford
Social Legal Studies, Oxford University Press: 2004, p. 211 ss).
378
Louk HULSMAN/J.B. CELIS, Penas Perdidas – O Sistema Penal em Questão cit., ps. 27-8.
379
Nas palavras de Jürgen HABERMAS, «neste ponto, Luhmann oferece à legitimação através de
procedimentos uma interpretação interessante. Os procedimentos institucionalizados, na aplicação do
direito vigente, existem, face aos destinatários, para paralisar a disposição dos diferentes interessados
subjugados para o conflito, na medida em que absorvem decepções. No desenvolvimento de um
procedimento, as posições são, de tal maneira, especificadas, perante o resultado obtido e os temas de
conflito são de tal modo despidos da sua relevância no mundo da vida e reduzidos a meras exigências
subjectivas, “que o indivíduo resistente é, individualmente, isolado e despolitizado”. Portanto, não se trata
de conseguir um consenso, mas sim de formar a imagem exterior (…) de uma aceitação geral. Vista
sociopsicologicamente, a participação em procedimentos jurídicos tem algo de desarmante» (in Direito e
Moral, Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 77).

214
como Alessandro BARATTA, que todavia atribui mais responsabilidade à forma como
o pensamento de Luhmann foi transposto por Jakobs para a sua teorização da prevenção
geral positiva do que propriamente à teoria luhmaniana dos sistemas. BARATTA,
depois de esclarecer a forma como Jakobs utiliza a concepção de Luhmann do direito
enquanto instrumento de estabilização social e de institucionalização das expectativas,
dedica particular atenção à questão da “confiança institucional”, que é entendida como
“forma de integração social que nos sistemas complexos substitui os mecanismos
espontâneos de confiança recíproca entre os indivíduos existentes em uma comunidade
de organização elementar”380. Ora, se o núcleo do estudo de BARATTA parece poder
ver-se na sua rejeição do “formalismo do direito” que associa à compreensão
luhmaniana381 e na crítica do funcionalismo sistémico que associa à teoria da prevenção
geral positiva, aquilo que aqui importa sublinhar é apenas a forma como, também na sua
opinião, assim se desconsideram outros mecanismos, diversos do direito,
potencialmente aptos ao cumprimento da mesma função de estabilização de sistemas
sociais complexos, elegendo-se antes respostas exclusivamente repressivas. Aquilo que
o Autor a este propósito vinca é que existe uma “aplicação deficitária” da teoria
sistémica, na medida em que esta permitiria reconhecer que, em sociedades complexas,
os conflitos “se manifestam em lugares do sistema diversos daqueles em que se
produziram”. Não vê, portanto, razão para que se entenda que perante fenómenos de
criminalidade se reaja apenas “nos limites clássicos da resposta repressiva”, já que não
seria impossível, mesmo no âmbito daquela teoria sistémica, “utilizar também esse
marco teórico para uma procura de alternativas radicais ao sistema penal, de
intervenções institucionais que actuem sobre os conflitos no mesmo lugar em que se
produzem, e não naquele em que se manifestam”. E, com particular interesse na
perspectiva que é a deste estudo, BARATTA ainda acrescenta que a teoria de Jakobs da
prevenção geral positiva, tão influenciada pela teoria sistémica de Luhmann,
desconsidera todos os efeitos negativos da pena e as dificuldades que suscita “à possível
reconstrução de uma comunicação entre agente e vítima do crime, em âmbitos em que a

380
Alessandro BARATTA, «Integración-Prevención: Una “Nueva” Fundamentación de la Pena Dentro de
la Teoria Sistémica», Doctrina Penal, ano 8, n.º 29, 1985, p. 9 ss.
381
Segundo Alessandro BARATTA (últ. ob. cit., ps. 9-10), “a teoria sistémica transfere do indivíduo para
o próprio sistema o centro da subjectividade do sistema social, e com isso atribui muito mais valor, para a
estabilidade do sistema social, à produção do consenso e aos seus equivalentes funcionais do que ao
princípio crítico da valoração ética e política tanto individual como colectiva. Daí resulta que a violação
da norma é socialmente disfuncional, mas não tanto porque são lesados determinados interesses ou bens
jurídicos, mas sim porque é posta em causa a própria norma como orientação da acção e, em
consequência, é afectada a confiança institucional”.

215
natureza dos conflitos permitiria uma solução privada, muito mais funcional do que a
pena para fins de reintegração social”382.
Reitere-se que não preside a este estudo qualquer pretensão de análise em si
mesmos dos pensamentos de Habermas e de Luhmann. O que se quis foi, tendo em
conta a relevância que assumiram na compreensão do mundo do direito (e também do
mundo do direito penal), tão-somente sujeitá-los a um confronto com a proposta
restaurativa do qual pudesse resultar, ainda, um aprofundamento do sentido que esta
pode assumir enquanto outro modelo de reacção a conflitos. A ideia principal que
resultou desta reflexão foi a de que aquilo que nas mencionadas teorias prepondera de
sociológico – ou seja, o intuito de compreender a organização e a preservação da
sociedade que é confrontada com o conflito – é mais coerente com a teorização de um
direito penal que assume como função a defesa da sociedade através da protecção de
bens jurídicos do que com uma justiça restaurativa menos centrada na defesa da
comunidade toda e mais orientada para a pacificação do conflito concreto em que o
agente do crime e a sua vítima estiveram envolvidos.

5.4.2. John Rawls e a sua “teoria da justiça”

Apesar de John Rawls limitar a reflexão, na sua obra de referência Uma Teoria
da Justiça383, à teoria da justiça social, atribuindo menor relevância aos “princípios
relativos aos sujeitos individuais”, existem aspectos do seu pensamento que parecem
merecedores de referência sob o enfoque da teoria restaurativa.

382
Alessandro BARATTA, ibidem, p. 10. A crítica de que a teoria da prevenção geral positiva tal como
delineada por JAKOBS não justifica a necessidade da pena, na medida em que a reafirmação das
expectativas através da manifestação da vigência das normas poderia bastar-se com uma “declaração
inequívoca” dessa mesma vigência (o que pareceria, ainda, compatível com outras formas de solução do
conflito) é sustentada por outros Autores. Neste sentido, veja-se, a título de exemplo, Santiago MIR
PUIG, El Derecho Penal en el Estado Social y Democrático de Derecho, Barcelona: Editorial Ariel,
1994, p. 138. Aquela crítica é refutada por Claudia LÓPEZ DÍAZ (ob. cit., p. 182), que recorda a
afirmação de JAKOBS de que “a necessidade de pena decai quando for possível um processamento
distinto da defraudação da expectativa”. A Autora acrescenta que “JAKOBS considera também como
alternativas à pena para solucionar conflitos a suspensão da condenação, a renúncia à expectativa
defraudada, a persecução selectiva da delinquência, assim como a prestação de medidas assistenciais para
resolver as possíveis causas do ilícito como, por exemplo, o desemprego, os problemas familiares”. E
conclui que, deste modo, “ficam sem base de sustentação as críticas de que apenas aceita uma resposta
repressiva ao fenómeno de incumprimento das normas”.
383
Recorde-se, nesta sede, a advertência que já em momento anterior se fez sobre a insuficiência de se
referir o “pensamento” de um Autor, quando os seus pensamentos são plurais e sujeitos a mudança. A
modificação de algumas das ideias de Jonh Rawls é reconhecida por aqueles que, debruçando-se sobre o
pensamento do Autor, distinguem o “Ralws inicial” do “último Rawls”. Não é, porém, essa análise
diacrónica que interessa a esta reflexão, mas antes o sublinhar dos elementos, no(s) seu(s) pensamento(s),
que se julga ganharem pertinência específica à luz da justiça restaurativa.

216
A compreensão do justo que, no pensamento de John RAWLS, não depende da
consideração do bem individual ou do bem do maior número porque lhe é prévia,
pressupõe o conhecimento da concepção de justiça escolhida pelas partes na posição
original, concepção essa que pode ser desdobrada em alguns princípios da justiça
relativos às instituições, relativos aos sujeitos e, finalmente, relativos à conduta dos
Estados e relação entre os Estados (sendo que estes últimos, a que o Autor também
chama princípios de direito internacional público, permanecerão totalmente estranhos a
este estudo).
Nas suas próprias palavras, “o conceito de que algo é justo é equivalente ao
conceito de que tal está de acordo com os princípios que, na posição original, seriam
reconhecidos como aplicáveis aos objectos em questão”384. Os princípios de justiça são
apresentados, portanto, como o resultado de um acordo hipotético estabelecido por
sujeitos racionais numa posição paritária e interessados na prossecução dos seus
interesses no contexto de uma associação de indivíduos.
John RAWLS atribui importância essencial a dois princípios da justiça, relativos
às instituições ou, como também refere, à estrutura básica da sociedade. Segundo o
primeiro desses princípios, “cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo
sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema
semelhante de liberdades para todos”. Nos termos do segundo, “as desigualdades
económicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que, simultaneamente: a)
redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados, de uma forma
que seja compatível com o princípio da poupança justa, e; b) sejam a consequência do
exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa
de oportunidades”.
Correndo-se, mais uma vez, o risco da simplificação, talvez não seja incorrecto
afirmar que qualquer um destes princípios da justiça seria merecedor de ponderação no
horizonte restaurativo. O primeiro, por força da sua matriz liberal, que se não deve
deixar de relacionar com o encurtamento da privação da liberdade que pode decorrer de
uma aplicação da justiça restaurativa que contribua para tornar mais mínimo o
sancionamento penal. O segundo, na medida em que pressupõe que os valores sociais,
entre os quais se conta e com um “lugar central”, segundo o próprio Autor, o “bem
primário respeito por si próprio”, sejam distribuídos igualmente, linha de argumentação

384
John RAWLS, Uma Teoria da Justiça cit., p. 103.

217
que muito aproveitaria ao adensamento do conceito, tão caro à teoria da justiça
restaurativa, de empowerment do conflito como forma de repristinação da auto-estima
quer do agente do crime, quer da sua vítima385.
Por outro lado, a afirmação por RAWLS da importância de um princípio da
fraternidade que tenha correspondência num princípio de justiça (“é pois necessário
encontrar um princípio de justiça que corresponda à ideia subjacente [de fraternidade]”),
também adquire relevância em uma proposta, como a restaurativa, que tem como
finalidade a reparação ampla dos males vários associados ao crime e se fundamenta em
um imperativo de reconhecimento do Outro e das suas necessidades. O Autor não deixa,
de resto, de relacionar a sua concepção de fraternidade com a solidariedade social, que
parece considerar uma decorrência daquela386.
Um dos aspectos do pensamento de RAWLS sobre a fraternidade que
justificaria a atenção da teoria restaurativa – até com o intuito de refutação de algumas
críticas que a proposta restaurativa tem merecido e que se relacionam, em sentido
amplo, com uma certa natureza utópica da solidariedade , quer do todo com o indivíduo,
quer entre indivíduos – prende-se com a afirmação de que o “princípio da fraternidade
constitui um critério perfeitamente realista”, não tendo que se centrar em “laços de
sentimento e afecto” que não é crível que constituam a regra “entre membros de uma
sociedade alargada”. O princípio da fraternidade deve, antes, relacionar-se com o
princípio da diferença, do qual decorrem exigências concretas para a estrutura básica da
sociedade, sobretudo a de que as desigualdades toleradas só podem ser aquelas que
contribuam para o bem-estar dos menos favorecidos387.
A tolerância é outro dos conceitos a que o filósofo atribui importância. Apesar
de a análise não se centrar numa defesa da tolerância como factor que oriente a conduta
de sujeitos concretos envolvidos em um conflito interpessoal cuja pacificação se
pretende, mas antes numa interrogação sobre se a justiça exige a tolerância com os
intolerantes, existem segmentos argumentativos que podem assumir relevância no

385
Cfr. John RAWLS, Uma Teoria da Justiça cit., p. 239 (no que respeita à formulação dos princípios da
justiça) e p. 69 (a propósito da referência ao “bem primário respeito por si próprio”).
386
Segundo RAWLS, ob. cit., p. 98, a fraternidade “é vista como um conceito menos especificamente
político, que não define em si mesmo qualquer dos direitos democráticos, mas que transmite certas
atitudes de espírito e formas de conduta, sem as quais perderíamos de vista os valores expressos por tais
direitos. Ou então, e trata-se de uma visão próxima da anterior, a fraternidade é vista como uma certa
igualdade na consideração social, manifestada em várias convenções públicas e na ausência de deferência
e servilismo. A fraternidade implica sem dúvida estes factos, bem como um sentido da amizade cívica e
da solidariedade social”.
387
John RAWLS, ob. cit., p. 99.

218
contexto da teoria restaurativa. De forma ampla, a interrogação que se deixa é sobre a
possibilidade de se limitar a liberdade daqueles que não aceitam a liberdade alheia (“a
questão é (…) a de se saber se ser intolerante para com outrem constitui fundamento
suficiente para se limitar a liberdade de alguém”). A resposta, resumidamente, parece
ser a de que se não deve negar a liberdade ao intolerante, a menos que ele ameace de
forma importante os interesses legítimos dos outros. E, com particular interesse para a
sustentação da ideia forte de tolerância com o agente do crime que é recorrente no
pensamento restaurativo (e que não equivale a uma ausência de qualquer reacção, mas
antes a uma procura de soluções menos desvaliosas do que a condenação penal), John
RAWLS afirma que “as liberdades reconhecidas aos intolerantes podem persuadi-los a
acreditar na própria liberdade. Esta persuasão baseia-se no princípio psicológico de que
aqueles cujas liberdades são protegidas por uma constituição justa e dela beneficiam,
com o tempo, e caso as circunstâncias se mantenham, ir-se-ão tornando fiéis a essa
mesma constituição”388.
Na teoria de RAWLS, para além dos dois princípios da justiça antes enunciados
e que respeitam à estrutura básica da sociedade, existem princípios relativos aos sujeitos
individuais. Entre eles, avulta o princípio da equidade, decisivo para se compreender a
teoria do Autor da justiça como equidade ou do justo como equidade (formulações que
tende a utilizar indistintamente). No pensamento do filósofo, o conceito central de
equidade parece poder associar-se a uma ideia de imparcialidade, na medida da
imposição de uma valoração também dos interesses de todos os outros indivíduos e de
um alheamento face aos interesses ou preconceitos próprios. Numa tentativa de
esquematização da teoria de RAWLS, afirmar-se-ia que enquanto os princípios da
justiça se aplicam às escolhas relativas às instituições, a ideia de equidade tem em conta
as relações entre as pessoas389. Ora, parece legítimo tentar aproximar esta ideia de
equidade do pensamento restaurativo, mormente no desligamento que pressupõe dos
interesses próprios e na aceitação de interesses que sejam dos outros e que mereçam,
objectivamente, ser considerados. Julga-se, porém, que um tal paralelismo não é
absoluto: estes interesses dos outros que no pensamento de RAWLS merecem
consideração não são, ao contrário do que sucede na teoria restaurativa, interesses de um

388
John RAWLS, ob. cit., ps. 178-181.
389
Neste sentido, por exemplo, Amartya SEN, A Ideia de Justiça, trad. de Nuno Castello-Branco Bastos,
Coimbra: Almedina, 2010, ps. 121-2.

219
outro dotado de concretude, mas antes interesses que devem ser sempre considerados e
tidos em conta, por força da sua intrínseca justeza, na eleição de normas de conduta.
Na concretização do princípio da equidade sobressaem as ideias de cooperação e
de contrapartida, na medida em que se considera que “não podemos beneficiar da
cooperação de outros sem prestar uma contrapartida justa”. Esta afirmação é antecedida
por uma outra: “a ideia principal é a de que, quando um grupo de pessoas toma parte
numa empresa de cooperação mutuamente benéfica, de acordo com regras existentes,
restringindo assim a sua liberdade por formas que são necessárias para obter vantagens
para todos, aqueles que se submetem a estas restrições têm direito a um consentimento
semelhante por parte dos outros, que beneficiaram com a sua submissão”390.
Estas ideias de cooperação entre indivíduos e de contrapartida estão, ainda que
sob distintas formulações, muito presentes no pensamento restaurativo. Nas práticas
restaurativas, está sempre em causa a tentativa de se chegar a um acordo entre
indivíduos cooperantes na procura de uma pacificação para o conflito. E trata-se de
indivíduos que concebem as restrições recíprocas das suas liberdades como
contrapartida da compressão da liberdade do outro. Admite-se uma compressão da
liberdade do agente como contrapartida da compressão da liberdade que a vítima sofreu
através de um procedimento que é concebido, em si próprio e nos resultados que almeja,
como uma forma de manifestação da liberdade dos indivíduos. Existem restrições da
liberdade em sentido amplo (as da vítima, aquando do crime; as do agente, aquando da
assunção de deveres com o fito da reparação) que se tomam como oportunidade para
potenciar a liberdade, quer através da voluntariedade da participação nas práticas
restaurativas, quer através da pretendida reparação dos danos causados em moldes que
permitam que se limite a condenação do agente a uma sua privação da liberdade. Neste
último sentido, talvez possa afirmar-se um intuito de expansão da liberdade através de
uma cooperação que reconhece a necessidade de se encontrarem contrapartidas.
De forma resumida, não será porventura errado considerar-se que o que há de
mais essencial no pensamento de John RAWLS para a compreensão da proposta
restaurativa como uma solução ainda de justiça é a centralidade que atribui à sua ideia
de equidade como exigência de que se veja para além dos interesses e dos objectivos
pessoais. Se, como antes se afirmou, não se crê que daqui decorra uma qualquer
sustentação directa, por parte do Autor, de propostas de reacção aos conflitos com as

390
John RAWLS, ob. cit., p. 103. O Autor reconhece, neste ponto, a influência de H. L. A. Hart e do
seu”Are There Any Natural Rights”, publicado em 1995 na Philosophical Review.

220
características da proposta restaurativa, sempre se julga que a nuclearidade desta ideia –
a ideia, que não é nova, de que a justiça pressupõe o reconhecimento também de direitos
e de interesses do outro –, associada aos pensamentos da fraternidade e da tolerância, é
coerente com o sentido mais profundo da justiça restaurativa.

5.4.3. Amartya Sen e a sua “ideia de justiça”

Apesar da possibilidade de se vislumbrarem no pensamento de Rawls alguns


pontos de argumentação ainda coerentes com aquele que se julga ser o sentido da
proposta restaurativa, crê-se que os elementos de aproximação serão mais nítidos
quando se considera a “ideia de justiça” de Amartya Sen, que o próprio Autor contrapõe
com frequência à teoria rawlsiana.
Amartya Sen, a partir da ideia de que no pensamento iluminista se podem
distinguir duas grandes tradições de reflexão sobre a justiça, filia a sua compreensão na
corrente oposta àquela em que insere a reflexão de John Rawls. Assim, esta é catalogada
no seio das concepções contratualistas que procuram definir o modo mais justo de
funcionamento das instituições em um plano de abstracção que parte da ficção de um
pacto celebrado entre iguais protegidos por um “véu de ignorância” (que os faz
alhearem-se dos seus interesses mesquinhos e adoptarem um procedimento racional na
definição dos princípios de justiça). Pelo contrário, SEN pretende afastar-se da
“limitada – e limitante – moldura do contrato social”, optando por uma abordagem
comparativa que se concentre “nas vidas que as pessoas conseguem ir construindo”.
Considera-se que “pôr o foco nas vidas reais” permite chegar a conclusões sobre a
progressão da justiça e contribuir para a diminuição das injustiças. Prescinde-se, por
isso, do propósito de atingir uma compreensão de “justiça perfeita” (objectivo que se
imputa às teorias de base contratualista)391. Depois de se ter visto que nas raízes da

391
Amartya SEN, A Ideia de Justiça, trad. de Nuno Castello-Branco Bastos, Coimbra: Almedina, 2010,
ps. 14-15. É recorrente, ao longo da obra de SEN, a afirmação dessa “dicotomia substancial entre duas
diferentes linhas de raciocínio sobre a justiça”, a contratualista e a comparativa que, apesar da diversidade
do enfoque, têm pontos comuns, como a crença na razão e na importância da discussão pública. Amartya
SEN inclui Rawls no grupo dos contratualistas, apontando-lhe antecessores de peso, como Thomas
Hobbes e, depois, John Locke, Rousseau ou Kant. E classifica a sua própria reflexão no âmbito da outra
perpectiva, a comparatista, citando como exemplos de Autores que a perfilharam os nomes de Adam
Smith, Condorcet, Wollstonecraft, Bentham, Marx ou Stuart Mill. SEN também associa, com frequência,
aquela corrente contratualista à designação de “institucionalismo transcendental”, por se ocupar sobretudo
da identificação dos arranjos institucionais que fossem os mais justos para uma sociedade. Sobre ela,
afirma que «concentra a sua atenção naquilo que pode caracterizar a justiça perfeita, mais do que em
comparações relativas entre justiça e injustiça. Assim, ela tenta apenas identificar as características sociais

221
proposta restaurativa está a ideia da valorização do pensamento do problema em
detrimento da exclusividade do pensamento do sistema, compreender-se-á mais
claramente o modo como as palavras de SEN parecem convergentes: “a necessidade de
um entendimento da justiça assente nas realizações conseguidas liga-se ao argumento de
que a justiça não pode ser indiferente às vidas que as pessoas podem efectivamente
viver. A importância das vidas dos homens, das experiências e realizações não podem
ser suplantadas pela informação que nos chega sobre instituições existentes e regras que
funcionam”392.
As palavras finais de Amartya SEN, ainda em A Ideia de Justiça, e a sua defesa
de que “a demanda em busca de uma teoria da justiça aparece ligada ao tipo de criaturas
que nós somos enquanto seres humanos”, merecem, também em uma perspectiva de
sustentação da proposta restaurativa, ser consideradas com toda a atenção: “poderia ter-
se dado o caso de que fôssemos criaturas incapazes de simpatia, indiferentes diante da
dor e da humilhação dos demais, sem apego à liberdade, e – o que não é de todo menos
significativo – incapazes de raciocinar, argumentar, divergir ou concordar. A forte
presença de todas estas circunstâncias na vida humana não nos diz muito sobre qual das
teorias da justiça escolher, mas o que sim faz, é mostrar-nos que, em geral, será muito
difícil conseguir extirpar a busca da justiça da vida da sociedade humana, ainda que a
mesma se possa fazer seguindo caminhos diferentes”393. As “fundamentais aptidões
humanas”, que o Autor considera serem “entender, simpatizar, argumentar”, que serão

que, em termos de justiça, não são passíveis de ser transcendidas; deste modo, o seu foco de atenção não
consiste em comparar sociedades que existam na realidade, que sempre poderão ficar aquém dos ideais de
perfeição. A sua investigação aponta para a identificação da natureza do que é o “justo”, ao invés de
tentar encontrar critérios para uma alternativa que fosse “menos injusta” do que uma outra» (ob. cit., p.
42). Apesar disto, Amartya SEN não deixa de reconhecer que filósofos como Kant ou Rawls tiveram,
também, a preocupação de reflectir sobre as normas de comportamento, para além do problema das
instituições. Contrastando com o institucionalismo transcendental, SEN prefere a perspectiva da
“comparação centrada em realizações”, que se preocupa com as “realizações sociais (aquelas que
resultam de instituições reais, de comportamentos reais e de outras influências mais)”. A interrogação
com a qual o Autor se confronta é, por isso, a de saber “como se pode obter o progresso da justiça”, e não
já a de saber “o que seriam instituições perfeitamente justas” (ob. cit., ps. 44-47). Enfaticamente, SEN
afirma que “um debate a propósito da justiça – se é que se quer que ele trate de coisas práticas – não pode
deixar de ser um debate a propósito de comparações”. E acrescenta que “todas as reformas e mudanças
que têm em vista o reforço da justiça exigem a realização de apreciações comparativas, e não somente
uma imaculada identificação da sociedade justa” (ob. cit., p. 524). A contraposição entre as duas
perspectivas da justiça é, repita-se, frequente em A Ideia de Justiça, sendo retomada pelo Autor já na fase
final da obra, onde reafirma a filiação da sua concepção na “teoria da escolha social (iniciada por
Condorcet no século XVIII, e estabelecida com firmeza por Kenneth Arrow nos nossos dias)” e o seu
afastamento face à tradição contratualista, seguida na contemporaneidade por filósofos como Rawls,
Nozick, Gauthier ou Dworkin (ob. cit., ps. 536-7).
392
Amartya SEN, ob. cit., p. 57.
393
Amartya SEN, ob. cit., ps. 541-2.

222
transversais às várias teorias da justiça na sua demanda comum, são também os
materiais principais a partir dos quais se constrói a proposta restaurativa.
Ao longo da obra A Ideia de Justiça, SEN revisita com alguma frequência uma
distinção clássica no pensamento da justiça indiano, a distinção entre niti e nyaya, dois
vocábulos que significam, ambos, “justiça no sânscrito clássico”. Nas palavras do
Autor, “entre os principais casos em que se emprega o termo niti, contamos a
propriedade enquanto característica organizacional e a correcção dos comportamentos”.
Pelo contrário, “o termo nyaya corresponde a um conceito compreensivo que aponta
para a justiça realizada”394. O primeiro conceito é associado a um juízo sobre as
instituições e as regras, enquanto o segundo pressupõe “um juízo sobre as sociedades
como elas são em si mesmas”.
Por outro lado, uma das principais linhas de fractura entre a reflexão de filósofos
“contratualistas” como Rawls e o pensamento de Sen prende-se com o facto de este
rejeitar a possibilidade de uma escolha unânime de princípios de justiça ou de um único
argumento imparcial e capaz de satisfazer as exigências de equidade, por isso alheio a
toda a crítica395. Nessa medida, parece não acreditar na possibilidade de “arranjos
sociais perfeitamente justos” deduzidos de opções genéricas traçadas a coberto de uma
“posição original” associada a um “véu de ignorância”396. Os arranjos almejados por

394
Amartya SEN, ob. cit., p. 59 ss. Para se ilustrar a distinção, será útil o recurso aos próprios exemplos
escolhidos por SEN. Para aclarar o sentido de “niti”, recorre à afirmação, no século XVI, de Ferdinand I:
“fiat justitia, et pereat mundus”. Sobre a “nyaya”, afirma que “de nada adiantará que as organizações
estabelecidas sejam as mais próprias, se, mesmo assim, um peixe grande puder devorar o mais pequeno a
seu talante, pois isto, a acontecer, sempre haverá de ser uma patente violação da justiça humana entendida
como nyaya”.
395
Amartya SEN procura exemplificar esta dificuldade através de um episódio, a que chama “três
crianças e uma flauta”. As três crianças discutem a posse de uma única flauta. A primeira criança invoca
ser a única que sabe tocar o instrumento, a segunda afirma que é a única que é tão pobre que não tem
qualquer outro brinquedo, a terceira alega que foi ela que construiu a flauta. Desacompanhada da
consideração da argumentação dos outros, a argumentação de cada uma destas crianças parecia suficiente
para que o instrumento lhe fosse atribuído de forma justa. Nas palavras do Autor, “o ponto central em
tudo isto consiste em que não é fácil atirar para um canto, por desprovidas de fundamento, qualquer uma
destas pretensões, assentes respectivamente na busca da realização pessoal, na eliminação da pobreza ou
na faculdade de fruir do produto do próprio trabalho. As diferentes soluções têm todas elas argumentos
sérios a seu favor, tanto assim que poderemos não ser capazes de escolher sem arbitrariedades um dos
argumentos alternativos, dizendo ser esse aquele que há-de prevalecer necessariamente em todos os
casos” (ob. cit., p. 53). Em momento posterior, criticamente quanto ao pensamento de Rawls, Amartya
SEN afirma que “o que pretendo é defender a possibilidade de que haja posições que são contrárias e que,
ao mesmo tempo, conseguem sobreviver; posições que não podem ser submetidas a uma cirurgia radical
que as reduza a todas até que formem uma caixa bem arrumada de exigências entre si perfeitamente
articuladas” (ob. cit., p. 88). A crítica é seguidamente aprofundada através do argumento da diversidade
de padrões de comportamento de sociedade para sociedade, o que dificulta a compreensão do
estabelecimento dos mesmos princípios de justiça para todas elas ou do estabelecimento de instituições
justas numa “escala global” (ob. cit., ps. 120, 128).
396
Manifestando o seu grande cepticismo a respeito da tese de Rawls sobre a “existência, na posição
original, de uma escolha única de um único e particular conjunto de princípios conducentes a instituições

223
SEN serão mais facilmente transferidos para o plano da conflitualidade real e para uma
busca da solução menos injusta na prática.
Ora, é precisamente esta relativa deslocalização do epicentro da reflexão sobre
a justiça do pensamento do sistema ou das instituições para o pensamento dos
problemas reais das pessoas reais, para os quais dificilmente se conseguiria encontrar
uma única e pré-definida solução justa, que mais aproxima a concepção de Amartya
SEN do substrato ideológico restaurativo.
A ideia que se vem de elencar recebe concretização, ao longo de A Ideia de
Justiça, sob várias formas, que em vários pontos têm na base uma contraposição com o
pensamento de Rawls. Amartya SEN vai vincando as suas dúvidas sobre a supremacia
da objectividade rawlsiana enquanto “traço da justiça como equidade”, assumindo que
pode haver uma relação entre a razão e as emoções, nomeadamente a compaixão e a
simpatia397. A propósito do “papel amplificador e libertador dos nossos sentimentos”,
relembra a importância que lhes foi atribuída por pensadores como Adam Smith ou
David Hume, para quem o raciocinar e o sentir não podiam deixar de estar interligados.
Esta será também uma linha de compreensão útil à sustentação da proposta restaurativa
e à ponderação da crítica da sua hipervalorização dos sentimentos individuais em
detrimento de uma “razão geral”.
Apesar da relevância que Amartya SEN atribui à razão e à objectividade, é
notória na sua obra a revalorização dos sentimentos. O Autor começa por relembrar a
ideia de Wittgenstein de que há uma relação grande entre a inteligência e a bondade
para depois se apoiar no pensamento de Ashoka sobre a tolerância como exemplo de
que um comportamento “não bom” seria, simultaneamente, “não inteligente”398.

justas, aqueles mesmos que são requeridos para uma sociedade inteiramente justa”, cfr. Amartya SEN,
últ. ob. cit., p. 102. Reconhece, porém, que a pretensão de RAWLS quanto à existência de apenas um
inquestionável conjunto de princípios de justiça deduzidos a partir da posição originária tende a ser
“suavizada” em estudos posteriores.
397
Cfr. SEN, últ. ob. cit., v.g. ps. 77, 84, 93. A afirmação de SEN não andará porventura muito distante
da relevância que, na doutrina portuguesa, autores como João LOUREIRO atribuem à “razão cordial”.
Nas palavras do Autor, “o direito é, pois, em última análise, expressão de uma razão cordial, que toma a
sério o reconhecimento do outro e da sua dignidade. Um reconhecimento cordial, como sublinha Adela
Cortina, que não se confunde com um puro pensamento estratégico de uma racionalidade instrumental ou
calculante”. E acrescenta: “a razão cordial transporta uma memória de contributos e não deve ser lida
numa oposição razão/coração, degradado este ao domínio das paixões desordenadas celebradas pela
poesia e geradoras de cegueira. Pelo contrário: a razão cordial aponta para uma visão integral e mais
perfeita, capaz de sofrer com, tomando a sério a compaixão” (in “Autonomia do direito, futuro e
responsabilidade intergeracional – Para uma teoria do Fernrecht e da Fernverfassung em diálogo com
Castanheira Neves”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXXVI, Coimbra, 2010, p. 45).
398
Amartya SEN, últ. ob. cit., p. 125 ss. Ashoka, Imperador da Índia do século III A.C., pronunciando-se
contra a intolerância religiosa, entendia que “aquele que presta reverência à sua própria seita e, ao mesmo

224
Em momento posterior, aponta o carácter redutor da teoria da escolha racional
(que associa a racionalidade da escolha ao facto de ela corresponder a uma
“maximização inteligente do interesse próprio”), procurando demonstrar que
sentimentos como o altruísmo podem ser também tidos em conta numa escolha ainda
racional. Afasta-se, assim, uma “visão extremamente exígua da racionalidade humana
que a vê associada exclusivamente à busca do interesse próprio”399, reconhecendo-se a
relevância de um conjunto de outras motivações. A partir de uma distinção entre
“simpatia” (que pressupõe que a pessoa possa ser afectada pela posição dos outros,
sendo o comportamento que adoptar ainda “auto-interessado”) e “comprometimento”
(que se refere à eleição de um comportamento para o bem do outro, independentemente
de uma repercussão no bem-estar individual de quem age), SEN sustenta a possibilidade
e a racionalidade de um “comportamento atento aos outros”400. Enfaticamente, afirma
que «nada há de particularmente fora do normal, ou de especialmente contrário à razão,
em ver uma pessoa que escolhe perseguir um objectivo não exclusivamente confinado
ao seu interesse próprio (…). Nada há, pois, de contrário à razão na nossa vontade e
disposição de fazer coisas que não sejam inteiramente para nosso próprio obséquio.
Algumas destas motivações, tais como a “humanidade, a justiça, a generosidade e o
espírito público”, até podem chegar a ser fontes de grande produtividade para a
sociedade em geral, como também salientava Adam Smith»401.
Esta é uma linha de reflexão que pode adquirir grande relevância quando
transposta para a justificação da justiça restaurativa, sobretudo na medida em que
contribua para afastar a objecção de que ela é insusceptível de concretização em
domínios de conflitualidade real, em que os interesses dos sujeitos são necessariamente
divergentes, pelo que nenhum acordo será possível. Aquela rejeição de uma associação
estreita do que é decidir com razão a uma teoria da escolha racional centrada
unicamente na procura do interesse próprio pode iluminar, segundo se crê, vários
aspectos da teoria e da prática restaurativa, aos quais é conatural a admissão da

tempo, amesquinha as seitas dos demais, meramente por apego à sua própria seita, na realidade, com tal
conduta, está a infligir sobre a sua própria seita a mais grave das injúrias”.
399
Amartya SEN, últ. ob. cit., ps. 253-4.
400
Amartya SEN retoma em A Ideia de Justiça cit., p. 261 ss, uma reflexão que já desenvolvera no seu
estudo de 1977 “Rational Fools: A Critique of the Behavioural Foundations of Economic Theory” e que
se inspirara, conforme reconhece o próprio, no pensamento de Adam Smith. A propósito deste, considera
que a sua interpretação tem sido “um autêntico campo de batalha”, julgando irrazoável a sua “reputação
de campeão da busca exclusiva do interesse próprio por parte de todos os seres humanos” e vincando “as
repetidas alusões que Adam Smith faz à importância de outras motivações”.
401
Amartya SEN, ob. cit., p. 268.

225
possibilidade de valorização dos interesses também do outro. O que se quer significar é
que se a defesa da proposta restaurativa pode ser fundada na sua maior adequação à
reparação da vítima (logo, mesmo sob o enfoque da teoria da escolha racional, poderia
interessar à vítima) e na sua maior adequação aos interesses do agente do crime na
medida em que evitaria a punição (logo, ainda egoisticamente, preferida pelo agente),
não devem desconsiderar-se as hipóteses de vontade de participação nas práticas
restaurativas e de aceitação de um acordo mesmo quando se julgue que, à luz de uma
avaliação do interesse próprio, um dos sujeitos ficou a perder. Contribui-se, assim, para
reforçar a ideia de que nem todas as vítimas desejam a punição do agente porque
procuram uma vingança e/ou porque este não tem nada para lhes oferecer como forma
de reparação. Assim como se favorece a compreensão da vontade do agente do crime de
participar em práticas restaurativas e de reparar os danos que causou mesmo que daí não
decorram consequências automáticas ao nível da sua menor punição pela justiça penal
(como pode suceder, por exemplo, nas hipóteses de práticas restaurativas pós-
sentenciais).
Por outro lado, parece clara a importância que o Autor atribui ao diálogo como
forma de promoção quer de uma teoria sobre a justiça, quer de uma solução mais justa
para os conflitos. Na sua opinião, “debates e discussões nem sempre são uma coisa
eficaz. Mas podem sê-lo”. E, para além disso, são de inquestionável utilidade para o
afastamento do «”paroquialismo” intelectual» que tanto incomoda SEN402.
Outras duas ideias que parecem caras a SEN são as da liberdade e da
capacidade enquanto “materiais da justiça”. Suscitam-se, em vários pontos da reflexão
sobre elas, aspectos que adquirem relevância quando considerados em uma “perspectiva
restaurativa”. Um deles prende-se com a afirmação de que a liberdade não é só
oportunidade para alcançarmos os nossos objectivos, antes assumindo relevância
autónoma o processo de escolha em si mesmo: “pode acontecer (…) que nos queiramos
certificar de não estar a entrar numa dada situação forçados por constrições que são
impostas por outras pessoas”403. O modo ou o processo através do qual se atinge o
objectivo pretendido é valorizado em si mesmo. Ora, a liberdade de participação e de
conformação da solução inerente ao procedimento restaurativo adquire, na teoria
restaurativa, tanta importância que se torna elemento definitório da própria justiça

402
Amartya SEN, últ. ob. cit., ps. 142-3. O Autor acrescenta que «há boas razões para encararmos com
cepticismo a possibilidade de uma “justiça falha de discussões”.
403
Amartya SEN, últ. ob. cit., p. 315.

226
restaurativa No conceito de justiça restaurativa que se perfilha, a especificidade do
procedimento está a par da especificidade do resultado, contribuindo ambos, de igual
modo, para a sua definição. A propósito desses “materiais da justiça que são a liberdade
e a capacidade”, Amartya SEN afirma que «não somos apenas “pacientes” cujas
necessidades mereçam ser consideradas, mas também “agentes” cuja liberdade de
decidir o que se há-de valorizar, e como se há-de perseguir o que se valoriza, pode ir
muito para além dos nossos próprios interesses e necessidades»404. Quando se procura
transpor uma tal afirmação para a teoria restaurativa, recorda-se o papel de sujeitos da
decisão que nela assumem os intervenientes no conflito criminal, sendo que essa
decisão não será gizada apenas em função dos interesses próprios de cada um, antes
pressupondo uma abertura aos interesses do outro.
Quando se olha para a Ideia de Justiça de SEN de um modo mais geral,
sobressai um outro aspecto pertinente para o enfoque restaurativo. Como o próprio
Autor reconhece, a perspectiva de justiça que defende “dá espaço a uma omnipresente
pluralidade enquanto elemento constitutivo da noção de justiça”, à qual convém,
nomeadamente, a pluralidade de dimensões que também atribui à liberdade405. O
reconhecimento dessa pluralidade de elementos pode ser útil à sustentação de uma
proposta restaurativa que se tem confrontado com o pendor iluminista que foi dado à
compreensão do que é reagir ao crime com justiça, decorrendo daí a quase
exclusividade da nota de indisponibilidade da reacção associada ao carácter público da
infracção. A pluralidade da noção de justiça sustentada por SEN talvez convenha,
assim, à aceitação de novas exigências de justiça no que respeita às respostas a dar ao
conflito criminal, sem que isso tenha de significar um abandono das conquistas que se
imputam ao iluminismo penal.
Esboçadas estas notas muito breves a propósito dos pensamentos de Rawls e de
Sen sobre a justiça, uma ideia que merece ser vincada é a de que ambas as

404
Amartya SEN, últ. ob. cit., p. 343.
405
Para além de distinguir na liberdade um aspecto atinente à possibilidade de escolha dos objectivos ou
resultados e um outro relativo ao procedimento de escolha, SEN também reflecte sobre uma concepção de
liberdade como capacidade (a capacidade de cada um “levar a sua vida como lhe aprouver”, sem uma
interferência real dos outros) e uma outra, a republicana, em que a afirmação da liberdade não se basta
com a inexistência de uma interferência que é possível, postulando-se o “ser-se livre para fazer uma coisa
independentemente de quem quer que seja (de modo que seja indiferente o que os outros venham ou não a
querer)”. O Autor acredita que esta compreensão republicana da liberdade “dá à própria liberdade uma
robustez que já estará ausente sempre que a liberdade para se fazer a mesma coisa esteja ora condicionada
pela ajuda – ou tolerância – dos demais, ora dependente de uma coincidência”. Não julga, porém, que a
concepção republicana possa substituir aquela que vê a liberdade como capacidade, antes considerando
que aquela visão republicana “adiciona algo à perspectiva baseada na capacidade, ao invés de vir demolir
a relevância desta perspectiva enquanto modo de abordar a liberdade” (ob. cit., p. 408 ss).

227
compreensões podem relacionar-se com o sentido da proposta restaurativa enquanto
solução de justiça. Ou, talvez com mais exactidão, relacionar-se-ão, cada uma delas, de
forma mais directa (ainda que não exclusiva) com distintos sentidos dessa proposta.
Como se desenvolverá em momento posterior do estudo, a justiça restaurativa pode ser
vista sobretudo como sistema de reacção ao conflito criminal alicerçado numa lógica de
celeridade e de eficácia ou pode, antes, ser encarada como sistema com um fundamento
ainda ético e uma finalidade de pacificação dos conflitos (inter)pessoais dos sujeitos
intervenientes no crime. O pensamento de Rawls, a que subjaz a ideia dos mútuos
benefícios que podem advir de uma cooperação moldada ao jeito do contrato (em que a
consideração do interesse do outro será ainda a melhor forma de proteger algum
interesse próprio), servirá mais à primeira daquelas compreensões. O pensamento de
Sen, afeiçoado pela rejeição do interesse próprio enquanto critério único de uma decisão
racional e pela revalorização dos sentimentos das pessoas concretas que vivem vidas
reais e que procuram as soluções menos injustas no seu quotidiano, adequar-se-á
porventura mais à segunda406. A importância da ponderação dos interesses dos outros
para o preenchimento da ideia de justiça é vincada pelo próprio, que refere a “relevância
dos interesses das outras pessoas, com vista a, assim, se poder evitar atitudes
tendenciosas, dispensando aos demais um tratamento equitativo, e na pertinência das
perspectivas das outras pessoas, que podem vir alargar a nossa própria indagação dos
princípios a ter por relevantes”407.

406
Esta contraposição não se pretende, porém, absoluta. Viu-se a importância que RAWLS atribui ao
facto de se ir para além do próprio interesse (mesmo que, na vertente liberal que se associa ao
contratualismo, assim se procure ainda uma maximização da liberdade do indivíduo). E, por outro lado, o
pensamento da justiça segundo SEN não parece totalmente alheio a uma valorização dos resultados
concretos. A questão é, de resto, objecto de reflexão detalhada a propósito da distinção entre a ”tese da
avaliação consequencial”e, por outro lado, “a argumentação que se baseia na noção de dever”,
simbolizadas, respectivamente, por Arjuna e por Krishna: “é frequente ver-se em Krishna a imagem do
perfeito deontologista que se centra implacavelmente sobre o dever, e em Arjuna o típico
consequencialista que faz apoiar a valoração das acções apenas na bondade (ou maldade) das
consequências que delas derivam”. A opinião do Autor parece ser a de que se podem levar em conta quer
o dever, quer as consequências, tomando como referência a definição de “consequencialismo” dada por
Philip Pettit: “o consequencialismo é a teoria segundo a qual a maneira para se dizer se uma particular
escolha é a escolha certa para ter sido feita por um determinado agente consiste em olhar para as
consequências relevantes da decisão sobre o mundo” (SEN, ob. cit., ps. 298-301). Ora, se se tiver em
conta a valorização por SEN do conceito de nyaya e a preferência pelas concepções comparatistas de
justiça centradas na avaliação e comparação de sociedades concretas, poder-se-á considerá-lo em primeira
linha um consequencialista, muito mais do que um “defensor das regras”. Todavia, essa ideia parece
contrariada por outros segmentos do seu estudo, nomeadamente os que se prendem com a rejeição da
teoria da escolha racional e de um certo utilitarismo, assim como pela afirmação de que “ser-se sensível
às consequências não exige que se seja insensível às agências e às relações, ao avaliar o que se passa no
mundo” (ob. cit., p. 306).
407
Amartya SEN, ob. cit., p. 526.

228
Finalmente, diga-se que há na obra de Amartya Sen um outro aspecto que se
deve sublinhar a traço grosso, desde logo porque, metodologicamente, parece adequado
à introdução de um novo nódulo problemático. Esse aspecto prende-se com a
ponderação da relevância da argumentação, da deliberação participada ou do discurso
para a obtenção de uma solução justa. Não se pretende, claro está, imputar a Sen uma
qualquer paternidade de uma ideia que conheceu distintas formulações ao longo dos
séculos. O próprio Autor reconhece a relevância desta linha de pensamento nos seus
contemporâneos Habermas ou Rawls, porventura com maior intensidade no primeiro,
apesar da afirmação expressa do segundo de que “a ideia que define a democracia
deliberativa consiste na própria ideia de deliberação”. Todavia, a razão pela qual se faz
referência à questão da justiça versus democracia na obra de Amartya Sen prende-se
com o facto de o Autor, sintetizando pensamentos que antecederam o seu, resumir e
simplificar um sentido de resposta: “se é certo que as exigências de justiça só podem ser
apreciadas com a ajuda de uma argumentação pública, e se a argumentação pública se
relaciona constitutivamente com a ideia de democracia, então há também uma íntima
conexão entre justiça e democracia, encontrando-se aí traços discursivos partilhados”408.
Tome-se, agora, esta afirmação como ponto de partida para uma curta
interrogação sobre o sentido da justiça restaurativa na intersecção da justiça e da
democracia.

5.5. Notas breves sobre a questão da democracia

A divulgação da proposta restaurativa coincide com um tempo em que, apesar da


com frequência afirmada expansão da democracia, se menciona também a sua crise que,
para alguns, só poderia ser ultrapassada através de um aprofundamento da ideia de
participação em detrimento da ideia de representação409.

408
Amartya SEN, ob. cit., ps. 428-431. O Autor parte da noção de democracia como “governo pela
discussão”, expressão que julga ter sido cunhada por Walter Bagehot mas que depois foi ampliada
sobretudo graças à obra de John Stuart Mill.
409
Boaventura de SOUSA SANTOS esclarece, logo na introdução à obra Democratizar a Democracia –
Os Caminhos da Democracia Participativa (Porto: Edições Afrontamento, 2003, p. 27) que “o argumento
central deste livro é que o modelo hegemónico de democracia (democracia liberal, representativa), apesar
de globalmente triunfante, não garante mais que uma democracia de baixa intensidade assente na
privatização do bem público por elites mais ou menos restritas, na distância crescente entre representantes
e representados e numa inclusão política abstracta feita de exclusão social”. Para se exemplificar a crise
da democracia, refere-se uma “dupla patologia”: “a patologia da participação, sobretudo em vista do
aumento dramático do abstencionismo; e a patologia da representação, o facto de os cidadãos se
considerarem cada vez menos representados por aqueles que elegeram” (ob. cit., p. 37). SOUSA

229
Um dos argumentos esgrimidos pelos cultores da proposta restaurativa410 contra
a justiça penal prende-se com a sua apresentação enquanto forma de resolução do
conflito menos democrática por dela afastar quer aqueles que no conflito são
intervenientes directos, quer a comunidade411, assumindo o Estado o monopólio da
coerção para a resolução do conflito412.

SANTOS entende que um outro modelo, a democracia participativa, “tem vindo a ganhar uma nova
dinâmica”.
410
A título de exemplo, considere-se o estudo de Melissa WILLIAMS (“Criminal justice, democratic
fairness and cultural pluralism: the case of aboriginal peoples in Canada”, Buffalo Criminal Law Review,
2002, vol. 5, p. 451 ss) sobre a justiça penal e sobre a justiça restaurativa na perspectiva da sua
compatibilidade com as exigências democráticas. Ora, se à luz de uma associação comum entre
democracia e participação há uma certa tendência, entre os autores restaurativos, para apresentar a
proposta restaurativa como mais democrática, é precisamente neste contexto que a reflexão da Autora
assume particular interesse. O que se pergunta é se a resposta restaurativa é mais justa na medida em que
é mais democrática. Julga-se, a um primeiro olhar, de certo modo simplista a afirmação de que a maior
participação do agente do crime e da vítima na gestão do conflito criminal significa, por si só, uma
solução mais democrática. Desde logo porque, se se entender que o assunto criminal é de todos – como,
de certa modo, parece ser – não se vislumbra a legitimidade para que a decisão sobre a forma de pacificar
o conflito caiba apenas àqueles. De qualquer modo, não é esta a abordagem adoptada pela Autora, cuja
reflexão se centra na possibilidade de avaliar a criminalização, a sujeição ao processo penal e a execução
da pena a partir do “princípio democrático da igualdade”. Assim, o que se questiona é antes se “as
definições do comportamento criminal efectivamente discriminam certos grupos de cidadãos”, “se os
processos para determinar a culpa ou a inocência de um acusado são igualmente aplicáveis, e igualmente
adequados, a todos os cidadãos”, “se a punição é igualmente distribuída ou se alguns grupos de
condenados são punidos com mais severidade do que outros”. A ideia central do estudo é a de que, no
Canadá, “o sistema de justiça criminal falhou historicamente na concretização desses patamares de
igualdade democrática no tratamento de pessoas aborígenes” (ob. cit., p. 453). Depois de se acentuar a
excessiva representação de aborígenes nas estatísticas criminais e da referência a vários factores
relevantes para a compreensão dessa realidade (como a dificuldade de compreensão do funcionamento do
sistema criminal e a particular estigmatização decorrente da condenação), sujeitam-se a análise alguns
projectos surgidos nos anos noventa e que pretendem atribuir relevância aos valores culturais específicos
na administração da justiça criminal. Referem-se os “elder panels” e os “sentencing circles”. Os
primeiros supõem o “aconselhamento do juiz”, pelos mais idosos ou pelos líderes do grupo, sobre “as
normas locais e as circunstâncias que eles acreditam que são relevantes para a solução dada ao caso”. Nos
sentencing circles admite-se a intervenção, para além daqueles representantes da comunidade, de
familiares ou próximos, quer do agente, quer da vítima. Em ambos os casos, porém, a decisão continua a
caber ao juiz, que é “inteiramente livre de seguir ou não as recomendações”.
411
O argumento de que através da justiça restaurativa se logra a obtenção de uma solução mais
democrática para o conflito criminal tem sido referido e sujeito a aplauso ou a crítica. Em jeito que parece
sobretudo crítico, veja-se, na doutrina portuguesa, André Lamas LEITE (“Justiça prêt-à-porter?
Alternatividade ou complementaridade da mediação penal à luz das finalidades do sancionamento”, RMP,
ano 30, Jan-Mar 2009, n.º 117, p. 90), para quem «a justiça restaurativa atribui aos actores do conflito
uma parte do poder, uma experiência de justiça conformada, uma parcela de autonomia que joga bem
com a democracia e que, aliás, tem sido uma das razões – senão a principal – pela qual o movimento é,
em regra, bem acolhido pelos órgãos decisórios dos Estados. Os conceitos de “justiça de proximidade” e
de “comunicação horizontal”, miscigenados com a justice douce, aí estão para o provar. A “simpatia” da
“entrega” aos pleiteantes do modus faciendi, a redução de custos que lhe anda associada, bem como
aspectos mais sibilinos como um pretenso contributo para uma reconstrução axiológica baseada em
princípios humanistas de reconciliação e capacidade de vivência do Outro, ao gosto das mais variadas
confissões religiosas e correntes ético-morais, têm-se arvorado em caldo favorável. Acresce uma
construção bottom-up da administração da justiça, para a qual os indivíduos comprometidos em um
processo negocial sem heteronomia estão mais predispostos ao respectivo adimplemento, numa afirmação
de maior eficácia das instâncias informais de controlo». Citada esta afirmação do Autor que se crê um
resumo bem sucedido de várias das principais ideias fortes utilizadas para escorar a afirmação da justiça
inerente à proposta restaurativa, sempre se julga necessário demarcar a opinião perfilhada daquela que

230
Esta é uma linha de argumentação que se não pretende explorar, desde logo por
se reconhecer que qualquer ponderação da questão não poderia prescindir de uma
reflexão sobre o próprio sentido da democracia, propósito que se julga incompatível
com o objecto e os limites deste estudo413.

parece ser a manifestada pelo Autor e intuída logo na associação da justiça restaurativa a uma justiça
“prêt-à-porter”. Na parte final do seu estudo, André Lamas LEITE afirma que a mediação penal é uma
“técnica ao lado de outras”, “enquanto conjunto de processos dirigidos a um resultado (…), deve
conformar-se com os quadros basilares do sistema em que se enquadra”. E acrescenta que «não
concebemos nenhum “paradigma” apto a substituir a actual forma de administrar a justiça”, concluindo
depois que «temos a mediação e as demais técnicas de RAL por complementos intra-processuais da visão
“tradicional” de administrar justiça (pública) e não por concorrentes» (ibidem, p. 126). Concordo com o
Autor na sua afirmação da inexistência de um novo paradigma apto a substituir a resposta dada ao crime
pela justiça penal. Todavia, não pelas razões aduzidas por André LEITE, que perspectiva sempre a justiça
restaurativa como orientada pelas finalidades especificamente penais (logo no sumário do seu estudo,
pode ler-se que “o presente artigo, partindo do regime legal, analisa até que ponto a mediação cumpre as
finalidades preventivas do Direito Criminal”) e que, provavelmente por isso, acaba por concluir que a
resposta que aquela justiça restaurativa dá a estas finalidades é pior à luz desta ideia de justiça, ainda que
porventura mais eficiente no contexto de um modo de pensar utilitarista. Ao contrário do Autor, não se
crê que a proposta restaurativa e as práticas através das quais se concretiza sejam modeladas em primeira
linha pelas finalidades da pena, antes se assacando a tal proposta um fundamento e finalidades
autónomos, associados ao reconhecimento de uma dimensão do crime que não é a dimensão pública que
funda a intervenção penal. E aquilo que se julga é que o reconhecimento desse outro fundamento e dessas
outras finalidades contribuirão para o aprofundamento de uma outra compreensão da justiça, que nessa
medida não será alheia à proposta restaurativa. Para além de que, naturalmente, justificarão a
possibilidade de convivência da resposta restaurativa com a resposta penal. Não só, repare-se, por haver
casos em que a resposta restaurativa é impossível (nomeadamente por não ser desejada pelos “actores” do
conflito), mas sobretudo porque podem existir conflitos cuja dimensão pública não permite que se
prescinda da intervenção punitiva do Estado, aos quais não sejam todavia alheias necessidades de
pacificação individual ou relacional.
412
Zygmunt BAUMAN reflecte sobre a coerção para ponderar o modo como o “espírito moderno” é
centrado na intenção de compreensão e modelação de um objecto, para se referir de seguida ao problema
da perda de legitimidade dessa coerção: «uma acção é coercitiva se, e ao cumprir os seus objectivos, não
tem em conta as “tendências naturais” do seu objecto. No caso de um objecto sensitivo e semelhante ao
agente, a “coercividade” da acção significa que as acções e predilecções do objecto sejam apresentadas
como ilegítimas por serem classificadas como motivações que resultam da ignorância ou de inclinações
criminosas. A “legitimidade” da acção coercitiva significa que a agência que a aplica negue ao seu
objecto o direito de resistir à coerção, de questionar os motivos, de ripostar ou de intentar uma acção
judicial intentando uma indemnização. Esta legitimidade foi em si mesma um pilar da coerção. Todavia,
independentemente da coerção que era exercida, aquela legitimidade e, sobretudo, o monopólio sobre a
coerção legítima, nunca foi imune a contestações» (A Sociedade Sitiada, trad. de Bárbara Pinto Coelho,
Lisboa: Instituto Piaget, 2002, ps. 10-11).
413
A propósito das dificuldades inerentes à delimitação do conceito de democracia, António Pedro
MESQUITA [Liberalismo, Democracia e o Contrário – Um século de pensamento político em Portugal
(1820-1920), Lisboa: Edições Sílabo, Colecção Sophia, 2006, p. 68] afirma que “a atenção do
pensamento contemporâneo ao conceito de democracia (…) tem um fundamento intrínseco: e esse
prende-se com o carácter problemático do próprio conceito, não já apenas quanto aos modos muito
disputados de o realizar, ou quanto à sua realizabilidade, ou ainda quanto à bondade dessa realização, mas
desde logo quanto ao modo de proceder à sua determinação”. E o Autor acrescenta que «a questão
decisiva sob este ponto de vista foi sempre a do sentido a atribuir à noção de “vontade geral” introduzida
pelos enciclopedistas e por Rousseau». Em momento posterior do seu estudo, vinca que «o que (…) os
diversos pensadores (…) procuram dilucidar é em que medida pode a democracia (ou a “constituição
republicana”) não ficar sendo uma “tirania do algarismo”, como parece que teria de suceder se se seguisse
neste ponto Rousseau» (ob. cit., p. 149). Nesta matéria, continua a ser essencial a referência ao
pensamento de Alexis de TOCQUEVILLE e à sua própria interrogação: “considero ímpia e detestável a
máxima segundo a qual, em matéria de governo, a maioria de um povo tem o direito de fazer tudo o que
lhe apraz. No entanto, penso que se deve situar a origem de todos os poderes na vontade da maioria.

231
Pode, porém, tomar-se como ponto de partida a “definição mínima da
democracia” proposta por Norberto BOBBIO, “segundo a qual se entende por regime
democrático essencialmente um conjunto de regras processuais no que diz respeito à
formação das decisões colectivas, prevendo e facilitando a participação mais ampla
possível dos interessados”414, desde logo porque o carácter sintético da noção deixa
claro o aspecto que aqui se pretende explorar. Esse aspecto relaciona-se com a ideia,
que de seguida se pretende justificar, de que uma reacção ao crime que restrinja a
decisão autoritária dos conflitos àquelas hipóteses em que não é possível atribuir aos
interessados mais directos (a quem se vem chamando os “intervenientes no conflito”)
essa resolução, será uma reacção tendencialmente mais democrática.
De qualquer modo, aquilo que se quer começar por vincar é que não se julga que
um Estado deixe de merecer o apodo de democrático por atribuir aos tribunais e aos
juízes que os integram (que não são, é certo, os intervenientes no conflito, nem foram
por estes eleitos para o resolverem) a legitimidade para uma decisão dotada de
autoridade415 do conflito jurídico-penal, desde que esse poder de decisão seja a
concretização de um direito penal alicerçado na defesa do cidadão face ao poder

Estarei a entrar em contradição?” (Da Democracia na América, prefácio de João Carlos Espada, tradução
de Carlos Oliveira, Estoril: Princípia Editora Lda, 2007, p. 299). Paulo Castro RANGEL, no contexto de
uma análise do pensamento de Montesquieu, dá conta de que para o Autor «a democracia é definida como
a forma republicana de governo em que “o povo em corpo detém o soberano poder”» (“A separação dos
poderes segundo Montesquieu”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Stvdia
Ivridica, 61, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 349).
414
Norberto BOBBIO acrescenta que a democracia “se caracteriza por um conjunto de regras (primárias
ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões colectivas e mediante que
processos”. O Autor não deixa, porém, de reconhecer que “semelhante definição processual, ou formal,
ou, em sentido pejorativo, formalista, parece excessivamente pobre aos movimentos que se proclamam de
esquerda”. Considera, todavia, que “para além do facto de não existir outra definição tão clara como esta,
é ela a única que proporciona um critério infalível (independente de qualquer juízo de valor) entre dois
tipos ideais e opostos de formas de governo” (in O futuro da democracia, Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1988, p. 13 e p. 23). Para além disso, BOBBIO, em momento posterior do seu estudo (ps. 51-2),
admite um “apelo aos valores” que associa à sua compreensão da democracia essencialmente como “um
conjunto de regras processuais”, para além de recordar “as grandes lutas de ideais que levaram à adopção
das regras”. Os valores ou ideais (utiliza os conceitos indistintamente) que refere são o da tolerância; o da
não-violência; o da renovação gradual da sociedade através do livre debate das ideias e da mudança das
mentalidades e do modo de viver; o da fraternidade.
415
Para um aprofundamento das questões suscitadas pelo exercício da autoridade, cfr. Joseph RAZ, que
delimita o “seu” problema como “o da possível justificação da submissão da vontade de uma pessoa à
vontade de outrem, e do estatuto normativo das exigências de que alguém assim submeta a sua vontade”.
O Autor procura sustentar o exercício da autoridade na “tese da serventia”, que parte da ideia de que
“uma pessoa só pode ter autoridade sobre outra se houver razões suficientes para que a segunda se sujeite
a deveres nos termos determinados pela primeira” (“O Problema da Autoridade – Revisitando a Service
Conception”, Liber Amicorum de José de Sousa e Brito, Org. Augusto Silva Dias e outros, Coimbra:
Almedina, 2009, p. 315 ss). RAZ tenta ultrapassar, assim, “o paradoxo da autoridade”, que assume
diferentes formas relacionadas com a “alegada incompatibilidade da autoridade com a razão ou a
autonomia” e que se associa ao facto de “a noção de autoridade ser um dos conceitos mais controversos”
na filosofia legal e politica (cfr. Joseph RAZ, The Autority of Law, Essays on Law and Morality, 2.ª ed.,
Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 3).

232
punitivo do Estado. Ou seja: a qualificação como democrático de um sistema de justiça
penal radicará mais na forma como equilibra as suas finalidades de defesa dos valores
sem uma desprotecção em medida insuportável dos direitos fundamentais dos
indivíduos416 do que de uma efectiva participação destes indivíduos (de cada um deles,
ou de outros cidadãos vistos como os seus pares) na definição da solução para o conflito
concreto417. Se alguma participação é necessária à legitimação democrática da
criminalização, do processo ou da punição (só para dar alguns exemplos que
pressupõem formas de exercício da autoridade), ela não é, todavia, suficiente para uma
justiça penal merecer a qualificação de democrática.
Uma linha de argumentação interessante para se compreender a forma como a
decisão do conflito criminal por um terceiro dotado de autoridade pode não ser

416
Com grande interesse para o aprofundamento da reflexão sobre a existência de uma “teoria
republicana dos direitos do homem”, cfr. José Joaquim GOMES CANOTILHO, «O círculo e a linha – Da
“liberdade dos antigos” à liberdade dos modernos na teoria republicana dos direitos fundamentais»,
Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, coord. Jorge Miranda/Marco António Marques da Silva,
São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 179. O Autor sustenta a existência de um vínculo especial entre o
republicanismo e a “humanidade”: «com efeito, haverá algo de mais “intrigante” do que uma concepção,
como a republicana, que, ao lado do seu laicismo, anticlericalismo, antimetafisicismo, positivismo,
cientismo, faz constantemente apelo ao “sagrado”, à “religião da humanidade” e ao proselitismo?». E, de
seguida, recorre às palavras de Antero de Quental para afirmar a associação do republicanismo à
democracia: «Quem diz democracia diz naturalmente república. Se a democracia é uma ideia, a república
é a sua palavra; se é uma vontade, a república é a sua acção; se é um sentimento, a república é o seu
poema…E se à rectidão do seu código copiado do direito absoluto, ajuntarmos a fé dos seus crentes e a
santidade dos seus mártires, a república deixa de ser um governo para se tornar uma religião». Aquilo que
neste ponto se quer vincar, porém, é que, se podem estabelecer-se linhas de contacto entre o liberalismo
(antes sucintamente referido) e a democracia, ou entre o republicanismo e a democracia, ou entre o
liberalismo e o republicanismo, não devem escamotear-se as linhas de divergência. Assim, GOMES
CANOTILHO, caracterizando a teoria liberal dos direitos do homem na esfera do Estado, onde se situa o
direito público, afirma que nela vão «implícitos a primazia dos direitos inerentes ao livre
desenvolvimento da “personalidade individual” e a concepção do Estado como entidade de garantia de
direitos e não como instância prossecutora de fins colectivos». Nesta perspectiva, a questão é «como e por
que via se deve estabelecer a limitação recíproca das liberdades, de forma a que eu possa ser livre sem
escravizar outrem e, reciprocamente, os outros indivíduos possam ser livres sem eu ficar num estado de
sujeição». Ao invés, uma teoria republicana dos direitos do homem (que o Autor apresenta como
“autónoma e coerente, irreconduzível quer ao arquétipo grego clássico quer ao paradigma liberal”)
reconhece a importância da liberdade do homem individual, mas conhece também uma dimensão da
“humanidade” que não prescinde da referência ao social (ob. cit., ps. 182-3).
417
Luigi FERRAJOLI é um dos Autores que reconhece que o direito penal e o direito processual penal
podem ser vistos como verdadeiros instrumentos da democracia, ou como suas condições, precisamente
na medida em que limitem de forma adequada o exercício do ius puniendi estadual. Nessa medida, são
garantias contra o arbítrio e o recurso à força. O Autor afirma ainda – com relevância para a vocação
democrática da justiça penal mesmo que ela não corresponda à decisão das maiorias – que, além da
“dimensão política da democracia” relacionada com aquele “princípio das maiorias”, há como que uma
“dimensão substancial da democracia” associada à defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos
(“Justicia penal y democracia. El contexto extraprocesal”, Capítulo Criminológico, 16, 1988, p. 3 ss).
Para uma reflexão sobre a problemática da legitimidade do direito através de uma “conexão conceptual
entre a teoria do direito e a teoria da democracia” e que parte da referência a três modelos normativos de
democracia (o liberal, o republicano e o discursivo), cfr. Alessandra SILVEIRA, “Da argumentação
democrática”, Ars Ivdicandi, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, vol. I,
Stvdia Ivridica 90, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 1090 ss).

233
incompatível com as exigências democráticas é a encetada por Paul RICOEUR e
relacionada com a sua ideia de “justa distância”, que rege “a posição de terceiros
atribuída aos juízes entre as partes em conflito de um processo, como o distanciamento,
no espaço e no tempo, dos factos da causa a julgar, com intenção de os subtrair às
emoções demasiado imediatas”. Mas, também, justa distância “entre a vítima e o
delinquente, instaurada pela palavra que diz o direito”. E, finalmente, justa distância “a
preservar no interior de um espaço público contínuo em benefício do arguido
relativamente ao resto da sociedade”. O que é mais interessante, porém, é a forma como
o Autor faz repercutir esta sua ideia das justas distâncias (entre o decisor e as “partes”;
entre as “partes”; entre o agente do crime e o resto da comunidade) na problemática da
relação entre a justiça penal e a democracia, parecendo concluir que esta pode ser
favorecida (ao invés de prejudicada) pela existência daquela separação entre os sujeitos
do conflito e o terceiro dotado de autoridade que dita a resposta. As palavras de
RICOEUR, porém, são tão expressivas a este propósito que se lhes deve dar todo o
espaço que merecem: “esta ideia de justa distância é tanto mais preciosa quanto
aproxima o campo jurídico do campo político e, mais precisamente, da problemática da
democracia. O sonho de democracia directa, que voltou a estar na ordem do dia devido
aos meios de comunicação, não implica menos desprezo pelas mediações institucionais
características de uma democracia representativa do que os gritos a favor de uma justiça
expedita lançados por uma opinião pública que os media enchem de lágrimas e sangue.
Neste sentido, a conquista da justa distância diz respeito simultaneamente ao indivíduo
sujeito à justiça e ao cidadão que há em cada um de nós”418. Através de uma
argumentação que pode favorecer, também ela, a conclusão de que o modo dito
“tradicional” de administração da justiça penal talvez corresponda, mais do que
reacções desformalizadas ao conflito, às exigências da democracia, Jürgen
HABERMAS recorda, fazendo apelo ao pensamento de Ingeborg Maus, que “a
substituição do direito por (…) regulamentações brandas e desformalizadas prepara o
caminho no qual a justiça e a administração se subtraem à supremacia da legislação e,
com isso, à única força legitimadora do procedimento democrático da legislação”, o que
pode prejudicar a distribuição clássica dos poderes419.

418
Paul RICOEUR, “Autonomia e vulnerabilidade”, A Justiça e o Mal, dir. de Antoine Garapon/Denis
Salas, Lisboa: Instituto Piaget, 1999, ps. 164-5.
419
Jürgen HABERMAS, Direito e Moral, trad. de Sandra Lippert, Lisboa: Instituto Piaget, Colecção
Pensamentos e Filosofia, 1999, p. 44. A reflexão do Autor sobre o direito e a democracia é amplamente
desenvolvida na sua obra Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade (vol. I, trad. de Flávio

234
As opiniões citadas, se se afastam da ideia corrente na doutrina restaurativa de
que através da justiça penal se dá ao conflito uma resposta menos democrática,
pressupõem, para além disso, uma certa ligação entre o Estado liberal e o Estado
democrático, que talvez tivesse justificado uma consideração conjunta do pensamento
liberal e do pensamento democrático. A razão pela qual não fiz essa opção prende-se,
porém, com o facto de, por pretender relacionar cada um daqueles dois segmentos com
o segmento “justiça restaurativa”, ter julgado que se introduziria, numa abordagem dos
três vectores em conjunto, um factor de complexidade metodologicamente
desaconselhável. Decidi, assim, esboçar algumas linhas breves sobre o liberalismo e
sobre a justiça restaurativa, por um lado; e sobre a democracia e a justiça restaurativa,
por outro lado. Não, porém, com desconsideração pela ideia de Norberto BOBBIO de
que “o Estado liberal é um pressuposto não apenas histórico, mas também jurídico do
Estado democrático. O Estado liberal e o Estado democrático são interdependentes de
dois modos: na direcção que leva do liberalismo à democracia, no sentido em que são
necessárias certas liberdades para o exercício correcto do poder democrático, e na
direcção oposta, conduzindo da democracia ao liberalismo, no sentido em que é
necessário o poder democrático a fim de garantir a existência e a persistência das
liberdades fundamentais. Por outras palavras: é pouco provável que um Estado não-
liberal possa garantir um correcto funcionamento da democracia, e, por outro lado, é
pouco provável que um Estado não-democrático possa garantir as liberdades
fundamentais. A demonstração histórica desta interdependência reside no facto de que,
quando caem, o Estado liberal e o Estado democrático caem juntos”420.
O que se pretende afirmar é, ainda de forma muito simplificada, que não se pode
associar a democracia unicamente à afirmação sempre directa da vontade dos cidadãos,
devendo também compreender-se a importância da sua ligação ao cumprimento das
regras determinadas e ao funcionamento das instituições. Nessa medida, a democracia é
coerente com a existência de autoridade421, nomeadamente aquela que, na definição de

Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 10), na qual pretende precisamente
demonstrar que “a teoria do agir comunicacional, ao contrário do que se afirma muitas vezes, não é cega
para a realidade das instituições – nem implica anarquia”. Apesar disso, não deixa de reconhecer que
“qualquer potencial de liberdades comunicacionais, imprescindíveis em todo o Estado democrático de
direito, disposto a garantir efectivamente liberdades subjectivas iguais, traz no seu bojo certos germes
anárquicos”. HABERMAS confronta-se, na obra, com o desencanto relativamente ao direito que associa
às críticas oriundas das ciências sociais (p. 66 ss) e com a necessidade de encontrar sustentáculos para a
validade do direito diversos do racionalismo formalista relacionado com o pensamento liberal.
420
Norberto BOBBIO, O futuro da democracia cit., p. 26.
421
Não constitui propósito deste estudo a reflexão autónoma sobre o conceito de “autoridade”. Ele tem
sido, porém, insistentemente convocado para se distinguir uma forma de resposta ao conflito (a penal) que

235
Max WEBER, tem uma fonte racional-legal. Esta, que o Autor distingue da autoridade
de fonte tradicional e da autoridade de fonte carismática, pressupõe uma definição dos
seus próprios limites através da lei e a existência de uma estrutura que vela pelo
cumprimento das normas comuns. As pessoas que integram essa estrutura estão
submetidas à ordem racional-legal e a sua autoridade não radica sobretudo em si
próprias, mas antes no exercício das funções que lhes foram atribuídas422 423
. Trata-se,
nessa medida, de uma autoridade impessoal, ainda que, “para não ser cega”, não possa
prescindir do contributo das qualidades ou atributos individuais 424.
Reconhece-se que a alegação de uma certa carência democrática tem sido uma
das linhas de afirmação da crise da justiça penal425 e que a pretensão de uma forma de

repousa no reconhecimento de uma autoridade (que é “terceira” relativamente aos intervenientes no


conflito e que define a solução para ele), de uma outra forma de resposta (a restaurativa) que pretende a
pacificação do conflito sem que ela decorra de uma qualquer manifestação de autoridade. Assim, quando
se refere a “autoridade”, pretende-se, para os efeitos que importam a esta reflexão, traçar uma linha de
separação com propósitos analíticos entre dois modos de conceber a reacção ao crime, associando-a (ou
não) a uma decisão ditada por um terceiro e que se impõe àqueles que são os seus destinatários.
Conhecem-se vários problemas associados aos conceitos de “ordem” e de “autoridade”. Sabe-se, a título
de exemplo, que Paul RICOEUR afirma que “sob o termo de ordem, dissimula-se a maior dificuldade da
filosofia ético-jurídica, a saber, o estatuto de autoridade ligado a essa ordem simbólica, precisamente o
que faz com que seja uma ordem”. Para o Autor, a “autoridade” pressupõe várias características, entre as
quais elenca “a antecedência” (porque “a ordem precede-nos, cada um de nós tomado um a um”), a
“superioridade” (porque ela está “acima de nós, à cabeça das nossas preferências), a “exterioridade” (e o
saber-se “de onde vem a autoridade que está lá desde sempre” é, para RICOEUR, o “cerne do enigma do
fenómeno político”). Paul RICOEUR, “Autonomia e vulnerabilidade”, A Justiça e o Mal, dir. de Antoine
Garapon/Denis Salas, Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 158. Definido o estrito sentido em que a reflexão
sobre a autoridade interessa a este estudo, as muitas outras questões que convoca permanecer-lhe-ão,
porém, alheias.
422
Max WEBER (Economia e Sociedade – Fundamentos da Sociologia Compreensiva, vol. 2, trad. de
Regis Barbosa/Karen Barbosa, São Paulo: Editora UNB, 2004, p. 526) diferencia os três “fundamentos de
legitimidade de uma dominação”.
423
Entre nós, considere-se, a título de exemplo, o pensamento de Miguel Nogueira de BRITO, que refere
“os desafios colocados pelo exercício da autoridade, e respectiva justificação, à teoria da democracia”,
acrescentando que “estes desafios visam permitir que a autoridade, na medida em que o respectivo
exercício envolve sempre uma renúncia da deliberação por parte dos cidadãos que a ele se acham sujeitos
e uma limitação da sua autonomia, seja questionada no âmbito do debate público e visam ainda permitir a
responsabilização daqueles que a exercem perante os cidadãos” (“Autoridade e argumentação numa
ordem constitucional”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa,
Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 340).
424
Miguel MORGADO (in Autoridade, Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010, p. 71)
sublinha, com interesse, o facto de esta autoridade impessoal poder ser mais útil à democracia do que a
autoridade carismática. Sobre esta, afirma que “ao contrário da autoridade legal-racional e da autoridade
tradicional, enquadradas por regras conhecíveis, a autoridade carismática não se deixa orientar por
padrões legais nem pelo passado”, o que faz dela “uma forma de revolução e de agitação” que “apela à
energia emocional de uma obediência devota”. O Autor sublinha o contraste com aquela “autoridade
impessoal (institucional) que triunfa nas democracias modernas. Esse contraste é tanto mais vincado
quanto se nota que a autoridade carismática não raras vezes confrontou e esmagou a autoridade legal-
processual cara ao regime democrático”. Se é certo que MORGADO parte da catalogação das fontes da
autoridade proposta por WEBER, também se julga que a autoridade pode resultar apenas de uma ou antes
de uma conjugação de duas ou eventualmente três daquelas fontes.
425
Sérgio Garcia RAMÍREZ (“Reflexiones sobre democracia y justicia penal”, Homenaje al Dr. Marino
Barbero Santos: in memoriam, vol. I, Dir. Arroyo Zapatero/Berdugo Gómez de la Torre, Ediciones de la

236
resolução do conflito mais democrática tem sido uma das vantagens da proposta
restaurativa. Todavia, também se admite a existência da autoridade democrática, pelo
que não se julga que uma limitação democrática da justiça penal decorra, de forma
automática e suficiente, da existência de uma intervenção da autoridade na definição da
solução para o conflito criminal.
Além disso, também não se crê que o facto de os sujeitos incumbidos do
exercício dessa autoridade não serem eleitos faça automaticamente recair sobre
determinado sistema de justiça o estigma da incompatibilidade com a democracia426, na

Universidad de Castilla-La Mancha/Ediciones Universidad de Salamanca, 2001, p. 299), a título de


exemplo, afirma que “a penal é uma justiça sob suspeita”, poque nela há um “espaço sombrio” que se
relaciona com “a zona crítica dos direitos humanos mas também – em suma – da democracia”. E o Autor
afirma, segundo se crê com razão, que um dos espaços mais problemáticos na afirmação de uma justiça
penal democrática se prende com o reconhecimento de uma certa desigualdade. Uma justiça penal que
seja discriminatória porque associada a uma excessiva representação, nas condenações e na execução da
pena de prisão, dos membros dos grupos sociais mais desfavorecidos, acompanhada de elevadas cifras
negras na denominada “criminalidade dos poderosos”, suscita reservas à sua qualificação como
democrática, precisamente na medida da relevância da ideia de “igualdade” para o preenchimento do
conceito de “democracia”. Todavia, o Autor também reconhece a “integração”, quer no direito penal,
quer no direito processual penal, de “princípios que caracterizam a justiça democrática”, de que são meros
exemplos o da intervenção mínima ou o da preferência pelas soluções de consenso. Com interesse, afirma
a importância do papel do juiz na prolação de uma decisão penal que corresponda a uma administração
democrática da justiça penal: “não é desconhecido que o juiz democrata alivia a sorte do processo penal
sob a ditadura – se lhe sobrevive –, e que o autoritário a faz naufragar em plena democracia” (ob. cit., p.
307).
426
É conhecida, nesta matéria, uma certa contraposição entre as soluções do sistema continental europeu
e do sistema anglo-saxónico, sendo que neste último se adopta mais largamente o critério da eleição dos
operadores judiciários. Julga-se que a análise feita por Alexis de TOCQUEVILLE do sistema judicial
americano, no contexto de uma ponderação daquilo que “modera a tirania da maioria nos Estados
Unidos”, permanece, a este propósito, merecedora de referência. O Autor parte da verificação de que
“quando visitamos os americanos e estudamos as suas leis, vemos que a autoridade que eles concederam
aos juristas e a influência que os deixaram ter no governo constituem hoje a maior barreira contra os
desvios da democracia”. O ponto que na sua análise particularmente interessa a este estudo prende-se,
porém, com a figura do júri, definida como “um certo número de cidadãos escolhidos ao acaso e
revestidos momentaneamente do direito de julgar”. Não deixa de ficar clara uma certa resistência inicial
do Autor ao tribunal de júri: “a instituição do júri nasceu numa sociedade pouco evoluída, onde apenas se
submetia aos tribunais simples questões de facto e não é tarefa fácil adaptá-lo às necessidades de um povo
muito civilizado, quando as relações entre os homens se multiplicaram singularmente, adquirindo um
carácter sapiente e intelectual”. Todavia, essa resistência inicial parece ser ultrapassada e
TOCQUEVILLE admite-o a partir da ideia de que “atribuir ao júri a repressão dos crimes parece-me ser
uma medida destinada a introduzir uma instituição eminentemente republicana no governo. Explico-me: a
instituição do júri pode ser aristocrática ou democrática, consoante a classe a que pertencem os jurados,
mas conserva sempre um carácter republicano, na medida em que coloca a direcção real da sociedade nas
mãos dos governados, ou de uma parte deles, e não na dos governantes” (in Da Democracia na América,
prefácio de João Carlos Espada, tradução de Carlos Oliveira, Estoril: Princípia Editora Lda, 2007, p. 311
ss). Não se julga, porém, que desta associação da figura do tribunal de júri ao republicanismo ou à
democracia possa decorrer a conclusão de que os países em que ela não existe (ou onde tem menor
dimensão) careçam de um sistema de justiça democrático. Como se procurou afirmar, o carácter
democrático de um sistema de justiça penal deve ser avaliado também em função de outros indicadores
que não os exclusivamente electivos. De resto, o próprio TOCQUEVILLE, depois de enunciar um
conjunto de vantagens que imputa ao tribunal de júri – “o respeito pelo facto julgado e pela ideia do
direito”, a formação do “juízo” e o aumento da “clarividência do povo” – acaba por afirmar que “não sei
se o júri é útil para os que são processados, mas estou certo de que é muito útil para os que julgam.

237
medida em que esta não se pode associar – como antes se viu – exclusivamente a um
procedimento electivo, antes se devendo ponderar a forma como a construção do
próprio poder judicial garante a sua independência face aos outros poderes e a forma
como assegura a maior defesa possível da liberdade427.
Depois de uma ponderação mais ampla do conceito de autoridade, Miguel
MORGADO detém-se na reflexão sobre a “autoridade especificamente democrática”. E,
julga-se que com interesse para o ponto que é aqui objecto de estudo, o Autor afirma
que esta “tem de conseguir efectuar uma conciliação tão completa quanto possível da
liberdade, da espontaneidade e racionalidade individuais, com as suas próprias
exigências. Tem de conseguir conciliar a subjectividade e o julgamento individual com
a objectividade característica da autoridade em geral. O que vale por dizer que a
subjectividade tem de ser atraída para um reconhecimento universal da necessidade,
utilidade e verdade da autoridade”428.
A razão pela qual se atribuiu ênfase a esta afirmação prende-se com a forma
como nela se pode encontrar uma chave para a tentativa de compreensão dos campos de
actuação da justiça penal e da justiça restaurativa em moldes que, de certo modo,
aproximam as duas formas de resposta ao conflito no que respeita ao seu carácter liberal
e democrático. A justiça penal poderá considerar-se liberal e democrática enquanto o
seu funcionamento for regido por um estrito princípio da necessidade: é sabido que uma
sociedade liberal e democrática deve perseguir valores que se não confundem com os
interesses de algum ou alguns dos seus cidadãos e, nessa medida, a protecção desses
valores terá de ser garantida através da autoridade com independência daqueles
interesses e das manifestações de vontade que lhes estão associadas. A democracia

Encaro-o como um dos meios mais eficazes de que se pode servir a sociedade para a educação do povo”
(últ. ob. cit., ps. 322-324).
427
No contexto de uma reflexão sobre a justiça e a democracia, deve ter-se em conta a afirmação de José
de Sousa e BRITO de que “o carácter democrático de uma decisão depende, por um lado, da sua adopção
directa ou indirecta pela maioria, mas depende também da sua conformação com as razões do próprio
princípio democrático, isto é, do Estado de direito democrático ou democracia como sistema de
princípios”. Imediatamente antes, o Autor notara que “o princípio democrático seria negado se existisse
um poder que não fosse constituído e exercido pelo povo, mesmo se esse exercício não passasse da
intervenção indirecta dos representantes eleitos pelo povo na designação dos titulares do poder. Isto vale
inclusivamente para a designação dos juízes do tribunal constitucional. Eles também tiram a sua
legitimidade democrática do sufrágio universal, embora indirectamente, através da intervenção dos
directamente eleitos no processo de designação dos juízes. O sufrágio universal está, portanto, na origem
de toda a decisão democrática, mas não assegura o carácter democrático da decisão” (“Falsas e
verdadeiras alternativas na teoria da justiça”, Ars Ivdicandi, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
António Castanheira Neves, vol. I, Org. Jorge de Figueiredo Dias/José Joaquim Gomes Canotilho/José de
Faria Costa, Stvdia Jvridica 90, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p.
329).
428
Miguel MORGADO, últ. ob. cit., p. 87.

238
exige, portanto, que em cada momento se encontre o ponto óptimo de defesa da
liberdade do indivíduo e de defesa do interesse comum. Daqui decorre que uma justiça
penal democrática supõe a procura permanente do equilíbrio entre a liberdade e a
ordem, sendo que a restrição daquela só pode aceitar-se até certo ponto e enquanto for
indispensável para a obtenção desta429.
Por outro lado, e no que respeita agora à delimitação dos espaços de intervenção
da justiça penal e da justiça restaurativa à luz de um critério coerente com a ideia de
democracia, a exigência da necessidade da intervenção da autoridade pressupõe que ela
só ocorra quando não for possível a protecção dos vários interesses envolvidos através
“da liberdade, da espontaneidade e racionalidade individuais” antes referidas por
Miguel MORGADO430. Ou seja: o surgimento de práticas restaurativas, por favorecer a
solução do conflito de forma divertida das instâncias formais de controlo (ainda que
nem sempre seja esse o seu efeito), contribuirá para uma intervenção da justiça penal (e
da autoridade que lhe é inerente) mais limitada pelo critério de necessidade e, nessa
medida, tendencialmente mais democrática.

5.6. As exigências de liberdade, de responsabilidade e de solidariedade (o


pensamento republicano e a teoria da justiça)

O aprofundamento da reflexão sobre a proposta restaurativa confrontada com


um ideal de justiça transporta consigo a ideia de que o sentido da justiça, hoje, pode já
não ser inteiramente coincidente com o conceito de justiça herdado dos pensamentos
iluminista e liberal.

429
É a partir do “princípio da liberdade” que Jorge MIRANDA distingue os regimes liberais ou
pluralistas, dos regimes autoritários e dos regimes totalitários, numa diferenciação que não se limita à
afirmação, num plano quantitativo, do “grau de liberdade reconhecida ou deixada às pessoas” (que é
“máximo nos regimes liberais e mínimo ou inexistente nos regimes totalitários”). Quanto ao ponto que
aqui sobretudo interessa (o ponto do equilíbrio entre a ordem e a liberdade), o Autor afirma que «não
raro, na experiência histórica, a invocação da “ordem pública” tem sido feita como conceito ou preceito
beligerante contra a liberdade. Mas a ordem pública – conjunto de condições externas necessárias ao
regular funcionamento das instituições e ao pleno exercício dos direitos – tem carácter instrumental, não
se justifica de per si” (“Os direitos fundamentais e o terrorismo: os fins nunca justificam os meios, nem
para um lado, nem para outro”, Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais – Visão
Luso-Brasileira, São Paulo: Quartier Latin, 2006, ps. 173-4 e 177).
430
Miguel MORGADO acrescenta (últ. ob. cit., p. 94) que “os princípios de liberdade e de igualdade em
que se alicerçam as sociedades modernas também trazem consigo a promessa de conciliação da liberdade
subjectiva dos indivíduos que as compõem com a autoridade. É nessas sociedades que a autoridade se
pode afirmar em conjugação com afirmação da liberdade individual, permitindo que a autoridade deixe de
aparecer como uma imposição externa. A autoridade poderá deste modo recolher uma justificação e uma
estabilidade invejáveis já que se alimenta directamente do fundamento moral incontornável das
sociedades modernas: a liberdade individual”.

239
Quando se pensa o processo penal a partir daquele ideário iluminista e liberal, há
dois vectores essenciais: a ordem e a liberdade. E sabe-se que há um ponto a partir do
qual a liberdade não pode ceder perante a ordem, porque, como escreveu Miguel
TORGA, “livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um
destino”431.
Todavia, quando se pensa a justiça contemporânea de uma forma mais global,
talvez se deva concluir que ela não pode bastar-se com a ordem e com a liberdade. Ela
supõe também a solidariedade432. Nas palavras de Frederico da COSTA PINTO, “um
processo penal que ignore as vítimas dos crimes não realiza plenamente o objectivo da
justiça penal, nem no sentido ideal, nem na dimensão material do Estado de Direito,
fundado sobre o respeito e a dignidade das pessoas”433. De certo modo, essa exigência
de solidariedade conforma também a intervenção penal relativa ao agente do crime,
constituindo vector fundante de orientação tão essencial como a da socialização.
A esta ideia não foi, de resto, alheio o próprio legislador português, podendo ler-
se por exemplo na exposição constante do Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro,
que “as transformações políticas e sociais mais recentes, e mesmo o avanço da reflexão
teórica mais ou menos empenhada, têm entretanto feito aflorar novas e importantes
linhas de clivagem e de conflitualidade entre os fins do processo penal. Está no primeiro

431
Cfr. Miguel TORGA,“Conquista”, Cântico do Homem, 4.ª edição, Coimbra, 1974, p. 55.
432
Segundo José da CUNHA RODRIGUES, «sendo também um “destino social”, a liberdade não pode
alhear-se da solidariedade» (in Representações da Justiça em Miguel Torga, Coimbra: Coimbra Editora:
1995, p. 24). Curiosamente, no contexto de uma ponderação crítica da forma como a Escola Clássica do
direito penal considerava o delito (influenciada pelo acolhimento de várias ideias associadas ao
positivismo penal), há já mais de um século afirmava António HENRIQUES DA SILVA que “todos os
progressos na realização da justiça parece resultarem, com effeito, de uma comprehensão mais lúcida e de
um sentimento mais profundo da egualdade dos seres perante as necessidades, os soffrimentos, certas
condições de vida, emfim; todos elles se caracterizam como ascensões graduaes à egualdade no goso das
garantias sociaes” (in Elementos de Sociologia Criminal e Direito Penal, Lições do ano lectivo de 1905-
1906 na 14.ª cadeira da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Imprensa da Universidade,
1905, p. 30).
433
Frederico da COSTA PINTO, “O estatuto do lesado no processo penal” cit., p. 687. Para o Autor, é
“duvidoso que se possa actualmente continuar a apresentar um Código Penal apenas como a Magna Carta
do delinquente, como fazia VON LISZT”. Uma tal perspectiva, relacionada com a “adesão à concepção
oitocentista do Estado de matriz liberal”, revela-se, ainda segundo COSTA PINTO, “inadequada, porque
insuficiente, ao Estado de Direito material, com uma forte componente social, dos finais do século XX”.
Apesar de se compreender bem o que afirma o Autor e de se lhe reconhecer razão, continua a julgar-se
que, atenta a função do direito e do processo penal, os Códigos Penais e Processuais Penais devem ser
sobretudo Magnas Cartas dos delinquentes – que não permitam, porém, a instrumentalização das vítimas
e o desrespeito dos seus direitos. A tutela das necessidades concretas das vítimas – para além do seu
eventual interesse na justiça da punição penal – será, porém, melhor assegurada por outros instrumentos.
Não é, de resto, por acaso que o grosso dessa “legislação solidária” é exterior às codificações penais,
como reconhece COSTA PINTO quando menciona o regime de protecção às vítimas de crimes violentos,
o regime de protecção às mulheres vítimas de violência, o adiantamento pelo Estado da indemnização
devida às vítimas de violência conjugal ou o regime da rede pública de casas de apoio às mulheres
vítimas de violência (últ. ob.cit., p. 688).

240
caso o triunfo do moderno Estado de direito social, cujos reflexos no processo penal
(socialização, conciliação, transacção, oportunidade, etc.) podem colidir drasticamente
com as exigências ancoradas em mais de dois séculos de afirmação da vertente
meramente liberal do Estado de direito clássico”.
O reconhecimento dessa solidariedade devida às vítimas de crimes (e aos seus
agentes) parece ser, de facto, elemento nuclear do pensamento restaurativo sobre aquela
que é uma reacção justa ao crime. Ora, a uma tal verificação seria fácil opor-se um certo
decaimento do Estado Social, quer ele seja ideologicamente sustentado, quer resulte não
de uma escolha mas antes das circunstâncias associadas a várias crises434. Todavia, por
mais que hoje se discuta essa limitação da ideia da solidariedade do todo face ao
indivíduo, continua a julgar-se que é sobretudo nela que se funda a própria existência do
todo ou da comunidade, pelo que é irrenunciável.
Por outro lado, conhecidas as dificuldades que o propósito do Estado Social
actualmente enfrenta, não deixa de continuar a sustentar-se a sua vigência desde logo no
próprio texto constitucional. Segundo João LOUREIRO, “sem prejuízo das
modificações, afirmaremos que o Estado Social foi consagrado já na versão originária
da CRP e persiste como princípio estruturante da nossa ordem jurídico-
constitucional”435.

434
Muito criticamente, Loïc WACQUANT (Punir Les Pauvres – Le Nouveau Gouvernement de
l’Insécurité Sociale, Agone: Marselha, 2004, p. 61 ss) dá conta de uma certa prevalência, a partir do
exemplo dos Estados Unidos da América, da ideia de caridade sobre a ideia de solidariedade, reflectindo
sobre as consequências dessa opção ao nível do “Estado Penal” que substitui o “(semi) Estado
Providência”. Na opinião do Autor, “mais do que em Estado Providência, dever-se-ia falar em Estado
Caridoso, dado que os programas dedicados às populações vulneráveis foram sempre limitados,
fragmentários e isolados do resto das actividades estaduais, imbuídos que estão por uma concepção
moralista e moralizante da pobreza enquanto produto das carências individuais dos pobres. O princípio
que guia a acção pública norte americana na matéria não é a solidariedade mas sim a compaixão; o seu
fim não é fortalecer os laços sociais (e menos ainda reduzir as desigualdades), mas antes aliviar a miséria
mais gritante e manifestar a simpatia moral da sociedade face aos seus membros mais desfavorecidos”.
Para além disso, o Autor associa a expansão do encarceramento como forma de reagir ao crime (em
detrimento das políticas assistenciais) a uma ideia tendencialmente generalizada de welfare dependency
ou narcotic of welfare: «os pobres voltam-se para o crime porque o Estado, prestando-lhes auxílio com
demasiada agilidade, mantem-os na preguiça e no vício, condenando-os assim à pior das “dependências”»
(ob. cit., p. 167). Este discurso, ainda segundo WACQUANT, tornou-se útil sobretudo a partir dos anos
90 para sustentar o decaimento do Welfare State e recentrar a missão do Estado na preservação da ordem
à custa dos cidadãos mais desfavorecidos e considerados perigosos.
435
Para um aprofundamento da questão, cfr. João Carlos LOUREIRO, “Adeus ao Estado Social? O
Insustentável Peso do Não-Ter”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. 83, 2007, p. 99 ss. Na sua
opinião, “a Constituição continua a incorporar uma ideia de democracia económica, social e cultural, que
importa efectivar. Não sob a batuta dos que se proclamaram senhores da história, que conduziram a uma
desestruturante obesidade estatal, cujos efeitos nocivos pagamos com juros; mas também não em nome de
um novo e pragmático economicismo, que reduz o Estado a uma anoréxica magreza, indiferente ao
sofrimento e à dor dos homens” (ob. cit., p. 101). O Autor não deixa, porém, de reconhecer «algumas das
“coisas novas” que desafiam o Estado Social», nomeadamente a globalização, a questão demográfica, a

241
Aquilo que se acabou de afirmar não logra iludir, porém, uma interrogação que
parece nascer da verificação de um certo paradoxo na reflexão em torno do horizonte
político e filosófico da proposta restaurativa. Procure-se enunciar essa interrogação na
sua formulação mais simples: assistirá sentido à invocação do pensamento da
distribuição nos moldes de um Estado de Direito Social relativamente a uma proposta
de reacção ao crime que parece prescrever o retrocesso da intervenção estadual,
admitindo, consequentemente, um maior espaço de regulação privada do próprio
conflito criminal? A justiça restaurativa, que parece implicar um retraimento do papel
do Estado no exercício do ius puniendi (através de uma certa devolução aos
intervenientes no conflito do poder de reacção ao mesmo que exclui a possibilidade da
pena, sobretudo da prisão), poderá reivindicar-se, cumulativamente com essa vocação
liberal, também uma vocação social inerente à exigência de “mais Estado” própria do
pensamento da solidariedade e da distribuição436?
A partir desta perplexidade, ter-se-á de questionar se a proposta restaurativa
deverá, de facto, associar-se preferencialmente ao horizonte filosófico e político do
Estado social, ou antes a um pensamento liberal extremado orientado para um
retraimento do Estado e uma consequente expansão da liberdade e da responsabilidade
do indivíduo na solução dos seus problemas. Aquilo que se pensa, como ponto de
partida, é que a reivindicação de mais liberdade e a reivindicação de mais solidariedade
não têm de ser definitivamente inconciliáveis.

questão económico-financeira em um contexto de escassez e de racionamento, a questão da


“pluriformidade”, a questão do conhecimento, a questão familiar e a questão dos riscos.
436
António HESPANHA, a propósito do positivismo sociológico, não deixa de sublinhar a forma como a
exigência de solidariedade pode restringir a exigência liberal de uma intervenção mínima do Estado: «a
república (e a ordem jurídica e moral a ela ligada) representa um valor supra-individual, já que a
sociedade, longe de ter origem num contrato livre entre indivíduos, decorria de um fundamento objectivo
– o princípio da solidariedade. Tal princípio, antes de conferir direitos egoístas, obrigava ao cultivo de
uma moralidade cívica, correspondente à interiorização das exigências da solidariedade que marcariam o
organismo social (…). Como se vê, neste contexto, a liberdade e, consequentemente, os direitos
individuais, adquirem um estatuto, não originário, mas derivado. Para além de que, aos “direitos-
liberdades” (droits-libertés) – conferidos ao cidadão contra o poder do Estado – se tendem a sobrepor os
“direitos-positivos” (droits-créances) – que consistem em direitos a prestações ou serviços do Estado». A
esta ideia acrescenta o Autor a afirmação, ainda no horizonte temporal do século XIX, de que “a partir
dos anos 30, a superação do individualismo contratualista manifesta-se também no sociologismo
comtiano, que insiste no anti-individualismo e na solidariedade social”, tendência essa que se vai
mantendo até ao século XX e se “manifesta no fascismo e no nazismo”. A conclusão de António
HESPANHA acaba por ser a de que «o tópico de uma ruptura “liberal”, quer com a sociedade orgânica do
Antigo Regime, quer com a sociedade regulada do Estado de Polícia, criou uma imagem distorcida do
quadro ideológico marcante durante todo o século XIX. Que não foi o quadro liberal, mas antes um
quadro fortemente marcado pela presença da comunidade, como todo orgânico, da razão como regra que
se impunha à vontade constituinte, do Estado como personificação da Nação, da lei como momento
decisivo para a constituição dos direitos» (in Guiando a Mão Invisível – Direitos, Estado e Lei no
Liberalismo Monárquico Português, Coimbra: Almedina, 2004, ps. 190-1; 195-6).

242
Julga-se que a pertinência da associação da proposta restaurativa aos ideais de
solidariedade face aos mais desfavorecidos característicos do Estado de Direito Social
terá ficado, pelo menos em parte, justificada ao longo das considerações anteriores. Na
medida em que quer o agente do crime, quer a sua vítima surgem como indivíduos em
uma situação de específica necessidade, afirma-se uma exigência de solidariedade do
Estado relativamente a eles, ainda que essa solidariedade se deva manifestar na oferta de
meios que lhes permitam enfrentar e resolver o problema, e não já na solução
heterónoma do próprio problema associado ao conflito criminal.
Impõe-se, portanto, que se reflicta, de seguida, sobre a possibilidade de
chamamento, para um enquadramento porventura mais completo da justiça restaurativa,
também do pensamento liberal, em linha que pode parecer, pelo menos à primeira vista,
antagónica com a argumentação antes esboçada.
Partir-se-á, para o efeito, de uma compreensão lata do liberalismo, associando-o
à defesa da liberdade em sentido amplo e à rejeição de todos os autoritarismos;
relacionando-o, ainda, com a afirmação da liberdade de iniciativa individual e com a
compreensão da intervenção estadual na resolução dos problemas dos cidadãos como
estritamente residual437. Esta linha de pensamento é, a um certo olhar, coerente com a
proposta restaurativa e com o relevo que atribui à solução do conflito criminal através
da participação voluntária dos sujeitos que foram intervenientes directos naquele
conflito, fazendo, portanto, retroceder a solução estadual a um papel subsidiário ou
residual.
Não obstante, a afirmação da existência de alguns pontos de contacto entre o
pensamento liberal e a proposta restaurativa não pode prescindir de certos cuidados na

437
Não se desconhece a existência de uma pluralidade de definições de liberalismo nem, porventura com
maior interesse, a sua partição em distintas correntes ou diversos tipos. Como afirma João Ricardo
CATARINO (O liberalismo em questão – justiça, valores e distribuição social, Universidade Técnica de
Lisboa/Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa: 2009, p. 59 ss), «existem muitos
“liberalismos” com conceitos concorrentes de bem e diversas concepções sobre estruturas institucionais e
práticas sociais. Para além das variantes clássica e moderna, alguns autores falam do liberalismo
americano, britânico e europeu». O Autor explicita várias outras distinções, nomeadamente entre o
liberalismo democrático, o conservador e até o socialista ou entre o “velho” e o “novo” liberalismo.
Parece claro que adentrar essa reflexão permanece alheio aos propósitos deste estudo. Assim, esclareça-se
que o que se pretende é, tão-somente, confrontar a proposta restaurativa com um conjunto de grandes
características que, como entende John GRAY, subjazem a qualquer concepção liberal, nomeadamente o
“individualismo” e a afirmação da primazia do indivíduo perante o meio social, o “igualitarismo”
relacionado com o reconhecimento a todos os indivíduos do mesmo estatuto cidadão, ou o “melhorismo”,
relacionado com a afirmação da tendência para o constante aperfeiçoamento do homem e das suas
instituições” (cfr. John GRAY, O Liberalismo, Lisboa: Editorial Estampa, 1988, p. 12 ss).

243
precisão daquilo que se pretende significar438. Em primeiro lugar, porque a partir da
ideia de que existem “vários liberalismos”, parece poder afirmar-se que “os liberais
modernos, de finais do século XIX em diante, afirmam que o Estado deve igualmente
preocupar-se, em certa medida, com os problemas da pobreza, habitação, saúde,
educação e outros problemas sociais”, sendo que os partidários deste entendimento
“sustentam que a preocupação com tais questões decorre das exigências de liberdade, já
não apenas entendida como liberdade negativa mas também positiva”. Este “novo”
liberalismo, por oposição ao ”velho” liberalismo centrado nos valores da “liberdade e
segurança”, privilegia os valores da “igualdade e da fraternidade”439. Em segundo lugar,
a conexão entre o pensamento liberal e a proposta restaurativa deve ser também
balizada pela ideia de que nesta proposta restaurativa não vai implícita a retirada do
Estado no que respeita à resposta ao crime, mas antes uma certa reformulação do
sentido da sua intervenção: ou seja, se os defensores da justiça restaurativa pretendem
um direito penal (estadual) mais mínimo, reivindicam por outro lado uma maior
intervenção estadual na modelação e oferta de programas restaurativos, as mais das
vezes no contexto de sistemas públicos de gestão de conflitos. E, quando se entende que
a resposta restaurativa pode não ser excludente da penal, mas sim cumulativa na medida
em que responde a distintas necessidades e é presidida por finalidades autónomas,
continua a admitir-se o exercício do ius puniendi estadual, a que acresce “mais Estado”
na criação e gestão de práticas restaurativas.

438
Sabe-se que quando se associa um conceito positivista do direito e a predominância de uma
racionalidade formal ao pensamento liberal, esbate-se a proximidade entre este pensamento liberal e a
proposta restaurativa. Essa associação é visível, por exemplo, em Jürgen HABERMAS (Direito e Moral,
trad. de Sandra Lippert, Lisboa: Instituto Piaget, Colecção Pensamentos e Filosofia, 1999, ps. 17 a 21),
que parte do «“conceito duplo” “formal material” com o qual Weber determina, até hoje, a (…)
discussão» para sujeitar a crítica as ideias de WEBER da racionalidade própria (formal e independente da
moral, centrada no procedimento racional de um legislador democrático) do direito. A tese de
HABERMAS, pelo contrário, é a de que “a legalidade pode, exclusivamente, receber a sua legitimidade
de uma racionalidade de procedimento de grande valor moral”. O que a este momento da reflexão
sobretudo interessa, porém, é a ideia imputada por HABERMAS aos defensores do racionalismo liberal
de que “variações deste modelo liberal podem ser entendidas como um prejuízo da qualidade formal do
direito”. Acrescenta que “as alterações do sistema jurídico que surgem com o estado social tinham
também obrigatoriamente de abalar a autocompreensão liberal do direito formal”. O pensamento liberal
surge, a partir desta linha de argumentação, associado a uma rejeição da desformalização, na medida em
que esta originaria um distanciamento do procedimento que dava legitimidade ao direito e que
pressupunha a aplicação de uma lei geral e abstracta (oriunda de um legislador democrático) por um
terceiro imparcial (e imparcial quer relativamente às “partes” do conflito, quer quanto ao legislador, por
força de um cumprimento estrito do princípio da separação de poderes). O que com este parêntesis se quis
sublinhar foi, assim, apenas que, se pode afirmar-se a influência de algumas ideias liberais na proposta
restaurativa, existem outros segmentos argumentativos associados ao liberalismo que dela em muito se
distanciam. O que convoca, naturalmente, a existência de outras influências, como a do pensamento do
estado social ou a do pensamento republicano.
439
João Ricardo CATARINO, O liberalismo em questão – justiça, valores e distribuição social,
Universidade Técnica de Lisboa/Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa: 2009, ps. 60-1.

244
Talvez possa afirmar-se, em jeito de resumo no que a esta questão respeita, que
se o pensamento restaurativo partilha com a ideologia liberal a crença na autonomia dos
indivíduos para a procura das soluções mais adequadas às suas necessidades, não enjeita
o pensamento da solidariedade que é trave-mestra do Estado de Direito Social nem
postula uma demissão do Estado face ao imperativo de encontrar soluções globalmente
justas para os conflitos criminais440. O pensamento da liberdade e o pensamento da
solidariedade deverão convergir numa delimitação dos conceitos de democracia e de
cidadania que não se esgote em meras abstrações de direitos e de deveres, mas que se
concretize, antes, numa certa compreensão da relevância da subjectividade441.
Todavia, se através de uma ponderação alicerçada no binómio liberdade e
solidariedade se tem sobretudo em conta o direito do indivíduo confrontado com o
poder punitivo do Estado ao respeito pelos seu direito à liberdade em um sentido amplo
e o direito de qualquer indivíduo em uma situação específica de desfavorecimento a
receber auxílio do todo social, existe um terceiro vector que se não pode desconsiderar
quando se procura compreender o contexto filosófico e ideológico que se julga que é o
da justiça restaurativa. Esse vector é o da responsabilidade442 e, por força dele, o

440
Reconhece-se a tensão que vive na afirmação da necessidade de conciliar tendências a certos títulos
antagónicas. A busca de soluções de “concordância prática” parece tornar-se, porém, particularmente
incontornável neste tempo de tantas crises. Como afirma João Ricardo CATARINO (últ. ob. cit., p. 129),
ainda que em contexto problemático não inteiramente coincidente, “urge (…) repensar o modelo,
procurando claramente evoluir em dois eixos: de um lado devolvendo ao cidadão as suas próprias
responsabilidades pessoais na gestão dos seus mais directos e pessoais interesses e, por outro lado,
fornecer uma provisão pública que, partindo deste postulado inicial de responsabilidade, seja capaz de
promover a sua qualificação, lhe devolva a capacidade para decidir e, ao mesmo tempo, prestando toda a
ajuda a uma existência condigna, enquanto o sujeito dela carecer”.
441
Para um aprofundamento desta ideia, tenha-se em conta a afirmação de Boaventura de SOUSA
SANTOS de que “a nova teoria da democracia – que também poderíamos designar por teoria democrática
pós-moderna para significar a sua ruptura com a teoria democrática liberal – tem, pois, por objectivo
alargar e aprofundar o campo político em todos os espaços estruturais da interacção social. No processo, o
próprio estado político liberal, o espaço da cidadania, sofre uma transformação profunda. A diferenciação
das lutas democráticas pressupõe a imaginação social de novos exercícios de democracia e de novos
critérios democráticos para avaliar as diferentes formas de participação política. E as transformações
prolongam-se no conceito de cidadania, no sentido de eliminar os novos mecanismos de exclusão da
cidadania, de combinar formas individuais com formas colectivas de cidadania e, finalmente, no sentido
de ampliar esse conceito para além do princípio da reciprocidade e simetria entre direitos e deveres. Aqui
entronca a necessidade de uma nova teoria da subjectividade (in Pela Mão de Alice – O Social e o
Político na Pós-Modernidade, 7.ª ed., Porto: Edições Afrontamento: 1999, p. 237).
442
No contexto de uma reflexão sobre o “republicanismo reinventado por Habermas”, José AROSO
LINHARES refere que a solução já não se encontra «nem na concepção liberal do Estado enquanto
“guardião de uma societas económica” (…), nem na concepção republicana do Estado enquanto
comunidade “ético-material”…mas num “terceiro modelo de democracia”, associado a um novo
paradigma jurídico. Referimo-nos evidentemente ao modelo da democracia deliberativa e ao paradigma
do direito comunicativo-procedimental… – e a estes enquanto modos de utilização das autonomias
privada e pública iluminados pelo princípio do discurso (…) – como nos referimos também à praxis
específica de solidariedade que tal democracia jurídico-constitucionalmente institucionalizada estará em
condições de oferecer”. Julga-se que, sob o enfoque da justiça restaurativa, ressalta neste estudo a

245
indivíduo surge não já apenas como titular de direitos, mas também como sujeito de
deveres perante os outros443.

apresentação do republicanismo de Habermas como coerente com o “projecto filosófico cosmopolita” e


com o “compromisso prático da tolerância” (in “O Homo Hvmanos do direito e o projecto inacabado da
modernidade”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXXVI, Coimbra: 2010, p. 538 e p. 551).
443
Apontando-se à teoria restaurativa uma certa escassez de reflexão sobre os pressupostos filosóficos em
que as suas propostas radicam, parece especialmente conveniente uma sua associação a pensamentos
filosóficos como os de Emanuel LÉVINAS ou de Hans JONAS. Ora, se algumas ideias do primeiro vão
merecendo referência um pouco mais detida ao longo deste estudo, já a “ética da responsabilidade”
referida pelo segundo permanecerá mais distante das considerações tecidas, na medida em que se lhe tem
atribuído relevância sobretudo enquanto ética de responsabilidade pelas condições de existência das
gerações futuras. Ou seja: se LÉVINAS põe o problema da responsabilidade pelo outro no plano da
intersubjectividade dos indivíduos concretos que “estão aqui e agora”, já JONAS parece ter sobretudo em
conta uma responsabilidade pelos outros futuros (cfr. Hans JONAS, Le príncipe responsabilité. Une
éthique pour la civilisation technologique, Paris: Flammarion, 1998, p. 63 ss). Na doutrina publicada em
português, João LOUREIRO tem vindo a reflectir sobre o pensamento de JONAS, considerando que este
«enunciou um novo imperativo kantiano: “[a]ge de tal maneira que os efeitos da tua acção sejam
compatíveis com a preservação da vida humana genuína”; ou, na sua versão negativa, [a]ge de tal modo a
que os efeitos da tua acção não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida» (in
“Autonomia do direito, futuro e responsabilidade intergeracional – Para uma teoria do Fernrecht e da
Fernverfassung em diálogo com Castanheira Neves”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXXVI,
Coimbra, 2010, p. 31). Também Evaldo KUIAVA (“A responsabilidade como princípio ético em H.
Jonas e E. Levinas: uma aproximação”, Porto Alegre: Veritas, vol. 51, n.º 2, Junho de 2006, p. 55 ss)
sublinha o facto de a responsabilidade, para Jonas, já não estar “centrada no passado e no presente. A sua
preocupação é com o futuro da humanidade, com as gerações futuras e com a sobrevivência das mesmas”.
A sua compreensão da responsabilidade parece assumir, nessa medida, uma relevância menos directa na
contextualização filosófica da proposta restaurativa. Sobre os diferentes entendimentos da
responsabilidade em Jonas e em Lévinas, cfr. Richard BERNSTEIN, Radical Evil: A Philosophical
Interrogation, Cambridge: Polity Press, 2002, p. 163 ss (mas, sobretudo, ps. 201-204). A questão é
tratada também por Micha WERNER (“The immediacy of encounter and the danger of dichotomy:
Buber, Levinas and Jonas on responsability”, The Legacy of Hans Jonas: Judaism and the Phenomenon
of Life, Ed. Hava Tirosh-Samuelson/Christian Wiese, Brill Academic Publishers: 2008, p. 203 ss), que
vinca a maior proximidade entre os pensamentos sobre a responsabilidade de Lévinas e de Martin Buber,
distinguindo o de Hans Jonas. Todavia, sublinha o facto de ser comum ao pensamento dos três Autores a
recusa da dicotomia kantiana sujeito-objecto a partir de uma diferença essencial na resposta à questão
“perante quem somos responsáveis?”; a afirmação da alteridade por Lévinas, Buber ou Jonas prejudica a
afirmação de que cada um é responsável primeiramente perante si próprio e perante a sua razão. Nessa
medida, tendem a comungar da opinião de que a compreensão kantiana “não permite uma reconstrução
adequada das interacções comunicacionais reais entre pessoas reais”: se a universalidade do imperativo
kantiano faz radicar a validade dos seus princípios de acção também nas necessidades do outro, essas
necessidades são ainda avaliadas em função das expectativas do “eu” e não compreendidas em função de
um diálogo com o outro. À luz da compreensão kantiana, pergunta-se se cada “eu” ficaria satisfeito com a
observância universal da conduta que o próprio “eu” pretende adoptar. Jonas, Lévinas ou Buber fazem
reentrar na equação o outro que é o “tu”. Todavia, se é possível a aproximação das ideias de Jonas,
Lévinas e Buber a partir do nódulo comum da afirmação da responsabilidade pelo Outro e perante o
Outro, parece, porém, que existem especificidades na definição desse Outro. Enquanto Jonas se ocupa
sobretudo de um Outro futuro e plural, tanto Lévinas como Buber associam o reconhecimento desse outro
concreto ao diálogo, ideia que parece transversal à teoria restaurativa. Sobre essa proximidade entre os
pensamentos de Emanuel Lévinas e Martin Buber, cfr., a título de exemplo, Peter ATTERTON/Matthew
CALARCO/Maurice FRIEDMAN, que estabelecem um paralelismo entre o reconhecimento do rosto do
outro de que fala Lévinas (sendo que os Autores recorrem, note-se, ao conceito de face to face tão
frequente na teoria restaurativa) e o reconhecimento do outro não através da disputa mas através do
diálogo nos termos propugnados por Buber (introdução à obra Levinas & Buber: Dialogue and
Difference, Pittsburgh: Duquesne University Press, 2004, p. 6). A tentativa de compreensão do
pensamento de Martin Buber não prescinde da análise da sua obra de 1923, Ich and Du (consultada na
tradução de Walter Kaufmann para inglês I and Thou: A New Translation with a Prologue “I and You”
and Notes by Walter A. Kaufmann, Nova Iorque: Scribner, 1970), na qual é transversal a afirmação de
dois modos essenciais de “existência”: um pressupõe a “relação” entre um “I” e um “It”, concebida nos

246
Tome-se, como exemplo do que se vem de afirmar, a centralidade assumida, na
justiça restaurativa, pelo pensamento da reparação dos danos causados à vítima do
crime. A reparação surge como um dever do agente do crime. Todavia, em um sentido
que se procurará aclarar na terceira parte deste estudo, essa reparação é para o agente
também um quase-direito, na medida em que é através dela que se exprime a sua
autonomia e se reafirma a sua responsabilidade enquanto sujeito.
A ponderação destes vectores da liberdade, da solidariedade e da
responsabilidade que, não sendo coincidentes, tendem a convergir no pensamento
restaurativo, traz a debate o “paradigma republicano”444. A propósito dele, José Joaquim
GOMES CANOTILHO caracteriza a teoria republicana dos direitos fundamentais
também por contraposição com a perspectiva liberal: «no fundo, a tensão direitos
naturais/teoria republicana de direitos fundamentais residia aqui: o homem era o
fundamento dos direitos naturais (e nisso estavam de acordo o republicanismo e
liberalismo), mas o homem de uns é o homem isolado e independente (perspectiva
liberal) e para outros é o homem social, fraternal e solidariamente vinculado
(perspectiva republicana)»445.
A forma como os republicanos compreendem o exercício do poder não assume
como pedra de toque a sua limitação em nome da protecção da liberdade de indivíduos

moldes dicotómicos sujeito-objecto; o outro supõe a “relação” entre um “I” e um “You”, sendo que, na
opinião do Autor, “a man becomes an I trough a You” (ob. cit., p. 80). O diálogo (que não tem de ser,
porém, “linguístico”, manifestando Buber as suas preocupações com os equívocos da linguagem) assume
papel nuclear no pensamento do Autor, porque considera que a existência de uma relação entre o “I” e o
“You” não depende da observação ou da acção instrumental, mas apenas do diálogo.
444
Sobre a história da ideia de “República”, cfr. John G. A. POCOCK, “The Res Pvblica and the diversity
of Republics; a history of ideas”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXXVI, Coimbra, 2010, p. 417
ss. Tenha-se sobretudo em conta a afirmação do Autor de que na procura de um conceito moderno de
República não está apenas em causa a ausência de reis, da autoridade da nobreza ou da Igreja, mas
sobretudo “a presença de cidadãos tomando as decisões que modelam o seu mundo e a si próprios” (ob.
cit., p. 426).
445
A diferenciação entre a liberdade tal como a entendem os liberais e a liberdade dos republicanos é
afirmada por José Joaquim GOMES CANOTILHO («O círculo e a linha – Da “liberdade dos antigos” à
liberdade dos modernos na teoria republicana dos direitos fundamentais», Tratado Luso-Brasileiro da
Dignidade Humana, coord. Jorge Miranda/Marco António Marques da Silva, São Paulo: Quartier Latin,
2008, p. 185 e p. 188) por recurso a outras palavras tão significativas que aqui se não resiste a também as
citar: «o paradigma liberal, tal como ele foi progressivamente delineado de Adam Smith a Hume, de
Ferguson a James Mill, de Constant a Tocqueville, de Silvestre Pinheiro Ferreira a Herculano, é um grito
de modernidade a favor das energias individuais que apenas pedem aos poderes públicos a criação e
garantia do mínimo de ordem necessária ao máximo de liberdade. Estamos longe da ordem do logos que
exigia dos cidadãos iguais uma intensa participação nos negócios da polis. A teoria republicana reclama
como base antropológica do seu discurso o indivíduo e, neste aspecto, o “toque” de modernidade dos
direitos naturais e da “razão iluminada” aproxima-os da modernidade liberal. O homem republicano não
é, porém, o sujeito politicamente abstémio, embora “civilmente enérgico e actuante”, do individualismo
possessivo; é o homem politicamente combatente a favor do “progresso”, da “educação”, da “instrução”,
do “associacionismo”, enfim de soluções positivas para a política».

247
que não são desiguais “de direito” mas que podem ser desiguais “de facto”446,
centrando-se antes numa ideia de participação política numa sociedade que se pretende
orientada para a solidariedade e para a promoção do bem comum.
A relevância do republicanismo para a compreensão da proposta restaurativa é,
de resto, vincada logo no título eleito por John BRAITHWAITE e por Philip PETTIT
para a sua obra de referência Not Just Deserts – A Republican Theory of Criminal
Justice. Na proposta que apresentam e que parte da ideia de que o crime é, em primeira
linha, uma intrusão no domínio de cada um que o Estado deve reparar, um dos
princípios estruturantes é o da parcimónia, uma “presunção em favor da menor
intervenção” possível, o que, reconhecem, outorga à teoria uma “qualidade minimalista”
que é coerente com as tradições “liberal” e “libertária”. Todavia, os Autores afirmam
que são outros os vectores que atribuem à sua proposta político-criminal um “cariz
republicano”, nomeadamente a exigência de responsabilização dos sujeitos que “detêm
poder no sistema” e a restauração do integral domínio447 na condução das vidas
daqueles que foram atingidos pelo crime (a vítima e o agente), o que pressupõe uma
exigência da solidariedade448.
Ora, é precisamente a partir destes elementos “solidariedade” e
“responsabilidade”, centrais no pensamento republicano, que se torna mais clara a ponte
com a proposta restaurativa (que, neste sentido, mais do que fundada em um “modo de

446
Ainda nas palavras de José Joaquim GOMES CANOTILHO (últ. ob. cit., p. 189), «a desigualdade
liberal não é uma desigualdade natural (de direito), no sentido grego, mas uma desigualdade de facto (de
talento, mérito). Isto justificará, por exemplo, o acesso à categoria dos cidadãos activos dos indivíduos
capazes de mudar de situação económica “legitimadora da partilha da palavra política”».
447
Este conceito de “domínio” assume um significado especial quando se tem em conta que, nas palavras
de Ricardo Leite PINTO (“Liberdade republicana e Estado constitucional”, Boletim da Faculdade de
Direito, vol. LXXXVI, Coimbra, 2010, p. 444), “a distinção entre liberdade republicana e liberdade
liberal na perspectiva de Pettit gira entre a ideia de não interferência e a de não dominação. A não
interferência significaria a ausência de constrangimentos actuais nas decisões e escolhas dos cidadãos
enquanto que a não dominação iria mais longe considerando a ausência de interferências arbitrárias não
só actuais mas também potenciais (a possibilidade de interferência)”. Entre os Autores que se dedicam ao
estudo da justiça restaurativa, Lode WALGRAVE presta atenção detida àquela ideia de “domínio”, que
considera central na teoria republicana da justiça criminal de Braithwaite e de Pettit. Define “domínio”
como o “conjunto de direitos e de liberdades garantidos”, como “o território mental e social de que se
dispõe livremente e que é garantido pelo Estado e pelo meio social”. Para ilustrar esta ideia, associa-a à
afirmação de que «“eu sei que tenho direitos, e sei que os outros o sabem, e acredito que vão respeitá-
los”. É só assim que vou usufruir plenamente do meu território mental e social. É nesta segurança sobre
os direitos e as liberdades que está a distinção crucial face ao conceito liberal de “liberdade-como-não-
interferência”. Neste conceito, “o outro” é um rival na luta pela liberdade. Na perspectiva republicana, “o
outro” é um aliado na tentativa de alargar e de assegurar mutuamente o domínio como um bem colectivo»
(“From community to dominion: in search of social values for restorative justice”, Restorative Justice –
Theoretical Foundations, Eds. Elmar Weitekamp/Hans-Jürgen Kerner, Devon: Willan Publishing, 2002,
p. 82-3).
448
John BRAITHWAITE/ Philip PETTIT, Not Just Deserts – A Republican Theory of Criminal Justice,
Oxford: Clarendon Press, 2000, ps. 203-4.

248
ser” liberal, se revela próxima do “modo de ser” republicano). Recuperando a exacta
formulação de GOMES CANOTILHO, «a lógica intrínseca do republicanismo em torno
dos direitos fundamentais exigia o reconhecimento, não de direitos “em si” e “para si”,
mas de direitos para outrem. Produtos da “lei natural” e da “razão apriorística” do
sujeito, os direitos evoluem para produtos da “razão militante” justificativa do seu
reconhecimento e do dever do seu exercício altruisticamente (solidária e fraternalmente)
vinculado. De forma aproximadamente rigorosa, dir-se-ia que o pensamento
republicano procura, assim, a saída da subjectividade para a intersubjectividade»449.
De forma agora resumida, aquilo que se pretende pôr em evidência é o facto de
na justiça restaurativa (apesar da sua definição também em função de um procedimento
a que é alheio o exercício da autoridade estadual na definição da resposta para o
conflito) não poder menosprezar-se a sua dimensão de responsabilidade em detrimento
da sua orientação para a tutela da autonomia individual. Ou seja: se parece inequívoco
que, caso contribua para uma justiça penal mais mínima, a justiça restaurativa defende a
liberdade do indivíduo perante o poder punitivo, também parece claro que a liberdade
de que aqui se trata não é uma liberdade sem responsabilidade, mas antes uma liberdade
que pressupõe o reconhecimento do outro e a solidariedade com o outro. E é, além
disso, uma liberdade a que não se associa um mero direito de não ver invadido o espaço
individual, mas uma liberdade que se manifesta através de uma participação activa e
conjunta em um procedimento de encontro com o outro.

5.7. À procura de um sentido para a justiça a partir de interrogações sobre


alguma da sua simbologia

Em estudo intitulado «From the “sword” to dialogue: towards a “dialectic” basis


for penal mediation», Grazia MANNOZZI começa por recordar que “a iconografia
tradicional representa a justiça como uma figura feminina, por vezes vendada, que
segura uma balança na mão esquerda e uma espada na direita”450.

449
José Joaquim GOMES CANOTILHO («O círculo e a linha – Da “liberdade dos antigos” à liberdade
dos modernos na teoria republicana dos direitos fundamentais», Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade
Humana, coord. Jorge Miranda/Marco António Marques da Silva, São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.
190).
450
Grazia MANNOZZI, «From the “sword” to dialogue: towards a “dialectic” basis for penal mediation»,
Restorative Justice – Theoretical Foundations, Eds. Elmar Weitekamp/Hans Jürgen Kerner, Devon:
Willan Publishing, 2002, ps. 224-228. A Autora não deixa, porém, de sublinhar que, apesar de esta ser a
representação mais frequente, não é a única. MANNOZZI propõe-se examinar o sentido de cada um dos
elementos desta “alegoria perfeita”. Relativamente à venda que cobre os olhos, simboliza a

249
Um dos factores que contribuiu para o adensamento da dúvida em torno da
aptidão do sistema de justiça penal estadual para, desacompanhado de qualquer outra
resposta, “realizar a justiça”, foi precisamente a análise feita por Ana MESSUTI da
simbologia que lhe é associada. Essa simbologia é relevante, quer na perspectiva
daquilo que inclui, quer daquilo que exclui enquanto conteúdo da justiça. Tendo em
conta o objecto deste estudo e a associação frequente da justiça restaurativa a uma
“justiça sem juízes”451, parece interessante a forma como a Autora olha para a espada
que uma mulher (em certas representações simbólicas da justiça) segura em uma das
mãos e como considera o papel do juiz que, enquanto aplicador da justiça, manusearia
aquela arma. As palavras de MESSUTI são a este propósito elucidativas: «a pessoa da
justiça é a terceira pessoa, e não o intermediário da mediação interposta entre os
extremos do eu e do tu. Não é a terceira pessoa encarregada de reconciliar as duas partes
em litígio. “Todas as pessoas que representam a justiça são terceiras pessoas” – diz
Jankélévitch – e pessoas definitivamente terceiras”. A terceira pessoa é a pessoa que
está fora do circuito do nosso diálogo. A pessoa fora de toda a possível alocução,
exterior ao reparo de qualquer interrogação, nem sequer potencial». Depois de aceitar
que a pessoa que o juiz é não é uma pessoa, é um conceito, MESSUTI acrescenta que é
também uma forma, que se trata de “mais uma forma das formas que se devem observar
para que o juízo seja administração de justiça”. E conclui que «se se respeitam essas
formas, entre as quais se encontra a “não pessoa” do terceiro que julga, haverá
administração da justiça, ainda que não necessariamente justiça»452.
A própria venda que, em certas representações simbólicas, cobre os olhos da
figura humana pode merecer uma avaliação mais crítica do que aquela que resulta da
sua tradicional associação à igualdade de todos perante a lei, à imparcialidade na
aplicação da lei. Ainda segundo Ana MESSUTI, pretende simbolizar-se deste modo um

“imparcialidade dos juízes no que respeita às condições sociais e económicas daqueles que são julgados”.
A balança é um elemento figurativo que apresenta como inspirado na doutrina da justiça de Aristóteles e
no conceito de equidade. Para a Autora, a espada é o “elemento mais controverso da representação
alegórica”, o que se associa às suas “variantes iconográficas”, ora “ameaçadoramente levantada”, ora
“tombada”. De qualquer modo, parece simbolizar o “poder do ius dicere”. Na sua perspectiva, a espada é
o único daqueles elementos simbólicos que poderá ser dispensado quando se pensa a mediação como um
processo de pacificação alicerçado no diálogo.
451
Cfr. Pablo Galain PALERMO, “Mediação penal como forma alternativa de resolução de conflitos: a
construção de um sistema penal sem juízes”, Estudos em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, org.
Manuel da Costa Andrade e outros, vol. III, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 821 ss.
452
Ana MESSUTI (“Desconstruyendo la imagen de la justicia”, Escritos em homenagem a Alberto Silva
Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 108) cita a afirmação de Legendre de que “se
diz que alguém administra a justiça mesmo quando adopta uma decisão injusta, porque não interessa o
que o juiz fez, mas sim se o fez na forma em que deveria tê-lo feito”.

250
olhar para além do que está perto, para além das “perspectivas pequenas” das partes e
das suas concepções de bem e de mal. Trata-se de um olhar que “passa por cima” dos
intervenientes no processo, “que os trespassa”, “que não se detém no que está mais
próximo, no que se apresenta perante os olhos”. O problema, porém, tal como o vê a
Autora, é que «na realidade, o olhar desta definição, que poderia considerar-se
escultórica, da justiça, é um olhar que não vê. Não vê os indivíduos nem a comunidade,
nem sequer a humanidade. É um “não olhar”»453.
Estes exemplos de representações da justiça através do recurso à balança (com a
qual, por força de um pensamento puramente calculante, se procura comparar com
exactidão realidades pessoais que são não mensuráveis), à espada (que corta e separa,
dando a cada pessoa aquilo que lhe pertence, mas que também pode servir para punir
infligindo um mal) ou à venda (que impede um olhar pessoal para aquilo que está
próximo, para as concretas circunstâncias das pessoas em conflito) parecem adequar-se,
pelo menos em parte, ao actual sistema penal, no qual são estruturantes as ideias da
exclusividade do poder punitivo do Estado, da consequente oficialidade da promoção
processual penal, da legalidade ou da imparcialidade e objectividade dos operadores
judiciários.
Estas e outras imagens são coerentes com uma certa ritualização do processo,
que se pode relacionar com a ideia de Paulo Ferreira da CUNHA de que “a natureza
adjectiva do processo convoca o adjectivismo do ritual”. E o recurso a determinadas
imagens, desde logo as associadas à arquitectura e decoração judiciárias, contribui para
esse ritual454.
Tais representações já não são totalmente harmoniosas, porém, com o sentido da
proposta restaurativa. Como bem sublinha Silvia LARIZZA, “a mediação não tende à
exclusão do outro, ou seja do culpado, mas é destinada à sua inclusão através da
reparação”. Trata-se de uma lógica oposta à da intervenção punitiva que resulta da

453
Ana MESSUTI (últ. ob. cit., p. 109) parte, nesta sua análise, da “definição de justiça que Heidegger
encontra em Nietzsche”.
454
Paulo Ferreira da CUNHA, “Processo penal, rito e magia – desafios de ontem e de hoje”, in Que
Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/
MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, ps. 376-378. Para
o Autor, “mais recentemente, o que mais ressalta em algumas salas de tribunal é a nudez frígida das
paredes, o frio metafísico da ausência de símbolos, ou a solitária, e assim totalitária presença dos
símbolos estatais”. Paradigmática é, porém, a citação que Ferreira da CUNHA faz dos Pensamentos de
Pascal: “se aqueles [os magistrados] possuíssem a verdadeira justiça e se os médicos tivessem a
verdadeira arte de curar, não teriam de fazer barretes quadrados: a majestade destas ciências seria
suficientemente venerável por si. Mas apenas possuindo ciências imaginárias, é necessário que tomem
estes vãos instrumentos que excitam a imaginação com a qual têm negócio: e dessa forma, de facto,
suscitam o respeito”.

251
aplicação do direito penal. A Autora distingue “o estigma próprio da pena e do direito
penal”, que “é uma manifestação de diferença para excluir, é uma manifestação que
surge através da decisão de um juiz que separa claramente o justo do injusto, o errado
do certo, o culpado do inocente”; do “encontro, do diálogo, da abertura ao outro, a sua
inclusão” que caracterizam a proposta restaurativa, onde se ultrapassa a “lógica do
castigo” relacionada com a decisão “que vem do alto” e que é a decisão do juiz455. A
razão pela qual se considera tão pertinente, neste ponto da reflexão, o pensamento de
Silvia LARIZZA prende-se com a forma como ele pode relacionar-se com as
afirmações antes atribuídas a MESSUTI, dando porém um passo adicional: a
necessidade de se determinar a culpa para se condenar a uma pena supõe o recurso à
espada que separa aquilo que é certo daquilo que é errado (em um sentido muito amplo,
com uma dimensão substantiva e uma outra adjectiva ou instrumental); esse “corte”
significa uma exclusão do agente, que é remetido para a esfera do que é diferente e essa
exclusão é geradora de estigmatização; pelo contrário, em uma resposta ao crime em
que a responsabilização não seja heterónoma mas antes assumida pelo próprio, a
reparação que resultar dessa assunção de responsabilidade será factor de inclusão e não
já de exclusão.
Em certa medida, a contraposição entre a justiça penal dita tradicional e a justiça
restaurativa confronta-nos com uma possibilidade de a justiça vir do outro que é um
terceiro alheio ao conflito ou uma possibilidade de a justiça vir de um encontro de eus
que reconhecem o outro e o aceitam como um igual pelo qual são responsáveis. E,
quando assim se pensa, torna a ser inevitável a consideração do pensamento de Emanuel
Lévinas, que se julga tão particularmente adequado à fundamentação da proposta
restaurativa como modelo diverso de reacção ao crime.
No seu estudo “Para uma nova justiça”, Etelvina NUNES retrata o desconforto
que a justiça punitiva causa ao filósofo, traçando um diagnóstico para as causas de tal
desconforto que parecem largamente transponíveis para as críticas que o paradigma
restaurativo dirige ao sistema penal clássico: “Lévinas sustém, assim, que num sentido
mais radical o aparecimento da justiça impõe uma certa violência; de facto, o problema
da justiça inclui também uma luta contra o mal. Lévinas, no entanto, quer propor uma
filosofia e uma racionalidade da paz. Neste sentido, o autor está de acordo que não se

455
Cfr. Silvia LARIZZA, “Cave a Signatis: Ovvero sulla Stigmatizzazione Penale”, Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra Editora: 2010, p. 1313.

252
deve lutar contra o mal que o outro me causa, mas sim contra o mal feito ao outro
quando ele está na situação de vítima. Quando o carrasco ameaça o próximo, chama a
violência, neste caso já não está a exprimir o rosto. Este ponto do pensamento de
Lévinas coloca-nos perante um cruzamento sempre difícil: entre a responsabilidade
infinita pelo outro, quem quer que ele seja, e a necessidade de fazer justiça. A
necessidade da justiça não surge por causa da autodefesa do eu, mas da preocupação
pelo terceiro, por causa do outro que está em perigo. Pode haver assim uma violência
necessária na ordem da justiça; para socorrer a vítima, pode ser necessária a
violência”456.
Não se desconhece que, na doutrina penal portuguesa, se encontrou já inspiração
também em Lévinas para a fundamentação da vinculatividade da própria norma
penal457. Assim, Fernanda PALMA convoca “o pensamento de Lévinas como o
culminar de uma tradição ética diferente, como exemplo de um pensamento que tenta
superar o anterior dilema (…)458, como uma alternativa para nos ajudar a pensar no que
a fundamentação da obediência ao Direito no interesse racional de cada um e na
autonomia encerra simultaneamente de artificial e de contraditório”459.

456
Etelvina NUNES, “Para uma nova justiça”, Revista Portuguesa de Filosofia, 1996, 52, p. 617 ss. Neste
trecho do seu estudo, a Autora segue de perto o texto “Philosophie, Justice et Amour, Entretien avec
Emmanuel Levinas”, Concordia, 1983, p. 59 ss, onde o filósofo afirma que “existe uma parte de violência
no Estado mas que pode comportar a justiça”.
457
Para Fernanda PALMA (“Crimes de terrorismo e culpa penal”, Liber Discipulorum para Jorge de
Figueiredo Dias cit., p. 236), “os fundamentos da responsabilidade penal, na sua concepção tradicional,
têm de ser compreendidos a partir de uma ideia de fundamentação da validade e da legitimidade do
Direito em geral, na sua dimensão coerciva e limitativa da liberdade. Tal perspectiva radica numa
concepção liberal, antropocêntrica e contratualista da sociedade”.
458
A Autora refere (ob. cit., p. 236 ss) a existência de uma racionalidade “que associa a responsabilidade
ao dever e à susceptibilidade de ser sujeito” a partir de diversas “premissas lógicas”. E distingue-as: “uma
delas, exposta por Kant e por Hegel, é a de que o cumprimento das normas que comprimem a liberdade
corresponde ao interesse racional dos indivíduos em que a sua própria liberdade seja garantida através da
preservação da regra geral de liberdade”; “uma outra premissa da concepção de Direito baseada na
autonomia ética dos seus destinatários é a de que só quem pode deve e, por isso, só quem pode é
responsável. Esta premissa baseia-se, sem dúvida, na liberdade como fundamento da responsabilidade,
pressupondo que só na situação de liberdade, de ser capaz de decidir como sujeito, alguém se pode
vincular, efectivamente, ao Direito”. Posteriormente, a partir da afirmação de que “o problema do agente
que actua por puros motivos religiosos ou ideológicos, antagónicos dos valores do sistema jurídico em
que uma sociedade assenta, torna-se, assim, um desafio múltiplo para um direito penal baseado na
autonomia ética”, procura-se uma outra fundamentação, com base no pensamento de Lévinas. A resposta
não repousaria já na autonomia ética, mas antes na “responsabilidade individual pelo reconhecimento do
outro”, numa “prévia responsabilidade de cada um pela liberdade e integridade do outro”.
459
Fernanda PALMA, últ. ob. cit., p. 244. A Autora acrescenta que a proposta de Lévinas “diverge (…)
do modelo de autonomia kantiano, na medida em que o fundamento racional último em que assenta a sua
construção do dever ético não é a autonomia intrínseca de cada pessoa (tida como um fim em si mesma)
mas uma relação de cada um com o outro, em que a identidade de cada um se constrói a partir da
evidência e necessidade de reconhecimento do outro”. E acrescenta, em momento posterior do mesmo
estudo (p. 257) que “somos-com os outros como acentua FIGUEIREDO DIAS e a nossa consciência, tal
como a nossa liberdade, não é o prius existencial em que o Direito pode assentar”.

253
Porém, a hipótese que se pretende sucitar é que esta linha de pensamento, se
pode ser útil à compreensão da vinculatividade da norma jurídico-penal a partir da ideia
de que existe uma “responsabilidade ética” (anterior ao próprio surgimento da norma e
que legitima a sua natureza vinculativa) alicerçada no reconhecimento do respeito pelo
outro460, pode ser também encarada, em uma outra perspectiva, como legitimadora
desse encontro de discursos de cada “eu” que está no cerne da proposta restaurativa.
Deve ainda deixar-se claro que, também na doutrina penal portuguesa, se tinha
já radicado o fundamento do direito penal no reconhecimento do outro. No pensamento
de José de FARIA COSTA, por exemplo, assume relevância a afirmação de que “o
fundamento do direito penal encontra-se na primeva relação comunicacional de raiz
onto-antropológica, na relação de cuidado de perigo”461.
A ser assim, a interrogação que pode legitimamente formular-se prende-se com a
forma como deve compreender-se a distinção entre dois modelos de reacção ao crime (o
penal e o restaurativo) se ambos radicarem nesse mesmo fundamento que é o
reconhecimento do outro e, consequentemente, do respeito e do cuidado que o outro
sempre merece enquanto elemento conformador da conduta de cada um.
O que se julga é que por mais que esse fundamento último seja comum, existem
especificidades no significado e na relevância que adquire em cada um dos sistemas. Se
na reflexão sobre a vinculatividade da norma penal se refere a importância desse
reconhecimento do cuidado merecido pelo outro e do “discurso antes do discurso”462

460
Sendo, de resto, esse carácter fundante do respeito pelo outro que justifica, no pensamento da Autora,
a vinculatividade das normas que incriminam condutas de consciência como o terrorismo: “como antes
referi, citando LÉVINAS, é a relação com o outro na sua total independência o ponto de partida de
qualquer ideia de dever e da própria identidade ética. Onde a consciência é invocada fora da preservação
do outro, neste sentido ontológico do outro – o outro como vida personalizada –, será difícil admitirmos
que ainda há participação em valores gerais” (ob. cit., p. 257).
461
José de FARIA COSTA, Noções Fundamentais de Direito Penal, 2.ª ed. cit., p. 20. A ideia é central na
sua obra O Perigo em Direito Penal (Contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmáticas),
Coimbra: Coimbra Editora, 1992 (reimpressão em 2000). Em algumas das palavras a que o Autor recorre
nas suas “reflexões e proposições finais”, “a relação-de-cuidado-de-perigo é, pois, o pressuposto essencial
não só para a própria compreensão da categoria jurídico-penal do perigo como é, outrossim, o
fundamento de todo o multiversum que o direito penal constitui”. E “o cuidado originário é o núcleo
estruturante da primeva relação onto-antropológica do cuidado-de-perigo no qual se fundam as
comunidades humanas” (ob. cit., p. 653 e p. 655). Mais recentemente e ainda na doutrina portuguesa,
Augusto SILVA DIAS também apresenta a“deslealdade comunicativa resultante da negação do
reconhecimento recíproco como fundamento de censura da culpa jurídico-penal” (“Delicta in se” e
“delicta mere prohibita”: Uma Análise das Descontinuidades do Ilícito Penal Moderno à Luz da
Reconstrução de uma Distinção Clássica, Coimbra: Coimbra Editora: 2008, p. 700 ss).
462
Fernanda PALMA (“Crimes de terrorismo e culpa penal” cit., p. 247, p. 258), entende que “não é
menos interessante o apelo ao discurso antes do discurso neste contexto, como expressão de uma
condição prévia de justiça, tanto ao exercício do poder (de uma censura de culpa) como ao exercício da
liberdade”. Todavia, segundo se crê, a Autora não deixa de valorizar uma espécie de discurso depois do
discurso (uma comunicação posterior ao discurso fundante da criminalização) quando, a propósito do

254
para assim fundamentalmente tornar compreensível o respeito por cada cidadão da
norma autoritariamente imposta (a imperatividade da norma penal), já na justiça
restaurativa prepondera o apelo ao reconhecimento do outro não como fundante da
obediência e da punição, mas como fundante da justeza da solução encontrada através
de um discurso entre iguais. Aqui, a responsabilidade ética não surge sobretudo como
fundamento para o dever de respeito pela norma que legitima a intervenção (ainda que o
também seja), mas é essencialmente o que fundamenta o dever de encontro com o outro
– que é um igual – com vista à pacificação do conflito.
A responsabilidade ética existirá, em ambos os casos, quer a montante quer a
jusante do conflito mas, na proposta restaurativa, ela assume, a jusante, um outro
sentido, que se crê porventura mais próximo da importância atribuída por Lévinas ao
“reconhecimento do rosto do outro”. Simplificando a comparação através do recurso a
uma imagem, talvez possa dizer-se que na justiça penal essa responsabilidade pelo
outro que deveria ter sido a estrela polar da conduta assume particular preponderância
a montante do conflito; na justiça restaurativa ela refulge a jusante. Ao contrário do
que tendencialmente sucede na justiça penal, esse reconhecimento não é sentido pelo
agente do crime como uma condenação (que lhe permite um largo espaço de inércia); na
proposta restaurativa, a jusante do conflito, o reconhecimento do outro verte-se numa
actuação de recebimento das suas expectativas e de correspondência através da actuação
reparadora.

5.8. Uma tentativa de síntese não conclusiva

Abertos vários parêntesis na reflexão justificados pela variedade dos nódulos


problemáticos, parece tempo de retornar ao cerne da interrogação. A questão que se
punha era a de saber se através das práticas restaurativas se pretendia ainda contribuir
para a realização da justiça463. Todavia, uma resposta afirmativa a esta interrogação

conceito de “perdão”, relembra, a partir de RICOEUR, que ele é um “intercâmbio”, sendo que “nessa
relação revela-se uma necessidade e uma possibilidade de reconciliação entre o agente e a vítima ou a
sociedade, como alternativa à pena, mas ainda como compensação do crime”.
463
Grazia MANNOZZI (La Giustizia Senza Spada – Uno Studio Comparato su Giustizia Riparativa e
Mediazione Penale, Milão, Giuffrè: 2003, p. 330) define a justiça restaurativa precisamente como um
modelo alternativo de justiça que supõe o envolvimento do arguido, da vítima e da comunidade na
procura de soluções para os efeitos do conflito originados pelo crime. Aponta como notas essenciais desta
justiça a reparação do dano, a reconciliação entre as partes e o reforço do sentimento de segurança
colectivo. A Autora, quanto ao ponto específico que agora merece reflexão, considera que não se pode
inscrever a mediação apenas em uma lógica exclusivamente de diminuição dos processos em tribunal e

255
parecia não prescindir da verificação de que a resposta ao crime que vem sendo dada
pela justiça penal pode considerar-se, sob esse enfoque, insuficiente. Ou seja: o
problema que se põe é também o de saber se o nosso sistema de justiça penal é, ele
próprio, adequado e suficiente à realização da justiça464. Porque só se assim não for é
que se poderá afirmar que a resposta restaurativa é ainda necessária em uma perspectiva
de realização da justiça.
A procura de um sentido de resposta para estas interrogações não podia
prescindir de uma consideração – necessariamente superficial, é certo, tendo em conta
por um lado o objecto deste estudo e por outro lado a complexidade e a dimensão do
assunto – daquilo que se pretende significar com realização da justiça face a uma
situação de conflito que prejudica valores que a comunidade tem por relevantes, mas
que também causa danos concretos a pessoas identificáveis.
O ponto de que se julga dever partir é o da abertura de espírito para a aceitação
de que a procura da justiça é isso mesmo, uma constante procura, um processo sujeito a
avanços e a retrocessos, rejeitando-se assim a crença de que o modelo dominante no
nosso espaço e no nosso tempo é necessariamente o melhor modelo. A compreensão
desta dimensão evolutiva465 da justiça parece ser particularmente relevante quando se

sublinha a sua diversidade “ontológica” por comparação com os instrumentos penais, relacionada com o
facto de se basear sempre na comunicação.
464
Recorde-se que a reflexão de Luigi FERRAJOLI (Derecho y Rázon cit., p. 209 ss) sobre os
fundamentos do direito penal é antecedida pela consideração dos custos da justiça, que se manifesta
sempre na imposição de limitações (na proibição dos comportamentos objecto de criminalização, na
sujeição coactiva ao processo e no aplicação da pena). Porém, o Autor italiano acrescenta que a esses
custos da justiça terá sempre de se acrescentar “um altíssimo custo das injustiças, que depende do
funcionamento concreto de qualquer sistema penal”. Neste conceito, engloba as cifras negras – a que
prefere chamar cifra da ineficiência –, mas também a cifra da injustiça, onde inclui aqueles arguidos que
são absolvidos depois da sujeição ao processo penal e por vezes à prisão preventiva; os inocentes
condenados com trânsito em julgado mas depois absolvidos por força de um recurso extraordinário; as
vítimas dos erros judiciais nunca reparados (aquilo que denomina “a verdadeira cifra negra da injustiça”).
Ora, se aquelas limitações primeiramente referidas (os custos da justiça) e inerentes ao funcionamento
normal da justiça penal já causam problemas específicos ao discurso legitimador da intervenção penal,
estes custos da injustiça são de muito mais difícil justificação. Nas palavras de FERRAJOLI, “se os
custos da justiça e os custos opostos da ineficiência podem ser uns justificados positivamente e os outros
tolerados na base de teorias ou ideologias da justiça, os custos da injustiça permanecem todavia
insusceptíveis de justificação por esse caminho e consentem para o sistema penal que os produz apenas
uma justificação eventual e negativa relativa aos custos ainda maiores que proviriam da ausência de
qualquer espécie de direito e de garantia penal”. Compreende-se bem, neste contexto, a conclusão do
autor italiano de que o problema da justificação do direito penal se confunde em larga medida com o
problema do garantismo: um funcionamento efectivo das garantias facilita de forma evidente a reflexão
legitimadora da justiça penal.
465
A admissão desta tendência para a evolução não equivale, note-se, à aceitação daquilo que Manuel
CASTELLS denomina o “conto de fadas do progresso humano”. Nas palavras do Autor (in A sociedade
em rede: do conhecimento à acção política, Lisboa: Imprensa Nacional, 2006, p. 18), “estamos
mentalmente formatados para uma visão evolucionista do progresso da humanidade, visão que herdámos
do Iluminismo e que foi reforçada pelo Marxismo, para quem a humanidade, comandada pela Razão e
equipada com a Tecnologia, se move da sobrevivência das sociedades rurais, passando pela sociedade

256
pretende analisar uma proposta – como a restaurativa – que comporta evidentes notas de
desconformidade com traços essenciais de um modelo que é o dominante em dado
contexto civilizacional. Ora, se é certo que a justiça restaurativa suscita estranheza face
a conquistas essenciais da modernidade penal – nomeadamente, como se verá, as
atinentes à exigência de demonstração da culpa ou as relacionadas com a natureza
estritamente pública do sistema de reacção ao crime –, também parece poder admitir-se
que existe nessa modernidade penal espaço para crítica e, nessa medida, uma
possibilidade de evolução466. Muito significativa neste contexto é, de resto, a afirmação
de Alain TOURAINE de que “a força libertadora da modernidade esgota-se à medida
que esta triunfa. O apelo à luz é assombroso, quando o mundo está mergulhado na
obscuridade e na ignorância, no isolamento e na escuridão”467.

industrial, e finalmente para uma sociedade pós-industrial/da informação/do conhecimento, a montanha


esplendorosa onde o Homo Sapiens vai finalmente realizar o seu estado dignificante. Porém, mesmo um
olhar superficial sobre a história desafia este conto de fadas do progresso humano: os holocaustos nazi e
estalinista são testemunhas do potencial destrutivo da era industrial”. Por outro lado, o reconhecimento da
pluralidade de concepções objectivas de justiça e da evolução a que estão sujeitas deve vir acompanhado
da aceitação daquilo que há de ideológico nessas várias concepções. Como nota Gonzalo OLIVARES
(“La justicia, entre principio, idea y promesa”, Serta in Memoriam Alexandri Baratta cit., p. 222),
“quando se diferenciam as definições de justiça, os traços mais evidentes são precisamente os
ideológicos, o que não é senão uma manifestação de que não existe nenhum conceito universal de justiça,
sendo que cada cultura e cada ideologia terão a sua própria ideia acerca do justo”. Não obstante, talvez
também não seja inexacta a ideia que Steven PINKER procura sustentar ao longo do seu extenso estudo
The Better Angels of our Nature – The Decline of Violence in History and its Causes (Londres: Allen
Lane/Penguin Books, 2011, ps. 692-694): apesar de um sentimento recorrente de nostalgia face ao
passado e apesar da afirmação frequente da “violência moderna”, “a história e os estudos estatísticos
podem mudar a nossa visão da modernidade” na medida em que “mostram que a nostalgia de um passado
de paz é a maior desilusão de todas”. Ainda segundo o Autor, as “forças da modernidade – a razão, a
ciência, o humanismo, os direitos individuais”, entre várias outras consequências, contribuíram para uma
“redução da violência”.
466
Com interesse, veja-se a caracterização por Boaventura de SOUSA SANTOS do “projecto sócio-
cultural da modernidade”. Nas palavras do Autor, este é “um projecto muito rico, capaz de infinitas
possibilidades e, como tal, muito complexo e sujeito a desenvolvimentos contraditórios. Assenta em dois
pilares fundamentais, o pilar da regulação e o pilar da emancipação. São pilares, eles próprios,
complexos, cada um constituído por três princípios. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do
Estado, cuja articulação se deve principalmente a Hobbes; pelo princípio do mercado, dominante
sobretudo na obra de Locke; e pelo princípio da comunidade, cuja formulação domina toda a filosofia
política de Rousseau. Por sua vez, o pilar da emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade:
a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do
direito; e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica”. De forma mais directamente
atinente àquilo que a este estudo interessa, o Autor reconhece a existência de ligações entre os dois pilares
e os seus respectivos princípios, sendo que não deixa de afirmar – o que nos auxilia na compreensão da
ligação umbilical entre o Estado e um direito penal de protecção de bens jurídicos – que “a racionalidade
moral-prática liga-se preferencialmente ao princípio do Estado na medida em que a este compete definir e
fazer cumprir um mínimo ético para o que é dotado do monopólio da produção e distribuição do direito”
(in Pela Mão de Alice – O Social e o Político na Pós-Modernidade, Porto: Edições Afrontamento, 1999,
7.ª edição, p. 77).
467
O Autor (in Crítica da modernidade, Lisboa: Piaget, 1992, p. 113) acrescenta que “a racionalidade é
uma palavra nobre quando introduz o espírito científico e crítico em domínios até então dominados por
autoridades tradicionais e pela arbitrariedade dos poderosos; torna-se uma palavra temível quando
designa o taylorismo e os outros métodos de organização do trabalho que destroem a autonomia

257
São, de resto, conhecidas várias críticas das “concepções liberais de justiça e de
imparcialidade”, nas palavras de Melissa WILLIAMS, críticas essas que terão adquirido
particular vigor nas décadas de oitenta e noventa. Ainda segundo a Autora, “o cerne
desses argumentos é o de que as prevalentes concepções filosóficas e legais de justiça,
imparcialidade e direitos suportam uma falsa pretensão de universalidade. Esses
conceitos foram articulados (…) por membros de uma classe privilegiada e a partir de
uma perspectiva social limitada – predominantemente, a de um homem branco da classe
média ou alta”468.
A compreensão do sentido da proposta restaurativa como contributo para uma
solução mais justa do conflito criminal não pode prescindir de uma ponderação da
evolução do modelo de Estado. Assim, se parece inequívoca a sua incoerência em um
Estado de Direito formal, de cariz liberal e individualista e marcado pela sujeição de
todos os cidadãos a uma mesma lei geral e abstracta que se lhes impõe porque resulta de
um contrato; também se não vislumbra coerente com concepções organicistas da
sociedade, que hiperbolizem o bem desse ser próprio que é o todo social, um bem que é
distinto e mais importante do que a soma dos interesses de cada indivíduo.
Todavia, a proposta restaurativa já ganha sentido em um Estado de Direito social
e democrático469, que saiba conciliar a compreensão do todo social com a compreensão
do indivíduo e que logre integrar a sua vertente garantística de protecção dos direitos
individuais relacionada com o império da lei e também a sua vertente social associada à
efectiva promoção de condições (nomeadamente económicas, culturais, sociais) que
permitam uma aproximação de cada um dos cidadãos do patamar de existência
considerado digno num determinado espaço e tempo. E, nas palavras de Jorge de
FIGUEIREDO DIAS, “não se trata pois tanto aqui de tomar qualquer posição na
moderna controvérsia acerca da subsistência do Estado-providência ou do regresso a um
Estado-liberal, quanto de caracterizar o Estado, fundamentalmente e na sua acepção
social mais lata, como um Estado de Justiça”470. Ora, em certo sentido e antecipando

profissional dos operários e os submetem a cadências e a imposições que se dizem científicas, mas que
não passam de instrumentos ao serviço do lucro, indiferentes às realidades fisiológicas, psicológicas e
sociais do homem no trabalho”.
468
Melissa WILLIAMS, “Criminal justice, democratic fairness and cultural pluralism: the case of
aboriginal peoples in Canada”, Buffalo Criminal Law Review, 2002, vol. 5, p. 458 ss.
469
Sobre a necessidade de compatibilização, em modelos de resposta ao crime, das dimensões liberal,
social e democrática do Estado, Santiago MIR PUIG, El Derecho Penal en el Estado Social y
Democrático de Derecho (Barcelona: Editorial Ariel, 1994, p. 31 ss) defende uma “síntese” através da
qual as distintas orientações deixem de ser consideradas isoladamente.
470
Jorge de FIGUEIREDO DIAS pondera a forma como o Estado de Direito formal (“de natureza liberal
e individualista”) e o Estado social (“mais preocupado com o funcionamento do sistema social do que

258
em muito uma possibilidade conclusiva que só em momento posterior deste estudo se
deveria enfrentar, talvez possa porém intuir-se desde já que, num Estado que se
pretenda de justiça, o desafio passe também por reagir ao crime em moldes de
integração de uma dimensão liberal e garantística que o direito das mais graves de todas
as sanções (o direito penal) não pode desconsiderar, com uma dimensão social de oferta
aos indivíduos de uma possibilidade de pacificação dos males associados ao crime para
que estaria especialmente vocacionada a resposta restaurativa471.
No que a este estudo interessa, importa sobretudo sublinhar aquela que pode ser
a incoerência entre um determinado discurso sobre a justiça e a experiência de injustiça
sentida por alguns cidadãos. E, nessa medida, questionar se esse discurso sobre a justiça
e as práticas com que convive não devem ser sujeitos a crítica na sua pretensão de
exclusividade. Dito de outro modo: se a um certo discurso sobre a justiça ainda se não
consegue contrapor um outro com aproximado grau de coerência sistémica e harmonia
teórica, talvez isso não deva obstar à possibilidade de reconhecer alguns fracassos na
aplicação prática daquele conceito de justiça criminal que se começou a sujeitar a crítica
mas que ainda se não substituiu, abrindo espaço para a possibilidade de outras
experiências na pacificação do conflito criminal472.
O que se vem de dizer sobre a necessidade de não desconsiderar uma outra
dimensão do conflito, uma dimensão que não é aquela de que a justiça penal dita
tradicional primeiramente se ocupa, pode lograr alguma concretização por apelo a uma

com o império da regra de direito”) evoluíram em direcção àquilo que é o “Estado de Direito material
contemporâneo”. E o Autor esclarece que “sob esta designação quer-se compreender todo o Estado
democrático e social que mantém intocada a sua ligação ao direito, e mesmo a um esquema rígido de
legalidade, e se preocupa por isso antes de tudo com a consistência dos direitos, das liberdades e das
garantias das pessoas; mas que, por essa razão mesma, se deixa mover, dentro daquele esquema, por
considerações de justiça na promoção e na realização de todas as condições (…) do desenvolvimento
mais livre possível da personalidade ética de cada um” (in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed.
cit., ps. 26-7).
471
A afirmação desta necessidade de integração do pensamento da liberdade com o pensamento da
solidariedade não será, de resto, estranha à própria tradição liberal europeia. Como afirmou António
Manuel HESPANHA, “todo o liberalismo europeu carregou um mesmo paradoxo, logo desde a sua
primeira hora. Reivindicava-se da natureza individual, mas pressupunha a educação. Contava com os
automatismos de uma certa forma de sociabilidade, mas tinha, primeiro, que construir essa sociabilidade.
Propunha um governo mínimo, mas tinha que governar ao máximo, para poder, depois, governar um
pouco menos. Numa palavra, propunha natureza, mas precisava dos artifícios, antes da sua instalação e,
depois disso, durante a sua vigência” (in Guiando a Mão Invisível – Direitos, Estado e Lei no Liberalismo
Monárquico Português, Coimbra: Almedina, 2004, p. 6).
472
Sobre as diversas perspectivas em que se suscita a questão do justo, Eduardo MELO afirma que
“contra uma visão vertical na definição do que é justo, ela [a justiça restaurativa] dá vazão a um
acertamento horizontal e pluralista daquilo que pode ser considerado justo pelos envolvidos numa
situação conflitiva” [“Justiça restaurativa e seus desafios histórico-culturais (um ensaio crítico sobre os
fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva”, Revista de
Estudos Criminais, Porto Alegre, ano VI, n.º 21, jan-mar 2006, p. 117].

259
contraposição entre a cristalização objectiva da justiça que o direito criminal deve
representar e uma compreensão subjectiva da justiça que é aquela que se julga que a
proposta restaurativa tem no horizonte.
Para uma clarificação daquilo que se pretende significar com aquela
contraposição, eleja-se como exemplo o pensamento de Gonzalo OLIVARES e a sua
afirmação de que “rejeitamos a possibilidade de aceitar como definição categórica da
justiça aquela que esteja vinculada à percepção subjectiva de cada um. Mas não
esqueçamos que o Direito terá que enfrentar os conflitos gerados pelo choque entre a
justiça subjectivamente apreciada e a desejável objectividade do direito positivo, que se
pretende que seja uma tradução ou cristalização de determinadas ideias sobre o justo e o
injusto”473.
Ora, correndo o risco de uma excessiva simplificação de questão cuja
complexidade se reconhece, o que se pretende sublinhar a traço grosso é que a resposta
dada ao crime pelo sistema penal, estritamente balizada pelas exigências de legalidade
(inultrapassáveis em um ramo do direito cujas consequências comportam o grau de
desvalor inerente às sanções criminais), não pode deixar de ser conformada por uma
compreensão essencialmente objectiva da justiça da decisão. Ora, por mais que essa
decisão deva tender também para a sua aceitação como justa pelos destinatários, parece
dever admitir-se que ela é com frequência insuficiente na perspectiva dos intervenientes
concretos no conflito. E é assim, desde logo, porque essa decisão que se quer justa não
se quer justa sobretudo na perspectiva desses indivíduos, antes devendo assumir um
potencial de convencimento dos sujeitos indeterminados que compõem aquela
comunidade toda.
Nesta medida, pode com frequência faltar àquela resposta inerente ao exercício
do ius puniendi estadual a capacidade de convencimento dos concretos intervenientes
no conflito da sua justeza, e da sua justeza no que respeita à sua adequação e suficiência
na perspectiva da satisfação das suas necessidades concretas. É certo que mesmo aquela
convicção sobre a justeza da decisão penal (de condenação ou não de um agente) não
tem, ainda que na perspectiva subjectiva, de ser condicionada pela satisfação das

473
Gonzalo OLIVARES, “La justicia, entre principio, idea y promesa”, Serta in Memoriam Alexandri
Baratta cit., p. 221. O Autor antecede esta sua reflexão da afirmação de que “um juiz justo num sistema
submetido à legalidade será aquele que procura a realização da justiça dentro dos limites em que a lei lho
permite”. De seguida, no contexto de uma ponderação da “justiça como conceito, ideia ou valor
objectivo”, concretizando a sua opinião de que “o Direito terá de opor-se por vezes às concepções
subjectivas do justo”, relembra que “se pode dizer com razão que o direito desenvolveu-se precisamente
para pôr açaime à besta feroz da justiça, segundo a feliz imagem de Sánchez Ferlosio”.

260
necessidades individuais. Ou seja: o exercício do ius puniendi pode ser subjectivamente
avaliado como justo independentemente da satisfação individual que origine nos
intervenientes no conflito (inter)pessoal inerente ao crime. Esse juízo pode ser
formulado em autonomia perante aquele outro juízo atinente à pacificação deste
conflito. A ponderação da justeza na pacificação do conflito de que trata o direito penal
(o conflito entre a conduta do agente e valores que, por força da sua essencialidade,
foram eleitos bens jurídicos penais) pode ser desligada da avaliação da justeza da
solução atinente à reparação dos danos da vítima através de uma responsabilização
voluntária do agente. E pode sê-lo, pelo menos em um plano conceptual, quer na
avaliação subjectiva de cada um dos cidadãos que em sentido amplo são destinatários da
decisão penal, quer na avaliação subjectiva do círculo mais estreito dos destinatários
que foram directamente “tocados” pelo episódio criminal.
O facto de se afirmar que pode ser assim não significa, porém, que assim seja em
regra. Pelo contrário, um dos factores que se julga que prejudica a hodierna convicção
sobre a justeza da decisão penal – e que, nessa medida, contribui para o questionamento
da sua legitimidade e para o acentuar da sua crise – prende-se com o sentimento da
incompletude da resposta ao crime na perspectiva da satisfação das necessidades
concretas de reparação da vítima e de reintegração do agente. Este é tema que neste
ponto se julga não carecer de desenvolvimento, por ter sido precisamente por aí que se
iniciou este estudo e por se pensar que a afirmação dessa crise (ou dessas crises) ficou já
suficientemente documentada pela referência ao pensamento dos variadíssimos autores
que a enfatizam.
O que há de novo naquilo que agora se quer enfatizar não é, pois, a insatisfação
que a resposta dada ao crime pela justiça penal pode originar nas perspectivas
subjectivas dos seus destinatários (de todos, mas sobretudo dos mais directamente
envolvidos). O que se pretende enfatizar é antes que a justiça da decisão penal, na sua
objectividade e em um juízo que não pode deixar de estar relacionado com o
pensamento das finalidades penais, talvez não seja suficiente para garantir aquilo que
seria uma resposta justa ao acontecimento criminal, porque a justiça talvez não não se
baste com a punição e a reintegração dos valores “gerais”, devendo associar-se também
à satisfação de necessidades dos concretamente envolvidos.
Está subjacente ao que se vem de afirmar o entendimento de que a vítima de um
crime pode ter outras necessidades além da punição do criminoso e que a satisfação do
seu sentimento de justiça talvez se não baste (como confirmam os estudos vitimológicos

261
que mencionam o esquecimento da vítima pela justiça penal e que se referirão em
momento posterior do estudo) com a condenação e com a execução da pena.
A satisfação dessas necessidades (que nem sempre são de índole exclusivamente
material) pode ainda contribuir para uma melhoria na forma como os cidadãos avaliam
a justeza da própria decisão penal: por olharem para o crime como um acontecimento
único e dificilmente deslindarem nele uma dimensão mais pública e uma outra mais
privada, os cidadãos podem tender a valorar como decisão penal injusta uma decisão
que não logre contribuir minimamente para a satisfação das necessidades essenciais dos
atingidos pelo crime, maxime da sua vítima.
Finalmente, cumpre sublinhar que os modos de actuação da justiça penal e da
justiça restaurativa não podem deixar de ser conformados a partir do próprio “núcleo”
de cada um dos conceitos de justiça ou, como talvez se prefira, a partir de cada um dos
núcleos em que se desdobra um conceito amplo de justiça. A ser assim, quando se
entende que a justiça penal significa em primeira linha igualdade na sujeição de cada
cidadão aos deveres de cuidado com o outro e igualdade na sujeição a uma intervenção
punitiva cujos critérios são previstos de forma geral e abstracta, compreende-se o modo
como essa igualdade surge associada a uma exigência de imparcialidade e à imposição
da intervenção de um terceiro dotado de autoridade a quem se atribui a competência
exclusiva para ditar a solução justa474. A aplicação do direito penal aos concretos casos
da vida através de um direito processual penal que supõe uma verticalização do poder
de decisão torna-se, assim, compreensível.
Todavia, quando se pondera uma outra dimensão da justiça, agora a partir de um
seu “núcleo subjectivo” e relacionado com o modo como cada indivíduo que foi
interveniente num conflito criminal avalia uma solução como justa, já se admite a
relevância da sua autonomia na construção de uma outra resposta, uma resposta que se
pretende que venha a ser coerente com o essencial das suas expectativas.
A forma como a tutela dessas expectativas dos intervenientes no conflito
criminal releva para a compreensão do sentido daquilo que é uma intervenção justa
carece, porém, de maior explicitação. A interrogação que se julga ter de ser formulada

474
Veja-se a afirmação de Gonzalo OLIVARES (“La justicia, entre principio, idea y promesa”, Serta in
Memoriam Alexandri Baratta cit., p. 222) sobre o relevo da “imparcialidade, como parcial ideia de
justiça”. O Autor considera que “entendida a imparcialidade como uma posição de equidistância e
ausência de inclinação para favorecer ou prejudicar uma ou outra das partes em confronto, ela é uma
condição imprescindível da actuação de todos os poderes públicos”. Esta exigência de imparcialidade
tem fundamento, ainda segundo o Autor, em uma exigência de igualdade que é essencial para a
concretização do sentido da justiça.

262
prende-se com a questão de saber se a solução de justiça para um conflito criminal tem
de ser uma solução que corresponda àquelas expectativas. E a resposta não poderia
deixar de ser negativa se com isso se quisesse significar, por exemplo, que qualquer
decisão de condenação de um agente deixaria de ser justa quando não correspondesse à
sua expectativa quanto à absolvição. Não é, porém, destas expectativas que se trata. O
que demonstra a necessidade de precisar o conceito.
Em primeiro lugar, deve precisar-se que as expectativas tidas em conta são de
diversa natureza. Assim, existem expectativas quanto à solução justa da questão penal
propriamente dita (a solução da questão da culpa e da questão da pena, em sentido
amplo) e existem expectativas quanto à neutralização dos desvalores vários (individuais
ou relacionais) associados ao cometimento do crime. Quando se referiram antes as
expectativas individuais no contexto de uma ponderação do sentido da justeza da
resposta ao crime, não se pretendeu fazer depender em qualquer caso esta justeza da
correspondência àquelas expectativas. A legitimidade dessas expectativas individuais
terá de ser aferida em função de critérios de razoabilidade que não podem prescindir do
apelo àquelas que seriam as expectativas de um “homem médio” colocado naquela
situação. Mas esta é questão cuja complexidade não permite que se aprofunde a reflexão
em um estudo com o objecto que é o deste.
O que se pretendeu significar – e cumpre sublinhá-lo a traço grosso – foi que
uma resposta ao crime dificilmente tenderá para a realização da justiça se ignorar a
necessidade de corresponder às expectativas legítimas dos seus destinatários quanto a
dois aspectos que se prendem, em sentido muito amplo, com a punição e com a
reparação (e por isso, em certo sentido, com a “questão penal” e com a “questão
restaurativa”). A realização da justiça suporá, nessa medida, uma reintegração dos
valores, mas também uma reintegração da paz individual. E os destinatários dessa
decisão (ou decisões) acabam sempre por ser todos os indivíduos que compõem uma
comunidade e também os concretos indivíduos que intervieram no conflito criminal
(ainda que na decisão da “questão penal” se possa considerar que são primeiramente
aqueles, e na decisão da “questão restaurativa” primeiramente estes475).

475
Em sentido que parece não coincidente, mas que se julga partir também da distinção entre a protecção
dos interesses dos intervenientes concretos no crime ao nível do processo penal, por um lado, e no plano
da reparação dos danos, por outro, cfr. Enrique BACIGALUPO, que tende a reduzir o interesse da
participação da vítima à obtenção desta reparação, em detrimento da possibilidade de uma sua
participação como “sujeito” da questão penal propriamente dita. Nas suas palavras, «a redução do objecto
do processo penal e das possibilidades de exercício da acusação privada e da acção popular não afectaria
em nada os direitos das vítimas. Num direito penal que pretenda incorporar ao processo consequências

263
A ideia forte que nesta reflexão sobre o possível contributo da proposta
restaurativa para a realização da justiça se pretende enfatizar poderia ser resumida por
apelo à ideia de Jürgen HABERMAS de que “a justiça é impensável sem a existência de
pelo menos um elemento de reconciliação”476. Na interpretação que se dá a esta
afirmação no contexto do pensamento do Autor, com ela não se pretenderá referir
apenas a reconciliação em torno da vigência dos valores (ou dos bens jurídicos). Além
disso, a reconciliação a que o cultor do conceito de “acção comunicacional” atribui
ênfase parece transportar consigo uma nota de reconciliação “relacional”. Ou seja, uma
reconciliação que não é apenas de todos com as suas normas, mas que é também a
reconciliação possível dos intervenientes no conflito criminal, consigo próprios e/ou
com os outros.
Do que se vem de dizer parece resultar que a justiça restaurativa não é
compreensível sem que se faça apelo à valorização da subjectividade enquanto elemento
que o pensamento da cidadania e da democracia, mas também o pensamento da justiça,
não devem desconsiderar477. Aquilo que se pretende significar continua a poder ser
ilustrado pela interrogação de Franz FANON sobre a razão pela qual os europeus falam
tanto sobre o “indivíduo” em geral mas não são capazes de o reconhecer quando o
encontram478. Tender-se-á, através de propostas como a restaurativa, para a valorização
possível daquilo que o cidadão concreto manifesta precisar e querer, sem prejuízo de se
continuar a reconhecer a consagração de direitos e de deveres de natureza geral e

deduzidas do modernamente chamado “paradigma da protecção da vítima” a participação da vítima como


acusação particular ou como acusação popular não é essencial. Pelo contrário, a possibilidade de as
vítimas assumirem este papel costuma ter consequências prejudiciais para si próprias (…). Nos sistemas
europeus modernos a satisfação dos interesses das vítimas é perseguida através de soluções rápidas
exteriores ao processo penal» (“La posición del fiscal em la investigación penal”, Universitas Vitae –
Homenaje a Ruperto Núñez Barbero, Ed. Fernando Álvarez, Aquilafuente/Ediciones Universidad de
Salamanca, 2007, ps. 70-1). Diferentemente, o que se defende é a relevância das expectativas do ofendido
constituído assistente relativas à justeza da decisão da questão penal e também a relevância das
expectativas das vítimas no que tange à reparação dos danos que o crime lhes causou. O tratamento desta
questão será retomado em momento posterior, a propósito da legitimidade do assistente para recorrer
desacompanhado do ministério público da medida e/ou da espécie da pena.
476
Jürgen HABERMAS, Comentários à Ética do Discurso cit., p. 72.
477
Sobre a questão da subjectividade e da cidadania, cfr. Boaventura de SOUSA SANTOS, Pela Mão de
Alice cit., p. 203 ss.
478
Cfr. Franz FANON, Les Damnés de la Terre, Paris: Maspero, 1974, p. 230. Apesar da transposição
que hoje é feita da afirmação de Fanon para a crítica, pelos defensores da subjectividde, da excessiva
abstracção na compreensão do indivíduo, impõe-se que aquela afirmação seja contextualizada. Fanon, um
veemente crítico do movimento colonial, opunha-se à desumanidade do colonizador europeu e à
contradição dessa desumanidade com os princípios que na Europa se tornavam dominantes. Esta ideia é,
de resto, sublinhada no prefácio assinado por Jean Paul SARTRE e na sua afirmação de que chegou o
tempo em que “as vozes amarelas e negras falavam ainda no nosso humanismo mas era para nos reprovar
a nossa desumanidade”. De seguida, refere-se aos escritores e aos poetas dos países colonizados que,
“com uma paciência incrível, tentaram explicar-nos que os nossos valores combinavam mal com a
verdade das suas vidas”.

264
abstracta, cuja protecção pode continuar a ter de caber a um terceiro dotado de
autoridade.
Quando se faz apelo ao elemento de reconciliação referido por HABERMAS
conjuntamente com o imperativo de reconhecimento do outro através do encontro tido
em mente por FANON, aproximamo-nos, segundo se crê, daquele que é o núcleo da
justiça restaurativa e também daquilo que permite que a compreendamos como
contributo útil para uma existência mais residual do sancionamento penal. Só um
procedimento radicado num encontro entre iguais contribui de forma mais plena para
que se conheça o outro (e as circunstâncias que condicionaram a sua participação nesse
acontecimento que é o crime) em moldes que facilitarão a opção por alternativas à
punição.
Aquilo que aqui se pretende significar tornar-se-á, espera-se, mais claro com o
auxílio de um estudo referido por Nils CHRISTIE a propósito da actuação do lensmann
norueguês e no qual se julga encontrar uma tendência de resposta para uma interrogação
que, mesmo antes de se iniciar este estudo, já era causadora de inquietação: por que
razão tendem as pessoas a olhar para o criminoso, em regra, como alguém diferente,
aquele que inexiste no seu círculo de familiares, amigos, colegas de trabalho ou
vizinhos?; por que razão, quando reivindicam um processo penal menos garantístico e
uma punição mais severa, não consideram as pessoas que o objecto desse processo ou
dessa punição podem ser elas próprias ou algum dos seus próximos?
Esta questão antiga veio à superfície com a leitura daquilo que, num contexto
problemático não inteiramente coincidente, Nils CHRISTIE refere a propósito de uma
investigação centrada na actuação do lensmann norueguês, que o próprio Autor define
como “uma espécie de polícia, mas com numerosas tarefas civis adicionais”. Em
resultado de entrevistas a estes agentes, verificou-se a tendência que manifestavam para
negarem a ocorrência de crimes nas suas áreas de actuação e, quando interrogados sobre
isso, o hábito de associarem a delinquência exclusivamente a “estranhos que estavam de
passagem”. A reflexão que a partir daqui é tecida por CHRISTIE radica na
desculpabilização que cada lensmann faz dos ilícitos dos seus concidadãos (porque
conhece as suas “razões”) e na forma como, a partir daí, encontra alternativas à
punição479.

479
Nils CHRISTIE refere-se, a este propósito, a um estudo publicado por Wendy Bjorkan em 1977 e
denominado Lensmannsetaten: En overlevning fra fortiden eller en modell for fremtiden?. Entre outros
exemplos de actuação do “lensmann” que comprovam a sua opção por tratar como “não criminais”

265
Quando se considera este trecho da argumentação do Autor norueguês no
contexto daquela interrogação anterior sobre a forma como se imputa o crime sobretudo
aos outros que são diferentes de nós, e quando se entrecruzam os dois segmentos
reflexivos com o sentido da proposta restaurativa, talvez se possa concluir que o facto
de se conhecer o outro contribui para que os seus comportamentos possam mais
facilmente ser enquadrados sob perspectivas diversas da criminal480. Esses
comportamentos são compreendidos porque são contextualizados e, consequentemente,
o conhecimento desse contexto permite que se encontrem formas de lidar com o conflito
mais adequadas às suas especificidades. Transpondo esta linha de pensamento para a
justiça restaurativa, uma conclusão possível é a de que o elemento de “encontro vítima-
agressor” que esta proposta encerra, mais do que uma questão meramente
procedimental, é condição nuclear quer para o seu objectivo de pacificação, quer para a
possibilidade de vingar uma alternativa à punição. Tratar-se-ia, assim, da reconciliação
defendida por Habermas, através do conhecimento exigido por Fanon, de algum modo
corroborados pela argumentação de Christie.
Ora, nesta exacta medida, ao assumir como finalidade a oferta de uma
possibilidade de pacificação individual e relacional alicerçada nessa ideia de
reconciliação, que retrai a intervenção punitiva do Estado, a proposta restaurativa guiar-
se-á ainda por um desiderato de justiça. E, nessa exacta medida, para além da referência

incidentes que envolvem os seus concidadãos, considera-se o caso de uma denúncia por assalto a uma loja
de armas, na sequência da qual aquele agente público encontra um jovem, Ole, “alcoolizado como
habitualmente” e com as armas dentro do carro “para irritar o pai”. O Lensmann levou o jovem Ole para
casa e as armas para um lugar seguro, ainda nas palavras de CHRISTIE. E a sua conclusão é a de que
aquela que poderia ter sido “uma grande história”, eventualmente envolvendo “helicópteros e polícia anti-
terroristas”, acabou por ser “apenas Ole”, “uma velha história de miséria e de disputas familiares”. E o
Autor norueguês aduz, agora muito próximo da argumentação acolhida pelos criminólogos críticos, que
«o crime não é uma “coisa”. Crime é um conceito aplicável em certas situações (…). Pode criar-se crime
criando sistemas que pedem a palavra. Pode extinguir-se o crime criando o tipo de sistemas oposto» (in
Limits to Pain cit., ps. 73-4).
480
A ideia de que mais dificilmente qualificamos como “criminais” os comportamentos daqueles que
conhecemos ou julgamos conhecer é também patente em episódio narrado por Laborinho LÚCIO no seu
estudo “Processo penal e consciência colectiva” (in Que Futuro para o Direito Processual Penal, coord.
de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia,
Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 151). Reconhecido numa “esplanada soalheira” por duas senhoras,
foi-lhe perguntado por uma delas nos seguintes termos: “então o senhor acha bem que se prenda uma
pessoa, tão simpática, tão boa senhora, tão amiga do povo, que é um gosto ouvi-la?”. Tratando-se de uma
hipótese de prisão preventiva de pessoa que era uma “figura pública”, o inquirido respondeu: “a senhora
não tem ouvido tanta gente a reclamar pelo facto de vivermos num país sem ordem, onde, amiúde, a
polícia prende e os juízes logo soltam?”. A senhora, porém, de imediato retrucou, com um “olhar de
desencanto”: “Ó, senhor Doutor! Esses são criminosos!...”. Apesar de não ser este o contexto da análise
na qual o Autor insere a narrativa e de ser ainda possível um seu outro enquadramento (no âmbito dos
estereótipos que favorecem a desigualdade da justiça penal), parece pertinente a sua referência enquanto
exemplo de uma compreensão do criminoso como um “outro desconhecido”. E, consequentemente, como
exemplo da utilidade que o facto de se propiciar esse conhecimento pode adquirir no seio dos
mecanismos alternativos à punição.

266
às práticas ou às técnicas restaurativas, talvez não seja por inteiro desadequada a
referência, ainda, a uma justiça restaurativa. Essa justiça que talvez não se deva
dissociar da afirmação, por Paul RICOEUR, de que “todo o direito assenta no ganho
obtido pela palavra sobre a violência”481.
Depois de se ter percorrido este caminho na procura de alguns sentidos de
resposta para o problema de saber se na proposta restaurativa vive mais do que uma
proposta de gestão eficiente dos conflitos (caminho porventura demasiado longo na
sistemática deste estudo, mas inevitavelmente curto quando o lugar por onde se caminha
é o dos sentidos da justiça), é tempo de esboçar, em jeito de resumo e por uma ordem
que é tendencialmente arbitrária, algumas das razões que justificam a ideia de que na
proposta restaurativa está implícita uma certa ideia de realização da justiça. O seu
fundamento não é apenas o da utilidade numa perspectiva de celeridade e de economia.
Em primeiro lugar, há no sentido de justiça afirmado pelos cultores da proposta
restaurativa um reconhecimento da exigência liberal de mais liberdade e de restrição da
decisão autoritária do conflito através da punição. Em segundo lugar, na compreensão
da justiça inerente à proposta restaurativa assume destaque a ideia de solidariedade
inerente às concepções de justiça que sustentam o Estado Social. Em terceiro lugar,
pode afirmar-se que, além da solidariedade, são convocadas pela proposta restaurativa
as exigências de fraternidade e de responsabilidade centrais na teoria republicana. Em
quarto lugar, reconhece-se na justiça restaurativa uma nota comunitarista (a qual, como
se quis aclarar, pode assumir diferentes matizes e intensidades, sendo que, na concepção
perfilhada, tem dimensão menor do que a propugnada por vários cultores da justiça
restaurativa), relacionada sobretudo (ainda que não só) com a ideia de que a resposta
restaurativa pode ser uma resposta mais útil para a comunidade e/ou com a ideia de que
a resposta será tanto mais eficaz quanto maior for o envolvimento comunitário na sua
definição. Em quinto lugar, convergem na proposta restaurativa a valorização da
subjectividade482, da alteridade e da comunicação que constituem património de
correntes filosóficas e sociológicas contemporâneas

481
Paul RICOEUR, “Autonomia e Vulnerabilidade”, A Justiça e o Mal (Dir. de A. Garapon/D. Salas),
Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 151.
482
A valorização das diferenças entre as pessoas que funda a necessidade de as tornar sujeitos da solução
do conflito é coerente com a dimensão de “singularidade” que Werner MAIHOFER julga indissociável
do reconhecimento da dignidade humana. Da sua tese de que “Estado de Direito, Estado Social e
democracia têm o seu sentido último e fim superior, não no Estado instituído por tais vias e com esses
meios, mas sim na criação daquelas condições de preservação e desenvolvimento que são irrenunciáveis
(…) a uma digna existência do homem, livre da submissão e da exploração, do temor e do desamparo”
pode decorrer a aceitação de um papel mais subsidiário do Estado na definição da solução para conflitos

267
A ideia de que, quer o sistema de justiça penal, quer a proposta restaurativa são
orientados por ideais de justiça relança, na busca dos espaços de (des)encontro entre os
dois modelos (o penal e o restaurativo) a problemática das finalidades. Uma
compreensão do conceito de justiça restaurativa que se centre na busca de um seu
conteúdo material e que não se baste com a referência a um específico procedimento483
suporá, pois, de forma necessária, uma reflexão sobre as finalidades. E, uma
compreensão daquilo que eventualmente distingue a justiça restaurativa da justiça penal
não poderá, assim, prescindir de uma reflexão comparativa em torno das respectivas
finalidades. Esse é, portanto, aspecto que terá de merecer atenção em momento próximo
deste estudo.

6.   O conceito de justiça restaurativa: uma hipótese de compreensão

Das considerações até aqui tecidas ressaltam as dificuldades inerentes à tarefa de


definição da justiça restaurativa. Foram mencionados os perigos associados a procurar
delimitar uma proposta que surge também para legitimar, através da fundamentação,
uma pluralidade de práticas diversas e de práticas em mudança. Apesar disso, julga-se
que não se deve renunciar a uma enunciação, sob a forma de resumo, daquilo que,
afinal, se julga que a justiça restaurativa deve ser.
Uma nota inicial – e de importância não despicienda – prende-se com o sublinhar da
dificuldade de catalogação da justiça restaurativa enquanto nova corrente do
pensamento e nova prática (e a ordem é, no caso, arbitrária, tendo até em conta que o
critério da precedência cronológica poderia aconselhar opção inversa), orientadas para
o crime. Ora, apesar de ser pacífica a ideia de que o crime constitui o objecto de
abordagens diversas – ele tornou-se, nas palavras de Jorge de Figueiredo DIAS, “em
objecto de uma multiplicidade de ciências” –, essas distintas abordagens estão
tendencialmente agrupadas e organizadas enquanto disciplinas criminais, num espectro

que são também (inter)pessoais (in Estado de Derecho y Dignidad Humana, trad. de José Luis Dalbora,
original alemão de 1968, Buenos Aires: editorial B de F, 2008, ps. 54-6).
483
A rejeição dessa definição em função de um critério puramente formal é sublinhada pela maioria dos
cultores do paradigma restaurativo. Entre eles, Lode WALGRAVE (“Restorative Justice: from ethical
philosophy to empirical assessment”, Newsletter of the European Forum for Restorative Justice,
Dezembro de 2006, vol. 7, 3, p. 4), sublinha que “a justiça restaurativa não pode ser reduzida a um
processo, por duas razões. Em primeiro lugar, um processo não pode ser definido e avaliado sem uma
referência ao propósito que lhe subjaz (…). Em segundo lugar, essa restrição da justiça restaurativa a um
processo orientado por uma ideia de voluntariedade “limitaria drasticamente o seu alcance e remetê-la-ia
para as margens do sistema, como uma forma de diversão. A resposta dominante ao crime permaneceria
coerciva e punitiva”.

268
que vai desde as mais estritamente jurídicas (como a ciência normativa do direito penal,
a dogmática jurídico-penal) até às outras disciplinas sociais e humanas, de que
constituem exemplo a sociologia criminal, a antropologia criminal, a psicologia
criminal ou a psiquiatria criminal484.
Existem vários factores que desaconselham, segundo se crê, uma qualquer tentativa
de catalogação da justiça restaurativa no panorama das ciências criminais no momento
actual, mas que se relacionam, todos eles, sobretudo com duas circunstâncias.
Em primeiro lugar, os tempos são de questionamento dos próprios sentido e função
da ciência, maxime das ciências sociais. Nas exactas palavras de Zygmunt BAUMAN,
“desarmar a realidade de modo a torná-la mais suave, mais maleável e receptiva à
mudança foi o aspecto determinante do espírito moderno”. E o Autor acrescentava: “era
preciso conhecer o objecto porque conhecê-lo era equivalente a desarmá-lo. Desvendar
o seu mistério era como roubar o trovão a Júpiter. Uma vez conhecido, o objecto
deixaria de oferecer resistência; no pior dos cenários, poder-se-ia antecipar a resistência
que o objecto fosse oferecendo, tomar as devidas precauções e precatar o seu impacto”.
As dificuldades inerentes a esta concepção da ciência social “que é, em si mesma, uma
invenção moderna” adensam-se, porém, quando «”dominar a natureza” significava,
sobretudo, dominar a própria espécie humana, e tal significava conduzir e tornar mais

484
Cfr. Jorge de FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed. cit., ps. 18-19), que
afirma que «desde há muito e por toda a parte se reconhece que o “crime” constitui um fenómeno de
patologia social diversificado, que releva não apenas de condicionalismos exógenos (externos, sociais),
mas também de substratos endógenos (internos, individuais) componentes da mais complexa de todas as
realidades: a realidade humana; que releva do Homem total e da sua condição. Isto faz compreender que,
ao longo do século XIX, quando se estabeleceu (julgava-se que definitivamente) o estatuto do
pensamento científico moderno, o crime se tenha tornado em objecto de uma multiplicidade de ciências».
E, acrescenta o Autor, «a este conjunto vastíssimo de disciplinas científicas que têm o crime por objecto
chamou von LISZT a “enciclopédia das ciências criminais”». Todavia, em um círculo mais restrito,
encontra-se aquilo a que o Autor chamou a gesamte Strafrechtswissenschaft (a ciência conjunta – total ou
global – do direito penal), na qual se incluiriam como ciências autónomas a ciência estrita do direito
penal, a criminologia e a política criminal. Não cumpre a este estudo qualquer propósito de ponderação da
forma como evoluíram, nem sob o ponto de vista da sua hierarquia nem do seu estatuto, estas ciências
criminais. Deixe-se apenas a nota de que o modo como foram pensadas por von Liszt não resistiu à
evolução do sistema social nem à evolução que as várias ciências foram sofrendo no que respeita,
nomeadamente, à sua função, ao seu objecto e à sua metodologia. Sobre o assunto, cfr. Jorge de
FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed. cit., p. 21 ss. Também com interesse,
sobretudo histórico, para uma compreensão das “relações da sociologia criminal e do direito penal com
outras sciencias”, em uma perspectiva característica do positivismo do século XIX e do início de século
XX, cfr. António HENRIQUES DA SILVA, Elementos de Sociologia Criminal e Direito Penal, Lições
do ano lectivo de 1905-1906 na 14.ª cadeira da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1905, p. 47 ss.

269
eficientes os movimentos de todos e cada um dos membros individuais dessa
espécie»485.
Aquilo que por recurso a este trecho do pensamento de BAUMAN se quis vincar foi
que a crise deste horizonte moderno de compreensão das ciências sociais prejudicou,
naturalmente, a “arrumação” das próprias ciências criminais nos moldes em que se
atribuía à criminologia a função de explicação das causas do crime e à política criminal
a formulação de proposições, com base naqueles ensinamentos, orientadas para a
redução da criminalidade.
Em segundo lugar, aquela tentativa de catalogação é prejudicada pela dificuldade de
afirmação, neste tempo, daquilo que a justiça restaurativa é, porque ela é várias coisas,
quer se pensarmos nos procedimentos adoptados em vários pontos do globo, quer se
considerarmos as muito distintas abordagens teóricas de que é objecto.
O que se julga, para já, relevante sublinhar é, em primeiro lugar, a existência de
obstáculos ao entendimento da teoria restaurativa como uma disciplina autónoma que
tem o crime como objecto, sendo esse objecto partilhado por cada uma das ciências
ditas criminais em função da existência de um enfoque específico. A justiça restaurativa
surge como denominação sob a qual se agrupa uma pluralidade de teorias e de
programas com contornos diversos. Com um intuito de mera simplificação, talvez possa
afirmar-se que, na teoria restaurativa, existem reflexões de natureza mais substantiva
(orientadas, por exemplo, para o sentido e as finalidades da intervenção) e outras de
índole mais adjectiva (e centradas nos procedimentos restaurativos). E depois, além
dessa teoria mas também genericamente agrupados sob a designação “justiça
restaurativa”, existem programas restaurativos diversos em funcionamento em distintos
espaços.
Todavia, mesmo quando se toma para análise apenas essa teoria da justiça
restaurativa, aquilo que em primeira linha salta à vista continua a ser a diversidade: só a
título de exemplo, pode notar-se que existem perspectivas essencialmente jurídicas,
outras de índole mais filosófica, outras ainda relacionadas com a ciência política,
algumas orientadas para uma abordagem mais sociológica ou psicológica. Trata-se,

485
Zygmunt BAUMAN (A Sociedade Sitiada, trad. de Bárbara Pinto Coelho, Lisboa: Instituto Piaget,
2002, ps. 9, 10, 41), que acrescenta que «a modernidade determinou-se em eliminar o acidental e o
contingente. Só se pode perceber o que foi o célebre “projecto da modernidade” se o entendermos como
uma glosa retrospectiva da intenção firme de introduzir determinação onde, de outro modo, acidentes e
jogos de acaso reinariam; intenção de tornar o ambíguo eindeutig, o opaco transparente, o espontâneo
calculável e o incerto previsível; intenção de injectar nas coisas o reconhecimento de um propósito e,
posteriormente, obrigá-las a lutar pela consecução desse propósito».

270
nesta medida, de uma teoria tendencialmente anárquica, no sentido em que é alheia às
regras de delimitação do objecto das restantes ciências criminais. A tentativa de
delimitação conceptual que aqui se procura é, segundo se crê, influenciada por quadros
mentais que não são os preponderantes entre os cultores do pensamento restaurativo.
Assim sendo, o que se julga dever realçar é a convivência, na teoria restaurativa, de
uma pluralidade de abordagens influenciadas por várias outras ciências ou áreas do
conhecimento que tomam o crime como objecto em sentido amplo. Todavia, quando se
volta o olhar para as ciências criminais em sentido mais estrito (em um sentido próximo
daquele em que von Liszt referiu a existência de uma “ciência conjunta do direito
penal”), julga-se que a teoria restaurativa revela afinidades maiores com a criminologia
e com a política criminal. Com esta, por ser sua preocupação central uma outra
definição das estratégias de controlo social da criminalidade. Com aquela, porque quer
as suas origens quer a actual conformação das suas finalidades surgem definitivamente
influenciadas por correntes criminológicas que podemos genericamente agrupar em
duas grandes “tendências”: a criminologia crítica e a sua radicalização através do
abolicionismo penal, por um lado; a vitimologia, por outro486.

486
Acrescente-se, ainda, que o momento a partir do qual uma determinada área do pensamento passa a ter
autonomia científica não é isento de dúvidas. Assim, se se tomar como exemplo a própria criminologia
(que é comum considerar no conjunto das ciências criminais), verifica-se uma divergência entre aqueles
que associam a sua origem ao final do século XVIII e à denominada Escola Clássica, enquanto outros a
remetem para o início do século XIX e o advento do pensamento de pretensão científica com Pinel ou
Quételet, e outros ainda a atribuem apenas à segunda metade de oitocentos e ao fortalecimento da Escola
Positiva Italiana com Lombroso, Ferri e Garofalo. Sobre o assunto, cfr. Álvaro PIRES (“La criminologie
d’hier et d’aujourd’hui”, cit., p. 13 ss), que acaba por ponderar a questão da origem à luz de dois
diferentes critérios: como “campo de estudo”, a data de nascimento da criminologia é imprecisa, mas
situa-se a partir do século XVIII e da escola Clássica (ainda que possa ter relevância em momentos
anteriores); como “actividade de conhecimento”, o momento da origem é mais determinável e associa-se
à actividade da Escola Positiva Italiana. A distinção entre a criminologia como “campo do conhecimento”
e como “actividade do conhecimento” surge, no pensamento do Autor, com base na definição daquele
como “saberes diversos sobre a deviance e a reacção social” e na definição desta enquanto “ideia de um
projecto especial de conhecimento interdisciplinar (científico e ético) sobre a questão criminal”. O Autor
resume, ainda, algumas das várias incertezas inerentes à criminologia: «não nos entendemos sobre o seu
estatuto enquanto ciência autónoma, o consenso sobre os seus objectos foi sempre efémero e parcial, a
determinação da sua data de nascimento é motivo para discussões intermináveis e, com excepção dos
casos mais evidentes, não sabemos dizer facilmente com base em que critério será uma obra considerada
ou não “de criminologia”. Para além disso, o próprio nome “criminologia”, que foi inventado no último
quartel do século XIX, não foi a única designação, nem provavelmente a primeira, que se deu a este
saber. As expressões “antropologia criminal” e “sociologia criminal” parecem ter precedido a de
“criminologia” e outras denominações foram depois postas à disposição». Apesar das incertezas, é usual
associar-se a utilização, pela primeira vez, do termo “criminologia” à obra de Raffael Garofalo com o
mesmo título, publicada em 1885 (o que não impede outros autores, como Van Kan ou Roberto Lyra, de
associarem antes a primeira utilização do termo a Topinard). No que respeita especificamente ao “estatuto
científico” da criminologia – adoptando a terminologia de – dá-se conta das divergências em torno de
saber se ela é uma ciência autónoma, se é apenas um ramo de uma outra ciência, ou se constitui antes um
“campo de estudo” composto por saberes diversos. E referem-se exemplos dessas diversas compreensões:
Lombroso e Ferri classificavam a criminologia como um ramo de outra ciência (respectivamente, a

271
A ser assim, aquilo a que se crê que só o tempo poderá trazer respostas prende-se
com a evolução da teoria restaurativa enquanto ramo do pensamento sobre o crime, e a
sua eventual conformação futura como campo do conhecimento e como actividade do
conhecimento interdisciplinar487 ou antes, meramente, como capítulo de estudo – de
maior ou menor dimensão – no contexto de várias outras ciências criminais, sobretudo a
criminologia e a política criminal488. De momento, tendo em conta os factores da

biologia e a sociologia); Sutherland definia a criminologia enquanto corpo de conhecimentos relativo ao


crime como fenómeno social e via nela um campo de estudo composto por saberes diversos agrupados em
torno desse objecto; a concepção dominante na Europa continental a partir dos anos sessenta do século
XX consiste em atribuir à criminologia estatuto de ciência portadora de objecto, métodos, conceitos e
teorias próprios (assim, por exemplo, Houchon e Ellenberger). O entendimento de Álvaro PIRES não
coincide com nenhuma destas três opções. Na sua opinião, a criminologia tem um “duplo estatuto”: “ela é
– e paradoxalmente – duas coisas relativamente diferentes: um campo de estudo, como alguns viram, e
uma actividade complexa de conhecimento interdisciplinar, de natureza simultaneamente científica e
ética, tendo por finalidade contribuir para a elucidação e a compreensão da questão criminal em sentido
amplo”. O Autor não vê na criminologia, porém, uma ciência autónoma (como o seriam a psicologia ou a
sociologia), mas antes, sublinhe-se, “uma actividade complexa de conhecimento (científico e ético)”.
Guarda-se, assim, a cientificidade, não se invocando porém a autonomia, considerada prejudicada pela
própria forma de ser da criminologia, que é a interdisciplinaridade, apontada como “forma de
desconstrução das autonomias”. Essa “actividade complexa de conhecimento científico e ético” associa-
se à “ideia de ter uma visão global, a mais global possível num determinado momento, dos problemas,
questões e conhecimentos relacionados com a questão criminal (comportamentos problemáticos e
controlo social), e tê-los em conta na produção de novos conhecimentos”. Deve, ainda, esclarecer-se que,
na opinião do Autor, a carência de autonomia científica da criminologia não decorre só da ausência de
especificidade da sua metodologia, mas sobretudo da inexistência de um objecto que possa considerar-se
próprio: “a dificuldade da criminologia está precisamente em ela não ser uma ciência autónoma (…)”,
que “não tem um domínio próprio”; “os seus objectos e as suas teorias pertencem, ao mesmo tempo, a
outras disciplinas. Surge assim um problema de escolha e de determinação dos objectos que é mais volátil
do que aquele que se encontra nas ciências autónomas”. E Álvaro PIRES enfatiza que esse problema se
pode pôr de “uma forma brutal”, relacionada com a interrogação sobre “que parte dos objectos e dos
saberes das outras disciplinas” deverão ser apropriados pela criminologia para depois serem convertidos
no objecto criminológico. Não cabe a este estudo a pretensão de uma tomada de posição quanto ao
estatuto da criminologia [a sua classificação como “disciplina autónoma” ou como “sub-disciplina”
permanece controvertida, como explicam Mary BOSWORTH e Carolyn HOYLE (“What is criminology?
An introduction”, What is Criminology, Eds. M. Bosworth/C. Hoyle, Oxford: Oxford Univesity Press,
2011, p. 6] mas, tão-somente, dar conta da existência dessa divergência como contributo parcial para a
justificação da inconveniência, neste momento, sequer de uma tentativa de catalogação, a este nível, da
teoria restaurativa.
487
Jorge de FIGUEIREDO DIAS e Manuel da COSTA ANDRADE (Criminologia cit., p. 114 ss)
esclarecem que o conceito não prescinde de uma certa integração metodológica e da capacidade de
“coordenar correctamente os resultados parcelares, altamente especializados, dentro de uma consideração
unitária e nova do seu objecto de estudo”. Os Autores acrescentam que “a interdisciplinaridade e a
integração constituem (…) ideias-limite susceptíveis de assumir, na prática, vários graus”, entre os quais
elencam, na senda de Luzki ou de Göppinger, a “multidisciplinaridade pura”, em que há uma mera
justaposição; a “multidisciplinaridade coordenada” e, finalmente, a “interdisciplinaridade integradora”,
que supõe investigação conjunta e resultados comuns, sendo dificilmente discerníveis os contributos
individuais de cada disciplina. No seu Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed. cit., p. 19, Jorge de
FIGUEIREDO DIAS retoma a definição que com COSTA ANDRADE, na obra antes citada, tinham dado
de “ciência interdisciplinar” como “uma ciência assente na reunião de campos especiais e de métodos
diversificados num trabalho comum; mas capaz de coordenar correctamente os resultados parcelares
especializados dentro de uma consideração unitária e nova do seu objecto global”.
488
A própria definição de fronteiras entre a política criminal e a criminologia tornou-se mais complexa
quanto esta começou a reivindicar como objecto seu a crítica da actuação das instâncias formais de
controlo, mormente do legislador, prejudicando a distinção com base na concepção “tradicional” de que a

272
precocidade, da pluralidade de compreensões e de práticas, das diversas possibilidades
de concatenação com o funcionamento do sistema penal e de uma certa ausência de
suficiente aprofundamento teórico, julga-se indevida uma qualquer referência quer à
“ciência” restaurativa, quer ao “sistema” restaurativo. Eis as razões principais pelas
quais se vem optando por referir antes a “proposta restaurativa” ou a “justiça
restaurativa”, com o que se abrange, na acepção que aqui se lhe dá, quer o “pensamento
restaurativo”, quer as “práticas restaurativas”.
Ainda no contexto deste esclarecimento sobre aquela que se julga ser a
desnecessidade – talvez até a inconveniência – de uma catalogação da teoria restaurativa
no universo das ciências criminais489, deve registar-se idêntica opinião – e fundada
sobretudo nas mesmas razões de precocidade da catalogação – no que tange à sua
apresentação como subsistema do sistema social e ao questionamento de uma sua
qualquer autonomia. Não se pretendendo transpor para o contexto restaurativo uma
certa compreensão do sistema jurídico-penal (nas palavras de Jorge de FIGUEIREDO
DIAS, “o sistema jurídico-penal – contituindo embora um subsistema do sistema
jurídico como um todo, o qual constitui por sua vez um subsistema do sistema social –

criminologia devia permanecer uma “non-policy-making-discipline” (entendimento justificado por


Álvaro PIRES – ob. cit., p.13 ss – com base na ideia de que a separação da actividade científica e das
aplicações políticas era necessária para preservar a objectividade do cientista e a credibilidade da ciência).
Por mais que essa dificuldade de delimitação seja hoje conhecida, julga-se que sempre se poderá
continuar a afirmar que a criminologia supõe genericamente um conhecimento do fenómeno criminal,
enquanto a política criminal se centra sobretudo na reflexão tendente à definição de propostas para limitar
esse fenómeno criminal. Ora, na medida daquilo que agora interessa a este estudo (e que é uma tentativa
de localização da justiça restaurativa neste complexo mosaico), sempre se poderá afirmar, ainda que com
cautela, que convivem na sua teoria as duas vertentes: por um lado, procura-se compreender o fenómeno
criminal (afirmando a sua outra dimensão de conflito interpessoal entre um agente e a sua vítima e a
necessidade de uma reacção que lhe seja adequada); por outro lado, assume-se o objectivo de propor
medidas conducentes à pacificação desse conflito (e, por isso, em certo sentido, medidas político-
criminais). Todavia, além disso, parecem também claros os espaços de conexão e as necessidades de
harmonização com o direito penal e o direito processual penal – o que constituirá o objecto da parte
segunda deste estudo.
489
O que hoje parece certo é uma relativa incerteza quanto aos próprios critérios com base nos quais deve
repousar a qualificação como “ciência autónoma”. Como também nota Álvaro PIRES (últ. ob. cit., p. 13
ss), questiona-se actualmente a crença de que a autonomia de uma ciência dependa da adopção de
“métodos próprios”, já que “as formas de observação e de colecta de dados são largamente comuns a
todas as ciências humanas e as diferenças de método, quando existem, relevam mais dos objectos do que
das ciências propriamente ditas”. E exemplifica-se: “é certo que não se podem fazer entrevistas a algas
marinhas, mas a entrevista, como método, não é mais criminológica do que psicológica, sociológica ou
antropológica”. Assim, o que parece mais interessante do que a afirmação dessa autonomia científica é a
compreensão da forma como em cada tempo se concebe a interdisciplinaridade e, sobretudo, a
ponderação de quais as ciências a que num dado momento se atribui primazia no conhecimento
criminológico. A este propósito, Álvaro PIRES pondera a passagem de uma época (até aos anos sessenta
do século passado) em que a biologia, a psicologia e a sociologia eram apontadas como «as três
“disciplinas fundamentais” da criminologia concebida como ciência empírica» para a época actual, em
que «aquilo que é considerado “fundamental” é a sociologia, a psicologia e talvez também um certo
conhecimento da filosofia e da história ou teoria do direito».

273
possui de todo o modo a sua teleologia própria, a sua específica índole funcional e a sua
racionalidade estratégica; bem podendo afirmar-se que ele é, nesta acepção e nesta
medida, mais que um sistema autónomo, um sistema autopoiético”490), sempre se
deverá esclarecer que, no entendimento que se julga dever ser dado à proposta
restaurativa, também ela possui uma teleologia e uma racionalidade próprias, assim
como uma específica índole funcional.
Reconhecido que está, assim, um certo fracasso na tentativa de uma busca de
catalogação estrita da teoria restaurativa no universo das ciências que tomam o crime
como objecto491, julga-se que isso não deve impedir, porém, uma procura de
compreensão do seu sentido orientada para aquela especificidade teleológica e
funcional.
Deste modo, se bem se vê a questão, esse propósito de compreensão do sentido da
justiça restaurativa tem de passar pelo sublinhar da sua específica função, assim como
das suas específicas finalidades e do seu específico procedimento492. Aquela função
distingue-se do objectivo de protecção de bens jurídicos e relaciona-se, antes, em
primeira linha com a pacificação do conflito (inter)pessoal através da satisfação das
necessidades que os intervenientes no conflito julgam que são as suas. As finalidades da
intervenção restaurativa serão, assim, a reparação dos danos originados pelo crime
através de uma responsabilização voluntariamente assumida pelo agente. O
procedimento aproxima-se de alguns ideais que Autores como Lyotard associam à pós-
modernidade, valorizando-se a forma participada da tomada de decisão e erigindo-se a
autonomia da vontade individual a fonte primeira da procura de solução para o
conflito493.

490
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª ed. cit., p. 30.
491
O que se pretende significar é também que, em certo sentido, a própria questão dessa catalogação viu
muito diminuída a sua importância. Assim, Georges PICCA afirma que “as controvérsias (…) sobre a
natureza científica (ou não) da actividade criminológica perderam (com razão) actualidade. É, por
conseguinte, menos na construção de modelos científicos do que na diversificação dos procedimentos da
pesquisa, que novas perspectivas de futuro podem abrir-se às diversas criminologias” (“Pour une
criminologie d’avenir”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III,
Coimbra: Coimbra Editora, 2010, ps. 1336-7).
492
No reconhecimento desta centralidade, para a tentativa de definição, quer das finalidades, quer dos
procedimentos, vai implícita a concordância no essencial com a forma como a Declaração n.º 2002/12,
adoptada pelo Conselho Económico e Social da Organização das Nações Unidas, esboça o sentido de
“programa de justiça restaurativa” por apelo ao uso de processos restaurativos para atingir resultados
restaurativos.
493
Sobre uma certa “deslegitimação” da modernidade e sobre a necessidade de afirmação de outras
narrativas nomeadamente através de uma forma participada das tomadas de decisão, cfr. Jean-François
LYOTARD, A condição pós-moderna, Lisboa: Gradiva, 2003, 3.ª ed., p. 83 ss.

274
Assim sendo, as considerações que se foram tecendo sustentam a afirmação de
que a justiça restaurativa deve ser vista como um modo de responder ao crime (e, nessa
medida, como uma pluralidade de práticas associadas a uma pluralidade de teorias
agrupadas em função de uma certa unidade) que se funda no reconhecimento de uma
dimensão (inter)subjectiva do conflito e que assume como função a pacificação494 do
mesmo através de uma reparação dos danos causados à(s) vítima(s) relacionada com
uma auto-responsabilização do(s) agente(s), finalidades estas que só logram ser
atingidas através de um procedimento de encontro495, radicado na autonomia da
vontade dos intervenientes no conflito, quer quanto à participação, quer quanto à
modulação da solução.
Justifica-se, segundo se crê, uma nota final relacionada com a referência ao
conflito criminal enquanto destinatário da proposta restaurativa. Não se desconhecem
algumas – não demasiadas, é certo – tentativas de definição muito mais ampla da justiça
restaurativa, erigindo-a como modelo de resposta a qualquer conflito, e não apenas o
criminal496.
Apesar de se compreender, em parte, essa ideia – alicerçada no pensamento de
que, enquanto mero conflito interpessoal e, logo, conflito tendencialmente esvaziado de
uma dimensão pública, não intercedem diferenças significativas entre o conflito

494
Nesta afirmação vai inteira a concordância com o entendimento de José de FARIA COSTA – quando
se interroga sobre os fundamentos da desjudiciarização (diversão) – de que “a diversão só é admissível
para a resolução de conflitos quando com ela se maximize a liberdade e a dignidade humanas e se colime
a reconciliação do infractor com a vítima e a sociedade. A diversão tem sempre de ser entendida, se a
razão não nos desacompanha, como uma forma de pacificação (…)”. Com particular interesse até em uma
perspectiva de ponderação da continuidade histórica – que se contrapõe a uma certa tendência, entre os
cultores do paradigma restaurativo, para uma distinção entre bons e mau tempos –, o Autor considera que
“utilizando uma linguagem com algum sabor arcaico mas não menor actualidade, poder-se-á aventurar
dizer, como imagem sugestiva de um certo paralelismo, que a diversão é, talvez, nos seus efeitos, o
correspondente moderno dos diferentes tipos de pazes que proliferaram na Idade Média” (in “Diversão
(Desjudiciarização) e Mediação: Que Rumos?” cit., p. 65).
495
Como se procurará aclarar em momento posterior, este encontro não tem que ser directo, admitindo-se
outras formas de comunicação entre os intervenientes no conflito. De qualquer modo, compreende-se o
cepticismo quanto à conveniência ou à utilidade deste encontro. Não devem desconsiderar-se, porém, os
resultados obtidos em vários estudos orientados para a compreensão das necessidades manifestadas pelas
vítimas de crimes. Mark UMBREIT, Robert COATES e Betty VOS mencionam, a esse propósito e
referindo alguns desses estudos, que “o desejo das vítimas de encontrarem pessoas que violaram o seu
espaço ou a sua pessoa surpreende, ou abala mesmo, muitos observadores do sistema de justiça criminal.
Todavia, repetidamente, vítimas de crimes voluntariam-se para encontrar os agentes que lhes fizeram
mal” (“Victim impact of meeting with young offenders”, Restorative Justice for Juveniles –
Conferencing, Mediation and Circles, Eds. A. Morris/G. Maxwell, Portland: Hart Publishing, 2003, ps.
125-6).
496
Assim, por exemplo, Kathleen DALY, “Restorative justice: the real story”, Punishment and Society,
2002, vol. 4, n.º 1, p. 55 ss.

275
criminal e outros conflitos interpessoais497 –, não se sufraga tal conceito de justiça
restaurativa, que passaria a abranger também a resolução de questões não penais, como
as relacionadas com o bem-estar familiar ou a protecção das crianças, assim como as
disputas ocorridas em ambiente escolar ou em um contexto laboral.
Pelo contrário, na perspectiva que se adopta e que limita a proposta restaurativa
aos conflitos criminais, deve distinguir-se a justiça restaurativa da mediação. O
conceito de mediação é mais amplo do que o de justiça restaurativa (apenas
vocacionada para a consideração de questões criminais) na medida em que se destina à
solução de conflitos interpessoais de várias naturezas, de que serão exemplo a penal, a
familiar, a escolar ou a laboral. Sob outro enfoque, porém, o conceito de justiça
restaurativa será mais amplo – apesar de lhe só interessar o fenómeno criminal – do que
o de mediação, na medida em que esta consitui apenas um dos instrumentos (ainda que
porventura o principal, pelo menos nos países europeus) de que aquela dispõe.
Por se julgar que existem especificidades nesse conflito que o crime também é e
por se julgar que a existência de um modelo de justiça penal já orientado para a reacção
a uma dimensão desse conflito traz exigências próprias de concatenação das diversas
respostas, não se vê vantagem em alargar a justiça restaurativa ao tratamento de
qualquer conflito interpessoal. Dito de forma que se pretende simples: a impossibilidade
de se expurgar do crime uma dimensão pública – relacionada, parece claro, com a sua
particular gravidade – suscita problemas próprios mesmo a um modelo que tenha
primeiramente em conta uma outra dimensão do conflito. Este modelo – o restaurativo
– deve ser ele próprio pensado – e tem sido assim pensado, como o demonstram a
importância que na sua génese tiveram correntes criminológicas como o abolicionismo
ou a vitimologia – a partir de uma compreensão das conquistas e das insuficiências da
resposta dada ao crime pela justiça penal. Assim sendo, pensar a justiça restaurativa –
quer a sua teoria, quer a sua prática – é também, em certa medida, pensar a justiça
penal. Razão pela qual – ainda que se conheça uma teorização genérica dos mecanismos
de resolução alternativa de litígios – não se vislumbra qualquer vantagem em confundir
na proposta restaurativa um universo de conflitos de características muito diversas.

497
Reconheça-se, portanto, não apenas a existência de uma pluralidade de conflitos, como de uma
pluralidade de considerações ou abordagens desses diversos conflitos. Segundo Miguel Núñez PAZ
(“Origen y fundamentos criminológicos de la mediación”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano
17, n.º 80, set-out. 2009, p. 374), “o conflito sempre foi um dos grandes temas comuns às ciências sociais
e humanas: a antropologia, o direito, a economia, a psicologia, a sociologia”.

276
Por outro lado, crê-se que esta posição é sustentada também por razões de
cuidado. Face às divergências ainda manifestas quanto ao sentido da intervenção
restaurativa e à indeterminação das consequências que o agente pode assumir através
das práticas restaurativas, parece não se dever prescindir do arrimo representado pelo
conceito material de crime e pelas garantias inerentes a um modelo de reacção ao crime.
E essa necessidade fortalece-se, segundo se crê, quando se reconhece ao Estado um
âmbito de intervenção não despiciendo na justiça restaurativa – quer ao nível da criação
e gestão das condições logísticas, quer no estabelecimento de limites por força de um
adequado enquadramento legal.
Com o que se vem de afirmar não se pretende uma redução do âmbito da
proposta restaurativa ao estrito campo das condutas qualificadas pelo legislador penal
como criminais em determinados tempo e espaço. Até porque essa é, como bem se sabe,
uma realidade mutável e relativamente à qual não se deve prescindir de uma
possibilidade de juízo crítico. Todavia, ainda aqui se justifica uma precisão: no plano
das práticas restaurativas, até por força da sua especial relação com a justiça criminal
(em Portugal e na maior parte dos sistemas do nosso contexto cultural), considerar-se-á
apenas a sua aplicabilidade a condutas qualificadas como criminais e relativamente às
quais existam indícios que permitam imputá-las à responsabilidade de um determinado
agente; pelo contrário, quando se pondera a teoria restaurativa e se pretende projectá-la
no futuro, não se vê razão para a limitar ao universo dos crimes estritamente definidos
pela lei, ante se julgando mais conveniente a remissão para o conceito de deviance ou de
desvio social que permite, de resto, uma visão crítica do direito penal tal como está
positivado498.
Finalmente, cumpre esclarecer que, apesar desta restrição da proposta
restaurativa ao “universo criminal” – clara, de resto, também nos sentidos de definição

498
A adopção deste conceito de deviance não constitui, de resto, nenhuma especificidade face àquele que
já é o objecto da criminologia e da política criminal. Relativamente à criminologia, parece evidente que
ela só pode cumprir o seu papel crítico das instâncias formais de controlo (e, no caso, sobretudo do
legislador) se não ficar manietada por um conceito de crime sujeito às restrições decorrentes do princípio
da legalidade. Sobre o assunto, criticando o entendimento tradicional de Paul Tappan de associação estrita
do objecto criminológico às condutas criminalizadas pelo legislador penal, cfr. Michael R.
GOTTFREDSON, “Some advantages of a crime-free criminology”, What is Criminology, Eds. M.
Bosworth/C. Hoyle, Oxford: Oxford Univesity Press, 2011, p. 36 ss. No que respeita à política criminal,
concorda-se com Jorge de FIGUEIREDO DIAS na sua afirmação de que “o objecto da política criminal é
de todo o ponto diverso do objecto da dogmática jurídico-penal “, sendo que este «não é constituído
apenas pelo crime, mas por todos os fenómenos de patologia social substancialmente aparentados com
aquele, sejam de marginalidade social, sejam em último termo – numa palavra criada pela sociologia
norte-americana, mas rapidamente acolhida em qualquer latitude – de deviance ou de “desvio social” (in
Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed. cit., p. 24).

277
antes referidos, nomeadamente os constantes de instrumentos internacionais –, aquilo
que fundamenta a necessidade de uma intervenção restaurativa é, mais do que o
cometimento do crime, a existência de uma “situação-problema” tal como foi cunhada
por Louk HULSMAN499.
Ou seja: apesar de a existência de um qualquer modo de intervenção estadual
vertido na criação de um “sistema restaurativo público” (v.g., um sistema público de
mediação penal) não poder prescindir da verificação de indícios de que a conduta do
agente preenche injustificadamente um tipo legal de crime – porque daí poderá decorrer
uma consequência desvaliosa para o agente –, aquilo que está na génese da necessidade
da intervenção restaurativa não é tanto a ocorrência desse crime, mas a decorrência do
crime que é a situação-problema, ou seja, uma situação que é sentida como desvaliosa
pelos sujeitos do conflito e pelos seus próximos.
Ora, se o conceito aberto de “situação problema” é por inteiro desadequado
como substrato de uma qualquer intervenção punitiva do Estado – por lhe faltar, desde
logo, o necessário lastro de determinabilidade sem o qual não há certeza nem segurança
para o cidadão confrontado com o poder punitivo –, já parece menos criticável se
transposto para o pensamento restaurativo, centrado na forma como os intervenientes no
conflito o avaliam e dirigido a procedimentos regidos por uma estrita exigência de
voluntariedade.
Assim sendo, aquele conceito de “situação problema” é útil à compreensão da
proposta restaurativa porque lhe é inerente a ideia de que é possível reagir a um conflito
criminal por outra via que não a intervenção punitiva estadual que aplica o direito penal
(segundo se crê, o relevo atribuído por Hulsman à alteração do conceito prende-se,
precisamente, com a necessidade de reforçar a possibilidade de outras respostas ao
conflito criminal e a consequente não inevitabilidade da resposta penal).
Por outro lado (e talvez com precedência lógica quanto ao que antes se afirmou),
o conceito de “situação problema” contribui para o reforço da ideia de que aquilo que

499
Cfr. Louk HULSMAN/Jacqueline B. de CELIS (Penas Perdidas – O Sistema Penal em Questão, trad.
de Maria Lúcia Karam, Luam: 1993, p. 95 ss) para uma defesa do abandono do conceito de crime, com
base nas ideias de que “não conseguiremos superar a lógica do sistema penal, se não rejeitarmos o
vocabulário que a sustenta” e de que “a mudança de linguagem é uma condição necessária para a desejada
transformação: não é suficiente, é certo, mas é necessária”. Para além da mudança do vocabulário, o que
parece fundamental é a intenção de enquadrar o acontecimento de forma diversa, que exprima “uma visão
não estigmatizante sobre as pessoas e as situações vividas”, que não separe o acontecimento do seu
contexto, que não cristalize o problema como jurídico-penal impossibilitando uma outra forma de solução
que poderia ser mais conveniente para os envolvidos. Louk HULSMAN tinha, antes disso, sugerido o
conceito de “problematic situations” no seu estudo “Critical criminology and the concept of crime”,
Contemporary Crisis: Law, Crime and Social Policy, 10, 1986, p. 63 ss.

278
funda a resposta restaurativa não é em primeira linha a dimensão pública do conflito
traduzida na compreensão do crime como ofensa insuportável a bens jurídicos. Com
efeito, no âmago da própria noção de “situação problema” está o reconhecimento do
conflito criminal enquanto situação que cria problemas concretos a pessoas concretas,
aquelas pessoas tradicionalmente agrupadas sob os conceitos de “agente” e de “vítima”.
Nesta exacta medida, a categoria adquire particular relevância em um modelo que quer
vincar no fenómeno criminal precisamente essa outra dimensão500.
Porém, este conceito de “situação problema” parece insuficiente para a
compreensão de uma justiça restaurativa que ultrapasse o plano das práticas de natureza
privada orientadas para a pacificação de qualquer conflito e pretenda afirmar-se como
oferta pública de um outro modo de reacção ao conflito jurídico-penal. Uma “integração
pelo Estado” da proposta restaurativa em moldes que possam contribuir para o
aprofundamento do carácter de ultima ratio da justiça penal (o que supõe, pelo menos
até certo ponto, a concepção das práticas restaurativas como formas de diversão
processual penal501) não logra prescindir da conexão da justiça restaurativa apenas com
aquelas situações problema que constituam problemas “especificamente criminais”.
Daqui decorre, ademais, a rejeição da vocação exclusivamente assistencial da
proposta restaurativa, porque o seu étimo não está na prestação de assistência a qualquer

500
Esta é uma ideia que merece ser sublinhada a traço grosso, até na medida da necessidade de
diferenciação entre os conceitos, ambos conhecidos no pensamento criminológico, de “situação
problema” e do crime enquanto “problema social”. Ora, se naquele prepondera a conexão, estabelecida
por Hulsman, com uma dimensão interpessoal do conflito penal (a situação é um problema para o agente
do crime, a sua vítima e os seus próximos); neste último já sobreleva o problema que o crime é para o
todo social. É a partir desta compreensão do crime como “problema social”, de resto, que alguns autores
procuram delimitar modelos de resposta ao crime distintos da resposta dada pela justiça penal, sobretudo
os modelos “de referente comunitário” sobre os quais escreveu, entre outros, Raul CERVINI, no seu
estudo “Referente comunitário y función policial” (Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos: in
memoriam, vol. I, Dir. Arroyo Zapatero/Berdugo Gómez de la Torre, Ediciones de la Universidad de
Castilla-La Mancha/Ediciones Universidad de Salamanca, 2001, p.154 ss). A partir de uma análise da
criminalidade como um problema social, “um problema da comunidade que deve encontrar soluções no
seu seio”, o Autor propõe um modelo de controlo do crime que denomina de “modelo de referente
comunitário”. Ora, aquilo que aqui se quer enfatizar é que, na proposta restaurativa, a dimensão
prevalente do crime que se tem em conta não é essa sua dimensão social, mas antes a (inter)pessoal.
Logo, para os cultores da proposta restaurativa, o crime é em primeira linha uma situação problema, e só
mediatamente um problema social.
501
Tenha-se em conta, a propósito da necessária conexão entre as práticas restaurativas e o funcionamento
da justiça penal, a afirmação de Mário Ferreira MONTE de que “tais soluções haveriam de partir de
dentro do processo penal e a ele voltar, e nunca completamente fora do processo penal. Não ter de seguir
todo o processo penal é uma coisa. Ficar fora do processo penal é outra. O que se pretende é que a
solução a encontrar, ainda que por um processo de mediação, beneficie das garantias que só o processo
penal pode conceder” (in “Um olhar sobre o futuro do direito processual penal – razões para uma
reflexão”, Que Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS,
Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 415).

279
pessoa que dela careça502, mas antes na oferta de uma possibilidade de comunicação503
conducente à pacificação do estado de conflito individual ou relacional desencadeado
pelo cometimento de um crime.
Muito do que se vem de afirmar talvez possa, com vantagem, ser sintetizado pela
afirmação de Jorge de FIGUEIREDO DIAS com a qual se pretende encerrar este
segmento da reflexão: “estas buscas de consensualidade e outras formas de fuga ao
processo, que ocorrem à margem deste mas que com frequência acabam por o
condicionar, podem obedecer a mecanismos perversos e comportam riscos
incontestáveis: pense-se nos fenómenos de barganha próximos da extorsão que tantas
vezes subjazem às desistências de queixa. A credibilidade do próprio sistema penal
depende, de algum modo, também daquilo que, ainda que permanecendo exterior, ele
na verdade permite que aconteça”504. A necessidade de correcta definição e a limitação
aos conflitos criminais da justiça restaurativa decorre, assim, também da necessidade de
protecção da justiça penal. E é assim na medida das relações estreitas que entre elas
intercedem, e que constituirão o objecto seguinte deste estudo.

502
Em sentido não muito distante, John BRAITHWAITE refere que “a justiça restaurativa não pode
resolver as injustiças estruturais mais profundas (…). Mas podem pedir-se duas coisas à justiça
restaurativa. Em primeiro lugar, não deve contribuir para tornar as injustiças estruturais piores (...). Em
segundo lugar, a justiça restaurativa deve restaurar a harmonia através de um remédio baseado num
diálogo que tenha em conta as injustiças subjacentes” (in “Restorative Justice”, The Handbook of Crime
and Punishment, Ed. Michael Tonry, Oxford University Press: 1998, p. 329).
503
Ainda que em um contexto problemático não inteiramente coincidente, Nilo BATISTA, a propósito da
insuficiência de uma reacção à criminalidade que comporta a violência policial, enfatiza as vantagens do
carácter comunicacional da reacção de controlo. O Autor refere-se, sobretudo, à comunicação entre as
instâncias formais de controlo e a comunidade no seio da qual a criminalidade ocorre, nomeadamente
através dos grupos de moradores ou das associações locais. Não é da comunicação entre estes sujeitos que
na justiça restaurativa essencialmente se trata. Todavia, a ideia do Autor que se quer destacar – e que se
julga transponível para a comunicação que é nuclear na proposta restaurativa – é a de que esse enfoque
comunicacional na reacção não pode ser confundido com qualquer espécie de assistencialismo (Punidos
e Mal Pagos, Violência, Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos no Brasil de Hoje, Rio de
Janeiro: Editora Revan, 1990, p. 172 ss).
504
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, “O processo penal português: problemas e prospectivas”, Que Futuro
para o Direito Processual Penal?, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO,
Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 814 (a utilização do itálico
não é do Autor).

280
Parte II
Justiça restaurativa versus justiça penal

281
282
Capítulo I
Os fins, na justiça restaurativa e na justiça penal: identidade ou diversidade?

1. Considerações iniciais

É corrente, na doutrina restaurativa, a compreensão da proposta restaurativa


como um “discurso de substituição, descentrando-se a punição dos agentes como o foco
dos processos da justiça criminal e dando ênfase, antes, à reparação das vítimas e à
reintegração dos agressores nas suas comunidades”505. A justiça restaurativa aparece,
nesta medida, como algo de diferente da justiça penal ao nível das finalidades. É
propósito desta parte do estudo avaliar essa diferença, na medida da sua necessidade
para se compreender o sentido da proposta restaurativa e o espaço que deve ocupar na
definição das respostas ao crime506. Sabe-se da frequência com que, de forma
porventura simplista, se distingue a justiça restaurativa da justiça penal através da ideia
de que a primeira visa a reparação dos danos causados à vítima e a segunda a retribuição
da culpa do agente; ou da ideia de que a primeira olha para o futuro enquanto a segunda
se ocupa apenas do passado. Também se conhece a tendência, em certa medida oposta,
para eliminar as diferenças ao nível das finalidades, “importando” para a justiça
restaurativa as finalidades especificamente penais507.

505
Barbara HUDSON, “Balancing the ethical and the political: normative reflections on the
institutionalization of restorative justice”, Institutionalizing Restorative Justice, Eds. Ivo Aertsen/Tom
Daems/Luc Robert, Devon: Willan Publishing, 2006, p. 261.
506
Joanna SHAPLAND (“Restorative Justice and Criminal Justice: Just Responses to Crime?”,
Restorative Justice and Criminal Justice – Competing or Reconciliable Paradigms?, Ed. Andrew von
Hirsch/Julian Roberts/Anthony Bottoms/Kent Roach/Mara Schiff, Oxford: Hart Publishing: 2003, p. 195)
afirma que “a implicação de ser nova e diferente é que a justiça restaurativa será, na prática, sempre
comparada com a justiça criminal tradicional”. Apesar de se compreender aquilo que a Autora pretende
significar, o ponto de que se partirá é em certo sentido prévio, porque não se tomará a diferença como
uma certeza sem que antes se proceda à comparação. Comparar-se-á para se ajuizar da dimensão da
diferença.
507
A importância da consideração da questão dos fins da intervenção penal no âmbito de uma análise das
práticas restaurativas é sublinhada por autores como Germano MARQUES DA SILVA (“A mediação
penal – Em busca de um novo paradigma?”, A Introdução da Mediação Vítima-Agressor no
Ordenamento Jurídico Português, Almedina, 2005, p. 107) que, depois de lembrar, no contexto de um
estudo sobre a mediação penal, palavras de FIGUEIREDO DIAS que enfatizavam a crise de conceitos
tradicionais como os da oportunidade/legalidade no domínio do processo, acrescenta que “o que está em
crise é a própria definição dos fins do direito penal”. Ainda entre nós, Carlota Pizarro de ALMEIDA (“A
mediação perante os objectivos do direito penal”, A Introdução da Mediação Vítima-Agressor no

283
O que se impõe é, pois, a sujeição a reflexão crítica, quer das tentativas de
contraposição simplista, quer das tentativas de unificação mais absoluta. Como ponto de
partida, parece merecer concordância o entendimento de Joanna SHAPLAND: “as
diferenças essenciais não são as tipicamente apresentadas, como o facto de se ignorarem
as vítimas, o olhar para trás para a punição em vez de para a frente para se resolverem
problemas, etc. Assim como a justiça restaurativa foi com frequência caricaturada,
também a justiça criminal o foi. Mas existem algumas diferenças-chave”508.
Apesar de na reflexão sobre os fundamentos e sobre os fins da intervenção penal
se terem, ao longo dos tempos, contraposto duas grandes tendências – a retributiva e a
preventiva509 – e apesar de em cada uma delas se poderem distinguir correntes várias, é
com frequência que no pensamento restaurativo se assiste a uma simplificação da
distinção da justiça penal e da justiça restaurativa com base na diversidade de fins: o
sancionamento penal teria uma finalidade punitiva assente na retribuição, enquanto as
práticas restaurativas assumiriam como fim a reparação dos danos sofridos pela vítima,
a reintegração do agente e a pacificação da comunidade através da sua participação na
solução do conflito510.

Ordenamento Jurídico Português, Almedina, 2005, p. 39 ss) analisa a forma como a mediação penal (que
concebe como “alternativa ao processo penal tradicional, e não apenas como um ramo deste”) “respeita
as exigências vigentes em sede de fins das penas”, acabando por concluir que “a mediação satisfaz
plenamente os objectivos do direito penal (prevenção geral e especial), frequentemente até de modo mais
completo e abrangente do que o direito processual penal clássico, contribuindo também para uma justiça
mais restaurativa”.
508
Para Joanna SHAPLAND (ob. cit., p. 201), essas diferenças não estão sobretudo nos resultados, mas
sim nos procedimentos, relacionando-se com “o papel do Estado, o papel da acusação, o papel da
comunidade e os princípios garantísticos (...)”.
509
Não se refere neste momento a intervenção terapêutica, que poderia ser considerada um terceiro
modelo de reacção ao crime, porque o que se tem em mente são agora os fins da intervenção penal
relativamente a condutas que sejam típicas, ilícitas, com culpa e puníveis. A propósito das “três principais
perspectivas” sob as quais podemos “olhar o fenómeno jurídico-penal”, cfr., entre nós e recentemente,
Fernando CONDE MONTEIRO, que distingue a “perspectiva médica”; uma “construção puramente
ética” que “corresponde por inteiro à concepção kantiana de ver o ser humano como um fim em si mesmo
e conceber assim o direito penal como uma realidade asséptica, desprovida de quaisquer finalidades
empiricamente relevantes”; e, finalmente, uma perspectiva sob a qual se encara “o fenómeno jurídico-
criminal como uma realidade axiológico-preventiva” [“O problema da verdade em direito processual
penal (considerações epistemológicas)”, Que Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de
MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia,
Coimbra: Coimbra Editora, 2009, ps. 323-4]. Sob outra perspectiva, essa finalidade terapêutica pode
associar-se à finalidade de prevenção especial, não constituindo um modelo autónomo.
510
A associação da punição ao castigo e, no extremo oposto, a apresentação da mediação como
alternativa ao castigo parecem estar na génese da ideia de Francesco PALAZZO da passagem de uma
“ética da verdade” a uma “ética da caridade”, que o Autor procura relacionar com a laicização do direito
penal em moldes que suscitam algumas dúvidas («Laicità del diritto penale e democrazia “sostanziale”».
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, I, cit., ps. 466-7). Por outro lado, a
crítica e a rejeição do sistema penal levadas a cabo pelos defensores do paradigma da justiça restaurativa
assentam essencialmente na recusa do modelo retributivo, ainda que também o modelo reabilitador seja
posto em causa [assim, v.g., Elmar WEITEKAMP, “The history of restorative justice”, A restorative

284
A oposição que assim se estabelece entre a justiça penal e a justiça restaurativa
baseia-se, pois, (I) em uma associação do direito penal às teorias absolutas das
finalidades da pena e (II) em uma rejeição do pensamento retributivo no seio da
doutrina restaurativa. Ora, se o esquecimento das doutrinas relativas dos fins da punição
inerente à primeira daquelas ideias se compreende mal, já a rejeição liminar (e quase
nunca devidamente explicada) do pensamento da retribuição também parece
significativa da incompreensão da sua importância sob o ponto de vista da defesa da
pessoa contra o arbítrio punitivo. Ao impedir a condenação a uma pena de quem actua
sem culpa e ao impedir uma punição drástica em casos de culpa diminuta, a ideia de
retribuição, como tão bem nota Claus ROXIN, “marca, portanto, um limite ao poder
punitivo do Estado e tem, nessa medida, uma função liberal de salvaguarda da
liberdade”511. Reconhecê-lo não significa, porém, que a pena tenha por finalidade
expiar a culpa nem significa a rejeição do reconhecimento de finalidades preventivas na
pena. Mas significa – e só isso é já muito – que tais considerações preventivas não são
relevantes se conduzirem a uma pena não suportada pela culpa. Caso assim não fosse,
teria pertinência a crítica oriunda das teorias absolutas de que as teorias relativas
importariam uma instrumentalização da pessoa e, consequentemente, uma violação da
sua dignidade512.
A simplificação inerente àquela posição corrente no discurso restaurativo – que
sustenta a diferença da justiça penal face à restaurativa por força da natureza retributiva
apenas da primeira – não pode deixar de causar alguma perplexidade inicial ao penalista

justice reader, Ed. Gerry JOHNSTONE, Devon: Willan Publishing, 2003, p. 122-3, afirma que “a lei
penal e a frequentemente destrutiva resposta retributiva ao crime – ou, mais recentemente, os falhados
esforços reabilitadores – (…) conduziram a sistemas de (in)justiça que devem ser considerados como
falhanços”]. O Autor caracteriza estas diferentes formas de reacção à criminalidade de forma sucinta.
Afirma que a resposta retributiva surge num contexto societário que denomina como de state power,
centra-se no delito, inflige um mal, procura o just deserts e ignora a vítima. A resposta reabilitadora
ocorre num contexto societário do welfare state, centra-se no agente da infracção, concede-lhe
tratamento, procura um comportamento conformista e também ignora a vítima. Por seu lado, a resposta
dada pela justiça restaurativa surge no contexto social que designa como empowering the state, centra-se
nas perdas, repara os danos sofridos, procura a satisfação dos envolvidos e vê a vítima como a figura
central de todo o processo.
511
Claus ROXIN, Derecho Penal, Parte General, Tomo I cit., p. 84.
512
Veja-se, a título de exemplo, a afirmação de Wolfgang FRISCH de que “a questão do fim da pena (ou
dos fins das penas e das relações destes entre si) continua a ser uma questão aberta. Todavia, impôs-se a
ideia de que, independentemente do ponto de vista que se adopte, a pena está vinculada à medida da
culpa, no sentido, em todo o caso, de que não se pode ultrapassar a medida de pena adequada à culpa por
razões preventivas” (“Dogmática jurídico-penal afortunada y dogmática jurídico-penal sin consecuencias
– Comentario”, La Ciencia del Derecho Penal ante el Nuevo Milenio, coord. da versão alemã:
Eser/Hassemer/Burkhardt/; coord. da versão espanhola: Muñoz Conde, Valencia: Tirant lo Blanch, 2004,
ps. 200-201).

285
minimamente familiarizado com a temática dos fins das penas513. Estabeleça-se um
elenco curto dessas dúvidas iniciais: será a intervenção penal efectivamente norteada
por uma finalidade essencialmente retributiva?; caso se entenda que não, poder-se-á
considerar que as finalidades preventivas que norteiam a pena têm idêntico sentido na
reacção restaurativa?; existirá uma diferença significativa entre a desejada reintegração
do agente apresentada como objectivo das práticas restaurativas e a prevenção especial
de socialização que é apresentada como fim das penas?; como se distingue a pacificação
comunitária pretendida pela justiça restaurativa da prevenção geral positiva que para
alguns é finalidade essencial das sanções criminais514?
Relativamente à terceira pergunta – a atinente à existência de uma qualquer
diferença entre a “reintegração do agente” que seria finalidade restaurativa e a sua
“socialização” que seria finalidade penal – ela adquire maior pertinência quando se sabe

513
E essa perplexidade será potenciada em um sistema, como é o caso do português, em que o próprio
Código Penal deixa claro, através do número 1 seu artigo 40.º – quer se concorde ou não ele e com a
solução legal da questão dos fins das sanções criminais –, que “a aplicação de penas e de medidas de
segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Anabela Miranda
RODRIGUES defende um modelo de prevenção para a determinação da medida concreta da pena, “à luz
das injunções normativas avançadas pelo legislador ordinário”. De acordo com este e numa formulação
resumida da própria Autora, “a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de
prevenção geral positiva e que será definitiva e concretamente estabelecida em função de exigências de
prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro
lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa” (in “O modelo de prevenção na
determinação da medida concreta da pena privativa de liberdade”, Problemas Fundamentais de Direito
Penal – Homenagem a Claus Roxin, coord. Maria da Conceição Valdágua, Lisboa: Universidade Lusíada
Editora, 2002, p. 204).
514
Estas questões adquirem relevância na medida em que se encontra com frequência na doutrina
restaurativa uma definição muito ampla das finalidades restaurativas, podendo suscitar-se a interrogação
sobre se assim se pretende transferir para a justiça restaurativa a prossecução das finalidades penais de
prevenção especial e geral. Considere-se, a título de exemplo, a afirmação de Robert CARIO de que “a
ambição da justiça restaurativa é reconhecer e localizar a Pessoa no centro do conflito a resolver, implicar
todos os actores no drama num processo equitativo, responsabilizar o infractor através da determinação de
uma sanção ressocializadora, assegurar a restauração social da vítima, restabelecer a paz social” (in
Victimologie: de l’effraction du lien intersubjectif à la restauration sociale, Vol. I, 3ª ed., Paris:
L’Harmattan, 2006, ps. 299-300). Em obra posterior e especificamente dedicada à justiça restaurativa, o
Autor afirma que esta tem um “triplo objectivo”: “a ressocialização do condenado, a reparação global da
vítima, o restabelecimento da paz social”. Essa afirmação não equivale, porém, à defesa da substituição
do sistema de justiça penal por um modelo restaurativo, julgando antes CARIO que é antes de
“reconhecimento recíproco e de complementaridade (…) que se trata” (in Justice Restaurative –
Principes et Promesses, 2ª ed., Paris: L’Harmattan, 2010, ps. 14-15). Finalmente, em um outro estudo
também recente e também centrado na proposta restaurativa, Robert CARIO, depois de reconhecer que é
delicado propor-se uma definição “universal” da justiça restaurativa, considera que o que se deve é
estabelecer as “condições substanciais e formais a que as medidas de justiça restaurativa devem
responder”. Com esse propósito, esclarece que elas «supõem a participação voluntária de todos aqueles
que se consideram atingidos pelo conflito de natureza criminal, a fim de negociarem, em conjunto,
através de uma participação activa, na presença e sob o controlo de um “terceiro agente da justiça” e com
o acompanhamento eventual de um “terceiro psicólogo e/ou assistente social”, as melhores soluções para
cada um, de modo a obter-se, através da responsabilização dos actores, a reparação de todos para
restaurar, mais globalmente, a Harmonia social” (in La Justice Restaurative – Une Utopie qui Marche?,
dir. de Robert Cario/Paul Mbanzoulou, Paris: L’Harmattan, 2010, p. 10).

286
que, por exemplo para Alessandro Baratta, o conceito de “reintegração” é aquele pelo
qual o de “ressocialização” deve ser substituído na própria teoria dos fins das penas. Ou
seja: a reintegração do agente (na terminologia que agora é adoptada pelos cultores da
proposta restaurativa) já era, para criminólogos críticos como Baratta, a forma como se
devia denominar o fim que presidia à condenação e execução das penas515. E, sublinhe-
se, o conceito de “reintegração” (e não o de ressocialização) foi, também, aquele a que o
legislador penal português recorreu no próprio artigo 40º do Código Penal quando quis
deixar expressa a sua opção em matéria de finalidades das penas e das medidas de
segurança516.
No que respeita à quarta interrogação, o que também pode questionar-se é se
não há um largo espaço de coincidência entre a prevenção geral positiva de reafirmação
contrafáctica da validade da norma apresentada como fim da pena e a pacificação
comunitária que a corrente restaurativa erige em finalidade sua. A dificuldade da
diferenciação agudiza-se, segundo se crê, quando se encontra entre os próprios cultores
da ciência penal o reconhecimento de que a reparação (por lograr em alguns casos uma
prevenção integrativa associada ao efeito de satisfação causado pelo esforço do agente
para contrariar o dano que causou) pode até funcionar como consequência jurídica

515
Veja-se, a este propósito, a explicação dada por Alejandro AVARIA sobre a intenção de Baratta de
substituir o conceito de “ressocialização” pelo de “reintegração”, sem que isso represente “um simples
facto de nomenclatura”. Alejandro AVARIA considera que assim, na opinião de Baratta, se rejeita a
“falsidade ressocializadora”: «que a prisão não ressocialize não significa que se tenha de a esvaziar de
uma teoria positiva, pelo menos enquanto continuar a existir. O objectivo é não tecnocratizar as relações
dos funcionários da instituição carcerária face ao fracasso da ressocialização. Enquanto a prisão existir,
continuará a ter que se tentar ressocializar “apesar dela”. Nesse contexto surge a ideia de Baratta de
redefinir o conceito (…) partindo da inegável realidade de que a prisão não pode produzir efeitos úteis à
ressocialização do condenado. A noção de reintegração permitiria modificar uma relação própria da ideia
de tratamento, ou seja, uma posição activa da administração penitenciária e passiva do recluso como
objecto de tratamento, transformando o acto de relação interpessoal num processo de comunicação e
interacção entre a prisão e a sociedade» (“Notas para una construcción filosófico-política del pensamiento
de Alessandro Baratta”, Serta in Memoriam Alexandri Baratta cit., p. 111).
516
Essa referência, no artigo 40.º do CP, ao conceito de “reintegração do agente na sociedade” como
finalidade das penas e das medidas de segurança convive, na nossa lei penal, com a referência à
“ressocialização” constante, por exemplo, do n.º 1 do artigo 54.º do Código Penal, atinente ao plano de
reinserção social no âmbito da suspensão da execução da pena com regime de prova: “o plano de
reinserção social contém os objectivos de ressocialização a atingir pelo condenado”. Não obstante, no n.º
1 do artigo 53.º, sob a epígrafe “suspensão com regime de prova”, dispõe-se que “o tribunal pode
determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e
adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade”. Muito criticamente, afirmando “a
dispensabilidade dos n.ºs 1 e 2 do artigo 40.º”, cfr. José de Sousa e BRITO, para quem a norma traduz
alguma invasão da questão dogmática dos fins das penas, necessitando de ser sistematicamete integrada
“com muito mais do que ela própria diz””. Para além de que, ainda na opinião do Autor, o que aquele
artigo 40.º diz “é tão pouco e tão indiscutível que pode servir de emblema de sistemas doutrinais de
individualização da pena parcialmente contraditórios entre si” (“Os fins das penas no Código Penal”,
Problemas Fundamentais de Direito Penal – Homenagem a Claus Roxin, coord. de Maria da Conceição
Valdágua, Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2002, ps. 160-163).

287
autónoma do crime517. O que equivale a admitir, sublinhe-se, que a reparação pode ser
adequada à obtenção das finalidades penais.
As respostas encontradas para tais interrogações podem, segundo se julga, levar
à conclusão de que, caso se não assaque à intervenção penal uma função retributiva e
caso se conclua pela dominância em ambos os modelos – o penal e o restaurativo – das
ideias de prevenção especial e geral (ainda que com distintos matizes), a diferença ao
nível das finalidades radicará quase só na reparação dos danos sofridos pela vítima,
assumida como fim autónomo apenas pela justiça restaurativa518.
Ora, é precisamente para esta tentação de importar para a proposta restaurativa
as finalidades da intervenção penal que se deve chamar a atenção. Terá qualquer sistema
de resposta ao crime de ser norteado por aqueles desideratos? Ocupam eles na proposta
restaurativa o mesmo espaço que ocupam na conformação da resposta penal? Partir-se-á

517
Claus ROXIN afirma a forma como, segundo o seu entendimento do sentido da prevenção geral
positiva, a reparação dos danos da vítima pode contribuir para a realização dessa finalidade. Depois de
afirmar que “a prevenção geral positiva não logrou até agora solidificar-se numa doutrina unitária”,
explica o conceito que cunhou de “prevenção integradora”, enquanto conceito mais restrito cabível na
categoria mais ampla (ou no “conceito superior”) da prevenção geral positiva. Nas próprias palavras do
Autor, «enquanto Bruns, e com ele grande parte da doutrina, entendem a ideia de integração, rapidamente
divulgada na discussão do fim da pena, sobretudo como exercício de fidelidade ao direito, fortalecimento
da consciência jurídica geral e conceitos similares, e vêem nisso esgotado o conteúdo da prevenção geral
positiva, eu pensei com ela, desde o início, em algo diferente. Eu falei de “uma prevenção geral tendente
à integração e à satisfação” e de uma “satisfação do sentimento jurídico” e com isso quis expressar a
recomposição da paz jurídica alterada pelo crime. Tratado de forma exacta, devem diferenciar-se na
prevenção geral positiva três consequências incluídas no conceito: o efeito motivador pedagógico-social
de aprendizagem, que deve provocar o exercício de fidelidade ao direito; o efeito de confiança, que se
atinge quando o cidadão vê que o direito se realiza; e, finalmente, o efeito de satisfação, que surge quando
o delinquente fez tanto que a consciência jurídica geral se apazigua em torno da infracção ao direito e dá
por finalizado o conflito com o agente». E o Autor continua, quanto a essa prevenção interadora que
agora interessa ao objecto da reflexão: “parece-me adequado limitar o conceito de prevenção integradora
ao efeito de satisfação da sanção antes descrito e considerar a prevenção geral positiva como o conceito
superior, mais amplo, que, ao lado da satisfação, também persegue as metas da aprendizagem e da
confiança no ordenamento”. A sua conclusão é, precisamente, a de que “aqui reside a base de sustentação
para o significado preventivo-geral da reparação” (“Fines de la Pena y Reparación del Daño”, De los
delitos y de las víctimas cit., ps. 148-9).
518
A clareza da contraposição beneficiaria da não atribuição à reparação dos danos causados à vítima da
qualidade autónoma de nova finalidade da sanção penal ou, então, da qualidade de terceira via de reacção
penal, para além das penas e das medidas de segurança. A questão constituirá, porém, objecto de
tratamento autónomo. Por outro lado, cumpre ainda notar que as dificuldades de diferenciação entre um
modelo de resposta ao crime (o penal) orientado para o não cometimento de crimes futuros e um outro (o
restaurativo) centrado na reparação dos danos passados e na pacificação para o futuro do conflito
interpessoal se avolumam quando se adopta, como sucede com Fernando CONDE MONTEIRO, a ideia
de que a “prevenção especial da vítima” (entendida como o retorno da vítima “à sua paz jurídica colocada
em causa pelo crime”) constitui “também uma finalidade do direito penal moderno (e desde sempre)”.
Desenvolvendo esta ideia, o Autor acrescenta que esta finalidade de prevenção especial da vítima “terá
especial significado nos crimes particulares, afastando mesmo quaisquer considerações de prevenção
geral positiva ou negativa ou mesmo especial, que só serão chamadas a intervir de forma secundária,
porque dependentes de um real acto, em regra, da vítima no sentido de promover e manter um processo
penal” [“O problema da verdade em direito processual penal (considerações epistemológicas)”, Que
Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/
MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 325].

288
para a abordagem que se segue com a ideia inicial de que as respostas a estas questões
não têm de ser afirmativas. Julga-se, pelo contrário, que pode revelar-se desadequada e
contraproducente a “enorme influência” que o sistema de justiça criminal ainda tem na
“definição prévia dos objectivos (…) da justiça restaurativa”519, na medida em que essa
influência contribua para o apagamento daquilo que há de específico na proposta
restaurativa, condicionando mesmo um eventual juízo sobre a sua (des)necessidade.
Sob uma perspectiva metodológica, crê-se que talvez seja útil que se apresente
desde já o ponto de vista de que se parte e que radica em algumas ideias simples. Em
primeiro lugar, julga-se que as finalidades que tradicionalmente se apontam à punição (e
que se podem associar, de forma simplificada, às ideias de retribuição, de tratamento ou
de dissuasão) não têm de ser as únicas finalidades a que todo e qualquer modelo de
reacção ao crime deve dar resposta. Poder-se-ão considerar outras finalidades a que o
sistema de justiça penal se tem mantido em parte alheio, como a reparação dos danos
causados às vítimas ou o estabelecimento de mecanismos de diálogo entre os
intervenientes no conflito tidos por indispensáveis à pacificação individual ou
interpessoal. Por outro lado, mesmo que se tomem aquelas finalidades tradicionalmente
associadas à justiça penal como finalidades de prossecução indispensável (ainda que
não únicas), não se tem a certeza de que elas só possam ser perseguidas através de uma
resposta penal ao crime (com excepção da função retributiva, que parece associar-se,
verificada a culpa, inevitavelmente à condenação). Ou seja: permanece a interrogação
sobre se aquelas finalidades de prevenção geral e de prevenção especial são específicas
das penas ou se, pelo contrário, podem transpor-se para um outro modelo de resposta ao
crime, como o restaurativo. Aquilo que se julga, e aquilo que se procurará sustentar
através da argumentação que se segue, é que a resposta restaurativa ao crime é norteada
por finalidades autónomas e que, ainda que em alguns casos possa contribuir para a
obtenção das finalidades preventivas imputadas à pena (tornando-a, eventualmente,
desnecessária), essas finalidades não assumem na resposta restaurativa carácter
principal.
Elencadas as principais questões que a reflexão pretende considerar e alguns
possíveis sentidos de resposta, sobra uma advertência: não se desconhecendo que –
como afirma FERRAJOLI – “o problema da justificação do direito penal constitui na

519
Heinz MESSEMER e Hans-Uwe OTTO (“Restorative Justice: Steps on the Way Toward a Good
Idea”, Restorative Justice on Trial, Pitfalls and Potentials of Victim-Offender mediation – International
Research Perspectives, Eds. Messmer/Otto, Dordrecht, Kluwer: 1992, p. 7) chamam a atenção para esta
“enorme influência”.

289
verdade um emaranhado de problemas que compete à análise filosófica distinguir
segundo uma ordem lógica”520, não é propósito deste estudo adentrar de forma
sistemática e densa a consideração desses problemas vários. De qualquer modo, sempre
se julga útil recordar a organização das várias questões conexas com os problemas da
justificação e legitimidade da justiça penal feita pelo Autor italiano.
De acordo com o seu pensamento, a necessidade de justificar espraia-se por três
domínios: em primeiro lugar, é preciso encontrar justificação para o direito a castigar,
ou seja, para a aplicação da pena (que considera a “questão clássica no pensamento
jurídico filosófico da justificação em geral”); em outro plano, há que encontrar
justificação para as opções que determinam a qualificação de algumas condutas
enquanto crimes; num terceiro nível, deve procurar-se a justificação para “as formas e
procedimentos de investigação dos delitos e aplicação das penas”, que denomina em
sentido amplo como a justificação do processo penal. Cada uma destas três questões
pode, porém, ser por sua vez decomposta em outras quatro perguntas mais precisas, de
algum modo relativas ao porquê, ao para quê, ao quando e ao como da intervenção
penal, o que equivale a afirmar que relativamente à punição, à incriminação e ao
processo se suscitam – relativamente a cada um deles – os problemas (I) da
admissibilidade; (II) dos fins; (III) dos pressupostos e (IV) das formas.
A reprodução da sistematização de Luigi FERRAJOLI tem uma função
instrumental para a compreensão da exposição que se segue (rectius, para a delimitação
da exposição que se segue). As próximas considerações – orientadas, recorde-se, para
uma melhor compreensão do sentido da justiça penal, tendo como pólos de referência
crítica o conceito mais genérico de realização da justiça521 e o conceito (distinto?) de
justiça restaurativa – ater-se-ão ao problema da admissibilidade da pena e, sobretudo,
ao problema dos fins da pena (logo, se para o Autor italiano da multiplicação daqueles
três níveis de problematização por quatro espécies de perguntas resultam doze

520
Luigi FERRAJOLI, Derecho y Rázon cit., p. 211.
521
Parece claro que a construção de um modelo teórico relativo à justificação do direito penal (em sentido
amplo) deve corresponder a uma determinada concepção de justiça. Pode mesmo afirmar-se que as
mudanças a que ao longo dos tempos fomos assistindo no tratamento daquela questão corresponderão
também a transformações na forma de encarar o sentido da justiça. Ora, a compreensão desta
correspondência tendencial permite várias interrogações [um dado modelo de justiça penal (incluindo a
teoria que visa justificá-lo) é adequado à concepção de justiça dominante num determinado espaço e
tempo?; o sistema penal vigente – a aplicação prática daquele modelo teórico – corresponde de forma
suficiente ao próprio modelo teórico da justiça penal pretendida?], portadoras de um potencial crítico e
transformador do sistema.

290
interrogações, cuidar-se-á nesta sede, pelo menos de forma directa, apenas de duas
delas522).
Interrogue-se, pois, o porquê e o para quê da punição523. Ora, se a segunda
questão será objecto de um tratamento breve – na medida estritamente necessária à
compreensão da existência (ou não) de diferenças entre as finalidades da intervenção
penal e as finalidades da intervenção restaurativa –, já a primeira merecerá um
tratamento brevíssimo. E que só se justifica na medida em que o porquê implica uma
espécie de declaração de princípios que de forma inevitável acaba por condicionar a
resposta ao para quê.

2. Brevíssimo excurso sobre os fundamentos e sobre as finalidades da punição

É conhecida, mesmo que se pondere apenas o exemplo da doutrina portuguesa, a


existência de linhas de pensamento que autonomizam as questões do fundamento, da
finalidade e da função do direito penal524, e de outras linhas do pensamento que optam

522
Com a intenção, próxima da perfilhada pelo Autor italiano, de arrumação dos conceitos, também Jorge
de FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal – Parte Geral, Tomo I – Questões Fundamentais; A doutrina
Geral do Crime, cit., p. 44) considera que “de um ponto de vista lógico-hermenêutico, questões como as
mencionadas – da legitimação, da fundamentação e da função do direito penal – podem certamente ser
cindidas do problema dos fins das penas.”. Afirma, todavia, que “o sentido, o fundamento e as finalidades
da pena criminal são determinações indispensáveis para decidir de que forma deve aquela actuar para
cumprir a função do direito penal: elas regem por conseguinte sobre o próprio conceito material de crime
(…) e codeterminam, por aí, a resposta à questão da função do direito penal”.
523
Ponderou-se longamente a conveniência de, em um estudo que tem por objecto o sentido da justiça
restaurativa, retomar a análise do problema das finalidades da pena criminal, problema esse que, como
bem nota Jorge de FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal – Parte Geral cit., ps. 43-4), “é tão velho quanto
a própria história do direito penal e tem sido discutido, vivamente e sem soluções de continuidade, pela
filosofia (tanto pela filosofia geral, como pela filosofia do direito), pela doutrina do Estado e pela ciência
conjunta do direito penal”. Como também refere o Autor, “à sombra do problema dos fins das penas, é no
fundo toda a teoria do direito penal que se discute e, com particular incidência, as questões fulcrais da
legitimação, fundamentação e função da intervenção penal estatal”. Ora, apesar de razões várias
desaconselharem, a uma primeira análise, um qualquer retorno à questão dos fins das penas, não parece
possível considerar de forma adequada os espaços de (des)encontro da justiça penal e da justiça
restaurativa sem enfrentar aquela que, para os críticos da justiça penal e cultores da justiça restaurativa,
constitui a principal diferença entre as duas formas de resposta à criminalidade: a finalidade retributiva
que só a pena teria.
524
Neste sentido, José de FARIA COSTA, que entende que “o fundamento do direito penal encontra-se
na primeva relação comunicacional de raiz onto-antropológica, na relação de cuidado de perigo”, “a
finalidade do direito penal surpreende-se e realiza-se na justiça penal historicamente situada”, “a função
do direito penal é a de proteger bens jurídicos”. Antes, o Autor já deixara claro que “uma coisa é tentar
descortinar o fundamento, outra a finalidade e outra ainda a necessidade quando olhamos e valoramos a
pena no seu sentido”, chamando ainda a atenção para a forma como Beleza dos Santos distinguira “fins” e
“finalidades” da pena (in Noções Fundamentais de Direito Penal, 2.ª ed. cit., p. 17 ss). Ainda que se
compreendam as diferenciações elencadas, adoptar-se-ão, neste estudo, de forma indistinta os conceitos
de “fins” e de “finalidades” da pena, que se associam à questão do seu “para quê”.

291
por atribuir a centralidade ao problema dos fins das penas, com base na ideia de que
esta questão “constitui a questão do destino do direito penal e do seu paradigma”525.
Não se julga que haja, porém, neste contexto de análise e atenta a finalidade da
reflexão, vantagem metodológica no aprofundar daquela diferença de perspectiva.
Parece claro que as concepções preventivas enfatizam a questão do “para quê”,
enquanto as concepções retributivas não prescindem da teorização do “porquê” – se se
pretendesse simplificar a abordagem em moldes quase geométricos, dir-se-ia que as
concepções absolutas tendem a prescindir do para quê na medida em que rejeitam o
pensamento das finalidades; já as concepções utilitaristas tendem a sobrepor ao
pensamento do sentido da intervenção a questão do para quê ou da finalidade da
intervenção526.
Apesar desta tendencial linha de afastamento, não deve pensar-se que o facto de
neste estudo se fazer referência também ao problema do fundamento da punição
implica, por si só, a manifestação embrionária de uma qualquer preferência pelas
concepções absolutas. Seja qual for a importância relativa que se lhes atribua, as duas
questões podem ser objecto de consideração autónoma, mesmo que depois se acabe por
concluir pela inconveniência da sua absoluta cisão. E o que se julga é que, se tanto a
justiça penal como a justiça restaurativa (de resto, como qualquer sistema de reacção a
um conflito) encontram fundamento em uma certa ideia de paz (talvez melhor, em
variados e variáveis, no tempo e no espaço, conceitos de paz); já as funções que lhes
cabem e as finalidades que recortam os seus mecanismos de reacção ao crime
apresentam significativas diferenças.
No que respeita à justiça penal, parece poder afirmar-se a existência de uma
relativa convergência na afirmação de que a função do direito penal é a tutela
525
Para Jorge de FIGUEIREDO DIAS, “de um ponto de vista lógico-hermenêutico, questões como as
mencionadas – da legitimação, da fundamentação e da função do direito penal – podem certamente ser
cindidas do problema do fim das penas (…). A perspectiva correcta no entanto (…) pode e deve ser outra.
O sentido, o fundamento e a finalidade da pena criminal são determinações indispensáveis para decidir de
que forma deve aquela actuar para cumprir a função do direito penal: elas regem por conseguinte sobre o
próprio conceito material de crime (…) e codeterminam, por aí, a resposta à questão da função do direito
penal”(in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed. cit., p. 44).
526
Uma distinção clara entre as teorias absolutas e as teorias relativas é já visível na obra de referência de
Levy Maria JORDÃO,” “O Fundamento do Direito de Punir. Dissertação Inaugural apresentada na
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no ano de 1853” (Boletim da Faculdade de Direito,
vol. 51, 1975, ps. 291-292). Para o Autor, as concepções sobre os fins das penas “podem reduzir-se a duas
classes, absolutas ou espiritualistas, relativas ou sensualistas; aquellas justificam o direito de punir em si
mesmo, tomando por seu fundamento a justiça, e tendo por legítima a punição, somente quando parte
d’ella; estas legitimam esse direito pelo fim que o legislador se propõe, achando justa a pena, quando
produz esse resultado”. Posteriormente, o Autor esclarece aquela que é a sua opinião, considerando que o
fundamento do direito de punir é “a natureza e fim racional do Estado; o seu fim, o restabelecimento do
estado-de-direito perturbado pelo crime” (ob. cit., p. 313).

292
subsidiária de bens jurídicos, protegendo-se “o livre desenvolvimento dos indivíduos,
assim como a manutenção de uma ordem social baseada neste princípio”527. Esta ideia,
de raiz iluminista, que resiste na dogmática penal apesar de todas as interrogações que
na contemporaneidade lhe são dirigidas – e que justificam a afirmação da «crise actual
do “direito penal do bem jurídico”»528 – é, porém, apresentada, sobretudo no
pensamento vitimológico, como factor essencial para o declínio do papel das vítimas na
justiça penal529.

2.1. Delimitação do problema: os “fins” da pena e os “fins” da intervenção


restaurativa

Entende-se, tradicionalmente, que a ideia central do pensamento retributivo no


direito penal é a de que a aplicação da pena corresponde a um imperativo de justiça. O

527
Cfr., por todos, Claus ROXIN, Derecho Penal – Parte General, Tomo I, cit., p. 81. Esta ideia surge
sob diversas formulações e também são conhecidas diversas definições de bem jurídico. Escolha-se, a
título de ilustração, a formulação sintética de José de FARIA COSTA: “o bem jurídico-penal é um pedaço
da realidade, olhado sempre como relação comunicacional, com densidade axiológica a que a ordem
jurídico-penal atribui dignidade penal. Sendo a função primacial do direito penal a protecção de bens
jurídicos, a correcta compreensão de bem jurídico na doutrina da infracção penal, assume, pois,
importância fundamental na ordem (no sistema) do direito penal” (Noções Fundamentais de Direito
Penal cit., p. 174). Não pode negar-se, porém, a existência de Autores que tendem a afastar-se desta linha
de pensamento. Assim, por exemplo, Günther JAKOBS, que parece atribuir ao direito penal uma função
primordial de defesa do próprio sistema jurídico e que critica a teoria da protecção de bens jurídicos,
apesar de reconhecer que “não é o melhor rechaçar rotundamente esta doutrina” (Derecho Penal – Parte
General, 2ª ed., Marcial Pons: 1997, p. 57. Também Jesus-María SILVA SANCHEZ formula algumas
objecções à clássica teoria do bem jurídico, considerando que “não é possível controlar nenhuma norma
penal a partir da perspectiva de uma hipotética violação do princípio da exclusiva protecção de bens
jurídicos, mas somente a partir do princípio da proporcionalidade” (La expansión del derecho penal.
Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales, Civitas: Madrid, 1999, p. 91). Para
uma consideração das “oposições e dificuldades” com que a teoria da exclusiva protecção de bens
jurídicos actualmente se confronta, assim como das dimensões que comporta, cfr. Fabio d’AVILA,
“Aproximações à teoria da exclusiva protecção de bens jurídicos no direito penal contemporâneo”,
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, I, Org. Manuel da Costa Andrade e
outros, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 185 ss.
528
Sobre o problema, um dos mais fundos e mais controvertidos a que a dogmática penal hoje se dedica,
cfr., por todos, Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed. cit., p. 133 ss.
O Autor começa por sublinhar que “as raízes longínquas deste paradigma devem procurar-se no
pensamento filosófico ocidental a partir do séc. XVII e, pelo que directamente respeita ao âmbito
jurídico-penal, no movimento do Iluminismo Penal; e exprimem-se por excelência no racionalismo
cartesiano, na doutrina jurídico-política do individualismo liberal e na mundividência antropocêntrica e
humanista que comandou o movimento a favor dos direitos humanos”.
529
Para a compreensão desta problemática assume especial relevância o estudo de Albin ESER Sobre la
exaltación del bien jurídico a costa de la víctima (trad. de Manuel Cancio Meliá: Bogotá, Universidad
Externado de Colômbia, 1998, p. 9 ss), no qual o Autor retoma a ideia já antes esboçada por Klaus Sessar
de que a vítima desapareceu por trás da teoria do bem jurídico.

293
mal manifestado na prática do crime, com culpa, deve ser expiado530 ou compensado
com a sujeição ao mal da pena, que é justa por corresponder – quanto à sua duração e à
sua intensidade – à gravidade do crime e à culpa do seu agente. A teoria da retribuição é
também com frequência denominada teoria absoluta531, por se encarar a pena como
independente de qualquer efeito social – e, nessa medida, de certo modo cindida de um
fim532. É este o modelo que o pensamento restaurativo associa, regra geral, à justiça
penal533. O que tem permitido estabelecer, nesses termos, uma distinção essencial logo
ao nível das finalidades entre as duas formas de reacção ao crime.
Todavia, o pensamento penal contemporâneo é profícuo nas denominadas
teorias relativas534, que vêem a pena exclusivamente como um instrumento de
prevenção. Esta prevenção será (I) geral quando a pena for concebida como um
instrumento de política criminal “destinado a actuar (psiquicamente) sobre a
generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através
da ameaça penal estatuída pela lei, da realidade da sua aplicação e da efectividade da
530
Usam-se, de forma indistinta, os conceitos de “retribuição” e de “expiação”, apesar de se saber que é
habitual atribuir-se a este último uma dimensão subjectiva, enquanto aquele assume uma vertente mais
objectiva e moderna.
531
Claus ROXIN (Derecho Penal, Parte General, Tomo I cit., p. 82 ss) justifica o facto de a teoria da
retribuição ter tido durante tanto tempo “uma influência tão predominante” relembrando a sua “dignidade
histórica”, a sua “plausibilidade quotidiana” e, sobretudo, “a sua fundamentação através da filosofia do
idealismo alemão”. O Autor, quando se refere à explicação histórica para a predominância da teoria
absoluta dos fins das penas, está naturalmente a supor uma outra perspectiva histórica da punição que não
a descrita (e antes referida) por autores como BRAITHWAITE ou WEITEKAMP. Podem englobar-se no
pensamento de ROXIN sobre a história retributiva da punição as representações mitológicas da pena na
Idade Antiga, o primado do princípio de talião, as representações religiosas que dominaram todo o
período medieval e que conduziram à visão do juiz como aquele que administra na terra a justiça divina,
ordenando em nome de Deus a expiação do pecado que é o crime. No que respeita à importância que
atribui à filosofia do idealismo alemão para a compreensão do pensamento retributivo, deve sublinhar-se
a visão kantiana da justiça enquanto imperativo categórico (vertida na célebre afirmação de que “tantos
quantos sejam os assassinos que tenham cometido um assassinato, ou que o tenham ordenado, ou que
com ele tenham colaborado, tantos são os que terão de sofrer a morte; assim o impõe a justiça como ideia
do poder judicial segundo as leis gerais e fundamentadas a priori”); assim como a ideia hegeliana de que
o crime é a negação do direito e a pena é a negação da negação (restabelecer-se-ia o direito se a pena
lograsse anular o crime, “que de outro modo continuaria a valer”).
532
O facto de, no pensamento da retribuição, o castigo ser independente de qualquer fim é sublinhado por
Claus ROXIN (Problemas Fundamentais de Direito Penal cit., p. 16) que, para o demonstrar, faz apelo
ao pensamento de Kant, para quem “mesmo que a sociedade civil com todos os seus membros decidisse
dissolver-se (v.g., o povo que vive numa ilha decidia separar-se e dispersar-se por todo o mundo), teria,
antes, de ser executado o último assassino que estivesse no cárcere, para que cada um sofresse o que os
seus actos merecessem, e para que as culpas do sangue não recaíssem sobre o povo que não haja insistido
no seu castigo”. ROXIN conclui que para a teoria da retribuição “a pena não serve, pois, para nada,
contendo um fim em si mesma”.
533
Cfr., a título de exemplo, as considerações de Howard ZEHR sobre a justiça retributiva, que seria a
justiça penal, por contraposição à justiça restaurativa (Changing Lenses – a new focus for crime and
justice, 3ª ed. (1ª de 1990), Ontario: Herald Press, 2005, p. 63 ss.
534
Também as teorias relativas dos fins das penas seriam suceptíveis de uma longa análise, que não é aqui
cabida. Todavia, sempre se pode afirmar que é comum, para as ilustrar, a invocação do pensamento de
Platão e de Protágoras, transmitido por Séneca, de que “nenhum homem sensato castiga porque se pecou,
mas sim para não se pecar”.

294
sua execução” ou (II) especial quando se perspectiva a pena “como um instrumento de
actuação preventiva sobre a pessoa do delinquente com o fim de evitar que, no futuro,
ele cometa novos crimes” – aquilo a que Albin ESER chamou “prevenção da
reincidência”535.
As teorias relativas, nem sempre com as mesmas formulações, têm competido
pela preponderância na modelação do sistema punitivo, não sendo porventura
totalmente erróneo afirmar-se que a expansão de cada uma delas se produz, com
frequência, à custa de um decaimento ou das fragilidades da outra. Assim, por exemplo,
tem-se afirmado o fortalecimento das concepções de prevenção geral “à custa da morte
da sua opositora”, a prevenção especial orientada para o “tratamento” do delinquente536.

535
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I cit., p. 48 ss. No âmbito da
prevenção geral, o Autor distingue a negativa ou de intimidação (em que a pena é uma “forma
estatalmente acolhida de intimidação das outras pessoas através do sofrimento que com ela se inflige ao
delinquente e cujo receio as conduzirá a não cometerem factos puníveis) da positiva ou de integração (em
que a pena é concebida como “forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da
comunidade na validade e na força de vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no
ordenamento jurídico-penal”). Também a prevenção especial é susceptível de várias divisões tendo em
conta o modo pelo qual se pretende evitar a reincidência. De forma simplificada, podem distinguir-se três
grandes perspectivas, já reveladas por Franz v. LISZT no seu Programa de Marburgo de 1882: a de
neutralização ou inocuização do delinquente habitual e incorrigível, a de intimidação do delinquente
ocasional e a de correcção dos agentes que sejam corrigíveis. A terceira destas modalidades adquiriu
particular relevo, sobretudo na Europa, sob a designação de prevenção especial de socialização. Sobre o
carácter pioneiro do pensamento da prevenção especial na Península Ibérica através das teses da Escola
Correccionalista, vd. ainda Jorge de FIGUEIREDO DIAS (últ. ob. cit., p. 53), que relembra o contributo
fundamental de penalistas portugueses como Levy Maria Jordão e Ayres de Gouvêa.
536
A expressão é de Nils CHRISTIE, que afirma, ainda, assistir a esta tendência com consideráveis
angústia e ansiedade. Refere-se ao abandono do discurso terapêutico dominante no norte da Europa entre
o final da II Grande Guerra e a década de setenta do século passado – abandono que compreende, na
medida em que aquele sistema se revelou, quer incompatível com as garantias fundamentais, quer
ineficaz – e à adopção quase generalizada de um discurso de defesa da prevenção geral positiva (in Limits
to Pain cit., p. 27). De qualquer modo, o Autor entende que as dificuldades na medição da eficácia do
tratamento individual se estendem à avaliação da eficácia preventivo-geral das penas. E acrescenta que,
dos estudos que conhece e que cita, parece decorrer a conclusão da escassa conexão entre os números da
punição e os números da criminalidade: “pouca coisa indica que os níveis da criminalidade num país
definam os níveis de encarceramento. Por outro lado, pouca coisa indica que são os níveis de
encarceramento (…) que determinam os níveis da criminalidade. Não há dúvida de que se influenciam
reciprocamente, mas dentro de uma área muito limitada” (últ. ob. cit., p. 33). Apesar de CHRISTIE
assumir as dificuldades inerentes às concepções preventivas (especiais e gerais) e de referir a progressiva
substituição da ideologia terapêutica ou pelo pensamento da prevenção geral ou pelo neo-classicismo (que
associa ao recrudescimento das correntes retributivas), a sua preferência no âmbito das teorias relativas
parece continuar a ir para a prevenção especial, ainda que com distinta formulação. Com efeito, afirma
que “o tratamento está fora de moda”, mas acrescenta “que não todo o tratamento”, porque se a inflicção
de sofrimento “disfarçada de tratamento” parece ter deixado de merecer um espaço, a verdade é que “as
prisões estão cheias de pessoas necessitadas de cuidado e de cura”. E conclui: “o tratamento para o crime
perdeu a credibilidade. O tratamento não perdeu” (ob. cit., p. 48). De qualquer modo, também se não
pode desconsiderar uma certa proximidade das teorias absolutas em momento posterior da sua obra Limits
to Pain, a partir da ideia de que “quando não há nenhum propósito por trás do sofrimento, torna-se mais
claro que se trata de um problema moral. As partes teriam de pensar e voltar a pensar se o sofrimento era
justo. Não se era necessário, mas se era justo. Há grandes hipóteses de que, quanto mais pensassem,
menos justo o achassem”. Esta afirmação é sustentada pela convicção de que através do diálogo e da
reflexão se conseguiria conhecer o outro e compreendê-lo, o que só seria possível caso se abandonasse o

295
Todavia, apesar das especificidades que as distinguem, as ideias de prevenção especial e
de prevenção geral não deixam de comportar elementos comuns essenciais, que levam
Nils CHRISTIE a referir-se ao “tratamento” e à “dissuasão” como “ideologias gémeas”:
na opinião do Autor, ambas são o fruto de um tempo de racionalismo em que domina o
pensamento utilitário; têm em comum uma “nota de manipulação” porque se dirigem,
em ambos os casos, a uma mudança comportamental (do agente do crime, num caso; de
todos os cidadãos, no outro); ambas admitem a imposição de sofrimento com um
propósito. São, ainda segundo o Autor, estas semelhanças que justificam a facilidade
com que cada uma delas pode ser trocada pela outra, sucedendo-se no tempo ainda que
com distintas roupagens como forma de reacção às críticas de ineficácia formuladas à
concepção rival537.
Por outro lado, conhecem-se ainda várias teorias mistas ou unificadoras538 dos
fins das penas, que procuram combinar o pensamento retributivo com o pensamento
preventivo539 ou então, em outros casos, apenas unificam numa única construção teórica
diferentes perpectivas das ideias preventivas.

modelo de justiça em que uns são clientes e outros são representantes, assumindo cada interveniente no
conflito a defesa dos seus interesses. Nas palavras do Autor, “as teorias absolutas da punição, numa
sociedade baseada na participação e não na representação, poderiam facilmente conduzir a uma sociedade
de redução do sofrimento” (últ. ob. cit., ps. 100-105).
537
Nils CHRISTIE, Limits to Pain cit., ps. 27-8.
538
A este propósito, vd. Santiago Mir PUIG (Derecho penal en el Estado Social y Democrático de
Derecho, Barcelona: Editorial Ariel, 1994, p. 56), para quem “a retribuição, a prevenção geral e a
prevenção especial são distintos aspectos de um mesmo fenómeno complexo que é a pena”. Afirmação
que também se crê merecedora de detida ponderação é a de Andrew von HIRSCH (“Retribución y
prevención como elementos de justificación de la pena”, Crítica y justificación del derecho penal en el
cambio del siglo, El análisis crítico de la Escuela de Frankfurt, coord. Arroyo Zapatero/Neumann/Nieto
Martín, Colección Estúdios, Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2003, ps. 125-126), para
quem “a divisão taxativa entre teorias absolutas e relativas bloqueia seriamente as reflexões acerca da
justificação da sanção penal, pois conduziu a que o debate se reduzisse à ideia de que ou só são possíveis
teorias consequencialistas (e preventivas) ou então teorias fundamentadas em considerações morais de
carácter abstracto e universal”. A tese que o Autor sustenta é a de que “uma justificação convincente da
existência da pena deve deixar de lado esta dicotomia; ou seja, tem de estar fundamentada tanto em
valorações morais retrospectivas, como em considerações atinentes às consequências”.
539
Em Portugal, tenha-se em conta, a título de exemplo e para uma melhor compreensão das teorias
mistas dos fins das penas que partem de uma posição ético-retributiva mas não deixam de reconhecer a
importância da prevenção especial positiva, os pensamentos de Eduardo CORREIA e de José de FARIA
COSTA. Eduardo CORREIA, em afirmação que muito interessa a este estudo também quanto à distinção
entre a indemnização e a pena, vinca a diversidade de finalidades, deixando claras aquelas que são, a seu
ver, as finalidades da sanção penal: “ainda (…) neste caso a indemnização civil se distingue da pena,
desde logo, quanto à sua finalidade: pois enquanto aquela tem em vista remediar patrimonialmente os
interesses próprios de certas pessoas, dando ao ofendido um valor equivalente ao dano patrimonial
sofrido, ou compensando-o por forma idêntica de um dano moral, as sanções penais têm por fim reprovar
os crimes, prevenir a sua futura repetição e readaptar socialmente o criminoso” (Direito Criminal I,
Coimbra: Livraria Almedina, 1971, p. 16). José de FARIA COSTA, por seu turno, afirmava no seu estudo
“Aspectos fundamentais da problemática da responsabilidade objectiva no direito penal português”
(Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, III, Boletim da Faculdade de Direito, n.º
especial, Coimbra: 1983, p. 360) que “quando se apela ao princípio da culpa estamos concomitantemente

296
a honrar a própria liberdade, quando com esta se potencia a noção de responsabilidade de ser-com-os-
outros (…). Por outro lado, a carga histórica, cultural e ideológica ligada ao princípio da culpa
(retribuição) é um outro vector que nos dá o sentido das coisas do mundo dos valores. Com isto não se
quer afirmar que a pena deva ser pura retribuição. Bem ao contrário. As realidades normativas não são
asserções unívocas de um só sentido mas antes plúrimas nas suas finalidades. Nada obsta pois que à pena
se dê um sentido plural”. Note-se, por outro lado, que uma certa afirmação da “pluralidade dos fins das
penas” não deixa de corresponder a uma nossa tradição jurídico-penal. Nas palavras de José Merêa
Pizarro BELEZA [“A pena de prisão, a reforma das cadeias e o Ensayo sobre o Plano mais Conveniente
para a Fundação das Cadêas (notas para a história do direito penal vintista)”, Liber Discipulorum para
Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora: 2003, p. 369], «quando, em 1884, Lopo Vaz critica “os
sistemas poéticos e sentimentalistas que há alguns anos começaram a invadir os domínios do direito
penal” e volta a afirmar a pluralidade dos fins das penas, o que o Ministro responsável pela “Nova
Reforma Penal” faz não é senão repor o sistema penal no caminho que, em matéria de compreensão da
pena e dos objectivos que com ela se devem perseguir, era o da nossa tradição jurídico-penal desde os
alvores do regime liberal». E o Autor cita, julga-se que com grande interesse para o ponto em
consideração, trecho do relatório da proposta de lei: ”(…) prefiro o sistema penitenciário a qualquer outro
sistema penal, visto que nenhum satisfaz como aquele aos três fins a considerar – o castigo, a intimidação
e a emenda. Aqueles que consideram como único fim da pena a emenda do criminoso, esquecendo que
ela constitui sempre um castigo e importa necessariamente um sofrimento, transformam o criminoso em
colegial, aumentando-a ou diminuindo-a em nome do estado moral da vítima”. Também Jorge de
FIGUEIREDO DIAS reconhece a forma específica como se conjugou, entre nós, o pensamento da
prevenção geral negativa limitada pela ideia de proporcionalidade (exemplarmente documentado nas
obras de Feuerbach ou Beccaria) e o pensamento ético-retributivo (que muito deveu à filosofia idealista
alemã de Kant e Hegel) com o pensamento da prevenção especial positiva, relacionado com a nossa
tradição correccionalista. O Autor, para caracterizar a “longa época do Estado liberal português (1820-
1926)”, afirma que «a doutrina da pena e das suas finalidades – correspondente, embora, no essencial, aos
pressupostos subjacentes à chamada “Escola Clássica” – não assumiu nunca o carácter rígido, absoluto e
intolerante que constituiu, na ciência jurídico-penal de outros países, como que a imagem de marca desta
orientação. Tal ficou sobretudo a dever-se à particular permeabilidade da ciência e da legislação jurídico-
penais portuguesas, desde estádios particularmente precoces da evolução, ao pensamento da prevenção
especial positiva, sob a égide do pensamento correccionalista». O Autor enfatiza, ainda, o facto de este
pensamento não ter conduzido a um “direito de pura prevenção especial, de tratamento do delinquente,
livre das barreiras ético-jurídicas da culpa, como haveria de ser pretensão da Escola Positiva; mas antes se
manteve sempre, em geral, dentro dos limites garantísticos e de respeito pelos direitos individuais que
constituíram património inalienável do Iluminismo e do Liberalismo penais e da chamada Escola
Clássica” (in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed. cit., p. 72). Uma afirmação que se julga
interessante (pelo seu tempo, por atribuir uma pluralidade de fins à intervenção penal e por contar, entre
eles, a reparação dos danos causados à vítima) é a de Joaquim PEREIRA y SOUSA, para quem “segundo
a maior parte dos Publicistas os fins das penas são a indemnisaçao da parte offendida, a emenda do
aggressor, e o exemplo dos outros para que por meio do temor se abstenhao de semelhantes delictos (…).
A pena (…) he antes hum exemplo para o futuro que huma vingança do passado. A vingança he uma
paixão de que as Leis são izentas. Ellas punem sem ódio, e sem rancor” (in Primeiras Linhas sobre o
Processo Criminal, Terceira Edição Emendada e Accrescentada, Lisboa: Typografia Rollandiana, 1820,
p. 210). Sobre o reconhecimento, por alguns defensores do pensamento retributivo, de objectivos
preventivos, vd., ainda, Anabela Miranda RODRIGUES: “mesmo as [elaborações doutrinais sobre os fins
das penas] que encontravam para estas uma justificação retributiva, não enjeitavam que com a aplicação
das penas se visassem objectivos preventivos: Kant e Hegel, no passado; Welzel, Maurach, Armin
Kaufmann ou Eduardo Correia, mais perto de nós, ilustram o que se quer dizer” (“Globalização,
democracia e crime”, Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais cit., São Paulo:
Quartier Latin, 2006, p. 291). Nesta matéria, será ainda de ter em conta a ideia de Américo Taipa de
CARVALHO, no contexto de uma defesa da concepção bilateral da culpa, de que “o elemento mais
decisivo é a culpa (na sua espécie e gravidade). E isto não porque defendamos qualquer concepção da
pena como expiação ou sequer como retribuição, mas, unicamente, porque pensamos que a pena
determinada, fundamentalmente, segundo o citério material da culpa é aquela que se apresentará, político-
criminalmente, com mais virtualidades de eficácia”. O Autor referia-se sobretudo à eficácia sob o ponto
de vista da prevenção especial, na medida em que «a pena “adequada à gravidade da culpa será a que
mais virtualidades terá para despertar no delinquente a indispensável “dinâmica” interior de “auto-
reeducação”» (“Condicionalidade sócio-cultural do direito penal”, Estudos em Homenagem aos Profs.
Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga da Cruz, II, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LVIII, Coimbra,

297
Se a afirmação da diferença da justiça restaurativa tivesse na base apenas a
crítica da justiça penal retributiva, seria – pelo menos a uma primeira análise –
aparentemente simples a sua refutação em sistemas, como o português , em que o direito
positivo refere as finalidades preventivas da pena, também acolhidas por parte
significativa da doutrina540. Dir-se-ia, assim, que não procede nem a afirmação da
diferença, nem a crítica, ambas centradas na natureza retributiva apenas da justiça penal.
Apesar de se reconhecer que a afirmação de uma certa primazia doutrinal ou legal do
pensamento da prevenção não afasta a existência de outras compreensões, nem exclui
uma dimensão espácio-temporal a que a consideração da questão está sujeita e que a
torna muito permeável à mudança541.
Todavia, quando se aprofunda, para lá da semântica, o verdadeiro sentido da
crítica proveniente do pensamento restaurativo – e, para além disso, da pretendida
diferença –, percebe-se que o desconforto essencial radica no mal que comportam as
sanções penais. É a reacção ao mal do crime com o mal da pena que os cultores do
pensamento restaurativo rejeitam e é sobretudo a condenação a um mal que cobrem
com a designação de “justiça retributiva”.
Ora, parece ter de se reconhecer que esse mal não deixa de existir na pena
mesmo que a esta pena presidam finalidades preventivas. Nils CHRISTIE, na sua já
citada obra Limits to Pain, torna esta ideia muito clara no contexto da ideologia
preventivo-especial associada ao tratamento: “o tratamento também pode magoar. Mas
é tão frequente a cura magoar. E essa dor não é pretendida como dor. É pretendida como
uma cura. A dor torna-se então inevitável, mas eticamente aceitável”542. Segundo se crê,
esta é uma precisão indispensável para que se relance, agora numa distinta óptica, a
questão da contraposição entre a justiça penal e a justiça restaurativa, por se
compreender que a crítica que os cultores desta proposta restaurativa endereçam à

1982, ps. 1132-1135). Na contemporânea doutrina alemã, um dos Autores que não hesita em atribuir
papel essencial à retribuição da culpa sem todavia desconsiderar a relevância da prevenção é Urs
KINDHÄUSER (“Retribuición de la Culpabilidad y prevención en el Estado Democrático de Derecho”,
Derecho Penal del Enemigo – El discurso penal de la exclusión, 2.º vol., coord. Cancio Meliá/Gómez-
Jara Díez, Buenos Aires: Euros Editores, 2006, sobretudo p. 153 ss).
540
Considere-se, a título de exemplo, a afirmação de Jorge de FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal –
Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed. cit., p. 84) de que “toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção,
geral e especial”.
541
Pode dizer-se até que é causal (e não casual) o facto de serem sobretudo os autores anglo-saxónicos –
sobretudo os de influência norte-americana – aqueles que mais enfatizam na crítica à justiça penal a sua
dimensão retributiva.
542
Nils CHRISTIE, Limits to Pain cit., p. 21.

298
justiça penal que dizem “retributiva” é, na verdade, uma crítica de toda a punição
enquanto cominação de um mal543.

2.2. A cominação de um mal: uma questão de fundo e (no fundo) transversal às


várias teorias sobre os fins da pena

Quer se considere que a pena visa a retribuição, quer se julgue que ela serve
finalidades exclusivamente preventivas, parece assumir-se que a sujeição a uma sanção
criminal deve ser sentida pelo condenado, pelo menos até certo ponto, como um mal 544.
Todavia, talvez se possa afirmar que, pelo menos no plano da pureza dos princípios,
enquanto para as teorias exclusivamente retributivas a pena é sobretudo um mal

543
As ideias de que a pena não pode ser só um mal e também de que deve haver na evolução da justiça
penal uma diminuição do quantum de mal que se vai aceitando são já visíveis, na década de sessenta do
século passado, no pensamento de Eduardo CORREIA. Na sua opinião, “é bastante evidente que o
objectivo humanitário que tinha presidido à abolição dos castigos corporais terá sido completamente
falsificado se a prisão, que devia substituí-los, tivesse continuado a ser tida unicamente como um mal
(…). A partir desse momento, a privação da liberdade não seria mais do que uma espécie de castigo
corporal, aparentemente menos duro e mais humano, mas não algo de verdadeiramente diferente”. E, com
grande interesse, Eduardo CORREIA dá ainda conta de que esse carácter menos desvalioso da prisão
podia ser apenas aparente, na medida em que “a privação da liberdade poderia não ser mais, de facto, do
que uma morte lenta, mais penosa e mais desumana do que os castigos corporais – em que o sofrimento
do condenado durava apenas um certo tempo –; ela seria, de certo modo, mais humilhante (…) porque
humilhava o criminoso in perpetuum”. Esse carácter negativo da prisão só seria compensado, ainda na
opinião do Autor, pelo reconhecimento de uma sua dimensão positiva, pedagógica e de reeducação, assim
como pelo reconhecimento da preferência pelas reacções “não institucionais” (“La prison, les mesures
non-institutionnelles et le projet du Code Pénal Portugais de 1963”, Estudos “in memoriam” do Prof.
Doutor José Beleza dos Santos, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra: Coimbra Editora,
1966, ps. 231-2).
544
Julga-se que a possibilidade de sujeição da pessoa a um mal não é exclusiva do sistema penal, antes se
assume como inerente a toda a sanção (ainda que se possa dizer que o mal que resulta da condenação
penal é o pior dos vários males). Essa dimensão da justiça é, de resto, simbolizada pela espada na imagem
que correntemente a simboliza. Em estudo já referido sobre a imagem através da qual se representou a
justiça, Ana MESSUTI (“Desconstruyendo la imagen de la justicia”, Escritos em Homenagem a Alberto
Silva Franco, Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 107) refere que “a presença da espada faz referência
à decapitação (entre 1551 e 1798, [em Itália] metade dos condenados à morte são executados mediante
decapitação com espada)”. Acrescenta, porém – e com maior interesse para o objecto deste estudo – que
“a espada não tem apenas a função de representar o objecto concreto que lhe serve de referente. Cumpre
também a função alegórica de se referir ou de nos referir o outro sentido do acto de julgar: cortar com o
objectivo de pôr fim à incerteza. Pôr um ponto final no conflito. Separar, dar a cada um aquilo que é seu,
para o que é preciso dividir em partes”.

299
dissociado de finalidades545, para as teorias preventivas a pena transposta consigo um
mal que se pretende que venha a dar origem a algum bem546.
É, de resto, esse mal (ou “sofrimento”, como refere Anabela RODRIGUES) que
sobretudo justifica a necessidade de uma defesa intransigente das garantias do indivíduo
confrontado com o poder punitivo do Estado, mesmo que a pena já não seja a privativa
da liberdade: «o carácter da “pena” vem do “sofrimento” que esta implica e hoje, como
é geralmente aceite, o “sofrimento” não está ligado só à “pessoa em sentido físico” (o
que estava implícito na pena privativa de liberdade), mas à “pessoa mais os seus
direitos”, o que significou a criação de “novas penas”, de que a pena pecuniária é o
exemplo paradigmático. O que tudo nos leva a defender que não é por ter mudado a
“face” da pena que ela é “menos pena” ou pode suportar menos garantias na sua
aplicação»547.

545
Como refere Jorge de FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, cit., p. 46), “uma
pena retributiva esgota o seu sentido no mal que se faz sofrer ao delinquente como compensação ou
expiação do mal do crime; nesta medida, é uma doutrina puramente social-negativa, que acaba por se
revelar não só estranha a, mas no fundo inimiga de qualquer tentativa de socialização do delinquente e de
restauração da paz jurídica da comunidade afectada pelo crime; inimiga, em suma, de qualquer actuação
preventiva e, assim, da pretensão de controlo e domínio do fenómeno da criminalidade”.
546
Também no pensamento de Eduardo CORREIA (Direito Criminal I – com a colaboração de Jorge de
Figueiredo Dias – Almedina, 1971, p. 41) pode reconhecer-se a ideia da existência de um mal na pena,
quer esta tenha uma finalidade retributiva, quer tenha uma finalidade preventiva. Assim, para os que
defendem a retribuição, a pena traduz-se “na aplicação de um mal correspondente ao mal praticado,
imposta por imperativos morais, lógicos, dialéticos, estéticos, religiosos ou sociais. Quem procede mal
deve pagar esse mal como é justo, e é justo que sofra um mal igual ao crime que praticou”. Já nas teorias
preventivas, distingue as de natureza geral das de natureza especial: naquelas “a ameaça ou a execução
desse mal agem sobre a generalidade das pessoas, intimidando-as e desviando-as da prática do crime;
nestas, “actuam sobre o agente num sentido segregador – afastando-o ou eliminando-o da sociedade –,
reeducativo ou correctivo – adaptando-o à vida social – ou intimidativo – dando-lhe consciência da
seriedade da ameaça penal”. O Autor entende que “o Estado tem sempre que aceitar, na sua tarefa
punitiva, a intervenção de ideias éticas”, o que o leva a advogar como ponto de partida na justificação da
pena o sistema ético-retributivo, até porque “sempre a pena aparece, em face do delinquente, como
inflição de um mal”. Sem, todavia, omitir que “o sistema retributivo tem de aceitar correcções de vária
ordem e concessões importantes a outros pontos de vista, nomeadamente aos da prevenção especial”. De
facto, para o Autor, a ideia retributiva implica que “para além da sua medida máxima, do máximo de
censura que o delinquente suporta por sua culpa, não pode efectivar-se qualquer reacção de natureza
penal; a retribuição impõe o estabelecimento do quantum máximo de pena que é justo que o delinquente
sofra”. Enfatiza-se, pois, o relevo da culpa quanto ao máximo de pena e não relativamente ao seu
quantum exacto ou ao seu mínimo. E Eduardo CORREIA vai mais longe, considerando que em casos de
conflito entre o dever de castigar (a ideia de retribuição) e o dever ético de solidariedade para com o
delinquente (“que vem a traduzir-se no dever de o recuperar socialmente”), deve sacrificar-se o primeiro
se este último só desse modo se puder cumprir. E é assim porque, ainda nas expressivas palavras de
Eduardo CORREIA, “ter-se-á diluído a ideia de retribuição, mas ter-se-á ganho um homem”.
547
Vd. Anabela RODRIGUES, no contexto de uma argumentação que leva à rejeição de um “direito
penal a duas velocidades”, ainda que se não invalide «a solução “diferenciada” ao nível punitivo e
processual» para distintas manifestações da criminalidade (in “Globalização, democracia e crime” cit., p.
306). A compreensão da pena como um mal parece também subjacente à afirmação de Augusto SILVA
DIAS de que «a prisão foi pensada para seres que prezam a liberdade como um valor fundamental e a
multa foi concebida para quem necessita de bens patrimoniais para se realizar individual e socialmente.
Consciência da liberdade e necessidade de património são categorias ou topoi exclusivos do Dasein
humano. O sacrifício em que qualquer uma dessas penas se traduz e que representa, na frase emblemática

300
Em rigor, pode mesmo considerar-se que vivem na justiça penal vários males,
porque as constrições que dela resultam ultrapassam o mal da pena. O pensamento de
Luigi FERRAJOLI é, também a este propósito, de uma clareza extrema: depois de
apresentar o direito penal como “uma técnica de definição, comprovação e repressão
das condutas desviadas”, afirma que, seja qual for o modelo normativo e epistemológico
adoptado, tal técnica tem sempre como consequência “restrições e constrições sobre as
pessoas dos potenciais desviados e de todos aqueles de quem se suspeita ou que são
condenados como tal”. Acrescenta que essas restrições são três: a primeira “consiste na
definição ou proibição dos comportamentos classificados pela lei como desviados e, por
isso, numa limitação da liberdade de acção de todas as pessoas”; a segunda manifesta-se
na “sujeição coactiva ao processo penal de todo aquele que seja considerado suspeito de
uma violação das proibições penais”; a terceira “consiste na repressão ou punição de
todos aqueles considerados culpados de uma de tais violações”548.
Ora, apesar de se dever reconhecer que todas estas limitações supõem um
desvalor (a proibição, a sujeição ao processo e a punição), é precisamente o mal da pena
que o pensamento restaurativo mais enfaticamente rejeita549.
A questão é, porém, substancialmente mais profunda e não pode ser encarada
apenas como um outro ponto de discórdia entre penalistas e cultores do pensamento
restaurativo. Trata-se, antes, de uma velha questão jusfilosófica, que interessa a este
estudo também porque em reflexões contemporâneas sobre a justiça e o mal se
encontram ideias próximas do ideário restaurativo, como antes se já referiu a propósito
do pensamento de Lévinas550.

do Projecto Alternativo alemão de 1966, “uma amarga necessidade numa sociedade de seres imperfeitos”,
não conduz em sociedades democráticas à perda do estatuto de pessoa e da dignidade que lhe é inerente»
(in “Os criminosos são pessoas? Eficácia e garantias no combate ao crime organizado”, Que Futuro para
o Direito Processual Penal?, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO,
Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 688).
548
Luigi FERRAJOLI, Derecho y Razón cit., p. 209.
549
Existem, porém, manifestações de dúvida sobre a possibilidade de agir contra o mal sem fazer mal.
Olivier ABEL (“Justiça e Mal”, A Justiça e o Mal, dir. de Antoine GARAPON e Denis SALAS, trad. de
Maria Fernanda Oliveira, Lisboa: Instituto Piaget, 1999, ps. 118-121) exterioriza essa interrogação a
partir de uma referência à “tentação terrível da bondade” referida por Ricoeur. Segundo o Autor, “é
preciso fazer mal para parar o mal”, reconhecendo-se que “a justiça é violenta de várias maneiras: só pode
exercer a sua autoridade encostada a um poder de coacção de que tem o monopólio do uso legítimo. A
sua autoridade só tem sentido se puder fazer aplicar a sanção penal, que é uma forma de fazer mal, de
retribuir o mal cometido com um mal sofrido”.
550
Uma das obras que merece referência é, precisamente, A Justiça e o Mal, uma compilação de estudos
dirigida por Antoine GARAPON e Denis SALAS (trad. de Maria Fernanda Oliveira, Lisboa: Instituto
Piaget, 1999). Estes, logo na introdução, partem da ideia da dificuldade que a democracia sente em
assumir a existência de crimes, os quais contrariam a ideia da bondade dos cidadãos. Relacionam este
facto com uma consequente dificuldade em aceitar o mal do crime e o mal da pena e justificam, também
por essa via, a expansão do “discurso da mediação”. Afirmam, nesse contexto, que “como não se aborda

301
Apesar da pluralidade de acepções sobre o bem e sobre o mal, a perspectiva em
que essa dicotomia será abordada neste estudo prende-se, apenas, com a ideia da
violência associada à condenação a uma pena que é sentida como um mal.
Ou seja: apesar de na filosofia política serem conhecidas reflexões várias sobre
o bem e sobre o mal551, não é a partir de uma teorização “generalista” sobre o sentido
do bem ou sobre o sentido do mal que se encetará a reflexão seguinte552. As
considerações tecidas centrar-se-ão, antes, apenas na ponderação do mal do crime e do
mal (ou do bem) da pena.
Por seu turno, mesmo aqueles Autores que procuram relegitimar a justiça penal
fazendo apelo a uma ideia estruturante – a ideia de garantismo – sentem o enorme
engulho que sobretudo a pena de prisão representa. Como reconhece Luigi
FERRAJOLI, “o direito penal, mesmo quando rodeado de limites e de garantias,
conserva sempre uma brutalidade intrínseca que torna problemática e incerta a sua
legitimidade moral e política. A pena, qualquer que seja a forma de a justificar e
circunscrever, é com efeito uma segunda violência que se acrescenta ao crime e que está
programada e é executada por uma colectividade organizada contra um indivíduo”553.
Entre nós, merece especial atenção a reflexão de José de FARIA COSTA sobre
o mal – particularmente interessante na medida em que surge na exacta intersecção de

frontalmente a questão do mal, tenta-se contorná-la graças a dois discursos: o da mediação, que dissolve o
conflito, e o da prevenção, que dissuade o mal. Muito propagada na actualidade, a mediação não postula o
mal, mas o mal-entendido” (ob. cit., p. 7). Também em “Justiça e mal”, de Olivier ABEL, se estabelecem
conexões entre o mal, a justiça e algumas características imputadas à justiça restaurativa. Nas suas
palavras, “a justiça, longe de pretender (…) reduzir os diferendos pela expressão sintética de um terceiro
que compreenderia tudo, é antes do mais o lugar onde se formulam as queixas. Antes de falar e de
pronunciar um julgamento, ela deve precisamente dar voz, dar a palavra a essa pluralidade dos males, das
injustiças sofridas, deve dar direito ao diferendo” (ob. cit., ps. 101-2).
551
Considere-se, a mero título de exemplo, o conceito de John RAWLS do bem como racionalidade e a
sua afirmação de que “o bem de uma pessoa é determinado por aquilo que é para ela o projecto de vida
mais racional, dadas determinadas circunstâncias razoavelmente favoráveis” (Uma Teoria da Justiça cit.,
p. 305) ou a abordagem, ainda mais ampla, de André JACOB, na sua obra O Homem e o Mal (trad. de
Jorge Pinheiro, Colecção Pensamento e Filosofia, Lisboa: Instituto Piaget, 2000, ps. 11, 18, 31, 32), que
parte da ideia “compósita” do mal e da forma como se procurou a sua apreensão quer por religiões, quer
por metafísicas, quer pela literatura. O Autor, a partir da afirmação da existência de “um grande problema
filosófico do mal”, ocupa-se da sua “desmultiplicação”, afirmando a “disparidade de três pontos de
fixação do mal: a morte, o sofrimento e o pecado (ou o seu substituto não teológico de falha”).
552
Dando-se conta, em certo sentido, dessa diversidade dos modos de abordagem, Antoine GARAPON e
Denis SALAS (últ. ob. cit., p. 10) esclarecem que “o indivíduo de que aqui se falará não é o que a
filosofia política tem por objecto, esse ser desencarnado, cerceado das suas paixões, de que Rousseau ou
Rawls nos falam. Não é aquele que se deve mostrar capaz de escolher o bom governo, mas sim aquele
que provou que era capaz de destruir”.
553
É, de resto, por considerar que, como escreveram Montesquieu ou Condorcet, o poder de julgar e de
castigar é o mais odioso de todos os poderes, que Luigi FERRAJOLI (Derecho y Razón – Teoria del
Garantismo Penal cit, p. 21) afirma que o direito penal põe a nu da forma mais evidente a tensão entre o
Estado e o cidadão, entre autoridade e liberdade, razão pela qual “o direito penal esteve sempre no centro
da reflexão jurídico-filosófica”.

302
um pensamento filosófico com um pensamento penal alicerçado num radical onto-
antropológico. No seu estudo publicado em 2001, Um olhar doloroso sobre o direito
penal (ou o encontro inescapável do homo dolens, enquanto corpo próprio, com o
direito penal), o Autor afirmava que «é através do direito penal (…) que as sociedades
politicamente organizadas “distribuem” as penas, logo distribuem um mal, porquanto,
queiramo-lo ou não, a pena não pode deixar de ser vista como um mal, não obstante os
fins que se podem prosseguir com a inflicção desse mal poderem ser sustentados e
legitimados através das mais nobres e sólidas razões». Com exactidão, José de FARIA
COSTA aponta a incoerência, “o intrínseco absurdo” que os críticos do sistema penal,
por seu lado, também se não cansam de enfatizar: «como compreender um instrumento
essencial de realização da nossa vida social que quer evitar o mal do crime – porque o
crime, não o esqueçamos, é também um mal – levando a cabo o mal da pena?»554.
Neste estudo de José de FARIA COSTA é notória uma linha do seu
pensamento sobre o mal da pena que se crê essencial, quando afirma que este, “para não

554
José de FARIA COSTA, “Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapável do
homo dolens, enquanto corpo-próprio, com o direito penal)”, Mal, Símbolo e Justiça (Actas das Jornadas
Internacionais realizadas em Coimbra nos dias 8 e 9 de Dezembro de 2000), Faculdade de Letras,
Coimbra, 2001, p. 27 ss. Também em um estudo anterior José de FARIA COSTA reconhecia que “a
justiça penal cumpria-se, tal como ainda hoje inexoravelmente acontece, pela absolvição ou pela
aplicação de uma pena que é, sabemo-lo todos muito bem, a inflicção de um mal”. E o Autor notava,
ainda, que “isto – o mal da pena que se acrescenta ao mal do crime – sempre preocupou a consciência
mais desperta da humanidade” [in “Os novos horizontes sobre os meios de comunicação social e a justiça
(ou a vertigem de Hermes), Direito Penal da Comunicação – Alguns Escritos, 1998, Coimbra: Coimbra
Editora, p. 126]. Defendendo, no contexto de uma reflexão sobre os fins da punição, uma “posição neo-
retributiva de fundamento onto-antropológico” (in “Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal:
lugar de encontro sobre o sentido da pena”, Linhas de Direito Penal e de Filosofia, alguns cruzamentos
reflexivos, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 208), o Autor não deixa de afirmar aquele “intrínseco
absurdo” que parece conduzir a um aumento do mal. Por outro lado, quando muito bem concretiza esse
“aburdo que se transforma depois em paradoxo” através do exemplo da pena de prisão, José de FARIA
COSTA parece assumir posição – com a qual, de resto, se manifesta concordância – próxima do
pensamento preventivo, formulando um conjunto de interrogações que constituem, segundo se crê, um
dos nós górdios de todo este debate: “como educar para a liberdade através da privação da própria
liberdade? Será isso possível? Mas não é normal que a educação – para a liberdade, é evidente – se faça
pelo exercício dos próprios actos de liberdade? Mas se o condenado não tem liberdade, não a pode
exercer, como se faz a aprendizagem?”. Quando se sublinha a necessidade de a pena educar para a
liberdade, parecem aceitar-se, mesmo que de forma não principal ou directa, objectivos da punição
associados à denominada prevenção especial de socialização (ou de não dessocialização, como alguns
preferem). A um primeiro e menos atento olhar, poder-se-ia estranhar – no pensamento de um Autor que
vê na pena a retribuição do mal do crime (na medida em que este representa uma ruptura da relação de
cuidado-de-perigo) – a apresentação da pena ainda como um bem. Poder-se-á retribuir um mal com um
bem? José de FARIA COSTA dá resposta a esta interrogação, considerando aquela linha de pensamento
uma “inovação dentro da retribuição que quer ver, que vê, a pena como um bem e não como pura
manifestação de um desencarnado kantiano imperativo categórico” (“Uma ponte entre o direito penal e a
filosofia penal” cit., ps. 229 e 233). Na doutrina estrangeira, são vários os Autores que sublinham a
contradição entre a natureza da pena e a sua função. Entre eles, Wilhelm SAUER afirmava, já há algumas
décadas, que “antes de tudo, a pena educativa é em si mesma uma contradição, pois a educação é bênção
e benefício. A pena é sofrimento e dor” (Derecho Penal – Parte General, trad. de Juan del Rosal e José
Cerezo, Barcelona: Bosch, 1955, p. 19).

303
ser unicamente expressão de um puro aumento ou acrescento ao mal do crime, tem de se
justificar como um bem”. A questão do fim das penas giraria, assim, em torno de um
eixo principal, que é a tentativa de metamorfosear um mal num bem555.
No seu estudo posterior, Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal:
lugar de encontro sobre o sentido da pena, o Autor retoma a reflexão sobre o mal da
pena, desenvolvendo algumas das ideias antes expostas. Depois de referir que o direito
penal responde ao mal do crime com o mal da pena, afirma a “manifesta estupefacção”
que aquela correspondência pode desencadear na medida em que parece impor, “em
férrea decorrência lógica”, a conclusão de que “o direito penal é um instrumento de
potenciação do mal”556. Particularmente interessante é a afirmação por José de FARIA
COSTA de que a pena não pode ser assim entendida: “a pena (a pena criminal) não
pode e não deve, definitivamente, ser percebida e valorada como um mal”, concluindo-
se mesmo em momento posterior que “ela é um bem”.
Ora, é precisamente a compreensão da pena não já como um mal, mas antes
como um bem, que se julga merecer – tendo em conta o objecto deste estudo, centrado
no confronto (ou na desconstrução do confronto) entre a justiça penal e a justiça
restaurativa – uma análise mais detida. Se pudermos concluir que a pena é um bem,
parece cair por terra a principal arma que os cultores do paradigma restaurativo
esgrimem contra o sistema de justiça penal.
Considerem-se os argumentos de José de FARIA COSTA que se julgam
principais, apesar de se reconhecer a dificuldade da tarefa, por força da complexidade
da análise. Sem pretender simplificar em medida inadmissível um pensamento cuja
inteira apreensão só é possível em um muito mais vasto contexto, parece impor-se a
consideração de duas linhas argumentativas. Comece-se por aquela primeiramente
referida por José de FARIA COSTA.

555
Nas exactas palavras de José de FARIA COSTA “o mal da pena, para não ser unicamente expressão
de um puro aumento ou acrescento ao mal do crime, tem de se justificar como um bem. Este o problema
central de toda a problemática daquilo que, de ordinário, a doutrina penal qualifica de fins das penas”.
Aceita-se, porém, que “o mal da pena tem uma justificação – seja a que é fornecida pelas doutrinas da
retribuição, seja aquela que as doutrinas da prevenção sustentam ou confortam – e que, por conseguinte,
se opera uma metanóia que, na construção do nosso viver comunitário, faz com que o mal da pena se
valore, ao fim e ao cabo, como um bem” (in “Um olhar doloroso sobre o direito penal cit., ps. 39-40).
556
José de FARIA COSTA, “Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal: lugar de encontro sobre o
sentido da pena”, in Linhas de Direito Penal e de Filosofia, alguns cruzamentos reflexivos, Coimbra:
Coimbra Editora, 2005, p. 217 ss. O Autor relembra «a célebre definição de pena (de sanção penal) de
Grotius: “malum passionis quod infligitur propter ob malum actionis”», por salientar de forma inequívoca
o elemento formal “em redor do qual se constrói toda a doutrina da pena criminalmente relevante:
malum”.

304
Em nota de fim de página, o Autor considera que «a pena não pode ser vista
como um mal” porque este, “independentemente das formas que possa revestir, tem a
característica rara e original de ser infinitamente expansivo. Os limites do mal são
dificilmente “racionalizáveis”. O mal, nas suas expressões mais poderosas, está para lá
do racional. Abre-se à noite indecifrável. Funda-se no inexplicável e no humanamente
incompreensível. É tempestade sem medida que tudo arranca e destrói e que nada pode
deter». Pelo contrário, já a pena tem, historicamente, um limite que decorre do próprio
princípio nulla poena sine lege, pelo que não pode ser vista como “potentia” incontida.
José de FARIA COSTA conclui que “também aqui a legalidade ao considerar que só se
pode punir com as penas que a lei prevê reduz para o nível zero a capacidade de
expansão que, no caso, seria expansão do arbítrio, da injustiça. Nesta óptica, os limites
do mal são a sua própria negação”557. Esta fundamentação para a rejeição da
compreensão da pena como um mal – que o próprio Autor assume como um “sinal”,
“ainda que efémero e pouco consistente” – parece, de facto, frágil. Será exacta a
afirmação de que o mal não pode ter limites? Uma doença grave mas curável (logo,
limitada no tempo), que causa um sofrimento profundo, não pode ser vista como um
mal? O extermínio de uma minoria étnica determinado por um Estado criminoso e com
uma duração temporal definida não pode também ser qualificado enquanto mal? É certo
que o sofrimento gerado por estes acontecimentos pode prolongar-se e tornar-se, nessa
medida, ilimitado. Mas não se poderá prolongar, também sem limites, o mal da pena,
pelo menos em um plano subjectivo, mesmo depois de cessar a sua execução?
Compreende-se que se procure afastar da pena a ideia de mal, com o intuito de
se ultrapassar esse absurdo que é a expansão do mal através da pena. O propósito
parece, porém, de difícil concretização. Talvez tenha de haver na pena – para ser pena –
um determinado grau de mal, que é historicamente variável. Assim como será variável a
possibilidade de combinação desse mal que a pena inevitavelmente é com um bem. O
que defendo é, pois, que se a pena é, pelo menos em parte, inevitavelmente um mal, ela
também tem de ser, por força das finalidades que persegue, inevitavelmente um bem.
Ora, se existem, segundo creio, dificuldades na demonstração de que na pena
não existe um mal (esse mal que justifica o carácter de ultima ratio das sanções penais),
já sem qualquer entrave se segue José de FARIA COSTA na sua afirmação de que a
pena tem de ser (pelo menos no plano dos princípios, que o Estado punitivo está

557
José de FARIA COSTA, últ. ob. citada, p. 219.

305
obrigado a transpor para a prática) um bem. Ainda aqui, porém, se podem distinguir dois
planos de justificação.
Num deles, depois de desenhar o crime como ruptura da relação primeva de
cuidado-de-perigo com o outro, José de FARIA COSTA entende que “esse momento de
ruptura, de fractura de convulsão no cuidado genésico só se refaz com a pena. A
aplicação da pena, nesta compreensão fundante, repõe o sentido primevo da relação de
cuidado de perigo”. O Autor conclui, assim, que a pena assume “o papel da reposição,
da repristinação e, por conseguinte, da eficácia de um bem”558. Apesar de se
compreender o sentido que José de FARIA COSTA atribui àqueles conceitos (em uma
construção teórica, relembre-se, que cruza a filosofia penal com o direito penal), aquela
ideia de que a pena funciona como compensação para que o equilíbrio se refaça poder-
nos-ia levar, porém, longe na averiguação da possibilidade efectiva de através de penas
como a pena privativa da liberdade se atingir esse equilíbrio, essa repristinação, essa
reposição. E agiganta-se a dúvida: não será antes a reparação a forma privilegiada para
a obtenção daqueles objectivos? A importância da problemática da reparação – na
dimensão que adquire no pensamento penal, enquanto consequência jurídica do crime,
mas também como elemento central do paradigma restaurativo – impõe, porém, o seu
posterior tratamento autónomo.
Um segundo plano de associação da pena à ideia de bem radica no entendimento
de que, apesar de ela ser, “na óptica de quem a sofre, vista, em um primeiro momento,
como um mal”, ainda que porventura “um mal merecido”, esse mal pode ser
transformado em um bem, através de um “esforço de racionalização e de
espiritualização, adequado à materialidade das coisas”. Ora, como bem exige o Autor, a
transformação daquele mal inicial num qualquer bem supõe a intervenção do Estado559.
Assim se chega, segundo se crê, a um dos nódulos da problemática da pena. A
forma de ultrapassar a acusação de que o direito penal contribui para uma perpetuação

558
José de FARIA COSTA, “Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal… “ cit., p. 224.
559
José de FARIA COSTA (“Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal” cit., p. 226, ps. 232-3),
Nas palavras do Autor,“é aqui que o esforço da obrigação de meios, por parte do Estado, tem de intervir.
O Estado existe, entre outras finalidades, também para prosseguir o bem historicamente situado, aquilo
que as comunidades vão considerando como bem. Não, por conseguinte, um bem etéreo e desgarrado da
realidade. Ora, se assim nos parece que é, então, o Estado não pode sob pena de insanável contradição
assumir uma realidade como um bem e, do mesmo passo, nada fazer para que ela se concretize. E como
se faz essa concretização? Dando ao condenado todas as condições para que ele, em seu juízo de homem
livre e autónomo, possa reencontrar o mínimo de socialização. De encontrar pela primeira vez essa
socialização – é bom não esquecer que muitos dos delinquentes primários, sobretudo jovens, padecem
eles próprios de ausência de socialização – ou de serem ressocializados, caso o crime seja expressão
também desse deslaçamento de tecido conjuntivo que a socialização representa”.

306
do mal porque reage ao mal do crime com o mal da pena é transformar a pena,
sobretudo em sede de execução, em um bem. O que equivale a afirmar que a pena não
pode ser só um mal, mas também não pode ser exclusivamente um bem. Não pode ser
exclusivamente um bem porque, se o fosse, dificilmente realizaria as suas finalidades
preventivas (parece irrazoável supor, em comunidades de homens imperfeitos, que se
pode evitar o mal do crime futuro premiando com um bem aquele que causou o mal
passado)560. Mas também não pode ser exclusivamente um mal, por razões
aproximadas: o mal possível em sociedades que respeitam os direitos fundamentais não
serve, desligado de um qualquer bem, para realizar as finalidades da punição. Mais, a
compreensão da pena exclusivamente enquanto um mal não é adequada à sua própria
legitimação. Têm, em consequência, de conviver na pena uma dimensão de mal e uma
dimensão de bem (ou, numa formulação próxima, a pena deve começar por ser sentida
como um mal – ainda que um mal limitado –, oferecendo-se porém ao condenado a
possibilidade de a transformar num bem)561.

560
Tome-se um exemplo de condenação alheia à imposição de qualquer sofrimento para, de seguida, se
ponderar a probabilidade de obtenção dos fins habitualmente apontados à pena: a retribuição, a prevenção
geral e/ou a prevenção especial. António, agente de um crime de roubo do qual resultou a morte da vítima,
é condenado a uma longa viagem até ao lado oposto do mundo, onde deverá, durante um certo período de
tempo, reflectir sobre o sentido das normas e os deveres de cuidado relativamente aos outros. Permite-se-
lhe escolher o destino, um paraíso balnear, assim como a companhia, e financia-se-lhe a estadia.
Provavelmente, esta hipotética reacção ao crime causaria mossa ao sentimento de justiça da maioria. Sob
um ponto de vista retributivo, o facto de se premiar o mal parece um absurdo. Mas, agora sob o ponto de
vista da prevenção geral positiva, é razoável supor que tal reacção ao crime salvaguardaria as expectativas
comunitárias na manutenção da validade da norma violada? Não suporá a própria prevenção geral
positiva um quantum de punição considerada justa? Não existirão, deste modo, alguns espaços
comunicantes entre uma punição determinada ainda por uma ideia de retribuição da culpa e a punição
orientada por exigências de prevenção geral? Não será, pois, um mínimo de retribuição inerente à
obtenção dos efeitos de prevenção geral? A ideia de uma certa proximidade entre o pensamento da
retribuição e o pensamento da prevenção geral parece ter algum apoio na opinião de Nils CHRISTIE,
ainda que ela não coincida totalmente com o que se vem de alegar. Depois de representar a evolução da
justiça penal através da imagem de um pêndulo que oscila entre o classicismo (ou o neo-classicismo) e o
positivismo (ou o neo-positivismo), o Autor associa, quer o pensamento neo-retributivo, quer as teorias da
prevenção geral, àquela primeira tendência, deixando para a segunda a finalidade do tratamento ou da
socialização. Assim, afirma que “o neo-classicismo não é apenas activado pelo ressurgimento dos
interesses na prevenção geral. Entre ambos [a prevenção geral e o retribucionismo] existe uma relação
harmoniosa. O retribucionismo seria apenas uma concha vazia se também não fosse visto como um
mecanismo regulatório para a inflição de sofrimento com um propósito” (in Limits to Pain cit., p. 71). A
formulação destas interrogações não ignora, porém, a absoluta necessidade de se preservar um conceito
de culpa jurídico-penal que se não confunda, nunca, com as exigências preventivas. A confusão entre
ambas – que tem sido apontada a compreensões funcionalistas como a de JAKOBS – prejudica o
desempenho pela culpa do seu papel de pressuposto e limite da responsabilização do agente e, logo, da
intervenção punitiva do Estado. Esta é, porém, questão a que se retornará em momento posterior deste
estudo.
561
Julga-se que é sobretudo da execução da pena que depende a sua metamorfose de um essencialmente
mal para um essencialmente bem e que é sobretudo a possibilidade de tal bem que legitima a pena. Isto
não equivale à adopção acrítica de uma concepção diacrónica dos fins das penas, parcialmente acolhida
por ROXIN numa fase inicial do seu pensamento. Recorde-se que, para a teoria diacrónica, o fim da pena
é distinto no momento da ameaça abstracta da pena (altura em que prevalece a prevenção geral), no

307
Procurando regressar agora àquele que é o objecto deste estudo, cumpre
sublinhar que desta reflexão sobre o mal que há na pena resulta uma especificidade da
justiça penal face à justiça restaurativa: só aquela carrega – ainda recorrendo às palavras
de José de FARIA COSTA– “o fardo de punir”562.
Em uma síntese com propósitos simplificadores, pode dizer-se que a pena tem de
transportar consigo um quantum de mal. Nessa medida, a pena não pode ser sentida
apenas como um bem, nem pelo condenado, nem pelos restantes membros da
comunidade. Todavia, o fim da pena é essencialmente o bem: a preparação do
condenado para uma vida de acordo com o direito e a pacificação da comunidade em
torno da vigência dos valores vistos como essenciais. A história da pena, para ser a
história de uma evolução humanista563, tem de ser a história da diminuição ao mínimo
do mal (desse mal que é inerente à pena) e a história da expansão do bem564.

momento da sua concreta aplicação (em que é essencialmente retributiva) ou no momento da sua
execução (sendo aí dominante a prevenção especial). Posteriormente, ROXIN rejeita uma teoria
diacrónica dos fins das penas, apesar de reconhecer que “o significado da prevenção geral e especial
acentua-se também de forma diferenciada no processo de aplicação do direito penal. Em primeiro lugar, o
fim da cominação penal é de pura prevenção geral. Pelo contrário, na imposição da pena na sentença deve
tomar-se em conta na mesma medida as necessidades preventivas especiais e gerais (…). Por último, na
execução da pena passa totalmente para primeiro plano a prevenção especial”. Todavia, isto não equivale
a uma distinção taxativa, por fases, das finalidades da pena, mas sim a uma “ponderação diferenciada”,
até porque, na fase de execução da pena, a prevenção geral “não se pode perder totalmente”, na medida
em que deve estar garantida pelos condicionamentos legais que a determinam, assim como “a pena
também só pode desenvolver os seus efeitos de prevenção especial se eles já estiverem previamente
programados nas disposições legais” (in Derecho Penal, Parte General, Tomo I cit., ps. 97-8). Jorge de
FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal – Parte Geral, 2.ª ed. cit., p. 61 ss) também critica a teoria
diacrónica. Nas suas palavras, tal teoria “pode ser considerada razoavelmente adequada a uma visão
imediatista do problema por parte dos destinatários das normas penais; mas esquece, de todo o modo, que
a pena é uma instituição unitária em qualquer um dos momentos temporais da sua existência e como tal
deve ser perspectivada, mesmo no que respeita ao problema das suas finalidades”. José de FARIA
COSTA questiona, por seu turno, a existência de “densidade axiológica consequencial tão importante que
permita de forma retroactiva justificar, também por este lado, o mal da pena” (in “Um olhar doloroso”
cit., p. 40).
562
José de FARIA COSTA, “Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal” cit., p. 208.
563
Aquilo que se não pode deixar de referir – sobretudo em tempos em que noutros espaços foram
surgindo vozes em defesa de uma execução da pena conformada pela intenção de potenciar o sofrimento
ou a humilhação do recluso (veja-se o que antes se referiu, a título de exemplo, sobre algumas práticas
norte-americanas associadas à execução da pena de prisão em situações de exposição pública, trabalhos
forçados e por longos períodos, intencional sujeição a situações climatéricas adversas ou outras) – é que
toda a nossa tradição relativa aos princípios orientadores dessa execução da prisão é, pelo contrário,
essencialmente humanista. Neste sentido, já no princípio do século XIX se afirmava entre nós, contra a
existência de estabelecimentos prisionais que eram “casas subterrâneas de abobada e escuras (…) a que
chamao enxovias”, que a prisão não deve ser um espaço “de angústias, cuja idéa repugna tanto á
humanidade como á justiça. Deviao remediar-se a escuridade, a infecção, e outros horrores, que fazem de
muitas das nossas cadeias hum lugar de misérias, em que a perda da liberdade he o mal menor que se
padece” (cfr. Joaquim PEREIRA Y SOUSA, Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal, Terceira
Ediçaõ Emendada e Accrescentada, Liboa: Typografia Rollandiana: 1820, ps.72-3).
564
Esta ideia de que a evolução da civilidade na reacção ao crime pressupõe a limitação da imposição de
sofrimento é o núcleo da obra Limits to Pain – The Role of Punishment in Penal Policy cit., de Nils
CHRISTIE. É clara a conexão entre o conceito de “pain” adoptado por CHRISTIE e o conceito de “mal”
que se vem afirmando na pena. Mais precisamente, é por significar a imposição de dor ou sofrimento ao

308
O que aqui se defende não é uma teoria mista ou unificadora dos fins das penas
em que reentre de forma autónoma o sentido da retribuição565. O que se defende é antes
que (I) é da natureza da pena ser um mal e que (II) os seus fins são preventivos566, mas
que a prossecução de tais fins tem de ser limitada em função do respeito devido ao
princípio da culpa. Essa natureza567 aflitiva da pena adequa-se, em parte, aos fins de

condenado que a pena sobretudo pode ser vista como um mal. O Autor norueguês parte do princípio de
que “impor a punição no contexto das instituições de justiça significa uma inflicção de dor, desejada
como dor” e estabelece uma associação entre os conceitos de “penal law” e de “pain law”. Todavia, ainda
segundo CHRISTIE, a contemporaneidade não gosta de assumir o sofrimento enquanto tal, razão pela
qual existem várias “tentativas de esconder a natureza básica da punição”. E, quando essa ocultação não é
possível, procuram-se “todas as espécies de razões para a imposição intencional da dor” (ob. cit., p. 5; p.
15). Assim, talvez as ideias de tratamento, de socialização ou de prevenção geral possam ser vistas, numa
perspectiva crítica, ainda como mecanismos de ocultação da dor inerente à pena ou, pelo menos, como
mecanismos de justificação dessa imposição de sofrimento. Com um propósito de simplificação do seu
pensamento, CHRISTIE classifica o sistema penal como um sistema de “pain delivery”: as
especificidades do sofrimento enquanto “coisa distribuída” são neutralizadas pela escassez de reflexão
sobre aquilo que a dor é, pela escolha de terminologias e de finalidades que pretendem ocultar a
imposição do sofrimento, pela adopção de rotinas no seio do próprio sistema e pela divisão de tarefas e
repetições que marcam o quotidiano da administração da justiça (ob. cit., p. 19).
565
Partilha-se a opinião de Claus ROXIN de que “é certo que a teoria unificadora se baseia em ter
percebido correctamente que cada uma das concepções contém pontos de vista aproveitáveis que seria
erróneo converter em absolutos. Mas a tentativa de sanar tais defeitos justapondo simplesmente três
concepções distintas tem forçosamente de fracassar, já que a mera adição não somente destrói a lógica
imanente à concepção, como aumenta o âmbito de aplicação da pena, a qual se converte assim num meio
de reacção apto para qualquer realização” (Problemas Fundamentais de Direito Penal, 3.ª ed., trad. Ana
Natscheradetz, Lisboa: Colecção Veja Universidade, 2004, p. 26).
566
Julga-se que o pensamento da retribuição, se é compreensível na reflexão sobre a natureza da pena
(sobre a sua dimensão de castigo por um mal antes praticado), é estranho ao pensamento das finalidades.
As concepções retributivas puras negam a existência de fins na pena, por isso não se vê como possam
alçar-se a teorias dos fins das penas. Do pensamento dos fins parece indissociável um certo utilitarismo. É
assim, pelo menos, quando no conceito de “fim”apenas incluímos fins sociais, empíricos. Claro que se a
realização da ideia de justiça for vista, ela própria, como um fim, já será logicamente possível ver o
pensamento da retribuição como um pensamento das finalidades. Concorda-se, porém, com ROXIN, na
sua afirmação do carácter “puramente terminológico” deste entendimento, que permite que se diga “sem
reparo que a teoria absoluta vê o fim da pena na retribuição justa” (in Derecho Penal – Parte General,
Tomo I cit., p. 82).
567
Esta afirmação não é inteiramente coincidente com o pensamento de Claus ROXIN (Derecho Penal,
Parte General cit., ps. 98-9), que rejeita a ideia de que «a “essência” da pena se encontra na causação
retributiva de um mal, enquanto os seus fins justificadores se encontrariam nos objectivos preventivos do
direito penal. Porque as instituições jurídicas não têm “essência” nenhuma independente dos seus fins,
determinando-se antes essa “essência” pelos fins que com elas se pretende alcançar». E o Autor conclui
que “a ordem para disfrutar de umas férias em Maiorca não poderia qualificar-se como pena”,
considerando que assim é não por causa do carácter retributivo da pena conforme à sua essência, mas
porque as irrenunciáveis componentes de prevenção geral não se realizariam caso se motivasse a prática
de mais crimes, em vez da sua omissão. Apesar de não ter querido defender “a essência retributiva da
pena”, mas sim a sua “natureza aflitiva”, não compreendo, porém, que, para rejeitar a “essência
retributiva” da pena, seja necessário rejeitar liminarmente a aceitação de uma qualquer essência da pena.
A pena tem uma existência pelo menos tão longa como a da reflexão sobre os seus fins e, por mais que as
concepções em torno dos fins tenham variado, sempre a pena manteve a sua natureza aflitiva. Essa
natureza ou essência aflitiva da pena, se é compatível com concepções retributivas dos fins das penas,
assim como o é com considerações de prevenção geral, já pode suscitar mais dificuldades sob o ponto de
vista da prevenção especial (não a de inocuização ou a de intimidação, mas a de socialização). A história
daquela que ainda hoje é a sanção criminal por excelência – a pena de prisão – é a história de uma pena
em cuja essência vive um grande mal – a privação da liberdade – cujo resultados têm sido pouco
optimistas no que respeita a um dos fins que deve prosseguir, a socialização. Esta verificação, segundo se

309
prevenção geral e de prevenção especial (se a pena fosse algo que o infractor pudesse
desejar – se a pena fosse um bem –, da sua cominação não resultaria qualquer dissuasão
– geral ou especial – das práticas criminosas). A pena há-de, pois, ser sentida como um
mal, mas como um mal cuja concreta conformação e execução não impeça, antes
favoreça, os fins que lhe presidem: em primeiro lugar, a projecção no futuro do
condenado, com a possibilidade de um projecto de vida conforme com as normas
fundamentais que regem a convivência; em segundo lugar e sempre sem prejuízo
daquela finalidade primeira, a pacificação da comunidade em torno da validade
reafirmada das normas.
Das práticas restaurativas também podem decorrer para o agente da infracção
obrigações que lhe são custosas e que são, por isso, em alguma medida ainda percebidas
como um mal. Este será, porém, em princípio um mal menor. Por um lado, porque
nunca poderá acarretar a privação da liberdade. Por outro lado, porque será um mal
aceite pelo próprio, um mal auto–imposto, ao contrário do mal hetero–imposto que a
pena é.
A distinção entre a sanção penal e as obrigações assumidas pelo agente no
contexto de práticas restaurativas que visam pacificar um conflito (inter)pessoal com
base na existência (ou não) de coacção tende, porém, a esbater-se. Como referiu
Anabela RODRIGUES, emerge uma nova compreensão do próprio sistema punitivo.
Nas suas palavras: “evocar o consentimento do delinquente no domínio punitivo era
estranho ainda não há muito tempo. A pena exprimia o imperium da justiça penal. Hoje,
compreende-se que, numa preocupação de individualização e de eficácia, o delinquente
deva ser associado à aplicação e à execução da sanção. O direito penal trilha uma via
original procurando, cada vez mais, fazer assentar a punição no consentimento do
delinquente”. O que leva a Autora a interrogar-se sobre se, “contratualizada em si
mesma ou na sua execução, a sanção penal não estará em vias de mudar de natureza”568.

julga, não pode deixar de suscitar engulhos àqueles que rejeitam qualquer autonomia ao conceito de
“essência” ou “natureza” da pena, que vêem como mera decorrência das suas finalidades. De resto,
mesmo Autores que também recusam a retribuição enquanto fim da pena não deixam por isso de fazer
referência à sua essência: assim, por exemplo, Jorge de FIGUEIREDO DIAS que, no contexto de uma
reflexão sobre as teorias relativas, refere que também estas “reconhecem que, segundo a sua essência, a
pena se traduz num mal para quem a sofre” (in Direito Penal, Parte Geral cit., p. 49).
568
Anabela RODRIGUES acrescenta que se reconhece assim que “a sanção mais útil é a sanção aceite
pelo condenado, porque, ao mesmo tempo que estimula a sua participação no atingir dos objectivos
pretendidos, desenvolve o seu sentido de responsabilidade”. Note-se a proximidade entre esta linha de
argumentação e aquela que preside, no discurso restaurativo, à defesa da participação responsável do
agente da infracção na procura de uma solução para os danos que dela resultaram (in Novo Olhar sobre a
Questão Penitenciária cit., p. 143 ss.).

310
E eis que, num momento em que se deveria estar a sublinhar o que de mais
próprio existe na justiça penal – a pena –, por oposição às soluções de diversa natureza
apresentadas pelos cultores da justiça restaurativa, surge da forma mais inesperada a
dúvida em torno da natureza estanque e diferenciada dos dois modelos de resposta à
criminalidade. Fica, porém a advertência de que não se deve cair na tentação de tomar a
árvore pelo bosque: ainda que se assista a um esbatimento da diferença com o
progressivo acolhimento, pela justiça criminal, de ideias de consenso mesmo no que
respeita ao sancionamento, as penas criminais continuam a ser, em regra, aplicadas por
um terceiro de forma coactiva. O consenso será, aqui, ainda a excepção569. Ao contrário
do que se pretende que suceda com as obrigações assumidas no contexto das práticas
restaurativas570.

569
Tem-se assistido, no ordenamento jurídico-penal português, à expansão dos institutos cuja aplicação
não prescinde do consentimento do condenado. Penas como o regime de semidetenção (artigo 46.º, n.º 1
do CP); a suspensão da execução da pena de prisão com imposição de regras de conduta quando estiver
em causa a “sujeição a tratamento médico ou a cura em instituição adequada” (artigo 52.º, n.º 3 do CP) ou
a prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58.º, n.º 5 do CP) supõem o consentimento ou a
aceitação do condenado. No regime da suspensão da execução da pena de prisão com regime de prova,
dispõe-se que “o plano de reinserção social é dado a conhecer ao condenado, obtendo-se, sempre que
possível, o seu acordo prévio” (artigo. 54.º, n.º 2 do CP). Ao nível dos incidentes na execução da pena,
exige-se o consentimento do recluso para a concessão da liberdade condicional (artigo 61.º, n.º 1 do CP).
Também se não prescinde do consentimento do condenado para a execução em regime de permanência na
habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, de pena ou remanescente de pena
privativa da liberdade não superior a um ano ou, em casos especiais, dois anos (artigo 44.º, n.º 1 e 2 do
CP). Todavia, pode continuar a afirmar-se, relativamente à cominação das penas principais de prisão e de
multa para as pessoas singulares e de multa ou de dissolução para as pessoas colectivas (nos termos do
artigo 90.º- A do CP) a regra da coactividade: a cominação destas penas resulta de uma decisão judicial
que prescinde do consentimento ou do acordo. A prestação de trabalho a favor da comunidade é sanção a
que cultores da proposta restaurativa, como Frieder DÜNKEL, dedicam atenção, chegando a considerá-la
restaurativa “em sentido amplo”, apesar de a reparação dos danos causados à vítima concreta não ser o
objectivo principal. DÜNKEL referia, já em 2006, a crescente importância da sanção na Alemanha, por
constituir medida que substitui (em vez da prisão) a multa não paga (“1 dia de multa é visto como o
equivalente a entre 6 a 8 horas de trabalho a favor da comunidade”), sendo que a multa se tornou “a
principal sanção penal na Alemanha por ser imposta em cerca de 82% de todos os casos” (“Reducing the
population of fine defaulters in prisons: experiences with community service in Mecklenburg-Western
Pomeramia (Germany)”, Crime Policy in Europe, Publicação do Conselho da Europa, 2006, p. 127 ss).
570
Acrescente-se, por outro lado, que a eventual perplexidade suscitada pela introdução de uma ideia de
consenso naquele que seria o derradeiro reduto do poder estadual – a condenação a uma pena – será maior
nos sistemas penais continentais, não tendo idêntica justificação nos países anglo-saxónicos. Nestes, é
sabido que a negociação inerente, por exemplo, ao instituto da plea bargaining (justificado sobretudo pela
necessidade de eficácia face ao aumento exponencial da criminalidade, que não se compadece com perdas
de tempo na investigação, na acusação e no julgamento) pode condicionar de forma decisiva a pena. Na
sequência do acordo entre a acusação e a defesa, quando o arguido confessa um crime menos grave do
que aquele que a acusação previamente pretendia imputar-lhe, está no fundo a concordar com a aplicação
de uma pena menos severa, renunciando à demonstração da sua inocência. A pena será, nessa medida,
ainda consequência daquele acordo entre acusação e defesa que, como nota José de FARIA COSTA, se
traduz numa confissão e numa simulação (in “Diversão (desjudiciarização) e mediação: que rumos?”,
Separata do vol. LXI do BFD, 1985, p. 28). Para uma análise da origem do instituto da plean bargaining,
vd. Jorge de FIGUEIREDO DIAS/Manuel da COSTA ANDRADE, Criminologia, O Homem Delinquente
e a Sociedade Criminógena, Coimbra Editora, 1997 (reimpressão), p. 475 ss.

311
Deste modo, não parece ainda superada a diferença apontada por Nils
CHRISTIE entre um sistema de reacção ao conflito – o penal – que reage à ofensa a
bens jurídicos através da utilização “do sofrimento como forma de comunicação, como
linguagem”, e um outro sistema a que o Autor acha que não deve chamar-se de
“resolução” ou de “gestão” do conflito (porque estes termos fazem ainda supor a
intervenção de um terceiro cujo fito é unicamente pôr fim ao conflito), mas antes de
participação no conflito, sistema este dito de “justiça participativa” e que visa
precisamente evitar o sofrimento através da comunicação. O mal associado ao
sofrimento na reacção ao crime é, note-se, central no pensamento do Autor norueguês,
cujos estudos se propõem, precisamente, contribuir para a diminuição do sofrimento
intencionalmente infligido como instrumento social. Para CHRISTIE, a diferença entre
a justiça penal e a restaurativa estaria na forma como aquela institucionaliza a
cominação do mal, um mal que está graduado nas molduras penais (e que
tendencialmente corresponde ao mal do crime) e que é utilizado como forma de
comunicação;e, por outro lado, na forma como esta justiça restaurativa/participativa
intenta prescindir da cominação do mal em função de um processo de comunicação que
é visto, ele próprio, como um fim571. Esta linha de pensamento, aqui representada pela
argumentação de CHRISTIE, não deve prescindir, porém, de uma reflexão mais detida e
que tenha em conta, se possível, alguns “contra-argumentos”, o que se procurará fazer
em momento posterior deste estudo.
Antes disso, porém, há uma interrogação que subsiste sobre a inevitabilidade de
algum mal na resposta ao crime e sobre a possibilidade de, da cominação desse mal,
resultar a dissuasão face ao cometimento de crimes futuros. O problema prende-se com
as diferentes consequências da sujeição ao mal da pena em função das diferentes
circunstâncias pessoais dos agentes do crime. Procure-se sintetizar a questão na sua
forma mais simples: a ameaça de perda de algo que vai implícita na pena só tenderá a
ser eficaz face àqueles que ainda têm alguma coisa a perder. Tome-se o exemplo da
pena de prisão: a possibilidade de perda da liberdade será porventura vista como uma

571
Segundo Nils CHRISTIE, «na lei penal, os valores são clarificados através de uma gradação da dor
que se pode infligir (…). O sofrimento é usado como comunicação, como linguagem. Na “justiça
participativa”, o mesmo resultado – a clarificação dos valores – é atingido no próprio processo» (in Limits
to Pain cit., p. 94). Neste estudo (que assume desde o início o propósito de contribuir para a evolução da
resposta ao crime norteada pela diminuição da dor ou do sofrimento intencionalmente infligidos como
instrumento de controlo social), apesar de não se reflectir especificamente sobre a proposta restaurativa,
apresentam-se “condições para um nível mais baixo de inflição de sofrimento” que não deixam de lhe ser
próximas, nomeadamente o conhecimento interpessoal, a limitação do exercício do poder ou a
dependência mútua (últ. ob. cit., p. 81 ss).

312
desvantagem menor por aqueles para quem a vida em liberdade já é de certa forma um
fardo, ou um espaço e um tempo nos quais se está aprisionado pela ausência de
escolhas. O mal da pena não será, nessa medida, uma realidade inelástica que se possa
fazer corresponder a um determinado grau de desvalor, sempre com a mesma
probabilidade de dissuasão (ou de prevenção), com alheamento face às circunstâncias
do agente do crime.
Da possibilidade de que assim seja decorre, ademais, uma preocupação: a de o
sistema de justiça penal estar a reservar a condenação aos males maiores (as penas
privativas da liberdade) sobretudo a um conjunto de pessoas relativamente às quais,
pelas circunstâncias de desfavorecimento das suas próprias vidas, a ameaça com o mal
da pena é tendencialmente destituída de efeito preventivo572.
Aquilo que se julga que tem que limitar o risco de desigualdade na
administração da justiça penal inerente a uma tentativa de adequar, em nome da eficácia
da prevenção, o mal da pena às circunstâncias da vida do agente, é o respeito
intransigente pelo princípio da culpa.
Este respeito intransigente pelos limites da punição decorrentes de uma culpa
real tem de ser acompanhado, porém e segundo agora se crê, pela convicção de uma
certa primazia da prevenção especial sobre a prevenção geral positiva. O que se quer
significar é que o mal da pena só deverá ser admitido se for indispensável face à

572
De grande utilidade para a compreensão deste segmento argumentativo é a análise de Howard ZEHR a
partir das declarações de um ex-recluso jovem, que já tinha cumprido várias penas privativas da
liberdade: «“eu gosto de estar fora da prisão”, disse, “mas sou tão feliz lá dentro como cá fora”». O que
leva o Autor a duvidar da possibilidade de a ameaça da prisão ser suficiente para deter algumas pessoas,
aquelas que “sentem a vida fora da prisão como uma espécie de prisão”. Para elas, a condenação a uma
privação da liberdade significaria só “a troca de uma espécie de confinamento por outro” (in Changing
Lenses – a new focus for crime and justice, 3ª ed. (1ª de 1990), Ontário: Herald Press, 2005, ps. 39-40.
Por outro lado, este segmento da reflexão deve ser conciliado, ainda, com uma outra linha argumentativa
de ZEHR sobre a principal diferença entre a vida dos membros dos grupos sociais mais desfavorecidos e
os integrantes das classes favorecidas: “pensei com frequência que a real linha divisória (…) se relaciona
menos com a educação e a saúde por si próprias do que com o sentimento de escolha, de poder”. Na
opinião do Autor, a maioria dos que crescem nos contextos de maior favorecimento “acredita que cada
um é senhor do seu próprio destino. Apesar de poderem existir obstáculos e de a sorte ou a providência
desempenharem os seus papéis, acreditamos que de facto temos algum poder real para determinarmos o
nosso destino”. Pelo contrário, ainda segundo ZEHR, “muitas pessoas pobres não acreditam nisso. Na sua
opinião, aquilo que lhes acontece deve-se mais ao acaso do que a algo que tenham feito”. A afirmação
adquire relevância no contexto das reflexões antes tecidas precisamente na medida em que a inexistência
deste sentimento de controlo quanto àquilo que acontece torna menos eficaz o efeito dissuasor da possível
punição, sentida também ela como uma consequência do acaso. De novo nas palavras de Howard ZEHR,
“todos os dias esses jovens vêem inocentes serem presos. Todos os dias vêem pessoas que eram culpadas
serem libertadas. Na sua opinião, há pouca relação entre o crime e a punição. Pelo contrário, olham para a
punição como para a chuva. Há dias em que chove, há dias em que não” (cfr. últ. ob. cit., ps. 53-4).
Aquelas ponderações sobre a (im)possibilidade de escolha e sobre o peso do acaso na condução da vida,
sobretudo dos membros dos grupos mais desfavorecidos, serão, ainda, pertinentes quando, em momento
posterior deste estudo, se considerar a questão da culpa.

313
probabilidade de cometimento de crimes no futuro, traduzindo-se, nesse caso, na oferta
da possibilidade de socialização, que surge como um bem. Julga-se que, quando assim
não for, sempre que a sujeição à pena não for necessária sob essa perspectiva, ela não
deve ser em regra justificada exclusivamente em função de um factor de dissuasão
geral. Pelo contrário, a imposição do mal da pena deve ser refutada sempre que se logre
ainda afirmar a possibilidade de compreensão pela comunidade de que a reafirmação
dos valores pode passar também, precisamente, pela não condenação do agente a um
mal que não é, afinal, indispensável à protecção efectiva desses valores e que pode,
antes, ser desvantajosa na perspectiva de outros interesses relevantes do sujeito.
Retornando, porém e em jeito de síntese final, à problemática da condenação a
um mal enquanto consequência jurídica do crime, o que se quer frisar é que esse mal
deve ser limitado ao mínimo indispensável à consecução da finalidade que lhe preside: a
obtenção do bem inerente à adopção pelo agente de um comportamento futuro conforme
aos valores jurídico-penais. Todavia, por mais que por esta via se queira limitar esse
mal, deve ainda reconhecer-se que a sua cominação não é despida de engulhos de índole
prática, para além das dificuldades inerentes à sua sustentação teórica. Uma das
principais dificuldades (especialmente notória quando os destinatários da pena são
tendencialmente imunes ao sofrimento associado ao mal que ela representa, porque
vivem já uma realidade de muitos sofrimentos relacionados com vários outros males)
prender-se-á, segundo se crê, com a necessidade de restringir o quantum do mal da pena
em função da culpa real (não ficcionada) do agente, ao mesmo tempo que se garante
que esse mal tem dimensão adequada à dissuasão do cometimento de crimes futuros.
Poder-se-á, nesta medida, duvidar da eficácia preventiva de uma resposta punitiva que
leve a sério o respeito pelo princípio da culpa, sempre que os agentes cujo
comportamento parece menos censurável sejam, simultaneamente, os menos
influenciáveis pela ameaça do mal inerente à sanção penal.

314
3. Uma comparação dos fins, entre o curar e o punir

Da anterior reflexão sobre a pena resultou a afirmação de que nela vive um mal
que se pretende transformar num bem e que a forma essencial pela qual essa
metamorfose deve ocorrer se relaciona com a oferta pelo Estado ao condenado dos
meios para este, cumprida a pena, lograr retomar a sua vida no seio da comunidade de
forma plena, com respeito pelos valores considerados fundamentais naquele tempo e
naquele espaço 573.
Afirmou-se, para além disso, a convicção de que na pena convivem (mesmo que
com sentidos papéis) considerações de retribuição574 com considerações de prevenção.

573
A compreensão desta afirmação não pode prescindir da referência a Eduardo CORREIA e ao seu
“pensamento da solidariedade” na execução da pena de prisão, que “dá ainda fundamento ético ao dever
de cada um e da sociedade de activamente colaborarem na regeneração e na recuperação dos
delinquentes, que justamente se encontram num particular estado de necessidade e de desespero” (in
«Ainda sobre o problema da “ideologia do tratamento”: algumas palavras sobre o “serviço social de
justiça”», Cidadão Delinquente: Reinserção Social?, IRS: 1983, p. 15) Também Jorge de
FIGUEIREDO DIAS, no seu elenco dos princípios directores do programa político-criminal, inclui o
“princípio da socialidade (ou da solidariedade)”. Segundo o Autor, «se o princípio da culpa exprime as
exigências que a “vertente liberal” (rectius, “democrática”) do Estado de Direito faz à política criminal, a
sua “vertente social” conduz à aceitação de um quarto princípio que pode ser designado como princípio
da socialidade ou da solidariedade. Segundo este princípio (…), ao Estado que faz uso do seu ius puniendi
incumbe, em compensação, um dever de ajuda e de solidariedade para com o condenado,
proporcionando-lhe o máximo de condições para prevenir a reincidência e prosseguir a vida no futuro
sem cometer crimes. Só nisto – mas nisto tudo – se traduz concretamente a exigência de socialização do
delinquente» (in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, reimpressão, Coimbra
Editora: 2005, p. 74). A ideia de que o Estado tem o dever de oferecer ao condenado uma possibilidade de
socialização é ainda sustentada por Anabela Miranda RODRIGUES nas várias reflexões que dedicou ao
sentido da execução da pena de prisão, nomeadamente em A Posição Jurídica do Recluso na execução da
pena privativa de liberdade. Seu Fundamento e Âmbito, Coimbra: 1982; em “Polémica actual sobre o
pensamento de reinserção social”, Separata de Cidadão Delinquente: Reinserção Social?, IRS: 1983; em
Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária, Coimbra: Coimbra Editora: 2000.
574
Talvez se pudesse substituir com vantagem esta referência a “retribuição” pela afirmação de que na
pena convivem com juízos de prevenção considerações atinentes ao princípio da culpa. Opta-se, todavia,
por manter a expressão com o objectivo de deixar claro que, na visão que se defende, aproveita-se do
pensamento da retribuição aquele que se julga ser o seu núcleo central: a interdição de uma pena que já
não seja suportada pela culpa. De certa forma, portanto, se não se admite uma teoria unificadora aditiva,
que “acumule numa mera adição os diversos pontos de vista particulares” sobre os fins das penas (a
aceitação cumulativa de todos os fins para a pena aumentaria de forma inadmissível a intervenção
punitiva do Estado, sem controlos), aceita-se a teoria unificadora dialéctica de ROXIN, exclusivamente
preventiva quanto aos fins mas limitada pelo princípio da culpa. Esta linha de pensamento, seja qual for a
denominação que se lhe atribua, procura o equilíbrio de todos os princípios mediante “restrições
recíprocas”. Como bem nota o Autor, “a ideia de prevenção geral vê-se reduzida à sua justa medida pelos
princípios da subsidiariedade e da culpa, assim como pela exigência de prevenção especial que atende e
desenvolve a personalidade. A culpa não justifica a pena por si só, podendo unicamente permitir sanções
no domínio do imprescindível por motivos de prevenção geral e enquanto não impeça que a execução da
pena se conforme ao aspecto da prevenção especial. E, como vimos, de igual forma a totalidade dos
restantes princípios preservam a ideia de correcção dos perigos de uma adaptação forçada que violasse a
personalidade do sujeito” (in Problemas Fundamentais de Direito Penal cit., p. 44). Para uma maior
clareza do que se vem de afirmar, pode ainda tomar-se como exemplo a bifurcação da função da culpa
esboçada por autores como Ferrando MANTOVANI (Principi di Diritto Penale, 2.ª ed., Padova: Cedam,
2007, p. 133): a uma “função fundante do poder punitivo” contrapõe uma “função político-garantista de

315
Com isto não se pretende dizer, pela positiva e na sua formulação mais simples, que a
pena serve para retribuir o mal do crime e para prevenir crimes futuros. Pretende-se
antes significar que a pena não é exclusivamente retribuição nem é exclusivamente
prevenção. Há na pena, numa certa acepção, um sentido de retribuição, na medida em
que é da sua natureza manifestar-se através da imposição coactiva de um mal que é
consequência e que está limitado por um mal anterior. Já no que respeita aos fins (logo,
quanto ao que está além da pena, ou fora da pena, aquilo que com ela se pretende), a
pena é prevenção. A acusação de que tais juízos de prevenção575 importariam a violação
da dignidade da pessoa, na medida em que acarretariam uma sua instrumentalização,
com uma punição determinada por juízos exteriores à pessoa e à sua liberdade e antes
condicionados pela utilidade social – é ultrapassada pela previsão categórica de um
limite máximo da pena, dado pela culpa. E aqui, há que reconhecê-lo, admite-se um
paliativo para essa insuficiência das teorias relativas dos fins das penas que é a de não
incluírem nenhuma medida para a limitação da duração da pena576. Todavia, se as
teorias relativas dos fins das penas carecem dessa correcção introduzida pelo princípio
da culpa e, por isso, se vai colher às teorias absolutas esse seu segmento essencial,
também é certo que o princípio da culpa adquire neste novo contexto um sentido não
coincidente com o que tinha nas mais tradicionais formulações da retribuição (onde a
expiação da culpa impunha a pena), assumindo uma função liberal de preservação da
liberdade dos cidadãos577.

limite ao poder punitivo”. Associa a primeira à concepção retributiva e a segunda à concepção utilitarista
da prevenção geral e da prevenção especial.
575
Ainda que a objecção da instrumentalização violadora da dignidade humana se dirija com frequência
em bloco a todas as teorias relativas dos fins das penas, parece evidente que adquire uma força particular
no seio da prevenção geral. Se, na prevenção especial, ainda se pode encontrar algum arrimo na punição
em nome do próprio agente (ao pretender-se que ele não cometa futuros crimes), na prevenção geral é
mais difícil justificar-se que se puna uma pessoa para que outros não cometam, no futuro, crimes. O que
constitui forte argumento no sentido da rejeição de uma teoria do fim das penas exclusiva ou
excessivamente tributária da prevenção geral.
576
Como de resto evidencia Claus ROXIN, afirmando que, tal como o princípio da prevenção especial,
também o princípio da prevenção geral “apresenta consideráveis deficiências teóricas e práticas”. A
primeira é precisamente a ausência de um critério que imponha um limite à pena. O que faz com que “a
prevenção geral negativa se encontre sempre perante o perigo de se converter em terror estadual”, até
porque «a ideia de que penas mais altas e mais duras têm um maior efeito intimidatório foi historicamente
(apesar da sua provável inexactidão) a razão mais frequente para as penas “sem medida”» (Derecho
Penal, Parte General, Tomo I, cit., p. 93).
577
O reconhecimento dessa função, atribuída ao princípio da culpa, de limitação do intervencionimo
punitivo estadual (o reconhecimento de uma função num sistema que é o penal) não impede o
reconhecimento de uma dimensão ética da culpa e o reconhecimento da imprescindibilidade de um seu
conteúdo material. O facto de a culpa funcionar apenas como limite instransponível da pena permite que
se ultrapassem em parte as objecções à retribuição com base na impossibilidade de medir a liberdade
humana, que seria indispensável para a existência e a quantificação da culpa. O menor peso relativo da
culpa na definição da pena retira relevância àquela objecção. Não se compreende, porém, o pensamento

316
O que se pretende enfatizar é que muita da actual discussão filosófica e doutrinal
em torno desta questão – a questão dos fins das penas – parece com frequência mais a
expressão de uma divergência de forma do que de uma divergência de conteúdo. Em
regra, tender-se-á a aceitar a ideia de que a pena tem dimensões várias, cumprindo
distintas funções. Quando se afirma, por exemplo, que há na pena um sentido de
retribuição, não se estará – em muitos casos – sobretudo a significar que a pena
constitui a imposição de um mal que pressupõe a ocorrência prévia de outro mal,
imputável à responsabilidade de um agente? Parecem sobrar poucas dúvidas de que
assim é, de facto. E, todavia, afirmá-lo não é sinónimo de defender a retribuição
enquanto finalidade da sanção penal. Procure-se explicá-lo, ainda uma outra vez: (I) o
facto de na pena se poder ver um castigo não significa que o fim da pena seja esse
castigo; (II) inversamente, pode antes dizer-se que o castigo que é a pena existe para
perseguir um fim; (III) o castigo que é a pena deverá ser adequado, quer na sua
conformação teórica quer na sua execução, ao fim que com ele se pretende atingir.

segundo o qual o problema desaparece totalmente com base na afirmação de que “a liberdade do cidadão
não depende da sua demonstrabilidade empírica ou epistemológica. A sua aceitação é uma posição
normativa, uma regra do jogo social, que não responde à pergunta de como está configurada na sua
essência a liberdade humana, mas que dispõe apenas que o homem deve ser tratado pelo Estado como
livre e em princípio capaz de responsabilidade. A pergunta relativa à existência real de liberdade de
vontade pode e deve ser excluída mediante a sua impossiblidade de decisão objectiva”. Apesar de se
compreender que se deva aceitar como regra do jogo social que o homem abstracto é em geral livre, cada
homem pode ver na situação concreta a sua liberdade de actuação muito diminuída ou excluída e, logo,
também a sua culpa. Se a culpa não for mais do que uma posição normativa insusceptível de contradição
empírica, não se percebe de que modo preserva o seu potencial para, em cada caso, limitar o poder
punitivo do Estado. Deste modo, não se pode concordar inteiramente com a afirmação de que «no direito,
passa-se o mesmo com a culpa e a liberdade que com a dignidade (…), cuja existência não é
“demonstrável”, mas cuja existência também não é impugnável com argumentos empírico» (os trechos
citados correspondem ao pensamento de Claus ROXIN, in Derecho Penal, Parte General cit., p. 101).
Julga-se que, sob este ponto de vista, existe uma diferença entre a dignidade, por um lado, e a liberdade e
a culpa, por outro. É que, se não se pode afirmar a inexistência de dignidade num homem (deve presumir-
se de forma absoluta que ele a possui pelo simples facto de ser homem), já se pode mostrar que um
homem agiu sem liberdade e sem culpa. Porque, de forma inversa ao que sucederia com a aceitação da
inexistência de dignidade – que legitimaria o tratamento do homem como não homem pelo Estado –, a
verificação da inexistência de culpa limita quanto a cada homem o poder punitivo do Estado. Por isso, se
se pode tomar a dignidade como uma existência que não pode ser contrariada porque contrariá-la
funciona sempre contra a pessoa; já se não pode recusar a verificação da inexistência de liberdade, porque
esta pode funcionar a favor da pessoa. O que equivale a afirmar que se pode aceitar que em princípio a
pessoa é livre (e não se entrará aqui no debate em torno da compreensão desta liberdade como
propriedade da acção, como livre-arbítrio ou poder de agir de outra maneira na situação, por um lado, ou
antes como liberdade pessoal, como liberdade de decisão da pessoa sobre si mesma), desde que tal
princípio não postergue a ponderação da liberdade real do homem concreto (problema esse que Jorge de
FIGUEIREDO DIAS, mesmo rejeitando a relevância da questão do livre-arbítrio, não deixa de referir –
cfr. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I cit., p. 523). Caso assim não fosse, poder-se-ia afirmar que todo o
homem é culpado pelo facto típico e ilícito que praticou porque todo o homem é livre. O que retiraria –
fácil é de ver – relevo ao princípio da culpa enquanto limite ao poder punitivo do Estado.

317
A discussão sobre as várias teorias dos fins da pena pode ser estéril na medida
em que se atribua destaque a diferenças que não são as essenciais578. Crê-se que mais
útil do que enfatizar tais diferenças será sublinhar o consenso que parece existir quanto:
(I) à impossibilidade de condenar numa pena que não corresponda a um mal prévio,
considerado típico, ilícito, culposo e punível; (II) à impossibilidade de a pena
ultrapassar o limite ainda permitido pela culpa; (III) à finalidade de com a pena não
dessocializar o condenado, combatendo a reincidência; (III) à finalidade de reafirmar a
vigência dos valores essenciais atingidos pelo crime.
Assim sendo, compreende-se a existência, na pena, de alguma retribuição por
um facto desvalioso antes cometido, ainda que tal retribuição não seja o fim da pena. E
pode subscrever-se, nesse exacto sentido, a afirmação de que a culpa é pressuposto e
limite da pena (que, nessa medida, a retribui), mas não seu fundamento579.

578
Na opinião sobre os fins da pena que se perfilha, o problema essencial (que é, ainda, um foco de
dúvida) está em saber se as necessidades de dissuasão (associadas sobretudo ao pensamento da prevenção
geral) têm peso autónomo, em moldes que permitam a condenação a uma pena de um agente
relativamente ao qual não há um juízo de probabilidade de cometimento de crimes futuros. Afirmada a
centralidade da prevenção especial, limitada pela culpa, o que se interroga é sobretudo qual o papel a
desempenhar pela prevenção geral. Se há uma certa unanimidade na aceitação da prevenção especial
positiva (que os mais optimistas encaram como de socialização e os mais pessimistas qualificam como de
não dessocialização) enquanto fim da pena, a questão para a qual subsiste a necessidade de encontrar uma
resposta prende-se com a forma de justificar a punição de agentes relativamente aos quais não é provável
a reincidência (em sentido muito amplo, não enquanto mera reincidência homótropa). Ora, se os cultores
da retribuição mais tradicional fundariam a aplicação da pena, também aí, na justa punição (e aceitariam
uma pena justa, ainda que não necessária), já aqueles Autores que vêem a prevenção geral positiva como
fim social da pena justificam a sanção penal afirmando a sua necessidade para o restabelecimento das
expectativas comunitárias na validade da norma violada. Ainda que a forma como se fundamenta a
solução seja diversa, o resultado a que se chega é aproximado: a aceitação da condenação a uma pena de
um agente mesmo que ele não careça, em princípio, da punição como forma de evitar o cometimento de
crimes futuros. O que, segundo se julga, pode fazer supor que a defesa da prevenção geral encobre, de
certo modo, a compreensão de que uma certa retribuição parece necessária para cada cidadão continuar a
acreditar na validade e na vigência dos valores essenciais.
579
Neste sentido veja-se por todos, entre nós, Jorge de FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal, Parte Geral,
Tomo I, 2ª ed. cit., p. 63) que, recordando o pensamento de ROXIN, reitera que “recusar a intervenção da
retribuição na querela sobre as finalidades da pena não significa nem abandonar, nem minimizar o
pensamento e o princípio da culpa na construção do facto punível e na legitimação da intervenção penal,
nem tão-pouco esquecer o significado essencial que aquele princípio e pensamento assume na querela. A
culpa é com efeito – e não pode deixar de ser – pressuposto da pena e limite inultrapassável da sua
medida”. Esta construção dogmática em torno dos fins da pena (com repercussões óbvias ao nível do
modelo da sua determinação) deixa, porém, uma dúvida atinente ao conceito de “mínimo de defesa do
ordenamento jurídico”. O que se pergunta é se não se fará adentrar através dele, na determinação da
medida da pena, ainda um sentido último de retribuição. Quando se afirma que há um mínimo de pena
sem o qual a comunidade deixa de acreditar na validade da norma violada, não se reconhecerá que a
comunidade exige um mínimo de castigo pelo mal que o agente causou a outrem? Ainda aqui, parece
poder considerar-se que não há uma relevância autónoma de um juízo de retribuição. Mesmo que se não
manifestem exigências preventivo-especiais, pode haver necessidade de pena porque houve uma ofensa
grave, com culpa, a um bem jurídico essencial e a comunidade precisa de ver reafirmado o respeito
devido ao valor violado. A condenação a um mal não imposto por uma necessidade de ressocialização
não decorrerrá assim de uma exigência de castigo. A cominação do mal decorrerá antes da necessidade
preventivo-geral da pena, que é na sua essência um mal.

318
O problema que se tem de enfrentar – recorde-se – é o da delimitação das
fronteiras, no que respeita aos fins, entre a justiça restaurativa e a justiça penal. O
sublinhar da intencionalidade essencialmente preventiva da pena parece conduzir à
conclusão da inexistência de uma absoluta contraposição entre as finalidades da
intervenção penal e as finalidades da intervenção restaurativa. Afinal, não constitui
também finalidade das práticas restaurativas reintegrar o agente e pacificar a
comunidade, para além de reparar os danos sofridos pela vítima?
Sob esta perspectiva, as diferenças parecem mais quantitativas do que
qualitativas. Quer na justiça penal, quer na justiça restaurativa, conviverão dimensões
punitivas com dimensões curativas (ainda que com distintos pesos relativos). Ainda que
só na justiça penal a punição possa ser coactiva e possa ter consequências tão graves
como a privação da liberdade. Ainda que os males suportados pelo agente como
necessários para a reparação dos danos sofridos pela vítima sejam, nas práticas
restaurativas, auto–assumidos.
Seja como for, da exigência de que a pena se não esgote num puro mal decorrem
obrigações para o Estado no que tange às condições da sua execução. O imperativo de
curar atravessa, deste modo, o próprio conceito de punir. O sistema penal deve punir
oferecendo uma oportunidade de curar. E através da justiça restaurativa, se em primeira
linha se procura curar, pode ainda vislumbrar-se uma aceitação de desvalores pelo
agente do crime que, caso não existisse aquela aceitação, pareceriam porventura
próximos do punir.
A ser assim, o núcleo da diferença entre a justiça penal e a justiça restaurativa
(pelo menos em um sistema penal com as características do nosso) não se localizaria
tanto ao nível das finalidades (na medida em que ambas são atravessados pelo objectivo
de curar), mas localizar-se-ia antes nos instrumentos disponíveis para a persecução
daquelas finalidades e nos procedimentos adoptados. Ou seja, as críticas formuladas a
um sistema penal como o nosso à luz de uma óptica restaurativa encontrariam um
espaço de pertinência sobretudo quanto à adequação do nosso processo penal e da
execução da nossa pena de prisão às finalidades que lhes presidem.
Verificado o fim não essencialmente retributivo da pena, poder-se-ia concluir
que a distância entre a justiça penal e a justiça restaurativa não se desvenda a uma
primeira análise quando se reflecte sob um ponto de vista teórico em torno das
respectivas finalidades. E será assim – repita-se – de uma forma mais evidente naqueles
sistemas penais que não pretendam orientar-se por uma filosofia punitiva alicerçada na

319
retribuição e que reconheçam a obrigação que o Estado tem de oferecer ao condenado
possibilidades de socialização ou, o que vai dar ao mesmo, possibilidades de
reintegração na vida comunitária sem o cometimento de novos crimes. A prevenção
especial de socialização e a justiça restaurativa teriam, assim, em comum uma ideia de
cura que remete para o princípio do Estado Social, o qual “reclama previsões e acções
sociais estaduais”580. E não será, assim, casual a importação feita por alguns Autores das
finalidades especificamente penais enquanto finalidades também da justiça
restaurativa581.
Quando se aprofunda a reflexão, conclui-se, porém, que também uma pena
orientada por fins preventivos é insuficiente – ainda que porventura menos insuficiente
– sob o enfoque restaurativo, porque não é tanto a finalidade retributiva da pena, mas
antes o próprio mal inerente à pena, que o pensamento restaurativo rejeita (através de
uma equiparação de algum modo simplista do mal ao pensamento da retribuição). Mas
também a punição orientada por fins preventivos não logra retirar da pena o seu núcleo
de desvalor para aquele que nela é condenado. Esse mal inerente à limitação coactiva de
direitos, que é inevitável nas sanções penais, deve ser limitado ao mínimo e adequado às
finalidades preventivas das penas, mas não deixa de ser um mal coactivamente imposto.
A diferença entre o mal que é inerente à sanção penal e o desvalor que pode
decorrer da assunção de compromissos restaurativos é sobretudo qualitativa: ao assumir
o mal do crime, o agente que participa nas práticas restaurativas (bem sucedidas)
aceitará também a limitação dos seus interesses na medida necessária à reparação; ora, a
assunção voluntária de tais limitações tenderá a diminuir nelas o cariz de mal. O que
equivale a dizer que esse mal autonomamente assumido é um mal diferente.
Esta ideia não logra, todavia, ocultar uma perplexidade: se, sob o ponto de vista
dos fins, não existissem diferenças entre a justiça penal e a justiça restaurativa, como
explicar os distintos procedimentos e consequências das duas formas de reacção ao

580
Claus ROXIN, Derecho Penal, Parte General, Tomo I cit., p. 87. A propósito da prevenção especial
de socialização, o Autor acrescenta que ela “cumpre extraordinariamente bem com a função do direito
penal, na medida em que se obriga exclusivamente à protecção do delinquente e da sociedade, mas ao
mesmo tempo quer ajudar o agente, ou seja, não expulsá-lo ou marcá-lo, mas sim integrá-lo; com isto
cumpre melhor do que qualquer outra doutrina as exigências do princípio do Estado Social”.
581
Considere-se, a título de exemplo, a opinião de Germano MARQUES DA SILVA, que, apesar de
autonomizar a reparação dos danos causados à vítima enquanto “objectivo político-criminal da
mediação”, lhe acrescenta os objectivos de “pôr termo à perturbação da ordem pública” e “contribuir para
a ressocialização do agente”. O Autor, questionando a possibilidade de tais objectivos serem de
verificação cumulativa, entende que “também não há acordo, mas em regra basta a prossecução de um
destes objectivos” (“A mediação penal – Em busca de um novo paradigma”, A Introdução da Mediação
Vítima-Agressor no Ordenamento Jurídico Português, Coimbra: Almedina, 2005, p. 98).

320
conflito? Como explicar a diversa natureza do mal penal, se não por referência aos seus
específicos fundamentos e finalidades? A resposta não poderá encontrar-se, como antes
se procurou deixar claro, em uma contraposição simples entre o punir e o curar. As
finalidades preventivas revelam que também o sistema da justiça penal é perpassado
pelo objectivo de curar. É, todavia, de uma cura diversa que nas duas formas de
resposta ao crime se trata582. Os conceitos de prevenção geral e de prevenção especial
não podem ser objecto de uma transposição integral para a justiça restaurativa.

4. A pena orientada pela prevenção e a solução restaurativa: uma diferença de


fins (afinal) essencial

Ainda que se possa afirmar que, quer a justiça penal, quer a justiça restaurativa
pretendem pacificar curando, encontrar-se-ão respostas significativemente diversas para
as questões sobre aquilo que se pretende curar e sobre a forma como se pretende curar.
Tais respostas terão de radicar na dimensão do conflito que em cada um dos modelos se
sobrevaloriza e que em cada um deles se pretende pacificar: na resposta penal, o Estado
reage a uma conduta desvaliosa por força da sua dimensão pública associada à lesão de
bens jurídicos e, nessa medida, é o interesse de todos os membros da comunidade que
essencialmente justifica e orienta a sua intervenção; na justiça restaurativa, é a dimensão
privada do conflito que prevalece e, por isso, são os interesses concretos daquele
ofendido e daquele agente que em primeira linha devem ser tidos em conta.
O que equivale a afirmar que se através da pena se visa evitar o cometimento por
aquele agente de outros crimes no futuro e pacificar a comunidade em torno da vigência
da norma violada, já a solução restaurativa pretende ressarcir as necessidades da vítima
do crime através de uma assunção, pelo agente, das suas responsabilidades, agente que
assim reforça o seu sentido de responsabilidade e satisfaz a necessidade da comunidade
de próximos de ver pacificado o conflito concreto. Ou seja: na resposta penal,
prevalece o interesse comum no não cometimento de crimes no futuro; na resposta
restaurativa, prevalece o interesse individual daqueles que estão concretamente

582
Julga-se que o conceito de “curar” adquire significados não coincidentes no sistema penal e no
paradigma restaurativo. Naquele, o conceito surge primeiramente associado à prevenção especial de
socialização; neste, a cura assume um sentido mais vasto, que abrange também a reparação da vítima ou a
reparação dos laços interpessoais afectados.

321
envolvidos no conflito (inter)pessoal na superação efectiva desse estado de conflito
através da reparação dos danos associados ao crime583.
Esta resposta supõe já e integra, naturalmente, uma certa reflexão sobre o
problema do fundamento do direito penal e sobre o problema da função penal. Se o que
fundamenta o poder punitivo do Estado é o dever que este tem de assegurar a coesão
pacífica da sociedade em condições que garantam a todos os cidadãos uma existência
condigna, a função do direito penal terá de ser a protecção subsidiária dos valores
considerados essenciais num dado momento e espaço584. Essa ideia de protecção de
bens jurídicos contra lesões futuras concretiza-se através das finalidades de prevenção
geral e de prevenção especial.
A função da justiça restaurativa, por sua vez, não será essa protecção dos valores
essenciais da comunidade. Não se trata, de forma directa, de tutelar valores essenciais
para o grupo evitando crimes futuros que os lesem, mas antes de encontrar uma resposta
adequada para os males originados por um crime já ocorrido.
Quando se reflecte sobre a prevenção geral positiva enquanto finalidade da pena
mas não já da intervenção restaurativa é metodologicamente útil recordar a distinção de
“três fins e efeitos distintos, ainda que relacionados entre si”, que ROXIN associa
àquela prevenção: a aprendizagem; o exercício da confiança no direito que é
desencadeado na comunidade pela aplicação da justiça penal; a pacificação, que se
produz quando a consciência jurídica geral se tranquiliza no que respeita à ruptura da
lei, por força da execução da sanção, “considerando-se solucionado o conflito com o
autor”585. Ora, este desmembramento em segmentos menores da ideia de prevenção
geral positiva permite uma compreensão mais exacta daquilo que dela ainda se pode
vislumbrar enquanto fim das soluções restaurativas. A estas não parece poder assacar-
583
Nesta afirmação vai implícita a ideia inicial de que as finalidades penais e as finalidades restaurativas
não são coincidentes, ideia esta que se afasta de várias outras opiniões. Em sentido oposto, considere-se, a
título de exemplo, a afirmação de Pablo GALAIN PALERMO de que a justiça restaurativa «compartilha
não somente das definições normativas da primeira [que denomina “justiça tradicional”], como também
do objectivo de determinar a responsabilidade do autor (ainda que se trate da assunção voluntária da
culpabilidade) e das mesmas finalidades de reinserção (prevenção especial), de devolução da confiança
no sistema e reafirmação da norma (prevenção geral positiva) e de protecção futura de bens jurídicos
(prevenção geral negativa)» (in “Mediação penal como forma alternativa de resolução de conflitos: a
construção de um sistema penal sem juízes”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de
Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra Editora: 2010, ps. 840-1).
584
O que implica que, nas palavras de Claus ROXIN, “em cada situação histórica e social de um grupo
humano os pressupostos imprescindíveis para uma existência em comum se concretizam numa série de
condições valiosas como, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade de actuação ou a
propriedade, as quais todos conhecem; numa palavra os chamados bens jurídicos; e o direito penal tem
que assegurar esses bens jurídicos, punindo a sua violação em determinadas condições” (in Problemas
Fundamentais de Direito Penal cit., ps. 27-8).
585
Claus ROXIN, Derecho Penal, Parte General, Tomo I cit., p. 92.

322
se, enquanto finalidade imediata, nem a aprendizagem do sentido da norma penal, muito
menos a potenciação da confiança na norma penal desencadeada pelo sancionamento,
nem ainda a pacificação decorrente de se considerar solucionado o conflito com o autor
(o conflito da comunidade representada pelo Estado com o agente do crime). Pelo
contrário, já serão finalidades da solução restaurativa de algum modo próximas do
sentido da prevenção geral positiva a aprendizagem da conduta socialmente pretendida
e a pacificação do conflito entre o agente do crime e a vítima, que se repercutirá, em
regra, na pacificação da comunidade que os envolve.
Uma ponderação do sentido da prevenção especial enquanto fim da pena torna
também claras as distâncias face aos objectivos almejados pela solução restaurativa.
Excluem-se, desde logo, as finalidades de neutralização ou inocuização do agente
associadas à privação da liberdade. Alguma intimidação – decorrente do cumprimento
das obrigações assumidas no âmbito do acordo com a vítima e que podem revelar-se
custosas – terá a marca de distinção provinda do carácter autonomamente aceite de tal
desvalor, em si mesmo distinto da privação da liberdade. Sobra a ideia de socialização,
que de certo modo pode ser considerada comum à justiça penal e à justiça restaurativa.
Talvez ela seja, porém, na justiça restaurativa menos ambiciosa numa certa acepção e
mais ambiciosa numa outra. Menos ambiciosa porque as práticas restaurativas não
almejam, de forma directa, evitar a prática de qualquer crime no futuro, contra qualquer
vítima, mas sim solucionar o conflito com aquela vítima de forma a reintegrar a relação
(inter)pessoal prejudicada. De algum modo, porém, mais ambiciosa sob um ponto de
vista subjectivo, por procurar uma reconciliação do agente consigo próprio a partir de
uma responsabilização pela conduta indevida passada, a fim de pemitir alguma
tranquilidade futura. O que equivale a reafirmar a distância entre a dimensão
essencialmente colectiva da intervenção penal e a dimensão essencialmente individual
da intervenção restaurativa: a prevenção especial positiva que é fim da pena terá sempre
de ser compreendida em função desse referencial último que é o do sentido e o dos
limites da punição estadual: a intervenção do Estado para garantir a segurança de todos
os cidadãos legitima (e impõe) a oferta ao agente de condições que lhe permitam
adoptar um projecto de vida futura do qual esteja ausente o cometimento de outros
crimes, mas já não legitima qualquer forma de actuação directa sobre aspectos atinentes

323
à sua vida interior, no sentido de lhe impor que cultive a sua espiritualidade ou que
manifeste o seu remorso586.
É corrente na literatura restaurativa a afirmação de que as práticas restaurativas
podem contribuir também para a socialização do agente. Ora, esta ideia só se
compreende na sua plenitude se a socialização procurada pela justiça penal for distinta
da reintegração que é objecto imediato da solução restaurativa: a pacificação daquele
concreto conflito através da responsabilização do agente pelos danos causados à vítima
(objectivo da justiça restaurativa) pode contribuir para que o agente com menor
probabilidade cometa outros crimes no futuro porque pode ajudá-lo a reconciliar-se
consigo, com a vítima e com a comunidade que os envolve e, sobretudo (veja-se o
paradoxo), porque pode evitar a condenação a pena de prisão, sanção que devia
contribuir para a socialização mas que, na praxis actual, parece, com frequência,
favorecer antes a dessocialização. A resposta não penal ao conflito, que não procura
directamente a prevenção especial de socialização que é fim da pena, pode em alguns
casos contribuir para que melhor se realize uma finalidade que não é sua – que é e deve
ser, reitere-se, das penas criminais –, mas que a principal pena (a de prisão) não tem
logrado concretizar.
Em síntese apertada: (I) a compreensão dos fins da pena tem de ser coerente com
a compreensão da função do direito penal; (II) se a função do direito penal é a tutela
subsidiária de bens jurídicos, o fim da pena terá de ser um fim que se traduza na
prevenção de ataques futuros a esses bens jurídico; (III) essa tutela subsidiária de bens
jurícos transporta consigo, de forma necessária, a protecção da comunidade [contra a
prática de crimes futuros por aquele agente (prevenção especial) ou por outros agentes
que reajam à fragilização da norma penal proibitiva (prevenção geral)]; (III) uma pena
que não seja necessária à luz daqueles fins (que não seja necessária sob os pontos de
vista da prevenção especial e/ou geral para a tutela de bens jurídicos) é uma pena que

586
Não se veja, porém, no sublinhar desta distinção entre a prevenção especial de ressocialização que é
fim da pena e o objectivo de reintegração do agente no seu grupo de próximos que é objectivo da justiça
restaurativa mais do que aquilo que se disse. O que aconselha alguns esclarecimentos adicionais, que
sublinham a natureza tendencial da distinção referida no texto: (I) a finalidade do direito penal de evitar o
cometimento por aquele agente de outros crimes no futuro pode ser melhor alcançada se o agente quiser e
conseguir assumir as suas responsabilidades pelo crime cometido; (II) a intervenção socializadora do
Estado pode incluir, caso o condenado o pretenda, prestações de natureza psicológica ou espiritual; (III)
as práticas restaurativas que procuram um acordo satisfatório para a vítima e o agente não devem ser
liminarmente precludidas por as motivações que condicionam a participação deste último não serem as
mais nobres (o facto de o autor do crime pretender, no seu íntimo, evitar ou atenuar a sanção penal, mais
do que reparar os danos sofridos pela vítima, não deve ser obstáculo, por exemplo, à mediação penal;
assim como o não é o facto de o principal objectivo da vítima ser a obtenção de uma vantagem
patrimonial).

324
não tem legitimidade porque não cumpre a função do direito penal; (IV) o pensamento
da retribuição, porém, se não corresponde a um fim da pena, estabelece-lhe limites
intransponíveis por constituir uma garantia contra um poder punitivo que
instrumentalizasse o indivíduo punindo-o sem culpa em nome das finalidades
preventivas; (V) a função da justiça restaurativa não é a protecção subsidiária de bens
jurídicos, é antes a reparação dos desvalores vários originados pelo conflito
(inter)pessoal que é o crime em moldes que permitam a sua pacificação; logo (VI) os
fins da intervenção restaurativa cingir-se-ão em primeira linha à reparação dos danos
sofridos pela vítima, à assunção das suas responsabilidades pelo agente e à pacificação
dos directamente envolvidos naquele crime; (VII) os fins da pena são determinados pelo
facto de no direito penal preponderar a dimensão colectiva ou pública do conflito587,
enquanto os fins da solução restaurativa são condicionados pelo facto de nela
preponderar a dimensão privada ou particular do conflito.
Muitas das críticas à justiça penal nascem precisamente aqui, na verificação de
que a esse especial relevo atribuído à dimensão colectiva do conflito corresponde, com
frequência, o esquecimento das necessidades dos intervenientes concretos no conflito.
E, se é certo que o pensamento penal contemporâneo tem procurado reagir àquela
secundarização dos interesses individuais relacionada com a primazia do interesse
comum – de algum modo inerente, como se viu, à função do direito penal – através de
ideias tão fortes como a atribuição da categoria de sujeitos processuais ao arguido e ao
ofendido constituído assistente ou como o pensamento da reparação no modelo
sancionatório, também parece evidente que há a estes propósitos ainda um longo
caminho por caminhar.
Se a justiça penal orientada para a tutela subsidiária de bens jurídicos procura
não desconsiderar inteiramente a dimensão individual do conflito apesar de dever
centrar-se primariamente na sua dimensão colectiva588, também é certo que a justiça

587
Se a prevalência desta dimensão colectiva do conflito é particularmente evidente nos crimes públicos,
não deixa de poder afirmar-se que mesmo nos crimes particulares em sentido amplo o reconhecimento da
sua relevância criminal se relaciona com o reconhecimento da sua dimensão não exclusivamente privada.
Dito de outra forma: o que justifica a prossecução penal estadual nos crimes particulares será ainda aquilo
que neles existe com relevância também comunitária (há um bem jurídico visto pela comunidade como
relevante), mesmo que esse peso colectivo acabe por não ser tão forte que justifique a intervenção
estadual sem a manifestação da vontade do ofendido.
588
Tenha-se em conta, a este propósito, a enfática afirmação de Winfried HASSEMER (in Persona,
Mundo y Responsabilidad cit., p. 199) de que «”vítima” de um crime somos todos nós, naturalmente não
em sentido empírico mas sim em sentido normativo (…). O direito penal não se ocupa apenas da relação
entre o delinquente e a vítima. O que poderia ter validade para a amizade ou o amor (ainda que a esse
respeito tenha sérias dúvidas) não serve para o direito penal: na “relação” penal o delinquente e a vítima

325
restaurativa, ainda que de forma mediata, pode contribuir para a realização de
finalidades que são primariamente da reacção criminal, sempre que a solução que
através dela se encontrar para o conflito individual contribua para o reforço da
tranquilidade da comunidade em torno da vigência dos valores essenciais e/ou para a
socialização do agente589. O que, ainda uma outra vez, reforça a ideia da possível
alternatividade da solução restaurativa face à solução penal.
Finalmente, no que respeita à delimitação recíproca de finalidades da reacção
penal e da reacção restaurativa, deve ainda concluir-se que da afirmação de que o fim da
pena não é a retribuição do mal do crime pode extrair-se uma outra conclusão (além da
antes afirmada impossibilidade de contraposição absoluta entre o punir e o curar, que
abriu espaço para a verificação subsequente de que a diferença essencial ao nível dos
fins não é entre a retribuição penal e a reparação resturativa, mas sim entre a prevenção
geral e especial como forma de tutela de bens jurídicos, que cabe ao direito penal mas
não em idênticos moldes à justiça restaurativa).
Já no que tange ao modo de relacionamento entre a resposta penal e a resposta
restaurativa (e aos seus âmbitos de coincidência e de divergência na reacção ao
fenómeno criminal), parece razoável concluir-se que da adopção de uma teoria absoluta
associada a uma visão exclusivamente retributiva da pena decorre a impossibilidade de
aceitação da alternatividade. Provando-se a culpa do agente manifestada no facto típico
e ilícito, a pena impor-se-ia por razões de justiça. Logo, não haveria espaço lógico para
inquirir se as práticas restaurativas bem sucedidas tornariam desnecessária a pena.
Quando muito, poder-se-ia reconhecer a conveniência de tais práticas à luz de
finalidades exteriores ao direito penal. A procura de uma solução pela via restaurativa
poderia admitir-se, pois, apenas em cumulação com a justa punição. As teorias relativas
dos fins das penas, pelo contrário, são mais coerentes com a ideia de que, ocorrido um

não estão sozinhos, antes surgimos todos como afectados, inclusivamente quando o facto não seja
compreendido pela maioria. O Código Penal protege os bens jurídicos sem cujo reconhecimento seria
impossível a convivência na actualidade, segundo a nossa concepção normativa social e a nossa
configuração democrática (…). Pois bem, o delito ataca normas de comportamento, que pretendem
proteger esses bens jurídicos e que, no caso concreto, deixam as normas sem efeito. Este não é um
problema exclusivo da vítima, mas sim de todos».
589
O relevo da reparação para a socialização é sublinhado por Claus Roxin (in Problemas Fundamentais
de Direito Penal cit., p. 42) mesmo num contexto que não é (ainda) o de atribuição à reparação de um
sentido autónomo no modelo sancionatório: “se se entender o conceito de ressocialização num sentido
mais amplo, como reparação do dano, mesmo nestes casos pode o delinquente com o seu honrado esforço
conseguir forças construtivas para a sua personalidade, em lugar de a pena de vários anos de privação da
liberdade ter como consequência um embrutecimento prematuro que pode ir até ao vegetar abúlico do
sujeito como ocorre actualmente. E igualmente nas curtas penas privativas da liberdade se deve conferir
em geral um maior realce à ideia de reparação de danos”.

326
crime, o procedimento restaurativo pode tornar desnecessária a condenação na pena,
caso se verifique na hipótese concreta que a solução restaurativa satisfez as
necessidades de prevenção especial e de prevenção geral.
Uma ideia última, já antes esboçada mas que agora, no local próprio, se pretende
reforçar: o que se afirmou sobre as finalidades da pena criminal e sobre o sentido da
intervenção restaurativa parece pôr em causa a afirmação de que a justiça penal só olha
para o passado, enquanto a justiça restaurativa só olha para o futuro. Num certo sentido
– naquele que resulta do que se defendeu sobre os fins da pena e sobre os fins da
intervenção restaurativa – passa-se de algum modo o oposto. Os fins das penas, à luz
das teorias relativas, vertem a intenção de com a punição se contribuir para evitar o
cometimento de outros crimes no futuro. É da protecção de bens jurídicos essenciais
contra lesões futuras que se trata. À luz de um pensamento exclusivamente retributivo
– aí sim – a intervenção penal centrar-se-ia sobretudo no castigo de um mal passado,
anulando-o. Se se quiser persistir nesta linha de raciocínio talvez se chegue, porém, à
conclusão – porventura perturbadora – de que, comparando as distintas finalidades da
reacção ao crime a partir de um seu posicionamento nesta linha do tempo, a justiça
restaurativa está mais próxima das compreensões absolutas dos fins das penas do que
das relativas590. A justiça restaurativa, que não tem essa função de tutela dos valores
essenciais de todos contra lesões futuras, objectiva reparar os danos causados pelo
crime, no presente, àqueles que viram a sua vida afectada pelo conflito no passado.
Podia, de resto, procurar aproximar-se a ideia de neutralização do mal através da
retribuição justa da ideia de reparação dos males vários do crime advogada pela justiça
restaurativa. Esta tentativa de aproximação (ainda que tendencial) entre uma justiça
penal retributiva e a justiça restaurativa assenta, porém, em um segmento argumentativo
limitado: a neutralização do mal pressuposta pela teoria retributiva tem um sentido na
sua essência abstracto-filosófico, enquanto a neutralização do mal através da sua
reparação que é fim da justiça restaurativa possui sobretudo o sentido do concreto. E,

590
Winfried HASSEMER, no contexto de uma desconstrução do pensamento utilitarista da pena, não
deixa de sublinhar que “a estrita orientação para o delinquente do conceito de ressocialização já está
superada; a vítima já não aparece como a simples figura de papel que encarna sob o ponto de vista
sistemático a lesão do bem jurídico, mas antes como uma pessoa viva (alguém de carne e osso) com cujos
legítimos interesses tem de contar, também sob o ponto de vista sistemático, a teoria dos fins das penas.
Está também superada a orientação estrita para o futuro tanto do conceito de intimidação como do de
ressocialização; uma visão retrospectiva dos interesses da vítima pressupõe necessariamente considerar os
factos ocorridos no passado, e tê-los em conta para estabelecer o fim da pena, não enquanto lesão absoluta
da norma mas como um acontecimento concreto” (in Persona, Mundo y Responsabilidad cit., p. 197). A
razão pela qual aqui se cita este trecho é sobretudo uma: vincar a ideia de que o pensamento da reparação,
ao contrário do da prevenção, supõe um olhar para o passado.

327
por sobretudo, são profundamente diversas as estratégias consideradas cabidas – e por
isso admitidas – para a neutralização do mal.
Também por um outro lado, ainda a um primeiro olhar, o pensamento da
retribuição e a proposta restaurativa poderiam merecer um juízo de proximidade, por
força da introdução de um novo elo, associado às teorias que fazem reentrar na
discussão sobre o fim da pena a ideia de um direito da vítima à punição. Com efeito, são
hoje conhecidas, no pensamento penal, algumas concepções que associam a
obrigatoriedade da punição (mesmo que à custa do desrespeito de alguns princípios
garantísticos da justiça penal, como o da irretroactividade ou o do ne bis in idem) à
protecção de um denominado “direito subjectivo das vítimas à punição do agente”591,
concepções surgidas no âmbito dos denominados crimes contra a humanidade mas que
foram alargando o seu campo de aplicação a toda a criminalidade considerada grave. Ou
seja: o agente de um crime deve ser sempre punido porque a sua vítima tem o direito a
essa punição, direito que surge associado à imprescindível defesa da dignidade da
vítima, a qual não pode deixar de ser reconhecida através da punição do agente.
Nas palavras de SILVA SÁNCHEZ, «o que em primeiro lugar chama a atenção
na linha de argumentação anterior é a ausência de qualquer consideração de prevenção
geral negativa ou positiva. Nem a dissuasão de agentes potenciais nem a confiança de
vítimas potenciais são objecto de consideração. O dever de castigar – a rejeição da
impunidade – afirmar-se a partir dos direitos das vítimas “actuais” ou “efectivas”»592.

591
Cfr., a título de exemplo, George P. FLETCHER, “The place of victims in the theory of retribution”,
Buffalo Criminal Law Review, 3, 1999, p. 51 ss. Em sentido contrário, cfr. Michael MOORE, “Victims
and retribution: a reply to Professor Fletcher”, Buffalo Criminal Law Review, 3, 1999, p. 65 ss.
592
Jesús Maria SILVA SÁNCHEZ, «Nullum Crimen sine Poena? Sobre las Doctrinas Penales de la
“Lucha contra la Impunidad” y del “Derecho de la Víctima al Castigo del Autor”, Derecho Penal y
Criminologia, vol. 29, n.º 86-87, 2008, p. 159. O Autor não deixa de sublinhar, porém, a necessidade de
sujeitar a questionamento a qualificação desta afirmação do direito da vítima à punição como uma teoria
retributiva, desde logo porque “em geral as doutrinas retributivas não se construíram em torno da vítima
do crime, senão, antes, a partir da relação entre o facto praticado pelo agente e a norma”. Em momento
posterior do seu estudo, o Penalista espanhol afirma mesmo que “a teoria do direito penal orientada para a
vítima não é retributiva nem preventiva, pelo menos no modo clássico. Por isso pode chamar-se-lhe
restaurativa, equilibrante ou igualadora “. Se se compreende a forma como dissocia esta “teoria do direito
penal orientada para a vítima” do pensamento da retribuição – por neste não se ver no mal da pena uma
neutralização do mal sofrido pela vítima, mas antes do mal que é o comportamento do autor na
perspectiva dos valores –, já se não pode concordar com a sua qualificação como “restaurativa”. De facto,
não se vislumbra a adequação da associação daquele segmento da doutrina penal que defende o direito
das vítimas à punição do agente a uma outra proposta, a restaurativa, tão distante daquela orientação
punitiva nas suas próprias ideias mais nucleares. Assim, diga-se apenas que aquela corrente doutrinária
que sustenta o direito da vítima à punição do agente é, como reconhece o próprio SILVA SÁNCHEZ,
“instrumento das teorias mais amplas de combate à impunidade”. Ou seja: contribui, na prática, para a
defesa de uma expansão da punição, uma ampliação do universo das hipóteses de condenação a
verdadeiras penas criminais. A justiça restaurativa, como se veio afirmando, está, em certo sentido, no
pólo oposto, ao criticar, quer o sentido, quer a prática do exercício do ius puniendi e ao propor um

328
A associação de ideias entre as (I) concepções retributivas da pena, (II) a
doutrina penal da punição do agente como direito das vítimas, e (III) a proposta
restaurativa, é passível, porém, de várias objecções. Considere-se, de forma autónoma,
cada um dos laços desta cadeia de três elos.
Comece-se pela aproximação esboçada entre as teorias retributivas e as teorias
que defendem a proeminência do direito da vítima à punição, na teoria dos fins da pena.
Já se viu como a afirmação do direito da vítima à pena parece afastar a ponderação da
necessidade dessa pena, quer no plano da prevenção especial, quer no plano da
prevenção geral. Todavia, Autores como Cornelius PRITTWITZ não deixam de afirmar
que “a mais radical remoção da vítima é a operada pelas (assim chamadas) teorias
penais absolutas que dispõem que a punição não pode ser justificada em moldes
utilitários”. Logo, o pensamento da utilidade da pena para a vítima não seria, afinal,
também ele coerente com as perspectivas retributivas593. Poder-se-ia contra-argumentar
que, sob este enfoque, o direito da vítima à punição não deve associar-se a meros juízos
de utilidade, antes surgindo como um imperativo de reafirmação da dignidade e
autonomia da vítima. Todavia, permanece a interrogação sobre se por trás da afirmação
desse direito da vítima não vive o reconhecimento de um interesse ou necessidade
relativamente ao qual se pondera a utilidade de certo instrumento para a sua satisfação.
E, por outro lado, parece claro que o respeito pela dignidade pessoal na sujeição ao
exercício do ius puniendi era, sob os postulados kantianos ou hegelianos associados às
doutrinas ditas absolutas, a dignidade do agente do crime, cuja instrumentalização se
rejeitava. Ou seja: a afirmação autónoma da vítima, numa doutrina do crime que faça
relevar um seu direito para fundar a pena, é afinal a afirmação de um terceiro, diferente
do agente cuja dignidade é a pedra de toque das teorias retributivas.
Assim, ultrapassadas algumas possíveis similitudes a um nível de análise mais
superficial, talvez se conclua que as concepções retributivas se distanciam das teorias do
direito da vítima à punição do agente em dois aspectos essenciais: enquanto aquelas
vêem no crime uma ofensa a valores, nestas sobreleva a ideia de que o crime é uma
ofensa a direitos das vítimas; por outro lado, enquanto aquelas fundam a pena numa
ideia de justiça que assenta em um juízo de proporcionalidade entre o mal da pena e o

conjunto de procedimentos que se apresentam como mais adequados à satisfação das necessidades, quer
da vítima, quer do agente.
593
Cornelius PRITTWITZ, (“The Resurrection of the Victim in Penal Theory”, Buffalo Criminal Law
Review, 1999, vol. 3, p. 118).

329
mal que o agente causou ao desrespeitar o valor, estas fundam a pena num juízo de
proporcionalidade entre o mal que ela representa e o mal sofrido pela vítima.
Considere-se, finalmente, a tentativa de relacionar aquelas teorias que fazem
reentrar a vítima no discurso penal com a justiça restaurativa e a relevância que a
reparação dos danos causados à vítima nela assume. A um primeiro olhar – repita-se –
parecem existir fortes vínculos entre esta linha de pensamento e a proposta restaurativa:
pretende-se neutralizar um mal passado com o fundamento da afirmação do direito da
vítima a essa neutralização. A proximidade é, porém, também aqui apenas aparente. Em
primeiro lugar, porque existe uma diferença essencial quanto àquilo que se julga
necessário para neutralizar esse mal (num caso, a punição do agente; no outro a
reparação dos danos da vítima), que só é compreensível no contexto de uma valorização
de distintas necessidades ou interesses das vítimas. Em segundo lugar porque, quando
se aprofunda a reflexão, se acaba por concluir que aquela defesa de um direito
subjectivo da vítima à punição do agente pressupõe uma certa afirmação de uma justiça
absoluta e de uma promoção processual orientada por um estrito princípio da legalidade.
É, nessa medida, uma compreensão dificilmente compatível com a possibilidade de
solução do conflito criminal por meios diversos do exercício do ius puniendi e é,
também por isso, mais uma “opositora” da proposta restaurativa do que uma sua
“cúmplice”.
Não se aprofundará neste momento a crítica daquela afirmação de um direito
subjectivo da vítima do crime à punição do agente, porque se trata de matéria que será
revisitada na terceira parte do estudo. Esclarece-se, porém e para já, apenas que ela não
colhe aplauso, desde logo por não parecer coerente com uma certa compreensão da
função do direito penal enquanto direito orientado para uma protecção estritamente
subsidiária de bens jurídicos594.

594
O entendimento de que este afirmado direito subjectivo das vítimas à punição do agente não é coerente
com a função que se julga ser a do direito penal não ilude, porém, as dificuldades associadas a uma
questão conexa mas distinta, que é a de saber se existe um “dever internacional do Estado de castigar
efectivamente determinados delitos”, dever esse cuja violação poderia acarretar a sua responsabilidade
internacional”. A dúvida surge precisamente na medida em que são alguns instrumentos internacionais de
protecção dos direitos humanos que ao pretenderem, ainda segundo SILVA SÁNCHEZ (últ. ob. cit., p.
166 ss), por exemplo a não aplicação do regime da prescrição, suportam a ideia de luta contra a
impunidade em nome da dignidade das vítimas. O problema, que foi objecto da reflexão do Autor, deve
permanecer, em bom rigor, alheio àquele que é o objecto deste estudo. E julga-se que é assim por várias
razões, nomeadamente porque a promoção, nesse plano internacional, de mecanismos que visam garantir
a possibilidade da punição não equivale à afirmação, em cada caso concreto, da obrigatoriedade dessa
punição em nome das vítimas. Ou seja: apesar de se compreender a necessidade sentida pelo Autor de
questionar o surgimento de tais categorias nesse plano internacional, não se julga que elas sejam
suficientes para suportar a defesa daquele direito subjectivo das vítimas à punição do seu agressor; de

330
5.   Uma “vergonha que reintegra” por oposição a uma “vergonha que
estigmatiza”: uma especificidade da justiça restaurativa?

É comum ao pensamento de vários Autores o reconhecimento de que a ideia de


reintegrative shaming cunhada por John Braithwaite595 constitui um elemento central do
paradigma restaurativo596. De facto, o Autor procura, através daquelas duas palavras,
sintetizar um procedimento mas também as suas finalidades, rejeitando a confusão entre
ambos e rejeitando, também, a compreensão exclusivamente adjectiva da justiça
restaurativa. O processo terá de ser concebido em função das finalidades que através
dele se pretendem atingir, sendo-lhe estas, nessa medida, intrínsecas, mas em outro
sentido exteriores, porque são simultaneamente a inspiração e o critério de controlo.
Procurando explicar a sua teoria, John BRAITHWAITE597 associa o conceito de
shaming a uma manifestação de desaprovação com o objectivo de levar o destinatário a
sentir remorsos pelo mal que causou. Pressupõe uma dependência entre os sujeitos – e
quanto mais forte ela for, maiores são as possibilidades de sucesso da reintegração –,
que faz com que o agente fique consciente do conhecimento, pelos outros, do mal do
seu comportamento, assim como pressupõe que os outros manifestem o seu empenho na
rejeição moral do comportamento desvalioso. A ideia central parece ser a de “marcar”
ou “estigmatizar” o acto como mau, mas procurando preservar a identidade do agente
como “essencialmente boa”.
Esse shaming, porém, só se torna reintegrative quando é seguido por esforços
dirigidos à reintegração do agente na comunidade «através de gestos ou de palavras de
perdão ou de cerimónias para “descertificar” o agente enquanto um desviado». Ainda na
opinião do Autor, a reprovação e a reintegração não ocorrem, assim, de forma
simultânea, mas antes sucessivamente. Pelo contrário, o stigmatizing shaming existiria

forma simplificada, o que se julga é que as vítimas têm o direito ao reconhecimento da sua vitimização, o
que não tem de equivaler a uma efectiva punição do agente, a qual permanecerá necessariamente limitada
pela sua culpa e condicionada à comprovação da sua necessidade.
595
A reflexão sobre o conceito de “reintegrative shaming” enquanto finalidade de um modelo de resposta
ao crime é, no pensamento de John BRAITHWAITE, autónoma face aos seus estudos (em grande parte
posteriores) sobre a justiça restaurativa. Assim, na sua obra Crime, Shame and Reintegration, cuja
primeira publicação é de 1989, o Autor já estabelece as traves mestras da sua teoria, com uma pretensão
de generalidade. Nas suas próprias palavas, “a teoria contida neste livro sugere que a chave para o
controlo do crime é o empenho cultural para envergonhar em moldes que eu chamo reintegradores”
(Crime, Shame and Reintegration, Cambridge: Cambridge University Press, 2.ª ed, 1992, p. 1).
596
Neste sentido, por exemplo, BARBARA HUDSON, “Restorative justice: the challenge (…)” cit., p.
443.
597
John BRAITHWAITE, Crime, Shame and Reintegration cit., ps. 98-104.

331
sempre que se reprova o agente, envergonhando-o, sem que se faça qualquer esforço
para o reintegrar na comunidade. Neste caso, às cerimónias de degradação do
comportamento desvalioso não se sucedem cerimónias de inclusão, permitindo-se que o
agente permaneça rotulado como delinquente.
Como forma de ilustrar aquele conceito de reintegrative shaming, John
BRAITHWAITE faz apelo ao exemplo dos bons pais, que conseguem tornar claro o seu
sentimento de desaprovação perante um mau comportamento dos filhos sem que,
todavia, estes se sintam rejeitados ou menos queridos. O Autor, em momento posterior,
considera que deve ser este o sentido da resposta restaurativa ao crime.
Pelo contrário, parece ser opinião do Autor a de que o sistema de justiça criminal
tenderia para uma reprovação causadora de estigmatização, sendo que o rótulo se fixaria
na pessoa e não no seu acto. As consequências dessa estigmatização seriam de tal modo
vastas e incontornáveis que o agente, quando sujeito ao processo penal, se preocuparia
sobretudo em evitá-las, negando o seu acto. O agente do crime, em vez de ser
incentivado a reconhecer o seu comportamento desvalioso, incentivado ao
arrependimento e à reparação, seria compelido à negação. Ainda segundo John
BRAITHWAITE, a justiça restaurativa afastar-se-ia deste modelo por supor um outro
procedimento para atingir distintas finalidades: através de um encontro entre todos os
envolvidos, os seus próximos e os representantes da comunidade, deve manifestar-se de
forma vincada a rejeição face ao acto delituoso e deve sublinhar-se a necessidade de
proteger a vítima e de reparar, na medida do possível, os danos por ela sofridos.
Todavia, deve garantir-se também ao agente que ele permanece um membro de pleno
direito do grupo e que se acredita na sua vontade e capacidade para reorientar o seu
comportamento num sentido de maior cuidado e respeito pelos outros.
A esta teoria subjaz, como elemento nuclear, a ideia de que através daquela
“reprovação reintegradora” se contribuirá para uma diminuição da criminalidade no
futuro, na medida em que, não deixando de se sublinhar o desvalor da conduta, se
admite a sua superação através da reparação dos danos que foram causados. Isto é
considerado adequado à integração comunitária do agente, que assim tenderá a adoptar
um comportamento adequado no futuro. Enquanto a estigmatização potencia o risco do
cometimento de crimes no futuro (e é muito visível nesta linha de argumentação a
influência da teoria da etiquetagem), este “acto de envergonhar reintegrador” reduzi-lo-
ia.

332
O conceito de reintegrative shaming é questionável a vários níveis, sendo os
primeiros o da sua possibilidade de eficácia e o da sua (ausência de) novidade. Do que
se pode duvidar é, no fundo, da possibilidade de através da adição da reprovação com
actos de inclusão do agente se obter a reintegração. Será suficiente rodear esses actos de
um cerimonial de aceitação, como parece supor Braithwaite? Ou exigir-se-ão medidas
mais complexas e morosas, porventura de natureza assistencial? Mas, se esta última
hipótese for a correcta, o que distingue esta reprovação seguida de inclusão dos
mecanismos, que o sistema penal já conhece, orientados para a reintegração depois da
condenação?
A objecção maior a esta teoria que pretende fundar a autonomia da proposta
restaurativa na rejeição do comportamento e não na rejeição do autor do
comportamento é, assim, a de ela ser inadequada à distinção entre a justiça
restaurativa e uma justiça penal que seja – como deve ser – também ela baseada em um
estrito direito penal do facto, e não já do agente. E que, para além disso, assuma como
finalidade a reintegração do agente através da sua socialização.
Finalmente, deve ainda notar-se que o conceito de reintegrative shaming
cunhado por Braithwaite começou a ser sujeito a crítica no seio da própria teoria
restaurativa. Roger MATTHEWS, por exemplo, afirma que “a lua de mel acabou. A
ilusão romântica de que o encontro entre a reintegrative shaming (a teoria) e a justiça
restaurativa (a prática) seria capaz de produzir uma transformação progressiva do
sistema de justiça criminal centrado no Estado esgotou-se”. Para o Autor, as críticas a
que as práticas restaurativas começaram a ser sujeitas a partir do final do século passado
prendem-se, sobretudo, com a adopção “em larga escala da tese de reintegrative
shaming elaborada por John Braithwaite em Crime, Shame and Reintegration”. As
razões que aponta são várias. Entre elas, pode vincar-se a rejeição do carácter nuclear
que a vergonha (considerada uma “emoção extremamente destrutiva” e em decadência
no sistema sancionatório dos últimos séculos) assume na teoria de John Braithwaite.
Questiona, ademais, se a possível interferência estadual nessa “vergonha reintegradora”
não poderá envolver uma “cumplicidade perigosa entre o Estado e as multidões”,
promovendo-se um “espírito de indecência pública e de brutalidade”. E Roger
MATTHEWS também interroga a compatibilidade (que parece improvável) desse “acto
de envergonhar” com a promoção da dignidade das pessoas que cabe ao Estado. A estes
argumentos acrescem outros, de índole mais pragmática, associados ou à dificuldade em
provocar a vergonha naqueles cujas representações sobre o dever ser apresentam a nota

333
da diferença, ou à dificuldade em comprovar a verdadeira eficácia preventiva das
práticas inspiradas nesta teoria598.

6. Uma finalidade específica da justiça restaurativa: a reparação dos danos


sofridos pela vítima

A partir do momento em que se eleva a reparação dos danos causados pelo crime
a finalidade da justiça restaurativa, surge a necessidade de se clarificar o seu sentido. E
a importância dessa reflexão é acrescida não só pela crítica frequente a que a proposta
restaurativa tem sido sujeita de assumir como seus uma multiplicidade de objectivos de
contornos imprecisos599, mas também pelo reconhecimento da existência de outros
pensamentos da reparação inerentes a outros sentidos de resposta ao crime600.
Assumindo a ideia de reparação carácter nuclear na definição da justiça
restaurativa, um dos problemas que primeiramente se põe é o de saber se haverá aí algo
de distinto relativamente àquele que já é o sentido das respostas dada pelo direito civil
(através, nomeadamente, do instituto da indemnização por perdas e danos associada à
responsabilidade extra-contratual), assim como pelo direito penal e pelo direito
processual penal (através de vários mecanismos voltados para a protecção da vítima,
alguns dos quais especificamente direccionados para a reparação). Como sublinha
Joanna SHAPLAND, a orientação do pêndulo da justiça penal de novo para as

598
Cfr. Roger MATTHEWS, “Reintegrative shaming and restorative justice: reconciliation or divorce?”,
Institutionalizing Restorative Justice, Eds. Ivo Aertsen/Tom Daems/Luc Robert, Devon: Willan
Publishing, 2006, p. 237, ps. 241-245.
599
Neste sentido, cfr., por todos, Andrew VON HIRSCH/Andrew ASHWORTH/Clifford SHEARING,
(“Specifying Aims and Limits for Restorative Justice: A “Making Amends” Model?”, Restorative Justice
and Criminal Justice – Competing or Reconciliable Paradigms?, Ed. Andrew von Hirsch/Julian
Roberts/Anthony Bottoms/Kent Roach/Mara Schiff, Oxford: Hart Publishing, 2003, p. 22), que apontam,
precisamente, “os objectivos múltiplos e pouco claros” da justiça restaurativa, nomeadamente «a
reparação dos danos causados à vítima, o reconhecimento pelo agente do crime do seu erro, a “cura” do
conflito entre o agente e a vítima, a reparação da brecha no sentimento de segurança da comunidade, a
protecção da comunidade contra infracções futuras, a diminuição do medo do crime». A necessidade de
clarificação do sentido da reparação restaurativa é sublinhada, entre outros, por Katherine DOOLIN (“But
what does it mean? Seeking definitional clarity in restorative justice” cit., p. 432), que formula várias
interrogações: “O que significa reparação? Quem são os destinatários da reparação? Até que ponto se
estende a reparação da vítima? Deve a reparação alargar-se a outros intervenientes, incluindo o agressor e
a comunidade? Deve a reparação referir-se à reintegração da situação anterior ao crime ou deve ser
transformativa? Deve essa reparação operar a um nível micro-social ou a um nível macro-social?”.
600
Como se verá, o pensamento da reparação penetrou, também, quer o pensamento penal, quer o
processual penal, mesmo que com cautelas. Para já, tenha-se em conta, a título de exemplo, a afirmação
de Fernanda PALMA de que a reparação é uma “função implícita do Processo Penal público”, ainda que
com limites, para se lhe não atribuir uma “função que ele é incapaz de desempenhar” e que o tornaria
“instância de agudização dos conflitos e não da sua racionalização” [cfr Maria Fernanda PALMA, “O
problema penal do processo penal”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais,
Coimbra: Almedina, 2004, p. 51].

334
estratégias de reabilitação e de tratamento adopta com frequência a “retórica da justiça
restaurativa” e o pensamento da reparação, mas tende a ignorar as ideias de “encontro”
e de “resolução colectiva”601.
A opinião de que se parte é a de que a reparação dos danos sofridos pela vítima
que a justiça dita “tradicional” já assume como tarefa sua se distingue, qualitativamente,
daquela que é a reparação restaurativa. E também se julga que a resposta restaurativa se
pretende diversa daquela que resultaria da mera adição dos resultados tradicionalmente
obtidos no plano cível e no plano criminal.
Todavia, antes de se enfrentar o problema de saber em que medida é essa
reparação restaurativa diversa de outras formas de reparação dos danos sofridos pela
vítima de um crime, cumpre sublinhar que é do dano causado a uma vítima concreta e
presente que aqui se trata. Esta afirmação, a um primeiro olhar redundante, parece
dever ser vincada logo como ponto de partida na medida em que, como afirma Augusto
SILVA DIAS, “o conceito de dano, em íntima parceria com os conceitos de direito
subjectivo e de bem, é fundamental para a racionalização do conceito material de
crime”602. Ora, não será este dano (em um sentido amplo, que também engloba o
perigo) aquele que a justiça restaurativa assume como finalidade reparar. A descoberta
desse “dano”(e também do perigo), que foi essencial no processo de modernização do
direito penal, é a descoberta de que a existência de um crime pressupõe a verificação de
um requisito de ofensividade para um valor penalmente reconhecido, devendo
considerar-se irrelevantes os meros desvalores de acção a que não corresponda um certo
dano ou um certo perigo para um bem jurídico. O dano que a intervenção restaurativa
pretende reparar é um dano de outra natureza, o dano sofrido pelos concretos
intervenientes no conflito (inter)pessoal que o crime também é 603. A um “dano social”

601
Joanna SHAPLAND, “Restorative Justice and Criminal Justice: Just Responses to Crime?”,
Restorative Justice and Criminal Justice – Competing or Reconciliable Paradigms?, Ed. Andrew von
Hirsch/Julian Roberts/Anthony Bottoms/Kent Roach/Mara Schiff, Oxford: Hart Publishing: 2003, p. 198.
A Autora dá o exemplo das reparation orders admitidas na Inglaterra, que podem incluir trabalho
prestado à vítima, sendo que se exige o seu consentimento, mas não a sua participação no processo de
decisão quanto à medida.
602
E o Autor acrescenta (“Delicta in se” e “Delicta mere Prohibita”, cit., p. 113) que “não se limita a
isso, contudo, a função do dano: ele penetra na dogmática do crime, quer no que diz respeito à estrutura e
graduação do ilícito, configurando aquilo a que chamamos hoje um desvalor do resultado, quer dando
corpo a uma causa de exclusão da responsabilidade (da tipicidade, como diríamos hoje) por ausência do
dano no caso concreto”.
603
Apesar da possibilidade de autonomizar, no plano dos conceitos, o dano social e o dano individual que
o crime comporta, parece poder admitir-se a ideia, defendida por autores como Pablo Galain PALERMO,
da impossibilidade de total dissociação da ofensa a um bem jurídico, por um lado, da ofensa a interesses
dos indivíduos, por outro. Nessa perspectiva, poder-se-ia considerar, ainda de forma simplificada, que a
ofensividade a um bem jurídico que ganha relevo no direito penal por força da sua dimensão colectiva

335
que é o sobretudo pressuposto pelo conceito material de crime e que desencadeia a
possibilidade de sujeição a uma sanção penal contrapõe-se um “dano pessoal” que
desencadeia a necessidade de uma reparação restaurativa604.
Todavia, mesmo quando se olha para o dano causado à vítima – nesta outra
pespectiva que não é aquela que funda a afirmação de que também a intervenção penal
pressupõe a ocorrência de um certo dano –, verifica-se que a preocupação com a
reparação desse dano causado à vítima concreta e presente não é exclusiva da justiça
restaurativa. Assim sendo, se aquilo que metodologicamente se impõe é uma
caracterização da reparação restaurativa que procure sublinhar os seus traços distintivos
face a outras reparações que o nosso sistema jurídico já conhece, talvez possa tomar-se
como pólo inicial de reflexão crítica a ideia de Hans SCHNEIDER de que “há que
conceber a reparação como um processo de interacção (de acção recíproca) entre o
agente, a vítima e a sociedade, que cura o conflito criminal e restabelece a paz entre os
envolvidos. Não se trata, precisamente, de pagar uma certa quantidade de dinheiro e de
articular alguns pedidos de desculpa feitos à pressa. A reparação é um processo criativo,
uma contribuição pessoal e social que requer um esforço supremo de confissão e de luto
psíquico e social por parte do agente do crime, com o qual este assume perante a vítima
e perante a sociedade a sua responsabilidade pelos delitos”605.
O que parece certo, quando se pretende reflectir sobre a reparação, é o
crescimento – muito relacionado com o fortalecimento do pensamento vitimológico e
com a consequente relevância que a “questão da vítima” vem assumindo no discurso

como que “amplifica” ofensas que têm, também, um cariz de dano individual, que pode ser mais ou
menos vincado. Nas palavras de PALERMO, “o conceito de bem jurídico não se refere em exclusivo à
protecção de valores, funções ou unidades funcionais de valor, mas sim a bens que constituem interesses
directos dos indivíduos. Estes bens com relevância social podem ser bens individuais e colectivos,
consoante quem seja o seu titular. Apenas uma orientação para os interesses imediatos das pessoas pode
compatibilizar-se com uma reorientação para a vítima, mesmo quando se trate de bens jurídicos
colectivos” (La reparación del dano a la víctima del delito, monografias 684, Valência: tirant lo blanch,
2010, p. 83).
604
Note-se, porém, que esta diferenciação não começou por ser absolutamente clara. Assim, quando
Augusto SILVA DIAS (últ. ob. cit., p.112) refere que “a definição material do crime é anterior a Beccaria
e pode encontrar-se já na ciência jurídico-penal de influência iluminista”, destacando o contributo de
Regner Engelhard e a sua ideia de que “todo o crime, para o ser, produz uma ofensa, a qual consiste na
lesão de um direito pertencente a uma pessoa”, parece não se distinguir ainda de forma evidente o dano
que é contra a vítima do crime e o dano que é “social” porque é contra um valor que o direito penal erige
a bem jurídico. Aliás, SILVA DIAS esclarece em nota de rodapé subsequente que “o conceito de bem já é
usado na ciência jurídico-penal da segunda metade do século XVIII para caracterizar o conceito material
de crime. A sua utilização é feita, contudo, em paralelo com o conceito de direito subjectivo e assim
sucederá até Birnbaum os colocar em oposição” (últ. ob. cit., p. 113).
605
Hans SCHNEIDER, “Recompensación en lugar de sanción: restabelecimiento de la paz entre el autor,
la víctima y la sociedad”, Derecho Penal y Criminologia, n.º 49, Jan-Abril de 1993, p. 159.

336
político-criminal606 – da exigência de que ela efectivamente tenha lugar607. Surgem, por
isso, em distintos ramos do ordenamento jurídico, institutos orientados para a
neutralização dos danos sofridos pelas vítimas de crimes. Eles parecem, porém, com
frequência pouco concatenados e com objectivos e limites nem sempre muito claros.
Nesse “universo de reparações” justifica-se, portanto, uma tentativa de compreensão
daquilo que de específico vive – se é que vive – nessa reparação assumida como
finalidade pela justiça restaurativa.
Em jeito de antecipação e antes da ponderação de alguns aspectos atinentes às
especificidades da reparação restaurativa, esbocem-se algumas considerações genéricas.
O ponto de que se deve partir para a compreensão da reparação restaurativa é o
da especificidade e da amplitude do dano inerente ao crime. De forma muito
simplificada, poder-se-ia afirmar que ser-se vítima de um crime é “especialmente
traumático”, na adjectivação de Howard ZEHR, em Changing Lenses. E, em resposta à
interrogação precisamente sobre as razões pelas quais o crime é tão “traumático” e
“devastador”, o Autor considera que isso se explica pela “violação do eu” que lhe é
natural. O crime seria uma espécie de “dessacralização” da vítima, daquilo que ela é e

606
Com importância para a compreensão desta questão, cfr. Manuel da COSTA ANDRADE, “O Novo
Código Penal e a Moderna Criminologia”, in Jornadas de Direito Criminal, CEJ: 1983, p. 187 ss. O
Autor afirma que “a reparação da vítima readquiriu o seu significado penal originário, funcionando hoje
já como forma de sanção, já como expediente de diversão, já como critério da concessão de benefícios
(…), já como reivindicação dirigida directamente ao Estado, como expressão maior da solidariedade
institucionalizada ou como responsável último pela ocorrência do crime” (p. 199). E acrescenta que a
recuperação penal da ideia de reparação se justifica ainda «tanto em nome das ideias de humanização da
justiça como do ideário da ressocialização do delinquente. Pois se se reconhece – citando Schätzler – que
a humanização da justiça “será sempre inacabada enquanto se abandonar a vítima ao seu destino”,
reconhece-se igualmente que a reparação do mal causado pode levar o delinquente a aceitar a pena e
consequentemente a assumir e a transmitir de si próprio uma imagem de responsabilidade, decisiva para a
evicção de uma carreira de delinquente» (p. 215).
607
No pensamento de Raúl ZAFFARONI («Una investigación notable de Giuliano Vassalli: la “fórmula
de Radbruch”», Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2003, p. 174), por exemplo, é muito clara essa exigência de reparação, ainda que em moldes e
com argumentos que se julgam discutíveis. Em busca de uma solução para a “cultura de impunidade” que
caracteriza nomeadamente a resposta (ou a ausência dela) aos comportamentos de “ditadores militares e
seus cúmplices” que foram autores de crimes contra a humanidade, o Autor considera a questão da
imprescritibilidade. No que respeita ao tema em análise – o da reparação –, considera que “se o genocídio
é penalmente imprescritível, também o é civilmente e, por isso, ficam abertas as vias para a sua
reclamação por parte dos lesados ou dos seus descendentes (…). Pouco interessa que os autores tenham
morrido se as consequências persistem, ou seja, se populações inteiras têm menores expectativas de vida e
subsistem em limites de miséria como consequência desses crimes”. Depois de considerar que há que pôr
na agenda da discussão internacional esta questão do direito à reparação, ZAFFARONI afirma os
escassos avanços verificados nesta matéria, cuja importância lhe parece superior à do Tribunal Penal
Internacional: “este último é de inquestionável importância, mas será sempre um tribunal penal e – como
é sabido – a justiça penal é selectiva, recai sobre os que perderam a cobertura do poder e chega quando os
factos já ocorreram. As características estruturais do poder punitivo não desaparecerão por ele se tornar
internacional”. Conclui sublinhando a necessidade de se trilhar o caminho de um “muito mais promissor
Tribunal de Reparações Internacional (ou tribunal civil internacional)”.

337
daquilo em que acredita, do seu espaço pessoal. E ZEHR acrescenta que o crime põe em
causa duas crenças básicas em que as pessoas fazem assentar a paz das suas vidas: a
convicção de que o mundo é um lugar ordenado e que “faz sentido” e a crença na
autonomia pessoal608.
A segunda ideia estrutural de que se parte é a de que a recuperação do sentido de
autonomia abalado pela vitimização (importante para a densificação do conceito de
“reparação”) pode ocorrer por diversas formas, em função dos distintos modos de
reacção das vítimas. Ainda segundo ZEHR, algumas vítimas conseguem recuperar o
sentido da sua autonomia “simplesmente vivendo de forma bem sucedida, tornando-se
sobreviventes”. Outras adoptam elas próprias medidas orientadas para a segurança, com
o objectivo de sentirem que recuperaram o domínio sobre as suas vidas. Existirão ainda
vítimas para quem a recuperação desse sentimento de autonomia não prescinde da
punição do agente, e outras que talvez preferissem mesmo o exercício da vingança
pessoal. Porém, algumas vítimas sentirão necessidade de compreender o acontecimento
que foi o crime através de uma exploração dos seus sentimentos sobre ele e também das
razões do agente, em moldes que pressupõem um encontro e, eventualmente, o perdão
ou a pacificação609.

608
Howard ZEHR, Changing Lenses – A new focus for crime and justice, Ontário: Herald Press, 3ª ed. (1ª
ed. de 1990), 2005, p. 24.
609
Cfr. Howard ZEHER, últ. ob. cit., p. 52. A possibilidade do perdão, mas não a sua afirmação enquanto
finalidade, deve relacionar-se com o seu carácter enigmático e insólito que “desata o nó do rancor”, com o
seu surgimento quase como uma “graça”, como assinalou Vladimir JANKÉLÉVITCH em Le Pardon,
Paris: Aubier-Montaigne, 1967, p. 12. Apesar de reconhecer a dificuldade do perdão “pur de toute
arrière-pensée”, o Autor aponta a compreensão como caminho para o perdão, assim como o
reconhecimento da culpa e o arrependimento por parte daquele que precisar de ser perdoado, ideias que
perpassam muito do pensamento sobre as práticas restaurativas. A problemática do perdão foi,
posteriormente, retomada por Jacques DERRIDA, a partir de uma certa crítica ao pensamento de
Jankélévitch, considerado inconsequente na medida em que parecia impor limites à possibilidade de
perdão e reconciliação, nomeadamente no que respeitava a crimes cometidos pelos nazis durante o
Holocausto. Parte-se, agora, da ideia de que a virtude está em perdoar o imperdoável e de que o perdão é
alheio ao político e ao jurídico. Cfr. Jacques DERRIDA, Foi et Savoir – suivi de le Siècle et le Pardon
(entretiens avec Michel Wieviorka), Paris: Seuil, 2000, p. 104 ss. Não deixando de admitir a
impossibilidade de aceitação, em alguns casos, do pedido de desculpas, Teresa BELEZA reconhece a sua
importância. Nas suas palavras, “um pedido de desculpas pode em certas circunstâncias ter um valor
extraordinário. Os sistemas penais tendem em geral a desconsiderar esta questão, porque se centram numa
lógica de direito público (…). O pedido de desculpas revela consideração pelo outro, a consideração que é
negada pela prática do crime. E isto pode ser, do ponto de vista da pacificação social, muito importante”
(Teresa BELEZA “Reconciliação, culpa e castigo. Uma reflexão a partir de Oshima e Coetzee”,
Homenagem de Viseu a Jorge de Figueiredo Dias, coord. Paulo Pinto de Albuquerque, Coimbra:
Coimbra Editora, 2011, p. 72). Francesco ZINI, por seu turno, distingue um “perdão jurídico” e um
“perdão filosófico”, considerando que sob aquele primeiro enfoque “o perdão é um acto jurídico que
pertence à esfera do direito” e cuja estrutura assenta num acto de renúncia à resposta a um acontecimento
desvalioso (Il Perdono come Problema Filosofico Giuridico, Turim: Giappichelli Editore, 2007, p. 7 ss).
Com relevância para o objecto deste estudo, pondere-se sobretudo a análise feita pelo Autor dos efeitos de
reconciliação ou de reeducação que o perdão pode ter e a sua compreensão da especificidade da
reconciliação enquanto forma necessariamente relacional ou bilateral (ob. cit., p. 10 ss, p. 24). ZINI

338
Em adição ao que se vem de afirmar, note-se que o conceito de reparação
restaurativa surge com um âmbito que se pretende mais amplo, também na medida em
que se funda na afirmação e no estudo, por outros ramos do conhecimento de que são
exemplo a psicologia forense ou a vitimologia, de um conjunto de lesões psíquicas
associadas à vitimização, as quais, em função da variedade dos seus contornos,
tornariam necessárias “complexas formas de assistência e de tratamento psicológico”610
às vítimas. Por outro lado, e com não menos importância, para além desses danos
invisíveis mas de cariz individual, surge a afirmação de outros danos, também invisíveis,
mas agora de cariz relacional611. E, tanto relativamente a uns como no que respeita aos
outros, reivindica-se a necessidade de uma reparação.
As afirmações feitas nos parágrafos anteriores convergem na conclusão da
amplitude da reparação que, na justiça restaurativa, se julga necessária como forma de
reacção ao crime. O facto de se entender que o crime prejudica uma certa compreensão
organizada da vida, destruindo o sentido de autonomia porque pressupõe uma invasão
violenta do espaço individual da vítima, ajuda a justificar a defesa de sentidos de
resposta em que se advoga a reafirmação dessa autonomia612. A perda de controlo sobre

parece acabar por concluir, porém, pela não associação do “per-dono” à renúncia à punição, antes
defendendo a compreensão “no conceito de perdão da plena execução sancionatória”, na medida em que
o sujeito punido é perdoado “no sentido em que lhe é reconhecida a máxima dignidade como pessoa,
expressa no rigoroso reconhecimento do exercício da liberdade pessoal e logo da sua responsabilidade”
(ob. cit., p. 221). O que sobretudo se quis vincar, através desta referência, foi a possibilidade de se olhar
para o perdão de forma diversa da que é corrente nos estudos restaurativos, não já como factor que
permite a não intervenção punitiva, mas antes como resultado que se atinge através da punição.
610
A expressão foi utilizada por António GARCÍA-PABLOS DE MOLINA (“Principales centros de
interés de la investigación criminológica”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo
Dias, Vol. III, Coimbra Editora: 2010, ps. 1286-7) a propósito de uma reflexão sobre a vitimologia
centrada nas recentes descobertas e delimitação do conceito de “lesão psíquica”. A esse propósito, afirma
que “as lesões psíquicas mais frequentes são os quadros mistos ansioso-depressivos, o transtorno por
stress pós-traumático e o transtorno por stress agudo, os transtornos adaptativos mistos e os transtornos da
personalidade de base”. O Autor acrescenta que “a vitimização psíquica nos crimes violentos é o
fenómeno mais estudado” e refere as formas de manifestação que pode assumir: “a vítima destes
acontecimentos criminais padece de sentimentos incontroláveis de humilhação, ira, de vergonha e
impotência. A sua preocupação constante e obsessiva com o acontecimento traumático (a
reexperimentação do trauma) e o temor de que se repita, geram nela um profundo abatimento, quadros
depressivos severos e sensações inquietantes de insegurança. A vítima sente uma significativa perda de
confiança em si própria, e de auto-estima, e de confiança nos outros (…). Sofre transtornos físicos,
disfunções sexuais, crises de ansiedade e alterações profundas das suas relações interpessoais que a
conduzem ao alheamento e à marginalização social”.
611
Kathleen DALY e Russ IMMARIGEON (“The past, present and future of restorative justice: some
critical reflections”, Contemporary Justice Review, 1998, vol. 1, p. 21 ss) mencionam a ruptura dos laços
sociais e das relações entre a vítima, o agressor e a comunidade e a conveniência de favorecer o
reatamento desses laços e relações.
612
Ainda neste sentido, cfr. Howard ZEHR , Changing Lenses cit., p. 25, que afirma o modo como o
crime faz com que as vítimas se sintam “vulneráveis, indefesas, fora de controlo, desumanizadas” e que
considera que a recuperação (através da reparação) pressupõe respostas às interrogações inerentes a esta
desorganização do mundo pessoal. Essa “reorganização” de que fala o Autor relaciona-se com a

339
a própria vida que parece inerente ao tempo e ao espaço da vitimização impõe uma
definição da reparação centrada na recuperação desse controlo perdido. Sobretudo por
esta razão, a reparação restaurativa não se compreende caso não corresponda aos
sentimentos e à vontade da vítima, quer no procedimento conducente à sua
determinação (o que é coerente com a exigência de voluntariedade), quer na
modelação do conteúdo desta reparação.
Existe, ademais, uma razão essencial pela qual a compreensão das necessidades
e da vontade da vítima é indispensável, na forma como a própria as manifesta: como
também nota ZEHR, “só uma vítima pode responder com autenticidade [sobre aquilo de
que precisa para recuperar] e as necessidades variam de pessoa para pessoa”613.
Contra esta necessidade de reparação e/ou contra a possibilidade de ela ser eleita
finalidade de uma resposta ao conflito criminal podem esboçar-se vários argumentos.
De forma genérica, pensa-se que muitos deles estão associados à ideia de que ou não há
nada, em muitos casos, para reparar (para além da validade da norma violada) ou, então,
aquilo que na perspectiva da vítima careceria de reparação não é susceptível de ser
reparado, porque aquilo que se perdeu é, de certo modo, definitivo. Quando se parte do
princípio de que a reparação do dano causado ao bem jurídico é assunto da justiça penal,
verifica-se que a reparação tida em conta pela justiça restaurativa é outra. Nesta, a
necessidade de reparação tem como sujeitos ou os indivíduos considerados na sua
singularidade ou os indivíduos considerados na sua relação com outros indivíduos. Esta
reparação refere-se, portanto, aos danos que afectam os sujeitos intervenientes no
conflito criminal ou os danos relacionais. E parece ter de se admitir que alguns desses
danos serão, em certa medida, definitivos – tome-se como exemplo a perda de uma vida
associada a um crime de homicídio. Assim sendo, parece legítima a interrogação sobre
o sentido de pretender reparar o irreparável.
O que a este propósito se julga que merece ser vincado é que por reparação não
se pode aqui entender a exigência de uma composição absoluta ou um apagamento total
dos males ocasionados pelo crime. Essa impossibilidade, em alguns casos, de uma
neutralização de todos os males associados ao cometimento do crime não deve obstar à
reparação possível de alguns deles. Ou seja: pode pensar-se que mesmo perante os
crimes mais graves (ou, porventura com mais correcção, sobretudo relativamente às

passagem para uma fase de compreensão do facto de que já não se é dominado pelo agressor, o que,
sobretudo no caso dos crimes mais graves, integra a compreensão de que já não se é uma vítima, mas
antes um sobrevivente.
613
Howard ZEHR, últ. ob. cit., p. 26.

340
consequências associadas ao cometimento dos crimes mais graves) existem medidas
que podem contribuir para uma diminuição do sofrimento das vítimas e para uma
afirmação do sentido de responsabilidade do agente. Como nota António BERISTAIN,
«as vítimas podem acabar por compreender algo muito difícil: a superação gratificante
das “situações limite”, na formulação de Karl Jaspers. Ou seja, da morte, do delito, do
sofrimento, da culpa… Como convincentemente indica Schumacher, no seu profundo
livro Small is Beautiful (London, 1973), os conflitos mais graves, os divergentes, apesar
de logicamente não terem “saída”, têm-na “metalogicamente”, pois introduzem-nos “em
outra verdade, outra beleza e outro amor”, com mais e melhor qualidade»614.
A ideia forte que se pretende sublinhar é, assim, a de que o reconhecimento de
uma nova amplitude e variedade dos danos pode justificar um novo âmbito da sua
reparação. Entre os cultores da proposta restaurativa, vai-se mais longe e apresenta-se
como uma exigência de justiça a reparação desses danos, invocando-se que “a reparação
não é meramente uma opção; a justiça exige que sejam feitos esforços para se lograr a
reparação daqueles directamente afectados pelo crime. Para satisfazer a justiça a noção
de reparar os danos tem de ir além dos danos físicos e materiais e abranger os aspectos
emocionais, envolvendo tentativas de reintegração do respeito próprio das vítimas, do

614
António BERISTAIN “Palacio de Justicia com tejado a cuatro aguas: derecho penal, criminologia,
victimología y religión”, Universitas Vitae: Homenaje a Ruperto Nuñez Barbero cit., p. 89. A partir da
referência feita pelo Autor espanhol ao estudo mais conhecido de Ernst Friedrich SCHUMACHER, e
sabendo-se que a análise deste é de índole muito mais económica do que jurídica ou criminológica,
procuraram-se as razões para a sua citação em uma reflexão delimitada pela criminalidade e pelas
respostas que se lhe pode (ou se lhe deve) dar. Na interpretação que se julga cabida, a transposição do
pensamento de Fritz Schumacher para o discurso político-criminal prende-se com a relevância que ele
atribui a factores não económicos para a tomada de decisões e à sua afirmação de que há uma “escala
humana” que delimita necessidades individuais, não compreensíveis em uma escala mais ampla. No
prefácio de John McClaughry à obra Small is Beautiful – Economics as if People Mattered, de E. F.
Schumacher, Nova Iorque: Harper Perennial, 1989 (1.º edição de 1973), p. xiii, sublinham-se duas ideias
fortes do Autor, essenciais para a compreensão da conexão entre o estudo económico e as preocupações
“restaurativas”: “a importância de recuperar um conjunto de convicções sobre uma vida correcta e uma
sociedade correcta num mundo em que a procura de produtividade, eficiência e lucro rápido são
dominantes; a necessidade de regressar às quatro virtudes cardeais: prudentia, justitia, fortitudo e
temperantia”. O que também se não pode deixar de notar é a associação do pensamento de Schumacher a
um determinado tempo e contexto sócio-cultural que é o contexto do próprio nascimento da proposta
restaurativa, contexto que a obra citada relaciona com o fortalecimento da new left e que, no panorama
criminológico, é contemporâneo da crítica das instâncias de controlo, da afirmação da individualidade e
do seu potencial criador, da defesa do indivíduo, das suas necessidades e da sua liberdade em detrimento
da defesa da sociedade toda. A proximidade entre o pensamento de Schumacher e algumas ideias centrais
da criminologia crítica é notória, por exemplo, na sua afirmação de que «é largamente reconhecido que
todas as pessoas são boas quando nascem; se alguém se torna um criminoso ou um explorador, a
responsabilidade é do “sistema”. Não há nenhuma dúvida de que “o sistema” é em muitos aspectos mau e
tem de ser mudado» (ob. cit., ps. 13-4).

341
seu sentimento de segurança e da noção de empowerment do conflito, assim como do
sentimento de pertença e de reintegração na comunidade do agressor”615.
Compreende-se, porém, a objecção que – mesmo a partir da aceitação desses
danos de cariz mais emocional ou relacional e da afirmação da conveniência de os
reparar – pode de imediato assaltar o espírito de um jurista confrontado com tais
desígnios. Tentar-se-á apresentá-la na sua forma mais simples: caberá ainda ao “mundo
do direito”, e especificamente ao sistema de justiça penal, ocupar-se dessas dimensões
“terapêuticas” ou “assistenciais”, mesmo que relacionadas com o cometimento de um
crime? Não deverão tais aspectos ser remetidos para instâncias funcionalmente mais
adequadas? E não existirão já tais instâncias, revelando-se desnecessária toda esta
recente construção teórica e também da praxis em torno da justiça restaurativa? O que
se julga é que as considerações atinentes à delimitação dos âmbitos de estudo e de
intervenção sobre os comportamentos humanos, que fundam a interrogação, são
tendencialmente correctas. Por isso, não se vê que deva caber ao direito penal e ao
direito processual penal uma qualquer finalidade principal de reparação dos danos
causados à vítima que comporte uma intervenção de índole assistencial que seja
exclusiva ou suficiente.
Do reconhecimento de uma necessidade de reparação com novos e mais amplos
contornos e do reconhecimento de que o sentido da intervenção do direito penal e do
direito processual penal não é primeiramente esse (por mais que a reparação seja
admitida e até desejável quando for compatível com as finalidades especificamente
penais616), decorre a abertura de um espaço que se julga que será o da justiça

615
Katherine DOOLIN, “But what does it mean? Seeking definitional clarity in restorative justice” cit., p.
432. Outra Autora que refere a “existência de dados que sugerem que as vítimas vêem com frequência
como mais importante a reparação emocional do que a reparação material ou financeira” é Heather
STRANG (“Justice for victims of young offenders: the centrality of emotional harm and restoration”,
Restorative Justice for Juveniles – Conferencing, Mediation and Circles, Eds. A. Morris/G. Maxwell,
Portland: Hart Publishing, 2003, p. 184).
616
O pensamento da reparação tem larga tradição na doutrina penal portuguesa, e julga-se que se podem
autonomizar nessa história duas tendências dominantes, que se prendem com o sublinhar da sua
necessidade, por um lado, e com o apontar da sua diferente natureza face às sanções penais. A título de
exemplo do que se vem de afirmar parecem especialmente enfáticas as palavras de António AYRES
GOUVEIA (A Reforma das Cadeas em Portugal – Resposta ao Ponto proposto pela Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1860, p. 19) sobre o modo de
reagir ao crime: “para restituir o estado e curso anterior, que era o verdadeiro e philosophico, destruindo
essa transformação irracional, perniciosa, deve empregar-se a pena e a reparação. Pena é a condição
necessária para reconduzir ao caminho do seu destino superior o indivíduo por qualquer subjectiva causa
transviado. Reparação é a condição necessária para reconduzir ao caminho do seu destino superior o
individuo desviado por qualquer causa objectivamente maléfica. A primeira deve attingir, inteira e
immediatamente, o delinquente e só a elle; a segunda deve attingi-lo, até onde possível e mediatamente,
preenchendo o resto a sociedade. Não nos aperta discutir aqui estes dois importantíssimos sujeitos (…) os
princípios da reparação não fazem parte do ramo de direito que nos occupa. Não obstante, sempre

342
restaurativa. Dito isto, sobra um remanescente de interrogação: a ser assim, a tratar-se
aqui de uma dimensão do crime distinta daquela que funda a necessidade de resposta
penal (e de punição), o que justifica uma abordagem da proposta restaurativa – como
sucede neste estudo – orientada para uma compreensão conjunta com a resposta dada ao
crime pela justiça penal? A razão parece simples: a importância da concatenação das
diversas formas de resposta ao acontecimento criminal, na medida em que se pretenda
maximizar a utilidade de cada uma também à luz da obtenção das finalidades da outra,
em moldes que não prejudiquem a melhor prossecução das suas específicas finalidades.
Julga-se que a integração dessas diversas formas de resposta a distintas dimensões do
crime pode ser vantajosa para a vítima (em muitos casos, a resposta dada à dimensão
pública do crime não satisfaz todo o seu sentimento de justiça) e pode ser vantajosa para
o agente do crime (nomeadamente quando a responsabilização e a reparação voluntárias
contribuírem para uma menor punição e uma mais fácil reintegração na comunidade),
acabando por assim se favorecer a pacificação social.
A referência feita ao agente do crime deve dar o mote para a ponderação da
forma como na teoria restaurativa se vinca o facto de o agente ser também destinatário
dessa reparação. O que com isto se pretende significar é que quando um responsável
civil é condenado a indemnizar os danos que causou a um lesado ou quando um arguido
é condenado a uma reparação como consequência jurídica (autónoma ou não) de um
crime, essas reparações são de certo modo decididas contra eles (porque, mesmo nas
hipóteses em que não se prescinde da sua concordância, elas foram modeladas por
terceiros em função de finalidades outras); trata-se de uma reparação dos danos
causados à vítima ou à comunidade, mas não de uma reparação de que seja em primeira
linha beneficiário também o agente do crime. Pelo contrário, a reparação restaurativa,
por pressupor um comportamento activo de reconhecimento da responsabilidade e de
empenho no encontro com a vítima, pode ser apresentada como também reintegradora
de aspectos atinentes à esfera individual do agente, como sejam o seu sentido de

confessaremos acerca d’esta, que immediatamente e intimamente à sociedade incumbe por direito
satisfazel-a. O prejuízo material do facto nocivo é uma calamidade no adiantamento social, como um
incêndio, um desastre irreparável. Lesante e lesado continuam a ter natureza humana e, por isso, direito às
condições necessárias. Tirar ao lesante as que lhe são necessarias, para indemnizar o lesado, é
desconhecer-lhe a natureza e impedir-lhe o alcançar o seu fim. Prival-o do supérfluo, se o tiver, isso sim,
é de direito. Como a sociedade é a troca mutua de forças, d’auxilios, como n’ella se capitalisa o
adiantamento total, como ella lucra com o máximo desinvolvimento de cada um, a ella cumpre, em direita
compensação, reparar as contrariedades”.

343
responsabilidade e o seu sentimento de inclusão no grupo617. Deste modo, a reparação
“restaurativa” desdobrar-se-ia em várias reparações: a reparação, obtida através de uma
participação conformadora por parte do agente do crime e da sua vítima, dos danos
causados à vítima tais como ela os vê, a reparação do sentido de responsabilidade e
inclusão do agente618, a reparação das vertentes relacionais em que essa vítima, esse
agente e as suas comunidades de próximos estão envolvidos619.
Por outro lado, cumpre precisar que a procura de delimitação desta reparação
que constitui finalidade da justiça restaurativa deve ser encetada à luz de uma
compreensão de que danos há que neutralizar que vá mais longe do que aquilo que se
afirmou sobre a “descoberta” de outros danos. O que se pretende agora sublinhar é algo
de qualitativamente diverso e prende-se com a opinião de que mesmo que inexista um
dano numa perspectiva estritamente civil ou um resultado desvalioso associado à
consumação de um crime, pode existir um dano carecido de reparação na perspectiva
específica que conforma a intervenção restaurativa. E não se veja nesta afirmação uma
617
Esta análise não deve prescindir da reflexão, em momento posterior, sobre as diferenças entre o juízo
de culpa jurídico-penal (como imputação heterónoma de uma censura associada à demonstração, através
do processo, da responsabilidade em moldes que protegem o arguido contra a auto-incriminação); e a
assunção de responsabilidade pelo agente do crime nas práticas restaurativas, que não se basta com um
comportamento passivo que faça dele como que um receptáculo de juízos alheios. A este propósito,
Warren YOUNG e Allison MORRIS (“Reforming Criminal Justice: The Potential of Restorative Justice”,
Restorative Justice: Philosophy to Practice, Eds. Heather Strang/John BRAITHWAITE,
Ashgate/Dartmouth, Aldershot: 2001, p. 11 ss) mencionam a importância que nas práticas restaurativas
assume a participação voluntária e activa do agente, nomeadamente tendo em vista o seu conhecimento e
a sua compreensão dos males associados ao comportamento criminal e a forma como outros foram por ele
afectados. É relevante que os agressores ouçam o que as suas vítimas têm a dizer e que expressem os seus
próprios sentimentos, na medida em que mantê-los isolados dessa experiência prejudica a própria
racionalização do acontecido e dificulta a sua superação em moldes construtivos e reintegradores da
responsabilidade pelo outro.
618
É frequente na doutrina restaurativa a referência à finalidade de reparação dos danos que o crime
acarretou também para o seu agente. Neste sentido, vd., a título de exemplo, a afirmação de Hans
BOUTELLIER (inspirada na definição de justiça restaurativa de Bazemore e Walgrave) de que o mal que
se pretende reparar “transcende a vítima”, incluindo até “o próprio agressor” (“Victimalization and
restorative justice: moral backgrounds and political consequences”, in Restorative Justice and the Law,
Ed. Lode Walgrave, Devon: Willan Publishing, 2002, p. 19).
619
Das conclusões tiradas em estudo recente sobre o grau de satisfação das vítimas na justiça penal
brasileira (também as beneficiárias de alguns procedimentos ditos restaurativos no âmbito da
criminalidade de menor potencial ofensivo) parece ressaltar a ideia de que essa satisfação é potenciada
pela efectiva reparação dos danos e pela participação na construção da resposta ao conflito. Afirma-se
que “as vítimas que manifestaram satisfação com o resultado da audiência foram justamente aquelas que
puderam postular e negociar um desfecho satisfatório. As vítimas que se disseram pouco satisfeitas com o
resultado da audiência atribuíam o descontentamento à incapacidade de as medidas propostas pelo
Ministério Público irem ao encontro das suas necessidades e interesses (…). Verificou-se que o maior
grau de satisfação das vítimas ligava-se mais ao ressarcimento do prejuízo causado pelo crime do que à
aplicação de medidas alternativas, que inegavelmente têm carácter sancionatório, ao autor do crime.
Todavia, essa possibilidade para a vítima muitas vezes era obnubilada pela imposição de uma transacção
penal sem que houvesse a tentativa de conciliação” (in Marcos ALVAREZ/Alessandra TEIXEIRA/Maria
JESUS/Fernanda MATSUDA/Fernando SALLA/Caio SANTIAGO/Veridiana CORDEIRO [“A vítima no
processo penal brasileiro: um novo protagonismo no cenário contemporâneo?”, Revista Brasileira de
Ciências Criminais, 86, Set-Out. 2010, ano 18, p. 284).

344
contradição com o que antes se afirmou sobre a restrição do âmbito da justiça
restaurativa ao universo criminal, mas tão-somente o esclarecimento de que os
pressupostos para esta restauração terão de ser específicos, na medida da especificidade
das suas finalidades.
Assim, tendo sempre no horizonte o entendimento que se defendeu sobre o
sentido da intervenção restaurativa, deve vincar-se que a reparação de que aqui se trata
não é apenas a reparação de um mal causado a um indivíduo, mas antes de um mal que
releva também em uma perspectiva relacional. Ou seja: são pensáveis hipóteses em que
além ou independentemente do dano (originado pelo crime) causado a uma pessoa e
fundante da responsabilidade civil extra-contratual, existe um dano no contexto de uma
relação de proximidade existencial, sendo esse dano “relacional” aquilo que os
intervenientes mais necessidade têm de reparar.
A necessidade de uma reparação restaurativa também não anda
indissociavelmente ligada à efectiva consumação de um crime: hipóteses de mera
tentativa, em que a decisão de cometer um crime e a prática de actos de execução não se
faz acompanhar da consumação são – repita-se, à luz daquelas que se entende serem as
finalidades da intervenção restaurativa – compagináveis com a existência de conflitos
inter-pessoais relativamente aos quais os intervenientes manifestam uma necessidade de
pacificação.
Se não se advoga um desligamento radical da reparação que é a restaurativa face
à causação de um dano civilmente relevante nos termos da responsabilidade civil extra-
contratual ou perante a consumação de um crime, sempre se crê sustentável um certo
juízo de autonomia. E a razão principal pela qual se não defende aquele desligamento e
porque se afirma uma autonomia só relativa prende-se com a utilidade de circunscrever
a resposta restaurativa não a todos os conflitos, mas apenas aos conflitos que tenham
ainda uma natureza criminal e que sejam causadores de danos numa perspectiva pessoal
ou interpessoal (que engloba quer aquilo que se designou por danos individuais, quer os
danos relacionais). É assim, repita-se, sobretudo porque, enquanto modelo de resposta a
uma dimensão do conflito interpessoal que é o crime, razões de eficiência aconselham a
integração da consideração da reparação dita “restaurativa” no universo das “outras”
reparações, na medida em que a existência de uma delas possa desencadear a
desnecessidade e o consequente retraimento da(s) outra(s).
Esboçadas estas considerações iniciais, impõe-se agora a consideração de alguns
dos problemas da reparação, em moldes que, segundo se intui, contribuirão para

345
sustentar a necessidade de uma forma de reparação distinta daquela que é objectivada
por vários institutos, quer do nosso direito penal, quer do nosso direito processual penal.
Em síntese, aquilo que se defende é em certo sentido mais amplo: a reparação
restaurativa é diversa quer da forma como o direito civil tradicionalmente encara a
reparação dos danos, a partir de uma sua quantificação que cumpre uma função de
limite; quer do sentido dado à reparação pelo direito penal, necessariamente vinculado
ao cumprimento das suas finalidades preventivas. Essa reparação restaurativa, por ser a
que corresponde à vontade do agente do crime e da sua vítima, precludirá, em regra, o
recurso à via ressarcitória civil. Não é, porém, essa a questão que importa a este estudo,
orientado para a compreensão do relacionamento entre a resposta que a justiça
restaurativa quer dar ao crime e aquela resposta que é dada pela justiça penal.
Reafirmado aquele que é o objecto de reflexão, avance-se apenas, antes de se
aprofundar a análise, que o que se julga é que a reparação restaurativa pode tornar
desnecessária a resposta penal (e a determinação de uma reparação como consequência
jurídica autónoma do crime ou a determinação de uma pena) quando se puder afirmar
que não sobram necessidades preventivas carecidas de resposta.
Esta reparação restaurativa, que poderia naqueles moldes contribuir para a
pretendida subsidiariedade da intervenção penal, não conhece, pelo menos com idêntica
incidência, algumas das dificuldades sentidas pelo pensamento da reparação como
consequência jurídica autónoma do crime.

6.1. A quantificação dos danos sofridos pela vítima e o problema da sua


inadequação como critério principal para a punição do agente: as vantagens da
reparação “restaurativa”

De forma genérica, parece poder dizer-se que a primeira dificuldade que


encontra a reparação como resposta ao crime prende-se com o facto de ela se destinar,
pelo menos em primeira linha, à protecção de interesses individuais, o que seria
incoerente com a função do direito penal de defesa de interesses que são colectivos. A
afirmação da natureza pública do direito penal passaria, assim, pela remissão para o
campo do direito privado da resolução de todos os conflitos entre privados. Haveria
uma contraposição entre a sanção penal, orientada para a dissuasão de todos, e a
reparação, vocacionada para o ressarcimento individual. E, assim sendo, erigir-se esta
última a sanção poderia equivaler à aceitação da primazia do interesse individual sobre

346
o interesse colectivo. A admissão da reparação como consequência para o crime que
dispensaria a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança tem de pressupor,
portanto, a verificação de que aquela reparação pode cumprir, também ela, uma função
que ultrapasse a satisfação das necessidades individuais da vítima do crime, sendo
eficaz ainda à protecção dos bens jurídicos através da consecução das exigências
preventivas.
Além disso, julga-se que uma das razões que explica o facto de a resposta penal
não ser construída a partir de uma quantificação dos danos individuais (tal como foram
sentidos pela vítima) e orientada para a sua reparação se prende muito – ainda que não
só – com o problema que tal solução representaria na perspectiva do respeito pelo
princípio da culpa. Dito da forma que se pretende mais simples: o agente deve ser
punido por aquilo que fez e que permite a formulação de um determinado juízo de
censura, e não pela forma como a vítima sente aquilo que o agente fez620. A punição do
agente não pode oscilar, portanto, em função da maior ou menor sensibilidade da vítima
ou da sua específica capacidade de sofrimento, na medida em que elas sejam alheias aos
graus de ilicitude da conduta e de culpa do agente.
Por outro lado, além de se julgar que a punição do agente deve ser mais
determinada por aquilo que ele quis fazer e fez do que por aquilo que a vítima sofreu
com o cometimento do crime, devem reconhecer-se ainda as dificuldades de
concretização ou quantificação desse sofrimento da vítima em ordem à determinação da

620
Aquilo que o agente fez terá de se relacionar com o seu desvalor de acção e também com o desvalor de
resultado. Sobre a circunstância de o direito penal se concentrar na “gravidade do facto”, conceito que
não equivale ao do prejuízo sofrido pela vítima, cfr. Mercedes García ARÁN, “Despenalización y
privatización: tendencias contrarias?”, Crítica y Justificación del Derecho Penal en el Cambio del Siglo,
coord. Luis Arroyo ZAPATERO/Ulfrid NEUMANN/Adán NIETO, Cuenca: Ediciones de la Universidad
de Castilla-La Mancha, 2003, p. 191 ss. No contexto de uma reflexão sobre o princípio da culpa, José de
FARIA COSTA afirma que “nas ordens jurídicas primitivas – nomeadamente a germânica – o elemento
fundamental da responsabilidade criminal ia buscar-se não à culpa – qualquer que fosse a sua
compreensão – mas ao dano (…). Com a chamada espiritualização ou eticização do direito penal as coisas
transformaram-se radicalmente. Ou seja, a responsabilidade penal só pode existir, pelo menos em
princípio, desde que haja culpa” (“Aspectos fundamentais da problemática da responsabilidade objectiva
no direito penal português”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, III, Boletim
da Faculdade de Direito, n.º especial, Coimbra: 1983, p. 363). Em um plano mais específico relacionado
com a crítica da “subjectivização do dano patrimonial” (e com a perda de relevância do elemento
“valor”nos crimes contra o património a partir da ideia de que “os bens apenas relevam em função da
relação que têm com o seu titular”), José de FARIA COSTA refere que essa subjectivização “tem
importantes implicações no patamar da segurança jurídica e, por sobre tudo, no âmbito da legalidade”. E
acrescenta que o facto de o valor da coisa acabar por depender apenas do seu valor para o seu titular
“geraria a maior arbitrariedade na punição jurídico-penal” (“O personalimo patrimonial e a contaminação
do direito penal”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 139º, n.º 3960, Janeiro-Fevereiro 2010,
p. 194). Antes, já o Autor apontara a “clara violação” do princípo da tipicidade consistente em fazer
depender da situação patrimonial da vítima a determinação do conteúdo típico do crime de furto
(“Anotação ao artigo 202.º”, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra: Coimbra
Editora, 1999, p. 11).

347
reparação que lhe é devida. De forma mais enfática, afirma Leonor ASSUNÇÃO, a
propósito do sofrimento das vítimas de crimes, que “toda a dor é, por natureza,
incomensurável”621.
Nesta acepção, a centralidade da reparação, quando concebida enquanto
reparação dos danos sofridos pela vítima (sentidos pela vítima), suscita especiais
dificuldades à justiça penal622. Pensa-se que essas dificuldades não têm a mesma
dimensão no plano da justiça restaurativa. E é isso que aqui se pretende começar por
sublinhar: se é importante que a vítima de um crime tenha a possibilidade de se
pronunciar sobre os danos do crime exactamente tal como os sofreu e de reclamar uma
reparação desses danos nos moldes que acredita ajustados, e se a resposta penal ao
crime não pode ser norteada sobretudo por tais considerações, já a justiça restaurativa
– por força do fundamento, das finalidades e do modo de actuação que se julga serem
os seus – parece adequada a assumir para si o carácter nuclear daquela reparação,
entendida naqueles específicos moldes.
Um dos objectos do pensamento vitimológico tem sido precisamente o da
avaliação da extensão dos danos sofridos pelas vítimas de infracções criminais. Os
resultados revelam a causação de uma pluralidade de males que em muito se distinguem
do dano ou do perigo causado ao bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora.
Assim, a título de mera ilustração, pretende também significar-se que a vítima de um
crime de roubo (que foi, por exemplo, ameaçada com uma navalha pelo agente e
coagida a entregar-lhe uma carteira onde guardava os seus documentos e dinheiro) pode
sofrer vários outros males além da lesão directa do seu património e da sua liberdade
individual de decisão e acção623.

621
Leonor ASSUNÇÃO, “A participação central-constitutiva da vítima no processo restaurativo – uma
ameaça aos fundamentos do processo penal estadual?”, Que Futuro para o Direito Processual Penal?
Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias por Ocasião dos 20 Anos do Código de Processo
Penal Português, Coibra: Coimbra Editora, 2009, p. 333.
622
Antoine GARAPON (O Guardador de Promessas cit., p. 102 ss) reflecte sobre essas dificuldades e
considera que, num contexto de identificação crescente da opinião pública com a vítima, se censuram “os
processos da justiça por nunca estarem à altura do drama e do sofrimento”. Relembrando o pensamento
de Racine, reitera que “a dor é injusta e todas as razões que a não adulam exasperam as suas suspeitas”.
Porém, refere também as dificuldades de quantificação dessa dor e deixa a interrogação sobre “se o
sofrimento não tem preço, como indemnizá-lo?”. Aquilo que denomina “jurisdição das emoções” suscita-
lhe preocupações: “esses desvios não deixam de inquietar, porque o que põem em causa é a própria
possibilidade de fazer o direito quando a emoção é demasiada”. Em sentido não coincidente e de forma
muito crítica relativamente aos “juízes que gostam de pensar de si próprios que são imunes aos
sentimentos humanos” vd. Thane ROSENBAUM, The Myth of Moral Justice, Nova Iorque: Harper
Collins Publishers, 2005, p. 157.
623
Sobre a qualificação do roubo como “um crime complexo que ofende quer bens jurídicos patrimoniais
– o direito de propriedade e de detenção de coisas móveis – quer bens jurídicos pessoais – a liberdade
individual de decisão e acção (em certos casos, a própria liberdade de movimentos) e a integridade física,

348
Sem qualquer pretensão de reflexão mais detida sobre a diversidade desses
danos, tome-se apenas como exemplo – porque ilustra a pluralidade dos danos que
justifica a pluralidade das estratégias pós-delituais – a ideia, corrente na literatura
restaurativa, de que os traumas resultantes do crime podem ser essencialmente de três
espécies, associando-se a uma auto-confrontação da vítima provocada pela
desorganização dos significados do seu quotidiano: o primeiro trauma relaciona-se com
uma crise da auto-imagem (“who am I?”); o segundo pressupõe uma crise dos
significados ou das convicções (“what do I believe?”); o terceiro manifesta-se através
duma crise dos relacionamentos (“who can I trust?”)624.
O “impacto psicológico” do crime na vítima é sublinhado por GARCÍA –
PABLOS DE MOLINA – que recusa, porém, as generalizações – e associado a um
revisitar frequente da experiência criminal, a sentimentos de medo e de impotência, a
um assumir de culpas pela vitimização, à possível estigmatização decorrente do facto de
os membros do grupo lhe associarem a imagem de “perdedor”, à humilhação e ao
desânimo por vezes decorrentes do contacto com as instâncias formais de controlo que
causam a denominada “vitimização secundária”625.
Todavia, se a avaliação dos danos pode revelar-se muito complexa, a
determinação do quantum da reparação sentida como necessária pela vítima não o será
menos. O problema que se põe é o da eleição de critérios para o estabelecimento de uma
relação entre o quantum de danos sofridos e o quantum de reparação julgada necessária.

sendo que, em certas hipóteses de roubo agravado, se põe em causa, ademais, o bem jurídico vida”,
apesar de se esclarecer que “a ofensa aos bens pessoais surge como o meio de lesão dos bens
patrimoniais) vd. Conceição CUNHA, anotação ao artigo 210.º CP, Comentário Conimbricense do
Código Penal, Parte Especial, Tomo II (dirigido por Jorge de Figueiredo Dias), Coimbra Editora: 1999,
p. 160.
624
Cfr. Mary ACHILLES/Howard ZEHR, “Restorative justice for crime victims: the promise and the
challenge”, in Restorative Community Justice: Repairing Harm and Transforming Communities, Ed.
Gordon Bazemore/Mara Schiff, Cincinnati: Anderson Publishing, 2001, p. 88.
625
Para além destes factores, o Autor faz ainda referência a uma possível estigmatização da vítima pela
sociedade: «a sociedade mesma, por outro lado, “estigmatiza” a vítima. Não a contempla com
solidariedade e justiça, tratando de neutralizar o mal sofrido, senão com mera compaixão e, às vezes, com
desconfiança e receio. As pessoas próximas da vítima vêem-na depreciativamente como pessoa “tocada”,
como “perdedora”. A vitimização produz isolamento social e, em último caso, marginalização. Tudo isto
costuma provocar uma modificação dos hábitos e estilos de vida, com frequentes transtornos nas relações
interpessoais”. Tendo em conta estes e outros elementos, acaba por referir que “não é de estranhar” que
sejam “muitos os infractores que contam nas suas biografias com experiências de vitimização prévias.
Quer dizer: antes de se tornarem delinquentes foram também vítimas de delitos” (António GARCÍA –
PABLOS DE MOLINA/Luís Flávio GOMES, Criminologia cit., p. 100). Também Winfried HASSEMER
(Persona, Mundo y Responsabilidad cit., p. 198), especificamente quanto aos males que do crime e da
reacção ao crime podem advir para a vítima, sublinha a importância da reparação dos seus danos, na
medida em que com “a satisfação ou a reparação da vítima faz-se referência também a algo normativo, ou
seja, a reabilitação da pessoa atingida, a reconstrução da sua dignidade pessoal, o traçado inequívoco de
uma linha entre o comportamento justo e o injusto, a verificação ulterior pela vítima de que efectivamente
foi uma vítima (e não um delinquente ou o protagonista de um mero acidente)”.

349
Em uma análise ainda superficial da questão parece, porém, intuir-se a menor
complexidade no âmbito das práticas restaurativas do que no seio do processo penal, na
medida em que o encontro – próprio do procedimento restaurativo – entre os
intervenientes no conflito facilitará também um acordo quanto à reparação pela qual um
dos sujeitos se sente responsável e que o outro sujeito sente como aquela que lhe é
devida. O acordo quanto ao conteúdo e à dimensão da reparação eliminará, em parte, os
engulhos inerentes à sua determinação por um terceiro. Na medida em que a reparação
que se procura passa pela descoberta de respostas racionais sobretudo para a
desorganização interior que o crime causou à vítima, a recuperação da autonomia
perdida pressupõe o encontro com o agente do crime. Através desse encontro e das
explicações que dele resultem, é possível que os intervenientes no conflito recuperem
alguma da ordem interior abalada pelo conflito criminal626.
Apesar de a reparação restaurativa ser assim, sob certa perspectiva, menos
problemática do que a reparação penal – na medida em que não lhe cabe cumprir em
primeira linha as finalidades de prevenção limitadas pela culpa que modelam a
reparação penal, podendo por isso orientar-se por aquilo que o agente do crime e a sua
vítima consideram adequado à luz de uma ponderação dos danos causados e dos danos
sofridos –; e apesar de a reparação restaurativa poder considerar-se porventura mais
ampla (na medida em que nela cabe uma mais ampla valoração daquilo que a vítima
sentiu e daquilo por que o agente se julga responsável), não deixa de ter os seus limites.
Esses limites prendem-se quer com a possibilidade de obtenção do acordo quer com a
efectividade do seu cumprimento voluntário. E relacionam-se ainda com aquelas que
são as limitações e as circunstâncias do agente do crime e com as dificuldades inerentes
ao tempo do encontro627. A estes limites deve acrescer a interdição da manifesta
desproporcionalidade, que merecerá ponderação na parte final deste estudo.

626
João LÁZARO e Frederico MARQUES afirmam a utilidade do encontro entre o agente do crime e a
sua vítima para que esta encontre respostas para as interrogações “porque é que fez o que fez, porquê a
mim, fiz alguma coisa que proporcionasse ou provocasse o crime?” (“Justiça restaurativa e mediação”,
Sub Judice – Justiça e Sociedade, Lisboa, Ideias, n.º 37, Out-Dez 2006, p. 67). No pólo oposto, o da
compreensão do acontecido pelo agente, o contacto com a vítima poderá fazê-lo entender melhor quer “as
consequências dos seus actos”, quer as responsabilidades que deve assumir para minorar aquelas
consequências, o que poderá facilitar a sua própria pacificação. Sobre a questão, cfr. Ivo AERTSEN/Tony
PETERS, “Mediação para reparação: a perspectiva da vítima”, Sub Judice – Justiça e Sociedade, Lisboa,
Ideias, n.º 37, Out-Dez 2006, p. 13.
627
Com muito interesse para a consideração desta questão – e chamando a atenção para a necessidade de
não ver nesta reparação um remédio único para todos os males do crime – veja-se o que afirma Francisco
AMADO FERREIRA (in Justiça Restaurativa – Natureza, Finalidades e Instrumentos, Coimbra:
Coimbra Editora, 2006, p.127): “o processo restaurativo não responde, normalmente, às necessidades
mais imediatas das vítimas, nem sequer a uma grande parte das mesmas. A reparação de janelas após um

350
A dificuldade com mais frequência apontada aos modelos ditos
“compensatórios” de reacção ao crime prende-se com o facto de eles pressuporem que o
agente “dê algo em troca” do mal que causou, quando muitas vezes ele não tem nada
para dar. E é precisamente no contexto de uma reflexão com este cariz que Nils
CHRISTIE afirma que o sistema de justiça penal opta por tirar àqueles que condena o
único bem que todos possuem e que é o tempo. O Autor norueguês considera, porém,
que esta não é uma solução inevitável, porque o tempo também poderia ser utilizado
com propósitos compensatórios, se em vez de ser “retirado para criar sofrimento” fosse
usado em moldes que contribuíssem para a reparação. O facto de ainda não ser
maioritariamente assim prender-se-á, segundo o próprio, mais com problemas
organizacionais do que com uma impossibilidade lógica.
A segunda dificuldade é também sublinhada por Nils CHRISTIE e relaciona-se
com as desigualdades de poder entre o agente do crime e a sua vítima, que poderiam
conduzir aos maiores abusos caso a consequência para o crime não fosse ditada de
forma autoritária pelo Estado com independência face às especificidades sociais,
económicas ou culturais dos intervenientes no conflito. Chega a afirmar-se que foi para
“evitar a anarquia” daí decorrente que se “inventou o Estado”. Todavia, o Autor acaba
por retirar alguma relevância também a esta linha de argumentação, considerando que
“muitos crimes ocorrem entre iguais” e que, além disso, em processos de justiça
compensatória que assentam na participação, o agente e a vítima “não são deixados num
limbo”628. O que pressupõe a existência de mecanismos controlados pelo Estado e pré-
ordenados à protecção dos direitos dos intervenientes naqueles procedimentos.

6.2. A reparação restaurativa e as “outras reparações”

Afirmava-se, tradicionalmente, uma diferença estrutural entre a responsabilidade


civil e a responsabilidade penal: quanto àquela, diversamente desta, a função era a de
reparação, não a de punição629. Nessa medida, vincava-se o facto de esta indemnização

assalto a uma residência ou a uma instituição pública ou privada, a substituição de um par de óculos
partidos por um incidente violento e a necessidade de cuidados médicos urgentes ou de apoio psicológico
à vítima, entre outros casos, não poderão aguardar (…) pelo decurso e conclusão de uma mediação
penal”. O que logo permite concluir pela necessidade de um conjunto de outros mecanismos, estatais e
privados, de apoio à vítima.
628
Nils CHRISTIE, Limits to Pain cit., ps. 95-6.
629
Eduardo CORREIA afirmava a diferença entre a indemnização civil e a pena, “desde logo quanto à sua
finalidade: pois enquanto aquela tem em vista remediar patrimonialmente os interesses próprios de certas
pessoas, dando ao ofendido um valor equivalente ao dano patrimonial sofrido, ou compensando-o por

351
ser fundada e limitada pelo dano. Diversamente, a reparação penal, quando pretender
comportar também uma finalidade punitiva que torne desnecessária outra forma de
sancionamento, supõe uma possibilidade de elevação para além do montante daquele
dano.
Todavia, aquela precisa delimitação dos modos de reacção civil e penal entrou,
de alguma forma, em crise630. As reivindicações – só em certa medida convergentes,
como é claro – do abolicionismo e da vitimologia de menos prisão e mais reparação
tiveram como consequência a criação de um estado de alguma confusão na delimitação
de fronteiras entre o direito penal e o direito civil, porque o direito penal passou a
chamar a si, em alguns casos, a intenção de reparar como forma de punir, para além de
punir ou em vez de punir. Por sua vez, o direito civil assumiu, pelo menos em alguns
países, uma função punitiva vertida na admissibilidade de cláusulas penais ou na
aceitação de indemnizações punitivas (a figura anglo-saxónica, que se julga merecedora
das maiores resistências, dos punitive damages).
Não havendo a pretensão de análise desse instituto da indemnização punitiva631
– manifestamente exterior àquele que é o objecto deste estudo –, dedique-se-lhe apenas
o espaço necessário para justificar a ideia de que é uma figura muito distante da
reparação restaurativa e uma figura que suscita várias preocupações. Em traço muito
largo – que desconsidera, entre outros aspectos, os diferentes contornos que os punitive

forma idêntica de um dano moral, as sanções criminais têm por fim reprovar os crimes, prevenir a sua
futura repetição e readaptar socialmente o criminoso”. E acrescentava que “também as sanções civis se
distinguem das criminais quanto à sua natureza jurídica: pois enquanto as primeiras são privadas e
disponíveis, as criminais têm, como vimos, carácter público e indisponível”. Notava, ainda, quanto às
sanções civis, que “a natureza não criminal destas sanções revela-se em que elas cessam logo que se
satisfaça a prestação que a lei impôs. Têm, pois, uma função intimidativa, mas de nenhum modo, como as
penas, uma função repressiva” (in Direito Criminal I, Almedina, 1971, ps. 16-7).
630
Paula RIBEIRO DE FARIA refere a “força centrífuga que empurra um e outro ilícito na mesma
direcção” e que “permite explicar o surgimento de institutos com uma função preventiva e sancionatória
no ordenamento civil, ao mesmo tempo que justifica a tendência renovada por banda do direito penal para
importar do direito civil uma lógica indemnizatório-punitiva, como forma de resolver uma série de
problemas que o afligem”, desde a “efectivação da responsabilidade das pessoas colectivas” à
“consideração dos interesses da vítima” («A reparação punitiva – uma “terceira via” na efectivação da
responsabilidade penal?», Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra
Editora, 2003, ps. 271-2).
631
Um aprofundamento do tema, na doutrina portuguesa, não pode prescindir de uma reflexão mais
ampla sobre o sentido da responsabilidade civil. Sobre o assunto, a título de exemplo, cfr. Júlio GOMES,
“Uma função punitiva para a responsabilidade civil e uma função reparatória para a responsabilidade
penal?”, Revista de Direito e de Economia, ano XV, 1989, p. 105 ss; António PINTO MONTEIRO,
Cláusula Penal e Indemnização, Colecção Teses, Coimbra: Almedina: 1999 (reimpressão, 1ª ed. de
1990), que distingue várias espécies de cláusulas penais. Especificamente sobre os punitive damages,
veja-se, ainda que se deva sublinhar a não concordância com algumas das conclusões apresentadas, Paula
Meira LOURENÇO, A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, e
também Pedro Coelho SIMÕES, Os Danos Punitivos numa Perspectiva Jurídico-Penal – Notas sobre a
(re)emergência da Pena Privada”, dissertação de mestrado em ciências jurídico-forenses, Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, 2008.

352
damages assumem por exemplo nos Estados Unidos ou no Reino Unido – parece poder
afirmar-se que eles se traduzem em uma indemnização, arbitrada por tribunal, de valor
superior ao dano causado ao lesado e que tem, por isso, uma função punitiva e
dissuasora do agente e de terceiros, além de uma função reparadora.
Para o que aqui interessa, o que deve questionar-se é, nos casos em que a
indemnização punitiva tem na base o cometimento de um crime, aquilo que a distingue
da reparação restaurativa. Antes, porém, refira-se aquilo que a distingue da
indemnização civil arbitrada em processo penal – a sua função punitiva e a
possibilidade de ultrapassar largamente o montante do dano. Além disso, sublinhe-se
também o muito que a diferencia de uma reparação entendida como consequência
jurídica autónoma do crime: aquela – a indemnização punitiva –, ao contrário desta, não
é determinada nem limitada por lei geral e abstracta prévia e não é cominada na
sequência de um julgamento penal norteado pelas suas específicas preocupações
garantistas632.

632
Aponta-se à indemnização punitiva o desrespeito pela exigência de determinabilidade que vincula as
sanções penais. Todavia, alguns Autores justificam-na à luz de considerações de eficácia. Assim, por
exemplo, Paula LOURENÇO, para quem «a ineficácia da função reparatória da responsabilidade civil
impôs o recurso aos punitive damages, de forma a assegurar que os comportamentos dos agentes
económicos não comprometem o direito à vida e à integridade física da pessoa humana, mas antes
pautam-se pelo respeito por tais direitos, elevando-se assim o nível de segurança dos produtos. Se as
finalidades prosseguidas pelos punitive damages parecem justificar a sua aplicação, alguns autores norte-
americanos criticam o facto de os punitive damages só conseguirem assumir essa função punitiva de
forma eficaz porque o quantitativo em concreto a atribuir a esse título é indeterminado. Não podendo ser
previsto ex ante pelo infractor, este fica impedido de fazer cálculos económicos para saber se o lucro que
espera obter ultrapassa a indemnização que terá de pagar ao lesado, e a quantia que será imposta a título
de punitive damages». A Autora faz esta análise na sequência de uma referência ao “caso Grimshaw v.
Ford Motor Co (1981), mais conhecido por Pinto Case”, relativamente ao qual afirma que “tinha de ser
punido de forma exemplar, pelo que o Tribunal da Califórnia atribuiu 4,5 milhões de dólares, a título de
compensatory damages, e impôs 125 milhões de dólares por punitive damages, muito embora
posteriormente se tenha reduzido o primeiro montante para 3,5 milhões de dólares” (ob. cit., p. 176 ss).
Apesar de acabar por concluir pela admissibilidade e pelas vantagens da indemnização punitiva, a Autora
dá conta das “críticas dos opositores”, entre as quais se contam – ainda que se não concorde, as mais das
vezes, com a terminologia adoptada para os elencar – vários dos aspectos que se julgam mais
problemáticos (e que fundam, segundo se crê, a inaceitabilidade da figura): “equivale à aplicação de uma
dupla pena, violando-se o princípio do ne bis in idem; a imposição da pena privada é feita à revelia dos
princípios que regem o processo penal (…); se uma conduta afectar várias vítimas, o lesante corre o risco
de ser condenado várias vezes no pagamento de punitive damages; o indeterminado montante dos danos
punitivos viola a proibição de atribuição de montantes exagerados, e o princípio da igualdade, pois
condutas idênticas podem originar a atribuição de punitive damages de montantes muito diferentes” (ob.
cit., ps. 184-5). Apesar disto, Paula LOURENÇO parece defender a admissibilidade dos punitive
damages, sobretudo a partir da ideia de que há que ultrapassar a ideia liberal de que existe uma fronteira
intransponível entre o direito privado e o direito público, “sendo as penas privadas vingativas e as penas
públicas civilizadas”. E acrescenta que para compreender o escopo da indemnização punitiva “é
necessário partir do princípio de que o dano socialmente relevante tem uma dimensão individual e
comunitária, ou seja, os danos punitivos defendem a dignidade do indivíduo e protegem as normas de
conduta da sociedade, influenciando o comportamento dos agentes” (ob. cit., ps. 190-1). A Autora aceita
a função compensatória e a função punitiva dos punitive damages, que apresenta como “o último reduto
do direito privado para moralizar as condutas”. Já na abordagem conclusiva avançada por Pedro Coelho

353
Importando a este momento do estudo uma caracterização da reparação
restaurativa que passa pelo sublinhar da sua diversidade face a figuras a uma primeira
vista próximas, sempre se deve notar que a reparação que é a da justiça restaurativa
resulta de um acordo a que o agente do crime e a sua vítima chegaram no contexto de
um procedimento de encontro alheio a qualquer interferência de autoridade. A reparação
restaurativa é, nesse sentido, a reparação querida pelos intervenientes no conflito
criminal e, além disso, a reparação por eles conformada. Muito pelo contrário, a
indemnização punitiva resulta de decisão judicial a que é alheia quer a vontade do
agente do crime quer, em certo sentido, a da vítima, pois que a reparação arbitrada não
resulta sobretudo daquilo que é pedido, mas antes daquilo que é julgado suficiente para
a obtenção de um efeito punitivo e dissuasor. Por outro lado, enquanto a reparação
restaurativa é norteada pelo dano tal como é sentido pela vítima, aquela indemnização
punitiva desliga-se do dano antes ocorrido e – muito mais à semelhança daquele que é o
sentido da resposta penal do que daquele que é o núcleo da resposta restaurativa –
orienta-se sobretudo pela intenção de evitar danos futuros. O que, tudo somado, permite
a conclusão de que, confrontada a reparação restaurativa com a indemnização punitiva,
é muito mais o que as separa do que aquilo que as aproxima.
Retornando ao propósito de dar conta das diferenças entre a reparação
“restaurativa” e a reparação já conhecida pela justiça dita tradicional – e, por isso,
sem qualquer pretensão de análise exaustiva das concretas soluções penais e processuais
penais633 – refiram-se agora alguns dos mecanismos que protegem a justiça portuguesa

SIMÕES, em um estudo em que, como o próprio título logo deixa claro, se reflecte sobre “os danos
punitivos numa perspectiva jurídico-penal”, afirma-se, segundo se julga com maior proximidade da razão,
que “o grau de incerteza e imprecisão com que os punitive damages são definidos e, a final, atribuídos,
acaba por colidir com a dimensão de necessária formalização do direito (…). Do que decorre que, entre
nós e a nível constitucional, qualquer limitação a direitos, liberdades e garantias (no que se incluiria uma
indemnização punitiva como a abordada) se veja obrigada a cumprir um conjunto de requisitos
constitucionais (…). Neste âmbito, uma pretensão punitiva, próxima dos punitive damages, teria de surgir
através de lei, formal e organicamente constitucional, expressamente autorizada pela Constituição, de
carácter geral e abstracto, sem eficácia retroactiva e limitar-se ao necessário para salvaguardar outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (…). Concorrem, neste particular, o princípio
liberal, o princípio democrático e o princípio da separação de poderes». E Pedro SIMÕES conclui: “deste
modo, resultando a normatividade subjacente aos punitive damages de uma revelação judicial, aplicada a
situações anteriormente verificadas, orientada para o caso concreto e sem prévia declaração legal, que
atribui indemnizações sem qualquer correspondência com o dano efectivamente verificado, cremos que
dificilmente se acharia cumprido algum dos requisitos previstos no art.º 18.º da CRP” (ob. cit., ps. 148-9).
633
No direito penal e no direito processual penal, quer em Portugal, quer em países do mesmo contexto
cultural, existem cada vez mais institutos orientados para a reparação dos danos causados à vítima, sendo
que essa reparação pode ter consequências distintas, como a suspensão do processo, a condenação a uma
pena de substituição, a dispensa da pena ou a sua atenuação. Tomando-se como exemplo a justiça penal
alemã, veja-se a afirmação de Pablo Galain PALERMO de que «no ordenamento penal alemão, a
reparação cumpre distintas funções: 1) como isenção ou atenuante de pena (…); 2) como condição

354
da acusação de um olvido total da necessidade de indemnização e de reparação dos
danos causados pelo crime.
Em primeiro lugar, refira-se a possibilidade de obtenção de indemnização pelos
danos sofridos, sendo que o pedido deve ser feito, por força do princípio da adesão, no
próprio processo penal. A ideia de que se deve partir é, porém, a de que os sujeitos desta
acção não coincidem necessariamento com os sujeitos da acção penal que são o arguido
e o assistente e que aquela indemnização não é parte da pena pública634. O

imposta ao condenado (…); 3) como substitutivo da sanção penal (…); 4) como consequência jurídica
autónoma no Direito Penal juvenil (cfr. §§ 10 e 15 da JGG – Lei Penal de Menores)» (Cfr. Pablo Galain
PALERMO, “Suspensão do processo e terceira via: avanços e retrocessos do sistema penal”, Que Futuro
para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/MONTEIRO,
Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 616).
634
Como notava Jorge de FIGUEIREDO DIAS, «no domínio do direito anterior – pelo menos, do direito
anterior ao Código Penal de 1982 – não deveriam suscitar-se dúvidas sérias a uma consideração do lesado
e das pessoas com responsabilidade meramente civil como sujeitos do processo penal em que
interviessem: a reparação de perdas e danos, neste processo arbitrada, possuía natureza especificamente
penal, por isso que ela constituía um efeito penal da condenação e podia ser vista mesmo como uma parte
integrante da própria pena pública. O artigo 128.º do Código Penal de 1982 [actual artigo 129.º], ao
dispor que “a indemnização de perdas e danos emergente de um crime é regulada pela lei civil”, veio
porém modificar substancialmente a situação das coisas, tanto no plano substantivo como também, em
certa medida, no adjectivo». Depois de afirmar a natureza de “acção civil” daquela indemnização, Jorge
de FIGUEIREDO DIAS conclui que “as partes civis, se podem (e porventura devem) ser consideradas
sujeitos do processo penal num sentido eminentemente formal, já de um ponto de vista material são
sujeitos da acção civil que adere ao processo penal e que como acção civil permanece até ao fim” (in
“Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual
Penal – O Novo Código de Processo Penal, Coimbra: Almedina: 1992, ps. 14-5). Por outro lado, o Autor
(in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, reimpressão, Coimbra Editora,
2005, p. 46) sublinha o facto de se terem abolido o carácter oficioso e os critérios penais de arbitramento
da indemnização civil, e conclui que esta se tornou “estranha à doutrina das reacções criminais (…). E
tanto assim é que (…) a condenação em indemnização civil pode ter lugar, no processo penal, mesmo em
caso de absolvição: uma solução que seria incompreensível à luz da natureza penal da indemnização, mas
que se aceita sem dificuldade à luz da sua natureza civil”. Note-se, porém, que se a questão da natureza da
indemnização civil arbitrada em processo penal não é hoje polémica, ela deu azo a divergências
doutrinais na vigência do Código Penal anterior. Jorge de FIGUEIREDO DIAS advogava a natureza
penal – no direito positivo, sublinhe-se – daquela indemnização, aventando como argumento fundamental
para tal juízo o facto de na determinação do montante daquela indemnização se atender, antes de tudo o
resto, à gravidade da infracção, o que desencadearia nomeadamente uma ponderação da culpa, em certo
sentido mais relevante do que a quantificação do dano. Autores como Jorge RIBEIRO DE FARIA (A
Indemnização por Perdas e Danos arbitrada em Processo Penal – o Chamado Processo de Adesão,
Coimbra: 1978) e Manuel CAVALEIRO DE FERREIRA (Curso de Processo Penal, vol. I, Lisboa: 1955,
p. 137 ss) entendiam que tal indemnização tinha, já no domínio do direito anterior, natureza
exclusivamente civil. Para uma reflexão detida sobre a questão, na vigência da lei anterior, cfr. Jorge de
FIGUEIREDO DIAS, “Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal”, in Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Estudos in Memoriam do Professor Doutor José
Beleza dos Santos, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra: 1966, p. 87 ss. Depois de auscultar as
soluções do direito comparado e de concluir que “o arbitramento, em processo penal, de uma reparação
pecuniária ao lesado corresponde a uma função de direito privado, isto é, constitui um efeito puramente
civil da condenação penal”, Jorge de FIGUEIREDO DIAS antecipa, de certo modo, a argumentação que
mais tarde veio a sustentar a defesa da reparação como consequência jurídica autónoma do crime. Afirma,
a propósito da doutrina de finais do século XIX, que “quando, porém, se ia lançar assim definitivamente
para fora do direito penal a reparação do dano causado pelo facto criminoso e a consideração devida ao
interesse particular do lesado, viu-se, com notável clareza, quão útil poderia ser, para os fins que a justiça
penal se propunha, a obrigatoriedade da indemnização daquele dano” (ob. cit., p. 100). O Autor recorre
sobretudo ao pensamento de Ferri para sustentar esta sua afirmação. Mais recentemente, tendo em conta

355
reconhecimento da natureza exclusivamente civil desta indemnização – que hoje é
inquestionável face à disposição do artigo 129.º do Código Penal – tem na base a
compreensão de que um mesmo comportamento é susceptível de dar origem a
responsabilidade criminal e a uma obrigação de indemnizar por força da existência de
responsabilidade civil extra-contratual635. Daqui parece decorrer a conclusão de que não
é por força da existência desta possibilidade de indemnização que se pode afirmar que
a justiça penal portuguesa assumiu o escopo de reparação do dano causado à vítima,
pelo simples facto de que se trata aqui de instituto exterior à justiça penal636, ainda que
existam razões para que tal pedido de indemnização surja processualmente associado à
acção penal637.
O que parece particularmente importante notar é que desta afirmação da natureza
exclusivamente civil da indemnização por perdas e danos originados pelo crime
resultam importantes consequências, quer no plano da existência da responsabilidade,
quer no plano da quantificação dessa responsabilidade. Assim, não se revestindo esta
indemnização de qualquer natureza penal, os seus pressupostos são apenas os da
responsabilidade civil extra-contratual, podendo por isso ela ter lugar mesmo em casos
de inexistência de culpa penal. Os seus pressupostos não são, portanto, os das reacções
criminais, a culpa ou a perigosidade, mas são antes outros. Além disso, à determinação
do quantitativo dessa indemnização não presidem quaisquer critérios penais, sendo seu

quer a alteração legislativa, quer a evolução doutrinária, nomeadamente na Alemanha, Jorge RIBEIRO de
FARIA dá conta de “como se tem esbatido a pureza conceitual que passou a dominar a partir de certa
altura as matérias civil e penal, e os consequentes processos”. A partir da análise de “dois pontos de
índole legislativa” (“a protecção dada expressamente às vítimas de crimes de gravidade acentuada, com a
atribuição pelo próprio Estado de uma indemnização”; assim como a possibilidade de “atribuição oficiosa
de uma reparação em processo penal pelo juiz da condenação”), o Autor conclui pelo modo como “se
foram acolhendo ideias de simbiose entre os dois ordenamentos em causa (o civil e o penal)”. Cfr. Jorge
RIBEIRO de FARIA,“Ainda a indemnização do lesado por crime”, Estudos em Homenagem a Cunha
Rodrigues, Org. Jorge de Figueiredo Dias/ Ireneu Barreto/Teresa Beleza/Eduardo Paz Ferreira, vol. I,
Coimbra: Coimbra Editora, 2001, ps. 393-4 e p. 401).
635
A este propósito, referia António CASTANHEIRA NEVES a dupla repercussão da infracção
criminal, já que se esta constitui uma “directa violação dos valores jurídico-criminais pressupostos nos
tipos legais de crime” deve, além disso, notar-se que “não deixa também na maioria dos casos de causar
um dano na esfera jurídico-privada da vítima do delito” [in Sumários de Processo Criminal (1967-1968),
Coimbra, 1968, p. 75].
636
Afirmando a forma como esta indemnização é coerente com a ideia de Autores como Eduardo Correia
de que “funções ressarcitória e punitiva não se confundem, que o interesse do particular lesado em ser
indemnizado e o interesse do Estado em punir são coisas diferentes”, cfr. Paula RIBEIRO de FARIA, «A
reparação punitiva – uma “terceira via” na efectivação da responsabilidade penal?», Liber Discipulorum
para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 264.
637
Estas razões prendem-se essencialmente com a intenção de evitar decisões judiciais aparentemente
contraditórias já que, ainda que elas apreciem questões diversas, não deixam de ter na sua base um
mesmo acontecimento histórico, devendo evitar-se que os tribunais decidam com base em um seu recorte
diametralmente distinto. Acrescem a estas considerações outras, nomeadamente atinentes à celeridade e à
economia processuais.

356
elemento central a quantificação dos danos. Nos termos da denominada “teoria da
diferença”, importa avaliar a diferença entre a situação em que o lesado ficou por força
do cometimento do crime e a situação em que ele estaria se o crime não tivesse tido
lugar638.
Em segundo lugar, considere-se a possibilidade de reparação nos termos do
artigo 82.º - A do Código de Processo Penal Português e sublinhe-se a existência, no
Código Penal, de normas que atribuem efeitos à existência de reparação, seja na sua
parte geral (vejam-se os regimes jurídicos dos factores de medida da pena, das
circunstâncias modificativas atenuantes, de algumas penas de substituição ou o instituto
da dispensa de pena), seja na sua parte especial (onde sobressai, sob este ponto de vista,
o disposto no art. 206.º sob a epígrafe “restituição ou reparação”).
Em traços muito gerais, pode dizer-se que nenhuma destas figuras se assemelha
de forma plena àquilo que pretende ser a reparação restaurativa.
A indemnização pelos danos causados assume uma natureza puramente
ressarcitória e resulta de uma decisão judicial, escapando-lhe a intenção restaurativa de
se ultrapassar a pura dimensão patrimonial para se pacificar de forma mais plena ou
mais global o conflito através de um encontro que é conformador da solução.
A reparação determinada nos termos do artigo 82.º - A do CPP tem natureza
muitíssimo subsidiária e resulta de uma decisão judicial norteada por aquele que é o
sentido de justiça que deve presidir à actividade do próprio decisor, com alheamento
face às vontades do agente do crime e da sua vítima.
Já as soluções contempladas na parte geral e na parte especial do Código Penal,
assim como a reparação prevista em sede de suspensão provisória do processo no artigo
281.º do CPP, têm, como não podia deixar de ser, a particularidade de sempre nelas a
reparação ser condicionada por aquelas que são as finalidades preventivas da justiça
penal. Ou seja: a reparação não é finalidade em si mesma, apenas podendo ser
perseguida quando se não opuser ou quando contribuir para a prossecução daquelas
finalidades outras. Neste sentido, parece poder aceitar-se a afirmação, agora usada em
sentido muito amplo, de Pablo Galain PALERMO, de que estas reparações podem ainda
ser vistas como um “equivalente funcional da pena”. O pensamento do Autor sobre
aquilo que caracteriza a reparação penal merece, todavia, ainda uma outra referência:

638
Uma tal avaliação será, regra geral, mais problemática quando os danos em causa forem de natureza
não patrimonial, como reconhece Jorge de FIGUEIREDO DIAS, “Sobre a reparação de perdas e
danos…” cit., ps. 118-9.

357
“no sentido penal, a reparação deve vincular-se à gravidade da infracção realizada, a
partir de uma perspectiva de danosidade social, atendendo, para isso, à função do
Direito Penal e aos critérios de merecimento e necessidade de pena”. E Pablo Galain
PALERMO ainda acrescenta que esta reparação “deve atender às finalidades de
natureza social (vítima potencial), finalidades estas que geralmente transcendem a
indemnização ou o ressarcimento do dano (vítima directa)”639. Nesta proposta
definitória da reparação penal cabe, assim, inteira a sua diferença face a uma reparação
restaurativa que seja condicionada pelo fundamento e pelas finalidades da justiça
restaurativa, e não pelo fundamento e pelas finalidades da reacção penal ao crime.
No âmbito das “reparações penais”, uma proposta que se julga merecer
ponderação mais detida é a da reparação como consequência jurídica autónoma do
crime. Neste caso, ao contrário do que sucede com “as reparações” de índole penal antes
referidas, que assumem carácter mais episódico ou pontual, a reparação comporta uma
certa pretensão de “generalidade”, de poder alçar-se a reacção a um espectro amplo da
criminalidade. Justifica-se, portanto, sobretudo quanto a ela, a interrogação que preside
a esta reflexão: existe uma coincidência de propósitos na reparação que é apontada
como finalidade da justiça restaurativa e na reparação como consequência jurídica
autónoma do crime? A adopção, pelos ordenamentos jurídicos do nosso contexto
cultural, da reparação como consequência jurídica autónoma do crime tornaria
desnecessária – ou menos pertinente – a proposta restaurativa?
Uma das razões pelas quais a questão se põe prende-se com o facto de os
principais argumentos utilizados para sustentar a bondade político-criminal da reparação
como consequência jurídica autónoma do crime se aproximarem, em grande medida, de
algumas das virtudes assacadas à proposta restaurativa. Afirmou-se antes que a justiça
restaurativa pretende propiciar uma solução para o crime mais favorável para a vítima
porque reparadora dos seus danos, mais favorável para o agente porque mais
responsabilizadora e menos punitiva e estigmatizante, mais favorável para a

639
A propósito da suspensão do processo associada à reparação, Pablo Galain PALERMO entende que «a
reparação imposta como condição, obrigação ou instrução não realiza outra função senão a de compensar
o injusto e cumprir com os fins das penas, sem uma prévia declaração de culpa. Portanto, é necessário
determinar que condições deverá cumprir a reparação para compensar o injusto penal, sem violar o
princípio constitucional da presunção de inocência. Esta explanação remete para a tese (…) de que a
reparação converte-se num “equivalente funcional da pena”». De seguida, esclarece que “a reparação tem
uma natureza mista, abrangendo tanto a reparação da vítima como a da comunidade. Trata-se, portanto,
de um instituto com características preventivo-sancionadoras que repara, em todos os casos, o dano
social” (in “Suspensão do processo e terceira via: avanços e retrocessos do sistema penal”, Que Futuro
para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/MONTEIRO,
Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, ps. 627-631).

358
comunidade porque mais pacificadora dos conflitos e favorecedora do fortalecimento
dos laços comunitários640.
Na doutrina portuguesa, apontam-se as vantagens da reparação como
consequência jurídica autónoma do crime a partir de uma linha de pensamento que bem
poderia ser a escolhida para sustentar a conveniência da proposta restaurativa. Quando
se olha, com Jorge de FIGUEIREDO DIAS, para “os argumentos fundamentais, de
cariz político-criminal, favoráveis a esta solução” da reparação como consequência
criminal autónoma, verifica-se que eles são três: «primeiro, o de que o interesse da
vítima é, em muitos casos, mais bem servido através da reparação do que através da
aplicação ao agente de uma pena privativa da liberdade. Segundo, o de que, em muitos
casos de pequena ou mesmo média criminalidade, a reparação pelo agente é bastante
para satisfazer as necessidades de reafirmação contrafáctica das expectativas
comunitárias na validade da norma violada, tornando-se desnecessárias quaisquer outras
sanções penais. Finalmente, o de que à reparação deve atribuir-se, em geral, um
acentuado efeito ressocializador (…), na medida em que “obriga” o agente a entretecer-
se de perto com as consequências do seu facto para a vítima e pode, inclusivamente,
conduzir a que ele se “concerte” com ela, ou, quando menos, a uma mútua compreensão
e ao perdão “moral” da falta por aquele cometida; o que, por seu lado, reforça a vigência
e a validade da norma violada e contribui poderosamente para o restabelecimento da paz
jurídica quebrada pelo crime»641.
Por outro lado, há que deixar claro que a delimitação de fronteiras que se julga
indispensável para se proceder a uma ponderação – também em uma perspectiva

640
A propósito da reparação como terceira via, Pablo GALAIN PALERMO e Angélica ROMERO
SÁNCHEZ, depois de referirem que “parte da doutrina alemã, encabeçada por Claus Roxin, vem
sustentando que a reparação não é uma questão estritamente civil, já que deveria ser incluída no catálogo
punitivo (…) pelos seus efeitos ressocializadores, que vai além do direito civil e diz respeito à teoria da
pena”, afirmam que a razão fundamental para a defesa dessa reparação como terceira via radica “na
inclusão da vítima como destinatária das consequências da sanção jurídico-penal e na consideração do
agente sob uma perspectiva mais humanitária e condescendente com o princípio da dignidade humana e
humanização das penas” (“Criminalidad organizada y reparación. Hacia una propuesta político-criminal
que disminuya la incompatilidad entre ambos conceptos”, Universitas Vitae: Homenaje a Ruperto Nuñez
Barbero, ed. Fernando Álvarez et alia, Aquilafuente: Ediciones Universidad de Salamanca, 2007 ps. 262-
3).
641
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime cit.,
p. 78. Note-se, porém, que se se sublinha esta argumentação favorável, não deixa de se reconhecer que “a
questão que fica, em todo o caso, por resolver é a de saber se ela obriga à consideração da reparação
como um tertium genus das sanções penais, ao lado das penas e das medidas de segurança, ou se não
bastará (ou não será mesmo preferível) considerá-la, sempre ou em certos casos, como um efeito penal da
condenação, atribuindo-lhe o estatuto processual correspondente. Ao que deverá acrescer, em todo o
caso, a consideração da reparação como condição de aplicação de certas penas de substituição e como
determinante essencial, relativamente a certos crimes de pequena ou média gravidade, nomeadamente
patrimoniais, da dispensa de pena”.

359
político-criminal – do relevo relativo e do âmbito de cada uma das propostas
reparadoras é, mais uma vez, dificultada pela inexistência, quanto às duas propostas em
confronto, de unanimidade na definição. Cumpre, assim, enfatizar que, tendo sido
referidos supra os vários sentidos de resposta à interrogação sobre o que é a justiça
restaurativa, adoptar-se-á agora como conteúdo que permite a comparação aquele que
se procurou justificar como o mais correcto e apenas esse. Mas sempre sobra a outra
face da dificuldade: também quanto à reparação como consequência jurídica do crime
inexiste uniformidade de compreensão daqueles que são os seus traços essenciais. Ora,
não sendo propósito deste estudo uma qualquer análise autónoma desta complexa
matéria642, dar-se-á conta da diversidade de respostas apenas com o fito de comparar
cada uma delas com aquele que antes se defendeu ser o sentido da intervenção
restaurativa643.
Uma primeira possibilidade consistiria em conceber a reparação dos danos
causados à vítima enquanto finalidade autónoma da intervenção penal que, assim, se
associaria, em plano de igualdade, às finalidades preventivas da pena limitadas pela
culpa. Não tem sido este, porém, o entendimento mais generalizadamente acolhido.
Uma tal opção – que, a ser possível, contribuiria para isentar a justiça penal da crítica de
esquecimento da vítima concreta e presente e diminuiria, segundo se crê, a utilidade e o

642
Um estudo especificamente dedicado ao tema é o de Selma Pereira de SANTANA, Justiça
Restaurativa – A Reparação como Consequência Jurídico-Penal Autónoma do Delito, Rio de Janeiro:
Lumen Iuris Editora, 2010. A Autora, contrariamente à posição que aqui se sustenta, parece ver a
reparação que é consequência jurídico-penal autónoma do crime como manifestação, também, da justiça
restaurativa. Nessa medida, tende a associar à justiça restaurativa a prossecução das mesmas finalidades
que atribui à pena, essencialmente preventivas. Não obstante, aponta algumas objecções à reparação
como consequência jurídica autónoma do crime que merecem reflexão também sob o enfoque
restaurativo, nomeadamente as atinentes ao princípio da culpa (ob. cit., p. 208 ss). A ponderação desses
problemas que julga inerentes à aceitação da reparação como consequência jurídica autónoma do crime é
também objecto do estudo “A reparação como consequência jurídico-penal autónoma do delito, o
projecto alternativo de reparação: algumas objecções” (Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de
Figueiredo Dias II, Org. Manuel da Costa Andrade e outros, Stvdia Ivridica 99, Coimbra: Universidade
de Coimbra/Coimbra Editora, 2009, p. 899 ss). Refere, entre outros, o facto de que “tanto a vítima quanto
o autor do delito ficariam sob excessiva pressão para que se reconciliem” ou a possibilidade de por esta
forma se estar a atentar contra o princípio da culpa.
643
Antes de se dar conta desses distintos entendimentos, parece útil relembrar os traços gerais em que
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, incisivamente, considerou a questão, delimitando algumas das principais
interrogações que subsistem (in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime,
reimpressão, Coimbra Editora: 2005, p. 77 ss). Depois de recordar que “a ideia de atribuir à reparação do
dano proveniente de um crime natureza especificamente sancionatória de carácter penal vai buscar as
suas raízes à doutrina da escola positiva, proposta e sufragada sobretudo por Ferri”, lamenta o facto de
esta concepção ter logrado “consagração legislativa muitíssimo limitada em termos do direito
comparado”, tendo o direito português abandonado, com a entrada em vigor do Código Penal de 82 e o
carácter inequivocamente civil da indemnização de perdas e danos, uma solução de reparação penal de
arbitramento oficioso, “precisamente quando uma parte da doutrina, sobretudo alemã, começou a
apresentar, com insistência, a proposta de fazer da reparação nada menos que um terceiro degrau do
direito penal, ao lado do da pena e do da medida de segurança”.

360
âmbito da proposta restaurativa – parece, porém, esbarrar na inconveniência ou na
inexequibilidade de, através de um único sistema de reacção ao crime se procurar dar
resposta a necessidades muito diversas e, pior do que isso, com frequência
conflituantes644.
Da forma mais simplificada, o que se pretende significar é a dificuldade de
conciliar uma justiça penal radicada no entendimento de que o direito penal tem por
escopo a protecção subsidiária de bens jurídicos essenciais (e, por isso, o processo penal
é um “assunto da comunidade”), com uma outra justiça (ainda penal) que seria, também,
uma justiça da vítima concreta e presente.
Este alargamento de finalidades suscitaria os mais fortes entraves a um qualquer
arranjo harmonioso quer da teoria da punição, quer dos procedimentos da punição, na
medida em que prejudicaria o próprio conceito de punição como prerrogativa do Estado
imbuído de um poder de autoridade gerado pela necessidade de defesa da comunidade.
O próprio direito processual penal teria de sofrer um abalo radical, mormente por força
da erosão de princípios como o da oficialidade e da legalidade da promoção processual
ou da necessária reorganização do sentido da intervenção dos vários sujeitos. Em
síntese, poder-se-ia afirmar, a partir da já referida ideia de Jorge de FIGUEIREDO
DIAS de que “a questão dos fins das penas constitui a questão do destino do direito
penal e do seu paradigma”645, que a eleição da reparação como nova finalidade
importaria mudanças decisivas no modelo de justiça penal que é o nosso. Ora, há
mudanças de modelo que podem ser de saudar. Mas nem sempre o são.
Não se vê que haja vantagem em trilhar este caminho. Quando se considera que,
num direito penal que se quer mínimo porque conhece os seus próprios desvalores e
reconhece a necessidade da sua contenção, só devem ser qualificadas como crimes as

644
Sobre as principais razões que fundam a rejeição da compreensão da reparação como finalidade
principal da intervenção penal, cfr. Cláudia SANTOS, “Direito Penal Mínimo e Processo Penal Mínimo
(Brevíssima reflexão sobre os papéis processuais penais do Estado punitivo, do agente do crime e da sua
vítima)”, Boletim do ICCRIM, ano 15, n.º 179, Out. 2007, p. 13.
645
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.º edição cit., ps. 44 e 60. O
Autor conclui ainda, depois de sublinhar o relevo que o direito penal português já atribui ao pensamento
político-criminal que funda a reparação, que «não será porventura adequado erigi-la em finalidade geral
da pena. Para além de que uma tal finalidade não pode valer para as sanções aplicáveis a certos tipos de
crime nem esgotar em tais casos o conteúdo sancionatório, sucede que a reparação – como manifestação
por excelência de uma justiça na sua essência “consensual” – poderia conduzir a que o sancionamento
penal ficasse, em rigor, numa larga e inadmissível disponibilidade (de aceitação) da vítima e/ou do
próprio agente. Como ideia geral, pois, a concertação vítima-agente só pode ter o sentido de contributo
(valiosíssimo!) para o restabelecimento da confiança e da paz jurídicas abaladas pelo crime, o qual, como
vimos, constitui o cerne mesmo da prevenção geral positiva. Enquanto, por outro lado, aquela
concertação conforma uma vertente decisiva para uma correcta avaliação, no caso, das exigências de
prevenção especial positiva».

361
mais graves de todas as condutas, reconhece-se a sua dimensão pública. Ora, as
necessidades preventivas que daí decorrem podem não ser coincidentes com as
aspirações ou as necessidades particulares das vítimas. O que equivale a afirmar que
uma justiça penal que é repressiva, sancionatória e estadual não pode parificar
inteiramente os interesses comunitários, o interesse do agente do crime num tratamento
justo e o interesse da vítima na reparação que subjectivamente considera adequada.
Uma das conclusões a que se julga poder chegar é a de que a defesa de um processo
penal garantístico (que procure equilibrar a promoção do interesse público na ordem e
na segurança com a liberdade e o respeito pelos direitos fundamentais) supõe a defesa
de um processo penal coerente com o sentido e o âmbito de um direito penal mínimo. O
que não parece compatível com um processo penal que fosse máximo na aceitação de
novas finalidades e de novos sujeitos, um processo penal em certa medida
descaracterizado por um seu alargamento que não é harmonioso com a própria
teleologia do direito penal.
Quando, para protecção da possibilidade de a justiça penal cumprir
adequadamente as finalidades que são as suas – a partir da imagem do malabarista que,
quanto mais bolas vai fazendo rodopiar no ar, com mais frequência deixa cair algumas
delas – se rejeita o alargamento dessas finalidades à reparação, aquilo que se não quer
significar é a irrelevância ou a dispensabilidade dessa reparação. Ela poderá ser
perseguida lateralmente pela própria justiça penal quando for compatível com as
finalidades penais ou até útil às finalidades penais646. E poderá ser perseguida por
outros sistemas de reacção ao crime, aí sim como finalidade autónoma. É, de resto o
que se julga suceder com a justiça restaurativa.
Mesmo quando não se admite a reparação como finalidade autónoma, mas tão só
como consequência autónoma647, é possível fazê-lo em pelo menos duas perspectivas.

646
A orientação da reparação penal, que é uma terceira via na reacção ao crime, para as finalidades
penais é absolutamente clara no modo como, em estudo mais recente, Mário Ferreira MONTE sintetiza as
ideias centrais da reflexão que já antes dedicara ao assunto. Associando a essa reparação a possibilidade
de o julgamento ser “em princípio suprimido”, o Autor refere as vantagens dessa solução para a pequena
e média criminalidade, não desconsiderando, entre outros aspectos, as finalidades de prevenção especial e
geral: ”do lado do arguido, a reparação penal tem um efeito socializador assinalável; do lado da
comunidade, a reparação penal satisfaz as necessidades de estabilização contrafáctica das expectativas
comunitárias na vigência da norma violada” (in “Um olhar sobre o futuro do direito processual penal –
razões para uma reflexão”, Que Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário
(dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra
Editora, 2009, p. 413).
647
Esta é a ideia de que parte Claus ROXIN, que manifesta a sua convicção na possibilidade de a
reparação contribuir para uma prossecução mais eficiente das finalidades especificamente penais: “a
reparação do dano não é, segundo esta concepção, uma questão meramente jurídico-civil, já que contribui

362
Há Autores que não prescindem da voluntariedade (para o agente) dessa reparação e que
admitem a sua cumulação com outras reacções criminais648; outros, pelo contrário,
defendem a possibilidade da sua aplicação coactiva e reservam a designação de
consequência autónoma do crime para os casos em que a reparação surge como
consequência única649.
Não preside a este estudo qualquer objectivo de opção por uma das duas
posições sugeridas650. Quando se consideram estes dois diversos entendimentos do que

essencialmente também para a consecução dos fins da pena. Tem um efeito ressocializador, porque obriga
o autor a enfrentar as consequências do seu acto e a aprender a conhecer os interesses legítimos da vítima.
Pode ser sentida por ele, com frequência mais do que a pena, como algo necessário e justo e pode
fomentar o reconhecimento das normas. Por último, a reparação do dano pode conduzir a uma
reconciliação entre o agente e a vítima e, desse modo, facilitar substancialmente a reintegração do
culpado. Além disso, a reparação do dano é muito útil à prevenção de integração, ao oferecer uma
contribuição considerável para a restauração da paz jurídica. Pois só a partir do momento em que se tiver
reparado o dano é que a vítima e a comunidade considerarão eliminada – com frequência mesmo
independentemente de uma punição – a perturbação social originada pelo crime” (in Derecho Penal –
Parte General, Tomo I, trad. da 2.ª ed. Alemã, reimpressão, Thomson/Civitas: 2003, p. 109). O Autor
entende que a legitimação para esta reparação como “terceira via” radica no princípio da subsidiariedade.
Este conceito de “terceira via” relaciona-se com a opinião segundo a qual «assim como a medida de
segurança substitui ou complementa a pena como “segunda via” quando esta, por causa do princípio da
culpa, não pode, ou só pode de forma limitada, satisfazer as necessidades de prevenção especial, do
mesmo modo a reparação do dano substituiria como “terceira via” a pena, ou atenuá-la-ia, quando
satisfizesse os fins das penas e as necessidades da vítima tão bem ou melhor do que uma pena não
atenuada». O Autor reconhece, porém, que “tudo isto é agora mais um programa do que uma realidade: só
se poderá falar de um direito penal de três vias (em vez das duas vias actuais) quando o legislador tiver
em conta a reparação do dano no sistema de sanções de uma forma totalmente distinta da actual” (ob. cit.,
p. 110). Pablo Galain PALERMO, tratando a reparação à luz do pensamento de Roxin, afirma que esta
reparação como “terceira via”, situa-se, “no sistema penal, no âmbito das sanções, não estando
fundamentada nem na culpa nem na perigosidade do agente, mas sim em princípios de política criminal”.
Todavia, em momento posterior, reconhece que, na sua opinião, o seu fundamento não estará
exclusivamente no “princípio político-criminal da subsidiariedade”, carecendo antes de uma “base
dogmática que lhe permita figurar como uma terceira alternativa dentro do rol punitivo”. Se parece claro
que PALERMO não quer prescindir da existência e da demonstração da culpa, o que o leva a duvidar da
adequação da reparação em momentos anteriores ao julgamento, também se julga que não é na culpa que
encontra fundamento para essa reparação: “a autonomia das partes que participam no acordo e o
reconhecimento voluntário da culpa – este último, reconhecido pelo juiz no momento da homologação
(onde assenta a ideia de reprovação) – constituem, na minha perspectiva, o fundamento da reparação” (in
“Suspensão do processo e terceira via: avanços e retrocessos do sistema penal”, Que Futuro para o
Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/MONTEIRO, Fernando
Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, ps. 633, 638, 641).
648
Neste sentido, por exemplo, cfr. Mário Ferreira MONTE, que afirma o “carácter voluntário” em que
assenta o modelo autonomista da reparação como “terceira via” e não como “verdadeira pena” (“Da
reparação penal como consequência jurídica autónoma do crime” cit., p. 140).
649
Julga-se que é este o ponto de vista perfilhado por Paula RIBEIRO de FARIA (“A reparação punitiva”
cit., p. 282), que admite o estabelecimento por via legislativa do montante indemnizatório-punitivo (não
fixo), sendo que esta sanção funcionaria como sanção principal e “teria que se revestir de uma certa
severidade, sob pena de não produzir efeito útil algum”, ainda que preservando-se o juízo de
proporcionalidade face à gravidade do facto.
650
Os argumentos em defesa de uma ou de outra das propostas são de várias índoles e não cabe aqui
fazer-lhes, sequer, referência integral. De qualquer modo, sempre se poderá dizer que aqueles que vêem
na reparação como consequência jurídica do crime uma sanção aplicada de forma isolada e coactiva
parecem entender que só assim se lhe pode assacar a qualificação de autónoma (porque, sozinha, já
cumpre as finalidades da intervenção) e a qualificação de consequência do crime (porque alheia à
vontade do condenado). Não se julga, porém, que estes argumentos sejam absolutamente decisivos: o

363
deverá ser a reparação como consequência jurídica autónoma do crime, com os
propósitos específicos que são os deste estudo, o que parece inequívoco é que aquela
segunda compreensão da reparação tem muito menor zona de contacto com a proposta
restaurativa do que a primeira. Assim, naquela a reparação surge inequivocamente como
sanção, assumindo a sua natureza coactiva e, por conseguinte, o seu alheamento face às
necessidades que os intervenientes no conflito acham que são as suas – o que,
naturalmente, deixa claro que, ao contrário da reparação restaurativa, que se funda na
predominância da dimensão interpessoal do conflito criminal, esta reparação surge
como imposição de terceiros que exercem a sua autoridade para reafirmar a vigência de
valores que importam à comunidade. Já a primeira proposta, sob este ponto de vista,
assume características de alguma hibridez: sendo a reparação ainda uma consequência
do crime determinada por terceiro dotado de autoridade e estranho ao conflito individual
– o que faria supor a prevalência da defesa do interesse colectivo –, não se prescinde,
porém, de manifestação de vontade de interveniente(s) naquele conflito. Ainda assim,
parece poder continuar a afirmar-se que os critérios que em primeira linha presidem
àquela reparação são as finalidades penais – nesta medida, os intervenientes no conflito
não modelam a reparação, é-lhes dada apenas a possibilidade de anuírem ou não a uma
reparação vista como satisfatória sob o ponto de vista das finalidades preventivas da
reacção ao crime.
Para o que a este estudo interessa, o que cumpre notar é que a reparação como
consequência jurídica autónoma do crime suscita ao pensamento penal um conjunto de
dificuldades que não se fazem sentir do mesmo modo quando se pensa a reparação
como finalidade de um outro modelo de reacção ao delito fundado, precisamente, em
uma diferente dimensão do crime. Essas dificuldades são de várias espécies e tornam
mais compreensível o facto de o Alternativ-Entwurf Wiedergutmachung de 1992 ter
acabado por não vingar, não tendo a reparação sido erigida, em qualquer país do nosso
contexto civilizacional, a consequência do crime prevista, como sanção principal, na
moldura penal abstracta de um conjunto amplo de tipos legais de crime651. Além dos

nosso ordenamento jurídico conhece casos de aplicação conjunta de pena e de medida de segurança, sem
que daí decorra de imediato a conclusão de inexistência de autonomia das duas consequências jurídicas
do crime e, por outro lado, conhece também sanções que só podem ser aplicadas com a concordância do
condenado. A opção por uma das posições em confronto sobre aquilo que deve ser a reparação como
consequência jurídica autónoma do crime deverá, por isso, encontrar arrimo em outros argumentos.
651
A propósito deste Projecto refere Jorge de FIGUEIREDO DIAS que dele é “porventura (modesta)
manifestação o § 46a do StGB” (in Direito Penal – Parte Geral Tomo I, 2.ª edição cit., p. 58).

364
problemas antes referidos inerentes à quantificação do dano para efeitos de medição da
punição, têm sido identificadas outras dificuldades.
Uma delas prende-se com a possibilidade de previsão de limites mínimos e
máximos para a reparação nas molduras penais abstractas, limites esses que sejam
adequados à punição e ao ressarcimento de danos de qualidade e de quantidade muito
diferentes, mas que respeitem ainda a exigência de determinabilidade da sanção.
Um outro obstáculo com que esta reparação como consequência jurídica
autónoma do crime se pode confrontar relaciona-se com a sua própria definição.
Enquanto a reparação restaurativa será aquilo que os intervenientes no conflito
interpessoal quiserem que ela seja – ainda que com os limites, claro está, decorrentes da
dignidade da pessoa e da proporcionalidade –, podendo assumir modalidades diversas
do pagamento de quantias pecuniárias, aquela reparação que é sanção criminal não pode
reservar idêntico papel à criatividade do agente e da vítima. As exigências decorrentes
do princípio da legalidade impõem que o conteúdo desta reparação seja muito mais
determinado, acabando ela por se resumir à restituição (através de uma devolução da
coisa ou de uma entrega de coisa idêntica) ou ao pagamento de determinada quantia. Ao
ser assim, a reparação adquire carácter de sanção patrimonial e, nessa medida,
aproxima-se da pena de multa. Em certo sentido, teríamos então duas sanções com um
forte elemento comum – o seu cunho patrimonial – mas com uma diferença de monta: o
destinatário. A multa seria uma sanção patrimonial que reverteria quase sempre652 para
os cofres do Estado, enquanto a reparação favoreceria a vítima do crime. Ora, com a
actual possibilidade de condenação a pena de multa e de condenação ao pagamento de
uma indemnização de perdas e danos, tanto o Estado como o lesado surgem como
beneficiários do esforço patrimonial que o agente do crime terá de suportar, de forma
absolutamente delimitada e precisa. Esta delimitação complica-se se passarmos a ter
duas sanções penais de natureza patrimonial com destinatários diferentes. Por um lado,
sempre terá de se repensar a existência cumulativa, nestes casos, de reparação e de um
direito à indemnização por perdas e danos, sob pena de o facto de se ser vítima de um

652
Existem, porém, casos em que, a título excepcional, o montante da multa é atribuído ao lesado. Nos
termos do n.º 3 do artigo 130.º do Código Penal, “se o dano provocado pelo crime for de tal modo grave
que o lesado fique privado de meios de subsistência, e se for de prever que o agente o não reparará, o
tribunal atribui ao mesmo lesado, a requerimento seu, no todo ou em parte e até ao limite do dano, o
montante da multa”. Para além do recorte já de si apertado dado a esta previsão, deve notar-se que a
mesma só será aplicável nos casos em que o Estado não tenha já o dever de indemnizar por força de
legislação extravagante, como aquela aplicável à indemnização a vítimas de crimes violentos.

365
crime acabar por funcionar como fonte de enriquecimentos injustificados653. Por outro
lado, desempenhando a reparação uma função punitiva para além de ressarcitória,
parece que a mesma terá de assumir, sozinha, valor que ultrapasse o ressarcimento do
dano para assim se lograr a punição. Mas, não se autonomizando o “valor do
ressarcimento” e o “valor da punição” e fazendo reverter essa soma única para a vítima,
é o Estado que perde uma não despicienda fonte de financiamento, com os prejuízos
para a eficácia da realização da justiça que daí poderão decorrer.
Para além disso, a generalização da reparação como sanção penal não deixa de
suscitar interrogações em uma perspectiva de respeito pelo princípio da igualdade. Se
tanto os mais favorecidos como os mais desfavorecidos podem, pelo menos em tese, ser
sujeitos à privação da liberdade de igual forma, e se a determinação da multa não
prescinde da consideração da situação económico-financeira do agente do crime, já a
conformação da reparação-sanção sobretudo pelos danos causados à vítima parece não
permitir adequar a sanção à situação económica do agente, garantindo a sua eficácia e a
tendencial paridade do desvalor que ela, enquanto ónus, deve significar. De facto, se a
parte que nessa consequência do crime é punição pode ser condicionada pelas
finalidades preventivas, limitada pela culpa e adequada à situação económica do agente,
já a sua parte que é ressarcimento de danos independe de tais considerações.
Do que se acabou de dizer intuem-se também já os problemas que podem
decorrer, na reparação-sanção, da necessidade de atender aos diversos pressupostos e às
distintas finalidades do ressarcimento e da punição, podendo aventar-se quer as
hipóteses em que não há dano para as vítimas concretas e passadas mas a culpa é muito
elevada (podendo ser, também, muito altas as exigências preventivas) quer, porventura
ainda com maior grau de problematicidade, as hipóteses em que o dano é enorme mas a
culpa não existe ou é escassíssima.
Finalmente, permanece controverso o âmbito que deveria e poderia ter esta
reparação como consequência jurídica autónoma do crime, questionando-se se a sua
aplicabilidade apenas faz sentido para os crimes que ofendem bens jurídicos individuais
ou se ela pode alargar-se aos crimes contra bens jurídicos supra-individuais. Existem

653
Julga-se que a questão é, porém, muito mais complexa do que a uma primeira análise se suporia, não
se podendo afirmar que com a generalização da reparação enquanto consequência jurídica autónoma do
crime se tornaria desnecessária a indemnização por perdas e danos, desde logo porque os seus sujeitos
podem não ser coincidentes. Assim, se apenas o ofendido for beneficiário dessa sanção de reparação,
podem existir outras vítimas, os lesados, que continuariam a ter de ser considerados sujeitos activos do
pedido de indemnização civil.

366
opiniões de sentido contrário sobre a possibilidade de a reparação se dirigir também à
criminalidade mais grave ou sobre a sua limitação aos crimes menos graves654.
De qualquer modo, aquele que parece ser o étimo comum a toda a reflexão sobre
a reparação como consequência jurídica autónoma do crime prende-se com a
possibilidade de através dela se cumprirem as finalidades especificamente penais. Neste
sentido, Claus ROXIN é inequívoco na inclusão da reparação no sistema sancionatório
como “a única grande conquista político-criminal do Direito Penal alemão nos últimos
vinte anos”, partindo-se do pressuposto de que “a boa política criminal consiste (…) em
unificar da melhor maneira possível a prevenção geral, a prevenção especial centrada na
integração social e a limitação da pena decorrente do Estado de Direito”655.

654
Sobre esta reparação, que relaciona com “a possível concertação entre o agente e a vítima” (“a
chamada, na literatura e na dogmática jurídico-penal alemãs, Täter-Opfer-Ausgleich”), Jorge de
FIGUEIREDO DIAS reconhece que “a discussão (…) centra-se hoje sobretudo em determinar o exacto
relevo do tema para a teoria dos fins das penas criminais, a concreta conformação que devem assumir as
medidas de concertação e a delimitação precisa do seu âmbito de aplicação; nomeadamente, se devem ser
aplicadas só a crimes contra bens jurídicos individuais ou também contra bens jurídicos supra-individuais
e se apenas no âmbito da pequena, eventualmente até da média ou até mesmo da (de certa; e qual?)
grande criminalidade” (in DireitoPenal, Parte Geral, Tomo I, 2.º edição cit., p. 59).
655
Claus ROXIN esclarece o seu entendimento sobre as vantagens que a reparação pode assumir no plano
das finalidades do direito penal: “o que torna atractiva uma promoção da reparação é, em primeiro lugar,
o seu efeito de prevenção geral no melhor sentido. No caso dos pequenos crimes, a paz jurídica é
restaurada, não só necessária mas principalmente, através do ressarcimento da vítima e da conciliação
entre o autor e a vítima. Desta forma, o conflito é resolvido, a ordem jurídica restabelecida e a força
impositiva do Direito comprovada de um modo claro para a população. A inclusão da reparação e da
conciliação entre o autor e a vítima no sistema sancionatório é adequada, em idêntica medida, às
exigências da prevenção especial, pois o autor é forçado a debater-se interiormente com o facto e as suas
consequências, a ajudar a vítima por meio de prestações activas e, portanto, a actuar ele próprio de modo
ressocializador. A reparação evita também os efeitos dessocializadores de outras sanções e é, por isso,
propícia à ressocialização. Finalmente, a reparação e a conciliação entre o autor e a vítima são, entre todas
as instituições com relevância sancionatória, aquelas que menos prejudicam a autonomia da personalidade
do arguido” (in “Sobre a evolução da política criminal na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial”,
Problemas Fundamentais do Direito Penal – Homenagem a Claus Roxin, coord. de Maria da Conceição
Valdágua, Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2002, ps. 23-4).

367
368
Capítulo II
A proposta restaurativa e a questão da sua compatibilidade com princípios
estruturais do actual modelo de reacção ao crime

1. Considerações introdutórias

Ultrapassado um período inicial de certo deslumbramento com a proposta


restaurativa656, que tinha como consequência alguma incapacidade de compreensão
daquelas que são as suas limitações e daqueles que são os seus riscos, têm vindo a surgir
algumas reflexões orientadas para a sua crítica657. Esta tende a radicar ora na alegação

656
Sobre o deslumbramento ou a euforia associados ao surgimento de um “paradigma reparador” e sobre
a necessidade de manter um “sereno distanciamento”, cfr., no final da década de noventa, Jesús Maria
Silva SANCHEZ, “Sobre la relevancia jurídico-penal de la realización de actos de reparación”, Revista
Poder Judicial, n.º 45, 1997, p. 191. Também George PAVLICH analisa criticamente a justiça
restaurativa a partir da ideia de que ela é um “conceito deste tempo” e da sua apresentação como uma
panaceia. E justifica este estado de coisas lembrando o agrado com que a justiça restaurativa tende a ser
encarada quer pelos “pensadores conservadores” (que apreciam o relevo dado aos interesses das vítimas,
à economia de meios, às “eficiências administrativas” ou às “utopias comunitaristas”); quer pelos autores
com “inclinações mais liberais”, que a vêem como uma promessa de menos prisão e de mais atenção às
necessidades dos que sofrem privações; quer pelos “reformistas”, atraídos pela ideia, que se associa à
proposta restaurativa, de transformação social. Esta multiplicidade de “promessas” surge, ainda, associada
à pluralidade dos discursos restaurativos, à sua falta de homogeneidade e às dificuldades de definição. O
“apelo amplo da justiça restaurativa” relaciona-se, assim, com a “ambiguidade da sua formulação”
(George PAVLICH, “Deconstructing restoration: the promise of restorative justice”, Restorative Justice –
Theoretical Foundations, Eds. Elmar Weitekamp/Hans-Jürgen Kerner, Devon: Willan Publishing, 2002,
ps. 90-92). Para uma análise crítica da politização do discurso criminológico, condicionado pela opinião
pública e pelas “emoções populares”, cfr. Ian LOADER /Richard SPARKS, “Criminology’s public roles:
a drama in six acts”, What is Criminology, Eds. M. Bosworth/C. Hoyle, Oxford: Oxford Univesity Press,
2011, p. 17 ss.
657
Uma das críticas mais veementes é a feita por Richard DELGADO (“Goodbye to Hammurabi:
Analyzing the Atavistic Appeal of Restorative Justice”, Stanford Law Review, vol. 52, 4, 2000, p. 751 ss),
que questiona a possibilidade de a justiça restaurativa cumprir as suas “promessas” de menos punição,
mais reparação e humanidade na reacção ao crime. Entre outras objecções, aponta a exploração das
relações de desigualdade, o esquecimento da dimensão pública do conflito e a desconsideração das
garantias processuais (como os direitos a “confrontar testemunhas, ser representado por advogado, evitar
a auto-incriminação, ser julgado por um tribunal e recorrer”). Um outro estudo orientado para a crítica
dos mecanismos ditos “alternativos” de solução de conflitos é o de Tomás Javier Aliste SANTOS
(“Meditación crítica sobre la mediación como alternativa a la jurisdicción”, La Mediación en Materia de
Familia y Derecho Penal – Estudios y Análisis, coord. Fernando Martín Diz, Santiago de Compostela:
Andavira Editora, 2011, ps. 71 e 75). Refuta, em primeiro lugar, a nota da novidade que lhes vem sendo
associada, considerando que “não podemos perder de vista aquilo que significou e significa a jurisdição
para o direito”, depois da “noite dos tempos, em que a tutela privada e a composição privada eram os
meios para resolver as controvérsias”. O Autor vê no fenómeno de “fuga à jurisdição” uma espécie de
“canto da sereia”, que assenta numa falsa analogia associada à sua apresentação como “alternativa à
justiça tradicional”: “estabelece-se uma falsa analogia quando se fala de métodos alternativos de
resolução de conflitos, porque não existem elementos que permitam estabelecer a necessária identidade
de razão entre estes e a jurisdição, mas sim muitas diferenças que os convertem em algo qualitativamente
distinto da jurisdição, mas não alternativo. Entre os cultores da proposta restaurativa, também se
reconhecem riscos como os de alargamento indesejado do controlo social ou de favorecimento de

369
das desvantagens que comporta para a vítima e/ou para o arguido658 (cujos interesses
concretos seriam o esteio, assim quebradiço, da própria proposta restaurativa), ora na
desconformidade que a teoria e as práticas restaurativas podem representar face a alguns
dos princípios estruturais do nosso modelo de reacção ao crime659. E, é este o ponto que
importa sublinhar, a desconformidade face a princípios que são estruturais porque são,

“sanções” desproporcionais na sua gravidade (cfr., a título de exemplo, ROBERTS, Julian V./ROACH,
Kent, “Restorative justice in Canada: from sentencing circles to sentencing principles”, Restorative
Justice & Criminal Justice – Competing or Reconciliable Paradigms?, Ed. A. Von Hirsch/J. Roberts/A.
Bottoms/K. Roach/M. Schiff, Oxford: Hart Publishing, 2003, ps. 250-254).
658
Para a análise – e tentativa de refutação – das críticas à justiça restaurativa centradas ou na perspectiva
da vítima, ou na perspectiva do agente, cfr. WRIGHT, Martin/MASTERS, Guy, “Justified criticism,
misunderstanding, or important steps on the road to acceptance”, Restorative Justice – Theoretical
Foundations, Eds. Elmar Weitekamp/Hans-Jürgen Kerner, Devon: Willan Publishing, 2002, p. 50 ss.
659
O questionamento dos limites inerentes às soluções de diversão e de consenso no contexto criminal
tem sido levado a cabo, entre nós, por vários Autores. Logo no início da década de oitenta, Eduardo
CORREIA já referia o carácter “preocupante” da “pretensão de substituir, como já alvitrava Radbruch, o
direito penal por coisa melhor e diferente”. E, logo, de seguida, acrecentava: «ensaiando esse caminho,
fala-se de “não intervenção” ou de “diversão”, que em larga perspectiva se faz coincidir com uma
desjurisdicionalização, aconselhando uma não intervenção dos órgãos judiciais, entregando à sociedade, a
ela própria, aos seus grupos e comunidades, a função de resolver todos os seus conflitos, mesmo que
possam ter ressonância penal, mediante conciliações e mediações, não controladas pelos tribunais. Ora,
esta negação da regra, que Feuerbach, lapidarmente, formulava no brocardo nulla poena sine juditio,
viola, afinal, toda a legalidade e todo o Estado de direito». Com grande importância para a ponderação do
modo de actuação específico da justiça restaurativa, Eduardo CORREIA, referindo-se ainda a esses
mecanismos de “diversão”, menciona a garantia que decorre da existência do sistema judicial: “como se a
toga, a veste da justiça, não fosse, afinal, o pressuposto da segurança, da legalidade, do respeito das
garantias e direitos fundamentais dos homens. Sem tribunais ou fora deles, a decisão dos conflitos sociais,
nomeadamente penais, perde toda a força da soberania que lhe empresta a própria Constituição”. E o
Autor conclui que “pelo caminho apontado nada se ganha, assim, no que tange ao labéu e lesa-se o
princípio da legalidade do Estado democrático, segundo o qual os tribunais devem sempre resolver os
conflitos de interesses com ressonância criminal. Os juízes, todos os que trabalham nas decisões judiciais
penais, são, deste modo, essenciais para garantia do Estado de direito” (in “As grandes linhas da Reforma
Penal”, Jornadas de Direito Criminal, CEJ: 1983, p. 21). Posteriormente, em estudo intitulado “Diversão
(Desjudiciarização) e Mediação: Que Rumos?”, José de FARIA COSTA afirma que “a mediação que
anteriormente descreveramos só tem sentido, como vimos, desde que praticada fora dos ritos jurídicos. O
que a torna numa medida demasiado aliciante mas, a um tempo e em princípio, de algum perigo para a
liberdade e garantias do cidadão” (in Separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, vol. LXI, p. 7). Também entre os Autores que dedicam reflexões à proposta restaurativa, vêm
surgindo chamadas de atenção para os riscos que lhe são inerentes. Assim, por exemplo, Andrew
ASHWORTH (“Responsabilities, rights and restorative justice”, British Journal of Criminology, 2002, 42
(3), p. 578 ss), que suscita dúvidas sobre os “objectivos aparentemente benéficos” que a justiça
restaurativa assume, na medida em que podem ser comprometidos pelo desrespeito de garantias
processuais e de outros limites de natureza substantiva. Recentemente, na doutrina portuguesa e partindo
da afirmação de que a política criminal do futuro deve integrar mecanismos restaurativos, Jorge de
FIGUEIREDO DIAS não deixa, porém, de sublinhar que se impõe “uma reflexão séria sobre a
compatibilidade de tais mecanismos com princípios até agora tão fundamentais e indiscutíveis como o do
monopólio estadual da função judicial em matéria penal, da jurisdicionalização plena dessa mesma
matéria, da legalidade estrita da intervenção penal, da culpa, da tutela subsidiária de bens jurídicos, do
carácter exclusivamente preventivo da punição – a maioria de tais princípios, se não todos, jurídico-
constitucionalmente impostos” (“O processo penal português: problemas e prospectivas”, Que Futuro
para o Direito Processual Penal?, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO,
Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 815).

370
sem tergiversações, assumidos enquanto manifestações do respeito pelos direitos
fundamentais das pessoas660.
Nesta medida, a interrogação crítica que se vem esboçando prende-se, de certo
modo, com a possibilidade de as práticas restaurativas – e a mediação penal, exemplo
por excelência de tais práticas – conduzirem a uma “justiça penal de segunda
categoria”661. Ainda com maior vigor, pode até questionar-se a desadequação do sentido

660
Em certo sentido, parece metodologicamente redutora a confrontação da proposta restaurativa com
apenas alguns dos princípios estruturantes da justiça penal, por se poder afirmar que o problema é mais
vasto e se prende, antes, com uma tentativa de solucionar o conflito fora do sistema penal, sendo portanto
todo esse sistema que se abandona, e não já apenas alguns dos seus princípios estruturantes. Todavia,
optou-se por se reduzir a confrontação crítica da proposta restaurativa com alguns princípios que se
julgam simultaneamente preponderantes e portadores de específica vulnerabilidade, por duas ordens de
razões. Em primeiro lugar, porque se julgou que se ganha assim em concretude na reflexão. Em segundo
lugar, porque, em contextos onde se integrem as práticas restaurativas na própria resposta penal
(nomeadamente, como sucede em Portugal, com a construção de um sistema público de mediação que
está concatenado com a justiça penal), com a resposta restaurativa não é todo o sistema penal que se
preclude, mas apenas “partes” dele – essas “partes”, perdoe-se a expressão, que serão representadas
através de princípios. Com esta opção – que se procurou justificar – não se desconhece, porém, que a
própria adopção de um outro modo de consideração do conflito, distinto da abordagem própria da
dogmática jurídico-penal, é susceptível, no seu todo, de desencadear algumas preocupações. Abandona-
se, na proposta restaurativa, a «dialéctica (…) entre “sistema” e “problema”» que, segundo Jorge de
FIGUEIREDO DIAS, “deve valer completamente para a dogmática jurídico-penal”. E, para uma mais
exacta compreensão daquele que pode ser o sentido dessa preocupação com a desconsideração do
sistema, tenham-se em conta outras palavras de Jorge de FIGUEIREDO DIAS sobre a importância da
assunção de uma “atitude metodológica correcta no trabalho sobre a dogmática jurídico-penal”: «do que
nela se trata é, em último termo, de encontrar soluções justas e adequadas para concretos problemas da
vida de relação comunitária. Esta tarefa não pode porém ser cumprida com êxito apelando directamente
para objectividades ou intencionalidades ínsitas na Ideia de Direito, ou mesmo para puros princípios ou
considerações de valor fundados em uma qualquer axiologia pressuposta. Pois assim se tornaria a solução
do caso e o alcance da almejada “justiça material” função de um puro jogo de lotaria, individual e
comunitariamente insuportável e que representaria o retrocesso de mais de um século na evolução da
dogmática jurídico-penal» (in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed. cit., ps. 32-3). Mesmo a um
olhar superficial, ressalta a oposição entre a informalidade pretendida pela justiça restaurativa e a
formalização inerente à justiça penal. Caracterizando as “peculiaridades” do direito penal, Sergio
MOCCIA dá destaque ao “tendencial formalismo em que se inspira a construção do sistema e a
interpretação das normas”. A causa desta característica está, ainda segundo o Autor, no facto de o direito
penal ser “o instrumento de intervenção estadual que com maior intensidade incide sobre a liberdade
individual” (“Función Sistemática de la Política Criminal. Principios Normativos para un Sistema Penal
Orientado Teleologicamente”, Fundamentos de un Sistema Europeo del Derecho Penal – Libro-
Homenaje a Claus Roxin, J.M. Silva Sànchez (ed. espanhola)/B. Schüneman e J. de Figueiredo Dias
(Coords.), Barcelona: Bosch, 1995, p. 73).
661
Reconhecendo que a mediação penal suscita problemas teóricos, Elena HIGHTON/Gladys
ALVAREZ/Carlos GREGORIO (ob. cit., p. 61 ss) afirmam que “se tem debatido muito sobre que espécie
de justiça se administra quando se aplica a mediação a casos penais. A inquietação passa por perguntar se,
quando se flexibilizam as regras jurídicas e processuais, se utiliza como mediadores pessoas que não são
juristas, não estando as partes legalmente representadas, se cria um sistema de justiça criminal de segunda
classe”. Em sentido não muito distante, depois de reconhecer que já não se pode falar hoje de um total
esquecimento da vítima pelo sistema de justiça penal, Ana Isabel Pérez CEPEDA (“Las víctimas ante el
derecho penal. Especial referencia a las vias formales e informales de reparación y mediación”, Homenaje
al Dr. Marino Barbero Santos: in memoriam, vol. I, Dir. Arroyo Zapatero/Berdugo Gómez de la Torre,
Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha/Ediciones Universidad de Salamanca, 2001, p. 446),
afirma, porém, que nem sempre o fim último subjacente às várias medidas adoptadas é “beneficiar a
vítima, mas sim poupar tempo e dinheiro à própria administração da justiça. Nos últimos anos pôde
observar-se uma tendência para agilizar e desdramatizar a solução dos conflitos sociais. Entre as medidas

371
da intervenção restaurativa face às especificidades do crime que é o objecto da justiça
criminal. Nas palavras de Teresa BELEZA, «as ideias de mediação (como processo) e
de restauração (enquanto objectivo), que vão ganhando terreno na actual Justiça Penal,

adoptadas, convém sublinhar a importância (…) da reparação do dano causado à vítima do delito e a
proliferação dos processos de mediação”. Depois de dar conta de alguns programas restaurativos em
diversos países e das finalidades que os orientam, a Autora não deixa de esclarecer – e é este o ponto da
sua argumentação que agora se quer vincar – que “estes processos são vistos com certas reservas por um
sector da doutrina que reconhece o perigo de que conduzam a uma funcionalização e desformalização da
justiça penal, o que seria incompatível com os princípios da legalidade, segurança jurídica, igualdade e
oficialidade próprios do direito penal do moderno Estado de Direito”. Em momento posterior do seu
estudo, parece ficar clara a manifestação da preferência da Autora, mesmo na perspectiva da vítima, pela
solução do conflito através das “vias formais”. Ana CEPEDA acaba por afirmar que “a justiça extra-penal
é sumamente criticável na perspectiva do Estado liberal garantista”, depois de elencar um conjunto de
objecções às vias extra-judiciais de solução do conflito penal. Julga-se útil a reprodução, nesta sede,
dessas objecções, como ponto de partida para a consideração da questão da compatibilidade (ou não) da
proposta restaurativa com aqueles princípios fundamentais que conformam o direito penal e o direito
processual penal. Depois de afirmar as dificuldades suscitadas por tais soluções à luz dos “princípios da
igualdade e proporcionalidade”, a Autora aduz que “as vias extra-penais como recurso de controlo social
informal, substitutivas do processo penal, podem flexibilizar o princípio da legalidade, o que debilitaria o
fim de prevenção geral que tem o direito penal, gerando uma grande instabilidade e desconfiança no
sistema, na medida em que a desigualdade das respostas leva ao descrédito. Neste sentido, também
poderia acontecer que a prevenção geral cedesse não só perante a prevenção especial mas também face à
obtenção de um fim particular: o de satisfação da vítima. Por outro lado, estas tendências estão a incidir
negativamente numa das conquistas mais importantes do Estado de Direito: o direito do arguido à
presunção de inocência, na medida em que é necessário admitir a culpa antes de poder ter acesso à via
extra-judicial, o direito a um julgamento objectivo, imparcial e justo, o direito de utilizar os meios de
prova pertinentes para a sua defesa, o direito a não declarar contra si próprio, etc. Isto pode conduzir a
que as partes se vejam constrangidas; a vítima por necessidades económicas e o arguido pelo medo da
condenação a uma pena. Por último, a pena não pode ser substituída pela reparação porque, para atingir
os fins preventivos, é necessário que a pena seja manifestação de que o direito penal se mantém vigente
como protector dos bens jurídicos, ou seja, que serve para confirmar a presença do Estado na ordenação
da convivência” (ob. cit., p. 466). Finalmente, para afastar o interesse da solução extra-judicial do conflito
olhando para a perspectiva da vítima (e não já para os direitos do arguido), Ana CEPEDA acrescenta que
“as expectativas das vítimas não podem identificar-se com pretensões monetárias, pois que o que a vítima
espera e exige é justiça e não uma compensação económica”. Não se ponderará nesta sede tal afirmação
relativa às necessidades da vítima, pois a questão merece tratamento autónomo. Esclareça-se, porém, que
não se compreende por inteiro a associação que a Autora parece fazer entre a justiça que a vítima deseja e
apenas a punição do agente, perguntando-se antes se a oferta de uma certa possibilidade de reparação não
constitui também uma exigência dessa justiça almejada pela vítima. Por outro lado, afirmações genéricas
sobre aquilo que a vítima espera ou deseja serão sempre questionáveis se não forem suportadas pela
referência a elementos empíricos. Ora, aqueles que se conhecem e que em outros momentos deste estudo
se referirão parecem favorecer a ideia de que as vítimas querem coisas diferentes (nem todas as vítimas
querem o mesmo e a mesma vítima pode querer mais do que uma coisa). Todavia, voltando àquele que se
pretende que seja o núcleo da reflexão neste momento, o que se quer vincar é que entre as objecções
elencadas pela Autora se encontram argumentos de muito distinta natureza. Alguns são atinentes à
impossibilidade de com a solução extra-judicial do conflito se alcançarem as finalidades preventivas do
direito penal. Dessas objecções não se curará nesta sede, desde logo porque elas não são coerentes com o
que antes se defendeu sobre as finalidades autónomas da justiça restaurativa. Dito da forma que se
pretende mais simples: a proposta restaurativa não pode ser rejeitada por não cumprir as finalidades
especificamente penais porque essas finalidades não são suas. O problema que aí se suscita é outro e
prende-se com a possibilidade, que deve ser aferida caso a caso a partir dos critérios gerais para a
diversão elencados pelo legislador, de tais práticas restaurativas constituírem alternativa à solução integral
do conflito pela justiça penal. Sobram, porém, outras objecções, essas sim já atinentes à violação de
princípios estruturantes do direito penal e do direito processual penal, como sejam os princípios da culpa,
da oficialidade ou da legalidade. São as dificuldades que os mecanismos de solução do conflito jurídico-
penal fora das instâncias formais de controlo (como a mediação penal) suscitam quando confrontados
com tais princípios que, de seguida, deverão merecer tratamento autónomo.

372
são, poderá afirmar-se, curiosamente inapropriadas ao sistema penal. Por um lado,
porque reduzem a questão penal a um conflito entre duas pessoas (…), como um
conflito civil. A ideia hegemónica da composição de litígios como fim último do
Direito, contestada com base empírica mesmo na própria Justiça Cível é assim
contrabandeada para a Justiça penal, aquela a que certamente menos se adequa. Por
outro lado, parece esquecer que se estas questões são conceptual e politicamente
redutíveis a conflitos privados (e não particularmente graves), então por que mistério
estarão (e continuam a estar) no Direito Penal?»662.
A estas objecções parece poder responder-se, ainda de modo genérico, que, se a
justiça restaurativa pretende ser um modelo de reacção ao crime diferente da justiça
penal, quer a sua teoria quer a sua prática têm de comportar uma certa margem de
desconformidade663. O que deve questionar-se não é, portanto, se a diferença existe, mas
antes se essa diferença supõe um desrespeito por valores relacionados com o modo
como a nossa sociedade lida com o crime que devem continuar a julgar-se inatacáveis.
E se esse desrespeito, a existir, adquire dimensão que se julga, também ela, inaceitável.
O que deve merecer agora atenção é, portanto, a possibilidade de com a proposta
restaurativa se preservarem valores que se julga que devem continuar a ser
conformadores da reacção social ao crime. Em certo sentido, o que se perguntará é
também se a herança garantística do iluminismo penal, de que se não quer abrir mão,
pode ou não conviver com alguns dos novos ventos do pósmodernismo ou, como
prefere José de FARIA COSTA, da tardomodernidade664.

662
Teresa BELEZA, “Reconciliação, culpa e castigo” cit., ps. 72-3. Em sentido que parece próximo,
Nuria Matellanes RODRIGUEZ (“La justicia restaurativa en el sistema penal. Reflexiones sobre la
mediación”, La Mediación en Materia de Família y Derecho Penal, Estudios y Análisis, coord. Fernando
Diz, Santiago de Compostela: Andavira Editora, 2011, p. 231), apesar de reconhecer a forma como a
mediação penal suscita a reflexão sobre o princípio da mínima intervenção do direito penal, prefere a
solução descriminalizadora, sobretudo por achar que esta opção é “mais segura do que fazer filigrana
jurídica para resgatar umas garantias processuais e penais que a mediação, à partida, põe em perigo”.
Contra este entendimento pode, porém, objectar-se que a proposta restaurativa não limita o seu âmbito de
aplicação a conflitos menos graves e a que falta uma dimensão pública.
663
Tenha-se em conta, a este propósito, a afirmação de WRIGHT, Martin/MASTERS, Guy (“Justified
criticism, misunderstanding, or important steps on the road to acceptance”, Restorative Justice –
Theoretical Foundations, Eds. Elmar Weitekamp/Hans-Jürgen Kerner, Devon: Willan Publishing, 2002,
p. 51) de que algumas críticas à justiça restaurativa “estão baseadas em ideias do paradigma antigo, e são
inadequadas ao novo”.
664
Assim, v.g. em Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta iuris poenalis), 2.ª edição,
Coimbra Editora: 2009, p. 213. Em uma obra de referência para a compreensão da forma como se vem
tratando o crime, sobretudo nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha desde a década de oitenta, David
GARLAND (La Cultura del Control, trad. de Máximo Sozzo, Barcelona: gedisa editorial, 2005, p. 13 ss)
também recorre ao conceito de “sociedade tardomoderna”. Uma das notas que lhe aponta é a “crescente
consciência acerca dos limites da justiça penal moderna no que respeita à sua capacidade de controlar o
delito e garantir segurança”. As referências à sociedade tardomoderna são também recorrentes na obra,

373
Tendo em conta aquele que constitui o objecto deste estudo parece, porém,
impossível ajuizar-se de forma exaustiva quer sobre o sentido de cada um dos
princípios, quer sobre todos os princípios que poderiam sofrer qualquer compressão por
força da proposta restaurativa. Esclareça-se portanto, desde já, que aqui se não pretende
proceder à análise do sentido e do conteúdo de cada princípio, nem reflectir sobre todos
os princípios que poderiam ter alguma pertinência na perspectiva restaurativa. A análise
será, assim, sempre filtrada por esta proposta restaurativa (relativamente a cada
princípio, ponderar-se-á apenas o que nele parece conflituar com a proposta
restaurativa) e olhar-se-á apenas para aqueles princípios que se julga parecerem ser mais
directamente postos em causa e apenas na medida do necessário para confirmar ou
infirmar tal impressão665.
Uma abordagem metodológica que se pretende adequada supõe, ainda, uma
outra precisão. Ajuizar da conformidade da proposta restaurativa com um conjunto de
valores que a comunidade considera imprescindíveis e que têm consagração em
princípios que devem ser vistos como estruturais não é o mesmo que interrogar a
compatibilidade com todos os princípios que conformam a reacção penal. Se a justiça
restaurativa apresenta especificidades face à justiça penal, parece razoável admitir-se
uma certa margem de desconformidade nas soluções. O que deve questionar-se é se essa
desconformidade é ainda suportável à luz das linhas orientadoras de que o nosso

citada, de Juan Fernando SEGOVIA, Habermas y la Democracia Deliberativa: una Utopia


Tardomoderna.
665
No seu estudo de referência sobre esta matéria, “Diversão (Desjudiciarização) e Mediação: Que
Rumos?”, José de FARIA COSTA considerou já os “princípios estruturais que dificultam e limitam”
aquelas práticas de diversão e mediação nos países europeus. O Autor optou por destacar o princípio da
culpa, o princípio da legalidade da acção penal, o princípio do carácter público e indisponível do
exercício da acção penal e o princípio da reserva estadual da administração da justiça penal (ps. 36-42). A
sistemática que de seguida se adoptará no tratamento deste tema revelar-se-á muito próxima daquela que
foi eleita por José de FARIA COSTA, precisamente por também se considerar que aqueles constituem os
nódulos principais do problema. Julgou-se, pois, serem merecedores de referência especial o princípio da
culpa, os princípios relativos à promoção processual da oficialidade e da legalidade e o princípio do
monopólio da função jurisdicional. Não se ignora, porém, a existência de outras linhas de
problematização em certo sentido mais amplas, que trazem à colação outros princípios, como o da
presunção de inocência, o da publicidade do processo, o da igualdade, o do direito ao contraditório e ao
recurso (assim, por exemplo, Germano MARQUES DA SILVA, “A Mediação Penal, Em Busca de um
Novo Paradigma?” e Antero LUÍS, “O Sistema Tradicional de Justiça e a Mediação Penal”, ambos em A
Introdução da Mediação Vítima-Agressor cit., p. 53 a 59 e p. 105 a 107). Também Francisco Amado
FERREIRA, depois de referir que se vem criticando “a diminuição das garantias conquistadas pelo
arguido ao longo das últimas centúrias”, refere, no contexto de uma ponderação da justiça restaurativa,
que «os princípios da culpa, da legalidade, do acusatório, da investigação, da prova, da audiência
(contraditória e pública) e da reserva estadual da administração da justiça penal, bem como os valores da
imparcialidade e da independência (judiciais) ficam tolhidos com a realização de uma denominada
“justiça de gabinete”» (in Justiça Restaurativa cit., p. 127). A razão pela qual não se dará tratamento
autónomo a todas estas linhas de interrogação prende-se sobretudo com o facto de se julgar que as
tendências de resposta que para elas devem ser encontradas resultarão, já, da consideração daqueles
outros princípios fundamentais anteriormente elencados.

374
ordenamento jurídico não prescinde em um modelo de reacção ao crime. Por se julgar
que é assim que se deve enfrentar o problema, a interrogação a que alguns princípios,
quer do direito penal, quer do direito processual penal666 serão sujeitos partirá,
inevitavelmente, da verificação de que tais princípios decorrem de imposições desde
logo constitucionais e que têm uma certa margem de “imperatividade” mesmo para
formas de reacção ao crime não equivalentes à justiça penal dita tradicional.

2. O princípio da culpa

A reflexão anterior em torno das finalidades da pena e das finalidades da solução


restaurativa (interligada com a questão da função da justiça restaurativa versus a função
da justiça penal), se conduziu ao abandono da contraposição radical com base no
binómio reparação/retribuição, nada permitiu concluir quanto à transposição (ou não) do
princípio da culpa667 do domínio penal para o domínio restaurativo. Afirmou-se que a

666
A afirmação de uma certa instrumentalidade do direito processual penal face ao direito penal
substantivo não permite que se centrem só nos princípios conformadores daquele direito adjectivo os
problemas atinentes à admissão de práticas restaurativas. Como nota Pablo GALAIN PALERMO, “o
procedimento penal é entendido tradicionalmente como uma ferramenta auxiliar e necessária do direito
penal, como um meio de esclarecimento da verdade que serve para demonstrar a culpabilidade ou a
inocência de um indivíduo em relação a um delito. Nos últimos tempos, as sucessivas reformas
processuais têm modificado substancialmente a função do processo penal, primeiro, recriando as suas
etapas e, em seguida, desviando algumas delas para instâncias informais. E isso de tal forma que se
poderia afirmar como finalidade actual perseguida pelo legislador justamente a não existência do processo
penal (mesmo que isso não impeça algum outro modo de imputação ou uma renúncia a exercer um
controlo social)” (in “Mediação penal como forma alternativa de resolução de conflitos: a construção de
um sistema penal sem juízes”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol.
III, Coimbra Editora: 2010, p. 835).
667
Já se esclareceu que não cabe nos propósitos deste estudo qualquer reflexão detida sobre as questões
atinentes à culpa jurídico-penal. Não deve, porém, deixar de se referir o relevo que para uma análise do
tema continua a ter a obra de referência de Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Liberdade, Culpa, Direito
Penal, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1995. O Autor parte da ideia de que o princípio da culpa
constitui “elemento limitador do poder e do intervencionismo estatais comandado por exigências
irrenunciáveis de respeito pela dignidade pessoal”. E, apesar de reconhecer que “a via da exigência da
culpa não é a única forma pensável de defesa daquela dignidade”, até na medida em que também o
princípio da proporcionalidade cumpre (sobretudo no que respeita ao facto dos inimputáveis) uma função
análoga à da culpa, continua a julgar-se que aquele princípio é “uma autêntica máxima de civilização e de
humanidade, para a qual se não descortina ainda hoje alternativa” (ob. cit., p. 281-3). Relativamente ao
conteúdo material da culpa jurídico-penal, Jorge de FIGUEIREDO DIAS afirma a preferência pela
combinação das “ideias de que toda a culpa é culpa da atitude interior (…) e, do mesmo passo, ter que
responder pela personalidade documentada no facto e que o fundamenta”. E acrescenta que «o que se
censura em direito penal é a circunstância de o agente ter documentado no facto – no facto que é
“expressão da personalidade” – uma atitude de contrariedade ou de indiferença (no tipo-de-culpa-doloso)
ou de descuido ou de leviandade (no tipo-de-culpa-negligente) perante a violação do bem jurídico
protegido» (últ. ob. cit., p. 287). Manuel da COSTA ANDRADE afirma que, inerente a esta compreensão,
está uma “quase copernicana inovação”, associada ao “esforço logrado de definir um novo fundamento e
um novo conteúdo para o juízo de culpa, reconduzindo-o à matriz existencial da liberdade humana, que
tende a confundir-se com o radical e originário modo de ser pessoa. Mas sem perder de vista a ligação ao
facto e à atitude ou Gesinnung face ao direito, que nele se contém e exprime. O que, se permite superar a

375
finalidade da pena não é a retribuição da culpa manifestada no facto pelo agente, mas
afirmou-se também que a culpa constitui uma barreira para o poder punitivo do Estado,
ao ser apresentada como pressuposto e limite intransponível da pena. A culpa é, nessa
medida, um pressuposto imprescindível para se poder afirmar a responsabilidade penal
do sujeito, porque é ela que permite sustentar o merecimento de uma pena por parte
daquele agente668, e só esse merecimento de punição é ainda coerente com a afirmação
da dignidade da pessoa que é punida669.
As questões que agora cumpre enfrentar são outras: deverá o princípio da culpa
desempenhar alguma função na justiça restaurativa?; se a resposta for afirmativa, que

vinculação da culpa a conteúdos de índole meramente psicológica, permite ultrapassar também a


evanescência do conceito de culpa proposto pela doutrina do ilícito pessoal: mero e espectral juízo de
censura, vazio de conteúdo e alheio à diferença específica que separa o dolo da negligência” [Outros
Mares e Outros Céus, a Mesma Alma (a “última aula” do Prof. Jorge de Figueiredo Dias), Coimbra:
Coimbra Editora, 2008, ps. 11-12]. Sublinhando os méritos desta compreensão da culpa, mas não
deixando de lhe apontar algumas objecções, cfr. Kai AMBOS, “A liberdade no ser como dimensão da
personalidade e fundamento da culpa penal – sobre a doutrina da culpa de Jorge de Figueiredo Dias”,
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Org. Manuel da Costa Andrade e
outros, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 53 ss. Aquilo que sobretudo se quer vincar na reflexão
de Kai AMBOS (por se prender com aspecto a que de seguida se regressará) é a sua ideia de que se “a
doutrina da personalidade” perfilhada por FIGUEIREDO DIAS “admite inequivocamente a liberdade”
(no que se distingue da teoria do carácter), fá-lo “não no sentido naturalístico do poder de agir de outra
maneira, mas antes no sentido da liberdade ético-existencial sobre o próprio Ser; uma liberdade que se
exprime numa decisão fundamental do homem sobre si próprio”. E AMBOS acrescenta que “contra isto
pode-se invocar, à primeira vista e em todo o caso – agora de uma perspectiva empírico-fenomenológica
–, que se renuncia, na verdade, à comprovação da liberdade concreta no facto concreto”. Nesta medida,
considera que «a questão da liberdade (…) é antes – como na culpa na condução/decisão da vida e
também na doutrina de Eduardo Correia – retro-referida a um momento passado, consideravelmente
distante do próprio facto. O concreto poder de agir de outra maneira é, por conseguinte, substituído por
um “poder ser outro” muito mais complexo e ainda menos susceptível de prova do que a liberdade no
facto concreto» (ob. cit., ps. 82-3).
668
Compreende-se, portanto, a afirmação de Claus ROXIN de que “a culpa continua a ser o pressuposto
decisivo (ainda que não o único) da responsabilidade jurídico-penal. O facto de se fazer depender a
possibilidade de punição da existência de culpa do sujeito tem como finalidade estabelecer um limite ao
poder punitivo do Estado (em particular: às necessidades públicas de prevenção)” (in Derecho Penal,
Parte General, Tomo I, trad. da 2.ª ed. alemã, reimpressão, Thomson/Civitas: 2003, p. 798).
669
Depois de rejeitar a dignidade da pessoa enquanto “princípio prescritivo dotado de um conteúdo fixo,
imutável e apto à subsunção e como tal imediatamente aplicável a concretas situações da vida”, Jorge de
FIGUEIREDO DIAS afirma-o enquanto “limite absoluto da intervenção estadual”. Considera, assim, que
se o princípio da dignidade da pessoa não deve constituir “fundamento da validade constitucional de uma
incriminação”, ele já constitui “fundamento da vigência constitucional ilimitada do princípio da culpa
jurídico-penal”. Nas exactas palavras do Autor: “congratulo-me (…) com a circunstância de a nossa
jurisprudência constitucional ter desde há muito feito derivar da essencial dignidade da pessoa humana
(aludida nos arts. 1.º e 25.º, n.º 1, da Constituição) o princípio da culpa; e ter ido já ao ponto de extrair
dele consequências e de o utilizar como parâmetro de aferição da constitucionalidade de normas (por
exemplo, das que prevêem efeitos automáticos das penas, ou das que prevêem penas fixas)” (in «O
“direito penal do bem jurídico” como princípio jurídico-constitucional – da doutrina penal, da
jurisprudência constitucional portuguesa e das suas relações», XXV Anos de Jurisprudência
Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora: 2009, ps. 41-2).

376
conteúdo terá esse juízo de culpa – será um sentido coincidente com o da culpa jurídico-
penal ou, pelo contrário, dele distante670?
Como bem notou José de FARIA COSTA, “o princípio da culpa é, sem dúvida,
um dos que mais dificuldades traz à aplicação daquelas medidas [de diversão e
mediação]”. E, como também vincou o Autor, “tal facto não é difícil de perceber. Com
efeito, a consagração do princípio nulla poena sine culpa (…) implica, de modo
necessário, que a cominação de qualquer reacção criminal tenha de ter na sua base um
juízo de censura ao agente. Mas, o juízo de censura que aqui vai pressuposto arranca,
por seu turno, da ideia de que a única instância formal e materialmente capaz de o
expressar é, em última análise, o tribunal. Daí que não haja pena sem culpa mas também
não seja possível conceber uma pena sine judicio. Logo, a consagração do princípio da
culpa é conatural à aceitação de que as reacções penais, em honra do princípio da

670
A questão da culpa é, como em momentos anteriores já se foi referindo, central no pensamento de um
número significativo de cultores da proposta restaurativa enquanto critério de distinção face à justiça
penal. A forma, porém, como se apresenta essa diferença, quer do sentido, quer da função da culpa não é,
com frequência, explicada. Todavia, uma proposta de distinção a partir da culpa entre a justiça penal e a
justiça restaurativa que se julga merecedora de ponderação (sobretudo por se não limitar a associar a
justiça penal ao pensamento da retribuição e a afirmar que na justiça restaurativa não é assim), é a de
Elena HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos GREGORIO (Resolución Alternativa de Disputas y Sistema
Penal, cit., p. 75 ss). A partir da ideia de que a justiça penal vê o crime como “uma ofensa cometida
contra o Estado por um indivíduo moralmente perverso”, os Autores acham que se compreende o relevo
dado à detecção e punição do agente. Nessa medida, o sistema não pode prescindir da “atribuição de
culpas”: “temos por seguro que o crime é um defeito pessoal do indivíduo considerado culpado”. A esta
primeira afirmação associa-se uma segunda que, ainda na opinião dos Autores, também caracteriza o
sistema de justiça penal: “a pessoa culpada deve mudar. A partir do momento em que se atribui a culpa, o
objectivo do procedimento é fazer algo para transformar o delinquente. Ainda que os mais liberais
aconselhem a reabilitação e os mais conservadores o castigo, ambos estão de acordo em que a resposta ao
crime pretende mudar a natureza, o comportamento ou, eventualmente, as condições sociais do
criminoso”. E destas duas considerações decorre uma terceira e última, como “corolário”: “o resto da
sociedade não precisa de mudar (…). Uma vez estabelecida a culpa do outro e concentrada a atenção em
como mudá-lo, os demais ficam a salvo (…). Com benevolência, podemos procurar maneiras de mudar o
seu meio ambiente, mas nunca vamos pensar em mudar o nosso”. A razão pela qual sobretudo se julgou
justificada a atribuição deste espaço à opinião de Elena HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos
GREGORIO prende-se com o facto de outorgarem à culpa – e, repita-se, de modo mais desenvolvido do
que ocorre na mera imputação não explicada da ideia da retribuição apenas à justiça penal – um papel
central na distinção da justiça penal dita tradicional e da justiça restaurativa. Nesta, ainda segundo aqueles
Autores, “em vez de se julgar que se devem atribuir culpas, entende-se que se deve examinar o problema.
Em vez de se considerar que a pessoa culpada deve mudar, considera-se que se devem procurar soluções
integradoras. Em vez de se pensar que o resto da sociedade não precisa de mudar, crê-se que todos são
responsáveis por procurar a solução”. Os autores chamam a esta proposta “modelo do prejuízo mínimo”.
Quando se pondera, porém, esta linha de pensamento que desvaloriza a importância da determinação da
culpa pelo facto passado não pode deixar de se reconhecer que essa desvalorização só é possível em um
modelo de reacção ao crime que supõe a voluntariedade da participação a partir de um prévio
reconhecimento dos factos. E, mesmo aí, só será tendencialmente possível na medida em que, como a
seguir se verá, até a aceitação de determinados ónus pelo agente de um crime deve ser rodeada de algun
cuidados dede logo quando essa aceitação ocorra no contexto de um sistema público com alguma relação
com o funcionamento da justiça penal. Ponha-se a questão na forma que se pretende mais simples: para a
justiça restaurativa, que não supõe um juízo heterónomo de condenação a um mal grave, é mais simples
prescindir-se dessa ponderação da culpa que permanece incontornável em um um direito penal
respeitador da pessoa. Mas, mesmo aí, como de seguida se procurará fundamentar, só até certo ponto.

377
garantia dos cidadãos, só podem ser aplicadas por tribunais”. E, com particular
importância para a consideração do problema a enfrentar – repita-se, o problema da
compatibilidade (ou não) da proposta restaurativa com o princípio da culpa – conclui
José de FARIA COSTA que “se a culpa é garantia, que em alguns países ganhou foros
de dignidade constitucional, nomeadamente no ordenamento jurídico-constitucional
português, pois ninguém pode ser punido se não tiver agido com culpa, é também limite
ou obstáculo à aplicação de medidas que não passam por aquele juízo de
censurabilidade. Por outro lado, e segundo uma certa perspectiva das coisas, aquele
juízo anda ligado na sua génese a uma noção que é, de igual jeito, refractária a um
ideário de reacção informal ou divertido”671.
O problema que agora se enfrenta prende-se, assim, como um modo de
responder ao crime – o penal – que pressupõe uma atribuição individual de culpa
comprovada de forma processualmente válida, e uma outra forma de reagir ao crime – a
restaurativa – que, se não prescinde de uma ideia de responsabilidade pessoal, a encara
de modo bastante diverso. Poder-se-ia tratar de um afastamento da relevância da culpa
individual para efeitos de se lhe fazer corresponder um desvalor. Poder-se-ia afirmar,
como na obra de Fiodor DOSTOIEVSKY, que “cada um de nós é culpado (…) de tudo
(…) diante de todos e por todos e eu sou mais culpado do que todos os outros (…).
Como é possível que se responsabilize por todos? (…) Acaso terei eu de responder por
si? (…) Não poderão compreender bem isto (…) enquanto o mundo não caminhar por
uma senda diferente durante muito tempo…”672. Mas não. Na justiça restaurativa está
implícita uma responsabilização do agente que não dispensa um certo juízo de culpa –
apesar de esta não ser verificada e atribuída através de um julgamento penal, mas antes
reconhecida pelo próprio. As dificuldades da proposta restaurativa sob o enfoque do
princípio da culpa estarão, assim, sobretudo no facto de se não prescindir da sua
afirmação para efeitos de lhe fazer corresponder um determinado resultado desvalioso,

671
José de FARIA COSTA, “Diversão (Desjudiciarização) e Mediação: Que Rumos?” cit., ps. 36-7. Para
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, “o princípio da culpa constitui hoje uma máxima fundamental de todo o
direito penal e, entre nós, não é mesmo aventuroso considerá-lo um princípio implícito do sistema
jurídico-constitucional” (Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., cit., p. 510). Ainda segundo o
Autor, «o princípio da culpa constitui um princípio jurídico-constitucional imperativo, ainda ele
decorrente do princípio do Estado de Direito. Este tem de aceitar como sua finalidade primordial a defesa
da dignidade humana (art. 1.º da Constituição da República Portuguesa) e esta está indissoluvelmente
ligada à aceitação do princípio da culpa em matéria penal” (in Acordos sobre a Sentença em Processo
Penal – O “Fim” do Estado de Direito ou um Novo “Princípio”?, Porto: Ordem dos Advogados
Portugueses, 2011, p. 51).
672
Fiodor DOSTOIEVSKI, Bratia Karamazovi, 1879-1880, cit. na tradução portuguesa Os Irmãos
Karamazov, Parte II, Livro VI, Capítulo II, “Recordações da juventude”.

378
mas sem a previsão das devidas garantias inerentes à atribuição daquela
responsabilidade e dos seus consequentes desvalores.
O reconhecimento de que as práticas restaurativas se podem tornar sensíveis à
luz do princípio da culpa traduz-se na imposição, mesmo em orientações internacionais
associadas à promoção da justiça restaurativa, de vários limites. Assim, por exemplo, na
Resolução 2002/12 do Conselho Social e Económico da ONU, que cunha os princípios
básicos para a utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal,
prescreve-se, nos números 7 e 8 do Título II, a inadmissibilidade de tais práticas em
caso de inexistência de indícios e a impossibilidade de a participação do agente vir a ser
valorada, em eventual processo judicial posterior, como admissão da culpa.
Muito importante para que se possa adentrar a reflexão é a compreensão daquele
que não parece ser o problema e daquele que parece ser o problema. O que não parece
ser o problema é o facto de, havendo culpa, não haver pena (o que sucederá, por
exemplo, nos casos em que a resposta restaurativa torne desnecessária a resposta
penal”)673. O que parece ser o problema é o facto de, não havendo culpa (ou não sendo
ela comprovada), haver uma intervenção que, apesar de não culminar na condenação a
uma pena, desemboca afinal em uma assunção de deveres pelo agente do crime.
Por outro lado, a clarificação do objecto desta reflexão parece não prescindir da
delimitação de dois campos de ponderação da ideia de culpa. Esta pode – e deve – ser
considerada na sua acepção jurídico-penal e supõe, nesse sentido, a existência, na
pessoa cujo comportamento é típico e ilícito, de um suporte que funde a sua
responsabilidade e torne merecido o juízo de censura. Não cabendo a este estudo – e não
será demais repeti-lo – qualquer propósito de questionamento autónomo do sentido que
deve dar-se ao princípio da culpa, tomar-se-á como bússola orientadora das
considerações seguintes o entendimento de Jorge de FIGUEIREDO DIAS de que «a
culpa jurídico-penal, sendo eminente e primariamente um juízo de censura, engloba uma
específica materialidade ou “matéria de culpa” que lhe advém da atitude interna ou

673
E não há aqui qualquer problema porque, como bem nota José de FARIA COSTA (“Diversão” cit., p.
37), a existência de um juízo formal de culpa não impõe a aplicação de uma pena. Acrescenta-se que
“efectivamente, nada impede, e outros motivos até aconselham, que imbricada à retribuição se perfilem
outras finalidades que levem à isenção de pena, não obstante se poder fazer inequivocamente um juízo de
censura ao agente” e conclui-se que “o trespassar de outras finalidades da pena pode levar, pois, à sua
própria isenção”. Sobre o princípio da unilateralidade da culpa e a sua justificação face à Constituição,
cfr. Manuel da COSTA ANDRADE, “Constituição e Direito Penal”, in A Justiça nos dois lados do
Atlântico. Teoria e prática do processo criminal em Portugal e nos Estados Unidos da América, Lisboa:
Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 1998, ps. 205-6.

379
íntima do agente (do seu Gesinnung) manifestada no ilícito-típico e que o fundamenta
como obra sua, da sua pessoa ou da sua personalidade»674.
Apesar de se tomar como ponto de partida esta definição da culpa jurídico-penal,
existem algumas ideias que condicionam a opinião que neste momento se tem sobre o
assunto e que cumpre, ainda que de forma telegráfica – porque, apesar de não ser essa a
questão, tratar-se-á ainda de um pressuposto da sua ponderação – expor. A primeira é a
de que, desempenhando a culpa um papel de limitação da responsabilidade, a sua
definição não pode desconhecer o cumprimento dessa função. Daqui não decorre a
aceitação de uma culpa penal condicionada pelo cumprimento de funções preventivas
da pena ou funcionalmente orientada mas, pelo contrário, o acentuar da ideia de que um
qualquer esvaziamento do conteúdo da culpa jurídico-penal prejudica o desempenho do
seu papel limitador da punição. O cumprimento desse papel seria prejudicado, através

674
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed. cit., p. 529. O ponto que
se julga dever deixar claro é, porém, o de que, conhecendo-se a contraposição entre aquilo a que o Autor
(ob. cit., ps. 513-4) designa como um “juízo radicalmente individualizado de culpa” ou uma “certa
generalização”, se tende a considerar que apenas quando se não prescinde de alguma individualização se
pode evitar a “erosão” do princípio da culpa de que em momento posterior se tratará, erosão essa que se
rejeita sobretudo por se julgar que ela pode suportar condenações com base em meras ficções de culpa.
Assim sendo, se não se enjeita a ideia de que pode haver alguma “funcionalização da culpa ao sistema” (e
apenas na medida em que ela também deve ser modelada pela função que cumpre de “limitação do
intervencionismo estatal em nome de uma defesa consistente da eminente dignidade da pessoa”), o que se
crê que nela deve preponderar é o seu conteúdo ético [ainda nas palavras de Jorge de FIGUEIREDO
DIAS, enquanto “violação pela pessoa do dever originário e essencial de realização e desenvolvimento do
ser-livre (do dela e do de todos os outros)”]. O que, apesar desse reconhecimento de que a culpa
desempenha uma função no sistema, aproxima a posição que se defende da ideia de Fernanda PALMA de
que “o conceito de culpa justificativo da pena não decorre da necessidade de defesa social, mas tem uma
fundamentação autónoma” (“Crimes de terrorismo e culpa penal”, Liber Discipulorum para Jorge de
Figueiredo Dias, Coimbra Editora: 2003, p. 235). Ou seja: aquilo que se não aceita é a total
funcionalização da culpa associada com frequência sobretudo ao pensamento de Jakobs. Sobre a questão,
cfr. Anabela MIRANDA RODRIGUES (A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade,
Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 435 ss), que sublinha o facto, fazendo também apelo ao pensamento
de Roxin, de que «uma tese que radicalmente veio pôr em causa a autonomia da culpa em relação à
prevenção foi a de Jakobs que, embora conservando aquele conceito, rompe todas as ligações com a
dogmática tradicional precedente, dado que “não vê na culpa mais nada senão necessidades preventivas
gerais”». Continuando a analisar o pensamento de Jakobs, a Autora afirma ainda que “a adscrição de
culpa se justifica enquanto a punição de um determinado indivíduo se revele necessária para compensar a
frustração das expectativas normativas provocada pelo crime”. E conclui que «objecto de valoração deixa
de ser o poder de agir de outra maneira do agente concreto para passar a ser uma “construção” que
reflecte um juízo de culpa reduzido a fenómeno psicológico social de adscrição normativa dirigida para o
objectivo de estabilização social. A capacidade real do agente para se determinar de acordo com as
normas não aparece mais na base do juízo de culpa, sendo este lugar ocupado pelo facto de que a sua
actuação e situação se adequam a um tipo normativo de sujeito e de situação perante os quais a
consciência social e o ordenamento jurídico têm de reagir normativamente e não em termos meramente
cognitivos”. Perante a impossibilidade de aqui se referirem, ainda que de modo superficial, as diversas
opiniões sobre o sentido da culpa jurídico-penal, deve porém dar-se conta do estudo que João Curado
NEVES dedica ao assunto, contrapondo, só no que respeita à doutrina portuguesa, concepções como as de
Figueiredo Dias, Fernanda Palma ou Augusto Silva Dias, a partir de uma ponderação do “poder de agir de
outra maneira” e da «dicotomia: “Deves, porque podes” e “Podes, porque deves”» (A Problemática da
Culpa nos Crimes Passionais, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 217 ss).

380
de uma erosão da culpa, quer pela adopção de postulados deterministas675, quer pela
adopção de postulados absolutamente indeterministas. De forma muito simplificada,
poder-se-ia afirmar que os primeiros conduziriam à conclusão de que ninguém teria
culpa, enquanto os segundos sustentariam a conclusão de que todos a teriam. O facto de
tais postulados permanecerem, na filosofia ou na ciência, indemonstrados, não
prejudica, porém, a possibilidade de se avaliar o comportamento desvalioso de um
homem real e não ficcionado, inquirindo sobre se as suas específicas circunstâncias o
tornam ou não, e em maior ou menor medida, merecedor de um juízo de censura (que
seja, também ele, real e não ficcionado)676.
Todavia, a denominada questão da culpa assume ainda um inequívoco relevo
processual penal, orientando-se nessa sede para a verificação, fundada na prova, de que
o agente é responsável pelo crime que lhe é imputado677. O que se pode questionar, com
base numa ideia de culpa penal e de culpabilidade processual penal, é se a resposta
restaurativa pode existir sem que se mostre a existência daquele suporte da
responsabilidade que funda a censura e/ou sem a prova da responsabilidade pelos factos
que se busca no processo penal, mormente no julgamento penal. O problema estará,
assim, sobretudo no facto de “ser da essência da justiça restaurativa a existência de um
crime que todas as partes concordam que ocorreu e que origina a necessidade de

675
Parece assistir-se, hoje, a um certo recrudescimento destas ideias, com base numa revolução prometida
pela neurociência e orientada pela demonstração de que o cérebro é um órgão tão determinista no seu
funcionamento como “o coração ou o fígado”, surgindo o livre arbítrio como uma ilusão, “mais uma
ilusão entre muitas que o cérebro inventa” As decisões surgiriam no inconsciente e depois o consciente
apenas se atribuiria a autoria de algo que, na verdade, “não é obra sua” [in Francisco RUBIA, El
Fantasma de la Libertad (Datos de la revolución neurocientífica), Barcelona: Crítica, 2009, p. 9 ss]. No
estado actual do conhecimento não se compreende bem, porém, a possibilidade de se retirarem
conclusões seguras sobre o livre-arbítrio (e sobre a culpa jurídico-penal) a partir de considerações
unicamente “de ciência”.
676
No contexto de uma reflexão sobre o papel do juiz penal na intersecção da problemática da culpa e da
finalidade de socialização, afirmava Marc ANCEL que “essa jurisdictio exerce-se (…) em função do
conhecimento do homem e do dossier de personalidade (…). O processo de personalidade não suprime
em nenhuma medida o problema da responsabilidade, bem pelo contrário. Tivemos a oportunidade de
afirmar com frequência que a política criminal da defesa social, que se dá através da reinserção do
delinquente na comunidade dos homens livres, está fundada na responsabilidade pessoal do sujeito, no
sentimento íntimo de culpabilidade que deve possuir naturalmente todo o ser humano”. O Autor
acrescenta que o juiz penal moderno, que desempenha um papel social, deve “confrontar o
comportamento individual com as regras da vida em sociedade” (“Le rôle social du juge pénal”, Estudos
“in memoriam” do Prof. Doutor José Beleza dos Santos, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra,
Coimbra: Coimbra Editora, 1966, p. 211). Poder-se-ia inquirir, porém, se esse reconhecimento íntimo da
culpabilidade a que ANCEL atribui importância na perspectiva da socialização não será melhor
perseguido no âmbito das práticas restaurativas do que no contexto de um modelo, como o da justiça
penal, com algumas notas adversariais.
677
Sobre “o valor da declaração de culpabilidade” no processo penal e a “autonomia das questões” da
culpa e da pena, cfr. José Manuel Damião da CUNHA, O Caso Julgado Parcial – Questão da
Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória, Porto: Publicações
Universidade Católica, 2002, sobretudo p. 73 ss.

381
reparação”678, mas cuja existência e contornos não têm que ser provados num processo
que obedeça a determinados requisitos. E as dificuldades maiores relacionam-se com as
hipóteses em que as práticas restaurativas surgem como mecanismos de diversão
processual, e não já quando são contemporâneas do julgamento ou pós-sentenciais.
Quando se parte desta cisão sistemática da culpa numa sua acepção substantiva e
numa sua acepção adjectiva, parece dever esclarecer-se que é sobretudo com esta última
que a investigação se preocupará, na medida em que o problema central da justiça
restaurativa parece estar em que, mesmo quando a culpa existe no plano substantivo, ela
não é provada de acordo com os requisitos que dão conteúdo à sua dimensão processual.
Ou seja: se o problema, tomada a culpa na sua dimensão substantiva, é eventual, ele
adquire um carácter de permanência no que respeita ao seu aspecto adjectivo679.
O ponto de que se julga dever partir é o de que o princípio da culpa, que supõe a
imprescindibilidade, para a punição, da formulação de um juízo de censura – e de
censura por terceiros, pela autoridade que o tribunal representa, e já não de auto-censura
– não pode ter idêntico sentido em um modelo de reacção ao crime que não pretende a
punição nem permite um juízo heterónomo de censura que suporta (e limita) uma
condenação autoritária. Ou seja: o princípio nulla poena sine culpa parece não ter
idêntica importância – e parece não ser, também por isso e a uma primeira análise,
susceptível de insuportável lesão – em um sistema que não admite a poena. Dito de
forma mais simples: se não há poena, como se pode afirmar a violação do princípio
nulla poena sine culpa?

678
Joanna SHAPLAND, “Restorative Justice and Criminal Justice: Just Responses to Crime?”,
Restorative Justice and Criminal Justice – Competing or Reconciliable Paradigms?, Ed. Andrew von
Hirsch/Julian Roberts/Anthony Bottoms/Kent Roach/Mara Schiff, Oxford: Hart Publishing: 2003, p. 204.
679
Uma definição da culpabilidade na sua dimensão processual, distinta da culpa jurídico-penal e que
aqui se pode tomar como “pólo orientador”, é a de Jorge de FIGUEIREDO DIAS. Sobre aquela
culpabilidade, afirma o Autor que ela «se não confunde com a (e tão-pouco se reduz à) questão da “culpa”
como elemento essencial do conceito de crime, mas significa, por contraposição à “questão da sanção”, a
globalidade do processo probatório tendente à comprovação da factualidade contida na acusação e do
processo de subsunção jurídica. Com efeito, de acordo tanto com o princípio do Estado de Direito e a
função do julgador nos termos da Constituição da República Portuguesa (art. 340.º), ao tribunal não pode
ser subtraído ou diminuído o poder-dever de instruir (supletiva e subsidiariamente embora) a causa sujeita
a julgamento. Propósito central do nosso processo penal, tal como é constitucional ou legalmente definido
ou pressuposto, é a investigação judicial do substrato fáctico da acusação ou pronúncia e, por aí, a
conclusão sobre a verdade da culpabilidade do arguido». É, de resto, esta necessidade de comprovação
judicial da culpabilidade que suscita problemas especiais à aceitação dos acordos sobre a sentença. Sobre
a questão, conclui o Autor que «a qualquer acordo há-de por conseguinte estar vedada a sua verificação à
custa da realização dos princípios da investigação oficial (judicial) e da verdade processualmente válida
(dita “verdade material”). Neste âmbito e medida se materializa, no que respeita à questão da
culpabilidade, o reclamado princípio da indisponibilidade do objecto do processo» (in Acordos sobre a
Sentença em Processo Penal – O “Fim” do Estado de Direito ou um Novo “Princípio”?, Porto: Ordem
dos Advogados Portugueses, 2011, p. 44).

382
A razão pela qual se afirmou que este é um ponto de que se pode partir – mas
tão-somente isso, e não já o exacto ponto de chegada – é que existe algo de
essencialmente formal em tal linha de argumentação. É certo que a justiça restaurativa –
na definição que foi perfilhada – não admite a condenação a uma pena sem culpa
porque nela não vive nem a condenação nem a pena. Mas também é certo que a justiça
restaurativa pode desembocar na assunção de deveres pelo agente de um crime que
podem comportar uma carga de ónus semelhante à de algumas penas – ainda que não
possam conduzir nunca, o que deve sublinhar-se, à privação da liberdade. E a
interrogação principal que sobra é, portanto, se a assunção de tais deveres sem culpa
ou para além da culpa significa ou não uma violação insuportável daquele princípio da
culpa que é pilar da intervenção punitiva do Estado680.
As duas hipóteses que se vêm de elencar talvez mereçam, porém, tratamento
diferenciado. Assim, pode ponderar-se, por um lado, a existência de uma resposta
restaurativa sem culpa e, por outro lado, de uma resposta restaurativa para além da
culpa (ainda que esta se torne, a partir de certo momento, na medida do excesso,
também uma resposta já sem culpa).
Seja como for – e reconhece-se o carácter porventura desnecessário da
advertência –, as considerações que de seguida se tecerão (e, nomeadmente, o que se

680
Para uma diferenciação dos vários conceitos de culpa e para uma distinção da culpa como fundamento
da pena e como critério da medida da pena, cfr. Claus ROXIN, “Culpa e responsabilidade. Questões
fundamentais da teoria da responsabilidade”, RPCC, ano 1, fasc. 4, 1991, p. 503 ss. Também Winfried
HASSEMER (Persona, mundo y responsabilidad. Bases para una teoria de la imputación en Derecho
Penal cit., p. 99 ss), depois de dar conta da sua preocupação com aquilo que considera a actual “erosão do
princípio da culpa” – associada a vários factores, mas também à tendência para se confundir a função da
culpa com a realização das finalidades preventivas, afirmando que “com os interesses preventivos o
conceito de culpa deixa entrar em casa o inimigo de quem teria que distanciar-se energicamente” –
sustenta “a irrenunciabilidade do princípio da culpa”. Esta irrenunciabilidade liga-se às várias funções
desempenhadas por aquele princípio, sobretudo as de “possibilitar a imputação subjectiva, fundamentar a
responsabilidade, diferenciar os graus de participação interna ou de comparticipação (…) e adequar
proporcionalmente as consequências jurídicas a estas diferenciações”. A última dimensão que o Autor
entende que tradicionalmente se associa ao princípio da culpa é a da “reprovabilidade”, o que equivale a
significar que “a formação da vontade que conduz à decisão de cometer o delito deve ser reprovável”.
Manifesta, porém, sobre este último ponto grandes dúvidas, acabando por concluir que não é missão deste
princípio “manter a reprovação da culpa (…) porque sob o ponto de vista teórico é insustentável [refere-
se previamente a velha querela determinismo/indeterminismo] e sob o ponto de vista prático prejudicial.
Um ordenamento jurídico-penal que procure evitar na medida do possível as desvantagens para as
pessoas e fundamentar honestamente as suas intervenções deve renunciar a essa reprovação”. Entre nós,
Fernanda PALMA analisa detidamento a questão, a partir da convicção de que «o crime exprime a
“tragédia humana” que atinge todos, mesmo os que apenas são os outros, exteriores à relação entre o
agente e a vítima, e que estamos condenados, por exigência da nossa subjectividade, a aceitar uma lógica
de desculpa (baseada na compreensão da subjectividade alheia e na legitimidade do próprio direito)”, o
que leva a Autora a procurar “soluções para a autofagia jurídica quanto à ideia de culpa” (in O Princípio
da Desculpa em Direito Penal, Coimbra: Almedina, 2005, p. 14). A questão voltará, porém, a merecer
alguma atenção em momento posterior deste estudo e tendo em conta aquelas que são as limitações
decorrentes do seu objecto.

383
dirá sobre o sentido sobretudo interno da culpa restaurativa e o juízo essencialmente
externo que é o da culpa jurídico-penal) partirão sempre do pressuposto do cometimento
de um crime que o é em sentido material. Ou seja: em todas as hipóteses que se
cogitarão, existe um fundamento material para o juízo de desvalor que o agente faz
sobre a sua própria conduta ou para o juízo de desvalor que os outros dirigem ao seu
comportamento681.

2.1. A resposta restaurativa em casos de inexistência de culpa

Relativamente à primeira questão, a da possibilidade de uma resposta


restaurativa sem culpa na sua dimensão jurídico-penal, a tentação inicial seria a de
rejeitar tal possibilidade, afirmando-se que se o modelo restaurativo é um modelo de
reacção ao crime, não havendo crime por falta desse seu imprescindível elemento que é
a culpa, não seria pensável essa resposta restaurativa.
A esta primeira e ainda superficial ponderação sobram, porém, algumas
objecções. A primeira delas relaciona-se com a existência, prévia à da mediação penal
“de adultos”, de uma mediação regulada pela Lei Tutelar Educativa e aplicável no
contexto dos ilícitos típicos praticados por menores – logo, há práticas restaurativas no
contexto de conflitos a que é alheio um juízo de culpa vertido na censura da conduta do
agente. Mais: as práticas restaurativas orientadas para a denominada delinquência
juvenil – logo, para uma delinquência de inimputáveis em razão da idade – ocuparam
desde o início, e muito antes da sua chegada a Portugal, uma “fatia” significativa de
toda a proposta restaurativa, sendo inclusivamente nesse âmbito que em muitos países
se foram introduzindo as práticas restaurativas, só depois se expandindo para a dita
“criminalidade dos adultos”682.
Por outro lado, não se vislumbra obstáculo intransponível, pelo menos em tese, à
participação em práticas restaurativas de pessoa merecedora de um juízo de
inimputabilidade aquando do cometimento do facto típico e ilícito – e merecedora desse
juízo por força de circunstâncias que condicionavam de forma decisiva a sua capacidade

681
Para uma consideração detida da relevância de um conceito material de crime mormente no que
respeita ao fundamento da culpa e às condições de legitimidade da sua atribuição, cfr. Augusto SILVA
DIAS, “Delicta in Se” e “Delicta Mere Prohibita” cit., p. 701 ss.
682
A questão merecerá reflexão na terceira parte deste estudo.

384
de compreensão e de decisão683 –, se posteriormente a sua capacidade de compreensão e
a autonomia da sua vontade se (re)expandirem684.
Em certo sentido, parece poder afirmar-se que a culpa, na acepção que adquire
no sistema penal, se é pressuposto da pena, já não será pressuposto da solução
encontrada através das práticas restaurativas. E julga-se que é assim porque se a punição
penal pelo facto – autoritária e heterónoma – não pode deixar de fazer retroceder a
avaliação da responsabilidade ao momento do cometimento desse facto; já na solução
restaurativa, adquirindo o agente depois da ocorrência do ilícito típico o domínio da
razão e da vontade, não se vê motivo para lhe negar a faculdade de reparação que se
atribui a outros. Na proposta restaurativa, o que assim adquire particular relevo é a
posse de faculdades plenas nos momentos do encontro restaurativo, de modo a poder
afirmar-se a vontade do agente quer quanto à participação, quer quanto à conformação
da solução restaurativa para o conflito.

683
Nas palavras de Maria João ANTUNES, “o facto que é pressuposto da imposição da medida de
segurança de internamento coincide com o facto do agente declarado inimputável em razão de anomalia
psíquica. Interpretação conforme à função político-criminal do facto e à finalidade da medida de
segurança de internamento”. A importância do facto relacionar-se-á, sobretudo, com a necessidade de ele
ser comprovativo da perigosidade do autor, assim como constituir limite a excessos em matéria de
privação da liberdade do agente. No que tange à finalidade da medida de segurança de internamento de
inimputável em razão de anomalia psíquica, a Autora elege a finalidade preventivo-especial, afirmando,
inspirada nas palavras de Eduardo Correia (“ter-se-á diluído a ideia de retribuição, mas ter-se-á ganho um
homem”), que “ter-se-á diluído a ideia de defesa da ordem jurídica e da paz social, mas ter-se-á ganho um
homem” (Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimputável em Razão de Anomalia
Psíquica, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 463, ps. 473-4, p. 485). Julga-se que esta ideia de Maria
João ANTUNES, por razões antes sumariamente expostas, talvez não seja inteiramente descabida
também no que respeita aos factos cometidos por imputáveis, podendo ainda aí julgar-se que a finalidade
preventivo-especial da pena deve adquirir predominância face às exigências de prevenção geral.
684
Problema em certo sentido diametralmente oposto é o de saber qual o sentido da participação no
processo penal de agentes imputáveis aquando do cometimento do ilícito típico e, todavia, incapazes
processuais aquando do julgamento. Sobre a questão, com grande interesse, DAMIÃO da CUNHA
(“Inimputabilidade e incapacidade processual em razão de anomalia psíquica. Algumas reflexões à luz
das soluções do CPP”, Homenagem de Viseu a Jorge de Figueiredo Dias, coord. Paulo Pinto de
Albuquerque, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 89 ss) esclarece que “sob a designação de
incapacidade processual abrangem-se os casos de agentes/arguidos que sofrem de anomalia psíquica sem
que, no entanto, essa circunstância tenha sido a razão para (ou esteja conexionada com) a prática do facto
que àqueles agentes é, pelo menos, imputado”. Em reflexão que muito interessa a este estudo, na medida
em que o Autor apresenta o direito penal também como direito do conflito, só que de um conflito entre a
comunidade e um seu cidadão, afirma que “diz-se – e bem – que o Direito Penal é direito de conflito;
acrescenta-se – também bem – que o direito processual penal visa a sanação de um conflito entre a
Comunidade e um seu cidadão-membro”. Ora, se assim é, parece inerente à audiência penal uma
possibilidade de discussão desse conflito, o que se afigura problemático aquando da existência de
arguidos com incapacidades processuais (quer fossem inimputáveis aquando do facto, quer não). Nas
palavras de DAMIÃO da CUNHA (pertinentes sob o enfoque deste estudo sobretudo na medida em que
pressupõem um certo “empoderamento” dos sujeitos também no processo penal), «a audiência de
julgamento serve (é o local adequado) para discutir o “conflito” (…), sendo, todavia, indispensável ouvir
(ou dar a oportunidade para tal) as razões do arguido, de modo a que este, caso seja necessário, se possa
justificar ou desculpar (perante a comunidade) pelo crime-ilícito praticado (isto é, demonstrado). Por isso,
a um processo jurisdicional penal estará sempre subjacente uma “compreensão” e uma “discussão”
assentes em pressupostos-base de comunicação mutuamente aceites/consentidos» (ob. cit., ps. 98-9).

385
O que assim se julga imperativo fazer sobressair como pedra de toque na
compreensão do papel da culpa na justiça penal e na justiça restaurativa é a diversidade
de sentidos definitórios que devemos encontrar para o conceito. Na justiça penal, “a
culpa representa a censura que se faz ao agente quando ele agiu de uma determinada
maneira e podia e devia ter agido de outra forma (…)”685. O juízo de culpa jurídico-
penal é, portanto, um juízo formulado por outro que não o agente do crime: este não tem
culpa porque se sente culpado, mas antes porque outros o consideram culpado na
sequência de um processo orientado para a comprovação dessa culpabilidade686. O
princípio da culpa que é pilar da resposta penal ao crime, se não prescinde da
comprovação da culpabilidade e da possibilidade de formulação daquele juízo de
censura externo, prescinde porém do reconhecimento da culpa pelo agente do crime687.
Em certo sentido, julga-se até que esse reconhecimento individual da culpa –
que, parecendo não ser essencial sob o ponto de vista da prevenção geral positiva,
jogará papel porventura mais relevante ao nível da prevenção especial de socialização –
é pouco facilitado pela estrutura e pelo modo da resposta estadual e punitiva ao crime:
enquanto arguido em um processo penal que, consabidamente, pode culminar com uma

685
José de FARIA COSTA, Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta iuris poenalis), 2.ª
Edição, Coimbra Editora: 2009, ps. 223-4. Não se desconhece a existência de diversidade na
compreensão e, consequentemente, na definição da culpa. A razão pela qual se elegeu aqui esta definição
e não outra prende-se sobretudo com a sua clareza, imposta pela simplificação inerente à função
pedagógica para a qual foi pensada. Essa clareza contribui, julga-se, para que melhor se destaque o que no
juízo de culpa penal importa aqui fazer ressaltar: a sua alteridade, a sua formulação por outro que não o
objecto da censura.
686
Uma problematização muito interessante sobre a necessidade ou a desnecessidade de uma atitude
interior de reconhecimento da culpa pelo agente à luz do cumprimento das próprias finalidades
preventivas do direito penal é a encetada por Teresa BELEZA (“Reconciliação, culpa e castigo. Uma
reflexão a partir de Oshima e Coetzee”, Homenagem de Viseu a Jorge de Figueiredo Dias, coord. Paulo
Pinto de Albuquerque, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 65 ss). Relativamente a práticas que podem
associar-se à proposta restaurativa, a Autora afirma que “as formas de restauração, reconciliação,
mediação estarão baseadas pelo menos parcialmente na ideia de reconhecimento de culpa,
arrependimento, na medida em que a satisfação moral proporcionada à vítima pressupõe um
reconhecimento de culpa por parte do agressor”. Pelo contrário, esclarece-se que «na lei e teoria penais, a
relevância do arrependimento interior é pelo menos problemática, dado que o paradigma ideológico
dominante ainda é o de obediência externa, ainda que por vezes acompanhada, na teoria penalística, da
ideia de “fidelidade ao Direito”. Há uma curiosa tensão, ainda presente, entre a convicção de que o
Direito Penal, dito de intervenção mínima e protector dos bens jurídicos essenciais, deve deixar intacta a
liberdade interior (…) e a convicção de que muitas questões legais e dogmáticas se resolvem, em última
análise, através da clarificação da atitude interior de quem age (eventualmente preenchendo um tipo de
crime) ou de quem é julgado ou cumpre uma pena» (ob. cit., p. 70). A Autora manifesta, porém, a
convicção da “importância do arrependimento para a possibilidade de reconciliação numa questão
criminal”. E conclui que “seja qual for a eficácia preventiva real da justiça e das leis penais, a nossa ideia
difusa de justiça parece indissociavelmente ligada à interiorização e reconhecimento da culpa por parte do
que viola as regras penais” (ob. cit., p. 74).
687
De forma crítica quanto à possibilidade de não haver, na justiça penal, um reconhecimento da
“verdade” – que seria um “elemento de pacificação” –, cfr. Luciano EUSEBI (“Dirsi qualcosa di vero
dopo il reato: un obiettivo rilevante per l’ordinamento giuridico”, Criminalia, 2010, p. 637 ss). O Autor
refere, ainda, o interesse prioritário da vítima “a fare verità sui fatti comessi”.

386
condenação muito grave e, por isso, muito receada pelo próprio, não será compreensível
que o agente possa olhar para si próprio como o David que combate Golias. Aquele
surge como o tempo em que lhe cumpre que se defenda, alijando a responsabilidade, e
não como o tempo para o arrependimento, cuja sinceridade em princípio só terá a
ganhar com a liberdade plena da reflexão. Ainda que assim não seja sempre, julga-se
que é assim em muitos casos: a estrutura adversarial do processo penal será, com
frequência, mais um obstáculo ao reconhecimento individual da culpa do que um
elemento facilitador desse reconhecimento688. Na perspectiva de alguns cultores da
justiça restaurativa, esta não deixa de ser uma fragilidade importante da justiça penal:
um modo de responder ao crime que atribui tão grande relevância à questão da culpa
parece fomentar, paradoxalmente, o recurso pelo arguido a estratégias de negação dessa
culpa689.
Pelo contrário, na resposta restaurativa, acusada de implicar uma violação
daquele princípio da culpa por admitir a assunção de deveres pelo agente sem a
demonstração processualmente válida da sua culpabilidade, já se não prescinde daquele
reconhecimento pelo agente da sua responsabilidade. Logo, o que aqui releva é a culpa
que o agente reconhece, e não já aquela que outros lhe atribuem690.

688
A referência à “estrutura adversarial do processo” não radica no desconhecimento de que o processo
penal português não aceita um modelo adversarial puro, à semelhança do sistema anglo-saxónico. Não
existe, no plano dos princípios estruturantes do processo, uma “luta” igualitária entre a defesa e uma
acusação que almeja sobretudo a condenação do arguido, sendo os contributos de cada uma das “partes”
determinantes para a sorte do processo. Nas palavras de José DAMIÃO DA CUNHA, “de um ponto de
vista modelar, a solução do Código de Processo Penal pode ser definida como um processo de estrutura
acusatória – que, todavia, não deve ser considerada como a de “adversary system”. O Autor acrescenta
que “o próprio CPP reconhece poderes autónomos, em termos de prova, ao tribunal” (in “Ne Bis in Idem e
exercício da acção penal”, in Que Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário
(dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra
Editora, 2009, ps. 564-7). Todavia, em um sentido que não é técnico-jurídico, parece possível que o
arguido encare, com frequência, as instâncias formais de controlo como os adversários que podem limitar
os seus direitos fundamentais.
689
Cfr., sobre a questão, Howard ZEHR, Changing Lenses cit., ps. 72-74. Além de referir a forma como o
próprio processo incentiva a utilização de “técnicas de exculpação” pelo arguido, o Autor menciona a
hipervalorização da demonstração da culpa mas, paralelamente, a dispersão da atenção face ao problema
da responsabilidade pelas consequências e a negação do problema da possível responsabilidade colectiva
pelo acontecimento.
690
Há, no seio da própria justiça restaurativa, divergências sobre aquilo que é necessário para a existência
desse reconhecimento individual da responsabilidade, que vão desde as formas de compreensão mais
exigentes e centradas na existência de remorso àquelas menos exigentes que se bastam com o
reconhecimento de uma certa responsabilidade pelos factos. As distintas perspectivas relacionam-se,
depois, com diversas formas de conceber as práticas restaurativas. Compreende-se bem que os defensores
da chamada “mediação transformadora”, que rejeitam o “mero acordo formal” e almejam a pacificação
efectiva dos intervenientes no conflito, quer no plano individual, quer no plano relacional, perfilhem uma
compreensão mais exigente desse reconhecimento interior da responsabilidade. Sobre essa mediação
transformadora, muito recentemente, cfr. Maria Elena CARAM, “Mediación conectada com conflictos
penales. Ejes y matices”, Gestión del Conflicto Penal, coord. Teresa del VAL, Buenos Aires, Editorial
Astrea, 2012, p. 3.

387
Ora, se bem se vê o problema, o que se vem de notar sobre a diversidade da
culpa na justiça penal e na justiça restaurativa é coerente, quer com aqueles que são os
seus distintos fundamentos, quer com aquelas que são as suas diversas finalidades. O
que equivale a entender, agora na sua expressão intencionalmente mais simples, que, em
uma justiça penal de defesa da comunidade que pune de forma autoritária o agente de
um crime, o respeito pela sua dignidade impõe a comprovação – e uma comprovação
que só é válida se se respeitarem regras do jogo prévias e suficientemente determinadas
– da sua efectiva responsabilidade. Porém, em um modelo de resposta ao crime
alicerçado na intenção de pacificar um conflito interpessoal entre sujeitos que se vêem
nos papéis de agente e de vítima, de modo a lograr uma reparação de sentido muito
amplo, o que sobretudo releva é a responsabilidade que cada um acha que é a sua e as
demandas ou necessidades que cada sujeito assume. O que será – pelo menos até àquele
ponto em que a pessoa precisa de ser protegida apesar de si própria – também uma
forma de respeito pela dignidade e pela autonomia de cada um.
Com o que se vem de sublinhar pretende sobretudo significar-se que a
imputação dos factos à responsabilidade do agente obedece, tendo em contas as distintas
finalidades e os distintos procedimentos da justiça penal e da justiça restaurativa, a
racionalidades diversas: enquanto o juízo de culpa jurídico-penal deve pressupor uma
demonstração da responsabilidade através de uma produção de prova dos factos que é
essencialmente exterior à vontade e à intervenção do próprio agente; já a culpa
restaurativa surge alicerçada num reconhecimento da sua responsabilidade por parte do
agente, alheio a uma comprovação externa691. Enquanto naquela culpa vive uma hetero-
censura, nesta predomina uma auto-censura.
Daqui decorre a conclusão – agora já em um plano de transposição de uma
consideração substantiva da culpa para uma sua ponderação mais processual – de que o
modo de participação esperado do agente no que respeita à imputação dos factos à sua
responsabilidade não é coincidente na esfera penal ou na esfera restaurativa: esta

691
Esta é, claro está, uma afirmação alicerçada nos grandes traços. Quando se olha para os pormenores,
conclui-se, porém, que na justiça penal já se reconhecem hipóteses de atenuação das exigências
probatórias da responsabilidade quando há um certo reconhecimento dos factos por parte do agente.
Sucede assim nos institutos – como a suspensão provisória do processo e o processo sumaríssimo –
alicerçados no consenso, e também nas hipóteses em que se atribui à confissão integral e sem reservas um
valor que torna desnecessária a produção da prova (veja-se o n.º 2 do art. 344.º do CPP). Por outro lado,
como se verá aquando da análise do regime jurídico da mediação penal em Portugal, também as práticas
restaurativas que ocorram no âmbito de um sistema público não devem prescindir da existência de um
mínimo de indícios prévios da responsabilidade do agente, que sejam alheios à sua auto-responsabilização
e com ela se “acumulem”.

388
pressupõe um reconhecimento da culpa pelo agente (pelo menos numa compreensão
minimalista da justiça restaurativa que, como antes se procurou justificar, é a única que
se crê aceitável); aquela pressupõe o direito de o arguido não contribuir por nenhum
modo para a demonstração da sua responsabilidade692, cabendo a outros a sua prova693.
Nesta afirmação estão envolvidos alguns dos princípio mais estruturais do nosso direito
processual penal, nomeadamente o princípio da presunção de inocência694,

692
Segundo Manuel da COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra,
Coimbra Editora: 1992, p. 121 ss, ninguém pode ser obrigado a contribuir para estabelecer a sua própria
culpabilidade. A importância deste princípio é também reconhecida, na doutrina estrangeira,
nomeadamente por Claus ROXIN, para quem “constitui um dos princípios internacionalmente
reconhecidos de um processo penal próprio de um Estado de Direito que o arguido não tem que
incriminar-se a si próprio (…) e que também a sua esfera individual não deve ficar desprotegida, à mercê
da intervenção do Estado” (“Libertad de autoincriminación y protección de la persona del imputado”, in
Estúdios sobre Justicia Penal en Homenaje al Profesor Júlio B.Maier, org. David Baigun et alia, Buenos
Aires, Del Puerto: 2005, p. 422). Para uma consideração recente do âmbito do princípio do nemo tenetur
se ipsum accusare no direito processual penal português, cfr. Augusto SILVA DIAS/Vânia COSTA
RAMOS, O direito à não auto-inculpação (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-
ordenacional português, Coimbra Editora: 2009. A partir da ideia de que “a consagração expressa do
princípio surge apenas no Código de Processo Penal (CPP), na vertente do direito ao silêncio [arts. 61.º,
n.º 1, al. d); 132.º, n.º 2; 141.º, n.º 4, al. a) e 343, n.º 1 do CPP]”, reconhece-se a unanimidade quanto à
“natureza constitucional implícita do nemo tenetur” (ob. cit., ps 14-5)”. Apesar de se afirmar que “o
direito ao silêncio constitui (…) o núcleo quase absoluto do nemo tenetur”, admite-se que o seu âmbito de
validade material seja mais amplo, referindo-se, a título de exemplo, a entrega de documentos íntimos ou
a colheita de vestígios biológicos. E considera-se que “à medida que nos afastamos das concretizações
nucleares, como o direito ao silêncio ou à não entrega de documentos íntimos, a protecção de que o
princípio goza vai-se relativizando, isto é, ficando dependente da concordância prática”. Esta tendência
para uma certa flexibilização do princípio parece visível, nomeadamente, no regime conjugado dos
artigos 172.º, n.º 1 e 154.º, n.º 2 do CPP, do qual resulta a admissibilidade da sujeição coactiva aos
denominados “exames biológicos” (ou “perícias biológicas”, como outros preferem), mediante decisão
prévia de juiz. Também Lara Sofia PINTO (“Privilégio contra a auto-incriminação versus colaboração do
arguido”, in Prova Criminal e Direito de Defesa – Estudos sobre Teoria da Prova e Garantias de Defesa
em Processo Penal, coordenação de Teresa Beleza/Frederico da Costa Pinto, Coimbra: Almedina: 2010,
p. 91 ss) reflecte sobre a origem, o conteúdo, a consagração e a extensão do princípio nemo tenetur se
ipsum accusare e pondera a sua relação com a colaboração que é exigida ao arguido no processo penal. A
distinção entre o direito à não auto-incriminação e o direito ao silêncio é ainda afirmada por Sofia Saraiva
de MENEZES (“O direito ao silêncio: a verdade por trás do mito”, Prova Criminal e Direito de Defesa –
Estudos sobre Teoria da Prova e Garantias de Defesa em Processo Penal, coordenação de Teresa
Beleza/Frederico da Costa Pinto, Almedina: 2010, p. 118 ss), para quem aquele assume um âmbito mais
vasto, apesar de a liberdade de declaração ser “entendida como a mais forte expressão do direito à não
auto-incriminação. Afinal, este direito implica que o arguido possa recusar-se a praticar actos lesivos à
sua defesa, tanto pelo direito de não prestar declarações como pela recusa em fornecer certo tipo de
provas; não impende sobre ele um qualquer dever de colaboração”.
693
Na síntese com que Teresa BELEZA e Frederico da COSTA PINTO iniciam a sua nota de
apresentação à compilação de estudos Prova Criminal e Direito de Defesa – Estudos sobre Teoria da
Prova e Garantias de Defesa em Processo Penal (Coimbra: Almedina: 2010, p. 5), “não existe um
processo penal válido sem prova que o sustente, nem um processo penal legítimo sem respeito pelas
garantias de defesa”.
694
O princípio da presunção de inocência tem consagração expressa logo no n.º 2 do artigo 32.º da CRP:
“todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (…)”. Sobre
as consequências da presunção de inocência no estatuto do arguido enquanto meio de prova, cfr.
Alexandra VILELA, Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal,
Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 94 ss. Para a Autora, existe a imposição de que “a participação do
arguido seja sempre limitada pelo integral respeito pela sua vontade (…). A posição do arguido há-de ser
sempre de livre declaração e participação, não podendo, em consequência, ser penalizado pelo silêncio

389
indissociável da dimensão adjectiva da questão da culpabilidade: a condenação a uma
pena pressupõe a existência de culpa mas não prescinde, também, de que a
responsabilidade seja demonstrada através de um processo adequado, não cabendo ao
arguido qualquer dever de contribuição activa para tal demonstração. Nesta dimensão
adjectiva, as exigências decorrentes do princípio da culpa implicam a existência de um
processo através do qual se faça a prova da responsabilidade do arguido e impõe que a
este arguido seja reconhecido um adequado direito de defesa, em moldes que
contribuam para o equilíbrio entre o exercício do poder punitivo do Estado e a protecção
dos seus direitos fundamentais.
Em certo sentido, sobretudo figurativo e em que não vai ainda vertido qualquer
juízo crítico, poder-se-ia dizer que, no que tange à culpa, na justiça restaurativa o agente
é sempre o encenador e o actor da sua própria peça, enquanto na justiça penal ele pode
permanecer, se assim o desejar, um mero espectador face à representação de outros695.
Nas palavras de Teresa BELEZA, o arguido “pode comportar-se como mero espectador
que observa como terceiros lidam com o seu caso, não sendo responsável por essa
atitude passiva (não tem o dever de colaborar), nem podendo ser por ela penalizado (não
tem o ónus de colaborar)”696.
Uma tão evidente oposição não pode deixar de se relacionar, parece claro, com a
estrutura acusatória que o direito processual penal assume – com frequência associada,
na doutrina restaurativa, ao conceito de “modelo adversarial”697, porventura com certo

que eventualmente se reserve”. Uma síntese interessante e ainda em língua portuguesa das implicações
contidas neste princípio da presunção de inocência é a feita por António Magalhães GOMES FILHO
(“Significados da presunção de inocência”, Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos
Fundamentais – Visão Luso-Brasileira cit., ps. 332-3), que afirma que dele decorrem uma garantia de
jurisdicionalidade (“em virtude da qual a verificação da culpa criminal somente pode ser alcançada
mediante um processo regular”; uma garantia de não intervenção do ius puniendi, salvo quando a culpa
do acusado esteja comprovada pela acusação acima de qualquer dúvida razoável; uma garantia contra a
auto-incriminação; uma garantia de tratamento do acusado como inocente até ao trânsito em julgado da
sentença condenatória; uma garantia de “preservação da liberdade do acusado durante o processo, salvo
diante de situações excepcionais e devidamente justificadas, em que eventual restrição da liberdade só
pode ocorrer em face de exigências processuais, para assegurar a realização ou os resultados do próprio
processo”.
695
Segundo Fernanda PALMA, referindo-se à culpa penal, “o sentido da acção para o próprio de acordo
com a sua percepção ética será pouco relevante na construção do parâmetro da censura pessoal” (O
Princípio da Desculpa em Direito Penal, Almedina: 2005, p. 19).
696
Teresa BELEZA, «”Tão amigos que nós éramos”: o valor probatório do depoimento de co-arguido no
processo penal português», Revista do Ministério Público, Lisboa, ano 19, n.º 74, 1998, ps. 50-1.
697
Quando se refere a natureza adversarial do processo penal pretende-se sobretudo afirmar que acusação
e defesa têm objectivos em regra diversos e que cada uma usará dos meios ao seu dispor para lograr
atingi-los (e não se julga nesta sede necessário mais do que chamar a atenção para a limitação que para
esta definição adversarial pode representar uma conformação da actuação do Ministério Público tal como
a consagrada em Portugal). A afirmação dessa tendencial natureza adversarial associada à necessidade
que o arguido tem de se defender face à possibilidade de aplicação coactiva de uma sanção grave não

390
desconhecimento relativamente aos bens que tal opção também encerra –, e em que as
práticas restaurativas se não revêem. À luz dessa concepção adversarial, o papel que se
pode esperar do arguido é, no processo penal, sobretudo passivo698; já nas práticas
restaurativas, onde o agente do crime não tem de se defender de nada porque a nada
poderá ser condenado contra a sua vontade, a sua colaboração (rectius, a sua
participação) assumirá um cariz essencialmente activo699.
Deste modo, na justiça penal, a ausência de um dever de colaboração do arguido
para a comprovação da sua culpa e a existência de um direito ao silêncio700 fundam-se

significa, porém, uma qualquer associação do conceito de “adversário” ao conceito de “inimigo”. Um


adversário não tem de ser um inimigo e não deve seguramente sê-lo. Na doutrina portuguesa mais
recente, Jorge de FIGUEIREDO DIAS caracteriza um processo penal acusatório por duas notas
essenciais: «a de que o tribunal só pode pronunciar-se sobre uma acusação que lhe seja dirigida por uma
entidade orgânica e funcionalmente distinta (nota “não inquisitória”); e a do reconhecimento da
participação constitutiva da acusação e da defesa na declaração do direito do caso (nota, se assim se
quiser, “adversarial”)» Para o que aqui interessa, sobra a conclusão de que se não pode contrapor o
modelo europeu continental ao modelo anglo-saxónico através da afirmação de que só este é adversarial.
Também o modelo português pressupõe uma estrutura basicamente acusatória e, nessa medida,
adversarial. Todavia, a diferença está em que não o é exclusivamente ou extremadamente, porque a
estrutura de base acusatória é completada por um princípio da investigação que impõe ao tribunal que
promova a descoberta da verdade sempre que os contributos da acusação e da defesa forem insuficientes.
Nesta medida, Jorge de FIGUEIREDO DIAS conclui que «a única distinção – todavia fundamental – que
persiste entre os dois modelos é a de um processo penal de partes (hoc sensu, dispositivo) e de um outro
sem partes (hoc sensu, indisponível), com a diversa posição, competência e função do juiz num e noutro
modelo (“árbitro” no primeiro, “investigador oficial subsidiário e supletivo” no segundo» (in Acordos
sobre a Sentença em Processo penal – O “Fim” do Estado de Direito ou Um Novo “Princípio”? cit., p.
16).
698
Considere-se, a título de exemplo, o dever para o arguido de se sujeitar “a diligências de prova e a
medidas de coacção e garantia patrimonial especificadas na lei e ordenadas e efectuadas por entidade
competente” [art. 61, n.º 3, al. d) CPP]. O entendimento segundo o qual no processo penal a colaboração
que se pode exigir do arguido é a passiva tem, para além disso, acolhimento jurisprudencial. Assim, a
título de exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Janeiro de 2009 (processo n.º
0816480), considera-se a sujeição a diligências de prova “numa perspectiva eminentemente passiva”, o
que no caso conduz à conclusão de que “num inquérito por crime de falsificação de documento, é
ilegítima a ordem dada pelo magistrado do Ministério Público ao arguido no sentido de escrever pelo seu
punho determinadas palavras, com vista a posterior perícia à letra, com a cominação de que, não o
fazendo, comete um crime de desobediência”.
699
Mais uma vez, deve sublinhar-se a traço grosso que a contraposição entre o processo penal e as
práticas restaurativas a partir da ideia de que naquele a colaboração do arguido é passiva e nestas ela é
activa assume um carácter puramente tendencial, não tendo qualquer pretensão de uma validade enquanto
regra que desconhece excepções. Mesmo quando se olha só para o processo penal, compreende-se a
inviabilidade da regra de que toda a colaboração passiva é admitida e toda a exigência de colaboração
activa é indevida, desde logo porque existem sujeições que podem ser mais desvaliosas para as pessoas do
que algumas acções. Ora, por mais que o critério de distinção entre conduta activa e passiva se afigure
problemático, parece poder dizer-se que existem, no direito processual penal português, acções a que o
arguido está obrigado (como responder em matéria de identidade), e sujeições que lhe não podem ser
impostas, nomeadamente todas as que possam ser qualificadas como tortura.
700
Não constitui propósito deste estudo dar conta das várias questões jurídico-processuais que a propósito
desse direito ao silêncio se vieram suscitando (o que se pretende é, tão-somente, compreender a sua
existência no direito processual penal e aquela que seria a sua incoerência no contexto das práticas
restaurativas). Todavia, para uma consideração desses problemas e da evolução que o seu tratamento vem
sofrendo, vejam-se, a título de exemplo, Maria Fernanda PALMA (“A constitucionalidade do artigo 342.º
do Código de processo penal: o direito ao silêncio do arguido”, Revista do Ministério Público, n.º 60, ano
15, 1994, p. 101 ss) e Maria João ANTUNES (“Direito ao silêncio e leitura, em audiência, de declarações

391
em razões imanentes ao próprio sentido e estrutura701 da resposta punitiva estadual e
relacionam-se, nomeadamente, com a protecção do carácter equitativo do processo, com
a efectividade do direito de defesa e com o respeito pela presunção de inocência. Por
outro lado, a solução contrária – a imposição ao arguido de um dever de colaboração na
comprovação da sua responsabilidade – dificilmente lograria ser concretizada sem uma
ofensa insuportável a valores também de dimensão substantiva, como o direito à
integridade pessoal ou ao livre desenvolvimento da personalidade702. Nas palavras de
Jorge de FIGUEIREDO DIAS a propósito da caracterização do arguido enquanto
sujeito processual, «o princípio da presunção de inocência, ligado (…) ao princípio – o
primeiro de todos os princípios jurídico-contitucionais – da preservação da dignidade
pessoal, conduz a que a utilização do arguido como meio de prova seja sempre limitada
pelo integral respeito pela sua decisão de vontade – tanto no inquérito como na
instrução ou no julgamento: só no exercício de uma plena liberdade de vontade pode o
arguido decidir se e como deseja tomar posição perante a matéria que constitui objecto
do processo. E não está aqui em causa a óbvia proibição (…) de métodos inadmissíveis
de prova, senão que também e sobretudo o direito, conferido ao arguido pelo art. 61.º - 1
c [agora, 61.º - 1 d], de “não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre

do arguido”, Sub Judice: Justiça e Sociedade, n.º 4, 1992, p. 25 ss). Maria João ANTUNES entendia que
“da conjugação do princípio de que só a prova produzida ou examinada em audiência serve para formar a
convicção do tribunal com o direito ao silêncio do arguido, nada mais pode resultar, sob pena de
esvaziamento do conteúdo de um e de outro, do que a conclusão no sentido da proibição de valoração das
declarações anteriormente prestadas por aquele sujeito processual”. Maria Fernanda PALMA opunha-se à
imposição ao arguido do dever de comunicar ao tribunal, no início da audiência, os seus antecedentes
criminais, considerando que o regime então consagrado no artigo 342.º do Código de Processo Penal
ofendia, entre outros, o princípio da presunção de inocência (ob. cit., p. 109).
701
Para Manuel da COSTA ANDRADE (Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra:
Coimbra Editora, 1992, p. 122), “o princípio nemo tenetur ganha (…) o significado de uma decisiva pedra
de toque, imprimindo carácter e extremando entre si os modelos concretos de estrutura processual. Bem
podendo, por isso, figurar como critério seguro de demarcação e de fronteira entre o processo de estrutura
acusatória e as manifestações de processo inquisitório”. Em sentido não muito distante, Francisco
MUÑOZ CONDE considera que, no âmbito das proibições de prova, «porventura a mais importante de
todas e a que supôs um avanço fundamental face ao anterior processo penal de carácter inquisitório é a
derivada do princípio “nemo tenetur se ipsum accusare”, de acordo com o qual “ninguém está obrigado a
declarar contra si próprio” ou a contribuir com provas que o incriminem» (“De la proibición de
autoincriminación al derecho procesal penal del enemigo”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Jorge de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra Editora: 2010, p. 1014).
702
Não se adentrará nesta sede a problemática da natureza sobretudo processual ou sobretudo substantiva
do princípio nemo tenetur: opta-se, antes, por se sublinhar o “sobretudo”, vincando-se assim que as
correntes em oposição não parecem ter, elas próprias, uma pretensão de exclusividade. Deste modo,
talvez se possa afirmar que as razões que fundam o princípio nemo tenetur e que, por isso, conformam a
sua natureza, são umas de índole substantiva (e relacionadas, entre outros, com o direito à
autodeterminação) e outras de índole processual (e relacionadas com a própria estrutura acusatória do
processo penal).

392
os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles
prestar”»703.
As considerações que se vêm tecendo assentam na diversidade entre o
reconhecimento da responsabilidade do agente nas práticas restaurativas e a
comprovação da responsabilidade do agente na justiça penal, para a qual o próprio não
tem de contribuir, ainda sob o enfoque da presunção de inocência e do princípio nemo
tenetur704.
Esta diferença, que a um primeiro olhar poderia parecer pequena, é na verdade
uma diferença enorme e uma diferença qualitativa. E é-o na medida em que a questão
central do direito processual penal se torna – a partir daquela interdição da auto-
incriminação e da ideia de que cabe às instâncias formais de controlo a comprovação da
culpabilidade do agente – a questão da compatibilização das finalidades conflituantes da
realização da justiça associada à descoberta da verdade e da não desprotecção de
direitos fundamentais do arguido, nomeadamente os entre si relacionados direitos à
privacidade, ao silêncio ou à presunção de inocência705. Nesta medida, a própria
estrutura do direito processual penal assenta na inexistência desse dever de colaboração
do arguido, enquanto a estrutura das práticas restaurativas não prescinde – antes a
assume como seu requisito essencial – da colaboração do arguido sustentada pela sua
vontade.
Todavia, sempre seria possível procurar retirar relevância a esta distinção a
partir de uma outra ponderação do binómio colaboração/vontade. Dir-se-ia: tal como
sucede na justiça penal, as práticas restaurativas só aceitam uma responsabilização do

703
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”,
Jornadas de Direito Processual Penal – O novo Código de Processo Penal, 1992, Coimbra: Almedina,
ps. 27-8.
704
É muito vasta a produção doutrinal atinente à presunção de inocência. Neste contexto, a sua dimensão
que se pretende enfatizar está associada à “juriscionalidade” referida, entre outros, por António
Magalhães GOMES FILHO: “a primeira e mais abrangente garantia que decorre do reconhecimento da
presunção de inocência como princípio fundamental do ordenamento é a de jurisdicionalidade: se
nenhum crime pode ser considerado praticado e ninguém pode ser considerado culpado nem sujeito à
pena antes de um julgamento regular, a jurisdição é a atividade necessária para que se possa obter a prova
da culpabilidade. Nesse sentido, o princípio tutela a imunidade do cidadão não só contra punições
determinadas por outros agentes do poder, mas indica sobretudo a garantia de que a verificação da culpa
somente pode ser alcançada mediante um processo regular, que constitui a forma de atuação
característica dos órgãos judiciais no Estado de direito” (“Significados da presunção de inocência”,
Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais – Visão Luso-Brasileira, São Paulo:
Quartier Latin, 2006, p. 322-3).
705
Neste sentido, Claus ROXIN (“Involuntary self-incrimination and the right to privacy in criminal
proceedings”, Israel Law Review, vol. 31, n. º 1-3, 1997, p. 74) refere a “luta permanente entre as duas
exigências conflituantes” de “investigação da verdade” contra “o interesse do arguido na protecção da sua
privacidade”.

393
agente assente na sua colaboração em sentido lato se for essa a sua vontade esclarecida
e livre. Tal como no processo penal, nas práticas restaurativas o arguido colaborará se
quiser. E anular-se-ia a diferença. Não se julga que este raciocínio deva ter acolhimento:
enquanto a justiça penal seguirá o seu curso independentemente daquela colaboração
conducente à assunção dos factos e o agente poderá ser punido com base em uma
responsabilização heterónoma, já a resposta restaurativa fica inviabilizada caso aquela
colaboração não exista.
Ou seja: a colaboração do agente do crime no que respeita ao reconhecimento
dos factos é essencial (e quase suficiente) na justiça restaurativa, mas – como se viu – já
não o é na penal. Para além de que, na justiça penal, devem prever-se limites, quer à
admissibilidade, quer à valoração, mesmo dessa colaboração fundada numa vontade
esclarecida e livre de auto-incriminação706. Existem, ademais, utilizações do arguido
como meio de obtenção de prova que devem considerar-se vedadas independentemente
daquela que for a sua vontade. E, como também é sabido e se já referiu, nem toda a
colaboração pode fundar, por si só, o juízo de desnecessidade de outros meios
probatórios.
Para se continuar o juízo comparativo, de forma que permanece sintética, há
uma outra questão que se julga merecer referência: a uma primeira análise, a
importância que a proposta restaurativa atribui a um certo reconhecimento dos factos
pelo arguido poderia aproximá-la do modelo inquisitório e da centralidade que nele tem
a confissão da culpa. Tratar-se-ia de uma hipervalorização da atitude interna do agente
perante os factos – e, note-se, não sobretudo da atitude interna vertida nos factos porque
anterior ou contemporânea da sua ocorrência, mas de uma espécie de posterior
arrependimento interior derramado para o exterior com finalidades reparadoras –, em
detrimento de uma valorização sobretudo dos factos. E assim se daria, de certo modo,
um indesejável retrocesso na direcção de uma concentração mais na personalidade ou na
atitude que dela seria reveladora do que nos factos707.

706
Existem limites ao relevo atribuído à confissão para efeitos de tornar dispensável a produção de prova
(cfr. o artigo 344.º, n.º 3 do CPP). E se há Autores, como Jorge de FIGUEIREDO DIAS, que, a partir de
uma reflexão sobre o regime processual penal alemão e a sua aceitação dos acordos sobre a sentença,
admitem uma certa expansão dos efeitos atribuídos à confissão do arguido na sequência de procedimentos
de cooperação entre a acusação e a defesa, não é menos certo que se atribuem a esses acordos vários
limites que pretendem garantir ainda o respeito pela regra da indisponibilidade do processo penal. Entre
eles, contam-se os atinentes, precisamente, à questão da culpabilidade, devendo o Tribunal ficar
esclarecido sobre a liberdade, a credibilidade e a coerência da confissão, sob pena de, caso o não fique,
dever ordenar diligências probatórias (in Acordos sobre a Sentença cit., p. 43 ss).
707
E a razão pela qual se não reluta em mencionar um “retrocesso” prende-se com a compreensão desse
desligamento entre a hipervalorização da atitude interna e o sancionamento penal como ideia-chave

394
Um ajuizamento crítico da justiça restaurativa com base nesta ideia de retrocesso
na direcção de um modelo inquisitório ou de um modelo centrado na personalidade do
agente seria, segundo se crê, apressado e pouco sustentado, tendo em conta a
diversidade de aspectos centrais: a voluntariedade de participação exigida nas práticas
restaurativas e a impossibilidade de uma decisão autoritária de condenação a uma pena
no final das mesmas restringem o sentido da equiparação ao desvalor que a
possibilidade de auto-incriminação assume em um processo penal de estrutura
inquisitória ou ao desvalor de um direito penal da personalidade.
Não pode deixar de se referir, também para sustentar a rejeição da associação
da proposta restaurativa ao modelo inquisitório (aproximação que, repita-se, pareceria
indiciada pela relevância atribuída a um certo reconhecimento dos factos pelo arguido e
a uma atitude de arrependimento), que existe até quem defina a ideia de composição
inerente à justiça restaurativa no ponto exacto da oposição aos sistemas processuais
penais de estrutura inquisitória. Assim, para Autores como Júlio B. MAIER, aquilo que
precisamente distingue um sistema inquisitório de um sistema de composição é o facto
de, naquele, o Estado chamar a si a decisão do conflito jurídico-penal em primeira linha,
retirando relevância à vontade do agente do crime e da vítima na definição da resposta
que julgam adequada708. Atribui-se, sob esta perspectiva, o apodo de “inquisitório” a

também do Iluminismo Penal, ainda relacionada com uma cisão entre o conceito de crime e os conceitos
de pecado e de maldade. Augusto SILVA DIAS (“Delicta in Se” e “Delicta mere Prohibita” cit., p. 102
e 108), antes de citar o pensamento de Beccaria, afirma o modo como o racionalismo moderno (no qual
inclui “não só o iluminismo setecentista mas também o liberalismo que marca o pensamento político e
jurídico na primeira metade do século XIX”) radicaliza “a separação entre foro interno e foro externo,
iniciada em bases modernas por Grocio e Puffendorf”, acrescentando que “só o segundo foro corresponde
à dimensão intersubjectiva da acção humana, na qual toda a ideia de responsabilidade se funda e é
acessível ao conhecimento. Os aspectos anímicos só relevam na medida em que se exteriorizam na acção
e só podem ser imputados a partir da compreensão da mesma”.
708
Júlio B. MAIER (“Entre la inquisición y la composición”, Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos:
in memoriam, vol. II, Dir. Arroyo Zapatero/Berdugo Gómez de la Torre, Ediciones de la Universidad de
Castilla-La Mancha/Ediciones Universidad de Salamanca, 2001, p. 801 ss) contrapõe mesmo o “sistema
da inquisição” ao “sistema da composição”, tomando como critério de distinção essencial a centralidade
ou não da intervenção estadual na resposta ao conflito criminal. Assim, afirma que compreende “por
inquisição o sistema temporalmente mais próximo de nós, segundo o qual o Estado toma nas suas mãos o
conflito, subtraindo-o aos seus protagonistas de carne e osso, ameaça quem considera culpado com o uso
da força (a pena estadual, a máxima expressão do poder coactivo do Estado) e persegue a solução para o
conflito directamente – de ofício –, através dos seus próprios funcionários (a polícia, o ministério público,
inclusivamente os juízes) sem atenção ao interesse concreto dos protagonistas reais do conflito”. E o
Autor acrescenta que “pelo contrário, compreendo por composição o sistema segundo o qual os
protagonistas concretos do conflito social arbitram, em princípio, a sua solução, sistema em que a sua
vontade, separada ou conjuntamente, governa o conflito”. Ainda na opinião de MAIER, “o primeiro
modelo é francamente autoritário, face ao segundo modelo, de inclinação democrática”. Com interesse,
deve ainda ponderar-se a ideia do Autor de que este sistema, largamente dominante para “dirimir hoje a
maioria dos conflitos do chamado direito privado”, poderia ser transposto para a reacção a muitos
conflitos criminais, reservando-se à intervenção autoritária do Estado um papel supletivo. Ou seja, o

395
qualquer modelo de reacção ao conflito que se baseie no reconhecimento de um poder
coactivo do Estado que não tenha um espaço de intervenção meramente residual face à
inexistência de uma solução aceite pelos “intervenientes directos” no conflito.
Por outro lado, também para compreender a diferença da proposta restaurativa
face a alguns elementos habitualmente associados à inquisição, sempre se deverá
sublinhar a inexactidão de uma hipervalorização, na justiça restaurativa, de aspectos
atinentes ao remorso, à sinceridade do pedido de perdão ou ao arrependimento. Apesar
de alguns cultores da proposta restaurativa continuarem a questionar a sua real
importância, a tendência com a qual se concorda e que merecerá tratamento mais detido
em momento posterior deste estudo prende-se com a afirmação da maior relevância,
isso sim, da correcção da intervenção do agente nas práticas restaurativas e do seu
esforço sério no sentido da reparação dos danos que causou.
Ainda assim, aquilo que se julga que merece ser sublinhado é que, também na
sua dimensão processual penal, a “questão da culpa” suscita dificuldades à justiça
restaurativa, na medida em que a resposta ao conflito suponha uma assunção de deveres
pelo arguido que não é suportada por uma prova suficiente da sua responsabilidade, mas
apenas por um seu reconhecimento de alguma responsabilidade.
A uma primeira análise, a ideia de que não se prescinde em absoluto de uma
verificação, através da prova, de que há sinais de responsabilidade do agente pelos
factos ilícitos pode encontrar algum conforto em argumentos colhidos nas opções
legislativas: a título de exemplo, veja-se o n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 21/2007, de 12
de Junho, que dispõe que o Ministério Público envia o processo para mediação
(designando mediador e remetendo-lhe a informação considerada essencial), “se tiverem
sido recolhidos indícios de se ter verificado crime”. Todavia, pelo menos em sistemas –
como o português – em que a mediação penal surja como mecanismo de diversão (ainda
que não só), dispensando-se a realização da audiência de julgamento, as dificuldades
postas por aquela exigência de comprovação da responsabilidade avolumam-se. As mais
das vezes, no inquérito, os elementos obtidos não permitem a formulação de um juízo
sustentado sobre a existência ou não de culpabilidade, remetendo-se para a fase do
julgamento a produção da prova que conduzirá (ou não) à afirmação da culpa – para o
que muito relevará, naturalmente, o contributo da defesa. Ora, o que se pode questionar
é se o envio do processo para mediação penal e a consequente inexistência de

Estado seria chamado a dirimir o conflito apenas quando o agente do crime e a sua vítima não lograssem
fazê-lo.

396
julgamento (com a importância acrescida que adquire em países, como Portugal, onde
tem consagração o princípio da imediação709) vai tornar impossível a comprovação da
inexistência de culpabilidade e, logo, vai permitir uma assunção de deveres sem a
condenação penal do agente alicerçada na convicção, para além da dúvida razoável, de
que é responsável pelos factos que lhe foram imputados.
Segundo se crê, a trave mestra em que se deve escorar a resposta para este
problema é a ideia de que a culpabilidade não deve ser pressuposto da resposta
restaurativa nos mesmos moldes em que é pressuposto da resposta punitiva. E não o
deve ser precisamente porque a sua essencialidade na construção penal advém da
necessidade de excluir a possibilidade de punição autoritária e heterónoma sem um
juízo de censura suportando pela existência comprovada, por forma processualmente
válida, de responsabilidade. Logo, se não há como legitimar essa censura através da
comprovação de que aquele agente é responsável por um mal que é um crime, não pode
haver punição.
Na resposta restaurativa não há, porém, uma punição autoritária em nome de
uma responsabilidade que se atribui a outrem. O que interessa não é, portanto, saber se é
possível formular esse juízo de censura ao comportamento de outrem, mas antes se a
pessoa se sente responsável por um dano – decorrente de um ilícito-típico –e se quer
repará-lo. A responsabilidade que é essencial na justiça restaurativa não decorre,
portanto, da prova de uma culpa que cabe a uma entidade exterior e com o poder de
fazer punir, mas nasce antes de uma vontade própria de assumir, autonomamente, a
responsabilidade pelo mal que se causou, o mal que o agente do crime e a sua vítima
acham que existiu e acham que lhes diz respeito710.
Em certo sentido, parece poder afirmar-se que o relevo que a vontade adquire na
justiça restaurativa faz decrescer a importância do juízo de responsabilidade. Quando

709
Dispõe-se no n.º 1 do artigo 355.º do CPP (com as ressalvas previstas nos artigos seguintes) que “não
valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer
provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”.
710
Talvez possa relembrar-se, a este propósito, a ideia de Thomas, segundo o qual “if men define
situations as real, they are real in their consequences” (William Isaac THOMAS/Dorothy THOMAS,
The Child in America: Behaviour Problems and Programs, Nova Iorque, Alfred A. Knopf: 1928, ps. 571-
2). Ora, se o sancionamento autoritário em nome da defesa da comunidade não deve prescindir de uma
comprovação dos factos por modo processualmente válido; já a pacificação do conflito interpessoal
querida pelos sujeitos desse conflito não pode desatender aquilo que eles definem como a sua realidade e
as suas consequências. É certo que, mesmo na justiça penal, existem casos em que se atribui alguma
relevância à representação da verdade do arguido, como sucede em algumas hipóteses de confissão.
Todavia, mesmo aí, pode questionar-se se há a possibilidade de o agente do crime expressar integralmente
a sua percepção da realidade ou se, pelo contrário, a possibilidade que se lhe dá é antes a de anuir a uma
representação da realidade previamente construída por outros sujeitos processuais.

397
assim se entende, não se pretende significar, porém, uma sua total irrelevância: a
comprovação da responsabilidade de que não se pode prescindir nas práticas
restaurativas – pelo menos naquelas que, como sucede entre nós, estão por algum modo
concatenadas com a justiça penal – verte-se na exigência de que a autoridade judiciária
que envia o processo para mediação confirme a existência de indícios de que o agente
cometeu um crime e manifesta-se na indispensabilidade – e indispensabilidade para a
própria existência de mediação penal – de que o agente voluntariamente reconheça a
sua responsabilidade pelo essencial dos factos que lhe são atribuídos.
Do que até aqui se disse parece ressaltar a ideia de que o conceito de
“responsabilidade” é nuclear, quer para a justiça penal, quer para a justiça restaurativa.
Esse conceito tem, porém, significados distintos em cada um dos modelos, o que se
julga relevante para a compreensão do papel que o princípio da culpa representa no
sistema penal – e que já não representa, pelo menos nos mesmos moldes, na justiça
restaurativa. Na justiça penal, a demonstração da responsabilidade é pressuposto da
punição infligida por outro e limita essa punição. Na justiça restaurativa, a
demonstração da responsabilidade já não é o eixo essencial para a sujeição a
consequências negativas e indesejadas, mas antes um requisito para que se ponha em
marcha a busca voluntária de uma solução para os problemas causados e que seja
adequada à pacificação do conflito (inter)pessoal711. Nesta medida – na medida da
desejável adequação das práticas restaurativas à pacificação do conflito – parece
indispensável que o encontro da vítima – ainda que mediato – seja com aquele que foi o
responsável pelo danos causados, e já não com um qualquer outro alheio a essa
responsabilidade, ainda que eventualmente disposto a reparar aqueles danos.
Há uma outra nota que se julga que merece ser acrescentada neste espaço de
ponderação da assunção da responsabilidade do agente na justiça restaurativa versus a
necessidade de demonstração da culpabilidade do agente na justiça penal. Essa nota
supõe a ponderação de um outro factor, atinente à protecção da privacidade ou à
ausência dela. A interdição da auto-incriminação no direito processual penal está com

711
Lode WALGRAVE tece, a propósito da responsabilidade, algumas considerações que, apesar de
estarem longe de merecer uma concordância absoluta, justificam neste contexto uma referência. Depois
de elencar a responsabilidade como um dos valores centrais para a obtenção de uma resposta justa ao
crime no modelo de sociedade que defende, explica que esse conceito é também central na justiça que
designa por retributiva. Considera, todavia, que essa responsabilidade é “incompleta”, porque só significa
sofrer as consequências negativas, mas já não actuar no sentido de remediar o mal originado (in
“Imposing Restoration Instead of Inflicting Pain”, in Restorative Justice and Criminal Justice cit., p. 70).

398
frequência associada à protecção da privacidade712. Mas, a comprovação da
culpabilidade, no processo penal, ocorre em um espaço de publicidade (pelo menos, em
regra) sobretudo porque é de interesses de dimensão pública que se trata e porque a
própria consecução das finalidades preventivo-gerais da pena supõe essa publicidade.
Assim, a exposição característica desse espaço público que é o processo penal só é
admissível na exacta medida em que não se transporte para esse espaço o outro espaço,
que é o da privacidade (e, em alguns casos, até o da intimidade) do arguido. Essa
necessidade de uma demonstração heterónoma da culpabilidade do agente perante todos
os outros é, nesta acepção, coerente com o próprio sentido da intervenção punitiva
estadual. Todavia, essa demonstração heterónoma da responsabilidade já não seria, pelo
menos a partir de certo ponto, coerente com o sentido da proposta restaurativa. Esta, que
não se ocupa primariamente da dimensão pública do conflito, transporta as suas práticas
para espaços de privacidade. E aos resultados que através delas se obtenham é estranho
um objectivo principal de convencimento de todos os outros da sua bondade ou da sua
justeza. Por se privilegiar, portanto, mais a satisfação dos intervenientes concretos no
conflito com a solução alcançada do que a pacificação comunitária em torno da
reafirmação da validade da norma, torna-se menos relevante essa demonstração externa
da responsabilidade que é inerente ao juízo de culpabilidade processual penal.
Um último factor que se deve considerar e que também contribui para alijar a
preocupação com a assunção de deveres por um agente cuja culpa não se considerou
provada em um julgamento é o reconhecimento de que, mesmo no direito processual
penal, se admitem soluções em que o arguido assume consequências desvaliosas
associadas ao cometimento de um crime, mas sem que a sua culpa seja provada em
audiência de julgamento. É o que sucede com a suspensão provisória do processo, em
que a concordância do arguido lhe torna “oponíveis injunções e regras de conduta” –
para usar a terminologia legal. E é o que – porventura ainda mais vincadamente, porque
neste caso há já uma verdadeira condenação penal que prescinde da realização da
audiência de julgamento – ocorre nos casos em que se adopta a forma especial do
processo sumaríssimo. O que significa que, mesmo no seio da justiça penal, se admitem
já soluções que representam uma flexibilização das exigências decorrentes da antes

712
Claus ROXIN (“Involuntary self-incrimination and the right to privacy in criminal proceedings”,
Israel Law Review, vol. 31, n. º 1-3, 1997, p. 74) entende que os problemas da auto-incriminação e da
privacidade estão com frequência sobrepostos, na medida em que “uma auto-incriminação forçada causa
com frequência uma invasão da privacidade e porque uma invasão da privacidade pelo Estado resulta
frequentemente numa auto-incriminação involuntária”.

399
referida “dimensão processual penal” da culpa e que, como também não poderia deixar
de ser, radicam em um certo reconhecimento dos factos pelo agente (e, nesse sentido,
em como que uma “confissão” dos factos, ainda que não em sentido estrito)713.
Em síntese apertada, o que se nota é que, na justiça restaurativa, há uma certa
deslocação de um juízo de culpa suportado por uma verdade que é a verdade
processualmente válida (a verdade associada à factualidade afirmada no processo,
maxime na audiência de julgamento) para uma forma de imputação da responsabilidade
que se associa a uma verdade construída pelos sujeitos do conflito (uma verdade
associada a uma factualidade que resulta de um consenso). Ora, apesar de se
compreender muito do risco das soluções radicadas em um consenso sobre a verdade,
que é construído por sujeitos cuja igualdade comunicacional é questionável, não se julga
que esse risco de a verdade construída ser condicionada por desigualdades de

713
É claro que não pode fundar-se, sem mais, a assunção de deveres pelo agente do crime em resultado de
práticas restaurativas no argumento de que também a justiça penal já contempla soluções a que é alheia a
demonstração da culpabilidade através de processo que cumpra toda a tramitação ordinária, sobretudo a
audiência de julgamento. Procurou-se, antes, compreender tal possibilidade à luz das especificidades da
justiça restaurativa. Até porque não deve omitir-se, no próprio seio do pensamento penal, a existência de
críticas àquela relevância penal e processual penal do consenso como forma de afastar a demonstração
processual da responsabilidade. Assim, a título de exemplo, veja-se o que entende Winfried HASSEMER
(in Persona, Mundo y Responsabilidad cit., p. 178 ss) sobre a relevância de tais acordos. O Autor
considera a questão sob uma perspectiva de imputação [cuja teoria “responde (…) à questão de quando e
sob que condições se pode estabelecer uma relação, penalmente relevante, entre uma pessoa e um
acontecimento, de modo que a essa pessoa se possa aplicar uma sanção penal”], entendendo que há
acordos “que se dirigem a uma modificação do processo de imputação”, dando os exemplos do “fim do
processo antes de se ter provado, conforme à lei, a imputação contida na denúncia; afastamento, total ou
parcial, da produção da prova (por exemplo, com a confissão do acusado), [afastamento esse] acordado
em reunião não contemplada na norma processual (por exemplo entre o defensor e o ministério público)”.
Na opinião de HASSEMER, «um processo assim rompe a dinâmica de uma imputação formalizada,
inclusivamente antes de se ter podido alcançar o objectivo que não está apenas previsto na legislação
processual mas que também corresponde aos critérios de uma racionalidade extrajurídica: uma
racionalidade que exige que a censura dirigida a uma pessoa alcance um nível de prova suficiente (…).
Além disso, uma forma de imputação como esta converte indicadores isolados, que pertencem ao
“mosaico” completo (como partes de um quebra-cabeças), nas colunas sobre as quais assenta a imputação
global, falseando assim a base de uma valoração equilibrada e completa». Todavia, e é importante
sublinhá-lo, esta relutância do Autor quanto à relevância penal dos acordos parece não se estender nos
mesmos termos a processos de conciliação que culminem com “consequências menos intervencionistas”.
Assim, a propósito de uma reflexão sobre a análise económica do direito penal, entende que “um direito
penal e um direito processual penal construídos com critérios económicos deveriam seguir outra linha que
conduzisse a reformas racionais. Por exemplo, poderíamos falar em processos de conciliação, que
utilizam com êxito os acordos e que, em grande medida, consistem em processos rápidos que, se não
houver contradição por parte do afectado, supõem um embaratecimento significativo da justiça penal
(…)”. Acrescenta que “não se pode afirmar sem mais que estes processos sejam injustos” (ob. cit., p.
183). Porém, quando adentra a análise do problema da imputação em direito penal, HASSEMER (ob. cit.,
p. 187) não deixa de afirmar que “o processo, onde se discute a adequação da imputação, deve estar
organizado segundo critérios jurídicos. O objectivo deste processo não é a construção de um consenso,
mas antes a transformação ordenada de um conflito, uma transformação que se pode determinar de forma
consensual. A processualização proposta e imposta pelo direito penal não pode oferecer aos implicados
uma via de acordo sobre a imputação (isto seria não só pueril mas, no final, também um objectivo
aterrador) (...)”.

400
competência de acção seja inteiramente alheio ao processo penal. Reconhece-se, porém,
que esse risco será em princípio menor na justiça penal, sobretudo em sistemas como o
europeu continental, em que a verdade processualmente válida ou judicial, apesar de
poder não coincidir inteiramente com a verdade dita “material”, também se não
confunde com uma verdade formal que resulta, apenas, das narrativas da acusação e da
defesa.

  2.2. A resposta restaurativa para além da culpa

Um problema que se pode autonomizar é o de saber se a culpa – dados já os


factos como assentes, porque provados ou porque reconhecidos – deve impor, também
no modelo restaurativo, um limite máximo àqueles que serão os deveres assumidos pelo
agente ou se, pelo contrário, tais deveres podem comportar um grau de desvalor
superior àquele que seria ainda suportado pelo juízo de censura.
Do que se disse no ponto anterior parece resultar que o princípio da culpa não
pode constituir limite à solução restaurativa. E é assim na medida em que o juízo de
culpa, associado a uma censura dirigida ao agente por outros, não faz idêntico sentido
em um modelo que pretende a obtenção de uma solução para o conflito alheia a
valorizações e imposições externas e antes fundada em uma auto-responsabilização do
agente.
Afirmar-se que a culpa não adquire exactamente o mesmo sentido na justiça
penal, por um lado, e na justiça restaurativa, por outro, não equivale, portanto, à
afirmação de que a culpa não jogue aqui qualquer papel. Em um plano substantivo,
também se exige a imputação da responsabilidade ao agente – ainda que se trate
sobretudo de uma auto-imputação (mesmo que controlada pela autoridade judiciária
com certo poder de “supervisão” sobre as práticas restaurativas). E essa imputação
associa-se a um juízo de censura por um mal que se causou, ainda que o conteúdo
daquilo que é censurado possa não coincidir exactamente com o objecto da censura
penal. De forma simplificada, parece poder afirmar-se que enquanto o juízo de censura
penal enfatiza a ofensa a um valor essencial para a comunidade imputada à
responsabilidade do agente, a censura inerente à celebração do acordo restaurativo

401
através do qual o agente assume determinados deveres orienta-se sobretudo para a
causação de um dano à vítima e aos seus próximos714.
Por outro lado, afirmar-se a não sobreposição dos conceitos de culpa penal e de
culpa restaurativa não equivale a significar que o agente do crime pode assumir
qualquer espécie de dever como resultado do processo restaurativo, sem interferência
de limites. E se não é de um juízo de culpa em moldes penais que imediatamente resulta
tal conclusão, ela é imposta por um juízo de proporcionalidade, esse sim mais coerente
com aquele que é o sentido da intervenção restaurativa.
Finalmente, olhando agora sobretudo para aquela dimensão adjectiva da culpa,
também se deve vincar que, se a solução restaurativa prescinde da prova da
responsabilidade em julgamento, ela não prescinde da verificação de uma certa
existência de indícios por parte da autoridade judiciária quando é mecanismo de
diversão processual, nem da decisão penal suportada pela prova quando é pós-
sentencial. E também não prescinde totalmente de um controlo posterior à celebração do
acordo que vise evitar formas de auto-responsabilização manifestamente indevidas.
Desse juízo de proporcionalidade deve decorrer, segundo se julga, uma limitação
da reparação que pode ser acordada no procedimento restaurativo em função da
gravidade do ilícito (à luz de uma ponderação complexa que deve ter em conta o
desvalor da acção e o desvalor do resultado) e da consequência jurídica ditada pela
justiça penal que previsivelmente lhe poderia caber.
Não obstante, a limitação do conteúdo do acordo restaurativo por um princípio
de proporcionalidade tem sido negada por vários defensores da proposta restaurativa –
ainda que, com frequência, com base em uma ausência de definição daquilo que esse
juízo de proporcionalidade impõe –, sobretudo com fundamento na necessidade de
preservar a autonomia dos intervenientes no conflito na superação do mesmo e na

714
Em sentido não muito distante, André LAMAS LEITE [“Justiça Prêt-à-Porter?” – Alternatividade ou
Complementaridade da Mediação Penal à luz das Finalidades do Sancionamento, RMP, 117, ano 30
(2009), p. 104] considera que «na justiça restaurativa o conflito é visto como contendendo, no essencial,
com lesões de bens jurídicos detidos pelos ofendidos e que, ao longo do processo, ajustam o modo de as
compensar. A menor intervenção (ou ausência) do Estado retira à culpa um mais cavado fundamento
axiológico, uma rarefacção mais visível no conjunto do tecido social, para se acantonar a uma dimensão
mais “micro”. Sem dúvida que em ambos os conceitos de culpa o facto é o objecto de valoração, todavia,
no Direito Penal, tal valoração encontra-se mais impregnada de um juízo desvalioso (de acção e/ou de
resultado) assumido pela comunidade que, com as modalidades de RAL, tende a esbater-se e a reflectir
um maleficium (quase) só do lesado».

402
subjectividade inerente à assunção do mal que se praticou e aos deveres acordados ou à
compreensão dos danos sofridos715.
A uma primeira análise, poder-se-ia julgar ser esta a conclusão imposta pelo
conceito de justiça restaurativa que antes se defendeu. Com efeito, se esta se ocupa da
dimensão privada do conflito (inter)subjectivo, como negar, nessa pura esfera de
pessoalidade, a possibilidade de se compor o conflito exactamente nos moldes
desejados pelos sujeitos? Perante os incontáveis conflitos de natureza privada que
existem, não preserva cada um dos sujeitos neles intervenientes a possibilidade de
dispor dos seus interesses como muito bem entender?
O que se julga é que, mesmo sob esta perspectiva, a resposta deverá ser, em
muitos casos, negativa. Existem limites à disponibilidade de interesses, de que são
exemplo as restrições à possibilidade que cada um tem de consentir lesões graves e
definitivas, levadas a cabo por outrem, relativamente a bens de natureza pessoal 716.
A chave para se encontrar um sentido de resposta conducente à exigência de um
certo juízo de proporcionalidade na resposta restaurativa – porventura ao contrário do
que fariam supor as considerações antes tecidas sobre o fundamento e a finalidade da
intervenção restaurativa – não radica, porém, sobretudo aqui. O que se julga essencial é
que aquela justiça restaurativa, se possui uma autonomia decorrente precisamente da
especificidade do seu fundamento e da sua finalidade, não pode esquecer que não existe
solitária enquanto modelo de reacção ao crime. Ora, nessa medida, a justiça restaurativa
deve almejar uma certa coerência relativamente às conquistas da justiça penal: é
também por se reconhecer que os meios de reacção da justiça penal podem ser os mais
gravosos de todos que essa reacção é limitada pela proporcionalidade inerente à ideia de

715
A propósito desta questão, Mylène JACCOUD (“Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam
a Justiça Restaurativa” cit., p. 177) afirma a tendência, tradicional entre os “partidários da justiça
restaurativa”, para “distinguir o modelo restaurativo do modelo retributivo no que tange, entre outros
aspectos, à questão da proporcionalidade”. E esclarece que “os promotores da justiça restaurativa queriam
que a proporcionalidade não fosse um critério sobre o qual a justiça restaurativa deveria apoiar-se, visto
que o próprio fundamento do modelo dá lugar à subjectividade das partes (o que viveram, o que desejam).
O peso da subjectividade das partes seria, então, não só inevitável, mas inerente a este modelo. Em outras
palavras, é provável que duas situações objectivamente comparáveis (por exemplo um arrombamento
seguido de roubo ou a destruição de objectos de valor considerável) não só sejam negociadas de maneira
diferenciada pelas respectivas partes, mas obriguem a um consenso cujo conteúdo tem grande
probabilidade de ser específico e portanto diferenciado”. Esta é, porém, questão que merecerá tratamento
autónomo na Parte III deste estudo.
716
Uma síntese muito clara dos vários problemas atinentes ao consentimento é a de Manuel da COSTA
ANDRADE, na sua anotação ao artigo 149.º do Código Penal (Consentimento), in Comentário
Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p.
420 ss. Analisam-se aí, remetendo-se também para o regime previsto no artigo 38.º CP, “a
disponibilidade e os bons costumes como pressupostos – e limites – auónomos da eficácia do
consentimento”.

403
culpa e por outras regras do garantismo penal; isentar a resposta restaurativa de
qualquer limite pela proporcionalidade poderia conduzir a uma inversão dos lugares do
maior e do menor desvalor da restrição possível de direitos fundamentais, permitindo-se
que a intervenção restaurativa acabasse por conduzir a um resultado mais desvalioso e
com base em um processo menos garantístico.
Por outro lado, a exigência de limites inerentes à proporcionalidade na resposta
restaurativa decorre, também, do facto de ela não funcionar de forma totalmente alheia à
intervenção estadual no controlo da criminalidade. Ou seja: sempre que as práticas
restaurativas – como sucede com o sistema português de mediação penal – surjam no
contexto de programas promovidos e regulados pelo Estado e sempre que funcionem
como mecanismos de diversão processual-penal, não se pode admitir que o Estado fique
“comprometido” por uma solução para o conflito que, por ser manifestamente
desproporcionada, não pode já considerar-se justa717.
Feitas estas considerações muito sucintas, há porém uma ideia que se não pode
deixar de reiterar, sublinhando-a: impõem-se os maiores cuidados para que, através da
proposta restaurativa, se não contribua para uma ampliação da “erosão do princípio da
culpa”. Todavia, crê-se que não será apenas ou sobretudo por força da justiça
restaurativa que tal princípio se esvaziará, antes se julgando que a forma como foi
interpretado por alguma doutrina penal e a forma como vem sendo aplicado na própria
praxis da justiça penal constituem perigo maior, quer para a vigência do princípio, quer
para o cumprimento da função de travão ao poder punitivo estadual que lhe deve
continuar a caber718.

717
Este conceito de proporcionalidade parece começar a ter algum eco – ainda que de forma nem sempre
clara – no pensamento e na prática restaurativos. Mylène JACCOUD (ob. cit., p. 178) dá conta de que
“por exemplo, no Québec, os organismos de justiça alternativa encarregados da aplicação das sanções
extrajudiciais previstas na lei sobre o sistema judicial penal para os adolescentes devem manter
informadas as partes envolvidas em uma mediação de que elas não podem concluir acordos que
comportem medidas mais severas do que as prescritas na lei (…). Estas disposições restringem a
subjectividade das partes sem a anularem completamente”. E acrescenta que alguns Autores, como
WALGRAVE, «introduziram a noção de “reparação razoável” (…), sem contudo definir o que essa noção
encobre».
718
O risco principal a que se julga que o princípio da culpa está sujeito é o risco da sua erosão por força
da aceitação de juízos de culpa que podem ser meras ficções. A questão tem sido tratada por vários
Autores, optando-se por destacar nesta sede o já antes mencionado entendimento de HASSEMER; a
opinão de um penalista e criminólogo – BARATTA – que se opôs de forma veemente ao esvaziamento da
culpa; e a posição assumida na nossa doutrina por Maria Fernanda PALMA. Refira-se primeiramente o
pensamento de Winfried HASSEMER (Persona, mundo y responsabilidad cit., p. 99 ss), para quem “o
princípio da culpa está a ser bombardeado”. O Autor considera que “o legislador penal vem há já muito
tempo erodindo as suas paredes-mestras, nos pontos que aquele princípio o impedia de levar a cabo uma
política criminal eficaz”. Para ilustrar esta sua opinião, dá vários exemplos, nomeadamente o da
punibilidade da negligência inconsciente ou a dependência da punição da verificação de condições
objectivas de punibilidade. Uma das opiniões em que se tende a acompanhar o Autor prende-se com a

404
questão, vista como central, da admissão de uma culpa como que “ficcionada”, que prescinde da
demonstração da existência de liberdade da vontade. Nas palavras de HASSEMER, “actualmente é
dominante entre os penalistas a tranquilizadora tese de que se pode prescindir da discussão em torno da
liberdade da vontade, sem pôr em perigo a vigência do princípio da culpa. Esta tese fez com que o
conteúdo do princípio da culpa se tenha evaporado”. A substituição do critério do “poder individual para
actuar de outro modo” pelo de “poder genérico para actuar de outro modo”, aferido em função do padrão
do “homem médio”, é, ainda segundo HASSEMER, uma “débil construção, desvinculada das
possibilidades do delinquente de permanecer fiel ao direito”. Também é manifesta no pensamento de
Alessandro BARATTA uma idêntica preocupação com a erosão da culpa. O Autor começou por reflectir
criticamente sobre o desenvolvimento da teoria normativa da culpa na doutrina alemã, logo no seu
Antinomie Giuridiche e Conflitti di Coscienza. Contributo alla Filosofia e alla Critica del Diritto Penale
(Milão: Giuffré, 1963). Posteriormente, no seu estudo “La vida y el laboratório del derecho. A proposito
de la imputación de responsabilidad en el proceso penal” (Doxa, 5, 1988, p. 275 ss), assinala a distância
entre o concreto que é o drama existencial da vida e o abstracto que é a sua representação no teatro
jurídico. O Autor critica a determinação da responsabilidade penal por força da aplicação “asséptica” de
categorias abstractas, que desligam o crime das raízes do conflito, o que contribui para tornar o
comportamento do agente “incompreensível”. E aponta como principal responsável uma compreensão da
culpa que é sobretudo “normativa-atributiva de imputação” e “não ontológica”. A questão foi retomada
por Alessandro BARATTA no seu estudo «Integración-Prevención: Una “Nueva” Fundamentación de la
Pena Dentro de la Teoria Sistémica» (Doctrina Penal, año 8, n.º 29, 1985, p. 9 ss), onde afirma que,
sobretudo graças à obra de JAKOBS, se operou «uma rigorosa “renormativização” do critério subjectivo
da imputação penal (…). A capacidade real de determinação espontânea do sujeito na direcção
estabelecida pela norma, ou seja, a capacidade para ter actuado diversamente do que fez, já não surge na
base do juízo de culpabilidade, sendo que este lugar é ocupado pelo facto de a actuação do sujeito e a sua
situação se adequarem a um tipo normativo de sujeito actuante e de situação, na presença dos quais a
consciência social e o ordenamento já não estão dispostos a reagir só cognoscitivamente perante a
violação das expectativas legais, mas antes normativamente, contrapondo a pena, entendida como facto
simbólico contrário ao significado do comportamento delituoso». Na doutrina portuguesa, assume a este
propósito destaque a opinião de Maria Fernanda PALMA de que “paradoxalmente, a culpa no Direito
Penal assumiu autonomia conceptual perante a ideia de ilicitude (…) a par de um esvaziamento quase
absoluto da função prática do juízo de culpa na decisão penal”. A Autora afirma que “aos juízes cabe,
apenas, aplicar um esquema formal segundo o qual a culpa é uma mera consequência do ilícito, que só
poderá ser excluída em casos tipificados de afastamento da possibilidade média de motivação pela norma
penal ou de uma impossibilidade de motivação do agente pela norma, dependente da sua constituição
pessoal (já não discutida em termos de motivação), nas situações de inimputabilidade”. E, em jeito de
síntese, aponta que “em suma, a culpa tem sido um espaço de análise limitado no que se refere ao sentido
subjectivo das acções, por força de critérios normativos pré-definidos e rígidos de aceitabilidade cultural
dos comportamentos” (O Princípio da Desculpa em Direito Penal, Almedina: 2005, ps. 13,15,18). Toda
esta problemática se entrecruza, naturalmente, com a opção que se faça em matéria de definição da culpa
jurídico-penal. O que se julga é que a sua associação a um mero juízo externo de reprovabilidade, em
detrimento da afirmação de um seu conteúdo material, favorece aquela erosão e pode conduzir a “ficções
de culpa”. Ao mesmo resultado pode conduzir a compreensão da existência da culpa como a regra e a da
sua inexistência ou diminuição como a excepção, estas sempre associadas à demonstração de
circunstâncias também excepcionais e “catalogadas” pelo legislador. Ou seja: o princípio da culpa só
logra cumprir de forma eficaz a sua função de suporte para a responsabilidade se não for totalmente
esvaziado de uma ligação às “circunstâncias do homem real”. Cumpre, também, sublinhar que essa
necessidade de não recondução do sentido da culpa a um juízo meramente formal é reconhecida de forma
ampla pela doutrina penal, mesmo quando as conclusões que daí se extraem não são inteiramente
coincidentes. Registem-se, nesse sentido e a título de exemplo, as opiniões de ROXIN ou de
FIGUEIREDO DIAS. Assim, como nota Claus ROXIN (Derecho Penal, Parte General, Tomo I cit., p.
798), a possibilidade de o princípio da culpa cumprir a sua missão depende da forma como se define o seu
conteúdo: «o conceito normativo de culpa só afirma que uma conduta culposa tem de ser “reprovável”.
Mas ele é de natureza completamente formal e não responde à questão de saber de que pressupostos
materiais depende a reprovabilidade». Depois de se afastar de uma impostação meramente formal da
culpa, o Autor pondera criticamente várias possibilidades de fundação material desse juízo de culpa (entre
as quais, a culpa como “poder de actuar de outro modo”; a culpa como “atitude interna juridicamente
desaprovada”; a culpa como “dever de responder pelo próprio carácter”; a culpa como “actuação ilícita
apesar da existência de apelo normativo”) e afasta-se do pensamento daqueles que apelida como
“detractores do princípio da culpa”, considerando que, apesar de todas as divergências e dúvidas, “até

405
Todavia, apesar de a proposta restaurativa não ser provavelmente o risco maior
para o princípio da culpa, reconhece-se que há nela um certo risco – o risco de reenviar
o conflito jurídico-penal para outras instâncias de controlo social, mormente quando se
verificarem dificuldades na comprovação da culpa no processo penal, permitindo-se
assim a “condenação” de um agente (e a assunção de deveres que sente como
desvaliosos) cuja responsabilidade se não conseguiria provar. E a este risco acresce um
outro, próximo, que é o da assunção por agente cuja responsabilidade já se poderia
provar no processo penal de ónus com gravidade superior àqueles que resultariam da
condenação penal.
Se bem se vê o problema, o reconhecimento da existência destes riscos não é
suficiente para, por si só, condenar a justiça restaurativa. Possuindo ela um fundamento
e uma finalidade que se reconheçam como legítimos por corresponderem a necessidades
humanas dignas de tutela, o único caminho será o da procura de respostas que evitem a
concretização daqueles riscos. Só através da compreensão dos específicos sentido e
função da justiça restaurativa se mostra que ela não pode funcionar como um sucedâneo

agora não se conseguiu encontrar uma alternativa ao princípio da culpa através da qual se pudesse
determinar de modo melhor para o Estado de Direito os pressupostos da faculdade de ingerência do
Estado” (ob. cit., p. 812). Também Jorge de FIGUEIREDO DIAS refere a necessidade “sem alternativa”
de se “determinar materialmente o que é a culpa jurídico-penal”, sublinhando que «retirar todo o substrato
ao conceito de culpa, transformando-o em “puro juízo de censura”, é solução que furta ao conceito o
cumprimento da função que deve desempenhar no sistema e fora da qual ele perde o seu carácter
irrenunciável e sem alternativa». E o Autor acrescenta que “afirmar (correctamente) que culpa é
censurabilidade nada diz sobre aquilo que materialmente se censura: se o facto na sua revelação objectiva,
se a inobservância da norma de dever quando o agente podia cumpri-la; se a personalidade ou atitude
interna manifestada no facto e que o fundamenta. Como nada diz sobre o ponto essencial de saber se uma
tal censurabilidade supõe a liberdade do agente, seja na acepção de que ele podia comportar-se de
maneira diferente, seja na de que ele podia ser um outro que assumisse diferente atitude perante os
valores e os bens protegidos pela ordem jurídica” (in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed. cit., ps.
512-3). A partir do reconhecimento do problema que é a “liberdade do homem concreto”, Jorge de
FIGUEIREDO DIAS acaba por concluir que deve superar-se uma «liberdade indeterminista (“livre-
arbítrio”) por uma liberdade pessoal». E afirma que “nisto residirá a autêntica liberdade pessoal do
homem, na sua característica irrenunciável: ele, no concreto existir, é sempre ser-livre”. E conclui, a partir
daqui, que “toda a culpa é materialmente, em direito penal, o ter que responder pelas qualidades
juridicamente desvaliosas da personalidade que fundamentam um facto ilícito-típico e que nele se
exprimem”. Coligidos estes entendimentos sobre a culpa penal, a ideia que se pretende sublinhar é a de
que ela não pode cumprir a sua função de suporte e limite da responsabilidade criminal do homem
concreto se for configurada como categoria totalmente desligada das circunstâncias desse homem
concreto. Afirmá-lo não tem de equivaler, segundo se julga, a retomar como se fosse essencial a questão
do livre arbítrio. A demonstração da absoluta inexistência de liberdade para actuar de modo diverso deve
excluir a possibilidade de responsabilização criminal do agente. Isso não significa, porém, que a
ponderação da culpa tenha de ficar sempre dependente da comprovação da (in)existência de livre-arbítrio.
Pelo contrário, o que se pensa é que o ajuizamento possível da culpa, mesmo que se não suscite a questão
da inexistência de liberdade para actuar de outro modo, não pode prescindir da consideração das
circunstâncias concretas do agente a quem se imputa um facto típico e ilícito. Ou seja, ainda que se possa
afirmar a censurabilidade de uma conduta contrária ao dever ser jurídico-penal porque o seu agente era,
pelo menos até certo ponto, livre, isso não obsta à necessidade de ponderação das suas circunstâncias
reais para se lograr avaliar uma sua culpa que seja mais do que uma ficção.

406
para a administração – a má administração – de uma justiça penal sem garantias.
Depois, tida em conta essa especificidade, devem regular-se os seus pressupostos e os
seus modos de actuação em moldes que, sem significarem uma importação automática e
inteira do princípio da culpa jurídico-penal, garantam porém uma adequada limitação da
responsabilidade do agente que participa em práticas restaurativas. O que faz despontar
várias exigências, nomeadamente a de que as práticas restaurativas, quando funcionam
como mecanismos de diversão processual penal, só existam após uma verificação
judiciária da existência de indícios; a de que se garanta a voluntariedade, o
esclarecimento e a igualdade da participação nas práticas restaurativas; a de que exista
um controlo da proporcionalidade da solução constante do acordo restaurativo.
Aquilo que se quis sublinhar, neste ponto do estudo, foi sobretudo a
indispensabilidade de defesa do princípio da culpa contra uma certa erosão que vem
sofrendo e algumas ameaças a que permanece sujeito. Não se julga, porém, que estas
ameaças se liguem sobretudo à justiça restaurativa, mas antes a movimentos político-
criminais de cariz até certo ponto oposto, por postularem uma expansão da intervenção
punitiva sem culpa e não – como sucede com a justiça restaurativa – um modo não
punitivo de reacção ao crime alicerçado no reconhecimento da culpa. Tem-se em mente,
por sobretudo, a tendência associada por Anabela RODRIGUES a uma “nova
penologia” que admite uma inocuização selectiva de indivíduos perigosos em nome de
uma gestão de riscos, prescindindo-se de um conhecimento da pessoa e, até certo ponto,
daquilo que efectivamente fez, em moldes que se não podem já considerar coerentes
com o respeito por aquele princípio da culpa719. Ou seja: se não se quer desvalorizar os

719
Segundo Anabela RODRIGUES, “a nova penologia não enjeita a ponderação dos custos e benefícios
económicos na discussão sobre os fins da punição. E, por isso, reabilita a ideia de inocuização, além do
mais selectiva, já que apresenta significativas vantagens económicas perante a inocuização
indiscriminada. A inocuização, ou seja, a manutenção na prisão, pelo máximo de tempo possível, de um
número de delinquentes escolhidos em função da sua perigosidade (responsabilidade por certos crimes e
previsão de que vão continuar a cometê-los) consegue uma redução radical da criminalidade e, desta
forma, benefícios importantes ao menor custo. O que se procura é obter o máximo de vantagens sociais
com o mínimo custo possível, numa lógica empresarial que domina a actividade estadual de controlo da
criminalidade. A identificação dos indivíduos perigosos (risk offenders) é feita por métodos de natureza
actuarial (actuarial justice), os mesmos métodos de probabilidades e quantitativos que, no âmbito dos
seguros, designadamente, se utilizam para a gestão de riscos. Isto supõe recorrer ao método estatístico,
tomando como base indicadores cuja quantificação é o ponto de partida para fazer juízos de prognose
sobre a perigosidade de certos grupos ou classes de indivíduos”. Relativamente à questão que aqui
sobretudo interessa – a questão da culpa –, a Autora acrescenta que se alterou «o método de prognose da
perigosidade para identificação dos indivíduos a inocuizar, que deixou de se basear na análise psicológica
individual e concreta da perigosidade. Deixou de interessar conhecer o indivíduo e saber o que o levou ao
cometimento do crime para o “corrigir”: passou a interessar o seu perfil, o grupo, a população ou conjunto
estatístico a que pertence, para o inocuizar e, assim, impedir de voltar a cometer crimes. Substituída a
culpa pela perigosidade, ao Estado pede-se que faça a gestão dos riscos da reincidência, no pressuposto

407
limites que a justiça restaurativa porventura deve encontrar no princípio da culpa (ou,
como se prefere, na ideia de proporcionalidade) através da afirmação de que este
princípio já vem sendo muito limitado no seio da própria justiça penal, aquilo que se
pretende vincar é que o princípio deve ser interpretado de modo diverso em um modelo
de reacção ao crime que assenta na voluntariedade e que não admite o sancionamento
coactivo.

3.Os princípios, relativos à promoção processual, da oficialidade e da


legalidade

3.1. O problema

A maior de todas as fracturas entre o sistema penal dito tradicional e as


propostas da justiça restaurativa prende-se, segundo se crê, com a forma de conceber a
intervenção do Estado e a participação das pessoas concretamente relacionadas com a
infracção no processo de decisão que visa pôr fim ao conflito720.
A interrogação da qual se parte para se adentrar o problema é a seguinte: os
princípios da oficialidade e da legalidade da promoção processual devem ser
encarados como obstáculos instransponíveis ao paradigma restaurativo ou, pelo
contrário, admite-se a sua convivência sem uma descaracterização insuportável de
cada um dos vectores?

de que a sociedade renuncia a suportar qualquer percentagem desse risco» (“Globalização, democracia e
crime”, Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais, cit., ps. 292-3).
720
Já na década de oitenta, no seu artigo “Diversão (Desjudiciarização) e Mediação: Que Rumos?” (ps. 39
e 40), José de FARIA COSTA afirmava, relativamente ao “princípio da legalidade da acção penal, quer
ao nível de actuação da polícia, quer no plano do ministério público”, que “aquele axioma, na vertente
apontada, tem constituído, directamente, o referente normativo que, em princípio, mais dificuldades
acarreta à aplicação da diversão e da mediação”. Esclarece que “intimamente conexionado com o
princípio da legalidade (…) está o carácter público e indisponível do exercício da acção penal. Este
traduz-se, em um dos seus aspectos, no facto de o ius puniendi pertencer exclusivamente ao Estado. Ora,
foi precisamente por se partilhar da ideia desta íntima conexão dos princípios da oficialidade e da
legalidade da promoção processual que se optou por os tornar objecto de uma ponderação conjunta. Mais
recentemente, também Mário Ferreira MONTE apresenta a mediação penal como “um dos maiores
desafios feitos actualmente ao direito processual penal, rectius, à justiça penal”, sobretudo na medida em
que “o direito processual penal europeu continental, enformado pelo princípio da legalidade, enfrenta hoje
demandas num sentido claramente virado para os espaços de consenso e de oportunidade” (“Um olhar
sobre o futuro do direito processual penal – razões para uma reflexão”, Que Futuro para o Direito
Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando
Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 412).

408
A diferença é, logo a um primeiro olhar, evidente: entre o monopólio estadual
da justiça penal e a devolução do conflito aos envolvidos na justiça restaurativa parece
existir uma divergência a um nível estrutural da reacção.
Com efeito, o sistema de justiça penal radica no princípio de que, excluída a
vindicta privada, cabe ao Estado – e apenas ao Estado, que detém o monopólio da
função jurisdicional penal – a perseguição e a punição das condutas delituosas. A
compreensão do crime enquanto conduta que ofende de forma insuportável valores que
a comunidade considera essenciais721 fortalece a crença na necessidade de a defesa de
tais valores caber a quem legitimamente representa a comunidade, não podendo a tutela
daqueles – precisamente por força da sua essencialidade – ficar dependente da vontade,
da diligência ou do empenho dos indivíduos directamente envolvidos no conflito722.
Como nota Pablo GALAIN PALERMO, «o desenvolvimento do direito penal liberal no
sistema continental europeu, em particular da teoria da danosidade social, baseada na
lesão a bens jurídicos, e da teoria da pena conduziu ao que os abolicionistas chamam

721
Esses valores reputados como essenciais pela comunidade possuem, por isso mesmo, uma dimensão
colectiva ainda quando têm uma referência inicialmente individual, como habitualmente sucede no dito
direito penal clássico ou de justiça. Este entendimento encontra forte suporte na (de resto já tratada por
Manuel da COSTA ANDRADE in “Consenso e oportunidade cit., p. 332) “tese da chamada dupla
natureza ou dupla dimensão que a moderna doutrina constitucional adscreve aos direitos fundamentais”.
Como referiu José Carlos VIEIRA DE ANDRADRE (in Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, Coimbra: Almedina, 2.º ed., 2001, p. 111), os “direitos fundamentais não podem ser
pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto posições jurídicas de que estes são titulares
perante o Estado, designadamente para dele se defenderem, antes valem juridicamente também do ponto
de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe prosseguir, em grande medida através da
acção estadual”. Sobre o sentido profundo do princípio da oficialidade, tenha-se em conta a afirmação de
Jorge de FIGUEIREDO DIAS de que «considerando-se o direito penal como direito de “protecção” dos
bens fundamentais da comunidade e o processo penal como um “assunto da comunidade jurídica”, em
nome e no interesse da qual se tem de esclarecer o crime e perseguir e punir o criminoso, torna-se de
imediato compreensível que a generalidade das legislações actuais, e entre elas a nossa, vote no sentido
de reputar a promoção processual das infracções tarefa estadual, a realizar oficiosamente e portanto em
completa independência da vontade e da actuação de quaisquer particulares» (Direito Processual Penal,
1ª ed. 1974, reimpressão, Clássicos Jurídicos, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 116).
722
Segundo Germano MARQUES DA SILVA, o Estado “tem o direito e a obrigação de perseguir
criminalmente os criminosos e realiza a sua pretensão penal por si mesmo, isto é, sem consideração pela
vontade dos ofendidos” (Curso de Processo Penal – Noções Gerais, Elementos do Processo Penal, vol. I,
6.ª ed., Lisboa: Verbo, 2010, p. 86). Maria Fernanda PALMA afirma a prevalência do interesse social
para a existência do processo penal em detrimento dos interesses exclusivos do ofendido, considerando
que “não é (…) sustentável nem que o Ministério Público não apoie a prossecução penal quando o
interesse do ofendido seja suporte de um interesse geral nem que o ofendido possa autonomamente
activar os mecanismos do processo penal quando apenas está em causa o seu interesse particular”. E a
Autora acrescenta que “mesmo nos crimes particulares, só a relevância, segundo critérios de interesse
social (aqui o interesse geral em que os interesses individuais daquele tipo não sejam negados) pode
justificar a prossecução do processo penal), justificando-se uma fase pré-instrutória em que se avaliaria
(mesmo que tal tarefa fosse atribuída ao juiz e não ao ministério público) o interesse geral em agir,
associado ao crime particular” (in “O Problema Penal do Processo Penal”, Jornadas de Direito
Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. de Maria Fernanda PALMA, Coimbra: Almedina,
2004, ps. 51-52).

409
“expropriação do conflito”, porque o Direito Penal não pode destinar-se à resolução de
conflitos privados, mas somente dos conflitos sociais»723.
Em Portugal, a promoção processual penal, além de obedecer ao princípio da
oficialidade, é ainda regida por um princípio da legalidade, que se traduz na
obrigatoriedade de o Ministério Público dar início ao processo logo que adquira a
notícia do crime e na obrigatoriedade de levar o caso a julgamento se durante a
investigação se tiver recolhido material probatório que indicie o cometimento de um
crime por pessoa ou pessoas determinadas. O que permite concluir não só que cabe ao
Estado a aplicação da justiça penal, como ainda que o Estado está obrigado ao exercício
daquele poder punitivo sem margens significativas para a formulação de juízos de
oportunidade. Nos termos do n.º 1 do artigo 219.º da CRP, “ao Ministério Público
compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como,
com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na
execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal
orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”.
Aquela autoridade punitiva estadual cujo exercício é obrigatório,
tradicionalmente vista como uma conquista no sentido da igualdade e da imparcialidade
e, consequentemente, da própria justiça, é porém objecto de uma crítica veemente que
passa pelo sublinhar, quer da sua ilegitimidade, quer da sua ineficácia na satisfação dos
vários interesses envolvidos724.

723
Pablo GALAIN PALERMO, “Mediação penal como forma alternativa de resolução de conflitos: a
construção de um sistema penal sem juízes”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de
Figueiredo Dias, vol. III, Universidade de Coimbra/Coimbra Editora: 2010, p. 825. Fazendo apelo ao
pensamento de Amelung, o Autor acrescenta que “o dano social causado pelo delito pode afectar uma
pessoa em particular, a qual tem a possibilidade de intervir no processo penal em defesa do seu interesse
ou dos seus direitos, mas é também um dano que atenta contra a generalidade ao lesar o ordenamento
jurídico. Este dano social provocado pelo delito e que interessa ao Direito Penal é aquele que diz respeito
à generalidade e que não pode ser solucionado de forma privada, por um simples acordo de restituição ou
de compensação entre o autor e a vítima”.
724
A crítica da obrigatoriedade de uma acção penal modelada por uma lei que se pretende que seja
igualmente aplicada a todos os cidadãos é muito clara, por exemplo, no pensamento de Nils CHRISTIE.
O Autor tece as suas considerações a propósito daquele que denomina como movimento neo-clássico na
justiça penal, de base retribucionista e em expansão no norte da Europa depois dos insucessos apontados
ao modelo terapêutico. Depois de afirmar que este é um modelo que toma a necessidade da inflicção de
um mal ou sofrimento como um dado inquestionável e que se centra, apenas, no controlo ou na regulação
dessa imposição de sofrimento, justifica a “firmeza” da lei através do seu papel de salvaguarda ou de
garantia contra tratamentos arbitrários. Todavia, em jeito de crítica, aduz que “esta garantia constitui, ao
mesmo tempo, uma barreira a soluções alternativas à punição” (in Limits to Pain cit., p. 50). Já não
apenas entre os cultores do paradigma restaurativo e antes em um plano filosófico mais vasto, é também
patente no pensamento de Emmanuel LEVINAS a crítica de uma certa exclusividade estatal na realização
da justiça e a desconsideração da individualidade: “a metafísica ou relação com o Outro realiza-se como
serviço e como hospitalidade. Na medida em que o rosto de Outrem nos põe em relação com o terceiro, a
relação metafísica de mim a Outrem vaza-se na forma do Nós, aspira a um Estado, às instituições, às leis,

410
O argumento de que o conflito foi roubado aos seus “legítimos proprietários”725
– pelo Estado e pelos seus instrumentos, que são os “profissionais do direito”726 – e lhes
deve ser devolvido esbarra, porém, na natureza pública dos delitos mais graves e no
argumento de que há condutas que, pelo desvalor que representam para bens jurídicos
essenciais para toda a comunidade, têm de ser perseguidas e sancionadas
independentemente da vontade dos concretamente ofendidos727.

que são a fonte da universalidade. Mas a política deixada a si própria traz em si uma tirania. Deforma o
eu e o Outro que a suscitaram, porque os julga segundo as regras universais e, por isso mesmo, por
contumácia”. Em outro trecho da mesma obra, o Autor aprofunda esta ideia e deixa uma interrogação: “a
desumanidade de uma humanidade em que o indivíduo tem a sua consciência fora de si reside na
consciência da violência – esta interior a si. A renúncia à sua parcialidade de indivíduo impõe-se como
que por uma tirania. De resto, se a parcialidade do indivíduo, compreendida como o próprio princípio da
sua individuação, é um princípio de incoerência, por que espécie de magia a simples adição de
incoerências produziria um discurso coerente impessoal e não um barulho desordenado de multidão?”
(Totalidade e Infinito, Edições 70, 1988, trad. José Pinto Ribeiro, ps. 280 e 230, respectivamente).
725
A compreensão integral deste segmento discursivo que se tornou estrutural no paradigma restaurativo
não dispensa, segundo creio, o esclarecimento de que aquilo que se critica não é apenas (ou sobretudo) o
princípio da oficialidade em si mesmo. Ou seja, a rejeição não se dirige essencialmente à dominância
estadual na resposta ao crime. O problema parece ser mais fundo. É que o Estado não só assume o ius
puniendi, ditando a solução para o conflito, como o faz procurando eliminar o conflito. Ou rejeitando-o,
porque o atira para esferas de pura intimidade. Ao olhar para o crime, a justiça penal estadual ergue uma
barreira entre si e os outros, entre os agentes da realização da justiça, por um lado, e o agente e a vítima
de um crime, por outro lado. Mais uma vez, parecem estar em causa ideais de abstracção como garantia
da imparcialidade decisória e, em última análise, da igualdade. Pode, todavia, questionar-se até que ponto
o tratamento igualitário realmente exige a abstracção. Pode, de igual modo, questionar-se se um
determinado modelo de resposta ao crime, formalizado e ritualizado, comporta mais vantagens do que
desvantagens. O que traz à colação as interrogações de Francesco CARNELUTTI (Las Misérias del
Proceso Penal, Editorial Temis, Colômbia, 2005, p. 3 ss) sobre as razões pelas quais se usam togas e
becas nos tribunais. Depois de considerar que tal indumentária não parece justificar-se pelas necessidades
do serviço (ao contrário, por exemplo, das batas dos médicos), afirma que, tal como sucede com os trajes
militares, ela supõe uma divisa. Ora, a palavra divisa remete para o conceito de dividir. E divide-se para
se distinguir. Logo, a indumentária usada por magistrados e advogados na sala do tribunal serve para
distinguir aqueles que exercem alguma autoridade – ou que, mais simplesmente, estão ali nas suas vestes
profissionais e, logo, exteriores ao conflito – dos que apenas são profanos. Mas CARNELUTTI
acrescenta que à divisa também se pode chamar uniforme. O que pareceria paradoxal, na medida em que
com uniforme se alude a igualdade e união, enquanto que com divisa se pretende significar divisão. O
Autor julga, porém, que os dois significados são complementares: “a toga (…) desune e une; separa os
magistrados e os advogados dos profanos para voltar a uni-los entre si”. E acrescenta (ob. cit., p. 11) que
“à solenidade, para não dizer à majestade dos homens de toga, contrapõe-se o homem da jaula”. Mas
também se contrapõe, de algum modo, a vítima, de certa forma maculada pelo crime, pelo conflito. Esse
distanciamento face ao conflito que o tribunal procura pode transportar consigo a estigmatização, não só
do agente, mas também da vítima. É a ideia de que o conflito deve ser assumido para se conseguir a sua
pacificação que, segundo julgo, se deve incluir também no sentido da já célebre rejeição do roubo do
conflito pelo Estado. Com tal afirmação pode, pois, não se pretender a rejeição liminar da oficialidade,
mas antes uma conformação da intervenção estadual na busca de uma solução para o conflito que seja
diversa da sua negação.
726
Apesar de ter sido Nils CHRISTIE (“Conflicts as property” cit.) a referir-se a estes profissionais do
direito como “ladrões profissionais de conflitos”, a verdade é que o questionamento da sua intervenção é
visível em outras linhas de pensamento não muito próximas. Assim, por exemplo, Pierre BOURDIEU
entende que “a ascensão luminosa da razão e a epopeia emancipatória coroada pela revolução francesa
(…) tem um reverso obscuro, a saber a progressiva subida dos detentores do capital cultural e, em
particular, dos juristas” (Méditations pascaliennes, Paris: Seuil, 1997, ps. 146-7).
727
Será, porém, que mesmo nos crimes públicos a prossecução penal independe da vontade da vítima? A
dúvida agudiza-se se reconhecermos que a actividade das instâncias formais de controlo é quase sempre

411
A razão essencial pela qual se reflecte agora sobre estes princípios que
conformam a promoção processual penal (fazendo dela um assunto do Estado, e um
assunto relativamente ao qual o Estado é obrigado a aplicar a justiça penal) prende-se,
também, com a verificação de que o recurso a programas restaurativos suscita especiais
dificuldades nos sistemas mais estritamente regidos por aqueles princípios da
oficialidade e legalidade728. Dever-se-ão, porém, considerar vedados – em nome
daqueles princípios – os programas restaurativos nestes países habitualmente associados
ao sistema europeu continental? Essa é a questão que se terá de enfrentar.

3.2.Os limites já sedimentados dos princípios da oficialidade e da legalidade: os


espaços de relevância, na justiça penal, da vontade dos intervenientes no
conflito

Apesar desta contraposição entre a oficialidade que preside à promoção


processual penal e a autonomia na gestão dos interesses individuais que se pretende que
presida às práticas restaurativas, também aqui se não pode desconsiderar (ainda uma
outra vez) a existência de vectores de aproximação entre os dois sistemas de resposta ao
conflito. Por um lado, porque no processo penal existem espaços de relevância da
vontade dos sujeitos (e cada vez existem mais)729. Por outro lado, porque o paradigma

reactiva, raramente pró-activa. O que equivale a afirmar que, mesmo relativamente à maioria dos crimes
públicos, a pretensão punitiva do Estado fica dependente da intervenção de alguém que tenha tido um
qualquer contacto com a infracção. Manuel da COSTA ANDRADE (A vítima e o problema criminal cit.,
p. 87 ss) considera que “ao contrário do que os primeiros autores de inspiração interaccionista começaram
por supor, não é só – nem é primacialmente – da actuação das instâncias formais de controlo que depende
o processo de criminalização e selecção”, já que “são os próprios cidadãos que constituem o primeiro
escalão da detecção e controlo do crime, sendo como resposta à sua iniciativa que o trabalho da polícia é
normalmente posto em movimento”. O Autor salienta ainda o facto de as investigações empíricas
demonstrarem o carácter excepcional da intervenção pró-activa da polícia, que actua de forma reactiva em
uma larguíssima maioria dos casos e sublinha, fazendo apelo aos estudos de Kaiser, que “cerca de 90%
dos casos de deviance apresentados ao sistema formal de controlo por denúncia privada o são por
iniciativa da vítima”.
728
Não é, como já se afirmou, por acaso que as primeiras práticas restaurativas surgem em países do
sistema anglo-saxónico, que aceitam mais largamente os juízos de oportunidade. E, entre os países do
sistema europeu continental que podem considerar-se, também, pioneiros dos programas restaurativos
prepoderam aqueles (como a França, a Áustria ou a Bélgica) que admitiam, já à época, derrogações
significativas à regra da obrigatoriedade da promoção processual penal. Assim, muitas dessas práticas
surgem sem enquadramento legal específico, começando antes a ser adoptadas para as infracções menos
graves no contexto dos mecanismos de diversão já conhecidos (assim, por exemplo, na Áustria, como
refere Georg ZWINGER, “Restorative justice practice and its relation to the criminal justice system”,
Actas da “Second Conference of the European Forum for Victim-Offender Mediation and Restorative
Justice”, Bélgica, 2002, p. 85).
729
Como afirma Manuel da COSTA ANDRADE, no contexto de detida análise das soluções de consenso
e de oportunidade introduzidas pelo Código de Processo Penal em 1987 e referindo-se à suspensão
provisória do processo e ao processo sumaríssimo,“ambas as figuras em exame corporizam soluções

412
restaurativo não supõe uma privatização da resposta ao crime (a maioria dos programas
restaurativos é promovida pelo Estado ou, mesmo quando tal não ocorre, exige-se
alguma conformação e/ou algum reconhecimento estadual).
Não se pode, portanto, afirmar de forma linear que no processo penal todo o
poder decisório é apenas do Estado e que nas práticas restaurativas é unicamente a
vontade dos particulares envolvidos que releva730. No que respeita às práticas
restaurativas, elas tendem a surgir no âmbito de uma regulamentação estadual que
define os seus pressupostos e os seus limites. No que tange à justiça penal, se, de facto,
só através de uma decisão judicial se pode aplicar uma sanção penal, a tramitação do
processo que nela desemboca será condicionada pela actividade dos sujeitos
processuais, qualidade de que também gozam o arguido e o assistente.
Além disso, existem no sistema penal português hipóteses em que se atribui
relevância ao acordo de sujeitos processuais em moldes que, por exemplo, evitam o
julgamento e a condenação (na suspensão provisória do processo) ou o julgamento (no

processuais preferentemente situadas no que, à falta de melhor, poderemos designar por margem do
consenso e do Estado de Direito material e social. Por oposição à outra margem: a do conflito e do Estado
de Direito, tout court, em que a igualdade de armas persiste como aspiração basilar”. E acrescenta, com
especial pertinência para a questão em análise, que «hoje não se compreenderia, nem se aceitaria uma
decisão que aparecesse como epifania inefável da graça do juiz; à margem de toda a intervenção
conformadora e legitimadora dos demais sujeitos processuais. Na formulação de Schreiber, o tribunal não
pode manter-se “inacessível como Júpiter a trovejar oculto atrás das nuvens, antes tem de se orientar
também para o acusado, o seu ponto de vista sobre as coisas, as tensões e as controvérsias do processo”»
(“Consenso e Oportunidade” cit., ps. 325-6). A questão do consenso no direito processual penal, que
adquire pertinência neste estudo na medida necessária à comparação com a relevância assumida pela
vontade dos intervenientes nas práticas restaurativas, não deve confundir-se, claro está, com a reflexão
dogmática em torno do consentimento e do acordo em direito penal, sobretudo atinente ao “sistema das
causas de justificação” (sustentando o Autor um “paradigma dualista, assente na distinção e contraposição
entre consentimento-que-exclui-a-ilicitude e acordo-que-afasta-a-tipicidade”). Apesar das diferenças
essenciais, existe porventura um horizonte problemático comum, que Manuel da COSTA ANDRADE
não deixou de evidenciar na reflexão detida que dedicou ao consentimento e ao acordo no âmbito da
doutrina geral do crime, e que se prende com a compreensão das relações entre o indivíduo e a
comunidade. Nas palavras do Autor, «numa perspectiva teórico-doutrinal e num horizonte político-
criminal mais alargados, a problematização do consentimento acaba por pôr em questão os fundamentos
da organização comunitária. Como estatuto da autonomia e projecção da liberdade de acção individual, o
consentimento contende directamente com o problema último (inarredável e permanentemente renovado)
das relações entre o indivíduo e a comunidade» [Consentimento e Acordo em Direito Penal (Contributo
para a Fundamentação de um Paradigma Dualista), Coimbra: Coimbra Editora, 1991, ps. 14-15].
730
Recorde-se, além disso, que a tentativa de legitimação da justiça penal estadual através da teoria do
contrato social não prescinde de uma certa ideia de acordo. Nas palavras de Winfried HASSEMER, (in
Persona, mundo y responsabilidad. Bases para una teoria de la imputación en Derecho Penal cit., p. 23),
“em um plano horizontal o contrato social significa (…) o acordo – imaginário – dos cidadãos quanto a
um ordenamento jurídico vinculante para todos”. Todavia, como também nota o Autor, esse contrato
social, já em um plano vertical, “precisa de ser garantido institucionalmente. Essa garantia produz-se
instituindo contratualmente uma autoridade superior a quem cabe fiscalizar que as cláusulas contratuais
realmente se cumprem”. Todavia, quando neste ponto da reflexão se menciona o consenso por oposição à
decisão autoritária do conflito, não é naturalmente desse “acordo imaginário” que se trata, mas antes da
possibilidade de através da comunicação se contribuir para a conformação efectiva da solução para o
conflito, em moldes que, por suporem algum entendimento dos intervenientes do conflito, tornam
desnecessária a decisão autoritária.

413
processo sumaríssimo). E, nos crimes particulares em sentido amplo, a manifestação de
vontade do ofendido condiciona a existência ou a continuação do processo penal731.
O princípio da oficialidade conhece assim limitações decorrentes, desde logo, da
consagração generosa da necessidade de queixa do ofendido para que o Estado possa
desencadear o processo penal e, com menor frequência, da exigência de acusação
particular para a sujeição do caso a julgamento. Tais desvios à oficialidade têm sido
explicados fazendo apelo à menor gravidade daqueles ilícitos, a qual torna desnecessária
a intervenção punitiva estadual se o ofendido a não reclamar, supondo-se ainda que o
reduzido desvalor da conduta não causa significativo abalo comunitário. Por outro lado,
a exigência de queixa e, em algumas hipóteses, de acusação particular, configura-se
ainda como um reconhecimento da autonomia da vontade do ofendido em não ver
expostas no processo penal questões que, por serem eminentemente atinentes à sua
intimidade ou à sua privacidade, poderiam com a sua reafirmação em juízo levar a uma
intensificação ou a uma revisitação da ofensa.
O reconhecimento – inerente à existência dos crimes particulares em sentido
amplo – de uma certa disponibilidade do conflito (comprovada pela possibilidade de se
pôr fim ao processo através da desistência de queixa) torna necessária a compreensão
daquilo que diferencia, afinal, esta solução reconhecida pelo nosso direito daquele que
é o sentido da proposta restaurativa732. Ora, ainda que tal conclusão deva decorrer de
outros pontos deste estudo, sempre se poderá adiantar que, por um lado, a proposta
restaurativa não tem necessariamente por alvo apenas os crimes particulares, antes se
supondo que a necessidade de pacificação do conflito interpessoal pode ser até mais
intensa em crimes de natureza pública. Por outro lado, mesmo relativamente aos crimes
particulares – os únicos relativamente aos quais a Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho,
admite a mediação penal –, parecem interceder diferenças significativas entre o relativo
desinteresse quanto à solução do conflito (inerente, segundo se julga, ao modo pelo qual

731
Sobre a forma como a existência de crimes particulares se relaciona com uma certa “despublicização”
do direito penal e sobre a sua justificação em função da “ténue censurabilidade da conduta do agente” e
do “diminuto ou nulo abalo social provocado”, cfr. Carlota Pizarro de ALMEIDA, Despublicização do
Direito Criminal, Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2000, p. 17 ss.
732
A pertinência da questão é mostrada, desde logo, pelo entendimento de José de FARIA COSTA,
relativo aos crimes de acusação particular, de que “não repugna manter a ideia de se verificar naqueles
casos uma mediação-mitigada. Em muitas situações onde não se verifica acusação ou queixa do
particular, quando podiam ter lugar, porque foi efectivamente praticada uma infracção, poder-se-á talvez
dizer, sem grande margem de erro ou imprecisão, que tal abstenção de acusar teve por trás uma mediação
anterior (…). Mas nem sempre será desse jeito que as coisas se passam. Não poucas vezes há como que
um entendimento entre as partes anteriormente conflituantes e o caso é dirimido sem mediador, apesar de
se poderem verificar as restantes contrapartidas” [in “Diversão (Desjudiciarização) e Mediação: Que
Rumos?” cit., ps. 60-61].

414
o direito processual penal regula a desistência de queixa) e, de outra banda, a oferta de
um espaço de encontro onde, com a ajuda de um mediador, se possibilite uma
revisitação do conflito alicerçada em um idêntico empowerment e, nessa medida,
potencialmente mais pacificadora.
Já em um outro plano, também se deve reconhecer a expansão no direito
processual penal das soluções de consenso e das soluções de oportunidade733,
funcionando estas últimas como limites à tradicional legalidade. Neste sentido, parece
significativa a argumentação acolhida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º
16/2009, de 18 de Novembro, no sentido em que «neste novo enquadramento também o
princípio da legalidade vem a ser objecto de uma actualização interpretativa, imposta
pela própria evolução da dogmática do processo penal, e a compulsoriedade do
exercício da acção penal é quebrada com a aceitação de margens de actuação que visam
a desjudicialização, encontrando o seu lugar programas de política criminal em que
surgem como pontos centrais, e irrenunciáveis, os temas da “mediação”, da
“desjudicialização”, da “justiça penal negociada”, dando foros de cidadania a uma
decantada “justiça restaurativa”, e a institutos processuais penais como o do

733
Uma análise destes conceitos não pode prescindir do estudo de referência de Manuel da COSTA
ANDRADE, “Consenso e oportunidade (reflexões a propósito da suspensão provisória do processo e do
processo sumaríssimo”, in Jornadas de Direito Processual Penal. O novo Código de Processo Penal
(CEJ), 1988, p. 317 ss. Também João Conde CORREIA refere, a propósito da expansão das soluções de
consenso, a ideia de que “o processo deveria optar, cada vez mais, por um sistema argumentativo, capaz
de propiciar um diálogo livre e em condições de igualdade, por forma a que cada uma das partes pudesse
defender os seus interesses e dar o seu contributo para a decisão” (O “Mito do Caso Julgado” e a Revisão
Propter Nova, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 61). Pedro CAEIRO («Legalidade e oportunidade: a
perseguição penal entre o mito da “justiça absoluta” e o fetiche da “gestão eficiente” do sistema»,
Separata da Revista do Ministério Público n.º 84, p. 32), depois de reafirmar a “doutrina pacífica”
segundo a qual “os princípios da legalidade e da oportunidade surgem, num plano lógico, como lugares
inversos”, define a oportunidade como “uma liberdade de apreciação do MP relativamente ao se da
decisão de investigar ou de acusar apesar de estarem reunidos os pressupostos legais (gerais) dos ditos
deveres”. Sobre o assunto, cfr., ainda, Mário Ferreira MONTE, que defende uma ampliação do âmbito da
oportunidade associada ao consenso no processo penal ( “Do princípio da legalidade no processo penal e
da possibilidade de intensificação dos espaços de oportunidade”, Revista do Ministério Público, n.º 101,
ano 26, Jan-Mar de 2005, ps. 67 ss). Para uma ponderação do sentido dos juízos de oportunidade a partir
da ideia de que “a generalidade dos sistemas baseados na legalidade se tem vindo a abrir à recepção de
normas de oportunidade controlada, geralmente racionalizadas como uma tentativa de melhorar a
eficácia, o rendimento, a capacidade de resposta da Justiça penal”, vd. Teresa BELEZA, “A recepção de
regras de oportunidade no direito penal português: resolução processual de problemas substantivos?”,
Revista Jurídica, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, n.º 21, 1997, p. 9. Mais
recentemente, António CALADO afirma que, do seu ponto de vista, a oportunidade “não é em si mesma
arbitrária, mas antes o seu espaço surge em resultado da prévia existência de uma diversidade de soluções
aplicáveis” (Legalidade e Oportunidade na Investigação Criminal, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p.
47).

415
“arquivamento em caso de dispensa de pena”, da “suspensão provisória do processo”,
da “plea bargaining” e tantos mais»734.
Os conceitos de consenso e de oportunidade, apesar da frequência com que são
emparelhados na análise destas temáticas, têm distintos conteúdos e podem existir de
forma desligada735. Assim, por exemplo, o processo sumaríssimo será manifestação de
uma solução de consenso, mas não já de oportunidade736. Compreende-se bem, porém,
o convívio fácil entre as duas figuras: os desvios à regra da legalidade ainda
dominante737 e o encurtamento do rito ordinário encontram algum conforto na
compreensão de que não ocorrem contra ninguém, sendo antes da vontade de todos.
Merecendo a temática do consenso reflexão em outros momentos deste estudo –
nomeadamente aquele dedicado à destrinça entre as soluções de uma justiça penal
consensual e as soluções também consensuais propostas pela justiça restaurativa –,
aquilo que neste momento se pondera é apenas o obstáculo que o princípio da
legalidade da promoção processual poderia ser para a adopção de práticas
restaurativas (ou, sob uma outra perspectiva, a violação para aquele princípio que da
adopção de tais práticas poderia decorrer).
A ideia segundo a qual existe um verdadeiro dever de promoção processual para
a entidade – no caso português, o Ministério Público – a quem incumbe a abertura do
inquérito e a dedução da acusação, se continua a ser a regra no nosso direito
processual penal é, porém, uma regra sujeita a um cada vez maior número de

734
Este Acórdão n.º 16/2009 do STJ, de 18 de Novembro, fixou a jurisprudência de que “a discordância
do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do
processo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo penal, não é passível
de recurso”. O que sobretudo interessa a este ponto da reflexão não é, porém, esta decisão, mas antes
aquela linha de argumentação atinente a uma nova compreensão do princípio da legalidade da promoção
processual (o Acórdão, de 18 de Novembro de 2009, foi publicado no DR, 1ª série, n.º 248, de 24 de
Dezembro de 2009, p. 8737 ss).
735
A este binómio consenso-oportunidade associa-se ainda, com frequência, um terceiro vector, o da
celeridade, que vem ganhando peso autónomo no pensamento político-criminal contemporâneo e que no
processo penal português adquire expressão nomeadamente através da consagração (e da progressiva
expansão) das formas especiais do processo. Sobre a questão, veja-se Ana Luísa PINTO (Celeridade no
Processo Penal: o direito à decisão em prazo razoável, Coimbra: Coimbra Editora, 2008), que conclui
pela dupla natureza – objectiva e subjectiva – do valor dessa celeridade (ob. cit., p. 311).
736
Pedro CAEIRO (últ. ob. cit., ps. 36-7), depois de considerar que, num plano material, o processo
sumaríssimo não é uma solução de oportunidade, na medida sobretudo em que «o “requerimento” do MP
constitui um equivalente funcional da acusação», afirma-o, naturalmente, enquanto exemplo de consenso.
Nas exactas palavras do Autor, “afigura-se que o processo sumaríssimo, constituindo inegavelmente um
mecanismo de diversão e de consenso, se aproxima mais do paradigma da legalidade do que do
paradigma da oportunidade”.
737
Para uma análise, sob uma perspectiva criminológica, da distância que se crê existir, porém, entre o
princípio da legalidade da promoção processual tal como está consagrado na lei e aquela que pode ser a
prática das instâncias formais de controlo, vd. Cláudia SANTOS, O crime de colarinho branco cit., p. 227
ss.

416
excepções738. Para o progressivo enfraquecimento dessa regra contribuem influências
provindas do pensamento criminológico, das concepções sobre os fins da pena e de
correntes político criminais739. Como muito bem notou Manuel da COSTA ANDRADE,
«a legalidade – no sentido de a investigação e sobretudo a promoção processual
valerem sem alternativa em relação aos factos clarificados em termos de a condenação
dos respectivos agentes se apresentar nitidamente provável – valia como reverso de um
direito penal que se sacrificava ao dogma absolutizado da retribuição da pena como
“negação da negação” hegeliana. De um direito penal que, em conformidade, aspirava e
acreditava na meta do full enforcement, da aplicação sem resíduos das normas
incriminatórias a todas as condutas em abstracto subsumíveis»740.
O abandono do “mito da justiça absoluta”, na terminologia adoptada por Pedro
CAEIRO, tem-se revelado no direito processual penal português741 também através da
adopção progressiva de soluções que, independentemente da forma como as
qualifiquemos – de legalidade aberta a valorações de política criminal, de legalidade
mitigada ou de oportunidade –, radicam na compreensão da indesejabilidade da punição

738
Deve, porém, dar-se conta das dúvidas com que muitos Autores encaram a expansão das soluções de
celeridade e de consenso na justiça penal. Em jeito de ilustração, considere-se a opinião de Winfried
HASSEMER (Persona, mundo y responsabilidad. Bases para una teoria de la imputación en Derecho
Penal cit., ps. 62-3), que vê nesta tendência uma das características do direito penal que apoda de
“moderno”: «o problema central do moderno direito penal é a distância entre a sua capacidade real, por
um lado, e as expectativas de solução que gera, por outro, que, ao ampliarem-se, qualitativa e
quantitativamente, podem fazer chegar – e já se está a chegar – a um momento em que se procurem novas
vias, de carácter sobretudo processual, para aumentar essa capacidade. E como um processo penal com
todas as garantias do Estado de Direito custa tempo e dinheiro, começam a dar-se, e não por acaso, nos
sectores que caracterizam o moderno direito penal, os chamados “acordos”, que se levam a cabo no
processo penal entre a acusação e a defesa, como uma forma de solução do conflito». O Autor acrescenta
que não pode compreender-se esta evolução do direito processual penal desligada da evolução do direito
penal: «o direito penal material e o direito processual penal estão, em última instância, em íntima relação
funcional e, por isso, um direito processual penal com todas as garantias só é possível contando com um
direito penal material baseado nos mesmos princípios: ou seja, presidido pelo princípio da legalidade,
concentrado em bens jurídicos precisos e limitado a funções que possam ser cumpridas. As incriminações
massivas no direito penal material produzem estratégias de actuação também massivas no direito
processual penal». A razão pela qual se citou este pensamento de Hassemer é sobretudo uma:
exemplificar uma compreensão que importa ter em conta e segundo a qual muitas novidades do direito
processual penal orientadas para a simplificação, para a celeridade e para a diversão podem não constituir
um bem em si mesmas, representando antes um mal imposto por opções também questionáveis em sede
de expansão do direito penal. Pronunciando-se sobre a introdução, no direito processual penal alemão, do
princípio da oportunidade (através do parágrafo 153 e seguintes do StPO) e sobre os “acordos entre as
partes”, o Autor considera que configuram “quebras das garantias jurídicas do processo penal” e entende
que “mais do que opções, são formas de claudicação resignada face às necessidades do moderno direito
penal”.
739
As teorias funcionalistas parecem mais favoráveis ao surgimento das soluções de oportunidade e de
consenso do que aquelas outras que pretendam a realização de uma justiça absoluta.
740
Manuel da COSTA ANDRADE, “Consenso e oportunidade” cit., p. 339.
741
Naturalmente, o abandono daquele “mito” tem outras consequências, não só no plano adjectivo como
no plano substantivo. No que respeita a este último, considere-se, por exemplo, a dispensa da pena.

417
de toda a criminalidade conhecida pelas instâncias formais de controlo742. Assim,
surgem com o Código de Processo Penal de 1987 as formas de diversão (a diversão
simples representada pelo arquivamento em caso de dispensa da pena e a diversão com
intervenção que é a suspensão provisória do processo), cuja história vem sendo – após
alguma turbulência doutrinal inicial e alguma renitência por parte dos aplicadores – de
gradual ampliação dos seus âmbitos de aplicação743.
Remetendo-se para momento posterior – o atinente à ponderação dos
mecanismos de consenso já adoptados pela justiça penal portuguesa – um tratamento
mais detido destes institutos, cabe agora apenas sublinhar que o alargamento das
possibilidades de diversão resultante da “expansão” do arquivamento em caso de
dispensa da pena e, sobretudo, da suspensão provisória do processo tem como reverso,
naturalmente, uma compressão da legalidade da promoção processual744 entendida
enquanto obrigação de acusar sempre que existam indícios suficientes de que o agente
cometeu um crime.
Todavia, além dessa compressão da legalidade da promoção processual
associada à expansão dos mecanismos consagrados nos artigos 280.º e 281.º do CPP,
vêm surgindo novidades legislativas que, de forma apenas implícita ou de modo
explícito, acabam por significar também um enfraquecimento daquele princípio.
Escolha-se, enquanto exemplo do primeiro caso, a Lei-Quadro da Política Criminal e,
enquanto exemplo da assunção explícita de uma nova forma de diversão, o regime
jurídico da mediação penal de adultos.
A afirmação de que através da Lei-Quadro da Política Criminal – a Lei n.º
17/2006, de 23 de Maio – se reconhece a impossibilidade do full enforcement parece ser
contrariada, todavia, pelo disposto no artigo 2.º do próprio diploma: “a definição de
742
A esta afirmação subjaz o entendimento de que não só não é possível que a justiça penal tome
conhecimento de toda a criminalidade existente – as cifras negras parecem incontornáveis –, como
também não é desejável, mesmo quanto à criminalidade conhecida, um sancionamento penal em todos os
casos. Uma compreensão destas duas ideias não pode, mais uma vez, prescindir do pensamento da
criminologia de sessenta, crítico das instâncias formais de controlo. Uma análise muito detida da
problemática da selecção ao longo das várias instâncias formais de controlo é a de Jorge de
FIGUEIREDO DIAS e Manuel da COSTA ANDRADE, in Criminologia, O Homem Delinquente e a
Sociedade Criminógena, Coimbra Editora: 1997, 3.ª reimp., p. 384 ss. Para uma reflexão sobre “as
necessidades institucionais e objectivo-lógicas da selecção”, veja-se Günther KAISER, Criminologia,
Una Introducción a sus Fundamentos Científicos, Madrid: Espasa-Calpe, 1978, p. 98 ss.
743
Sobre a alteração, em 2007, do regime jurídico da suspensão provisória do processo, cfr. Rui do
CARMO, “A suspensão provisória do processo no Código de Processo Penal revisto: alterações e
clarificações”, Revista do CEJ, n.º 9 (especial), 2.º semestre de 2008, p. 321 ss.
744
A que não corresponde a admissibilidade de qualquer arbítrio por parte da autoridade judiciária quanto
à forma como encerra o inquérito. Muito pelo contrário, a alteração a que o instituto foi sujeito em 2007
reforça – sem deixar margem para dúvidas – a natureza de dever da suspensão provisória do processo
sempre que estiverem reunidos os seus requisitos.

418
objectivos, prioridades e orientações, nos termos da presente lei, não pode (…)
prejudicar o princípio da legalidade”. Esta deve ser vista, porém, como uma previsão de
natureza puramente “simbólica” e sem correspondência com aquele que é o próprio
sentido de uma Lei-Quadro da Política Criminal que pretende, entre outros aspectos,
enunciar os crimes de investigação prioritária. De facto, só pode compreender-se o
surgimento deste conjunto de orientações a partir da aceitação de que é impossível (e
porventura indesejável) reprimir com o mesmo grau de eficiência todas as
manifestações da criminalidade conhecida. Só por ser assim se vislumbra, de resto, que
o legislador tenha pretendido atribuir a competência para a escolha daquilo que é
prioritário a quem já possui legitimidade democrática para a definição das opções
coerentes com determinado programa político-criminal. Na mera existência desta lei – e
no significado que ela não pode deixar de assumir – vai implícita, portanto, a aceitação
de que existem mecanismos de selecção da criminalidade cujo conhecimento chega às
instâncias formais de controlo, mecanismos esses que são condicionados por factores
vários, desde logo as insuficiências de meios que obrigam à tomada de decisões quanto
às investigações para onde os recursos devem ser primeiramente canalizados. Ora, é a
aceitação deste suporte fáctico sem o qual a própria lei dificilmente se compreende que
se não coaduna, de forma manifesta, com uma vigência plena do princípio da legalidade
da promoção processual745.
Por outro lado, agora de forma explícita, surgiu em 2007, no ordenamento
processual penal português, um outro mecanismo de diversão – e, logo, um outro limite

745
Subscreve-se assim inteiramente a afirmação de Manuel da COSTA ANDRADRE de que «como uma
leitura mais atenta do diploma deixa a descoberto, os enunciados de sentido aparentemente mais inovador
são invariavelmente lançados “sem prejuízo” de enunciados de sentido antinómico (…). Não será, por
exemplo, arriscado acreditar que o proclamado e intransigente apego ao princípio da legalidade
processual venha a neutralizar o efeito esperado das “prioridades” da política criminal, afinal de contas,
uma das ideias nucleares da lei. Legalidade que, por certo, cortará também o caminho ao que, pelo menos
numa primeira aproximação, parecia ser outro dos grandes desígnios do diploma: assegurar à selecção
uma legitimação e um enquadramento democráticos». E partilha-se também a ideia segundo a qual «o
processo legislativo que levou à aprovação da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio, tem na sua origem o mal-
estar provocado pela consciência do desfasamento entre a criminalidade real e a criminalidade
formalmente reconhecida e sancionada. O que se desdobra em dois enunciados de facto: primeiro, nem
todo o crime cometido é objecto de processamento e sancionamento, nos termos legais; segundo, a
“escolha” das infracções que acabam por ser objecto de sancionamento formal é o resultado de
incontroláveis – e indesejáveis – forças do acaso ou das pré-compreensões e emoções pessoais dos
agentes do Ministério Público ou das polícias criminais». Ao reafirmar o princípio da legalidade, o
legislador perdeu a oportunidade de dar uma “resposta decididamente cognitiva: a aceitação da selecção
como um dado, conjugada com a tentativa de lhe emprestar controlo e legitimação democráticas”. O
Autor conclui que esta solução legal deixa os destinatários num “caso de conflito de deveres. A
ultrapassar fechando os olhos às prioridades e orientações por causa da legalidade; ou, inversamente,
sacrificando a legalidade por causa das prioridades e orientações” [in “Lei-Quadro da Política Criminal
(Leitura crítica da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio), Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3938,
p. 263 e p. 271].

419
à vigência plena da legalidade da promoção processual penal –, que é a mediação penal
de adultos.
Constituindo a mediação penal o principal instrumento da justiça restaurativa,
ela deverá merecer análise autónoma na parte III deste estudo. Por ser assim, remete-se
para esse momento uma reflexão mais detida sobre aquilo que se julga que a mediação
penal deve ser, aquilo que já é em outros ordenamentos jurídicos, aquilo que é e aquilo
que poderá vir a ser entre nós.
No que agora interessa a esta reflexão sobre o princípio da legalidade da
promoção processual enquanto desafio para as práticas restaurativas, o que deve
sublinhar-se é que, nos termos do disposto no artigo 3.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de
Junho, “o Ministério Público, em qualquer momento do inquérito, se tiverem sido
recolhidos indícios de se ter verificado crime e de que o arguido foi o seu agente, (…)
designa um mediador das listas previstas no artigo 11.º e remete-lhe a informação que
considere essencial sobre o arguido e o ofendido e uma descrição sumária do objecto do
processo”.
Ora, de uma leitura desta disposição parece resultar com clareza que, inexistindo
indícios de que o arguido cometeu o crime, o Ministério Público não deve remeter o
processo para mediação, mas sim proceder ao seu arquivamento.
Todavia, havendo indícios que permitiriam (ou que imporiam, sob um prisma de
legalidade estrita) a continuação do processo, a possibilidade de uma solução do
conflito que é exterior a esse processo – a mediação – poderá ser vista, em sentido
amplo, como uma forma de diversão.
É certo – sempre se poderá afirmar – que não se exige na lei a existência de
indícios suficientes para fundarem uma acusação, esclarecendo-se até que o envio do
processo para mediação penal pode ocorrer “em qualquer momento do inquérito”. Nessa
medida, a mediação nem sempre surgirá como uma alternativa à acusação, pois que
pode ocorrer em momento que é prévio a tal juízo746. Todavia, deve sublinhar-se que a

746
Por assim ser, parece poder afirmar-se uma diferença entre o tempo da mediação penal e o tempo das
formas de diversão previstas nos artigos 280.º e 281.º do CPP: estas, como resulta desde logo da sua
inserção sistemática entre as derradeiras normas atinentes ao inquérito (de facto, no preciso intervalo
entre as diposições relativas ao arquivamento e as disposições relacionadas com a acusação), não serão
configuráveis em momento anterior ao do encerramento do inquérito – e encontram-se, de resto, previstas
no capítulo III, denominado “do encerramento do inquérito”. Quer o arquivamento em caso de dispensa
da pena, quer a suspensão provisória do processo, não sendo admitidos em momento anterior, são porém
aplicáveis em momento posterior, o tempo da instrução, como resulta do disposto nos artigos 280.º, n.º 2
e 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – o que, à luz desta perspectiva cronológica, também os
distingue da mediação penal.

420
mediação penal também poderá, nos termos da lei portuguesa, constituir verdadeira
alternativa à acusação (surgindo no final de um inquérito em que se produziram indícios
suficientes para fundar um despacho de acusação), desvendando-se então como
verdadeira limitação à legalidade da promoção processual. E, mesmo quando se opta
pela mediação em momento anterior – num momento em que já existem indícios, mas
não os suficientes para a acusação –, tal decisão acaba por, materialmente, limitar a
possibilidade de subsequente colheita daqueles indícios que deveriam desencadear a
acusação, reduzindo-se, por essa via, a possibilidade de uma decisão futura conforme
com aquele princípio da legalidade.
Um problema a merecer ponderação prende-se com a interpretação do disposto
no n.º 2 do artigo 3.º daquele diploma, onde se prevê que “se o ofendido e o arguido
requererem a mediação, nos casos em que esta é admitida ao abrigo da presente lei, o
Ministério Público designa um mediador nos termos do número anterior,
independentemente da verificação dos requisitos aí previstos”. A questão prende-se
sobretudo com a interpretação deste segmento final da norma: caberá a existência de
indícios nos requisitos de que se pode prescindir para a existência desta mediação penal
“a pedido” dos intervenientes no conflito e, logo, não decidida em primeira linha pela
autoridade judiciária? A resposta parece dever ser negativa. Se o agente e o ofendido
pela prática de um crime particular em sentido amplo pretenderem recorrer à mediação
penal, aquilo que o Ministério Público não tem de inquirir é se tal solução “responde
adequadamente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir” – o que é, de
resto, coerente com a natureza daqueles crimes e a possibilidade que sempre existiria de
não apresentação de queixa ou de posterior desistência da mesma, independentemente
de qualquer valoração preventiva. Este é o requisito (ou estes são os requisitos: de
prevenção especial e de prevenção geral) de cuja apreciação o Ministério Público fica
arredado naquelas hipóteses de mediação penal “a pedido”. Já a existência de indícios,
por pequenos que sejam, parece dever ser, ainda aqui, incontornável. Caso se aceitasse a
solução contrária, estar-se-ia a admitir que mecanismos de natureza estadual
funcionassem para permitir a assunção de responsabilidades por pessoa – o agente do
crime de que não há indícios – que não seria, caso o processo penal obedecesse a uma
tramitação “normal” (o arquivamento), sujeita a qualquer desvalor.
Feito este breve excurso com finalidades introdutórias, eis que se deve enfrentar
o problema delimitado. Por razões metodológicas, parece útil relembrá-lo e considerar
as suas ramificações.

421
Quando se reconhece que o ordenamento jurídico português já admite
limitações aos princípios da oficialidade e da legalidade da promoção processual, o
que de seguida parece dever questionar-se é se as práticas restaurativas que precludem
a acusação são ainda admissíveis no contexto das limitações àqueles princípios. Depois
de se procurar mostrar que a resposta para tal interrogação é afirmativa, intentar-se-á
ainda elencar os argumentos que fundam uma valoração positiva de tais limitações,
mormente pela demonstração de que elas não serão, em si mesmas, incompatíveis com
o princípio da igualdade sempre invocado em defesa da oficialidade e da legalidade.
Este será, assim, o propósito da reflexão que se segue.
Não obstante, a verificação de que as embrionárias práticas restaurativas
admitidas pela lei portuguesa como mecanismo de diversão processual não ofendem o
núcleo dos princípios da oficialidade e da legalidade da promoção processual deixa
intocada uma outra interrogação, mais profunda. Sendo evidente que o sentido e o
âmbito da proposta restaurativa não podem limitar-se pela solução portuguesa – uma
solução de carácter minimalista –, sempre terá de se perguntar se uma aceitação mais
genérica das soluções restaurativas, mormente no contexto da criminalidade
particularmente grave e de dimensão inequivocamente pública, representará, de modo
inevitável, um ataque insuportável àqueles princípios. Uma proposta de resposta a esta
interrogação será remetida para momento posterior.

3.3. Uma dificuldade para a proposta restaurativa: como responder à dimensão


pública do crime?

A rejeição pelo pensamento restaurativo da exclusividade decisória dos


“profissionais da justiça” – que ditariam a solução para o conflito entre o agente e a
vítima através de um seu desapossamento – parece transpostar consigo a rejeição de um
princípio tão nuclear da justiça penal como é o da oficialidade e, de forma reflexa,
também a ideia de legalidade da promoção processual.
Todavia, se o pensamento expresso por Nils CHRISTIE no seu célebre Conflicts
as Property é fácil de compreender na sua simplicidade – parece existir um conflito que
o Estado de alguma maneira rouba, desapossando a vítima do papel dominante na busca
da solução –, não se vê que isso tenha de significar a rejeição liminar do princípio da
oficialidade da promoção processual penal. E é assim na medida em que se reconheça a

422
dimensão pública inerente aos ilícitos criminais mais graves e mais prejudiciais para a
comunidade.
De algum modo, crê-se que o núcleo da crítica movida à justiça penal pelo
pensamento restaurativo não é verdadeiramente o princípio da oficialidade, não é a
atribuição do poder decisório ao Estado através do sistema judicial. A legitimidade
punitiva do Estado sempre encontrará algum esteio na compreensão de que o direito
penal protege subsidiariamente os valores considerados essenciais pela comunidade
num dado contexto espacial e temporal, surgindo o Estado como o representante dessa
comunidade. O cerne da crítica estará antes na forma como o ius puniendi se exerce,
com grande desconsideração ou distanciamento face ao conflito e aos dramas concretos
daqueles que nele estão envolvidos.

3.4. A existência (possível) de mais do que um conflito e a (in)existência de um


roubo do conflito (todo) pelo Estado

Se quer à justiça penal, quer à justiça restaurativa, parece assistir alguma razão
na pretensão que cada uma delas tem de, a seu modo, regular o conflito747 – assumindo
as duas respostas diferentes conformações –, como relacioná-las sem espaços para a
acusação de que o conflito foi roubado a alguém? Como explicar essas à primeira vista
tão distintas formas de olhar para o conflito que é o crime? Como justificar a radical
divergência quanto à questão de saber quem é, afinal, o titular do conflito? A chave para
a solução destes problemas encontrar-se-á, segundo se julga, na compreensão que de o
cometimento do crime pode originar não um, mas dois conflitos, com naturezas
distintas e titulares diversos.
A ideia que se quer transmitir é a de que esse mesmo acontecimento histórico
que se verte nos factos de António esfaquear Bruno, seu vizinho, para lhe roubar o
dinheiro e o relógio, tem uma dupla natureza: é um conflito no que tange à relação entre
António e Bruno, no que respeita ao seu (des)encontro e aos males individuais,
profissionais ou familiares que daí eventualmente resultaram; mas é também um crime
se tivermos em conta o comportamento de António face a um conjunto de valores

747
Recorde-se, a propósito da pluralidade de sentidos de intervenção na gestão de um conflito, a ideia de
José Narciso da CUNHA RODRIGUES de que “é característica da pós-modernidade a coexistência, na
sociedade, de variadas esferas com os seus distintos objectivos, regras, processos, valores e equilíbrios.
Cada uma valoriza aspectos particulares e cultiva a sua própria visão da sociedade ideal” (in Lugares do
Direito, Coimbra, Coimbra Editora: 1999, ps. 259-260).

423
essenciais que existem porque há uma comunidade – da qual António e Bruno fazem
parte – que se quer proteger.
O que se pretende significar é, assim, que, enquanto a resposta restaurativa está
primariamente orientada para a dimensão privada ou interpessoal do conflito, a resposta
dada pelo sistema jurídico-criminal é essencialmente conformada pela dimensão
pública que os conflitos que também são crimes têm748. E, partindo-se desta mesma
ideia mas encarando-a agora sob uma diferente perspectiva, importa reconhecer que se a
dimensão privada do conflito suscita dificuldades à justiça penal (ou é por esta
parcialmente desconsiderada), não são menos evidentes os engulhos que a dimensão
pública do conflito representa para a justiça restaurativa. Esta, que tem relutância em
aceitar a necessidade de punir, precisa de reconhecer a necessidade de a intervenção que
impõe constrangimentos às pessoas obedecer a um processo que respeite os direitos
fundamentais.
Os problemas de estruturação de um modelo de resposta ao crime adensam-se,
porém, se considerarmos que àquelas suas dimensões colectiva e individual pode
acrescer uma terceira: o crime, para além de ser uma ofensa insuportável a valores
considerados essenciais pela comunidade, para além de ser um conflito entre duas (ou
mais) pessoas, pode ser também a forma de manifestação de um problema social. Com
isto, não se pretende significar o próprio crime enquanto problema social – considerá-lo
assim decorre daquela sua dimensão colectiva, que faz do delito um problema social
porque é um problema da sociedade –, mas antes afirmá-lo enquanto consequência de
um prévio problema social (de que serão meros exemplos a exclusão social e/ou
económica).
O reconhecimento destas dimensões que com frequência – ainda que com
intensidades porventura desiguais – convivem no crime suscita uma interrogação

748
Existem Autores que, apesar de reconhecerem no crime a existência de uma “questão pública” e de
uma “questão privada”, parecem não extrair daí a conclusão de que a justiça penal se ocupa
essencialmente de uma e a justiça restaurativa de outra. Assim, nomeadamente, Lode WALGRAVE – que
perfilha uma concepção maximalista da justiça restaurativa e que, admitindo a coercividade das sanções
restaurativas, pretende expandir a resposta restaurativa a toda a criminalidade – afirma que a violação do
domicílio para roubar “é uma questão privada e uma questão pública. Em um sentido estrito, a restituição
ou a compensação das perdas da vítima concreta pode ser privada (…). Mas também há um lado público.
A questão pública é a perda de segurança: o crime não fere apenas a confiança da vítima em que a sua
privacidade e os seus bens sejam respeitados pelos seus concidadãos. Aquela específica vítima também se
torna um exemplo daquilo que todos os cidadãos arriscam sofrer. Se as autoridades nada fizessem contra
aquele concreto crime isso iria minar a confiança dos cidadãos nos direitos à privacidade e à propriedade”
(in “Imposing Restoration Instead of Inflicting Pain” cit., p. 73). A ideia de que se pode olhar para o
crime através de lentes diversas, distinguindo a “violação da lei”, por um lado, da “ofensa às pessoas e às
relações”, por outro lado, deve muito ao estudo de Howard ZEHR, Changing Lenses cit., p. 177 ss.

424
imediata: poderá (e deverá) reagir-se ao crime, nas suas várias dimensões, através de um
único modelo de controlo, maxime a justiça criminal? Poderá a justiça criminal ser
chamada a desempenhar tantas e tão variadas tarefas? A uma primeira consideração,
não se vê qualquer vantagem em procurar alargar o sistema de justiça penal de forma a
incluir nele nem a reacção àquilo a que se chamou a dimensão privada ou individual do
conflito, nem a reacção à mencionada dimensão de problema social. Estas podem já ser
tidas em conta na densificação de alguns conceitos especificamente penais, adquirindo
relevância nomeadamente para os juízos de prevenção e de culpa, mas actuar sobre elas
não constitui um fim principal. Dizê-lo não equivale a retirar-lhes importância. Não se
pretende estabelecer aqui qualquer hierarquia entre estas dimensões várias do crime. O
que se pretende é, apenas, significar que uma adequada compreensão do sentido e das
funções da justiça penal talvez nos conduza à conclusão de que esta não pode ser
responsabilizada por todos os males da reacção ao mal que é o crime, pois que a justiça
penal cura – e deve curar – apenas de uma parcela desse mal. A justiça penal cura, em
primeira linha, da dimensão colectiva desse mal. O que abre espaço para a justiça
restaurativa, à qual deverá caber, em primeira linha, a reparação dos danos vários
verificados ao nível individual e interpessoal do conflito (podendo ainda englobar-se
neste nível a comunidade de próximos).
Como consequência deste raciocínio, parece poder concluir-se que o Estado não
roubou o conflito aos particulares – através do exercício do seu ius puniendi que é
nuclear no direito penal – porque o conflito que aqui lhe interessa, aquele relativamente
ao qual tem uma pretensão reguladora, é o conflito do agente com os valores essenciais
da comunidade revelado pelo cometimento do crime.
Em rigor, talvez possa dizer-se que existem dois conflitos com diversa natureza,
e que cada um desses conflitos é susceptível de consideração em dois momentos
temporais. No que respeita à distinta natureza dos conflitos, há que diferenciar (I)
aquele que opõe o interesse particular de um agente manifestado no crime aos valores
essenciais da comunidade, quer nestes valores sobreleve o seu cariz individual (porque
são valores cuja essencialidade a comunidade reconhece em nome da protecção
primeira da liberdade de desenvolvimento do indivíduo), quer neles prepondere o cariz
colectivo; (II) daquele outro conflito originado pela violação de interesses legítimos da
vítima por força de uma conduta ilícita de um agente que persegue os seus próprios
interesses. Sob um ponto de vista cronológico, pode distinguir-se (I) o conflito
manifestado no momento do cometimento do crime (que em alguns casos, corresponde

425
ao clímax de um conflito pré-existente) – a que se pode chamar “conflito substantivo” –;
(II) do conflito decorrente do cometimento do crime – que poderia ser denominado
“conflito adjectivo”.
O conflito substantivo de que se ocupa o direito penal é o conflito manifestado
pelo comportamento do agente com os valores essenciais protegidos pelas
incriminações penais e, por isso, com a comunidade (a comunidade “toda”) que criou as
normas penais para garantir a sua própria subsistência e a subsistência condigna de cada
pessoa no seu seio. No momento do cometimento do crime, revela-se este conflito. Em
momento posterior, a história do processo penal é a história de um outro conflito (o
conflito adjectivo), entre o Estado e o arguido, em que aquele, como representante do
interesse colectivo, procura verificar a existência do conflito substantivo – o crime –,
aferir da responsabilidade do agente e determinar a sua sanção.
Há, com frequência, porém, no crime, um outro conflito substantivo, entre o
agente e a vítima ou vítimas, conflito este que pode ainda envolver aqueles que lhes são
próximos (pense-se na família ou nos amigos do agente e da sua vítima), assim como,
eventualmente, a “comunidade pequena” onde se incluem. Não pode dizer-se que este
outro conflito tenha sido inteiramente desconsiderado pelo direito penal – é o
reconhecimento da sua existência, o reconhecimento de que o crime não ofende apenas
valores da comunidade, mas também os interesses concretos da pessoa concreta que é a
vítima que funda a atribuição ao ofendido da qualidade de sujeito processual (enquanto
assistente) ou que funda o seu direito ao pedido de indemnização cível. Todavia, a tutela
dos interesses do ofendido não costuma surgir enquanto finalidade autónoma, nem do
direito penal, nem do direito processual penal, e o próprio conceito de assistente
pressupõe alguma sua subordinação ao papel principal de defesa do interesse público,
que cabe à autoridade judiciária. É deste conflito substantivo entre um agente e a sua
vítima que surge o conflito adjectivo, posterior ao cometimento do crime, que as
práticas restaurativas pretendem disciplinar.
Em síntese com finalidade simplificadora, poder-se-á afirmar que a justiça penal
se ocupa de um macro-conflito, enquanto a justiça restaurativa tem por objecto um
micro-conflito. Esta centra-se no conflito entre o agente e a sua vítima, enquanto aquela
se centra no conflito entre o agente e a comunidade suportada pelos valores que as
incriminações penais protegem. O que parece coerente com a compreensão da função
do direito penal, de protecção subsidiária de bens jurídicos, enquanto a justiça

426
restaurativa visa a reparação dos danos sofridos pelos vários intervenientes no conflito
criminal.
Pode considerar-se que, através da indemnização civil cujo pedido aderiu ao
processo penal, o Estado procura formas de resposta àquele micro-conflito. Trata-se,
porém, apenas de uma parte da solução. Em muitos casos, porventura de uma pequena
parte. E a adesão deste pedido ao processo penal demonstra, ela própria, que é de algo
substancialmente diferente que se trata. Algo que se julga conveniente associar ao
processo penal mas que cura de finalidades diversas. E será, de resto, ainda a
compreensão de que não é função primeira do direito penal a resposta a este conflito
(inter)pessoal que parece contribuir para a exclusão da reparação enquanto finalidade
autónoma da pena. O que não impede a previsão da reparação como sanção autónoma,
desde que adequada às finalidades da intervenção penal e, por isso, sempre filtrada pelas
considerações da prevenção.

4.O princípio da reserva de juiz e a proposta restaurativa

A Constituição da República Portuguesa prescreve, no n.º 1 do seu artigo 202.º, que


“os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em
nome do povo”. E acrescenta, no n.º 2 do mesmo artigo, que “na administração da
justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os
conflitos de interesses públicos e privados”.
Um qualquer relancear de olhos para a prescrição constitucional faz sobressair a
contradição entre o seu conteúdo e a compreensão, perfilhada por alguns, da justiça
restaurativa (concretizada, entre nós, sobretudo através da mediação penal) como um
“sistema penal sem juízes”749.

749
Veja-se, por ser particularmente ilustrativo de tal compreensão, o título dado por Pablo GALAIN
PALERMO a estudo sobre a mediação penal de adultos, introduzida em Portugal pela Lei n.º 21/2207, de
12 de Junho: “Mediação penal como forma alternativa de resolução de conflitos: a construção de um
sistema penal sem juízes”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol.III,
Universidade de Coimbra/Coimbra Editora: 2010, p. 821 ss. Mas não deixe também de se avançar que
não se concorda – como da exposição subsequente se espera que resulte – com algumas das ideias
perfilhadas pelo Autor, nomeadamente com a sua opinião de que “os defensores da justiça restaurativa
pretendem uma devolução do conflito aos atores sociais, sem a participação dos operadores tradicionais
da justiça penal, objetivo este que não tem sido corretamente interpretado pelo legislador português, que,
com a implementação da mediação no sistema penal, somente prescindiu da figura do juiz” (ob. cit., p.
824). Uma das conclusões que se procurará sustentar neste estudo é a de que o legislador português ficou
aquém das possibilidades de implementação das práticas restaurativas por força da adopção de um regime

427
A interrogação de que se parte relaciona-se, assim, com o sentido da intervenção do
juiz, em um tempo em que o seu papel enquanto protagonista da justiça parece estar em
crise, mas em que, paradoxalmente, se procura a sua revalorização através da ideia do
juiz que é garante das liberdades750.
De uma análise do regime jurídico introduzido pela Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho
(que se aprofundará na terceira parte do estudo), parece decorrer a exclusão do juiz
enquanto sujeito conformador das decisões relativas, quer ao envio do processo para
mediação penal, quer à homologação do acordo que porá fim àquele processo penal.
São atribuídas ao Ministério Público essas funções. Resultará, porém, daqui uma
qualquer violação daquele princípio da reserva de juiz? Eis aquilo que já não se julga
evidente. A fundamentação desta opinião não pode, porém, prescindir de uma reflexão,
ainda que sucinta, sobre o conteúdo essencial do princípio.
Sob um ponto de vista metodológico, existe, porém, uma cautela que tem de se
assumir. Podendo a forma como se compreende o princípio da reserva de juiz assumir
contornos distintos nos vários ordenamentos jurídicos e admitindo a justiça restaurativa
modos de actuação muito diversos em vários contextos espaciais, quando se procura
aferir da compatibilidade das práticas restaurativas com o princípio da reserva de juiz
não pode prescindir-se de uma delimitação espacial e temporal. Pondo a questão de
outra forma, através de um exemplo: nos sistemas que admitem como prática
restaurativa os sentencing circles, que não prescindem da intervenção de um magistrado
que exerce uma função jurisdicional, as interrogações suscitadas pelo confronto de tais
práticas com o princípio da reserva de juiz revestir-se-ão de outros matizes.
O que se quer significar é também que, sem prejuízo da possibilidade de considerar
de forma genérica a tentativa de dirimir conflitos privados sem a intervenção de um
juiz, não é essa a questão que se elege como objecto, desde logo porque se têm sempre

que é minimalista a diversos níveis, mas que não permite associar a mediação penal, enquanto prática
restaurativa, a uma justiça penal sem juiz.
750
Sobre a questão, vd. a afirmação de Anabela Miranda RODRIGUES de que «a história do processo
penal é, numa grande medida, a história da redistribuição dos poderes do juiz, que inicialmente
monopolizava a tramitação processual. Nem se pense que a crise por que passa o juiz contemporâneo lhe
retira o papel de protagonista da realização da justiça: uma sociedade mais preocupada com os “resultados
da acção” do que com a “invocação da lei”, altamente complexa e fragmentária, de normas
crescentemente indeterminadas e em que o sistema jurídico sofre um processo de “integração” confere-
lhe um papel central na decisão do processo». A Autora refere, de seguida, a “revalorização da sua função
jurisdicional ao longo de todo o processo (e não apenas na fase de julgamento), como condição
indispensável da garantia dos direitos fundamentais do arguido” (in “As relações entre o Ministério
Público e o Juiz de Instrução Criminal ou a matriz de um processo criminal europeu”, Que Futuro para o
Direito Processual Penal?, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO,
Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, ps. 717-8).

428
no horizonte conflitos de natureza criminal, e por isso com alguma dimensão pública.
Não poderá, por isso, excluir-se liminarmente o nódulo problemático atinente à reserva
de juiz através da afirmação genérica de que inexistem problemas na retirada de
competência ao tribunal na solução de conflitos entre privados, precisamente por se
tratar de uma solução que já não é de administração de justiça mas apenas de
composição privada desses conflitos. Existe, parece claro, uma conexão (ainda que não
uma sobreposição) entre as considerações antes esboçadas sobre o princípio da
oficialidade da promoção processual e a reflexão atinente à reserva de juiz.
Escapando a este estudo qualquer pretensão de análise exaustiva, quer do princípio
da reserva de juiz, quer das práticas restaurativas em uma perspectiva comparatística,
aquilo que muito sucintamente se ponderará é a questão da (in)coerência das práticas
restaurativas de adultos adoptadas no nosso país (no caso, a mediação penal) com o
princípio da reserva de juiz no sentido que, à luz do nosso ordenamento jurídico, lhe
vem sendo assacado751. E o problema suscitar-se-á apenas quanto à mediação que é uma
forma de diversão processual, por não existirem as mesmas dificuldades quanto às
práticas restaurativas pós-sentenciais.

4.1. Notas sobre as repercussões actuais do princípio da reserva de juiz no direito


processual penal português

O princípio da reserva de juiz surge tradicionalmente associado à justiça como


função do poder estadual, sendo que “o direito de fazer justiça” consiste “em dirigir o
processo e o julgamento e fazer cumprir a sentença”752. Em um direito processual penal
estruturado a partir de uma ideia de máxima acusatoriedade, a compreensão do papel do
juiz não pode, porém, prescindir de uma delimitação das suas funções face àquelas que

751
A razão pela qual se interroga em primeira linha o princípio da reserva de juiz e não o princípio do juiz
natural ou do juiz legal prende-se com o facto de essencialmente se querer perguntar se, com as práticas
restaurativas, se está a pôr nas mãos de outros que não um juiz um acto que é materialmente jurisdicional.
Não se trata, por isso, sobretudo de questionar, à luz do princípio do juiz natural, se se está a dar
competência a um juiz diferente daquele a quem a competência fora atribuída por lei anterior. O problema
de “mudar a competência depois de ter sido ela fixada”, nas palavras de Jacinto COUTINHO (“O
princípio do juiz natural no Brasil e um merecido tributo a Jorge de Figueiredo Dias”, Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra Editora: 2010, p. 804), não
parece sobreponível, portanto, ao problema da atribuição da competência a outros que não um juiz, por
força de previsão geral e anterior, para dirimir conflitos jurídico-criminais.
752
Anabela MIRANDA RODRIGUES, “A jurisprudência constitucional portuguesa e a reserva do juiz
nas fases anteriores ao julgamento ou a matriz basicamente acusatória do processo penal”, XXV Anos de
Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora: 2009, p. 49.

429
são as funções atribuídas ao Ministério Público753. Ora, nesta matéria, da exigência de
uma separação estrita entre quem investiga e acusa, por um lado, e quem julga, por
outro, decorre a atribuição ao juiz, cada vez com maior intensidade, de um papel de
garante dos direitos fundamentais das pessoas confrontadas com o exercício do ius
puniendi estadual754.
Esta é, segundo se crê, a ideia que deve iluminar toda a reflexão sobre o sentido
do princípio da reserva de juiz e que, se não pode bastar enquanto “ponto de chegada”,
deve assumir-se como “ponto de partida”. Cabendo ao juiz esse papel de garante dos
direitos fundamentais do cidadão, decorre daí que no exercício do ius puniendi (na
aferição da responsabilidade e na determinação da consequência jurídica) tem de
impender sobre ele a ponderação do ponto a partir do qual existe uma agressão indevida
daqueles direitos, que terá de considerar vedada755.
Daqui parece decorrer, se bem se vê o problema, uma consequência não
despicienda para a compreensão da forma como tal princípio pode relacionar-se com a
justiça restaurativa. Se o seu núcleo se associa à defesa do cidadão face ao exercício do
poder punitivo estadual, a intervenção do juiz não assumirá a mesma preponderância
em modelos de reacção ao conflito que sejam distintos daquele exercício de uma
autoridade estadual que, de forma coerciva, determina uma sanção penal para um
crime.

753
Dispõe-se no n.º 5 do artigo 32.º da CRP que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a
audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do
contraditório”. Sobre “a estrutura acusatória que o processo penal assume por imperativo constitucional”
e a “divisão de funções processuais entre o juiz ou o tribunal, de um lado, e o ministério público, do
outro”, cfr. Jorge de FIGUEIREDO DIAS, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo
Penal”, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, Coimbra: Almedina,
1992, p. 22 ss.
754
Segundo Anabela MIRANDA RODRIGUES (últ. ob. cit., p. 49), «identifica-se inequivocamente um
“núcleo transnacional” na função do juiz, de garante das liberdades, presente em todas as fases do
processo, mas que sobressai nas fases que antecedem o julgamento – e na fase de investigação que é o
inquérito –, já que aqui são susceptíveis de se verificar os ataques mais graves às liberdades das pessoas.
O juiz, dotado de independência e imparcialidade que a Constituição e o seu estatuto lhe conferem, é o
único sujeito processual que pode, por isso, assumir plenamente o papel de garante dos direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos».
755
Com algum cepticismo quanto ao modo como o juiz tem cumprido a sua função de limitar a aplicação
de métodos ocultos de investigação mas sem renunciar, por isso, à exigência da reserva de juiz, veja-se a
afirmação de Manuel da COSTA ANDRADE de que, apesar de todas essas medidas deverem estar
sujeitas à reserva de juiz e de durante muito tempo se ter acreditado que “o juiz poderia figurar como
barreira eficaz contra o recurso exagerado às medidas”, parece não ter sido isso que sucedeu. Tratar-se-á,
antes, de «uma expectativa que, como de todos os lados hoje se reconhece, os factos acabaram por
frustrar em toda a linha. Sem poupar nas palavras, hoje é corrente falar-se de “capitulação dos tribunais”»
[in “Métodos ocultos de investigação (plädoyer para uma teoria geral”), Que Futuro para o Direito
Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando
Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 547].

430
Ou seja: a admissão de margens de autonomia na procura de soluções para
determinados conflitos – logo, de soluções não ditadas de forma heterónoma e ainda
coerentes com a vontade dos envolvidos – parece coerente com a atenuação das
exigências decorrentes do princípio da reserva de juiz, o qual, sublinhe-se, ganha
especial sentido enquanto garante dos direitos fundamentais em sistemas que admitam
uma sua limitação coactiva.
Ademais, a atenuação das exigências do princípio da reserva de juiz em espaços
da própria resposta punitiva estadual considerados menos desvaliosos para o cidadão
vem-se tornando visível, mesmo no direito processual penal português. Considerem-se,
a título de exemplo, as soluções previstas nos n.º 3 e 4 do artigo 16.º do CPP756; no
artigo 281.º do CPP757 e nos artigos 392.º e 394.º do CPP758, a partir do denominador
comum de um certo “encurtamento” do espaço de intervenção do juiz à custa de uma
relativa expansão do campo de actuação do Ministério Público, mas sempre em
contextos que se pretendem não conducentes a uma agravação da posição do arguido e
antes a um seu tendencial favorecimento. Na primeira hipótese, que parece contemplar
uma regra especial de partilha de competências entre os tribunais de primeira instância,
a actuação do Ministério Público condiciona a competência do tribunal singular para o
julgamento e, também, um encurtamento da moldura penal dentro da qual esse tribunal
deverá determinar a medida concreta da pena. Na segunda hipótese, o Ministério
Público, em circunstâncias em que a acusação seria possível à luz de uma avaliação
probatória e jurídico subsuntiva, ao propor a suspensão provisória do processo,
condiciona a não ocorrência de uma audiência de julgamento que, de outro modo, teria
lugar. E, porventura com mais relevo, ao propor determinadas injunções ou regras de

756
O n.º 3 do artigo 16.º do CPP dispõe que “compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por
crimes previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o
Ministério Público, na acusação, ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do
concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos”. E
acrescenta-se no n.º 4 do mesmo artigo que “no caso previsto no número anterior, o tribunal não pode
aplicar pena de prisão superior a 5 anos”.
757
Segundo o n.º 1 do artigo 281.º do CPP, “se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5
anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do
arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo,
mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta (…)”.
758
Nos termos do n.º 1 do artigo 392.º do CPP, “em caso de crime punível com pena de prisão não
superior a 5 anos ou só com pena de multa, o Ministério Público, por iniciativa do arguido ou depois de o
ter ouvido e quando entender que ao caso deve ser concretamente aplicada pena ou medida de segurança
não privativas da liberdade, requer ao tribunal que a aplicação tenha lugar em processo sumaríssimo”.
Com mais interesse para o ponto em análise, acrescenta-se no nº 2 do artigo 394.º que “o requerimento
termina com a indicação precisa pelo Ministério Público: a) das sanções concretamente propostas; b) da
quantia exacta a atribuir a título de reparação, nos termos do disposto no artigo 82.º-A, quando este deva
ser aplicado”.

431
conduta, condiciona a solução a dar ao conflito, que deixa de ser inteiramente
“construída” por um juiz. Na terceira hipótese, decidindo o Ministério Público que o
processo deve seguir a forma sumaríssima, o seu requerimento deve conter já a
indicação da sanção concreta proposta. Assim, se naquele primeiro caso o ministério
público apenas condiciona, limitando-a na sua margem superior, a tarefa judicial de
determinação da medida concreta da pena, neste é o próprio Ministério Público que
assume essa função, ainda que a solução definitiva não tenha de ser a constante do seu
requerimento, porque a proposta inerente àquele requerimento só se tornará vinculativa
se merecer a concordância de um juiz e se o arguido não manifestar, quanto a ela,
oposição.
Talvez não seja irrazoável afirmar-se que existe, nestas três hipóteses, uma
gradação crescente na assunção pelo Ministério Público de competências que seriam,
numa visão mais tradicional e porventura já não coerente com aquela ideia da máxima
acusatoriedade, atribuídas ao juiz. Assim, se nos termos do regime previsto no artigo
16.º, n.º 3 do CPP da actuação do Ministério Público só resulta uma limitação do
máximo da sanção penal que ainda caberá ao juiz determinar concretamente; já nas
hipóteses da suspensão provisória do processo e do processo sumaríssimo poderá
resultar da actuação do Ministério Público a inexistência de julgamento e uma
modelação da solução para o conflito que lhe cabe, ainda que se não dispense a
concordância de um juiz. Apesar disso, existe entre estas duas últimas hipóteses uma
diferença que se não julga insignificante: enquanto na suspensão provisória do processo
durante a fase de inquérito o Ministério Público modela uma solução para o conflito
que não pode considerar-se uma verdadeira sanção criminal; já no caso do processo
sumaríssimo, é da determinação de uma verdadeira sanção criminal que o Ministério
Público se ocupa, indicando no seu requerimento, nos termos previstos no artigo 394.º,
n.º 2, alínea a) do CPP, as “sanções concretamente propostas”.
O Tribunal Constitucional português tem sido chamado a pronunciar-se sobre
algumas destas soluções introduzidas pelo Código de Processo Penal de 1987 –
nomeadamente a suspensão provisória do processo –, sendo que através dessas decisões
se podem descortinar alguns vectores relevantes para a densificação do princípio da
reserva de juiz. Tendo o conteúdo da reserva de juiz nas fases anteriores ao julgamento
sido já objecto, nomeadamente, da reflexão de Anabela Miranda RODRIGUES759, e

759
Anabela Miranda RODRIGUES, últ. ob. cit., p. 51 ss.

432
também por referência a várias decisões do Tribunal Constitucional, considerar-se-ão
aqui apenas algumas das ideias que se julgam centrais em algumas dessas decisões.
No que respeita aos problemas suscitados pelo n.º 3 do artigo 16.º do CPP, o
Tribunal Constitucional tem afirmado que não o considera violador dos princípios da
reserva da função jurisdicional e da independência dos tribunais. Considere-se, a título
de exemplo, o referido no Acórdão n.º 393/89 daquele Tribunal: “nenhum destes
princípios é violado pelo artigo 16.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, pois quem julga
é o juiz, e não o Ministério Público. É aquele, e não este, quem fixa a medida concreta
da pena, movendo-se para tanto dentro da moldura abstracta fixada na lei (…). O
Ministério Público condiciona, assim, a fixação da pena do caso: como porta-voz que é
do poder punitivo do Estado, diz ao juiz que, face às circunstâncias do caso e tendo
presentes os critérios legais de aplicação concreta das penas, a colectividade que ele
representa não pretende que ao réu se aplique por aquele caso pena superior a três
anos760. E di-lo no exercício de um poder expressamente definido na lei. Ora, isto não
viola qualquer dos apontados princípios constitucionais”761.
Uma decisão do Tribunal Constitucional que não pode deixar de merecer
referência a propósito da reserva de juiz é a do Acórdão n.º 67/2006, que logo delimita o
seu objecto pela afirmação de que “o que cumpre ao tribunal averiguar, no presente
recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, é se dos termos em que o n.º 1
do artigo 281.º do Código de Processo Penal consagra a intervenção do juiz de instrução

760
Nos termos da actual redacção do n.º 3 do artigo 16. º do CPP, o limite passou a ser de cinco anos.
761
Na doutrina, a questão foi há muito tratada por Jorge de FIGUEIREDO DIAS, que tomou posição
clara quanto à coerência do “método de determinação concreta da competência” previsto no artigo 16.º,
n.º 3 do CPP com o monopólio pelo juiz da função jurisdicional: “o princípio da reserva da função
jurisdicional permanece intocado: é o juiz singular que julga, como é ele que determina concretamente a
sanção dentro dos limites abstractos em que a lei lhe permite que mova a sua discricionaridade vinculada”
(in “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual
Penal – O Novo Código de Processo Penal, Coimbra: Almedina, 1992, p. 20). Naquele Acórdão n.º
393/89 do Tribunal Constitucional, dá-se ainda conta da forma como a lei vigente não consagrou a
solução, constante do projecto e da proposta de lei, de exigência de não oposição do arguido nem do
assistente para se fazer julgar por tribunal singular crime que seria da competência do tribunal colectivo.
Para além disso, também se não manteve a possibilidade de o tribunal singular ordenar a remessa do
processo para o tribunal colectivo caso entendesse que a pena aplicada devia ser superior ao limite
condicionante da sua competência. Pelo contrário, na versão definitiva, o tribunal singular ficou
vinculado pelo entendimento do Ministério Público quanto à desnecessidade de se ultrapassar aquele
limite de pena. No Acórdão, não deixam, porém, de se referir razões “em favor da solução adoptada”.
Afirma-se, a esse propósito, que “essas razões têm a ver, por um lado, com a necessidade de maior
eficácia da justiça penal: pretendeu-se evitar que o assistente, por simples vingança pessoal, por exemplo,
se oponha à intervenção do tribunal singular como forma de retardar o julgamento do arguido; e quis
também contornar-se a tendência que alguns juízes poderiam manifestar de remeter, por sistema, os
processos para o tribunal colectivo. Essas soluções têm, por outro lado, a ver com a necessidade de
adoptar soluções quiçá mais conformes com a pureza dos princípios: se o Ministério Público é o único
titular da acção penal, então é ele – e só ele – quem há-de fixar o objecto do processo e deduzir a
pretensão punitiva”.

433
criminal resulta a violação de normas ou princípios constitucionais, designadamente dos
que se inscrevem nos artigos 202.º (reserva da função jurisdicional) e 203.º
(independência dos tribunais) da Constituição”.
Ora, segundo o entendimento do Tribunal vertido naquele Acórdão e no que
respeita a este segundo princípio, “não belisca a independência funcional do juiz de
instrução a circunstância de o Ministério Público submeter a concordância judicial uma
decisão sua, que obteve já a aceitação dos restantes sujeitos processuais e que consiste
em renunciar à submissão imediata do caso a julgamento, sempre que as exigências de
prevenção geral e especial não requeiram a efectiva aplicação e cumprimento de uma
pena. Os termos em que o juiz decidirá se deve ou não dar a sua concordância não
dependem senão do que, em sua consciência, decorra da situação de facto revelada pelo
processo e dos comandos legais”.
Com mais interesse sob a perspectiva do princípio da reserva de juiz que neste
ponto do estudo se pondera, o Tribunal também considera inexistente uma sua qualquer
violação por força do regime consagrado no artigo 281.º do CPP, conclusão a que chega
a partir de uma interrogação sobre se ao Ministério Público se atribui poder para
qualquer “acto materialmente jurisdicional”. Nos termos do Acórdão, “ao decidir-se,
nesta fase, pela suspensão provisória do processo, o Ministério Público opta por não
exercer imediatamente a acção penal. Esse acto, em si mesmo, não colide mais nem
menos com o monopólio da função jurisdicional pelos juízes do que o seu reverso: a
dedução imediata da acusação”.
A razão que parece assumir importância decisiva para este entendimento do
Tribunal – e que se quer sublinhar a traço grosso na medida em que se torna relevante
na apreciação de uma hipótese, como sucede com a mediação penal, em que o arguido
assume deveres ou regras de conduta em consequência de um acordo que firmou e não
de uma decisão judicial – prende-se, porém, com a ideia de que «as injunções e regras
de conduta não revestem a natureza jurídica de penas, embora se consubstanciem em
medidas que são seus “equivalentes funcionais”». Sobretudo por esta razão, considera-
se que «o acto processual em causa – a decisão primária de suspensão e escolha das
injunções e regras de conduta – também não cabe em qualquer das hipóteses singulares
de reserva de acto jurisdicional ou “casos constitucionais de reserva judicial” (…) no
domínio do processo penal (…)».
Na argumentação adoptada neste Acórdão n.º 67/2006 do Tribunal
Constitucional encontra-se, porém, ainda um outro segmento argumentativo que se

434
julga muito relevante na compreensão do sentido do princípio da reserva de juiz quando
esteja em causa o dirimir de um conflito criminal. Para chegar à conclusão de que os
deveres assumidos pelo arguido, quando aceita a suspensão provisória do processo, não
têm a natureza de verdadeiras penas, o Tribunal aduz razões que considera
“fundamentais”: “trata-se de uma sanção a que não está ligada a censura ético-jurídica
da pena, nem a correspondente comprovação da culpa. Ao arguido cabe decidir, na sua
estratégia de defesa, se aceita submeter-se a tais injunções e regras de conduta ou se
prefere que o processo prossiga para julgamento”.
Ora, daqui parece resultar uma certa associação do núcleo daquele princípio da
reserva de juiz à formulação de um juízo de responsabilidade jurídico-penal do agente
que sustenta a necessidade de uma sanção criminal, assim como à determinação dessa
sanção criminal.
No mesmo ano de 2006, o Tribunal Constitucional voltou a ser confrontado com
um processo desencadeado por recurso de uma decisão do juiz de instrução que
considerou inconstitucional, por violação do princípio da reserva de juiz, uma
interpretação do artigo 281.º do CPP nos termos da qual se admita que cabe ao
Ministério Público a determinação das injunções e regras de conduta. No caso, tendo o
Ministério Público determinado a suspensão provisória do processo mediante a
imposição de determinada injunção, quando os autos foram conclusos ao juiz de
instrução este discordou daquela suspensão, sobretudo com a argumentação de que “o
Ministério Público não tem competência jurisdicional para decidir e impor injunções e
regras de conduta ao arguido”, o que implicaria uma inconstitucionalidade. A questão
deu origem a recurso, que foi considerado pelo Tribunal Constitucional através do seu
Acórdão n.º 116/2006.
No Acórdão, pode ler-se que “não há que recuar na questão de
constitucionalidade ao ponto de reabrir o debate sobre se a intervenção do juiz é
(continua a ser) constitucionalmente exigida para a suspensão provisória do processo, na
fase de inquérito, mediante a imposição ao arguido de injunções ou regras de conduta”.
O que se pondera é, antes, se “dos termos em que o n.º 1 do artigo 281.º do Código de
Processo Penal consagra a intervenção do juiz de instrução criminal resulta a violação
de normas ou princípios constitucionais, designadamente dos que se inscrevem nos
artigos 202.º (reserva de função jurisdicional) e 203.º (independência dos tribunais) da
Constituição”.

435
O entendimento acolhido neste Acórdão do Tribunal Constitucional é o de que
“o facto de o juiz de instrução estar condicionado pela decisão do Ministério Público,
nomeadamente quanto à selecção das injunções e regras de conduta e à determinação do
período de suspensão do processo, mais precisamente, de o seu leque de opções
decisórias estar limitado à concordância ou discordância com a anterior aplicação do
direito ao caso feita pelo Ministério Público e pela aceitação dos demais sujeitos
processuais, não contende com o princípio constitucional da independência dos
tribunais”. Entre os argumentos que sustentam esta afirmação está o de que “os termos
em que o juiz decidirá se deve ou não dar a sua concordância não dependem senão do
que, em sua consciência, decorra da situação de facto revelada pelo processo e dos
comandos legais. Seja qual for a extensão dos seus poderes – ainda naquela
interpretação mais restritiva de que ao juiz não cabe senão a apreciação dos
pressupostos e condições da suspensão que se analisem (ou na parte em que se
analisem) num mero juízo verificativo de conformidade à lei, estando-lhe vedada a
intervenção nos juízos de prognose ou na margem de apreciação por parte do titular da
acção penal (…) –, a decisão do juiz não depende de quaisquer ordens ou instruções
mas, directamente e só, das fontes normativas a que constitucionalmente deve
obediência”.
O aspecto a que, neste momento da reflexão, se deve atribuir maior relevância é,
porém, o atinente ao conteúdo do princípio da reserva da função jurisdicional.
Relativamente a ele, é o próprio Acórdão do Tribunal Constitucional ora em apreciação
que delimita, com exactidão, o seu problema: “importa averiguar se a decisão do
Ministério Público pela suspensão provisória do processo consubstancia um acto
materialmente jurisdicional”. A partir da afirmação de que ao Ministério Público, como
“órgão autónomo de administração da justiça” a quem cabe dirigir o inquérito (o “que
implica necessariamente aplicar o direito e formular juízos”), compete a dedução da
acusação ou o arquivamento, conclui-se que “ao decidir-se, nesta fase, pela suspensão
provisória do processo, o Ministério Público opta por não exercer imediatamente a
acção penal. Esse acto, em si mesmo, não colide mais nem menos com o monopólio da
função jurisdicional pelos juízes do que o seu reverso: a dedução imediata da acusação”.
A razão pela qual se julgou que se devia dar particular ênfase a este Acórdão n.º
116/2006 do Tribunal Constitucional prende-se essencialmente com um seu trecho,
importante para a compreensão do núcleo do princípio da reserva de juiz quando se
questionam outras formas de reacção ao conflito que não a ditada por um tribunal. A

436
propósito da decisão do Ministério Público de suspensão provisória do processo,
afirma-se: “é certo que tal opção pode tornar-se definitiva se as injunções ou regras de
conduta forem cumpridas. Mas não é por isso, pelo facto de a opção ser potencialmente
definitiva ou, mais exactamente, de coenvolver a expectativa de que o processo virá a
ser arquivado, sem a qual a opção pela suspensão não seria tomada, que pode dizer-se
que o Ministério Público pratica um acto materialmente jurisdicional”. E conclui-se,
com especial relevância quanto a este ponto da reflexão, que “haverá, apenas, se esse
vier a ser o desenvolvimento do processo, um conflito que acabará por ser dissipado ou
suprimido; não a sua resolução e, muito menos a aplicação de qualquer pena, por
entidade diversa do juiz”.
A ideia central que se julga que daqui se pode extrair é a da atinência do
princípio da reserva de juiz sobretudo à resolução de conflitos através da punição ou da
absolvição, mas não à sua supressão ou dissipação por meios que não coenvolvam um
exercício da autoridade. Assim, parece adoptar-se aqui um conceito de “resolução de
conflitos” que não é coincidente com o subjacente ao conceito de “resolução
(alternativa) de conflitos”, na medida em que se liga “resolução” a uma decisão
autoritária do conflito por um terceiro que é alheio a esse conflito. Apesar das cautelas
que esta identidade terminológica a que subjazem, porém, distintos conteúdos deve
suscitar, o que se pretende enfatizar é a forma como aquele trecho do Acórdão do
Tribunal Constitucional se aproxima, segundo se crê, do cerne do princípio da reserva
da função jurisdicional: sempre que a solução para um conflito tiver de ser ditada de
forma autoritária e sempre que essa decisão envolva, ainda que potencialmente, a ofensa
a direitos fundamentais do indivíduo, essa decisão terá de caber a um juiz.
Não sendo propósito desta análise um qualquer adensamento autónomo do
sentido da reserva de juiz, aquilo que aqui se quis sublinhar foi, sobretudo, o facto de o
próprio direito processual penal português admitir já (e com respaldo em decisões do
Tribunal Constitucional), em hipóteses das quais se pretende que não resulte um
desfavorecimento da posição do arguido, uma certa limitação do papel do juiz na
definição de uma solução para alguns conflitos criminais. O que abre, segundo se crê,
também alguma margem de compreensão para uma atenuação das exigências da sua
intervenção em contextos – como o restaurativo – em que, se ainda se tem no horizonte
um conflito criminal, não é já da aplicação de uma sanção estadual e coactiva que se
trata.

437
4.2. A solução restaurativa como solução “sem juiz”?

Aquele que parece ser o cerne do problema no que respeita à avaliação da


compatibilidade (ou não) da proposta restaurativa com o princípio da reserva de juiz
prende-se com o facto de a solução restaurativa poder ser uma solução para um conflito
jurídico-penal que é conformada por aqueles que são os intervenientes concretos no
conflito, sem que haja intervenção de um juiz. E será uma solução para um conflito
jurídico-penal quando funcionar como mecanismo de diversão; quando for pós-
sentencial, a pacificação que se pretende já não é sobretudo a do conflito jurídico-penal,
mas sim do (inter)pessoal.
O problema adquire uma dimensão material que se prende, por sobretudo, com a
possibilidade de, através desse acordo restaurativo, aqueles que nele são intervenientes
– e especialmente o arguido – assumirem deveres que limitem os seus direitos
fundamentais762, sem que a autoridade judicial a quem se atribui, no nosso sistema, a
competância para avaliar a necessidade e a adequação de tais limitações tenha qualquer
intervenção de controlo. A razão pela qual parece dever centrar-se aqui o núcleo da
questão relaciona-se, decerto, com a afirmação de Anabela Miranda RODRIGUES de
que “uma tendência clara e generalizada manifesta-se com o reforço da independência
do juiz, que surge, com a consequente revalorização da sua função jurisdicional ao
longo de todo o processo penal – e não apenas na fase de julgamento –, como garantia
da sua imparcialidade e como condição indispensável da protecção dos direitos
fundamentais das pessoas no processo, designadamente do arguido e dos seus direitos
de defesa”763. Ora, é precisamente quando se centra aqui o sentido da reserva de juiz,
nessa defesa de direitos fundamentais da pessoa, maxime do arguido, que se
compreende melhor a preocupação suscitada por uma forma de reacção ao conflito
criminal que, prescindindo de uma comprovação da responsabilidade do arguido perante
um tribunal, admite, para mais, que ele assuma deveres cujo conteúdo é incerto sem que
os mesmos sejam sujeitos a um qualquer controlo judicial.
Por um outro lado, parece poder afirmar-se que a questão se agudiza em sistemas
(como o nosso sistema público de mediação penal “de adultos”, por exemplo) que

762
Recorde-se que o n.º 4 do art. 32.º da CRP dispõe que “toda a instrução é da competência de um juiz, o
qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam
directamente com os direitos fundamentais”.
763
Anabela MIRANDA RODRIGUES, “A jurisprudência constitucional portuguesa e a reserva do juiz
nas fases anteriores ao julgamento ou a matriz basicamente acusatória do processo penal”, XXV Anos de
Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora: 2009, p. 49.

438
prescindam de uma qualquer forma de “tipificação” dos conteúdos considerados
admissíveis em sede de acordo. Daqui decorre, portanto, uma larga possibilidade de
conformação dos acordos restaurativos pelo agente e pela sua vítima, sem uma
intervenção, nem modeladora, nem de controlo, por parte de um juiz.
Não se tratará neste momento da questão complexa de saber que acordos devem
considerar-se inadmissíveis porque violadores da dignidade da pessoa, por se julgar que
a sede mais adequada para se proceder a tal ponderação é a atinente à análise do nosso
regime jurídico da mediação penal de adultos. Sempre se deve reconhecer, porém, que a
ausência de intervenção judicial, conjugada com a atribuição de uma ampla margem
para a criatividade na determinação do conteúdo do acordo, tem suscitado, mesmo entre
os cultores da proposta restaurativa, largas divergências quanto àquilo que deve
considerar-se ou não admissível764.
O problema é, porém, no modo como o legislador português delimitou a
mediação penal de adultos enquanto prática restaurativa, de muito mais simples
abordagem do que a sujeição de toda a proposta restaurativa ao crivo daquele princípio
da reserva de juiz. De facto, ao fazer coincidir o âmbito material daquela mediação
penal com apenas alguns crimes particulares em sentido amplo, não existe nada de
muito novo sob a óptica da reserva de juiz: continua a admitir-se aquilo que já se
admitia, ou seja, a renúncia à resposta dada pelo tribunal através de um acordo entre o
arguido e o ofendido que é sujeito a homologação do Ministério Público por se estar na
fase de inquérito.
Em momento posterior deste estudo – aquando da reflexão mais detida sobre a
mediação penal de adultos introduzida, em Portugal, pela Lei n.º 21/2007, de 12 de
Junho –, ponderar-se-á a questão da exclusão do juiz da homologação do acordo entre o
ofendido e o arguido. Não se tratará agora, por isso, da diferença entre esta opção e a
feita em sede de suspensão provisória do processo, que não prescinde da intervenção do
Ministério Público e do juiz de instrução. De qualquer modo, antecipe-se apenas que
uma tal diversidade de soluções talvez possa ser compreendida a partir de uma
verificação da diversidade dos institutos765. Assim, enquanto a suspensão provisória do

764
Afirmando a necessidade de algumas orientações para a conformação da solução restaurativa, cfr.
Gerry JOHNSTONE (Restorative Justice: Ideas, Values, Debates, Devon: Willan Publishing, 2006, p.
125) que, no contexto de uma reflexão sobre o sentido de “reintegrative shaming” pondera, entre outras
questões, a possibilidade de um arguido por crime de furto participar em práticas restaurativas e aceitar a
utilização de uma peça de vestuário com a inscrição “sou um ladrão”.
765
Não se acompanha, neste ponto, a ideia de Pablo GALAIN PALERMO de que “a suspensão provisória
do processo do sistema português é uma solução muito próxima da mediação”. Julga-se, pelo contrário,

439
processo alarga o seu âmbito de aplicação também a crimes públicos puníveis com
prisão até cinco anos, a mediação penal, ao circunscrever o seu âmbito material a alguns
crimes particulares em sentido amplo, parece mais próxima (quanto à autoridade
competente para o controlo da solução) do regime da desistência de queixa na fase de
inquérito do que daquele regime jurídico da suspensão provisória do processo. Por outro
lado, se na suspensão provisória do processo o consenso se restringe a uma
possibilidade de concordância/discordância quanto à solução para o conflito que foi
desenhada pela autoridade judiciária e conformada pelas finalidades especificamente
penais, na mediação penal o conteúdo do acordo é construído pelos próprios ofendido e
arguido, parecendo por isso não caber no juízo de homologação uma qualquer aferição
da sua coerência com as finalidades de prevenção geral e especial.
De forma sintética e com um intuito de clarificação, sempre se poderá dizer que
existe certa unanimidade na nossa doutrina e na nossa jurisprudência (nomeadamente a
constitucional) quanto à admissibilidade, face ao princípio da reserva de juiz, de
soluções para o conflito jurídico-criminal que não sejam conformadas exclusivamente
por um juiz, antes se outorgando papel de relevo ao Ministério Público e, com grande
importância, ao consenso dos intervenientes concretos no conflito. De resto, o que logo
se detecta quando se analisam os regimes jurídicos da suspensão provisória do processo
e do processo sumaríssimo é a exigência de concordância do arguido (e, em regra,
também do assistente, ainda que aqui existam diferenças entre a suspensão provisória do
processo e o processo sumaríssimo). Ou seja: a modelação da solução para o conflito
criminal, quando não é conformada e ditada por um juiz, não prescinde do consenso dos
sujeitos do conflito.

que existem diferenças importantes, desde logo porque a solução que através daquela suspensão se
encontra para o conflito jurídico-penal é ainda construída pelas autoridades judiciárias e orientada para a
obtenção das “exigências de prevenção” [pelo menos no regime geral previsto no n.º 1 do artigo 281.º do
CPP, por força da sua alínea f)]. Diversamente, a solução para o conflito resultante do acordo obtido
através da mediação penal é a desenhada pelo arguido e pelo ofendido e não se julga que, por sobretudo
nos crimes particulares em sentido amplo, deva ficar condicionada ao cumprimento daquelas finalidades.
Nesta medida, só a solução resultante da suspensão provisória do processo procura satisfazer ainda os
interesses das vítimas potenciais, apesar da necessidade de acordo do assistente também fazer relevar o
interesse da vítima concreta. Pablo GALAIN PALERMO considera que “o art. 281.º CPP concretizou o
que em outros sistemas somente se discute no plano de lege ferenda, pois aqui as partes não são afastadas
da solução do conflito e se modera a subtracção do conflito pelas autoridades judiciais. Em relação ao
ofendido pelo delito, esta solução se orienta pela satisfação dos interesses da vítima direta e também para
os interesses da vítima potencial, pois se busca satisfazer às orientações da prevenção geral positiva ou
integradora”. Sublinhe-se, ainda, que, diversamente daquela que é a opinião que defendo, o Autor parece
sustentar que a exclusão do juiz do modelo de mediação adoptado em Portugal “pode constituir uma
grave lesão ao princípio constitucional do juiz natural” (in “Mediação penal como forma alternativa de
resolução de conflitos: a construção de um sistema penal sem juízes”, Estudos em Homenagem ao Prof.
Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra Editora: 2010, ps. 844 e 852).

440
Ora, radicando a mediação penal e a solução que através dela se obtém na
vontade do arguido e do ofendido (e num consenso na própria construção da solução),
parece aceitável, à luz de uma certa compreensão do próprio processo penal que já é a
nossa, a atribuição a sujeitos distintos do juiz a definição da solução para o conflito.
Procurando concretizar o sentido do acto materialmente jurisdicional mais uma vez por
apelo ao pensamento de Anabela Miranda RODRIGUES, recorde-se a sua afirmação de
que “porque não se rouba o conflito mas se arreda o conflito, não se justifica a
intervenção do juiz – não está em causa assegurar a reserva do juiz”766. Parece, assim,
favorecer-se a conclusão de que se a reserva do juiz se deve manter intocada quando o
sistema punitivo estadual se apropia do conflito, “roubando-o” para o resolver de forma
coactiva; a mesma exigência não fará idêntico sentido (ou não se porá nos mesmos
moldes) quando a solução do conflito for, por vontade daqueles que nele são
intervenientes, “arredada” das instâncias formais de controlo.
Dado este passo, havia, porém, um outro passo a dar. Como já resulta do que se
acabou de afirmar, diversamente do previsto nos regimes jurídicos da suspensão
provisória do processo e do processo sumaríssimo (que não prescindem da intervenção
de um juiz), o regime jurídico da mediação penal de adultos constante da Lei n.º
21/2007, de 12 de Junho, atribui exclusivamente ao Ministério Público a função de
homologação da desistência de queixa inerente ao acordo, afastando qualquer
exigência de uma intervenção, ainda que meramente de controlo, de um juiz. Neste
ponto da reflexão, poder-se-ia perguntar se, por essa via, se prejudicaria, na mediação
penal, a função judicial de garante dos direitos fundamentais que está no cerne do
princípio da reserva de juiz.
Sem prejuízo de uma ponderação mais detida da questão na Parte III deste
estudo, existem duas razões essenciais que parecem convergir na conclusão da
admissibilidade desta solução. Em primeiro lugar, tem-se em conta o âmbito material
daquela mediação penal e o facto de ela só ser possível para alguns crimes particulares
em sentido amplo, relativamente aos quais a desistência da queixa (obtida, porventura,

766
Anabela Miranda RODRIGUES (últ. ob. cit., p. 56) adopta uma linha argumentativa coerente com a
explanada pelo Conselheiro Messias Bento – que votou vencido na decisão referida – a propósito da
constitucionalidade de uma suspensão provisória do processo que, no inquérito, prescindisse da
intervenção de um juiz. Não se encetará, neste momento, análise mais detida do Acórdão n.º 7/87 do
Tribunal Constitucional (do qual resultou a necessidade de concordância do juiz de instrução para a
suspensão provisória do processo proposta pelo Ministério Público durante o inquérito) na medida em que
o mesmo será objecto de atenção em momento posterior deste estudo, aquando da reflexão sobre as
soluções introduzidas pela Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho e a (des)necessidade de intervenção de um
juiz.

441
em condições menos “garantistas” do que as inerentes à celebração do acordo através da
mediação penal) já seria passível de homologação, no inquérito, pelo Ministério
Público. Em segundo lugar, a intervenção de um juiz como garante dos direitos
fundamentais é aqui menos necessária do que na suspensão provisória do processo ou
no processo sumaríssimo porque, ao contrário do que sucede nestas hipóteses, o arguido
não se limita a concordar ou não com uma solução conformada por outrem a partir das
finalidades penais, antes se vincula a um acordo que ele próprio modelou. Para além de
que, diversamente do que sucede no processo sumaríssimo (que pressupõe uma
condenação a uma pena), não se podem qualificar como sanções penais os deveres
assumidos pelo arguido através da mediação penal.

4.Uma tentativa de síntese

Existe um conjunto de princípios considerados essenciais na definição da resposta


dada ao crime em um Estado de Direito Social que parecem, pelo menos até certo
ponto, postos em causa pela justiça restaurativa. Entre esses princípios, julgou-se que
seriam merecedores de consideração autónoma sobretudo o da culpa, os da oficialidade
e da legalidade da promoção processual e o da reserva de juiz.
A ideia principal a que se chegou foi a de que tais princípios, se devem permanecer
irrenunciáveis no plano da resposta penal ao crime, não têm de vincular tão
estreitamente uma forma de reacção que comporta notas de diversidade.
Por outro lado, reconheceu-se que, mesmo no plano da justiça penal, vão surgindo
limitações àqueles princípios, pelo que ela própria se vai distanciando da justiça penal
dita “tradicional” a que os cultores da justiça restaurativa querem contrapor o sistema
que defendem. Nesse sentido, é inequívoca a afirmação de Anabela RODRIGUES de
que «a “superação” do legado inarredável da modernidade – legalidade, culpa, direitos
fundamentais – obriga-nos a confrontar-nos com novos referentes igualmente
inarredáveis: igualdade, oportunidade, consenso, celeridade, mediação, reparação. Na
resposta ao crime, é preciso romper com a espiral de violência – em que parece não
haver senão uma saída: o recurso ao direito penal e a exasperação dos recursos punitivos
– e experimentar-se a pacificação»767.
Perante esta convergência, no tempo que é o nosso, de exigências a um primeiro
olhar contraditórias (as que herdámos da modernidade e as que depois dela se vêm

767
Anabela Miranda RODRIGUES, “Globalização, democracia e crime” cit., p. 310.

442
afirmando), impõe-se um esforço de concretização daquilo que se tem de preservar e
dos espaços em que se pode inovar. O que pressupõe uma compreensão clara do núcleo
de cada um daqueles princípios e, simultaneamente, uma reflexão sobre aquilo que há
de diverso na justiça restaurativa e na justiça penal.
A consideração do problema é dificultada pela diversidade das práticas
restaurativas e pelas divergências na definição da própria justiça restaurativa. Todavia,
julga-se que da reflexão tentada – e delimitada, sublinhe-se, quer pela concepção que
antes se defendeu da justiça restaurativa, quer pelas práticas restaurativas admitidas
no sistema português – parece resultar a inexistência de espaços significativos de
desconformidade entre esta justiça restaurativa e aqueles princípios da culpa, da
oficialidade e da legalidade da promoção processual e da reserva de juiz.

443
444
Capítulo III

Justiça Restaurativa e Justiça Penal: espaços de (des)encontro

1.O principal espaço de desencontro: a pena privativa da liberdade

1.1.O problema

Quando se reflecte sobre o núcleo de parte significativa do pensamento


abolicionista ou sobre as ideias cultivadas por vários defensores da proposta
restaurativa, compreende-se que aquilo que se rejeita nem sempre é toda e qualquer
intervenção penal, mas apenas aquela que culmina com uma condenação a pena de
prisão768. Essa rejeição foi-se nutrindo, sobretudo a partir da segunda metade da década
de setenta do século passado, de um aparentemente paradoxal crescimento do recurso à
privação da liberdade – em vários países e, de forma paradigmática, nos Estados Unidos
da América –, contrário quer a várias previsões esboçadas, quer à tendência verificada
no decénio anterior769.

768
Assim, apesar de no pensamento de Autores abolicionistas – como Hulsman – ser também patente a
acusação de que a justiça penal esqueceu a vítima concreta, a crítica mais forte e mais recorrente é a da
desadequação da pena privativa da liberdade. A este respeito, por exemplo, Elena HIGHTON/Gladys
ALVAREZ/Carlos GREGORIO (ob. cit., p. 33) afirmam que “o abolicionismo faz especial finca-pé na
resposta incapacitadora privativa da liberdade como o expoente máximo da nocividade do sistema”. A
conexão entre o pensamento abolicionista e a prisão é inerente, por outro lado, a reflexões orientadas para
a crítica do pensamento abolicionista e a afirmação da necessidade da subsistência da resposta penal e da
privação da liberdade. A este propósito, considere-se, a título de exemplo, o estudo de Luís
SOLÓRZANO, “Prisión Aún” (in Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos: in memoriam, vol. I, Dir.
Arroyo Zapatero/Berdugo Gómez de la Torre, Ediciones de la Universidad de Castilla-La
Mancha/Ediciones Universidad de Salamanca, 2001, p. 107 ss), no qual, depois de elencar algumas das
ideias fortes de abolicionistas como Hulsman, Christie, Bianchi ou Mathiesen, procede à sua
desconstrução e afirma, na senda de Ferrajoli, um certo perigo da “utopia regressiva” de renúncia à
intervenção punitiva do Estado. Entre esses perigos, considera o da adopção de “alternativas piores”,
como uma “reacção de vingança descontrolada”, o “disciplinarismo social” ou a introdução de “técnicas
de vigilância total”.
769
Neste sentido e a propósito da pena privativa da liberdade, Loïc WACQUANT (Punir les Pauvres cit.,
p. 28) relembra que os «três principais historiadores revisionistas da prisão, David Rothman, Michel
Foucault e Michael Ignatieff concordavam com os sociólogos Stanley Cohen e Andrew Scull, assim como
com os criminólogos Hermann Manheim e Norval Morris, em ver nela uma instituição em declínio
irreversível, destinada a ser substituída a médio prazo por instrumentos de controlo social mais difusos,
discretos e diversificados. O debate virava-se então resolutamente para as implicações da
“descarcerização” e a aplicação das penas em “meio aberto”». Todavia, como o Autor também nota, este
prognóstico foi infirmado, porque “a evolução carcerária sofreu uma reviravolta em quase todas as
sociedades ocidentais: a população de detidos duplicou em França, na Bélgica e em Inglaterra; mais do
que triplicou na Holanda, na Espanha e na Grécia; e quintuplicou nos Estados Unidos”. Também Eduardo
CRESPO («”Del derecho penal liberal” al “derecho penal del enemigo”», Serta: in memoriam Alexandri
Baratta, cit., p. 1036) menciona o “recrudescimento punitivo” e acrescenta que “apesar de a pena
privativa da liberdade se encontrar em crise sob um ponto de vista teórico, não há razão para optimismo,
pois as estatísticas mostram que assistimos em Espanha, nos últimos anos, a um processo expansionista

445
A evolução do pensamento sobre a privação da liberdade é, nessa perspectiva
cronológica, merecedora de atenção porque tão particularmente significativa da
temporalidade e da ausência de definitividade das respostas penais770: a um tempo em
que surge associada a ideias de humanização da punição771, sucede um outro tempo em
que fortes correntes do pensamento a marcam com a crítica da desumanidade, erigindo-
a a símbolo de um modo de responder ao crime que se julga carecido de superação772.

no uso da prisão”. Segundo o Autor, aquela crise teórica está associada ao facto de a prisão operar “como
factor criminógeno, devido a fenómenos como a psicose carcerária, a subcultura das prisões e a privação
de uma vida sexual normal”.
770
Sobre a contingência da pena privativa da liberdade e a ideia de que ela não é uma resposta inevitável
ao crime, cfr., já na década de sessenta do século passado, a reflexão de Eduardo CORREIA, que parte da
verificação de que a prisão se tornou, a partir do movimento legislativo do século XIX, a “base de todos
os sistemas punitivos”, para depois mostrar que os seus antecedentes não são longínquos. E, nas suas
próprias palavras, “depois de ter sido apresentada como a panaceia contra todos os crimes e todos os
criminosos, ela conheceu rapidamente o declínio, a tal ponto que se pôde falar no seu fracasso total,
propor pura e simplesmente a sua abolição, ou considerá-la (…) a última solução à qual se tem o direito
de recorrer na luta contra o crime” (“La prison, les mesures non-institutionnelles et le projet du Code
Pénal Portugais de 1963”, Estudos “in memoriam” do Prof. Doutor José Beleza dos Santos, Boletim da
Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra: Coimbra Editora, 1966, ps. 229-230)
771
No contexto de uma reflexão sobre a pena de prisão na “história penal de Oitocentos” orientada para a
compreensão da forma como “a prisão se ia convertendo, também entre nós, com o advento do regime
constitucional, em sanção nuclear do nosso sistema punitivo”, José MERÊA PIZARRO BELEZA [“A
pena de prisão, a reforma das cadeias e o Ensayo sobre o Plano mais Conveniente para a Fundação das
Cadêas (notas para a história do direito penal vintista) cit., p. 381] refere que “com o abandono das
formas cruéis de punição e a progressiva limitação das sanções mais rigorosas, tornou-se necessário
encontrar outras penas que substituíssem umas e outras. Das penas que podiam servir o sentido dessa
evolução humanitária foi, como é sabido, a de prisão a pena que pareceu mais indicada, pela possibilidade
que oferecia, entre outras, de variação em intensidade e duração. E de tal forma ela se impôs, que cedo
veio ocupar uma posição nuclear no sistema sancionatório de Oitocentos. Portugal não fugiu à regra.
Também aqui foi à volta da pena de prisão que gradualmente se foi construindo todo o regime penal – e
isso é reconhecível logo nos primeiros tempos do nosso regime liberal”. Todavia, o Autor não deixa de
notar que “a pena de prisão não era, claramente, uma instituição simpática a muitos dos vintistas. Mesmo
que agora a lei definisse, com todo o critério e cuidado, como expressão da vontade geral, os casos em
que os tribunais a poderiam vir a aplicar, a ideia de uma privação da liberdade não seduzia (…) todos os
nossos constituintes”. Formulavam-se-lhe várias objecções, nomeadamente a da “inutilidade social em
que a prisão colocava o condenado”, a da depesa que dela decorria para o Estado e a da ausência de uma
reparação do dano. Para uma análise dessas objecções formuladas por Autores como Bentham ou
Voltaire, mas também por penalistas e parlamentares portugueses, cfr. José Merêa Pizarro BELEZA, últ.
ob. cit., p. 382 ss. Por outro lado, deve merecer também ponderação o entendimento de Luigi
FERRAJOLI (no contexto de uma reflexão sobre a dimensão corporal da liberdade) de que a pena de
prisão, se pôde ser vista em determinado momento (e sobretudo a partir do Iluminismo Penal) como uma
forma mais humanista de superação do castigo sobre o corpo (com a eliminação gradual das penas
corporais), acabou, contraditoriamente, por potenciar as formas de interferência sobre o corpo por força
da sua contemporânea expansão (cfr. Luigi FERRAJOLI, prólogo à obra de Tamar Pitch, Un Derecho
para Dos. La Construcción Jurídica de Género, Sexo y Sexualidad, trad.de Cristina Garcia Pascual,
Madrid: Editorial Trotta, 2003).
772
São diversas as possibilidades de relacionamento da “pena” com o “tempo”, questão que se julga
particularmente interessante. Neste sentido, Vincent SERON e Georges KELLENS afirmam que “as
relações que a pena estabelece com o tempo em geral, e com a duração em particular, são com efeito
múltiplas e variáveis consoante a problemática considerada” (“L’effacemente automatique des
condamnations en matière pénale: ou le casier judiciaire confronté à l’oubli utilitaire”, Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias vol. III cit., p. 1345). O que se quis sublinhar no
texto foi a forma como, ao longo do tempo, evoluíram as concepções sobre as penas. Mas, além disso, o
que há de específico nas penas que, como a privação da liberdade, se graduam em função da sua duração,

446
Entre as várias afirmações que sintetizam a crítica da prisão como pena, pode
escolher-se, pela sua clareza, a ideia de Francisco Bueno ARUS de que “as penas de
prisão constituem um fracasso histórico. Não somente não socializam, como
dessocializam”773.
Uma objecção essencial que os cultores da proposta restaurativa – e uma
objecção que não é nova – fazem à pena privativa da liberdade é a da sua incoerência
teórica. Como também na doutrina penal portuguesa já foi afirmado por Teresa
BELEZA, “a prisão não reabilita ninguém (nem pode, logicamente, fazê-lo)”, tendo em
conta que priva da liberdade para educar o recluso para uma vida em liberdade774. A
estigmatização775 inerente à exclusão da comunidade que é própria da execução da
prisão não pode contribuir, como se julga claro, para a não dessocialização do agente776.

é que o tempo é a própria pena. Sobre a questão, com muito interesse, Ana MESSUTI (O tempo como
pena, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2003, p. 33), afirma que “a separação física não define,
por si só, a pena de prisão. Ao referirmo-nos a uma pena deste tipo é lógico perguntar: por quanto tempo?
Porque o tempo, mais que o espaço, é o verdadeiro significante da pena. Existe uma enorme diferença
entre passar três dias na prisão e passar toda a vida: há toda uma vida de diferença”. Sobre o surgimento
da pena de prisão no contexto de um movimento de humanização da punição e sobre o posterior
aparecimento de alternativas relacionadas com a ideia de que a pena não deve atingir a liberdade, mas
sobretudo o património do agente, cfr. Pierre-Henri BOLLE, “Vers une politique pénale limitant le rôle
de la prison?”, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. 1, org. Jorge de Figueiredo Dias/Ireneu
Barreto/Teresa Beleza/Eduardo Paz Ferreira, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 151 ss. O Autor, na
perspectiva que sobretudo interessa a este estudo, vinca o modo como “os criminólogos, e mais
recentemente os vitimólogos, orquestraram a política criminal reequilibrando-a em torno da vítima da
infracção, que já se não pode qualificar como esquecida pelo processo penal e pelo direito penal” (ob. cit.,
p. 157).
773
Francisco Bueno ARUS, “Panorama moderno de la pena de prisón”, Boletim da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra, vol. LXX, 1994, p. 261). Esta síntese do seu pensamento é antecedida pela
afirmação de que “o último terço do séc. XX está a ser testemunha de uma crise doutrinal generalizada da
pena de privação da liberdade” (ob. cit., p. 260).
774
Como a Autora sublinha, já em 1978 Trasler alertara “para o absurdo de querer preparar para a vida
em liberdade através da privação da mesma” (in «A “reinserção social dos delinquentes”: recuperação da
utopia ou utopia da recuperação?», Cidadão Delinquente: Reinserção Social?, IRS: 1983, p. 166). Mais
recentemente, José de FARIA COSTA chama, criticamente, a atenção para o facto de se ter operado
aquilo que denomina como uma “tentativa de neutralização axiológica perante o fantástico aumento da
carcerização”: “basta olhar – e Portugal é, neste campo, infelizmente, um péssimo exemplo – para as
estatísticas dos últimos dez anos relativas à população prisional, para nos darmos conta do exponencial
aumento do fenómeno da carcerização. E se isto é referido no discurso político-criminal, não o é tanto
pelo lado negativo e estigmatizante que provoca a todos os que a tal situação estão sujeitos, mas antes
como manifestação económica insustentável para um Estado que tem de ser menos Estado. O que se
passa, aqui, é uma tentativa de neutralização axiológica através da ideia de transferência dos problemas
efectivos e reais da política criminal para o campo dos custos económicos. Não se critica a pena de prisão
porque ela é uma resposta pouco adequada – mas ainda assim aquela que a comunidade tem por mais
aceitável – aos ideais de ressocialização mas faz-se-o, isto é, critica-se ferozmente a pena de prisão,
porque ela representa custos insustentáveis perante uma justa e equilibrada alocação de dinheiros
públicos” (in “A criminalidade em um mundo globalizado: ou plaidoyer por um direito penal não-
securitário”, Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais – Visão Luso-Brasileira,
Quartier Latin: 2006, p. 96).
775
Sobre essa estigmatização – que foi tema tão caro à criminologia dos anos sessenta e setenta – vd.,
com maior actualidade, Silvia LARIZZA (“Cave a Signatis: Ovvero sulla Stigmatizzazione Penale”,
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra Editora: 2010, p.

447
Além disso, existe na privação da liberdade como pena um nódulo central de
afastamento face ao modo como os cultores da proposta restaurativa julgam que se deve
reagir ao crime. E essa oposição não pode deixar de ser sublinhada em um momento
deste estudo vocacionado para a compreensão dos factores de distanciamento entre a
resposta dada ao crime pela justiça penal e a resposta que aqueles defensores da justiça
restaurativa julgam que deveria ser dada. A chave para a compreensão desse
distanciamento radica no conceito de responsabilização – agora já não tomado como
forma de imputação de um desvalor à responsabilidade de um agente, mas antes
deslocado para um momento posterior e relacionado com a neutralização de um mal
concreto que se causou a outros. A possibilidade de uma opção livre no sentido da
reparação do mal causado é vista, pelos cultores da justiça restaurativa, como factor de
responsabilização tão importante para a reintegração do agente do crime como cidadão
pleno como para a satisfação das necessidades da vítima. Ora, é precisamente a
compreensão da privação da liberdade como reacção suficiente a um crime e que
prescinde dessa actuação reconstrutiva do agente – ou a impossibilita – em favor da sua
vítima que dá também o flanco à crítica restaurativa777. Perante esta objecção, sempre se
poderia contra-argumentar que, à luz das finalidades penais, a reconstrução para a qual
se espera que a pena privativa da liberdade contribua é a reconstrução da própria atitude
interna do agente no sentido da adopção de um comportamento futuro conforme aos
valores. Nessa medida, sobra um espaço de responsabilização do agente condenado a

1296), que caracteriza a estigmatização como o sucesso de um processo de diferenciação ou separação de


algumas pessoas do grupo social, porque são consideradas diversas. A Autora afirma que a pena,
“sobretudo a privativa da liberdade”, é “fortemente” estigmatizante. Com grande interesse, veja-se a ideia
de Silvia LARIZZA (ob. cit., p. 1312), no contexto de uma reflexão sobre as possibilidades de limitação
do efeito de estigmatização penal, de que se poderia pensar em “reconhecer à justiça restaurativa um
papel mais incisivo” precisamente para contenção desse efeito estigmatizante inerente à condenação
penal.
776
Também de forma muito crítica relativamente à expansão do encarceramento, veja-se a afirmação de
Zygmunt BAUMAN de que “o isolamento reduz e comprime a visão do outro: as qualidades e
circunstâncias individuais que tendem a tornar-se bem visíveis graças à experiência acumulada do
relacionamento diário raramente são vistas quando o intercâmbio definha ou é proibido – a caracterização
toma então o lugar da intimidade pessoal e as categorias legais que visam subjugar a disparidade e
permitir que seja desconsiderada tornam irrelevante a singularidade das pessoas e dos casos”
(Globalização: as consequências humanas, trad. de Marcus Penchel, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1999, p. 114).
777
É recorrente a apresentação da pena de prisão como espaço de desresponsabilização da pessoa, por
força das restrições que a própria contingência carcerária impõe às possibilidades de escolha individuais
(sendo certo que, por mais que um determinado sistema de execução prisional procure potenciar essas
escolhas – nomeadamente as atinentes ao trabalho ou à educação –, subsiste um vasto âmbito de
necessária obediência a escolhas alheias). Neste sentido, veja-se a afirmação de Laurent MUCCHIELLI,
recordando um estudo de Perrier, sobre a forma como a pena de prisão “mais não faz do que contribuir
para o crescimento da dependência e da irresponsabilidade dos reclusos” (“Les rapports entre la
sociologie durkheimienne et la criminologie en France”, Serta in memoriam Alexandri Baratta cit., p.
502).

448
uma privação da liberdade: a responsabilidade inerente à construção do seu futuro.
Todavia, ainda que assim se argumente, permanece a interrogação sobre a conveniência,
da criação pelo Estado de oportunidades para que o agente repare os danos que causou.
Em muitos casos, essa reparação-responsabilização poderá revelar-se útil àquela
socialização-reconstrução de um futuro sem cometer novos crimes.
A crise de legitimidade da justiça penal da qual algum pensamento restaurativo
se nutre tem, ademais, na base a assintonia entre os fins que norteiam a justiça penal e
aqueles que são os resultados da sua intervenção. E o exemplo mais óbvio dessa
assintonia encontra-se, precisamente, na pena de prisão778. A contradição entre o dever
ser e o ser não decorreria sobretudo da conformação legal dada pelo direito penal, pelo
processo penal ou pelo direito de execução das penas, mas antes da prática dominante
nas instâncias formais de controlo779. Essa prática evidenciaria a incapacidade para o
cumprimento da prevenção especial de não dessocialização (do agente). Como afirmou
Teresa BELEZA, “um dos aspectos mais preocupantes do discurso doutrinal e legal
sobre recuperação é a sua função dissimuladora da realidade carceral”. E, como
acrescenta, “sempre o abismo foi grande entre uma teoria que se pretendia de ajuda e
recuperação (…) e uma prática de repressão ou desleixo e, talvez por não poder ser de
outra maneira, verdadeira degradação e estigmatização”780.
Esta linha de reflexão que sublinha essa desconformidade entre uma certa teoria
e uma certa prática encontra conforto na teoria do garantismo penal de Luigi

778
Sobre este ponto, vd. Massimo PAVARINI («”Economía del exceso” y castigos excesivos”», Cahiers
de Défense Sociale, O Direito Penal entre o Abolicionismo e a Tolerância Zero, Homenagem a Louk
Hulsman, Milão, 2003, p. 231), sobretudo a sua afirmação de que “verificar que, face a estes fins ideais
da pena [preventivos], as funções materiais do encarceramento são – pelo contrário – aquelas
determinadas pela produção e reprodução da desigualdade social, através da aplicação de uma violência
marcada por elementos irredutíveis de crueldade e com efeitos de elevada danosidade social, induz o
pessimismo penológico, depois exasperado pela verificação de não possuir nenhuma estratégia válida
para uma efectiva contenção ou abolição desta modalidade de pena”.
779
Tal contradição radicaria na distância entre o direito e a aplicação do direito. Impõe-se, pois, que se
olhe também para o avesso do direito. Encontra-se inspiração para tal propósito nas palavras de
Emmanuel LEVINAS (Totalidade e Infinito, Edições 70, 1988, trad. José Pinto Ribeiro, p.172) a
propósito da distinção entre o direito e o avesso: “o direito seria a essência das coisas em relação à qual o
avesso, onde os fios são invisíveis, suportaria as dependências. Mas Proust admirava o avesso das mangas
de um vestido de grande gala como os cantos sombrios das catedrais, trabalhados no entanto com a
mesma arte que a fachada (…). Pela fachada, a coisa que guarda o seu segredo – expõe-se fechada na sua
essência monumental e no seu mito onde brilha como um esplendor, mas não se entrega. Subjuga como
uma graça pela sua magia, mas não se revela”.
780
Teresa BELEZA, «A “reinserção social dos delinquentes”: recuperação da utopia ou utopia da
recuperação?», Cidadão Delinquente: Reinserção Social?, IRS: 1983, p. 163. Uma descrição vívida dessa
prática de degradação é a esboçada por Ranulfo de MELO FREIRE (“A Insegurança e a Segurança
Pública”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias cit., p. 1273 ss), que
conclui as suas observações sobre o encarceramento com a afirmação de que “segurança pública é um
verbete do dicionário político: significa garantir a paz da gente de vida honesta e não permitir, porém, que
se viole a Constituição para a consecução dessa mesma paz”.

449
FERRAJOLI – que merecerá referência autónoma em momento próximo – mas está
presente também na ideia de ROXIN de que a teoria dos fins das penas não pode
desconsiderar os dados empíricos, ainda que neste caso a análise se centre mais na
finalidade de prevenção geral positiva do que na antes considerada finalidade de
prevenção especial. Segundo o Autor, «as considerações preventivo-gerais para a
fundamentação e a medida da pena seriam ilegítimas se se partisse da ideia de que o
direito penal e a pena não têm efeitos preventivo-gerais. Porque uma política criminal
razoável depende das repercussões sociais reais das medidas de controlo”. E acrescenta
que «a concepção teórica do direito penal que defendo pode conceder à prevenção geral
um papel importante para a justificação da pena porque, apesar de algum cepticismo,
existem motivos preponderantes para aceitar que o direito penal contribui de forma
relevante para “impedir factos delituosos” e para “reforçar a confiança dos cidadãos na
existência e prevalência do ordenamento jurídico”»781.
Todavia, julga-se que a forma como o pensamento penal pode atenuar a crítica à
pena de prisão não tem no seu núcleo sobretudo as considerações de prevenção geral.
Perante a acusação de que a pena de prisão é só um mal, deve-se também notar aquilo
que no sistema penal já existe com o intuito de reduzir ao mínimo esse mal. Há que
sublinhar que a condenação à prisão se pretende estritamente residual através de um
reforço das medidas alternativas à privação da liberdade e que, nos casos em que tenha
de ser aplicada, a pena de prisão deve nortear-se pelo princípio da “oferta de
socialização”782.

781
Claus ROXIN, (La evolución de la Política criminal, el Derecho penal y el Proceso penal, tirant lo
blanch, Valência, 2000, ps 86-7), que acrescenta que «também aqui reside a diferença face à teoria
sistémica funcionalista, que “desaloja” as considerações empíricas sobre a eficácia do direito penal,
porque a pena “significa” o restabelecimento da identidade social, mesmo quando não consiga nada sob o
ponto de vista empírico».
782
Dispõe-se logo no n.º 1 do artigo 2.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da
Liberdade que “a execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade visa a reinserção do
agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem
cometer crimes (…)”. Mas já na introdução constante do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, se
afirmava que “um dos princípios basilares do diploma reside na compreensão de que toda a pena tem de
ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta (…). No entanto, o atribuir-se à pena um
conteúdo de reprovação ética não significa que se abandonem as finalidades da prevenção geral e especial
nem, muito menos, que se sugira o alheamento da recuperação do delinquente (…). A esta luz não será,
pois, difícil de ver que também a tónica da prevenção especial só pode ganhar sentido e eficácia se houver
uma participação real, dialogante e efectiva do delinquente. E esta só se consegue fazendo apelo à sua
total autonomia, liberdade e responsabilidade”. Com particular significado no contexto da compreensão
da justiça penal à luz da crítica restaurativa, acrescenta-se naquela introdução que “não se abandona o
delinquente à pura expiação em situação de isolamento – cujos efeitos negativos estão cabalmente
demonstrados – nem se permite que a administração penitenciária caia em estéreis omissões e empregue
pedagogias por cujos valores, muitas vezes, o delinquente não se sente motivado nem, o que é mais grave,
reconhece neles qualquer forma de comparticipação (…). No sentido de superar esta visão tradicional, o

450
Não obstante, aquilo que pode ainda, a um outro nível, questionar-se é a
bondade desta pena de prisão que, mesmo quando não é efectivamente aplicada porque
conhece muitas alternativas, continua a estender o seu âmbito de cominação, agora
enquanto “pena privativa da liberdade abstracta”, associada a uma intervenção penal de
cariz simbólico. De facto, para Autores como Luigi STORTONI, a “crise da pena
privativa da liberdade” manifesta-se também através de um entendimento de que ela “é
necessária como previsão abstracta mas não o é na sua efectiva aplicação”. Ainda nas
suas palavras, «trata-se de uma “pena privativa da liberdade abstracta”, que outorga a
qualificação de “penal” ao facto, que assim tem a capacidade de etiquetar
potencialmente o sujeito. É aqui que reside o seu efeito dissuasor, o que faz com que a
pena efectiva seja cada vez menos necessária»783.
A linha de reflexão essencial que se julga poder extrair deste questionamento
prende-se com a necessidade de um alargamento da reflexão crítica sobre a pena
privativa da liberdade: a uma fase que é sobretudo de rejeição da sua aplicação efectiva
por força do reconhecimento dos males associados à sua execução, sucede uma outra
fase em que se alarga essa crítica à mera cominação abstracta da prisão,
independentemente da sua efectiva aplicação.
Finalmente e em certo jeito de síntese, julga-se que, com relevância para fundar
a rejeição da privação da liberdade (a não ser, talvez, em casos excepcionais de absoluta
inexistência de alternativa), pode afirmar-se que a prisão procura legitimar-se através de
ideias que correspondem, com frequência, a ficções: por um lado e a montante, uma
ficção de culpa; por outro lado e a jusante, uma ficção de ressocialização.

presente diploma consagra, articulada e coerentemente, um conjunto de medidas não institucionais que
facilita e potencia, sobremaneira, aquele desejado encontro de vontades. Verifica-se a assunção
conscienciosa daquilo a que a nova sociologia do comportamento designa por desdramatização do ritual e
obrigam-se as instâncias de execução da pena privativa da liberdade a serem co-responsáveis no êxito ou
fracasso reeducativo e ressocializador”.
783
Luigi STORTONI, apresentação de Crítica y justificación del derecho penal en el cambio del siglo, El
análisis crítico de la Escuela de Frankfurt, coord. Arroyo Zapatero/Neumann/Nieto Martín, Colección
Estúdios, Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2003, ps. 14-16). O Autor reconhece,
porém, que apesar desta sua afirmação de que há cada vez mais uma “pena privativa da liberdade
abstracta”, “as prisões estão muito longe de estar vazias”. E interroga-se, consequentemente, sobre a
hipótese de conciliar este dado com a hipótese antes formulada sobre aquela natureza abstracta da pena de
prisão. Considera, com pertinência, que a explicação talvez possa ser encontrada através de uma análise
da população carcerária, essencialmente composta por agentes de crimes de pequena gravidade
relacionados com a toxicodependência e com uma grande representação de reclusos de países exteriores à
União Europeia. E conclui que “indubitavelmente, quanto a estes sectores da delinquência, a repressão
penal pretende ser efectiva”.

451
Esta “ficção de ressocialização” merecerá reflexão autónoma no ponto seguinte.
Já o esclarecimento daquilo que se pretende significar quando se refere a “ficção de
culpa” pode carecer de maiores precisões.
Com a exigência de culpa enquanto pressuposto e limite da pena, pretende-se
restringir a condenação àqueles a quem se pode dirigir um juízo de censura – ou, de
forma mais simples, pretende-se punir apenas aqueles que o merecem (ainda que não
necessariamente todos aqueles que o merecem) e nunca em medida superior a esse
merecimento. Todavia, talvez não sejam totalmente irrazoáveis as dúvidas quanto à
forma como este princípio da culpa tem cumprido o papel que lhe cabe. Essas dúvidas
relacionam-se, de forma genérica e como antes já se referiu, com a mencionada “erosão
do princípio da culpa”, na denominação utilizada por Winfried Hassemer, e podem
manifestar-se através de um certo “alheamento decisional” face àquelas que são as
concretas circunstâncias do agente do crime784. Na doutrina portuguesa, a questão
mereceu – como também já se sublinhou – a ponderação de Maria Fernanda PALMA, a
partir da afirmação da “necessidade de interpretar criticamente e contra a corrente um
sistema jurídico que tem esvaziado de sentido ético a culpa penal e limitado a desculpa
a uma total excepcionalidade”785.

1.2. A ideia de socialização

Mesmo numa justiça penal preocupada com a pacificação da comunidade em


torno da reafirmação da validade dos bens jurídicos essenciais não deve, porém,
desconsiderar-se a preponderância da prevenção especial de socialização786. Nas

784
Com interesse para um aprofundamento da questão, veja-se a afirmação de Loïc WACQUANT (Punir
les Pauvres cit., p. 30) de que “enquanto a ideologia neoliberal em matéria económica assenta na
separação estanque entre o económico (pretensamente regido pelo mecanismo neutro, fluido e eficiente
do mercado) e o social (habitado pelo arbítrio das paixões e dos poderes), do mesmo modo a nova doxa
penal vinda dos Estados Unidos e que hoje prevalece no continente europeu postula uma cisão clara e
definitiva entre as circunstâncias (sociais) e o acto (individual) do delinquente, as causas e as condutas, a
sociologia (que explica) e o direito (que regula e sanciona)”.
785
Fernanda PALMA, O Princípio da Desculpa em Direito Penal, Almedina: 2005, prólogo.
786
Reconhece-se a aparente contradição que decorre da assimilação da pacificação comunitária ao
conceito de prevenção especial. O que se julga, porém, é que tal pacificação supõe dois momentos: num
primeiro, o conhecimento da aplicação da sanção ao agente pacifica a comunidade relativamente à
vigência do direito; num segundo, o conhecimento da não reincidência do agente (que já cumpriu a sua
pena) pacifica a comunidade relativamente à eficácia do direito vertida na eficácia do modelo de controlo
do crime. Neste sentido, a possibilidade de socialização através da pena deve ser vista sobretudo como
um direito do condenado, mas que ainda corresponde ao interesse da comunidade. A compreensão do
pensamento da socialização não pode prescindir de uma ponderação do contributo da Nova Defesa Social,
que, por sua vez, supõe uma reflexão em torno da integração do contributo do Iluminismo Penal e da sua
vocação humanista, das orientações associadas à Escola Clássica do direito penal, assim como de algumas

452
palavras de Manuel da COSTA ANDRADE, “é seguramente à prevenção especial de
ressocialização que a Constituição da República reserva o primado. Mais: pode mesmo
dizer-se que a Constituição erige a ressocialização em imperativo ou obrigação do
Estado”. E o Autor acrescenta que “enquanto a culpa emerge como exigência da
dimensão liberal-formal do Estado, a ressocialização radica directamente na vertente
material-social do mesmo Estado de direito”787.
Ainda que se conheça a vaga de críticas a que esta ideia de socialização vem
sendo sujeita788 – muitas vezes por força de um seu incorrecto entendimento ou, pelo
menos, de uma sua definição que vinca a vocação para a transformação coactiva do
agente com desrespeito pelas suas idiossincrasias e convicções, em nome de um

ideias centrais da Escola Positiva. O que parece central no pensamento de Marc ANCEL é a sua
afirmação da necessidade de a pena visar simultaneamente proteger a sociedade contra os delinquentes e
munir os indivíduos dos instrumentos contra o risco de cair ou de reincidir na delinquência, o que assume
um sentido humanista associado à reintegração na sociedade. Assim, aquilo que a anteposição da palavra
“nova” ao conceito de “defesa social” sobretudo significa é, segundo se crê, o abandono da ideia de que a
defesa da sociedade legitima a repressão, por mais severa que seja, das infracções cometidas e a adopção
do novo entendimento de que aquilo que é melhor para o indivíduo, porque mais ressocializador, vir-se-á
a revelar também melhor para a sociedade. De forma simplificada, pode afirmar-se que a Nova Defesa
Social logra ultrapassar muitas das clivagens entre a Escola Clássica e a Escola Positiva, integrando o
fundamento humanista e racionalista daquela com a pretensão de intervenção sobre o indivíduo (e de
intervenção que vá para além do castigo, que cumpra uma função integradora do indivíduo na
comunidade) que caracteriza esta última. Compreende-se bem que o pano de fundo para o fortalecimento
da Nova Defesa Social tenha sido o período posterior à II Grande Guerra, destacando-se a fundação por
Filippo Gramatica do Centro de Estudos de Defesa Social e o posterior contributo de Marc Ancel, com
uma participação importante no denominado “Programa Mínimo”. Este foi relevante como forma de
ultrapassar as divergências entre a concepção mais extremada de Gramatica (e a sua intenção de
substituição do direito penal por um direito de defesa social) e uma perspectiva mais moderada
(suportada, entre outros, pelo próprio Marc Ancel). Em 1954, este Autor publicou a sua obra de
referência, La Défense Sociale Nouvelle, que contribuiu para a sedimentação das ideias já contidas
naquele “Programa Mínimo”. Entre os postulados da Nova Defesa Social, contam-se a importância
atribuída à ressocialização do delinquente através de uma adequada conformação da execução da pena e
da rejeição de um seu carácter exclusivamente retributivo, assim como a afirmação da natureza de ultima
ratio da intervenção penal. Refere-se agora a existência de uma Novíssima Defesa Social, surgida com a
aprovação, em 1985, de uma adenda àquele Programa Mínimo, visando esclarecer alguns dos postulados
básicos do movimento. Com particular interesse na perspectiva daquele que é o objecto deste estudo, deve
considerar-se a forma como, entre alguns dos cultores da Nova Defesa Social, se preconiza uma certa
desjudiciarização e a consequente solução dos conflitos criminais, sempre que possível, sem intervenção
(ou com a menor intervenção possível) das instâncias formais de controlo (Cfr. Marc ANCEL, La
Défense Sociale Nouvelle: un mouvement de politique criminelle humaniste, 3.ª ed. corrigida e
aumentada, Paris: Cujas, 1981).
787
Manuel da COSTA ANDRADE, “Constituição e Direito Penal”, in A Justiça nos dois lados do
Atlântico. Teoria e prática do processo criminal em Portugal e nos Estados Unidos da América, Lisboa:
Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 1998, ps. 207-8.
788
A crise do “modelo socializador” e da justificação que ele fornecia para a privação da liberdade como
pena é, de resto, com frequência apontada como um dos factores que contribuíram para o surgimento da
proposta restaurativa. Cfr., nesse sentido, Guadalupe Pérez SANZBERRO, Reparación y conciliación en
el sistema penal. Apertura de una nueva via?, Granada: Editorial Comares, 1999, p. 8. Em uma outra
perspectiva, Elena LARRAURI PIJOÁN aponta a conexão entre a sobreocupação das prisões americanas
e a necessidade de recurso a medidas desformalizadas de pacificação dos conflitos (“Las paradojas del
movimiento descarcelatorio en Estados Unidos”, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo
40, fasc. 3, 1987, p. 771 ss).

453
interesse comum alicerçado em uma unanimidade valorativa –, julga-se que só na
prevenção especial de socialização se encontra a chave para que a pena não seja só um
mal sem sentido. Daqui decorre a especial importância da execução da pena ainda em
uma perspectiva político-criminal789.
Não se desconhece que o pensamento socializador dominante na década de
sessenta e ainda no início dos anos setenta sofreu o embate de duras críticas790
provenientes de alas do pensamento aparentemente antagónicas: entre aqueles que
privilegiam a liberdade em detrimento da ordem, apontava-se à socialização a
desconsideração da autonomia da pessoa, vista enquanto mero objecto da intervenção
coactiva do Estado; entre aqueles que privilegiam a ordem em detrimento da liberdade,
apontava-se ao movimento socializador a ineficácia, comprovada pela inexistência de
uma queda significativa dos números da reincidência.
Simplificando o que antes se ponderou sobre os fins da pena, parece poder dizer-
se que, quando se considera o sentido da intervenção posterior ao cometimento de um
crime, podem elencar-se três ideias cujos méritos relativos constituíram, ao longo dos
tempos, campo para inúmeras discussões nos planos da filosofia penal, da doutrina geral
do crime ou da política criminal. A intervenção sobre o agente do crime poderia ser para
evitar a “reincidência”, para dissuadir os outros cidadãos ou para retribuir o mal do
crime através do mal da pena. À primeira associa-se o conceito da prevenção especial, à
segunda o da prevenção geral e à terceira o pensamento da retribuição penal. Os
argumentos de cada uma das teses foram-se nutrindo, ao longo dos tempos, também dos
insucessos apontados às suas concorrentes. Ou, porventura com mais exactidão, foram-
se nutrindo das insuficiências associadas às concretizações práticas decorrentes dos
modos como em cada momento se foram interpretando aquelas finalidades. Ora, foi
precisamente a associação da finalidade da prevenção especial ao ideário terapêutico (à
ideia de tratamento, se necessário coactivo) que sobretudo fez com que ela desse o

789
Maria Thereza Rocha de Assis MOURA, depois de enfatizar esse relevo político-criminal da execução
da pena privativa da liberdade, acrescenta que “não se pode perder jamais de vista que, na atualidade, a
pena não pode ser vista com a finalidade de vingança ou de retribuição, devendo ser levado em
consideração o princípio da humanização, com a busca da auto-estima e confiança do condenado, como
verdadeira ponte entre a prisão e a sociedade. Por este motivo, a opção de política criminal, na execução
penal, deve priorizar medidas que preservem o valor da dignidade da pessoa humana, estimulem
alternativas ao cárcere e possibilitem a redução dos efeitos negativos da prisionalização e do nível de
vulnerabilidade do preso” (“A política criminal na execução da pena”, Estudos em Homenagem ao Prof.
Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra Editora: 2010, p. 1330).
790
ROXIN situa essa tendência para o abandono da ideia de ressocialização por volta de 1975, “sobretudo
na América e na Escandinávia”, através de um movimento que ficou conhecido como neoclassicismo,
sobretudo dirigido contra as penas de duração indeterminada e contra o tratamento coactivo (in Derecho
Penal, Parte General, Tomo I cit., p. 88)

454
flanco a ambos os sentidos de crítica antes referidos: por um lado, o da sua oposição a
uma modelação do sistema de reacção ao crime ainda conforme com a protecção das
garantias fundamentais e, por outro lado, o da sua ineficácia791.
No contexto de uma análise da ideia de socialização, Anabela Miranda
RODRIGUES sublinha o aspecto positivo daquelas críticas baseadas na defesa da
autonomia do indivíduo, na medida da “atenção que concitaram sobre os direitos
fundamentais, designadamente, o direito à integridade física e psíquica, gravemente
atingido pela imposição coactiva de terapias médicas ou psicológicas tendentes à
modificação físico-psíquica do recluso”792.
Todavia, o facto de se chamar a atenção para alguns dos riscos associados a
certos programas ressocializadores não pode levar ao abandono do imperativo de oferta
de socialização pelo Estado punitivo, devendo antes fomentar o aperfeiçoamento do
conceito, dos objectivos perseguidos, assim como a uma reflexão sobre as condições
necessárias à sua efectividade.
Dito da forma que se pretende mais simples: (I) em um Estado de Direito Social,
a fonte de legitimação para a privação da liberdade radica na sua necessidade absoluta

791
Senho conhecida a importância que a ideologia terapêutica assumiu sobretudo nos países do norte da
Europa, adquire especial interesse a verificação do desencanto de Nils Christie, Autor norueguês e crítico
do sistema punitivo, relativamente ao “modelo do tratamento”. Depois de dar conta do movimento,
sobretudo posterior à II Grande Guerra, de defesa da intervenção terapêutica (que chegou a dar origem, na
Suécia, a uma proposta – vencida, todavia – de completa abolição da “velha lei penal e do conceito de
punição”, que deveriam ser substituídos por “medidas de defesa social”), CHRISTIE reconhece que a
partir dos anos setenta essas medidas terapêuticas “quase desapareceram”. E o Autor explica “a queda do
império” afirmando, entre outros aspectos, que “a hipocrisia do sistema tornou-se rapidamente
transparente. Um estudo depois do outro indicava que os centros de tratamento para criminosos afinal não
eram hospitais. Eram, de modo muito suspeito, parecidos com as prisões comuns e os funcionários “de
tratamento” parecidos com os funcionários prisionais, e os supostos pacientes eram também semelhantes
à velha clientela das prisões, só que com uma atitude ainda mais negativa face ao que lhes estava a
suceder do que aquela que era a opinião que os reclusos normais costumavam expressar. O tratamento
indeterminado para o crime era de forma óbvia sentido como consideravelmente mais doloroso do que a
antiga punição”. CHRISTIE resume o declínio do modelo terapêutico numa frase: “mostrou-se que o
sistema de tratamento não conseguiu tratar com sucesso”. Reconhece, porém, que este insucesso pode
ainda explicar-se, pelo menos parcialmente, pelo facto de nunca se terem tomado “medidas económicas e
sociais massivas” (Limits to Pain cit., ps. 20-26).
792
Anabela RODRIGUES, Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária, Coimbra: Coimbra Editora, 2000,
ps. 147-8. A Autora revela ainda que o abandono do pensamento socializador, nos Estados Unidos da
América, em detrimento de um modelo de justiça, dito neoclássico e alicerçado na retribuição, se
justificou também pela crítica da “discricionaridade quase ilimitada com que eram tomadas decisões, quer
quanto à determinação da medida da pena, quer quanto à libertação do condenado em cumprimento de
uma pena de prisão”. Outro segmento importante no pensamento da Autora prende-se com o
reconhecimento das dificuldades demonstradas pela prática da execução da prisão para lograr a
socialização e, nessa medida, a eleição da finalidade, menos ambiciosa, de evitar a dessocialização. Nas
palavras de Anabela RODRIGUES: “diz-se que, quando o contributo empírico põe em evidência os
efeitos dessocializadores da prisão, o principal objectivo deve ser não tanto a socialização quanto evitar a
dessocialização do recluso». Este objectivo pressupõe que se combatam os “efeitos negativos do sistema
prisional”, sobretudo de “infantilização” e de “subcultura criminal” (ob. cit., ps. 158-160).

455
sob o ponto de vista de defesa da comunidade e – cumulativamente – na humanidade da
sua execução; (II) deste imperativo de humanidade na execução decorre a
obrigatoriedade de oferta de instrumentos para a reintegração do agente na vida em
sociedade, pois que a única forma de não converter as prisões em depósitos de
indivíduos indesejáveis e segregados é oferecer ao recluso uma possibilidade de
projecção no futuro sem o cometimento de crimes793.
O pensamento da socialização, depois de ter sido confrontado com tempos
adversos, parece vir a recuperar algum fôlego. Sobre o assunto, Anabela Miranda
RODRIGUES afirma que «a evolução do pensamento socializador em relação aos
reclusos pode explicar-se de diversas maneiras: porque os resultados da política de
“justa punição” não são satisfatórios ou porque a acumulação de experiências permite a
concepção de programas mais precisos e as avaliações são realizadas de maneira mais
adequada e diferenciada. Mas, em última análise, a “relegitimação” da socialização deve
procurar-se na “cultura da transacção, da participação e do consentimento” em que se
busca hoje a “relegitimação do penal”»794.
Assumida esta posição quanto à irrenunciabilidade da oferta de socialização
enquanto fim da pena, sobretudo da privativa da liberdade, deve retomar-se a reflexão
sobre o facto de a pena de prisão poder ser vista, nos nossos dias, como o principal
ponto de fractura da justiça penal, caso se conclua pela contradição entre a finalidade
que lhe preside e aqueles que parecem ser, com frequência, os seus resultados795.
De uma mesma ideia inicial sobre as fragilidades da privação da liberdade
enquanto pena parecem decorrer duas distintas linhas de reflexão. Os cultores da
proposta restaurativa, por um lado, defensores de uma certa ideia de socialização que
passa pela reconstrução dos vínculos com a comunidade de próximos, acreditam que
essa socialização é favorecida pelo reconhecimento voluntário da responsabilidade pelo
agente e pelo seu esforço no sentido da reparação dos danos que causou. Por outro lado,

793
No n.º 1 do artigo 42.º do CP dispõe-se que “a execução da pena de prisão, servindo a defesa da
sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso,
preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”. O
legislador português, partindo daquele que parece ser o reconhecimento primeiro de que a execução da
pena de prisão serve antes de mais os interesses de defesa da sociedade perante o crime (e não dando
primazia, assim, a um hipotético interesse do condenado em ser afastado de um projecto de vida
criminoso), não deixa porém de impor que essa mesma execução seja condicionada pela oferta de uma
possibilidade de reintegração social ao recluso.
794
Anabela Miranda RODRIGUES, “Globalização, democracia e crime” cit., p. 303.
795
Veja-se, neste sentido, a afirmação de Claus ROXIN de que “todos os peritos estão de acordo que a
execução da pena constitui o ponto mais débil da nossa praxis do direito penal e que necessita de uma
reforma muito mais urgente que o direito material” (in Problemas Fundamentais de Direito Penal cit., p.
42).

456
aqueles que reconhecem a necessidade de subsistência da privação da liberdade como
pena e que também lhe outorgam uma finalidade socializadora, procuram transportar
para a execução da pena de prisão as notas de autonomia e de consenso que são
nucleares na proposta restaurativa. Ou seja: existe um elemento comum à teoria das
práticas restaurativas (que nunca podem desembocar na privação da liberdade) e às
concepções que vincam a finalidade socializadora da pena de prisão. Essa nota comum
pode encontrar-se na afirmação da necessidade de se privilegiar, na reacção ao crime, a
autonomia do agente e o diálogo796.

1.3. Uma referência breve à distância entre o abstracto e o concreto, entre a


teoria e a prática e entre o dever ser e o ser

Ao longo deste estudo, tem sido dedicado algum espaço a raciocínios de


contraposição sem os quais não se julga compreensível a proposta restaurativa, nem no
que tange ao seu surgimento, nem no que respeita à delimitação da sua diversidade e do
seu espaço face à justiça penal. Essas contraposições nem sempre tiveram um sentido
coincidente. Algumas tinham no horizonte uma certa distância entre uma teoria penal e
uma prática das instâncias formais de controlo que a não confirma ou concretiza nos
seus traços essenciais. Outras supunham antes uma compreensão do sistema jurídico-
penal como um sistema construído na base de juízos de abstracção, por oposição ao
conflito concreto que merece a qualificação como crime797.

796
A atenção que o pensamento da socialização não pode deixar de prestar às especificidades do agente e
ao modo como ele se vê a si próprio e àquilo que pode fazer para restaurar o seu sentido de
responsabilidade e a sua pertença ao grupo é devedora da ideia de diferenciação na penologia. Sobre o
assunto, cfr. o estudo de Maria Rosa CRUCHO DE ALMEIDA que, já na década de sessenta, definia a
penologia diferencial como “aquele ramo da investigação em criminologia que se propõe avaliar as
medidas penais em função de tipos de criminosos – já que nenhuma medida poderá ser adequada a todas
as espécies de casos – e calcular o resultado provável se, em vez de uma, outra tivesse sido utilizada” (“A
penologia diferencial. Um ramo crescente da investigação em criminologia”, Estudos “in memoriam”
Prof. Doutor José Beleza dos Santos”, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra: Coimbra
Editora, 1966, p. 160).
797
No contexto de uma reflexão sobre o presente e o futuro da ciência penal, Fernando V. VELÁSQUEZ
(“Del funcionalismo normativista al derecho penal de la integración”, Cuadernos de Derecho Penal, n.º 1,
Universidad Sergio Arboleda, Jan. 2009, p. 11) refere uma “aproximação da ciência penal à realidade
social. Afirma a necessidade de uma transição “do sistema para o problema”. Para a compreensão do
modo como «a partir da Idade Moderna, a nossa cultura – a cultura europeia – ao absolutizar a “ciência”
(decerto a “ciência” também em sentido moderno, que se emancipava da “sapiência”), postulou o
primado do teorético», cfr. António Castanheira NEVES, “A unidade do sistema jurídico: o seu problema
e o seu sentido (Diálogo com Kelsen)”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro,
II, Boletim da Faculdade de Direito, n.º especial, Coimbra, 1979, p. 73 ss. Criticamente, o Autor refere-se
à “frustrada tentativa (…) de reduzir o prático ao teorético (estrito), tentativa de que os jusnaturalismos
racionalista e iluminista foram as mais evidentes manifestações”.

457
A razão pela qual se julgou dever abrir agora um curto espaço de reflexão sobre
essas descontinuidades798 a partir do pensamento, que se crê emblemático, de alguns
Autores – e tendo-se sempre em conta o diverso sentido daquilo que se tem em mente
quando se contrapõe a teoria e a prática, por um lado, e o abstracto e o concreto, por
outro –, prende-se, não será excessivo repeti-lo, com a centralidade que essas
contraposições assumem para o ajuizamento do próprio sentido da justiça
restaurativa799. Sobra, porém, uma advertência. A referência a essas contraposições não
significa a afirmação de uma descontinuidade radical entre os conceitos contrapostos.
Essa absoluta cisão é hoje objecto de ampla rejeição. Como escreveu Fernando
PESSOA, “toda a teoria deve ser feita para poder ser posta em prática e toda a prática
deve obedecer a uma teoria (…) a teoria não é senão uma teoria da prática e prática não
é senão uma prática da teoria”800. Em rigor, mais do que em contraposições ou em
descontinuidades, deveria referir-se a relação, no sentido em que Arthur KAUFMANN
afirma que «o direito, no sentido exacto do termo, não se encontra nem só na norma,
nem apenas no caso, mas na sua recíproca referência, na sua relação. Podemos ignorar
aqui o problema de saber se a norma abstracta e o caso concreto, antes daquela sua
transformação, são “realidades naturais” ou objectos “contra-postos”. Um critério de
decisão e um problema juridicamente qualificado é que eles não são com toda a certeza,

798
Descontinuidades a que, como em momento anterior do estudo se já evidenciou, a própria doutrina
penal vem procurando reagir através da afirmação da relevância do problema. Também nesse sentido,
veja-se a opinião de Américo Taipa de CARVALHO de que “reagindo contra a perspectiva tradicional
que remetia o estudioso do direito penal para uma tarefa meramente técnica, dogmática e não
interveniente (…), a investigação juríco-penal tende, hoje, embora com hesitações, a projectar-se para
além da restrita dogmática, substituindo ou, mais correctamente, dando prioridade ao pensamento
problemático face ao pensamento sistemático-dedutivo. Tal viragem significa consciência de que o
sistema só logra sentido, e assim se legitima, quando ao serviço da justa resolução do caso concreto,
perdendo todas as suas possíveis virtualidades e convertendo-se, até, num obstáculo à realização da
Justiça, quando se fecha sobre si mesmo, absolutizando-se, e, assim, desvirtua o existente”
(“Condicionalidade sócio-cultural do direito penal”, Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M.
Paulo Merêa e G. Braga da Cruz, II, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LVIII, Coimbra, 1982, p.
1042).
799
De forma porventura simplista, o que sobretudo se pretende significar é que um dos factores que
condicionaram o surgimento da proposta restaurativa foi a distância entre uma certa teoria penal centrada
na defesa da liberdade e uma prática das instâncias formais de controlo com frequência pouco coerente
com aquela teoria. O que não obsta, naturalmente, à reflexão crítica agora sobre a justiça restaurativa sob
o mesmo enfoque: será a sua prática coincidente com a teoria que define as suas finalidades e os seus
procedimentos? Esta é a interrogação com que se confronta Kathleen DALY no seu estudo “Mind the
Gap: Restorative Justice in Theory and Practice”, Restorative Justice and Criminal Justice – Competing
or Reconciliable Paradigms?, Ed. Andrew von Hirsch/Julian Roberts/Anthony Bottoms/Kent
Roach/Mara Schiff, Oxford: Hart Publishing: 2003, p. 219 ss. Entre os gaps identificados pela Autora,
sobressaem a (in)existência de arrependimento do agente, o tratamento nem sempre respeitoso dos
participantes nas práticas restaurativas, a (in)existência da informação adequada a tomadas de decisão
esclarecidas, a (des)proporcionalidade dos deveres assumidos no acordo.
800
Fernando PESSOA, Obra Poética e em Prosa, introduções, organização, bibliografia e notas de
António Quadros, vol. III, Porto: Lello & Irmão – Editores, 1986, p. 1172.

458
pois estas últimas categorias, diferentemente daquelas primeiras, manifestam o modo
como a norma e o caso reciprocamente se relacionam. E é precisamente esta relação
que constitui aquilo que nós chamamos “direito”. Como escrevi noutra ocasião, o
direito é a “correspondência do dever-ser e do ser”»801. Conhece-se, ademais, a
afirmação de Luigi FERRAJOLI do carácter equívoco e causador de distorsão de
“dicotomias clássicas – como as de abstracto e concreto, universal e particular, geral e
individual, sistema fechado e sistema aberto (...)”802.
Comece-se, porém, por uma tentativa de ilustração dos conceitos de “abstracto”
e de “concreto” com inspiração em um estudo de Alessandro BARATTA, que se julga
que poderia ter sido pensado como enquadramento da própria proposta restaurativa: «a
relação de abstracção em que o Direito se encontra face ao real é frequentemente
interpretada como distância entre o abstracto e o concreto. Considera-se como
“concreto” o vivido, ou seja, as situações irrepetíveis da existência: pretende-se
sublinhar aqui a distância entre o drama existencial que os sujeitos vivem ou viveram
numa situação real da vida e a sua representação no teatro do direito». Baratta entende
que essa distância é particularmente evidente no processo penal. Quando se pretende
transpor esta linha de raciocínio para as práticas restaurativas, sempre se poderá dizer
que também nelas há já uma construção do acontecimento vivido anterior que foi o
crime, e que essa construção supõe uma abstracção. É, até certo ponto, verdade. Existe,
porém, uma diferença face à abstracção penal que se não julga despicienda: os artífices
desta abstracção inerente às práticas restaurativas são os actores do acontecimento real,
e não já os “actores institucionais” que, como nota BARATTA, estiveram “ausentes na
situação originária”803.

801
Arthur KAUFMANN, “Prolegómenos a uma lógica jurídica e a uma ontologia das relações –
Fundamento de uma teoria do direito baseada na Pessoa”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXVIII,
Coimbra, 2002, ps. 193-4.
802
Luigi FERRAJOLI, Derecho y Razón cit., ps. 163-5. O Autor acrescenta que “a equidade não pode ser
invocada para ultrapassar a lei, mas somente para a aplicar. A aplicação da lei ao caso concreto é na
realidade uma actividade cognoscitiva que exige, em simultâneo, como duas condições necessárias e cada
uma de elas insuficiente, tanto a verificação como a compreensão”. Com interesse para a refutação de um
certo sentido de crítica da teoria dita restaurativa ao funcionamento da justiça penal, FERRAJOLI
esclarece ainda a sua opinião da indesejabilidade de uma “compreensão perfeita”, conhecedora de todas
as circunstâncias particulares, que poderia desembocar na ideia de que “tout comprendre est tout
pardonner”, o que “está excluído pela estrutura legal do ordenamento”.
803
Para Alessandro BARATTA, “a operação característica do processo penal é dizer se subsistem as
condições previstas pelo direito para prescrever uma intervenção de tipo repressivo sobre o conflito. As
concretas situações conflituais encontram no processo penal um laboratório de transformação teatral,
onde são encenadas e os actores são comprometidos com papéis estandardizados. A estes “actores”
agregam-se, no teatro processual, actores “institucionais” que estiveram ausentes na situação originária.
Os termos do conflito vão-se afastando, mais ou menos radicalmente, daquela. A comunicação existencial
entre as partes originárias fica supensa pela intervenção do juiz como novo protagonista. Os espectadores

459
Pondere-se sucintamente, agora, a distância entre a teoria e a prática. Numa
reflexão orientada, em última análise, por uma ponderação em torno da liberdade e do
poder, Ferrajoli enceta – como bem nota Norberto BOBBIO804 – uma crítica, quer dos
fundamentos gnoseológicos e éticos do direito penal, quer da praxis, “fugindo dos
vícios opostos da teoria sem controlos empíricos e da prática sem princípios”. E
BOBBIO acrescenta que o pensamento de Ferrajoli assenta numa filosofia política em
que o Estado encontra o seu fundamento na defesa nos direitos fundamentais do
cidadão, sendo que não basta o reconhecimento de tais direitos, impondo-se também a
sua efectiva protecção. Se tivermos em conta que o Estado em que se acredita não é só
um “Estado liberal protector dos direitos de liberdade” mas ainda um “Estado social
chamado a proteger também os direitos sociais”, torna-se fácil a junção destas várias
peças na conclusão – no que respeita às questões atinentes à pena de prisão que agora se
analisam – de que não é suficiente, ao nível da teoria dos fins das penas, defender a
prevenção especial de socialização, antes se impondo que da concreta execução da pena
privativa da liberdade decorra de facto tal possibilidade805.
Ora, uma das questões que não se pode escamotear – até para se ajuizar de forma
que se pretende realista sobre as proximidades e as distâncias da justiça penal e da
justiça restaurativa – é a da lonjura que a vários propósitos se pode afirmar entre uma

imediatos são substituídos pela esfera de publicidade do processo, a opinião pública. Os interesses e as
necessidades que confluem são reconstruídos como direitos e como ilícitos. O drama da vida é substituído
por uma liturgia em que os actores originais são largamente substituídos e representados por profissionais
do rito” (“La vida y el laboratório del derecho. A proposito de la imputación de responsabilidad en el
proceso penal”, Doxa, 5, 1988, p. 277-8).
804
Norberto BOBBIO, Prólogo à obra de Luigi FERRAJOLI Derecho y Razón – teoria del garantismo
penal, 9.ª ed., Editorial Trotta, Madrid, 2009, p. 13 ss. Aquele Autor realça a ideia inspiradora do
impressionante estudo de Ferrajoli: “a ideia ilustrada e liberal (…) segundo a qual, perante a grande
antítese entre liberdade e poder que domina toda a história humana (…) é boa, e portanto desejável e
defensável, a solução que amplia a esfera da liberdade e restringe a do poder, ou, por outras palavras,
aquela para a qual o poder deve ser limitado a fim de permitir a cada um gozar da máxima liberdade
compatível com a igual liberdade de todos os outros”.
805
Winfried HASSEMER (Persona, Mundo y Responsabilidad cit., p. 204 ss) afirma que “a questão do
sentido da pena tem sido até agora formulada com demasiada estreiteza, inspirando-se apenas na
conjunção de todas as normas penais. A pena encontra o seu sentido como instrumento do direito penal na
sua globalidade, incluindo o direito processual, e este ramo do ordenamento não só formula proibições,
mas também desenha o padrão e as estruturas de uma relação, que respeite os direitos humanos e seja
demarcada pelo Estado de Direito, entre a suspeita de um facto, o delito, o delinquente e a testemunha”. O
Autor sublinha a importância daquilo que denomina «cultura da “praxis” penal», e que abrange “as
normas que limitam determinados ataques, que contêm o uso da força, que asseguram a liberdade; ou
seja, as normas que se encontram no direito processual penal, no direito constitucional judicial e na
Constituição”. Não é, porém, exactamente nesta acepção que no actual momento deste estudo se adopta o
conceito de praxis e se sustenta a sua relevância: por praxis entende-se aqui, antes, a forma como as
instâncias formais de controlo concretizam na aplicação concreta do direito penal aquelas que são as suas
finalidades teóricas.

460
teoria penal globalmente humanista806 e uma prática com frequência muito menos
humanizada. O reconhecimento de que assim é ultrapassou há muito os estudos
orientados para a sociologia do direito e adquiriu espaço em obras dedicadas à própria
doutrina penal. Não é, assim, sem razão que Jorge de FIGUEIREDO DIAS, por
exemplo, sob o título “as resistências da praxis”, afirma, em amplo estudo dedicado às
consequências jurídicas do crime, que “não é pois na configuração teórica do sistema
sancionatório português e na sua adequação ao paradigma emergente da política
criminal que podem suscitar-se dificuldades, se não que, como sugerimos, na forma e
na extensão com que aquele sistema tem sido levado à prática”807.
A razão pela qual se abriu este curtíssimo parêntesis é, sublinhe-se, apenas uma:
entender a crítica que o pensamento restaurativo dirige à justiça penal compreendendo
que essa crítica se funda mais nesta prática do que naquela teoria808. Melhor dizendo: se
há alguma crítica que é, como se viu, dirigida a pilares estruturais da própria doutrina
penal, existem outros juízos de desvalor apontados antes à discrepância entre aspectos
de uma teoria, que se aceitam, e as suas concretizações práticas, que já não se admitem.
O que não parece, note-se, isento de qualquer sentido. Entendê-lo é importante para não
se correr o risco de rejeitar toda aquela crítica restaurativa, considerando-a irrazoável
porque errada face à teoria penal (ou, pelo menos, face a uma certa dogmática penal e
face a uma certa política criminal).
Não vai aqui implícita a negação da relevância do dever ser que uma dada teoria
penal expressa na medida em que o ser associado a uma determinada prática o infirme.

806
Jesus-María SILVA SÁNCHEZ, a partir de uma reflexão sobretudo centrada na doutrina germânica,
distingue, porém, uma “política criminal ilustrada” ou “científica” de uma “política criminal real” e
acrescenta que “a primeira estaria comprometida com a observância dos direitos humanos e as exigências
do Estado de Direito (…). A segunda, pelo contrário, ter-se-ia libertado de tais cadeias para iniciar uma
cruzada contra o mal” (in “Retos científicos y retos políticos de la ciência del Derecho Penal”, Crítica y
justificación del derecho penal en el cambio del siglo, El análisis crítico de la Escuela de Frankfurt,
coord. Arroyo Zapatero/Neumann/Nieto Martín, Colección Estúdios, Ediciones de la Universidad de
Castilla-La Mancha, 2003, ps. 35-6).
807
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime,
reimpressão, Coimbra Editora: 2005, p. 85.
808
Reconhece-se, claro está, a dificuldade da crítica dessa prática, aberta, como refere Vincenzo
MILITELLO, a “valorações diferenciadas” (in “Dogmática penal y política criminal en perspectiva
europea”, Crítica y justificación del derecho penal en el cambio del siglo, El análisis crítico de la Escuela
de Frankfurt, coord. Arroyo Zapatero/Neumann/Nieto Martín, Colección Estúdios, Ediciones de la
Universidad de Castilla-La Mancha, 2003, p. 42). Nas suas palavras, a propósito das relações entre “a
prática e a teoria do direito penal”, contrapõe-se “um sistema fechado e formalmente isento de
contradições lógicas a um sistema aberto a valorações diferenciadas, na medida em que se funda na
pluralidade dos sujeitos e das formas de criação, interpretação e valoração das normas”. O que parece
interessante sublinhar é que essa prática que vive de valorações diferenciadas feitas por distintos sujeitos
está também, ela própria, sujeita a avaliações que repousam em valorações diferenciadas. O que,
naturalmente e tudo somado, aumenta a complexidade da crítica.

461
Como bem nota Massimo PAVARINI, (remetendo também para o pensamento de
Ferrajoli e no contexto de uma crítica de aspectos do pensamento de Baratta, que
PAVARINI considera ilegítimo na medida em que retira ilações atinentes ao “dever ser”
a partir do de uma análise do “ser”), «é metodologicamente irregular (…) invalidar o
plano do “dever ser” através do do “ser”, ou seja, confundindo dois planos de diversa
ordem: o naturalista e o normativo»809. Todavia, crê-se que também se não pode rejeitar,
tomando-a por inadmissível, uma crítica da justiça penal que faça sobressair as
contradições do seu “ser”. E é esse o aspecto que aqui se quer enfatizar, com um intuito
de compreensão da proposta restaurativa. Porque também se não pode desconsiderar a
importância do “ser” invocando a adequação do “dever ser”. Como afirma BARATTA,
«há que conceber o “dever ser” não só como uma oposição da realidade, mas sim,
sobretudo, como potencialidade concreta de satisfação das necessidades historicamente
determinadas pelos indivíduos»810.
Esta contraposição, ainda que sob distintas formulações é, repita-se, reconhecida
em vários estudos da dogmática penal que referem “a distinção entre mundo da vida e
sistema”811. Ora, o que se também pretende sublinhar a traço grosso é a vantagem que

809
Massimo PAVARINI (“Para una crítica de la ideologia penal. Una primera aproximación a la obra de
Alessandro Baratta”, Serta in Memoriam Alexandri Baratta cit., p. 132). O Autor acrescenta que Baratta
“quer desnaturalizar definitivamente os princípios do moderno direito penal e mostrar a sua natureza
mítica; mas, sobretudo, quer que se compreenda como através destes princípios a narrativa penal da
modernidade contribui para esconder as funções latentes do sistema de justiça penal”. PAVARINI vai,
porém, mais longe na sua apreciação da crítica de Baratta. Na sua opinião, “a crítica da ideologia penal
foi concebida por Baratta como passagem necessária para um trabalho de refundação daquela ciência
penal, com a convicção de que o barco da dogmática penal não estava em condições de poder orientar-se
com os meios de que dispunha a bordo. A dogmática, de facto, tinha levado a cabo uma cisão com as
ciências sociais, incorporando apenas algumas delas (…), levada por uma necessidade de legitimação
própria”. A razão pela qual se julga interessante a reprodução deste trecho prende-se com a proximidade
metodológica entre o caminho que Pavarini afirma ter sido percorrido por Baratta e o caminho do
surgimento e da expansão da própria justiça restaurativa: a afirmação da necessidade de uma alternativa a
partir da crítica da justiça penal fundada na incongruência entre o seu ser e o seu dever ser. E, ainda, a
integração, para a construção dessa alternativa, dos conhecimentos provenientes de outros campos do
saber social, nomeadamente os atinentes à demonstração de novos danos associados ao crime (numa
perspectiva individual e numa perspectiva relacional) e à importância da oferta de uma possibilidade de
reparação. A centralidade desta oposição entre o “ser” e o “dever ser” é patente logo nos primeiros
estudos de Alessandro BARATTA (considere-se, a título de exemplo, o seu estudo Ricerche su “essere”
e “dover essere” nell’esperienza normativa e nella scienza del diritto, Milão: Giuffre, 1968).
810
Alessandro BARATTA, “Problemas abiertos en la filosofia del derecho”, Doxa, n.º 1, 1984, p. 37.
811
Augusto SILVA DIAS, logo na introdução do seu “Delicta in Se” e “Delicta Mere Prohibita” – Uma
Análise das Descontinuidades do Ilícito Penal Moderno à Luz da Reconstrução de uma Distinção
Clássica (Coimbra Editora: 2008, ps. 19-20) afirma que “a distinção entre mundo da vida e sistema, de
proveniência habermasiana, constituirá a referência de filosofia e de teoria social do presente trabalho”. E,
com a preocupação de precisar os conceitos, acrescenta que “em termos muito sumários, o mundo da vida
é o âmbito constituído pelo meio de comunicação simbolicamente generalizado que é a linguagem, ao
passo que os sistemas são constituídos por meios reguladores específicos deslinguistificados”. E esclarece
que Habermas, depois de rever a sua posição, acabou por atribuir “ao sistema jurídico precisamente a
função de conversor, que realiza e assegura a comunicação entre mundo da vida e sistema”.

462
pode advir, para o próprio pensamento penal, de um apontar das suas insuficiências,
quer “endógenas”, quer (no que agora mais interessa) na sua aplicação à realidade
“exógena” – trata-se de uma crítica, se bem se vê o problema, que pode ser útil à
evolução do sistema e útil à evolução do “mundo da vida”.
Uma nota última apenas para reconhecer que as considerações superficiais que
se vieram de tecer sobre aspectos merecedores de outro grau de problematização não
devem ser desligadas de uma ponderação, no seio da própria filosofia do direito, da
“disputa entre o idealismo e o realismo” que, segundo Carlos CREUS, se pode afirmar
“desde o racionalismo do século XVIII até aos dias de hoje”812. Esse será um dos panos
de fundo reflexivos da crítica feita pelos cultores da proposta restaurativa ao sistema de
justiça penal: a assintonia entre o dever ser e o ser. Apesar de não ser um dos principais
ingredientes a partir do qual este estudo se vai confeccionando, era-lhe devida uma
referência.

2. Os principais espaços de encontro (ou os afloramentos restaurativos na justiça


penal portuguesa)

2.1. Delimitação do problema

O que antes se afirmou sobre o sentido da justiça restaurativa e sobre as


insuficiências apontadas à justiça penal carece de uma reflexão crítica sobre o nosso
modelo de resposta ao crime. No fundo, o que se pretende questionar é se existe de facto
algo de novo naquele pensamento – algo que justifique a afirmação de novas exigências
na forma como se lida com o crime – ou se, pelo contrário, a justiça penal que temos é
já restaurativa. Dito da forma mais simples: esboçados os objectivos da justiça
restaurativa e olhando agora para o sistema penal, poder-se-á concluir que aqueles
objectivos já têm satisfação através de modelo penal de reacção ao crime (ainda que de

812
Carlos CREUS («La “nueva filosofia” y la Filosofia del Derecho», Homenaje al Dr. Marino Barbero
Santos: in memoriam, vol. I, Dir. Arroyo Zapatero/Berdugo Gómez de la Torre, Ediciones de la
Universidad de Castilla-La Mancha/Ediciones Universidad de Salamanca, 2001, p. 177). O Autor
acrescenta que “desde então, emergiu na ciência jurídica a disputa entre o idealismo e o realismo”. E
identifica algumas das concretizações que cada um deles foi conhecendo. Assim, afirma que o idealismo
se bifurcou em duas grandes correntes: “a do jusnaturalismo com a ciência do direito atada à lógica
(racionalidade) do que se via como conatural ao homem, e a do positivismo jurídico com a ciência do
direito atada à expressão da lei”. Por sua vez, também vê no realismo algumas vertentes principais, de que
serão exemplo “o historicismo, com a ciência do direito atada às ciências culturais (a sociologia em
sentido amplo)”, ou o positivismo científico, relativamente ao qual se afirma que a ciência do direito fica
amarrada a um conjunto de representações com origem nas ciências ditas exactas.

463
forma mediata e não principal), ou, inversamente, justificar-se-ão outros sentidos de
resposta exteriores à justiça penal?
A justiça restaurativa foi definida através de duas notas essenciais, uma atinente às
finalidades, a outra atinente ao processo.
No que respeita ao primeiro ponto, considerou-se que é finalidade das práticas
restaurativas enfrentar o crime na sua dimensão de conflito (inter)pessoal, com o intuito
de pacificar esse conflito através de uma solução que a vítima considere reparadora e
que signifique, na perspectiva do agente, uma assunção de responsabilidades
facilitadora do seu acolhimento na comunidade e de uma conduta responsável no futuro.
O que importa agora considerar é se a justiça penal não atende já de forma suficiente
também a essa dimensão do conflito, ocupando-se da vítima e permitindo a reparação
dos danos que lhe foram causados. A questão será considerada de seguida, sob o lema a
“descoberta” da vítima e a justiça penal portuguesa.
Quanto ao segundo aspecto, cumpre inquirir se o direito processual penal acolheu já,
de forma suficiente, institutos orientados para a valorização da autonomia na gestão e
solução do conflito. O problema merecerá reflexão posterior e sujeita ao mote os
mecanismos de consenso no direito processual penal português.

2.2. A “descoberta” da vítima e a justiça penal portuguesa

2.2.1.   Considerações iniciais – que vítima e que protecção?

É conhecida a acusação de que a justiça penal esqueceu a vítima813. Essa ideia,


nas suas várias implicações, constitui o cuore das inúmeras obras que desde há algumas

813
Tomar-se-á como ponto de partida para esta reflexão o estudo «A “redescoberta” da vítima e o direito
processual penal português», publicado nos Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de
Figueiredo Dias, Org. Manuel da Costa Andrade e outros, vol. III, Boletim da FDUC, Coimbra:
Universidade de Coimbra/Coimbra Editora, 2010, p. 1133-1153. Nas palavras de Antonio García-Pablos
de MOLINA, «a vítima do crime padeceu de um secular e deliberado abandono. Teve o seu protagonismo
máximo – a sua “idade de ouro” – durante a justiça primitiva, sendo depois drasticamente “neutralizada”
pelo sistema legal moderno (…). O sistema legal – o processo – nasce já com o propósito deliberado de
“neutralizar” a vítima, distanciando os dois protagonistas que se enfrentam no conflito criminal,
precisamente como garantia de uma aplicação serena, objectiva e institucionalizada das leis ao caso
concreto» (Criminología – Una introducción a sus fundamentos teóricos, 6.ª ed., Valência: tirant lo
blanch, 2007, ps. 94-96). No contexto de uma reflexão sobre a proposta restaurativa e na doutrina
portuguesa, considere-se a título de exemplo a afirmação de Caetano DUARTE de que “a emoção do
drama social gerado pelo evento criminoso passou a ficar nas mãos de um procurador público, mais
interessado na satisfação do cumprimento da norma, através da condenação do delinquente, do que na
satisfação dos particulares anseios de justiça da vítima” (in “Justiça restaurativa”, Sub Judice – Justiça e
Sociedade, Lisboa: Ideias, n.º 37, Out-Dez de 2006, p. 47).

464
décadas são dedicadas à vitimologia814 e estendeu-se ao cidadão que é leigo
relativamente às ciências criminais, condicionando de forma negativa o seu juízo sobre
o modelo penal de reacção ao crime.
Não obstante, também muito se tem escrito e dito sobre o facto de se viverem
agora tempos de redescoberta da vítima815. A vítima do crime, que tinha sido
esquecida, estaria a reposicionar-se enquanto peça importante do nosso modelo de
reacção ao crime. A partir destas ideias iniciais, crê-se que se justifica uma brevíssima
clarificação daquilo a que se tem associado esse esquecimento da vítima para, em
momento posterior, se encetar a busca de um sentido para a afirmação daquela sua
descoberta.

2.2.2.   O esquecimento da vítima

A primeira pergunta a fazer é o que deve entender-se por esquecimento da


vítima. É frequente, entre os cultores do pensamento vitimológico, associar a “idade de
ouro” da vítima ao período anterior ao fortalecimento do Estado Punitivo e a sua “idade

814
Neste sentido, cfr., por todos, Robert CARIO, Victimologie: de l’effraction du lien intersubjectif à la
restauration sociale, Vol. I, 3ª ed., Paris: L’Harmattan, 2006. A partir da afirmação da relevância que
hoje as sociedades atribuem à insegurança, o Autor questiona a sua porventura demasiado frequente
associação à criminalidade e considera que “a insegurança criminal está longe de ser a fonte exclusiva do
mal-estar individual e social de muitos dos nossos concidadãos”. Afirma, para mais, o relativo
desinteresse com que se enfrentam outros factores de insegurança, como os riscos profissionais, a doença,
as catástrofes ou os riscos ecológicos e considera que a hipervalorização do factor criminal tem por
objectivo mascarar aqueles outros. Daqui conclui pela necessidade de “relativizar” a importância da
vitimização criminal (ps. 12-13). Não deixa, porém, de sustentar a necessidade de um movimento de
descoberta da vítima criminal que desencadeie a garantia do um seu “acompanhamento jurídico,
psicológico e social”, porque “importa garantir à vítima e/ou aos seus próximos um processo equitativo,
que respeite a dignidade devida a todas as pessoas, de modo a oferecer-lhes a reparação mais global e
integral possível” (ob. cit., p. 297).
815
As razões pelas quais se prefere o conceito de “descoberta da vítima” ao de “redescoberta da vítima”
foram já sucintamente elencadas nas páginas inicias deste estudo, a propósito do relevo assumido pela
vitimologia para a compreensão das origens do pensamento restaurativo. Um dos Autores em cujo
pensamento se encontra a sustentação da ideia de que há uma ruptura antropológica na actual descoberta
da vítima, que não se confunde com um qualquer regresso ao passado, é Michel WIEVIORKA. Este
acentua o facto de as sociedades tradicionais reconhecerem o sofrimento mas preocuparem-se mais com o
significado da violência do ponto de vista da comunidade do que com as dificuldades concretas da vítima
(in La Violence, Paris: Hachette, 2005, p. 81). Tornou-se corrente, no actual discurso político-criminal, a
afirmação de que a vítima deve ser destinatária das medidas. Neste sentido, por exemplo, cfr. Paulo Pinto
de ALBUQUERQUE (“O que é a política criminal, porque precisamos dela e como a podemos
construir?”, RPCC, ano 14, n.º 4, Out-Dez 2004, p. 449), que aponta, entre os objectivos da política
criminal repressiva, “favorecer a posição jurídica da vítima (através da concessão de especial relevância à
compensação do dano, ao perdão e à desistência da queixa) e humanizar o processo penal aos olhos da
vítima (informar, acompanhar, proteger, inquirir uma só vez)”. Em sentido oposto, de forma muito crítica
relativamente a esta “redescoberta da vítima”, cfr. Peter-Alexis ALBRECHT, que refere um “resultado de
ameaça dos direitos fundamentais pelo privilégio do poder privado” e uma deslocação do equilíbrio
processual “em prejuízo dos acusados” (Criminologia – Uma Fundamentação para o Direito Penal, trad.
de Juarez Cirino dos Santos/Helena Cardoso, Rio de Janeiro, Lumen Iuris/ICPC, 2010, ps. 582-585).

465
de trevas” ao advento da justiça penal moderna816 – e deve ser, pelo menos, desafiante
para os penalistas a inversão de valoração que subjaz a esta afirmação.
A justiça penal contemporânea, credora do pensamento iluminista e gizada a partir
de dois pólos – a ordem e a liberdade –, parece erigir como destinatários das suas
preocupações sobretudo a comunidade e o agente do crime817. Através da ideia de
ordem, pretende-se proteger a comunidade contra a prática de crimes futuros; através da
ideia de liberdade, pretende-se proteger o agente contra intromissões indevidas nos seus
direitos fundamentais. As finalidades desta justiça penal moderna prendem-se, pois,
com a protecção dos valores essenciais da comunidade818 sem uma desprotecção

816
Vejam-se, a este propósito, as considerações tecidas no capítulo II da parte I deste estudo. A referência
a estas Idades de Ouro e das Trevas da vítima é comum, sendo adoptada por Autores como Gerardo Díaz
LANDROVE (Victimologia, Valência, Tirant Lo Blanch: 1990, p. 20 ss) ou Ana Sofia Schmidt de
OLIVEIRA (A vítima e o direito penal, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais: 1999, p. 19 ss). A
utilização de conceitos como o de “Idade de Ouro da vítima” não deve, porém, impedir o reconhecimento
de que neles vive uma certa simplificação da realidade. De facto, parece incorrecto associar-se esses
tempos a uma relevância exclusiva dos interesses individuais das vítimas e fazer corresponder à
denominada “Idade das Trevas” uma protecção exclusiva dos interessas da comunidade. Quanto a esta, é
inequívoca a existência de alguns mecanismos também de protecção da vítima concreta. E quanto àquela,
sempre se deve reconhecer que, mesmo nesses tempos de inexistência de centralização do poder de punir
– centralização em um Senhor ou em um Estado –, a reacção ao crime também almejava o
restabelecimento de uma determinada concepção de paz. E se essa paz foi objecto de distintas
compreensões nas diversas épocas históricas (cfr. José de FARIA COSTA, Noções Fundamentais de
Direito Penal, 2.ª ed. cit., p. 149 ss), sempre se deve admitir que ela era “no contexto histórico medieval,
a emanação de uma situação económico-social onde o sentimento comunitário se impunha como elo
fortíssimo e onde nos aparece não como categoria abstracta mas antes, e quase sempre, como uma paz
especial”, concluindo José de FARIA COSTA que os institutos de promoção dessa paz são
“simultaneamente um elemento redutor de conflitos e protector dos bens jurídicos que os ordenamentos
consubstanciavam como fundamentais” (últ. ob. cit., p. 152). O reconhecimento de que, mesmo nos
períodos de predominância da vingança privada, se tinham em conta também os interesses da família, do
clã, do grupo ou da comunidade é visível no pensamento de vários outros Autores, como Margarita ROIG
TORRES, “Algunos apuntes sobre la evolución histórica de la tutela jurídica de la víctima del delito”,
Estudios Penales y Criminologicos, n.º 22, 2000, p. 161 e como Stephen SCHAFER, The victim and his
criminal – a study in functional responsability, Nova Iorque, Random House: 1968, p. 7 e ss., para quem
a vingança tinha como finalidade principal assegurar as condições de sobrevivência do grupo. Também
sobre a estreita ligação dos indivíduos à “família a que pertenciam”, cfr. Eduardo CORREIA, Direito
Criminal I, Coimbra, Almedina: 1971, p. 76 ss.
817
Em certo sentido, a atenção prestada pelo tribunal ao problema da vítima pode até ser considerada
perturbadora de uma posição de equilíbrio e distanciamento necessária à punição justa do agente. Nas
palavras de Paul RICOEUR, “o jurista vê, na identificação emocional com as vítimas, o sintoma mais
evidente desta anulação da posição de imparcialidade – identificação emocional com as vítimas que teria
a sua contrapartida na diabolização do culpado. Em última análise, aproximamo-nos do linchamento, esta
luta corpo a corpo, que se revela como a derrota de qualquer tentativa de distanciamento simbólico e que
marca o regresso em força da velha ideologia sacrificial” (in prefácio a O Guardador de Promessas –
Justiça e Democracia, de Antoine Garapon, Lisboa: Instituto Piaget: 1998, ps. 12-3).
818
O Estado chama a si a defesa desses valores que a comunidade considera essenciais. Ao nível
processual, tal ideia tem expressão, como já se viu, no princípio da oficialidade. Sobre ele, Jacinto
COUTINHO [“Segurança pública e o direito das vítimas”, Separata da Revista da Ordem dos
Advogados, ano 65, III (Dezembro de 2005), p. 865] afirma que “é com a vigência do princípio da
oficialidade que a vítima começa, no campo jurídico – e maxime jurídico-processual-penal – o périplo do
abandono, às vezes quase completo, em face da Segurança Pública. O princípio da oficialidade, como se
sabe, produz um corte epistémico não desprezível: representou a consagração do público sobre o privado

466
insuportável dos interesses individuais do agente. Quando se olha para esta equação, o
que se pergunta é se há nela espaço para a vítima, que foi despojada do poder de
desencadear a reacção ao crime e que foi despojada do poder de determinar o conteúdo
da resposta à agressão819.
O que se pretende significar torna-se porventura mais claro através de um exemplo:
António foi vítima de um crime de homicídio qualificado na forma tentada – há
processo penal quer ele o deseje, quer não o deseje, e a pena a que o agente será
condenado não tem por finalidade satisfazer, em primeira linha, as necessidades
individuais de António.
Numa certa perspectiva, poder-se-ia dizer que aquilo que sucedeu a António na
verdade não tem efectiva relevância ao nível da resposta penal: o que aconteceu a
António terá sido apenas um pretexto para o Estado tentar evitar que o mesmo suceda,
no futuro, a Ana, Andreia, Abel ou André. E, o que também parece interessante, aquilo
que o agente fez a António – o facto que praticou e a culpa que através dele manifestou
– é essencial para limitar a punição a que ele, o agente, pode ser sujeito, enquanto
aquilo que aconteceu a António passa a ser visto como algo que, no essencial, a este é
estranho820.
Entre os Autores que contestam este enfoque do conflito criminal que erradica a
vítima concreta da modelação da solução, Pablo Galain PALERMO refere que o
reconhecimento de que a função do direito penal é a protecção de bens jurídicos não

(…), da imposição da jurisdição estadual, em ultima ratio, sobre a vingança privada, abrindo as portas à
delimitação da resposta penal”.
819
Com interesse para a compreensão da questão, Sérgio Salomão SHECAIRA caracteriza a fase
histórica que denomina como de “neutralização da vítima”, afirmando a progressiva perda de poderes a
que esta foi sendo sujeita, até acabar por lhe ser apenas reconhecido um direito de legítima defesa,
compreendido em moldes cada vez mais estreitos: “a partir do momento em que o Estado monopoliza a
reacção penal, quer dizer, desde que proíbe às vítimas castigar as lesões dos seus interesses, o seu papel
vai diminuindo, até quase desaparecer. Mesmo institutos como o da legítima defesa aparecem, hoje,
minuciosamente regrados” (in Criminologia, 2.ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008,
p. 55).
820
É interessante notar a possível não coincidência entre aquilo que o agente do crime fez e aquilo que a
sua vítima sofreu. Enquanto o pensamento penal contemporâneo continua a afirmar a preocupação
garantista de defesa de um direito penal do facto, os críticos desta justiça penal não deixam de rejeitar este
“congelamento” do acontecimento histórico que é o crime por ele favorecer uma resposta desadequada
face às necessidades presentes. Neste sentido, vd. a já antes mencionada ideia de Louk HULSMAN
(Penas Perdidas cit., ps. 82-3) de que através do sistema penal se “congela” o conflito, definindo-o como
ele era no momento do cometimento do crime e ignorando todos os posteriores desenvolvimentos nas
vidas do agente e da vítima. Ora, o que aqui se pretende sublinhar é que, quando se olha para o crime
como um conflito interpessoal, a resposta que se lhe deve dar não pode deixar de ser condicionada
também por aquilo de que a vítima agora necessita (depois do crime, mas por causa do crime). Todavia,
quando se pensa na pena enquanto resultado de uma lide entre o Estado que pune para defender a
comunidade e o indivíduo que pugna para defender a sua liberdade, não pode deixar de se aplaudir a
limitação da punição pelo facto que o agente cometeu e não por força de acontecimentos que lhe são
estranhos.

467
tem de equivaler àquele esquecimento da vítima. Nas suas palavras, “de nada vale
argumentar que os bens jurídicos devem manter uma relação com os indivíduos desde
um ponto de vista meramente potencial (vítimas e agentes como destinatários da norma)
e, uma vez ocorrido o crime, o sistema esquecer-se dos indivíduos de carne e osso, isto
é, das vítimas e dos agentes directamente envolvidos no facto delituoso. O direito penal
não pode centrar a sua atenção exclusivamente na prevenção e, uma vez fracassada essa
tarefa, erradicar da solução penal a vítima directa e pretender influenciar apenas a vida
futura do agente para satisfação dos interesses das vítimas potenciais”821.
O “esquecimento da vítima”, cujo núcleo agora se pretende ponderar, pode
desdobrar-se em duas grandes proposições: em primeiro lugar, a irrelevância da sua
vontade no que tange ao desencadear do processo penal; em segundo lugar, a
irrelevância da sua vontade no que respeita à solução encontrada como forma de
reacção ao crime. A regra é, pois, a de que não cabe à vítima dizer se pretende ou não o
processo penal, nem lhe é permitido moldar em função dos seus interesses a
consequência imposta ao agente. Temos, assim – e em nome de um mesmo fundamento
último, que terá de se relacionar com o sentido e a função do direito penal – um sistema
de reacção ao crime que pode ser posto em marcha sem ser desejado pela vítima e no
termo do qual se encontra uma resposta que não tem de ser condicionada pelas
necessidades da vítima. Mesmo no âmbito dos crimes particulares em sentido amplo,
que excepcionam a primeira dimensão daquela regra, sempre continua a valer a
segunda, ou seja, o alheamento da vítima face à determinação da sanção822.

821
Pablo Galain PALERMO, La reparación del daño a la víctima del delito, Valencia: Tirant lo Blanch,
monografias 686, 2010, ps. 73-4. O Autor acrescenta que “a reparação da vítima não é uma questão de
interesse exclusivo entre privados, como sucede com a indemnização ou a compensação do dano, tendo
antes uma relação com o dano social causado pelo crime, razão pela qual supera os limites dos problemas
entre sujeitos privados e respeita a toda a sociedade, já que quando se ofende uma vítima em concreto
vulnerou-se uma norma fundamental de convivência”.
822
Uma análise detida dos institutos da queixa, da acusação particular e da figura do assistente foi levada
a cabo por José DAMIÃO DA CUNHA (“A participação dos particulares no exercício da acção penal”,
RPCC, ano 8, n.º 4, Out-Dez 1998, ps 620-1), para quem “nos crimes dependentes de queixa, o que está
em causa é meramente um exercício de um direito de opção quanto à tutela jurídica (e trata-se de um
pressuposto – ou impedimento – à elisão da presunção de inocência); no caso de crimes dependentes de
acusação particular há algo mais do que isso, não se trata meramente de uma opção de tutela (embora essa
opção esteja pressuposta – é necessária a apresentação da queixa), mas, para além disso, de um verdadeiro
exercício, pelo particular, da forma de tutela (a acção penal) – é a um particular que cabe, no fundo,
realizar a tarefa de eliminar a presunção de inocência que recai sobre o arguido”. Ora, se se julga poder
afirmar-se, quanto àquilo que agora interessa, que no âmbito dos crimes dependentes de queixa (ou de
queixa e de acusação particular) a promoção do processo penal – a resposta punitiva – está na
dependência da vontade da vítima, já se não julga que, no segundo caso (o dos crimes particulares em
sentido estrito) recaia sobre o assistente a tarefa de demonstrar a culpa do arguido. Compreende-se a ideia
de José DAMIÃO DA CUNHA tendo em conta o disposto no n.º 2 do artigo 330.º do CPP, que faz supor
a necessidade de o assistente sustentar a acusação em julgamento: “tratando-se da falta de representante

468
A punição do agente não só é vista como um poder-dever do Estado – o que se
compreende –, como também permanece estranha aos interesses da vítima na sua
modelação, sendo antes determinada em função de necessidades comunitárias. E só
assim não é – ainda a título excepcional – naqueles casos em que se admitem soluções
de consenso – reentrando por essa via a consideração dos interesses da vítima na
equação da justiça penal –, ou nas hipóteses em que a reparação dos danos causados
pelo agente é condição de uma actuação menos punitiva por parte do sistema judicial.
Ora, se não se pretende nesta sede questionar o processo penal enquanto assunto
da comunidade – desde logo por força daquela que se entende ser a própria função do
direito penal –, já será pertinente a interrogação sobre a justeza do chamamento da
vítima ao processo, porque ela é indispensável ou apenas útil à produção da prova e à
descoberta da verdade, utilizando-a em moldes que frequentemente lhe causam a
denominada vitimização secundária, sem que depois, pelo menos em muitos casos, haja
algo para lhe oferecer.
Quando se olha para a justiça penal nesta perspectiva – a que pode chamar-se
perspectiva orientada para a vítima –, mais do que em esquecimento ou em apagamento,
talvez possa falar-se em instrumentalização da vítima.

2.2.3. O conceito de vítima: reflexões em torno da (des)necessidade de definição

Existem as maiores dúvidas no pensamento vitimológico em torno do conceito de


vítima. Uma pesquisa sobre o tema revela rapidamente a existência não de um conceito
pacífico e consolidado, mas de vários conceitos.
Uma das definições de vítima mais correntemente citada é a dada pela Resolução
n.º 40/34, de 29 de Novembro de 1985, da Assembleia Geral das Nações Unidas. Esta

do assistente em procedimento dependente de acusação particular, a audiência é adiada por uma só vez; a
falta não justificada ou a segunda falta valem como desistência da acusação, salvo se houver oposição do
arguido”. Todavia, se é certo que o assistente acusa, delimitando o objecto do processo, fá-lo em função
de uma investigação dirigida pelo Ministério Público e, na fase de julgamento, vale o princípio da
investigação (art. 340.º CPP) – com cuja consagração aquele Autor não concorda, à luz da evolução do
processo penal português no sentido de um “processo de partes” ainda que gizado numa lógica de
interesses indisponíveis, os quais já são assegurados pela intervenção do Ministério Público. A soma da
actuação deste com a actuação do assistente em matéria probatória, ainda complementada pela
investigação do tribunal, pode de facto suscitar algumas interrogações quanto ao “equilíbrio” do modelo,
estando “do outro lado” apenas o arguido e o seu defensor. Todavia, regressando às acusações de
esquecimento da vítima, reitere-se que mesmo nos crimes particulares em sentido estrito a determinação
da sanção não tem de ser feita em função do interesse da vítima, podendo ser estranha a qualquer ideia de
reparação.

469
Resolução contém a denominada Declaração dos Princípios Básicos de Justiça
Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder e dispõe que:
«1. Entendem-se por "vítimas" as pessoas que, individual ou colectivamente, tenham
sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um
sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos
fundamentais, como consequência de actos ou de omissões violadores das leis penais
em vigor num Estado membro, incluindo as que proíbem o abuso de poder.
2. Uma pessoa pode ser considerada como "vítima", no quadro da presente
Declaração, quer o autor seja ou não identificado, preso, processado ou declarado
culpado, e quaisquer que sejam os laços de parentesco deste com a vítima. O termo
"vítima" inclui também, conforme o caso, a família próxima ou as pessoas a cargo da
vítima directa e as pessoas que tenham sofrido um prejuízo ao intervirem para prestar
assistência às vítimas em situação de carência ou para impedir a vitimização».
Na doutrina portuguesa, Manuel da COSTA ANDRADE delimitou – já em 1980
– o conceito de vítima que interessa às ciências criminais. A sua proposta de um
“conceito útil” – um conceito criminológico (vitimológico) de vítima passa pela
consideração como vítima de “toda a pessoa física ou entidade colectiva directamente
atingida, contra a sua vontade – na sua pessoa ou no seu património, pela deviance”823.
Pelo menos tão interessante como esta proposta de delimitação do conceito de
vítima é o esclarecimento, pelo Autor, daquilo que deve ser um conceito. Ao afirmar
que o que se procura é um conceito útil na perspectiva das ciências criminais, abre
naturalmente a porta para a aceitação de outros conceitos de vítima orientados para
diversas finalidades.
Ora, tendo em conta o objecto deste estudo, não se afigura adequada a defesa de
uma definição de vítima (precisamente por se sustentar que, atentas as especificidades
da resposta penal, da resposta restaurativa e de outras eventuais respostas ao crime,
tornar-se-ão necessários distintos conceitos de vítima). O que se pretende é justificar a
existência de mais do que um conceito. Julga-se que os conceitos são ferramentas ou
utensílios vocacionados para a persecução de uma determinada finalidade e que, por ser
assim, só à luz dessa finalidade ou objectivo haverão de ser recortados.
A primeira precisão a fazer é a de que, no contexto de uma reflexão sobre o
modelo de reacção penal ao crime, devem ser excluídos do conceito de vítima aqueles a

823
Manuel da COSTA ANDRADE, A vítima e o problema criminal, Coimbra, 1980, ps. 33-4.

470
quem foram causados danos por força de outros fenómenos que não o fenómeno
criminal824. E, no sentido que a este estudo interessa e como em momento prévio se já
afirmou, também à justiça restaurativa de que aqui se cura interessarão apenas os
conflitos interpessoais associados ao cometimento de um crime ou, pelo menos, de um
facto tipicamente relevante e ilícito825. Não se desconhece, porém, a existência de
dúvidas em torno da possibilidade de encontrar critério suficiente para a delimitação de
fronteiras entre a vítima do crime e a pessoa que possa ainda considerar-se vítima de um
qualquer outro acontecimento826.
Apesar de assim ser, tomar-se-ão neste estudo por vítimas apenas as vítimas de
uma conduta tipificada como crime (ou de uma conduta que deveria ter sido tipificada
como crime). E é assim, repita-se, por se achar que há algo de diverso na causação de
um dano que pode ser imputado a um agir humano, mais ou menos responsável. Há algo
de específico em ser-se vítima do comportamento de outra pessoa, na medida em que
essa vitimização prejudica a compreensão do sentido da coexistência, como que pondo
em causa a ideia que cada um tem sobre a sua autonomia e o seu papel no mundo.
Esse dano originado pelo cometimento de um ilícito típico, imputável a outra
pessoa, tenderá a ser sentido pela vítima de modo diverso do dano associado por
exemplo a um fenómeno natural. Veja-se, a este propósito e como ponto de partida,
ainda que no contexto de uma reflexão sobre o princípio da culpa, o que afirma
Winfried HASSEMER: “olhado superficialmente, o dano infligido à vítima com o

824
Na doutrina vitimológica são frequentes as definições de vítima “muito mais amplas”. Nas palavras de
Antonio BERISTAIN, por exemplo, “já desde o Simpósio de Jerusalém de 1973, e mais claramente desde
o Terceiro Simpósio Internacional de Vitimologia em 1979, em Münster (quando e onde nasceu
formalmente a Sociedade Mundial de Vitimologia), proclama-se um conceito de vítima que inclui todas
as pessoas que sofrem, por qualquer motivo, sem se limitar às vítimas originadas pelos delitos e pelos
abusos de poder”. Para Mendelsohn, considerado um dos “progenitores” do pensamento vitimológico, o
objecto deste ramo do saber não deveriam ser apenas as vítimas do crime, abrangendo-se antes todas as
formas da denominada “macrovitimização”, onde se incluiriam também, por exemplo, as pessoas vítimas
da doença, da guerra, do desemprego ou da desigualdade social, de catástrofes naturais ou da fome.
Antonio BERISTAIN adopta este conceito muito amplo, abrangendo na categoria das vítimas
“inclusivamente os agentes dos crimes, na medida em que a sua pena privativa da liberdade produz
sofrimentos desumanos” (in Derecho Penal, Criminología e Victimología cit., p. 35).
825
A razão pela qual se opta pela referência ao cometimento de um facto típico e ilícito prende-se com a
possibilidade, já antes referida, de as práticas restaurativas terem na sua base factos cometidos por agentes
inimputáveis (nomeadamente em razão da idade).
826
Frederick McCLINTOCK dá conta desta dificuldade, afirmando que “é importante reconhecer que há
vítimas não só do crime, mas também de outras catástrofes ou eventos não relacionados com o crime” (in
“Prologue: Victims and Criminal Justice”, Support for Crime Victims in a Comparative Perspective: A
Collection of Essays Dedicated to the Memory of Prof. Frederic McClintock, Eds. Ezzat Fattah/Tony
Peters, Leuven: Leuven University Press: 1998, p. 13). E acrescenta que apesar de, por ser criminólogo,
ter escolhido como objecto de estudo as vítimas de crimes, não pode desconhecer-se que “a política penal
não pode estar divorciada da política social”, assim como “as questões relativas às vítimas de crimes não
podem ser totalmente separadas de outras formas de vitimização”.

471
delito é sempre o mesmo, independentemente de ter sido produzido com negligência ou
intencionalmente. Mas a vítima – e o mesmo sucede com outras pessoas que vivem e
experienciam o dano a partir da perspectiva da vítima – não o sente do mesmo modo.
Quem actua dolosamente produz – também sob a sua perspectiva – um dano maior do
que quem actua negligentemente, ainda que esta maior gravidade do dano não o seja,
claro, em um sentido médico-empírico, mas antes social-pessoal. Para além do dano
exterior, torna-se patente um sinal perante a vítima e perante todos aqueles que o
contemplam na perpectiva da vítima e da vítima potencial. Também este sinal causa
prejuízos e por vezes mais do que o próprio objecto utilizado para provocar o dano.
Apesar de em alguns delitos patrimoniais, como a burla, isso raramente aparecer com
toda a clareza; nos delitos violentos, como as lesões corporais e sobretudo na violação, é
posto claramente em relevo que quem actua dolosamente desonra a sua vítima para
além do dano externo, lesando o núcleo da sua personalidade. Quem actua dolosamente
conhece esta perspectiva da vítima, e a vítima sabe que ele a conhece, e é precisamente
nisto que radica o sinal do dano: sobretudo nos delitos que necessariamente se
consumam na presença do autor e da vítima, o autor doloso realiza um acto de vexação
social e pessoal da vítima, do qual está muito distante quem actua de forma
negligente827”. É esta reflexão de HASSEMER que se julga que pode assumir relevo na
ponderação da especificidade da vitimização criminal, apesar de não ter sido esse o seu
propósito.
O Autor pronuncia-se sobre a diferença do dano ocasionado por uma conduta
dolosa e por uma conduta negligente. O que se crê é que essa reflexão pode transpor-se,
porventura por maioria de razão, para a distinção do dano causado pelo crime por
contraposição ao dano não imputável a um agir humano. Todavia, também parece claro
que essa diferença entre a vitimização criminal e as outras se atenua quando o dano
resulta de um agir humano em que a culpa é menos intensa ou a que é estranho o juízo
de culpa, nomedamente por faltar a imputabilidade ou por se verificar uma situação de
inexegibilidade. Mas mesmo nestes casos de inexistência de culpa jurídico-penal – que
antes se afirmou não estarem sempre liminarmente excluídos do “âmbito restaurativo” –
, se falta aquela possibilidade de imputação “subjectiva” do facto ao agente, poderá
ainda aventar-se a existência de uma espécie de ligação ao indivíduo que está ausente
por exemplo nas catástrofes naturais. O que, tendo o agente do crime vontade de

827
Winfried HASSEMER, Persona, mundo y responsabilidad. Bases para una teoria de la imputación en
Derecho Penal cit., ps. 107-8.

472
reparar e excluindo-se dessa reparação o juízo de responsabilidade inerente à
condenação, ainda permitirá a inclusão de tais hipóteses no universo restaurativo.
Julga-se, além disso, que mesmo aqueles a quem o cometimento de um crime
causou um dano em sentido amplo podem ser encarados sob diferentes perspectivas,
tendo em conta a finalidade da intervenção. Se nos posicionarmos no plano de uma
intervenção de natureza assistencial, o conceito de vítima deverá ser porventura mais
amplo do que se pretendermos regular a intervenção da vítima na justiça penal em
sentido estrito828.
Assim, na perspectiva que agora interessa, talvez seja útil a delimitação de três
grandes grupos de vítimas que interessam às ciências criminais: em primeiro lugar, as
vítimas mais directas do crime (tendencialmente coincidentes com o conceito de
ofendido), que devem ter a possibilidade de sustentar no processo penal a sua pretensão
a uma condenação justa do agente; em segundo lugar, as vítimas a quem o crime causou
danos não insignificantes, relativamente aos quais um Estado de Direito Social deve
garantir uma possibilidade de reparação (neste segundo grupo tenderão a caber os
lesados); em terceiro lugar, as vítimas enquanto conjunto de todas as pessoas que
integram a comunidade em cujo seio o crime ocorreu (cujo interesse na inexistência de
crimes futuros recorta as finalidades preventivas das consequências jurídicas do crime).
Esboçadas estas considerações, julga-se metodologicamente necessária uma
certa organização das ideias.
A primeira ideia prende-se com a necessidade de distinção entre dois modos
principais de perspectivar a vítima do crime. Admitindo-se que à pena assistem
finalidades preventivas, parece clara a relevância outorgada às vítimas futuras, cuja
existência precisamente se pretende evitar ou diminuir. É conatural à justiça penal a
preocupação com a protecção de todos os cidadãos que integram a comunidade, para
que eles não se tornem, no futuro, vítimas de crimes. Todavia, nem na vitimologia, nem
na proposta restaurativa são essas as vítimas que tendem a assumir preponderância,

828
Procure-se concretizar esta ideia através de um exemplo: Ana, que tem 18 anos, vive com a sua mãe
Bárbara, de 38 anos. Bárbara é violada por um vizinho de ambas, Carlos, e desenvolve uma doença do
foro psiquiátrico que a deixa impossibilitada de trabalhar durante um longo período de tempo. Em sentido
amplo, tanto Ana como Bárbara podem ser consideradas vítima deste crime, na medida em que ele lhes
tenha causado danos que, à luz de um princípio de solidariedade, devem ser reparados. Todavia, sob um
prisma exclusivamente penal, a interessada na condenação de Carlos é Bárbara porque se corporizou nela
e apenas nela a lesão do valor que é a liberdade sexual – o valor que a norma penal que proíbe a violação
quer proteger. Logo, é Bárbara, para este efeito, a vítima que tem legitimidade para sustentar no processo
penal o seu interesse específico na condenação do agente.

473
antes se invocando a necessidade de protecção, que teria sido esquecida, da pessoa que
já foi vítima de um crime829.
Num estudo que não é sobretudo vitimológico, não se pretendeu encontrar uma
definição de vítima, mas tão só esclarecer que, ao contrário do que sucede com os
conceitos jurídicos de “lesado”, ofendido” e “assistente”, se trata aqui de uma categoria
criminológica, logo, de uma categoria cujas fronteiras podem ser mais imprecisas, por
não estar vinculada às mesmas exigências de determinabilidade. E esta é a segunda ideia
que se quer sublinhar.
Enquanto categoria criminológica, o conceito de “vítima” pode ser sujeito a
flutuações definitórias consoante o sentido da interrogação criminológica que preside à
utilização da ferramenta ou do instrumento que aquela categoria afinal constitui. Deste
modo, a definição de vítima a que se recorre quando se quer questionar, por exemplo, a
questão da vitimização secundária não tem de coincidir com, ainda em jeito de
ilustração, o âmbito que o conceito de vítima pode assumir em uma perspectiva
puramente assistencial (o conceito terá, em regra, um âmbito mais vasto nesta hipótese
do que naquela).
Finalmente, deve esclarecer-se que é precisamente a não coincidência ou não
sobreposição entre a categoria criminológica de vítima e as formas ou papéis
processuais penais que algumas daquelas vítimas assumem que afasta a objecção de que
não existem vítimas enquanto a responsabilidade jurídico-penal do agente não for
atribuída por uma condenação penal (até aí, poder-se-ia mencionar apenas a existência
de “vítimas presumidas”830). Ora, o que se julga é, pelo contrário, que a afirmação da

829
A distinção é clara, a título de exemplo, no pensamento de Jorge de FIGUEIREDO DIAS, que
recentemente chama a atenção para a necessidade, no processo penal, do “estabelecimento da
concordância prática entre os interesses conflituantes, integrar o interesse das vítimas reais e potenciais,
presentes e futuras, da grande e nova criminalidade. Tem aqui preciso lugar o apelo a uma acrescida
solidariedade, indispensável para oferecer um futuro à humanidade” (“O processo penal português:
problemas e prospectivas”, Que Futuro para o Direito Processual Penal?, coord. de MONTE, Mário
(dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra
Editora, 2009, p. 812). A vítima para cujo esquecimento a vitimologia chama a atenção é, portanto, essa
vítima concreta que não se confunde com a “sociedade toda”. Nas palavras críticas de Silvia Ortiz
HERRERA, o problema está na ideia de que “todas as vítimas são a mesma vítima: a sociedade”
(“Situación actual de la víctima en la Justicia Penal. Repercusión de las recientes propuestas de
modificación del sistema sancionatório”, Revista de Estudios Penitenciarios, Madrid, n.º 247, 1999, p.
69).
830
Neste sentido, veja-se a afirmação de Jesus-Maria SILVA SANCHÉZ («Nullum Crimen sine Poena?
Sobre las Doctrinas Penales de la “Lucha contra la Impunidad” y del “Derecho de la Víctima al Castigo
del Autor”, Derecho Penal y Criminologia, vol. 29, n.º 86-87, 2008, ps. 170-1) de que «antes de se
verificar a existência de uma facto ilícito (e, seguramente, também com culpa), não pode haver uma
vítima, senão, no máximo, uma vítima “presumida”. Com efeito, não se é vítima (em sentido jurídico-
penal) pelo facto de se ter sofrido um dano, mas sim por se ter sofrido uma lesão antijurídica, o que só se
pode determinar no processo (…). Em todo o caso, esta precisão é importante, pois põe em relevo, por um

474
existência de uma vítima apenas nos casos de reconhecimento dessa vitimização por
força de uma condenação penal (e a consequente equiparação da categoria
criminológica à definição da situação penal associada à condenação) privaria a categoria
criminológica “vítima”do seu potencial crítico do funcionamento das instâncias formais
de controlo. O que, no fundo, equivaleria à sua neutralização enquanto instrumento
conceptual de uma área do pensamento penal cuja autonomia relativamente à ciência
penal em sentido mais estrito se relaciona, também, com a sua pretensão de crítica.

2.2.4   A descoberta da vítima

Um aspecto que merece ser sublinhado é que a descoberta da vítima se ficou, nas
últimas décadas, a dever em muito à actuação de várias instâncias supra-estaduais.
Em uma reflexão a que são alheias pretensões de exaustividade, deve começar por
se referir a adopção, em 1985, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, da Resolução
n.º 40/34, de 29 de Novembro. Esta Resolução contém a denominada Declaração dos
Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de
Poder.
Nesta Declaração de Princípios, depois de se procurar delimitar um conceito de
vítima, dispõe-se que “as vítimas devem ser tratadas com compaixão e respeito pela sua
dignidade. Têm direito ao acesso às instâncias judiciárias e a uma rápida reparação do
prejuízo por si sofrido, de acordo com o disposto na legislação nacional”.
Aquela Declaração de Princípios das Nações Unidas é muito rica ao nível dos
objectivos traçados. Se, por um lado, prescreve uma maior atenção à vítima no processo
penal – com mais informação; mais direitos de conformação processual; menos demoras
na tramitação e na reparação; menos invasões da sua privacidade e menos riscos para a
sua segurança –, aponta já, por outro lado, para uma aposta nos meios extrajudiciais de
solução de conflitos, incluindo a mediação831. É, ainda, visível uma particular
preocupação com a efectividade da reparação dos danos sofridos pelas vítimas: além de

lado, que aquilo que às vezes se apresenta como direito das vítimas seria apenas um direito de vítimas
presumidas. Por outro lado, que só pode falar-se de direitos das vítimas relativamente a decisões
posteriores à determinação da ilicitude (com culpa) do facto». Tenha-se, porém, o cuidado de esclarecer
que o Autor se está a referir apenas à vítima “em sentido jurídico-penal”. Não define, porém, o exacto
sentido que lhe atribui, nem refere a sua relevância no plano criminológico.
831
A preocupação manifestada com as vítimas do crime ultrapassa em muito a sua intervenção na justiça
penal, também na medida em que se prescreve que elas “devem receber a assistência material, médica,
psicológica e social de que necessitem, através de organismos estatais, de voluntariado, comunitários
(…)”.

475
se prescrever uma obrigação de restituição e de reparação por parte do agente do crime,
dispõe-se que quando ela não for possível, os Estados devem procurar assegurar essa
indemnização, pelo menos nos casos de vitimização mais grave.
Merecedora de atenção especial é, também, a Resolução 2002/12 da ONU,
aprovada pelo Conselho Económico e Social na sua Sessão Plenária de 24 de Julho de
2002. Esta contempla os Princípios Básicos para Utilização de Programas de Justiça
Restaurativa em Matéria Criminal. No preâmbulo, menciona-se o “significativo
aumento de iniciativas com justiça restaurativa em todo o mundo” e enfatiza-se que “a
justiça restaurativa evolui como uma resposta ao crime que respeita a dignidade e a
igualdade das pessoas, constrói o entendimento e promove a harmonia social mediante a
restauração das vítimas, ofensores e comunidades”. Nesta Resolução, um programa de
justiça restaurativa é apresentado como aquele que usa processos restaurativos e que
visa atingir resultados restaurativos (elege-se, assim, uma definição centrada, quer no
procedimento, quer no resultado). Relativamente ao procedimento, esclarece-se que a
vítima e o ofensor (assim como, quando adequado, outros membros da comunidade)
devem “participar activamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente
com a ajuda de um facilitador”. Quanto ao resultado restaurativo, especifica-se que se
trata de “um acordo construído no processo restaurativo”, o qual deve incluir
“respostas” como “a reparação, a restituição e o serviço comunitário”, tendo em conta
as necessidades individuais e colectivas, a responsabilidade e a reintegração. A
importância desta Resolução prende-se, também, com o facto de contemplar orientações
essenciais, como a de que os programas de justiça restaurativa podem ser usados em
qualquer fase do sistema de justiça criminal; a voluntariedade de participação da vítima
e do agressor; a exigência de “prova suficiente da autoria para denunciar o ofensor”; a
exigência de razoabilidade e proporcionalidade das obrigações constantes do acordo; a
necessidade de concordância da vítima e do agente sobre os elementos essenciais do
caso; a impossibilidade de valoração da participação do agressor em práticas
restaurativas como admissão da culpa em processo judicial posterior; a
confidencialidade.
Por outro lado, também no âmbito do Conselho da Europa832 a protecção das
vítimas de crimes tem sido uma prioridade. De facto, se o critério eleito tivesse sido o

832
A referência aos instrumentos do Conselho da Europa atinentes à protecção das vítimas é feita com
base na compilação de documentos constante da obra Soutient et aide aux victimes (Victims – Support
and assistance), Éditions du Conseil de l’Europe, Estrasburgo: 2006.

476
cronológico, dever-se-ia ter referido primeiramente a sua Convenção Europeia relativa à
Reparação devida às Vítimas de Crimes Violentos, aberta à assinatura dos Estados-
membros em 24 de Novembro de 1983833. Desta resultava já para os Estados um dever
de contribuírem para a reparação dos danos sofridos pelas vítimas de crimes graves,
caso tal reparação não pudesse ser garantida por outra via834. Por outro lado, nesta
Convenção dedicava-se o Título II à cooperação internacional, dispondo-se que os
Estados devem prestar-se mutuamente a mais ampla assistência possível. Assume
particular destaque, porém, a Recomendação n.º R (99) 19, aprovada pelo Comité de
Ministros do Conselho da Europa em 15 de Setembro de 1999, sobre mediação penal.
Desde então, surgiram vários outros instrumentos do Conselho da Europa orientados
para distintos domínios de intervenção junto das vítimas, que voltaram a ser objecto de
atenção, nos tempos mais próximos, na Recomendação (2006)8, adoptada pelo Comité
de Ministros do Conselho da Europa a 14 de Junho de 2006. Esta concretiza um
conjunto de deveres para os Estados que são membros do Conselho da Europa, quer ao
nível da justiça penal, quer no plano da assistência.
Mais recentemente, a União Europeia reconheceu também a “causa da vítima” e
assumiu, entre outros aspectos, a preocupação de potenciar a cooperação internacional
para protecção das vítimas de crimes. Esta cooperação torna-se necessária a partir da
verificação de que: (I) há, nos países da União, um número crescente de pessoas
provenientes de outros países; (II) essas pessoas, sobretudo quando recém-chegadas, são
particularmente vulneráveis à vitimização835.

833
Deve referir-se, como factor importante para se compreender a origem desta Convenção, o facto de a
9ª Conferência dos Ministros da Justiça europeus, ocorrida em Viena em 1974, ter examinado a questão
da indemnização devida às vítimas, recomendando de seguida ao Conselho da Europa a análise do
assunto.
834
Podia ler-se no relatório explicativo da Convenção que “em princípio, aquela reparação deveria ser
assegurada pelo delinquente (…). Todavia, se, teoricamente, a vítima pode obter assim satisfação, na
prática a reparação integral raramente tem lugar tendo em conta, nomeadamente, que o delinquente não
foi descoberto, desapareceu ou está insolvente”.
835
Afirma-se na Comunicação da Comissão, de 28 de Maio de 1999, ao Conselho, ao Parlamento
Europeu e ao Comité Económico e Social “As vítimas da criminalidade na União Europeia – reflexão
sobre as normas e as medidas a adoptar” [COM(1999)349 final] que “cada vez mais pessoas
(provenientes de países europeus e de países terceiros residentes na União Europeia) viajam, vivem ou
estudam noutro Estado-Membro, encontrando-se assim expostas a actos criminais perpetrados num país
que não é o seu”. As medidas sugeridas são de vários tipos, passando pelas preventivas [v.g. através da
“informação, nomeadamente nas infra-estruturas de transportes (aeroportos, estações caminho-de-ferro e
de metropolitano)”], mas abrangendo-se também as medidas de assistência às vítimas. No que respeita a
esta assistência, surgem problemas específicos ao nível da cooperação, na medida em que, como também
se nota naquela Comunicação, “as vítimas estrangeiras de passagem deparam-se com um problema
específico, que é terem de seguir à distância o respectivo processo. Será necessário dar um carácter geral
a diferentes soluções, tais como instaurar um processo acelerado ou permitir que a vítima deponha

477
No âmbito da União Europeia merece particular destaque a Decisão Quadro n.º
2001/220/JAI, do Conselho, de 15 de Março de 2001, relativa ao estatuto da vítima em
processo penal836. Através dela, visa-se “facultar à vítima uma melhor posição jurídica e
uma melhor defesa dos seus direitos, independentemente do Estado-Membro em que se
encontra”. Ao longo de toda a Decisão Quadro, é notória a intenção de protecção
específica das pessoas vítimas de um crime num Estado-Membro que não é aquele onde
habitualmente residem: estipula-se, por exemplo, que se a vítima for residente noutro
Estado deve ser informada dos mecanismos especiais de defesa dos seus interesses [art.
4.º, h)]; impõem-se garantias de comunicação (art. 5.º), especialmente relevantes para as
vítimas que têm dificuldades em comunicar na língua do país onde o crime foi
cometido; afirma-se um conjunto de necessidades específicas das vítimas residentes
noutro Estado-Membro (art. 11.º) e impõe-se a cooperação entre os Estados, dispondo-
se no artigo 12.º que “cada Estado-Membro deve apoiar, desenvolver e melhorar a
cooperação entre os Estados-Membros, de forma a facilitar uma defesa mais eficaz dos
interesses da vítima no processo penal, quer essa cooperação assuma a forma de redes
directamente ligadas ao sistema judiciário, quer de ligações entre as organizações de
apoio às vítimas”.
Posteriormente, esta preocupação com as pessoas vítimas de crimes num Estado-
Membro diferente daquele onde têm residência habitual é retomada através da Directiva
2004/80/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa à indemnização das vítimas
da criminalidade. Assim, no capítulo I (atinente ao “acesso à indemnização em situações
transfronteiriças”) dispõe-se que “os Estados-Membros asseguram que, no caso de ser
cometido um crime doloso violento num Estado-Membro diferente daquele em que o
requerente da indemnização tem residência habitual, o requerente tem o direito de
apresentar o seu pedido a uma autoridade ou a qualquer outro organismo deste último
Estado-Membro” (art. 1.º) e que “a indemnização deve ser paga pela autoridade
competente do Estado-Membro em cujo território o crime foi praticado”.
Estes (e outros) instrumentos internacionais837 orientados para a protecção das
vítimas de crimes foram importantes no plano interno, até na medida em que foram

previamente ou à distância”. Manifesta-se, assim, um interesse específico na protecção dos “viajantes


vítimas de actos criminais”.
836
Esta Decisão Quadro foi adoptada na sequência de iniciativa apresentada por Portugal (Jornal Oficial
C 243, de 24.08.2000). Voltará a ser referida na terceira parte do estudo, porque o seu artigo 10.º assume
grande relevo no surgimento, entre nós, do regime jurídico da mediação penal dita “de adultos”.
837
Além destes, porém, deve ainda afirmar-se a existência, no âmbito das associações internacionais de
penalistas, de idênticas preocupações com a satisfação das necessidades das vítimas. Assim, logo no XI

478
tidos em conta logo ao nível da jurisprudência constitucional, cuja evolução nesta
matéria se julga merecedora de referência.
No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 974/96 é citada, a propósito do artigo
32.º CRP, a afirmação de José GOMES CANOTILHO e de Vital MOREIRA de que “a
Constituição é manifestamente omissa sobre a figura da vítima dos crimes”, o que
significaria a inexistência de um “reconhecimento constitucional de um direito ou
interesse legítimo da vítima a ver punido o criminoso, nem o direito a intervir no
processo”. E, conforme também se recorda naquele acórdão, os Autores acrescentam
que “ela (a vítima) mantém-se com estatuto simplesmente legal”.
Todavia, mesmo relativamente a processos anteriores ao aditamento do n.º 7 ao
artigo 32.º da CRP (através da Lei Constitucional n.º 1/97), reconheceu-se, em outra
decisão do Tribunal Constitucional, a existência de um imperativo de tutela da vítima
no processo penal, também por força de vários instrumentos internacionais. Assim, no
Acórdão do TC n.º 690/98, de que foi relator Nunes de Almeida, pode ler-se que “a
própria consideração do papel da vítima e a preocupação sentida em salvaguardar os
seus interesses no processo penal, de que tem sido eco o Conselho da Europa838,
nomeadamente através de várias recomendações no sentido da assistência às mesmas
vítimas e suas famílias no decurso do processo penal, vem intensificar esse papel
participador ou protagonista, em detrimento da mera passividade face ao desenrolar do
processo penal”.
A partir da LC n.º 1/97, o artigo 32.º CRP (aquele em que, nas palavras de José
GOMES CANOTILHO e de Vital MOREIRA, se condensam “os mais importantes

Congresso Internacional de Direito Penal da AIDP, em Budapeste no ano de 1974, fez-se recomendação
no sentido de os Estados promoverem a reparação dos danos causados às vítimas, nomeadamente através
da criação de um sistema de indemnização da vítima do crime pelo Estado ou por instituições públicas.
Posteriormente, no XIII Congresso, em 1984, foram feitas recomendações em matéria de
desjudiciarização e de mediação. Entre as vantagens inerentes à desjudiciarização, aponta-se o facto de
ela poder “beneficiar as vítimas do crime se for acompanhada de reparação ou desculpas e lhe permitir
exprimir os seus sentimentos pessoais e os seus desejos. Não se deve subestimar este aspecto da
desjudiciarização porque, de forma geral, as sanções penais não são acompanhadas de reparação ou
compensação às vítimas de crimes. Por conseguinte, estas podem considerar a desjudiciarização como
sendo desejável” (AIDP/IAPL, Résolutions des Congrès de l’Association Internationale de Droit Pénal
(1926-2004), Nouvelles Études Pénales, n.º 20, 2009, Toulouse: Éditions Érès, 2009, p. 127).
838
Destacam-se, neste Acórdão, várias iniciativas no âmbito do Conselho da Europa: a Convenção
Europeia Relativa à Reparação das Vítimas de Infracções Violentas (aberta à assinatura desde 24 de
Novembro de 1983); a Resolução n.º (77)27, de 28 de Setembro de 1997, relativa à reparação às vítimas
de infracções penais; a Recomendação n.º R(83)7 relativa à participação do público na política criminal e
a Recomendação n.º R(85)11 relativa à posição da vítima no âmbito do direito penal e do processo penal.
Para além destas, refere-se ainda a Resolução n.º 40/34, adoptada a 29 de Novembro de 1985 pela
Assembleia Geral das Nações Unidas e que contém a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça
Relativos às Vítimas da Criminalidade e do Abuso de Poder.

479
princípios materiais do processo criminal – a constituição processual criminal”) passou
a ter um número 7, no qual se dispõe que “o ofendido tem o direito de intervir no
processo, nos termos da lei”. Nas palavras dos Autores, este «pretende dar legitimação
constitucional ao direito do ofendido intervir no processo. Diferentemente do que
acontece em relação ao arguido, a lei constitucional não especifica as dimensões
fundamentais do direito do ofendido intervir no processo, remetendo para a lei (“nos
termos da lei”) essa tarefa. Este reenvio para a lei não pode, porém, interpretar-se no
sentido de uma completa liberdade de conformação do legislador dos poderes
processuais do ofendido. Dentre estes, o legislador não pode deixar de consagrar o
direito (poder) de acusar, o poder de requerer a instrução (nos casos de arquivamento
dos autos por deliberação do Ministério Público), o poder de recorrer da sentença
absolutória»839.
Se parece certo que a preocupação com a tutela das necessidades das vítimas de
crimes conquistou a atenção de instâncias internacionais e do legislador nacional, já não
se tem a certeza de que tal tenha ocorrido com base em uma compreensão ampla
daquilo que, na justiça penal, essa protecção deve significar. A interrogação que se
enfrenta prende-se assim, sobretudo, com a identificação das exigências que a
“descoberta da vítima” faz ao direito penal e ao direito processual penal840. Perante as
muitas incertezas que a temática revela, opta-se por se reflectir sobre os institutos que a
justiça penal portuguesa já conhece para, a partir de uma sua ponderação crítica, se
aferir da sua suficiência ou, antes, da necessidade de uma verdadeira alteração do
modelo de participação da vítima.

839
CANOTILHO, José Joaquim Gomes/MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa
Anotada, Artigos 1.º a 107.º vol. I, 4.ª ed. revista, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 515, ps. 523-4.
840
Numa análise dessa recente “descoberta da vítima” a propósito de uma “pesquisa dedicada ao papel
conferido à vítima no processo penal brasileiro e desenvolvida no Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais entre Maio de 2009 e Março de 2010”, Marcos ALVAREZ/Alessandra TEIXEIRA/Maria
JESUS/Fernanda MATSUDA/Fernando SALLA/Caio SANTIAGO/Veridiana CORDEIRO notam que
“uma inovação social de grande alcance parece em curso, embora seus contornos e significados ainda não
tenham adquirido total clareza. Para alguns, teríamos a efectiva emergência de novos actores sociais, de
novas demandas por reconhecimento da parte daqueles que, durante séculos, estiveram silenciados. Para
outros, no entanto, essa emergência faria parte de um novo fervor punitivo que invade o espaço público,
do processo de hipertrofia do Estado Penal ou de constituição de uma nova cultura do controle que se
infiltra em todas as dimensões da sociedade” (“A vítima no processo penal brasileiro: um novo
protagonismo no cenário contemporâneo?”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 86, Set-Out. 2010,
ano 18, p. 250).

480
2.2.5. A reparação dos danos causados à vítima através da justiça penal
substantiva

Uma tentativa de compreensão daquilo que a justiça penal portuguesa já oferece


à vítima no que respeita à reparação dos danos que o crime lhe ocasionou não pode
prescindir de uma referência àquilo que, logo na introdução constante do Decreto-Lei
n.º 400/82, de 23 de Setembro, se proclamava como propósito assumido pelo nosso
ordenamento jurídico. Esse reconhecimento da vítima já constante do Código Penal de
1982 foi sendo depois alargado em sucessivas alterações legislativas.
Começava por se sublinhar que “um outro ponto extremamente importante é o
que se prende com a problemática da vítima. Esta, fundamentalmente depois da 2.ª
Guerra Mundial, começou a ser objecto de estudos de raiz criminológica que chamaram
a atenção para a maneira, às vezes pouco cuidada, como era encarada, não só pela
opinião pública, mas também pela doutrina do direito penal. A vítima passa a ser um
elemento, com igual dignidade, da tríade punitiva: Estado-delinquente-vítima”.
Concretizando esta ideia, acrescenta-se, logo de seguida, que “correspondendo a este
movimento doutrinal, o diploma admite – para lá, independentemente da
responsabilidade civil emergente do crime (artigo 128.º [actual artigo 129.º]) – a
indemnização dos lesados (artigo 129.º [actual artigo 130.º]). Por outro lado, sabe-se
que mesmo em países de economias indiscutivelmente mais fortes do que a nossa ainda
não se consagrou plenamente a criação de um seguro social que indemnize o lesado,
quando o delinquente o não possa fazer. Num enquadramento de austeridade financeira
remete-se para a legislação especial a criação daquele seguro. No entanto, para que a
real indemnização da vítima possa ter algum cunho de praticabilidade, concede-se a
faculdade de o tribunal atribuir ao lesado, a seu requerimento, os objectos apreendidos
ou o produto da sua venda, o preço ou o valor correspondente a vantagens provenientes
do crime pagos ao Estado ou transferidos a seu favor por força dos artigos 107.º a 110.º
[actuais artigos 109.º a 112.º], e as importâncias das multas que o agente haja pago
(artigo 129.º, n.º 3 [actual artigo 130.º, n.º 3]). Vai-se, por consequência, ao ponto de
afectar as próprias multas à satisfação do direito do lesado de ver cumprido o
pagamento da indemnização”841.

841
O balanço que logo que se faz, ainda naquela introdução ao Código Penal, de tais medidas é
claramente positivo: “julgamos que ficam, deste jeito, acautelados os reais interesses dos lesados,
mormente daqueles que foram vítimas da chamada criminalidade violenta”. Finalmente, afirma-se que

481
O Código Penal português assume – como já antes se referiu a propósito de uma
diferenciação da reparação restaurativa face às outras reparações já conhecidas pela
justiça dita “tradicional” –, quer na sua parte geral, quer na sua parte especial, a
pretensão de promover a reparação, admitindo que dela resulte um conjunto de
possíveis efeitos favoráveis para o agente do crime. Assim, logo na Parte Geral, deve
considerar-se o regime de algumas penas de substituição (sobretudo o da suspensão da
execução da pena de prisão, previsto no artigo 50.º ss do CP); o relevo da conduta
destinada a reparar as consequências do crime como factor de medida da pena (artigo
71.º, n.º 2, alínea e do CP); a consagração da reparação como circunstância modificativa
atenuante (artigo 72.º, n.º 2, alínea c do CP); o regime da dispensa de pena, que não
prescinde da reparação do dano (art. 74.º, n.º 1, alínea b do CP). Já na Parte Especial,
assume importância o disposto no artigo 206.º sob a epígrafe “restituição ou reparação”.
Além disso, é no artigo 129.º do Código Penal que se refere a indemnização de
perdas e danos emergentes de crime (dispondo-se que ela “é regulada pela lei civil”) e é
no artigo 130.º que se prescreve que “legislação especial fixa as condições em que o
Estado poderá assegurar a indemnização devida em consequência da prática de actos
criminalmente tipificados, sempre que não puder ser satisfeita pelo agente”. Caso o
lesado não obtenha a indemnização de perdas e danos paga pelo responsável civil e caso
a indemnização pelo Estado não seja possível, os números 2 e 3 do artigo 130.º do
Código Penal admitem outras soluções (residuais) para a reparação dos seus danos: a
requerimento, o tribunal pode atribuir ao lesado “os objectos declarados perdidos ou o
produto da sua venda, ou o preço ou o valor correspondentes a vantagens provenientes
do crime”. Ademais, “se o dano provocado pelo crime for de tal modo grave que o
lesado fique privado de meios de subsistência, e se for de prever que o agente o não
reparará, o tribunal atribui ao mesmo lesado, a requerimento seu, no todo ou em parte e
até ao limite do dano, o montante da multa”.
Entre estas várias normas, indicadas a título de exemplo e com o mero intuito de
ilustrar a preocupação do legislador penal português com a reparação dos danos

«não é só na “Parte Geral” que o Código se revela particularmente atento aos valores e interesses que
relevam na posição da vítima. Há toda a necessidade de evitar que o sistema penal, por exclusivamente
orientado para as exigências da luta contra o crime, acabe por se converter, para certas vítimas, numa
repetição e potenciação das agressões e traumas resultantes do próprio crime. Tal perigo assume, como é
sabido, particular acuidade no domínio dos crimes sexuais, em que o processo penal pode, afinal,
funcionar mais contra a vítima do que contra o próprio delinquente. Daí que, embora aderindo
decididamente ao movimento de descriminalização, o Código não tenha descurado a ponderada
consideração dos interesses da vítima. Como é ainda em nome dos mesmos interesses que o Código
multiplica o número de crimes cujo procedimento depende de queixa do ofendido».

482
causados à vítima, parece merecer destaque especial o instituto da suspensão da
execução da pena de prisão842. Apesar de se distinguir das soluções restaurativas em
sentido estrito (por não pressupor um procedimento em que a vítima seja sujeito
modelador da solução e, sobretudo, por ser condicionada em última análise pelas
finalidades penais), deve reconhecer-se que através da suspensão da execução da pena
de prisão se pode contribuir para a pacificação de um conflito interpessoal, mormente
através da reparação dos danos causados843.

2.2.6. A vítima e o direito processual penal português

A consagração da vítima como destinatária da política criminal é também clara


no direito adjectivo. Quando se pondera o sentido da alteração legislativa sofrida pelo
Código de Processo Penal em 2007, uma das primeiras afirmações com que se é
confrontado na exposição de motivos da Lei n.º 109/X (….) – na origem da Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, a denominada “Lei de Revisão do Código de Processo
Penal”844– é a de que “as alterações pretendem conciliar a protecção da vítima e o
desígnio da eficácia com as garantias da defesa”845.

842
Maria João ANTUNES (“Alterações ao sistema sancionatório”, Revista do CEJ, 1.º semestre 2008, n.º
especial, p. 7) refere a tendência para o “alargamento do âmbito de aplicação das [penas de substituição]
já existentes, devendo destacar-se que passou de três para cinco anos o limite da substituição da pena de
prisão concretamente determinada”.
843
Compreende-se bem, nesta medida, a ideia de Conrad BRUNK, antes referida, de que o surgimento da
proposta restaurativa deve relacionar-se com a experiência de pessoas que já procuravam, através da sua
prática, encontrar respostas não privativas da liberdade para o conflito jurídico-penal, nomeadamente por
via da suspensão da execução da pena (“Restorative Justice and the Philosophical Theories of Criminal
Punishment”, The Spiritual Roots of Restorative Justice, Ed. Michael HADLEY, State University of New
York Press, 2001, p. 33). Quando se analisa o regime jurídico da suspensão da execução da pena de
prisão, verifica-se que entre os deveres que podem ser impostos ao condenado se contam “pagar, dentro
de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerer possível, a indemnização devida ao lesado,
ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea”, assim como “dar ao lesado satisfação moral
adequada” [art. 51.º, n.º 1, als. a) e b) do CP]. Além disso, entre as regras de conduta que podem
acompanhar a suspensão da execução da pena de prisão, contam-se algumas que pressupõem o
consentimento prévio do condenado, o que de certo modo aproxima, ainda que só até certo ponto, este
instituto do procedimento restaurativo. Nos termos do n.º 3 do art. 52.º do CP, “o tribunal pode ainda,
obtido o consentimento prévio do condenado, determinar a sua sujeição a tratamento médico ou a cura em
instituição adequada”. Sobre a suspensão da execução da pena de prisão, cfr. André Lamas LEITE (“A
suspensão da execução da pena privativa de liberdade sob pretexto da revisão de 2007 do Código Penal”,
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, II, Org. de Manuel da Costa Andrade
e outros, Stvdia Ivridica 99, Coimbra: Universidade de Coimbra/Coimbra Editora, 2009, p. 586), para
quem “porventura em nenhum outro instituto como no das penas de substituição se encontra uma
influência tão forte do princípio da humanidade, entendido este em sentido amplo e verdadeiro esteio de
um modelo de política criminal conforme aos ditames de um Estado de Direito democrático e social”.
844
Depois rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 100-A/2007, de 26 de Outubro, e pela
Declaração de Rectificação n.º 105/2007, de 9 de Novembro.
845
Em intervenção proferida a 14 de Março de 2007 na Assembleia da República, o então Ministro da
Justiça afirmou que “esta é uma revisão amiga dos direitos das vítimas. Passam a ser informadas da

483
Não se desconhece, mesmo posteriormente a 2007, o surgimento de novidades
legislativas orientadas para a protecção dos interesses da vítima concreta846. Todavia, a
razão pela qual se julga pertinente a consideração autónoma das alterações de 2007
prende-se com o relevo atribuído à tutela daquelas necessidades da vítima enquanto
fundamento para a própria mudança. Ou seja: ao contrário do que sucede com alterações
tendencialmente isoladas e que pontualmente foram sendo introduzidas na lei processual
penal com aquele intuito de protecção da vítima, surge em 2007 um conjunto de
novidades relativamente às quais parece justificada uma interrogação: contribuirão essas
alterações para se poder afirmar um outro sentido do papel da vítima no nosso direito

libertação do arguido ou do condenado quando este possa criar perigo. Podem fazer-se acompanhar de
advogado quando intervierem pessoalmente. Passam a ver garantida, em relação a certos crimes, a recolha
de declarações para memória futura. Passam a beneficiar de restrições à publicidade da audiência no caso
de crimes sexuais e tráfico de pessoas. Têm garantido em melhores condições o acesso aos autos”. A
preocupação, por parte do poder político e do legislador processual penal, com a protecção das
necessidades das vítimas não é, porém, exclusiva do nosso país. Assim, a título de exemplo, tenha-se em
conta o projecto de reforma do direito processual penal apresentado em 2000 pelo Ministério da Justiça
alemão, de cuja motivação constava a afirmação de que “os processos penais devem concluir-se no futuro
com maior rapidez. Paralelamente, devem considerar-se com maior clareza as necessidades das vítimas da
criminalidade. O objectivo é concentrar a procura da verdade, sem perda das garantias do Estado de
Direito, nas respectivas questões decisivas. A reforma impulsiona um fortalecimento da primeira
instância através de uma optimização do inquérito e do procedimento intermédio. A configuração mais
cuidadosa e aberta do procedimento prévio contribuirá para que o juízo oral seja mais eficiente e para
que, com maior frequência do que até agora, a conclusão pacificadora do processo tenha lugar logo na
primeira instância. Antes de tudo, a introdução de possibilidades de configuração e conclusão consensual
favorecerá a concentração do processo penal (…). O campo de prova de todas as reflexões sobre a
reforma foi a sua repercussão sobre a vítima dos factos puníveis e uma mais forte protecção da vítima”
(Bundesministerium der Justiz, Diskussionpapier: Eckpunkte einer Reform des Strafverfahrens, 2000,
apud Enrique BACIGALUPO, “La posición del fiscal en la investigación penal”, Universitas Vitae:
Homenaje a Ruperto Nuñez Barbero, Aquilafuente: Ediciones Universidad de Salamanca, 2007, p. 73). A
razão pela qual se julgou que este curto trecho merece ser enfatizado parece clara: por um lado, ele mostra
a importância da denominada “questão da vítima” no contexto da proposta de reforma do direito
processual penal alemão; por outro lado, a referência à “conclusão pacificadora” do processo e à
expansão das soluções de consenso indiciam, segundo se crê, uma nova compreensão do próprio sentido
das “necessidades da vítima”. A satisfação destas necessidades surge agora associada à possibilidade de a
própria vítima conformar uma solução que seja vista como pacificadora, mais do que à severidade da
resposta punitiva dada pelo Estado.
846
E refira-se, a título de exemplo, a redacção dada ao artigo 393.ºdo CPP pela Lei n.º 26/2010, de 30 de
Agosto. Até então, dispunha-se no artigo, sob a epígrafe “Partes civis”, que “não é permitida, em processo
sumaríssimo, a intervenção de partes civis, sem prejuízo da possibilidade de aplicação do disposto no
artigo 82.º-A”. Nos termos da nova redacção, o n.º 1 do artigo prevê que “não é permitida, em processo
sumaríssimo, a intervenção de partes civis, sem prejuízo do disposto no número seguinte”. E, nos termos
desse novo n.º 2 do artigo, “até ao momento da apresentação do requerimento do Ministério Público
referido no artigo anterior, pode o lesado manifestar a intenção de obter a reparação dos danos sofridos,
caso em que aquele requerimento deverá conter a indicação a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo
394.º”. O facto de se continuar a referir no artigo 394.º, n.º 2, al) b) do CPP que o Ministério Público,
quando faz o requerimento para que o processo seja tramitado na forma sumaríssima, deve indicar a
quantia exacta a atribuir a título de reparação, nos termos do artigo 82.º-A, deixa claro que a possibilidade
prevista na nova redacção de o lesado vir pedir a reparação dos seus danos não preclude, caso a não peça,
a aplicação do artigo 82.º-A. Trata-se, assim, do reconhecimento de uma nova possibilidade do lesado que
não afasta o dever para o Ministério Público de indicar a quantia a atribuir a título de reparação nos casos
em que aquele pedido não seja formulado.

484
processual penal? Poder-se-á afirmar, por força da alteração de 2007, uma qualquer
alteração do modelo processual penal no que respeita à tutela dos interesses da vítima?
É certo que a protecção da vítima surge como o primeiro objectivo expresso logo
na segunda frase do texto explicativo da reforma de 2007 do nosso direito processual
penal. Crê-se que, perante a interrogação sobre as razões que justificam tal eleição,
podem encontrar-se dois níveis de explicação: (I) o legislador processual penal foi
sensível às vagas criminológica e político-criminal que pugnam pela tutela das
necessidades da vítima concreta e pela reparação possível dos danos que o cometimento
do crime lhe causou; ou, (II) quando menciona a protecção da vítima como seu
objectivo primeiro, a Exposição de Motivos da Lei n.º 109/X (…) refere-se antes à
protecção de abstractas vítimas futuras, confundindo-se então tal afirmação com a da
prevenção genérica da criminalidade. De forma sintética, a questão que deve começar
por se formular é a seguinte: que vítima é esta? O que equivale a perguntar se aquela
fundamental intenção de “protecção da vítima” através de um direito processual penal
revisto se refere à protecção da vítima concreta do crime já cometido ou à protecção de
vítimas abstractas de crimes futuros.
Se a interpretação acolhida for esta última, não se encontra nela nada de
particularmente novo. A protecção de vítimas futuras constitui, naturalmente, objectivo
da justiça penal e encontra eco nas finalidades penais de prevenção geral e de prevenção
especial. Por outro lado, quando se afirma que “as alterações [ao Código de Processo
Penal] pretendem conciliar a protecção da vítima e o desígnio da eficácia com as
garantias da defesa”, parece que “protecção da vítima” e “eficácia” são distintos
desígnios. Assim, concretizando-se a eficácia através da realização da justiça para o
caso concreto de modo a permitir a prevenção de crimes futuros – com a consequente
protecção dos cidadãos de se tornarem vítimas futuras –, aquela intenção de “protecção
da vítima” só adquire sentido, na sua autonomia, se a interpretarmos como protecção da
vítima concreta. Ademais, para a eleição deste entendimento – o entendimento de que o
legislador processual penal pretendeu, com a alteração de 2007, fortalecer a posição da
vítima concreta – convergem, repita-se, os ventos da hodierna política criminal, que
acolheu definitivamente a vítima concreta e presente como destinatária das suas
orientações, ventos que não podiam deixar de soprar no modelo português de reacção ao
crime, condicionando-o e arrastando-o para novas formulações847.

847
Neste sentido, já em 1989, Jorge de FIGUEIREDO DIAS e Anabela Miranda RODRIGUES
sublinharam que “sem pôr em causa o carácter eminentemente público e indisponível da pretensão

485
Esboçada esta primeira delimitação do assunto, impõe-se uma interrogação sobre
o que deve entender-se por protecção da vítima, na acepção escolhida e antes
justificada. Ora, tendo o crime sido já praticado – na sua forma consumada ou apenas
tentada –, a protecção desta vítima concreta não pode traduzir-se essencialmente em
evitar a causação de um mal que, de um modo ou de outro, já ocorreu. Assim, a
protecção da vítima deverá espraiar-se por vários outros planos, entre os quais se
destacam (I) a adopção de um tratamento processual que não ofenda a sua dignidade e
não potencie o seu sofrimento848; (II) a promoção da sua segurança face a potenciais
agressões por parte do agente do crime ou pelos seus próximos (o que, nesta
perspectiva, esbate – não a eliminando – a distinção entre a vítima concreta e presente e
a vítima abstracta e futura, na medida em que aquela é subconjunto deste tão mais
amplo conjunto); (III) a oferta de uma possibilidade de reparação – ou de minimização –
dos danos de diversas espécies quesofreu.
Interpretada aquela intenção manifestada na Exposição de Motivos da Lei n.º
109/X (…) de “protecção da vítima” como dirigida a uma vítima concreta que já foi
prejudicada de forma não insignificante pelo cometimento de um crime – o que abrange
quer o ofendido pelo cometimento do crime, quer o lesado – e esboçado o sentido geral
que deve assumir aquela protecção, deve dar-se o passo seguinte. Esse passo,
metodologicamente, parece não poder deixar de consistir na comparação das soluções
previstas no Código de Processo Penal reformado com aquela manifestação de
intenções político-criminais.
Deixar-se-á, assim, para momento posterior a reflexão sobre uma questão que,
em certo sentido, talvez deva considerar-se prévia: apesar da prioridade que naquela

jurídico-punitiva do Estado, a necessidade de protecção da vítima concreta e individualizada do crime


[itálico nosso] é hoje por todos considerada uma dimensão irrenunciável de uma política criminal
moderna e eficaz” (in A legitimidade da S.P.A em processo penal, Separata do 3.º volume da colecção
“Temas de Direito de Autor”, Edição da S.P.A., 1989, p. 113).
848
Existem Autores, como Sérgio Salomão SHECAIRA (Criminologia, 2.ª edição, cit., p. 59) que optam
por distinguir o conceito de vitimização secundária (aquela originada pelo contacto da vítima com as
instâncias formais de controlo, do conceito de vitimização terciária, associado a formas excepcionais de
sofrimento em que pode ser o próprio agente do crime a tornar-se vítima do sistema repressivo em medida
insuportável. Nas palavras do Autor, “a vítima terciária é aquela que, mesmo possuindo um envolvimento
com o fato delituoso, tem um sofrimento excessivo, além daquele determinado pela lei do país. É o caso
do acusado do delito que sofre sevícias, torturas ou outros tipos de violência (às vezes dos próprios
presos), ou que responde a processos que evidentemente não lhe deveriam ser imputados”. Não se vê,
porém, grande vantagem na adopção de um conceito de vitimização terciária com este sentido,
nomeadamente porque parece fomentar uma certa confusão entre a compreensão dos efeitos negativos
que podem decorrer para a vítima da sua relação com a justiça penal, e aqueles outros efeitos negativos
que desde os anos sessenta do século passado (e muito graças à criminologia crítica) se vêm apontando ao
funcionamento das instâncias de controlo relativamente ao agente (e que, no pensamento criminológico,
se associam com frequência à explicação da delinquência secundária).

486
exposição de motivos se dá à protecção da vítima, até que ponto deve e pode ela chegar
no direito processual penal? Antes de se procurar uma hipótese de resposta para esta
questão, veja-se, porém, se àquela manifestação de vontade de protecção da vítima
corresponde, de facto, uma alteração significativa do seu papel (talvez com mais
correcção, dos vários papéis que pode assumir) no processo penal português. O que
equivale a afirmar que se interrogará primeiro aquilo que a vítima passou a ser, e só
depois se enfrentará a questão de saber aquilo que ela deve – e pode – ser.

2.2.6.1  A vítima no Código de Processo Penal antes da revisão de 2007 – uma


tentativa de síntese do seu papel (ou papéis)

A compreensão daquilo que a vítima passou a ser à luz deste Código de Processo
Penal com as alterações que lhe foram introduzidas em 2007849 não pode prescindir,
porém, da compreensão, ainda que perfunctória, daquilo que a vítima já era. A descrição
e a avaliação da mudança supõem, pois, o conhecimento da situação prévia.
Parece poder afirmar-se que, à luz do Código de Processo Penal de 1987, a
vítima surgia na justiça penal sob duas distintas vestes: ou se apresentava enquanto
ofendido – e, nessa medida, enquanto “titular dos interesses que a lei especialmente quis
proteger com a incriminação” –; ou assumia o papel de lesado – sendo, enquanto tal, “a
pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime”. A referência a estas duas categorias
afigura-se essencial, na medida em que as possibilidades de intervenção no processo – e
o sentido dessa intervenção – variam decisivamente em função da qualidade de
ofendido ou de lesado: o primeiro é definido em função do tema penal e o segundo é
definido na essência em função do tema civil. Ora, daqui decorre uma consequência
fundamental: o ofendido, sobretudo quando se constitui assistente, desempenha o seu
papel no fito de obtenção de uma resposta à questão criminal; o lesado concebe a sua

849
Para uma descrição mais ampla, ainda que sucinta, das alterações do CPP pela revisão de 2007, cfr.
Rui PEREIRA, «Entre o “garantismo” e o “securitarismo”. A revisão de 2007 do Código de Processo
Penal», in Que Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS,
Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 247 ss.
Apesar de as mudanças da lei processual penal condicionadas pela defesa dos interesses da vítima não
serem o único tema de reflexão, vão sendo feitas referências a esse interesse a propósito de institutos
como a suspensão provisória do processo, sobretudo nos casos dos regimes especiais previstos para os
“crimes de violência doméstica e contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravados
pelo resultado” (ob. cit., p. 262).

487
intervenção no processo tendo por horizonte a questão cível e a obtenção de uma
indemnização pelos danos que sofreu850.
A conclusão que daqui se pretende extrair é sobretudo uma. Quando, face às
acusações de esquecimento da vítima, se alega que o reconhecimento que se lhe atribui
no nosso direito processual penal é tão grande que o ofendido pode até, mediante um
acto de vontade, transfigurar-se em assistente851 e adquirir os direitos de um sujeito
processual, o que se esquece é que, (I) quando, por circunstâncias várias, o ofendido não
tiver podido ou querido constituir-se assistente, não lhe assistem aqueles direitos852; (II)
nessa qualidade de assistente, a vítima mais não pode do que pretender condicionar a
resposta à questão penal. Ora, por ser assim, a única matéria que o assistente pode
pretender influenciar é a atinente à condenação do agente a uma pena ou a uma medida

850
No processo penal, as partes civis têm natureza activa (o lesado), ou passiva (o responsável civil). Este
responsável civil pode não coincidir com o arguido, sendo antes um avalista ou fiador, por exemplo. Por
outro lado, também o lesado pode não coincidir com o ofendido. Finalmente, o assistente pode não ser o
ofendido, mas apenas a pessoa que nos termos da lei deve representá-lo no processo (e também o
ofendido pode não ser assistente em todos aqueles casos em que resolver não se constituir como tal).
851
É, de resto, a esta possibilidade de constituição como assistente que se atribui relevo logo na
Exposição constante do Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro: “paradigmático a este respeito é o que
se passa com o estatuto da vítima-assistente, que nos singulariza claramente no contexto do direito
comparado e por cujo modelo começam agora a orientar-se os movimentos de reforma de muitos países,
sob o impulso das mais recentes investigações criminológico-vitimológicas”. Em sentido muito próximo,
Jorge de FIGUEIREDO DIAS e ANABELA Miranda RODRIGUES sublinham que essa “novidade” que
é o reconhecimento da necessidade de protecção daquela vítima concreta “é muito maior para a
generalidade dos países europeus – sobretudo do centro e do norte da Europa – do que para um país como
Portugal, que desde há muito concede à vítima a maior protecção possível, que é a de lhe outorgar voz
autónoma logo ao nível do processo penal na veste, desconhecida da prática totalidade das legislações
europeias, de assistente” (in A legitimidade da S.P.A cit., p. 113). O reconhecimento de uma certa
especificidade da configuração do sujeito processual assistente no direito processual penal português é
visível também no pensamento de José DAMIÃO DA CUNHA (“Algumas reflexões sobre o estatuto do
assistente e seu representante no direito processual penal português”, RPCC, ano 5, n.º 2, Abril-Junho,
1995, p. 153 ss). A questão é revisitada, ainda que de forma sucinta, no estudo de Arménio
SOTTOMAYOR, “A voz da vítima” (Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Org. Jorge de
Figueiredo Dias/Ireneu Barreto/Teresa Beleza/Eduardo Paz Ferreira, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p.
841 ss), a partir de uma ponderação das formas de participação da vítima no processo penal no direito
comparado, vincando-se que, entre nós, “tem faltado o reconhecimento dum papel processual mais activo
durante o inquérito, fase crucial no apuramento dos factos e onde a colaboração da vítima pode ser
especialmente relevante”.
852
Como muito bem nota José DAMIÃO DA CUNHA (“A participação dos particulares no exercício da
acção penal”, RPCC, ano 8, n.º 4, Out-Dez 1998, p. 630), a constituição como assistente supõe a
verificação da legitimidade material (só pode constituir-se assistente aquele que é o titular do interesse
que a lei especialmente quis proteger com a incriminação), o que deve compreender-se à luz do critério
que Jorge de FIGUEIREDO DIAS e ANABELA RODRIGUES adiantam para avaliar de tal titularidade,
ao considerarem “o bem jurídico como valor corporizado ou objectivado no seu concreto suporte ou
portador” (ob. cit., p. 115). O ofendido que pode constituir-se assistente será, então, apenas aquele que
possa ser visto como o concreto portador ou suporte do bem jurídico. Todavia, para além desta
legitimidade material, José DAMIÃO DA CUNHA refere-se ainda à necessidade de legitimidade
processual, já que “a constituição como assistente supõe a realização de um procedimento formal para
que tal constituição opere eficácia. Além da necessidade de um requerimento dirigido expressamente a tal
constituição (efectuado dentro do prazo previsto), a legitimação opera-se por uma decisão judicial”. Os
números 2 a 5 do artigo 68.º CPP parecem coerentes com este entendimento.

488
de segurança – mesmo assim, como se verá, com limitações853. E estas, ainda que em
concreto possam interessar à vítima, não são determinadas em primeira linha em função
desse interesse nem corresponderão – pelo menos em muitos casos – aos seus principais
interesses.
Em síntese apertada: (I) nem todas as vítimas podem constituir-se assistentes, na
medida em que tal só é possível quando estiverem verificados os requisitos de
legitimidade material e de legitimidade formal; (II) a vítima, mesmo quando “cabe” no
conceito estrito de ofendido854 e logrou, além disso, cumprir os requisitos formais e
constituir-se assistente no processo, tem neste processo uma intervenção limitada ao seu
papel de colaborador do Ministério Público. Quando, no n.º 1 do artigo 69.º CPP, se
dispõe que “os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja
actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei”, o que
parece poder subentender-se é que o assistente auxilia o Ministério Público na sua
função de realização da justiça penal (ou, em perspectiva próxima, que os seus
concretos interesses no processo só são atendíveis enquanto coincidirem com o
interesse colectivo na realização da justiça penal855).
O que se vem de dizer parece conduzir à verificação de que não será através da
sua intervenção no processo penal como assistente – nos casos em que ela é possível –
que a vítima obterá sempre uma reparação dos vários danos que o crime lhe causou.
Todavia, ainda que assim seja, pareceria não sobrar qualquer espaço de desprotecção da
vítima: constituindo-se assistente, o ofendido defenderia o seu interesse na condenação

853
Essas limitações decorrem do facto de o assistente ser um “sujeito processual eventual e secundário
(até porque desvalorizado, no seu estatuto, a colaborador do MP e subordinado a este)”. As palavras são
de José DAMIÃO DA CUNHA (últ. ob. cit., p. 629), que, antes desta conclusão, afirma que «sendo
considerado sujeito processual, o assistente não goza de um estatuto processual idêntico ao dos restantes
sujeitos processuais (MP e arguido), desde logo porque não se trata de um sujeito processual
“necessário”. Mesmo quando validamente constituído como tal, o assistente não goza, em termos de
estatuto processual, de uma mesma parificação com os outros sujeitos processuais – assim bastará a
consideração das diferentes consequências processuais quanto ao seu não comparecimento a julgamento
ou à sanção da ausência de notificação para comparência a actos processuais».
854
A intenção de facilitar a participação da vítima no processo penal – de modo coerente com o programa
político-criminal inerente à vitimologia, com o actual modelo processual penal e com as novas formas
assumidas pelos bens jurídicos e relacionadas com a sua natureza difusa, com a intersubjectividade ou a
indivisibilidade – parece estar na base da crítica, por Augusto SILVA DIAS, de um conceito restrito de
ofendido (“A tutela do ofendido e a posição do assistente”, Jornadas de Direito Processual Penal e
Direitos Fundamentais, coord. Maria Fernanda PALMA, Coimbra: Almedina, 2004, ps. 57-60). Esta
questão será, porém, revisitada em momento posterior do estudo, quando se enfrentarem as dificuldades
específicas que os crimes ditos “sem vítimas” representam para a proposta restaurativa.
855
No que, uma vez mais, se coincide com a afirmação de José DAMIÃO DA CUNHA (últ. ob. cit., p.
638) de que «o interesse que o assistente eventualmente corporize (que tem de ser um interesse particular,
autónomo) tem que estar subordinado ao interesse público, pelo que a actuação do assistente, fundada no
interesse particular, só assume relevância (processual) na medida em que contribua para uma melhor
realização da Administração da Justiça (ou, no caso concreto, um melhor exercício da “acção penal”)».

489
penal do agente; enquanto lesado, obteria a reparação dos danos que o crime lhe causou
através do pedido de indemnização cível enxertado no processo penal.
A esta lógica de separação das questões penais e cíveis, tão confortavelmente
arrumada, talvez possam, porém, opor-se dois argumentos principais: (I) quer a
indemnização civil, quer a reparação esporadicamente referida em normas penais de
natureza substantiva e adjectiva não são, com frequência, atribuídas às vítimas,
nomeadamente porque o agente do crime não pode indemnizar ou reparar e o dever de o
Estado assumir subsidiariamente esse dever tem recorte muito limitado; (II) existem
necessidades das vítimas que não logram ter uma resposta através da soma da
condenação do agente a uma pena e da condenação do agente ao pagamento de uma
indemnização, porque a reparação necessária pode ultrapassar em muito a
indemnização; (III) a cisão entre aquelas duas distintas formas (a pena e a
indemnização) dificulta a aplicação ao agente de uma única reacção ao crime que seja
simultaneamente punitiva e reparadora, sendo que esta reacção única poderia – por
razões várias que não cabe neste contexto desenvolver – contribuir para tornar o sistema
punitivo menos severo e criminógeno para o agente do crime e mais satisfatório para a
sua vítima.
A reparação enquanto consequência jurídica autónoma do crime suscita, porém,
várias e conhecidas dificuldades856, como antes se procurou mostrar. Pretende-se, nesta
sede, sublinhar apenas uma: a reparação dos danos causados à vítima concreta supõe
uma quantificação desses danos que, quando são não patrimoniais, se associam à dor.
Mas será essa dor, tão subjectiva, variável e, em parte, tão independente do que fez o
agente, parâmetro ou limite adequado para uma sanção penal? Relembrem-se as
palavras com que Nils CHRISTIE abre a sua obra Limits to Pain: “eu não sei
exactamente o que é a dor, nem como graduá-la. A literatura está cheia de heróis tão
grandes que a dor se torna pequena e de cobardes tão pequenos que quase tudo se torna
dor. Para arranhar a essência da dor, cada um teria de entender a essência do bem, assim
como do mal. Eu abstenho-me dessa tentativa”857.
Apesar das dificuldades suscitadas pela tutela das várias expectativas da vítima
através da justiça penal, deve notar-se que, desde a entrada em vigor do CPP de 1987

856
Nas palavras de Mário MONTE (in “Da reparação penal como consequência jurídica autónoma do
crime”, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, 2003, ps. 144-5) “a reparação penal tem algo
de diferente relativamente às penas. Ela deve procurar, ao mesmo tempo, ir ao encontro dos fins das
penas, dispensando-as, e ir ao encontro dos interesses da vítima, dispensando a reparação civil”.
857
Nils CHRISTIE, Limits to Pain cit., p. 2.

490
até à sua revisão em 2007, foram sendo dados vários passos no sentido da maior
protecção da vítima, que aqui não serão objecto de tratamento exaustivo. Sublinhe-se,
apenas, que a revisão constitucional de 1997 fez referência expressa ao ofendido,
dispondo-se agora no n.º 7 do artigo 32.º da CRP que “o ofendido tem o direito de
intervir no processo, nos termos da lei”. Destaque-se que também a revisão do Código
de Processo Penal de 1998 assumiu a melhoria da protecção da vítima como objectivo
seu. Um mecanismo interessante foi nessa altura introduzido no artigo 82.º- A, sob a
epígrafe “reparação da vítima em casos especiais”858. E foi também a revisão de 1998
que, como bem nota Frederico da COSTA PINTO, “consagrou no art. 75.º do CPP o
dever de notificar o eventual lesado da possibilidade de deduzir pedido de indemnização
civil no processo penal e das formalidades a observar”859, tendo alargado o “elenco de
direitos atribuídos ao lesado”.

2.2.6.2. A revisão de 2007 do Código de Processo Penal na óptica da vítima –


uma tentativa de síntese

O que deve questionar-se agora é se a revisão860 de que o Código de Processo


Penal foi objecto em 2007 permite afirmar uma alteração qualitativa do papel da vítima

858
Nos termos do n.º 1 deste artigo 82.º - A do CPP, “não tendo sido deduzido pedido de indemnização
civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de
condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares
exigências de protecção da vítima o imponham”. A redacção adoptada não permite que, sem margem para
dúvidas, se afirme qual a natureza jurídica desta reparação. Tratar-se-á de uma reparação com verdadeira
natureza penal, ou antes de uma indemnização civil? Os sinais parecem ser contraditórios, porque se a
referência a “reparação” na epígrafe e no corpo da norma e sobretudo a sua dependência de uma efectiva
condenação apontam no primeiro sentido, já a circunstância de a dedução de pedido cível precludir esta
reparação e a sua dependência face às necessidades da vítima e não à responsabilidade do agente parecem
indicar que se trata de uma indemnização civil de arbitramento oficioso. Perfilhando a conclusão de que
se trata de “uma indemnização civil, de arbitramento oficioso, em caso de condenação”, cfr. Sónia
FIDALGO, “O consenso no processo penal: reflexões sobre a suspensão provisória do processo e o
processo sumaríssimo”, RPCC, ano 18, n.º 2 e 3, Abril-Set 2008, p. 312.
859
Frederico da COSTA PINTO, “O estatuto do lesado no processo penal”, Separata de Estudos em
Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra: Coimbra Editora: 2001, ps. 700 e 703.
860
Utiliza-se aqui o conceito de “revisão” e não o de “reforma” por se julgar que as modificações
introduzidas não significam uma alteração dos princípios que estruturam o direito processual penal
português. A questão é, todavia, complexa e, por pressupor uma reflexão muito mais ampla sobre o
conjunto dessas alterações, deve permanecer exterior aos limites desta investigação. Jorge de
FIGUEIREDO DIAS considera que se tratou de uma revisão e não de uma reforma porque não houve “o
menor sinal da intenção de modificar o modelo (ou o sistema) processual penal português, tal como foi
cunhado pelo CPP de 1987” (in “Sobre a revisão de 2007 do Código de Processo Penal Português, RPCC,
ano 18, n.º 2 e 3, 2008, p. 368). Sobre o assunto, José de FARIA COSTA também entende que “a
substância e a razão de ser” do Código de Processo Penal se mantêm, apesar das alterações (“Os códigos
e a mesmidade: o código de processo penal de 1987”, Que Futuro para o Direito Processual Penal,
coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO,
Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 441).

491
no processo penal. Antecipe-se que a resposta será negativa. Existem algumas
novidades, pontuais, que não significam qualquer mudança estrutural victim-oriented861.
Na referida Proposta de Lei n.º 109/X, depois de se manifestar a intenção de
protecção da vítima, afirmava-se que a mesma é “reforçada, designadamente, em sede
de segredo de justiça, escutas telefónicas, acesso aos autos, informação sobre fuga e
libertação de reclusos, declarações para memória futura e suspensão provisória do
processo”.
O segredo de justiça constitui, sobretudo a partir desta revisão, tema cada vez
mais complexo. E, ademais, externo aos objectivos deste estudo. Todavia, não se julga
evidente que a sua limitação favoreça inequivocamente a vítima. É certo que, nos
termos da actual redacção do n.º 1 do artigo 89.º, “durante o inquérito, o arguido, o
assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil podem consultar, mediante
requerimento, o processo ou elementos dele constantes”. Pode temer-se, porém, que esta
restrição do segredo interno favoreça, ao contrário do pretendido, situações de
intimidação ou de ameaça em relação às vítimas. E, na medida em que a expansão da
publicidade prejudicar a eficácia da justiça penal, criando obstáculos inultrapassáveis à
descoberta da verdade e à punição, não se vê que daqui decorra vantagem assinalável
para as vítimas862.

861
Em sentido não muito distante, cfr. Paulo PINTO DE ALBUQUERQUE, para quem a revisão do
processo penal “não resolve de maneira cabal os desafios mais importantes que se colocam no momento
presente”, estando entre eles “o princípio do processo restaurativo e protector das vítimas”. Para
exemplificar a insuficiência das soluções existentes, o Autor enfrenta várias questões, entre as quais a da
possibilidade de o assistente recorrer autonomamente da medida e/ou da espécie da pena, “a timidez da
suspensão provisória do processo e da mediação” ou a “semi-publicização dos crimes particulares”, que
resultaria sobretudo do n.º 5 que o projecto de revisão aditava ao artigo 285.º do CPP, mas que acabou por
não ter acolhimento na versão final da lei (“Os princípios estruturantes do processo penal português – que
futuro?”, Que Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS,
Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, ps 419,
433). Paulo de Sousa MENDES (“A Revisão do Código de Processo Penal”, A Reforma do Sistema Penal
de 2007 – Garantias e Eficácia, Justiça XXI, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 19), a propósito de uma
ponderação das novidades introduzidas pela revisão de 2007 do CPP, refere que “o CPP não é parco na
protecção concedida à vítima, mas ainda assim são estabelecidas novas medidas”. Para além de algumas
daquelas a que se atribuirá ênfase, menciona-se que “o ofendido passa a ser informado da notícia do
crime, sempre que o ministério público (MP) tiver razões para crer que ele não a conhece (art. 247.º, n.º
1)”; “para viabilizar o procedimento criminal nos casos de denúncia anónima, a autoridade judiciária ou
órgão de polícia criminal (OPC) competentes passam a informar o titular do direito de queixa ou
participação da existência da denúncia, contanto que dela se retirem indícios da prática de crime ou ela
mesma constitua crime (art. 246.º, n.º 6)”.
862
Em certa perspectiva, aquilo que se traduz em perda de eficácia para a justiça penal acaba por ser
desvantajoso para a vítima, na medida em que o interesse desta também seja o da punição. Frederico da
COSTA PINTO (últ. ob. cit., p. 688), ainda que não com um sentido tão amplo, afirma “os efeitos que o
atraso dos processos tem sobre as vítimas concretas, quer pelo distanciamento temporal das decisões em
relação à data dos factos, quer pelo desgaste a que são submetidos os sujeitos processuais, quer ainda por
via do funcionamento do instituto da prescrição”.

492
Alargou-se a proibição de divulgação da identidade de vítimas de crimes,
passando a dispor-se que não é autorizada, sob pena de desobediência simples, “a
publicação, por qualquer meio, da identidade de vítimas de crimes de tráfico de pessoas,
contra a liberdade e autodeterminação sexual, a honra ou a reserva da vida privada,
excepto se a vítima consentir expressamente na revelação da sua identidade ou se o
crime for praticado através de órgão de comunicação social” [artigo 88.º, n.º 2, al. c)
CPP]863.
Relativamente às escutas telefónicas, a lei passou a dispor que a vítima do crime
pode ser a elas sujeita, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido, o
que pode ser útil à comprovação da responsabilidade do agente [artigo 187.º, n.º 4, al) c
do CPP]. Além disso, parece considerar-se admissível a localização celular da vítima
em situação que permita afastar perigo para a vida ou perigo de ofensa à integridade
física grave, sem dependência de prévia decisão judicial (artigo 252.º - A do CPP).
O princípio da imediação da prova é limitado, como se sabe, pela
admissibilidade, em alguns casos, de declarações para memória futura. Agora, além das
vítimas de crimes sexuais, admitem-se as declarações para memória futura das vítimas
de crimes de tráfico de pessoas (artigo 271.º, n.º 1 do CPP) e impõe-se tal procedimento
relativamente a vítimas ainda menores de 16 anos de crimes contra a liberdade e
autodeterminação sexual de menor (artigo 271.º, n.º 2 do CPP).
É de saudar que a possibilidade de suspensão provisória do processo passe a
existir também a requerimento do arguido ou do assistente. O assistente pode lograr,
através desta forma de diversão, uma reparação dos danos que lhe foram causados mais
satisfatória. Já não se compreende bem, porém, o disposto no actual n.º 8 do artigo 281.º
do CPP864, nos termos do qual o Ministério Público, com a concordância do Juiz de

863
Na redacção anterior da norma interditava-se “a publicação, por qualquer meio, da identidade de
vítimas de crimes sexuais, contra a honra ou contra a reserva da vida privada, antes da audiência, ou
mesmo depois, se o ofendido for menor de 16 anos” (itálico nosso).
864
Este nº 8 do art. 281.º do CPP tem redacção próxima da adoptada no art. 178.º, n.º 3 do CP. Parece
curisoso notar os movimentos de sinal oposto que se manifestaram relativamente a crimes em que são
ofendidos menores de 16 anos No caso previsto no n.º 8 do art. 281.º CPP, sendo os crimes públicos,
admite-se que não haja julgamento sem se exigir de forma expressa a não oposição do ofendido à
suspensão provisória do processo, valorando o Ministério Público o interesse do menor no sentido da não
acusação. Pelo contrário, nos casos previstos no n.º 5 do art. 113.º do CP, permite-se, relativamente a
crimes dependentes de queixa de que são vítimas menores, que o Ministério Público promova o processo
sem aquela queixa. Podia dizer-se que não há aqui qualquer incoerência, na medida em que em ambas as
situações se excepcionam regras relativas à promoção processual (ainda que com sentidos divergentes)
em nome do interesse do menor. Julga-se, porém, que existe uma diferença significativa: no caso do n.º 5
do art. 113.º do CP, existem estudos de natureza empírica que fundamentam a solução, atenta a frequência
com que os titulares do direito de queixa são os próprios agentes do crime e pretendendo-se, assim, evitar
a impunidade contra o interesse do menor. No n.º 8 do art. 281.º do CPP, pelo contrário, o que se permite

493
Instrução e do arguido, pode determinar a suspensão provisória do processo relativo a
crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravado pelo
resultado, tendo em conta o interesse da vítima mas não se exigindo a sua
concordância. Solução que é, de resto, diversa da adoptada para a suspensão provisória
do processo em casos de violência doméstica, onde se exige requerimento livre e
esclarecido da vítima865 866.
Já em sede de execução da pena de prisão, passou em 2007 a dispor-se no n.º 3
do artigo 480.º do CPP que “quando considerar que a libertação do preso pode criar
perigo para o ofendido, o tribunal, oficiosamente ou a requerimento do Ministério
Público, informa-o da data em que a libertação terá lugar”. A norma foi entretanto
revogada pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, que aprovou o Código da Execução

é a não punição no interesse do menor, o que já se afigura de mais difícil compreensão. Julga-se,
sobretudo, que o legislador devia ter esclarecido que tal suspensão não será possível face à discordância
expressa do ofendido. Na inexistência de tal esclarecimento, acredita-se que o bom senso e a
objectividade das autoridades judiciárias, tendo em conta o sentido da norma, impedirão uma suspensão
provisória do processo nos termos do n.º 8 do art. 281.º naqueles casos em que o menor ofendido pretenda
a submissão do agente do crime a julgamento. De resto, mesmo a propósito das soluções “que permitem
ao MP impulsionar o processo penal em crimes cujo início está dependente de queixa se o interesse da
vítima o impuser”, Frederico da COSTA PINTO (últ. ob. cit., p. 690) já considerava que “a lei consagra
uma solução excepcional e bem intencionada, mas que pode ser contrária aos interesses da vítima, a
diversos níveis”. E o Autor critica o facto de se não ter imposto expressamente “um dever de audição da
vítima nestes casos, o que pareceria de elementar prudência”. Com a máxima importância, acrescenta
Frederico da COSTA PINTO que, todavia, esse dever se tem de considerar “implícito na condição
material expressa nos preceitos: só ouvindo a vítima é na realidade possível identificar os especiais
interesses (da vítima e não da pretensão sancionatória assumida pelo MP) que podem ditar a promoção
oficiosa do processo”. Ora, se bem se vê o problema, estas razões que impõem a audição da vítima para
que o processo se promova no seu interesse, mesmo não havendo queixa, fazem-se sentir de forma
acrescida quando está em causa a possibilidade de, num crime público que tem vítimas menores, se
suspender provisoriamente o processo. Sendo esta doutrina já conhecida muito antes da revisão de 2007
do Código de Processo Penal, parece particularmente criticável a ausência de exigência expressa de
concordância do ofendido (capaz de a manifestar) para a aplicação do n.º 8 do artigo 281.º CPP. Sobre a
preponderância do interesse real do menor, a propósito do anterior regime previsto no n.º 4 do artigo 178.º
do CP, afirmava Maria João ANTUNES que “o interesse que releva neste âmbito é o interesse da vítima e
não, repita-se, o interesse comunitário na perseguição de crimes” (“Oposição de maior de 16 anos à
continuação de processo promovido nos termos do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal”, Revista do
Ministério Público, ano 26, Julho-Setembro de 2005, n.º 103, p. 36).
865
A referência, no n.º 6 do artigo 281.º do CPP, ao requerimento livre e esclarecido da vítima e não do
assistente, conjugada com a não exigência de verificação do pressuposto para a suspensão provisória do
processo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo (“concordância do arguido e do assistente”) pode, de
resto, sustentar a interpretação de que basta, para esta suspensão provisória do processo, a manifestação
de vontade do ofendido pelo crime de violência doméstica. O facto de se não impor a constituição de
assistente para que a vítima de violência doméstica logre evitar a sujeição do arguido a julgamento pode
ser vista, de resto, como uma forma de facilitar a sua intervenção no processo, tendo em conta os
requisitos que presidem àquela constituição como assistente.
866
Teresa BELEZA pondera a exigência deste requerimento livre e esclarecido, “indiciando a razão pela
qual a privatização legal do processo é problemática nestes crimes: a falta de liberdade efectiva de
decisão por parte de quem sofre a violência”. Depois de questionar se se deve proteger uma vítima contra
a sua própria vontade, a Autora esclarece que o legislador optou pela publicização a partir de 2000,
«ainda que com a “válvula de segurança” da possibilidade de suspensão provisória» (“Violência
Doméstica” – Revista do CEJ, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 8, n.º especial, 2008, p. 282
ss).

494
das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade, passando a dispor-se no n.º 3 do
artigo 23.º deste novo regime jurídico que “quando considerar que a libertação do
recluso pode criar perigo para o ofendido, o tribunal competente informa-o da data da
libertação, reportando-o igualmente à entidade policial da área da residência do
ofendido”. O que se pergunta, face a este dispositivo, é se não poderia ter-lhe sido dado
um maior âmbito, estendendo-se tal dever de informação a todos os ofendidos pela
prática de crimes de determinada natureza (crimes mais graves contra as pessoas e
crimes que ocorrem num contexto de proximidade), assim como a todos os casos de
existência de assistente constituído no processo (havendo um ofendido que manifestou a
vontade de se tornar sujeito do processo e assim condicionar a resposta à questão penal,
não se lhe deveria dar conta do termo da resposta punitva?).

2.2.6.3. A questão da titularidade do conflito e a (in)existência de uma mudança


de paradigma

Uma consideração conjunta destas alterações normativas de 2007 – apresentadas


como as mais representativas na perspectiva da vítima – conduz-nos à conclusão de que
elas assumem um carácter pontual, não alterando em nada a concepção do processo
penal sobretudo como um assunto da comunidade representada pelo Estado, o que se
manifesta na estrutura essencialmente bilateral do processo que opõe o arguido ao
Estado punitivo867. As vítimas continuam a poder classificar-se como lesados, ofendidos
ou assistentes – sendo que este assistente, o único que é um sujeito processual, não
assistiu a um alargamento relevante dos seus poderes de conformação do processo.
De facto, no que respeita ao sentido da intervenção do assistente, não se
encontram alterações particularmente significativas868. Alargou-se de 8 para 10 dias o

867
Com isto pretende-se apenas significar que é função do processo penal determinar se um agente
cometeu ou não um determinado crime e, caso haja prova da sua responsabilidade, determinar a
consequência concreta que deve corresponder ao seu crime. Logo, temos num pólo o Estado que pode
punir e no outro pólo o arguido que pode ser punido. Não se pretende adentrar a teoria da relação jurídica
processual penal, referida por José DAMIÃO DA CUNHA (últ. ob. cit., p. 628), “deixando em aberto
saber se se trata de uma relação trilateral (MP – arguido – tribunal) ou bilateral”.
868
Havendo, no projecto de revisão de 2007, a intenção de evitar a realização da audiência de julgamento
por crime particular em sentido estrito quando o Ministério Público não sustentasse a existência de
indícios suficientes de um crime, essa solução acabou por não constar da versão final da lei que alterou o
CPP. Defendendo a solução que constava do Projecto, Germano MARQUES DA SILVA (“Um olhar
sobre o projecto e o acordo político para a revisão do Código de Processo Penal”, Julgar, n.º 1, 2007, p.
146) considera “não fazer sentido, tendo em conta a estrutura do Código, que entendendo o Ministério
Público não dever acompanhar a acusação particular (…), mesmo assim o assistente possa vir por via da
acusação particular submeter o arguido a julgamento”. E o Autor acrescentava que lhe parecia correcto

495
prazo para a sua constituição nos crimes particulares (artigo 68.º, n.º 2 do CPP) e
esclareceu-se que “os assistentes podem ser acompanhados por advogado nas
diligências em que intervierem” (artigo 70.º, n.º 3 do CPP)869.
Todavia, o legislador processual penal não aproveitou o ensejo da revisão para
esclarecer o âmbito de intervenção dos assistentes quanto a vários aspectos que têm sido
tratados pela jurisprudência e objecto de decisões nem sempre inquestionáveis870.
Considerem-se, em jeito de relance, alguns deles “problemas irresolvidos”, apenas para

que “em face de um juízo negativo do Ministério Público sobre a acusação particular (juízo que conduz
ao arquivamento) o que o assistente deve fazer é requerer a abertura da instrução para comprovar
judicialmente aquela decisão de arquivamento, o que o projecto estabelece [al. c) do art. 287.º]”. A
preocupação com a realização de julgamentos indevidos – na hipótese de crimes particulares em sentido
estrito –, porque alicerçados apenas na vontade do assistente e não na comprovação objectiva do
Ministério Público sobre a sua necessidade, é sustentada também por outros Autores, como Cecília
SANTANA ou Rui PEREIRA. Assim, a primeira defendia a conveniência de consagração legal da
possibilidade de o Ministério Público requerer, face à acusação particular, a abertura de instrução, de
modo a permitir uma comprovação judicial da adequação da sujeição a julgamento do “objecto processual
encontrado pelo Assistente, nos crimes particulares” (in “A acusação particular”, Jornadas de Direito
Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. científica de Maria Fernanda PALMA, Coimbra:
Almedina, 2004, p. 326). Rui PEREIRA, por seu turno, depois de chamar a atenção para o facto de o juiz
de julgamento não poder rejeitar a acusação particular por insuficiência de indícios, face ao disposto no
artigo 311.º do CPP, entendia que, «sob pena de uma perigosa “privatização” do processo», “seria
aconselhável haver instrução obrigatória nos casos em que o Ministério Público não acompanha a
acusação particular”, ainda que essa instrução fosse reduzida ao debate instrutório (“O domínio do
inquérito pelo Ministério Público”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais cit.,
ps. 125-6).
869
Mais recentemente e no que respeita à constituição de assistente por crimes particulares em sentido
estrito, o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência em sentido que pode contribuir para a
limitação da possibilidade de participação da vítima no processo penal. Nos termos do Acórdão n.º
1/2011, de 16 de Dezembro de 2010 (publicado no Diário da República, 1ª série, n.º 18, de 26 de Janeiro
de 2011), “em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição como assistente
fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito, no prazo fixado no n.º 2 do artigo
68.º do Código de Processo Penal”. Procura, por esta via, pôr-se fim à divergência sobre se este prazo
processual (que, por força da alteração decorrente da Lei n.º 48/2007, passou de 8 para 10 dias) seria
meramente ordenador ou disciplinador ou, por outro lado, peremptório, tendo-se optado por esta segunda
interpretação. Afasta-se, por esta via, a possibilidade de o ofendido se constituir posteriormente assistente
no mesmo ou em outro processo, desde que não ultrapassado o prazo para o exercício do direito de queixa
(em sentido divergente, vejam-se as declarações de voto dos Conselheiros Manuel Joaquim Braz e J.
Carmona da Mota). Um aspecto que se pretende sublinhar é que o facto de o prazo para constituição de
assistente nos crimes particulares ter sido alargado dos 8 para os 10 dias por força da revisão do CPP de
2007, por se reconhecer a exiguidade daquele, dificilmente poderá continuar a ser apresentado como uma
“conquista da vítima” caso se admita que, anteriormente, a prática era a de assacar àquele prazo de 8 dias
uma natureza puramente ordenadora, enquanto o novo prazo de 10 dias passa a ser peremptório. São, para
além disso, pensáveis as dificuldades práticas inerentes a essa constituição de assistente (que exige a
representação por advogado), nomeadamente por força das despesas que, para o ofendido, implica.
870
Esta não será, de resto, a única hipótese em que a revisão de 2007 não deu qualquer resposta a
problemas já reconhecidos. Manuel da COSTA ANDRADE (“Bruscamente no Verão Passado”, a
reforma do Código de Processo Penal – Observações criticas sobre uma Lei que podia e devia ter sido
diferente, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 95) refere “as frustrações deixadas pela Reforma, também
pelo lado do que ela não foi, não quis ser. Pelas omissões lá onde se esperavam decisões e acções para
colmatar lacunas e superar hesitações, clivagens e dissonâncias; pelas deserções e ausências quando se
esperava e reclamava o conforto e o arrimo que só a presença da lei pode assegurar; pelos silêncios em
vez das respostas que não podiam ser adiadas (...)”.

496
se mostrar que, mesmo permanecendo no seio do paradigma de intervenção da vítima
no processo penal que já era o nosso, se ficou aquém do que seria possível.
Escolha-se, a título de primeiro exemplo, o poder (previsto no artigo 69.º, n.º 2,
al. c) do CPP) que os assistentes têm de “interpor recurso das decisões que os afectem,
mesmo que o Ministério Público o não tenha feito”871. Apesar de nesta norma se não
encontrar qualquer limitação ao direito de recurso do assistente, existe jurisprudência
firmada no sentido de que “o assistente não tem legitimidade para recorrer,
desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena
aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”872. Ora, se
a uma primeira impressão tal jurisprudência pareceria comportar escasso conteúdo útil –
na medida em que reafirma a indispensabilidade do interesse em agir para se recorrer,
que já resultaria da letra da lei –, a verdade é que ela tem constituído o argumento
principal para uma limitação significativa da possibilidade de o assistente recorrer. E é
assim na medida em que as exigências adicionais de que o interesse em agir seja
“concreto” e “próprio” têm sido interpretadas enquanto impositivas da existência de um
interesse de cunho patrimonial, vedando-se ao assistente o poder de recorrer sozinho
quando em causa estiver “apenas” a sua discordância face a um quantum de pena ou a
uma espécie de pena que não julgue adequadas às necessidades preventivas que no caso
se façam sentir e, logo, que julgue incompatíveis com o seu sentido de justiça873.
A razão pela qual se atribui destaque a este problema da praxis – a
possibilidade que o assistente tem (ou não tem) de recorrer, desacompanhado do
Ministério Público, da medida e/ou da espécie da pena – afigura-se evidente: a
resposta que se lhe dá supõe uma certa compreensão daquele que é o sentido da
intervenção da vítima no sistema punitivo estadual. E é, nessa medida, central para a
dilucidação da questão que nos ocupa: a comprovação daquilo que a justiça penal
reconhece que é, ainda, assunto da vítima do crime, por se tratar da busca de solução
para conflito em que ela foi interveniente. A questão em apreço é, assim, em parte
ilustrativa do problema de saber se o processo penal – e, sublinhe-se, a matéria penal,

871
Para uma reflexão genérica sobre o poder do assistente de interpor recurso, partindo da ideia de que
essa posição do assistente é um “desafio” ao Ministério Público, cfr. José Manuel Damião da CUNHA, O
Caso Julgado Parcial – Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura
Acusatória, Porto: Publicações Universidade Católica, 2002, p. 752 ss.
872
Assento n.º 8/99, de 30-10-97. Mais recentemente vd., em sentido idêntico, os Acórdãos da Relação de
Guimarães de 23-01-2006 ou de 18.12.2006. Cfr., também, o Acórdão do Tribunal da Relação de
Coimbra de 12.12.2007.
873
Sobre a questão, com mais detalhe, vd. Cláudia Cruz SANTOS, “Assistente, recurso e espécie e
medida da pena”, RPCC, 18 (2008), p. 137 ss.

497
e já não a mera acção cível que a ela aderiu – se refere ainda ao conflito em que a
vítima foi interveniente, tratando-se aquele processo, por isso, de assunto que também é
seu.
A título de exemplo, manifesta-se no Acórdão do Tribunal da Relação de
Coimbra de 12.12.2007 o entendimento de que “o interesse em agir do assistente para a
interposição de recurso tem de ser aferido perante as circunstâncias de cada caso. Desde
há muito, prevalece a concepção de que as questões atinentes à medida da pena fazem
parte do núcleo punitivo do Estado, do jus puniendi, cuja defesa não cabe aos
particulares mas sim ao Ministério Público”874. Esta interpretação supõe a consideração
de que, em regra, não é admissível o recurso do assistente quanto à espécie ou medida
da pena, por falta do interesse em agir exigido pelo n.º 2 do artigo 401.º do CPP,
conjugado com a afirmação, no artigo 401.º, n.º 1, al. b), de que o arguido e o assistente
só podem recorrer de decisões contra eles proferidas. Paradoxalmente, porém, já
parece haver certa unanimidade na jurisprudência quanto ao facto de o assistente ter
“legitimidade para recorrer da sentença absolutória, desacompanhado do Ministério
Público”875.
Como compreender, então, esta corrente jurisprudencial segundo a qual o
assistente pode recorrer de forma autónoma quando está em causa a questão da culpa,
mas já não quando está em causa a questão da pena876? O critério, utilizado para

874
Acrescenta-se, neste Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que “noutra vertente, tem sido
entendimento largamente maioritário da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que o assistente
tem legitimidade para recorrer quando exprima a pretensão de que a suspensão da pena suporte a
condição de pagamento indemnizatório em determinado prazo ou a de um dever de reparação a cumprir
em prazo fixado pois que, em tal situação, visa-se o ressarcimento do lesado pelos danos sofridos (ou de
reparar ao ofendido os prejuízos que o atingiram) em consequência do facto ilícito criminalmente
praticado”.
875
Neste sentido, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.11.2007.
876
Uma explicação “histórica” para tal entendimento talvez possa ser encontrada naquela que era a
tradicional desvalorização da questão da medida da pena – remetida para a “arte de julgar” do juiz –,
contra a qual tanto se empenhou Anabela Miranda RODIGUES no seu estudo A determinação da medida
da pena privativa de liberdade (Coimbra: Coimbra Editora, 1995). Segundo a Autora (ob. cit., p. 101), «o
que se pretende é tão-só que a jurisprudência se desprenda das características que lhe conferem o sentido
de “subjectivista, intuitiva e não racionalizável” a que durante tanto tempo andou ligada, os seus
protagonistas sendo a tradição, factores irracionais e as perspectivas político-criminais dos juízes
concretos”. Em sentido muito relevante para a comprovação da possibilidade de recurso da medida da
pena, acrescenta Anabela RODRIGUES (ob. cit., p. 106) que “com a disciplina jurídica da temática em
causa – ao implicar a fundamentação das decisões tomadas e ao possibilitar o seu controlo em via de
recurso” se consubstancia “a redução das componentes irracionais a um papel residual”. Já relativamente
à possibilidade de o assistente recorrer da medida da pena, uma outra explicação – para além da
“histórica” – para a sua rejeição poderia prender-se com a importância atribuída aos seus poderes de
colaborar na descoberta da verdade. Assim, a ideia de que caberia ao assistente contribuir com material
probatório, ao longo de todo o processo e também durante a audiência de julgamento (dentro do objecto
do processo), apresentá-lo-ia como particularmente interessado na demonstração da culpa (o que
justificaria a possibilidade de recorrer, sozinho, da absolvição), mas estranho à questão da pena.

498
destrinçar ambas as hipóteses, da existência de um “concreto e próprio interesse em
agir” parece duvidoso. De facto, porque tem o assistente um interesse mais concreto
quando o arguido é absolvido do que quando lhe é aplicada uma pena de substituição
não detentiva, considerando o assistente que a libertação do condenado causa um perigo
séria para a sua pessoa? Parece não se compreender. E, por outro lado, fará sentido,
atenta a conformação dada ao assistente como sujeito que auxilia o Ministério Público,
ajudando-o no exercício da pretensão punitiva estadual, exigir para a sua actuação a
demonstração de um interesse concreto, sobretudo quando se entende que a prossecução
desses interesses concretos está sempre limitada pela sua não colisão com o interesse
público na realização da justiça penal? Não parece inteiramente coerente a coincidência,
estabelecida pela jurisprudência, entre interesse em agir e interesse concreto e próprio
do assistente.
O que se julga é que, se tanto a questão da culpa como a questão da pena se
incluem no exercício do ius puniendi do Estado, a solução relativa à possibilidade de o
assistente delas recorrer deveria ter idêntico sentido. Se configuramos o assistente como
um sujeito processual, por isso dotado de poderes de conformação da tramitação
processual, interessado na realização da justiça penal, não se vislumbra bem o sentido
daquela limitação do direito de recurso. Todavia, ainda que entendamos que a
possibilidade de o assistente recorrer depende da demonstração de um interesse
concreto e próprio – se o interesse em agir do artigo 401.º, n.º 2 do CPP for interpretado
como interesse concreto e próprio –, talvez devamos reconhecer que, se há um interesse
da colectividade na resposta encontrada para cada uma daquelas questões (a questão da
culpa e a questão da pena), também existe, paralelamente, um interesse específico na
boa administração da justiça penal por parte daquele que foi ofendido pelo cometimento
do crime.
Segundo se crê, a tendência jurisprudencial que se critica radica em uma
confusão entre o papel do lesado no processo penal e o papel do assistente. O interesse
em agir do assistente – exigível para que ele possa recorrer – não existe apenas nas
circunstâncias em que ele exprima uma pretensão ressarcitória a considerar na operação
de determinação da pena em sentido amplo. Tendo em conta aquele que é o sentido da
intervenção do assistente no nosso processo penal, essa intervenção não pode ser
limitada pelo objectivo de obtenção de uma compensação patrimonial dos danos que lhe
foram causados.

499
O assistente, porque é sujeito processual penal e porque tem, por isso, um certo
poder de conformação da tramitação processual atinente à questão penal, deve ver
reconhecida a sua possibilidade de questionar, quer as decisões em sede de culpa, quer
as decisões relativas à pena. Qualquer uma destas decisões pode, de facto, ser contrária
de forma não insignificante às suas concepções de justiça877. Assim, se através da

877
Como sublinha Maria João ANTUNES, “como pode ser objecto do recurso de constitucionalidade a
norma na sua totalidade, um seu segmento ou apenas uma determinada interpretação normativa, deve ter-
se em conta que um número muito relevante dos julgamentos do Tribunal Constitucional incide apenas
sobre a disposição legal tal como é interpretada pela decisão recorrida” (in «Direito processual penal –
“direito constitucional aplicado”», Que Futuro para o Direito Processual Penal?, coord. de MONTE,
Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra:
Coimbra Editora, 2009, p. 750). Ora, a inconstitucionalidade da «interpretação fixada pelo “Assento” n.º
8/99» fora já alegada, nomeadamente por se julgar que tal entendimento é ofensivo do disposto no artigo
32.º, n.º 7, da Constituição. Apesar de o Tribunal Constitucional, através do seu Acórdão n.º 205/2001, ter
negado provimento ao recurso, devem merecer atenção, quer alguns argumentos da assistente recorrente
para o TC, quer o voto de vencido do Conselheiro Luís Nunes de Almeida. A assistente alegava, entre
outros aspectos, que “os particulares, enquanto vítimas, podem intervir no processo penal com dois
objectivos claramente distintos: ou com um objectivo meramente civil, para serem indemnizados; ou com
um objectivo penal de colaboração com o Estado na efectivação da responsabilidade penal (…). Uma
decisão que o assistente tem por desajustada dos fins das penas, por, em seu entender, a punição não
lograr alcançar esses fins, realizando assim a justiça no caso concreto, é, sem dúvida, uma decisão que o
afecta, que é contra ele proferida, o que lhe confere legitimidade para o recurso”. No voto de vencido do
Conselheiro Luís Nunes de Almeida, pode ler-se que “a remissão para a lei, constante do n.º 7 do artigo
32.º [da CRP], sendo compreensível, tendo em conta a particular ordenação do processo penal e as suas
especiais características, não pode ser interpretada como permitindo privar o ofendido daqueles poderes
processuais que se revelam decisivos para a defesa dos seus interesses – o poder de acusar e o poder de
recorrer da sentença absolutória ou da sentença que entenda não fazer actuar o poder punitivo do Estado
de forma minimamente satisfatória”. Note-se, porém, que neste caso o Tribunal Constitucional negou
provimento ao recurso, nomeadamente por entender que «a interpretação constante do acórdão de fixação
de jurisprudência, aplicada na decisão recorrida, ao condicionar o recurso do assistente à demonstração de
um concreto e próprio interesse em agir quando, desacompanhado do Ministério Público, pretenda
impugnar a espécie e medida da pena aplicada, não afecta o núcleo essencial da intervenção do ofendido
no processo penal nem coloca em crise o direito ao recurso por parte do assistente, pois não é absoluta,
apenas incidindo sobre os pressuspostos do recurso e, além disso, respeita a matéria que tem
fundamentalmente a ver com o exercício pelos órgãos do Estado do “ius puniendi” relativamente ao
arguido e com a realização dos fins constitucionais e legais das penas». Posteriormente, o Tribunal
Constitucional voltou a ser confrontado com problema semelhante, apesar de ter entendido, no seu
Acórdão n.º 329/2006, que, por não se dispor de “enunciação idónea do objecto do recurso, em termos
que permitam saber aquilo que a recorrente tem por inconstitucional”, não seria possível adentrar o
objecto da demanda. Não obstante, o que se julga particularmente interessante neste Acórdão é aquilo que
a assistente alega para fundar o seu direito ao recurso quanto à medida e à espécie da pena e, por outro
lado, os argumentos com base nos quais o tribunal da relação rejeitara tal pretensão. Na decisão da
primeira instância, o arguido fora absolvido da prática de um crime de violação e condenado pela prática
de um crime de ofensas à integridade física e de um crime de sequestro na pena única conjunta de cinco
meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de 1.200$00, o que perfazia uma quantia
de 879,80 euros. A assistente pretendeu recorrer desta decisão, invocando que no caso se justificava a
aplicação de pena de prisão efectiva. Alegou que possuía um “interesse directo, imediato e pessoal na
matéria em causa por estar em jogo a sua honra, dignidade e a sua vida psíquica, afectiva e a sua
integridade física, tal a brutalidade da agressão, não podendo ficar à mercê do Ministério Público, que
nada lhe acautelou”. Não obstante, o tribunal ad quem – no caso, o Tribunal da Relação do Porto –
entendeu que havia “ilegitimidade da assistente para, nesta parte, interpor recurso, desacompanhada do
Ministério Público, uma vez que é patente a sua falta de interesse em agir”. Para fundar tal conclusão da
inexistência de interesse em agir, o Tribunal parece ter dado grande relevo ao facto de a assistente não ter
deduzido pedido cível, esclarecendo que “a intervenção de um particular em processo penal tem de visar,
como desiderato final, a realização da justiça e nunca a prossecução de um qualquer interesse próprio que

500
operação de determinação da medida da pena em sentido amplo o Tribunal chegar a
uma solução contrária a uma pretensão manifestada pelo assistente no processo e que
ofenda o seu concreto interesse na justeza da punição – porque o assistente, por
exemplo, alegara que a condenação do agente a uma pena não privativa da liberdade
poria em causa, de forma séria, a sua segurança, sendo por isso incompatível com
considerações de prevenção especial positiva –, dessa decisão deverá o assistente ter a
possibilidade de recorrer, de forma autónoma.
Apesar da referida corrente jurisprudencial que limita o recurso interposto pelo
assistente da medida ou espécie da pena, existem há muito na doutrina opiniões que
tendem para a solução que se prefere, ainda que com fundamentos nem sempre
coincidentes. Assim, por exemplo, José DAMIÃO DA CUNHA, depois de distinguir a
legitimidade para recorrer (coincidente com a legitimidade para a constituição de
assistente) do interesse em agir (exigido pelo n.º 2 do artigo 401.º CPP), conclui que “o
assistente pode interpor recurso restrito à questão da medida da pena, quando durante a
audiência de julgamento ele tenha formulado uma qualquer pretensão sobre tal matéria
que não tenha merecido acolhimento na decisão final”878.
Ainda com interesse para a ponderação do conceito de “interesse em agir” do
assistente, tenha-se em conta a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça n.º 5/2011, de 9 de Fevereiro de 2011879, segundo a qual “em processo por
crime público ou semi-público, o assistente que não deduziu acusação autónoma nem
aderiu à acusação pública pode recorrer da decisão de não pronúncia, em instrução

se possa eventualmente considerar como a vindicta pessoal ou represália”. Esta argumentação parece
revestir-se, porém, de algumas contradições. Se bem se vê o problema, é precisamente por julgar a
decisão da primeira instância incompatível com a realização da justiça que a assistente quer dela recorrer.
E não se vislumbra como pode a ausência de pretensão indemnizatória ser utilizada para concluir pela
ausência de interesse na solução da questão penal. A lesada pode não estar interessada numa reparação
pecuniária – pode até considerar que não é desse modo que os danos que sofreu são reparáveis – e,
todavia, a ofendida que se constituiu assistente pode estar interessada em influenciar a resposta punitiva
no sentido que considera justo.
878
Cfr. José DAMIÃO DA CUNHA, últ. ob. cit., ps. 646-7. O Autor define o “interesse em agir” como
“um pressuposto decorrente da actividade exercida pelo assistente”, considerando que «o assistente
apenas pode recorrer de decisões em que activamente tenha participado e em que tenha formulado uma
qualquer “pretensão”, não tendo essa “pretensão” merecido acolhimento na decisão – ou seja: a decisão
foi proferida contra as expectativas do assistente». Esclarece ainda que o conceito de “interesse em agir”
tem natureza “mais geral”, por se referir a qualquer tipo de decisão, que não apenas às decisões finais, e
por também se aplicar ao Ministério Público e ao arguido. No que respeita à concretização do conceito de
“interesse em agir” atinente ao Ministério Público, deve ter-se agora em conta também a jurisprudência
fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2011, de 16 de Dezembro de 2010 (publicado
no Diário da República, 1ª série, n.º 19, de 27 de Janeiro, 570-583), em cujos termos “em face das
disposições conjugadas dos artigos 48.º a 53.º, e 401.º, do Código de Processo Penal, o Ministério Público
não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente
assumida no processo”.
879
Publicado no Diário da República, 1.ª série – n.º 50, 11 de Março de 2011, 1410-1416.

501
requerida pelo arguido, e da sentença absolutória, mesmo não havendo recurso do
Ministério Público” (o itálico é nosso). Não se toma, neste aresto, posição expressa
sobre a possibilidade de o arguido recorrer, desacompanhado do Ministério Público, da
medida e/ou da espécie da pena determinadas na sentença – pelo contrário, a referência
que aqui se faz é apenas à sentença absolutória. Todavia, a decisão é interessante
sobretudo na medida em que dela parece decorrer a ideia, importante, de que a
inexistência de uma prévia manifestação do interesse do assistente em sentido não
coincidente com o sentido da decisão não preclude, necessariamente, a possibilidade de
se afirmar a existência de um seu interesse em agir. A constituição de assistente tem já
esse significado: “ao constituir-se assistente, o ofendido ou quem tem legitimidade
documenta no processo uma inequívoca vontade não só de que os participantes no crime
sejam perseguidos criminalmente, mas também de colaborar nessa perseguição”880. A
existência daquele interesse em agir dependerá, antes, da comprovação de que a decisão
é, em medida não irrelevante, desvantajosa ao interesse perseguido pelo assistente numa
condenação do agente que corresponda ao seu sentido de justiça.
Em jeito de síntese sobre esta questão da possibilidade de o assistente recorrer,
desacompanhado do Ministério Público, da medida e/ou da espécie da pena, julga-se
inequívoco que apenas a aceitação dessa possibilidade parece coerente com o sentido
que o legislador processual penal português atribuiu à conformação do sujeito
assistente, por oposição ao recorte dado ao interveniente que é o lesado. Deve, além
disso, sublinhar-se que, com o reconhecimento da legitimidade do assistente para
recorrer sozinho da matéria da pena, não se põe em causa o exercício do ius puniendi
estadual nem se dá expressão a desejos de vingança privada: interposto o recurso pelo
assistente, a decisão caberá exclusivamente ao tribunal ad quem; este decidirá, como
deve e com a limitação imposta pela culpa, em função de considerações exclusivamente
atinentes às finalidades preventivas da pena. Tal decisão já não poderá ser acusada,
porém, de desconhecer aquelas que são as razões da vítima no que tange à resposta
punitiva – quer com elas se concorde, quer delas se discorde.
Considere-se agora um segundo exemplo do não acolhimento, com esta revisão
de 2007, de uma outra reivindicação de maior influência do ofendido na tramitação
processual. O que está em causa é a exigência, que se não faz, de concordância do
ofendido para as mais relevantes soluções de consenso do nosso processo penal. Assim,

880
Cfr. Diário da República, 1.ª série – n.º 50, 11 de Março de 2011, 1415.

502
a suspensão provisória do processo supõe a concordância do assistente, mas não a do
ofendido [art. 281.º, n.º 1, al. a) CPP]. Também a sujeição do processo à forma
sumaríssima só exige a concordância do assistente – nunca do ofendido – e apenas
quando o crime for de natureza particular (art. 392.º, n.º 2 CPP). Talvez possa
compreender-se a manutenção desta opção legislativa, tendo em conta a intenção do
legislador de potenciar os mecanismos de diversão. Porém, numa perspectiva de tutela
dos interesses da vítima, são desaconselháveis aquelas soluções que, na prática, acabam
por a excluir, como regra, do consenso que se procura, tornando tal consenso
naturalmente menos alargado881.
Finalmente, note-se que com esta revisão também se não deu eco a uma outra
exigência antiga do movimento vitimológico, que pretendia que se assegurasse a
recorribilidade, pelo assistente, do despacho judicial que não admite a aplicação de uma
medida de coacção, que a revoga ou que aplica uma medida menos severa do que a
pretendida.

881
O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.11.2003 tem na sua origem um recurso interposto
pelo Ministério Público de um despacho do juiz de instrução que não concordou com a suspensão
provisória do processo que aquele propusera, alegando que o ofendido não fora sequer consultado sobre
aquela suspensão. Acrescentou o juiz de instrução que “sendo propósito do legislador processual penal
dar inequívoco relevo à posição da vítima (propósito que perpassa todo o nosso sistema processual penal),
constituiria grave entorse àquele considerar-se que só o acordo do ofendido que se constituiu assistente é
necessário para se poder (verificando-se os restantes pressupostos processuais) suspender provisoriamente
o processo, tendo em conta que (como acontece nos autos) as mais das vezes o ofendido, no momento em
que se põe em causa a suspensão do processo, não está nos autos representado por advogado (pois que
ainda não chegou o momento de formular pedido de indemnização cível) e que a própria constituição
como assistente é monetariamente onerosa». O tribunal de recurso, porém, assim não entendeu, dando
provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, que tinha considerado que, não havendo
assistente constituído no processo, a lei não impunha qualquer consulta ao ofendido. Todavia, o Tribunal
da Relação do Porto não deixa de invocar, seguindo a opinião de Fernando TORRÃO (A relevância
político-criminal da suspensão provisória do processo, Coimbra: Almedina, 2000, ps. 203-4), que talvez
seja defensável, de iure constituendo, que ao Ministério Público fosse imposto “o dever de notificar o
denunciante com faculdade de se constituir assistente – como o deve fazer em casos de arquivamento, nos
termos do artigo 277.º, n.º 3 do CPP – da intenção de promover a suspensão provisória do processo”. Dar-
se-ia assim a faculdade ao ofendido de se constituir assistente, de modo a participar – ou não – no
consenso exigido para a suspensão provisória do processo. Não foi esta, porém, a opção do legislador de
2007. Maria Rosa CRUCHO DE ALMEIDA [“A suspensão provisória do processo penal: análise
estatística do biénio 1993-1994”, RMP, ano 19, n.º 73 (1998), ps. 53 e 54] considera que vítima e
assistente são realidades distintas, pelo que a exigência, para a suspensão provisória do processo, da
concordância do assistente e não da vítima torna a participação desta quase inexistente.

503
2.2.7. A protecção da vítima como propósito de alguma legislação
“extravagante”

O legislador português, reconhecendo a necessidade de garantir uma maior


protecção das vítimas de crimes, optou em alguns casos por criar regimes jurídicos
exteriores ao Código Penal e ao Código de Processo Penal, também orientados para essa
finalidade. Entre esses, julga-se que assumem particular importância o regime jurídico
da Indemnização às Vítimas de Crimes Violentos e de Violência Doméstica882 e o
regime jurídico da Protecção de Testemunhas883.
Merecedor de particular destaque, não só por se dirigir à protecção de vítimas de
um crime – a violência doméstica – que tem dimensão significativa em Portugal, mas
sobretudo porque introduziu entre nós a possibilidade de mediação para um crime
público e em momento pós-sentencial ou posterior à suspensão provisória do processo,
é o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à
assistência das suas vítimas e constante da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
Ora, se merecerá consideração mais detida no contexto de uma reflexão sobre as
práticas restaurativas e sobre a mediação penal de adultos em Portugal – devida,
sublinhe-se, também pela importância simbólica de que se reveste, por confirmar que
pode haver mediação penal relativamente a crimes públicos e por constituir prova de
que a mediação penal pode não ser apenas uma forma de diversão processual –, já os
dois regimes jurídicos primeiramente referidos não poderão ter, no âmbito deste estudo,
mais do que uma referência breve àquelas que se julga serem as suas principais
insuficiências.
Depois de se compreender que é pertinente, no contexto de uma reflexão sobre a
vítima, a consideração daquele regime jurídico da protecção de testemunhas (porque o
conceito de testemunha aqui adoptado abrange a vítima que participa no processo penal
com o fito de contribuir para a descoberta da verdade e a realização da justiça884), deve

882
O regime jurídico da indemnização às vítimas de crimes violentos constava do Decreto-Lei n.º 423/91,
de 30 de Outubro, tendo sido mais recentemente alterado pela Lei n.º 31/2006, de 21 de Julho e pelo
Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto. Posteriormente, aquele Decreto-Lei n.º 423/91, de 30 de
Outubro, foi revogado pelo artigo 25.º da Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro, com entrada em vigor a 1
de Janeiro de 2010. Este novo regime jurídico abrange também a indemnização às vítimas de violência
doméstica.
883
O regime jurídico da protecção de testemunhas consta da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, tendo sido
alterado pela Lei n.º 29/2008, de 4 de Julho.
884
Sandra OLIVEIRA E SILVA refere que “testemunhas” são aqui tomadas como “categoria ampla e
heterogénea em que se incluem a vítima e o assistente, o co-arguido, os arrependidos e infiltrados” (in A
Protecção de Testemunhas em Processo Penal, Coimbra: Coimbra Editora: 2007, p. 331).

504
notar-se, porém, que não são todas as vítimas sujeitas a uma qualquer forma de
intimidação que beneficiam da protecção conferida por este conjunto de normas. Como
expressamente se dispõe nos números 4 e 5 logo do artigo 1.º da Lei n.º 93/99, de 14 de
Julho (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 29/2008, de 4 de Julho), “as medidas
previstas na presente lei têm natureza excepcional e só podem ser aplicadas se, em
concreto, se mostrarem necessárias e adequadas à protecção das pessoas e à realização
das finalidades do processo” e “é assegurada a realização do contraditório que garanta o
justo equilíbrio entre as necessidades de combate ao crime e o direito de defesa”. Esta
“declaração de princípios” vai sendo depois concretizada através da exigência de
requisitos progressivamente mais apertados para a admissibilidade das medidas de
protecção que causam um afastamento maior da testemunha e, consequentemente, que
mais potenciam uma restrição da imediação e do contraditório885.
Por outro lado, deve também notar-se que, se esta protecção se funda em parte
no imperativo de promover o respeito pelos direitos fundamentais da pessoa com
dignidade que a vítima é, também se não pode escamotear que a mesma se justifica
ainda pelo interesse na descoberta da verdade material e na realização da justiça através
da punição do criminoso. Parecem, assim, convergir neste regime finalidades nem
sempre facilmente conciliáveis de eficácia na repressão da criminalidade e de
protecção da vítima, sendo que se admitem formas de protecção que são em si mesmas
já significativas de um quantum de desprotecção, na medida em que afastam a vítima da
adopção de um projecto de vida semelhante ao que porventura anteriormente era o seu.
Assim, a “alteração do aspecto fisionómico ou da aparência do corpo” ou a “concessão
de nova habitação, no País ou no estrangeiro, pelo tempo que for determinado”886 são
medidas de protecção da testemunha que podem comportar já, elas próprias, um
significativo grau de sofrimento para as pessoas que a elas se sujeitam. Pode afirmar-se
que se trata, em certo sentido, de um preço elevado a pagar pela colaboração com a
realização da justiça.

885
Assim, por exemplo, o recurso à teleconferência é admissível quando “ponderosas razões de protecção
o justifiquem, tratando-se da produção de prova de crime que deva ser julgado pelo tribunal colectivo ou
de júri” (art. 5.º). Porém, já a reserva do conhecimento da identidade da testemunha ou a participação em
programas especiais de segurança só são admissíveis no contexto de um catálogo de crimes e se ficar
comprovada a existência, no caso do artigo 16.º, de “um grave perigo de atentado contra a vida, a
integridade física, a liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado” e, no caso do
artigo 21.º, “existir grave perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou para a liberdade”.
886
Estas medidas estão previstas nas alíneas b) e c) do artigo 22.º do regime jurídico referido, sob a
epígrafe “conteúdo do programa especial de segurança”.

505
Porventura com maior gravidade, parece poder apontar-se uma secundarização
da finalidade de protecção da testemunha face à eficácia na realização da justiça,
comprovada pela não concessão de protecção quando, apesar da existência de perigo
sério para valores importantes, o seu contributo para a produção da prova não for
considerado relevante. Assim, por exemplo no que respeita à reserva do conhecimento
da identidade da testemunha, são pressupostos cumulativos para a sua aplicação, nos
termos do artigo 16.º da Lei de Protecção de Testemunhas: (I) a existência de processo
atinente a um dos crimes graves constantes do catálogo; (II) a existência de um grave
perigo de atentado contra a vida, a integridade física, a liberdade ou bens patrimoniais
de valor consideravelmente elevado; (III) “não ser fundadamente posta em dúvida a
credibilidade da testemunha”; (IV) “o depoimento ou as declarações constituírem um
contributo probatório de relevo”.
Ora, assim sendo, parece poder considerar-se que a testemunha (no sentido
amplo referido, que abrange a vítima) não beneficiará desta medida de protecção,
mesmo que se demonstre a existência de um perigo sério para a sua vida, se o seu
contributo probatório não for considerado importante887. O que, a ser assim, suscita a
séria dúvida sobre se, mais do que uma lei de protecção de testemunhas, esta não será
sobretudo uma lei de protecção da eficácia da pretensão punitiva do Estado. Seja como
for, talvez se possa concluir que esta não é uma lei de protecção de todas as
testemunhas, mas apenas daquelas que são julgadas úteis à prova do crime e à sua
repressão888. Ou seja: além das limitações à protecção de testemunhas compreensíveis –

887
É claro que sempre poderá contrapor-se que, não sendo o contributo probatório da testemunha de
relevo, menor será o interesse na sua intimidação e, consequentemente, menor será a probabilidade do
perigo. Ou, então, que nem sequer deverá intervir como testemunha, também no seu interesse. Não se
julga que este seja um argumento definitivo, por várias razões, mas também porque a valoração da
relevância probatória inerente à intervenção daquela testemunha pode não ser a mesma por parte da
autoridade judiciária e por parte do arguido e dos seus próximos.
888
Já em 2004, Rui PATRÍCIO (“Protecção de testemunhas em processo penal”, in Jornadas de Direito
Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. de Maria Fernanda PALMA, Livraria Almedina: 2004,
p. 284 ss) sublinhava, nos mecanismos introduzidos pela Lei n.º 93/99, a prevalência da protecção do
interesse punitivo do Estado, assumindo a protecção da testemunha natureza instrumental relativamente
àquele interesse. Nas suas palavras, trata-se de «uma lei para a investigação, uma lei para as testemunhas
de acusação, uma lei para o “caso da acusação”; preferencialmente, pelo menos» (ob. cit., p. 300). Em
sentido que se julga não convergente, Sandra OLIVEIRA E SILVA (A Protecção de Testemunhas cit., ps.
71-2) entende que “o dever estadual de tutela das pessoas que com os seus saberes probatórios colaboram
na administração da justiça está solidamente fundado, não apenas em considerações de carácter endo-
processual de descoberta da verdade – como uma leitura mais apressada do problema poderia induzir –
antes sobretudo em razões de natureza substantiva, directamente radicadas na garantia dos direitos
fundamentais”. A Autora conclui, assim, pela existência de “um duplo fundamento para sustentar o dever
estadual de protecção, recusando quer uma perspectiva meramente político-processual do problema, que
não serve os direitos da pessoa do declarante, quer uma compreensão unilateralista de sentido oposto, em
desarmonia com o interesse comunitário de boa administração da justiça criminal”. Ora, se se julga poder

506
pelo menos até certo ponto – à luz dos interesses nem sempre coincidentes da defesa do
arguido889, parecem existir outros limites associados a juízos economicistas sobre que
testemunhas serão de facto úteis à administração da justiça penal.
A avaliação que, na vigência do Decreto-Lei n.º 423/91, de 30 de Outubro (com
as alterações que lhe foram sendo introduzidas), se podia fazer relativamente ao regime
jurídico da indemnização pelo Estado às vítimas de crimes violentos é, em certo sentido,
semelhante: também ele não permite a todas as vítimas (que não lograram por outros
meios a reparação dos danos que lhes foram causados) reclamar agora essa reparação
junto do Estado. Na verdade, só algumas das vítimas cujos danos ainda não foram
reparados poderão obter essa indemnização pelo Estado. E o problema essencial está em
compreender com base em que critério se devem distinguir as vítimas a quem esse
direito se reconhece daquelas outras que o não têm (problema, de resto, muito
semelhante ao que antes se referiu quando se interrogou o critério com base no qual se
define que testemunhas merecem protecção e que testemunhas a não merecem).
Quando se procura o fundamento para a existência de um dever estadual de
reparação dos danos causados à vítima de um crime (não reparados pelo agente, nem
indemnizados pelos responsáveis civis), é-se confrontado com uma pluralidade de
teorias890. Enquanto algumas sublinham que o Estado deve assumir subsidiariamente a
reparação desses danos para assim evitar que as vítimas promovam tal reparação por
métodos de vingança privada, outras consideram que se trata de um dever moral
decorrente da existência do próprio contrato social que legitima o Estado. Por outro
lado, numa abordagem mais próxima da primeira do que da segunda, procura-se

concordar com Sandra OLIVEIRA E SILVA na ideia de que deve existir esse duplo fundamento para a
protecção da testemunha, também se manifesta concordância com o entendimento de Rui PATRÍCIO
quando não vê, na Lei n.º 93/99, concordância em jeito de parificação dessas duas finalidades. Em certo
sentido, talvez se possa posicionar o entendimento daquela Autora no plano do dever ser e a opinião deste
Autor no plano do ser.
889
José LOPES DA MOTA refere, precisamente a propósito da protecção de testemunhas, “a tensão
bipolar fundamental das finalidades conflituantes do processo penal: a necessidade de perseguir
eficazmente e punir o crime nas suas formas mais graves, por meios legalmente admissíveis, e,
simultaneamente, garantir a protecção dos direitos fundamentais das pessoas”. Afirma, além disso, que “o
ponto de tensão máxima situa-se (…) no confronto entre o direito do arguido a um processo assegurando
todas as garantias de defesa e o direito-dever da testemunha em prestar declarações sem a pressão do
medo e da intimidação, que inevitavelmente apela a soluções de equilíbrio, capazes de conciliar os
interesses em presença” (in “Protecção das testemunhas em processo penal”, Estudos em Homenagem a
Cunha Rodrigues, vol. 1, org. Jorge de Figueiredo Dias/Ireneu Barreto/Teresa Beleza/Eduardo Paz
Ferreira, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 662).
890
Sobre essas teorias, que não cumpre nesta sede debater, veja-se, entre nós, Odete OLIVEIRA, que
também relaciona o dever de o Estado indemnizar os danos sofridos pelas vítimas de crimes com vários
instrumentos internacionais, nomeadamente do Conselho da Europa (Problemática da Vítima de Crimes:
Reflexos no Sistema Jurídico Português, Lisboa, Rei dos Livros, 1994, p. 29 ss).

507
também justificar tal indemnização estadual a partir de uma concepção assumidamente
utilitarista: o conhecimento pela vítima dessa possibilidade de reparação, caso todas as
outras vias falhem, fomentará a sua colaboração com as instâncias formais de controlo
no sentido de se fazer prova do crime e de quem foi o seu agente, contribuindo-se desse
modo para a própria eficácia da justiça penal.
Ainda que estes vectores do pensamento possam desempenhar algum papel na
compreensão da pluralidade de razões que justificam aquela indemnização estadual às
vítimas, o fundamento que hoje maioritariamente se lhe assaca é de outra ordem,
prendendo-se com exigências de solidariedade social891.
O problema, porém, é que não se julga seguro que aquele regime jurídico
cunhado pelo legislador português permitisse – mesmo que se reconheça o carácter
subsidiário que esta reparação pelo Estado assume face à reparação pelo agente – a
conclusão de que podiam ser reparadas de forma satisfatória todas as vítimas
relativamente às quais se fizessem sentir aquelas exigências de solidariedade social. E
pensa-se que, nessa medida, não se poderia formular um juízo plenamente satisfatório
sobre o cumprimento dos desígnios de solidariedade face ao infortúnio das vítimas, que
terão fundado este diploma: nem todas as vítimas em situação de necessidade obteriam
a indemnização pelo Estado, mas apenas aquelas cuja vitimização se relacionasse com
os crimes violentos e intencionais referidos pelo legislador, assumindo essa vitimização
a forma de perda da vida ou a forma de lesões corporais graves892.

891
Pode ler-se, na exposição que antecede o Decreto-Lei n.º 423/91, de 30 de Outubro, que «é
indispensável referir que a indemnização pelo Estado das vítimas de crimes se baseia numa ideia de
“solidariedade social”, não podendo aceitar-se a teoria de uma “responsabilidade do Estado”, ao qual, na
luta contra a criminalidade, apenas cabe uma obrigação de meios, não de resultado. Sob este ponto se
pronunciam abertamente os peritos do Conselho da Europa». Assume-se também, claramente, a
inspiração que o legislador português encontrou na Resolução (77)27 do Conselho da Europa e na
Convenção Europeia Relativa ao Ressarcimento das Vítimas de Infracções Violentas, de 1983. Ainda
com interesse para se ajuizar do reconhecimento de uma ideia de solidariedade enquanto fundamento para
este dever estadual de indemnizar vítimas, afirma-se no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
que «o diploma em causa [o Decreto-Lei n.º 423/91, de 30 de Outubro] introduziu no nosso ordenamento
jurídico a possibilidade de as vítimas de crimes violentos dotados de certa gravidade ou, no caso de
morte, as pessoas com direito a auferir alimentos das vítimas, receberem uma indemnização do Estado se
não ocorrer uma efectiva reparação do dano por outras vias. Este dever de indemnizar não significa o
reconhecimento, pelo Estado, de uma obrigação decorrente de não ter sido mantida, “in casu”, a
segurança pública, mas advém unicamente de uma ideia de solidariedade social».
892
Nos termos do n.º 1 do artigo 1.º daquele regime jurídico da indemnização às vítimas de crimes
violentos, “as vítimas de lesões corporais graves resultantes directamente de actos intencionais praticados
em território português ou a bordo de navios ou aeronaves portuguesas, bem como, no caso de morte, as
pessoas a quem, no termos do n.º 1 do artigo 2009.º do Código Civil, é concedido um direito a alimentos
e as que, nos termos da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, vivessem em união de facto com a vítima, podem
requerer a concessão de uma indemnizaçã pelo Estado, ainda que não se tenham constituído ou não
possam constituir-se assistentes no processo penal”, desde que estivessem reunidos os requisitos que de
seguida se elencam.

508
Procure-se, porém, apresentar o núcleo desta linha argumentativa da forma que
se julga mais clara: se o fundamento primeiro da imposição ao Estado deste dever de
indemnizar vítimas que não obtiveram reparação por outra via fosse – como deveria ser
– prestar auxílio aos mais carecidos de solidariedade, o critério para a existência desse
dever prender-se-ia mais com a gravidade dos danos e com a demonstração dessa
necessidade de auxílio do que com a natureza do crime que desencadeou os danos. É
certo que pode afirmar-se que a existência de violência e de dolo tenderão a contribuir
para uma maior gravidade do crime e que crimes mais graves tenderão a desencadear
danos mais graves. Todavia, nem sempre assim será, desde logo porque a carência de
auxílio depende, também, das circunstâncias concretas da vítima. Por outro lado, parece
inequívoco que condutas negligentes podem desencadear danos enormes. A exigência
pelo legislador, cumulativamente, da situação de necessidade de auxílio e da
vitimização por força de crime violento e intencional permitiam, segundo se crê, afirmar
o carácter excessivamente restrito do âmbito de aplicação daquele dever de
indemnização pelo Estado constante do regime jurídico inicial.
Assim, nem por esta via se garantia a reparação de todas as vítimas (nem sequer
de todas as vítimas em situação de necessidade). E, por outro lado, nem mesmo quanto
àquelas que teriam direito à indemnização se podia afirmar a integralidade da reparação,
porque a indemnização por parte do Estado era restrita ao dano patrimonial resultante da
lesão, e mesmo para este existiam limites máximos.
Reconhecendo-se o âmbito demasiado estreito em que se impunha ao Estado o
dever de reparar os danos causados às vítimas de crime e admitindo-se também a
aplicação escassa que aquele regime jurídico mereceu893, deve porém sublinhar-se a
novidade legislativa representada pela Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro, que
permite, nomeadamente, uma antecipação da indemnização pelo Estado, com o intuito
de fazer face à situação de urgências de vítimas especialmente desprotegidas.
Neste novo diploma, ainda que em distintos capítulos, regula-se o direito à
indemnização pelo Estado, quer das vítimas de crimes violentos, quer das vítimas de
violência doméstica. O primeiro aspecto que se julga merecedor de referência é que a
indemnização aparece agora – ao contrário do que sucedia no regime anterior – sob a

893
A própria Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes, em relatório relativo a 2008 – ano em que
foram recebidos 119 pedidos de indemnização, o que se considera um número muito baixo (“os 119
pedidos de indemnização apresentados representam cerca de 15% dos que teriam condições para isso”) –
reconhecia que um dos principais motivos para a escassez de pedidos continuava a ser o desconhecimento
e sublinhava “o pouco interesse demonstrado pelos advogados e defensores oficiosos por patrocinar estes
pedidos de indemnização e a quase ausência dos magistrados do Ministério Público no apoio às vítimas”.

509
forma de “adiantamento de indemnização”, o que parece vincar a sua natureza
emergencial e transitória, devendo o Estado ser reembolsado, sempre que possível e o
mais rapidamente possível, dos montantes que dispender.
O que merece particular destaque, no contexto desta reflexão, é, porém, a
intenção legislativa de alargar o direito ao adiantamento da indemnização a mais
vítimas de mais crimes. Esse propósito é assumido na exposição de motivos da Proposta
de Lei n.º 295/X/4.ª: “a presente proposta de lei alarga as situações em que as vítimas
podem obter o adiantamento da indemnização por parte do Estado, bem como o tipo de
protecção de que beneficiam (…) incluindo-se agora, no caso das vítimas de crimes
violentos, todos os danos que tenham como resultado a morte ou lesões graves para a
sua saúde física ou mental. Passa assim a permitir-se o adiantamento da indemnização
em duas novas situações: aos danos morais sofridos pela vítima e aos prejuízos relativos
a crimes por negligência, que estavam excluídos”. Por outro lado, acrescenta-se que se
prevê ainda “a possibilidade inovadora da indemnização pelo Estado consistir, em parte,
em medidas de apoio social e educativo, bem como em medidas terapêuticas adequadas
à recuperação física, psicológica e profissional da vítima, assim alargando o leque de
medidas de protecção à vítima”.
Parecendo precoce uma qualquer tentativa de avaliação, em uma perspectiva
orientada para a vítima, do sucesso deste novo regime jurídico, sempre se poderá
afirmar a existência de sinais de que o Estado aceita – ainda que com a natureza
assumidamente subsidiária e, hoje mais do que ontem, transitória que se referiu – o
dever de contribuir para minorar os danos sofridos por um maior número de vítimas de
um maior número de crimes.

2.2.8. Os contra-argumentos do regresso da vingança privada e da privatização


da justiça penal

Quer a expansão da participação da vítima na justiça penal, quer a proposta


restaurativa, são confrontadas com a acusação de que favorecem a privatização da
reacção ao crime e, no limite, a vingança privada. Com efeito, é relativamente frequente
a afirmação de que uma sobrevalorização da importância dos interesses da vítima no
modelo de reacção ao crime poderia significar um indesejável retrocesso na medida em

510
que, ao dar-se vazão aos seus sentimentos mesquinhos e de vingança, permitir-se-ia uma
instrumentalização do aparelho punitivo estadual para fins de vingança privada894.
Por outro lado, é também conhecida a opinião segundo a qual uma qualquer
retirada do Estado em matéria de reacção ao delito, através de uma qualquer forma de
privatização da justiça penal, prejudica, em primeira linha, as camadas mais
desfavorecidas da população. Como afirmava Günther KAISER, referindo-se a
mecanismos privados de prevenção e repressão da criminalidade, pode ser “sumamente
preocupante a debilidade no controlo do crime”, até na medida em que o recuo da “linha
defensiva social desencadeia a mobilização da autoprotecção e da justiça privada”; ora,
como estas, sobretudo as medidas de natureza permanente, “só podem ser suportadas
pelas camadas endinheiradas da população, acontece que acabam por ficar indefesos os
grupos da população sem meios económicos”895.
Estas preocupações são, até certo ponto, compreensíveis896. Todavia, só até certo
ponto – ou, porventura com mais rigor, só a partir daquele ponto em que se desse uma
espécie de contra-revolução coperniciana através da qual o crime passasse a ser visto
como um ataque a interesses individuais e disponíveis, sendo a reacção ao delito gizada

894
Na ciência penal, o problema é considerado, por exemplo, por Günter HEINE, que refere a
possibilidade de uma ruptura associada a “qualquer espécie de redução que sofra a clássica relação
Sujeito-Estado”. No âmbito penal, ela pode manifestar-se a diversos níveis. O Autor começa por
mencionar uma certa “privatização de parte das tarefas penais”, como pode suceder com a execução da
pena. Todavia, já entende que “no campo das sanções, parece assegurado que a reparação e a
indemnização em substituição da pena se conciliam com todos os fins da pena”. Relativamente à
aceitação de respostas alicerçadas no consenso, refere a «polémica “negociação no processo penal”» e
parece ter dúvidas sobre se a diversão processual significa uma “desdramatização dos conflitos
individuais” (menos dramáticos porque afastados da esfera pública), ou antes uma sua “nova
dramatização” (na medida em que se atribui novo relevo a essa dimensão do conflito). Todavia, o Autor
não parece rejeitar esta tendência na sua globalidade, antes tendendo a uma certa “aceitação do modelo
transformado” (“La ciência del derecho penal ante las tareas del futuro”, in La Ciencia del Derecho Penal
ante el Nuevo Milenio, coord. da versão alemã: Eser/Hassemer/Burkhardt/; coord. da versão espanhola:
Muñoz Conde, Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, ps. 424-430).
895
Günther KAISER, Criminologia – Una introducción a sus fundamentos científicos, Madrid: Espasa-
Calpe, 1978, p. 98. Também Winfried HASSEMER sublinha que “o Estado moderno aparece com o
domínio da violência legítima e legal nas suas mãos, ao mesmo tempo que impõe a proibição de qualquer
outro uso da mesma. Este monopólio estadual da violência é um pressuposto necessário para uma política
a largo prazo e orientada para objectivos determinados. Além disso, é também o pressuposto de um
ordenamento jurídico a que todos estão sujeitos e, com validez real, a que os poderosos estão
subordinados e que pode e deve impor obrigações a toda e qualquer pessoa. Sem monopólio estadual da
violência não há direito e sem direito não é possível a protecção dos mais débeis” (in Persona, Mundo y
Responsabilidad cit., p. 251).
896
Como nota Jacinto COUTINHO (“Segurança pública e o direito das vítimas”, Separata da Revista da
Ordem dos Advogados, ano 65, III, Dezembro de 2005, p. 866), é “difícil – muito difícil – resgatar o
adequado papel das vítimas porque, de certo modo, isso só se faz renegando aquele do Estado, o que soa,
no mais das vezes, como acto reaccionário, de todo indigesto e indesejado por quem pensa sempre na
democracia”.

511
(quanto ao processo e quanto às consequências) em função da vontade (e do poder) do
titular de tais interesses.
Por outro lado – e este é ponto que merece ser sublinhado –, não devem confundir-
se os conteúdos essenciais da vingança privada e da privatização da justiça penal, que
neste ponto da reflexão se juntaram sobretudo por aparecerem indistintamente
esgrimidos, quer enquanto obstáculos a formas mais intensas de participação da vítima
na justiça penal, quer enquanto limites à proposta restaurativa.
Por mais divergências que existam na delimitação de cada um dos conceitos,
parece útil uma sua breve diferenciação para, de seguida e à luz do sentido nuclear que
se crê ser o de cada um deles, se ponderarem as diversas exigências a que ficam sujeitas
a justiça penal (cuja natureza se deve manter pública897) e a justiça restaurativa (que não
é modelada, como antes já se viu, pelos mesmos sentido, finalidades e limites).
Assume-se – uma outra vez – o risco de uma excessiva simplificação na
contraposição entre vingança privada e privatização da justiça penal (com a defesa,
porventura frágil, de que a consideração de cada uma delas se cinge, neste ponto do
estudo, à interrogação sobre a legitimidade e a extensão da participação da vítima na
justiça penal e sobre a pertinência de uma outra proposta, a restaurativa, em que tem
carácter central a reparação dos danos causados à vítima). Ainda assim, talvez possa
partir-se do princípio de que enquanto a primeira (a vingança privada) pressupõe a
defesa por privados de interesses que são privados; a segunda (a privatização da justiça
penal) não prescinde de uma nota pública, ou porque há um sistema público ao serviço
de interesses privados, ou porque há privados incumbidos de tarefas que seriam,
tradicionalmente, públicas898.
O que com isto se pretende significar é, portanto, que o conceito de vingança
privada não prescinde de uma reacção ao crime definida primeiramente em função

897
O sentido inequívoco da caracterização do direito criminal como direito público é afirmado, entre
tantos outros, por Eduardo CORREIA: «no que toca à caracterização, neste quadro, do direito criminal,
logo se vê, atenta a definição que dele demos, ser ele direito público. Na verdade, ele regula relações que
se estabelecem, não entre particulares (nestes compreendido o Estado em tal veste), mas entre o Estado,
como titular do “jus puniendi”, por um lado, e os particulares por outro. O Estado é hoje o titular único do
“jus puniendi” (embora possa, excepcionalmente, delegar o seu exercício nos particulares, como quando
lhes concede o direito de autodefesa) e usa dele sempre na prossecução do interesse público, que não na
do particular porventua ofendido pelo facto criminoso. O que, se revela à evidência o carácter público das
normas de direito criminal, mostra também a sua natureza indisponível – que acompanha a
indisponibilidade dos interesses que elas visam tutelar – e ainda a natureza pública das reacções
criminais» [in Direito Criminal (com a colaboração de Jorge de Figueiredo Dias), I, reimpressão,
Almedina: 1971, p. 10].
898
Sobre as formas de reacção ao crime sem a intervenção do Estado e considerando que “esse risco não é
imaginário”, cfr. Mireille DELMAS-MARTY, Le Flou du Droit, Du Code Pénal aux Droits de l’Homme,
Paris: Quadrige/Puf, 2004, p. 234 ss.

512
daqueles que são os interesses privados das vítimas ou dos seus próximos (e assumindo-
se, o que se não julga inequívoco, que prepondera nesses interesses uma dimensão de
retaliação). Pelo contrário, a privatização da justiça penal (ou de “partes” ou
“momentos” do “funcionamento” da justiça penal) pode existir mesmo quando na
finalidade da intervenção se continue a ver essencialmente a defesa da comunidade ou
de interesses sobretudo públicos, nomeadamente por transferência para entidades
privadas de funções que caberiam a instâncias formais e estaduais de controlo. Um dos
exemplos que tem merecido amplo debate, a propósito dessa privatização da justiça
penal (parcial, é certo), relaciona-se com a outorga a empresas privadas da gestão e
direcção de estabelecimentos prisionais899.
Ora, a defesa da necessidade de “descoberta da vítima” (na justiça penal e na
justiça restaurativa) não equivale àquela revolução contra o carácter público da justiça
penal através de uma repristinação da vingança privada ou de uma qualquer adesão à
privatização do sistema de reacção ao crime.
Em primeiro lugar, porque aquela “descoberta da vítima” se manifesta em muitos
casos, como se referiu, a níveis externos à administração da justiça penal, como sucede
com a proposta restaurativa. Aceitar-se a relevância dos interesses da vítima e a
importância da reparação dos seus danos e da possibilidade de pacificação do conflito
em que esteve envolvida, no contexto de um sistema distinto do penal e que o não
substitui, não pode equivaler, naturalmente, a uma privatização do penal.

899
A questão mereceu a ponderação muito crítica de Loïc WACQUANT (Punir les Pauvres cit., p. 79 ss,
p. 188 ss), no contexto de uma análise da realidade norte-americana dos últimos vinte anos do século
vinte, centrada na afirmação de uma “política estadual de criminalização das consequências da miséria”,
através da “transformação dos serviços sociais em instrumentos de vigilância e de controlo das categorias
indóceis” e também por força de “uma contenção repressiva dos pobres através do recurso massivo e
sistemático à incarceração”. Essa expansão do número de presos “tornou-se uma verdadeira indústria e
uma indústria rentável”, através do “crescimento exponencial de um sector de prisões construídas ou
geridas pelo sector privado”. Merecedora de reflexão é também a afirmação do Autor de que a “passagem
do Estado Social para o Estado Penal” se traduziu num crescimento “exorbitante” dos custos, que “os
eleitores americanos recusam assumir” e que desencadeou o recurso ao sector privado. Ainda nas palavras
de WACQUANT, “ao ritmo a que se prende nos Estados Unidos, é preciso abrir uma prisão com mil
lugares a cada cinco dias, o que nenhum governo tem os meios financeiros ou a capacidade administrativa
para fazer”. Todavia, se no final da década de oitenta as prisões privadas eram apresentadas como “uma
nova fronteira económica” e se na primeira metade de noventa «a Correction Corporation of America
estava no “top five” das empresas mais rentáveis do país», as previsões optimistas foram infirmadas e na
viragem do milénio “o encarceramento privado já não consta entre os investimentos-farol de Wall Street”.
Na opinião do Autor, os vários escândalos que abalaram o sector (e que se relacionam, nomeadamente,
com a “importação-exportação de reclusos de uns Estados para os outros, deslocalizando-os com prejuízo
para os seus direitos de visita e para a socialização; com a imposição de pagamento parcial, em alguns
estabelecimentos prisionais, da dormida, comida ou assistência médica; com o surgimento de críticas a
políticas prisionais intencionalmente orientadas para a causação de sofrimentos desnecessários ao recluso)
terão sido parcialmente responsáveis pelo decaimento do interesse na prisão privada como negócio.

513
Em segundo lugar e no que respeita especificamente à justiça penal, não há uma
sua privatização quando se não defende um alargamento das finalidades do direito penal
e do direito processual penal de modo a assumir como fim principal a satisfação das
necessidades da vítima, mas antes, mais modestamente, se advoga uma protecção maior
da vítima – quer ao nível substantivo, quer ao nível processual – sempre que com ela se
não ofenda o núcleo essencial daquelas finalidades especificamente penais900.
Simplifique-se o sentido da resposta, em moldes quase geométricos, confrontando,
quer a proposta restaurativa, quer uma certa justiça penal não alheia aos interesses da
vítima, com os “contra-argumentos” da privatização da justiça penal e do retorno da
vingança privada:
(I) a proposta restaurativa não significa uma privatização da justiça penal na
medida em que não é justiça penal. O apagamento das instâncias decisórias estaduais
que advém da prevalência da dimensão (inter)pessoal do conflito ocorre em um modelo
com finalidades e procedimentos distintos dos penais. Para além de que esse
apagamento das instâncias formais de controlo não é mais do que relativo em um
modelo – como o português – em que se opta por um sistema público de mediação
penal;
(II) também se não pode atribuir à proposta restaurativa um sentido de vingança
privada, na medida em que a própria finalidade de pacificação do conflito – com
preponderância dos interesses privados, é certo –, através de uma reparação da vítima
nos moldes ainda aceites pelo agente, parece incompatível com o próprio conceito de
vingança;
(III) por outro lado, naquilo que antes se afirmou sobre o sentido e a dimensão que
deve ter a participação da vítima na justiça penal, houve sempre o cuidado de aclarar
que essa intervenção terá sempre de ficar limitada por aquela que é a função do direito

900
Cfr. Cláudia CRUZ SANTOS, “Direito penal mínimo e direito processual penal mínimo (brevíssima
reflexão sobre os papéis processuais penais do estado punitivo, do agente do crime e da sua vítima”,
Boletim IBCCRIM, ano 15, n.º 179, Out 2007, p. 13. Tem-se, sobretudo, em conta o facto de que a tutela
de todas as expectativas da vítima (por exemplo quanto à sua protecção no processo penal,
nomeadamente por força de um regime de protecção de testemunhas que, de forma muito ampla,
garantisse como regra a ocultação da sua identidade ou a inexistência de um “confronto” com a defesa)
pode ser incompatível com a necessária garantia dos direitos fundamentais do arguido. Sobre o assunto,
numa perspectiva mais ampla, cfr. Anabela RODRIGUES («A defesa do arguido: uma garantia
constitucional em perigo no “admirável mundo novo”», RPCC, ano 12, n.º 4, Out-Dez 2002, p. 549 ss),
que reflecte criticamente sobre a forma como «o mundo mudou e a “demanda de liberdade” deu lugar à
“demanda de segurança”». A Autora pondera, também, a “importância e atenção crescentes da vítima no
alcançar da pacificação social e realização da justiça” e a forma como «têm vindo a abrir caminho a
reformas que procuram viabilizar um funcionamento eficaz do processo penal, caracterizando-se por um
encurtamento “acrescido” e mais vigoroso dos direitos e liberdade do arguido».

514
penal: a função de protecção subsidiária de bens jurídicos e não a satisfação de uma
qualquer vontade de vingança da vítima ou dos seus próximos;
(IV) da extensão dessa participação da vítima na medida do possível não decorre,
em nenhum momento, a defesa da entrega de funções estaduais na administração da
justiça penal a entidades privadas, o que afasta a associação a um qualquer movimento
em favor da privatização da justiça penal.
Como sublinha Jorge de FIGUEIREDO DIAS, “o direito penal constitui, por
excelência, um ramo ou uma parte integrante do direito público. Porventura em
nenhuma outra disciplina jurídica como nesta surgirá uma tão nítida relação de supra-
infra ordenação entre o Estado soberano, dotado do ius puniendi, e o particular
submetido ao império daquele; como em nenhuma outra será tão visível a função
estadual de preservação das condições essenciais da existência comunitária e o poder
estadual de, em nome daquela preservação, infligir pesadas consequências para a
liberdade e o património (…) dos cidadãos”. E acrescenta, com particular relevo para a
reflexão em curso: “verificados (…) os pressupostos da intervenção, o ius puniendi
estadual surge como coisa pública, por inteiro subtraída à vontade dos particulares»901.
A centralidade que, para a afirmação da natureza pública do direito penal, assume
a independência da reacção face à vontade do particular, parece conflituar com formas
mais intensas de participação desses particulares no sistema de reacção ao crime. O que
ao longo deste estudo, em vários momentos, se tem procurado justificar é que esse
conflito nem sempre existirá. Ele não existirá quanto a formas de participação dos
particulares na justiça penal que não ponham em causa as finalidades principais do
direito penal e do processo penal. E não existirá quanto a formas de participação dos
particulares que sejam exteriores à intervenção especificamente penal e antes fundadas
no reconhecimento da necessidade de uma outra resposta a uma diversa dimensão do
crime.
Ainda em jeito de síntese e agora especificamente no que respeita à consideração
da proposta restaurativa confrontada com a acusação de um retorno da vingança
privada, o que também se enfatiza é que, apesar de o fundamento da justiça
restaurativa radicar no reconhecimento de uma dimensão do crime que não é a
pública, reconhece-se, ainda assim, um importante papel ao Estado. Esse relevante
papel do Estado decorre da inconveniência de uma absoluta compartimentação do crime

901
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora: 2007,
ps. 13-4.

515
em várias fatias a que corresponderiam respostas totalmente diversas e autónomas. A
atribuição de relevância a uma dimensão “mais privada” do crime não postula a
desconsideração da existência daquela dimensão pública. Pode existir necessidade de
resposta a apenas uma delas ou a ambas. Nesta última hipótese, admite-se a
conveniência de uma certa concertação das intervenções.
Nessa medida, há que reconhecer ao Estado o desempenho de um papel
importante no que respeita à justiça restaurativa. A sua intervenção desdobra-se em duas
frentes principais: por um lado, cumpre-lhe velar pela concordância entre as práticas
restaurativas (em si mesmas e nos resultados a que possam conduzir) e os princípios
garantísticos inerentes ao Estado de Direito Social; por outro, cabe-lhe uma função
organizacional relacionada com a criação das condições necessárias ao funcionamento
dos programas restaurativos902. O regime jurídico da mediação penal de adultos durante
o inquérito, introduzido pela Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, é exemplo da forma como
se associam práticas restaurativas ao funcionamento do aparelho estadual de justiça.
Sobre ele, afirmou Mário MONTE que “dá à vítima um lugar que há muito não tinha,
sem contudo reduzir as garantias processuais ou privatizar o direito penal, porque é
ainda no seio do processo penal e com intervenção do Ministério Público que se
desenvolve”903.
Depois de se procurar justificar a dissociação entre a descoberta da vítima (na
justiça restaurativa e na justiça penal) e a potenciação, quer da vingança privada, quer
da privatização da justiça penal, há, porém, uma outra perplexidade que se deve
manifestar. Tal perplexidade prende-se com a forma como se enfatiza o desvalor da
vingança privada, sem o correspondente questionamento sobre se não há algo de
vingança pública na justiça penal estadual e sobre se, existindo, essa vingança pública é
melhor – ou menos má – do que a vingança privada. E o questionamento torna-se mais
pertinente quando se reconhece que no conceito de vingança privada não cabe
exclusivamente a vingança de sangue ou a lei do mais forte. De uma “vingança privada

902
Sobre esta questão, Katherine DOOLIN [“But what does it mean? Seeking definitional clarity in
restorative justice”, The Journal of Criminal Law, 71 (5), 2007, p. 430] refere que o Estado é um
interveniente na justiça restaurativa, ainda que “indirecto ou secundário”. Sustenta que tem um “papel
necessário na promoção das garantias substantivas e processuais das vítimas e dos agressores”. Mas
afirma que o Estado também tem um “papel vital” na disponibilização de recursos que permitam as
práticas restaurativas e que contribuam para criar as condições que garantam o encontro entre o agente e a
vítima, encontro esse que as envolve na decisão do conflito decorrente do crime.
903
Mário Ferreira MONTE, “Um balanço provisório sobre a lei de mediação penal de adultos”,
Homenagem de Viseu a Jorge de Figueiredo Dias, coord. Paulo Pinto de Albuquerque, Coimbra:
Coimbra Editora, 2011, p. 116.

516
ilimitada”, em que não há proporcionalidade da reacção face à ofensa, deve distinguir-se
uma “vingança privada limitada”, norteada pelo respeito por aquele juízo de
proporcionalidade904.
Por outro lado, é sabido que, pelo menos sob o ponto de vista das teorias dos fins
das penas, tende-se maioritariamente a afastar da pena a ideia de vingança. E, todavia,
não se afasta a interrogação sobre se, de facto assim é na praxis da justiça penal.
Recordem-se as palavras de Maurice CUSSON, que sublinha as semelhanças entre a
vingança privada e a pena, para concluir que “a vingança é o equivalente funcional da
pena”, combinando-se em ambas um conjunto de factores, entre os quais se destacam “a
obrigação, a retribuição e a dissuasão” 905. A associação da pena pública à vingança é
também clara no pensamento de Eugenio Raúl ZAFFARONI: “o poder punitivo – com
a sua selectividade estrutural – criminaliza umas poucas pessoas e usa-as para se
projectar como neutralizador da maldade social que, assim como a loucura, surgem
como irracionais. Apresenta-se como o poder racional que encerra a irracionalidade em

904
Marcello CAETANO, a propósito de uma reflexão sobre a justiça criminal portuguesa no período
medievo, sublinha a diferença entre uma vingança ilimitada e, por outro lado, uma vingança regulada e
mediatizada pela intervenção de terceiros que a reconhecem não já como mera vingança, mas antes como
justiça privada orientada para o restabelecimento da ordem comum (in História do Direito Português –
sécs. XII-XVI, 4.ª edição, Lisboa-São Paulo, Verbo: 2000, p. 248 ss).
905
Para Maurice CUSSON (Pourquoi punir?, Paris: Dalloz, 1987, ps. 40-1), “aquele que se vinga actua
por cólera mas também porque se sente moralmente obrigado a isso, porque a pressão social o constrange
a isso, porque desferir os golpes parece-lhe decorrer de uma necessidade lógica, porque quer intimidar os
seus adversários. A instituição que é a vingança difundiu-se entre povos que habitam todos os continentes
porque contribuía para prevenir a violência e para manter o equilíbrio entre as famílias (…). Há algumas
semelhanças entre a vingança e a pena que merecem ser sublinhadas. Em ambos os casos, a dimensão
normativa é importante. Vingamo-nos e punimos porque há uma regra que o exige. Em outros tempos, o
filho vingava a morte do pai por submissão a uma norma que o impunha. Hoje, o juiz inflige uma pena
em conformidade com a lei e com a jurisprudência. A retribuição pode assim encontrar-se no primeiro e
no segundo sistema de reacção social. Em ambos os casos, estabelece-se uma relação muito estreita entre
a ofensa e a resposta, entre o crime e a pena. Observa-se a mesma lógica na faida e na pena: retribuir o
mal com o mal, fazer pagar. É claro, finalmente, que a intimidação é uma função desempenhada tanto
pela vingança como pela pena. Por um lado, as pessoas vingam-se para dissuadir o adversário de interferir
consigo e com os seus; por outro lado, o Estado pune para que o receio da punição conduza ao respeito
pela lei. A principal diferença entre a vingança e a pena não é intrínseca, relaciona-se com o braço que
bate: num dos casos, a parte lesada; noutro caso, um representante do Estado. Além disso, a vingança
inscreve-se nas relações bilaterais, no interior das quais joga claramente a lógica da reciprocidade,
enquanto a pena se inscreve nas relações autoritárias em que funciona sobretudo a lógica da dominação-
submissão. Apesar destas diferenças, não se consegue opor radicalmente a vingança e a pena. As razões
que as pessoas tinham para se vingarem não são assim tão diferentes daquelas que nós temos para punir.
Encontramos num caso e no outro uma combinação de obrigação, de retribuição e de dissuasão. A
estrutura dos factores é quase a mesma. Agredia-se o criminoso de ontem por razões que são da mesma
ordem daquelas que hoje se invocam: por dever, para retribuir, para intimidar. A vingança é o equivalente
funcional da pena”.

517
prisões e manicómios. Ataviado deste modo, canaliza as pulsões de vingança, o que lhe
proporciona uma formidável eficácia política (…)”906.
O que se julga, porém, é que, apesar de poderem reconhecer-se algumas
similitudes entre certas funções desempenhadas pela vingança privada e pela pena907,
sobressaem diferenças não despiciendas entre ambas, porventura não devidamente
sublinhadas. Assim, uma das mais importantes, ao nível substancial, será a atinente à
imposição de limites, na pena, por força de juízos de culpa e de proporcionalidade. No
plano procedimental, claro, avolumam-se as distâncias. E, por sobretudo, não pode
desconsiderar-se o essencial, que continua a ser a orientação da pena para o interesse do
“todo”, em detrimento da orientação para o interesse individual da vingança privada.

2.2.9 “Direitos das vítimas” e “direitos dos criminosos”: mais de uns e mais dos
outros?

Ao contrário do que muitas vezes se pensa (e do raciocínio que parece subjacente


à catalogação da maior participação da vítima como retorno da vingança privada), a
manifestação de uma preocupação com a vítima do crime não tem necessariamente
como reverso da medalha a demonização do agente do crime908. A defesa da protecção

906
Eugenio Raúl ZAFFARONI, “Es posible una contribución penal eficaz a la prevención de los crímenes
contra la humanidad?”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, I, Org.
Manuel da Costa Andrade e outros, Stvdia Ivridica 98, Coimbra: Universidade de Coimbra/Coimbra
Editora, 2009, p. 1012. E o Autor acrescenta que “a invenção moderna do sistema penal (…) não só é um
meio manipulador da vingança, mas também – e segundo as circunstâncias – um meio potentíssimo para a
sua execução” (ob. cit., p. 1028).
907
Depois de excluírem a relevância do argumento do retorno à vingança privada como obstáculo à maior
participação da vítima na justiça penal, Elena HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos GREGORIO (ob.
cit. p. 46) parecem manifestar alguma concordância com a ideia de Cusson de que existem semelhanças
entre a pena e a vingança privada: “já não se pode defender a expulsão da vítima da solução do conflito
social que implica a ocorrência penal com o critério que legitimou a sua exclusão inicial: a vingança
privada ou a procura de represálias. De todos os modos, esta ideia, transformada em interesse público e
com outro estilo argumentativo explica, ainda hoje, a pena estadual”. Os Autores acrescentam, a partir de
uma análise empírica centrada na forma de participação da vítima em mecanismos de consenso, que «a
figura da vítima “vingativa” não existe, ou existe nos seus justos limites».
908
A referência, no título escolhido, aos “direitos dos criminosos” tem o mero propósito de vincar,
criticamente, a bipolarização do discurso político criminal, como se vítimas (os bons) e criminosos (os
maus) carecessem de medidas necessariamente opostas. Dever-se-iam ter referido, antes, os direitos do
agente do crime. A “descoberta da vítima” não tem de significar uma reacção ao crime mais punitiva para
o agente. Um exemplo claro desta afirmação pode encontrar-se, mais uma vez, no instituto da mediação
penal que, reforçando a autonomia da vítima na afirmação daquilo que pretende, pode funcionar também
como mecanismo de diversão. O facto de esta ideia nem sempre se apresentar com a clareza desejada
prende-se com a frequência com que movimentos em prol das vítimas se associam à defesa de políticas
conservadoras que insuflam o sentimento de insegurança face a uma criminalidade que pintam em
permanente expansão. O intuito é permitir a implementação de políticas fortemente restritivas de direitos
fundamentais. Por outro lado, paralelamente a este fenómeno, assistimos – sobretudo em muitos dos
países onde se alardeia o pânico perante a ameaça da criminalidade – ao desenvolvimento de um

518
da vítima (no plano da justiça penal, mas também em outros planos) não tem de resultar
de uma visão da vítima enquanto anjo e de uma visão do agente do crime enquanto
demónio.
É sabido que uma mesma pessoa, ao logo do seu percurso individual, pode surgir
umas vezes no papel de vítima e outras vezes no papel de agressor. É sabido que o
agente do crime pode actuar no contexto de circunstâncias que excluem ou diminuem a
sua culpa. É sabido que algumas vítimas podem assumir uma parcela da
responsabilidade pela sua vitimização.
Não se defende um modelo de reacção ao crime gizado a partir do interesse
predominante da vítima. Mas também não se compreende uma sua exclusão da resposta
global dada ao delito. Tanto o agente do crime como a sua vítima merecem a
“compreensão partilhada” sobre a qual escreve Paul RICOEUR909, que procura definir
esse lugar ideal da justa distância – ou, noutra perspectiva, da justa proximidade – da
resposta ao crime face ao agente e à sua vítima. Essa justa distância (ou justa
proximidade, como talvez se prefira) devem assentar numa compreensão, por um lado,
da autonomia do agente e das circunstâncias que a limitam, mas, por outro lado,
também do sofrimento e da eventual quota-parte de responsabilidade da vítima porque,
no fundo, muitos agentes e muitas vítimas talvez possam irmanar-se na posse, ainda que
desigual, de um misto de vulnerabilidade e de força.
A ideia central é a de que enfatizar a necessidade de garantir os direitos das
vítimas não tem de equivaler à admissão da progressiva desprotecção dos direitos do
arguido. A orientação contrária é conhecida, sobretudo nos países que adoptaram
programas político-criminais voltados para o endurecimento da repressão criminal à
custa, nomeadamente, do alargamento das criminalizações, de uma diminuição das
garantias processuais dos arguidos, do abandono da ideia da ressocialização e das
medidas de substituição e flexibilização da prisão. Um dos argumentos é o de que a
defesa dos direitos das vítimas impõe a limitação dos direitos dos criminosos. Essa
equivalência acrítica entre “mais direitos das vítimas” e “menos direitos dos

“mercado da segurança”, cada vez mais lucrativo, relacionado com o fornecimento de um conjunto de
bens e serviços (pensemos no “policiamento privado”, na venda de armas ou munições, nas empresas que
se dedicam a blindar veículos, nas empresas que instalam sistemas de alarme ou sistemas de vigilância
electrónica). Desta actividade empresarial não se exclui a construção de unidades prisionais, o
fornecimento dos bens e serviços nelas utilizados, como o vestuário e a alimentação. Sobre o assunto, vd.
Nils CHRISTIE, Crime Control as Industry, Towards Gulags, Western Style, 3.ª ed., revista e com 2
novos capítulos, Londres e Nova Iorque: Routledge, Taylor and Francis Group, 2000.
909
Cfr. Paul RICOEUR, “Autonomia e vulnerabilidade”, in A justiça e o mal, direcção de Antoine
Garapon e Denis Salas, Instituto Piaget: 1999, p. 159 ss.

519
criminosos” acabou por explicar, de resto, uma certa renitência das alas criminológicas
menos conservadoras quanto à conveniência ou à relevância dos movimentos ou das
orientações teóricas pró-vítima.
Todavia, como bem nota Markus Dirk DUBBER, impõe-se que os direitos das
vítimas tenham relevância “por si próprios, e não como uma arma na guerra contra o
crime”, sendo que apenas essa fundamentação sobreviverá à derrocada, prevista pelo
autor, da “retórica bélica” adoptada para a compreensão do fenómeno criminal e da
“luta” contra ele. Aquilo que se preconiza é “a libertação dos direitos das vítimas do seu
uso como ferramenta para a conquista, manutenção e expansão do poder estadual.
Chegou o tempo de transformar a defesa dos direitos das vítimas de uma arma na guerra
contra o crime em uma causa que merece ser perseguida por si própria”910.
A associação dos interesses das vítimas sobretudo ao endurecimento da repressão
penal pode ser-lhes – e Dubber acredita que tem sido – prejudicial, na medida em que
contribua para um apagamento do objectivo de reparação dos seus danos: segundo o
Autor, este é um desiderato assumido pelo “welfare state” e, com o seu decaimento,
substituiu-se a atribuição de vantagens “palpáveis” às vítimas pelo anúncio de uma
defesa abstracta dos seus direitos através da “guerra contra o crime”. A dissociação dos
dois conceitos (mais punição dos agressores e mais protecção dos direitos das vítimas)
torna-se necessária, assim, no interesse das próprias vítimas
Na busca desse núcleo dos direitos das vítimas que deve impor-se por si mesmo,
destaca-se, segundo DUBBER, a ideia de identificação: a vítima é uma pessoa com a
qual qualquer cidadão se pode identificar, no seu sofrimento. Daqui decorre, ainda
segundo o Autor, a compreensão do crime e do modelo de reacção ao crime como

910
Markus Dirk DUBBER, Victims in the War on Crime – The Use and Abuse of Victim’s Rights, Nova
Iorque: New York University Press, 2006, ps. 2 e 7. Segundo o Autor, «o movimento pelos direitos das
vítimas providenciou uma cobertura conveniente para uma campanha massiva de incapacitação. O Estado
transformou os seus membros numa comunidade de vítimas potenciais (…). A comunidade de vítimas
potenciais e actuais, “nós”, é mobilizada contra o conjunto dos agressores potenciais e actuais, “eles”.
Esta batalha entre vítimas e agressores, entre o bem e o mal, tem um elo familiar: reflecte e perpetua
largamente antigas divisões sócio-económicas na sociedade americana». E reconhece-se no pensamento
de Dubber a associação – já atribuída, antes, por exemplo a Loïc Wacquant – entre esses “eles” e as
minorias ou os grupos mais desfavorecidos que têm enchido os estabelecimentos prisionais americanos.
Ambos os Autores utilizam o conceito de “incapacitação” porque vêem na prisão uma forma de
segregação – um sucedâneo do ghetto – desses grupos sociais. Nesta medida, conclui-se que esses
cidadãos foram, em parte, vítimas desses movimentos estribados nos direitos das vítimas. Em sentido não
coincidente com o advogado por DUBBER, Günther JAKOBS considera que “existem estímulos
poderosos para a interferência através da pena. Em primeira linha, devem referir-se as compreensíveis
reivindicações de vingança por parte da vítima” (“La autocomprensión de la ciencia del derecho penal
ante los desafios del presente - comentario”, in La Ciencia del Derecho Penal ante el Nuevo Milenio,
coord. da versão alemã: Eser/Hassemer/Burkhardt/; coord. da versão espanhola: Muñoz Conde, Valencia:
Tirant lo Blanch, 2004, p. 63).

520
“assuntos entre pessoas”. E, deste reconhecimento da “interpessoalidade”, resulta uma
certa “parificação” do agente do crime e da sua vítima, precisamente nessa qualidade de
pessoas. A crítica que a este propósito se dirige à justiça penal – no caso, sobretudo à
americana – é a da “remoção da lei criminal da pessoa, quer enquanto agressor, quer
como vítima”, surgindo aquele como um “tipo anti-social de indivíduo” e esta como
“sociedade amorfa”, sendo que “os interesses da vítima individual não são do interesse
da lei criminal”, assim como o não são as “circunstâncias concretas” do agente911. Mais
do que em lugares opostos, o agente do crime e a sua vítima aparecem associados na
despersonalização. Conclui-se, a partir daqui, que, mais do que separados pela defesa de
interesses inconciliáveis, podem surgir tendencialmente irmanados na vontade (pelo
menos, em alguns casos) de encontrar uma solução para o crime distinta da que é dada
pela justiça penal.
A compreensão da autonomia dos direitos das vítimas do crime face àquilo que
sucede ao agente na sua relação com o Estado punitivo é relevante para se entender o
modo como o pensamento vitimológico influencia a proposta restaurativa. A autonomia
ou a não instrumentalização da vítima perante a reacção criminal sofrida pelo agente
explica a relevância da reparação dos danos, da necessidade de se prestar atenção às
necessidades específicas da vítima concreta, as quais podem passar pela vontade de um
encontro com o seu agressor que favoreça a pacificação interpessoal.
Dito da forma que se pretende mais simples: só a renúncia à instrumentalização
dos direitos das vítimas como fundamento para o endurecimento da reacção penal e a
compreensão daquilo que nesses direitos é central, na perspectiva da própria vítima,
logra explicar a associação, recorrente, entre a proposta restaurativa e o interesse das
vítimas. O que não se consegue sem a superação – e daí a particular relevância, no
contexto desse estudo, da argumentação de DUBBER912 – da colagem da defesa dos
direitos das vítimas à expansão da repressão penal.

911
Markus Dirk DUBBER, ob. cit., p. 27.
912
Enfaticamente, Markus DUBBER (ob. cit., p. 9) afirma que “levar as vítimas a sério, como pessoas e
por si próprias, pode resultar em menos, e não em mais, punição do agente do crime”.

521
2.2.10. A vítima, a justiça penal portuguesa e a proposta restaurativa: uma
tentativa de síntese

Reconhece-se a necessidade de cautela com a hiperbolização do discurso


vitimológico como alavanca para uma ampla preponderância dos interesses das vítimas.
Entre os riscos mencionados, têm-se sobretudo em conta o recrudescimento punitivo
acompanhado por uma desconsideração dos direitos fundamentais do arguido913 ou, sob
outra perspectiva, o enfraquecimento do Estado e das instituições associado à
dissolução das fronteiras entre as esferas pública e privada914.
Todavia, o que se julga é que a descoberta da vítima (e reitere-se a preferência
pelo conceito de “descoberta” ao de “redescoberta915) não tem de impor o abandono das
ideias centrais do modelo contemporâneo de resposta ao crime. Essas ideias articulam-
se numa construção do pensamento em cujo núcleo está a visão do crime como uma
ofensa intolerável a bens jurídicos que a comunidade deve proteger no interesse da sua
própria subsistência. E, por ser assim, tem de caber ao Estado a defesa de tais valores,
cuja natureza é tendencialmente indisponível.
O reconhecimento de que o crime tem esta dimensão colectiva (por significar o
conflito da conduta do agente com valores que a comunidade toma como essenciais) é

913
Entre aqueles que chamam a atenção para as desvantagens do populismo penal que se serve da
narração do sofrimento das vítimas como instrumento, cfr. Denis SALAS, La Volonté de Punir: Essai sur
le Populisme Penal, Paris: Hachette, 2005, p. 14 ss.
914
Sobre esse risco de enfraquecimento do Estado potenciado pelo fortalecimento da vítima, cfr., a título
de exemplo, Michel WIEVIORKA (La Violence, Paris: Hachette, 2005, p. 100 ss). Wieviorka não deixa,
porém, de sublinhar as vantagens inerentes ao reconhecimento público do sofrimento das vítimas, através
de novas possibilidades de expressão dos sujeitos individuais e colectivos, considerando que a
possibilidade de narração das experiências e dos traumas sofridos enfatiza a presença do sujeito
individual na consciência colectiva. Far-se-ia assim face à violência, que é uma negação do sujeito,
através de uma reafirmação do próprio sujeito.
915
Não se julga evidente que o “carácter intersubjectivo” da justiça que teria caracterizado a Alta Idade
Média justifique a sua classificação como período “do tudo” para a vítima do crime, depois substituído
por um hiato do “quase nada” que teria durado até, pelo menos, ao século XIX. De facto, a inexistência
ou a fraqueza de uma justiça penal pública, norteada por ideais de igualdade e de solidariedade,
dificilmente pode ser vista como uma conquista para todas as vítimas (ou para a maioria das vítimas),
entregues a si próprias. Em sentido próximo daquele que se julga o correcto, Maurice CUSSON
(Pourquoi punir?, Paris: Dalloz: 1987, p. 43 ss) afirma que a vida dos povos que admitiam a vingança
como forma legítima de reagir ao crime não era idílica, sendo “o nível de violência interna relativamente
elevado”. O Autor acrescenta que, segundo Bloch, “a violência foi verdadeiramente a marca da Idade
Média e, entre as suas causas, encontra-se em lugar de destaque a faida, responsável por uma infinidade
de dramas sangrentos”. Apesar de tudo, reconhece uma certa parcimónia no exercício da vingança,
relacionada com a criação de vários obstáculos à sua execução, como o direito de santuário ou a
composição. Depois de se questionar sobre as razões pelas quais, sendo a vingança privada legítima, ela
não se produzia com mais frequência, CUSSON considera que uma das razões principais é o
conhecimento da conveniência de as sanções supremas actuarem sobretudo ao nível da imaginação das
pessoas (“a sanção suprema, sobretudo quando consiste em fazer perecer um ser humano, exerce um
grande fascínio sobre os espíritos”).

522
coerente com o recorte público e indisponível dado à justiça penal pelo pensamento
moderno. Legitima um processo penal cuja promoção é orientada pelo princípio da
oficialidade. Todavia, é a afirmação de que o crime pode ter também uma dimensão
interpessoal, que supõe um conflito entre o agente e a sua vítima, que sobretudo
justifica aquela descoberta da vítima916.
Reconsidere-se o exemplo proposto: Álvaro tentou matar António, seu pai. A vida
humana é um valor essencial – o valor essencial – que a comunidade organizada em
Estado não pode deixar de proteger. Por esse valor ser indisponível, o Estado punitivo
deve promover o processo e aplicar a pena a Álvaro independentemente da vontade de
António. O Estado quer mostrar a todos os seus cidadãos que aquele valor, a vida,
preserva a sua essencialidade e vigência, não podendo ser desrespeitado. Todavia,
quando Álvaro tenta matar António, seu pai, não há só um conflito entre a sua conduta e
um valor essencial e esse acontecimento não pode ser visto apenas como um pretexto
para evitar males futuros. Há também, neste acontecimento, um conflito de natureza
interpessoal que causa danos específicos a António. Neste conflito interpessoal, António
tem um papel fundamental.
Quando se compreende que o crime pode ter mais do que uma dimensão,
compreende-se também que se devam abrir distintas possibilidades de resposta.
Compreende-se a importância da resposta dada pela justiça penal àquela dimensão
pública do crime e compreende-se que aí o papel da vítima não seja o principal (esse
conflito, de que trata a justiça penal, entre a conduta do agente e valores essenciais para
a comunidade é, portanto, um conflito que o Estado não roubou). Mas compreende-se
também a necessidade de outras formas de resposta para aquela outra dimensão do
crime, que é a dimensão interpessoal.
Nesta medida, pensa-se que a descoberta da vítima tem de se manifestar nestes
dois planos: em primeiro lugar, com maior novidade e porventura maior importância, no

916
José de FARIA COSTA sustenta a ideia de que o facto de a vítima fazer parte do discurso punitivo não
se mostra incompatível com o carácter de coisa pública da justiça penal. Nas palavras do Autor, “a pedra
de toque da nossa reflexão assenta na ideia de que a justiça enquanto acto material dos homens e para os
homens se quis sempre mostrar como coisa pública. Se quis sempre assumir como acto com repercussões
sociais. E se acto com repercussões sociais indesmentíveis, é evidente que a sua ressonância – e falamos,
como é óbvio, nesta circunstância, da justiça penal – se não podia nem devia cingir ao círculo directo ou
estreitíssimo das personagens envolvidas. Personagens que nos primeiros tempos eram fundamentalmente
só duas: o detentor do ius puniendi e o delinquente. Ainda estavam longe, muito longe, os tempos em que
a vítima – depois de ter sido ela mesma a detentora do ius puniendi (vingança privada) – viria,
novamente, a fazer parte do discurso punitivo. O certo é que, desde cedo, a materialização dos actos de
justiça não foi tida como coisa privada, mas antes como coisa pública” [in “Os novos horizontes sobre os
meios de comunicação social e a justiça (ou a vertigem de Hermes)”, Direito Penal da Comunicação –
Alguns Escritos, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, ps. 122-3].

523
plano da resposta não penal àquela dimensão interpessoal e mais privada do crime
(considere-se, entre nós, a novidade que é a mediação penal); em segundo lugar, no
plano da resposta penal.
É fácil compreender a primazia do papel da vítima e daquilo que lhe sucedeu no
plano da resposta não penal. Parece mais difícil defender o aprofundamento da
importância do seu papel ao nível da resposta penal, essa resposta pública e de tensão
entre aqueles valores primordiais da ordem e da liberdade, essa resposta em que o valor
da solidariedade não pode preponderar sobre o da liberdade917.
Com formulação porventura mais enfática do que aquela que se teria escolhido,
mas com fundamento que se compreende, Cornelius PRITTWITZ, no contexto de uma
ponderação das teorias absolutas e relativas dos fins das penas da qual ressalta a
irrelevância da vítima sob qualquer uma das perspectivas, afirma que não há nenhuma
razão para se criticar o escasso papel que as vítimas assumem na justiça penal.
Questiona: “se a lei penal trata, por definição, de prevenir crimes futuros, que papel
poderia ou deveria a vítima desempenhar neste processo?”. E responde que, em
princípio, “a vítima deveria ficar contente por não ter que desempenhar papéis
adicionais. A lei penal, o processo penal e a punição são assuntos públicos em que os
cidadãos são forçados a participar. Por que razão desejaria alguém tal papel?” 918.
Ora, apesar de se concordar com a interpretação do Autor quanto à não inclusão da
tutela da vítima entre os fins principais da justiça penal, já não se aplaude a sua visão da
indesejabilidade, na perspectiva da própria vítima, da sua participação no processo
penal. Quando a este ponto, há uma outra ideia que se deve ter em conta: ainda que a
satisfação das necessidades da vítima não seja finalidade principal da justiça penal, a
vítima tem um interesse específico na realização da justiça penal. Assim, se há um
interesse da comunidade na produção de uma solução justa para a questão criminal, há
também um interessa da vítima – paralelo, ainda que com linhas de não coincidência e

917
Um dos Autores que sublinha o risco para a justiça penal inerente a uma sobrevalorização do “discurso
da vítima” é Antoine GARAPON: “a condição de vítima polariza: a vítima encarna a inocência absoluta e
transforma o ser agressor em monstro absoluto (…). Uma tal percepção do mal – apolítica – impede de
pensar a justiça. Se entrarmos no mundo pela psicologia, pelo sofrimento, pela emoção, chegamos a um
impasse, pois encontramo-nos na impossibilidade de fazer coexistir duas psicologias ao mesmo tempo: a
do criminoso e a da vítima. A opinião é caprichosa e versátil, pronta a deixar-se arrebatar por todas as
causas, mesmo as mais contraditórias. Um dia, ela compadece-se da vítima; no dia seguinte, do preso.
Ora, a justiça tanto é devida a um como a outro” (in “Direito e moral numa democracia de opinião”, A
Justiça e o Mal, dir. de Antoine Garapon/Denis Salas, Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 181).
918
Cornelius PRITTWITZ, “The Ressurrection of the Victim in Penal Theory”, Buffalo Criminal Law
Review, 1999, vol. 3, p. 119.

524
porventura secundário – na busca de uma resposta punitiva adequada ao seu conceito de
justiça.
Todavia, além daquele interesse que a vítima tem na adequação da resposta
punitiva ao seu conceito do que é o tratamento jurídico-penal justo da questão, ela pode
estar carecida de outra espécie de intervenção, mais norteada por uma ideia de
solidariedade919. A solidariedade que o sistema penal pode oferecer à vítima é, porém,
limitada pela sua própria função e pela dificuldade que sente em tutelar interesses que
não são necessariamente coincidentes – os interesses da comunidade (das vítimas
abstractas e futuras) e os interesses da vítima concreta. Também por isso, no processo
penal, que é um “assunto da comunidade”, a vítima é um convidado, mas é um
convidado nem sempre bem tratado e um convidado a quem se tem pedido para pagar
pelo menos uma parte da conta. No processo penal, o desafio está, segundo se crê, em
maximizar o respeito com que esse convidado é tratado e em maximizar aquilo que se
lhe pode oferecer, sem atingir o núcleo das finalidades especificamente penais.
Aquilo que o processo penal – este processo penal público – pode oferecer à
vítima não será, em muitos casos, suficiente para assegurar a solidariedade que ela
merece. Isso supõe o reconhecimento de que existe no crime um outro conflito que não
é aquele de que a justiça penal se ocupa. Neste sentido, a justiça penal ocupa-se de um
conflito que não roubou – o conflito, que o crime representa, entre a conduta do agente e
valores essenciais para a comunidade. Mas a solidariedade que a comunidade
organizada em Estado deve à vítima exige que se lhe forneçam meios para responder à
outra dimensão do crime, essa dimensão de conflito concreto entre um agente e uma
vítima cuja paz individual foi abalada920. Estes mecanismos são essencialmente externos
ao processo penal, ainda que – como sucede com a mediação penal – nele se possam
repercutir.
Do que até aqui se disse não resulta, porém, qualquer apologia da devolução da
justiça penal à vítima, por muito que isso se não confunda com a vingança privada. O

919
Autores como Eduardo CORREIA (in «Ainda sobre o problema da “ideologia do tratamento”:
algumas palavras sobre o “serviço social de justiça”», Cidadão Delinquente: Reinserção Social?, IRS:
1983, p. 15) e Jorge de FIGUEIREDO DIAS (in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do
Crime, cit., p. 74) referiram já o dever de solidariedade que o Estado tem face ao delinquente em sede de
execução da pena, o que o primeiro justifica também pelo facto de que estes “se encontram num
particular estado de necessidade e de desespero”. Ora, se bem se vê o problema, o dever estadual de
solidariedade com as vítimas de crimes vai beber, tendencialmente, às mesmas fontes.
920
Para Christa PELIKAN, “a agressão, antes de constituir uma violação da lei, traduz-se na experiência
emocional de magoar ou ser magoado” (“Sobre a Justiça Restaurativa”, in Newsletter DGAE, 2, 2003, p.
9).

525
que se defende é antes a existência de modelos de reacção ao crime que façam
acompanhar o processo penal – um processo penal que proteja, na medida do possível, a
vítima – de outras formas de resposta ao delito. E que, nessa medida, se faça justiça à
comunidade, porque se defende a ordem; se faça justiça ao arguido, porque se respeita a
sua liberdade, e se faça justiça à vítima concreta, garantindo uma resposta solidária face
às suas reais necessidades921.
Tendo em conta as considerações anteriores sobre aquilo que a justiça penal
portuguesa já oferece à vítima, deve questionar-se se essa protecção é suficiente ou se,
pelo contrário, se pode ainda afirmar a necessidade de outros modos de protecção da
vítima, mormente os cabíveis em uma proposta restaurativa.
O primeiro ponto que importa sublinhar é a inexactidão da afirmação recorrente de
que a nossa justiça penal esqueceu a vítima. A recensão antes esboçada mostra o
contrário. Todavia, comprova também, segundo se julga, certas limitações, algumas das
quais inerentes àqueles que são o fundamento e a finalidade da intervenção penal.
Para, em jeito de síntese, se ajuizar da suficiência ou da insuficiência da resposta
dada pela justiça penal à necessidade de protecção da vítima, deve retomar-se o que
supra se afirmou serem as vertentes em que deve decompor-se esse conceito amplo de
protecção, de modo a agora retirar algumas ilações relativamente ao preenchimento de
cada uma delas. Assim, recorde-se, defendeu-se que a protecção da vítima supõe: I) a
adopção de um tratamento processual que não ofenda a sua dignidade e não potencie o
seu sofrimento; (II) a promoção da sua segurança face a agressões pelo agente ou pelos
seus próximos; (III) a oferta de uma possibilidade de reparação – ou de minimização –
dos danos de diversas espécies que pode ter sofrido.
Relativamente ao primeiro aspecto referido, parece claro que o direito processual
penal português tem vindo a aprofundar um conjunto de mecanismos orientados para a
minimização da vitimização secundária: a título de exemplo, considerem-se os antes
referidos alargamento da possibilidade de declarações para memória futura; a limitação
do carácter público da audiência de julgamento ou a proibição de divulgação da

921
O que em certo sentido se pede à justiça penal é que favoreça, sempre que possível, a abertura de
outras portas de reacção ao crime que possam corresponder melhor às necessidades das vítimas. Na
opinição de Heather STRANG e Lawrence SHERMAN, existem evidências de um tratamento injusto e
desrespeitoso das vítimas pela justiça penal. E acrescentam que a justiça restaurativa parece estar numa
posição privilegiada para “aliviar esse problema”, havendo um nível significativo de prova das vantagens
inerentes ao funcionamento de “milhares de programas restaurativos em três continentes”. Concluem que
“quanto mais cedo a justiça criminal abrir as suas portas à participação das vítimas na justiça restaurativa,
mais cedo podemos começar a reparar o mal de nove séculos de esquecimento das vítimas” (“Repairing
the harm: victims and restorative justice”, Utah Law Review, n.º1, 2003, p. 42).

526
identidade de vítimas de determinados crimes. Mesmo assim, parece dever reconhecer-
se que não é possível uma protecção absoluta de todas as vítimas contra aquela
vitimização secundária. Essa protecção conhece limites, sobretudo os decorrentes da
finalidade penal da prevenção geral positiva ou de integração – que supõe o
conhecimento pela comunidade da condenação que reafirma a importância dos valores
atacados pela conduta delituosa –; e os limites impostos pela finalidade do direito
processual penal de não desprotecção, para além do suportável, dos direitos
fundamentais do arguido. O direito que o arguido tem ao exercício de uma defesa
efectiva não pode prescindir do respeito pelos princípios do contraditório e da
imediação, o que supõe uma possibilidade de se procurar desconstruir a versão dos
acontecimentos apresentada pela vítima num certo tempo e num certo espaço.
Pelo menos em certo sentido, são estes mesmos limites que, ainda que de modo
porventura atenuado, condicionam a possibilidade de se responder de forma plena ao
segundo dos vectores em que se afirmou que aquela protecção da vítima se manifesta: a
garantia da segurança contra agressões ocorridas durante o processo penal ou mesmo
depois da condenação. Como antes se referiu, cunhou-se já o direito do ofendido à
informação sobre a libertação do agente do crime sempre que possa afirmar-se a
probabilidade de ela ser perigosa. E o regime jurídico da protecção de testemunhas
também criou um conjunto de mecanismos que procuram garantir a segurança dos
sujeitos ou participantes processuais que contribuem para a descoberta da verdade.
Todavia, uma sua análise, ainda que superficial, desvenda os requisitos apertados que a
concessão daquela protecção exige. E, para ilustrar o sentido dessa limitação, sempre
pode dizer-se que, se os meios de ocultação da identidade da testemunha (no sentido
muito amplo acolhido, que abrange as vítimas) representam também um prejuízo para a
defesa do arguido, tais meios devem restringir-se ao indispensável922.
Porém, a ponderação sobre a suficiência ou a insuficiência da protecção dada à
vítima do crime pela justiça penal que é mais relevante neste estudo prende-se,
inequivocamente, com aquele terceiro vector de reparação em sentido amplo dos danos
causados à vítima. Constituindo essa reparação finalidade da justiça restaurativa, seria
922
A este propósito, veja-se a afirmação de Sandra OLIVEIRA E SILVA de que “é consabido que o
âmbito processual das medidas de protecção pode encontrar relevantes obstáculos ou, pelo menos, ser
limitado em função de interesses conflituantes de feição comunitária ou individual. Os postulados
essenciais da estrutura acusatória resultante da legislação portuguesa – o contraditório, a imediação, a
publicidade –, bem como as prerrogativas de defesa reconhecidas ao arguido, apresentam-se, as mais das
vezes, em total antinomia com as exigências de tutela das testemunhas. De tal modo que se torna inviável
garantir um destes valores em recíproca interacção sem em maior ou menor medida sacrificar o outro” (in
A Protecção de Testemunhas no Processo Penal cit., p. 12).

527
difícil afirmar a necessidade desta justiça restaurativa se tal reparação já fosse
garantida pela justiça penal.
Apesar da multiplicidade dos institutos orientados para a reparação já conhecidos
pelo nosso direito penal e pelo nosso direito processual penal, julga-se que eles não são
suficientes. Elenquem-se, de forma sucinta, as razões cumulativas que sustentam esta
conclusão.
A indemnização por perdas e danos, além de não ser uma resposta da justiça penal
tendo em conta a sua indiscutível natureza civil, é com frequência insusceptível de
obtenção pelo lesado. E isso é assim sobretudo porque, em muitos casos, o agente do
crime que é também o responsável civil é desconhecido, não tem meios para cumprir o
dever de indemnizar, ou consegue iludir esse dever. Ora, quando assim é, os
mecanismos de natureza supletiva (nomeadamente, a indemnização pelo Estado ou a
entrega ao lesado do valor da multa ou dos objectos ou proventos do crime) têm
requisitos muito apertados e têm merecido escassíssima aplicação prática.
Por outro lado, a reparação contemplada em várias normas esparsas do Código
Penal tem os limites que a enunciação da questão já desvenda: o seu carácter pontual e,
sobretudo, condicionado à prossecução das finalidades especificamente penais da
prevenção geral e da prevenção especial, limitadas pela culpa.
Finalmente, as várias formas de reparação elencadas têm um denominador comum
que as distingue da reparação restaurativa: elas não são nunca formas de reparação
alicerçadas em um exercício exclusivo e de plena autonomia das vontades dos
intervenientes concretos no conflito, antes resultando sempre – em maior ou menor grau
– da ponderação de um terceiro, que se posiciona como autoridade e que determina
aquela reparação em função de outros critérios. Assim, sobre aquelas reparações penais
sempre se poderá dizer que não correspondem necessariamente àquilo que o agente do
crime e a sua vítima escolheriam como conteúdo do acordo, no encontro que fundaria a
pacificação do conflito.
Uma nota última serve para sublinhar a ideia de que, apesar de a proposta
restaurativa ter na sua génese a crítica da forma como a justiça penal trata a vítima do
crime e ter nos seus objectivos a reparação mais ampla dos danos que lhe foram
causados, não se julga que ela seja sempre um remédio para todos os males sofridos
por todas as vítimas. De facto, existirão vítimas que não querem participar nos
procedimentos restaurativos e haverá vítimas que, participando, não ficarão satisfeitas

528
com os resultados que aí forem alcançados923. Haverá vítimas que preferem a resposta
ao crime dada pela justiça penal, nomeadamente por não estarem tão interessadas na
reparação dos seus danos como na punição do seu agressor, que encaram como um
imperativo, à luz da sua concepção de justiça ou das suas aspirações a segurança. E
mesmo quando se reconhece que essa resposta penal tem lacunas na perspectiva da
vítima, substituí-la por outra resposta não será a única solução, podendo ser mais
conveniente melhorá-la (melhorando, a título de exemplo, a informação do processo
penal que a vítima recebe)924.
O que merece ser enfatizado, porém, é que a resposta restaurativa se trata de outra
resposta – e de uma resposta que tem sido sujeita a avaliações com resultados
genericamente positivos925. E aquilo que se julga, assim, é que, tendo como pano de

923
O facto de a justiça restaurativa não constituir panaceia para todas as vítimas foi já reconhecido por
vários Autores. Veja-se, a título de exemplo, o estudo de Jo-Anne WEMMERS e Marisa CANUTO,
Victim’s experiences with, expectations and perceptions of restorative justice: a critical review of the
literature, International Centre for Comparative Criminology, Université de Montréal/ Policy Centre for
Victim Issues/Research and Statistics Division, Department of Justice, Canadá, 2002. As Autoras
analisam o grau de satisfação de vítimas que participaram em programas restaurativos, quer no que
respeita à satisfação com os procedimentos, quer no que tange à satisfação com os resultados, a partir de
uma ampla comparação de estudos sobre a matéria levados a cabo em diversos países (nomeadamente em
Inglaterra, no Canadá, nos Estados Unidos, na Bélgica ou na Alemenha). Afirmam que as expectativas
das vítimas que participam em programas restaurativos são “relativamente consistentes”, relacionando-se
com os objectivos de reparação dos danos, de auxiliar o agressor, confrontá-lo com as consequências do
seu comportamento ou obter do agente uma explicação para a vitimização. Todavia, também dão conta
das principais razões das vítimas que recusam participar em programas restaurativos: consideram que “o
esforço não vale a pena”, não acreditam na sinceridade da participação do agente ou “estão ainda
demasiado enfurecidas com ele” (ob. cit., p. 16). WEMMERS e CANUTO acabam por concluir, com
base na ponderação das avaliações a que foi sujeita uma ampla amostra de práticas restaurativas, que
“apesar de a percentagem de vítimas que quer participar em programas restaurativos variar consoante os
estudos, há claramente um grupo significativo que está interessado neles”. E acrescentam que esta
conclusão é aplicável a “todos os tipos de vitimização”, inclusivamente a originada por “crimes graves”
(ob. cit., p. 26). Todavia, não deixam de sublinhar que, apesar de a maioria das avaliações dar conta de
um elevado nível de satisfação das vítimas com as práticas restaurativas, nada permite concluir que elas
não ficariam igualmente satisfeitas com a resposta dada pela justiça penal. Essa comparação não resulta
da análise feita. Por outro lado, a manifestação de insatisfação das vítimas com os programas
restaurativos está em regra associada à falta de informação, à inexistência de reparação e à incapacidade
das autoridades para fazerem o agente cumprir o acordado. Curiosamente, sublinham também as Autoras,
as mesmas críticas que são recorrentemente feitas à justiça penal.
924
Entre os Autores que alegam a existência de riscos para as expectativas das vítimas nas práticas
restaurativas, cfr. Andrew ASHWORTH/Lucia ZEDNER (“Defending the criminal law: reflections on the
changing character of crime, procedure and sanctions”, Criminal Law and Philosophy, vol. 2, n.º 1, 2008,
p. 21 ss), que afirmam a importância para a vítima de exercer o seu “direito a um dia no Tribunal”.
925
Esses resultados sintetizam-se na afirmação de Allison MORRIS e de Gabrielle MAXWELL de que
«as vítimas cujos agressores participam da justiça restaurativa têm mais informação, é mais provável que
encontrem e “confrontem” o seu agressor, é mais provável que tenham alguma compreensão das razões
por trás do crime, é mais provável que recebam alguma espécie de reparação pelo mal sofrido (...), é mais
provável que fiquem satisfeitas com o acordo obtido, é mais provável que se sintam melhor com a
experiência vivida e é menos provável que depois se sintam zangadas ou com medo do que aquelas
vítimas cujos agressores foram levados a tribunal» (“Implementing restorative justice: what works?”,
Restorative Justice for Juveniles – Conferencing, Mediation and Circles, Eds. A. Morris/G. Maxwell,
Portland: Hart Publishing, 2003, p. 268).

529
fundo a diversidade das vítimas e das suas expectativas, o alargamento das
possibilidades de resposta contribuirá, em princípio, para o alargamento do universo das
vítimas reconfortadas com a solução encontrada para os desvalores que o crime lhes
causou.

2.3.Os mecanismos de consenso no direito processual penal português

Uma das notas mais marcantes do Código de Processo Penal de 1987 foi a
introdução de várias soluções de consenso no nosso ordenamento jurídico. Desde então
e por força de posteriores alterações legislativas, o âmbito legal de aplicação de tais
institutos não tem cessado de se expandir926.

926
A introdução de “meios de justiça consensual” no Código de Processo Penal de 1987 foi referida, entre
outros, por Germano MARQUES DA SILVA, que afirma a necessidade de mudança do paradigma de
justiça penal “por razões da própria eficácia da justiça, mas também na busca de melhor justiça material”
(“Em busca de um espaço de consenso em processo penal”, Estudos em Homenagem a Francisco José
Velozo, Escola de Direito da Universidade do Minho/Associação Jurídica de Braga, Coimbra Editora:
2002, ps. 695-6). Sobre a ampliação dos espaços de consenso no CPP relacionada com os institutos da
suspensão provisória do processo e do processo sumaríssimo, cfr. Sónia FIDALGO (“O consenso no
processo penal: reflexões sobre a suspensão provisória do processo e o processo sumaríssimo”, RPCC,
ano 18, n.º 2 e 3, Abril-Set 2008, p. 312), que trata das novidades resultantes das alterações introduzidas
no CPP em 2007, apesar de considerar que com aquela revisão a suspensão provisória do processo e o
processo sumaríssimo não viram “alteradas as ideias centrais a que vêm sendo reconduzidos desde a sua
consagração no CPP de 1987”. Sobre a expansão do âmbito de aplicação da suspensão provisória do
processo, cfr. Rui do CARMO, “A suspensão provisória do processo no Código de Processo Penal
revisto: alterações e clarificações”, Revista do CEJ, nº especial, Lisboa, 9, 2008, p. 321 ss. Para uma
consideração do sentido da revisão apenas no que respeita ao processo sumaríssimo, cfr. Sónia
FIDALGO, “O processo sumaríssimo na revisão do Código de Processo Penal”, Revista do CEJ, nº
especial, Lisboa, 9, 2008, p. 297 ss. Sublinha-se o aspecto de o processo sumaríssimo (que, no CPP de 87,
só era aplicável nos processos por crimes puníveis com prisão não superior a 6 meses ou multa) ter
passado a ser admitido para crimes puníveis com pena de prisão não superior a 5 anos. A Autora
menciona o facto de se verificar assim “uma tendência para afirmar que os crimes puníveis com pena de
prisão não superior a 5 anos constituem, ainda, criminalidade de média gravidade” e considera que assim
se logrou “uma harmonização no que concerne à utilização de mecanismos de consenso”, porque já antes
se estabelecera essa fasquia para a aplicabilidade da suspensão provisória do processo; assim como uma
“harmonização no que concerne à possibilidade de utilização dos processos especiais: todos os processos
especiais podem ser aplicados em caso de crime punível com pena de prisão não superior a cinco anos”.
Para uma consideração de anteriores momentos do regime jurídico dos processos especiais, cfr. Anabela
Miranda RODRIGUES, “Os processos sumário e sumaríssimo ou a celeridade e o consenso no Código de
Processo Penal”, RPCC, ano 6 (1996), fasc. 4.º, p. 525 ss; António Henriques GASPAR, “Processos
especiais”, O Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, Coimbra:
Almedina, 1992, p. 361 ss; Paulo DÁ MESQUITA, “Os processos especiais no Código de Processo Penal
português – respostas processuais à pequena e média criminalidade”, Revista do Ministério Público, 68
(1996), p. 106 ss. Apesar de neste estudo não assumirem idêntica relevância (na medida em que não
constituem soluções de consenso, apesar de serem manifestações de celeridade), tenham-se também em
conta os processos sumário e abreviado, por contribuírem para uma compreensão mais ampla da forma
como se encara a reacção processual penal à pequena e média criminalidade. Sobre eles, cfr. Helena
LEITÃO, “Processos especiais: os processos sumário e abreviado no código de processo penal (após a
revisão operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto)”, Revista do CEJ, 9, nº especial, Lisboa, 2008, p.
337 ss.

530
A multiplicação pelos sistemas penais contemporâneos das situações em que o
consentimento é exigido é objecto da análise de Anabela RODRIGUES, que situa tal
tendência num contexto em que “a política criminal (…) foi apanhada no centro de uma
insuperável contradição, pois tornou-se prisioneira de um paradoxo. Observado como
principal ameaça à liberdade individual, o Estado é intimado simultaneamente a
desenvolver um sistema de protecções jurídicas para garantir o exercício de direitos e a
apagar-se precisamente pelas mesmas razões. É um movimento circular de demanda de
protecção ao Estado e de exigência de autonomia do indivíduo”927.
Esta tendência merece, tendo em conta o objecto deste estudo, a maior atenção,
na medida em que se lhe pode assacar um elemento comum ao pensamento restaurativo.
Em certa medida, com ela passa a poder afirmar-se que a justiça penal portuguesa já é,
até certo ponto, consensual, tal como a justiça restaurativa. Todavia, segundo se julga,
só até certo ponto, desde logo por tais soluções de consenso não prescindirem da
intervenção das autoridades judiciárias, que contribuem de forma decisiva para a
modelação das mesmas, ao contrário do que sucede com o “consenso horizontal”
inerente às práticas restaurativas em sentido estrito, de que é exemplo a mediação penal.
Quando se dedica alguma atenção à exposição constante do Decreto-Lei n.º
78/87, de 17 de Fevereiro, encontra-se uma argumentação em favor das soluções de
consenso que em alguns pontos se aproxima do discurso restaurativo: “a procura de
novas formas de controle da pequena criminalidade representa uma das linhas mais
marcantes do actual debate político-criminal. Concretamente, é sobretudo com os olhos
postos nesta específica área da fenomenologia criminal que, cada vez com maior
insistência, se fala em termos de oportunidade, diversão, informalidade, consenso,
celeridade (…). Pelo seu carácter inovador e pelo seu peso na economia do diploma,
merecem especial destaque a possibilidade de suspensão provisória do processo com
injunções e regras de conduta e, sobretudo, a criação de um processo sumaríssimo”.
Acrescenta-se, com particular significado, que “abundam no processo penal as situações
em que a busca do consenso, da pacificação e da reafirmação estabilizadora das normas,
assente na reconciliação, vale como um imperativo ético-jurídico”. Não deixa, porém,
de se reconhecer, ainda naquela exposição, que «o Código não erige a procura do
consenso em valor incondicionado. Pela natureza das coisas, também aqui a
absolutização só seria possível à custa do arbítrio, subalternizando à “paz” a própria

927
Anabela RODRIGUES, Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária cit., “Consensualismo e Prisão”, p.
145.

531
vida e a autonomia humanas. Acresce que, não raro, o controle eficaz da criminalidade
só pode lograr-se mediante a formalização da conflitualidade real»928.
Ora, se bem se vê o problema, esta é uma linha de reflexão nuclear também para
se compreender quer o sentido da intervenção restaurativa, quer os seus limites. Sempre
que no crime o conflito interpessoal assuma particular relevo, deve afirmar-se a
necessidade de oferta, àqueles que nele foram intervenientes, de uma possibilidade de
pacificação através do consenso. Todavia, também tem de se reconhecer que nem
sempre esse consenso é possível. O conflito real pode ter assumido tal dimensão na
perspectiva da vítima e/ou do agente que já não lhes assiste a vontade de se
“encontrarem” ou, encontrando-se, nenhuma pacificação é possível. Quando assim é,
compreende-se que essa pacificação tenha de ser procurada em outra forma de solução
do conflito exterior à autonomia dos indivíduos. A necessidade de pacificar o conflito
pela via da resposta punitiva estadual pode advir, assim, quer da existência de um
conflito que é “demasiado grande” (por ultrapassar a ofensa dos interesses particulares e
assumir inequívoca natureza pública), quer da existência de um conflito que, sendo à
partida “pequeno” (porque de dimensão essencialmente particular), acaba por assumir
aos olhos dos que são nele intervenientes uma dimensão excessiva para que seja ainda
possível a sua solução através do consenso.
É, assim, por o consenso ter os seus próprios limites, que um modelo de resposta
ao crime alicerçado na procura de uma solução (primeiramente para o conflito
interpessoal) através de práticas que supõem a voluntariedade (como sucede com a
justiça restaurativa) é um modelo que não pode aspirar a um qualquer monopólio no
tratamento da criminalidade.

928
Naquela exposição apontam-se exemplos do “respeito pelo conflito” que vários institutos confirmam,
afirmando-se que «paradigmática do respeito que esta consideração merece ao Código é, por exemplo, a
possibilidade que assiste ao arguido de aceitar ou rejeitar a desistência da queixa ou da acusação
particular. Da mesma postura relevam, em geral, todas as disposições que, como implicações do sistema
acusatório, visam realizar, na medida do possível, a reclamada “igualdade de armas” entre a acusação e a
defesa. O mesmo poderá ainda afirmar-se a propósito do reforço da consistência do estatuto do assistente,
com a intenção manifesta de consolidar o papel de um dos protagonistas no campo da conflitualidade
real». Manuel da COSTA ANDRADE (in “Consenso e oportunidade cit., p. 327 ss) defende a “tese da
impossibilidade de um processo penal perspectivado e estruturado em termos de consensualidade
absoluta. Para o efeito, teria o processo que se desenvolver à margem de toda a coerção e domínio e
desembocar em decisões finais comunicativamente obtidas e isentas de todo o conteúdo de frustração”.
Entende que isso “está naturalmente excluído num processo ao fim e ao cabo preordenado à aplicação de
uma pena, cuja efectivação não depende da aceitação do condenado”. O Autor acescenta que “para além
de não ser viável, um modelo de consenso puro seria igualmente, de um ponto de vista ético-jurídico,
indesejável”, até porque “podendo traduzir o antagonismo delinquente-vítima, o crime exprime sempre
uma conflitualidade entre o delinquente e o sistema social. O normal será que estas linhas de clivagem e
conflitualidade se reproduzam, de forma mais ou menos autêntica, na dramatizaão do crime em processo
penal”.

532
Quando assim se pensa – quando se compreende que o espaço para o consenso é
limitado e que a justiça penal já reconheceu a sua intrínseca valia e dele de algum modo
se apropriou –, uma interrogação que sobra prende-se com a possibilidade e a
conveniência da existência, ainda, de outras formas de consenso exteriores à justiça
penal. Formulando-se a questão de forma intencionalmente simplificada, o que pretende
saber-se é se a justiça penal cumpre, através dos seus mecanismos de consenso, todos
os propósitos do paradigma restaurativo (tornando-se ela, nessa medida, já uma justiça
restaurativa) ou se, pelo contrário, lhe escapam espaços e formas de consenso que
devem ser procurados em outros modelos de resposta ao crime.
Uma qualquer tentativa de resposta não deve, porém, prescindir de uma
referência aos principais institutos que, ainda “dentro da justiça penal” que é a nossa,
assentam na ideia do consenso. Esses institutos são sobretudo a suspensão provisória do
processo e o processo sumaríssimo929.
Não se julga cabida nesta sede – sublinhe-se – uma qualquer ponderação
autónoma dos vários problemas inerentes a cada uma destas figuras. A razão pela qual
elas merecem consideração, no contexto deste estudo, prende-se apenas com a
necessidade de vincar as suas semelhanças e as suas diferenças face a formas de reacção
ao conflito jurídico-penal que são práticas restaurativas em sentido estrito.
Simplificando-se o problema, o que se pretende questionar é aquilo que distingue a
suspensão provisória do processo ou o processo sumaríssimo de práticas restaurativas
também alicerçadas no consenso, como a mediação penal.
A primeira nota que merece ser vincada é a de que, apesar de a reflexão sobre o
consenso surgir com frequência associada a considerações sobre as vantagens da
celeridade – na medida em que a existência de consenso pode legitimar a amputação de
momentos do processo e permitir assim uma solução mais rápida do conflito –, pensa-se
que existem vantagens no próprio consenso independentemente da eficiência na gestão

929
Apesar de se concordar com a afirmação de José de FARIA COSTA de que a existência de crimes
particulares em sentido estrito é “um dos afloramentos mais expressivos e sintomáticos do horizonte do
consenso” (ideia que pode ser, pelo menos até certo ponto, aplicável aos crimes semi-públicos), a razão
pela qual não merecerão agora referência prende-se com o facto de, diversamente do que sucede com a
suspensão provisória do processo ou com o processo sumaríssimo, esse consenso ocorrer de certo modo
“à margem” do processo penal. A especificidade desse consenso inerente aos crimes particulares – que o
Autor também vê como “um reforço da componente vitimológica na apreciação e realização da justiça” –
é reconhecido por José de FARIA COSTA, cuja argumentação agora se cita mais integralmente: «ao
arrancar-se da “ideia forte” de que a necessidade de acusação particular, para que se desencadeie o
procedimento criminal, é um dos afloramentos mais expressivos e sintomáticos do horizonte do consenso,
a montante do iter do procedimento, mais não se faz do que aceitar, de boa fé, que o problema poderia ser
resolvido, quer por diversão, quer por mediação» (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo
II, Dir. Jorge de Figueiredo Dias, comentário do art. 207.º CP, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 124).

533
dos conflitos jurídico-penais930. Ou seja: uma solução consensual pode ser melhor
precisamente porque é consensual, independentemente de ser ou não uma solução mais
célere.
Por outro lado, também parece inegável que a celeridade é em si mesma
potenciadora de valores que se não têm de confundir com os inerentes ao consenso. De
novo nas palavras de Anabela RODRIGUES, “na justiça célere, é a realização das
finalidades da punição que avulta: o mandamento da celeridade encontra-se
umbilicalmente ligado à obtenção do efeito de prevenção geral positiva ou de integração
com a aplicação das sanções penais. Para além disso, salienta-se a maior probabilidade
de justeza da decisão proferida pelo tribunal e o interesse do arguido, cuja demora do
processo pode significar restrições ilegais dos seus direito ou esvaziar de sentido e
retirar conteúdo útil ao princípio da presunção de inocência”931.
Se nos afloramentos de celeridade e de consenso já conhecidos pelo nosso
direito processual penal convergem – tal como se verá a propósito da mediação penal,
na parte terceira deste estudo – quer objectivos de justiça, quer objectivos de eficácia
(que talvez se não devam contrapor liminarmente), o que se julga é que existem
diferenças não despiciendas entre aqueles institutos e esta mediação penal.
A partir de uma ponderação do regime da suspensão provisória do processo e do
processo sumaríssimo, o que se começa por enfatizar é que o consenso de que aqui se
trata não é o mesmo consenso que constitui trave-mestra das práticas restaurativas.
Não é o mesmo desde logo quanto àqueles que nele são intervenientes. A
suspensão provisória do processo supõe a concordância das autoridades judiciárias

930
Não se pretende com isto significar que a celeridade da decisão penal é vantajosa unicamente em uma
perspectiva de eficiência. A celeridade é relevante também à luz de considerações de justiça, quer porque
deve ser encarada como um direito dos sujeitos processuais, quer porque é útil à realização das próprias
finalidades da pena. Todavia, nem sempre uma decisão mais célere equivale a uma decisão mais justa.
Como nota Ana Luísa PINTO (A Celeridade no Processo Penal: o Direito à Decisão em Prazo Razoável,
Coimbra Editora: 2008, p. 9), “pode levantar-se a dúvida sobre se a demora processual configura um
verdadeiro problema, tendo em conta que ela, designadamente: confere ao decisor mais tempo para
reflectir, podendo melhorar a qualidade da decisão; pode ser favorável ao arguido; nem sempre configura
um prejuízo para os intervenientes no processo; é necessária ao cumprimento dos trâmites legais”. Na
doutrina estrangeira, julga-se particularmente interessante a forma como Sergio MOCCIA (“Vérité
Substantielle et Vérité du Procès”, Déviance et Société, 2000, vol. 24, n.º 1, p. 110) sublinha os perigos da
desformalização do processo inerente à busca de maior celeridade: «pretendemos (…) libertar o processo
do reino estéril das formas que se tinham por único fim a si mesmas e pôr em prática legalidade e
garantia na ética da responsabilidade, mais do que na ética das formas, imputando a esta última a
ineficácia característica do processo penal. Todavia, não foi tido em conta que o eventual ganho em
eficácia, contrário ao respeito pelas formas, implicaria um decréscimo em termos de legalidade
dificilmente suportável em um Estado de Direito». Segundo o Autor, “não há dúvida de que as garantias
entravam a celeridade do processo”. Todavia, depois de elencar algumas dessas garantias cujo abandono
favoreceria a rapidez da decisão, deixa claro que elas devem continuar a considerar-se imprescindíveis.
931
Anabela Miranda RODRIGUES, “Globalização, democracia e crime” cit., p. 305.

534
Ministério Público e juiz de instrução, assim como do arguido e do assistente932. Por sua
vez, a condenação em processo sumaríssimo só é possível se quanto a ela houver
concordância do Ministério Público, do juiz, do arguido e do assistente (e, quanto a este,
apenas quando o crime for particular em sentido estrito)933. Desta mera enunciação
decorre, em primeiro lugar, a diversa possibilidade de participação do ofendido pelo
cometimento do crime: enquanto essa participação é essencial na prática restaurativa
que é a mediação penal; já nas principais soluções de consenso conhecidas pelo nosso
direito processual penal, a possibilidade de intervenção é limitada ao assistente (e, no
processo sumaríssimo, para além disso, restrita às contadas hipóteses de acusação por
crime particular em sentido estrito). Por outro lado, se quer a suspensão provisória do
processo, quer a condenação em processo sumaríssimo supõem a intervenção do
Ministério Público e de um juiz; já a verificação do acordo obtido na mediação penal e a
homologação da desistência de queixa bastam-se com a intervenção do Ministério
Público.
Todavia, a diferença fundamental prende-se com a legitimidade para a
conformação da solução relativamente à qual depois se manifesta (ou não)
concordância. Na suspensão provisória do processo e no processo sumaríssimo, não
existe uma construção do conteúdo da solução por aqueles que foram os intervenientes
no conflito concreto (o agente do crime e a sua vítima). A solução – ou a proposta de
solução – é conformada pelas autoridades judiciárias em função das finalidades
especificamente penais, cabendo ao arguido e ao assistente a possibilidade de aceitarem
ou não tal solução, mas não a possibilidade de influenciarem decisivamente o seu
conteúdo934. Na mediação penal, pelo contrário, há como que uma inversão de papéis: é
ao agente do crime e ao ofendido que compete a modelação da solução que culminará
no acordo, não podendo o Ministério Público determinar o seu conteúdo, mas tão-
somente homologar a desistência de queixa quando comprovar a verificação dos
requisitos legais que presidem à determinação do acordo935.

932
Cfr. o artigo 281.º, n.º 1, alínea a) do CPP.
933
Cfr. os artigos 392.º a 398.ºdo CPP.
934
Não se julga que esta afirmação seja prejudicada pelo facto de ter havido um certo alargamento, a
partir de 2007, da possibilidade de intervenção do arguido ou do assistente nos âmbitos da suspensão
provisória do processo e do processo sumaríssimo. Assim, a proposta de suspensão provisória do
processo pode ser oficiosa ou “a requerimento do arguido ou do assistente” (cfr. art. 281.º, nº 1 do CP) e,
no caso do processo sumaríssimo, reconhece-se a possibilidade de “iniciativa do arguido” ou a decisão
pelo ministério público “depois de o ter ouvido” (cfr. art. 392.º, n.º 1 do CPP).
935
Cfr. o artigo 5.º, n.º 5 da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho.

535
O consenso que se tem em conta quando se ponderam as soluções já conhecidas
pelo nosso direito processual penal e o consenso que é elemento intrínseco das práticas
restaurativas não se revestem, assim, exactamente das mesmas características. Sobre
aquele consenso que se tem em mente quando se ponderam os regimes jurídicos da
suspensão provisória do processo ou do processo sumaríssimo, concorda-se na íntegra
com a afirmação de Jorge de FIGUEIREDO DIAS de que se não trata, aí, de
“verdadeiro consenso”: «a decantada e já operada consensualização do processo penal
português – como igualmente do italiano, do espanhol, do francês, do brasileiro – não se
baseia assumidamente em estruturas e procedimentos de verdadeiro “consenso”, mas
mais simplesmente em meras concordâncias perante (ou na aceitação de) propostas ou
requerimentos de um ou mais sujeitos processuais dirigidos a outro ou outros». Depois
de exemplificar esta sua afirmação através de aspectos dos regimes jurídicos do
arquivamento em caso de dispensa de pena, da suspensão provisória do processo ou do
processo sumaríssimo, o Autor conclui que “não estão (…) aqui em causa
procedimentos metodológicos – nomeadamente o uso de estruturas comunicacionais
não ritualizadas – aplicados pelos intervenientes em ordem a uma tomada de decisão,
como sempre se tornaria necessário para falar de uma autêntica estrutura de
consenso”936.
O recente estudo de Jorge de FIGUEIREDO DIAS, subordinado ao título
Acordos sobre a Sentença em Processo Penal – O “fim” do Estado de Direito ou um
novo “princípio”?, justifica, para além do que se vem de sublinhar, ainda uma
referência àquela que pode vir a ser a extensão do consenso no direito processual penal
português em um futuro próximo, nomeadamente se a praxis937 e eventualmente a lei
(caso se julgue indispensável a sua alteração) acompanharem o sentido das novidades
introduzidas no código de processo penal alemão e há cerca de três décadas conhecidas
na aplicação da justiça penal naquele país938. O Autor defende a possibilidade de

936
Cfr. Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Acordos sobre a Sentença em Processo Penal – O “fim” do
Estado de Direito ou um novo “princípio”?, cit., p. 20-1.
937
Com uma rapidez porventura surpreendente, o estudo de Jorge de Figueiredo Dias teve eco no
funcionamento das instâncias formais de controlo. Assim, por exemplo, logo em 13 de Janeiro de 2012,
através da Orientação de Acção n.º 1/2012 da Procuradoria Geral Distrital de Lisboa, o Ministério Público
toma posição favorável quanto à aceitação dos acordos sobre a sentença. E a Procuradoria Geral Distrital
de Coimbra, nomeadamente, associou-se à recomendação da PGD de Lisboa por memorando de 19 de
Janeiro de 2012. Iniciou-se, assim, um período de intenso debate sobre a ampliação da cooperação e do
consenso no processo penal português.
938
Jorge de FIGUEIREDO DIAS tem no seu horizonte reflexivo o regime jurídico alemão relativo aos
“acordos sobre a sentença” (Urteilsabsprachen), que resultou da alteração à StPO (Código de Processo
Penal alemão) através da Lei de 4.8.2009. Todavia, não deixa de reconhecer que “apesar do conhecido e

536
acordos sobre a sentença, quer quanto à questão da culpabilidade, quer quanto à questão
da pena, com fundamento no princípio jurídico-constitucional do favorecimento do
processo939, que liga à exigência da tutela judicial efectiva contida no artigo 20.º da
CRP.
Não constituindo propósito desta reflexão uma consideração autónoma da
conveniência ou não da aceitação daqueles acordos sobre a sentença, aquilo que se
pretende explorar – tendo sempre no horizonte a comparação entre uma justiça
restaurativa alicerçada no consenso e uma justiça penal que expande as soluções de
consenso – é apenas a possibilidade de, caso tais acordos venham a ter expressão entre
nós, se considerar que o direito processual penal contemplaria, por essa via, uma
solução do conflito criminal que, ao nível dos procedimentos (ainda que não
necessariamente no plano das consequências) seria já restaurativa. Antecipe-se, mesmo
antes da explicação, a ideia de que não é assim. Ou seja: esses acordos sobre a
sentença, cuja aplicabilidade significaria uma nova expansão das soluções de consenso

quase sacral respeito que a praxis judiciária alemã manifesta pelo seu direito positivo, os acordos em
processo penal tornaram-se, desde os finais dos anos 70 do século passado, uma realidade sine lege e
praeter legem da prática judiciária germânica” (últ. ob. cit., p. 23). A alteração legislativa é sujeita à
apreciação crítica de Jocelyne LEBLOIS-HAPPE/Xavier PIN/Julien WALTHER [“Chronique de droit
penal allemand (Période du 1er janvier au 31 décembre 2009)”, Revue Internationale de Droit Pénal, ano
81, 1º-2º trimestres, 2010, p. 301], para quem “quanto a um ponto, críticos e partidários da nova lei estão
de acordo: trata-se da mais importante reforma da StPO desde a sua entrada em vigor em 1879. É uma
verdadeira mudança de paradigma (…). A partir desta lei, o processo alemão torna-se dual: coabitam um
processo clássico e um processo negociado”. Os Autores acrescentam que “este fenómeno de legalização
dos acordos tende a generalizar-se pouco a pouco: observa-se também no direito suíço, pois que os artigos
358.º e ss (“Processo Simplificado”) do Código de Processo Penal Federal vigente a partir de 2011
generalizam a todo o país uma prática que alguns cantões já conheciam” (ob. cit., p. 305). Entre os
Autores alemães muito críticos dos acordos sobre a sentença, cfr. Bernd SCHÜNEMANN, para quem “os
acordos informais constituem a agressão mais profunda na evolução do processo penal alemão desde
1879 e uma machadada nas raízes de uma tradição centenária. Dito de outra maneira, trata-se de uma
questão que afecta o nosso conceito de direito penal e, com isso, de certa forma, a separação fundamental
para a nossa sociedade entre o sistema jurídico e o sistema económico” (“Crisis del procedimiento penal?
Marcha triunfal del procedimiento penal americano sobre el mundo?”, Temas Actuales y Permanentes del
Derecho Penal después del Milénio, Madrid: Editorial Tecnos, 2002, p. 293). Claus ROXIN também
refere os acordos sobre a sentença como um dos três âmbitos problemáticos do direito processual penal,
mas em jeito menos crítico do que o de SCHÜNEMANN, tendendo antes a considerar que “pode ser que
no futuro [que parece ter-se tornado presente] necessitemos de duas regulações processuais, uma
contaditória e outra consensual” (“La ciência del derecho penal ante las tareas del futuro”, in La Ciencia
del Derecho Penal ante el Nuevo Milenio, coord. da versão alemã: Eser/Hassemer/Burkhardt/; coord. da
versão espanhola: Muñoz Conde, Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 398).
939
Jorge de FIGUEIREDO DIAS toma o princípio na definição que lhe é dada por António Carlos
VIEIRA de ANDRADE, como princípio segundo o qual “o Estado tem o dever fundamental de assegurar
uma prestação plenamente eficiente do serviço de justiça, enquanto forma de realização do direito à tutela
judicial efectiva” (últ. ob. cit., p. 38), estabelecendo a conexão entre estas exigências constitucionais e a
admissibilidade daqueles acordos a partir da ideia da necessidade que estes podem assumir no contexto da
“inevitável escassez dos recursos económicos estaduais que podem ser adstritos à realização da justiça
penal”. Afirma, ainda, a utilidade da aceitação destes acordos em um contexto de crise da justiça penal
associada a um sentimento de ineficácia. E relembra o direito fundamental dos cidadãos à celeridade
processual (com consagração expressa no artigo 32.º, n.º 2 da CRP), assim como o princípio, “velho já de
séculos, da economia processual”.

537
na justiça penal, não equivalem, ainda assim, ao mesmo consenso que se procura
através das práticas restaurativas.
De forma simplificada, parece poder dizer-se que tais acordos sobre a sentença
têm na base uma confissão do arguido, à qual se atribuem efeitos sobre as questões da
culpabilidade e da pena, sendo que tais efeitos resultam de um consenso entre sujeitos
processuais (que acordam em que àquela admissão voluntária da responsabilidade pelo
arguido corresponda um determinado leque de possibilidades sancionatórias). Trata-se,
assim, de um procedimento orientado para o favorecimento, simplificação e aceleração
do processo. Nos termos do estudo de Jorge de FIGUEIREDO DIAS, o momento
temporal em que estes acordos relevariam seria o da audiência de julgamento (sem
prejuízo da possibilidade de uma actuação cooperativa em outras fases, sobretudo a de
inquérito940), em princípio aquando da prestação de declarações do arguido e antes da
apresentação de meios de prova, devendo o acordo constar, necessariamente, da acta da
audiência, de modo a garantir a indispensável publicidade.
Não cabe a esta análise, repita-se, uma ponderação da coerência destes acordos
sobre a sentença com as normas constitucionais e com as normas processuais penais
vigentes. Dessa matéria se ocupa, muito convincentemente, Jorge de FIGUEIREDO
DIAS, definindo limites àqueles acordos que permitam, ainda, o respeito pela ideia
base da indisponibilidade do processo dominante nos países do sistema europeu
continental – limites esses que são importantes para traçar as fronteiras entre estes
acordos sobre a sentença, já admitidos no direito alemão, e a negociação (de que é
exemplo recorrente o instituto da plea bargaining941) conhecida no sistema anglo-
saxónico. A ideia que se sublinha é, portanto, a de que, definidos certos limites, aqueles
acordos poderão ser, ainda, compatíveis com os princípios da “investigação, da verdade

940
Apesar de o Autor não ver obstáculos a “conversações e consensos entre o ministério público e o
arguido na fase de inquérito” em moldes que facilitem e favoreçam o próprio processo, a ideia que parece
ser central é a de que aquelas conversações e aqueles consensos «não constituem uma forma de “decidir”
o processo e não podem por isso obstar a que se apliquem no caso as formalidades legais exigidas pela
prossecução processual”. Jorge de FIGUEIREDO DIAS não deixa, porém, de dar conta da existência no
Còdigo de Processo Penal alemão (StPO), por força da mesma lei de 2009 que consagrou a
admissibilidade dos acordos sobre a sentença, de um §160b segundo o qual «1. O ministério público pode
discutir o estado do processo com os participantes processuais, na medida em que tal pareça adequado a
favorecer o processo. 2. O conteúdo essencial desta conversação deve constar de acta» (Acordos Sobre a
Sentença em Processo Penal cit., p. 101 ss).
941
Veja-se, na doutrina portuguesa, o estudo de Pedro SOARES DE ALBERGARIA sobre as soluções
negociadas da justiça penal americana, Plea Bargaining. Aproximação à Justiça Negociada nos E.U.A.,
Coimbra: Coimbra Almedina, 2007. O Autor define a plea bargaining como “a negociação entre o
arguido e o representante da acusação, com ou sem a participação do juiz, cujo objecto integra recíprocas
concessões e que contemplará, sempre, a declaração de culpa do acusado (guilty plea) ou a declaração
dele de que não pretende contestar a acusação (plea of nolo contendere)” (ob. cit., p. 20).

538
material, da publicidade, da lealdade processual ou do direito ao recurso”, com as
vantagens de que evitarão “longas e improdutivas prestações de prova”, possibilitarão
uma “mais rápida realização do decurso do processo e da restauração da paz jurídica”,
poderão contribuir para a protecção da vítima na medida em que evitem a vitimização
secundária que a fase de produção da prova com frequência acarreta942.
Entre esses limites à relevância do acordo, avultam os que se referem à
culpabilidade e à pena. Relativamente à primeira, vinca-se que “um acordo não pode
conduzir por si próprio e sem mais à conclusão sobre a culpabilidade do arguido a partir
meramente da sua confissão e sem que o tribunal livremente se convença da justeza
desta. A confissão deve, em suma, ser comprovada na sua credibilidade e não devem ser
omitidas, se indispensáveis, quaisquer diligências que conduzam ao seu
esclarecimento”943. No que respeita à segunda, ressalva-se que só ao Tribunal cabe
determinar o exacto quantum da pena, pelo que do acordo só poderá resultar a fixação
de limites de pena que sejam ainda adequados às exigências de culpa e de prevenção944.
É precisamente neste ponto que se pensa que devem entroncar as considerações
– essas sim, já atinentes ao objecto que é o deste estudo – sobre a diferença entre o
alargamento dos espaços de consenso na justiça penal, relacionados com a eventual
admissão destes acordos, e o consenso que se tem em mente quando se pensa a justiça
restaurativa. Quer os limites que vinculam aqueles acordos, quer os sujeitos que neles
são participantes, mostram que se pressupõe um conflito criminal em que continua a
preponderar a dimensão pública. Ou seja: o conteúdo do acordo não pode ser contrário à
consecução das finalidades especificamente penais e processuais penais, cuja defesa se
continua a atribuir às autoridades judiciárias. O que equivale, ainda, a reconhecer que o
âmbito subjectivo do acordo sobre a sentença é muito diverso do âmbito subjectivo do
acordo com que culminam as práticas restaurativas: nestas, a solução para o conflito é
desenhada pelo arguido e pela vítima; naquele acordo, os sujeitos “inquestionáveis” são
o tribunal, o ministério público e o arguido acompanhado pelo seu defensor. Quanto ao
assistente e ao papel que pode desempenhar, existem fundadas dúvidas. Sobre a
questão, Jorge de FIGUEIREDO DIAS afirma a sua preferência por uma
“regulamentação legal dos acordos sobre a sentença que permita ao assistente participar
do processo consensual ou a ele ser chamado, mas sem lhe conferir o direito de divergir,

942
Cfr. Jorge de FIGUEIREDO DIAS, últ. ob. cit., p. 32.
943
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, últ. ob. cit., p. 45.
944
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, últ. ob. cit., p. 50 ss.

539
em último termo, da posição que na questão for assumida pelo ministério público”, de
quem permanece essencialmente um colaborador945.
Em suma, parece poder concluir-se que nem as soluções de consenso já
expressamente contempladas no Código de Processo Penal português, nem possíveis
alargamentos desse consenso por força do acolhimento dos acordos sobre a sentença,
prejudicam a afirmação da diferença entre o sentido que o consenso assume na justiça
penal e na justiça restaurativa. Naquela, podem existir manifestações de concordância
quanto a soluções para o conflito que são gizadas, em última análise, em função
sobretudo do interesse público na protecção de valores que se julgam essenciais,
desempenhando as autoridades judiciárias um papel incontornável na modelação da
solução e na avaliação da sua compatibilidade com as finalidades penais. Nesta, há uma
construção da solução pelos intervenientes concretos no conflito criminal tido na sua
dimensão (inter)pessoal, sendo a pacificação desse conflito a finalidade que em primeira
linha se persegue.
Finalmente, quando se admite que a existência de crimes particulares pressupõe,
ela própria, o reconhecimento de um espaço de consenso na reacção ao conflito
criminal, justifica-se uma referência também ao modo pelo qual essa solução consensul
se distingue da proposta restaurativa. Como parece resultar daquilo que ao longo deste
estudo se foi afirmando, mas agora em jeito de síntese, são sobretudo duas as linhas de
não coincidência. Em primeiro lugar, registe-se a ideia de que o âmbito material da
justiça restaurativa pode ser mais amplo do que o horizonte dos crimes particulares.
Como se vem procurando sustentar, as práticas restaurativas são concebíveis
relativamente a crimes públicos. Por outro lado, a especificidade dos procedimentos
restaurativos (na Europa, sobretudo da mediação penal) resulta também da compreensão
de que os intervenientes no conflito criminal podem carecer de um auxílio específico,
rodeado de certas cautelas e sustentado por um mediador, para uma efectiva reparação,
que seja pacificadora, dos danos vários associados àquele conflito.

945
Jorge FIGUEIREDO DIAS parece não se afastar em muito, quanto a esta questão, da solução acolhida
na Alemanha: “o novo § 257c da StPO que legalizou o instituto dos acordos sobre a sentença omitiu
qualquer referência à participação do acusador subsidiário (Nebenkläger). No entanto, a doutrina
dominante parece admitir a sua participação, reconhecendo embora que não a título obrigatório, nem tão-
pouco determinante da obtenção ou não do acordo” (últ. ob. cit. p. 85 ss).

540
3. Justiça restaurativa versus justiça penal: a delimitação das distintas
intervenções

Antecipando parte da conclusão que a seguir se procurará sustentar, avance-se a


ideia de que a justiça restaurativa e a justiça penal não devem ver-se enquanto modelos
mutuamente excludentes de reacção ao delito. Pelo contrário, pode afirmar-se uma certa
complementaridade, comprovada pelas vantagens que para cada um dos modelos
resultam da existência do outro. Em resumo apertado: se as práticas restaurativas
contribuem para o pretendido carácter mais residual da resposta punitiva estadual,
favorecendo-a nessa medida; a justiça penal dá uma resposta ao conflito naquelas que
seriam as hipóteses mais problemáticas para a justiça restaurativa, mantendo-a dentro
daqueles que devem ser os seus limites.
Aprofunde-se em primeiro lugar esta última ideia. As práticas restaurativas –
com o recorte que se lhes atribuiu – estão sujeitas a um certo número de limitações.
Assim, para além de não poderem excluir sempre uma intervenção estadual de defesa da
comunidade quando estão em causa as ofensas mais graves aos valores mais essenciais,
também carecem de uma resposta alternativa quando os intervenientes no conflito não
puderem ou não quiserem resolvê-los em autonomia.

3.1. As principais dificuldades da proposta restaurativa

A crítica do sistema penal que subjaz ao pensamento restaurativo radica, como


se vem dizendo, na crítica da solução autoritária do conflito por um terceiro imparcial,
que inflige um mal (a sanção criminal) ao agente e desconsidera as reais necessidades
da vítima (e também, em uma outra perspectiva, as necessidades do agente e as da
comunidade de próximos). Propõe-se, antes, uma solução para o conflito interpessoal
que radique nos intervenientes e que conduza a uma reparação dos danos da vítima
através de uma assunção das suas responsabilidades pelo agente. E assim, satisfeitas as
necessidades dos vários intervenientes, tornar-se-ia desnecessária a reconhecidamente
desvantajosa aplicação do arsenal punitivo próprio do sistema penal.
Ora, por mais que se admita que a punição tem consequências negativas e por
mais que muitos penalistas partilhem com os cultores da justiça restaurativa tal
preocupação, o que a estes falta mostrar é que aquela intervenção penal pode ser
substituída com vantagem pelas práticas restaurativas, tornando-se, por conseguinte,

541
desnecessária. O que equivale a afirmar que, admitindo-se que o funcionamento do
sistema penal pode revelar-se um mal, há ainda que mostrar que esse é um mal sempre
desnecessário. A concomitante prova de que as práticas restaurativas são mais
adequadas e suficientes é, porém, em determinadas situações, muito difícil. De facto,
podem elencar-se algumas hipóteses que suscitam especiais dificuldades à aplicação da
justiça restaurativa: (1) os crimes muito graves imputados a agentes muito perigosos;
(2) os agentes que recusam a cooperação e/ou a reintegração (a reintegração das
necessidades da vítima e/ou a sua própria reintegração no grupo) e as vítimas que
“exigem” a condenação penal; (3) os crimes sem vítimas; (4) os contextos de grande
desigualdade.
Subsiste, ademais, a interrogação que é transversal a este estudo: pode evitar-se
que certos agentes voltem a causar grandes males sem lhes infligir a eles um qualquer
mal? Ou, pelo contrário, torná-los-á provavelmente piores (no sentido de mais perigosos
para os outros) a condenação a esse mal?

3.1.1 O problema dos agentes (imputáveis) perigosos e que cometeram crimes


graves

Muitos defensores da justiça restaurativa, porque são adeptos do abolicionismo


penal – ainda que, em muitos casos, moderados –, rejeitam como princípio teórico a
condenação a pena de prisão, que é vulgarmente apresentada como o mal maior do
sistema penal de reacção ao crime. E preconizam para todos os agentes, mesmo os que
podem considerar-se muito perigosos e que cometeram crimes muito graves, uma
intervenção de natureza restaurativa. Não logram, porém, escamotear os engulhos e as
dificuldades práticas que determinados agentes suscitam a uma intervenção
exclusivamente restaurativa.
As objecções mais evidentes prendem-se com o risco que pode representar a
permanência em liberdade de tais agentes, quando há a probabilidade de cometimento
de novos crimes. Os defensores da prevenção geral de integração acrescentariam as
desvantagens da impunidade e a consequente não reafirmação contrafáctica da validade
das normas violadas.
Para rebater tais afirmações, adquiriu particular destaque na criminologia
(sobretudo na europeia) a ideia de “santuário,” preconizada por Herman BIANCHI. O
Autor procura recuperar, modernizando-o, aquele vetusto instituto, considerando que os

542
agentes de crimes graves considerados perigosos devem beneficiar de um período
razoável de segurança, em “território protegido”, período esse durante o qual estão
eximidos da “vingança” promovida pelo sistema e desejada pelas vítimas e pela
comunidade. Durante esse período de tempo devem ser estudadas e negociadas formas
de providenciar remédios para o desvalor ocorrido946.
Em lugar geométrico de certo modo oposto, posicionam-se aqueles que excluem
das práticas restaurativas a criminalidade mais grave imputada aos agentes mais
perigosos.
Não se subscreve na íntegra, porém, nenhuma destas orientações: se, por um
lado, se julga que relativamente àqueles agentes a quem se associa um risco real de
cometimento de ilícitos graves no futuro não existirá, em muitos casos e neste
momento, uma alternativa real à privação da liberdade; por outro lado, pensa-se que
essa intervenção penal não tem de excluir a existência de práticas restaurativas, quer
durante a tramitação do processo penal, quer em contexto pós-sentencial. A
possibilidade e a conveniência das práticas restaurativas não dependem da gravidade do
crime947.
Esta afirmação supõe o reconhecimento de uma não coincidência entre aqueles
que são os espaços de consenso da justiça penal e o âmbito possível das práticas
restaurativas. Relativamente àqueles, compreende-se a ideia de Manuel da COSTA

946
Depois de afirmar a alienação e a anomia de um sistema punitivo de controlo da criminalidade,
sobretudo por força da incapacidade humana para fazer juízos de valor dotados de definitividade, Herman
BIANCHI (Justice as Sactuary: Toward a New System of Crime Control, Bloomington: Indiana
University Press, 1994, p. 83 ss) procura mostrar que através da figura do “santuário” se podem substituir
as grades que caracterizam o enclausuramento prisional. Garantir-se-ia, deste modo, a protecção da
comunidade quanto a agentes de crimes muito violentos, assim como a busca de uma melhor solução, não
punitiva, para aquele conflito. A procura da justiça “verdadeira” pressupõe, para BIANCHI, a
participação constitutiva dos intervenientes no conflito criminal e uma comunicação que seja “real”. O
“santuário”, como espaço de refúgio temporário, permitiria o estabelecimento de condições de alguma
pacificação para que essa comunicação pudesse ocorrer. O “moderno conceito de santuário” é analisado
por Peter CORDELLA (a partir da definição de BIANCHI) como “um espaço de comunidade e refúgio,
onde os fugitivos da punição promovida pelas autoridades estaduais ou da vingança das vítimas podem
sentir-se seguros contra a prisão ou a violência, desde que contribuam para a negociação da resolução do
conflito”. Exige-se uma espécie de “estatuto de refugiado”, uma comunicação aberta e boa fé, ainda
segundo CORDELLA (“Sanctuary as a refuge from state justice”, in Handbook of Restorative Justice, Ed.
D. Sullivan/L. Tifft, Nova Iorque: Routledge, 2006, p. 199).
947
Acompanha-se, neste ponto, a opinião perfilhada, por exemplo, por Mário Ferreira MONTE, de que o
campo de aplicação da justiça restaurativa “é vasto e, ao invés de se relacionar com o critério da
gravidade do crime – em que a pequena e a média criminalidade estariam na mira de uma tal solução,
enquanto que a grande criminalidade estaria subtraída –, poderia ser um critério que passasse mais pela
natureza do crime, tendo em conta sobretudo a relação mais directa que se reconhece entre agressor e
vítima, e onde uma solução que passasse pela mediação pudesse solucionar o problema” (in “Um olhar
sobre o futuro do direito processual penal – razões para uma reflexão”, Que Futuro para o Direito
Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando
Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 415).

543
ANDRADRE: “não se estranha (…) que a pequena criminalidade se tenha convertido
num dos temas principais da criminologia e da política criminal contemporâneas. E,
sobretudo, que ela tenha estado no epicentro dos grandes movimentos de reforma quer
no plano substantivo quer no plano adjectivo. Naturalmente distintos do ponto de vista
lógico-teorético, a verdade é que os dois eixos referidos – o vertical: conflito/consenso;
o horizontal: pequena criminalidade/criminalidade grave – propendem a separar a
fenomenologia criminal segundo linhas sensivelmente sobreponíveis. Concretamente, e
embora não esgote o espaço do consenso, é invariavelmente a pequena criminalidade
que aparece referenciada como pacificamente vocacionada para soluções processuais de
consenso”948.
Todavia, já no que respeita às práticas restaurativas, não se vê razão para as
excluir liminarmente no contexto dos crimes graves (aqueles que podem ter causado os
desvalores mais significativos e porventura aqueles relativamente aos quais a reparação
e a pacificação se afiguram mais necessárias).
Os argumentos que sustentam esta afirmação são de diversa índole. Em primeiro
lugar, há que retomar o que antes se afirmou sobre a possível existência, mesmo em um
crime muito grave, de uma dimensão pública de que se ocupa a justiça penal, e de uma
dimensão interpessoal do conflito que funda a intervenção restaurativa. Ora, em
detalhado estudo sobre um número muito significativo de programas restaurativos
levados a cabo em vários pontos do globo, Jo-Anne WEMMERS e Marisa CANUTO
recordavam, já em 2002, que “os inquéritos de vitimização revelam que 74% dos crimes
violentos supõem uma relação entre as vítimas e os seus agressores”949. É precisamente

948
Manuel da COSTA ANDRADE, “Consenso e Oportunidade” cit., p. 335. Como também nota o Autor,
em afirmação que se julga aproveitar à justificação da não restrição das práticas restaurativas apenas a
certos crimes, “a contraposição entre um espaço de consenso e um espaço de conflito não deve
compreender-se tanto no sentido material ou como que topográfico da existência de fases ou formas
processuais estanques e à partida (exclusivamente) pré-ordenadas para a realização do conflito ou do
consenso. A distinção tem mais a ver com a postura ou atitude espiritual e cultural dos diferentes sujeitos
processuais, com os modelos de interacção, bem como com o compromisso e o empenhamento
intersubjectivos no que toca ao out-put do processo”.
949
Jo-Anne WEMMERS/ Marisa CANUTO, Victim’s experiences with, expectations and perceptions of
restorative justice: a critical review of the literature, International Centre for Comparative Criminology,
Université de Montréal/ Policy Centre for Victim Issues/Research and Statistics Division, Department of
Justice, Canadá, 2002, p. 27. As Autoras acrescentam que as avaliações a que foram sujeitos alguns
programas restaurativos revelam que vítimas de crimes muito sérios “sentem a necessidade de encontrar
os seus agressores”. Julga-se que isso pode ajudá-las a ultrapassarem o trauma do crime, apesar de se
exigirem particulares cautelas. Afirma-se ainda que estes programas devem ser “altamente sensíveis às
necessidades das vítimas e oferecer-lhes aconselhamento antes e depois dos encontros com o agente”.
Especifica-se que devem existir outras possibilidades para além da mediação directa, impondo-se uma
flexibilidade das práticas de modo a poderem adequar-se às necessidades do caso. Dão-se os exemplos do
recurso à mediação indirecta e do interesse que pode revestir a troca de mensagens, cartas ou imagens
entre a vítima e o agente do crime (ob. cit., p. 32).

544
essa relação que o conflito criminal abalou (ou essa relação já deteriorada e que
manifesta a sua deterioração através do cometimento do crime) que merece uma
possibilidade de pacificação através da participação nos procedimentos restaurativos.
Ponha-se este argumento na sua formulação mais simples: se nos crimes graves
é frequente a existência de uma relação prévia entre o agente do crime e a sua vítima, e
se o que justifica a intervenção restaurativa é a oferta de uma possibilidade de
pacificação do conflito que prejudica essa relação, então parece clara a conclusão de
que as práticas restaurativas não devem ser liminarmente excluídas no âmbito da
criminalidade grave.
Acrescem a este vector de reflexão pelo menos dois outros, também
relacionados com o sentido que em momento anterior deste estudo se atribuiu à justiça
restaurativa.
Assim, se as práticas restaurativas pretendem dar ao agente do crime a
possibilidade de responsabilização voluntária pelos males que causou, essa
responsabilização será tanto mais necessária e mais útil quanto maiores forem os
desvalores originados. Relativamente a condutas que manifestem um escasso grau de
ilicitude ou que mereçam um juízo de culpa diminuída, a importância da
responsabilização voluntária do agente será, em princípio, menor.
Um raciocínio de certo modo simétrico pode ser adoptado quanto às finalidades
principais da justiça restaurativa na perspectiva da vítima: se é objectivo primeiro a
reparação dos danos sofridos pela vítima – e dos danos tal como a vítima os padeceu e
os sente, e não necessariamente como um terceiro os define –, esse objectivo ganha
acuidade quando a vítima sentir os sofrimentos originados pelo crime como
particularmente grandes, o que em princípio (ainda que nem sempre) estará mais
associado a crimes graves.
Se pode considerar-se, assim, que a resposta restaurativa adquire maior
pertinência no horizonte de crimes com alguma gravidade, também deve reconhecer-se,
porém, que os riscos são, nestes casos, maiores. Há o risco de agudizar um conflito já
muito intenso, existem riscos para a segurança dos intervenientes nas práticas
restaurativas, estas podem não corresponder a expectativas nem sempre realistas, a
resposta pode ser insuficiente face à gravidade da situação.
Para minorar estes riscos, os programas restaurativos no universo dos crimes
graves assumem características diversas. São, com frequência, pós-sentenciais (não se
desprezando, pois, a necessidade de uma resposta penal) e pressupõem o decurso de um

545
período de tempo razoável e necessário a uma certa pacificação dos ânimos950. Além
disso, exige-se que a mediação fique a cargo de mediadores com experiência e sujeitos a
uma preparação especial, que seja mais longa (pressupondo vários encontros individuais
e conjuntos, quando não for indirecta) e que não prescinda do auxílio de representantes
das instâncias formais de controlo951.

3.1.2. A ausência de vontade de participação nas práticas restaurativas

Tudo o que antes se disse sobre o sentido e as finalidades da justiça restaurativa


conduz à conclusão de que as práticas restaurativas não podem prescindir da vontade de
participação e da vontade daquela solução, por parte quer do agente do crime quer da
sua vítima.
Suscita-se, assim, a questão da inaplicabilidade das práticas restaurativas aos
sujeitos que as não desejam ou que, tendo começado por as querer, não logram através
delas encontrar uma solução aceitável para o conflito.
Esta questão só se torna, porém, um problema à luz do pensamento daqueles que
olham para a justiça restaurativa com uma pretensão de exclusividade na reacção ao
crime, nomeadamente por defenderem uma abolição radical da justiça penal. Todavia,
para aqueles que assim não pensam – ou seja, para os que olham para a justiça
950
A exigência deste espaço de tempo é sublinhada por Jo-Anne WEMMERS/ Marisa CANUTO,
Victim’s experiences with, expectations and perceptions of restorative justice: a critical review of the
literature cit., p. 27, que referem o prazo de “pelo menos um ano”, nomeadamente para as vítimas
aprenderem a lidar com os seus sentimentos de medo ou de raiva. As Autoras dão conta de que os
principais motivos que levam as vítimas de crimes graves a quererem participar nestes programas
restaurativos são, por exemplo, a necessidade de saber mais sobre o agente do crime e sobre os factores
que o influenciaram, a intenção de confrontar o agente do crime com “o mal que fez”, a curiosidade ou a
vontade de “encerrar o assunto”. Julga-se interessante o balanço que, em um dos programas restaurativos
avaliados pelas Autoras, é feito pelas vítimas: “em geral, as vítimas reportaram o sentimento de que o
processo foi empowering. Apesar de algumas vítimas duvidarem da capacidade real do agressor para
adoptar uma conduta positiva em sociedade, expressaram claramente o seu apoio ao programa, como um
procedimento válido em si mesmo. Acharam que tinha sido conduzido de forma profissional e
recomendá-lo-iam a outros. E isto foi assim mesmo para duas vítimas que sentiram que o agente não
estava a ser totalmente sincero e que tinha negado alguns aspectos do crime”.
951
O assunto mereceu a atenção de Mark UMBREIT, “Victim-offender mediation with violent offenders:
implications for modifications of the VORP model”, The Victimology Handbook: Research Findings,
Treatment and Public Policy”, Ed. Emilio Viano, Nova Iorque: Garland Publishing, 1990, p. 337 ss.
Depois de elencar algumas especificidades das práticas restaurativas relacionadas com crimes graves,
acaba por concluir pela necessidade de um procedimento específico, denominado Victim-Sensitive
Offender Dialogue (VSOD), que envolve, nomeadamente, “intensidade emocional, extrema necessidade
de uma atitude de não julgamento, longa preparação do caso pelo mediador, múltiplas conversas só com
um dos intervenientes no conflito”. Posteriormente, veja-se o estudo de COATES, Robert/UMBREIT,
Mark/BRADSHAW, William (“Victims of severe violence meet the offender: restorative justice through
dialogue”, International Review of Victimology, 1999, 6, p. 321 ss), que parte dos exemplos de mediação
vítima-agressor com os agentes e as vítimas de crimes sexuais ou de homicídios tentados, concluindo
pelas vantagens destes procedimentos, desde que rodeados de certas cautelas.

546
restaurativa como um outro modo de lidar com o conflito criminal, fundado no
reconhecimento de uma dimensão do conflito que é diversa da pública – o problema não
existe: aqueles intervenientes no conflito que em definitivo não queiram participar em
práticas restaurativas que propiciem resultados restaurativos terão a resposta dada pela
justiça penal, caso haja necessidade de uma intervenção orientada para a protecção de
bens jurídicos. Como de forma enfática esclarecem Elena HIGHTON, Gladys
ALVAREZ e Carlos GREGORIO, “a justiça restaurativa reconhece que nem todos os
agentes escolherão cooperar. A justiça restaurativa prefere que os agentes que não
estejam dispostos a cooperar permaneçam em espaços onde se dê ênfase à segurança,
aos valores éticos e à civilidade”952.

3.1.3. Os crimes sem vítimas

Uma das questões mais complexas com as quais o pensamento restaurativo se


tem confrontado é a da aplicabilidade das práticas restaurativas aos crimes sem vítimas.
Como é sabido, toda a discussão em torno da superação do paradigma iluminista (que
atribui ao direito penal uma função de tutela subsidiária de bens jurídicos com referente
individual) e o progressivo aparecimento de criminalizações a que correspondem lesões
de valores supra-individuais faz surgir, agora a um outro nível, o problema dos crimes
sem vítimas953. A uma reflexão da dogmática jurídico-penal sobre o próprio conceito
nuclear de bem jurídico corresponderão, com distintos veios de perplexidade e de
complexidade, vários problemas criminológicos e vitimológicos.
Um desses problemas – e apenas um deles – é o de saber se, depois de cometido
um crime do qual não resultam vítimas concretamente identificáveis e que
compreendam a sua vitimização, podem e devem existir programas restaurativos. A ser
afirmativa a resposta a esta interrogação, a questão que de seguida se suscita é a de
saber quem participará em tais programas.

952
Elena HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos GREGORIO, Resolución Alternativa cit., p. 84.
953
Manuel da COSTA ANDRADE analisa, no contexto de considerações sobre o crime de aborto, esta
categoria criminológica: “dum ponto de vista estrutural, os crimes sem vítima caracterizam-se pela sua
natureza transaccional e consensual e, por via de regra, pela privacidade da sua realização. O que se pode
chamar de delinquente e vítima encontram-se e relacionam-se à margem da coacção. Falta em absoluto,
na interacção entre ambos, a dramaturgia própria da criminalidade normal: falta, por isso, quem, em
termos psicológicos e reais, se represente como vítima dum crime e assuma o respectivo papel” (O Aborto
como Problema de Política Criminal, Coimbra: Separata da Revista da Ordem dos Advogados que
reproduz texto de conferência proferida a 17 de Janeiro de 1979, p. 11). A categoria dos “crimes sem
vítima” pode ser tomada, porém, numa acepção mais ampla, englobando ainda as hipóteses de
vitimização associada à existência de crimes contra interesses supra-individuais ou interesses difusos.

547
O problema específico dos crimes sem vítimas na perspectiva da relevância que
relativamente a eles pode assumir o pensamento da reparação é considerado por Hans
HIRSCH, de forma que se adequa à introdução desta reflexão: «é particularmente claro
nas teses do Projecto Alternativo o problema do tratamento penal igualitário para crimes
com vítima individual e para aqueles sem vítima. O grupo de trabalho do Projecto
Alternativo quer resolvê-lo recorrendo a “prestações de reparação social (simbólicas)”
para os delitos carentes de vítimas (tese 4). Com isso reconhece que não é possível
entender nem conformar o direito penal unilateralmente, com o olhar posto no acordo
pessoal agente-vítima. Os crimes sem um ofendido individual não são uma excepção
(…). Estes problemas indicam a necessidade de um tratamento igualitário por outra via:
a saber, em crimes com vítimas, ou seja, factos puníveis susceptíveis de reparação do
dano individual, assim como nos crimes sem vítimas, aplicar, ou pelo menos
determinar, uma pena cuja execução possa ser evitada pelo agente, por meio de
prestações restitutivas ou sociais que evidenciem um arrependimento interno»954.
Ora, se os crimes em que não é identificável uma vítima concreta (ou várias
vitimas concretas) suscitam dificuldades ao edifício teórico da reparação como
consequência jurídica autónoma do crime955, por maioria de razões constituem um

954
Hans Joachim HIRSCH, “La reparación del daño en el marco del Derecho penal material”, De los
delitos y de las víctimas cit., ps. 74-5.
955
Essas dificuldades não serão, porém, inultrapassáveis para aqueles que aceitem que a reparação como
consequência jurídica autónoma do crime pode ter “natureza simbólica”. É essa a opinião perfilhada por
Pablo GALAIN PALERMO e Angélica ROMERO SÁNCHEZ (“Criminalidad organizada y reparación.
Hacia una propuesta político-criminal que disminuya la incompatilidad entre ambos conceptos”, cit., ps.
273-4) a propósito da compatibilidade dessa reparação-terceira via com o crime organizado, em regra
causador de “vitimização difusa”: “a figura da reparação também pode ser de grande utilidade dentro da
criminalidade grave nas suas esferas inferiores (…). Claro que por se tratar de delitos em que se lesam
bens jurídico difusos ou sem uma vítima determinada, teria que optar-se pela reparação simbólica ou
reparação perante a colectividade” (ob. cit., p. 276). A reflexão dos Autores suscita, porém, algumas
interrogações no que respeita ao objecto de análise, desde logo porque a categoria “crime organizado”,
assumindo natureza mais criminológica do que jurídico-penal, pode ser transversal ao cometimento de
diversos tipos legais de crime, em função da maior ou menor organização inerente a essa actividade
delituosa; ora, entre esses vários crimes, podem encontrar-se alguns que produzam uma vitimização
imediata de pessoas concretamente identificáveis, como sucederá em alguns casos de roubo “com
organização” ou de tráfico de seres humanos. De qualquer modo, julgou-se pertinente a referência à linha
de pensamento de PALERMO e de SÁNCHEZ na medida em que, a partir de um reconhecimento das
dificuldades que os crimes sem vítimas suscitam à reparação como consequência jurídica autónoma do
crime, acabam por concluir que, pelo menos para as hipóteses menos graves, aquela reparação simbólica
não se afigura de exclusão liminar. Os Autores parecem considerar, porém, que a sua aplicação deveria
ser a título de substituição, não se precindindo da determinação da pena principal: “uma vez ditada a
sentença condenatória contra este tipo de agentes, o juiz poderia propor ao condenado a possibilidade de
substituir a execução efectiva da condenação, a troca da reparação simbólica do dano ou reparação
perante a colectividade”. Na parte final do estudo, consideram hipótese diversa, atinente à cumulação da
pena com uma reparação coactiva: “por outro lado, não deveríamos descartar (…) a possibilidade de
aceitar para este tipo de criminalidade (em especial para os delinquentes mais poderosos) que o juiz da
causa exigisse a reparação do dano conjuntamente com outras penas, tal como foi proposto no seu tempo

548
problema para a justiça restaurativa. Naquele caso, o entrave destacado por HIRSCH
prende-se sobretudo com a possível desigualdade inerente à previsão da reparação como
terceira via apenas para alguns crimes e não já para outros. Neste caso – o da justiça
restaurativa –, parece não ser só a consequência-finalidade da reparação a ficar
ameaçada, porque também o procedimento ficaria prejudicado, por se não vislumbrar
quem é o titular dos interesses ofendidos legitimado para participar no encontro
restaurativo com o agente do crime. Os crimes sem vítima seriam um desafio
inultrapassável para a justiça restaurativa, na medida da sua incompatibilidade, quer
com a sua finalidade, quer com o seu procedimento.
Não foi por acaso que se fez primeiramente referência aos problemas que os
crimes sem vítimas suscitam às práticas restaurativas, apesar de se intuir facilmente
que por trás deles há também uma questão de fundo: atribuindo-se particular relevo à
existência de um procedimento detido pelos “verdadeiros donos” do conflito
interpessoal que o crime também é, um processo democrático e responsabilizante, a
pergunta que logo se faz é quem, face a crimes dos quais não resultem vítimas
concretas, deverá e poderá tomar parte em tais procedimentos. Existem, todavia,
obstáculos à aplicação da justiça restaurativa situados a um nível mais profundo de
análise. Esses obstáculos prendem-se com a incoerência que, pelo menos a uma
primeira consideração, parece existir entre o sentido e a função do modelo restaurativo e
aqueles crimes em que se não identificam as vítimas: se antes se concluiu que o próprio
da justiça restaurativa (por contraposição à justiça penal) é a centralidade do conflito
interpessoal, poder-se-á julgá-la cabida a crimes em que aquele conflito interpessoal
parece não existir, precisamente pela ausência da “pessoalidade” da vítima?
Crê-se que esta perplexidade não constitui obstáculo intransponível à aceitação
de práticas restaurativa para alguns crimes que podem genericamente ser denominados
como crimes sem vítimas, sendo que a resposta só poderá ser encontrada em função de
uma ponderação de cada uma das realidades abrangidas sob aquele conceito amplo.
Admite-se, como ponto de partida, uma diversidade de respostas para o problema de
saber se a justiça restaurativa é cabível também no contexto dos crimes sem vítimas, em
função daquilo que em cada caso torna o crime enquadrável naquela categoria

pela escola positivista ou indicam hoje as penas combinadas, mistas (cocktails) ou as compensation e
restitution orders do direito penal anglo-saxónico” (ob. cit., p. 277).

549
criminológica956. O conceito de crime sem vítima cunhado por Edwin SCHUR e
centrado na existência de uma permuta ou troca de bens ou serviços considerados
ilícitos mas intensamente desejados957 (o que faz com que o “comprador” desses bens
ou serviços não se sinta vítima do seu “fornecedor”) adquire hoje um sentido mais
amplo por força de uma sua associação a conceitos como os de crime de vítima
inconsciente ou de vítima abstracta. Nestes casos, o que sucede é que há uma vítima que
desconhece a sua própria vitimização ou, então, há um crime que não lesa valores
individuais, acarretando antes desvalores para um grupo muito amplo de pessoas958 – e
por força disso, um grupo de pessoas em princípio indetermináveis, que não se
distinguem do conceito amplo de comunidade.
Não cabendo nos propósitos deste estudo a reflexão nem sobre o relevo
criminológico nem sobre os limites de cada uma destas modalidades de crimes sem
vítimas em sentido amplo, o que já releva é a interrogação sobre os problemas que
cada uma suscita à aplicabilidade da justiça restaurativa. Como instrumento para essa
reflexão, parta-se da distinção – feita, entre nós, como se já referiu, por Manuel da
COSTA ANDRADE – entre crimes sem vítima em sentido estrito (willing victim),
crimes de vítima inconsciente e crimes de vítima abstracta. A questão dos crimes sem
vítima só adquire autonomia, naquela precisa acepção de questionamento da justiça
restaurativa, quando se consideram os crimes de vítima abstracta. Relativamente aos
restantes, os crimes sem vítima à luz da definição de Schur ou os crimes de vítima
inconsciente, as práticas restaurativas tornar-se-ão possíveis quando a vítima concreta

956
Recorde-se que Manuel da COSTA ANDRADE (A vítima e o problema criminal cit., p. 99 ss)
enquadra naquilo que designa como “crimes sem vítima em sentido amplo” os crimes de vítima
inconsciente, os crimes de vítima abstracta e os crimes de willing victim. Relativamente aos crimes de
vítima inconsciente, afirma que essa situação se dá “sobretudo em relação às formas de deviance
caracterizadas pelo carácter sofisticado dos meios de execução”, de que será exemplo o crime de
colarinho branco, em que “as vítimas não se apercebem do evento ou só se apercebem com marcado
atraso”. Serão exemplo desta realidade “certas formas de burla”, frequentes “no domínio das infracções
contra o consumidor”. Já quanto aos crimes de vítima abstracta (que podem “cobrir uma parte da
realidade ou das situações já compreendidas pelo anterior”), o que os define «é o facto de os seus efeitos
negativos – para além da lesão que possam provocar em construções ideais como a ordem jurídica,
económica, moral, etc. – se repercutirem, fraccionados, sobre um número indefinido de “vítimas”». Ainda
nas palavras do Autor, “é o que sucede com a violação das normas sobre circulação automóvel, com os
delitos fiscais, as práticas de concorrência desleal e, dum modo geral, com todos os crimes contra a
economia”. Finalmente, equiparam-se os crimes de willing victim aos “crimes sem vítima em sentido
estrito, com o sentido e alcance que lhes foi assinalado por E. Schur a propósito do aborto,
homossexualidade e consumo de droga”.
957
Edwin SCHUR (Crimes without victims, New Jersey, Aspectrum Books: 1965, p. 170) faz da
“transacção ou troca” o “principal ponto de diferenciação”.
958
Pense-se, a título de exemplo, nos crimes contra a economia, contra a autonomia intencional do
Estado, contra o ambiente ou contra a saúde pública.

550
tomar consciência dessa sua qualidade, reconhecendo a existência de um conflito que
causou danos que carecem de reparação.
Já quanto aos denominados crimes de vítima abstracta em sentido estrito, a
complexidade é maior, justificando-se, por isso, uma consideração segmentada.
Existirão casos – e julga-se que está aí a chave para a resposta – em que apesar de a
infracção atingir os interesses de um grupo indeterminado de pessoas, haverá, ainda
assim, um ou mais indivíduos “particularmente ofendidos” pela conduta e, nessa
medida, intervenientes em um conflito de natureza intersubjectiva com o agente.
Imagine-se, por exemplo, que de um crime ambiental resultam danos pessoais ou
patrimoniais específicos para pessoas residentes na vizinhança do lugar da infracção ou
considerem-se aquelas situações em que do cometimento de um crime de corrupção
resultam danos específicos para concorrentes ilegitimamente preteridos. Em hipóteses
com estas características, não se vê que deva excluir-se liminarmente a resposta
restaurativa: existe algum conflito que se pode pacificar através das práticas
restaurativas e estas parecem ser, no caso, exequíveis.
As dificuldades adensam-se, porém, sempre que assim não é, por exemplo
quando de um crime contra o ambiente ou de um crime contra o Estado não resulta um
desvalor identificável para interesses distintos do interesse comum. O que equivale a
perguntar se há que excluir a resposta restaurativa para aquelas infracções das quais não
resulta uma ofensa – de dano ou de perigo – “apropriável” por pessoas concretas.
O que a uma primeira análise pareceria mais coerente com o sentido que se
atribui à justiça restaurativa seria limitar o seu âmbito de aplicação aos casos em que
são identificáveis um ou vários agentes de um crime e uma ou várias vítimas desse
crime (quer sejam pessoas singulares, quer sejam pessoas colectivas). Todavia, julga-se
que mesmo nos casos em que o crime é “contra a comunidade toda” e só contra ela, nem
sempre é de excluir a possibilidade de uma intervenção restaurativa. Ela será
configurável naquelas hipóteses em que a comunidade surja representada não pelo
Estado no exercício do seu ius puniendi, mas antes por uma entidade que intervenha em
nome da comunidade, em uma relação nivelada com o agente do crime, para com ele
procurar uma solução que seja reparadora dos danos causados.
A ideia que se pretende vincar, relativamente à admissibilidade das práticas
restaurativas quanto a crimes que ofendam em primeira linha valores supra-
individuais, é a possibilidade de neles também se vislumbrar a existência de pessoas

551
cujos interesses foram concretamente prejudicados pela infracção, ou por se entender
que todas o foram, ou por se considerar que algumas o foram mais directamente.
Este é um pensamento que parece ser suportado pelo teor da alínea e) do n.º 1 do
artigo 68.º do CPP959 e que também se associa a questão que tem merecido tratamento
na jurisprudência portuguesa, a qual, sem substituir expressamente o conceito estrito de
ofendido por uma sua definição mais ampla960, vem admitindo a constituição de
assistente em processos atinentes a crimes como os de falsificação de documentos961, de
denúncia caluniosa962 ou de desobediência qualificada963, com frequência concebidos
como crimes em primeira linha contra interesses supra-individuais. No Acórdão do STJ
n.º 10/2010, de 17 de Novembro, encontra-se a referência à “admissão de uma estrutura
poliédrica do bem jurídico, na qual podem caber, ao lado de bens jurídicos colectivos ou
públicos – e ainda que em posição subordinada –, bens jurídicos pessoais de
particulares, o que permitirá a sua constituição como assistentes”964.

959
Nos termos do art. 68.º, n.º 1, al. e) do CPP, pode constituir-se assistente no processo penal “qualquer
pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência,
favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato,
participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou
subvenção”.
960
Sobre as possíveis vantagens da adopção de um conceito mais amplo de ofendido – coerente com o
sentido da alínea e) do n.º 1 do art. 68.º do CPP, adequado à mais ampla participação da vítima no
processo penal associada às propostas vitimológicas e favorecedor da possibilidade de controlo efectivo
de um maior número de decisões de arquivamento – cfr., na doutrina portuguesa, Augusto SILVA DIAS,
“A tutela do ofendido e a posição do assistente no processo penal português”, Jornadas de Direito
Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. Maria Fernanda PALMA, Coimbra: Almedina, 2004,
ps. 57-60. No Acórdão do STJ n.º 10/2010, de 17 de Novembro, já se vislumbra, porém, um certo
alargamento do conceito, referindo-se, nomeadamente, que “admitidos, em tese, o conceito amplo de
ofendido e a estrutura poliédrica do bem jurídico protegido, impõe-se interpretar a concreta norma
incriminadora, por forma a determinar os interesses especialmente protegidos e a respectiva titularidade”.
Todavia, em momento posterior, também se não deixa de referir que «o conceito legal de ofendido é pois
restrito ou, mais rigorosamente, estrito (…) a aceitação de um conceito amplo de ofendido poderia
envolver consequências desastrosas para o processo, pois abriria eventualmente as portas à manipulação
ou instrumentalização da figura do assistente, pondo-a ao serviço de outros interesses que não o da
colaboração com o MP na prossecução da acção penal. A aceitação de um conceito estrito de ofendido
não desprezará, porém, os interesses da “vítima”, quando forem efectivamente relevantes, melhor, quando
ela for portadora de um interesse protegido pelo tipo legal» (cfr. Diário da República, 1ª série – n.º 242,
16 de Dezembro de 2010, 5751 e 5756).
961
Cfr., a este propósito, o Acórdãos do STJ n.º 1/2003, de 16 de Janeiro, que fixa a jurisprudência de que
“no procedimento criminal pelo crime de falsificação de documentos, previsto e punido pela alínea a) do
n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade
para se constituir assistente”.
962
Cfr., a este propósito, o Acórdão do STJ n.º 8/2006, de 12 de Outubro, que fixa a jurisprudência de que
“no crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º do Código Penal, o caluniado tem
legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador”.
963
Cfr., a este propósito, o Acórdão do STJ n.º 10/2010, de 17 de Novembro, que fixa a jurisprudência de
que “em processo por crime de desobediência qualificada decorrente da violação de providência cautelar,
previsto e punido pelos artigos 391.º do Código de Processo Civil e 348.º, n.º 2, do Código Penal, o
requerente da providência tem legitimidade para se constituir assistente”.
964
Cfr. Diário da República, 1ª série – n.º 242, 16 de Dezembro de 2010, 5751.

552
A razão pela qual se fez esta referência breve à possibilidade de, mesmo no
direito processual penal e relativamente a crimes que prejudicam sobretudos valores de
natureza supra-individual, se admitir a participação como sujeitos processuais de
pessoas concretamente prejudicadas pela infracção, parece clara neste contexto (por
mais que se não possam transpor na íntegra para a teoria restaurativa as linhas
argumentativas acolhidas na reflexão sobre a justiça penal). Aquilo que se quis
significar foi, somente, que em vários dos exemplos habitualmente apontados como
“crimes sem vítimas” (e a um primeiro olhar alheios à proposta restaurativa) poder-se-
ão encontrar, afinal, vítimas cuja participação nos procedimentos restaurativos é, por
maioria de razões, concebível.

3.1.4. Os contextos de grande desigualdade

Além dos problemas decorrentes da existência de agentes de crimes e de vítimas


que não querem participar nas práticas restaurativas, existem outras dificuldades
inerentes às hipóteses em que aquelas pessoas têm vontade de participação mas ela não
é possível ou não é vantajosa, nomeadamente por falta de “empoderamento” do conflito,
quer no que respeita à sua gestão durante o(s) encontro(s), quer no que tange à liberdade
de conformação do acordo e à sua exequibilidade. Entre os factores a ponderar conta-se
a “desigual competência de acção restaurativa965” dos intervenientes, o que será em
princípio mais comum em contextos sociais de grande desigualdade966.
O problema foi identificado, entre outros Autores, por Boaventura de SOUSA
SANTOS, no âmbito de uma reflexão sobre o surgimento de mecanismos de resolução
alternativa de litígios que suponham um retraimento da intervenção do Estado: “nos
litígios entre cidadãos ou grupos com posições de poder estruturalmente desiguais (…)
é bem possível que a informalização acarrete consigo a deterioração da posição jurídica

965
Transpõe-se para o discurso restaurativo (com as correcções devidas) um conceito – o de
“competência de acção” – de uso comum na criminologia, em regra associado à criminologia crítica e
relacionado com o questionamento da (des)igualdade na administração da justiça penal por força das
diversas competências que as pessoas manifestam no seu relacionamento com as instâncias formais de
controlo. A razão pela qual se julga interessante a transposição desta categoria para a reflexão sobre as
práticas restaurativas prende-se com a identidade do problema, que é de certo modo maximizado – e
sublinhe-se esta ideia – pela inexistência de um terceiro dotado de poder de decisão que possa, de algum
modo, corrigir as desiguais capacidades de participação. Sobre o conceito de competência de acção, cfr.
Jorge de FIGUEIREDO DIAS/Manuel da COSTA ANDRADE, Criminologia cit., ps. 377, 394 e 459.
966
Sobre o assunto, ainda que de forma também sucinta, cfr. Cláudia Cruz SANTOS, “A proposta
restaurativa em face da realidade criminal brasileira”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 17,
n.º 81, nov-dez 2009. ps. 209-229.

553
da parte mais fraca, decorrente da perda das garantias processuais, e contribua assim
para a consolidação das desigualdades sociais”967.
Existirão em todas as comunidades, ainda que em distintos graus, pessoas que
são dotadas de menor “aptidão para” ou “possibilidade de” conformação de uma
solução restaurativa que sirva os seus interesses, depois de um encontro com um outro
sujeito que não deve estar numa posição dominante. E isso pode relacionar-se com
características individuais e desligadas dos factores habitualmente associados à exclusão
– como a pobreza ou as lacunas culturais e de socialização –, prendendo-se antes, por
exemplo, com uma particular fragilidade psíquica ou com uma ausência de vocação
para a comunicação nos “moldes restaurativos”.
Todavia, em outros casos, essa “menor competência de acção restaurativa”
andará associada a factores de exclusão, tendencialmente aparentados com a pertença
àqueles a que António BERISTAIN chama “grupos vulneráveis”, referindo-se a
“amplos sectores da população que pela sua condição de idade, sexo, estado civil,
origem étnica e outros factores etiológicos se encontram em situação de risco, de
necessidade, de marginalidade…o que os impede de se incorporarem no progresso e de
acederem a melhores condições de justiça e de bem-estar”968.
Os membros destes grupos são vulneráveis, se bem se vê a questão, em uma
dupla perspectiva, sendo que é a segunda que aqui mais interessa: serão, com
frequência, “vítimas preferenciais” de crimes; mas serão, também, “clientes”
particularmente desfavorecidos no seu acesso a uma solução para o conflito jurídico-
criminal em que estiveram envolvidos – e, neste enfoque, quer enquanto agentes do
crime, quer enquanto vítimas do crime. Nesta segunda perspectiva, o que se pretende
enfatizar é que a reduzida competência de acção de que beneficiariam no seu
relacionamento com as instâncias formais de controlo no âmbito processual penal pode
ficar ainda mais reduzida no contexto de procedimentos restaurativos, na medida em
que a maior autonomia de conformação (quer da participação, quer da solução) tenderá
a desfavorecer ainda mais aquele cujo poder de “negociação” seja menor.

967
Apesar de entre os exemplos apontados por Boaventura de SOUSA SANTOS para afirmar a
possibilidade dessa desigualdade não se encontrarem os conflitos criminais (refere-se, antes, a “litígios
entre patrões e operários, entre consumidores e produtores, entre inquilinos e senhorios”), porventura
porque na altura em que escrevia não era ainda segura a extensão dos mecanismos alternativos a esses
conflitos jurídico-penais, julga-se que as razões que sustentam a sua preocupação são, por inteiro,
transponíveis para este domínio (in Pela Mão de Alice – O Social e o Político na Pós-Modernidade,
Porto: Edições Afrontamento: 1999, 7.ª edição, p. 157).
968
António BERISTAIN, “Los grupos vulnerables: su dignidad preeminente, victimal”, Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III cit., p. 1226.

554
Um problema que desafia a proposta restaurativa prende-se, portanto, com as
dúvidas sobre a sua conveniência em contextos de significativa desigualdade, por
exemplo nos planos económico, social ou cultural969. E as dificuldades que daqui
derivam podem perpectivar-se quer no plano das finalidades restaurativas, quer no plano
dos procedimentos restaurativos.
Sob o ponto de vista das finalidades, é a possibilidade da reparação dos danos
causados que se questiona. Considere-se, a título de exemplo, um contexto em que se
possa diferenciar claramente uma “criminalidade dos pobres” e uma “criminalidade dos
ricos” – realidade a que, de forma não totalmente correcta, se associam por vezes na
literatura criminológica os conceitos de “crime comum” e de “crime de colarinho
branco”. Curiosamente, a uma primeira análise, ambas aquelas manifestações da
criminalidade – simplifique-se, “a dos pobres” e “a dos ricos” – parecem desafiar a
proposta restaurativa: na primeira, a impossibilidade prática da reparação tornaria
inevitável a punição; na segunda, a reparação, fácil, “compraria a não punição” e
outorgaria como que um direito a ir cometendo crimes, desde que se pagasse (no seu
sentido mais literal) por eles. O que, a ser assim e como é fácil de ver, redundaria em
um aprofundamento das desigualdades através das práticas restaurativas.
Compreende-se, deste modo, sobretudo em contextos de grande desigualdade
social em que uma percentagem significativa da criminalidade esteja associada ao
desfavorecimento económico, a preocupação com a existência de problemas sérios na
generalização da reparação (e não necessariamente por falta de vontade de reparar, mas
antes por impossibilidade de reparar). E, paralelamente, para os muitos ricos,
compreende-se a preocupação com a possibilidade de a reparação não ter suficiente
força dissuasora num sistema em que as penas criminais, mais severas, acabassem por
ficar adstritas aos desfavorecidos.

969
José de FARIA COSTA [“Diversão (Desjudiciarização) e Mediação: Que Rumos?” cit., p. 67]
considerava que a mediação, “e esta é uma crítica que desde logo aniquila qualquer pretensão de validade
normativa, pressupõe os interventores no discurso de conciliação na mesma posição. Ora, sabe-se quanto
isto tem de formal. Desigualdades de posição social, de riqueza, são a regra no nosso quotidiano, podendo
ser facilmente esgrimidas como armas de um combate nem sempre leal”. E acrescenta, para rebater o
argumento de que também à justiça penal essas desigualdades causam engulhos: ”Dir-se-á: mas o mesmo
acontece na chamada aplicação da justiça formal. Certamente que sim. Sucede, todavia, que, neste
particular, o recurso a um juiz que está acima das partes em conflito, ungido, ainda que formalmente, pela
força da imparcialidade que o múnus lhe confere, dá à decisão por aquele proferida uma dignidade
indesmentível cuja ressonância se reflecte no facto de largos sectores da comunidade a considerarem
ainda como a única expressão válida e legítima da aplicação da justiça, mormente quando se trata de
problemas criminais”.

555
Uma via para evitar a conversão da justiça restaurativa em instrumento de
desigualdade é acreditar na criatividade na procura de formas de reparação de cunho
não eminentemente patrimonial. A reparação restaurativa tem, como antes se viu, um
sentido que deve ultrapassar em muito uma sua compreensão de cunho exclusivamente
patrimonial. Logo, dever-se-ão cogitar formas de reparação possíveis para os mais
desfavorecidos.
Por outro lado, deve reafirmar-se que, na proposta de justiça restaurativa que se
defendeu, a reparação não funciona necessariamente como mecanismo de exclusão da
punição. De facto, a “dimensão pública” do crime pode impor a punição apesar da
intervenção restaurativa. Logo, a existência de reparação por parte de um agente
especialmente favorecido não funcionará, em todos os casos, como excludente da
punição.
Ainda que assim seja, deve admitir-se que, se aquela desigualdade sócio-
económica se repercute nos procedimentos restaurativos, ao nível da desigualdade na
gestão do conflito, impedindo uma solução alicerçada no idêntico “empoderamento” do
agente e da vítima, frustra-se todo o sentido da intervenção restaurativa. E esta assume o
papel de instrumento do domínio dos grupos dominantes. Deste modo, porventura mais
do que no plano antes referido das finalidades restaurativas, é nesse domínio nuclear do
procedimento restaurativo (alicerçado na igualdade de participação e de conformação)
que a desigualdade das circunstâncias de cada um mais se desvenda como uma
dificuldade séria para a justiça restaurativa.

3.2.A justiça restaurativa, a justiça penal e a sua ideia de ultima ratio

Dos contributos criminológicos referidos nasce a ideia de que o sistema de


justiça penal nem sempre é o modelo de controlo social mais adequado para dar uma
resposta ao problema que é o crime ou, então, que não o é desacompanhado. A
verificação de uma certa inadequação ou insuficiência do sistema penal justifica a
consideração de outros modelos de controlo social970, vistos como portadores de outras
vantagens.

970
Por controlo social entende-se, segundo García-Pablos de MOLINA, “o conjunto de instituições,
estratégias e sanções sociais que pretendem promover e garantir a submissão do indivíduo aos modelos e
normas comunitários”. Distingue os agentes informais de controlo social, de que são exemplo a família, a
escola ou a opinião pública, dos agentes formais, como a polícia, o tribunal ou a administração
penitenciária (in Criminología – una introducción a suas fundamentos teóricos, 6.ª ed. cit., p. 187). O que
está em causa – na criminologia crítica, no pensamento abolicionista e também no paradigma restaurativo

556
A proposta restaurativa surge, nesta medida, enquanto movimento de sinal
contrário à expansão do direito penal, que Autores como Sergio MOCCIA associam ao
eficientismo. Sobre este, o Autor italiano afirma que está na sua base uma “recusa em
aprender”, na medida em que perante uma certa ineficácia da resposta dada pela justiça
penal se reclama mais justiça penal: “em vez de se procurarem outras soluções mais
eficazes, procura-se tornar mais eficaz a reacção penal, incrementando a sua intensidade
mesmo que em detrimento da legalidade constitucional, do bom funcionamento e da
legitimação dos órgãos judiciais. À defraudação inevitável segue-se uma reacção
punitiva mais grave do que a anterior e a repressão punitiva continua a aumentar,
entrelaçando-se sobre si mesma, como ensina a experiência dos últimos anos em muitos
países ocidentais, com os Estados Unidos à cabeça”971.
Todavia, também aquele pensamento abolicionista mais radical – que, como se
viu, condicionou o surgimento do paradigma restaurativo – não é hoje acolhido entre a
maioria dos defensores da justiça restaurativa. Se é certo que a proposta restaurativa
começou por se alicerçar nas críticas ao sistema penal, buscando na sua alegada
incapacidade para satisfazer as expectativas dos intervenientes na infracção criminal o
motivo fundante para a sua substituição por um outro modo de solução dos conflitos, a
verdade é que a evolução do pensamento restaurativo conduziu a uma forma muito mais
tolerante de compreensão do funcionamento das instâncias formais de controlo. Dito de
outra forma: é hoje dominante o entendimento de que o sistema de justiça penal e as
práticas restaurativas não têm de se excluir mutuamente. O que equivale a afirmar a
possibilidade (ou a necessidade) de convivência de mais do que um modelo de controlo
social na reacção ao crime.
É possível distinguir várias hipóteses de relacionamento do sistema penal e da
justiça restaurativa: em alguns casos, as práticas restaurativas, que funcionam como
mecanismos de diversão, tornarão desnecessário “o processo penal todo”; em outros
casos, “este processo penal todo” terá de existir, mas os resultados obtidos em sede
restaurativa deverão ser nele tidos em conta; num terceiro grupo de situações, as
práticas restaurativas poderão existir por si sós, à margem de um qualquer processo

– não é nunca, portanto, a rejeição do controlo social. Pelo contrário, parece poder afirmar-se, ainda com
PABLOS DE MOLINA, que o controlo social do crime se tornou o objecto da criminologia a partir da
segunda metade do século XX. O que se pondera é, antes, a inadequação ou a insuficiência do sistema
penal como modelo de controlo da criminalidade, à luz dos interesses do agente, da vítima e da
comunidade.
971
Sergio MOCCIA, “Seguridad y sistema penal”, Derecho Penal de Enemigo – El discurso penal de la
exclusión, 2.º vol., coord. Cancio Meliá/Gómez-Jara Díez, Buenos Aires: Euros Editores, 2006, p. 305.

557
penal que visem substituir ou condicionar, funcionando depois ou para além do sistema
penal.
Antecipando esta afirmação, porém, algumas das conclusões a que se pensa vir a
chegar, retorne-se à ideia que se pretendia sublinhar: ainda que a génese da justiça
restaurativa radique na crítica do sistema penal, não é hoje incontroversa a afirmação de
que tal sistema sancionatório estadual deva ser abandonado e substituído por formas de
composição privada dos conflitos972. Nem é, no seio da justiça restaurativa, dominante a
ideia de que a função de controlo social desempenhada pelo direito penal deva ficar a
cargo de outros ramos do direito, como o direito civil ou o direito administrativo973.
Entre nós, Cândido AGRA e Josefina CASTRO já adoptaram a propósito da
justiça restaurativa uma perspectiva que classificam como crítica, assumindo a
“consciência de que a mediação e a justiça restaurativa não constituem uma panaceia
para todos os males que afectam o sistema de justiça, nem constituem face a este uma
alternativa (se por alternativa entendermos uma resposta totalmente independente capaz
de o substituir)”974.
Também em sentido contrário àquela possibilidade de substituição integral da
justiça penal pela justiça restaurativa, como sublinha Elena LARRAURI975, aceitou-se
que “devem existir princípios reguladores da justiça restaurativa e que os juízes penais

972
Entre os cultores do paradigma restaurativo, Barbara HUDSON (“Restorative justice” cit., p. 441) nota
que a maioria dos abolicionistas tinha em vista os street crimes dos powerless e não um conjunto de
actividades delituosas consideradas mais desvaliosas. HUDSON acrescenta que Autores abolicionistas
como Bianchi e Mathiesen, quando confrontados com a existência de agentes que causam um perigo claro
para bens jurídicos pessoais alheios, começam por alegar que são poucos aqueles que realmente carecem
de ser afastados das suas potenciais vítimas e, nessa medida, sujeitos a medidas restritivas da liberdade.
Alega que mesmo estes Autores não rejeitam totalmente o recurso à prisão como sanção criminal
possível, antes consideram que “a prisão como resposta ao crime pode tornar-se a excepção, em vez da
prática normal”.
973
John BRAITHWAITE (“Restorative Justice”, The Handbook of Crime and Punishment, Oxford
University Press, 1998, ps. 336-7) salienta o facto de a justiça restaurativa se mostrar mais dialogante com
a justiça penal estadual e sublinha aquilo que a distingue do abolicionismo: a justiça restaurativa preserva
o conceito de crime, do qual o abolicionismo pretende prescindir; admite-se o uso, em situações limite, da
pena de prisão, que o abolicionismo rejeita; aceita-se a manutenção de alguns pilares do sistema penal
estadual. Nas palavras do Autor, “ao contrário do que sucede com as versões mais radicais do
abolicionismo, a justiça restaurativa considera promissora a preservação do papel do Estado como
guardião dos direitos e concede que, para uma pequena fracção das pessoas nas nossas prisões, pode ser
realmente necessário que a comunidade seja protegida através da encarceração. Apesar de a justiça
restaurativa pretender reagir a muito daquilo que agora tratamos como crimes simplesmente como
problemas da vida, a justiça restaurativa não pretende abolir o conceito de crime. Nos rituais da justiça
restaurativa, chamar crime a uma má acção pode ser um recurso poderoso para persuadir os cidadãos a
assumirem as responsabilidades, a pagarem as suas compensações ou a pedirem desculpa”.
974
Cândido AGRA/Josefina CASTRO, “Mediação e Justiça Restaurativa: Esquema para uma Lógica do
Conhecimento e da Experimentação”, Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade do
Porto, Ano II, Coimbra Editora, 2005, p. 96.
975
Elena LARRAURI, “Tendências actuales de la justicia restauradora”, Revista Brasileira de Ciências
Criminais, n.º 51, 2004, p. 70.

558
devem supervisionar os acordos que se alcancem, discutiu-se o problema de saber quem
e quando derivam os casos para a justiça restaurativa, há a preocupação com os riscos
de violação de direitos processuais que as conferências podem envolver e, finalmente,
admitiu-se que a justiça restaurativa pode coexistir com a justiça penal e que esta pode
tornar mais eficaz o acordo que se alcance nas conferências da justiça restaurativa”. Esta
é uma ideia comum ao pensamento de vários estudiosos da justiça restaurativa, que
confirma um progressivo afastamento relativamente ao abolicionismo mais radical.
O actual entendimento – que se julga correcto – de que a justiça restaurativa não
é incompatível com o sistema de justiça penal resulta, de resto, logo de propostas
definitórias como a de Kathleen DALY: “a justiça restaurativa não é facilmente
definível porque engloba uma variedade de práticas em diferentes momentos do
processo criminal, incluindo a diversão da prossecução penal, as acções que decorrem
em paralelo com as decisões do tribunal e os encontros entre vítimas e agentes em
qualquer momento do processo penal”976.
Todavia, além de se compreender a afirmação de que as práticas restaurativas
não serão eficazes, em muitos casos, sem a ameaça que o sistema penal representa977,
crê-se que o próprio sistema penal pode beneficiar da existência de alternativas978,
orientadas por objectivos de reparação em sentido lato dos danos sofridos pela vítima,
pela comunidade e pelo próprio agente com a prática do crime. Assim, sempre que as
práticas restaurativas tornarem desnecessária, à luz de critérios de prevenção, a
intervenção penal (ou quando condicionarem de algum modo tal intervenção,
limitando-a), estará ainda a ser concretizada uma ideia nuclear do próprio sistema
penal, a ideia de ultima ratio979.

976
Kathleen DALY, “Restorative justice: the real story”, Punishment and Society, 2002, vol. 4, n.º 1, p.
55 ss.
977
Neste sentido, John BRAITHWAITE, Restorative Justice and Responsive Regulation, Oxford: Oxford
University Press, 2002, p. 34, afirma que “muito poucos agentes criminais que participam em
procedimentos de justiça restaurativa permaneceriam na sala sem uma certa margem de coerção. Sem a
sua descoberta ou detenção, sem o espectro da alternativa que é o tribunal criminal, eles simplesmente
não participariam num processo que põe o seu comportamento sob escrutínio. Nada de coerção, nada de
justiça restaurativa (na maior parte dos casos)”.
978
Na doutrina portuguesa, Rui PEREIRA olha para a mediação como um “instrumento suplementar,
muito relevante, de realização da justiça penal” (“A introdução da mediação no direito penal português”,
Colóquio Discussão Pública do Anteprojecto de Proposta de Lei sobre Mediação Penal, Ministério da
Justiça/Cej, Lisboa: Agora Comunicação, 2007, p. 27.
979
Manifestando a convicção de que o direito penal deve ser “efectivamente utilizado como ultima ratio”
e a partir da afirmação do efeito de estigmatização associado à condenação penal, Silvia LARIZZA
defende que “o paradigma restaurativo e a mediação penal (…) possam constituir uma resposta adequada
aos fins de contenção do estigma penal” (Silvia LARIZZA, “Cave a Signatis: Ovvero sulla
Stigmatizzazione Penale”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III,
Coimbra Editora: 2010, ps. 1312-3).

559
Aquilo que se quer enfatizar é que, apesar da afirmação das várias crises da
justiça penal e apesar da proclamação pela doutrina penal da necessidade de contenção
da intervenção punitiva do Estado, essa contenção parece não se verificar nos níveis que
seriam desejáveis980. O que se julga é que a promoção de práticas restaurativas pode
favorecer essa contenção e garantir, pelo menos em alguns casos, uma resposta mais
satisfatória ao crime981.

3.2.1.   Breve excurso sobre a natureza de ultima ratio da intervenção penal

Uma lacuna comum no pensamento restaurativo prende-se com um certo


desconhecimento da teoria penal. Ora, ainda que se possa compreender a primazia
atribuída à análise da praxis da justiça penal para a afirmação das insuficiências desse
modelo de controlo social, já se julga que a “concordância prática” da justiça
restaurativa e da justiça penal (tornada necessária pelo abandono quase generalizado do
abolicionismo radical) supõe uma compreensão, também por parte dos cultores do
paradigma restaurativo, do ideário penal. Se os cultores da justiça restaurativa olharem
para a justiça penal para além da superfície confrontar-se-ão com ideias que nem
sempre são diametralmente opostas àquelas que cultivam. E é assim a vários níveis.
Encontra-se um exemplo no modo como o próprio pensamento penal passa a sublinhar a
importância da ideia de tolerância982.

980
Assim, Eduardo CRESPO («”Del derecho penal liberal” al “derecho penal del enemigo”», Serta: in
memoriam Alexandri Baratta, cit., p. 1033) afirma que «a expressão “direito penal em crise” ou a “crise
do direito penal”, frequente há alguns anos, refere-se a uma “crise séria de legitimidade” que, todavia, à
luz da actual expansão do mesmo, produz um paradoxo notável, já que, contemplado sob a perspectiva da
inflação legislativa, dir-se-ia que o direito penal goza de boa saúde».
981
Não se desconhece que esta afirmação não é pacífica, na medida em que, para alguns Autores, um dos
riscos da proposta restaurativa é precisamente o de contribuir para o alargamento do controlo estadual
relativamente a condutas que, pela sua insignificância, deveriam permanecer exteriores a esse controlo.
Neste sentido, considere-se, a título de exemplo, a afirmação de Salo de CARVALHO de que se “há
possibilidade de reparação do dano, a via penal não é a adequada, devendo-se, ao contrário de privatizar o
conflito penal, descriminalizar a conduta, substituindo sua coloração jurídica. Tudo para evitarmos a
comercialização do delito através da sanção penal” (in “Considerações sobre as incongruências da justiça
penal consensual: retórica garantista, prática abolicionista”, Diálogos sobre a Justiça Dialogal: Teses e
Antíteses sobre os Processos de Informalização e Privatização da Justiça Penal, Org. Salo de
Carvalho/Alexandre Wunderlich, Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2002, p. 149). Na opinião que se perfilha,
julga-se que a objecção é ultrapassada pela afirmação, como ponto de partida, de que a proposta
restaurativa só deve ter como destinatários aqueles conflitos cuja relevância criminal seja clara.
982
Nas palavras de José de FARIA COSTA, “se alguma coisa se pode retirar, hoje, como
verdadeiramente característico e essencial, do espírito das modernas sociedades ocidentais, se bem que
nem sempre em dominância, isso será, em nosso juízo, a ideia de tolerância (…). O que não insinua
permissividade mas antes a assunção da regra de oiro de que cada homem no seu foro mais íntimo só é
responsável perante os seus deuses e os seus diabos”. Depois de se interrogar sobre a forma de “conseguir
transpor a noção geral de tolerância do mundo da compreensão global para os específicos e rigorosos
parâmetros dogmáticos que o pensamento jurídico-penal sedimenta”, o Autor conclui pela possibilidade

560
Não pode caber no objecto deste estudo uma análise dos caminhos principais
que o direito penal hoje trilha. Só relevarão os caminhos que se cruzam com os da
justiça restaurativa. Ora, a rota do sistema penal que aqui merece referência prende-se
com o seu reconhecimento do espaço para o funcionamento de outras respostas ao
crime. O sistema penal reconhece que pode haver vantagens em não se percorrer o
caminho da punição, caso se encontrem outros caminhos983. Apesar do momento de
intranquilidade – julga-se que positiva, porque criadora e refundante – por que o próprio
pensamento penal está a passar, com a sujeição a crítica de algumas das suas ideias
tradicionalmente mais sólidas, subsiste, como trave-mestra, a ideia de ultima ratio.
No contexto de uma reflexão sobre a crise da ideia de que a função do direito
penal é a tutela subsidiária de bens jurídicos, Susana AIRES DE SOUSA refere que “a
crise do bem jurídico constitui uma entre várias interrogações que actualmente se
dirigem ao direito penal. Com frequência se indaga por uma nova dogmática jurídico-
penal disposta a abandonar ou substituir princípios e matérias essenciais ao sistema

de “estabelecer limites à maximização da tolerância”, quer de um modo negativo, quer de uma forma
positiva (in “Diversão (Desjudiciarização) e Mediação: Que Rumos” cit., p. 63). Por outro lado, para a
afirmação da necessidade de limites a uma expansão punitiva que seja desumana, até na medida em que
se acredita que “o Estado de Direito está preparado para, dentro dos limites, todavia elásticos, do
princípio da proporcionalidade, lidar com situações trágicas, sem necessidade de resvalar para uma lógica
securitária”, cfr. Augusto SILVA DIAS “Torturando o inimigo ou libertando da garrafa o génio do mal?
Sobre a tortura em tempos de terror”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias,
I, Org. Manuel da Costa Andrade e outros, Stvdia Ivridica 98, Universidade de Coimbra/Coimbra Editora,
2009, p. 207 ss.
983
Como já se viu, para além de reconhecer a sua natureza subsidiária face a outras formas de reacção ao
crime, o direito penal reconhece ainda, na sua própria resposta, uma diversidade de sentidos de
intervenção que procuram atenuar a sua natureza punitiva, nomeadamente através da relevância do
consenso. Neste sentido, Manuel da COSTA ANDRADRE (“Consenso e Oportunidade” cit., p. 334),
afirma a «necessidade – e desejabilidade – de respostas de descontinuidade. Uma descontinuidade que é,
de resto, reclamada pela heterogeneidade da fenomenologia criminal. Que, do ponto de vista da antinomia
em exame, se distribui por um contínuo entre dois extremos. De um lado, as expressões da vida
protagonizadas por um arguido que transpõe os umbrais do Tribunal já pacificado com os “outros
significantes”, que terão sido referentes determinantes da sua conduta. E que, para além disso, se mostra
disposto a colaborar na procura da verdade (…) e a aceitar os caminhos que lhe são propostos como os
mais adequados ao seu reencontro com os valores e os modelos de acção do Estado de Direito. Do outro,
inversamente, perfilam-se as manifestações de criminalidade violenta e organizada, imputada a agentes
que recusam obstinadamente qualquer colaboração processual, qualquer crença nos valores da ordenação
democrática da sociedade e qualquer predisposição para aceitar as sanções». Deve, porém, notar-se que se
a justiça penal faz assentar a sua diversidade de respostas sobretudo na “fronteira entre a chamada
pequena criminalidade e a criminalidade grave” a que também se refere Manuel da COSTA ANDRADE,
já as práticas restaurativas parecem não ter de ser excluídas face à criminalidade mais grave, à luz do
argumento, que vem ganhando ressonância, de que quanto maior é o dano, maiores são as necessidades de
restauração. Por outro lado, existe na exactíssima afirmação de Manuel da COSTA ANDRADE um
segmento que se julga particularmente relevante para sublinhar uma certa diferença entre as soluções
penais de consenso e, por outro lado, a autonomia da vontade intrínseca às práticas restaurativas:
naquelas, são propostos caminhos (ao agente do crime e à sua vítima) pelas autoridades judiciárias,
caminhos estes que tais autoridades começam por julgar os “mais adequados ao seu reencontro com os
valores e os modelos de acção do Estado de Direito”; nas práticas restaurativas, espera-se que sejam o
agente do crime e a sua vítima a traçarem os caminhos que eles próprios vêem como os desejáveis em
função dos seus próprios interesses de pacificação e superação do conflito.

561
penal como a individualização da responsabilidade penal, a causalidade, a imputação
objectiva, o erro, a culpa…”984.
Em certo sentido, não será absurdo afirmar-se que o próprio surgimento da
proposta restaurativa é um dos afloramentos da crise do direito penal em sentido amplo,
e também da crise do bem jurídico, na medida em que se contraria a ideia da “dimensão
pública” do crime ao “deslocalizar” o conflito para o plano interpessoal vítima-
agente985. O reconhecimento dessa crise e da incapacidade do direito penal para
responder a todas as necessidades dos indivíduos e da sociedade originados pelo crime
não tem de equivaler, porém, a um abandono, por imprestável, do direito penal
afeiçoado pelo pensamento iluminista, sempre e quando se admita que a essas
necessidades poderão fazer face outros “instrumentos” sociais, não tendo portanto o
direito penal de ser “descaracterizado” para lhes garantir satisfação.
Pelo menos na sua acepção mais moderada, as correntes criminológicas
críticas986 das instâncias de controlo e o abolicionismo menos radical, que desembocam

984
Susana AIRES DE SOUSA, “Sociedade do risco: requiem pelo bem jurídico?”, Revista Brasileira de
Ciências Criminais, 86, Set-Out de 2010, ano 18, p. 234.
985
Não deixa de ser interessante, de resto, a verificação de como essa “crise do direito penal do bem
jurídico” se apresenta em diversas perspectivas, até sob o ponto de vista dos sujeitos potencialmente
englobados no conflito que se tem em mente. Se uma dessas crises se relaciona com a possível causação
de riscos globais por força da conduta de um ou vários agentes e a espécie de actuação
preventiva/repressiva que se espera do Estado (e não é esta crise que interessa à proposta restaurativa), a
outra crise pressupõe a substituição da visão tradicional de um conflito entre um agente e o Estado que
protege certos valores por uma visão centrada no conflito interpessoal agente-vítima concreta.
Sublinhando a novidade, no mundo do direito, daquele primeiro vector de crise, cfr., a título de exemplo,
João LOUREIRO, para quem “pela primeira vez na história humana, é a própria possibilidade do fim
desta condição básica da emergência do direito [habitação e comunhão do mundo] que está em causa.
Com efeito, as condições de destruição da natureza e do mundo como um todo põem em causa a própria
possibilidade da vida humana ao nível não já dos indivíduos, mas da própria espécie” (in “Autonomia do
direito, futuro e responsabilidade intergeracional – Para uma teoria do Fernrecht e da Fernverfassung em
diálogo com Castanheira Neves”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXXVI, Coimbra, 2010, p.
18). A referência é sucinta e, repita-se, apenas orientada para a distinção entre dois vectores da crise de
um direito penal de protecção de bens jurídicos.
986
Um dos representantes mais destacados da criminologia crítica, Alessandro BARATTA, no contexto
da sua “política criminal das classes subalternas”, defendia a aplicação de um direito penal mínimo, que o
próprio Autor associava já não apenas a uma política de descriminalização (das condutas dos membros
das classes subalternas, explicáveis pela persistência de uma macro-estrutura injusta, ainda que não das
condutas das classes dominantes), mas também a uma diminuição do encarceramento através, entre outras
medidas, de uma “privatização dos conflitos”. Para um aprofundamento do pensamento de Baratta que
inclui já a sua crítica, cfr. Marcelo AEBI, “Crítica de la criminologia crítica: una lectura escéptica de
Baratta”, Serta: In Memoriam Alexandri Baratta, Ed. Fernando Alvarez, Salamanca: Ediciones
Universidad de Salamanca, 2004, p. 20 ss. Também Lolita Aniyar de CASTRO (“Los retos de la reforma
penal en América latina”, Serta: In Memoriam Alexandri Baratta, p. 61) afirma a forma como «Baratta
retoma (…) elementos do tema abolicionista de Hulsman e da proposta minimalista de Ferrajoli,
integrando-os numa teoria global, dentro da qual se unem o direito penal mínimo, os princípios da
“reapropriação dos conflitos” – ou a privatização da solução dos conflitos – e da “primazia da vítima”».

562
no ideário restaurativo, encontram eco no pensamento que visa limitar a intervenção do
sistema penal ao mínimo possível987.
A referência a essa ideia nuclear do pensamento penal contemporâneo não será
aqui – repita-se – mais do que isso mesmo: uma referência instrumental e apenas na
medida necessária à afirmação de que o próprio sistema penal é pensado “de dentro” a
partir do princípio de que existem outros modos de controlo social dos conflitos
criminais e que tais modos serão preferíveis desde que adequados e suficientes. Tal
concepção é transversal à política criminal, ao direito penal e ao direito processual
penal, tendo diversos corolários, quer no direito penal substantivo, quer no direito penal
adjectivo988.
O princípio da intervenção de ultima ratio é um dos elementos centrais do
denominado direito penal clássico989, que encontra a sua própria legitimação no contrato

987
A propósito do surgimento da teoria da etiquetagem, Jorge de FIGUEIREDO DIAS sublinhou a
relevância de um determinado contexto cultural em uma referência conjunta àquela teoria criminológica e
à Escola de Frankfurt: “o labeling approach tem, como todas as correntes de pensamento fundamentais,
os seus antecedentes remotos na criação de um certo horizonte cultural que o tornou possível. Horizonte
cultural que, no seu caso, se revela com a consolidação da reacção antipositivista e com a entrada nos
domínios da sociologia. As ideias de crítica da sociedade que logo no dobrar do século se expandiram e
haviam de dar origem à escola de Frankfurt, bem como as teses fundamentais da chamada sociologia do
conhecimento assumem aqui relevo primordial” (cfr. Jorge de FIGUEIREDO DIAS, A perspectiva
interaccionista na teoria do comportamento delinquente, Separata do n.º especial do BFDC “Estudos em
homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro”, Coimbra, 1981, p. 13).
988
É, naturalmente, impossível dar aqui conta do pensamento dos inúmeros penalistas que, ainda que
recorrendo a diversas formulações ou sublinhando distintos matizes, se pronunciam sobre a natureza de
ultima ratio da intervenção penal. Assim, a título meramente indicativo, remete-se, entre nós, para Jorge
de FIGUEIREDO DIAS [Direito Penal – Parte Geral, Tomo I (Questões Fundamentais. A doutrina geral
do crime) 2.ª ed. cit., p. 128], que conclui que “a violação de um bem jurídico-penal não basta por si para
desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre
realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta precisa acepção o direito penal constitui,
na verdade, a ultima ratio da política social e a sua intervenção é de natureza definitivamente
subsidiária”. Merece também referência o pensamento de Claus ROXIN [Derecho Penal – Parte
General, Tomo I (Fundamentos. La estructura de la Teoria del Delito), Thomson/Civitas Ediciones,
Madrid, tradução da 2ª edição alemã, reimpressão de 2003, ps. 65-6]: «o direito penal é inclusivamente a
última entre todas as medidas de protecção que é preciso considerar, o que significa que apenas se pode
fazer intervir quando falhem outros meios de solução social do problema (…). Por isso se denomina a
pena como a “ultima ratio da política social” e se define a sua missão como protecção subsidiária de bens
jurídicos. Na medida em que o direito penal apenas protege uma parte dos bens jurídicos, e
inclusivamente essa nem sempre de modo geral, mas sim frequentemente (como no património) apenas
perante formas de ataque concretas, fala-se também na natureza “fragmentária” do direito penal. Esta
limitação do direito penal decorre do princípio da proporcionalidade que, por sua vez, se pode fazer
derivar do princípio do Estado de Direito da nossa Constituição: como o Direito penal possibilita as mais
duras de todas as intromissões estaduais na liberdade do cidadão, só se pode aplicar quando outros meios
menos duros não prometam ter um êxito suficiente. Constitui uma violação da proibição do excesso que o
Estado lance mão da afiada espada do Direito penal quando outras medidas de política social possam
proteger igualmente ou inclusive com mais eficácia um determinado bem jurídico».
989
Em concordância com a clarificação conceptual levada a cabo por Augusto SILVA DIAS (in “Delicta
in Se” e “Delicta Mere Prohibita” – Uma Análise das Descontinuidades do IlícitoPenal Moderno à Luz
da Reconstrução de uma Distinção Clássica, Coimbra Editora: 2008, p. 13), pretende-se referir por
direito penal moderno «o Direito Penal das sociedades contemporâneas pós-industriais, de finais do
século XX, por contraposição ao Direito Penal “clássico”, nascido sob o signo da razão iluminada, nas

563
social celebrado entre os cidadãos que, para garantirem a própria vida em sociedade,
prescindem de alguma da sua liberdade natural na medida necessária à garantia da
liberdade de todos. O crime corresponde a uma lesão de alguma dessas liberdades (ou
valores essenciais) asseguradas pelo contrato social e só essa lesão – a lesão de um bem
jurídico990 – legitima a intervenção penal – que, para além de legítima, há-de ser ainda
necessária991. Nas palavras de HASSEMER, “nesta concepção clássica, o direito penal é
certamente um meio violento de repressão, mas é também um elemento de garantia da

sociedades ocidentais, em pleno século XVIII». E se, tal como o Autor, também se recusa uma
contraposição estanque entre um direito-penal-clássico-bom e um direito-penal-moderno-mau
(sustentação que o Autor imputa a «alguns ilustres penalistas da Escola de Frankfurt”, que fariam aquela
contraposição “de uma forma elementar e algo maniqueísta”), por se aceitar que uma certa expansão do
direito penal pode ser justificada, até certo ponto, pelo reconhecimento de novos valores e da
indispensabilidade da intervenção penal para a sua protecção, o que julga dever sublinhar-se é que, ainda
assim, se deve preservar como ideia estruturante a ideia de ultima ratio, testando criticamente a
legitimidade, necessidade e eficácia de cada nova incriminação. Pelo que não pode deixar de se
reconhecer o contributo essencial dado pela “Escola” de Frankfurt para, em tempos de alargamento da
intervenção penal, chamar a atenção para a importância da sua contenção. A razão pela qual se julgou
necessário o esclarecimento anterior sobre o sentido (restritivo) que se deu ao conceito de “direito penal
moderno” prende-se com a sua utilização frequente com outros sentidos, nomeadamente associando-o ao
direito penal que nasce com o iluminismo [assim, por exemplo, José de FARIA COSTA, que vê no
iluminismo “os alicerces do direito penal moderno” (Noções Fundamentais de Direito Penal cit., p. 158)].
Por outro lado, é também conhecido o contributo penal da denominada Escola Moderna, fundada por von
Liszt, que nos compêndios escolares preocupados com uma certa ordem cronológica costuma ser referida
depois da Escola Clássica e da Escola Positiva e antes, por exemplo, da Escola Histórico-Jurídica ou da
Escola de Kiel (cfr., ainda, José de FARIA COSTA, últ. ob. cit., p. 161). Prevenindo a existência de
divergências terminológicas, esclareça-se que o que está em causa é inquirir da subsistência de um
paradima penal a que Jorge de FIGUEIREDO DIAS chama “o paradigma penal das sociedades
democráticas industriais do fim do século XX” ou, pelo contrário, da sua superação. Aquele é definido
pelo Autor enquanto “paradigma cujas raízes mais longínquas devem procurar-se no pensamento
filosófico ocidental moderno a partir do século XVII e se exprimem por excelência no racionalismo
cartesiano; na doutrina jurídico-política do individualismo liberal cunhada pelos pensadores europeus
coevos, sobretudo ingleses e franceses, e que teve na Revolução Francesa a sua máxima realização
política e social; e na mundividência antropocêntrica e humanista que (…) haveria de se impor no nosso
século e conduzir o movimento formidável a favor dos direitos humanos e da sua afirmação (…). Um
paradigma, por outro lado, que no âmbito jurídico-penal deve reivindicar-se da sua filiação no movimento
do Iluminismo Penal e em muitas das suas teses centrais, em particular as da função exclusivamente
protectiva do direito penal no sistema social, da natureza puramente secular deste direito, da intervenção
mínima e da sua necessidade” («O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco”»,
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Stvdia Jvridica 61, Boletim da Faculdade de
Direito, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, ps. 584-5).
990
Segundo Claus ROXIN, “o bem jurídico recebe uma dupla protecção: através do direito penal e ante o
direito penal, cuja utilização exacerbada provoca precisamente as situações que pretende combater” (in
Problemas Fundamentais de Direito Penal cit., p. 28).
991
Sobre os requisitos da intervenção penal, vd. Manuel da COSTA ANDRADE («A “dignidade penal” e
a “carência de tutela penal” como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime», Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, fasc. 2, 1992, p. 173 ss), que reafirma a proposição primeira de
que “o direito penal só pode intervir para assegurar a protecção, necessária e eficaz, dos bens jurídicos
fundamentais” (ob. cit., p. 178). José de FARIA COSTA vinca a essencialidade do princípio da
ofensividade, considerando que “a ofensa a um bem jurídico é a chave que permite a intervenção do
detentor do ius puniendi (Estado), enquanto única entidade susceptível de cominar, legitimamente, penas
criminais. Deste modo, de acordo com o princípio da ofensividade (nullum crimen sine iniuria), terá de
existir, ao menos, um perigo de lesão de um bem jurídico para que se deva encontrar legitimada a
intervenção do Estado” (Noções Fundamentais de Direito Penal cit., p. 171).

564
liberdade cidadã, e como tal é indispensável para assegurar a convivência; o que não
quer dizer que seja autónomo, mas sim um elo de uma cadeia; a ultima ratio para a
solução dos problemas sociais, e não uma panaceia para os mesmos”992.
A possibilidade de solução do conflito interpessoal que o crime é sem a
aplicação de pena é largamente reconhecida na doutrina penal. É-o, de resto, mesmo por
aqueles que não partilham da “concepção frankfurtiana” sobre o âmbito de intervenção
mínimo que o direito penal deve ter. O próprio Günther JAKOBS reflecte sobre várias
possibilidades de reacção ao delito que não passam pelo sancionamento penal. Entre
elas, menciona a “indemnização ressarcitória para reparar as consequências do delito”,
que reconhece que “pode ser suficiente no caso concreto”. Afirma mesmo que “em
alguns delitos pode ser mais adequado para a vítima que o dever de ressarcimento
prevaleça sobre a pena”, tendo em conta “uma ampla compensação autor-vítima – que
excede o limite puramente civil”. Esclarece que “na teoria da prevenção geral positiva
não se trata, pois, de considerar unicamente adequada, em todos os casos, a pena e não
uma outra reacção”. Todavia, o Autor não deixa de advertir que “todas as variantes de
solução necessárias põem em perigo o estatuto do agente”. A substituição da pena por
“equivalentes funcionais” não deixa, assim, de comportar certos riscos. E, tendo em
conta que um dos argumentos utilizados pelos defensores de um direito penal mínimo é
o dos efeitos nocivos da intervenção penal, afigura-se pertinente a introdução nesse
debate da afirmação de JAKOBS de que um desses efeitos desvaliosos, a
estigmatização, pode transportar-se também para outros modos de controlo da
delinquência: “costuma ignorar-se que a eleição de outras vias não punitivas para
resolver a criminalidade não apenas exonera o agente da pena, mas também pode
conduzir a que as novas vias estigmatizem tudo o que se soluciona através delas”993.
A afirmada crise do paradigma jurídico-penal herdado do iluminismo manifesta-
se em níveis vários (que percorrem a política criminal, a dogmática e até o processo
penal) e transporta consigo a crise do próprio conceito de bem jurídico-penal994 e,
consequentemente, a crise da legitimação do direito penal através da sua função de

992
Winfried HASSEMER/Francisco MUÑOZ CONDE, La responsabilidad por el producto en derecho
penal, titant lo blanch, Valência, 1995, p. 21.
993
Günther JAKOBS, Derecho Penal – Parte General (Fundamentos y teoria de la imputación, 2ª Edição
corrigida, Madrid: Marcial Pons, 1997, ps. 14-17.
994
Um tratamento detalhado dos vários pontos por onde passa esta crise do conceito nuclear de bem
jurídico pode encontrar-se em Augusto SILVA DIAS (“Delicta in se” e “delicta mere prohibita”: uma
análise das descontinuidades do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica
cit., p. 641 ss) e em Susana AIRES DE SOUSA (Os Crimes Fiscais – Análise Dogmática e Reflexão
sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 171 ss).

565
tutela subsidiária de bens jurídicos. Ora, todas essas interrogações se repercutem de
forma inevitável no conceito de direito penal mínimo. Claus ROXIN, depois de explicar
o objectivo da “Escola de Frankfurt”995 de utilizar os instrumentos da dogmática
“clássica” para garantir uma prioritária protecção individual face aos crimes de
resultado de dano (com a intenção de defesa dos elementos do Estado de Direito que
impõem limites ao sancionamento penal e impedem uma criminalização excessiva como
forma de reacção a todos os riscos sociais inerentes às modernas tecnologias), nota que
tais teses têm sido objecto de inúmeras críticas996. A principal é a de que, como também
bem nota o Autor, não se compreende que o sistema penal continue a abranger um
conjunto de delitos clássicos que são frequentemente muito menos desvaliosos,
desconsiderando uma série de novos “riscos que são mais perigosos para a sociedade e
para o indivíduo”997.

995
Utiliza-se aqui o conceito “Frankfurter Schule” apesar de se conhecer a opinião de Winfried
HASSEMER de que “sempre negámos o sentimento de pertencer a uma escola”. Reconhece, porém,
quando reflecte sobre aquilo que une o pensamento dos Autores agrupados sob aquela designação, que
“existem duas particularidades que diferenciam a nossa forma de nos ocuparmos da ciência do direito
penal de outros métodos científicos”. Ainda nas palavras do Autor, essas características prendem-se com
a “introdução no direito penal de saberes vizinhos” e com “a profunda convicção de que se tem de ser
extremamente cauteloso com a política (…) que se concretiza através dos instrumentos penais. Fazem
parte das nossas tradições científicas princípios como o de que o direito penal deve considerar-se a ultima
ratio, que tem de se preservar o seu carácter fragmentário e que outros âmbitos jurídicos devem ser
utilizados conjuntamente com o direito penal para a protecção de bens jurídicos” (in Apresentação de
Crítica y justificación del derecho penal en el cambio del siglo, El análisis crítico de la Escuela de
Frankfurt, coord. Arroyo Zapatero/Neumann/Nieto Martín, Colección Estúdios, Ediciones de la
Universidad de Castilla-La Mancha, 2003, ps. 11 e 12). Na opinião de Luís ARROYO ZAPATERO, a
denominada Escola de Frankfurt «combate ferozmente o direito penal actual, o qual qualifica como
“moderno”» (também na apresentação da última obra citada, p. 18).
996
A reponderação que algumas novas manifestações da criminalidade impõem a um direito penal que se
pretenda estritamente subsidiário é, na doutrina italiana, também objecto da análise de Giorgio
MARINUCCI/Emilio DOLCINI [«Diritto penale “minimo” e nuove forme di criminalità», Rivista
Italiana di Diritto e Procedura Penale, ano XLII, fasc. 3 (1999), p. 802 ss]. Os Autores enjeitam formas
de compreender o direito penal mínimo que inviabilizem a criminalização de novas condutas,
potencialmente mais desvaliosas, considerando que esses entendimentos ficam presos a um certo “direito
penal de oitocentos”, “de classe”, punitivo das condutas dos mais desfavorecidos mas a que os grandes
(nos planos político e/ou económico) ficam imunes. Na doutrina portuguesa, Jorge de FIGUEIREDO
DIAS ou Anabela MIRANDA RODRIGUES acompanham o entendimento de Marinucci e Dolcini,
afastando «as concepções de um “direito penal mínimo” nas versões de W. Hassemer (…), A. Baratta
(…) e Ferrajoli» (cfr. Anabela RODRIGUES, “Globalização, democracia e crime” cit., p. 302).
997
Claus ROXIN manifesta ainda a sua discordância relativamente à crítica que “de forma principal” a
Escola de Frankfurt faz aos crimes de perigo abstracto, dando o exemplo da necessidade da incriminação
da condução sob o efeito do álcool (“porque perante condutores embriagados só se pode reagir com êxito
no momento em que ainda não aconteceu nada”). O Autor reconhece, porém, um “acerto relativo” da
Escola de Frankfurt, «na medida em que quando a nossa legislação se move fora do “núcleo do direito
penal” é menos satisfatória. Falta-lhe a elaboração suficiente do ponto de vista da política legislativa e da
dogmática penal». Conclui, porém, que as anomalias daí decorrentes não devem impor uma renúncia à
intervenção penal nesses novos domínios mas sim um mais intenso labor dogmático (Claus ROXIN, La
evolución de la Política criminal, el Derecho penal y el Proceso penal, tirant lo blanch, Valência, 2000,
ps. 89 a 94).

566
A nova sociedade global998 determina, por força da invocada necessidade de
intervenção do sistema penal na prevenção e sancionamento de uma enorme panóplia de
novos riscos, a expansão do direito penal. Dá-se, pois, um movimento de sinal contrário
ao do direito penal mínimo, relacionado com o advento de um direito penal a que vários
têm chamado “moderno”999. À afirmação da expansão da mancha incriminadora
associa-se também, com frequência, a referência à hipertrofia do direito penal1000.
Essa contradição a que o direito penal mínimo foi sujeito por força da expansão
do sistema de controlo penal inerente à existência de novos riscos com um potencial de

998
A globalização (ou a “semi-globalização”) é recortada por José de FARIA COSTA como
«”mecanismo social hiperdinâmico que torna globais os espaços económicos, culturais e informativos que
antes se estruturavam, primacialmente, a um nível nacional» (“O fenómeno da globalização e o direito
penal económico”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Stvdia Jvridica 61, Boletim
da Faculdade de Direito, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 533).
999
Winfried HASSEMER (La responsabilidad por el producto en derecho penal cit., p. 28) afirma, a
propósito daquilo a que chama o direito penal moderno e depois de referir o seu alargamento em
domínios como o da tutela do meio ambiente, da economia, da protecção de dados ou do combate à
criminalidade organizada, que “no seu conjunto, o direito penal dos últimos anos aumentou
significativamente a sua capacidade, eliminando de passagem algumas garantias específicas do Estado de
Direito que se tinham convertido num obstáculo para o cumprimento das suas novas tarefas”. As
mudanças para o sistema penal não ocorrem em um plano puramente quantitativo. Para além do aumento
da mancha da criminalização, surgem especificidades de monta no que tange à própria natureza dos bens
jurídicos protegidos (com o surgimento de incriminações que visam tutelar valores de natureza supra-
individual) ou às técnicas legislativas de construção da norma incriminadora com o maior recurso aos
crimes de perigo abstracto. A intenção de alargar as possibilidades de punição é ainda visível em
institutos do direito processual penal, de que serão exemplo as investigações criminais encobertas ou as
denominadas “inversões do ónus da prova”.
1000
A questão constitui objecto da análise de Francesco PALAZZO em “Princípio de ultima ratio e
hipertrofia del derecho penal” (Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos: in memoriam, vol. I, Dir.
Arroyo Zapatero/Berdugo Gómez de la Torre, Ediciones de la Universidad de Castilla-La
Mancha/Ediciones Universidad de Salamanca, 2001, p. 433 ss), que parte da afirmação de que “a
tendência para uma hipertrofia do direito penal está presente em grande número de países com elevados
níveis de progresso tecnológico e industrial” e que considera que as causas para tal são complexas. O
Autor associa a hipertrofia a factores que denomina “qualitativos” (como a criação de normas penais
“omnicompreensivas capazes de castigar tanto os factos realmente graves como aqueles que são puras
bagatelas) e a outros “quantitativos”, como o aumento da criminalidade. Para o efeito que aqui interessa,
o Autor, quando confrontado com a questão de saber como pode o Estado enfrentar esta situação, parece
adoptar uma perspectiva crítica relativamente à adopção de soluções de consenso na gestão do conflito.
Relativamente a elas, afirma que “implicam com frequência um custo para a coerência teleológica do
sistema”. Refere, por exemplo, que «no plano processual, a via escolhida é a criação de procedimentos
alternativos simplificados, baseados na aceitação da culpa pelo arguido em troca de uma diminuição da
pena que comporta uma quebra paralela das garantias; deste modo, produz-se uma espécie de
“privatização” do conflito penal com possíveis distorções, não só da função da pena, mas também da
própria ideia da justiça». A razão pela qual se julga relevante a citação do pensamento do Autor italiano
nesta matéria prende-se com a verificação de que, ainda que se reconheça a hipertrofia do direito penal e
se veja essa hipertrofia como indesejável, não decorre necessariamente daí a aceitação de formas mais
desformalizadas de resposta ao conflito jurídico-penal. Diversamente do que se defende noutros pontos
deste estudo, parece subjacente à argumentação de PALAZZO a ideia de que tais soluções de consenso
(com algum reconhecimento da culpa pelo agente), de que serão exemplo a suspensão provisória do
processo, o processo sumaríssimo ou a mediação penal, decorrem de meros juízos de eficiência, sendo
alheios a considerações de justiça. Não é essa, como em momentos anteriores deste estudo se já referiu, a
opinião perfilhada.

567
grande danosidade1001, mas não só, não contende directamente com aquilo que à justiça
restaurativa interessa na natureza de ultima ratio da intervenção penal. O breve e
simplificado excurso por essas águas profundas do pensamento penal serviu, somente,
para afirmar a ideia de que mesmo em um direito penal já menos mínimo (na medida
em que se alargou a mancha incriminadora) deve continuar a preponderar a ideia de
ultima ratio. Quer relativamente às incriminações clássicas, quer no que respeita às
neocriminalizações, deve impor-se a consideração de alternativas à punição penal
mesmo quando ela é possível. O facto de tal punição ser possível porque a intervenção
penal é considerada em abstracto necessária (sendo a conduta qualificada como facto
típico, ilícito, culposo e punível) não significa que ela seja necessária no caso concreto.
Esta expansão das incriminações penais, se torna possível a resposta (punitiva) penal em
um maior número de casos, não torna impossível, portanto, o recurso a outros modos de
controlo social1002.
Com esta afirmação não se pretende significar a irrelevância de preocupações
como a manifestada por HASSEMER, que refere “a tendência para utilizar o direito
penal não como última mas como primeira ou única ratio, fazendo-o intervir, contra o
princípio da subsidiariedade, sempre que pareça politicamente rentável”1003. Partilha-se
a rejeição deste direito penal que, em muitos casos, será ainda meramente simbólico. E
a legitimidade da neocriminalização deve continuar a aferir-se em função da relevância

1001
Sobre o assunto, cfr. Jorge de FIGUEIREDO DIAS, “O papel do direito penal na protecção das
gerações futuras”, BFD LXXV, 2003, p. 1123 ss.
1002
Os conceitos de “direito penal mínimo” e de intervenção de ultima ratio não serão, na acepção que
aqui se lhes dá, inteiramente coincidentes (enquanto o primeiro se refere essencialmente à dimensão da
criminalização, o segundo implica também a possibilidade de uma solução não penal em momento
posterior ao da criminalização). Em um direito penal mínimo, em que as condutas objecto de
incriminação penal são escassas e limitadas ao essencial, ainda assim se deverá perguntar, depois de
consumada a infracção penal, se há necessidade de aplicação da sanção criminal, ou se uma solução
restaurativa poderá ser suficiente (o efectivo sancionamento penal será, assim, a ultima ratio). Em um
direito penal que não seja mínimo cabe formular a mesma interrogação para, ainda aí, garantir a natureza
de ultima ratio da intervenção penal.
1003
Winfried HASSEMER, La responsabilidad por el producto en derecho penal cit., p. 31. O Autor
critica a exclusividade da “prevenção normativa” (a que está associada a limitação de direitos tão
fundamentais como o da presunção de inocência ou o direito à autodeterminação informativa e ao segredo
das comunicações), com absoluta desconsideração da “prevenção técnica”. Já Alessandro BARATTA
(“Funciones instrumentales y simbólicas del derecho penal – lineamientos para una teoria del bien
juridico”, Revista Peruana de Ciencias Penales, n.º 1, Janeiro-Junho 1993, p. 45) rejeita a flexibilização
do princípio da legalidade neste direito penal que recorre com excessiva frequência a conceitos
indeterminados e afirma que este “direito penal jurisprudencial” visa “transferir para as decisões judiciais
a responsabilidade política que [o legislador] não quer ou não pode assumir com aquelas decisões
programáticas”. Mais recentemente, as limitações (perigosas) que para o princípio da legalidade decorrem
do recurso a conceitos indeterminados e a normas penais em branco foram objecto da análise de
Wolfgang NAUCKE (“La progresiva perdida de contenido del principio de legalidad penal como
consequência de un positivismo relativista y politizado”, in La Insostenible Situación del Derecho Penal,
Granada: Editorial Comares, 2000, p. 531 ss.).

568
do bem jurídico e da gravidade da lesão que a conduta desvaliosa provoca, obedecendo-
se a um estrito princípio da necessidade.
Em favor da adopção de um direito penal mínimo convergem, ainda, os
argumentos de Luigi FERRAJOLI, que o opõe a um “direito penal máximo”, referindo
que a estes dois extremos correspondem “os maiores ou menores vínculos garantistas
estruturalmente internos ao sistema, assim como a quantidade e a qualidade das
proibições e das penas estabelecidas”. O Autor italiano acrescenta que “o direito penal
mínimo, ou seja, condicionado e limitado ao máximo, supõe não só o grau máximo de
tutela das liberdades dos cidadãos no que respeita ao arbítrio punitivo, mas também um
ideal de racionalidade e de certeza”, na medida em que “existe um nexo profundo entre
garantismo e racionalismo”1004.
Reconhece-se, porém, que do aprofundamento de valores como o da
solidariedade e o da responsabilidade individual pela coisa comum (no sentido de
preservar a qualidade de vida também das gerações futuras) pode resultar algum
alargamento das condutas abrangidas pelo direito penal. Mesmo quanto a essas
condutas objecto de criminalização, porém, haverá ainda que ponderar no caso concreto
a possibilidade de recurso a uma resposta diferente da penal1005.
Destas considerações decorre já uma conclusão: não há, mesmo em termos
geométricos, uma relação imediata entre o espaço ocupado pelo direito penal e o espaço
a ocupar pela justiça restaurativa. A expansão daquele (não desejável, mas porventura
em alguns casos compreensível) não significa necessariamente um esvaziamento desta,
porque o princípio da ultima ratio da intervenção penal não visa orientar apenas a tarefa
criminalizadora, mas também a própria actividade de aplicação do direito penal. Mais
direito penal não equivale forçosamente a menos justiça restaurativa na medida em que
(I) a criminalização da conduta não significa a obrigatória aplicação da pena criminal;

1004
Para um aprofundamento da análise levada a cabo por Luigi FERRAJOLI em torno dos conceitos de
“direito penal mínimo” e de “direito penal máximo”, vd. Derecho y Razón – Teoría del Garantismo Penal
cit., p. 103 ss. Por oposição ao modelo que defende, o Autor afirma que “o modelo de direito penal
máximo, ou seja, incondicionado e ilimitado, é o que se caracteriza, para além da sua excessiva
severidade, pela incerteza e imprevisibilidade das normas incriminadoras e das penas; e que,
consequentemente, se configura como um sistema de poder não controlável por via da razão por força da
ausência de parâmetros certos e racionais de convalidação e de anulação”.
1005
Sobre a função que ao direito penal pode caber na protecção das gerações futuras, cfr. Jorge de
FIGUEIREDO DIAS e o seu reconhecimento da relevância que podem ter outros ramos do direito. Nas
exactas palavras do Autor, “não negarei o papel fundamental – e em certas situações insubstituível – que
a estes ramos do direito [nomeadamente do direito civil e do direito administrativo] deve conferir-se na
tentativa de resolução do problema. Mas julgo infundado o propósito de com eles esgotar o papel que ao
Direito cabe na matéria; e, sobretudo, de com eles substituir a função diferenciada que ao direito penal
deve pertencer” (“O papel do direito penal na protecção das gerações futuras”, Boletim da Faculdade de
Direito, Volume Comemorativo do 75º Tomo do BFD, Coimbra: 2003, p. 1127).

569
(II) mesmo nos casos em que haja processo penal e efectivo sancionamento penal, as
duas diferentes respostas ao crime podem ser cumulativas.
Ainda que assim seja (não porque uma expansão da resposta restaurativa o
imponha mas por razões outras), deve continuar a sustentar-se a reivindicação do
mínimo direito penal possível. Nas palavras de José de FARIA COSTA, “todos estarão
de acordo em que a história do direito penal é, como de ordinário se ensina, a história do
seu desaparecimento. Na verdade, quer-se com uma tal afirmação tornar claro que a
uma primitiva compreensão monolítica e totalitária – porquanto englobante de todos os
actos, de todas as opiniões, de todos os desejos, e até, em muitas circunstâncias, de
todas as nudae cogitationes – do direito penal se passou, paulatinamente, para uma
tendência doutrinária que queria e quer que o direito penal se reduza cada vez mais. Se
reduza ao mínimo essencial ou, à la limite, desapareça mesmo”1006.
É, pois, esta pretensão interna de limitação, esta contenção que o sistema penal
reconhece que tem de impor a si próprio, que o paradigma restaurativo tem, regra
geral, desconsiderado. A crítica da dimensão punitiva do sistema penal torna-se
redutora na medida em que oblitere toda a pretensão de auto-limitação da punição.
Mais: para além de se criticar essa dimensão punitiva ignorando a consciência que ela
tem de si própria enquanto potência que não deve expandir-se, não se admite a
utilidade dessa potência na perspectiva já da possibilidade e da eficácia das outras
formas de resposta ao problema social que é o crime. É que a possibilidade, em
potência, dessa actuação punitiva do sistema penal garantirá, em muitos casos, o
estímulo necessário para a resolução do conflito interpessoal através de meios menos
drásticos. O que permite que se olhe para o sistema penal já não enquanto obstáculo à
justiça restaurativa, mas antes como elemento útil à sua própria efectividade.
A existência de um ramo do direito com um cariz severamente punitivo, como
sucede com o direito penal, pode ser vista, portanto, como uma condição de sucesso das
próprias práticas restaurativas. Nessa medida, o sistema penal actua como uma espécie

1006
José de FARIA COSTA, “Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapável do
homo dolens, enquanto corpo-próprio, com o direito penal)”, cit., p. 41 ss. O Autor sustenta ainda o
duplo sentido da ideia de ultima ratio do direito penal: «ele é ultima ratio porque só quando, de todo em
todo, os outros ramos do direito não conseguem responder às necessidades de tutela dos bens jurídicos
necessitados de protecção é que, então, se devem empregar os mecanismos de tutela repressiva que cabem
ao direito penal. Mas o direito penal é também ultima ratio, agora numa perspectiva de diferente radical,
porquanto ele representa o último, o derradeiro poder a ter “poder” legítimo para ofender o corpo-
próprio». Naquela sua primeira vertente, “o direito penal não intervém, está retirado, autolimita-se até à
exaltação da restrição minimalista”, na segunda assume-se enquanto “detentor de um dos últimos e mais
terríveis poderes: o poder de punir”.

570
de ameaça que não se quer ver concretizada e que, pela sua possibilidade mas
indesejabilidade, fornece o estímulo aos envolvidos no conflito para a participação em
outras vias de solução.
Para além da sua vocação para a contenção1007, há uma outra nota essencial do
sistema penal a que o pensamento restaurativo não tem, com frequência, dado o devido
peso. Enquanto a ameaça de um mal for necessária para proteger valores essenciais da
comunidade (ou seja, enquanto for necessária a possibilidade de imposição de um
qualquer mal àqueles que causarem grandes males a outrem, por não haver outra forma
de prevenir a causação de mais males), parece preferível que o exclusivo dessa
intervenção coactiva sobre direitos fundamentais das pessoas caiba a um ramo do direito
em cujas categorias essenciais repousam séculos de luta pelas liberdades. É, pois,
também sobre esta ambivalência do direito penal que o paradigma restaurativo deve
reflectir1008.
Destas considerações resulta a importância de se sublinhar um último ponto: a
afirmação de que o recurso a outros modelos de controlo do crime torna o direito penal,
como se pretende, mais mínimo ou de ultima ratio, não é suficiente, por si só, para
legitimar ou julgar preferíveis todas essas outras soluções, porque há o risco,
sublinhado por Hassemer em contexto não inteiramente coincidente, de que as
tendências descriminalizadoras sejam utilizadas para, de um outro modo,
criminalizar1009.
Deve, portanto, esclarecer-se que, ainda que se julgue que a justiça restaurativa é
coerente com a ideia de um direito penal de ultima ratio, compreende-se que nem todos
aqueles que defendem um direito penal mínimo sejam, também, defensores da proposta
restaurativa. Poderão, até, contar-se entre os seus principais opositores, por verem nessa

1007
Compreende-se, porém, que os críticos que defendem a justiça restaurativa só vejam – ou vejam
essencialmente – no direito penal a sua vertente expansionista de constrição de liberdades e direitos. A
avaliação de uma certa praxis é mais óbvia, e não menos relevante.
1008
Como nota José de FARIA COSTA, a ambivalência do direito penal decorre do facto de o podermos
ver “como expressão de uma realidade jurídico-normativa que pende para a restrição, para a constrição de
direitos”, mas também “enquanto legítimo delimitador dos comportamentos proibidos”, dimensão esta em
que “aumenta, potencia, expande o âmbito de tantos e tantos direitos” (in “Uma ponte entre o direito
penal e a filosofia penal: lugar de encontro sobre o sentido da pena”, Linhas de Direito Penal e de
Filosofia, alguns cruzamentos reflexivos, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 217).
1009
Winfried HASSEMER, Persona, mundo y responsabilidad. Bases para una teoria de la imputación
en Derecho Penal cit., p. 33 ss.

571
justiça restaurativa uma forma encapotada e menos garantista de expansão do controlo
estadual sobre o indivíduo, a que associam vários riscos1010.
Em primeiro lugar, existe o risco de que essas outras soluções signifiquem um
alargamento da intervenção estadual, o que, ainda que não se admita a punição, implica
uma extensão do controlo social a comportamentos que, de outro modo, lhe seriam
exteriores. Como nota Mylène JACCOUD, «as práticas que visam a redução do recurso
ao sistema penal podem conter um efeito perverso: aplicadas às clientelas e às situações
que não teriam sido jamais tratadas pelo sistema penal, estas práticas podem, ao
contrário, contribuir para aumentar o controlo no que diz respeito a essas “novas
clientelas” (…). Assim, em vez de desafogar os tribunais, a justiça restaurativa corre o
risco de não apenas sobrecarregar o sistema, mas também de contribuir para aumentar o
controlo penal»1011.
Por outro lado, não é por acaso que se têm suscitado algumas dúvidas sobre a
adopção de soluções em tese menos punitivas, como sejam as relacionadas com a
expansão do ilícito de mera ordenação social ou com a aceitação de formas de justiça
penal consensual. Assim, por exemplo no Brasil – onde se têm levantado várias vozes
contra o tratamento das denominadas “bagatelas penais” por vias que supõem ainda um
alargamento do controlo estadual –, Alberto Silva FRANCO1012 ou Geraldo PRADO
manifestaram grandes preocupações com a admissibilidade da transacção penal. Este
último Autor, na muito interessante obra que dedica ao tema, conclui que «a transacção
penal consiste exactamente em o imputado “abrir mão” do devido processo legal».
Acrescenta que “repudia-se a privatização do direito e do processo penal”1013.
Compreende-se bem a preocupação dos Autores, sobretudo na medida em que estas
soluções apregoadas como menos punitivas possam acabar por condicionar a sujeição a
sanções criminais ou a assunção de deveres com conteúdos semelhantes aos das sanções

1010
Neste sentido, vd., a título de exemplo, a afirmação de Mercedes García ARÁN (“Despenalización y
privatización: tendencias contrarias?”, Crítica y Justificación del Derecho Penal en el Cambio del Siglo,
coord. Luis Arroyo ZAPATERO/Ulfrid NEUMANN/Adán NIETO, Cuenca: Ediciones de la Universidad
de Castilla-La Mancha, 2003, ps. 199-200) de que «a convivência da decisão privada e da decisão pública
na intervenção penal não só não favorece a sua redução mas, pelo contrário, tende a incrementá-la; o
incremento ou a não redução do direito penal estabelecem um âmbito de punição “de baixa intensidade”,
mais ligeiro e menos inexorável, características que legitimam o enfraquecimento da segurança jurídica e
da alta formalização própria – e exigível – do direito penal. Formulando-o de modo inverso: a melhor
política reducionista do direito penal deve conduzir a uma selecção dos ilícitos penais baseada na
intervenção mínima, mas radicalmente pública e garantisticamente formalizada».
1011
Mylène JACCOUD, “Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa”
cit., ps. 178-9.
1012
Alberto SILVA FRANCO, prefácio à obra Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral, de
Eugénio ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI, Editora Revista dos Tribunais, 1997.
1013
Geraldo PRADO, Transação Penal, Lumen Iuris Editora, 2.ª edição: 2006, p. 224.

572
penais. Também aqui, o argumento que se julga central pode ser apresentado sob a
forma de uma interrogação: se relativamente às infracções em causa se faz um juízo de
menor gravidade, por que razão não se opera uma retirada total do direito penal,
assumindo-se a descriminalização, em vez de o Estado continuar a alargar a sua rede de
controlo ainda que de forma subreptícia1014, através de soluções apresentadas como
“menos más”?
O que se pretende sublinhar é que não basta invocar os ideais (pós anos
sessenta) de menos prisão e de mais reparação para legitimar como inequivocamente
boas todas as soluções de controlo social que se reclamam em simultâneo menos
punitivas e mais orientadas para a vítima.
O ponto de partida para a reflexão deve estar, assim, no reconhecimento de que a
mera existência de um direito penal mais mínimo (ou a existência de menos direito
penal) não é por si só equivalente a mais garantismo. Existem riscos nas soluções
apresentadas como em tese menos punitivas, nomeadamente na justiça penal
consensual, no direito civil ou administrativo sancionatório, na justiça restaurativa. Em
todos estes casos, o risco é sobretudo o da assunção pela pessoa ou o da imposição à
pessoa de um desvalor idêntico ao das sanções penais sem as devidas garantias.
Significará, porém, o reconhecimento deste risco a conclusão imediata de que
tais soluções têm de ser rejeitadas? Julga-se que a resposta deve ser negativa. Por uma
razão principal: se existe um conflito relativamente ao qual a comunidade ainda sente a
necessidade de controlo social ou relativamente ao qual o agente e a vítima almejam
uma possibilidade de pacificação, é desejável que essa forma de controlo social só em
última análise origine a privação da liberdade. As restantes soluções serão, regra geral,
menos más. Não devem, por isso, ser liminarmente enjeitadas com o argumento de que
não são suficientemente boas. Olhemo-las, portanto, com os cuidados devidos, mas sem
as excluirmos liminarmente. Até porque tal exclusão das alternativas (em sentido
amplo) à prisão se afigura algo incoerente no contexto de um pensamento que assenta
na própria incoerência e nos males da privação da liberdade.
Resta acrescentar – regressando àquele que é o principal objecto de reflexão –
que as críticas que têm sido dirigidas, por vários Autores e em distintos ordenamentos
jurídicos, aos mecanismos de diversão, às soluções de consenso ou à expansão do

1014
A este propósito, GERALDO PRADO (ob. cit., p. 113) menciona as “estratégias de expansão do
direito penal que se escondem por trás da informalidade e da transacção”.

573
ilícito de mera ordenação social não são transponíveis na íntegra para a proposta
restaurativa.
E é assim porque existem na justiça restaurativa algumas especificidades. Em
primeiro lugar, não se pode afirmar (como alguns afirmam quanto à justiça penal
consensual) que com a justiça restaurativa se está a privatizar um conflito público que
cabe ao Estado resolver. No entendimento que antes se justificou, a justiça restaurativa
não se ocupa desta dimensão pública do crime. Pelo contrário, o que se pode afirmar é
que com ela surge, para o Estado, a obrigação de disponibilizar meios que permitam aos
intervenientes num conflito que tem dimensão interpessoal um encontro orientado para
a sua pacificação. Em segundo lugar, as práticas restaurativas não culminam com a
sujeição a uma sanção penal, nem sequer de natureza não detentiva (de forma diversa,
por exemplo, do que ocorre com o processo sumaríssimo). Todavia, por poderem
conduzir à assunção de deveres por um arguido sujeito a possíveis formas de coacção
(ainda que subtis), tais deveres devem obedecer a um juízo de proporcionalidade. Em
terceiro lugar, nas práticas restaurativas não há uma autoridade judiciária que proponha
uma solução vista como adequada à satisfação das finalidades penais, solução essa com
a qual o agente do crime e a sua vítima poderão ou não concordar. Pelo contrário, nas
práticas restaurativas são o agente do crime e a sua vítima que podem chegar a um
acordo que vêem como adequado à pacificação do conflito que entre eles existe,
construindo eles próprios a sua solução.
Feitas estas ressalvas quanto aos cuidados que devem merecer as formas de
reagir ao crime distintas dos procedimentos da justiça penal agora ditos “tradicionais”,
deve voltar-se àquele que se julga ser, nesta sede, o ponto crucial: esses outros modos
de lidar com o crime podem contribuir para uma maior parcimónia da justiça penal1015.

1015
A razão principal pela qual se recorre aqui ao conceito de “parcimónia” prende-se com o destaque que
adquiriu na doutrina restaurativa depois de John BRAITHWAITE e Philip PETTIT o terem tornado
elemento da sua “teoria republicana da justiça criminal” (in Not Just Desert. A Republican Theory of
Criminal Justice, Oxford, Clarendon Press: 1990). A ideia de que a punição estadual coerciva deve ser
usada com a maior parcimónia abriu caminho para a procura de outras soluções – que alguns apodam de
“informais” – para o conflito criminal. Assim, quanto mais sucesso tiverem as práticas restaurativas –
afirma-se – mais parcimoniosa poderá de facto ser a justiça penal. Com aquela obra, os Autores
reconhecem que procuraram contrariar a prévia crítica de Andrew von Hirsch, para quem a rejeição do
pensamento da retribuição por Braithwaite tinha um conteúdo puramente “destrutivo”, não oferecendo
qualquer “alternativa teórica coerente”. Braithwaite e Pettit reconhecem que precisaram de oito anos para
encontrarem um sentido de resposta para aquele desafio. Fundam a intervenção do Estado através da
justiça penal em um conceito de “dominion”, que definem como “liberdade num sentido republicano”, o
que exige mais do que a mera ausência de interferência, “mais do que a noção liberal de liberdade” (ob.
cit., p. 203) que impede os outros de invadirem o espaço de cada um: exige iguais perspectivas de
liberdade e o conhecimento, partilhado com os outros, da titularidade dessas expectativas. Afirmam, por
isso, que o conceito tem uma dimensão subjectiva e uma dimensão social. Cada pessoa tem o direito de

574
E, nessa medida, a proposta restaurativa, se adequadamente compreendida e aplicada,
pode surgir como uma solução “amiga” de uma justiça penal que se pretende não
conformada a partir da ideia do “inimigo”1016.
Uma nota última para sublinhar um ponto que se julga essencial e que esteve
implícito nas considerações anteriores: a razão pela qual se julga que a justiça
restaurativa não tem natureza puramente assistencial (caso em que deveria porventura
ser remetida para outras esferas de reflexão que não as atinentes às especificidades do
problema criminal) prende-se, precisamente, com essa sua ligação com o
funcionamento da justiça penal e com a forma como pode contribuir para tornar esse
funcionamento mais mínimo e melhor. Na medida em que as práticas restaurativas
surjam enquanto mecanismos de diversão ou enquanto mecanismos pós-sentenciais que
contribuam também (ainda que não em primeira linha) para a consecução das
finalidades especificamente penais, não poderá afirmar-se que é de uma resposta
exclusivamente assistencial que se trata.

3.3. Uma tentativa de síntese

Por reconhecerem que há uma margem de desvalor na repressão penal, muitos


penalistas contemporâneos aceitam o princípio da intervenção mínima ou da
subsidiariedade1017. Intervenção mínima não é, porém, o mesmo que intervenção

esperar que os outros respeitem o seu “dominion”, não a agredindo por exemplo na sua integridade
pessoal ou no seu património. Se essa agressão ocorrer, a intervenção do Estado tem por finalidade
assegurar o respeito que tal “dominion” merece. Os Autores afirmam (ob. cit., p. 69) que “promover o
dominion – ou minimizar a invasão do dominion – é um objectivo incontroverso do sistema de justiça
criminal, pela mesma espécie de razão pela qual minimizar o mal associado ao crime é incontroverso”.
Um dos pontos centrais do pensamento de Braithwaite e de Pettit é o de que essa defesa do dominion –
cuja compreensão parece assentar em um certo espaço de inviolabilidade da pessoa – que também
incumbe ao Estado é melhor servida através da parcimónia, uma “presunção em favor de uma menor
intervenção, e não maior”, o “que dá à teoria uma qualidade minimalista que estabelece pontos comuns,
quer com a tradição liberal, quer com tradição libertária”. Posteriormente, Autores como Lode
WALGRAVE encontraram na “teoria republicana da justiça criminal, construída a partir do conceito de
dominion, uma base para os princípios e as regras que devem limitar e orientar a justiça restaurativa” (in
Lode WALGRAVE, “Imposing Restoration Instead of Inflicting Pain” cit., p. 74).
1016
Encontrou-se inspiração para esta afirmação no significativo título do estudo de Ferrando
MANTOVANI, “Il diritto penale del nemico, il diritto penale dell’amico, il nemico del diritto penale e
l’amico del diritto penale”, Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, 2007, 50, fasc. 2/3, p. 470 ss.
1017
Sem prejuízo, porém, do reconhecimento da distância entre esse princípio e aquela que vem sendo a
política criminal adoptada em muitos países. Nesse sentido, considere-se, a título de exemplo, a afirmação
de Agustín Jorge BARREIRO sobre a “preocupante situação actual do movimento internacional de
reforma penal, que afecta especialmente o sistema de sanções, no qual se nota uma criticável tendência –
nas legislações penais de alguns países ocidentais socialmente avançados – de endurecimento punitivo
sem precedentes, de regresso a teses inocuizadoras, de recuperação do Direito Penal do Inimigo (…), de
flexibilização das garantias penais e das categorias dogmáticas da imputação e da responsabilidade

575
nenhuma – há, com efeito, situações-limite para as quais os cultores do abolicionismo
penal não conseguem encontrar soluções que mereçam aceitação comunitária, pelo
menos no tempo que é o nosso tempo. O que se julga é que as práticas restaurativas
poderão contribuir para reforçar o princípio da subsidiariedade da intervenção penal1018,
assumindo a primazia na diluição daqueles conflitos interpessoais que não careçam
irremediavelmente da intervenção penal1019. Os conflitos interpessoais que também são
vistos como problemas sociais nem sempre desencadearão, portanto, um conflito
positivo entre duas pretensões de intervenção reguladora – a do sistema penal e a da
justiça restaurativa.
Assim, ao reconhecerem a natureza fragmentária da intervenção penal, são os
próprios penalistas que admitem a necessidade de que um conjunto vasto de condutas,
ainda vistas como problemas sociais, sejam objecto de outros modelos de controlo
social. Todas as condutas que não desencadeiam a pretensão punitiva do Estado não
suscitam, pois, qualquer conflito positivo entre a justiça penal e a justiça restaurativa.
Logo, o possível embate entre duas distintas formas de reacção só ocorre, no que
aqui nos interessa, no que respeita àquelas condutas vistas como necessariamente
criminais – ou seja, aqueles comportamentos delituosos relativamente aos quais se julga
que têm de desencadear o funcionamento do aparelho punitivo estadual. Ainda aqui
serão pensáveis, porém, distintos círculos: estarão em causa todas as condutas
criminalizadas ou o conflito entre aqueles distintos modos de controlo social (o penal e

penal” (“Aproximación a un estudio comparativo entre los sistemas de sanciones en el Código Penal
Português de 1982 y el Código Penal Español de 1995”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge
de Figueiredo Dias, II, Org. de Manuel da Costa Andrade e outros, Stvdia Ivridica 99, Coimbra:
Universidade de Coimbra/Coimbra Editora, 2009, p. 169).
1018
Como muito bem nota José ARZAMENDI no prólogo à obra de Gema Martínez (La mediación
reparadora, Estudios de Derecho Penal, Granada: Editorial Comares, 1998) “o desenvolvimento e
elaboração de estratégias de controlo social que, sem a gravidade, o peso e a transcendência dos
instrumentos penais permitam a resolução efectiva dos conflitos, constitui uma exigência inultrapassável
de uma política criminal atenta à evolução das necessidades sociais e que mantenha o Direito penal, como
direito penal mínimo, nos estritos limites exigidos pelo princípio da necessidade. Este princípio não só
deve ter aplicação na selecção e delimitação dos bens jurídicos e comportamentos delituosos, mas
também no plano das respostas penais, onde há que articular, em cada caso, os procedimentos e sanções
que, com o menor custo social e individual, permitam alcançar os objectivos pretendidos”. No mesmo
sentido, sublinhando o contributo das práticas restaurativas para a ideia da mínima intervenção penal, cfr.
Dieter RÖSSNER, “Mediation as a basic element of crime control”, Buffalo Criminal Law Review, vol. 3,
1999, p. 219.
1019
Jianhong LIU refere a este propósito a ideia de Confúcio de que depois do cometimento de um crime
o principal objectivo é restaurar a ordem e a harmonia, o que é melhor conseguido recorrendo primeiro ao
fortalecimento das relações interpessoais assentes em códigos de conduta e no amor pelos outros, que
permitem a solução do conflito através do entendimento. A lei (ou fa) só deverá ser aplicada num
segundo momento se for indispensável para corrigir o mal causado (“Principles of restorative justice and
Confucian philosophy in China”, Newsletter of the European Forum for Restorative Justice, Março de
2007, vol. 8, p. 2).

576
o restaurativo) só ocorre na realidade relativamente a crimes públicos? Crê-se que,
substancial ou materialmente, o conflito positivo de pretensões reguladoras entre o
sistema penal e a justiça restaurativa só existe nos crimes públicos – relativamente às
infracções qualificadas como particulares em sentido amplo, o próprio sistema penal
reconhece a sua intervenção como “ainda mais subsidiária” (rectius: subsidiária em um
segundo momento1020) e permite que a composição de interesses ocorra por outras
formas.
Tendo em conta o reconhecimento pelo sistema penal da sua subsidiariedade,
pode concluir-se que só relativamente às condutas criminalizadas – melhor, só
relativamente às condutas criminalizadas enquanto crimes públicos1021 – se deve
ponderar o “choque” entre a necessária administração da justiça penal e a possível
aplicação da nova justiça restaurativa. Todavia, até esta margem de conflito positivo
(limitada aos crimes públicos) poderia ser eliminada pela consideração simplista de que,
mesmo entre os cultores da justiça restaurativa, se reconhece hoje que ela não constitui
alternativa ao sistema penal em todas as situações. Para a diluição total do conflito
positivo entre o sistema penal e a justiça restaurativa, poder-se-ia recorrer a uma
“partilha do território” em função de um critério elementar: ao sistema penal caberiam
apenas as mais desvaliosas de todas as condutas desvaliosas; à justiça restaurativa, que
reconhece a inconsistência da sua visão como alternativa global ao sistema penal,

1020
O primeiro juízo de subsidiariedade é feito aquando da decisão criminalizadora. Se uma conduta foi
criminalizada e se, no que respeita à promoção processual, esta foi condicionada à apresentação de queixa
(ou, ainda, à dedução de acusação particular) isso significará que, em um primeiro momento – o da
criminalização – se considerou que tal conduta, em abstracto, poderia desencadear a intervenção penal,
não devendo esta ser liminarmente excluída. Aceitou-se, porém, em um segundo momento, que em
concreto essa intervenção penal deveria ser subsidiária face a outras formas que o ofendido encontrasse
para reagir aos desvalores causados. Como se nota na introdução constante do Decreto-Lei n. 400/82, de
23 de Setembro, “não deve esquecer-se – e foi isso que o Código teve presente – que o direito penal deve
sempre actuar como ultima ratio. E quando, nos casos evidentemente menos graves, as partes em conflito
se compõem, é natural e saudável não dever o direito penal intervir. A concretização desta ideia atingiu-se
através da necessidade, nos casos especificados na lei, de o procedimento criminal depender de queixa.
Isto é, sempre que uma sã política criminal o aconselhava (para salvaguarda de outros bens de natureza
institucional, v.g., a família), retirou-se a certas infracções a qualificação de crimes públicos. O que, sem
ser a mesma coisa, pode compreender-se como parte de um movimento de descriminalização que já foi
aflorado”.
1021
Relativamente às condutas desvaliosas cuja dimensão é inequivocamente pública, parece não poder
afirmar-se a absoluta alternatividade de uma justiça restaurativa que, assim, substituiria a resposta dada
pela justiça penal. Recorde-se, a este propósito, a opinião de Jorge de FIGUEIREDO DIAS sobre a
reacentuação do carácter público do processo penal atinente à criminalidade mais grave (in “O processo
penal português: problemas e prospectivas”, Que Futuro para o Direito Processual Penal?, coord. de
MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia,
Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 808).

577
caberiam as condutas desvaliosas menos desvaliosas, assumindo especial relevo os
crimes particulares em sentido amplo.
Esta solução tão geometricamente arrumada (e confortável) não parece, porém,
razoável. Desde logo porque se julgam pertinentes as razões pelas quais surgiu, no
pensamento restaurativo, um forte movimento de defesa de uma intervenção
restaurativa precisamente no âmbito dos crimes mais graves. O que se afirma é que,
com frequência, os conflitos de que tais crimes são expressão, se não podem prescindir
da intervenção penal, carecem também (logo, cumulativamente) de uma intervenção
restaurativa. O que parece mostrar que as finalidades perseguidas através da intervenção
penal relativamente a crimes graves não são inteiramente coincidentes com as
finalidades pretendidas com aquela intervenção restaurativa.
Em jeito de síntese, dir-se-á que se a diferença entre a criminalidade de pequena
e média gravidade, por um lado, e a criminalidade grave, por outro, assume relevância
específica no âmbito da justiça penal – e sobretudo no plano processual penal, onde se
vem aprofundando o fosso entre um rito comum ou ordinário e as novas soluções de
diversão, celeridade e consenso –, não parece ter idêntica importância na delimitação do
objecto da justiça restaurativa. Sob esta perspectiva, adquirem pertinência outros
factores, como a existência de vontade de pacificação individual ou interpessoal de um
estado de conflito que teve origem no cometimento de um crime e que ainda se não
ultrapassou. A maior ou menor gravidade do crime e a existência de necessidades
preventivas que permitam sustentar a indispensabilidade da punição não condicionarão
assim, de per si, a (des)necessidade ou a (des)adequação de uma resposta restaurativa.
Elas influenciarão, porém, o juízo sobre a alternatividade ou a complementaridade das
respostas penal e restaurativa1022.

1022
Referindo a contraposição entre um processo penal para a criminalidade grave, um processo penal
para a criminalidade menos grave e práticas restaurativas que podem influir sobre qualquer um deles
ainda que por diferentes formas, vd. a afirmação de Jorge de FIGUEIREDO DIAS de que «prevejo e
espero para o futuro próximo uma coexistência, tanto quanto possível isenta de contradição, entre dois
sistemas processuais penais: um sistema público, oral, contraditório, adversarial e formal para
processamento da grande e grave criminalidade; um outro desformalizado, rápido, “negociado” sob tutela
pública, e visando a obtenção, da forma menos dispendiosa e no mais curto lapso de tempo possíveis, de
um acordo entre os interessados susceptível de reparar o dano e pôr fim ao conflito. Sistemas processuais
penais estes que deverão conviver de forma pacífica com práticas restaurativas que ocorram à sua
margem, ainda que os resultados positivos que delas eventualmente resultem possam ser tidos em conta
nos processos penais, através de um sistema de “vasos comunicantes” cuja concreta conformação deve
ainda ser ponderada» (in “O processo penal português: problemas e prospectivas”, Que Futuro para o
Direito Processual Penal?, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO,
Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 816).

578
Parte III
As práticas restaurativas e o papel
central da mediação penal

579
580
Capítulo I – A mediação penal como instrumento da justiça restaurativa

1.Considerações iniciais

A reflexão sobre a mediação penal que se vai agora iniciar supõe, de novo, uma
precisão sobre os seus limites ou as suas insuficiências.
Em primeiro lugar, há que reconhecer que a própria opção terminológica
“mediação penal” não é insusceptível de críticas. E não o é, sobretudo, por poder
induzir a ideia de que se trata sempre de um procedimento usado ainda dentro do
processo penal e orientado por finalidades penais. Ora, não é necessariamente assim
nem se julga que deva ser sempre assim: a mediação, enquanto instrumento restaurativo,
é pensável de forma desligada do processo penal, na medida em que o não influencia –
em alguns países, é pré-processual; em outros países, é pós-sentencial; é, para além
disso, orientada por finalidades primeiramente restaurativas, só de forma mediata se
considerando a possibilidade de também contribuir para o cumprimento das finalidades
especificamente penais1023.
Na reflexão que interessa a este estudo considerar-se-á apenas a mediação que
tem alguma conexão com o funcionamento da justiça penal (e que, nessa medida,
favorece a diversão; condiciona por algum modo a decisão do tribunal; ou acompanha a
execução de uma sanção penal1024), por ser relativamente a essa mediação que se afirma

1023
Na catalogação da mediação penal por referência ao seu modo de relacionamento com as instâncias
formais de controlo do sistema penal, Miguel Núñez PAZ (“Origen y fundamentos criminológicos de la
mediación”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 17, n.º 80, Set-Out. 2009, p. 380) distingue
uma mediação pura ou extrajudicial (“que se leva a cabo em um âmbito diferente do judicial”, não
havendo encaminhamento do processo por autoridade judiciária e nunca se prescindindo da
voluntariedade e do inteiro poder de conformação do acordo pelas partes); uma mediação derivada (“por
organismos públicos, pelo juiz, pela polícia”, sendo o mediador pessoa alheia ao exercício daquelas
funções públicas no sistema judicial); uma mediação vinculada aos tribunais ou intrajudicial (“dentro do
próprio sistema judicial, são as equipas técnicas ou os próprios agentes de administração da justiça que
realizam a mediação”). Desta catalogação o Autor faz derivar a conclusão de que existem duas espécies
de mediadores, os “institucionais” e os “cidadãos”. Esta tentativa de aprisionamento conceptual de formas
de mediação que têm características muito diversas em distintos espaços parece, porém, redutora, por
serem pensáveis programas que misturam caracteríticas de mais do que um modelo e, também, por se não
julgar impensável, por exemplo, a participação de mediadores não “institucionais” em uma mediação
“intrajudicial”. Sobra, ademais, a interrogação quanto àquilo que é essencial ao conceito de mediador
institucional, por o Autor parecer centrar o conceito na existência de uma “formação específica” e não já
no vínculo ao desempenho de uma função pública; mas, se assim for, deve concluir-se – do que se duvida
– que o mediador “cidadão” é aquele que não teve qualquer formação específica para o desempenho
daquele papel.
1024
É frequente apontar-se o exemplo da Bélgica como modelo de sistema que admite as práticas
restaurativas em todas as fases do processo penal e relativamente a crimes com distinta gravidade. Para

581
a contribuição para uma reacção ao crime menos punitiva e por ser nesse horizonte que
se suscita a questão dos modos pelos quais a resposta penal pode relacionar-se com a
restaurativa1025.
Apesar de se reconhecer a pertinência de algumas objecções ao conceito de
“mediação penal”, opta-se por o manter. Ele adquiriu um valor de uso que desaconselha
a sua substituição: é reconhecido em vários instrumentos supra-estaduais, o legislador
português adoptou-o (nomeadamente, na Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho), a doutrina
assume-o, quer entre nós, quer no estrangeiro (assim, e só para referir o que nos é mais
próximo, recorde-se que em Espanha se usa o termo “mediación penal”, os franceses
referem-se a “médiation pénale” e em Itália é conhecida a categoria da “mediazione
penale”).

uma ponderação desta realidade, cfr. Ivo AERTSEN (“The intermediate position of restorative justice: the
case of Belgium”, Institutionalizing Restorative Justice, Eds. I. Aertsen/T. Daems/L. Robert, Devon:
Willan Publishing, 2006, ps. 70-73), que distingue quatro modalidades. A que surgiu primeiro, em 1994,
é aquela a que chama “penal mediation”, e trata-se de uma medida de diversão na fase de inquérito, por
impulso do Ministério Público e no âmbito da criminalidade menos grave. A segunda, que denomina
“mediation for redress”, é uma mediação posterior à acusação, aplicável a crimes mais graves, iniciada
através de programas experimentais associados à universidade, mas adoptada de forma genérica por lei de
Junho de 2005. O Autor vinca o facto de a lei se ter baseado numa “clara filosofia de justiça restaurativa,
definindo-se a mediação como um processo de comunicação e garantindo-se os princípios da
confidencialidade e voluntariedade”. Acrescenta que “só com o consentimento expresso da vítima e do
agente é que a informação do processo de mediação pode ser comunicada ao Ministério Público ou ao
juiz. Nesta última hipótese, o juiz deve mencioná-la na sentença”. Há uma terceira modalidade, que
AERTSEN classifica como “mediation at the police stage”, pensada sobretudo para crimes contra o
património em que seja possível uma reparação rápida dos danos causados às vítimas. Esta mediação é
promovida pela polícia, mas o mediador não é um agente policial. Finalmente, o Autor refere-se às
práticas restaurativas nas prisões, que distingue consoante sejam de hipóteses de “victim-offender
mediation” ou de “restorative detention” (nos termos desta última, passou a haver um “conselheiro de
justiça restaurativa” em todos os estabelecimentos prisionais, cuja função não é a de participar em
concretas sessões de mediação, mas sim “promover dentro da prisão o desenvolvimento de uma cultura,
ferramentas e programas que respondam às necessidades das vítimas e às questões restaurativas”).
1025
São estas as razões pelas quais permanecerá exterior a este estudo a ponderação da mediação admitida
nos Julgados de Paz: mesmo nas hipóteses em que o conflito subjacente está relacionado com um crime,
ele surge aí desligado dessa sua dimensão (que as partes escolheram desconsiderar) e apresentado como
questão de natureza exclusivamente privada. No artigo 9.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho (Lei dos
Julgados de Paz), relativo à competência em razão da matéria, prevê-se no n.º 2 que “os julgados de paz
são também competentes para apreciar os pedidos de indemnização cível, quando não haja sido
apresentada participação criminal ou após desistência da mesma, emergentes de: a) ofensas corporais
simples; b) ofensa à integridade física por negligência; c) difamação; d) injúrias; e) furto simples; f) dano
simples; g) alteração de marcos; h) burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços”. Acrescenta-
se, no n.º 3 deste artigo, que “a apreciação de um pedido de indemnização cível, nos termos do número
anterior, preclude a possibilidade de instaurar o respectivo procedimento criminal”. No artigo 35.º, n.º 1,
daquela mesma Lei, define-se a mediação como “modalidade extrajudicial de resolução de litígios, de
carácter privado, informal, confidencial, voluntário e natureza não contenciosa, em que as partes, com a
sua participação activa e directa, são auxiliadas por um mediador a encontrar, por si próprias, uma
solução negociada e amigável para o conflito que as opõe”. Lúcia Dias VARGAS analisa a origem dos
julgados de paz, as suas funções e as perspectivas de evolução em Julgados de Paz e Mediação – Uma
Nova Face da Justiça (Coimbra: Almedina, 2006) e, apesar de fazer remontar a existência dos Julgados
de Paz às “origens da nacionalidade” e ao exercício de uma “justiça rural, já que funcionavam muitas
vezes como os aplicadores da justiça junto das populações afastadas dos centros administrativos”,
relaciona a sua expansão na contemporaneidade com a “crise da justiça no século XXI” (ob. cit., p. 18 ss).

582
Em segundo lugar, deve recordar-se que a mediação penal não é o único
instrumento da justiça restaurativa1026. Na doutrina restaurativa, é corrente a afirmação
da existência de três espécies principais de procedimentos restaurativos: a mediação, as
conferências e os círculos de sentença. A mediação envolve o agente do crime e a
vítima, auxiliados por um mediador. As conferências caracterizam-se pela aceitação da
participação também dos próximos do agente e da vítima, para além destes e de um
“coordenador treinado”, almejando-se um acordo que permita a reparação dos vários
danos originados pelo crime. Relacionam-se, com frequência, com organizações
comunitárias. Os círculos de sentença começaram por aparecer no Canadá e envolvem,
potencialmente, o agente e a vítima, os seus próximos, representantes das instâncias
formais de controlo (magistrados, polícias, advogados) e outros elementos da
comunidade com interesse naquele acontecimento1027. Cada uma destas espécies de
procedimento engloba, porém, práticas que conhecem algumas variações – assim, por
exemplo, certos programas de mediação admitem a participação de outros sujeitos para
além do agente do crime, da vítima e do mediador. Por a mediação ser, todavia, a
prática restaurativa dominante, quer em Portugal, quer nos países do nosso contexto

1026
A pluralidade das práticas restaurativas é reconhecida em instrumentos supra-estaduais, de que é
exemplo a Declaração n.º 2002/12, adoptada pelo Conselho Económico e Social da Organização das
Nações Unidas, na qual se referem os seguintes processos restaurativos: “mediação, conciliação,
conferências e círculos de sentença”. A qualificação de determinada prática como plenamente restaurativa
não é, porém, isenta de dúvidas, sendo condicionada, como antes se viu, pelo conceito de justiça
restaurativa que se adoptar. Assim, na compreensão estritamente minimalista que antes se perfilhou,
dificilmente se poderão considerar práticas restaurativas aqueles sentencing circles. Já se deverão
considerar práticas restaurativas, por nelas inexistir um terceiro dotado de autoridade para ditar a solução
para o conflito, a mediação penal e as conferências ou os círculos restaurativos. Estas práticas distinguem-
se pelo alargamento progressivo do número de participantes: se a mediação é essencialmente vítima-
agressor, as conferências abrangem familiares ou próximos do agente e da vítima, e os círculos
restaurativos incluem, ainda, representantes de entidades estaduais “despidos” de um poder de exercício
da autoridade.
1027
Entre os Autores que sustentam a existência destas três principais modalidades de práticas
restaurativas, atribuindo a cada uma delas as notas caracterizadoras acima mencionadas, cfr. Joanna
SHAPLAND, “Restorative Justice and Criminal Justice: Just Responses to Crime?”, Restorative Justice
and Criminal Justice – Competing or Reconciliable Paradigms?, Eds. Andrew von Hirsch/Julian
Roberts/Anthony Bottoms/Kent Roach/Mara Schiff, Oxford: Hart Publishing: 2003, p. 197. Para outros
Autores, a estas três modalidades deve acrescer uma quarta, os “citizen panels” que, como o nome indica,
supõem a existência de um painel de cidadãos que propõe ao agente do crime uma determinada medida
para reparar os danos causados. Existem, por exemplo nos EUA e no Canadá, e destinam-se sobretudo a
crimes sem vítima de menor gravidade (cfr. KURKI, Leena, “Evaluating restorative justice practices”,
Restorative Justice & Criminal Justice – Competing or Reconciliable Paradigms?, Eds. A. Von Hirsch/J.
Roberts/A. Bottoms/K. Roach/M. Schiff, Oxford: Hart Publishing, 2003, ps. 304-5 ou SCHIFF, Mara,
“Models, challenges and the promise of restorative conferencing strategies”, Restorative Justice &
Criminal Justice – Competing or Reconciliable Paradigms?, Eds. A. Von Hirsch/J. Roberts/A.
Bottoms/K. Roach/M. Schiff, Oxford: Hart Publishing, 2003, p. 317).

583
cultural, julgou-se adequado centrar nela a análise1028. Não sem antes reconhecer,
porém, que esta mediação é um entre vários procedimentos considerados restaurativos
e, sobretudo, não sem sublinhar a ideia de que, apesar dessa diversidade, podem
identificar-se-lhes algumas notas comuns. Para Jim DIGNAN e Peter MARSH, elas são
três e associam-se ao relevo que em todos os procedimentos se atribui à
responsabilização do agente perante aqueles especialmente afectados pelo crime; ao
processo inclusivo porque encoraja a participação de todos os intervenientes no conflito;
ao objectivo de reparação dos danos ocasionados pelo crime1029.
Em terceiro lugar, há também que chamar a atenção – como se necessário fora –
para o facto de a mediação penal não ser nem o único meio de resolução alternativa de
conflitos1030, nem sequer a única forma de mediação. Com efeito, a mediação inscreve-
se no horizonte vasto dos mecanismos de solução alternativa de lítigios e já tem
aplicação em outros domínios da litigiosidade, como o familiar ou o laboral, tendo-se
inclusivamente estendido aos conflitos intergrupais1031. A ideia transversal a todos estes
mecanismos é a de que há uma vantagem inequívoca na solução dos conflitos pelos seus

1028
Sobre a questão, cfr., por exemplo, Frederico Moyano MARQUES e João LÁZARO, “Justiça
restaurativa e mediação”, Sub Judice, n.º 37, Out-Dez. 2006, p. 65 ss ou Ivo AERTSEN/Tony PETERS,
“As práticas europeias em matéria de justiça restaurativa”, Sub Judice, n.º 37, Out-Dez. 2006, p. 37 ss.
1029
Cfr. Jim DIGNAN/Peter MARSH, “Restorative justice and family group conferences in England:
current state and future prospects”, Restorative Justice for Juveniles – Conferencing, Mediation and
Circles, Eds. Allison Morris/Gabrielle Maxwell, Portland: Hart Publishing, 2003, p. 85.
1030
Como notam Elena HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos GREGORIO (Resolución Alternativa de
Disputas y Sistema Penal, Buenos Aires, Ad-Hoc: 1998, p.17), “a resolução alternativa abarca uma ampla
gama de acções e processos que consideram o conflito a partir de diversas perspectivas e objectivos: o seu
abandono, a prevenção, a administração e a resolução através dos chamados métodos alternativos como a
negociação, a conciliação, a mediação, a arbitragem ou outros híbridos”. Deve, ainda, esclarecer-se que,
neste estudo, se usam indistintamente os conceitos de conflito ou de litígio, apesar de se conhecerem
várias propostas orientadas para a sua diferenciação. Assim, por exemplo, Fernando Martín DIZ (“La
mediación: marco general para su implantación como sistema complementario de administración de
justicia”, La Mediación en Materia de Familia y Derecho Penal – Estudios y Análisis, coord. Fernando
Martín Diz, Santiago de Compostela: Andavira Editora, 2011, ps. 27-28) refere um denominador que é
comum aos conceitos de “disputa”, “conflito” ou “litígio”: o facto de serem “sinónimos de controvérsia
que afecta as relações interpessoais”. Todavia, o Autor retira à “disputa” uma “conotação jurídica”,
reservando a sua utilização às hipóteses em que “a controvérsia não requeira a intervenção do direito”;
associa ao “conflito” uma maior intensidade que pressupõe uma “resolução mais complexa”, mas ainda
pensável em moldes extra-judiciais; vê no “litígio” uma “contenda que se resolve em tribunal” (“o litígio
implica (…) uma associação imprescindível entre controvérsia e solução judicial”).
1031
Com interesse para a reflexão sobre as possíveis vantagens do recurso à mediação penal no âmbito de
conflitos étnicos/culturais e/ou religiosos, cfr. Berit ALBRECHT, “Multicultural challenges for
restorative justice: mediator’s experiences from Norway and Finland”, Journal of Scandinavian Studies in
Criminology and Crime Prevention, 2010, 11 (1), p. 3 ss. O Autor não ilude, porém, o facto de a
existência de bases culturais distintas do mediador ou dos participantes na mediação poder originar
problemas de comunicação, o que suscita alguns cuidados e supõe a consolidação das garantias. Em
estudo também orientado para a aplicação da mediação a conflitos não individuais, cfr. Adolfo
CERETTI/Alberto NOSENZO, “The truth and reconciliation commissions: a justice looking also to
future generations”, Cahiers de Défense Sociale, 2002, Actas do XIV Congresso Internacional de Defesa
Social, Lisboa, p. 201 ss. Os Autores localizam os procedimentos de reconciliação no horizonte da justiça
restaurativa (ps. 225-6).

584
intervenientes e, nessa exacta medida, na desjudiciarização. Esta tem, naturalmente,
limites: a solução dada pelo tribunal ao conflito deve permanecer uma possibilidade
para todos aqueles casos em que os participantes no litígio não logrem resolvê-lo por si
próprios e através dos novos mecanismos postos à sua disposição; a intervenção judicial
pode ser incontornável – ainda que não exclusiva – nos casos em que existam outros
interesses para além daqueles representados pelos intervenientes no conflito.
O que se vem de dizer não deve prescindir de um rápido enquadramento
centrado na história recente, em Portugal, do aumento da litigiosidade judicial (no
contexto da tendência mais ampla para a “burocratização do mundo” referida por
PEDROSO, TRINCÃO e DIAS1032) e da forma como o surgimento desta mediação
penal se inscreve em um certo movimento de contra-corrente face a essa tendência. Em
um estudo em que se propõe “uma leitura de Portugal para as últimas cinco décadas” a
partir da análise de dados estatísticos constantes da Pordata (base de dados de Portugal
contemporâneo), Maria João ROSA e Paulo CHITAS, a propósito dos números
relativos à Justiça, suscitam a interrogação: “uma sociedade menos pacífica ou mais
vigilante?». A pergunta torna-se pertinente a partir da verificação da expansão do
“número de profissionais de Justiça em Portugal” e do “crescente movimento dos
tribunais”. Todavia, ainda segundo os Autores, o “crescimento do número de processos,
como mostra a evolução dos que se encontram pendentes, não é adequadamente
resolvido pelo sistema judicial português”. Para além de se mostrar o aumento do
número de processos, afirma-se ainda que “aumenta o tempo médio na resolução de
alguns conflitos”. Mas, com interesse, afirma-se ainda que “apesar de mais volumoso o
trabalho dos tribunais, é de registar uma diminuição do número médio de processos por
alguns agentes da justiça, ou seja, o aumento do número de processos é superado pelo
aumento do número de alguns profissionais. Mas esse aumento não chega – a eficácia,
1033
na verdade, diminui” . Em síntese, teremos, portanto, mais demanda do sistema
judicial por parte dos cidadãos, mais profissionais da justiça, mas parece que a este
aumento não correspondeu mais eficácia. Talvez possa, por isso, considerar-se que o

1032
Cfr. João PEDROSO/Catarina TRINCÃO/João Paulo DIAS, Por caminhos da(s) reforma(s) da
justiça, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 12.
1033
Maria João Valente ROSA e Paulo CHITAS, Portugal: Os Números, 3, Lisboa: FFMS, Ensaios da
Fundação, 2010, p. 9 e p. 79 ss

585
“modo tradicional” de administrar a justiça é, neste sentido, um “doente com saúde de
ferro”, nas palavras de Fernando Martín DIZ1034.
Maria João ROSA e Paulo CHITAS concluem que «com a “judicialização” da
sociedade portuguesa, aumentam, de uma maneira geral, os profissionais das posições-
chave do sistema judiciário. Contudo, o “estrangulamento” na gestão dos processos
parece óbvio, numa sociedade que nada tem a ver com a do início dos anos 60 e na qual
a questão da justiça é cada vez menos um assunto de acesso reservado a uma parcela
restrita da população” 1035.
A razão pela qual se deu relevo a esta porventura longa descrição está na sua
nuclearidade para a ponderação de uma questão ela própria central da teoria da solução
alternativa de conflitos: estes mecanismos surgem porque são necessários face à
incapacidade de resposta dos tribunais a todos os conflitos (e são, nessa medida, uma
solução que, não sendo a ideal, é nestes tempos necessária porque é eficiente), ou têm
um outro fundamento, surgindo na medida em que podem favorecer uma melhor
resposta ao conflito, uma resposta fundada na própria autonomia dos sujeitos desse
conflito? O que se julga, e o que em momento posterior se procurará justificar, é que
ainda que o surgimento dos mecanismos de solução alternativa dos conflitos tenha sido
favorecido por critérios de necessidade relacionados com o antes referido
“estrangulamento do sistema”, é outro o seu fundamento. A multiplicidade e a
diversidade das razões que sustentam o aparecimento e a expansão da mediação penal é
sublinhada pelos Autores que, como Robert CARIO, a associam a uma ideia de maior
“souplesse” na reacção ao crime, considerando que esta apresenta “vantagens de

1034
Fernando Martín DIZ, “La mediación: marco general para su implantación como sistema
complementario de administración de justicia”, La Mediación en Materia de Familia y Derecho Penal –
Estudios y Análisis, coord. Fernando Martín Diz, Santiago de Compostela: Andavira Editora, 2011, p. 21.
1035
Os números relativos à justiça criminal referidos por Maria João Valente ROSA e por Paulo CHITAS
(últ. ob. cit., p. 84 ss), se confirmam aquela tendência para um aumento do número de processos e para
um aumento do número de profissionais da justiça, não deixam de apresentar algumas interessantes
especificidades. Assim, começa por se afirmar que “actualmente, o número de arguidos, de condenados e
de reclusos é mais elevado do que no passado (…). Entre 1960 e 2006, o número de arguidos triplicou
(passou de cerca de 40 mil para cerca de 110 mil), enquanto o de condenados quase quadruplicou (passou
de cerca de 20 mil para cerca de 70 mil). No caso dos reclusos, o aumento foi, contudo, muito mais
ligeiro: passou de cerca de 8 mil, em 1960, para quase 11 mil, em 2008. O fortíssimo aumento dos
arguidos e dos condenados não foi, assim, acompanhado por uma variação equivalente de reclusos (com
um aumento mais moderado, de 25%)”. Uma das razões principais pelas quais se julga que estes números
merecem ponderação prende-se com o facto de o maior crescimento do número de condenados face ao
número de reclusos poder indiciar uma certa compreensão das desvantagens associadas à pena privativa
da liberdade, e a adopção crescente das penas alternativas, das penas de substituição e das medidas
especiais ou incidentes na execução da pena de prisão. Também os Autores (ob. cit., p. 86) sublinham
este aspecto: “como é evidente, o ser-se condenado pela prática de um crime não implica necessariamente
a prisão. Em 2006, a relação é de 2 reclusos por cada 10 condenados, metade do que foi observado na
década de 60 (4 reclusos por 10 condenados)”.

586
celeridade, de proximidade, de menor traumatismo, de menor custo”. O Autor
manifesta, porém, a preocupação de que essa “souplesse na reacção social não
desconheça os princípios fundamentais do processo equitativo”1036.
Sem prejuízo de o fundamento poder ser mais amplo do que a busca da
economia1037 – o que remete, necessariamente, para as considerações antes tecidas sobre
o fundamento e as finalidades da justiça restaurativa –, sempre se deverá afirmar a
ligação do surgimento dos mecanismos de solução alternativa de litígios a um aumento
de demanda da resposta judicial e a uma necessidade de encontrar outras vias de
resposta mais económicas e mais céleres. Todavia, essas outras vias de resposta, e é esse
o ponto que agora se quer sublinhar, não serão necessariamente piores do que as dadas
pela justiça tradicional, nomeadamente na medida em que contribuam, como sustenta
Boaventura de SOUSA SANTOS, para a democratização do próprio acesso à justiça.
Ou seja: não é apenas a solução do conflito que passará, pelo menos à luz do critério da
titularidade do poder de decisão, a ser mais democrática (por mais que esse possa não
ser o único critério ou o critério decisivo para se aferir da democraticidade da solução),
mas é também o acesso aos próprios mecanismos de solução dos conflitos que se torna
mais democrático, na medida da sua menor onerosidade e complexidade1038.

1036
Robert CARIO, “Potentialités et ambiguïtés de la médiation pénale – Entre Athéna et Thémis”, in La
Médiation Pénale – Entre Répression et Réparation, direction de Robert Cario, Paris: L’Harmattan, 1997,
p. 11 ss. O Autor analisa a origem da mediação penal em França, vendo as suas origens no instituto da
“conciliation pénale” no início dos anos oitenta, a qual foi “rebaptizada mediação penal e consagrada
mais tarde pelo legislador de 4 de Janeiro de 1993”. Com interesse, afirma ainda que o surgimento da
mediação penal “repousa sobretudo na inaptidão da nossa justiça para lidar com as emoções. Está aí a
riqueza da mediação, mas também a sua complexidade e a sua ambiguidade, particularmente no campo da
justiça criminal”.
1037
E com a ressalva, já antes feita, de que não é evidente que a mediação equivalha a uma poupança de
meios. Como já consta das recomendações resultantes do XIII Congresso Internacional de Direito Penal
(promovido pela AIDP em 1984) e atinentes à adopção de soluções de desjudiciarização e de mediação,
elas podem ser defendidas como “meio para reduzir os custos com a administração da justiça penal. Mas
este objectivo pode ser ilusório no contexto da economia nacional, pois que habitualmente a
desjudiciarização com intervenção apenas transfere os custos do sistema penal para outras entidades do
sector público ou privado” [AIDP/IAPL, Résolutions des Congrès de l’Association Internationale de
Droit Pénal (1926-2004), Nouvelles Études Pénales, n.º 20, 2009, Toulouse: Éditions Érès, 2009, p. 127].
1038
Boaventura de SOUSA SANTOS, no contexto de uma reflexão mais ampla sobre “medidas de
democratização” (às quais não deixa, porém, de imputar “limites óbvios”), refere que “as reformas que
visam a criação de alternativas constituem hoje uma das áreas de maior inovação na política judiciária.
Elas visam criar, em paralelo à administração da justiça convencional, novos mecanismos de resolução de
litígios cujos traços constitutivos têm grandes semelhanças com os originalmente estudados pela
antropologia e pela sociologia do direito, ou seja, instituições leves, relativa ou totalmente
desprofissionalizadas, por vezes impedindo mesmo a presença de advogados, de utilização barata, se não
mesmo gratuita, localizados de modo a maximizar o acesso aos seus serviços, operando por via expedita e
pouco regulada, com vista à obtenção de soluções mediadas entre as partes” (Pela Mão de Alice – O
Social e o Político na Pós-Modernidade, Porto: Edições Afrontamento: 1999, 7.ª edição, p. 154). O Autor
não deixa, porém, de chamar a atenção para os riscos inerentes à adopção destes novos mecanismos,
sobretudo em contextos de desigualdade, nomeadamente económica: “nestas condições não me parece

587
A mediação penal comporta, porém, várias especificidades face aos restantes
mecanismos de solução alternativa de litígios e às outras formas de mediação1039. Elas
advêm das especificidades que o crime assume enquanto conflito: a sua particular
gravidade e a sua relevância em um plano que não é puramente individual, antes se
repercutindo na comunidade1040. O que, antecipe-se a ideia na sua forma mais simples,
origina especiais problemas à transposição dos mecanismos de solução alternativa de
conflitos para a área penal.
Por outro lado, deve reconhecer-se, tal como já se admitiu quando se procurou
delimitar o sentido da justiça restaurativa, que também inexiste unanimidade na
caracterização da mediação penal1041, nomeadamente na definição das suas finalidades.

possível que o Estado possa, através de medidas de dinamização da administração da justiça, absorver em
futuro próximo estas formas de justiça privada, como por vezes se designam. Quando muito, é possível
que os grupos neocorporativistas mais organizados venham a ter poder político suficiente para impor
tutelas jurisdicionais diferenciadas mais afeitas à dinâmica interna dos seus interesses”. Todavia, acaba
por concluir que “não me parece tão pouco que estes mecanismos de resolução dos litígios à margem do
controlo do Estado sejam intrinsecamente negativos ou atentatórios da democracia. Podem, pelo
contrário, ser agentes de democratização da sociedade. Tudo depende do conteúdo dos interesses em jogo
e do seu comércio privado no processo de desenvolvimento democrático da sociedade no seu todo” (ob.
cit., p. 156).
1039
Elena HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos GREGORIO (Resolución Alternativa de Disputas y
Sistema Penal, cit., p. 65 ss) elencam algumas das especificidades da mediação penal. Apesar de elas
parecerem meramente tendenciais – ou seja, haverá casos em que algumas dessas características
distintivas não estão presentes na mediação penal, o que a aproxima das outras formas de mediação –,
talvez possa afirmar-se que na mediação penal nem sempre há uma relação prévia entre as partes
(diversamente do que sucede por exemplo na familiar, na comercial, na laboral); o desequilíbrio de poder
será em regra maior; são convenientes as reuniões preliminares separadas para se explicar o
procedimento, gerar um clima de confiança e verificar as condições para o encontro; a disputa é menos
sobre a existência de responsabilidade e mais sobre o modo de reparar os danos causados; é mais
importante a qualidade do diálogo e menos relevante a obtenção de um acordo; a neutralidade
habitualmente apontada como essencial para o mediador não é, na mediação penal, neutralidade quanto
ao crime (“a sensibilidade perante as necessidades da vítima impõe que se reconheça directamente que lhe
foi infligido um mal (…); o processo de conduzir à responsabilização dos agressores requer, muitas vezes,
que eles sejam ajudados a admitir o seu mal e a sua responsabilidade”), mas antes imparcialidade “quanto
aos indivíduos como seres humanos, merecedores de igual respeito”.
1040
Neste sentido, veja-se a afirmação de Guadalupe Pérez SANZBERRO de que a ideia que preside a
estes mecanismos de pacificação de conflitos criminais não é sobretudo a de garantir a reparação dos
danos materiais causados à vítima, mas antes a de permitir que o agente do crime assuma a sua
responsabilidade e repare os danos, em moldes que permitam o afastamento da pena, ou sejam um seu
complemento (in Reparación y conciliación en el sistema penal cit., p. 16).
1041
Nas palavras de Fernando Vásquez-Portomeñe SEIJAS, que aqui se tomam como exemplo, “a
mediação penal é uma instituição poliédrica e complexa. O grau de vinculação dos programas ao sistema
judicial, a concretização dos seus fins ou objectivos prioritários, a sua catalogação como novo paradigma
penal, a definição da espécie e natureza dos ilícitos que podem ser abrangidos…são questões de difícil
análise sob uma perspectiva reducionista” (in “La mediación entre la víctima y el agresor como forma de
resolución de conflictos en el derecho penal de adultos”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXXVI,
Coimbra: Univ de Coimbra, 2010, p. 325). Pode afirmar-se, porém, uma certa pacificidade na aceitação
de que a mediação penal comporta quatro fases principais: uma fase de admissão (em que se seleccionam
os conflitos relativamente aos quais se deve oferecer a possibilidade de mediação); uma fase de
preparação (em que assumem relevo os contactos preliminares entre o mediador, por um lado, e a vítima
e o agente, separadamente, por outro); uma fase de mediação propriamente dita (caracterizada pela
partilha, directa ou indirecta, sobre o acontecimento criminal e a forma de reparar os danos dele

588
Há, por isso, que esclarecer que se partirá aqui do princípio de que a mediação penal,
enquanto instrumento da justiça restaurativa, é conformada pelos fins que em momento
anterior se defendeu serem os fins da justiça restaurativa (sobretudo, a pacificação do
conflito interpessoal através de uma reparação dos danos da vítima favorecida pela
responsabilização voluntária do agente).
Finalmente, esclareça-se que se tratará apenas da mediação penal enquanto
intrumento actual da proposta restaurativa, não presidindo a esta reflexão qualquer
pretensão de uma sua análise, porventura comparatística, enquanto modelo ancestral de
solução de conflitos1042.
Mais uma vez, julga-se que se pode encontrar no pensamento de Emmanuel
LEVINAS um fundamento filosófico para a compreensão da mediação enquanto
mecanismo alternativo de resolução de litígios, e especificamente da mediação penal
enquanto instrumento da justiça restaurativa: “a relação com outrem não anula a
separação. Não surge no âmbito de uma totalidade e não a instaura integrando nela Eu
e o Outro. A conjuntura do frente a frente já não pressupõe a existência de verdades
universais, onde a subjectividade possa incorporar-se e que bastaria contemplar para
que Eu e o Outro entrem numa relação de comunhão. É preciso, sobre este último
ponto, defender a tese inversa: a relação entre mim e o outro começa na desigualdade
de termos, transcendentes um em relação ao outro, onde a alteridade não determina o
outro formalmente como a alteridade de B em relação a A que resulta simplesmente da
identidade de B, distinta da identidade de A. A alteridade do Outro, aqui, não resulta
da sua identidade, mas constitui-a: o Outro é Outrem. Outrem enquanto outrem situa-
se numa dimensão da altura e do abaixamento – glorioso abaixamento; tem o
semblante do pobre, do estrangeiro, da viúva e do órfão e, ao mesmo tempo, do senhor
chamado a bloquear e a justificar a minha liberdade. Desigualdade que não aparece ao
terceiro que nos contraria. Significa precisamente a ausência de um terceiro capaz de

decorrentes) e, finalmente, uma fase de acompanhamento (em que se deve monitorizar o cumprimento do
acordo e a efectiva pacificação do conflito).
1042
A eleição da mediação penal tal como ela é hoje não significa uma desconsideração da relevância da
sua história ou da sua importância no passado, mas tão-somente a afirmação de que ela não deve
confundir-se, nos seus contornos actuais, com experiências passadas a que com frequência os cultores da
proposta restaurativa recorrem com o intuito de afirmar o seu carácter pioneiro e dominante na solução de
conflitos ao longo da história da humanidade. Nesse sentido, cfr., a título de exemplo, Miguel Núñez PAZ
(“Origen y fundamentos criminológicos de la mediación”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano
17, n.º 80, set-out. 2009, p. 373), para quem “a mediação como alternativa na resolução de conflitos, em
que uma terceira parte ajuda os envolvidos na contenda a resolverem os seus conflitos e a chegarem às
suas próprias decisões, não é uma invenção nova, talvez seja tão antiga como a própria humanidade. A
mediação (…) não é uma criação actual, mas sim uma adaptação daquilo que já existia em outras épocas e
culturas sociologicamente diferentes”.

589
abraçar-me a mim e ao Outro, de maneira que a multiplicidade original é constatada
no próprio frente a frente que a constitui”1043. O encontro de diferentes que se procura
com a mediação penal é um encontro em que não deve haver o abraço (porventura
asfixiante) de um terceiro que representa o Estado, porque o que se deseja é antes um
estender de braços de cada um dos intervenientes em direcção aos outros, com o auxílio
de um terceiro pouco interventivo que é o mediador1044.
Em outro plano, porventura mais prosaico, a mediação reparadora pode ser
entendida, na clara e sucinta definição de Gema MARTÍNEZ, como “um processo de
comunicação em que a vítima e o infractor chegam a um acordo, com a ajuda de um
terceiro, que supõe uma reparação dos danos causados, materiais e imateriais e que,
caso a caso, afectará o processo penal – entendido este em sentido amplo”1045. Talvez se
pudesse, porém, substituir com vantagem a referência à obtenção de um acordo pela
menção à procura séria de um acordo e a referência à cumulativa reparação dos danos
materiais e imateriais pela menção a uma reparação dos danos vista como satisfatória
pela vítima.
Uma tendência que se vem acolhendo na doutrina restaurativa é a de procurar
elencar os elementos caracterizadores da mediação, ao invés de “fixar” uma definição

1043
Emmanuel LEVINAS, Totalidade e Infinito, Biblioteca de Filosofia Contemporânea, edições 70, trad.
De José Pinto Ribeiro, 1988 (edição original de 1980), p. 229. Na parte desta obra que dedica às
conclusões, o Filósofo retorna àquela ideia: “a transcendência ou a bondade produz-se como pluralismo.
O pluralismo do ser não se produz como uma multiplicidade de uma constelação exposta perante um
olhar possível, porque assim já ela se totalizaria, se consolidaria em entidade. O pluralismo realiza-se na
bondade que vai de mim ao outro em que o outro, como absolutamente outro, pode apenas produzir-se
sem que uma pretensa visão lateral sobre esse movimento tenha qualquer direito de se apoderar de uma
vontade superior à que se produz na própria bondade (…). A unidade da pluralidade é a paz, e não a
coerência de elementos que constitui a pluralidade. A paz não pode, pois, identificar-se com o fim dos
combates por falta de combatentes, pela derrota de uns e a vitória de outros, isto é, com os cemitérios ou
os impérios universais futuros. A paz deve ser a minha paz, numa relação que parte de um eu e vai para o
Outro, no desejo e na bondade em que o eu ao mesmo tempo se mantém e existe sem egoísmo” (últ. ob.
cit., ps. 285-6).
1044
O conceito de “encontro” supõe que cada um dê um passo em direcção ao(s) outro(s). Se
considerarmos, como Francesco CARNELUTTI (in Las Misérias del proceso penal cit., p. 14), que “o
crime não é mais do que uma explosão de egoísmo (…): o outro não conta; o que conta, unicamente, é o
próprio”, compreendemos a importância de cada um “sair de si” para procurar aproximar-se do outro,
compreendendo-se a si próprio mas também compreendendo o outro. A importância de um encontro
efectivo com o “outro” é também sublinhada por António HESPANHA, que questiona a forma como a
“crise da modernidade facilita ou não uma aproximação mais complexa e rica do Outro”, a partir do
reconhecimento de que “o direito – como todos os outros sistemas que impõem, de fora, normas ao
comportamento – são, inevitavelmente, dispositivos que reduzem a complexidade das relações inter-
pessoais, que encaram as pessoas de um ponto de vista meramente exterior e que, assim, prejudicam um
seu conhecimento total” (in “Que espaço deixa ao direito uma ética da pós-modernidade?”, Themis:
Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, ano VIII, n.º 14, 2007, p. 59).
1045
Gema MARTÍNEZ, La mediación reparadora cit., p. 2. A Autora acrescenta que a mediação deve
compreender-se no âmbito dos “mecanismos de controlo social, como conceito fundamental sociológico,
antropológico e criminológico”.

590
rígida. Seriam essencialmente quatro: em primeiro lugar, o procedimento radicado na
participação voluntária do(s) agente(s) do crime e da(s) sua(s) vítima(s); em segundo
lugar, a intervenção de uma instância de mediação que visa facilitar a comunicação e
garantir a segurança dos intervenientes, mas que não detém autoridade decisória do
conflito; em terceiro lugar, a existência de um processo comunicacional orientado para a
expressão dos sentimentos e necessidades dos intervenientes; finalmente, a procura de
uma pacificação do conflito através da responsabilização e da reparação1046.

2.A mediação penal: um “quase direito” ou uma opção estadual na “gestão do


crime”?

Em rigor, a interrogação para a qual se pretende agora encontrar resposta poderia


ter uma formulação mais ampla. O que devia questionar-se seria, antes, a compreensão
do acesso a práticas restaurativas como um verdadeiro direito (ou não) dos directamente
atingidos (enquanto agressores ou enquanto vítimas) pela prática de um crime1047. A
verdade, porém, parece ser a de que a gradual e generalizada expansão da mediação
penal enquanto instrumento da justiça restaurativa – e a sua metamorfose de ferramenta
principal em ferramenta quase exclusiva –, aliada à compreensão de que na maioria dos
países do nosso contexto cultural ela constitui, de facto, o modo de actuação da justiça
restaurativa, parece aconselhar, de novo, o centrar do problema apenas nessa prática
restaurativa que é a mediação penal.
Às duas hipóteses de configuração da mediação (como direito dos intervenientes
no conflito ou como oferta discricionária do Estado) subjazem, deve-se sublinhar,

1046
Referindo, também, quatro elementos caracterizadores da mediação penal (que nem sempre são,
porém, objecto de concretização semelhante à que foi perfilhada), cfr. Fernando SEIJAS, “La mediación
entre la víctima y el agresor como forma de resolución de conflictos en el derecho penal de adultos”,
Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXXVI, Coimbra: Univ de Coimbra, 2010, p. 326. Jacques
FAGET, por seu turno, caracteriza a mediação penal sobretudo em função dos seus “objectivos
criminológicos”, entre os quais destaca a reparação do dano causado à vítima, o “pôr fim” ao conflito
resultante da infracção e a contribuição para a reintegração do agente (“Le cadre juridique et éthique de la
médiation pénale”, in La Médiation Pénale – Entre Répression et Réparation, direction de Robert Cario,
Paris: L’Harmattan, 1997, p. 42 ss).
1047
Pablo GALAIN PALERMO recorre precisamente ao conceito de “direito” da vítima e do agente do
crime a “formas de consenso”: “no caso da vítima, seu direito estende-se não somente a sua participação
na resolução do conflito, como também à possibilidade de obter um acordo de reparação que melhor
satisfaça as suas necessidades após o delito. O autor, por sua vez, tem direito de levar a cabo um
comportamento positivo posterior que melhore sua situação frente ao sistema penal, desde que possa ser
valorado, segundo os fins da pena, como um ato pessoal de reconhecimento da vítima e da norma,
permitindo prescindir da execução da pena” (Mediação penal como forma alternativa de resolução de
conflitos: a construção de um sistema penal sem juízes”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge
de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra Editora: 2010, ps. 841-2).

591
compreensões diversas do seu fundamento e das suas finalidades. Aqueles que vêem na
mediação penal um instrumento a que o Estado pode recorrer para reagir ao crime em
nome de uma gestão mais eficiente dos recursos – promovendo a celeridade e a
economia de custos – configuram-na enquanto opção estadual para enfrentar uma
expansão da criminalidade a que o modelo tradicional tem dificuldade em dar
resposta1048. Pelo contrário, aqueles que sobrelevam na mediação penal o seu potencial
de contribuição para uma forma mais participada de democracia, para um crescimento
em termos de civilidade relacionado, simultaneamente, com a capacidade de gerir as
suas próprias razões e interesses e com a compreensão e tolerância face às razões e
interesses do outro, tendem a encarar a mediação como um “quase direito” do
cidadão1049.
Grosso modo, julga-se que se podem distinguir duas linhas principais de
configuração da mediação penal, uma “de orientação tecnocrática e actuarial”, outra que
pressupõe uma “orientação ética”1050. Entre os Autores que estudam a justiça

1048
Sobre a expansão da demanda judicial e sobre as dificuldades que o Estado sente em lhe responder,
cfr. Boaventura de SOUSA SANTOS, que elenca vários factores dos quais resultou “uma explosão da
litigiosidade à qual a administração da justiça dificilmente poderia dar resposta. Acresce que esta
explosão veio a agravar-se no início da década de 70, ou seja, num período em que a expansão económica
terminava e se iniciava uma recessão, para mais uma recessão com carácter estrutural. Daí resultou a
redução progressiva dos recursos financeiros do Estado e a sua crescente incapacidade para dar
cumprimento aos compromissos assistenciais e providenciais assumidos para com as classes populares na
década anterior (…). Uma situação que dá pelo nome de crise financeira do Estado e que se foi
manifestando nas mais diversas áreas de actividade estatal e que, por isso, se repercutiu também na
incapacidade do Estado para expandir os serviços de administração da justiça de modo a criar uma oferta
de justiça compatível com a procura entretanto verificada” (Pela Mão de Alice – O Social e o Político na
Pós-Modernidade, Porto: Edições Afrontamento: 1999, 7.ª edição, p. 145).
1049
Um dos Autores que tem dado conta desta clivagem no entendimento da mediação penal e que tem
procurado fundá-la em uma base que não é a da pura funcionalidade é Adolfo CERETTI (veja-se, por
exemplo, o seu “Mediazione penale e giustizia. In-contrare una norma”, in Studi in Ricordo di
Giandomenico Pisapia, vol. III, Criminologia, Giuffrè: Milão, 2000, p. 717 ss, ou também o seu artigo
“Mediazione: una ricognizione filosofica”, La mediazione nel sistema penale minorile, Ed. L. Picotti,
Padova: Cedam, 1998, p. 19 ss). Antes, já Jean Pierre BONAFÉ-SCHMITT expressara o seu
entendimento de que a mediação penal não contribui só para uma justiça mais rápida e mais barata, mas
sim para uma melhor justiça (cfr. o seu La médiation: Une autre justice, Paris: Syros Alternatives, 1992,
p. 25 ss).
1050
Cfr. Anabela MIRANDA RODRIGUES (“A propósito da introdução do regime de mediação no
processo penal”, Revista do Ministério Público, ano 27, Jan-Mar. 2006, n.º 105, p. 130). Também
Alessandro BERNARDI (“La evolución de la política criminal italiana entre opciones represivas y
soluciones minimalistas”, Cahiers de Défense Sociale, 2003, p. 90) sublinha a convergência de uma
pluralidade de argumentos para a sustentação da proposta restaurativa, afirmando que «parece evidente
que o crescente êxito conhecido pelos modelos de justiça inspirados na reparação e na mediação no
âmbito criminal se deve não só a argumentos “ideais” invocados pelos defensores da abolição do sistema
penal (desumanidade e irracionalidade da prisão, burocratização e compartimentação dos procedimentos e
dos instrumentos, despersonalização da relação entre o imputado e os órgãos da justiça penal,
desigualdade do sistema repressivo (…); também existem razões de ordem estritamente “prática”
(exigência de chegar a uma solução legal também em casos de conflitos de modesta e média gravidade,
agilidade e rapidez dos modelos de justiça orientados para uma solução negociada e de transacção do
conflito)». O Autor parece justificar um certo êxito da mediação precisamente por força da intersecção

592
restaurativa e a mediação penal como seu instrumento principal, parece preponderar,
porém, esta última compreensão. Autores como Thomas TRENCZEK, cujo pensamento
merece ser destacado entre os cultores da proposta restaurativa na Alemanha, não
hesitam em associar a justiça restaurativa a “um novo paradigma restitutivo de justiça,
eticamente fundado, que dá uma importância especial à reconciliação das partes do
conflito”1051.
Com todas as cautelas que a associação de ideias justifica, talvez não seja
totalmente desadequado o relacionamento deste nódulo problemático com a questão
maior da clivagem entre o pensamento utilitarista e o pensamento ético, tão claramente
sintetizada por John RAWLS em defesa da sua teoria da justiça como equidade, a partir
de uma compreensão ética da prioridade do justo sobre o bem. Nas palavras do Autor,
“implícita na contraposição entre o utilitarismo clássico e a teoria da justiça como
equidade está uma diferença na concepção subjacente da sociedade. Num caso,
concebemos a sociedade bem ordenada como uma estrutura de cooperação que visa
obter vantagens recíprocas, regulada por princípios que são escolhidos por sujeitos
colocados numa situação inicial que obedece às regras da equidade; no outro, a
sociedade é vista como a administração eficiente de recursos sociais, que se destina a
maximizar a satisfação do sistema de desejos construído por um espectador imparcial a
partir de múltiplos sistemas individuais, aceites como dados”1052.
Ora, se não há aqui a pretensão de adentramento reflexivo dessa questão maior,
sempre se julga necessário o enquadramento, nela, da discussão teórica sobre o sentido
e a finalidade da mediação penal. Parece inequívoca a afirmação de que existem
distintas compreensões teóricas da mediação penal, assim como parece clara a
verificação de que em espaços diversos (ou, por vezes, no mesmo espaço) coexistem
programas de mediação penal conformados a partir de premissas não coincidentes. Ou
seja: aquilo que se pretende obter com a mediação penal nem sempre é o mesmo – ou

daquelas distintas compreensões: uma exigência “idealista” de menos punição associada ao abolicionismo
e uma outra, “pragmática”, de simplificação e atenuação do funcionamento do aparelho punitivo estadual.
A estas “tendências” deve juntar-se a progressivamente mais forte reivindicação vitimológica de
reparação dos danos causados à vítima. Em sentido que se julga não muito distante, também John
BRAITHWAITE afirma que a justiça restaurativa exerce um certo fascínio quer sobre os liberais, quer
sobre os conservadores, na medida em que se para aqueles significa um modelo de reacção ao crime
menos limitador da liberdade individual; para estes surge associado a uma poupança para o erário público
e a um fortalecimento da posição da vítima (in Restorative Justice and Responsive Regulation, Oxford
University Press: 2002, p. 10).
1051
Thomas TRENCZEK, “Victim-Offender-Reconciliation: the danger of cooptation and a useful
reconsideration of Law Theory”, Contemporary Justice Review, 2002, vol. 5 (1), p. 30.
1052
John RAWLS, Uma Teoria da Justiça cit., p. 48.

593
então, o que também pode suceder, o que se pretende está à partida limitado por aqueles
que são os recursos disponíveis –, e isso contribui para a conformação dos distintos
programas de mediação penal.
Assim, limitando-se para já a reflexão a uma consideração teórica dessa
diversidade, talvez possam distinguir-se dois principais modelos de mediação penal: o
primeiro, mais exigente, orientado para uma oferta de pacificação individual e da
relação interpessoal abalada pelo conflito criminal que fica nas mãos dos sujeitos1053
desse conflito; o segundo vocacionado para uma resolução mais célere e menos
dispendiosa do conflito1054, alicerçado na ideia de que a mediação penal se destina aos
delitos considerados menores, relativamente aos quais não se justificam todas as
garantias da justiça penal tradicional. Ao primeiro poderia chamar-se modelo de
mediação penal centrado na relação (inter)pessoal, o segundo poderia denominar-se
modelo de mediação penal orientado para a eficiência na gestão dos conflitos.
Deve abrir-se, neste ponto, um espaço para se dar conta da relevância da
questão. Segundo se julga, muitas das críticas à justiça restaurativa, centradas nas suas
más práticas e na insatisfação que geram quer na vítima, quer no agente, justificam-se
pelo facto de as práticas serem configuradas numa perspectiva sobretudo utilitarista,
apesar de se invocarem fundamentos éticos e finalidades de pacificação individual e
interpessoal. Surge, deste modo, uma contradição, que faz com que os resultados sejam
insatisfatórios porque não conduzem à obtenção das finalidades esboçadas1055.

1053
A razão pela qual este conceito de “sujeito” merece ser sublinhado prende-se com a verificação de
que, se a doutrina penal se vem há muito pronunciando contra a “coisificação” da pessoa, essa rejeição é
porventura ainda mais enfática entre os cultores da justiça restaurativa e da mediação penal, que tomam
os sujeitos do conflito também como sujeitos da decisão. Sobre o conceito de “coisificação”, tenha-se em
conta a afirmação de Augusto SILVA DIAS de que se trata da “forma mais radical de menosprezo e
objectivação do Outro. Significa utilizá-lo como instrumento, degradá-lo à condição de objecto ou de
mercadoria ao nível de algo que é destituído de dignidade e concebido como valor de troca”. E o Autor
acrescenta que “nas situações de coisificação o subjugado é tratado como objecto de dominação ou
instrumento de realização do outro, sendo-lhe recusada qualquer dignidade, qualidade ou substância
humanas” (“Reconhecimento e coisificação nas sociedades contemporâneas. Uma reflexão sobre os
limites da intervenção penal do Estado”, in Liber Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração
do 70º aniversário: Estudos de Direito e Filosofia, org. Augusto Silva DIAS et alia, Coimbra: Almedina,
2009, p. 117).
1054
Não se veja, porém, numa contraposição entre a fundamentação através da eficiência associada à
celeridade e uma outra fundamentação que se poderia dizer “ética” qualquer desconsideração da
relevância daquela celeridade para uma solução dos conflitos criminais que possa ainda considerar-se
justa. Como, em outro contexto, foi afirmado por Anabela Miranda RODRIGUES, “tempo e justiça
tornam-se aliados. A exigir soluções imaginativas. Flexíveis e céleres, desde logo; mas, do mesmo passo,
rigorosas no respeito pelos direitos fundamentais” (“A fase preparatória do processo penal – tendências
na Europa. O caso português”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Stvdia Jvridica
61, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 941).
1055
Para além de coerentes entre si, as finalidades e as práticas têm de ser claras e explicadas de forma
transparente aos intervenientes. Assim, por exemplo, WRIGHT, Martin/MASTERS, Guy (“Justified

594
Mesmo no seio daquele primeiro modelo – aquele que é conformado pela
finalidade de oferta de uma efectiva possibilidade de pacificação individual ou de
pacificação do conflito interpessoal1056 – podem distinguir-se vários “graus de
exigência”, sobretudo em função dos requisitos que se imputem às fases de admissão e
de preparação. Assim, são pensáveis programas em que o encontro (directo ou
indirecto) vítima-agressor só pode ocorrer depois de um amplo trabalho individual e
colectivo destinado a garantir que esse encontro ocorra nas melhores condições
possíveis1057; mas admitem-se também hipóteses em que o cerne é colocado na actuação
do mediador já em contexto de mediação propriamente dita (ainda que, naturalmente,
lhe deva ter já cabido um trabalho prévio de verificação da adequação da mediação ao
caso, esclarecimento dos eventuais intervenientes e comprovação das condições de
segurança).
O segundo modelo tem na base o entendimento de que a mediação penal mais
não é do que uma outra forma de diversão, que permite uma solução mais simples do
caso sem o funcionamento habitual (completo) das instâncias formais de controlo.
Nessa medida, o que se pretende é que um caso que seria um caso criminal fique

criticism, misunderstanding, or important steps on the road to acceptance”, Restorative Justice –


Theoretical Foundations, Eds. Elmar Weitekamp/Hans-Jürgen Kerner, Devon: Willan Publishing, 2002,
p. 52) sustentam que uma forma de evitar a insatisfação legítima das vítimas é explicar-lhes que o
procedimento visa, para além da prossecução dos seus interesses, favorecer a integração ou a reeducação
do agente, sendo que os estudos confirmam que a maioria das vítimas, quando esclarecida, aceita tais
objectivos e dispõe-se a cooperar.
1056
Este parece ser o modelo que faz sobressair na mediação penal as notas de “intercâmbio” ou “troca”
entre o agente e a vítima, assim como a de “aproximação”. Neste sentido, cfr., a título de exemplo,
Patricia Esquinas VALVERDE, “La mediación entre la víctima y el agresor como forma alternativa de
resolución del conflicto en el sistema judicial penal de adultos: una posibilidad también viable en
España?”, Revista Penal, n.º 18, 2006, p. 84. A Autora (ob. cit., p. 57) define a mediação penal, em
moldes com que genericamente se concorda, como “um processo não contencioso (em princípio),
informal, voluntário e baseado na confiança entre as partes, através do qual os participantes tratam de
resolver o seu conflito de modo autónomo, com a ajuda de um terceiro neutral que conhece as condições
fácticas e jurídicas dos factos mas que carece de capacidade para decidir”. Apesar de se não vislumbrar
nesta tentativa de definição a referência à reparação lata dos danos enquanto objectivo, não se crê que ela
tenha um cunho exclusivamente procedimental, desde logo porque se aponta a finalidade de resolução do
conflito de modo autónomo, o que tende a englobar a adopção de comportamentos genericamente
reparadores.
1057
Elena HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos GREGORIO (Resolución Alternativa de Disputas y
Sistema Penal, Buenos Aires, Ad-Hoc: 1998, p. 129 ss) optam por autonomizar esta hipótese, a que
chamam “modelo de desenvolvimento do caso através do trabalho social”, referindo que ele se baseia no
reconhecimento de que “poucas pessoas estão preparadas para uma confrontação vítima-agente. É
trabalho do mediador auxiliar os participantes no reconhecimento das suas necessidades. Podem requerer
o auxílio de outros profissionais antes de estarem em condições de actuar de uma forma que seja
aproveitável. As vítimas podem precisar de resolver questões traumáticas com um terapeuta. Um infractor
que nega ter dependido de drogas pode solicitar uma avaliação antes de conseguir enfrentar a sua vítima
(…). É característico dos encontros vítima-agressor que eles sejam mais benéficos quando os
participantes entram no lugar onde se levará a cabo a mediação depois de terem cumprido os seus
próprios deveres de autoajuda, centrados naquilo que pretendem obter e naquilo em que estão dispostos a
contribuir para o processo de mediação”.

595
resolvido da forma mais eficiente numa perspectiva global do sistema, o que gera a
ideia de que uma mediação penal bem sucedida é aquela que culmina com um acordo. O
sucesso afere-se aqui sobretudo pela circunstância de esse acordo pôr cobro a um
processo criminal, doravante considerado resolvido sem que tenha sido necessária a
intervenção de um tribunal. Nos programas postos em funcionamento com base neste
modelo não se fazem, nomeadamente, exigências específicas de encontros prévios
individuais do mediador com o agente e com a vítima; fixam-se prazos-limite a partir
dos quais, inexistindo acordo, cessa a possibilidade da mediação; admitem-se, de modo
explícito ou não, formas de incentivo à obtenção do acordo, nomeadamente permitindo
que ela condicione a remuneração do mediador1058.
Não se pretende nesta sede a afirmação, porventura simplista, de que um modelo
é significativamente melhor do que o outro: em contextos de recursos escassos, a
eficiência na gestão dos mesmos é um valor a não desprezar. E a forma como cada
modelo é concretizado só pode ser avaliada à luz dos objectivos que lhe presidem.
Todavia, o que já se julga dever deixar-se claro é que, no enfoque daqueles que são o
fundamento e as finalidades da justiça restaurativa, o único modelo de mediação penal
coerente é o modelo de mediação penal centrado na relação interpessoal. Este, ao
assumir como preocupação nuclear a oferta ao agente do crime e à sua vítima de uma
possibilidade de pacificação do conflito interpessoal, reclama para a mediação penal o
sentido da resposta restaurativa. Mas este é também um modelo que conduzirá, em
regra, a processos de mediação mais longos, com mediadores que não propõem
soluções conducentes ao acordo mas se limitam a facilitar a comunicação dos
envolvidos, com mediadores que reconhecem a necessidade de tempo para se
transformarem atitudes ou comportamentos e para se compreender e melhorar o sentido
das relações interpessoais. O segundo, o modelo de mediação penal orientado para a
eficiência na gestão dos conflitos, é em primeira linha guiado por outros interesses que
não o interesse da vítima na reparação ampla dos danos que sofreu e o interesse do

1058
Mesmo com base em uma diversa (e tripartida) classificação dos modelos de mediação penal, Elena
HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos GREGORIO (Resolución Alternativa de Disputas y Sistema
Penal, Buenos Aires, Ad-Hoc: 1998, p. 133) também procurar caracterizar este modelo, que denominam
de “modelo de mediação pura”: “neste modelo, mais parecido com o da mediação civil, depois de
recebido o processo envia-se uma carta à vítima e ao agressor”; nessa carta explicam-se de forma sucinta
as finalidades e a tramitação da mediação, inclusivamente o seu prazo. Como sublinham os Autores, «os
mediadores não têm um contacto prévio com as partes até elas se apresentarem na mediação e não
existem reuniões preliminares. Atribuem-se aos participantes um mediador e uma sala de mediação e as
vítimas encontram-se cara a cara com o agressor “a frio” e sem preparação prévia por parte do mediador.
Este pode descrever-se como um modelo de mediação pura, pois é levado a cabo com pura mediação e
sem nenhum trabalho social».

596
agente em neutralizar os males que originou, de modo a obter, quer alguma paz
individual, quer algum conforto na sua reintegração comunitária. Não é, nesta medida,
um modelo coerente com o sentido essencial que se atribuiu à justiça restaurativa. Este
modelo é primeiramente regido pelo interesse colectivo na resposta eficiente a conflitos
penais de gravidade menor, ainda que possa em alguns caso cumprir-se aquela
finalidade de restauração. Ora, nesta medida, a existência de programas de mediação,
ainda que assim conformados a partir do modelo orientado para a eficiência na gestão
dos conflitos, pode transportar algumas vantagens1059.
O primeiro problema surge, porém, quando se verifica que a adopção daquele
modelo centrado na eficiência na gestão dos recursos, para além de em muitos casos não
lograr uma pacificação efectiva do conflito, antes o agudiza na medida em que cria uma
expectativa de reparação que depois não se cumpre. Um acordo que depois não se
cumpre – ou um acordo que se cumpre mas que não satisfaz verdadeiramente aqueles
que nele foram intervenientes, por exemplo porque foi precipitado e irreflectido –, ao
invés de permitir aquela pacificação, pode aprofundar o conflito.
Mas a este risco acresce um segundo nódulo problemático: este modelo
orientado para a eficiência na gestão dos conflitos, se ainda é pensável no contexto da
criminalidade menos grave e dos mecanismos de diversão, deixa de fazer sentido
quando se pondera a aplicação da mediação penal aos crimes mais graves. Por um lado,
porque é o seu próprio substrato que falha: a ideia de uma solução rápida e barata que
evite o julgamento penal deixa de ser pertinente. Por outro lado, porque esta mediação
penal no âmbito dos crimes mais graves, se levada a cabo sem as devidas cautelas (e o
imprescindível investimento) nos níveis da admissão, preparação e mediação
propriamente dita, é susceptível de originar riscos acrescidos, quer para os
intervenientes, quer para a comunidade. Sublinhe-se, portanto, que a mediação penal
pós-sentencial pensável para alguns dos mais graves de todos os crimes é totalmente

1059
A terminologia que agora se adoptou para descrever duas grandes formas de compreender a mediação
penal não ilude a existência de outros modos de catalogação, em alguns casos até já referidos em
momento anterior deste estudo. Assim, tendo por exemplo em conta a classificação que distingue três
modelos principais de mediação (o “pragmático”, o “transformador” e o “narrativo”), sempre se deverá
reconhecer a maior proximidade do primeiro com aquele a que se chamou “modelo orientado para a
eficiência na gestão dos conflitos”, e a tendencial aproximação dos dois últimos ao “modelo de mediação
penal centrado na relação interpessoal”. Reconhecendo esta clivagem na forma de compreender a
mediação penal e afirmando a mais fácil associação do pensamento de Habermas às concepções de
mediação penal que não julgam essencial a obtenção de um acordo, cfr. André Lamas LEITE (“Justiça
prêt-à-porter? cit., p. 94): «a visão “procedimentalista” de HABERMAS vai bem com uma concepção
segundo a qual o mais importante na mediação não é o seu resultado – atingir-se ou não um acordo –,
mas antes os vários momentos encadeados que abrem a oportunidade de (re)encontro entre o arguido e
ofendido e (re)estabelecimento dos laços sociais quebrados pelo crime».

597
alheia à lógica deste modelo: ela não serve para economizar recursos, mas supõe antes a
mobilização de mais recursos; ela não favorece o tempo breve, pressupõe o tempo
longo; ela nunca pode ser configurada como uma espécie de justiça penal de segunda
porque, tendo já a justiça penal dado a sua resposta, é sempre de resposta a outras
necessidades que aqui se trata1060.
Por outro lado, também se deve notar que estas distintas perspectivas sobre o
sentido da mediação penal podem ser encontradas em diversos instrumentos que a
consagram. E pode, tendencialmente, afirmar-se que enquanto os instrumentos supra-
estaduais tendem a configuar a mediação penal como um “quase direito”1061, o
legislador português encarou-a sobretudo em uma perspectiva funcional e eficientista.
Esta última afirmação pode ser comprovada – e deve ser desenvolvida – a partir de
vários aspectos do nosso regime legal, que merecerão tratamento posterior, entre os
quais importa sublinhar a eleição das finalidades de prevenção geral e especial como
critério para o envio pelo Ministério Público do processo para mediação penal na fase
de inquérito; a preferência manifestada pelos processos especiais em detrimento da
mediação penal ou os critérios eleitos para determinar a retribuição do mediador (onde
reentra a existência ou não de um acordo).
Antes de se iniciar a reflexão sobre as características principais desse regime
jurídico que introduziu a mediação penal de adultos em Portugal enquanto medida de
diversão, julga-se necessária uma referência às razões profundas que tornam
compreensível o seu surgimento. Ora, ainda que porventura pensada num horizonte

1060
A propósito de alguns programas de mediação pós-sentencial levados a cabo nos Estados Unidos e
relacionados com crimes graves, nomedamente homicídios, Elena HIGHTON/Gladys ALVAREZ/Carlos
GREGORIO (Resolución Alternativa de Disputas y Sistema Penal cit., p. 144) referem que esta mediação
se inicia “quase sempre a pedido da vítima [ou dos seus familiares] e apenas depois de muitos meses (às
vezes anos) de trabalho e de preparação com um mediador especializado e qualificado, em colaboração
com o terapeuta da vítima ou outros profissionais adequados à peculiaridade da situação”.
1061
O recurso ao conceito de “quase direito” à mediação penal parece ser justificado sobretudo pela ideia
de que o direito da vítima do crime e do agente do crime a participarem em procedimentos de mediação
penal está sempre limitado pela vontade do outro. Todavia, essa relutância em recorrer ao conceito de
“direito” quando o que está em causa é a participação efectiva numa concreta mediação parece não ter de
se alargar às hipóteses em que aquilo que se considera é o direito que vítimas e agentes terão a uma oferta
de pacificação do conflito que suponha a reparação dos danos sofridos pelas primeiras em moldes que
favoreçam a socialização dos segundos. O “quase direito” à mediação surgirá, nessa medida, como
instrumento para a realização dos direitos à reparação dos danos (em sentido amplo) sofridos pela vítima
e à socialização do agente. Pode argumentar-se, em tempos de muitas crises, contra a viabilidade de uma
concretização plena destes direitos. Neste ponto, concorda-se, porém, com a afirmação de Amartya SEN
de que “há (…) uma confusão por trás de uma rejeição de pretensões de direitos humanos que se funde no
facto de a viabilidade destes direitos não ser total, uma vez que um direito não plenamente realizado não
deixa de ser um direito, e, mais do que isso, é um direito que pede remédio, isto é, uma acção reparadora.
Em si mesma, a não realização não transforma um direito que acaso seja invocado num não direito. Bem
ao contrário: ela será motivo de uma acção social acrescida” (A Ideia de Justiça cit., p. 505).

598
mais amplo (que inclui outros mecanismos processuais penais alicerçados no consenso,
como a suspensão provisória do processo ou o processo sumaríssimo), deve reafirmar-
se, também aqui, a ideia de Anabela RODRIGUES de que «quer a justiça negociada,
quer a célere, a primeira muitas vezes servindo os interesses da segunda, não obedecem
só a uma lógica de “produtividade”, mas servem também uma “lógica de justiça”». Mas
esta citação deve, agora, vir acompanhada de um outro trecho do pensamento da Autora,
que esclarece a sua opinião de que «a justiça negociada – com limites que a impeçam de
se tornar um “negócio sobre a pena”, em que a igualdade das partes repousa numa
“ficção” – aparece como a mais adequada, numa sociedade menos estratificada e mais
complexa, que, ao mesmo tempo, rejeita a colonização da vida quotidiana pelo direito,
na conhecida formulação de Habermas. Neste modelo, o que é novo é a emergência do
privado e do individual. O Estado recua, restringe o seu domínio, para aumentar aquele
que reserva à livre determinação do indivíduo”1062.
Esclareça-se uma última nota, que se julga relevante para a destrinça de duas
questões que se não devem confundir. O problema que se procurou enfrentar neste
ponto prende-se com a forma de compreensão das práticas restaurativas, enquanto
“quase-direito” (ou não) das vítimas de crimes. Ora, esta questão não pode associar-se a
uma outra, que é a de saber se existe um direito subjectivo das vítimas ao castigo penal
do infractor. O que se quer enfatizar é que a resposta negativa que se julga que esta
interrogação merece não contamina, por nenhuma forma, o sentido da conclusão a que
se chegue quanto à primeira questão.
A rejeição da existência daquele direito subjectivo das vítimas à punição do
agente do crime é suportada por muitas e diversas razões. Todas elas se associam,
porém, a uma certa compreensão do fundamento e do sentido da intervenção penal. Se a
função do direito penal é a protecção subsidiária de bens jurídicos e se estes têm,
mesmo nos casos em que existe um referente individual, uma relevância comunitária,
essa protecção deve ficar dependente de critérios estritos de necessidade, mais
associados à tutela daquela comunidade e daqueles valores do que à tutela de
expectativas da vítima concreta e passada. Concepções predominantemente relativas
sobre as finalidades da pena, associadas à compreensão do carácter eminentemente
público da reacção penal, impedem a aceitação de um qualquer direito da vítima à
punição do agente. Uma tal afirmação não pode ser alargada, porém, à conclusão de que

1062
Anabela Miranda RODRIGUES, “Globalização, democracia e crime” cit., p. 305.

599
as mesmas vítimas também não teriam qualquer direito (ou quase-direito) à participação
em práticas restaurativas. Relativamente a estas, não podem esgrimir-se os mesmos
argumentos, precisamente na medida em que lhes falta aquela natureza pública assacada
à justiça penal1063. Ora, é precisamente no enfatizar da dimensão privada que o conflito
criminal também pode ter que se vislumbra o fundamento para afirmar que o agente do
crime e a sua vítima, assim como outros sujeitos em situação de particular
vulnerabilidade, adquirem um certo direito a prestações estaduais fundadas
precisamente numa ideia de solidariedade relativamente àqueles que estão numa
situação de desfavor.
Com o que se vem de afirmar não se pretende definir a forma exacta como essas
prestações têm de concretizar-se, nem enfrentar o problema (complexo) da sua
hierarquização face a outras prestações, em tempos que são de crises e de consequentes
insuficiências estaduais para se garantir toda a solidariedade que seria desejável.
Mais modestamente, o que se pretende sublinhar a propósito da invocação desse
quase direito de participação das vítimas em práticas restaurativas é a inviabilidade de
transferir para o plano restaurativo as objecções que na doutrina penal tem merecido a
afirmação de um direito subjectivo da vítima à punição do agente1064.

1063
Compreender a não coincidência entre a justiça penal e a justiça restaurativa não significa, como se
viu, a afirmação sem mais de uma natureza exclusivamente civil desta última. Uma certa aproximação aos
modelos do direito civil – sustentada, entre nós, por Raúl ESTEVES (“A Novíssima Justiça Restaurativa e
a Mediação Penal”, Sub Judice, 37, 2006, p. 55), para quem “a justiça restaurativa, ao trazer para o centro
do sistema penal a vítima, acaba por se aproximar de todos os modelos de pensamento próprios do direito
civil” – não permite, porém, a desconsideração das especificidades que existem em um conflito criminal,
com uma dimensão pública que supõe uma espécie de resposta que não pode deixar de ser concatenada
com aquela sua outra dimensão. Até porque essas distintas dimensões do crime não podem ser cindidas
em absoluto: a ofensividade inerente ao carácter criminal da conduta, com tudo o que de também
simbólico lhe anda associado, não deixa de se repercutir na própria compreensão que os sujeitos têm do
conflito, influindo assim na sua dimensão pessoal ou interpessoal.
1064
A questão mereceu a atenção crítica de Jesus-Maria SILVA SANCHÉZ («Nullum Crimen sine
Poena? Sobre las Doctrinas Penales de la “Lucha contra la Impunidad” y del “Derecho de la Víctima al
Castigo del Autor”, Derecho Penal y Criminologia, vol. 29, n.º 86-87, 2008, p. 149 ss), que associa a
“velha ideologia do nullum crimen sine poena” (com o desrespeito por direitos fundamentais e regras
garantísticas em nome da necessidade de punição de todos os criminosos) às mais modernas “doutrina da
luta contra a impunidade” e “doutrina do direito da vítima ao castigo do agente”. Quanto a estas duas
últimas linhas de pensamento, afirma que, apesar da sua não coincidência, a primeira tem procurado
justificar-se através da segunda: não se deveria admitir a impunidade porque a vítima teria o direito à
condenação do seu agressor. SILVA SÁNCHEZ relaciona a proclamação deste direito sobretudo com o
“poder penal internacional” e com a “criminalidade estatal”, mas afirma a tendência para uma sua
expansão à “criminalidade grave”, nomeadamente o terrorismo e os crimes contra a vida. O Autor acaba
por concluir pelo carácter inaceitável daquele direito subjectivo das vítimas à punição do agente,
considerando que «o núcleo de tal teoria deveria ser constituído pelas respostas expressivas-simbólicas
(imateriais): declaração de culpa e reprovação. A inflição adicional de uma “dor penal” ao agente só se
justificaria quando, para além de tudo, existissem razões preventivas para o fazer (…). Com efeito, a
imposição e execução de uma pena desconectada de tais razões, e justificada por necessidades da vítima,
não seria senão vingança institucionalizada sob um manto de suposta racionalidade» (ob. cit., p. 171).
Com opinião não coincidente, George P. FLETCHER considera que da nova concepção de justice decorre

600
De forma muito sucinta, pode caracterizar-se esta corrente doutrinária pela
defesa da exigência de punição do agente do crime (logo, a recusa da sua impunidade)
no direito subjectivo que as vítimas teriam a verem reafirmada a sua dignidade através
da pena1065.
Ora, mais do que a impossibilidade de transposição das críticas sofridas pelo
pensamento do direito subjectivo das vítimas à punição do agente para o pensamento do
quase-direito das vítimas à participação em práticas restaurativas, o que se deve
enfatizar é antes a impossibilidade de fazer coincidir aquela forma de compreensão da
justiça penal com este entendimento da justiça restaurativa. Ou seja: apesar do aparente
denominador comum da “invocação” de direitos das vítimas de crimes, as duas
compreensões são tão largamente divergentes que, em bom rigor, a aceitação daquele
direito das vítimas à punição do agente quase precludiria a possibilidade de existência
de práticas restaurativas, pelo menos as configuradas enquanto mecanismo de diversão
processual. Assim, a afirmação daquele direito das vítimas à condenação penal do
agente tem na fonte uma muito distinta compreensão das necessidades das vítimas.
Finalmente, sublinhe-se que a concordância com SILVA SÁNCHEZ quanto à
inexistência desse direito subjectivo das vítimas à punição do agente – pelas razões
antes sumariamente elencadas – não equivale à afirmação da inexistência de um
interesse legítimo e próprio do ofendido. Este interesse justifica a sua participação no
processo, que deve culminar com a determinação para o caso concreto de uma solução
jurídico-penal que possa considerar-se justa. Foi, de resto, no reconhecimento desse
interesse que radicaram as afirmações antes esboçadas sobre o sujeito processual penal
“assistente” e sobre os seus direitos de intervenção no processo, nomeadamente a

o direito das vítimas à punição do agente, o que pode implicar a derrogação de regras de fair trial
(“Justice and Fairness in the Protection of Crime Victims”, Lewis and Clark Law Review, 9 (2005), p. 547
ss). No mesmo sentido, cfr o estudo anterior do Autor, “The place of victims in the theory of retribution”,
Buffalo Criminal Law Review, 3, 1999-2000, p. 51 ss. Note-se, porém, que o próprio FLETCHER não
deixa de reconhecer que é um “desafio interessante integrar a vítima na justificação da punição”, porque
“o crime de homicídio protege a vida – não a vida de uma pessoa em particular, mas o direito a viver em
abstracto (…). A natureza abstracta dos interesses protegidos explica a relevância mínima dos pontos de
vista da vítima concreta no que respeita à condenação do agressor” (últ. ob. cit., p. 52).
1065
Cornelius PRITTWITZ (“The Ressurection of the Victim in Penal Theory”, Buffalo Criminal Law
Review, vol. 3, 1999, p. 109 ss) faz remontar o surgimento desta preocupação com a vítima na doutrina
penal contemporânea ao conhecido “episódio Reemtsma”. Em traços muito sucintos, recorde-se apenas
que Jean Philipp Reemtsma, um endinheirado homem de negócios alemão relacionado com o Hamburg
Institute for Social Research, fez publicar uma obra da sua autoria – depois de uma sua privação forçada
da liberdade durante trinta e três dias, em que permaneceu numa “cela pequena e escura” e foi ameaçado
de morte, o que só cessou com o pagamento, pela sua família, de soma muito avultada aos agentes do
crime –, na qual defendia que a punição mostra a solidariedade da comunidade com a vítima. Na opinião
de Reemtsma, essa punição significa uma certa manifestação de exclusão do agente e uma afirmação de
boas-vindas relativamente à vítima, que assim se faz regressar ao gupo.

601
legitimidade que lhe deve ser reconhecidade para recorrer, desacompanhado do
Ministério Público, da medida ou da espécie da pena. A afirmação desse interesse
específico do ofendido numa decisão conforme ao direito que regula o exercício do ius
puniendi e, nessa medida, justa, não equivale, porém, à afirmação de um qualquer
direito à punição do agente, desde logo porque quer o direito penal, quer o direito
processual penal, admitem institutos conducentes à não condenação a uma pena mesmo
daqueles agentes cuja responsabilidade criminal foi indiciada ou provada. Mas,
sobretudo, porque a afirmação desse direito subjectivo não é coerente com aquela que
deve considerar-se a função do direito penal.
Assim sendo, parece dever enfatizar-se, em jeito de conclusão, que o
reconhecimento de direitos do ofendido (e, no nosso sistema, sobretudo do ofendido
constituído assistente) a determinadas formas de participação no processo em nome do
seu interesse na decisão justa da causa não equivale, naturalmente, à afirmação de um
seu qualquer direito subjectivo à punição do agente1066. Ou seja: olhando agora, a título
de exemplo, para o direito penal e para o direito processual penal português, parece
inequívoca a conclusão de que a vítima (com mais rigor, o ofendido, o ofendido
constituído assistente ou aqueles que, em determinadas circunstâncias, os representam)
lhe viu serem reconhecidos direitos que condicionam o exercício do ius puniendi
estadual. Pense-se, em jeito de ilustração, na impossibilidade de promoção processual

1066
Com interesse para o aprofundamento desta questão, tenha-se em conta a ideia de que na afirmação
generalista deste “direito das vítimas à punição do agente” vão implícitas, com frequência, declarações de
direitos de diversa natureza. Neste sentido, SILVA SÁNCHEZ (últ. ob. cit., p. 160), com o intuito de
tornar mais precisa a crítica a cada um dos segmentos do pensamento, autonomiza um “direito à
verdade”, um “direito ao processo”, um “direito à justiça” e um “direito ao castigo”. Relativamente ao
primeiro, considera que “dificilmente pode negar-se a existência de um direito das vítimas e dos seus
familiares ao conhecimento da verdade. O problemático é sustentar que tal direito possa (e deva)
satisfazer-se através do processo penal. Na verdade, a reconstrução processual do facto histórico não
pretende declarar a verdade do acontecido, mas sim assentar simplesmente as bases para uma atribuição
de responsabilidade”. Quanto ao “direito à justiça”, as indefinições são maiores, por força da própria
indeterminação que lhe é subjacente; apesar disso, SILVA SANCHÉZ parece associar tal direito à
manifestação de reprovação da conduta do agressor (regra geral associada ao processo, razão pela qual
trata conjuntamente o “direito ao processo” e o “direito à justiça”), reprovação essa do comportamento do
agressor através da qual «o afectado pela sua acção se constitui “vítima”, restabelecendo-se a sua
dignidade e igualdade». Ora, se na perspectiva do penalista espanhol, a proclamação destes direitos da
vítima é admissível, já o mesmo não sucede com o “direito ao castigo”, relacionado com a “inflição de
um dano”. Questiona-se, assim, “o valor expressivo que o padecimento de uma dor por parte do agente
pode ter para o restabelecimento da posição originária da vítima (…)”. O que se pretende sublinhar a
traço grosso no pensamento de SILVA SÁNCHEZ é o seu questionamento sobre se “a realização da
justiça para a vítima requer, em qualquer caso, o castigo efectivo do agente” e a conclusão de que aquilo a
que a vítima tem direito é o “restabelecimento da sua dignidade”. Ora, este restabelecimento não
pressupõe aquele castigo, sendo que “é inerente à declaração de culpa do agente (e à correspondente
declaração do carácter de vítima do sujeito por ele afectado). Na medida em que seja possível restabelecer
a dignidade da vítima – mostrar o reconhecimento que esta merece – causando o menor dano possível ao
agente, parece que o sistema do direito penal deveria orientar-se para isso” (ob. cit., ps. 163-4).

602
penal oficiosa (e, consequentemente, na impossibilidade de condenação) quando está
em causa um crime particular em sentido amplo e o ofendido não apresenta a sua
queixa; ponderem-se as hipóteses de desistência de queixa; recorde-se a necessidade de
concordância do assistente para a suspensão provisória do processo; tenha-se em conta o
direito de requerer a abertura da instrução ou de recorrer atribuído ao assistente e a
forma como assim pode condicionar um distinto desfecho para aquele processo.
Todavia, quando se analisam estas várias hipóteses, verifica-se que em nenhuma
delas vai implícito um direito do ofendido ou do assistente à efectiva condenação do
seu agressor. Pelo contrário, parecem poder afirmar-se duas formas principais de
aceitação da relevância da vontade da vítima, ambas, precisamente, de sentido não
coincidente com aquele direito subjectivo à punição do agente. Há um primeiro grupo
de casos em que a vontade do ofendido releva por si só; todavia, só assim é quando tal
vontade desencadear a não punição em virtude da inexistência ou limitação do processo
no caso específico dos crimes particulares em sentido amplo. Nas restantes hipóteses,
aquelas em que o contributo processual da vítima pode favorecer ou a condenação ou
uma condenação mais severa do arguido – nomeadamente através do requerimento de
abertura de instrução ou do recurso de decisão judicial, absolutória ou condenatória –, a
manifestação de vontade da vítima (admitida porque associada ao reconhecimento de
um interesse na realização da justiça para o caso concreto) não é, por si só, suficiente
para que esse efectiva punição ocorra. Pelo contrário, manifestada uma certa posição
pela vítima do crime, ela merecerá ou não acolhimento na decisão judicial, a qual será
sempre condicionada pelas finalidades especificamente penais e processuais penais.
Assim sendo, o reconhecimento, em certos moldes, do direito das vítimas a uma
tutela jurisdicional efectiva não pode confundir-se com um seu qualquer direito
subjectivo à punição efectiva do agente do crime. O que, longe de excluir a afirmação
de um “quase-direito” das vítimas à participação em práticas restaurativas, se julga
contribuir para a sua corroboração. Por um lado, se não se pode proclamar o direito a
um determinado e preciso resultado, será denominador comum o direito, antes, à
participação num procedimento, sendo que cada um dos procedimentos (o penal e o
restaurativo) é presidido por finalidades distintas associadas a males de natureza diversa
originados pelo crime. Por outro lado, não será porventura desprezível a ideia de que, se
o reconhecimento da dignidade das vítimas relacionado com o reconhecimento da sua
vitimização não impõe a efectiva punição do agente, talvez a desnecessidade dessa
punição seja mais compreensível (agora numa perspectiva também victim oriented) se

603
for acompanhada pela oferta de outras instâncias de reconhecimento da
responsabilidade por parte do agente do crime e de busca de uma pacificação do conflito
(inter)pessoal.

3. Uma reflexão breve sobre a expansão da mediação penal vítima-agressor e a


limitação do papel da comunidade

A gradual expansão do recurso à mediação penal no contexto das práticas


restaurativas vem sendo sublinhada por vários Autores, mesmo nos países do sistema
anglo-saxónico1067. Na Europa, ela tornou-se largamente dominante, en detrimento de
outras práticas restaurativas que supõem a intervenção de um círculo mais alargado de
pessoas. Por essa razão – e julga-se que não é excessivo voltar a sublinhá-lo – é da
mediação penal que essencialmente se tratará na Parte III deste estudo.
Em Portugal, a mediação penal de adultos enquanto forma de diversão
(introduzida pela Lei 21/2007, de 12 de Junho); o “encontro restaurativo” admitido para
a violência doméstica (que em muito se assemelha, como depois se verá, à mediação
penal pós-sentencial); os programas de justiça restaurativa pós-sentenciais,
nomeadamente as sessões de mediação com o ofendido, referidos no Código de
Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade; e a mediação no âmbito da Lei
Tutelar Educativa, são as práticas restaurativas em sentido estrito (as únicas práticas
que cumprem os requisitos de finalidade e de procedimento que antes se definiram
como especificamente restaurativos) para já reconhecidas pelo legislador.
A esta importância crescente da mediação vítima-agressor (a denominada VOM
– victim-offender mediation) crê-se que se pode imputar um significado relevante na
compreensão daquelas que são as tendências mais recentes da justiça restaurativa. Se

1067
Sobre a questão, cfr., a título de exemplo, o estudo de Patrick GERKIN (“Participation in victim-
offender mediation: lessons learned from observations”, Criminal Justice Review, 2009, 34, 2, p. 226 ss),
no qual reflecte sobre a preferência crescente pela mediação vítima-agressor em detrimento de outras
práticas restaurativas. Antes, já Adolfo CERETTI, Francesco DI CIÒ e Grazia MANNOZZI haviam
sublinhado a importância da mediação vítima-agressor enquanto instrumento da justiça restaurativa
(“Giustizia riparativa e mediazione: esperienze e pratiche a confronto”, Il Coraggio di mediare, Ed. F.
Scaparro, Milão: Guerini e Associati, 2001, p. 307 ss). Nesse sentido, também Leonardo SICA, para
quem “há fortes indicativos de que a mediação penal seja a actividade mais recomendável para efectivar o
novo paradigma de justiça” (“Bases para o modelo brasileiro de justiça restaurativa”, in De Jure – Revista
Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte (2009), n.º 12, p. 413. De
forma enfática, Ivo AERTSEN afirma que “a modalidade predominante da justiça restaurativa na Europa
é a mediação vítima-agressor” (“Restorative justice through networking: a report from Europe”,
Restorative Justice: Politics, Policies and Prospects, Eds. E. van der Spuy, S. Parmentier, A. Dissel, Cape
Town: Juta & Co. Ltd, 2008, p. 93).

604
nos anos oitenta parecia atribuir-se peso aproximado à reapropriação do conflito pela
vítima e pelo agente, por um lado, e à intervenção da comunidade, por outro, a primazia
inequívoca que vem sendo conquistada pela mediação vítima-agressor em detrimento de
outras práticas restaurativas que envolvem uma maior participação comunitária traz
consigo uma certa visão sobre quem detém, em última análise, a verdadeira
propriedade do conflito na sua dimensão interpessoal.
Pode dizer-se, assim, que, actualmente, o conflito tende a ser cada vez mais
encarado, na justiça restaurativa (na sua teoria e também na sua prática), como
“propriedade” da vítima e do agente, e não já da comunidade. E esta é, sublinhe-se, uma
tendência com a qual se concorda e a partir da qual é fácil compreender a prevalência da
mediação penal: como enfatizam SCARDACCIONE, BALDRY e SCALI, “a mediação
representa a modalidade de aplicação da justiça restaurativa que melhor promove a
reapropriação do processo penal pelas partes”1068.
Ora, este “reapossamento” do conflito pelos directamente envolvidos significa –
e não cumpre aqui mais do que recordá-lo, retomando ideia anterior – um
reconhecimento da crítica feita por Autores como Nils Christie ou Louk Hulsman ao
“roubo” do conflito pelo Estado, ideia que depois ultrapassou o plano da reflexão
criminológica e foi retomada nomeadamente por Pierre BOURDIEU, nos seus estudos
sobre a instituição de um “monopólio” do direito. Para este, “o campo judicial é o
espaço social organizado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflito
directo entre partes directamente interessadas no debate juridicamente regulado entre
profissionais que actuam por procuração e que têm de comum o conhecer e o
reconhecer da regra do jogo jurídico”1069.

1068
Gilda SCARDACCIONE/ Anna BALDRY/Melania SCALI, La mediazione penale. Ipotesi di
intervento nella giustizia minorile, Milão: Giuffrè, 1998, p. 22. Sublinhe-se, porém, que se julga
preferível o conceito de “reapropriação do conflito associado ao crime” ao de “reapropriação do processo
penal”. Na doutrina portuguesa, tenha-se em conta a afirmação de João Ferreira PINTO (“O papel do
ministério público na ligação entre o sistema tradicional de justiça e a mediação vítima-
agressor”, RPCC, ano 15, n.º 1, Janeiro-Março de 2005, p. 112) de que “a comunidade não deve
estar representada no processo de mediação, uma vez que esta é um instituto de devolução do
conflito penal aos particulares”.
1069
Para Pierre BOURDIEU (O Poder Simbólico, trad. de Fernando Tomaz, Lisboa, Difel: 1989, p. 225
ss), «a instituição de um “espaço judicial” implica a imposição de uma fronteira entre os que estão
preparados para entrar no jogo e os que, quando nele se acham lançados, permanecem de facto excluídos,
por não poderem operar a conversão de todo o espaço mental – e, em particular, de toda a postura
linguística – que supõe a entrada neste espaço social. A constituição de uma competência propriamente
jurídica, mestria técnica de um saber científico frequentemente antinómico das simples recomendações do
senso comum, leva à desqualificação do sentido de equidade dos não-especialistas e à revogação da sua
construção espontânea dos factos, da sua “visão do caso”». Vincando sobretudo a especificidade de uma
certa linguagem, o Autor acrescenta, para aquilo que aqui sobretudo nos interessa, a existência de um

605
Aquela linha de fundamentação da mediação como mecanismo diverso de
solução de um conflito que tem, também, uma dimensão interpessoal, e enquanto
reacção àquela crítica do desapossamento, facilita a sua harmonização com outros
sistemas de reacção ao conflito, como o sistema de justiça penal. Por um lado, ela
permite ultrapassar os problemas dificilmente superáveis da teorização de um modelo
único de resposta ao conflito que ponha em pé de igualdade interesses colectivos e
interesses individuais: em caso de incompatibilidade, que interesses teriam prevalência?
Por outro lado, é a compreensão do crime como um assunto da comunidade –
representada pelo Estado no exercício do ius puniendi – que funda a justiça penal que
temos e, no que aqui interessa, a justiça penal cujas limitações foram invocadas pelo
pensamento restaurativo para arguir a necessidade de um outro modelo de reacção ao
crime. Ora, a própria autonomia da resposta restaurativa face à resposta penal parece
só ter a ganhar com o vincar da dimensão interpessoal do conflito tida em conta na
primeira, face à dimensão colectiva do crime hiperbolizada na segunda.
A estas considerações de índole mais teórica sobre a dificuldade de trazer a
comunidade – enquanto personagem com destaque – para a justiça restaurativa juntam-
se as insistentemente referidas dificuldades práticas, quer na delimitação do próprio
conceito de comunidade, quer na delimitação da forma concreta de fazer a comunidade

“desapossamento”: «o desvio entre a visão daquele que se vai tornar num “justiciável”, quer dizer, num
cliente, e a visão científica do perito, juiz, advogado, conselheiro jurídico, etc., nada tem de acidental; ele
é constitutivo de uma relação de poder, que fundamenta dois sistemas diferentes de pressupostos, de
intenções expressivas, numa palavra, duas visões do mundo. Este desvio, que é o fundamento de um
desapossamento, resulta do facto de, através da própria estrutura do campo e do sistema de princípios de
visão e de divisão que está inscrito na sua lei fundamental, na sua constituição, se impor um sistema de
exigências cujo coração é a adopção de uma postura global, visível sobretudo em matéria de linguagem».
Curiosamente, se na teoria da mediação se enfatiza o papel do mediador enquanto terceiro relativamente
ao conflito, mas terceiro a quem não cabe qualquer poder de decisão do mesmo porque uma das suas
funções primeiras é contribuir para o “empoderamento” desse conflito pelas “partes”, já Pierre
BOURDIEU recorre ao conceito de “mediação” dando-lhe sentido precisamente oposto: «na definição
que frequentemente tem sido dada, de Aristóteles a Kojève, do jurista como “terceiro mediador”, o
essencial está na ideia de mediação (e não de arbitragem) e no que ela implica, quer dizer, a perda da
relação de apropriação directa e imediata da sua própria causa: perante o pleiteante ergue-se um poder
transcendente, irredutível à confrontação das visões do mundo privadas, que não é outra coisa senão a
estrutura e o funcionamento do espaço socialmente instituído desta confrontação» (ob. cit., p. 229). Julga-
se, porém, que não se deve atribuir demasiada relevância a esta divergência conceptual: Bourdieu, assim
como Hulsman ou Christie (ainda que estes em moldes mais enfáticos e almejando de forma expressa a
produção de consequências ao nível dos modos de reagir ao crime) fazem uma apreciação crítica daquele
desapossamento do conflito, porque admitem como positivo um seu reapossamento pelas “partes”. O
denominador é, quanto à questão de fundo, comum. O que se pensa é que quando Bourdieu utiliza o
conceito de “mediação” para caracterizar a resposta dada pelo sistema judicial se refere essencialmente à
existência de um “entreposto” que retira imediação à relação entre “partes” e conflito. Pelo contrário, à
teoria da mediação penal parece subjacente a ideia de que aquele entreposto representado pelo terceiro
imparcial retira alguma imediação ao contacto entre as partes, impondo-lhe limites e estabelecendo-lhe
regras, mas não significa qualquer interferência na relação, aí sim directa, entre as partes e a procura de
uma solução para o seu conflito.

606
participar no processo comunicacional inerente à justiça restaurativa1070. Pode chamar-
se comunidade ao grupo de pessoas que habita uma cidade com muitos milhares ou
mesmo alguns milhões de habitantes? Como trazer a comunidade às práticas
restaurativas quando se pode considerar que a comunidade, em muitos casos, “já não
existe”?
Tomando como boa a ideia, já antes referida, de que “a comunidade não é um
lugar”, talvez seja possível, porém, defender-se, nas práticas restaurativas, a existência
de estratégias diferenciadas. A primazia da mediação vítima-agressor, com a
correspectiva assunção da predominância dos interesses individuais despertados pelo
conflito, pode, em alguns casos, não dispensar também o chamamento da comunidade.
Deverá ser assim quando a vítima ou a agente acordarem na conveniência de um
alargamento do círculo de comunicação.
Hipóteses deste género são pensáveis mesmo nas grandes cidades quando nelas
se preserva o modo de viver “em bairro” que é próprio das pequenas comunidades. E a
importância de uma qualquer forma de intervenção comunitária pode ser especialmente
densa em comunidades fechadas, muitas vezes de imigrantes, onde há uma escassa
noção da responsabilidade estadual na defesa dos interesses das pessoas e, pelo
contrário, um forte sentido do grupo e das solidariedades e responsabilidades no seu
seio. Mesmo nestes casos, porém, deve rejeitar-se na justiça restaurativa uma qualquer
possibilidade de sobreposição daqueles que forem vistos como os interesses da
comunidade, sempre que eles significarem limitações não queridas pelo agente do crime
ou pela vítima.

1070
A questão, já abordada em momento prévio do estudo, é revisitada apenas na medida necessária à sua
conexão com a expansão da mediação vítima-agressor e com um certo decaimento das práticas “mais
comunitárias”. As dificuldades de “trazer a comunidade para a justiça restaurativa” são referidas por Lode
WALGRAVE (“From community to dominion: in search of social values for restorative justice”,
Restorative Justice – Theoretical Foundations, Eds. Elmar Weitekamp/Hans-Jürgen Kerner, Devon:
Willan Publishing, 2002, p. 74 ss), que as exemplifica referindo os “problemas com a noção de
comunidade”, assim como “a falta de clareza quanto à sua posição no processo”. A este propósito, afirma
que a comunidade pode desempenhar diversos papéis: ou é uma espécie de “extensão do agente e da
vítima” quando é entendida como community of care; ou é apresentada como um instrumento para a
existência de boas práticas restaurativas através da criação do contexto adequado; ou é apresentada como
um verdadeiro sujeito do processo porque foi ofendida pelo cometimento de um crime que prejudica
todos; ou surge enquanto objectivo, na medida em que se pretenda através das práticas restaurativas a
criação de vínculos sociais e de entreajudas. De qualquer modo, o Autor – fazendo apelo ao pensamento
de Van Swaaningen – não deixa de apontar os riscos da sobrevalorização da comunidade, lembrando que
«na década de setenta, os jovens lutaram para se libertarem das suas “comunidades”, que sentiam como
áreas paroquiais de controlo social e moralista que restringia a sua autonomia e criatividade». Entende,
porém, que «ser céptico quanto à noção de comunidade não significa rejeitar os ideais promovidos pela
maioria dos comunitaristas: unidade social, uma forma de vida harmoniosa em conjunto, com os cidadãos
a assumirem responsabilidade, baseada no respeito mútuo e na solidariedade» (ob. cit., p. 76-7).

607
Finalmente, deve ainda registar-se que esta importância crescente da mediação
no contexto dos procedimentos restaurativos se pode relacionar com a compreensão da
“centralidade da vítima como chave para a filosofia restaurativa” defendida, entre vários
outros Autores, por Elmar Weitekamp1071.

4. A mediação penal: um assunto (também) do Estado ou um mecanismo de


privatização da justiça penal?

A correcta delimitação daquele que é o espaço de relevância dos interesses da


comunidade ou dos intervenientes concretos no conflito supõe uma ideia nuclear: a
admissibilidade de soluções para o conflito não queridas por aqueles que nele foram
intervenientes em nome de um interesse colectivo deve continuar a ser um exclusivo do
Estado e da justiça penal, sob pena de, nesse caso sim, se estar a privatizar a justiça
penal.
Se bem se vê o problema, tal privatização contrária a tantas e tão fundas
conquistas civilizacionais ocorreria sempre que: a) o Estado prescindisse da definição
das condutas consideradas insuportavelmente desvaliosas para a comunidade por força
da sua dimensão colectiva, prescindisse da condução do processo que visa determinar a
existência e a autoria de tais condutas e/ou prescindisse de ditar e conformar a sanção
para as mesmas; ou sempre que b) o Estado negasse a existência de uma dimensão
colectiva em todo e qualquer conflito interpessoal que não ofendesse de forma directa e
imediata os exclusivos interesses estaduais (limitando a sua intervenção à punição dos
crimes contra o Estado, ainda que num sentido amplo).
Ora, geometricamente arrumados estes conceitos basilares – e continuando a
correr-se o risco inerente às tentativas de simplificação –, pode dizer-se que o que sobra
(o muito que sobra) para a justiça restaurativa (num caminho que não passe por uma
privatização da justiça penal) é a procura de uma solução para a dimensão privada do
conflito que também vive nos crimes. O que torna facilmente compreensível a
amplitude da relevância atribuída à vontade das pessoas que são a vítima e o agente do

1071
Elmar WEITEKAMP, “Mediation in Europe: paradoxes, problems and promises”, Restorative Justice
for Juveniles – Conferencing, Mediation and Circles, Eds. A. Morris/G. Maxwell, Portland: Hart
Publishing, 2003, p. 146. É esta importância reconhecida aos interesses da vítima concreta que, segundo o
Autor, sobretudo distingue a resposta restaurativa ao crime das respostas de cariz retributivo ou
reabilitador, ambas orientadas para o agente, que se pretende punir ou tratar.

608
crime e as limitações com que se encara a intervenção comunitária nas práticas
restaurativas.
O problema que se tem vindo a considerar prende-se com a configuração da
mediação penal enquanto procedimento que os intervenientes no conflito jurídico-penal
podem livremente requerer (uma faculdade de conteúdo positivo a que corresponderá
para o Estado a obrigação de facilitar o seu exercício) ou antes enquanto mera
possibilidade que o Estado pode, nas condições que ele próprio julgar adequadas,
disponibilizar.
Uma qualquer reflexão orientada para a compreensão dos argumentos de
natureza filosófico-conceptual, dos argumentos de índole prática e das experiências de
direito comparado parece esbarrar, porém, numa primeira interrogação: curando o
Estado, por força do exercício do ius puniendi, da dimensão pública do crime, onde
encontrar fundamento para lhe assacar a tarefa de velar também pela reintegração, na
medida do possível, dos vários bens transmutados em males – na esfera privada – por
força do cometimento do crime?
A razão pela qual se atribui a esta questão um carácter preliminar prende-se com
o facto de, antes de se perguntar qual o nível de vinculação do Estado na realização da
justiça restaurativa, ter de se inquirir a razão pela qual é ainda ao Estado que essa
função deve ser assacada. Ou seja: o que explica que, quase no final do século XX, surja
na doutrina e em vários instrumentos de cariz supra-estadual a ideia de que o Estado
deve promover mecanismos de justiça restaurativa? Quais as razões que justificam a não
remissão da mediação para uma esfera exclusivamente privada, se com ela se pretende
reagir a consequências desvaliosas do crime que são apresentadas como essencialmente
privadas?
À primeira vista, parecem dever destacar-se dois segmentos explicativos, de
algum modo interligados: por um lado, pode entender-se que há ainda, por ténue que
seja, alguma responsabilidade do Estado – que não logrou garantir a segurança dos seus
cidadãos – pelos males ocorridos; por outro lado, a situação de desvalor em que acabam
por se encontrar os intervenientes no crime deve desencadear o funcionamento dos
mecanismos efectivadores da solidariedade de todos os outros cidadãos, representados
precisamente pelo Estado. Nesta última afirmação vai inteira, naturalmente, a defesa de
uma certa concepção do Estado, que concilie uma dimensão liberal de tutela dos
direitos de liberdade – na terminologia de FERRAJOLI – a que correspondem
“garantias negativas ou proibições de fazer”, com uma outra dimensão social da qual

609
decorre a protecção dos direitos sociais, a que correspondem “garantias positivas
consistentes em obrigações de prestações individuais ou sociais”1072. E talvez se possa
afirmar que enquanto na justiça penal preponderam as ponderações associadas àquela
dimensão liberal, já na justiça restaurativa sobrelevarão as considerações atinentes a esta
dimensão social, sendo a mediação penal ainda um instrumento de um direito penal
mais mínimo num Estado de Direito que acentue a sua vertente social1073.
Para além disto – e sem pretender tomar qualquer posição de rejeição face à
prestação de serviços privados de mediação –, compreende-se a utilidade de o Estado

1072
Cfr. Luigi FERRAJOLI, Derecho y Razón cit., p. 28. Particularmente interessante é a reflexão do
Autor italiano sobre o significado das fórmulas “direito penal mínimo” e “direito penal máximo”, por um
lado, e os conceitos de “Estado mínimo” e de “Estado máximo”, por outro lado (ob. cit, p. 114, nota 23),
que aqui se julga da maior pertinência reproduzir: «os significados destas fórmulas não são, nem lógica
nem politicamente, coincidentes (…). Estas fórmulas [as de “Estado máximo” e de “Estado mínimo”]
designam respectivamente os sistemas políticos em que é máxima ou mínima a intervenção do Estado na
satisfação de expectativas ou de direitos a prestações positivas (o trabalho, a saúde, a instrução, a
habitação e similares) e correspondem uma ao moderno Estado de direito social e outra ao modelo do
Estado liberal clássico; as expressões “direito penal mínimo” e “direito penal máximo” designam, por sua
vez, sistemas jurídicos onde é mínima ou máxima a intervenção do Estado na restrição das liberdades
negativas. (…) Um Estado social máximo pode conviver perfeitamente com um direito penal mínimo, e
um Estado social mínimo pode igualmente conviver – como infelizmente a história demonstra de forma
ampla – com um direito penal máximo». FERRAJOLI não permite qualquer margem para dúvidas quanto
à combinação de modelos que considera mais adequada: «a conjunção entre Estado social máximo e
direito penal mínimo expressa precisamente aquele conjunto de deveres públicos dos órgãos estaduais –
positivos (ou obrigações) e negativos (ou proibições) – que caracterizam o Estado de Direito na sua
forma mais complexa e desenvolvida, idónea para maximizar os vínculos do poder estadual e, em
simultâneo, as suas funções de garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos».
1073
A novidade que a proposta restaurativa (e a mediação penal, enquanto seu instrumento) representa
talvez não deva dissociar-se daquilo a que Boaventura SOUSA SANTOS chama “o desequilíbrio entre
regulação e emancipação e o consequente excesso de regulação em que veio a saldar-se”. O Autor
acrescenta que “a teoria política liberal é a expressão mais sofisticada deste desequilíbrio. Ela representa,
no plano político, a emergência da constelação da subjectividade e, como bem nota Hegel, confronta-se
desde o início com a necessidade de compatibilizar duas subjectividades aparentemente antagónicas: a
subjectividade colectiva do Estado centralizado (Ich-Kollektivität) e a subjectividade atomizada dos
cidadãos autónomos e livres (Ich-Individualität). A compatibilização é obtida por via da distinção entre
Estado e sociedade civil e do conceito-ficção do contrato social” (Boaventura de SOUSA SANTOS, Pela
Mão de Alice – O Social e o Político na Pós-Modernidade, Porto: Edições Afrontamento: 1999, 7.ª
edição, p. 205). A razão pela qual se julgou devida esta referência prende-se, sobretudo, com a intenção
de vincar o modo como o surgimento da proposta restaurativa pressupõe a definição de um novo
equilíbrio entre aquelas duas subjectividades, redefinindo (mas não anulando) o papel da colectiva no
plano da definição das respostas ao crime. Por outro lado, da necessidade de conceber em novos moldes a
subjectividade individual decorre o aprofundamento de uma compreensão da cidadania que não se esgote
numa apreensão do cidadão como mera abstracção despida de qualquer individualidade. Esse outro
conceito de cidadania é, também ele, problematizado por SOUSA SANTOS, a propósito da complexidade
da sua relação com a subjectividade: “para além das ideias de autonomia e de liberdade, a subjectividade
envolve as ideias de auto-reflexividade e de auto-responsabilidade, a materialidade de um corpo (…) e as
particularidades potencialmente infinitas que conferem o cunho próprio e único à personalidade. Ao
consistir em direitos e deveres, a cidadania enriquece a subjectividade e abre-lhe novos horizontes de
auto-realização, mas, por outro lado, ao fazê-lo por via de direitos e deveres gerais e abstractos que
reduzem a individualidade ao que nela há de universal, transforma os sujeitos em unidades gerais e
intercambiáveis no interior de administrações burocráticas públicas e privadas, receptáculos passivos
(…). A igualdade da cidadania colide, assim, com a diferença da subjectividade, tanto mais que no marco
da regulação liberal essa igualdade é profundamente selectiva e deixa intocadas diferenças” (ob. cit., p.
207).

610
favorecer a mediação que tem na base um conflito cuja natureza também é penal, na
medida em que os resultados dessa mediação possam condicionar o próprio processo
penal ou, em momento posterior, a execução da pena. Uma tal consideração deixa, de
resto, em aberto um vasto leque de opções: o Estado pode optar por prestar ele próprio
os serviços de mediação, integrando-os como mecanismo de resposta ao conflito; ou
pode, em alternativa, assumir tal serviço como exterior, desde que garanta um controlo
adequado e suficiente, tendo em conta a relevância futura, sob o ponto de vista da
justiça penal, daquilo que aí se conseguir.
Numa certa perspectiva, pois, ao invés de uma qualquer privatização da justiça
penal – que, enquanto justiça penal, deve continuar a ser assunto exclusivo do Estado,
detentor do ius puniendi – com o correspondente estreitamento da área de intervenção
estadual, do que se trata é antes de encontrar uma forma de envolvimento também
estadual na reacção a uma outra dimensão do conflito jurídico-penal, uma dimensão
essencialmente privada mas que pode ter repercussões na reacção àquela outra
dimensão que tem preponderado no crime, a sua dimensão pública. Numa determinada
acepção, portanto, não é menos Estado que na reacção ao crime se pretende, mas sim
outro Estado: um Estado que limite, na medida do possível, a sua actuação autoritária e
punitiva, e que facilite ou favoreça uma solução reparadora1074.
Em jeito de síntese, deve notar-se que, não se rejeitando liminarmente a
possibilidade de uma mediação privada dirigida a conflitos originados pelo
cometimento de um crime – realidade conhecida em outros países, nomeadamente em
França ou nos Estados Unidos –, sempre se deverá advertir que não é dessa mediação
que neste estudo se trata. E não é dessa mediação que se trata sobretudo porque, mesmo
na experiência comparada, ela tem menor dimensão; porque na realidade portuguesa
não se lhe conhece expressão e porque, em uma reflexão orientada para a “partilha de
espaço” entre a justiça penal e a proposta retaurativa na reacção ao crime é sobretudo a
ponderação da diversidade das reacções promovidas pelo Estado que se julga interessar.

1074
A um primeiro olhar, esta afirmação parece contrária à ideia de Nils CHRISTIE de que quanto mais
Estado houver, maior é a probabilidade de imposição de sofrimento como reacção ao crime. O Autor
afirma, de resto, a existência de um dilema: “para se controlar a crueldade, podemos precisar de mais
poder do Estado. Mas criar poder do Estado pode conduzir a uma maior utilização do sofrimento”. E a
resposta que encontra é a de “o mínimo Estado que nos for possível” (Limits to Pain cit., ps. 114-116).
Julga-se, porém, que a contradição entre o “menos Estado” reclamado por CHRISTIE e o “mais Estado”
que se refere é, pelo menos até certo ponto aparente: apesar de o Autor norueguês ser um defensor do
comunitarismo associado à atribuição de certas tarefas do Estado a sistemas de maior proximidade face a
cada cidadão, o Estado cujo encurtamento defende é sobretudo o Estado punitivo.

611
Na mediação pública que importa a esta reflexão, é notório o traço do serviço
público ou o envolvimento do Estado, que produz o direito que enquadra
normativamente a mediação penal e que cria condições materiais para o seu
funcionamento. Trata-se, nessa medida, de um Estado que reconhece a necessidade de
um direito cada vez mais flexível que tem como destinatária uma sociedade com a nota
da complexidade1075.

1075
Cfr., sobre esta questão, Giuseppe MOSCONI, “La mediazione, questione teoriche e diritto penale”,
Prassi e Teoria della Mediazione, Ed. Gianvittorio PISAPIA, Cedam: Milão, 2000, p. 3 ss. Também
Francesca VIANELLO refere a atinência da proposta restaurativa a uma comunidade pouco homogénea e
que requer, nessa medida, processos plurais e policêntricos (“Giustizia riparativa, comunità, diritto, rischi
concreti e potenzialità non realizzate”, Studi sulla Questione Criminale, IV, n.º 1, 2009, p. 8).

612
Capítulo II
A mediação penal “de adultos” em Portugal

1.O regime jurídico introduzido pela Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho: uma
solução de diversão

1.1. A contextualização e os principais antecedentes da Lei n.º 21/2007, de 12 de


Junho

Não sendo a mediação penal “de adultos” a única solução de diversão processual
penal e não sendo também a única prática restaurativa reconhecida pelo legislador
português, ela é, porém, a única prática restaurativa “de adultos” cunhada pelo
legislador português como mecanismo de diversão. Cumpre deixar uma nota inicial
sobre as restantes práticas restaurativas e, sobretudo, explicar a eleição da análise do
regime jurídico introduzido pela Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, enquanto objecto
principal desta parte do estudo. Ou seja: existindo outras soluções restaurativas, quer no
contexto da denominada “delinquência juvenil”, quer no âmbito da justiça aplicável aos
adultos, deve esclarecer-se que quase se excluirá da reflexão a problemática atinente à
mediação prevista na Lei Tutelar Educativa e que se relegará para momento posterior
uma ponderação breve das práticas restaurativas pós-sentenciais previstas
especificamente para a violência doméstica e genericamente no regime de execução das
penas privativas da liberdade.
Tratar-se-á, assim, sobretudo da mediação penal que o legislador português
admitiu para alguns crimes na fase de inquérito, por várias razões: em primeiro lugar,
porque é sobretudo nesta fase que o recurso às práticas restaurativas pode contribuir
para tornar o funcionamento da justiça penal “mais mínimo”, surgindo a resposta
restaurativa como alternativa; em segundo lugar, porque as práticas pós-sentenciais
“de adultos” têm limitada expressão na lei e, de momento, uma quase nula expressão
na prática.
Não obstante o facto de se partir da ideia de que a reacção à delinquência juvenil
comporta tantas especificidades que o seu tratamento deve merecer autonomia
(permanecendo, por isso, alheia a este espaço de reflexão), julga-se conveniente vincar,

613
em traços muito largos, o facto de ter sido aí que surgiram as primeiras referências a
práticas restaurativas no âmbito “criminal”1076.
A Lei Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro), ao admitir a
mediação, pressupõe um modelo de reacção distinto quer do modelo exclusivamente
assistencial1077, quer de um modelo unicamente de justiça. Neste novo modelo, a que
alguns Autores chamam de “terceira via”1078 mas que se prefere denominar como
modelo educativo de responsabilidade1079, reconhece-se a importância do contributo

1076
Entre aqueles que sublinham o surgimento das práticas restaurativas no contexto da delinquência
juvenil e sobretudo como mecanismo de diversão, cfr. BAZEMORE, Gordon/McLEOD, Colleen,
“Restorative justice and the future of diversion and informal social control”, Restorative Justice –
Theoretical Foundations, Eds. Elmar Weitekamp/Hans-Jürgen Kerner, Devon: Willan Publishing, 2002,
p. 144. Os Autores pretendem, porém, demonstrar que a proposta restaurativa deve dirigir-se também à
criminalidade dos adultos e que não tem de constituir sempre uma alternativa ao funcionamento da justiça
penal. Todavia, relativamente a práticas restaurativas que surjam na fase de inquérito e que pretendam
evitar a condenação, parece merecedora de reflexão a opinião de que “a diversão tal como a conhecemos
não deve ser simplesmente influenciada pelas práticas restaurativas; deve tornar-se justiça restaurativa”
(ob. cit., p. 166). Também VAN NESS, Daniel/MORRIS, Allison/MAXWELL, Gabrielle (“Introducing
Restorative Justice”, Restorative Justice for Juveniles – Conferencing, Mediation and Circles, Eds. A.
Morris/G. Maxwell, Portland: Hart Publishing, 2003, p. 5) vincam que, apesar de os programas
restaurativos estarem a “proliferar a uma velocidade notável em todo o mundo”, o “ponto de partida foi a
justiça juvenil na maioria dos países”. Não deixam, todavia, de sublinhar o seu alargamento à
criminalidade dos adultos, mesmo à mais grave. Importa, porém, considerar, também relativamente à
delinquência juvenil, os possíveis riscos inerentes à desformalização característica dos procedimentos
restaurativos. Neste sentido, ELIAERTS, Christian/DUMORTIER, Els (“Restorative justice for children:
in need of procedural safeguards and standards”, Restorative Justice – Theoretical Foundations, Eds.
Elmar Weitekamp/Hans-Jürgen Kerner, Devon: Willan Publishing, 2002, p. 204) referem que “como
alguns pioneiros da justiça restaurativa já notaram, a conhecida informalidade e a ausência de regras da
justiça restaurativa podem facilmente conduzir a práticas que desrespeitam alguns direitos humanos
fundamentais, ou a práticas que não são de justiça restaurativa, mas que estão mascaradas”.
1077
Sobre este modelo assistencial, cfr. a opinião crítica de Eliana GERSÃO (“A reforma da organização
tutelar de menores e a Convenção sobre os direitos das crianças”, Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, ano 7, 1997, p. 577 ss) de que ele parte de uma compreensão do menor que é irresponsável pelo
seu comportamento, visto apenas como ser carecido de uma protecção associada a decisões autoritárias de
terceiros. Aquele modelo “maximalista de protecção” tinha como consequência a sujeição a intervenções
idênticas dos menores em risco (desamparados, abandonados ou maltratados) e dos menores que
praticaram factos qualificados como crime. Actualmente, pelo contrário, existem regimes jurídicos
diversificados para as hipóteses de carência de protecção e para as hipóteses de necessidade de uma
intervenção tutelar educativa. Vincando as insuficiências da opção só por um modelo assistencial ou só
por um modelo de justiça e caracterizando o sentido que deve ter a intervenção junto de menores que
praticaram factos qualificados como crimes, cfr. Anabela RODRIGUES, “Repensar o Direito de Menores
em Portugal – Utopia ou Realidade?”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7, 3.º, 1997,
sobretudo p. 373 ss.
1078
Cfr., a título de exemplo, Cândido da AGRA/Josefina CASTRO, “La justice des mineurs au Portugal.
Risque, responsabilité et réseau”, in La Justice Pénale des Mineurs en Europe. Entre modèle welfare et
inflexions néo-libérales, Dir. F. Bailleau/Y. Cartuyvels, Paris: L’Harmattan, 2007, p. 229 ss.
1079
António Carlos DUARTE-FONSECA refere a preocupação – notória no Relatório Final da Comissão
de Reforma da Legislação sobre o Processo Tutelar Educativo – «em evitar, tanto quanto possível as
dificuldades e os problemas oferecidos pelos modelos de protecção e pelos modelos de justiça,
preferindo-se uma solução de equilíbrio entre as soluções oferecidas por cada um destes tipos de modelos,
enveredando assim por um modelo “de terceira via”, também designado por modelo dos “três dês” –
despenalização/desjudicialização, desinstitucionalização, direito a um processo justo» (Internamento de
Menores Delinquentes – A Lei Portuguesa e os seus Modelos: um Século de Tensão entre Protecção e
Repressão, Educação e Punição, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 371.

614
criativo do menor para a reparação dos males que causou, acreditando-se que a sua
educação para o direito será favorecida pela consciencialização e pelo esforço reparador
que lhe são inerentes1080. Em consequência, sob a epígrafe “mediação”, dispõe-se no n.º
1 do artigo 42.º da Lei Tutelar Educativa que “para realização das finalidades do
processo (…) a autoridade judiciária pode determinar a cooperação de entidades
públicas ou privadas de mediação”. E acrescenta-se, no n.º 2 do mesmo artigo, que “a
mediação tem lugar por iniciativa da autoridade judiciária, do menor, seus pais,
representante legal, pessoa que tenha a sua guarda de facto ou defensor”. Esta mediação
tem vindo a ocorrer sobretudo em dois momentos: numa fase inicial do processo, para
definição de um plano de conduta que se apresente ao Ministério Público e que possa
desencadear a suspensão do processo1081; posteriormente, o recurso à mediação pode ser
ainda decidido pelo juiz, com o propósito de se alcançar um consenso sobre a medida
tutelar a aplicar, na fase de audiência preliminar1082.
Reiterando-se que não cabe no objecto desta reflexão a questão específica das
práticas restaurativas no contexto da delinquência juvenil, vinque-se apenas o facto de
elas terem vindo a merecer entre nós, sobretudo por parte da doutrina, um juízo de
insuficiência1083. Relativamente à mediação que é instrumento da elaboração do plano

1080
Esclarece-se, logo no artigo 2.º da Lei Tutelar Educativa, que “as medidas tutelares educativas (…)
visam a educação do menor para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em
comunidade”. E, na Exposição de Motivos que antecedia a Lei, referia-se que «a mediação ou, numa
acepção mais ampla, a “justiça reparadora” ou “restaurativa” tem vindo a ser considerada, por alguns
observadores, como uma nova e promissora modalidade de resposta ao crime». Segundo DUARTE-
FONSECA, a defesa da mediação nas várias fases da intervenção relativa a menores que praticaram
factos qualificados como crimes relaciona-se, ainda, com o acolhimento das sugestões contidas na
Rec(87)20E, de 1987, do Comité de Ministros aos Estados Membros sobre as respostas sociais à
delinquência juvenil, assim como com a regra 12 das regras europeias para jovens delinquentes sujeitos a
sanções ou medidas contidas na Recomendação CM/REC(2008)11, do Comité de Ministros aos Estados
Membros (“Sobrevivência e erosão do paradigma da protecção em sistemas europeus de justiça juvenil”,
Ousar Integrar – Revista de Reinserção Social e Prova, n.º 7, 2010, ps. 11-13).
1081
Dispõe-se no n.º 3 do artigo 84.º da Lei Tutelar Educativa que “o menor, seus pais, representante legal
ou quem tiver a sua guarda de facto podem obter a cooperação de serviços de mediação para a elaboração
e execução do plano de conduta”. Entre os deveres cabidos nesse plano de conduta contam-se a
“apresentação de desculpas ao ofendido”, o “ressarcimento, efectivo ou simbólico, total ou parcial, do
dano, com dispêndio de dinheiro de bolso ou com a prestação de uma actividade a favor do ofendido”, a
“execução de prestações económicas ou tarefas a favor da comunidade”.
1082
Nos termos do artigo 104.º, n.º 3, alínea b) da Lei Tutelar Educativa, não sendo obtido consenso
(entre o juiz, o Ministério Público e o menor, sendo certo que os pais ou o representante legal do menor, o
defensor e, se estiver presente, o ofendido, também devem ser ouvidos) quanto à medida a aplicar, o juiz
pode “determinar a intervenção de serviços de mediação e suspender a audiência por prazo não superior a
30 dias”.
1083
Sobre esta matéria, DUARTE-FONSECA refere que “as medidas tutelares educativas reparadoras
têm vindo a ser mais aplicadas, de acordo com as estatísticas da justiça disponíveis. No entanto, este
aumento é muito mais evidente e constante no caso da medida de realização de prestações económicas ou
de tarefas a favor da comunidade, em especial nesta segunda modalidade, do que no caso da medida de
reparação ao ofendido” (in “Sobrevivência e erosão do paradigma da protecção em sistemas europeus de
justiça juvenil” cit., p. 13). Segundo dados provisórios retirados do Sistema Estatístico da Direcção Geral

615
de conduta que poderá permitir a suspensão do processo, critica-se sobretudo o
entendimento comum de que ela pressupõe a iniciativa do menor ou dos seus próximos,
não podendo surgir por iniciativa do Ministério Público, assim como a ideia de que a
partir daí o Ministério Público poderá enjeitar a medida se considerar que ela é
inadequada à consecução das finalidades do processo1084. Quanto à mediação admitida
na audiência preliminar, parece criticável uma sua porventura excessiva
“judicialização”, também relacionada com a aparente atribuição da opção pela medida a
uma decisão do juiz vista como discricionária1085.
Para além da mediação reconhecida pela Lei Tutelar Educativa e agora já no
âmbito do “direito penal de adultos”, o regime de mediação penal introduzido pela Lei
n.º 21/2007, de 12 de Junho, convive actualmente com a previsão legal de práticas

da Reinserção Social a 31 de Março de 2011, parece poder afirmar-se um aumento dos jovens internados
em centro educativo: em Dezembro de 2009 eram 204; em Dezembro de 2010 eram 226 e em Março de
2011 eram 254. Destes, 228 são do sexo masculino e 26 do sexo feminino e 70% estão em regime
semiaberto, 19% em regime fechado e 11% em regime aberto. Os números encontrados no início de Abril
de 2012 (no site da DGRS – MJ) que se referem especificamente à mediação no âmbito tutelar educativo
dizem respeito aos anos de 2007, 2008 e 2009. Os pedidos de relatório e outra assessoria sobre
intervenção com mediação aumentaram nesse período de tempo: 25 em 2007; 44 em 2008 e 48 em 2009.
Existem dados disponíveis sobre as medidas em execução a 31 de Dezembro de cada ano e, relativamente
à suspensão do processo, distinguem-se as hipóteses em que houve mediação daquelas em que ela não
ocorreu. Assim, no ano de 2007 refere-se o número de 103 suspensões provisórias do processo, todas com
mediação; em 2008 indicam-se 92 suspensões do processo com mediação e 10 sem mediação; em 2009
mencionam-se 93 suspensões do processo com mediação e 11 sem mediação.
1084
Rejeitando esta interpretação, que considera estribada numa leitura restritiva do n.º 1 do artigo 42.º da
LTE, António DUARTE-FONSECA entende que o conteúdo útil da norma se limita à previsão de que o
Ministério Público deve auxiliar o jovem e os seus próximos a acederem a serviços de mediação quando
aqueles tiverem dificuldade em desencadear o seu funcionamento pelos seus próprios meios (in
“Sobrevivência e erosão do paradigma da protecção em sistemas europeus de justiça juvenil” cit., p. 12),
nada obstando a que a mediação também surja por sua iniciativa.
1085
A excessiva judiciarização da mediação no âmbito tutelar educativo é afirmada no estudo, coordenado
por Boaventura SOUSA SANTOS, Entre a Lei e a Prática – Subsídios para uma Reforma da Lei Tutelar
Educativa, Coimbra: CES/Observatório Permanente à Justiça Portuguesa, 2010, p. 215 ss). Critica-se a
rejeição da mediação fora do sistema judicial, apesar de se admitir que esta pode comportar alguns riscos
(como a desprotecção de direitos fundamentais dos intervenientes ou a falta de qualidade técnica). Quanto
aos dois momentos em que a mediação já surge no processo tutelar educativo, propõe-se um alargamento.
Afirma-se, relativamente ao inquérito tutelar educativo, que se devia esclarecer que a iniciativa pode
caber ao Ministério Público (não tendo este de ficar dependente da promoção da medida pelo menor ou
pelos seus próximos) e também se critica a restrição da mediação enquanto instrumento da elaboração do
plano de conduta, considerando-se que devia ser genericamente admitida enquanto medida que
contribuirá para pôr fim ao processo sempre que a autoridade judiciária homologar o acordo obtido;
quanto ao segundo momento, enjeita-se a excessiva preponderância da vontade do juiz que opta pela
mediação no contexto da audiência preliminar. Mas, para além disso, invocam-se as vantagens da
aceitação de uma mediação pré-judicial (ou mesmo pré-delitual, em espaços vistos como de vocação
conflitual) e de uma mediação posterior ao processo tutelar educativo. Relativamente àquela mediação
pré-delitual, pressupõe-se a heterogeneidade cultural dos jovens que praticam factos qualificados como
crimes e defende-se a mediação social, “com a capacitação de actores estratégicos ao nível local para a
pacificação e solução de conflitos e promoção dos direitos humanos, devendo dar-se especial atenção às
experiências conhecidas entre nós de mediação intercultural” (ob. cit., p. 320). Por outro lado, quanto à
mediação “pós-sentencial”, sugere-se o “investimento na mediação, não apenas como forma de
composição do litígio e de obviar à submissão do jovem a uma audiência, mas ainda como mecanismo ou
instrumento ao serviço da execução da medida aplicada” (ob. cit., p. 217).

616
restaurativas “pós-sentenciais”. Através da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro,
aceitou-se a existência de um “encontro restaurativo” posterior à suspensão provisória
do processo ou à condenação por crime de violência doméstica. E também em 2009, em
resultado da Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, que aprovou o Código da Execução
das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, passou a admitir-se que os reclusos
participem, com o seu consentimento, em programas de justiça restaurativa,
nomeadamente através de sessões de mediação com o ofendido1086. Estes procedimentos
restaurativos estão, porém, ainda muito longe de se tornarem comuns na prática
portuguesa de reacção aos conflitos criminais, por razões ligadas a algumas
insuficiências das previsões legais, mas sobretudo atinentes a lacunas nos sistemas
tendentes à sua concretização. Merecerão, pelos motivos antes elencados, consideração
sucinta em momento posterior deste estudo.
Esboçadas estas considerações introdutórias, porventura já demasiado longas,
volte-se agora a atenção para a mediação penal “de adultos” que pode existir logo na
fase de inquérito, favorecendo um encurtamento da reacção formal. Ao contrário do que
tem sucedido em outros ordenamentos jurídicos que têm vindo a admitir a
implementação de programas restaurativos mesmo não suportados por previsão legal
expressa1087, em Portugal optou-se por criar um regime legal da mediação penal de

1086
Considerem-se, sobretudo, o artigo 39.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e o artigo 47.º, n.º 4
da Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro.
1087
Existem vários exemplos de programas restaurativos postos em prática inicialmente apenas no âmbito
da delinquência juvenil, que depois se foram estendendo ao direito penal “de adultos”, com frequência
mesmo antes da sua consagração legal. Sucedeu assim, nomeadamente, em Itália, onde a mediação penal
de adultos só conheceu acolhimento legal expresso com o decreto legislativo sobre a competência penal
do juiz de paz, em 2000. Sobre essa origem dos programas restaurativos em Itália, ao longo da década de
noventa, cfr. Anna MESTITZ/Simona GHETTI (“Victim-offender mediation and youth offenders: the
italian experience”, Victim-offender Mediation with youth offenders in Europe – An overview and
comparison of 15 countries, Dordrecht: Springer, 2005, p. 321), que sublinham o seu carácter
“espontâneo” e a forma como alguns dos magistrados de Turim que os implementaram foram “fortemente
influenciados” pela introdução da médiation pénale em França. Também em Milão as práticas
restaurativas surgiram inicialmente no âmbito dos ilícitos praticados por menores (cfr., por exemplo,
Federica BRUNELLI, “La Mediazione nel sistema penale minorile. L’esperienza dell’Ufficio di Milano”,
Prassi e teoria della mediazione, Ed. G.V. Pisapia, Padova: Cedam, 2000, p. 63 ss). Para uma reflexão
sobre o direito penal dos menores que não prescinde de uma análise do recurso à mediação e que
reconhece o seu valor pedagógico, cfr. Silvia LARIZZA [Il diritto penale dei minori. Evoluzione e rischi
di involuzione, Padova: Cedam: 2005, p. 274 ss, e também «Le “nuove” risposte istituzionali alla
criminalità minorile”, Trattato di Diritto di Famiglia (Dir. Paolo Zatti), Vol. V – Diritto e Procedura
Penale Minorile, (coord. Elisabeta Fabris/Adonella Pressutti), Milão: Giuffrè, 2.ª ed., 2011, p. 311 ss]. A
tendência para a associação inicial das práticas restaurativas apenas à delinquência juvenil foi evidente
em vários países. Em estudo intitulado “La justice réparatrice en Allemagne” (Criminologie, vol. 32, n.º
1, 1999, p. 108), Frieder DÜNKEL dá conta de que também “na Alemanha os elementos de justiça
restaurativa começaram por ser introduzidos no âmbito da justiça dos menores, aplicando-se a jovens
delinquentes de 14 a 21 anos. Uma nova lei sobre a justiça dos menores foi promulgada na Alemanha no
fim de 1990”. Nesta, já se previa a mediação, nomeadamente como mecanismo de diversão. Em análise
também dedicada à implementação da justiça restaurativa na Alemanha, Hans-Jürgen KERNER refere a

617
adultos enquanto mecanismo de diversão, entre nós introduzida pela Lei n.º 21/2007, de
12 de Junho1088. Ora, o que merece ser sublinhado mesmo antes de se aprofundar a
reflexão crítica sobre este regime jurídico é o aplauso que merece a previsão, em letra
de lei, nomeadamente dos objectivos, dos critérios de envio para mediação, do
procedimento a seguir, dos mecanismos de controlo1089. Ou seja: independentemente de
tais opções merecerem (e, como se verá, nem sempre merecerão) um juízo de
concordância, parece adequada a existência de uma sua disciplina legal.
A compreensão da génese da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, ficaria
irremediavelmente comprometida sem uma referência, ainda que breve, à Decisão-
Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de Março de 2001. Esta consagrou, no seu
artigo 10.º, a exigência de que os Estados-Membro promovessem, até 22 de Março de
2006, a mediação nos processos penais relativos a infracções que considerem
adequadas, devendo os acordos resultantes da mediação poder ser tidos em conta nesses
processos1090. Todavia, o conhecimento dos antecedentes mais directos desta lei n.º

sua ligação inicial à justiça de menores e o seu posterior alargamento aos crimes dos adultos. Considera
que “a maioria dos desenvolvimentos na política criminal, na lei e na prática, na Alemanha, foram, de
uma forma ou de outra, benéficos para a aceitação crescente da mediação vítima-agressor” (in “Crime
control developments in post-modern societies and in societies in transition”, Restorative Justice:
Politics, Policies and Prospects, Eds. E. van der Spuy, S. Parmentier, A. Dissel, Cape Town: Juta & Co.
Ltd, 2008, p. 48. Em estudo dado à estampa em 1998, Elena HIGHTON/ Gladys ALVAREZ/Carlos
GREGORIO (ob. cit., p. 35-6) também apontavam a inicial associação da mediação penal sobretudo à
delinquência juvenil e afirmavam, “a fim de dar uma ideia da magnitude dessas práticas” e para “assinalar
que a mediação penal não é algo exótico ou distante”, que “existem cerca de 300 programas nos Estados
Unidos, 500 na Europa, 50 no Canadá, etc”, sendo que cerca de 95% dos mesmos ocorria no âmbito
daquela delinquência juvenil. Mas acrescentavam que “recentemente e em poucos lugares, começou-se a
trabalhar com casos de crimes violentos e graves, inclusivamente homicídios, praticados por pessoas
adultas, e isso teve início a pedido de vítimas que queriam encontrar-se com aquele que tinha cometido o
crime”. No que respeita ao país vizinho, Rosa Maria Freire PÉREZ (“Experiencias de mediación penal en
el âmbito de la justicia penal de adultos. Amparo normativo e institucional”, La Mediación en Materia de
Familia y Derecho Penal – Estudios y Análisis, coord. Fernando Martín Diz, Santiago de Compostela:
Andavira Editora, 2011, p. 268) esclarece que “as primeiras experiências de mediação penal em Espanha
foram levadas a cabo no âmbito da justiça juvenil, desde os princípios dos anos 90 e foram promovidas
por psicólogos das Equipas Técnicas do Departamento de Justiça da Generalitat da Catalunha”.
Acrescenta que foi também na Catalunha que se desenvolveu, em 1998, “a primeira experiência piloto no
âmbito da justiça penal de adultos”.
1088
Qualquer referência posterior a soluções legais atinentes à mediação penal que surja desacompanhada
de indicação mais precisa tem por objecto esta Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho.
1089
Para uma perspectiva comparativa sobre a forma como as práticas restaurativas têm sido introduzidas
nos países europeus alicerçada na ideia da conveniência e da utilidade do estabelecimento legal de
critérios (por razões, sobretudo, de igualdade e de eficácia), cfr. Jolien WILLEMSENS/David MIERS,
Mapping Restorative Justice Developments in 25 European Countries, Leuven, 2004, European Forum
for Victim-Offender Mediation and Restorative Justice, p. 5 ss. A análise foi, posteriormente, retomada
por David MIERS, que elegeu para reflexão as práticas restaurativas adoptadas em sistemas que o Autor
considera particularmente representativos, como os da Bélgica, Grã-Bretanha, Nova Zelândia e Estados
Unidos (“The international development of restorative justice”, in Handbook of Restorative Justice,
Edited by Gerry Johnstone/Daniel Van Ness, Devon: Willan Publishing, 2007, p. 447 ss).
1090
Cfr. Carlota Pizarro de ALMEIDA, “A propósito da Decisão-Quadro do Conselho de 15 de Março de
2001: algumas considerações (e interrogações) sobre a mediação penal”, RPCC, ano 15, n.º 3, p. 391 ss.

618
21/2007 não deve também desconsiderar o facto de a sua versão final ter sido
antecedida por um anteprojecto1091, que admitia algumas soluções significativamente
diversas daquelas que acabaram por merecer acolhimento no diploma que se tornou
vigente1092.
De forma simplificada – sobretudo por se julgar que não é necessária uma
análise do anteprojecto, impondo-se tão-somente uma ponderação daqueles seus
aspectos que foram contrariados pelas principais opções vertidas na Lei n.º 21/2007 –
pode afirmar-se que aquilo que sobressaía no anteprojecto era, por um lado, a
admissibilidade da mediação penal também no âmbito de crimes públicos puníveis com
pena de prisão não superior a 5 anos e era, por outro lado, a adopção de um sistema de
envio-regra do processo para mediação sempre que estivessem em causa crimes
particulares em sentido amplo (ou seja, um envio do processo para mediação pelo
Ministério Público, depois do recebimento da queixa, independentemente da formulação

1091
Esse anteprojecto foi objecto de discussão pública, promovida pelo Ministério da Justiça, a 3 de
Março de 2006, no CEJ, em Lisboa. A intervenção tida nessa sessão esteve na origem do estudo «A
mediação penal, a justiça restaurativa e o sistema criminal – algumas reflexões suscitadas pelo
anteprojecto que introduz a mediação penal “de adultos” em Portugal», publicado na RPCC, ano 16, n.º 1,
p. 85 ss.
1092
Cumpre, ainda, sublinhar a importância de um programa-piloto de mediação penal, por iniciativa
conjunta da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, da Procuradoria-Geral Distrital do Porto e do
Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto, que celebraram um protocolo em Julho de 2004,
nos termos do qual se propunham favorecer a prática da mediação durante a fase de inquérito do processo
penal relativamente a hipóteses em que fosse admissível o recurso a mecanismos de celeridade e de
consenso como a suspensão provisória do processo. Este “Projecto do Porto” começou a ser posto em
prática em Novembro de 2004. O procedimento iniciava-se com o envio de uma carta pelo Departamento
de Investigação e Acção Penal do Porto aos intervenientes directos no conflito criminal, na qual eram
resumidos os factos constantes do inquérito e se explicavam os objectivos e o modo de funcionamento da
mediação. Quando esta fosse aceite, as sessões teriam lugar na Faculdade de Direito da Universidade do
Porto, em Gabinete destinado a esse fim. Sobre este Projecto, cfr. Maria Teresa MORAIS, «Mediação
penal, o “Projecto do Porto” e o Anteprojecto da Proposta de Lei», p. 135 ss e Josefina CASTRO, “O
processo de mediação em matéria penal. Elementos de reflexão a partir do projecto de investigação-acção
da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto”, p. 145 ss. Ambos os
estudos foram publicados na Revista do Ministério Público, ano 27, n.º 105, Jan-Março, 2006. O facto de
várias práticas restaurativas surgirem, em diversos países, no contexto de programas-piloto é referido por
Lode WALGRAVE no contexto de uma reflexão (crítica) sobre a justiça restaurativa como “proposta
ideal” para uma “sociedade ideal”, mas com dificuldades de aplicação generalizada nas sociedades que
são as nossas. O Autor afirma que tais práticas ainda são configuradas como uma espécie de “ilhas dentro
do sistema tradicional” e vistas como um “favor” deste sistema, que as tolera – como “reservas de
experimentação” – na medida em que não as considera perigosas para a “verdadeira justiça” (Lode
WALGRAVE, “Introduction”, Restorative Justice and the Law, Ed. Lode Walgrave, Devon: Willan
Publishing, 2002, ps. xv-xvi). O carácter experimental que assumiu o período inicial de vigência da Lei
n.º 21/2007, de 12 de Junho, era claro e manifestava-se, desde logo, na sua limitação espacial. O artigo
14.º do diploma, sob a epígrafe “período experimental”, fixava um pazo de dois anos durante o qual a
mediação penal funcionaria apenas em algumas circunscrições e dispunha que o Ministério da Justiça
“adopta as medidas necessárias à monitorização e avaliação da mediação em processo penal”. Uma dessas
medidas foi a celebração de um Protocolo de Cooperação entre o Ministério da Justiça (representado pelo
GRAL) e a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, em 21 de Dezembro de 2007.

619
de um qualquer juízo de conveniência à luz das finalidades de prevenção geral e
especial).
Assim, naquele anteprojecto tinha-se evitado a tendência para reservar a
mediação penal apenas aos crimes cujo procedimento criminal depende de queixa e, por
isso, aqueles relativamente aos quais é mais fácil assumir a disponibilidade do processo
pelas partes, na medida em que, com tal solução, nenhum princípio conformador da
promoção processual penal parece excepcionado (e relembre-se apenas, como se
necessário fosse, que, quanto aos crimes particulares, se admite a desistência de queixa
até à publicação da sentença da primeira instância1093, o que deixa já nas mãos dos
envolvidos um largo espaço de liberdade de “negociação” quanto à continuação do
processo penal).
Em moldes que se consideravam correctos, o anteprojecto abria a possibilidade
de mediação também a alguns crimes públicos e, reconhecendo a diferença qualitativa
entre estes e os crimes particulares em sentido amplo, assumia-a na arquitectura do
próprio projecto legislativo, cuja estrutura era desenhada com base nessa diversidade.
Assim, a primazia da prossecução do interesse da comunidade nos crimes públicos
impunha uma tramitação específica, relativamente a esses crimes, para a mediação
penal que então se pretendia admitir.
Aquela diferença qualitativa entre os crimes particulares e os crimes públicos
repercutia-se no procedimento de mediação desde logo no que respeitava ao aspecto
temporal. Enquanto relativamente àqueles se antecipava a possibilidade de mediação
para os primeiros momentos do inquérito, comprovada a existência de alguns indícios;
no que respeitava aos crimes públicos, a necessidade de aferição de elementos que
impusessem a prossecução do interesse público face à ponderação das exigências
preventivas “empurrava” o ajuizamento da possibilidade de mediação para momento
posterior. Pretendia-se garantir que a mediação, enquanto mecanismo de diversão, fosse
encarada como alternativa à acusação e aproveitava-se um instituto já conhecido pelo
direito processual penal português – a suspensão provisória do processo – para
introduzir a possibilidade de mediação relativamente aos crimes públicos sem a criação
de incoerências no próprio sistema processual penal.

1093
Nos termos do artigo 116.º, n.º 2 do CP, “o queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja
oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1.ª instância. A desistência impede que a queixa seja
renovada”.

620
Assim, enquanto a obtenção de um acordo na mediação relativa a um crime
particular equivaleria a uma desistência de queixa que punha fim ao processo, já quanto
aos crimes públicos não poderia ser essa a solução – não se podia, quanto a eles,
recorrer ao instituto, já conhecido, da desistência de queixa, só admissível no âmbito
dos crimes particulares –, pelo que se optou por considerar que, havendo acordo como
resultado da mediação atinente a um crime público, esse acordo poderia desencadear
uma suspensão provisória do processo.
Uma das principais fragilidades do anteprojecto, no que respeita à mediação
penal admitida para alguns crimes públicos, prendia-se, porém, precisamente com as
consequências associadas à obtenção de acordo entre o arguido e o ofendido e à sua
articulação com o regime da suspensão provisória do processo. Nos termos do n.º 1 do
seu artigo 4.º dispunha-se que, transmitido o acordo pelo mediador ao Ministério
Público, este “suspende provisoriamente o processo, determinando a condição de o
arguido cumprir o acordo resultante da mediação”. Suscitavam-se, relativamente a esta
opção, dois problemas principais: por um lado, a obrigação que daqui parecia resultar
para o ministério público de suspender provisoriamente o processo sem inquirir se os
termos do acordo eram suficientes à satisfação das finalidades de prevenção especial e
geral; por outro lado, a ausência de qualquer exigência de intervenção do juiz de
instrução, ao contrário do que ocorre no regime previsto no artigo 281.º do CPP1094.
Apesar da possibilidade de se ultrapassarem estas críticas em uma versão final
da lei que continuasse a admitir a mediação penal para os crimes públicos – teria
bastado, segundo se julga, condicionar a suspensão provisória do processo posterior ao
acordo à verificação pelo Ministério Público da suficiência do conteúdo do mesmo à luz
das finalidades preventivas, passando ainda a exigir-se a manifestação de concordância
do juiz de instrução –, o legislador optou por, na Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho,
excluir todos os crimes públicos do âmbito material da mediação penal.

1094
Ora, se se compreende que, perante, um crime particular, o Ministério Público não tenha de ponderar
se o acordo é suficiente para responder às necessidades preventivas que se façam sentir no caso (afinal, há
uma disponibilidade do processo pelas partes, independentemente de qualquer valoração daquela
natureza), já nos crimes públicos existe – perdoe-se a redundância – um interesse público que cabe às
autoridades judiciárias salvaguardar. Quando envia o processo para mediação em um crime público –
hipótese que, não é demais repetir, acabou por não vingar na lei vigente –, o Ministério Público acredita
que a obtenção de um acordo pode ser vantajosa para o ofendido e para o arguido e que o conteúdo do
mesmo pode vir a ser suficiente para salvaguardar as necessidades de prevenção especial e geral. Mas só
depois de conhecer o conteúdo do acordo pode concluir se de facto assim é. A admitir-se que o Ministério
Público ficaria vinculado à suspensão provisória do processo em crimes públicos por força do mero
acordo de vontades entre o arguido e o ofendido, estar-se-ia a pôr em causa o princípio da oficialidade
(que, nos termos legais, vale sem restrições quando àqueles crimes), na medida em que deixaria de caber
a uma entidade estadual a decisão de submeter ou não a causa a julgamento.

621
Esta é, porém, uma solução que não se julga inscrita na “natureza das coisas”,
desde logo porque se conhecem, em países que partilham da nossa tradição jurídica,
práticas de mediação penal aplicáveis a crimes públicos, mas também porque nesses
crimes pode existir um conflito com dimensão pessoal ou interpessoal carecido de uma
possibilidade de pacificação. Ou seja, do facto de relativamente aos crimes públicos não
ser possível extrair do acordo obtido com a mediação uma diversão não condicionada à
verificação por autoridade judiciária da satisfação das finalidades preventivas não pode
extrair-se a conclusão da incompatibilidade de princípio dessa mesma mediação com
aqueles crimes1095.
Compreende-se que exista uma diferença significativa entre as consequências
que a mediação penal pode ter em crimes públicos e em crimes particulares. A opção,
vertida pelo legislador na qualificação de um crime sob o ponto de vista da sua
promoção processual, indicia uma valoração quanto aos interesses que preponderam na
reacção estadual ao delito. Dito da forma que se pretende mais simples: se um crime é
público, é porque se considera que existe um interesse comunitário na punição que
prevalece sobre as vontades individuais quanto à intervenção punitiva do Estado;
quando se qualifica um crime como particular é porque se julga que os interesses dos
concretos intervenientes no conflito merecem preponderar sobre uma decisão de
protecção de valores orientada por um ajuizamento do interesse colectivo.
Por ser assim, a relevância para efeitos penais assumida por um acordo de
vontades do arguido e do ofendido através da mediação penal não pode ser a mesma
num crime público ou num crime particular. Isto não significa, todavia, que a
mediação, enquanto instrumento da justiça restaurativa, não tenha o mesmo
fundamento e assuma as mesmas finalidades em ambos os casos. Em qualquer uma das
situações, a mediação penal fornece uma possibilidade de encontro pré-ordenada a uma
pacificação do conflito (inter)pessoal. O que se passa, porém, é que a relevância dessa
pacificação será diversa consoante o crime seja público ou particular, porque na
primeira hipótese ela pode não ser suficiente para tornar desnecessária a aplicação do
direito penal, à luz das suas específicas finalidades.

1095
Em sentido que parece oposto, cfr. André LAMAS LEITE, A Mediação Penal de Adultos, Um Novo
“Paradigma” de Justiça, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 56. Segundo o Autor, “admitir nos crimes
públicos, como regra, o recurso a este mecanismo de diversion, seria introduzir entorses ao entendimento
de bem jurídico fundante do étimo da essência da materialidade definidora do delito”. Vinque-se, porém,
que esta opinião surge condicionada a uma compreensão da mediação apenas enquanto mecanismo de
diversão e não se desconsidere que as reticências assumidas são definidas como “temporárias”.

622
Daqui decorre a importância da afirmação – que é, de resto, consequência
daquilo que em momentos anteriores deste estudo se procurou mostrar – de que a opção
pela mediação penal não deve ser feita sobretudo em função dos critérios que são as
finalidades da pena. Esses critérios serão relevantes – quando se admitir a mediação
também no âmbito dos crimes públicos – para aferir da necessidade de uma intervenção
penal que está para além da intervenção restaurativa.
Não parece ter sido este, porém, o entendimento acolhido pelo legislador
português, que condicionou, na Lei n.º 21/2007, o envio do processo pelo Ministério
Público para mediação ao seu entendimento de que “desse modo se pode responder
adequadamente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir”1096.
Ora, se um tal critério de envio do processo para mediação já seria questionável
relativamente a crimes públicos (apesar de já ser o critério relevante para, em outro
momento, se ajuizar das consequências que o resultado dessa mediação poderia assumir
no plano da justiça penal), julga-se que a sua fragilidade se adensa quando estão em
causa crimes particulares. Relativamente a estes, em que o próprio cumprimento das
finalidades preventivas associadas à punição pode decair perante a vontade do ofendido
e do arguido de que o processo penal não continue, compreende-se especialmente mal
que a decisão de envio para mediação pelo Ministério Público seja condicionada por um
juízo sobre aquelas mesmas finalidades preventivas.
O reconhecimento daquela não prevalência absoluta das finalidades preventivas
no que respeita à existência de mediação nos crimes particulares – o que torna
incompreensível a sua eleição a critério para o envio – resulta, de resto, claramente do
disposto no n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho: “se o ofendido e o
arguido requererem a mediação, nos casos em que esta é admitida ao abrigo da presente
lei, o Ministério Público designa um mediador nos termos do número anterior,
independentemente da verificação dos requisitos aí previstos”. Sendo a mediação
requerida pelo ofendido e pelo arguido, torna-se irrelevante para aferir da possibilidade
de mediação a convicção do Ministério Público sobre a possibilidade de assim se lograr
uma solução para o conflito que favoreça “as exigências de prevenção”.
Este segmento normativo só é compreensível a partir da ideia de que aquilo que
se persegue com a mediação penal não é em primeira linha a obtenção de finalidades de

1096
Cfr. o artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho.

623
prevenção especial e geral, ainda que elas possam ser atingidas de forma mediata1097.
Assim, são vários os argumentos contrários à opção assumida pelo legislador português
de condicionar a mediação penal por crimes particulares a este crivo do Ministério
Público previsto no n.º 1 do artigo 3.º: o critério parece incoerente com a própria
natureza dos crimes sob o ponto de vista da promoção processual; o critério subordina
as finalidades da mediação penal à prossecução das finalidades especificamente penais,
não se reconhecendo que com as práticas restaurativas se procura dar resposta a uma
outra dimensão do conflito; este critério restringe de forma indevida o acesso à
mediação penal por arguidos e ofendidos no âmbito dos crimes particulares, em medida
que parece incompatível nomeadamente com a consagração, em instrumentos supra-
estaduais que nos vinculam, do acesso à mediação como direito das vítimas de
crimes1098.
De resto, não é impensável que a própria inclusão na lei da possibilidade desta
mediação penal a requerimento do ofendido e do arguido, independentemente de
qualquer valoração do Ministério Público, tenha na base a aceitação da desadequação e
da insuficiência de uma mediação penal decidida pelo Ministério Público a partir
daquele critério associado às finalidades preventivas1099. Ainda assim, parece que a

1097
Este entendimento não é, porém, incontroverso. Com opinião diferente veja-se, a título de exemplo,
André LAMAS LEITE, A Mediação Penal de Adultos, Um Novo “Paradigma” de Justiça, Coimbra
Editora: 2008, p. 49 ss. Para o Autor, «a solução mediada visa a satisfação das necessidades preventivas-
gerais e especiais e “a reparação dos danos causados pelo facto ilícito”». E esclarece, ainda, que estas
finalidades são cumulativas, até porque, “como intervenção sancionatória que é, este mecanismo de RAL
comparticipa das finalidades genéricas da intervenção penal, sem ser possível identificar objectivos
prioritários e – aí bem andou a nossa Lei – fazendo deles um todo coerente e não uma espécie de
instrumento em que nos bastamos apenas com uma das finalidades”.
1098
E tome-se, a título de exemplo, a Decisão-Quadro n.º 2001/220/JAI, do Conselho, que parece incluir a
mediação penal em um conjunto mais vasto de medidas orientadas para a protecção dos direitos das
vítimas de crimes. Com opinião oposta sobre a adequação da intervenção do Ministério Público nos
termos eleitos pelo legislador português, cfr. GONZÁLEZ-CASTELL, Adán Carrizo (“La mediación
penal en España”, La Mediación en Materia de Família y Derecho Penal, Estudios y Análisis, coord.
Fernando Diz, Santiago de Compostela: Andavira Editora, 2011, ps. 237-243), que analisa o regime
jurídico constante da Lei n.º 21/2007, concluindo que a opção de “atribuição ao ministério público da
faculdade de remeter um processo para mediação, ainda que matizada, seria perfeitamente transponível “
para o direito espanhol.
1099
Em sentido divergente do aqui sustentado, André LAMAS LEITE manifesta a sua discordância face à
previsão desta mediação penal a requerimento do ofendido e do arguido (e sustenta a necessidade de uma
valoração por parte do Ministério Público): «para além de caber ao MP a competência de remeter certos
processos para mediação, tem sido questionado se tal faculdade deve também ser reconhecida aos
próprios sujeitos do conflito penal. Na última versão resultante do debate parlamentar na especialidade,
depois vertida em letra de lei, prevê o art. 3.º, n.º 2, que, a requerimento do ofendido e do arguido, mas
sempre respeitado o âmbito material de aplicação desta espécie de RAL, nasce para o MP a obrigação de
indicar um mediador, dispensando-se agora qualquer juízo prudencial daquele órgão de aplicação da
justiça. Creio bem ter-se ido longe demais, porventura na senda da ideia de que o Estado “roubou” o
conflito aos particulares» (A Mediação Penal de Adultos, Um Novo “Paradigma” de Justiça, Coimbra
Editora: 2008, p. 72).

624
correcção introduzida pelo n.º 2 do artigo 3.º é insuficiente para corrigir a falha do seu
n.º 1, porque a exigência de que o requerimento seja feito pelo ofendido e pelo arguido
suscita entraves à exequibilidade de uma mediação não determinada exclusivamente
pela autoridade judiciária: é improvável que, num momento anterior à pacificação do
conflito, ocorra uma qualquer concertação de vontades entre os intervenientes concretos
nesse mesmo conflito.
Finalmente, não pode deixar de se referir que a forma como o legislador
condicionou a existência da mediação penal a uma decisão da autoridade judiciária em
função de critérios que não se julgam inteiramente coerentes parece idónea, também à
luz de ponderações de sociologia judiciária, a causar entraves a uma utilização
significativa deste mecanismo restaurativo. Não se pretende, naturalmente, adentrar o
tema, que Boaventura de SOUSA SANTOS reconhece que é “muito amplo” e no qual
“se incluem objectos de análise muito diversos”. O que se julga é que, representando a
mediação penal uma outra forma de reacção ao conflito criminal – e uma forma em
que, até certo ponto, se substitui o poder de conformação da decisão atribuído às
autoridades judiciárias por um poder de conformação que passa a estar na titularidade
dos intervenientes concretos no conflito –, parece questionável a opção de deixar a
existência da mediação penal (relativamente a crimes particulares) precisamente sob a
alçada daquela autoridade judiciária que, de certo modo, talvez possa sentir-se
“desapossada”, precisamente por força dessa mesma mediação penal, de um poder-
dever que tinha como seu1100.

1100
Boaventura de SOUSA SANTOS dá conta, entre vários outros aspectos, de que “a administração da
justiça como uma instância política foi inicialmente propugnada pelos cientistas políticos que viram nos
tribunais um subsistema do sistema político global, partilhando com este a característica de processarem
uma série de inputs externos constituídos por estímulos, pressões, exigências sociais e políticas e de,
através de mecanismos de conversão, produzirem outputs (as decisões) portadoras elas próprias de um
impacto social e político nos restantes subsistemas”. Apesar de as suas referências se centrarem
essencialmente no tribunal ou nos juízes e de, no caso da mediação penal, estar sob o enfoque analítico
antes o Ministério Público, julga-se ainda pertinente a referência feita pelo Autor à “ideologia da
magistratura”, pondo em causa o “mito do apoliticismo da função judicial” e revelando “grandes
tendências ideológicas” (que foram estudadas a propósito da magistratura italiana). Essas tendências são
agrupadas sob a designação “estrutural-funcionalista” (com prevalência da “ordem, do equilíbrio e da
segurança social, da certeza do direito, que agrupa os juízes e magistrados conservadores ou moderados,
defensores da divisão dos poderes, adeptos das soluções tradicionais”); a designação “conflitivismo
pluralista”, em que “prevalecem as ideias de mudança social e se defende o reformismo”; e a designação
“conflitivismo dicotómico de tipo marxista”, que “agrupa os juízes apostados num uso alternativo do
direito, numa função mais criadora da magistratura enquanto contribuição do direito para a construção de
uma sociedade verdadeiramente igualitária” (Pela Mão de Alice – O Social e o Político na Pós-
Modernidade, Porto: Edições Afrontamento: 1999, 7.ª edição, ps. 150-2).

625
1.2.Uma opção “minimalista” quanto ao âmbito de aplicação material e
temporal

A opção que o legislador português acabou por verter na Lei n.º 21/2007, de 12
de Junho, corresponde a uma solução minimalista, não só se considerarmos o seu
âmbito temporal – como já resultou das considerações acabadas de tecer sobre a
possibilidade de recurso à mediação exclusivamente na fase de inquérito e enquanto
mecanismo de diversão –, mas também se ponderarmos o seu âmbito material1101.
É agora este – o âmbito material da mediação penal, referente ao conjunto de
crimes relativamente aos quais se admite a mediação penal – que se deve considerar.
O que de imediato sobressai quando se interroga o universo de crimes passíveis
de mediação como forma de diversão é a sua redução aos crimes particulares em sentido
estrito e aos crimes semi-públicos que sejam crimes contra as pessoas ou contra o
património (e, mesmo quanto a estes, com as exclusões expressas decorrentes do n.º 3
do artigo 2.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho).
Uma das várias razões pelas quais a opção do legislador português merece o
apodo de minimalista prende-se com a forma como este âmbito material da Lei se
repercute num determinado recorte dos conflitos “mediáveis” e dos sujeitos com
legitimidade para participarem na mediação. Ao limitar a mediação aos crimes
particulares em sentido amplo, o legislador vincou que a mediação penal é um assunto
do ofendido e apenas do ofendido titular de um direito de queixa que simboliza uma
certa disponibilidade do processo face à sua vontade1102.

1101
Aflorando o assunto, Paulo PINTO DE ALBUQUERQUE afirma que “ao desafio da justiça
restaurativa, de uma justiça ao serviço da vítima, centrada na reposição da situação da vítima anterior à
verificação do dano causado pelo arguido, o projecto responde de forma contida e contraditória. A
mediação entre a vítima e o arguido não é obrigatória e ampla, como deveria ser pelo menos nos crimes
particulares e semi-públicos. Ao invés, o governo propõe uma mediação facultativa e muito limitada
materialmente” (“Os princípios estruturantes do processo penal português – que futuro?”, Que Futuro
para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO,
Fernando Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 434). Este modelo, que limita
a aplicação da mediação é, de algum modo, contraditório com a preferência que o legislador manifesta
por ela, nomeadamente em sede de orientações político-criminais. Logo no artigo 12.º, n.º 1, al. g) da Lei
n.º 51/2007, de 31 de Agosto [que definia os objectivos, prioridades e orientações de política criminal
para o biénio de 2007/2009, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio (Lei Quadro da Política
Criminal)], dispunha-se que “os magistrados do Ministério Público privilegiam, no âmbito das suas
competências e de acordo com as directivas e instruções genéricas aprovadas pelo Procurador-Geral da
República, a aplicação aos crimes previstos no artigo anterior das seguintes medidas: (…) g) mediação
penal”. Adoptou-se solução idêntica no artigo 16.º, n.º 1, al. g) da Lei n.º 38/2009, de 20 de Julho, que
define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2009-2011.
1102
Isto sem prejuízo, note-se, daquelas hipóteses excepcionais em que se admite que participe na
mediação um queixoso que não coincide com o ofendido, porque este não possui discernimento para
entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa ou porque morreu (cfr. art. 2.º, n.º 4).

626
Julga-se que daqui decorrem duas conclusões principais, de relevância não
despicienda. Em primeiro lugar, vinca-se que esta mediação penal não é um “assunto”
de todas as vítimas – mesmo que se dê a “vítima” um sentido restrito àqueles que
sofreram prejuízos associados a um crime –, mas sobretudo um assunto do ofendido e
do arguido. Ou seja: esta prática restaurativa que foi reconhecida pelo sistema
português pressupõe uma redução do “universo restaurativo” aos conflitos criminais e
erige a intervenientes principais os intervenientes na questão dita penal, não assumindo
em primeira linha outros critérios de participação, como o da existência de danos
causados a um lesado ou o das necessidades especificamente assistenciais. Assim,
dispõe-se logo no n.º 1 do artigo 4.º da Lei que “a mediação é um processo informal e
flexível, conduzido por um terceiro imparcial, o mediador, que promove a aproximação
entre o arguido e o ofendido e os apoia na tentativa de encontrar activamente um acordo
que permita a reparação dos danos causados pelo facto ilícito e contribua para a
restauração da paz social”. E só no n.º 3 do mesmo artigo se acrescenta que “quando se
revista de utilidade para a boa resolução do conflito podem ser chamados a intervir na
mediação outros interessados, nomeadamente eventuais responsáveis civis e
lesados”1103.
Ao optar-se pela referência sistemática ao arguido e ao ofendido como sujeitos
principais da mediação penal, fica clara a configuração desta mediação como
procedimento orientado para um conflito criminal. Para o legislador português, a
mediação penal tem como sujeito o ofendido pelo cometimento de um crime (no sentido
técnico-jurídico que é o seu) e não qualquer outra pessoa, eventualmente ainda
subsumível em um conceito mais amplo de vítima.
Por outro lado, também resulta da opção legislativa que nem todos os ofendidos
têm a possibilidade de participar em um procedimento de mediação penal, mas apenas
aqueles ofendidos por crime particular em sentido estrito1104 ou por crime semi-público

1103
Recorreu-se aqui ao itálico para sublinhar os conceitos de “arguido”, “ofendido”, “responsáveis civis”
e “lesados”, não constando esse “sublinhado” do texto legal.
1104
Em princípio, tratando-se de um crime particular em sentido estrito, a participação na mediação penal
será não já a do ofendido, mas antes a do assistente, tendo em conta a imposição, nos termos do art. 68.º,
n.º 2 do CPP, de que o requerimento para constituição de assistente seja feito “no prazo de 10 dias a
contar da advertência referida no n.º 4 do artigo 246º”. Esta norma prevê que “o denunciante pode
declarar, na denúncia, que deseja constituir-se assistente. Tratando-se de crime cujo procedimento
depende de acusação particular, a declaração é obrigatória, devendo, neste caso, a autoridade judiciária ou
o órgão de polícia criminal a quem a denúncia for feita verbalmente advertir o denunciante da
obrigatoriedade de constituição de assistente e dos procedimentos a observar”. Por outro lado, dispõe-se
no n.º 1 do art. 50.º do CPP que “quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do
ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e

627
contra as pessoas ou contra o património que se não inclua, para além disso, numa das
hipóteses de exclusão da mediação elencadas no n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 21/2007,
de 12 de Junho.
A abertura da possibilidade desta mediação-mecanismo de diversão apenas aos
ofendidos por alguns crimes particulares parece coerente, a um primeiro olhar, com
princípios conformadores do nosso modelo de reacção ao crime. Eles imporiam uma
restrição material, portanto, a conflitos relativamente aos quais já se admitia a
composição privada.
Ademais, nem todos os ofendidos pela prática de um crime particular em sentido
amplo, nem todos os agentes de crimes assim qualificados sob o ponto de vista da
promoção processual, têm a possibilidade de participação na mediação penal. De facto,
além de se restringir o âmbito da mediação aos crimes contra as pessoas e contra o
património, há crimes particulares contra as pessoas que são objecto de exclusão
expressa, nomeadamente os crimes contra a liberdade ou autodeterminação sexual.
Relativamente a estes, o legislador parece ter acolhido o entendimento de que o
“encontro” com o agressor seria sempre desfavorável para a vítima, destituída de uma
possibilidade de “empoderamento” do conflito. Tratando-se de crimes cujo
procedimento depende de queixa e excluindo-se as hipóteses de intervenção na
mediação de menores de 16 anos, não se julga que tal solução seja inquestionável,
parecendo reveladora de um certo “paternalismo”. Apesar da não coincidência absoluta
dos problemas, um seu certo paralelismo justifica a opção pela consideração conjunta,
em momento posterior deste estudo, a propósito da opção legislativa respeitante aos
crimes de violência doméstica.
Finalmente, este “universo” já muito reduzido de crimes passíveis de mediação é
ainda objecto de um outro estreitamento, por força da previsão legal de que a mediação
em processo penal não pode ter lugar quando seja aplicável processo sumário ou
sumaríssimo, nos termos do artigo 2.º, n.º 3, al. e) da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho.
De forma simplificada, poder-se-á extrair daqui a conclusão de que o legislador afastou
a possibilidade de mediação penal sempre que haja detenção em flagrante delito e

deduzam acusação particular”. Surgindo a mediação, nos termos da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho,
como um mecanismo de diversão processual, ela pressupõe a existência de um inquérito no âmbito do
qual o Ministério Público aferiu da existência de alguns indícios de cometimento do crime. O que,
tratando-se nesse inquérito de um crime particular em sentido estrito, indiciaria em princípio a existência
de um assistente. Não se julga, porém, que seja obrigatoriamente assim. Tendo em conta o carácter
oneroso da constituição de assistente, a posição da vítima será fortalecida caso possa participar, como
ofendido, na mediação penal por crime particular em sentido estrito.

628
sempre que o Ministério Público considere que não é necessária a cominação de uma
sanção privativa da liberdade.
Se, relativamente ao processo sumário, a opção legislativa ainda se compreende
– concorde-se ou não com ela – como expressão de uma preferência pela celeridade que
ficaria prejudicada pela existência da mediação, já o mesmo se não pode dizer
relativamente ao processo sumaríssimo.
De facto, se por um lado se julga que uma mediação penal que não atinja o
acordo não tem de obstar à opção do Ministério Público pelo processo sumaríssimo (ou
seja, a opção pela primeira não inviabiliza em definitivo o recurso ao segundo), por
outro lado crê-se que a solução do conflito através do consenso inerente à mediação
penal pode ser melhor do que a solução do conflito através do consenso que caracteriza
o processo sumaríssimo. Trata-se, como em vários momentos deste estudo se viu, de
consensos diferentes. Para além da diversa possibilidade de construção da solução pelo
arguido e pelo ofendido (mais ampla na mediação penal e não determinada pelas
finalidades penais cuja defesa incumbe às autoridades judiciárias), o problema está
também no facto de o consenso inerente ao processo sumaríssimo ser muito menos
alargado. Assim, só no caso dos crimes particulares em sentido estrito é que se exige a
concordância do assistente com a decisão da causa em processo sumaríssimo. Por outro
lado, não se admite a intervenção de partes civis neste processo especial, ficando
prejudicada a dedução do pedido de indemnização civil, apesar de se aceitar que o
lesado manifeste a intenção de obter a reparação dos danos sofridos até ao requerimento
do Ministério Público de aplicação da pena em processo sumaríssimo. Nesta hipótese, o
Ministério Público deve indicar, naquele requerimento, a quantia exacta a atribuir a
título de reparação1105.
Ora, tendo em conta estes vários factores, crê-se que a solução obtida através do
consenso inerente à mediação penal pode ser mais favorável, quer para o ofendido, quer
para o arguido (que logra evitar a condenação a que ainda é sujeito no processo
sumaríssimo) do que a solução decorrente da sujeição do processo à forma sumaríssima.
Assim sendo, não se compreendem as razões pelas quais o Ministério Público deve
rejeitar o envio do processo para mediação em nome de uma eventual opção pelo

1105
Dispõe-se, no n.º 1 do artigo 393.º do CPP, que “não é permitida, em processo sumaríssimo, a
intervenção de partes civis, sem prejuízo do disposto no número seguinte”. No n.º 2 do mesmo artigo
estabelece-se que “até ao momento da apresentação do requerimento do Ministério Público referido no
artigo anterior, pode o lesado manifestar a intenção de obter a reparação dos danos sofridos, caso em que
aquele requerimento deverá conter a indicação a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 394.º”.

629
processo sumaríssimo que, para mais, só deveria ser tomada na fase final do
inquérito1106.

2.A Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho: um regime minimalista quanto às opções


do legislador

Questão distinta da limitação da mediação penal a um leque restrito de crimes e


a um tempo processual que não se estende para além do inquérito1107 – o que sustentou
a conclusão do minimalismo da opção portuguesa no que respeita ao âmbito da
mediação – é a afirmação do carácter minimalista da própria Lei n.º 21/2007, de 12 de
Junho, na medida em que deixa sem resposta expressa várias questões que porventura
deveriam ter merecido a atenção do legislador.

2.1. Algumas (in)certezas quanto aos participantes

Um dos aspectos que não tem resposta clara naquele regime jurídico da
mediação prende-se com a delimitação exacta do número dos participantes (pode
questionar-se, por exemplo, se o modelo pressupõe apenas a intervenção de um
mediador, um ofendido e um arguido, ou se pelo contrário se concebe a participação de
outros ofendidos, outros arguidos e eventualmente outras pessoas que revelem alguma
conexão com aquele específico conflito), assim como com a definição exacta do sentido
da intervenção dos vários sujeitos e do modo da sua participação1108 (tenha-se, em

1106
De forma crítica relativamente à solução constante da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, quanto ao
modo de relacionamento entre a mediação penal e os processos especiais, cfr. Rui do CARMO, “Um
exercício de leitura do regime jurídico da mediação penal”, RPCC, ano 20, n.º 3, Julho-Setembro de 2010,
ps. 472-4.
1107
Contra esta limitação da mediação à fase de inquérito, cfr. Mário Ferreira MONTE (“Um balanço
provisório sobre a Lei de Mediação Penal de Adultos” cit., p. 117 ss), que elenca um conjunto de razões
“para admitir a mediação em qualquer fase do processo”.
1108
Entre os vários problemas atinentes ao modo de participação na mediação, pode questionar-se a
conveniência da mediação indirecta (aquela em que o arguido e o ofendido não se encontram num mesmo
espaço, antes vão interagindo apenas com o mediador, que transmite ao interlocutor aquilo que o outro
pretende que chegue ao seu conhecimento) ou a admissibilidade da mediação online. Se a primeira está,
já, sedimentada em vários programas restaurativos, a segunda suscita alguma controvérsia. Para uma
descrição dos argumentos contra e a favor desta mediação online, cfr Federico Bueno de MATA. O Autor
afirma que “a viabilidade técnica é hoje totalmente certa, podem utilizar-se diferentes suportes
tecnológicos para realizar uma comunicação online” e opina no sentido de que “há muito mais vantagens
do que inconvenientes na mediação online (…). As partes que não podem encontrar-se cara a cara por
causa da distância, ou por causa do custo relativo da disputa, poderão conduzir um sistema razoável e
lógico para terminar com a disputa” (“Mediación online: la mediación del futuro?”, La mediación en
Materia de Família y Derecho Penal, Estudios y Análisis, coord. Fernando Diz, Santiago de Compostela:
Andavira Editora, 2011, ps. 91 e 101).

630
conta, nomeadamente, o problema suscitado pela possibilidade que o arguido e o
ofendido têm de se fazerem “acompanhar de advogado ou advogado estagiário”).
Reflicta-se, em primeiro lugar, sobre aquelas hipóteses em que se excepciona a
existência de apenas um ofendido; considerem-se depois os casos em que também se
não cumpre o modelo da existência de um e apenas um arguido; ponderem-se
finalmente os problemas relacionados com a possível intervenção de outros sujeitos na
mediação penal.

2.1.1.A pluralidade de ofendidos

No que respeita ao ofendido e aos problemas postos pela sua participação na


mediação penal, podem distinguir-se as hipóteses de uma sua inexistência daquelas
outras em que se afirma uma sua pluralidade. Parece porém impor-se aqui, em uma
perspectiva metodológica, um esclarecimento conceptual, porque aquela inexistência
pode relacionar-se, em certo sentido, com um problema de pluralidade. Quando aqui se
refere a inexistência de um ofendido têm-se em conta os denominados “crimes de vítima
abstracta” ou os “crimes sem vítima”, sujeitos ao denominador da inexistência de uma
vítima individualizada ou com a consciência da sua própria vitimização. Ou seja,
porventura com mais rigor: nos crimes sem vítima, ninguém se sente ofendido; nos
crimes de vítima abstracta, não há um ofendido mas existem várias e indeterminadas
vítimas. Considerar-se-ão estas hipóteses como de inexistência de um ofendido. Sob a
designação da pluralidade de ofendidos considerar-se-ão, pelo contrário, aquelas
hipóteses em que do crime resulta não um mas vários ofendidos, individualizáveis e
conscientes da sua vitimização.
Ponderem-se, em primeiro lugar, os casos de inexistência de um ofendido. No
anteprojecto, que admitia a mediação penal para certos crimes públicos puníveis com
prisão não superior a 5 anos, parecia excluir-se a possibilidade de mediação nas
situações em que não houvesse um ofendido que assumisse, individualmente, esse
papel. Logo na exposição de motivos daquele anteprojecto, podia ler-se que «introduz-
se apenas a mediação directa” – ou seja, entre o arguido e o ofendido, sem
possibilidades de estes se fazerem representar – (…). É por essa razão que se refere o
“ofendido” e não o “queixoso” ou o “assistente”, por não se querer abranger outros
titulares do direito de queixa ou pessoas com a possibilidade de se constituírem
assistentes diferentes do ofendido».

631
Na versão final da lei, a redução do seu âmbito material de aplicação a alguns
crimes particulares em sentido amplo (e que sejam crimes contra as pessoas ou crimes
contra o património nas hipóteses de crimes semi-públicos) tende a eliminar, pelo
menos no plano do direito constituído, este problema, na medida em que naqueles
crimes, por força do referente individual que os bens jurídicos protegidos incorporam, é
de relativa facilidade a identificação dos ofendidos “individuais” com legitimidade para
o exercício do direito de queixa e, portanto, também com legitimidade para a
participação na mediação penal1109.
Todavia, agora já no plano do direito a constituir, não é incontroversa a exclusão
da mediação penal relativamente a crimes em que não existam ofendidos “individuais”,
nomeadamente em hipóteses de vitimização abstracta. John BRAITHWAITE, por
exemplo, a propósito da criminalidade de colarinho branco (que com frequência é
causadora de vitimização abstracta), refere as vantagens da proposta restaurativa e da
reparação dos danos causados, por contraposição à abordagem dita punitiva. Afirma, a
título de exemplo, que os poluidores poderiam desenvolver programas de recuperação
ambiental; as empresas da indústria farmacêutica, quando fossem agentes de crimes,
poderiam fornecer gratuitamente medicamentos a certos sectores da população ou
investir mais na investigação da cura para determinadas doenças; no sector da
restauração, os infractores que tivessem, por exemplo, vendido produtos alimentares em
condições inadequadas poderiam oferecer, sob vigilância e cumpridos certos requisitos,
refeições a elementos mais carenciados da comunidade1110.
Assim, a ideia que neste momento se pretende reforçar – e não mais do que isso,
até porque a questão já foi objecto de ponderação em momento anterior deste estudo – é
a de que não existe uma impossibilidade absoluta de recurso a práticas restaurativas – e,
nomeadamente, à mediação penal – mesmo no âmbito dos crimes em que não haja

1109
A pessoa com legitimidade para participar na mediação penal pode, porém, não ser o ofendido,
quando este não coincidir com o queixoso. Nos termos do n.º 4 do artigo 2.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de
Junho, “nos casos em que o ofendido não possua o discernimento para entender o alcance e o significado
do exercício do direito de queixa ou tenha morrido sem renunciar à queixa, a mediação pode ter lugar
com intervenção do queixoso em lugar do ofendido”.
1110
John BRAITHWAITE (Restorative Justice and Responsive Regulation, Oxford: Oxford University
Press: 2002, p. 16) explica o modo como o seu interesse pela categoria criminológica do crime de
colarinho branco deu origem à sua reflexão sobre a justiça restaurativa. De certa forma, as dificuldades
sentidas pela justiça penal no sancionamento do crime de colarinho branco e dos crimes de vítima
abstracta terão contribuído para a ponderação de outros mecanismos mais eficazes na protecção dos
valores em causa. Nessa medida, a proposta restaurativa terá surgido também orientada para a reacção a
essas manifestações criminais, com o intuito de suprir uma certa ineficácia penal. O Autor australiano
afirma até que foi a partir deste pensamento da restauração para o crime de colarinho branco que se
originou um “contágio” da criminalidade dita comum.

632
vítimas que comecem por se assumir individualmente como ofendidos, desde que seja
possível identificar sujeitos ou associações de sujeitos que acabem por se identificar
como portadores mais próximos (ou mais directos) dos interesses prejudicados. E tome-
se como exemplo a consumação de um crime ambiental relativamente ao qual, apesar
do carácter difuso da ofensa ao bem jurídico supra-individual, existam cidadãos ou
grupos de cidadãos especificamente interessados em participar em práticas voluntárias
(que os reúnam com o agente) com o intuito de se favorecer a reparação, através do
cumprimento de um acordo.
Do regime de mediação penal cunhado pelo legislador português como
instrumento da diversão processual não resulta, porém, esta possibilidade, desde logo
por força da limitação do âmbito material. E, apesar da sua defensabilidade no plano da
teoria restaurativa, também se deve reconhecer que talvez não seja este o universo
preferencial da mediação penal vítima-agressor, mas porventura de outras práticas
restaurativas.
Diversa da hipótese em que começa por não ser possível individualizar o
ofendido (ou os ofendidos) pelo cometimento do crime, é aquela outra hipótese em que
tal individualização existe, sendo que, em vez de um, temos vários ofendidos. Parece
ser, de resto, comum a situação em que agora se pensa: a um agente são imputados
resultados penalmente relevantes e desvaliosos para mais do que uma pessoa. E daqui
decorre a formulação de uma interrogação: havendo esta pluralidade de ofendidos, será
ainda possível a mediação penal?
Não se encontra no regime vigente qualquer resposta directa a esta questão,
sendo certo que as referências ao ofendido são feitas no singular. Tendo em conta a
importância prática que a questão pode assumir, talvez não tivesse sido desaconselhável
a previsão expressa da hipótese. Não tendo sido essa, porém, a opção, julga-se que o
silêncio do legislador não deve ser interpretado como significando uma exclusão
imediata da possibilidade de mediação quando existam vários ofendidos. Impõe-se,
portanto, ao intérprete uma ponderação mais atenta de dois distintos grupos de casos.
Segundo se crê, há que separar as hipóteses em que existem vários ofendidos
pela prática de um só crime (o que sucede, v.g., quando A furta um veículo de que são
proprietários B e C) daquelas hipóteses em que um mesmo agente comete várias
infracções, infringindo assim os interesses de distintas pessoas (imagine-se que o
mesmo A furtou uma bicicleta pertencente a B e, na semana seguinte, uma outra
bicicleta de que é proprietário C).

633
Se ao agente se imputam vários crimes em concurso – sendo todos eles crimes
particulares e cabíveis no âmbito da mediação –, havendo relativamente a cada um deles
um único ofendido, parecem não existir especificidades significativas: a possibilidade
de mediação será avaliada individualmente em função dos interesses dos envolvidos em
cada um dos conflitos criminais.
O problema de índole essencialmente prática que se põe prende-se, porém, com
a eficiência e a celeridade, que podem ser prejudicadas nos casos em que um agente
cometeu vários crimes sendo que a mediação só é possível relativamente a um ou a
alguns deles (o que é pensável quer quando existem vários “crimes mediáveis” contra
ofendidos diversos, sendo que uns querem recorrer à mediação penal e outros não; quer
quando ao arguido se imputam vários crimes em concurso, sendo que nem todos são
“crimes mediáveis”, nomeadamente por força do carácter público de algum ou alguns
deles). O que se pode questionar é se a necessidade de se encontrar uma pena única
conjunta para esse concurso de crimes não desaconselha a “retirada” de um ou alguns
crimes do objecto do processo penal, para assim se enviar “esse” conflito para
mediação. Daqui podem decorrer complicações de diversa índole para a eficiência do
processo penal: ou se mantém a pretensão de sujeitar conjuntamente a julgamento todos
os factos imputados ao agente, ou então abre-se a hipótese de um posterior julgamento
relativo aos factos que foram objecto de mediação (e mediação relativamente à qual não
houve acordo ou, tendo havido, não foi cumprido) que imporá, eventualmente, uma
nova determinação da pena única conjunta1111.
Se as operações atinentes ao conhecimento superveniente do concurso implicam
uma maior complexidade processual e consequentes perdas em termos de celeridade e

1111
Tendo havido condenação por apenas alguns dos crimes que integravam a pluralidade criminosa,
suscitar-se-á depois um problema semelhante ao do conhecimento superveniente do concurso nos casos
em que através da mediação penal se não lograr um acordo ou nos casos em que esse acordo não for
cumprido e se renovar o direito de queixa. Nos termos do n.º 1 do artigo 78.º do CP, “se, depois de uma
condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação,
outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior [as regras da punição do concurso],
sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso
de crimes”. O n.º 2 do mesmo artigo esclarece que “o disposto no número anterior só é aplicável
relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado”. Transpondo estas disposições legais
para a hipótese em apreciação, parece que se já tiver havido condenação por alguns crimes, se fará depois
o julgamento pelo crime que “ficou fora” daquela decisão e, havendo também condenação, se aguardará
pelo trânsito em julgado das diversas penas para depois se determinar a pena única conjunta. O legislador,
ao impor a espera pelo trânsito em julgado das condenações parcelares para só depois se encontrar a pena
única terá, provavelmente, pretendido evitar uma maior litigância associada à possibilidade (que se
excluiu) de se ir recorrendo das penas “individuais” e, consequentemente, provocando alterações da pena
única. Ou seja: o legislador parece ter querido que a determinação da pena única, nos casos de
conhecimento superveniente do concurso, só ocorra depois de haver estabilização das penas
“individuais”.

634
de eficiência, o desejável pareceria ser que, havendo mediação apenas relativamente a
alguns dos crimes em concurso, o julgamento pelos restantes aguardasse o desfecho
daquela mediação. Esta solução suscita, porém, dificuldades, havendo a objecção óbvia
de que com ela se pode atrasar o julgamento pelos restantes crimes, porventura mais
graves. Procure-se avaliar a dimensão desse atraso. A mediação penal deve estar
concluída no prazo de três meses a contar da data em que o Ministério Público remete o
processo para mediação. Todavia, admite-se uma prorrogação por um prazo de dois
meses “desde que se verifique uma forte probabilidade de se alcançar um acordo”. O
problema é que, se a perda destes cinco meses poderia ser considerada não insuportável,
existirão hipóteses em que a dilação temporal será muito maior: os deveres assumidos
pelo arguido no acordo deverão ser cumpridos num prazo não superior a seis meses
mas, caso o ofendido entenda que eles não foram cumpridos, dispõe de mais um mês
para renovar o direito de queixa1112. Ora, apesar de o legislador ter admitido uma
suspensão de prazos por força da remessa do processo para mediação1113, sempre terá de
ponderar-se, num caso de concurso de crimes em que alguns não são passíveis de
mediação, a adequação das perdas em termos de celeridade e eficiência inerentes ao
envio para mediação de apenas algum ou alguns daqueles crimes1114. Por outro lado,
havendo um concurso de crimes e processos diferentes, a Lei não prevê – na medida em
que omite o problema – qualquer suspensão de prazos em outros processos.
Deve agora considerar-se, depois deste excurso breve pela temática do concurso
de crimes desencadeado pela reflexão sobre a pluralidade de ofendidos associada à
pluralidade de crimes, uma outra hipótese. Suponha-se agora que ao agente é imputada
uma só infracção penal por força da qual se pode afirmar a existência de vários
ofendidos. Veja-se o exemplo de coisa furtado por A e que é propriedade de B e de C. Se
os dois ofendidos manifestarem disponibilidade para a mediação, não se vislumbram

1112
Para um ajuizamento da duração possível da mediação penal, cfr. o artigo 5.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 4 e o
artigo 6.º, n.º 2 da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho.
1113
O n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, dispõe que “a remessa do processo para
mediação determina a suspensão do prazo previsto no n.º 1 do artigo 283.º do Código de Processo Penal e
dos prazos de duração máxima do inquérito previstos no artigo 276.º do Código de Processo Penal”.
Acrescenta-se no n.º 2 do mesmo artigo que “os prazos de prescrição do procedimento criminal
suspendem-se desde a remessa do processo para mediação até à sua devolução pelo mediador ao
ministério público ou, tendo resultado da mediação acordo, até à data fixada para o seu cumprimento”. O
problema tornar-se-á mais complexo, porém, quando o agente de diversos crimes for arguido em vários
processos, sendo uns crimes “mediáveis” e outros não.
1114
Note-se que na Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, se refere sempre a “remessa do processo” para
mediação, não se configurando sequer a hipótese de remessa apenas de “parte” de um processo atinente a
um concurso de crimes. Não se julga, porém, que daí possa retirar-se a ilação definitiva de que o
legislador quis excluir a possibilidade de mediação para todos os casos de concurso.

635
obstáculos de princípio ao “afastamento” do processo penal inerente à mediação.
Todavia, adensar-se-á a complexidade da questão se apenas um dos ofendidos desejar a
mediação ou se, tendo B e C manifestado a vontade de participação na mediação penal,
apenas um deles se considerar satisfeito com o acordo possível. Ora, o que aqui se julga
é que atribuir relevância à mediação querida por apenas um ofendido (ou cujo acordo
foi considerado satisfatório por apenas um dos ofendidos) para efeitos de exclusão da
resposta penal seria solução manifestamente abusiva na perspectiva do ofendido que
não se sentiu reintegrado nas suas expectativas através da mediação ou que,
simplesmente, não a desejou.

2.1.2. A pluralidade de arguidos

Um problema distinto e que também não tem resposta expressa na Lei n.º
21/2007, de 12 de Junho, é o de saber o que sucede se, em vez de pluralidade de
ofendidos, existir pluralidade de agentes. Parta-se, uma outra vez, da consideração de
um exemplo: A e B agridem C, que apresenta queixa, por se considerar ofendido por um
crime de ofensa à integridade física simples. Suponha-se que o ofendido C gostaria de
recorrer à mediação. No caso, o agente A quer participar na mediação de forma séria e
empenhada e chega mesmo a um acordo com o ofendido que este considera muito
satisfatório. Já B exime-se totalmente à mediação. Podem suscitar-se aqui duas distintas
interrogações: o facto de um dos arguidos se recusar a participar na mediação deve
obstar de imediato à possibilidade de mediação entre o ofendido e o outro arguido?;
merecendo esta questão resposta negativa, será que os efeitos da mediação bem
sucedida entre A e C deverão aproveitar também a B?
Se quanto à primeira interrogação parece dever considerar-se que a rejeição da
mediação por parte de um dos arguidos não deve privar o outro arguido da sua
possibilidade de optar por uma via de solução do conflito (que lhe pode ser mais
vantajosa na medida em que é uma solução não punitiva), já o segundo problema é
merecedor de consideração mais atenta. É sabido que, na opção tomada pelo legislador
português no que respeita às consequências de um acordo obtido através da mediação
penal, “a assinatura do acordo equivale a desistência da queixa por parte do ofendido e à
não oposição por parte do arguido, podendo o ofendido, caso o acordo não seja
cumprido no prazo fixado, renovar a queixa no prazo de um mês, sendo reaberto o

636
inquérito”1115. E, nos termos do n.º 3 do artigo 116.º do Código Penal, “a desistência de
queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, salvo
oposição destes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem
queixa”. Ora, aquilo que se deve inquirir é se este “efeito-contágio” aos restantes
comparticipantes da desistência da queixa relativamente a algum deles deve ser
transposto, sem mais, para o regime da desistência de queixa inerente à celebração de
um acordo obtido através da mediação penal. A opinião de que se parte é que um tal
entendimento seria dificilmente coerente com o fundamento e com as finalidades da
mediação penal enquanto prática restaurativa. Se bem se vê o problema, existem
diferenças significativas entre a desistência de queixa prevista no Código Penal e esta
outra com a qual culmina a mediação em que houve acordo: enquanto a primeira pode
ser apodada de “simples”, existindo por si só no processo e desligada – pelo menos no
processo, repita-se, porque o legislador ignora os contornos dos “embates” privados que
podem estar na sua origem – de qualquer “esforço” do agente para reparar os danos
causados; já a desistência de queixa que é consequência da celebração de um acordo
associado à mediação penal significará, em regra, o reconhecimento pelo ofendido do
empenho do agente na admissão da sua responsabilidade e na reparação dos prejuízos
causados. O que se julga, portanto, é que são precisamente o empenho do agente que
quer participar na mediação e o esforço no sentido da reparação do mal causado – o que
implicará, em princípio, a assunção de deveres que podem prolongar-se no tempo – que
atribuem a esta desistência de queixa um cariz essencialmente pessoal. E que, nessa
medida, tornam a desistência de queixa que é consequência da obtenção de um acordo
através da mediação penal de “comunicabilidade” muito duvidosa. Em sentido
contrário, porém, receia-se que a “não comunicabilidade” favoreça entendimentos
indevidos entre um dos arguidos e o ofendido, que culminam com a responsabilização
apenas do outro arguido, contornando-se, assim, o pretendido pelo legislador penal.
Esboçadas estas brevíssimas considerações em torno da mediação e da
pluralidade de ofendidos e de arguidos num conflito criminal, assim como em torno de
um possível concurso de crimes que tenham como sujeitos o(s) mesmo(s) arguidos (s) e,
eventualmente, ofendido(s), permanece porém uma interrogação que se deve considerar
transversal a estas reflexões. Ela relaciona-se com o sentido e a função da própria
mediação penal e a forma como a opção que nessas matérias se fizer condiciona a

1115
Cfr. o n.º 4 do artigo 5.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho.

637
resposta quanto à sua admissibilidade nas hipóteses em que através dela se não puder
pacificar todo o conflito criminal que envolve diversas pessoas ou os vários conflitos
criminais em que são intervenientes as mesmas pessoas.
Em rigor, aquilo que antes se perguntou foi se devíamos admitir a mediação em
situações em que esta não permite uma diversão de todo o conflito, podendo contribuir
para a pacificação de apenas alguns intervenientes no mesmo. Quando se condiciona
uma resposta afirmativa ao facto de assim se não prejudicar a celeridade e a eficácia da
resposta penal, está-se a configurar a mediação como um procedimento em primeira
linha condicionado pela consecução desses objectivos de celeridade e de eficácia. Ou
seja: está-se a representar uma mediação penal que é, ainda, subordinada às finalidades
penais e processuais penais. Esta parece ser a representação que, por razões várias
também já referidas neste estudo, preside ao regime jurídico da mediação penal de
adultos introduzido pela Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho. Pelo contrário, caso se veja na
mediação um quase-direito dos intervenientes no conflito criminal e se compreenda que
as suas finalidades são autónomas, alargar-se-á a possibilidade da sua aplicação em
hipóteses de pluralidade de ofendidos e de pluralidade de arguidos, por mais que dessa
mediação não possam resultar consequências imediatas no plano da resposta penal, na
medida em que nem todos os sujeitos a desejem ou nem todos os conflitos caibam no
seu âmbito material.

2.1.3.O sentido da intervenção do advogado

Dispõe-se no artigo 8.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, que “nas sessões de
mediação, o arguido e o ofendido devem comparecer pessoalmente, podendo fazer-se
acompanhar de advogado ou de advogado estagiário”. A meio caminho entre uma opção
pela obrigatoriedade da presença do advogado ou uma decisão de interdição da sua
participação nas sessões de mediação penal, o legislador optou por permitir essa
participação, não tomando porém posição definitiva sobre a sua necessidade, o que
acaba por significar um reencaminhamento da opção para os intervenientes no conflito
arguido e ofendido.
Se bem se vê o problema, podem autonomizar-se a este propósito duas questões
principais. A primeira prende-se com aquela decisão – que o legislador, no sentido antes
referido, tomou e não tomou – sobre a participação do advogado nas sessões de
mediação penal. A segunda relaciona-se com o sentido que essa participação, quando

638
for admitida (como sucede entre nós), pode ter e associa-se a uma tentativa de
compreensão do papel que o advogado deve assumir. Ora, relativamente a esta segunda
questão, também se não vislumbra qualquer definição legislativa, pelo menos uma
definição mais clara do que aquela que pode ser indiciada pela escolha do segmento
literal “fazer-se acompanhar por advogado”.
No que tange ao primeiro aspecto, o legislador português não quis situar-se em
nenhum dos dois pólos opostos atinentes à possibilidade de os sujeitos da mediação
penal se fazerem acompanhar por advogado durante as sessões de mediação. Em um
desses pólos, interditar-se-ia a presença do advogado, encontrando-se fundamento
teórico não despiciendo naquele que é o sentido da mediação enquanto prática
restaurativa orientada para a devolução do conflito aos intervenientes. Ou seja: se é
inerente às práticas restaurativas a existência de “empoderamento” do conflito pelo
arguido e pelo ofendido (de cuja presença, por regra, se não prescinde), poder-se-ia
considerar que a última solução desejável seria dar voz (na gestão do conflito e da
procura de uma solução) a um “profissional da gestão de conflitos” como é o
advogado1116. No pólo oposto, entender-se-ia que a presença obrigatória do advogado
resultaria do direito dos participantes na mediação a terem aconselhamento jurídico, por
estar em causa a tomada de decisões susceptíveis de contenderem com interesses seus
merecedores de protecção.
Confrontado com três possibilidades de resposta a este problema, o legislador
português excluiu a resposta de que o advogado nunca pode participar na mediação
penal, assim como excluiu a resposta de que os sujeitos da mediação penal (sobretudo,
o arguido) têm de se fazer acompanhar sempre por advogado.
Comece-se por uma tentativa de compreensão das razões pelas quais se não
optou pela obrigatoriedade de acompanhamento por advogado, obrigatoriedade essa que
se transmuta, na perspectiva de cada sujeito, como que em um “dever do Estado a não o
deixar só” numa situação da qual podem advir resultados que lhe sejam desvaliosos.
A um primeiro olhar, o direito a ser assistido por advogado adquiriria particular
sentido na óptica do arguido que, apesar de não poder ser condenado a uma pena como

1116
A necessidade de “empoderamento” do conflito pelos seus intervenientes “concretos” não exclui a
possibilidade de esses sujeitos serem pessoas colectivas. Nos termos do n.º 3 do artigo 7.º do
Regulamento do Sistema de Mediação Penal (Anexo à Portaria n.º 68-C/2008, de 22 de Janeiro), “as
pessoas colectivas devem fazer-se representar por mandatário com poderes especiais para desistir,
confessar ou transigir”. Nos casos em que esta questão se suscita, a pessoa colectiva será, enquanto tal,
um dos sujeitos do conflito, carecendo da intervenção de uma pessoa “física” que dê voz à sua “vontade”.
Trata-se, portanto, de problema que se não confunde com o da representação por advogado.

639
resultado da mediação, pode contudo, para evitar uma pena que admita como provável
caso o processo penal siga o seu curso normal, aceitar na sequência da mediação penal
um acordo que comporte desvalores semelhantes aos de algumas sanções criminais.
Todavia, quando se ponderam as hipóteses em que, nos termos do artigo 64.º do
CPP, é obrigatória a assistência do defensor e se verifica que não se conta, entre elas, o
acto em que o arguido é chamado a concordar com a suspensão provisória do processo,
suscitam-se dúvidas sobre a coerência de impor a intervenção de advogado em um caso
(o da mediação penal) em que o arguido assume (tal como sucede na suspensão
provisória do processo) determinados deveres que, ainda que desvaliosos, não podem
considerar-se verdadeiras penas.
A questão da conformidade constitucional da não inclusão, entre os actos em que
se impõe a assistência por defensor, do acto em que o arguido é chamado a manifestar a
sua concordância (ou não) com a suspensão provisória do processo tem sido abordada
pela jurisprudência constitucional portuguesa. Tome-se, como exemplo, o Acórdão n.º
116/2006 do Tribunal Constitucional. No recurso que desencadeou a decisão,
argumentava-se que “ainda que se defenda que as injunções ou regras de conduta não
constituem uma pena no sentido do direito penal material nem uma sanção de natureza
para-penal (…), as mesmas representam sempre uma limitação aos direitos e liberdades
do arguido”. Aprofundando esta ideia, considerava-se, ainda no recurso, que não se
podia estribar na voluntariedade do arguido a não assistência por defensor: “essa
liberdade de decisão não existe se ao arguido não for garantida a assistência de um
defensor, nomeadamente para o efeito de se poder pronunciar sobre a necessidade e
adequação das regras de conduta e injunções apresentadas pelo Ministério Público. Só
há verdadeira liberdade quando esta é esclarecida e informada (…). E esse
esclarecimento deve resultar da obrigatoriedade de assistência do defensor no acto de
audição do arguido sobre a pretendida suspensão provisória do processo”.
No referido Acórdão, o Tribunal Constitucional começa por esclarecer que «no
contexto do despacho recorrido “ser dispensada a assistência de defensor ao arguido”
significa “não ser imposta a obrigatoriedade de assistência de defensor ao arguido”.
Aquilo que o juiz “a quo” censura ao legislador ordinário não é violar o direito do
arguido “a não estar só”, mas infringir o dever do Estado de “não deixá-lo só perante as
autoridades judiciárias”». Depois de acrescentar que o n.º 3 do artigo 32.º da
Constituição atribui ao legislador ordinário uma certa liberdade na selecção das
situações de assistência obrigatória por advogado, o Tribunal considera que “não se

640
encontra razão para que essa obrigatoriedade se imponha ao legislador, de modo
taxativo, para todos os casos de suspensão provisória do processo”. A razão principal na
qual se funda este entendimento prende-se com o facto de se considerar que “o
objectivo específico da assistência de defensor para o acto de concordância é assegurar
que a aceitação, pelo arguido, da suspensão do processo e das injunções ou regras de
conduta, traduza um consentimento informado, isto é, que seja o produto de uma
vontade esclarecida quanto à ponderação das vantagens e desvantagens ligadas às
alternativas em presença. Alternativas e consequências que, na generalidade dos casos,
são facilmente inteligíveis e representáveis, sem necessidade de aconselhamento
técnico-jurídico, por um arguido dotado de normal capacidade intelectual e volitiva e
experiência da vida». Finalmente, o Tribunal Constitucional atribui, neste Acórdão,
relevância à existência de uma cláusula geral no n.º 2 do artigo 64.º do CPP, nos termos
da qual “fora dos casos previstos no número anterior [casos de assistência obrigatória
por defensor] pode ser nomeado defensor ao arguido, a pedido do tribunal ou do
arguido, sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a
conveniência de o arguido ser assitido”. Esta cláusula funcionaria, assim, como uma
espécie de “válvula de segurança”, que permitiria que, à luz de uma valoração das
especificidades da situação, se promovesse a assistência por defensor do arguido que
dela efectivamente carecesse.
Uma tal linha de argumentação contribui para sustentar a opção de não se
considerar obrigatória a assistência por advogado do arguido que participa na mediação
penal e que, na sequência dessa participação, assume os deveres inerentes ao acordo.
Pensa-se que é assim na medida da existência de notas comuns, que agora se reafirmam,
à suspensão provisória do processo e à mediação penal: ambas se enquadram na
categoria dos mecanismos de diversão processual que, pressupondo o consenso,
permitem que se lide com o conflito jurídico-penal sem um funcionamento total das
instâncias formais de controlo; ambas podem culminar com a assunção pelo arguido de
deveres que, não merecendo a qualificação de verdadeiras penas, comportam porém
alguns desvalores.
Apesar destas similitudes, existem, todavia, algumas dissemelhanças que se não
podem iludir quando se pondera a obrigatoriedade (ou não) de assistência por advogado.
Por um lado, a mediação penal pode revelar-se mais sensível no que tange à necessidade
de um acompanhamento orientado para o esclarecimento (relativamente a aspectos
jurídicos) do arguido e do ofendido, nomeadamente por se excluir da actividade de

641
controlo do acordo o “juiz das garantias” que é o juiz de instrução. Em certo sentido,
não parece incorrecto afirmar-se que o arguido e o ofendido estão, na mediação penal,
mais sozinhos na construção da solução: os deveres que o arguido assumirá não são
propostos por uma autoridade judiciária em função das finalidades preventivas, mas
resultam antes de um acordo definido por ele e pelo ofendido e cujo conteúdo é, para
mais, escassamente conformado por critérios legais; o terceiro que é o mediador não é
necessariamente um jurista e pode, por isso, não lograr esclarecer cabalmente os
intervenientes quanto às alternativas possíveis caso a mediação não seja bem sucedida,
o que prejudicará o cálculo das vantagens e desvantagens inerentes a uma escolha
esclarecida.
Não obstante, se esta linha de raciocínio parecia conduzir à conclusão de que a
assistência do arguido por advogado seria mais necessária na mediação penal, o que
poderia aconselhar a opção pela obrigatoriedade, também se julga que existem
argumentos de sinal contrário. Por um lado, restringindo-se o âmbito desta mediação
penal aos crimes particulares em sentido amplo (diversamente do que sucede com a
suspensão provisória do processo), também ficaria excluída a intervenção de um juiz
“das garantias” caso se optasse pela desistência de queixa na fase de inquérito; para
além disso, a forma como decorrem as “negociações particulares” que conduzem àquela
desistência são alheias a qualquer conformação legal; por outro lado, diversamente do
que sucede quanto a essas negociações, em que o arguido e o ofendido estão muito mais
dependentes das desigualdades das suas próprias competências de acção ou das
competências dos seus advogados, existe na mediação um terceiro – o mediador – que
deve velar pela existência de um autêntico e idêntico empoderamento do conflito;
finalmente, cabe ao Ministério Público a competência para a homologação da
desistência de queixa a que equivale o acordo, o que lhe atribui algum papel de controlo
do seu conteúdo.

2.1.4.A ausência de previsão dos conteúdos possíveis para o acordo e a questão


da proporcionalidade

Uma outra crítica a que o regime jurídico português da mediação penal de


adultos tem sido sujeito – e que se relaciona ainda com o seu “minimalismo” – é a de
que, por força da não previsão pelo legislador de um catálogo de conteúdos possíveis
para o acordo, se violaria o princípio da determinabilidade das sanções.

642
Quando se interroga o artigo 6.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, subordinado
à epígrafe “Acordo”, aquilo que se encontra logo no seu n.º 1 é a afirmação de que “o
conteúdo do acordo é livremente fixado pelos sujeitos processuais participantes, sem
prejuízo do disposto no número seguinte”. E, logo no n.º 2 do mesmo artigo, acrescenta-
se que “no acordo não podem incluir-se sanções privativas da liberdade ou deveres que
ofendam a dignidade do arguido ou cujo cumprimento se deva prolongar por mais de
seis meses”.
Já foi afirmado na doutrina portuguesa que este é “o ponto (…) mais
controvertido da Lei”. Assim, André LAMAS LEITE expressou também o seu
entendimento de que “o art. 6.º padece de inconstitucionalidade material, por violação
do princípio da determinabilidade ou taxatividade das sanções, ínsito no art. 29.º, n.º 3
da Constituição”1117. A opinião de Mário Ferreira MONTE é também crítica
relativamente a esta solução “claramente minimalista”, que “não serve”, afirmando o
Autor que “a excessiva liberdade de fixar o acordo pode ser inconstitucional e, não só
por isso, mas porque essa liberdade é ilusória. Pode parecer um paradoxo, mas é
verdade. De facto, não há dúvidas que quase não existem limites na fixação do acordo.
Mas o que mais nos preocupa é que essa liberdade é aparente, na medida em que sobre o
arguido impende aquela espada a que já aludimos que consiste em saber que estará em
causa o acordo ou a acusação. Um binómio alternativo como este não é aceitável
quando, em seguida, se permite uma fixação livre do acordo”1118.
Conhecendo-se estas linhas de argumentação, aquilo que sobretudo se tem
dificuldade em compreender é a forma como se transpõe para o plano dos deveres
assumidos pelo arguido na sequência da mediação um princípio conformador do sistema
punitivo.
A ideia de que se parte é, diversamente, a de que tais deveres não podem ser
assimilados a sanções. A propósito da reparação e da mediação, afirma Alessandro
BERNARDI que lhe “parece claro que os mecanismos evocados – tão familiares aos
defensores do abolicionismo – são tendencialmente estranhos ao conceito de sanção

1117
André LAMAS LEITE, A Mediação Penal de Adultos, Um Novo “Paradigma” de Justiça, Coimbra:
Coimbra Editora, 2008, p. 82.
1118
Mário Ferreira MONTE, “Um balanço provisório sobre a Lei de Mediação Penal de Adultos” cit., p.
121-122.

643
punitiva, ainda que não se exclua que possam perseguir alguns efeitos preventivos
tradicionalmente associados à pena”1119.
Poder-se-ia opor a esta linha de argumentação a ideia de que há muito mais de
formal do que de substancial na invocação de que os deveres assumidos nos termos do
acordo não são verdadeiramente uma sanção. Aduzir-se-ia sobretudo, para sustentar esta
posição, que aqueles deveres, assim como as penas, comportam um desvalor para o
arguido1120 (e um desvalor que pode não ser menor do que o inerente, por exemplo, à
condenação a uma pena de multa). E acrescentar-se-ia que a alegação da voluntariedade
da aceitação pelo arguido destes deveres pode ter algo de fictício, na medida em que a
mediação penal seja concebida – e pode sê-lo, por alguns arguidos – como uma via de
fuga à temida intervenção punitiva do Estado que seria consequência da eventual
sujeição a um julgamento penal1121.
Não se julga, porém, que um tal entendimento deva considerar-se suficiente para
sustentar a vigência, em idênticos moldes, do princípio da legalidade na sua vertente de
determinabilidade quanto a deveres que, sendo desvaliosos, não são sanções. E não são
sanções não só porque lhes falta a nota da coercividade – nota que já é alheia, no nosso
sistema, a algumas penas – mas também e sobretudo porque o seu conteúdo resulta de
um poder de conformação do arguido e do ofendido. Ou seja: relativamente a estes
deveres, o arguido não se limita a aceitá-los ou não, tendo sido o seu conteúdo
determinado por finalidades preventivas que são largamente alheias aos seus interesses;
na mediação, o conteúdo do acordo deve resultar de uma troca comunicacional

1119
Alessandro BERNARDI, “La evolución de la política criminal italiana entre opciones represivas y
soluciones minimalistas”, Cahiers de Défense Sociale, 2003, n.º 30, p. 89.
1120
Para uma recensão do pensamento de Autores, como DUFF ou DALY, que vêem na justiça
restaurativa “não uma alternativa à punição, mas uma punição alternativa”, cfr. Lode WALGRAVE, “On
restoration and punishment: favourable similarities and fortunate differences”, Restorative Justice for
Juveniles – Conferencing, Mediation and Circles, Eds. A. Morris/G. Maxwell, Portland: Hart Publishing,
2003, p. 17 ss. O denominador comum ao pensamento dos Autores está no carácter “desagradável” das
obrigações assumidas pelo arguido. WALGRAVE afasta-se desta orientação, considerando que existem
quatro notas características da punição: a coerção, a imposição de um mal, a intenção de causar
sofrimento e a ligação entre esta e o crime cometido – “faltando qualquer um destes elementos, não há
punição” (ob. cit., p. 19).
1121
Para ilustrar este entendimento, parece útil a transcrição da crítica feita por Sergio MOCCIA aos
mecanismos de consenso que a justiça penal já conhece. Por maioria de razões, eles parecem pertinentes
no âmbito das práticas restaurativas, em que a desformalização é ainda maior: «acontece, com efeito, que
um acusado inocente prefira, para evitar as incertezas e as demoras da discussão, “assumir” um delito não
cometido e negociar uma pena, sem dúvida limitada. Trata-se aqui do mesmo tipo de resultado que se
obtinha através da tortura, mesmo que neste caso o acusado que confessava pudesse ainda ser condenado
a uma pena com frequência atroz (…). Deixa de haver proporção entre a infracção e a pena, entre a
realidade dos factos e as consequências jurídicas: estamos perante, como agora se diz, uma “realidade
virtual”» [“Vérité Substantielle et Vérité du Procès” (Déviance et Société, 2000, vol. 24, n.º 1, p. 111)].

644
alicerçada num idêntico “empoderamento” de sujeitos que buscam a solução que
consideram a melhor possível para o conflito em que estão envolvidos.
Em bom rigor, aquile que se julga é que o próprio sentido da exigência de
determinabilidade das sanções penais é incoerente com o sentido da mediação penal. O
que sobretudo se julga que justifica o princípio é a garantia que cada cidadão deve ter
quanto às consequências que lhe podem ser impostas caso adopte um determinado
comportamento suficientemente descrito como desvalioso. Ou seja: o cidadão deve ter
conhecimento de forma suficiente do pior que lhe pode acontecer caso adopte um
determinado comportamento, também suficientemente descrito. Ora, o arguido que opta
por participar na mediação penal tem conhecimento dos males que lhe podem ser
impostos caso seja condenado pelo crime que lhe é imputado. Nessa medida, o
conhecimento das sanções a que pode ser sujeito, caso o processo penal culmine com
uma sua condenação, deve continuar a funcionar como a sua defesa face à
inaceitabilidade de uma solução que lhe seja mais gravosa.
Por outro lado, a previsão legal do conjunto de deveres que poderiam ser
conteúdo do acordo dificilmente não amputaria a margem de liberdade que os
intervenientes na mediação devem ter de criação da solução para o conflito (e solução
que seja a melhor na perspectiva que é a deles). O que também supõe o entendimento de
que, se as sanções aplicadas por decisores estranhos ao conflito e dotados de autoridade
podem ter os seus limites determinados em função das finalidades preventivas que
cumprem, já o conteúdo do acordo obtido através da mediação não pode ser
determinado em função daquelas finalidades, precisamente porque o propósito da
mediação se relaciona com a pacificação de um conflito interpessoal e a consecução
desta finalidade será facilitada pelo reconhecimento de um larga margem criadora das
partes.
Dito isto, sobra uma interrogação sobre o fundamento para a existência de
limites ao conteúdo daquele acordo. Se antes se procurou justificar a opinião de que o
legislador não terá andado mal ao deixar aos sujeitos da mediação um largo espaço de
liberdade de modelação do conteúdo do acordo, o que agora se pode questionar é a
razão pela qual estabeleceu, ainda assim, alguns limites. Deve, pois, ponderar-se o
sentido e a utilidade dos mesmos. Assim, aquilo que desde logo se pergunta é se o
argumento da liberdade da vontade dos intervenientes na mediação quanto à modelação
do conteúdo do acordo não é incoerente com o estabelecimento daqueles limites.

645
A ideia de que se parte para enfrentar este problema é a de que o acordo obtido
através da mediação não é – apesar de a mediação penal ser um instrumento da justiça
restaurativa, fundada na existência de uma dimensão pessoal do conflito criminal e
orientada para a pacificação dessa dimensão do conflito – um acordo de natureza
puramente privada estabelecido entre privados. Ora, se mesmo estes acordos conhecem
limites impostos pelo ordenamento jurídico que sustenta a indisponibilidade de
determinados valores, por maioria de razões devem estar sujeitos a certas limitações
acordos que, como sucede entre nós, surgem na sequência do funcionamento de um
sistema público de mediação, sendo que os resultados que nessa sede se obtiverem não
podem ser considerados despiciendos ao nível da resposta punitiva estadual.
Reconhecida a necessidade de limites, o que se pode ainda interrogar é se os três
que foram elencados pelo legislador português correspondem a uma opção adequada e
suficiente. Excluiu-se do conteúdo do acordo a possibilidade de sanções privativas da
liberdade, de deveres que ofendam a dignidade do arguido e de deveres cujo
cumprimento se deva prolongar por mais de seis meses. E, com esta exclusão, aquilo
que se quis deixar claro foi ainda que não se podem alicerçar na autonomia da vontade
todos e quaisquer acordos celebrados entre o arguido e o ofendido, independentemente
do seu conteúdo. Ou seja: a imposição de limites que serão tidos em conta também pela
autoridade judiciária que sindicar o acordo põe a nu a ideia de que não se pode estribar
na liberdade individual toda e qualquer solução para o conflito encontrada através da
mediação penal.
O primeiro daqueles limites (a interdição de sanção privativa da liberdade),
apesar da sua aparente evidência, pode suscitar algumas dúvidas. Trata-se de uma
evidência porque, logo nos termos da própria Constituição, fica claro que “ninguém
pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de
sentença judicial condenatória pela prática de acto punido com pena de prisão ou
aplicação judicial de medida de segurança”1122. A condenação a uma pena privativa da
liberdade pressupõe, portanto, necessariamente a intervenção de um tribunal que, depois
de ter ficado comprovada a responsabilidade do agente por uma conduta qualificada
como crime, o condena à mais grave de todas as sanções. A inexistência de qualquer
dúvida quanto à impossibilidade de condenação a pena de prisão sem intervenção de um
tribunal (confirmada, de resto, pelo regime jurídico do processo sumaríssimo) permitirá,

1122
Cfr. o artigo 27.º, n.º 2 da CRP.

646
porém, que se extraia a conclusão de que também o agente de um crime deve ficar
impedido de, querendo-o, limitar a sua liberdade circulatória por força de um acordo
que escolheu estabelecer com o ofendido?
Julga-se que a opção do legislador terá sido menos feliz quando referiu a
impossibilidade de inclusão no acordo de “sanções privativas da liberdade”, porque os
deveres assumidos pelo arguido não merecem, em sentido técnico-jurídico, aquela
qualificação como “sanções”. Sobram, por isso, algumas interrogações sobre esta
previsão legal. Sendo claro que do acordo nunca poderia resultar – já por força das
próprias normas constitucionais, ainda confirmadas pelo nosso ordenamento jurídico
penal e processual penal – a sujeição a uma sanção privativa da liberdade, será que
aquilo que o legislador quis significar foi que o arguido não pode assumir, através
daquele acordo, o dever de limitar a sua liberdade ambulatória durante um determinado
período de tempo? Ou seja: excluída que está a privação da liberdade executada em
contexto prisional ou no domicílio e determinada por um tribunal, significará o disposto
no n.º 2 do artigo 6.º que se interditam, ainda, os acordos que suponham uma qualquer
restrição ambulatória do arguido? A questão merece uma resposta cuidadosa. Caso se
pretendesse restringir o conteúdo da previsão legislativa à interdição da privação da
liberdade associada à sujeição a pena de prisão ou a medida de segurança de
internamento, ela ficaria privada de qualquer conteúdo útil. O que se julga, portanto, é
que se vedou a assunção de deveres pelo arguido que tenham conteúdo idêntico ao
daquelas medidas, consideradas as mais desvaliosas que o ordenamento jurídico ainda
cauciona. Daqui não se crê que decorra, porém, uma proibição de toda e qualquer
limitação da liberdade ambulatória do arguido, nomeadamente as associadas à não
frequência de determinados locais por período de tempo ainda razoável. O problema
agudiza-se, porém, quando se pergunta se o arguido pode assumir, através daquele
acordo, o dever de permanecer na sua habitação. A um primeiro olhar, julga-se que a
resposta deve ser negativa, não só por força da tendencial equiparação aos regimes da
pena de prisão e da medida de coacção de prisão preventiva do regime de permanência
na habitação (artigo 44.º do CP) e da obrigação de permanência na habitação (artigo
201.º do CPP)1123; mas, sobretudo, porque não se crê que um dever com aquele
conteúdo possa contribuir, pelo menos em regra, para a prossecução da finalidade
reparadora que norteia a intervenção restaurativa.

1123
Cfr., a título de exemplo, o regime do desconto previsto no artigo 80.º do CP.

647
O segundo limite previsto pelo legislador prende-se com a interdição de deveres
que ofendam a dignidade do arguido. Compreende-se a tentação de recorrer a conceitos
tão amplos como o de “dignidade”, quando o que se pretende é balizar a liberdade
conformadora dos sujeitos do acordo sem todavia a neutralizar. Julga-se, porém, que o
conceito de “dignidade do arguido” pode merecer alguma concretização, fazendo-se
apelo quer ao que antes se disse sobre a finalidade da intervenção restaurativa, quer a
outras normas que o nosso ordenamento jurídico já conhece e que se relacionam com a
(in)disponibilidade de certos interesses. Um dos critérios a ponderar para a aferição da
compatibilidade do conteúdo do acordo com a dignidade da pessoa prender-se-á,
portanto, com a sua adequação ao cumprimento dos objectivos de reparação e de
pacificação que presidem à mediação penal. Um dever que se considere totalmente
inútil à prossecução de tais objectivos não passará no crivo do juízo de adequação e
tenderá, porque implica para o arguido um ónus desnecessário e supérfluo, à
qualificação de desconforme com a dignidade da pessoa. Para além disso, a
concretização deste conceito indeterminado pode ainda beneficiar das soluções atinentes
à (in)disponibilidade pelo titular de determinados valores e, nomeadamente, do
conhecimento acumulado – ainda que eventualmente sujeito a adaptações – em matéria
de consentimento.
Finalmente, o legislador estabelece um limite temporal para o acordo: o
cumprimento dos deveres assumidos pelo arguido não pode prolongar-se por mais de
seis meses. Julga-se que por trás desta disposição está uma razão de índole
essencialmente pragmática e relacionada com o modelo eleito para a concatenação entre
o processo penal e a mediação penal1124. Ao configurar esta mediação como mecanismo
de diversão processual que só logra um encerramento efectivo do conflito penal com o
cumprimento do acordo (porque, apesar de a assinatura do acordo equivaler a
desistência de queixa, o direito de queixa renovar-se-á em caso de incumprimento
daquele acordo1125), o prazo para o seu cumprimento não pode ser tão longo que

1124
De certo modo, este prazo justifica-se mais pela impossibilidade de exercício do direito de queixa
renovado decorrido aquele período de tempo do que pela inviabilidade de o agente manter o cumprimento
dos deveres assumidos no acordo. Considere-se um exemplo: A, vizinha de B, apresenta queixa contra
esta alegando que B, frequentemente alcoolizada, a insulta; A e B, que conhecem a probabilidade da
continuação da sua relação de vizinhança, querem resolver o conflito através da mediação penal; no
acordo, prevê-se que B se sujeite a um tratamento para evitar o consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
No caso, o tratamento, por razões inerentes à sua própria eficácia, pode ter de prolongar-se por período
superior a seis meses. Todavia, decorrido esse prazo, a sua frequência já não constitui um dever para B
cujo incumprimento possa desencadear uma renovação do direito de queixa de A.
1125
Pensa-se que não existirá, nestas hipóteses em que o inquérito termina com a homologação da
desistência de queixa posterior ao acordo obtido na mediação penal, o efeito imediato de ne bis in idem, já

648
prejudique de forma exagerada o processo que virá a existir caso o acordo fracasse. Ou
seja: é sobretudo a eventualidade de se vir a retomar a via da resposta punitiva estadual
que desaconselha uma maior dilação do prazo para o cumprimento do acordo1126.
Todavia, a esta razão acrescerá pelo menos ainda uma outra, relacionada com a
tendencial inconveniência da assunção de deveres por um período de tempo longo
quando estão em causa infracções de pequena e de média gravidade. Ou seja: partindo
do princípio de que aqueles deveres representam um desvalor para o arguido, ter-se-á
considerado que esse desvalor não pode prolongar-se de forma excessiva, sobretudo na
medida em que na origem desta mediação estão ilícitos criminais que não são, eles
próprios, geradores de um enorme desvalor. Ter-se-á, assim, procurado introduzir um
certo factor de proporcionalidade entre o desvalor do crime e o desvalor associado a esta
forma de reacção ao crime.
Uma das perguntas que a partir daqui não pode deixar de se formular prende-se
com a conveniência (ou não) de o legislador ter ido mais longe na exigência de um certo
juízo de proporcionalidade entre, por um lado, o desvalor do ilícito e da sanção penal

que o incumprimento do acordo pode desencadear aquela renovação do direito de queixa e o consequente
inquérito pelos mesmos factos. A excepcionalidade da hipótese não tolhe a afirmação de José DAMIÃO
DA CUNHA de que “a decisão final do MP de acusar ou arquivar implica a presunção de que existiu uma
investigação exaustiva, pelo que qualquer decisão final do MP precludirá qualquer conhecimento
posterior quanto a aspectos que deviam ter sido conhecidos (no sentido de investigados) pelo MP,
podendo, assim, existir uma espécie de arquivamento implícito quanto a todos aqueles factos que, não
acusados, estejam lógica ou naturalisticamente associados aos factos sujeitos a investigação e que se
encontram expressamente valorados na decisão final do MP”. Essa excepcionalidade, sob este prisma, da
mediação penal decorre sobretudo do facto de a opção por esta forma de diversão não pressupor aquela
“investigação exaustiva” nem uma decisão necessariamente no momento final do inquérito. Pelo
contrário, a decisão de envio do processo para mediação pode surgir logo na fase inicial do inquérito,
ficando prejudicada uma procura exaustiva da verdade. No caso da mediação penal, aquele efeito de ne
bis in idem só pode dar-se quando não existir, no prazo previsto, qualquer renovação do direito de queixa,
desde logo porque a solução inversa, para além de contrariar o sentido da lei, permitiria que a mediação
penal se tornasse, contra os seus próprios objectivos mais profundos, um instrumento para a vitimização
secundária do ofendido. Sobre o ne bis in idem em fases anteriores à intervenção do tribunal, cfr. José
DAMIÃO DA CUNHA, “Ne Bis in Idem e exercício da acção penal”, Que Futuro para o Direito
Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando
Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 571.
1126
No anteprojecto, que admitia, nos termos antes referidos, a mediação penal para alguns crimes
públicos, o prazo para o cumprimento do acordo era de seis meses no caso dos crimes particulares e de
dois anos no caso dos crimes públicos. Relativamente a estes, ter-se-á procurado compatibilizar a solução
com o prazo, também de dois anos, de duração da suspensão provisória do processo (cfr. o artigo 282.º do
CPP). Sempre se poderia argumentar que, também nas hipóteses de suspensão provisória, o processo pode
vir a ter de ser retomado, não se justificando uma sua “hibernação” durante período de tempo que
prejudique o posterior reatamento. Existem, todavia, diferenças não despiciendas entre a suspensão
provisória do processo e a possibilidade de renovação do direito de queixa caso o acordo da mediação não
seja cumprido. Uma delas prende-se com o provável estado mais adiantado do processo nos casos de
suspensão provisória do processo, que é uma alternativa à acusação; nas hipóteses de renovação do direito
de queixa, retornar-se-ia a uma fase mais prévia do inquérito porque, apesar de a opção pela mediação
não prescindir da existência de alguns indícios, não se exige que eles sejam os suficientes para sustentar
uma acusação.

649
que lhe poderia caber e, por outro lado, os deveres que o agente pode assumir através do
acordo com que culmina a mediação penal. O que se questiona é, assim, se estes
deveres podem ser desproporcionalmente gravosos face ao desvalor do ilícito e à sanção
penal potencialmente aplicável.
É sabido que a construção das molduras penais deve obedecer a um princípio de
perequação. Este supõe um juízo de proporcionalidade absoluta (“adequação e
congruência entre o desvalor de uma determinada infracção e o desvalor da pena que lhe
corresponde”) e um juízo de proporcionalidade relativa (através de uma “lógica de
aferição da proporcionalidade ao horizonte normativo em que, precisamente esse
princípio joga, ou seja, ao ordenamento jurídico penal”)1127. Aquilo que se deve
ponderar é se o legislador não deveria ter limitado também o conteúdo do acordo obtido
através da mediação penal por uma exigência de proporcionalidade.
Militam contra tal exigência vários argumentos, que se podem genericamente
agrupar em duas dificuldades principais: a dificuldade da comparação, inerente às
diferenças dos sujeitos e dos papéis que desempenham; a dificuldade de comparação das
grandezas distintas que são por um lado a pena e por outro lado a solução restaurativa.
Considere-se o primeiro aspecto. O ajuizamento da proporcionalidade por um
terceiro pressupõe uma avaliação que é a sua (uma avaliação do desvalor da conduta e
do desvalor inerente aos deveres assumidos pelo arguido). Em rigor, tratar-se-á até de
mais do que uma avaliação: o legislador, ao criar a moldura penal, pondera vários
aspectos, sobretudo a ofensividade associada àquele comportamento; o aplicador, para
além do juízo subsuntivo mas balizado já por aquela valoração legislativa, avalia agora
as especificidades do caso que adquiram relevância para aferir da culpa e das exigências
preventivas que condicionarão a operação de determinação da medida da pena1128. Estas

1127
Sobre o princípio da perequação, cfr. José de FARIA COSTA, Direito Penal Especial – Contributo a
uma sistematização dos problemas “especiais” da Parte Especial, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p.
55 ss. Com particular interesse para a questão que agora se pondera (a questão da exigibilidade ou não de
proporcionalidade do conteúdo do acordo restaurativo), veja-se a afirmação do Autor de que “é
indiscutível que toda e qualquer infracção penal oferece, à luz dos actuais códigos penais e enquanto
indiscutível conquista de raízes iluministas, não só uma precisa definição das condutas proibidas, mas
também uma não menos precisa definição da pena, se bem que esta, afastada uma concepção legalista da
pena fixa, esteja balizada entre um mínimo e um máximo, revelando-se, como tal, capaz de responder à
chamada dos princípios da culpa e da igualdade. Quer isto significar que, se não há pena sem a definição
das condutas proibidas, é também indesmentível que a uma conduta penalmente proibida corresponde
uma sanção criminal, cujos limites, máximo e mínimo, se mostram cumpridores de uma determinada
razão de ser. Com efeito, a escolha desses limites pelo legislador não é arbitrária mas tem pressupostos
determinados referentes normativos: a natureza do bem jurídico que se quer proteger, a forma de ataque
ou violação àquele bem jurídico, assim como as finalidades de censura e prevenção”.
1128
Cfr. Anabela MIRANDA RODRIGUES, A Determinação da Medida da Pena Privativa de
Liberdade, Coimbra: Coimbra Editora, 1995, sobretudo p. 545 ss.

650
avaliações podem não coincidir com a avaliação dos concretos intervenientes no
conflito (e depois sujeitos da mediação penal) sobre a forma justa de reagir àquele
conflito criminal. Ora, estando a mediação penal orientada sobretudo para a pacificação
da dimensão interpessoal do conflito criminal, parece incoerente a sobreposição da
valoração de um terceiro àquela valoração que o ofendido e o arguido livremente
verteram no acordo. Ou seja: o acordo deverá simbolizar uma solução que os
intervenientes no conflito sentem como justa, na medida em que não é desproporcional
aos males causados pelo agente e sofridos pela sua vítima. E é essa sua representação
que, atentas as finalidades da mediação penal, parece dever preponderar.
O juízo de proporcionalidade cuja necessidade se questiona revela, porém, um
outro problema, para além do inerente à ponderação da conduta e da reacção à conduta
por sujeitos diversos e, o que é mais importante, por sujeitos cuja decisão é orientada
por distintas funções: a protecção de bens jurídicos, num caso; a pacificação pessoal ou
interpessoal associada à reparação, no outro. Esse outro problema relaciona-se com a
possibilidade (ou não) de se fazer a comparação de duas diversas formas de reacção ao
conflito: aquela que seria a reacção penal (a condenação possível associada ao
funcionamento das instâncias formais de controlo) e a solução restaurativa encontrada
através da mediação. Também aqui, porém, se podem esgrimir argumentos contrários a
essa ponderação. Julga-se que eles se prendem, por um lado, com a dificuldade de
comparar grandezas distintas1129 (a pena e o dever assumido pelo agente na sequência
da mediação penal) e, por outro lado, de novo com o sentido da própria intervenção
restaurativa, que leva a que se suscite a interrogação sobre a conveniência de se rejeitar
uma solução que as partes sentem como a solução justa e que permite a pacificação do
conflito, em nome de uma limitação pensada para um modelo de reacção estruralmente
diverso porque alicerçado na coerção.
Em sentido oposto, podem aduzir-se argumentos que teriam aconselhado,
segundo se crê, a interdição de acordos com um conteúdo manifestamente
desproporcional.
Em primeiro lugar, a alegação de que o conteúdo do acordo resulta da vontade
livre e esclarecida dos intervenientes na mediação não ilude a verificação de que nem
sempre as vontades são igualmente esclarecidas e livres, por mais que o mediador deva

1129
Refere-se a dificuldade inerente à comparação de formas de reacção diferentes porque nem sempre
estará em causa a comparação de uma pena de multa com um dever de pagamento à vítima de certa
quantia pecuniária. Se o sistema sancionatório previsto pelo legislador penal se não limita à pena de
multa, também o conteúdo do acordo obtido através da mediação penal pode ser diversificado.

651
garantir o idêntico “empoderamento” do conflito. E, por exemplo, se não se duvida da
possibilidade de compreensão pelo arguido do desvalor inerente aos deveres que
assume, já se pensa que esse mesmo arguido nem será terá uma informação suficiente
sobre aquilo que poderia suceder caso o processo penal seguisse a sua tramitação
“normal” até ao julgamento.
Por outro lado, não pode desconhecer-se que a resposta restaurativa não assume
no nosso ordenamento uma natureza privada, antes surgindo associada ao
funcionamento do processo penal e no contexto de um sistema público. Assim, a própria
credibilidade desse sistema seria prejudicada pela admissão de acordos com conteúdo
que pudesse vir a ser avaliado como injusto na medida da sua manifesta
desproporcionalidade. Em sentido mais amplo, seria ainda a justiça restaurativa a
prejudicada pela existência de tais acordos, na medida em que assim se desvirtuaria a
sua dimensão abolicionista (em confronto com a admissão de soluções mais gravosas
para o agente do que a própria punição) e se favoreceriam as críticas de maior
fragilização da posição do arguido em um contexto em que, ainda por cima, as garantias
parecem ser menores.
A esta linha de raciocínio pode acrescentar-se que, mesmo em uma perspectiva
individual ou interpessoal, a aceitação de um acordo manifestamente desproporcional
poderia vir a prejudicar a pacificação que se pretende, sobretudo a partir do momento
em que algum dos sujeitos (mas sobretudo o agente) adquirisse a noção dessa
desproporcionalidade e passasse a ver como injusto o acordo que tinha celebrado.
Confrontados os diversos argumentos, a conclusão parece ser a de que não se
deve exigir que o conteúdo do acordo seja estritamente proporcional ao desvalor do
ilícito e ao desvalor da sanção penal que seria admitida. Todavia, deve exigir-se que
aquele acordo não seja manifestamente desproporcional, na medida em que a aceitação
dessa desproporcionalidade seria prejudicial à consecução das finalidades da mediação
penal, assim como se revelaria desvaliosa à luz de uma ponderação mais global do
funcionamento dos sistemas (restaurativo e penal) de reacção ao crime1130.

1130
Chegando a conclusão próxima, ainda que a partir de uma linha de reflexão não inteiramente
coincidente, Jonh BRAITHWAITE afirma que “tal como é perigoso permitir ao tribunal que imponha
uma punição superior ao máximo permitido pela lei, devia ser proibido num processo de justiça
restaurativa a aplicação de uma punição acima da que seria imposta pelos tribunais para aquela espécie de
malfeitoria” (Restorative Justice and Responsive Regulation cit., p. 12).

652
2.1.5.O carácter nuclear da vontade do arguido e do ofendido e a relevância do
seu esclarecimento

Na teoria restaurativa, a afirmação da importância da vontade do agente do


crime e da sua vítima para que se possa atingir uma solução para o conflito que seja
amplamente reparadora tem um papel nuclear. Um dos Autores que ilustra com
particular clareza essa necessidade é, de novo, Howard ZEHR que, no seu estudo
“Journey to belonging”, apresenta o conceito de “pertença” (por contraposição ao de
“alienação”) como elemento que exige um determinado procedimento alicerçado na
vontade1131.
Havendo uma unanimidade cada vez maior quanto à indispensabilidade de que a
participação na mediação penal fique condicionada ao requisito da voluntariedade, a Lei
n.º 21/2007, de 12 de Junho, apesar de partir daquele pressuposto, não deixa de poder
suscitar algumas interrogações, mais uma vez potenciadas pelo minimalismo que se vem
referindo. Considerem-se, apenas, as que se julgam de maior importância.
Em primeiro lugar, depois de justificada a exigência daquela manifestação de
vontade por parte do arguido e do ofendido, deve questionar-se se o legislador foi
suficientemente cuidadoso quanto à regulamentação do esclarecimento sem o qual a
manifestação de vontade não pode, em bom rigor, considerar-se livre.
Deve, porém, começar por se enunciar, da forma que se pretende mais simples,
os argumentos que sustentam a relevância dessa vontade. Por um lado, ela é, logo a um
primeiro olhar, inerente à prossecução das finalidades restaurativas: a pacificação
forçada de um conflito de natureza (inter)pessoal é mais dificilmente cogitável; uma
reparação dos danos causados à vítima que pressuponha uma satisfação dos interesses
que a vítima acha que são os seus não é, também, coerente, com uma sua participação
coactiva; em certo sentido, poder-se-ia até afirmar que essa participação forçada
favoreceria a vitimização secundária que se tem apontado ao funcionamento das
instâncias formais de controlo, e aqui porventura com maior intensidade.
Para além disso, agora na perpectiva do agente, a indispensabilidade da vontade
de participação do arguido é também indissociável de um certo “pano de fundo” cultural
a que a proposta restaurativa não é imune (como lhe não tem sido imune também o

1131
Cfr. Howard ZEHR, “Journey to belonging”, Restorative Justice – Theoretical Foundations, Eds.
Elmar WEITEKAMP/Hans-Jürgen KERNER, Devon: Willan Publishing: 2002, p. 21 ss.

653
pensamento da socialização enquanto finalidade da intervenção penal1132) e que se
prende com a rejeição da compreensão do agente como objecto de uma intervenção
coactiva. Um dos Autores que associa a afirmação de um objecto que se pode estudar e
transformar às ciências sociais próprias da modernidade é Zygmunt BAUMAN. Nas
palavras do Autor, «o processo de “socialização” definido como a remodelação da
“vontade da sociedade” (mais comummente conhecida por “interesses comuns”) nas
motivações dos seus membros, e os recursos destinados a obstruir, neutralizar ou
suprimir a rivalidade a essa remodelação, foram durante muitos anos o centro da
atenção dos sociólogos e formaram, nas suas inúmeras encarnações, o núcleo da
investigação sociológica»1133. Esta compreensão não é já, porém, a dominante na
tardomodernidade.
Por outro lado, é a indiscutível relevância dessa mesma vontade que protege a
justiça restaurativa e a mediação penal do essencial das críticas que lhe vêm sendo
dirigidas com base na sua incompatibilidade com princípios tão estruturantes como o
da culpa1134. Ou seja: a possibilidade de decorrerem da mediação, para o arguido,
determinados deveres, sem a sua responsabilidade ter sido mostrada através da
produção de prova numa audiência de julgamento, só se compreende na medida da
existência quer de vontade de participação, quer de vontade de celebração daquele
acordo.
Do que agora se afirmou já resulta a ideia de que existem dois momentos
essenciais no que respeita à manifestação da vontade. Em primeiro lugar, exige-se uma

1132
Sobre esta questão, vd., paradigmaticamente, Anabela RODRIGUES, que, no contexto de uma
reflexão sobre a execução da pena de prisão, atribui ênfase à ideia de que “na base de uma execução
orientada pela finalidade de socialização (…) está o pressuposto de que a ajuda oferecida – o tratamento –
só é frutuosa com a participação voluntária do recluso” (Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária cit.,
p. 58). Registe-se, porém, que se a exigência de voluntariedade faz cada vez mais sentido, como se vem
referindo, no seio da justiça penal e, estruturalmente, no contexto da justiça restaurativa, a dimensão que
adquire em cada um dos sistemas de resposta ao crime parece ser, ainda, muito diversa.
1133
A propósito desse intuito de transformação de um objecto, Zygmunt BAUMAN acrescenta que «a
condição de exequibilidade de qualquer objectivo concebível passava por uma certa submissão, uma
maleabilidade da realidade destinada a ganhar outra forma. Como qualquer escultor sabe, a maleabilidade
não é uma característica da substância a ser reformada, mas a relação entre a resistência da substância e a
acuidade das ferramentas usadas para esculpi-la. Ao esculpir, o sucesso dos esforços depende tanto da
capacidade das ferramentas escolhidas para executar a tarefa como da submissão do material – é
fundamental, portanto, um conhecimento firme deste último que permita a escolha correcta das
primeiras» (A Sociedade Sitiada cit., p. 11).
1134
Com interesse a este propósito, veja-se a afirmação de André LAMAS LEITE de que «sendo uma
forma de justiça “proposta” e não “imposta”, a assinatura do acordo de mediação traduz uma mais
completa e fidedigna afirmação de um juízo de culpa, porquanto a cargo do próprio imputado, ainda que
rubricar o consenso possa nada mais ser do que uma decisão racional-calculista de controlar o outcome
de um processo que, iniciado sob o signo da legalidade e da oficialidade, quando decidido pelos juízes,
escapa a uma total e absoluta previsão milimétrica, como que ganhando “vida própria” (“Justiça Prêt-à-
Porter?” cit., p. 103).

654
afirmação da vontade no que respeita à participação na mediação penal. Em segundo
lugar, o acordo obtido através dessa mediação pressupõe a vontade do arguido de
assumir determinados deveres e a vontade do ofendido de os aceitar porque os considera
suficientemente reparadores. Cumpre, portanto, autonomizar a vontade de participação
da vontade de celebração do acordo.
Relativamente àquele primeiro momento, há que distinguir ainda duas
possibilidades. Se a mediação penal surge por iniciativa do Ministério Público, que
designa um mediador a quem envia a informação essencial, para além da notificação do
arguido e do ofendido, prevê-se que “o mediador contacta o arguido e o ofendido para
obter os seus consentimentos livres e esclarecidos quanto à participação na mediação,
informando-os dos seus direitos e deveres e da natureza, finalidade e regras aplicáveis
ao processo de mediação, e verifica se aqueles reúnem condições para participar no
processo de mediação”1135. Na hipótese – improvável, mas com previsão legal – de a
mediação surgir a requerimento do ofendido e do arguido, ainda assim estes devem ser
notificados do envio e deverão ser, depois, contactados pelo mediador que, para além de
se assegurar da sua vontade de participação, deve ainda avaliar a existência das
condições para a mediação penal. A manifestação de vontade de participação deve, em
qualquer dos casos, ficar expressa em termo de consentimento1136.
Independentemente de se poder afirmar que a vontade de participação tem de
existir ao longo de toda a mediação e não apenas naquele momento inicial em que a
possibilidade se suscita – até porque “o arguido e o ofendido podem, em qualquer
momento, revogar o seu consentimento para a participação na mediação”1137 –, os
sujeitos da mediação penal serão de novo chamados a manifestar por escrito a sua
vontade de celebração de um determinado acordo. Assim, dispondo o n.º 1 do artigo 6.º
que “o conteúdo do acordo é livremente fixado pelos sujeitos processuais participantes”,
estatui-se no n.º 3 do artigo 5.º que “resultando da mediação acordo, o seu teor é
reduzido a escrito, em documento assinado pelo arguido e pelo ofendido, e transmitido
pelo mediador ao ministério público”.
Esboçadas estas considerações introdutórias, importa ponderar, e por maioria de
razões relativamente ao arguido, o significado daquela sua vontade de participação,

1135
Cfr. o n.º 5 do artigo 3.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho.
1136
Segundo o n.º 7 do art. 3.º desta Lei, “se o mediador obtiver os consentimentos livres e esclarecidos
do arguido e do ofendido para a participação na mediação, estes assinam um termo de consentimento, que
contém as regras a que obedece a mediação, e é iniciado o processo de mediação”.
1137
Cfr. o n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho.

655
sobretudo por força do relativo reconhecimento dos factos que lhe são, neste momento,
imputados.
Nesta matéria, o ponto que se julga essencial vincar – e que o legislador optou
por deixar expresso – é o de que aquele reconhecimento dos factos não poderá assumir
qualquer relevância caso a mediação penal não desemboque num acordo (hipótese em
que o processo penal prosseguirá) ou, então, caso tenha havido acordo mas o seu
incumprimento desencadeie uma renovação da queixa e, portanto, uma abertura de
inquérito.
São vários os argumentos que convergem nesta conclusão. Em primeiro lugar,
desconhece-se com exactidão o âmbito do reconhecimento dos factos pelo arguido. A
sua vontade de participação na mediação não tem, em bom rigor, de significar um
reconhecimento de todos os factos que o ofendido quis imputar-lhe através da queixa
e/ou que o Ministério Público considera, à luz de uma ponderação ainda perfunctória,
que aparentemente se lhe podem assacar. Para além disso, estes factos estão ainda
cristalizados numa qualificação jurídica que é, ela própria, embrionária, porque a
abertura de inquérito por um determinado crime foi condicionada pela queixa e
sustentada por uma avaliação da existência de indícios menos exigente do que aquela
que funda uma acusação.
Por outro lado, a opção legislativa de esclarecer na letra desta lei a
impossibilidade de dar à aceitação de participação do arguido na mediação penal o
significado de uma confissão dos factos (com relevância futura no processo penal)
compreende-se, tendo em conta a novidade deste regime jurídico, ainda que tal
conclusão fosse já inequívoca à luz de vários princípios estruturais do direito processual
penal português, como sejam o da presunção de inocência ou o da imediação da
prova1138. Ainda assim, o legislador entendeu – e julga-se que bem – esclarecer que “o
teor das sessões de mediação é confidencial, não podendo ser valorado como prova em
processo judicial”1139.
Finalmente, uma outra questão que merece referência, no que respeita à
ponderação da vontade dos intervenientes no conflito quanto à existência da mediação

1138
Recorde-se que, nos termos do n.º 1 do artigo 355.º do CPP, “não valem em julgamento,
nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem
sido produzidas ou examinadas em audiência”. E as excepções a esta regra, contempladas nos artigos
seguintes, não incluem a participação na mediação, por parte do arguido, como declaração sobre a
responsabilidade susceptível de valoração posterior.
1139
Cfr. o artigo 4.º, n.º 5 da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho.

656
penal, prende-se com a ideia de que a manifestação dessa vontade, se é indispensável,
pode todavia não ser suficiente.
Em primeiro lugar, e como já se viu, a exigência cumulativa de vontade do
ofendido e do arguido para que haja mediação penal retira relevância autónoma à
vontade isolada de cada um deles. Ora, se parece inequívoco que tem de ser assim – que
a mediação penal só pode existir quando corresponder à vontade de ambos –, o que já
não se compreende é a exigência legal de que a mediação “não promovida” pelo
Ministério Público tenha de ser requerida pelo arguido e pelo ofendido. A manifestação
da vontade de ambos quanto à participação na mediação – da qual se não deve
prescindir, reitere-se – não tem de equivaler, naturalmente, à exigência de um
requerimento conjunto de envio do processo para mediação (sendo que a mera
representação de uma tal convergência de vontades para se pedir a mediação penal – a
mediação penal através da qual se pretende lograr uma pacificação do conflito –, em um
momento em que o conflito existe de tal modo que já deu origem a um processo
criminal, parece irrazoável).
A exigência cumulativa das manifestações de vontade do arguido e do ofendido
para o requerimento da mediação penal tem como consequência uma concessão do
legislador, que se crê excessiva – e excessiva porque se está no âmbito dos crimes
particulares – à decisão do Ministério Público quanto à remessa do processo para
mediação. A insuficiência da vontade de cada um dos intervenientes no conflito para
efeitos de requerimento da mediação penal (o que não dispensaria, claro está, a consulta
subsequente da vontade do outro) tem como consequência a outorga ao Ministério
Público de um amplo espaço de decisão sobre a existência (ou não) daquela mediação.
Parece certo que não se deve concluir, ainda assim, pela existência de uma relevância
autónoma de uma qualquer vontade do Ministério Público quanto à opção pela
mediação penal: tratando-se de uma autoridade judiciária a quem compete “representar
o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como (…) participar na
execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal
orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”1140, a sua
decisão sobre o envio do processo para mediação deve estar vinculada por critérios

1140
Cfr. o artigo 219.º, n.º 1 da CRP.

657
legais, os quais, por sua vez, devem ser coerentes com a teleologia do próprio
instituto1141.
Por outro lado, se a manifestação individual da vontade é imprescindível mas
pode não ser suficiente, na medida em que se não prescinde também da vontade do
outro, são pensáveis hipóteses em que mesmo a vontade conjunta não deverá
determinar inevitavelmente a procura de uma solução para aquele conflito através da
mediação penal. Assim, se o legislador desobrigou da verificação de requisitos atinentes
às finalidades preventivas o envio do processo pelo Ministério Público para mediação a
requerimento do arguido e do ofendido, tal não obsta a que, ainda assim, o mediador
possa considerar que “o arguido ou o ofendido não reúne condições para a participação
na mediação”, hipótese em que deve dar conhecimento desse facto ao Ministério
Público, o que implicará o prosseguimento do processo penal1142.
Em rigor, julga-se que o mediador tem sempre de contactar o arguido e o
ofendido para a obtenção dos seus “consentimentos livres e esclarecidos quanto à
participação na mediação”, mesmo na hipótese de a mediação ter sido requerida
conjuntamente. Convergem neste entendimento um argumento material (o
consentimento só pode ser esclarecido depois de o mediador ter aclarado junto do
arguido e do ofendido, como lhe incumbe, o sentido, o funcionamento e as
consequências da mediação penal) e um argumento de índole mais formal (o n.º 5 do
artigo 3.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, impõe genericamente o dever de o
mediador contactar o arguido e o ofendido para obter os seus consentimentos, não
excepcionando o caso da mediação a requerimento de ambos).
Ora, aquilo que se pretende vincar é que o consentimento esclarecido para a
participação na mediação, cuja obtenção incumbe, em qualquer caso, ao mediador, não
obsta a que essa mediação não venha a ter lugar caso o mediador conclua que o arguido,
o ofendido ou ambos não reúnem as condições para aquela participação. Deve
acrescentar-se que podem ser de várias índoles as razões que sustentam essa
inexistência de condições. A título de exemplo – e por se julgar que são estas as
hipóteses mais significativas –, considerem-se os casos de manifesta falta de um
idêntico “empoderamento” do conflito pelo arguido e pelo ofendido (e a consequente

1141
Foi, porém, esta coerência entre os critérios do envio do processo para mediação pelo Ministério
Público e os objectivos da própria mediação penal que, em momento anterior deste estudo, se questionou.
A eleição como critério das finalidades de prevenção parece desconsiderar quer o âmbito material desta
mediação (apenas os crimes particulares, repita-se), quer a existência de finalidades específicas das
práticas restaurativas.
1142
Cfr. os números 5 e 6 do artigo 3.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho.

658
impossibilidade de uma participação na mediação em um plano de igualdade, quer de
diálogo, quer de conformação da solução), os casos em que não se julgam reunidas as
condições de segurança para o encontro ou os casos em que há uma clara intenção de
utilização do encontro para agudizar o conflito ao invés de o pacificar. De forma ampla,
poder-se-á afirmar que são duas as principais razões – de certo modo interligadas – que
devem levar o mediador a considerar inaplicável a mediação penal, mesmo que o
arguido e o ofendido a desejem: a indesejabilidade de a mediação ter como
consequência um efeito de vitimização secundária de um participante sobre o outro
(quer o vitimizado fosse agora o ofendido, quer passasse a ser o arguido) por força de
uma clara desigualdade no empoderamento do conflito; a impossibilidade manifesta de
aquela mediação cumprir a sua função de pacificação do conflito interpessoal.
Ainda a propósito deste ponto, é cabida uma outra palavra de justificação desta
possibilidade de o mediador de conflitos obstar à mediação de um conflito que os
intervenientes querem que seja objecto de mediação. Uma tal solução pode parecer,
pelo menos a um primeiro olhar, contraditória com o fundamento e a função que antes
se atribuíram às práticas restaurativas. Pensa-se que existe, porém, uma linha de
justificação para a limitação da relevância da vontade dos intervenientes no conflito
quanto à sujeição do caso a mediação: tratando-se esta mediação, como sucede entre
nós, de uma forma de diversão processual penal que opera no contexto de um sistema
público, não deve admitir-se a utilização de tal sistema em moldes que possam ter como
resultado uma contradição das suas próprias finalidades.
Assim sendo, a aceitação de uma mediação sobre a qual se possa fazer um juízo
de muito provável inadequação à obtenção da pacificação do conflito interpessoal (ou,
pior, uma mediação que se julga que causará danos a algum dos participantes ou uma
intensificação do conflito), por ser contrária às finalidades primeiras do próprio sistema
público de mediação, equivaleria à descredibilização do mesmo, com os prejuízos daí
decorrentes (quer no plano da legitimidade, quer no plano da eficiência) para a “coisa
pública”.
Não se julga, por outro lado, que assim se esteja a admitir uma manifestação
daquele “paternalismo legal” – vertido em uma limitação dos direitos do indivíduo em
nome de um interesse que se acha que é o seu, mas que o próprio assim não
considera1143 – que em momento posterior se criticará. O “paternalismo” que se enjeita,

1143
John RAWLS, na sua obra de referência Uma Teoria da Justiça (cit., p. 173), refere o “princípio do
paternalismo, que deve guiar as decisões tomadas em nome de outrem. Devemos efectuar as escolhas

659
por pressupor uma nota de limitação de direitos individuais para protecção do próprio
indivíduo que não deseja ser protegido, não parece susceptível de transposição imediata
para espaços de relevância da alteridade que é inerente à mediação penal. A mediação
querida por ambos mas provavelmente prejudicial para um ou para os dois deve ser
vedada pelo risco que há de causação de danos por um a outro, e não já pelos danos que
cada um pode causar a si próprio.
Uma das razões pelas quais se atribui especial relevância esta questão da
vontade do arguido e do ofendido (na opção por uma outra forma de reacção ao crime e
na definição dos contornos dessa resposta) prende-se com a sua ligação umbilical ao
pensamento liberal e à forma como ele hoje deve ser interpretado. Correndo-se o risco
de uma excessiva simplificação, sempre se poderá dizer que a associação da relevância
dessa vontade ao pensamento liberal tem na base a ideia de que se a intervenção do
Estado deve ser limitada ao mínimo necessário à protecção da liberdade individual,
então é a própria defesa dessa liberdade ligada à autonomia da vontade que interdita a
restrição de condutas queridas pelo próprio e que não sejam desvaliosas para terceiros.
O que também se julga, porém, é que o reconhecimento desta dimensão liberal
da intervenção estadual – e recorde-se, uma outra vez, que a mediação penal admitida
pelo legislador português surge no âmbito de um sistema público e é qualificável, no
plano processual penal, como mecanismo de diversão –, não pode deixar de conviver
com as exigências de solidariedade do colectivo face aos indivíduos em situação de
desfavorecimento1144. E, no que respeita ao objecto de estudo eleito, são várias as

pelos outros segundo aquilo que é lícito pensar que eles escolheriam para si próprios caso tivessem a
idade da razão e decidissem racionalmente”. Existem, nesta compreensão, várias notas que merecem
referência. Aquela a que se quer dar relevância, até na medida em que condicionará opinião posterior
relacionada com a admissibilidade da mediação penal no âmbito da violência doméstica, é a de que esta
tomada de decisões no interesse de outrem que é inerente ao paternalismo só tem razão de ser quando o
afectado pela decisão não tem a “idade da razão”, conceito que se pode tomar em sentido mais amplo do
que o atinente à mera “idade cronológica”. Já na definição de João Paulo Orsini MARTINELLI, o
“paternalismo” é “compreendido como a sobreposição à vontade de alguém para impor um
comportamento, com a finalidade de evitar-lhe um mal”. O Autor acrescenta que “nem sempre o
paternalismo é mal visto no Estado liberal e democrático de direito. Há situações em que o ordenamento
jurídico pode impor ou proibir comportamentos, direta ou indiretamente, para proteger certos grupos de
pessoas, passando por cima de sua vontade. São as hipóteses em que o sujeito não pode consentir ou nas
quais a lesão ao bem jurídico pode comprometer a autonomia individual”. A partir da eleição da
autonomia como valor fundamental, o Autor sustenta que as intervenções contrárias à vontade do
indivíduo em hipóteses em que da sua conduta só possa decorrer um mal para si próprio devem restringir-
se aos casos das “pessoas em situação de vulnerabilidade” e desde que esta situção impeça, de facto, uma
escolha ainda considerada livre (Paternalismo Jurídico-Penal, São Paulo: USP, 2010, obra em curso de
publicação gentilmente cedida pelo Autor, p. 15).
1144
Esta ideia já mereceu consideração na Parte I deste estudo. Parece poder afirmar-se uma certa
tendência, como também antes se referiu, para a procura de harmonização das vertentes liberal e solidária.
Segundo António HESPANHA, “uma concepção puramente liberal, em que os direitos individuais se

660
circunstâncias inerentes ao crime e ao processo que podem tornar especialmente frágeis,
consoante os casos, o arguido ou o ofendido. Nessa medida, por mais que os crimes
cabidos no âmbito da mediação penal sejam apenas, nos termos da Lei n.º 21/2007,
crimes particulares em que se reconhece já uma certa disponibilidade dos interesses,
parece não poder atribuir-se, nos termos antes sumariados, uma eficácia plena à vontade
do arguido e/ou do ofendido. O mediador penal, cuja intervenção é a de um agente do
sistema público de mediação, surge neste contexto imbuído de um poder-dever que
pressupõe uma ponderação do binómio autonomia da vontade, por um lado, necessidade
de protecção, por outro. Nesta medida, se lhe é alheia qualquer autoridade para a
decisão do conflito jurídico-penal, sobra-lhe um certo poder-dever, ainda em nome da
«”autoridade do Estado”, que queremos que seja suficientemente forte para nos
proteger, mas não excessivamente forte para nos oprimir»1145.
Por outro lado, se nos termos antes expostos se admitem limites à relevância da
vontade do arguido e do ofendido no que respeita à existência da mediação penal
(porque não há “mediação sem vontade”, mas pode haver “vontade sem mediação”),
dever-se-ão ainda considerar as restrições que o legislador impôs à relevância
processual penal da solução que foi objecto de acordo – desse acordo que deve
corresponder a ambas as vontades quanto àquilo que é devido para a pacificação do
conflito. Essas restrições estão associadas, no regime jurídico introduzido pela Lei n.º

impusessem como objectivos únicos da ordem civil, é alheia à doutrina e às situações constitucionais
dominantes na Europa continental. Por muitas razões, umas doutrinais, outras políticas. Ou porque se
continuava a realçar o carácter político ou solidário do homem, tal como na doutrina política tradicional
do Antigo Regime; ou porque se pensava que era preciso substituir a abstracção dos direitos individuais
puros pelo realismo dos direitos efectivamente reconhecidos pela sensibilidade política de cada
conjuntura social concreta, expressa nas leis positivas; ou, finalmente, porque se entendiam os indivíduos
como órgãos de um ser social colectivo (a Nação); ou porque se sublinhava a preeminência do interesse
geral como produto de uma vontade, também geral, que deve preferir às vontades e interesses egoístas de
cada um; ou porque se erigia o Estado numa personificação da sociedade e se lhe entregava a tarefa de
atribuir a cada um as faculdades correspondentes à sua participação no bem comum”. O Autor, já na
conclusão da sua obra e no contexto de uma ponderação do pensamento liberal ao longo do século XIX e
no início do século XX, distingue “diversas manifestações do imaginário do Estado”. Associando o
republicanismo à primeira fase liberal, afirma que «a liberdade, para os republicanos, era a exclusiva
submissão ao “jugo da lei”. A ideia de governo pela lei pressupunha o estabelecimento de uma regra de
vida comum, dominada pela ideia de interesse público (…). Desta forma, a única dependência compatível
com o estado de república havia de ser a dependência em relação ao interesse público, promovida
internamente pela virtude cívica e imposta externamente pela lei. Todas as outras formas de dependência
– que, então, seriam dependências em relação a interesses privados – estavam excluídas. Nisto consistia a
liberdade». HESPANHA distingue, porém, este republicanismo do “estadualismo” dominante na segunda
metade do século XIX, o qual respousaria numa concepção da “sociedade como organismo, baseada no
princípio da solidariedade”. Refere a influência do pensamento romântico e da sociologia conteana no
estadualismo, da qual proviria a ideia de que “o Estado devia ser um pólo racionalizador da sociedade,
pelo menos sempre que o instinto natural solidário dos homens não bastasse para realizar a harmonia
social” (in Guiando a Mão Invisível cit., p. 240 e p. 525).
1145
A expressão é usada por Miguel MORGADO em Autoridade, Lisboa: Fundação Francisco Manuel
dos Santos, 2010, p. 9.

661
21/2007, de 12 de Junho, à exigência de homologação, pelo Ministério Público, da
desistência de queixa que é consequência da obtenção e da assinatura daquele acordo.
Esta matéria, por suscitar ainda problemas de outra índole, merece, porém, tratamento
autónomo.

2.1.6.O sentido da intervenção, posterior ao acordo, do Ministério Público

Dispõe-se no n.º 5 do artigo 5.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, que “o


Ministério Público verifica se o acordo respeita o disposto no artigo 6.º e, em caso
afirmativo, homologa a desistência de queixa no prazo de cinco dias”. O carácter enxuto
da norma não deixa, mais uma vez, de suscitar interrogações. Referindo-se aquele artigo
6.º aos limites para o acordo – associados, como já se referiu, à impossibilidade de
inclusão de sanções privativas da liberdade e de deveres contrários à dignidade do
arguido ou cujo cumprimento se prolongue por mais de seis meses –, parece legítima a
interrogação sobre se o Ministério Público pode recusar a homologação porque,
nomeadmente, aquele acordo se baseia em uma verdade consensualizada que não é
totalmente coerente com a sua ideia sobre aquela que seria a verdade processual ou,
ainda, porque considera que o conteúdo do acordo é insuficiente face às finalidades de
prevenção geral e especial.
No que tange à compreensão deste poder de controlo do acordo que o legislador
atribuiu ao Ministério Público, julga-se que se podem distinguir, portanto, duas
questões. A primeira prende-se com a possibilidade de sindicância da factualidade
assumida como verdadeira pelos sujeitos da mediação penal. A segunda relaciona-se já
com a solução escolhida pelas partes como boa para a pacificação do conflito inerente
àquela factualidade e que deve verter-se na assunção de algum dever (ou alguns
deveres) pelo arguido.
A consideração da primeira interrogação supõe o entendimento – que não recebe
confirmação ou infirmação na letra da lei – de que o acordo assinado pelos sujeitos da
mediação e depois levado ao conhecimento do Ministério Público não se basta com a
referência aos deveres assumidos pelo arguido, acompanhados pela indicação da
concordância do ofendido. Se o acordo é a solução encontrada por estes sujeitos para
um conflito penal que deu origem à instauração de um processo criminal, deve ser
possível estabelecer, através daquele acordo, uma conexão – por menor que seja – entre
o problema e a solução. Logo, o que se julga é que do acordo não pode constar somente

662
a solução, tendo que haver uma qualquer referência ao problema a que se visa reagir
através do consenso.
Este entendimento, se é suportado por alguns argumentos que se julgam fortes –
nomeadamente a impossibilidade de, por outra forma, se fazer o juízo de manifesta
desproporcionalidade que deve vedar a solução –, não deixa de suscitar algumas
dificuldades. Uma delas relaciona-se com a (in)conveniência de se deixar um registo
escrito da responsabilidade assumida pelo arguido sem se prejudicar o sigilo inerente às
práticas restaurativas. A outra associa-se à (im)possibilidade de utilização posterior
desse suporte para fins alheios à mediação penal.
Tendo no horizonte estas linhas de orientação aparentemente contraditórias, o
que se julga prudente é a afirmação de que o acordo que é reduzido a escrito deve conter
uma descrição muito sucinta da factualidade reconhecida pelos sujeitos da mediação e
uma descrição mais detalhada da solução que acordaram para pôr cobro a esse conflito.
Ora, quando se transpõe este juízo sobre aquela que deve ser a configuração do
acordo para uma ponderação do poder de controlo do Ministério Público, aquilo que se
começará por questionar é se esta autoridade judiciária pode recusar a homologação,
com fundamento na rejeição daquela verdade sobre a factualidade que é a dos sujeitos
da mediação.
Não constitui propósito deste estudo uma ponderação detida dos vários sentidos
que o conceito de verdade pode assumir1146. Para os efeitos aqui tidos por relevantes,

1146
Sobre o assunto, cfr. José de FARIA COSTA, “Consenso, verdade e direito”, Linhas de Direito
Penal e de Filosofia – alguns cruzamentos reflexivos, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 93 ss. O Autor
toma como objecto de reflexão o consenso visto enquanto “étimo fundante do assentimento geral” (“que
não se confunde com a ideia de consentimento ou sequer de acordo”, na medida em que “o
consentimento, de maneira diferente do consenso, é um acto de realização individual que só pode ter
lugar a bens ou valores disponíveis”). Escolhe, assim, como objecto um “consenso” delimitado com
grande precisão, que se não confunde necessariamente com o consenso inerente às práticas restaurativas.
Não obstante, várias das considerações que tece sobre a “problemática da verdade” devem ser
acompanhadas neste ponto da investigação. Tem-se em conta, sobretudo, a sua ideia de que “a verdade
que se alcança no momento da aplicação da norma (…) é tão-só uma verdade intra-sistemática
processualmente válida. Não é a verdade ontológica. Não é a verdade do juízo existencial. Não é a
verdade sequer do juízo histórico. É a verdade que as regras processuais permitem e que a decisão
jurisdicional legitima” (ob. cit., ps. 93-4 e 98). O primeiro segmento citado suscita, porém, uma
interrogação mais profunda e que respeita, também, a opções conceptuais tomadas em momentos
anteriores da investigação: tendo em consideração a diferença que o Autor estabelece entre “consenso”,
por um lado, e “consentimento e acordo”, por outro, ter-se-á andado bem na referência à problemática do
“consenso”, quer na justiça penal, quer na justiça restaurativa? Os institutos genericamente agrupados
sob a designação de “mecanismos de consenso” no direito processual penal e nas práticas restaurativas
pressupõem âmbitos materiais, sujeitos e espécies de participação que não são coincidentes. As
diferenças são várias. Assim, se o nosso legislador admite, por exemplo, a suspensão provisória do
processo para crimes públicos (em que estarão em causa interesses indisponíveis), já restringe a mediação
penal a alguns crimes particulares em sentido amplo. As autoridades judiciárias são sujeitos do consenso
“penal”, mas não já do “restaurativo”. No “consenso penal”, o ofendido e o arguido têm uma

663
crê-se bastante a verificação de que há uma certa unanimidade quanto ao facto de a
verdade processual penal poder não ser coincidente com a dita verdade material ou
absoluta, o que faz dela também uma verdade “construída”1147 e a aproxima, até certo
ponto, daquela verdade “consensualizada” inerente à mediação penal.
De certo modo, talvez possa afirmar-se que, tanto a verdade cuja descoberta é
uma das finalidades do direito processual penal, como a verdade consensualizada entre
o ofendido e o arguido a que se chega através da mediação penal são verdades
construídas através da comunicação, ainda que os sujeitos e as regras comunicacionais
não sejam inteiramente coincidentes. E julga-se que é assim – ainda que porventura seja
menos assim – mesmo em sistemas processuais penais, como o português, em que não
se deixa a sujeitos processuais configurados como partes todo o esforço de produção da
prova necessária ao estabelecimento da verdade, antes se imputando também ao tribunal
o dever de carrear para o processo, ainda que supletivamente, o material probatório
necessário à formação da sua convicção. Ou seja: em um eixo tradicional de
compreensão da verdade que se procura através do processo penal que tende a associar
o sistema inquisitório à verdade material e o sistema acusatório à verdade formal, um
sistema como o adoptado pelo legislador português não ocupa nenhum dos lugares
extremos.
Todavia, por mais que este princípio da investigação que visa completar a base
essencialmente acusatória do nosso direito processual penal afaste, mais do que em
sistemas puramente acusatórios, essa verdade processual penal da verdade
consensualizada que é própria das práticas restaurativas, ainda assim parece poder

possibilidade em princípio muito menor de conformação da “solução consensualizada”. Sublinhadas estas


diferenças, que dificultam o enquadramento teórico de institutos diversos sob a designação comum de
“soluções de consenso”, diga-se apenas que se optou por preservar o conceito de “consenso” sobretudo
porque, apesar de não estar aqui em causa o “assentimento geral” que José de FARIA COSTA tem em
conta no estudo citado, também se não refere o exercício pleno de uma vontade individual que, por si só,
disporia de forma plena de um interesse que é seu. Em todas as soluções consideradas, pressupõe-se a
construção através do diálogo de um assentimento que envolve vários indivíduos em uma resposta que
todos aceitam.
1147
Segundo Sergio MOCCIA, “Vérité Substantielle et Vérité du Procès” (Déviance et Société, 2000, vol.
24, n.º 1, p. 109), «o princípio acusatório tende, historicamente, a assegurar uma relação satisfatória entre
a finalidade do processo e os meios disponíveis para a descoberta da verdade. O conceito de verdade toma
aqui um valor formal: chama-se “verdadeiro” ao que corresponde, segundo regras antes determinadas, ao
melhor esforço cognitivo». O Autor esclarece ainda que “um conceito de verdade que se prende de
maneira oportuna a uma dimensão formal não pode encontrar sentido que não seja no interior da filosofia
da linguagem. Com efeito a definição formal da verdade, como correspondência entre um enunciado e o
seu dado objectivo, parece ser a única teoricamente adequada”.

664
afirmar-se que nenhuma destas verdades se logra apresentar, sem margem para dúvida,
como equivalente à verdade absoluta1148.
A pergunta antes esboçada prende-se com a possibilidade de não homologação
pelo Ministério Público com base na rejeição dessa verdade consensualizada que
suporta o acordo. A opinião de que se parte é a de que, cumpridos determinados
requisitos mínimos, não lhe cabe qualquer função de controlo da narrativa que é a
versão do acontecimento a que o ofendido e o arguido chegaram. Esses requisitos
mínimos prendem-se com a verificação da congruência entre aquele conflito para o qual
o ofendido e o arguido encontraram uma solução através do acordo e a factualidade
enquadrada como crime particular em sentido amplo e geradora daquele processo penal.
Ou seja: assumindo-se neste diploma que a mediação é um mecanismo de
diversão processual, a sua relevância no que respeita ao destino de um certo processo
penal impede o desligamento radical do conflito criminal. A conexão entre a mediação e
um específico processo atinente a um determinado crime obriga à verificação, pelo

1148
Jorge de FIGUEIREDO DIAS, a propósito de uma reflexão sobre a admissibilidade dos acordos sobre
a sentença, reconhece que a verdade que se procura através do processo penal, se não é uma verdade
meramente formal porque se não limita aos contributos das “partes”, também não coincide
necessariamente com a “facticidade histórica do real acontecido”. Nas suas palavras, «naturalmente que
essa verdade não é a narrativa construída pela acusação e a defesa, dita “verdade formal”. Mas também
não é integralmente a factualidade (a “facticidade”) histórica do real acontecido, mesmo que na sua
relevância para as exigências normativas do caso: é sim esta facticidade combinada com as – e por
consequência condicionada e limitada por as – exigências impreteríveis de garantia dos direitos das
pessoas face ao Estado. O resultado desta combinação pode, assim, ser algo de substancialmente
diferente, ou mesmo oposto, do real acontecido» (in Acordos Sobre a Sentença em Processo Penal cit., p.
49). João Conde CORREIA afirma, de modo enfático, que “é inquestionável que uma decisão penal,
brilhante do ponto de vista substantivo, será injusta se tiver sido lograda com base na tortura (…). Para
que a decisão seja, efectivamente, justa, também o processo que a ela conduz tem de ser justo” (O “Mito
do Caso Julgado” e a Revisão Propter Nova, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, ps. 149-150). Muito
crítico quanto à aceitação, cada vez mais ampla, da verdade negociada no âmbito da justiça penal, Sergio
MOCCIA (últ. ob. cit., p. 112) refere-se ao «abandono da “cultura da prova”», associada pelo Autor a
«uma diminuição perigosa do sistema das garantias, acentuando-se uma desvalorização progressiva da
dimensão “cognitiva” do processo, entendida como técnica de verificação dos factos fundada no
contraditório». Também Winfried HASSEMER deixa claro o seu entendimento de que «um processo
penal próprio de um Estado de Direito conhece (…) limites à averiguação da verdade, que geralmente são
de importância decisiva (…). A busca da verdade no processo penal é, por isso, relativa às vias legítimas
através das quais se pode atingir. Faz sentido, por isso, falar não de “verdade objectiva”, mas antes de
“verdade forense” ou obtida de acordo com as “formalidades judiciais”». E, tal como MOCCIA, também
HASSEMER tem uma visão muito crítica das soluções informais no processo penal, nomeadamente as
relacionadas com o consenso, que associa a um certo “comércio com a justiça” (Crítica al Derecho Penal
de Hoy. Norma, interpretación, procedimiento. Limites de la prision preventiva, trad. de Patricia Ziffer,
2.ª ed., 1ª reimp, Buenos Aires: Ad Hoc, 2003, p. 86, p. 96 ss). A rejeição da descoberta da verdade
material como finalidade do processo é clara no pensamento de Tomás Vives ANTÓN, para quem “o
problema da verdade no processo penal tem de abordar-se a partir de uma definição das posições dos
distintos participantes, que se aproxime, na medida do possível, dessa situação ideal de comunicação para
que a decisão seja a que teria de se adoptar em um discurso sem outra coacção que não seja a do melhor
argumento, em um discurso livre de dominação” ( “El proceso penal de la presunción de inocência”,
Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coord. Científica Maria Fernanda
Palma, Coimbra: Almedina, 2004, p. 29).

665
Ministério Público, de que o conflito que as “partes” consideraram resolvido através da
mediação e do acordo tem na base o mesmo conflito que mereceu enquadramento penal
em um inquérito criminal.
Todavia, nesta afirmação não vai implícita a ideia de que, por se admitir um
certo controlo, pela autoridade judiciária, da factualidade subjacente ao acordo, o
Ministério Público deve recusar a homologação sempre que tiver dúvidas sobre a
congruência entre essa verdade consensualizada e aquela que julga ser a verdade
material.
Várias razões abonam neste sentido: se, no próprio direito processual penal, se
admite já que a verdade que se procura deve tender à verdade material, mas
condicionada pela consecução de finalidades conflituantes que impõem determinadas
formas e limites, pareceria excessivo elevar-se agora, nas práticas restaurativas, essa
verdade “material” a objectivo cuja defesa caberia ao Ministério Público; por outro
lado, sendo o juízo indiciário muito escasso na fase do processo em que há remessa para
mediação, mal se compreenderia que o Ministério Público pretendesse agora impor à
factualidade assumida pelas partes uma sua representação da factualidade com um
limitadíssimo suporte na investigação.
As considerações esboçadas parecem aconselhar, deste modo, uma conclusão
cautelosa e uma formulação pela negativa: assim como antes se afirmou que o acordo
não tem de ser proporcional, mas não pode ser manifestamente desproporcional; dir-se-á
agora que o Ministério Público não deve inquirir se a verdade consensualizada pelos
sujeitos da mediação corresponde à verdade “do acontecido”, mas antes, mais
modestamente, se ela não é manifestamente incoerente com esta verdade, à luz dos
elementos já disponíveis1149.

1149
Desta afirmação resulta a conclusão de que o Ministério Público não deverá homologar a desistência
de queixa correspondente a um acordo através do qual o arguido assuma uma responsabilidade muito
improvável, sob pena de se estar a prejudicar ainda o princípio da culpa, por mais mitigada que seja a sua
vigência no âmbito restaurativo (ou, porventura com mais correcção, atentas as especificidades que aqui
assume). Concorda-se com a ideia de João RAPOSO de que a imposição constitucional de que o processo
penal se estruture de forma a poder alcançar a verdade material se relaciona com a “consagração
constitucional, também ela não expressa, do princípio da culpa”. Segundo o Autor, “porque o princípio da
culpa tem uma base ontológica, e não meramente formal, a culpa, que surge na Constituição como
pressuposto irrenunciável da pena criminal, tem que ser igualmente uma culpa efectivamente
demonstrada no processo penal, assente na demonstração efectiva de todos os elementos da
responsabilidade criminal e não numa demonstração presumida” (“O Princípio da Verdade Material – Um
Contributo para a sua Fundamentação Constitucional”, Liber Amicorum de José de Sousa e Brito cit., p.
836). Nestes termos, por mais que os princípios estruturais do direito processual penal não assumam
idêntica concretização no âmbito restaurativo, eles devem ser ainda tidos em conta, no seu núcleo
essencial e feitas as devidas adaptações.

666
Este sentido de resposta é facilitado, reconhece-se, pela circunstância de que no
âmbito material desta mediação penal (que é mecanismo de diversão processual penal)
só cabem crimes particulares em sentido amplo. Caso houvesse que ponderar também
crimes de natureza pública e indisponível, julga-se que o Ministério Público deveria
adoptar um crivo mais exigente na avaliação da “verdade” recortada pelos sujeitos da
mediação penal.
A segunda questão relaciona-se já com o sentido que pode assumir o controlo
pelo Ministério Público da solução encontrada para o conflito – ou seja, o controlo dos
deveres assumidos pelo arguido e que foram objecto de aceitação pelo ofendido.
A este nível, há uma primeira linha de resposta que não suscita dúvidas, face à
previsão legal, e que se prende com a necessidade de o Ministério Público verificar que
o acordo não inclui “sanções privativas da liberdade ou deveres que ofendam a
dignidade do arguido ou cujo cumprimento se deva prolongar por mais de seis meses”.
Nesta matéria, as interrogações surgem mais no que respeita à concretização de
conceitos com certa margem de indeterminação – como em momento anterior se já
referiu – do que na delimitação do espaço de intervenção do Ministério Público e do
sentido da sua intervenção.
Todavia, considerando-se agora exclusivamente este domínio problemático,
aquilo que ainda se deve perguntar é se, contendo o acordo deveres que não conflituam
com aqueles limites legais expressos, o Ministério Público pode, ainda assim, recusar a
homologação com base no seu entendimento de que tais deveres são insuficientes face
ao cumprimento das finalidades preventivas.
Uma linha de justificação para uma resposta afirmativa à questão poderia ser
encontrada na eleição, no n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, das
“exigências de prevenção” como critério para o envio do processo para mediação penal
pelo Ministério Público. Dir-se-ia, então, ser coerente com a decisão de remessa para
mediação em função da possibilidade de com ela se atingirem as finalidades preventivas
o entendimento de que, no momento do controlo dos resultados, caso entendesse que
tais finalidades não estavam cumpridas, o Ministério Público deveria recusar a sua
homologação. Ou seja: se, contra as suas expectativas iniciais, o Ministério Público
verificasse agora que a solução dos sujeitos da mediação é insuficiente para satisfazer as
necessidades preventivas (aquelas que foram critério do envio para mediação), caber-
lhe-ia evitar o fim do processo associado àquela homologação (de modo a proteger,
ainda, a possibilidade de obtenção daquelas finalidades através da resposta punitiva).

667
Esta é, porém, solução com a qual se não concorda. A sua rejeição sustenta-se
nas mesmas razões pelas quais antes se criticou a opção legislativa de elevar a critério
do envio do processo para mediação (em crimes particulares) aquelas finalidades
preventivas. Existem, porém, quanto a esta questão específica, argumentos adicionais
que sustentam a ideia de que o Ministério Público não pode recusar a homologação com
fundamento na ponderação daquelas finalidades.
Em primeiro lugar, invoque-se um argumento literal: se foram atribuídos ao
Ministério Públicos dois momentos decisionais (um relativo ao envio do processo para
mediação e outro relativo ao controlo do acordo obtido com a mediação) e apenas
quanto ao primeiro se fixou o critério das finalidades preventivas, então é porque o
legislador terá querido afastar este mesmo critério da intervenção do Ministério Público
naquele segundo momento.
Mais relevante, porém, será um argumento de natureza substancial, associado às
especificidades dos crimes particulares em sentido amplo – os únicos, repita-se,
passíveis de mediação penal nos termos da lei em análise – e que se prende,
precisamente, com a possibilidade de desistência de queixa até à publicação da sentença
da 1.ª instância. Ora, a homologação dessa desistência de queixa, contemplada no artigo
51.º do CPP, parece estranha a qualquer ajuizamento das finalidades preventivas. Assim
sendo, aquela que parece a trave-mestra para a compreensão do regime dos crimes
particulares no que respeita à sua promoção processual é a ideia de prevalência dos
interesses dos intervenientes concretos no conflito quanto à existência ou não – ou à
continuação ou não – do processo penal. Mal se compreenderia, portanto, que, podendo
estes intervenientes fazer parar a resposta estadual através de uma simples desistência
de queixa alheia à valoração das finalidades preventivas, se fizesse, na mediação penal,
exigência acrescida, sendo que esta mediação penal restringe o seu âmbito material
precisamente àqueles crimes particulares em sentido amplo.

2.1.7.A opção sobre a autoridade judiciária competente para a decisão de


homologação

O legislador português optou, através do n.º 5 do artigo 5.º da Lei n.º 21/2007,
por atribuir ao Ministério Público a função de verificação do conteúdo do acordo e de
homologação da desistência de queixa a que a sua assinatura equivale. Esta solução não

668
tem sido, porém, alheia a fortes críticas1150 que podem, ainda, ser associadas a uma
outra acepção do carácter minimalista deste regime jurídico: tendo tradição, no nosso
direito processual penal, a exigência da intervenção do Ministério Público e do juiz de
instrução para a adopção de soluções de diversão, o legislador optou por atribuir, neste
caso, aquela função homologatória apenas ao Ministério Público.
As “sérias dúvidas de constitucionalidade” que se têm suscitado – “não bastando
já a excessiva liberdade de modelação do acordo de mediação, em momento algum do
processo se prevê (…) que intervenha um magistrado judicial”1151 – não se julgam,
porém, inteiramente cabidas.
O primeiro fundamento em que a invocação daquela possível
inconstitucionalidade parece apoiar-se é o da atribuição ao Ministério Público de “uma
função verdadeiramente jurisdicional”, porque associada à “imposição” ao arguido de
deveres que, tal como sucede com as sanções penais, limitam os seus direitos
fundamentais. Esta posição surge também sustentada em um argumento comparativo
com o regime jurídico da suspensão provisória do processo, que no nosso Código de
Processo Penal não prescinde da intervenção cumulativa do Ministério Público e do juiz
de instrução (é proposta pelo Ministério Público e objecto da concordância do juiz de
instrução na fase de inquérito, ou é proposta pelo juiz de instrução obtida a
concordância do Ministério Público quando se estiver já na fase de instrução1152).
É sabido que o regime jurídico consagrado no Código de Processo Penal de 1987
foi influenciado pelo Acórdão n.º 7/87, do Tribunal Constitucional que, em sede de
apreciação preventiva da constitucionalidade requerida pelo Presidente da República, se
pronunciou pela inconstitucionalidade dos números 1 e 2 do artigo 281.º (na versão
constante do decreto registado sob o n.º 754/86, que fora entretanto enviado para

1150
Assim, por exemplo, Mário Ferreira MONTE, “Um balanço provisório sobre a Lei de Mediação Penal
de Adultos” cit., p. 121. O Autor pronuncia-se contra o facto de “a decisão final do caso não passar nunca
por um juiz”, considerando que “a sua intervenção não é dispensável”. Entende que “a razão é muito
simples: podendo o arguido e a vítima fixar livremente o acordo e significando isso a inexistência de
acusação, a decisão do Ministério Público não é isenta de reservas, quer ela vá no sentido da
homologação ou não. Só o juiz garante a independência necessária para, enquanto garante dos direitos
fundamentais, homologar o acordo. Claro que, quando há desistência de queixa nos crimes particulares ou
semi-públicos, a homologação da desistência cabe ao MP, quando ocorre no inquérito, e ao juiz, quando
sucede na instrução. Mas não se trata da mesma realidade. No caso da mediação, o que está em causa é
um acordo que põe fim ao conflito e que onera o arguido”.
1151
Cfr. André Lamas LEITE, A Mediação Penal de Adultos cit., p. 115.
1152
Vd. os artigos 281.º, n.º 1 e 307.º, n.º 2 do CPP.

669
promulgação), “na medida em que neles se não prevê qualquer intervenção de um juiz –
por violação dos artigos 32.º, n.º 4, e 206.º da Constituição“1153.
Ainda que se tome como bom o entendimento de que a decisão de suspensão
provisória do processo não pode prescindir, sob pena de violação dos preceitos
constitucionais, da intervenção de um juiz – sendo certo que essa é questão que escapa
aos propósitos deste estudo1154 –, aquilo que se julga é que intercedem diferenças

1153
Acrescenta-se, no referido Acórdão, que «não parece haver obstáculo de ordem constitucional à
direcção do inquérito pelo MP. Ser a “instrução” da competência de um juiz (…) não impede que se dê ao
MP competência para dirigir o “inquérito”, tal como ele vem desenhado no Código. Naturalmente que,
praticados os actos necessários, compete também ao MP encerrar o inquérito, arquivando-o ou deduzindo
acusação (…). O artigo 281.º consagra, porém, uma inovação nesta matéria, estabelecendo o princípio da
oportunidade do exercício da acção penal pelo MP relativamente à pequena criminalidade, atribuindo-lhe
o poder de suspender o processo, quando se verifiquem conjuntamente certas condições (…), mediante a
imposição – pelo próprio MP – de injunções e regras de conduta (…). É a inconstitucionalidade de todo
este preceito que vem suscitada. A questão posta, ou seja, a da suspensão provisória do processo do MP,
findo o inquérito, pode, porém, cindir-se em duas: uma, a da admissibilidade da suspensão, em si mesma
considerada; a outra, a da competência para ordenar a suspensão e a imposição das injunções e regras de
conduta. A admissibilidade da suspensão não levanta, em geral, qualquer obstáculo constitucional. Já se
não aceita, porém, a atribuição ao MP da competência para a suspensão do processo e imposição das
injunções e regras de conduta previstas na lei, sem a intervenção de um juiz, naturalmente o juiz de
instrução, e daí a inconstitucionalidade, nessa medida, dos n.º 1 e 2 do artigo 281.º, por violação dos
artigos 206.º e 32.º, n.º 4, da CRP». Em sentido não inteiramente convergente, veja-se a declaração de
voto de Vital MOREIRA, na qual afirmava que “quanto ao artigo 281.º (sobre a suspensão do processo),
votei também pela sua inconstitucionalidade, não apenas na medida em que não se prevê nenhuma
intervenção do juiz – como se decidiu –, mas também quanto à própria solução em si mesma de permitir
que o MP, discricionariamente, possa abster-se de acusar, a troco da imposição de verdadeiras sanções ao
arguido”. Também em declaração de voto, Raul MATEUS afirmava o seu entendimento de que «aquela
argumentação – que algo artificialmente cindiu a questão da “suspensão do processo pelo MP” em duas
subquestões (a da “admissibilidade da suspensão” e a da “competência para determinar a suspensão e a
imposição de injunções e regras de conduta”) – devia, em boa lógica, ter considerado incindível tal
questão e concluído pela inconstitucionalidade total daqueles preceitos». Em sentido contrário, Messias
BENTO sustentava a conformidade com o texto constitucional de uma suspensão provisória do processo
que prescindisse da intervenção de um juiz. Afirmava, a propósito da suspensão provisória do processo,
que se “trata de uma medida consensual e informal, que os ensinamentos da mais moderna investigação
criminal apontam como particularmente adequada para o combate da pequena e massiva criminalidade.
De facto, pela celeridade processual que introduz, é capaz de contribuir para a melhoria dos níveis de
eficácia da justiça penal e, assim, para uma mais eficaz prevenção da criminalidade e para a redução das
injustiças que andam necessariamente ligadas a uma justiça penal ineficaz”. Todavia, com maior relevo
para a questão agora em apreciação, aduzia que «do que se trata é de uma decisão de não exercício da
acção penal, e ela é tomada pelo respectivo titular (…). Ora, não existe qualquer norma ou princípio
constitucional que proíba a introdução pelo legislador desta forma moderada do princípio da
oportunidade para este tipo de criminalidade. Também não se vê que os artigos 32.º, n.º 4 e 206.º da CRP
proíbam que seja o MP a tomar a decisão de suspender o processo. De facto, e desde logo, o que é
verdadeiramente específico da função jurisdicional é cumprir-lhe dirimir conflitos, e, no caso, trata-se de
uma forma consensual de decisão, destinada justamente a evitar a declaração do “conflito jurídico-
penal”» Finalmente, Messias BENTO enfatizava ainda o relevo que devia ser atribuído, para este efeito,
ao consentimento do arguido, assim como o facto de o Ministério Público ser “uma magistratura
autónoma, cujos magistrados hão-de orientar a sua actividade por um estrito dever de objectividade e de
imparcialidade”.
1154
Muito recentemente, João Conde CORREIA, em Bloqueio Judicial à Suspensão Provisória do
Processo (Porto: Universidade Católica Editora, 2012), manifesta a sua opinião de que “a exigência
suplementar de consentimento judicial à suspensão provisória do processo (art. 281.º, n.º 1 , do CPP),
introduzida apenas depois de uma censura constitucional polémica, é (…) uma das maiores causas desta
indesejável e, mesmo, perniciosa subutilização do mecanismo. Para além de ser onerosa, burocrática e de

670
significativas entre a intervenção das autoridades judiciárias exigida pelo CPP para
aquela suspensão e a intervenção homologatória do Ministério Público relativamente à
desistência de queixa que é consequência do acordo obtido através da mediação penal.
No núcleo daquela exigência de intervenção de um juiz para a decisão de
suspensão provisória do processo parece estar a ideia de que, por força dela, resulta para
o arguido a imposição de injunções e regras de conduta que têm um conteúdo
desvalioso que as aproxima das sanções penais. Ora, se é certo que a referência a essa
“imposição” não deixa de ser questionável na medida em que se exige, para a aplicação
daquela suspensão, a concordância do arguido, também parece inequívoco que a
determinação desses deveres é atribuída a autoridade judiciária e que essa modelação
não se opera em função dos interesses individuais do arguido e do assistente, mas antes
em função das finalidades de prevenção geral e especial. É precisamente neste ponto
que a suspensão provisória do processo, enquanto mecanismo que também é de diversão
processual, se afasta da mediação penal. O acordo obtido através da mediação penal
pressupõe um poder pleno de conformação do seu conteúdo pelo arguido e pelo
ofendido, sendo alheias à modelação desse acordo as finalidades preventivas. Nesta
medida, torna-se ainda mais difícil a afirmação de que, por esta via, se estaria a operar
uma imposição de deveres ao arguido.
Por outro lado, restringindo-se o âmbito material de aplicação deste regime
jurídico da mediação penal a alguns crimes particulares em sentido amplo, sempre
poderia haver, logo nesta mesma fase de inquérito em que a mediação penal se situa,
uma desistência de queixa. E não sobram dúvidas de que a homologação dessa
desistência de queixa é da competência, na fase de inquérito, do Ministério Público1155.
Logo, a exigência de uma intervenção homologatória de um juiz para a desistência de

nada acrescentar em termos de garantias de defesa, esta exigência adicional é um factor de grande
irritação e confronto processual: em vez do esperado e desejável consenso é, muitas vezes, fonte de
conflito e dissenso insanável” (ob. cit., ps. 17-18).
1155
Nos termos do n.º 1 do artigo 51.º do CPP, “nos casos previstos nos artigos 49.º e 50.º, a intervenção
do Ministério Público no processo cessa com a homologação da desistência da queixa ou da acusação
particular”. E o n.º 2 do mesmo artigo acrescenta que “se o conhecimento da desistência tiver lugar
durante o inquérito, a homologação cabe ao Ministério Público; se tiver lugar durante a instrução ou o
julgamento, ela cabe, respectivamente, ao juiz de instrução ou ao presidente do tribunal”. Na nossa
doutrina, com opinião coincidente à aqui perfilhada sobre a adequação da atribuição ao Ministério
Público da homologação da desistência de queixa inerente ao acordo obtido através da mediação, ainda
que não com idêntica fundamentação, cfr. João Ferreira PINTO, “O papel do ministério público na
ligação entre o sistema tradicional de justiça e a mediação vítima-agressor”, RPCC, ano 15, n.º 1, Janeiro-
Março de 2005, p. 110. Nas suas exactas palavras: “entendemos que na fase de inquérito, cuja direcção
cabe ao Ministério Público, deve ser este a homologar o acordo conseguido através da mediação, dado
que ele actua no inquérito como órgão de justiça, obedece, em todas as intervenções processuais, a
critérios de estrita objectividade (…)”.

671
queixa que é consequência da assinatura do acordo obtido através da mediação penal
poderia ter consequências práticas incoerentes e, até certo ponto, descredibilizadoras da
função jurisdicional. Imagine-se que, obtido aquele acordo através de uma mediação
penal que teve na sua origem um crime de furto simples, o juiz não homologava a
desistência de queixa; suponha-se que, pouco depois, o ofendido manifestava perante o
Ministério Público a intenção de desistir da queixa, concordando o arguido com ela.
Sem qualquer referência à mediação que antes teve lugar mas pressupondo a solução
para o conflito que através dela se alcançou, o ofendido quer exercer o seu direito de pôr
fim àquele inquérito, o que também corresponde à vontade do arguido. O Ministério
Público parece não ter motivo para recusar a homologação desta desistência de queixa.
Ora, ao homologá-la em consequência daquela disponibilidade da acção penal que é
inerente aos crimes particulares, o Ministério Público entrará – pelo menos aos olhos
dos sujeitos daquele conflito – em contradição com a decisão anterior de um juiz. E, o
que pode agravar o desvalor de tal solução, aquele acordo que esteve afinal na origem
da desistência de queixa não foi objecto de qualquer formalização, pelo que o seu
incumprimento deixará o ofendido numa situação de maior desprotecção.
Relativamente ao princípio da reserva de jurisdição, não se deve desatender a
ideia de António CASTANHEIRA NEVES de que “a concreta aplicação autoritária do
direito deverá competir unicamente a órgãos independentes, com uma estrita intenção
de objectividade e que obedeçam apenas ao Direito”1156. Uma das razões principais
pelas quais se julga imprescindível a referência a esta linha de raciocínio prende-se,
precisamente, com a associação deste núcleo da reserva de juiz à ideia de “aplicação
autoritária do direito”. Por outro lado, se se acrescentar a este segmento argumentativo a
ideia de Messias BENTO, antes referida, de que o próprio da função jurisdicional é o
“cumprir-lhe dirimir conflitos”, talvez seja legítima a conclusão de que a homologação
da desistência de queixa associada à obtenção de um acordo através da mediação penal
não constitui uma função especificamente jurisdicional: escapa-lhe a intenção de dirimir
um conflito, porque esse já foi antes ultrapassado; faltando-lhe aquela intenção, falha-
lhe também, por maioria de razões, a nota de autoridade na decisão do mesmo.

1156
António CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal (1967-1968), Coimbra, 1968, p.
5.

672
3. O “caso especial” da violência doméstica e a possibilidade de um “encontro
restaurativo”

Existe grande controvérsia sobre a aplicabilidade das práticas restaurativas aos


crimes de violência doméstica. A questão merece ponderação, sobretudo em um dos
seus segmentos, pelas razões que se enunciarão1157.

3.1. A delimitação do problema

É conhecida a afirmação de Mylène JACCOUD de que “um dos debates mais


vibrantes sobre as vítimas e a justiça restaurativa diz respeito à aplicação das práticas
restauradoras nos casos de crimes graves e nos crimes marcados por um forte
desequilíbrio de poder (…agressão sexual, ataque racista, principalmente a violência
conjugal)”.
A Autora esclarece, com interesse para aquilo que a seguir se analisará (e com
interesse acrescido na medida da não coincidência com a opinião que se vai procurar
justificar) que «os movimentos de promoção dos direitos e dos interesses das vítimas
não aceitam a ideia de que os programas de justiça restaurativa se abram às situações
que envolvam traumatismos graves ou crimes que Hudson nomeia como “relacionais”
(crimes, como a violência conjugal (…), que acontecem entre pessoas que se
conhecem). Vários argumentos são apresentados para excluir estas situações dos
programas de justiça restaurativa: a reintegração é impossível em casos onde as
consequências são irreparáveis (sobretudo mortes); uma reunião entre um agressor e
uma vítima corre o risco de revitimizar as vítimas; em alguns casos, os desequilíbrios de
poder são muito grandes e não podem ser postos entre parêntesis durante o processo
restaurativo, correndo o risco de agravar mais as consequências do que solucioná-los; os
crimes graves não podem ser submetidos aos processos restaurativos porque requerem
uma intervenção punitiva controlada pelo Estado, sem a qual a violência se torna
banalizada. Estes argumentos deixam subentendido que a justiça restaurativa é

1157
Tomou-se como base para a reflexão sobre este ponto, sem prejuízo de um aprofundamento de
algumas questões, o estudo “Violência Doméstica e Mediação Penal: uma Convivência Possível?”,
publicado na revista Julgar, n.º 12, Novembro de 2010, p. 67 ss.

673
considerada como uma forma de justiça mais amena, informal, que se revela não
apropriada nos casos que requerem uma forte reprovação por parte do Estado»1158.
Se não se pretende reflectir agora sobre a possibilidade de recurso a práticas
restaurativas no contexto de toda a criminalidade grave, já se julga conveniente a
abertura de um espaço de análise sobre a sua (des)adequação a crimes que têm uma nota
relacional, como sucede com a violência doméstica. É certo que os crimes de violência
doméstica também devem, a vários níveis, considerar-se graves e, nessa medida, as
linhas de resposta que de seguida se procurarão esboçar adquirem pertinência a esse
nível.
A questão que vai merecer ponderação é, porém, mais específica e pode desvendar-
se sob a forma de uma interrogação: deverá a justiça restaurativa afirmar-se excluída no
âmbito de crimes que supõem aquela nota relacional? Sob o ponto de vista
metodológico, a forma como a pergunta é colocada justifica, segundo se crê, a
autonomização da violência doméstica como objecto de reflexão. É que, apesar de as
dúvidas em torno da conveniência da justiça restaurativa terem com frequência como
destinatárias, em bloco, a violência doméstica e a dita “criminalidade sexual”1159, julga-
se que as duas realidades não são inteiramente sobreponíveis. Assim, se há “crimes
sexuais” que ocorrem no contexto de relações de proximidade existencial entre o
agressor e a vítima, outros há que são estranhos a essa circunstância. Pelo contrário, o

1158
Mylène JACCOUD, “Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa”
cit., ps 174-5. A Autora reconhece a ausência de unanimidade quanto a este problema e dá conta da
existência de “alguns programas aplicados a crimes graves. É principalmente o caso dos encontros
restaurativos com grupos de familiares, utilizados na Nova Zelândia (…) e de diálogos entre vítimas e
condenados, praticados em algumas penitenciárias dos Estados Unidos, e no Canadá”.
1159
Assim, por exemplo, Kathleen DALY (“Restorative Justice and Sexual Assault: An Archival Study of
Court and Conference Cases”, British Journal of Criminology, 2006, vol. 46, n.º 2, p. 334 ss), que aprecia
criticamente o entendimento, apresentado como dominante, segundo o qual devem ficar excluídos do
âmbito da justiça restaurativa os “crimes entre cônjuges, os crimes familiares e a violência sexual”, que
agrupa sob a designação de “violência de género”. A questão é também objecto da ponderação de
Barbara HUDSON (“Restorative Justice and Gendered Violence: Diversion or Effective Justice?”, British
Journal of Criminology, 2002, vol. 42, n.º 3, p. 616 ss), que vinca o facto de a oposição à inclusão da
violência doméstica no âmbito restaurativo se alicerçar, em regra, na ideia de que a justiça restaurativa é
apenas um mecanismo de diversão. Não nega, porém, a necessidade de “salvaguardas” especiais nas
hipóteses em que se admitam tais práticas relativamente a crimes sexuais ou de violência doméstica. Na
doutrina italiana, cfr., também a título de exemplo, Barbara MORETTI, “Mediazione e reati violenti
contro la persona: nuovi confini per i paradigmi di giustizia riparativa?” ou Simona SILVANI, “La
mediazione nei casi di violenza domestica: profili teorici e spazi applicativi nell’ordinamento italiano”
(ambos os estudos estão publicados na obra Mediazione e diritto penale. Dalla punizione del reo alla
composizione con la vittima, Org, Grazia MANNOZI, Milão: Giuffrè Editore, 2004, p. 85-120 e p. 121-
159). Tanto MORETTI (ob. cit., p. 113) como SILVANI (ob. cit., p. 141 ss), apesar de reconhecerem as
dificuldades especiais que os crimes sexuais (no primeiro caso) e a violência doméstica (no segundo)
suscitam à mediação penal, consideram que ela não tem de ser liminarmente excluída, antes pode ser
admitida, desde que rodeada de cuidados especiais.

674
próprio da violência doméstica radica precisamente na existência (actual ou passada,
mas de certo ainda presente) daquela nota relacional1160.
Na formulação da pergunta está contida uma perplexidade cuja admissão antecipa
já, de algum modo, o sentido da resposta: se, na proposta definitória da justiça
restaurativa que antes se esboçou, predomina a ideia de que esta justiça restaurativa
deve ocupar-se primeiramente da dimensão (inter)pessoal do conflito, oferecendo-lhe
uma possibilidade de pacificação, como compreender a sua exclusão quanto a crimes
em que a mencionada “nota relacional” torna mais significativa essa dimensão
interpessoal1161?
Eis também, agora já à luz de uma ponderação metodológica, a razão pela qual se
julgou necessário autonomizar – a partir dessa aparente contradição entre aquele que
se defendeu ser um dos sentidos da intervenção restaurativa e a recorrente afirmação
da sua exclusão no contexto da violência doméstica – a matéria dos crimes cometidos
entre cônjuges, ex-cônjuges ou pessoas que mantêm ou mantiveram relação análoga à
dos cônjuges.
A Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, que introduziu a mediação penal de adultos
em Portugal, excluiu do seu âmbito material de aplicação os crimes de violência
doméstica. Essa exclusão decorre, desde logo, do facto de se ter restringido a
possibilidade de mediação penal aos crimes particulares em sentido amplo1162 –
porventura com maior correcção, a alguns crimes particulares em sentido amplo1163.
Todavia, o actual regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica,
à protecção e à assistência das suas vítimas, constante da Lei n.º 112/2009, de 16 de

1160
Apesar da existência de espaços de diversidade na consideração da adequação da mediação penal à
violência doméstica e à “criminalidade sexual”, também são ponderáveis linhas de argumentação comuns,
como a necessidade de outras formas de pacificação do conflito relativamente a crimes em que o contacto
com as instâncias de controlo parece especialmente apto a gerar uma vitimização secundária ou em que as
cifras negras são muito elevadas (fenómenos que estarão, de resto e até certo ponto, relacionados). Sobre
as cifras negras, cfr., por todos, Herman MANNHEIM, Criminologia Comparada, vol. I, tradução de José
de Faria Costa e de Manuel da Costa Andrade, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 170 ss. A
questão é tratada pelo Autor no contexto de uma ponderação das dificuldades e riscos inerentes à
interpretação das estatísticas oficiais. Uma das “limitações mais comprometedoras do valor das
estatísticas criminais” é “a existência de crimes que permanecem inteiramente desconhecidos pela polícia
ou não são, pelo menos, clarificados”.
1161
Recorde-se, porém, que a oferta de uma possibilidade de pacificação da dimensão interpessoal do
conflito (que não tem de equivaler a uma reconciliação) não esgota o sentido da intervenção restaurativa.
Se lhe cumpre ocupar-se da reparação possível da relação entre os indivíduos, também lhe cabe ocupar-se
(e, em certo sentido, com primazia lógica) da reparação dos danos causados a cada indivíduo.
1162
Nos termos do artigo 2.º, n.º 2 da Lei, “a mediação em processo penal só pode ter lugar em processo
por crime cujo procedimento dependa de queixa ou de acusação particular”.
1163
A conclusão de que a mediação penal de adultos, enquanto mecanismo de diversão, só é admitida,
entre nós, quanto a alguns crimes particulares em sentido amplo resulta, sem espaço para dúvidas, dos
números 2 e 3 do artigo 3.º da referida Lei.

675
Setembro, criou a possibilidade daquilo a que resolveu chamar-se um “encontro
restaurativo”, o qual supõe “um encontro entre o agente do crime e a vítima”, assim
como “a presença de um mediador penal credenciado para o efeito”.
O objecto da análise pode, a partir destas considerações introdutórias, ser
resumido sob a forma de duas interrogações principais: (I) existe alguma
incompatibilidade de princípio entre a mediação penal e os crimes de violência
doméstica que nos permita afirmar a inadequação daquele instrumento restaurativo face
a esta criminalidade?; (II) se essa incompatibilidade não existir, terá sido acertada a
opção legislativa de, para a violência doméstica, excluir a mediação penal como
mecanismo de diversão e admitir apenas uma “espécie de mediação” pós-sentencial ou
pós-suspensão provisória do processo?
Justifica-se, ainda antes de se adentrar a reflexão, um esclarecimento inicial. A
designação “violência doméstica” é, como se sabe, tecto para realidades muito diversas.
E para realidades que são diversas a vários níveis, desde as modalidades da conduta e os
bens jurídicos até às características das vítimas e aos “laços de domesticidade” que as
ligam aos agressores1164. O modelo de que se parte para as considerações posteriores é,
porém, apenas o da violência doméstica contra cônjuge, ex-cônjuge ou contra pessoa
com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges,
ainda que sem coabitação1165.

1164
Em rigor, deve até reconhecer-se a existência de divergências quanto à opção terminológica. O
conceito de “violência doméstica” pode revestir-se de uma certa inexactidão na medida em que se
incriminam condutas entre pessoas que não têm uma relação de coabitação – pessoas, portanto, que não
partilham a mesma casa. Porém, o uso alternativo do conceito de “violência familiar” também se não
afigura despido de dificuldades, desde logo porque as normas incriminadoras vêm abrangendo ofensas
entre pessoas que têm relações de proximidade existencial não cobertas pelos vínculos que o ordenamento
jurídico tradicionalmente cunha como familiares. Optou-se pelo emprego da denominação “violência
doméstica” por razões várias, mas também para não se introduzirem mais factores de irritação entre a
escolha feita pelo legislador e este tratamento doutrinal: a verdade é que, quer no actual artigo 152.º do
CP, quer no regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das
suas vítimas (constante da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro), o conceito plasmado é, precisamente, o
de “violência doméstica”. Teresa BELEZA, (“Violência Doméstica”, Revista do CEJ, Número especial
sobre a Revisão do Código Penal, 8, 2008, p. 282) considera este problema e reflecte, ainda, sobre
“questão diversa, e essa sim bem interessante, [que] é a das relações, linguísticas e fenomenológicas,
entre a violência doméstica, a violência dita de género e a violência contra as mulheres”. Numa
perspectiva criminológica, Richard GELLES afirma não só a dificuldade de definição, mas também a
dificuldade de apreensão dos números e das características desta criminalidade. Depois de caracterizar as
três principais fontes de obtenção de dados (as fontes “clínicas”, as estatísticas oficiais da justiça e as
pesquisas sociais), procura elencar os principais factores de risco (“sociais e demográficos”) com o intuito
de, sendo conhecidos esses factores, se facilitar a protecção de eventuais vítimas (“Family violence”, The
Handbook of Crime and Punishment, Ed. Michael Tonry, Oxford University Press, 1998, p. 178 ss).
1165
A Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, alterou a redacção dada ao artigo 152.º do CP, passando a
incluir-se, nos termos da nova alínea b) do seu número 1, também “a pessoa de outro ou do mesmo sexo
com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro”.

676
São várias as razões que podem justificar esta opção restritiva. Diga-se, porém e
em sua defesa, apenas que esta é a forma de violência doméstica mais largamente
representada – e muito mais largamente representada – nos números oficiais
disponíveis. De facto, segundo o Relatório Anual de Segurança Interna, durante o ano
de 2009 as forças de segurança registaram um total de 30543 participações de violência
doméstica, sendo que 23259 dessas participações foram por violência doméstica contra
cônjuge/análogos. O Relatório Anual de Segurança Interna relativo ao ano de 2011
confirma esta tendência: “em 2011, no que diz respeito ao grau de parentesco/relação
entre vítimas e denunciados/as, em 62% dos casos a vítima era cônjuge ou
companheira/o, em 16% era ex-cônjuge/ex-companheira-o, em 13% era filho/a ou
enteado/a, em cerca de 6% era pa/mãe/padrasto/madrasta”1166. Deve, ainda, sublinhar-se
que esta violência doméstica contra cônjuge/análogos aparece, quer em 2009, quer em
2011, como o segundo crime contra as pessoas mais participado (logo a seguir à ofensa
à integridade física voluntária simples), só sendo suplantada, para além deste, pelos
crimes de furto. Registou-se em 2009, para além disso, um aumento das participações
de violência doméstica contra cônjuge/ análogos de cerca de 14,1% (mais 2867
participações) por comparação com os números relativos ao ano anterior. Diversamente,
“no ano de 2011 foram registadas, pela GNR e pela PSP, 28920 situações de violência
doméstica, o que, em comparação com o ano anterior, corresponde a um decréscimo de
7,2% (menos 2255 situações)”1167.

3.2. A violência doméstica e a mediação penal: desadequação ou especial


adequação?

Como já se afirmou entre nós, a violência doméstica é “exemplo paradigmático


da controvérsia em redor da utilização ou não da mediação relativamente a

1166
Estes números mais recentes confirmam, deve sublinhar-se, uma tendência antiga: no Relatório
Penélope sobre Violência Doméstica no Sul da Europa (que sistematiza os resultados de projecto
decorrido entre 2002 e 2003 e orientado para a compreensão do estado da violência doméstica em
Portugal, Espanha, França, Itália e Grécia), por referência a estudo publicado em 2003 e relativo a 2000 e
intitulado O contexto social da violência contra as mulheres detectada nos institutos de medicina legal,
pode ler-se que “a violência contra a(o) cônjuge ou companheira(o) é a mais frequente, constituindo
96,3% das denúncias” (cfr. p. 88 do Relatório).
1167
Cfr. Relatório Anual de Segurança Interna 2009, ps. 37, 46, 71 e Relatório Anual de Segurança
Interna 2011, ps. 45, 84, 87.

677
determinados crimes”1168. Duas das ideias mais recorrentemente afirmadas na teoria da
mediação penal são a de que um dos seus pressupostos essenciais é o do idêntico
“empoderamento”1169 do conflito por parte da vítima e do agente do crime e a de que na
violência doméstica a vítima não beneficiaria dele.
Parte-se, com frequência, do princípio de que, para essa vítima fragilizada pela
humilhação conjugal, a mediação penal seria uma experiência penosa e causadora de
vitimização secundária. Não estando ela em igualdade de circunstâncias com o seu
algoz, porque intimidada, não lograria expor o seu ponto de vista1170. Esta objecção ao
recurso à justiça restaurativa no contexto da violência doméstica pode ser cindida em
duas ideias principais. Por um lado, aponta-se a informalidade das práticas restaurativas
como factor de favorecimento de manipulações do processo por parte do agente do
crime, que mais facilmente do que no processo penal “trivializará” o recurso à
violência, diminuindo a sua culpa e procurando imputar parte da responsabilidade à
vítima. Por outro lado, afirma-se que a ausência de rigidez nos procedimentos e a
especial proximidade do agressor pode ter como consequência a sujeição da vítima a
uma particular pressão no sentido, quer de um encontro que não deseja, quer na
aceitação de uma forma de reparação que não vê como sincera ou como suficiente.
Acrescenta-se – também como argumento forte contra a possibilidade de
mediação penal nos casos de violência doméstica – que a sua admissibilidade, associada
à exclusão da resposta punitiva, favoreceria a percepção comunitária de que tais
comportamentos afinal não são demasiado graves, tanto que nem sequer são punidos
como crimes1171.

1168
Frederico MOYANO MARQUES e João LÁZARO “A mediação vítima-agressor e os direitos e
interesses das vítimas”, A introdução da mediação vítima-agressor no ordenamento jurídico português,
Almedina: 2005, p. 31.
1169
Escolha-se como exemplo o pensamento de Christa PELIKAN, para quem o “empowerment” está
relacionado com o elemento central da mediação que é a participação. Considera-se que essa participação
plena exige a capacidade, quer da vítima, quer do agente, de defenderem livremente os seus próprios
interesses e de serem capazes de concordar ou discordar (“General Principles of Restorative Justice”, A
introdução da mediação vítima-agressor no ordenamento jurídico português, Almedina: 2005, p. 23).
1170
Neste sentido, cfr., nomeadamente, Marta del Pozo PÉREZ (“Es adecuada la prohibición de
mediación del art. 44.5 de la Ley Orgânica 1/2004?”, La Mediación en Materia de Familia y Derecho
Penal – Estudios y Análisis, coord. Fernando Martín Diz, Santiago de Compostela: Andavira Editora,
2011, p. 283 ss). A Autora manifesta a sua concordância com a proibição expressa, em Espanha, de
recurso à mediação constante do artigo 44.5 da Lei Orgânica 1/2004 (Medidas de Protecção Integral
contra a Violência de Género), sobretudo por entender que “vedar a mediação neste contexto é o mais
acertado para erradicar este preocupante e crescente fenómeno, com um agente que considera a sua vítima
inferior, que não se arrepende, que não sabe pedir perdão, que anula a sua vontade e que pode até
aproveitar-se desta solução alternativa para prolongar o ciclo de violência” (ob. cit., p. 324).
1171
Adoptando uma argumentação próxima da referida e que de seguida se procurará refutar, ainda que a
propósito da exclusão dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexuais do âmbito material desta
mediação penal, cfr. André LAMAS LEITE, A mediação penal de adultos – Um novo “paradigma” de

678
Nenhuma destas linhas de argumentação é isenta de objecções, por mais que se
reconheça a conveniência da consideração de cada uma delas enquanto factor de risco
que impõe cuidados específicos nas práticas de mediação penal no contexto da violência
doméstica1172. Relativamente à primeira, sempre se poderá arguir que também no
processo penal existem muitos agressores que procuram responsabilizar a vítima e
trivializar os seus comportamentos, assim como muitas vítimas que sentem insegurança,
insatisfação ou humilhação. Em certo sentido, talvez se possa até afirmar que a própria
estrutura adversarial do processo penal favorece esse género de comportamentos e de
experiências, razão pela qual muitos estudos criminológicos foram referindo a
vitimização secundária inerente a essa intervenção da justiça penal e muitos argumentos
foram esgrimidos, na doutrina, entre os defensores e os opositores do carácter público
destas infracções criminais. No que respeita ao segundo argumento, são também
legítimas as interrogações sobre o efeito preventivo que a resposta penal tem logrado
obter no âmbito desta criminalidade1173. Para além de que a admissibilidade da
mediação penal para a violência doméstica não tem de significar a transmissão da ideia
de que se vai reagir a ela “como se não fosse um crime”, porque a intervenção
restaurativa não tem de ser, necessariamente e em todos os casos, apenas uma forma de
diversão.
Assim, a afirmação de uma inadmissibilidade genérica da mediação penal no
contexto da violência doméstica para protecção da vítima é um entendimento que,
assuma-se desde o início, se rejeita por inteiro e que se julga só lograr ser compreendido

justiça, Coimbra Editora: 2008, ps. 65-6. Nas palavras do Autor, “para além das óbvias dificuldades em
conseguir uma mediação cara-a-cara (sabendo-se, contudo, que a mediação indirecta pode também ter
efeitos positivos) e de manter o indispensável equilíbrio de forças em todo o processo, existem sempre
assinaláveis riscos de múltipla vitimização do ofendido (…), para já não falar nos movimentos que
advertem para que uma solução negociada nestes tipos legais de delitos é apta a conduzir a uma
percepção de que os comportamentos que encerram não são verdadeiros crimes”.
1172
Dando conta dos riscos associados à aplicação das práticas restaurativas à violência doméstica, Julie
STUBBS (“Beyond Apology? Domestic Violence and Critical Questions for Restorative Justice”,
Criminology and Criminal Justice, Maio de 2007, vol. 7, n.º 2, p. 169 ss) conclui pela necessidade de
procedimentos restaurativos “diferenciados”, o que associa à consagração de modelos “híbridos” no
sentido da não exclusão da intervenção das instâncias formais de controlo tipicamente penais.
1173
Existem estudos que enfatizam o desafio especial que os condenados por crimes de violência
doméstica representam para o próprio sistema de execução da pena orientado por uma finalidade de
reintegração do agente. A título de exemplo, cfr. José Luís de la Cuesta ARZAMENDI, “Retos
principales del sistema penitenciario hoy”, Universitas Vitae: Homenaje a Ruperto Nuñez Barbero cit.,
ps. 140-1. O que aqui se julga merecer esclarecimento é, porém, a opção metodológica de tratar nesta
parte do estudo a questão da compatibilidade da mediação penal com a violência doméstica a partir da
perspectiva da vítima. Esclareça-se que nessa opção não vai vertida qualquer ideia de irrelevância para o
agente do crime da escolha que nessa matéria se faça. Todavia, centra-se a reflexão na vítima por ser
relativamente a ela que se vêm apontando os inconvenientes da mediação penal, sendo essa a ideia
principal que se pretende rebater.

679
se associado a manifestações de paternalismo penal, vertidas em limitar a liberdade de
actuação das pessoas, com o intuito de as proteger a si próprias e em hipóteses das quais
não decorrem qualquer dano ou perigo directos para outros1174. Parte-se da premissa de
que há pessoas que não são capazes de fazer as escolhas que lhes são mais
convenientes1175. As vítimas de violência doméstica são aprisionadas nesse estereótipo
de fragilidade e de incapacidade de decisão que faz sobrepor às efectivas características
das vítimas concretas as notas definitórias associadas a essa vítima abstracta, por mais
que estas lhes não correspondam.
Já a trave-mestra da posição adoptada é, em certa medida, a oposta. Se a
mediação penal é um “quase direito”1176 das vítimas de crimes – por essa mediação
penal ser encarada como caminho para uma solução mais adequada aos seus interesses –
, esse “quase direito” não pode ser retirado às vítimas de alguns crimes com base no
argumento de que “assim é melhor para elas”, mas sem lhes perguntar aquilo que de
facto acham que é o melhor para si próprias.
Por outro lado, a inexistência de uma incompatibilidade inultrapassável entre a
violência doméstica e a mediação penal é confirmada pela vigência, em vários países do
nosso contexto cultural, de programas de mediação vítima-agressor aplicáveis nesse
contexto e já sujeitos a avaliações positivas1177.

1174
Sobre o paternalismo penal, cfr., por exemplo, Mario ROMANO, “Danno a sé stessi, paternalismo
legale e limiti del diritto penale”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias,
vol. I, Org. Manuel da Costa Andrade e outros, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 521 ss. Para o Autor,
o problema que se põe é o de saber “se e em que condições pode o Estado servir-se da coacção (…) para
obter dos sujeitos um comportamento que lhes assegure um bem ou afaste um mal: mal ou bem que lhes
dizem exclusiva e pessoalmente respeito, e não a outros” (ob. cit., p. 522). Com interesse para a
catalogação e a crítica das várias formas de paternalismo, veja-se o estudo de João Paulo MARTINELLI,
Paternalismo Jurídico-Penal, São Paulo: USP, 2010, obra em curso de publicação gentilmente cedida
pelo Autor. Em sentido muito crítico da incriminação das autolesões, que associa ao paternalismo penal,
cfr. Andrew von HIRSCH, “Paternalismo direto: autolesões devem ser punidas penalmente?”, Revista
Brasileira de Ciências Criminais, vol. 15, n.º 67, Julho-Agosto 2007, p. 11 ss.
1175
Manifestando a sua oposição quanto à “actual proibição expressa da mediação para a violência de
género contida no artigo 44.5 da Lei Orgânica 1/2004 de Medidas de Protecção Integral Contra a
Violência de Género” em Espanha, cfr. GONZÁLEZ-CASTELL, Adán Carrizo (“La mediación penal en
España”, La Mediación en Materia de Família y Derecho Penal, Estudios y Análisis, coord. Fernando
Diz, Santiago de Compostela: Andavira Editora, 2011, p. 246). O Autor afirma que esta proibição “supõe
uma falta de confiança total na capacidade de decisão da mulher”.
1176
Para Frederico MOYANO MARQUES e João LÁZARO “A mediação vítima-agressor e os direitos e
interesses das vítimas” cit., p. 28, “hoje é inegável que a mediação tem que ser vista também como um
direito das vítimas, como aliás decorre do art. 10.º da Decisão-Quadro do Conselho da união Europeia
relativa ao Estatuto da Vítima em Processo Penal”.
1177
Tenha-se em conta, a título de exemplo, a experiência austríaca. Sobre ela, cfr. Christa PELIKAN,
“On the Efficacy of Victim-offender Mediation in Cases of Partnership Violence in Austria, or Men
Don’t Get Better But Women Get Stronger: Is it Still True? Outcomes of an Empirical Study”, European
Journal of Criminal Policy Research, (2010), 16 (1), p. 49 ss. A Autora conclui que a eficácia desta
prática restaurativa no âmbito da violência doméstica se deve mais ao fortalecimento da vítima do que a
uma mudança da atitude interna do agente. Esta, na sua opinião, pressupõe em regra uma mudança da

680
Existem, para além disso, vários filtros de segurança que podem evitar as
desvantagens da participação em sessões de mediação, em circunstâncias em que esse
não seja o caminho adequado no caso concreto. O primeiro prende-se com a exigência
de voluntariedade1178: uma vítima de violência doméstica que se sinta fragilizada face
ao seu agressor e que não deseje o contacto inerente à mediação penal pode e deve
manifestar a sua falta de vontade de participação. O segundo filtro relaciona-se com o
papel que deve ser desempenhado pelo mediador: nos contactos prévios e a sós com a
vítima e com o agressor, deve assegurar-se da existência de condições de segurança para
o encontro e de uma vontade real de participação, quer da vítima, quer do agente. Exige-
se, ainda, que este reconheça a responsabilidade por pelo menos parte dos factos que lhe
são atribuídos. O mediador deve, para além de tudo isto, ponderar a verificação, no caso
concreto, dos requisitos indispensáveis para a formulação de um juízo de probabilidade
quanto à existência de vantagens – para os intervenientes no conflito – associadas à
participação naquela mediação penal. E compete ainda ao mediador fomentar o idêntico
empoderamento do conflito pelos intervenientes. Finalmente, quando se puderem
afirmar os riscos do encontro “cara-a-cara”, resta a possibilidade da opção pela
mediação indirecta1179.
O argumento mais relevante para fundar a admissibilidade da mediação penal
em casos de violência doméstica prende-se, porém, com a verificação inequívoca de
que muitas das suas vítimas não querem a resposta que seria dada pela justiça
penal1180. Não pretendem a punição do agente do crime, mas sim uma oportunidade

perspectiva comunitária ou de mentalidades sobre o desvalor destas condutas. Também nos Estados
Unidos existem programas restaurativos aplicáveis a crimes de violência doméstica. A partir de dois
estudos que procuram retratá-los, Jo-Anne WEMMERS e Marisa CANUTO (Victim’s experiences with,
expectations and perceptions of restorative justice: a critical review of the literature cit, p. 32) concluem
que “há um grupo de vítimas de violência doméstica que está interessado em procedimentos de justiça
restaurativa”.
1178
Com acerto, Francisco AMADO FERREIRA entende que “só o voluntarismo respeita a natureza da
justiça restaurativa”, apesar de reconhecer a limitação que daí decorre, já que “não havendo predisposição
das partes para discutirem, não haverá mediação penal” (in Justiça Restaurativa – Natureza, Finalidades
e Instrumentos, Coimbra Editora: 2006, p. 33).
1179
A propósito da mediação indirecta, Joanna SHAPLAND afirma que “o encontro tem sido com
frequência tomado como uma convergência metafórica de perspectivas, mais do que como encontro
físico” (“Restorative Justice and Criminal Justice: Just Responses to Crime?”, Restorative Justice and
Criminal Justice – Competing or Reconciliable Paradigms?, Eds. Andrew von Hirsch/Julian
Roberts/Anthony Bottoms/Kent Roach/Mara Schiff, Oxford: Hart Publishing: 2003, p. 198).
1180
É recorrente a afirmação das elevadíssimas cifras negras no âmbito desta criminalidade. Será útil, a
este propósito, a consulta, por exemplo, dos números dos relatórios da APAV que comprovam a
significativa diferença entre as vítimas que solicitam auxílio e aquelas que de facto acabam por contribuir
para a instauração de um processo penal contra o seu agressor. A comprovação da existência de vítimas
de violência doméstica que estão interessadas em uma resposta pacificadora do conflito que não passe
pela condenação penal resulta do estudo sobre o papel da vítima no processo penal brasileiro da autoria de

681
para condicionar uma alteração do seu padrão de comportamento. A pergunta que se
deve fazer é, portanto, se é admissível retirar a possibilidade de mediação penal a essas
vítimas que não pretendem a punição do agente, mas antes algo diverso da resposta
dada pela justiça penal. Julga-se que a resposta só pode ser negativa1181.
A partir daqui, a interrogação que ainda tem de se esboçar é se aquilo que essas
vítimas querem é mais relevante do que aquilo que as instâncias formais de controlo
consideram necessário. O que supõe uma avaliação, também, dos termos em que se
deve fundar esse juízo de necessidade: tratando-se a violência doméstica de um crime
público, significará essa opção quanto à sua natureza que aquilo de que a comunidade
precisa é mais preponderante do que aquilo que a vítima quer? Ou será antes o interesse
da vítima o critério último? E esse interesse deve ser avaliado pela própria vítima ou
trata-se antes do interesse que as instâncias de controlo julgam que é o da vítima?
A resposta que de seguida se procurará justificar é uma resposta – cumpre
sublinhá-lo a traço muito grosso – que tem como destinatários apenas aqueles casos em

Marcos ALVAREZ/Alessandra TEIXEIRA/Maria JESUS/Fernanda MATSUDA/Fernando SALLA/Caio


SANTIAGO/Veridiana CORDEIRO (“A vítima no processo penal brasileiro: um novo protagonismo no
cenário contemporâneo?”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 86, Set-Out. 2010, ano 18, ps. 266-
268). Tenham-se em conta, a título de exemplo, as palavras de uma vítima de violência doméstica que,
entrevistada no âmbito daquele estudo, afirmava que «não desejava a prisão do ex-marido, mas que
esperava que ele a “deixasse em paz”, ou seja, cumprisse a medida protetiva consistente na proibição de
aproximação, anteriormente descumprida». Para além disso, surge também o exemplo, igualmente
documentado em entrevista, de que certas vítimas desejam o encontro com o seu agressor e a
possibilidade de, em um ambiente seguro, manifestarem os seus sentimentos sobre o acontecimento:
«algumas vítimas utilizaram o espaço da audiência – nas poucas vezes em que foi dada a oportunidade –
para falarem aos agressores, o que não conseguiam em outro contexto. Um dos casos acompanhados pode
ser citado como um exemplo: o marido, que estava preso por ter descumprido medida protetiva, chegou
algemado à audiência de instrução. A vítima foi ouvida sem a presença do agressor e, após dar sua versão
sobre o facto, pediu para falar “algumas coisas na frente de [agressor]”. Assim que ele chegou, a vítima
lhe disse: “Não quero mais você, quero que você veja que eu não sou uma vagabunda e que agora vou
viver pras nossas filhas”». Uma conclusão importante do estudo é a de que os tribunais criminais “não são
o espaço mais adequado para enfrentar de forma condizente esse problema [de violência doméstica]”.
Uma das razões que sustentam esta afirmação prende-se com a complexidade dos casos e as muitas
demandas que lhes estão associadas, para além da criminal, manifestando a instância penal uma grande
incapacidade de esclarecimento das vítimas quanto a aspectos como o divórcio, a regulação do poder
paternal, a partilha dos bens ou a pensão de alimentos.
1181
Esta é a conclusão a que parecem chegar Frederico MOYANO MARQUES e João LÁZARO (“A
mediação vítima-agressor e os direitos e interesses das vítimas” cit., p. 31), ainda que não sem antes terem
referido as dificuldades da mediação penal no contexto da violência doméstica. Acabam, porém, por
afirmar que “a mediação pode afigurar-se adequada naqueles casos em que a violência doméstica foi um
episódio fortuito ou não recorrente e em que como tal não há um enraizado desequilíbrio de poder, e
também nas situações em que se denota na vítima uma clara atitude de mudança, de ruptura com o
passado, atitude que a mediação pode potenciar e reforçar. O que não é de esperar é que a mediação,
enquanto intervenção de curto prazo, possa ser o motor, o impulsionador de alterações profundas em
infractores em que o padrão de violência está completamente instalado e em vítimas bloqueadas e
consequentemente incapazes de dar início ao processo de mudança”.

682
que as vítimas da violência conjugal são pessoas maiores de 16 anos1182 que
manifestam o discernimento necessário para avaliar o sentido e as consequências da
sua participação em processos de mediação1183. Vítimas com características diversas
das enunciadas suscitam, a este propósito, questões diferentes que terão de ser remetidas
para outro espaço e outro tempo.
Quando se interroga a possibilidade e a conveniência de se admitir a mediação
penal como forma de reagir aos crimes de violência doméstica, há que questionar em
primeiro lugar e isoladamente aquilo que cada uma das figuras é. O que equivale a
afirmar que a pronúncia sobre a possibilidade de união (ou de convivência) das duas não
prescinde do elenco dos principais “traços de personalidade” de cada uma.
Comece-se pela mediação penal. É inequívoco que esta se tornou, pelo menos
nos países do nosso contexto cultural, o principal instrumento da justiça restaurativa.
Isso supõe que através da mediação penal se perseguem as finalidades da justiça
restaurativa: procurar uma solução para a dimensão interpessoal do conflito penal que
seja a solução desejada pela vítima porque a acha reparadora e querida pelo agente que
assume a responsabilidade de minimizar ou neutralizar os males que causou. A procura
dessa solução – que é a solução do agente do crime e da sua vítima – deve resultar de
um encontro das vontades de ambos, para o que se admite a participação auxiliar de um
mediador de conflitos.
Ora, se a solução restaurativa tem como fundamento a existência de uma
dimensão interpessoal do conflito e como finalidade a sua pacificação, ela será tanto
mais necessária quanto mais relevante for, no crime, essa dimensão interpessoal. O que
dificilmente ocorrerá com maior intensidade do que na violência conjugal, em cujo
núcleo está a proximidade existencial entre o agente do crime e a sua vítima.
Relativamente a esta questão, justifica-se, porventura, a abertura de um
parêntesis. Haverá casos, cumpre reconhecê-lo, em que essa proximidade existencial
pode já ter-se esvaído ou estar em vias de se esvair. Convém não esquecer que são
englobadas na violência doméstica agressões no seio de casais que já o não são, até
porque se abrangem as ofensas a ex-cônjuges ou a pessoas com quem se manteve
1182
Esta foi a barreira etária escolhida pelo legislador para admitir a denominada mediação penal de
adultos e, ainda que tal opção não seja despida de engulhos, não se vê razão suficiente para neste contexto
a enjeitar.
1183
Em 2009, as vítimas da violência doméstica participada foram, muito largamente, pessoas maiores.
Nos termos do Relatório Anual de Segurança Interna de 2009 (p. 71), “cerca de 82,8 % do total de
vítimas possuía 25 ou mais anos de idade”. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna de 2011,
“relativamente às idades, cerca de 81% das vítimas possuía 25 ou mais anos, 9% possuía menos de 16
anos e cerca de 9% possuía entre 16 e 24 anos” (p. 85).

683
relação análoga à dos cônjuges. Não é propósito desta análise questionar essa opção do
legislador. Diga-se, porém, que se julga que terminada uma relação de conjugalidade se
atenuam os deveres de respeito, solidariedade e cooperação que tornavam mais
desvaliosa a agressão e justificavam a sua punição mais severa do que ofensas idênticas
cometidas contra outras pessoas. Mas, por outro lado, também se pensa que permanece
uma réstia, um resquício, de todos esses deveres perante pessoa com quem se partilhou
a vida. E, por sobretudo, sabe-se que um número muito significativo destas agressões se
associa ao facto de um dos cônjuges ou análogos ter terminado a relação contra a
vontade do outro, que usa da intimidação para reaver o “objecto” perdido e ainda
desejado. Ou seja: se para um a relação já não existe, para o outro ela é ainda presente.
Voltando, porém, àquele que é o objecto desta reflexão, talvez possa afirmar-se que a
mediação penal – depois de admitida a sua adequação à violência doméstica – será, em
muitos casos, uma solução porventura menos do interesse dos intervenientes no conflito
se daquela proximidade existencial já não houver nada que pretendam salvar, nem
sequer uma sua menos má memória.
No sentido da relevância desse elemento relacional e das especificidades que daí
podem decorrer na arquitectura das respostas às infracções, aliás, já há uma década,
Maria João ANTUNES advogava quanto à violência doméstica uma “significativa
mudança de atitudes, por o crime passar a ser visto fundamentalmente como um colapso
das relações entre o agressor e a vítima e só secundariamente como uma ofensa contra o
Estado e as suas leis. Com duas consequências: por um lado, o reconhecimento de uma
relação de conflito mediável nas situações de violência doméstica; por outro, o repúdio
de um direito penal que sirva o objectivo singelo de punir exemplarmente o agressor, de
preferência com pena de prisão, para que fique claro que a violência doméstica é
crime”1184.
Quando se compreende que a mediação penal consiste na oferta de uma
possibilidade de encontro para se lidar com essa dimensão interpessoal do crime,
compreende-se também que ela pode, em alguns casos, resolver sozinha o conflito
essencialmente interpessoal que existe num crime particular em sentido amplo. Se nos
crimes particulares prepondera essa dimensão privada e é dominante a vontade da
vítima quanto à existência de uma acção penal, compreende-se bem que as vontades da

1184
Maria João ANTUNES, “Legislação: da teoria à mudança de atitudes”, Violência contra as Mulheres:
Tolerância Zero. Actas da Conferência Europeia, Comissão para a Igualdade e para os Direitos das
Mulheres, 2000, p. 101 ss.

684
vítima e do agente possam ser de uma outra coisa que não a justiça penal. E, nesse
caso, prescinde-se da acção penal e opta-se por essa outra via que é a desejada pelas
“partes” naquele conflito com âmbito sobretudo privado.
Nos crimes públicos, essa dimensão interpessoal já não é a prevalente e, por
isso, a vontade das “partes” de que não haja acção penal deixa de ser suficiente para a
precludir. O “funcionamento total” da justiça penal dar-se-á ou não, antes, em função
das finalidades preventivas que são as da justiça penal e que se associam à defesa da
comunidade perante crimes futuros. A afirmação de que é assim não supõe, porém, a
conclusão liminar da inadequação da mediação penal aos crimes públicos. Significa,
antes, que, para estes crimes, a resposta dada pela justiça restaurativa pode não ser
suficiente e pode ter de se juntar a uma resposta punitiva associada ao funcionamento
“normal” da justiça penal.
No momento em que se olha, de seguida, para a violência doméstica e se verifica
a sua natureza de crime público pode cair-se, consequentemente, na tentação de afirmar
que a mediação penal, se for adequada às especificidades deste ilícito, só poderá existir
de forma cumulativa com a resposta penal. Dito da forma que se pretende mais simples:
tratando-se de um crime público, a justiça penal que protege bens jurídicos ocupar-se-ia
da punição para defesa da comunidade; eventualmente, sendo querida pelas “partes”, a
mediação penal poderia intervir, paralelamente, para fazer face à eventual dimensão
interpessoal do conflito.
O problema, porém, reside em que esta compreensão quase geométrica da
questão não “encaixa” nas peculiaridades da violência doméstica, que é um crime
público apenas no sentido em que a promoção processual prescinde da queixa, mas que
já o não é na afirmação da prevalência do interesse público de defesa da comunidade
sobre o interesse privado da vítima. A violência doméstica é um crime público que tem
uma dimensão essencialmente privada: apesar de não ser necessária a queixa para se
instaurar o inquérito, essa desnecessidade não decorre da prevalência da protecção da
comunidade sobre o interesse individual da vítima na existência ou não de resposta
punitiva, fundando-se antes na protecção desse interesse individual contra formas de
coerção. Uma prova incontornável da prevalência do interesse da vítima sobre o
interesse da comunidade na punição é a que resulta do regime especial da suspensão
provisória do processo para os crimes de violência doméstica não agravados pelo
resultado: a manifestação de vontade livre e esclarecida da vítima determina a
suspensão provisória do processo sem que seja possível às autoridades judiciárias

685
oporem-se a essa suspensão invocando “as exigências de prevenção que no caso se
façam sentir”1185.
Do que até aqui se afirmou resulta, portanto – continuando a procurar-se a
formulação mais simples –, que a natureza aparentemente pública do crime de
violência doméstica é, paradoxalmente, justificada pela necessidade de proteger a
vontade real da vítima na existência de processo. Uma vítima de violência doméstica
que, de forma esclarecida e séria, não deseje o julgamento penal do seu agressor não
deve senti-lo como uma imposição1186.
A ser assim – como se julga que é –, a perplexidade que de seguida se suscita
prende-se com a actual impossibilidade, entre nós, de que uma vítima de violência
doméstica que deseje a mediação penal (e que não queira que o seu agressor seja
julgado e condenado a uma pena) requeira a participação nessa mediação penal como
forma de evitar aquele julgamento.

3.3. O problema do tempo e das finalidades do “encontro restaurativo”

No ordenamento jurídico português, se não se aceita a mediação penal como


forma de diversão processual para a violência doméstica, já se prescreve que “durante a
suspensão provisória do processo ou durante o cumprimento da pena pode ser
promovido, nos termos a regulamentar, um encontro entre o agente do crime e a vítima,
obtido o consentimento expresso de ambos, com vista a restaurar a paz social, tendo em
conta os legítimos interesses da vítima, garantidas que estejam as condições de
segurança necessárias e a presença de um mediador penal credenciado para o efeito”1187.
O surgimento desta norma – por mais críticas que lhe possam ser apontadas –
tem, segundo se crê, alguns méritos que merecem ser sublinhados. Em primeiro lugar,

1185
É o que resulta da remissão feita no n.º 7 do artigo 281.º do CPP apenas para os pressupostos das
alíneas b) e c) do n.º 1, e não já para a alínea f), nos termos da qual a suspensão provisória do processo
suporia o “ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente
às exigências de prevenção que no caso se façam sentir”. Esta suspensão provisória do processo para os
crimes de violência doméstica não agravados pelo resultado, se tem como centro o requerimento livre e
esclarecido da vítima, não prescinde da concordância da autoridade judiciária e do arguido. Esta
autoridade não pode, porém, invocar as finalidades preventivas para fundar a sua oposição, na medida em
que elas não constituem pressuposto deste caso especial de suspensão.
1186
São conhecidos, para além disso, também argumentos de ordem prática para sustentar esta posição: a
ausência de colaboração da vítima tornaria difícil a condenação por razões associadas à prova da
culpabilidade do agente; a absolvição deste agente responsável pela violência doméstica fragilizaria a
justiça e favoreceria o sentimento de impunidade; estes factores, em espiral, potenciariam a vitimização
secundária.
1187
Cfr. o artigo 39.º da Lei n. 112/2009, de 16 de Setembro.

686
contraria a ideia de que o encontro restaurativo entre a vítima do crime de violência
doméstica e o seu agente é necessariamente desvalioso para a primeira. Abandona-se,
assim, a imagem da vítima indefesa e incapaz de tomar nas mãos o seu próprio destino,
que surgia recorrentemente como obstáculo à mediação penal na violência doméstica. O
legislador, ao cunhar esta norma, pressupõe que há vítimas de violência doméstica que
querem encontrar-se com o seu agressor porque acham que essa é uma solução boa para
elas. E admite também, necessariamente, que essa pode ser de facto uma solução boa
para elas.
Por outro lado, esta norma tem o valor simbólico de abrir as portas, em outros
momentos do processo penal, a soluções restaurativas. Doravante, já não existe apenas a
mediação penal concebida como mecanismo de diversão processual e restrita à fase de
inquérito.
Todavia, quando se olha para esta possibilidade de “encontro restaurativo”
prevista no regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e
à assistência das suas vítimas, sobram várias interrogações.
Algumas são de índole essencialmente terminológica. Se se trata aqui de um
encontro vítima-agressor na presença de um mediador penal, o que explica que se evite
o recurso ao conceito de “mediação penal”, preferindo-se o conceito de “encontro
restaurativo”? Na medida em que este encontro também tem na sua origem um conflito
que é um crime, não se julga necessariamente imprestável o conceito de “mediação
penal” apenas porque o encontro é posterior à solução dada pela justiça penal. No
direito comparado são, de resto, recorrentes os programas de mediação penal pós-
sentencial.
Em segundo lugar, podem apontar-se à norma objecções de índole mais
substancial. Não se compreende a eleição, como finalidade que preside a este encontro,
da restauração da paz social. Por um lado, as práticas restaurativas, por se fundarem na
existência de uma dimensão interpessoal do crime, almejam pacificar essa relação
concreta entre o agente e a vítima e não favorecer – pelo menos em primeira linha –
aquela paz social. Por outro lado, se aquilo que prepondera na violência doméstica é o
interesse da vítima e não a punição para defesa da comunidade, as finalidades devem
relacionar-se primeiramente com aquele interesse na sua paz “individual e/ou familiar”.
Finalmente – e esta é a objecção principal – não se compreende porque é só este
o tempo do encontro. Dito de outra forma: por que razão excluiu o legislador a
possibilidade de um encontro em momento prévio ao do julgamento ou da suspensão

687
provisória do processo? Não são concebíveis hipóteses em que seria do interesse da
vítima evitar o julgamento e a condenação penal do seu agressor? E não são pensáveis
casos em que seria preferível para a vítima participar numa mediação penal anterior à
decisão de suspensão provisória do processo, para assim ser ela a condicionar o
conteúdo do acordo, em vez de se limitar a receber como um dado a decisão de
suspensão com injunções e regras de condutas determinadas pela autoridade judiciária?
No fundo, o que se questiona é o facto de apenas se remeter para momento mais
tardio essa possibilidade de encontro entre a vítima da violência doméstica e o seu
agressor.
Não se vislumbra para tal opção outra justificação forte que não seja o receio de
transmitir uma imagem de tolerância político-criminal face à violência doméstica. Para
que assim não seja, erige-se como regra a de que tem de haver decisão da justiça penal,
e só depois se aceita aquele encontro restaurativo. Sem se pensar que, em função das
especificidades do caso, aquela solução penal pode prejudicar o encontro restaurativo.
E, sobretudo, sem se reconhecer que a intolerância face à violência doméstica não
decorre sobretudo dos símbolos a que a justiça recorre, mas antes da eficácia na
pacificação efectiva do conflito nos moldes almejados pelos seus titulares.

3.4. A violência doméstica e a “tensão” entre os espaços de solução pública ou


privada do conflito

A violência doméstica tem uma história tão longa como a da humanidade e foi –
e continua a ser – essencialmente uma forma de violência contra as mulheres1188. Nos
termos do Relatório Anual de Segurança Interna, “em 2009, seguindo a tendência
verificada no ano transacto, 82,6% das vítimas identificadas nas participações policiais
(28868) eram do sexo feminino”; e “em 2011, cerca de 82% das vítimas eram mulheres
e 88% dos denunciados eram homens”1189. E, nas exactas palavras de Teresa BELEZA,

1188
Nas palavras de Eduardo GALEANO, “em épocas remotas, as mulheres sentavam-se na proa das
canoas e os homens na popa. As mulheres caçavam e pescavam. Elas saíam das aldeias e voltavam
quando podiam ou queriam. Os homens montavam as choças, preparavam a comida, mantinham acesas as
fogueiras contra o frio, cuidavam dos filhos e curtiam as peles de abrigo. Assim era a vida entre os índios
onas e yaganes, na Terra do Fogo, até que um dia os homens mataram todas as mulheres e puseram as
máscaras que as mulheres tinham inventado para os aterrorizar. Somente as meninas recém-nascidas se
salvaram do extermínio. Enquanto elas cresciam, os assassinos diziam-lhes e repetiam-lhes que servir os
homens era o seu destino. Elas acreditaram. Também acreditaram as suas filhas e as filhas das suas filhas”
(Mulheres, L&PM Pocket: 1997, p. 11).
1189
Cfr. Relatório Anual de Segurança Interna 2009, p. 71; Relatório Anual de Segurança Interna 2011, p.
85. Também no Relatório Penélope cit. se referia que “as vítimas são predominantemente femininas

688
«a verdade é que, por razões de prevalência estatística mas também por visibilidade
acrescida em função dos movimentos sociais e da investigação académica, a violência
exercida pelos homens contra as “suas” mulheres é correctamente tomada como
paradigmática da violência doméstica»1190.
Sublinhe-se a traço grosso: a violência doméstica refere-se maioritariamente a
crimes contra as mulheres e a crimes que constituem uma forma de violência de que
ainda são agentes sobretudo homens. Homens que, nas palavras de Eduardo Galeano,
talvez possam em alguns casos dizer: “não consigo dormir. Tenho uma mulher
atravessada entre as minhas pálpebras. Se pudesse, dir-lhe-ia que se fosse embora; mas
tenho uma mulher atravessada na minha garganta”1191.
Continuar a gizar modelos de reacção à violência doméstica a partir de uma
pretensa severidade punitiva, mesmo que essa não corresponda à vontade das vítimas, é,
de certo modo, perpetuar o estereótipo da mulher incapaz de escolher e da mulher
limitada face à autoridade do pater que deve proteger aquele que ele acha que é o
interesse dessa vítima fragilizada.
Houve um tempo em que se justificava – e se justificava muito – o empenho das
correntes criminológicas feministas no endurecimento da reacção penal face à violência
doméstica.
Por um lado, compreendia-se tal posição porque a possibilidade de uma reacção
penal a condutas muito desvaliosas raramente existia1192 e era, por isso, necessário

(86%), pertencentes maioritariamente ao escalão de idades superiores a 25 anos” (p. 89). A particular
incidência da vitimização feminina nos crimes de violência doméstica não se confunde com a questão de
saber se, também nos estudos atinentes à vitimização geral, há uma maior representação das mulheres.
Sobre o assunto, veja-se Hans SCHNEIDER (“Victimological Developments in the World During the
Past Three Decades: A Study of Comparative Victimology”, International Journal of Offender Therapy
and Comparative Criminology, 45 (4), 2001, p. 453) e a sua afirmação de que “nos países ocidentais
(Europa e Novo Mundo) a violência contra mulheres e homens está similarmente distribuída. O problema
da violência nos países em desenvolvimento da África e da América Latina é todavia caracterizado
sobretudo pela violência sexual e não sexual contra mulheres”.
1190
Teresa BELEZA, “Violência Doméstica”, Revista do CEJ, Número especial sobre a Revisão do
Código Penal, 8, 2008, p. 282.
1191
Eduardo GALEANO (ob. cit., p. 27). O que não significa, naturalmente, qualquer aceitação de uma
atenuação automática da sua responsabilidade. No Relatório Penélope cit., por referência a um estudo
sobre Homicídio Conjugal em Portugal encetado por Elza Pais, afirma-se, a propósito dos homens
agressores, que “a dificuldade de elaborar o sentimento de rejeição num quadro cultural onde a sua
masculinidade pode ser posta em causa, leva-os à agressão até à morte do objecto amado-odiado” (p. 85).
E, ainda naquele Relatório e fazendo apelo a um estudo sobre o contexto social da violência contra as
mulheres detectada nos institutos de medicina legal, dá-se conta de que “o ciúme aparece como a
percepção da causa mais identificada (44%), seguindo-se o alcoolismo com 19,7%” (p. 86).
1192
É indispensável relembrar, a este propósito, a história recente de tolerância face à violência
doméstica, mesmo no ordenamento jurídico português. Na síntese de Teresa BELEZA (“Violência
doméstica”, Revista do CEJ cit., p. 286), «tradicionalmente, a violência física e sexual dos maridos sobre
as mulheres foi expressa ou implicitamente considerada justificada. A atitude social dominante tinha

689
torná-la viável. Hoje acrescentar-se-ia: essa resposta penal deve estar garantida sempre
que a vítima a desejar, o que até há pouco tempo não sucedia e continua a não acontecer
em muitos pontos do globo.
Esta ideia deve ser associada a uma das reivindicações mais recorrentes – e mais
justas – dos movimentos feministas: a abertura do espaço público à problematização e à
reacção à violência doméstica, que não mais se deveria silenciar em nichos de
privacidade (continua a ser particularmente ilustrativo desse silenciamento o título da
obra de referência de Erin Pizzey, Scream quietly or the neighbours will hear1193).
Sobre a questão, em estudo também significativamente intitulado The Violence of
Privacy, escreveu Tove Stang DAHL que “contrariamente à atenção quase histérica que
é historicamente prestada à violência cometida em público, a violência na vida privada é
mais ou menos negligenciada. Os diferentes níveis de atenção parecem relacionados, na
medida em que as mesmas forças sociais que tornam visível a violência pública
organizam-se com muita frequência para ocultar as atrocidades domésticas”1194.
Sob este prisma, compreende-se portanto bem a relutância com que no
pensamento feminista se tende a encarar a aplicação da mediação penal à violência
doméstica1195: quando ainda não está inteiramente ganha – em alguns contextos, só na

também causa e reflexo no Direito, legislado ou dito no caso concreto pelos tribunais. O “poder de
correcção doméstica” – do marido sobre a mulher e dos pais sobre os filhos – teve apoio em lei escrita,
em escritos doutrinários e em decisões jurisprudenciais. No que diz respeito às mulheres, a aceitação legal
da violência como parte do poder marital ia de par com outras normas desiguais e indignas, como as que
estatuíam a quase impunidade do homicídio da mulher pelo marido em flagrante adultério, a legitimidade
da violação da correspondência daquela por este ou ainda a circunstância de o crime de violação
pressupor legalmente a inexistência de casamento (isto é, o marido que violasse a mulher não cometia, até
ao Código Penal de 1982 entrar em vigor, qualquer crime)».
1193
Cfr. Erin Pizzey, Scream quietly or the neighbours will hear, Londres: Penguin Books, 1983.
1194
Tove Stang DAHL, “The Violence of Privacy”, Acta Sociologica, vol. 18, n. 2/3, Abril de 1975, p.
269. Alberto SILVA FRANCO, trazendo à colação o pensamento de Cristina Sánchez Muñoz e referindo-
se à segunda metade do século XX, chama a atenção para “um dos lemas mais representativos da época:
tudo o que é pessoal é político. Com isso, expunha-se a relevância pública das questões tradicionalmente
consideradas privadas, tais como as relações familiares, a criação dos filhos ou a divisão sexual do
trabalho que afectavam de forma muito directa as vidas quotidianas das mulheres e que deviam fazer
parte do debate político” (in prólogo à obra A mulher encarcerada em face do poder punitivo, da autoria
de Olga Espinoza, IBCCRIM, São Paulo: 2004, p. 14).
1195
Não deve, porém, desconsiderar-se o facto de que em estudos de autores feministas se chama já a
atenção para o risco inerente à cristalização da mulher como vítima, sujeitando-a aos estereótipos de
incapacidade que estão associados sobretudo às vítimas de violência doméstica. Neste sentido, Maria
Amélia TELES reconhece que “a expressão vítima incomoda, de uma certa forma, os movimentos
feministas, na medida em que a vítima pode ser estigmatizada, tratada como uma pessoa incapaz de
exercer com autonomia e discernimento acções e atitudes. A estigmatização da vítima pode impedi-la de
tomar decisões com independência e lucidez. O feminismo aposta na afirmação e capacidade das
mulheres, tanto no âmbito pessoal como no colectivo, para exercer plenamente os seus direitos assim
como o direito a obter justiça e o direito de participar, opinar e construir espaços de diálogos” [“O
protagonismo das vítimas de violência doméstica e familiar”, Revista Brasileira de Ciências Criminais,
86, Set-Out de 2010, ano 18, p. 387].

690
praxis; em outros, também na lei – a batalha por uma resposta punitiva pública face a
condutas que se pretendiam manter privadas, não será perigoso (e, em certa medida, até
um sinal de retrocesso) admitir-se agora a “reprivatização” desse conflito? A
interrogação é pertinente, reconhece-se. Se bem se vê o problema, devem porém
considerar-se três aspectos que não parecem despiciendos. Em primeiro lugar, há uma
diferença substancial entre manter o conflito numa esfera de privacidade que não
conhece alternativa e que é, por isso, uma forma de limitação da vontade e da
autonomia ou, pelo contrário, tratar do conflito em uma outra esfera de privacidade que
resulta de uma escolha livre e que pressupõe, por sobretudo, uma hipótese de em
qualquer momento arrepiar caminho e exigir uma resposta penal, afirmando-se assim
precisamente a vontade e a autonomia. Em segundo lugar, a admissibilidade da
mediação penal como forma de reagir ao conflito não significa uma privatização
absoluta da resposta, na medida em que essa mediação suponha o funcionamento de um
sistema público, regulado pelo Estado e por ele administrado. Finalmente, deve admitir-
se que os factos que integram o crime de violência doméstica, independentemente do
lugar onde ocorram, contendem sobretudo com espaços de privacidade ou mesmo de
intimidade, por se relacionarem com a vida familiar ou conjugal. Ora, se daqui não
decorre uma qualquer exclusão da legitimidade da decisão na esfera pública que é a da
justiça penal, também se não deve negar que haverá casos em que a exposição pública
desses espaços de privacidade e de intimidade pode não corresponder à vontade da
vítima. E, quando não corresponder, a sua imposição poderá ser geradora de outras
formas de vitimização.
A utilização, (recorrente ao longo de todo o estudo e também no tratamento
desta questão específica) do conceito de “conflito” merece um esclarecimento adicional.
São conhecidas as críticas à apresentação como “conflito” daquilo que é um crime
grave. Tem-se afirmado que esta tendência pode ser perigosa, sobretudo nas hipóteses
de violência doméstica, porque dilui a responsabilidade do agressor através de uma
inserção do seu comportamento num contexto relacional de culpas recíprocas. O próprio
Howard ZEHR, corroborando o pensamento de Marie Marshall FORTUNE, chama a
atenção para a necessidade de se distinguir o recurso à violência das hipóteses de
conflito. Aquele crime não corresponderia apenas a uma escalada do conflito, tratando-
se antes de coisa materialmente diversa. Apesar de se reconhecer a importância de não
se confundir a hipótese de conflito (que é conatural á vida com os outros) com a
hipótese de crime, não deixa porém de se concordar com a afirmação de ZEHR de que o

691
crime, por pressupor uma dimensão interpessoal, “envolve obviamente um conflito”. Há
conflitos que não se relacionam com o cometimento de um crime, claro. Mas o crime
pressupõe conflitos. Com as cautelas devidas e inerentes à ideia de que há conflitos e
conflitos, não se vê, pelo exposto, necessidade imperativa de se abandonar o
conceito1196.
Por outro lado, aquela linha de pensamento centrada na severidade da punição e
do encarceramento como regra para a violência doméstica nutria-se da ideia do “uso
alternativo do poder punitivo” que, nas palavras de Nilo BATISTA, se faria “incidir não
sobre os suspeitos de sempre, mas, enquanto estratégia de transformação política, sobre
aqueles actores que, da gestão dos grandes laboratórios à insalubridade industrial,
afectaram a saúde dos trabalhadores ou devastaram a natureza”1197.
Sobretudo por recurso a estas linhas de argumentação, procurava-se sustentar o
que já parecia paradoxal1198: se os anos sessenta nos trouxeram, graças à criminologia
crítica, o objectivo da menor intervenção e a partir de então não pararam de crescer as
reivindicações por um direito penal mais de ultima ratio, como justificar para a
violência doméstica uma evolução de sinal oposto?
A reivindicação por esse funcionamento insubstituível da justiça penal fez
sentido, segundo se julga, enquanto ele não esteve garantido a todas as vítimas de
violência doméstica que o desejassem. A partir do momento em que o esteja, deve dar-
se o passo seguinte: reconhecer a autodeterminação dessas vítimas cujos interesses
devem ser protegidos é reconhecer-lhes a possibilidade de recorrerem a essa resposta
punitiva dada pela justiça penal se a pretenderem. Mas é também reconhecer-lhes a
possibilidade de optarem por uma outra forma de resposta – a restaurativa – se for essa
aquela que de facto desejam1199.
Como enfaticamente sublinha Nilo BATISTA, “a bela história das lutas
feministas não pode, na sua frente político-criminal, paralisar-se porque algum sector

1196
Cfr. Howard ZEHR, Changing Lenses cit., ps. 182-3.
1197
Nilo BATISTA, «”Só Carolina não viu” – Violência doméstica e políticas criminais no Brasil»,
Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, Lumen Juris Editora, 2.ª ed,
2009, Rio de Janeiro, p. x.
1198
Atento a este paradoxo, Alessando BARATTA sublinhava o facto de, não obstante a sua
contemporaneidade, a criminologia crítica e a criminologia feminista terem aproveitado pouco das
“descobertas” recíprocas (in Criminologia e Feminismo, Porto Alegre: Sulina Editora, 1999, p. 43). Sobre
o assunto, cfr. também Maria Lúcia KARAM, “Violência de Género: o Paradoxal Entusiasmo pelo Rigor
Penal”, Boletim do IBCCRIM, ano 14, n.º 168, Novembro de 2006, ps. 6-7.
1199
Sobre o assunto, Maria João ANTUNES (últ. ob. cit., p. 101 ss) afirmava, como antes se referiu e
agora se quer sublinhar, a conveniência da diversificação das respostas à violência doméstica e as
possíveis vantagens de uma intervenção restauradora, que considerava “duplamente orientada: para a
satisfação integral dos interesses da vítima e para a auto-responsabilização do agressor”.

692
insiste em sustentar que nada mudou, que o sistema penal de hoje é o mesmo de há
meio século e que as estratégias devem ser mantidas”. Segundo se julga, pode
acrescentar-se que nem sequer parece coerente que o pensamento feminista, que tanto
pugnou pela abertura dessa porta – a da justiça penal –, seja hoje utilizado como
obstáculo à abertura de outras portas que as vítimas desejem adentrar. Sob pena de,
como também enfatiza Nilo BATISTA fazendo apelo à música de Chico Buarque,
podermos afirmar que “o tempo passou na janela, e só Carolina não viu”1200.
Trata-se, agora, em certa medida também de se reconhecer essa liberdade de
escolha na condução da sua vida que a mulher (e a mulher vítima de violência
doméstica) durante tanto tempo lhe viu ser negada. E trata-se de garantir a possibilidade
do exercício dessa liberdade. O que pressupõe, naturalmente, uma ressalva que se não
quer deixar de sublinhar a traço grosso: a viabilidade de recurso a práticas restaurativas
como instrumento para a pacificação do conflito interpessoal em hipóteses de violência
doméstica não significa que se possa sempre prescindir das medidas de protecção
orientadas para a garantia de segurança da vítima1201. Assim, a adopção de medidas que
tenham por objectivo, nomeadamente, o afastamento do agressor ou a interdição de
qualquer contacto com a vítima não deve ser liminarmente excluída ao longo do
procedimento restaurativo e, caso essas medidas mudem de natureza porque vieram,
eventualmente, a tornar-se conteúdo do acordo celebrado entre o agente e a vítima,
devem ainda garantir-se os mecanismos necessários ao controlo do seu efectivo
cumprimento. Há que vincar, portanto, três ideias principais: nem sempre as práticas
restaurativas serão possíveis no âmbito da violência doméstica (nomeadamente quando
algum dos intervenientes no conflito estiver numa situação de fragilidade
inultrapassável e/ou quando o conflito estiver de tal modo solidificado que se tornou
estrutural e não já incidental); ou, sendo possíveis, não deverão existir por não serem
desejadas; e, mesmo quando possíveis e desejadas, não têm de excluir sempre algum
funcionamento da justiça penal.

1200
Nilo BATISTA; ob. cit., p. xxiii.
1201
No estudo recente já referido e tendente à identificação das necessidades das vítimas de crimes no
Brasil, concluiu-se que os anseios das vítimas de violência doméstica se relacionam mais com a conquista
de uma “sensação de segurança” e menos com a reparação dos danos. Afirma-se que, diferentemente do
que sucede com as vítimas de crimes de menor potencial ofensivo que “associaram a satisfação ao
ressarcimento do dano, os anseios das vítimas de violência doméstica estão vinculados à cessação de
agressões de toda sorte e, principalmente, à sensação de segurança. Para isso, é essencial a função
desempenhada pelas medidas de protecção, que foram consideradas respostas bastante satisfatórias”
(Marcos ALVAREZ/Alessandra TEIXEIRA/Maria JESUS/Fernanda MATSUDA/Fernando SALLA/Caio
SANTIAGO/Veridiana CORDEIRO, “A vítima no processo penal brasileiro: um novo protagonismo no
cenário contemporâneo?”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 86, Set-Out. 2010, ano 18, p. 285).

693
Feitas estas ressalvas, julga-se, porém, que a aceitação da possibilidade de
práticas restaurativas na sequência de crimes que causaram padecimentos graves às
vítimas – verificada que seja, e de forma exigente, a vontade séria de participação
dessas vítimas – significa, ainda, o reconhecimento da diversidade de papéis que uma
mesma pessoa pode, ao viver a sua vida, desempenhar. E essa diversidade de papéis e
essa possibilidade de mudança serão ainda (fazendo apelo ao pensamento de Hannah
ARENDT) conaturais à circunstância de se ser pessoa1202.

4. Os crimes graves e o valor (também simbólico) das práticas restaurativas “pós-


sentenciais”

Apesar da ideia de que a mediação penal de adultos conhecida pela lei


portuguesa e já concretizada na prática de resolução de conflitos é configurada
sobretudo como um mecanismo de diversão, durante o inquérito, aplicável somente a
alguns crimes particulares de pequena e média gravidade (nos termos da Lei n.º
21/2007, de 12 de Junho), não podem deixar de merecer referência duas manifestações
expressas da admissibilidade de práticas restaurativas em momentos posteriores. Uma,
já antes referida, relaciona-se com a consagração do “encontro restaurativo” posterior à
suspensão provisória do processo ou à condenação por crime de violência doméstica. A
outra foi acolhida pelo Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da
Liberdade1203, em cujo artigo 47.º, n.º 4 se dispõe que “o recluso pode participar, com o
seu consentimento, em programas de justiça restaurativa, nomeadamente através de
sessões de mediação com o ofendido”. O alcance desta disposição deve ser avaliado
tendo também em conta o previsto nos artigos 91.º e 92.º do Regulamento Geral dos
Estabelecimentos Prisionais1204. Entre as finalidades visadas pelos programas
específicos que os estabelecimentos prisionais devem desenvolver, conta-se “a
promoção da empatia para com a vítima e a consciencialização do dano provocado,

1202
Cfr. Hannah ARENDT, Responsabilidade e Juízo, Lisboa: Dom Quixote, 2007, p. 11 ss. A Autora
associa o conceito de “persona”, na antiguidade, às artes cénicas, referindo-se «à máscara do actor que
cobria a individualidade do seu rosto “pessoal”», indicando assim aos outros a diferença entre o seu “eu”
e aquele “eu” do papel que estaria a representar. Também os romanos teriam distinguido os conceitos de
“persona” e de “homo”: enquanto aquela se tratava de alguém na posse de direitos civis, este mais não
seria do que um membro da espécie humana sem qualquer traço distintivo específico.
1203
Aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro.
1204
Aprovado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 51/2011, de 11 de Abril.

694
nomeadamente através do envolvimento dos reclusos em programas de mediação e de
justiça restaurativa”1205.
A possibilidade de participação do recluso nestes programas restaurativos pós-
sentenciais, já admitida pelo legislador português, deve ser compreendida por apelo às
finalidades da execução das penas e das medidas de segurança privativas da liberdade,
expressas logo no artigo 2.º daquele Código da Execução das Penas e Medidas
Privativas da Liberdade. Tal execução “visa a reinserção do agente na sociedade,
preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer
crimes, a protecção de bens jurídicos e a defesa da sociedade”. A prova de que o
legislador entendeu que aquela participação do recluso em programas restaurativos pode
favorecer a sua reinserção resulta do n.º 6 do artigo 47.º, nos termos do qual “a
participação do recluso em programas é tida em conta para efeitos de flexibilização da
execução da pena”.
Todavia, se estas práticas restaurativas podem contribuir para a obtenção das
finalidades inerentes à execução da pena – sendo que a flexibilização desta pena
depende de um juízo centrado no cumprimento daquelas finalidades –, também parece
claro que, concomitantemente, contribuirão para as finalidades específicas da justiça
restaurativa associadas à pacificação dos intervenientes no conflito e à reparação dos
danos causados à vítima.
Sob um ponto de vista metodológico, julga-se que é útil, neste momento da
análise, uma referência à relevância específica das práticas restaurativas ditas pós-
sentenciais. Em um ponto do estudo que em que se procura já uma depuração das ideias
centrais a que através da reflexão se foi chegando, parece tempo de estabelecer a
conexão entre uma análise (que antes se esboçou) sobre as diversas finalidades das
intervenções penal e restaurativa, e uma consideração das práticas restaurativas agora
a partir da aceitação de programas restaurativos pós-sentenciais. Esta aceitação parece
confirmar, segundo se crê, dois vectores que se julgam essenciais na compreensão das
finalidades subjacentes às práticas restaurativas, assim como na definição daquele que
pode ser o seu âmbito, sendo que cada um dos tópicos é indiciário de um certo modelo
de relacionamento entre a justiça penal e a justiça restaurativa.

1205
Cfr. o art. 91.º, n.º 1, al. d) do Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais. No art. 92.º
dispõe-se, ainda com interesse, que “a participação pressupõe a adesão expressa do recluso”, que”os
programas assentam na celebração de um contrato, do qual constam obrigatoriamente as regras, condições
e eventuais prémios de participação e as causas de exclusão do programa”. Estatui-se, ainda, que “os
programas são preferencialmente executados dentro do estabelecimento prisional”.

695
Em primeiro lugar, a existência de práticas restaurativas pós-sentenciais indicia
que nada impede a sua aplicação ao universo dos conflitos desencadeados pelos crimes
mais graves (a ideia forte é, precisamente, a de que a justiça restaurativa não deve ser
utilizada para expandir o controlo social face a bagatelas, mas antes para oferecer uma
possibilidade de pacificação dos conflitos mais graves1206); em segundo lugar, se tais
práticas surgem depois do funcionamento completo da justiça penal, é porque com elas
se perseguem finalidades que aquela justiça penal, por si só, não logra cumprir.
Esclareça-se, porém, que sob esta designação de “práticas restaurativas pós-
sentenciais” se agrupam realidades diversas, porque se há casos em que elas têm lugar
durante o cumprimento da pena, outros existem em que elas só surgem posteriormente.
Assim, em bom rigor, só relativamente a estas últimas se poderia afirmar a sua
aplicação depois de um funcionamento integral da justiça penal, que inclui a fase de
execução da pena. E, não sendo esta fase da execução da pena alheia às finalidades da
prevenção, poder-se-ia considerar que o recurso a programas restaurativos, nesse
momento, operaria apenas como coadjuvante na prossecução de tais finalidades. Ora, se
não se enjeita que as práticas restaurativas possam, neste contexto, favorecer a
reintegração do agente ou a pacificação da comunidade, julga-se porém que a forma
como prevalece e como se processa a mediação vítima-agressor pós-sentencial confirma
um objectivo primacial de pacificação individual e/ou interpessoal que é estranho às
finalidades especificamente penais.
Em rigor, em muitos destes casos, porventura até mais do que em oferta de uma
possibilidade de pacificação do conflito interpessoal, deve falar-se antes em oferta de
uma possibilidade de pacificação individual. O que se pretende significar com esta
afirmação é que, em casos particularmente graves – como os relacionados com a perda
1206
Um dos muitos Autores que têm insistido na importância de não se limitar a proposta restaurativa (e a
mediação penal) à criminalidade menos grave é John BRAITHWAITE (Restorative Justice and
Responsive Regulation, cit, p. 29). Escolhe como exemplo o crime de roubo e afirma que devemos
desafiar o preconceito segundo o qual o agente de tal infracção deve ser sempre sujeito a julgamento e,
fazendo-se prova da sua culpa, condenado a pena de prisão. Considera que podem existir alternativas a
este processo se, v.g., o agente estiver disposto a reparar os danos causados às vítimas ou abandonar os
seus hábitos de consumo de estupefacientes. Em estudo publicado muito recentemente, também Ramon
VALCÁRCEL refere a adequação de práticas restaurativas pós-sentenciais no âmbito da criminalidade
mais grave, nomeadamente do terrorismo. Sustenta as vantagens de tais práticas em depoimentos de
participantes, como o da filha de Aldo Moro (morto em Maio de 1978 por integrantes das Brigate Rosse)
que, depois de ter contactado, durante a execução da pena, com uma das integrantes do grupo terrorista,
afirmou “imaginava-os tão diferentes e eram normais. Sentiam algumas das coisas que eu também
sentia…quero dizer que não eram cruéis. Perdoei porque acredito que uma pessoa pode tornar-se melhor
do que é se perdoa. O meu pai, como jurista, ensinou-me que uma pena só tem sentido se é para reabilitar.
Caso contrário, não é pena, é vingança. E perdoei porque creio que odiar não me teria dado a serenidade
que agora tenho” (“Algunos problemas de la mediación penal”, Gestión del Conflicto Penal, coord.
Teresa del VAL, Beunos Aires, Editorial Astrea, 2012, p. 48).

696
de uma vida –, pode não existir qualquer conflito interpessoal entre o agente e as
vítimas “indirectas” que careça de pacificação; ou, a existir, talvez ele não seja sequer
susceptível de pacificação. Todavia, nestas situações também pode suceder – como o
comprova a prática da mediação pós-sentencial por exemplo em vários programas
levados a cabo nos Estados Unidos – que o agente do crime ou as vítimas, apesar de
reconhecerem a impossibilidade de uma reparação suficiente dos danos causados,
expressem a necessidade de um encontro, que vêem como favorável ao encerramento
possível de um segmento das suas vidas e à sua recuperação face ao acontecimento
desvalioso.
Um dos países do nosso contexto cultural onde tais práticas restaurativas pós-
sentenciais vêm sendo aplicadas – e vêm sendo sujeitas a avaliações largamente
favoráveis – é a Bélgica1207. Ora, a opção que aí se faz por configurar esta mediação
penal a partir de uma “perspectiva externa” (ainda que, em alguns casos, mitigada) é,
segundo se crê, também relevante sob o ponto de vista da compreensão da autonomia
dos fins das práticas restaurativas. Explique-se, porém, o que se vem de afirmar.
Em uma “perspectiva interna”1208, a mediação é vista como um elemento da
execução da pena, sendo os funcionários da administração prisional os elementos
centrais na sua promoção e execução. Para além disso, o sucesso dessa mediação terá
consequências ao nível da execução da pena, nomeadamente flexibilizando-a ou
encurtando-a. Pelo contrário, em uma “perspectiva externa”, o recurso à mediação pós-
sentencial só se distingue das outras práticas de mediação pelo meio em que ocorre – a
prisão – permanecendo, em tudo o resto, a ele alheia. É encarada como faculdade pela
qual os sujeitos podem ou não optar – à semelhança de quaisquer outros cidadãos – e
supõe a intervenção de mediadores neutros (no sentido em que são alheios à instituição
prisional). Nesta “perspectiva externa”, a participação na mediação, ainda que bem
sucedida, não significa qualquer vantagem para o agente (agora recluso), nomedamente
no que respeita à concessão da liberdade condicional. São, ainda, pensáveis

1207
Para uma descrição e uma avaliação da mediação pós-sentencial em contexto prisional na Bélgica,
cfr. David EYCKMANS/Dirk DUFRAING/Mariane REGELBRUGGE, “The concept of restorative
justice in prison seen from the community and illustrated by the practice of victim-offender mediation”,
Restorative Justice and its Relation to the Criminal Justice System, Actas da Segunda Conferência do
European Forum For Victim-Offender Mediation and Restorative Justice, Bélgica, 2002, p. 69 ss. Nas
palavras dos Autores, o objectivo principal destes programas é “criar a oportunidade para reparar as
relações entre o agente do crime, a vítima e a comunidade, que foram danificadas”. Muito interessante é a
sua informação de que, desde Novembro de 2000, os “restorative justice consultants” estão presentes em
todas as prisões belgas.
1208
Adopta-se a terminologia “perspectiva interna” versus “perspectiva externa” utilizada por David
EYCKMANS/Dirk DUFRAING/Mariane REGELBRUGGE (últ. ob. cit. p. 72).

697
configurações mistas, em que, por exemplo, a participação na mediação penal é sempre
voluntária para o agente e a vítima, com mediadores estranhos ao meio prisional, mas
com uma possibilidade de ponderação dos resultados obtidos nessa mediação para
efeitos de alterações na execução da pena.
Ora, segundo se crê, quer a adopção de programas a partir de uma “perpectiva
externa”, quer a partir desta sua consideração mitigada (por admitir o relevo das práticas
restaurativas para efeitos especificamente penais), mostram uma certa margem
(seguramente maior na primeira hipótese) de autonomia das finalidades das práticas
restaurativas pós-sentenciais. E, ainda que se vislumbrem vantagens nas práticas de
mediação penal pós-sentencial conformadas a partir daquela perspectiva externa1209,
assume-se uma certa preferência por esta sua abordagem mitigada1210.
O que se julga é que, nesta perspectiva, sem se perder o sentido especificamente
restaurativo destas práticas [que impõe a voluntariedade, a idêntica importância e grau
de participação do agente e da sua vítima (essa vítima que parece ser relativamente
desconsiderada a partir de uma perspectiva interna), a preocupação com as necessidades
de ambos e a orientação para a reparação1211], vai-se além de uma sua conformação

1209
A propósito de uma reflexão, no plano comparatístico, sobre estas práticas restaurativas pós-
sentenciais, Jo-Anne WEMMERS e Marisa CANUTO (Victim’s experiences with, expectations and
perceptions of restorative justice: a critical review of the literature cit., p. 23 ss) sublinham que elas
“geralmente não afectam as sanções”, sendo o seu valor “largamente psicológico – permitindo que as
vítimas e os agressores se reconciliem com o crime e o ultrapassem”, para além de serem “programas que
lidam tipicamente com crimes mais graves”. Dão o exemplo de um programa que se iniciou em Haia, na
Holanda, em 1997, de participação estritamente voluntária, posterior à condenação e sem consequências
ao nível da execução da pena, relativo a crimes graves (em 2000 houve uma primeira avaliação deste
programa – em que, em cerca de um quarto dos crimes que fundaram a condenação, ocorreu a morte da
vítima, sendo a participação nesta prática restaurativa “oferecida aos seus familiares” – que sustenta a
conveniência da sua manutenção, também por permitir às vítimas “encontrarem uma forma de perdoar,
confrontarem o agressor, compreenderem porque se passaram assim as coisas, ultrapassarem os seus
medos”).
1210
Esta parece ser, de resto, a orientação de que parte o sistema belga, quando favorece a reparação pelo
recluso dos danos causados à sua vítima, não atribuindo a essa reparação um efeito automático em sede
de execução da pena, mas admitindo esse efeito, depois de uma ponderação pelas instâncias competentes.
Sobre a questão, cfr. Georges KELLENS (“Trabajo Penitenciario”, Homenaje al Dr. Marino Barbero
Santos: in memoriam, vol. I, Dir. Arroyo Zapatero/Berdugo Gómez de la Torre, Ediciones de la
Universidad de Castilla-La Mancha/Ediciones Universidad Salamanca, 2001, p. 320), que analisa o
trabalho prisional como uma liberdade que não pode “amputar-se atrás dos muros da prisão” e que refere
o incentivo – mas não a obrigação – a que os proventos resultantes do trabalho prisional sejam
direccionados para a reparação voluntária dos danos causados à vítima, o que poderá ser valorado para a
flexibilização da execução da pena privativa da liberdade. O Autor menciona ainda, com interesse, a
decisão do Ministro da Justiça belga de admitir, a partir de Maio de 2000, a existência, «em cada uma das
trinta e duas prisões belgas, de um “consultor em justiça restaurativa” com formação universitária».
1211
Uma das limitações de ordem prática a estes programas restaurativos pós-sentenciais prende-se com a
dificuldade de gizar comportamentos reparadores que sejam exequíveis, tendo em conta aquelas que são
as circunstências da reclusão. Apesar de se saber que essa reparação não tem de assumir natureza
patrimonial, houve uma tentativa de contornar a indisponibilidade financeira de muitos agentes criminais
que são reclusos através da criação de fundos. Sucedeu assim em alguns estabelecimentos prisionais

698
sobretudo assistencial, fazendo-as ainda contribuir para a existência de uma intervenção
penal que seja o mais mínima que é possível.
 

belgas, onde se deu a reclusos interessados em participar na mediação vítima-agressor a possibilidade de


recorrerem a esses “Restoration Funds”, sempre com a obrigação de reposição das quantias utilizadas,
através de recursos que depois obtenham com o seu trabalho, em contexto prisional ou fora dele (sobre a
questão, cfr. David EYCKMANS/Dirk DUFRAING/Mariane REGELBRUGGE, últ. ob. cit., ps. 76-7).

699
700
EPÍLOGO

701
702
É tempo de enunciar algumas das ideias que foram surgindo ao longo deste
estudo e que se pretendeu que sugerissem possibilidades de resposta às questões do
porquê, do para quê e do como da justiça restaurativa. Segundo se crê, a justiça
restaurativa distingue-se da justiça penal enquanto modelo de reacção ao crime por
força do seu específico fundamento, das suas específicas finalidades e do seu específico
modo de actuação ou procedimento. Julga-se que as respostas ao porquê, ao para quê e
ao como da justiça restaurativa não são coincidentes com as respostas encontradas
quando se confronta a justiça penal com as mesmas interrogações.

1. A designação “justiça restaurativa” engloba construções teóricas de natureza


sobretudo criminológica e político-criminal (na medida em que estão orientadas para a
compreensão do fenómeno criminal e para a formulação de propostas destinadas à sua
pacificação), assim como um conjunto diferenciado de normas e de práticas de reacção
ao conflito criminal sujeitas ao denominador comum da reparação dos danos causados à
vítima através de uma responsabilização voluntária do agente da infracção.

2. Apesar de serem conhecidas várias linhas de argumentação que procuram


justificar a justiça restaurativa através da ideia da sua predominância histórica como
sistema de pacificação de conflitos criminais (e sistema indevidamente derrogado
através de um “roubo do conflito” associado ao fortalecimento da justiça penal enquanto
manifestação do poder estadual de punir), não foi essa a orientação que se acolheu para
a compreensão do surgimento, a partir dos anos setenta do século XX, da justiça
restaurativa. Pelo contrário, considerou-se que ela surgiu na confluência de várias
correntes críticas da resposta dada ao crime pela justiça penal, nomeadamente a
criminologia de sessenta, a vitimologia, o abolicionismo penal, a criminologia
feminista e a criminologia de pacificação. A justiça restaurativa aparece, assim, em um
tempo de crise da justiça penal associada a várias críticas e tem a pretensão de dar uma
resposta ao crime diferente daquela que é dada pela justiça penal.

3. Os obstáculos a uma definição de justiça restaurativa são de várias espécies e


relacionam-se, sobretudo, com a diversidade das práticas restaurativas, cujo surgimento
em regra antecedeu, em diferentes contextos espaciais e no seio de sistemas de reacção
ao crime orientados por princípios não coincidentes, a elaboração teórica. As distintas

703
teorias restaurativas tendem a ser condicionadas pelos contornos que aquelas distintas
práticas restaurativas assumem. Existem, por isso, propostas de definição da justiça
restaurativa com conteúdos não coincidentes, oscilando entre o privilegiamento das
finalidades (nas concepções ditas maximalistas) ou dos procedimentos (nas construções
apodadas de minimalistas). Na opinião que se procurou sustentar ao longo desta
investigação, a justiça restaurativa pressupõe quer um específico fim, quer um
específico procedimento. De forma sintética, crê-se que ela pode ser vista como um
modo de responder ao crime (e, nessa medida, como uma pluralidade de práticas
associadas a uma pluralidade de teorias agrupadas em função de uma certa unidade)
que se funda no reconhecimento de uma dimensão (inter)subjectiva do conflito e que
assume como finalidade a pacificação do mesmo através de uma reparação dos danos
causados à(s) vítima(s) relacionada com uma auto-responsabilização do(s) agente(s),
finalidade esta que só logra ser atingida através de um procedimento de encontro,
radicado na autonomia da vontade dos intervenientes no conflito, quer quanto à
participação, quer quanto à modelação da solução.

4. Uma das interrogações com que a investigação se deparou na procura de


sentidos de resposta para o porquê da proposta restaurativa foi a de saber se ela
corresponde ainda a exigências de uma ideia de justiça ou se, pelo contrário, se esgota
em um conjunto de práticas orientadas para a obtenção de mais economia e rapidez,
porventura com prejuízo para outros valores. A ideia central a que, a esse propósito, se
considera que o estudo conduziu é a de que na justiça restaurativa está implícita uma
certa ideia de realização da justiça cujas pautas não são apenas as da utilidade numa
perspectiva de celeridade e de economia, à luz de um modelo estadual e punitivo de
reacção ao crime. Por um lado, há no sentido de justiça afirmado pelos cultores da
proposta restaurativa um reconhecimento da exigência liberal de mais liberdade e de
restrição da decisão autoritária do conflito às hipóteses em que ela seja indispensável.
Por outro lado, na compreensão da justiça inerente à proposta restaurativa assume
destaque a ideia de solidariedade associada às concepções de justiça que sustentam o
Estado Social. Em terceiro lugar, pode afirmar-se que, para além da solidariedade, são
convocadas pela proposta restaurativa as exigências de fraternidade e de
responsabilidade centrais na teoria republicana. Todavia, aquilo que parece existir de
específico na compreensão restaurativa é a ideia de que uma reacção justa ao crime
pressupõe o reconhecimento de uma sua dimensão (inter)pessoal, que não se confunde

704
com a dimensão pública inerente à sua definição como ofensa a bens jurídicos cuja
vigência tem de ser reafirmada. Nessa medida, convergem na proposta restaurativa a
valorização da subjectividade, da alteridade e da comunicação que constituem
património de correntes filosóficas e sociológicas contemporâneas associadas à
teorização sobre o sentido da justiça.

5. A “estranheza” suscitada pela proposta restaurativa quando confrontada com


a exigência de realização da justiça relaciona-se, sobretudo, com a possibilidade de
poderem falhar-lhe duas notas que se associam a uma reacção justa ao delito: a verdade
e a proporcionalidade. Estas surgem, no direito penal e no direito processual penal,
ligadas às duas grandes questões inerentes ao julgamento – a questão da culpa e a
questão da sanção. A verdade pressupõe uma certa confirmação do acontecido através
da prova admissível, que se não basta com uma versão da realidade acordada pelos
sujeitos. A proporcionalidade impõe uma limitação da reacção ao crime à luz de uma
ponderação de desvalores, que parece exigir uma intervenção imparcial e desapaixonada
de um terceiro dotado de autoridade e vinculado por uma lei que estabelece limites para
a sanção e critérios para a sua determinação concreta. Estas questões inerentes à
realização da justiça na proposta restaurativa entrecruzam-se com a ponderação de
princípios estruturais do modelo de reacção ao crime, como o da culpa, o da
oficialidade, o da legalidade ou o da reserva de juiz. Uma análise de cada um deles
parece conduzir, porém, à verificação de que as práticas restaurativas, por força das suas
especificidades face à reacção punitiva inerente à justiça penal, não são necessariamente
incompatíveis com o núcleo garantístico daqueles princípios.

6. A questão do para quê da justiça restaurativa – que não se pode desligar por
inteiro da questão do porquê, na medida em que se julga que é porque no crime existe
uma dimensão interpessoal (portadora de relevância em sede de resposta justa) que se
torna necessária uma intervenção orientada para a pacificação desse conflito –,
conduziu a investigação à ponderação da utilidade da justiça restaurativa, o que
convocou uma reflexão sobre as suas finalidades e, necessariamente, também sobre a
“mais-valia” que pode (ou não) representar em um sistema de reacção ao crime que já
conhece a resposta dada pela justiça penal.

705
7. A ideia que se procurou sustentar foi a de que as finalidades da solução
restaurativa (solução que é a reparação em sentido muito amplo) não coincidem com as
finalidades preventivas que se atribuem à pena. Ainda que se possa afirmar que, quer a
justiça penal, quer a justiça restaurativa, têm objectivos de pacificação do conflito
manifestado no crime, encontraram-se respostas diversas para as questões sobre aquilo
que se pretende pacificar e sobre a forma como se pretende pacificar. Tais respostas
centram-se na dimensão do conflito que em cada um dos modelos se sobrevaloriza: na
resposta penal ao conflito, o Estado reage a uma conduta desvaliosa por força da sua
dimensão pública associada à ofensividade para bens jurídicos e, nessa medida, é o
interesse comum que sobretudo justifica e orienta a intervenção; na justiça restaurativa,
é a dimensão interpessoal do conflito que prevalece e, por isso, são os interesses
específicos da concreta vítima e do concreto agente que em primeira linha devem ser
tidos em conta. O que equivale a afirmar que se a pena tem por finalidades evitar o
cometimento por aquele agente de outros crimes no futuro e pacificar a comunidade em
torno da vigência da norma violada evitando que outros cometam crimes no futuro, já a
solução restaurativa tem por finalidades ressarcir as necessidades da vítima daquele
crime através de uma assunção das suas responsabilidades pelo agente que reforce o seu
sentido de responsabilidade e satisfazer a necessidade de pacificação do conflito. Ou
seja: se na teleologia da resposta penal prevalece o interesse comum no não
cometimento de crimes no futuro, na resposta restaurativa prevalecem os interesses
individuais daqueles que estão envolvidos no conflito interpessoal. Adoptando-se a
formulação que se pretende mais simples: se o funcionamento da justiça penal se dirige
sobretudo a prevenir o cometimento de crimes futuros, já a justiça restaurativa almeja
em primeira linha pacificar, através do encontro e da reparação, o conflito criminal
antes ocorrido. A afirmação desta linha de fronteira entre as finalidades da justiça penal
e da justiça restaurativa não preclude, porém, a compreensão da possibilidade de,
através da resposta dada por cada uma delas ao conflito criminal, se cumprirem
também, ainda que de forma mediata, as finalidades da outra. Daqui decorre a
necessidade de ponderação de modelos de relacionamento daquelas diversas respostas.

8. Esta linha de compreensão do para quê da justiça restaurativa pressupõe uma


reflexão sobre o problema do fundamento do direito penal e sobre o problema da função
penal. Se o que fundamenta o poder punitivo do Estado é o dever que este tem de
assegurar a coesão pacífica da sociedade em condições que garantam a todos os

706
cidadãos uma vida digna e em segurança, a função do direito penal terá de ser a
protecção subsidiária dos bens jurídicos considerados essenciais num dado momento e
espaço. Essa ideia de protecção de bens jurídicos contra ofensas futuras concretiza-se
através das finalidades preventivas das reacções criminais. A função da justiça
restaurativa, por sua vez, não será essa protecção dos valores essenciais da comunidade
contra ofensas futuras. Não se trata, de forma imediata, de proteger bens jurídicos
penais, evitando crimes futuros que os ofendam, mas antes de encontrar uma resposta
adequada para os males originados por um crime na perspectiva dos indivíduos que
foram directamente atingidos.

9. A justiça restaurativa assume, assim, como função imediata a pacificação dos


intervenientes no crime e das relações interpessoais abaladas pelo crime, o que se
repercute na sua finalidade de reparação em sentido muito amplo dos danos causados,
em moldes queridos pelo vítima e correspondentes a uma responsabilização
voluntariamente assumida pelo agente.

10. O sentido desta reparação restaurativa é condicionado pela avaliação do


conteúdo, da amplitude e da variedade dos danos associados ao conflito criminal. O
facto de se julgar que o crime prejudica uma certa compreensão organizada da vida,
destruindo o sentido de autonomia porque significa uma invasão violenta do espaço
individual (o espaço de domínio) da vítima, contribui para justificar a defesa de sentidos
de resposta em que é nuclear a reafirmação dessa autonomia. A perda de controlo sobre
a própria vida que parece inerente ao tempo e ao espaço da vitimização impõe uma
definição da reparação centrada na recuperação desse controlo perdido. Sobretudo por
esta razão, a reparação restaurativa não se compreende caso não corresponda também à
vontade da vítima, quer no procedimento conducente à sua determinação (o que é
coerente com a exigência estrita de voluntariedade), quer na modelação do conteúdo
desta reparação.

11. A função da justiça restaurativa de pacificação individual e interpessoal que


acima se afirmou não se cumpre, também, sem a voluntariedade inerente à
responsabilização do agente pelos males que causou e à sua consequente reparação.
Nessa medida, diversamente do que sucede com a indemnização – em que aquilo que

707
importa é sobretudo que o lesado veja os seus danos ressarcidos, independentemente do
sujeito que cumpra esse papel –, na reparação restaurativa (de modo semelhante ao que
sucede com a reparação enquanto consequência jurídica autónoma do crime) não se
prescinde de uma intervenção, no sentido da eliminação possível dos danos, por parte
daquele que é o responsável pela sua ocorrência.

12. Pode acontecer que a obtenção das finalidades restaurativas – através de uma
reparação que não tem sentido coincidente, nem com a reparação enquanto
consequência jurídica autónoma do crime, nem com as várias formas de reparação já
previstas pelo legislador penal e processual penal português – tenha como consequência
a desnecessidade de punição, porque mediatamente se atingiram também as finalidades
penais. Nestas hipóteses, a solução restaurativa do conflito criminal contribuirá para a
limitação da intervenção penal, favorecendo o seu carácter de ultima ratio. Noutros
casos, porém – sobretudo em alguma da criminalidade mais grave imputada a agentes
mais perigosos –, a condenação pode revelar-se indispensável, surgindo a eventual
aplicação da justiça restaurativa em moldes que não são os da alternatividade, mas antes
os da complementaridade. A possibilidade de práticas restaurativas pós-sentenciais
parece comprovar, nestas hipóteses, a diversidade das finalidades penais e restaurativas.

13. A questão da “justiça restaurativa versus justiça penal”, suscitada pela


interrogação do para quê, fez com que a investigação se confrontasse com o problema
da compatibilidade daquela justiça restaurativa com alguns dos princípios que
estruturam o actual sistema penal de reacção ao crime, nomeadamente o princípio da
culpa, os princípios atinentes à promoção processual da oficialidade e da legalidade e o
princípio da reserva de juiz. A ideia principal a que se chegou foi a de que tais
princípios, se devem permanecer irrenunciáveis no plano da resposta punitiva ao
crime, não têm de vincular tão estreitamente uma forma de reacção que comporta notas
de diversidade. Por outro lado, reconheceu-se que, mesmo no plano da justiça penal,
vão surgindo limitações àqueles princípios, decorrentes de desafios com que a
modernidade foi sendo confrontada e que condicionam uma mudança da própria
resposta punitiva. Perante esta convergência, no tempo que é o nosso, de exigências a
um primeiro olhar contraditórias (as herdadas da modernidade e as que depois dela se
vêm afirmando), impõe-se um esforço de concretização daquilo que se tem de preservar
e dos espaços em que se pode inovar. Não logra chegar-se a qualquer conclusão nessa

708
matéria sem uma compreensão do núcleo de cada um daqueles princípios e,
simultaneamente, sem uma indagação sobre aquilo que há de diverso na justiça
restaurativa e que permite que se adoptem novas soluções sem que possa recear-se uma
ofensa ao que de essencial vive em cada um deles. Julga-se que da reflexão –
delimitada, sublinhe-se, quer por uma certa concepção (minimalista) da justiça
restaurativa, quer pelas práticas restaurativas admitidas no sistema português – parece
resultar a inexistência de espaços significativos de desconformidade entre esta justiça
restaurativa e aqueles princípios.

14. Para além disso, a mesma questão da “justiça restaurativa versus justiça penal”
relacionada com a compreensão do para quê daquela justiça restaurativa confrontou o
estudo com a existência, na justiça penal e processual penal portuguesa, de mecanismos
de tutela das necessidades das vítimas e de espaços de relevância do consenso, que
dificultam a distinção entre os dois modelos de resposta ao crime. Em certo sentido,
pode considerar-se que a justiça penal já acolhe a ideia da reparação que é finalidade da
justiça restaurativa e também a ideia do consenso que é central no procedimento
restaurativo. A um primeiro olhar, estes vectores de evolução da própria justiça penal
poderiam conduzir à afirmação de que se tornou desnecessária a justiça restaurativa.
Não foi essa, porém, a ideia a que se chegou através de uma ponderação dos institutos
penais e processuais penais orientados para a protecção da vítima e dos institutos
conformados pelo consenso: o que se julga é que, nas hipóteses consideradas, a
relevância das necessidades da vítima e a relevância das vontades da vítima e do
agente quanto à solução do conflito são sempre condicionadas pela sua
compatibilidade, ainda, com as finalidades especificamente penais.

15. Na sequência da investigação, depois de se ter reflectido sobre o porquê e sobre


o para quê da justiça restaurativa, enfrentou-se o problema do seu como. Apesar de se
conhecer a existência de outras práticas restaurativas, centrou-se a análise na mediação
penal, por ter sido o instrumento restaurativo escolhido pelo legislador português e por
ser também o dominante nos países do nosso contexto cultural. Inexistindo unanimidade
quanto ao sentido da mediação penal, pretendeu-se deixar claro que, por ser um modo
de aplicação da justiça restaurativa, ela pressupõe uma determinação clara do sentido da
justiça restaurativa. Assim, tendo sempre no horizonte a noção minimalista (centrada na
especificidade dos fins e dos procedimentos) que se procurou sustentar, julga-se que a

709
mediação penal deve ser conformada a partir das finalidades que se defendeu serem as
restaurativas e na obediência aos princípios que estruturam o procedimento restaurativo,
sobrelevando aí a vontade do agente e da vítima, quer quanto à participação, quer
quanto à modelação da solução para o conflito.

16. É inequívoca, face a uma análise do regime jurídico da mediação penal de


adultos em Portugal, a sua restrição ao universo dos conflitos criminais, sendo os
sujeitos principais da mediação apenas o arguido e o ofendido, e não todo e qualquer
prejudicado pela ocorrência do ilícito. Não existem, para além disso, dúvidas quanto à
conexão desta mediação penal com o modo de funcionamento da justiça penal, no qual
tem surgido sobretudo enquanto mecanismo de diversão. Optou-se pela criação de um
sistema público de mediação que vinca o cariz não estritamente privado desta prática
restaurativa e que assume a possibilidade da sua relevância na decisão da questão penal.

17. Ainda em um plano de arrumação dos conceitos, viu-se que podem distinguir-se
dois principais modelos de mediação penal: o primeiro, mais exigente, orientado para o
favorecimento da pacificação individual e da relação interpessoal abalada pelo conflito
criminal (modelo de mediação penal centrado na relação interpessoal); o segundo
vocacionado para uma resolução mais célere e menos dispendiosa do conflito,
alicerçado na ideia de que a mediação penal se destina aos delitos considerados
menores, relativamente aos quais não se justificam todas as garantias da justiça penal
tradicional (modelo de mediação penal orientado para a eficiência na gestão dos
conflitos).

18. Apesar de o primeiro daqueles modelos de mediação penal parecer o mais


coerente com a compreensão da justiça restaurativa que se sustentou ao longo da
investigação, as soluções adoptadas na Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, que introduziu
em Portugal a mediação penal “de adultos”, tendem a manifestar maior proximidade do
segundo. Uma análise deste regime jurídico revela uma opção minimalista quanto aos
seus âmbitos de aplicação. No que respeita ao âmbito material, restringiu-se a
possibilidade de mediação penal a alguns crimes particulares em sentido amplo, todos
eles enquadráveis na criminalidade de pequena e média gravidade. No que tange ao
âmbito temporal, só se admite o envio do processo para mediação penal durante a fase

710
de inquérito, o que permite a sua classificação no âmbito dos mecanismos de diversão
processual.

19. A excepção ao que se vem de afirmar resulta da admissibilidade de práticas


restaurativas posteriores à fase de inquérito, que o legislador português já reconheceu,
mas que ainda não têm significativa concretização prática. Admite-se um “encontro
restaurativo” posterior à suspensão provisória do processo ou à condenação por crime
de violência doméstica, nos termos do artigo 39º da Lei n.º 112/2009, de 16 de
Setembro. Apesar do valor simbólico que se atribuiu a este “encontro restaurativo” –
por mostrar a possibilidade de práticas restaurativas no âmbito de crimes públicos e em
momentos que não apenas o do inquérito –, julga-se que teria sido mais correcto aceitar-
se a mediação penal também como mecanismo de diversão no contexto da violência
conjugal. Por outro lado, com um âmbito mais genérico (sem a previsão de qualquer
“catálogo de crimes”), admite-se, nos termos do n.º 4 do artigo 47.º do Código da
Execução das Penas e das Medidas de Segurança, que o recluso participe, “com o seu
consentimento, em programas de justiça restaurativa, nomeadamente através de sessões
de mediação com o ofendido”.

20. O sentido que se atribuiu à justiça restaurativa e aos modos pelos quais se pode
relacionar com a solução dada ao conflito pela justiça penal aconselharia o alargamento
da possibilidade de aplicação da mediação penal, enquanto mecanismo de diversão, a
outros crimes, nomeadamente a crimes públicos de pequena e média gravidade.
Aconselharia, também, a sua aplicação efectiva em momentos posteriores à fase de
inquérito, já não como solução divertida, mas sim como solução complementar.

21. As práticas restaurativas, quando forem adoptadas em momentos posteriores à


acusação, podem ainda influenciar a resposta dada ao conflito pela justiça penal
(nomeadamente provocando a dispensa da pena, atenuando-a ou contribuindo para a
flexibilização da sua execução) sempre que se possa afirmar a sua relevância à luz das
finalidades especificamente penais; podem, porém, ser alheias àquela resposta penal,
funcionando de modo complementar ou cumulativo, tendo em vista a consecução das
suas próprias (e autónomas) finalidades.

711
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758
ÍNDICE

759
760
Resumo……………………………………………………………………................5
Abstract………………………………………………………………………………9
Três pensamentos…………………………………………………………………..13

NOTAS INTRODUTÓRIAS

1.   A escolha do tema e do título……………………………………………………………………………………..17  


2.   A delimitação do problema e a sequência da análise………………………………………………….23  

PARTE I
A JUSTIÇA RESTAURATIVA – AS ORIGENS E O CONCEITO

1º CAPÍTULO
AS ORIGENS CRIMINOLÓGICAS E POLÍTICO-CRIMINAIS DO PARADIGMA
RESTAURATIVO

1.   O problema………………………………………………………………………………………………………………..37  
2.   A vitimologia e a justiça restaurativa…………………………………………………………………………47  
3.   O abolicionismo penal e a justiça restaurativa…………………………………………………………..56  
4.   O pensamento feminista na criminologia e a criminologia de pacificação…………………66  
 
2º CAPÍTULO
UMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL DO PENSAMENTO
RESTAURATIVO
 
1.   Delimitação do problema……………………………………………………………………………………..85  
2.   Um olhar para o passado………………………………………………………………………………………89    
2.1.  O passado tal como o vêem alguns cultores da proposta
restaurativa……………………………………………………………………………………………………89  
2.2.    Uma crítica possível desta perspectiva: os “mitos” na história da justiça
restaurativa………………………………………………………………………………………………….100  

761
2.3.  Um outro olhar, não já para o passado, mas antes para os olhares sobre o
passado………………………………………………………………………………………………………..109  
3.   Um olhar para o lado………………………………………………………………………………………….115  
3.1.  O sentido do olhar para o lado (ou uma explicação sobre os lados para que se
olha)…………………………………………………………………………………………………………….116  
3.2.    A distância entre a justiça penal e a justiça restaurativa nos países anglo-
saxónicos  ……………………………………………………………………………...……………………123  
3.3.  A pluralidade das práticas restaurativas nos países anglo-saxónicos  
………………………………………………………….…………………………………………………………131  
 
3º CAPÍTULO
A JUSTIÇA RESTAURATIVA: ANÁLISE DO CONCEITO
 
1.   A delimitação do problema: muitas práticas à procura de uma
teoria…………………………………………………………………………………………………….135  
2.   Algumas propostas de definição, entre o minimalismo e o
maximalismo…………………………………………………………………………………………143  
3.   Uma antecipação da proposta: aquilo que a justiça restaurativa deve
ser…………………………………………………………………………………………………………151  
4.   O “problema da comunidade”………………………………………………………………162  
5.   O “problema da realização da justiça”…………………………………………………..176  
5.1.  A delimitação do problema…………………………………………………………….176  
5.2.  O Iluminismo Penal e uma certa ideia de justiça…………………………….183  
5.3.  A procura da justiça na opinião dos cultores da justiça
restaurativa……………………………………………………………………………………..192  
5.4.  A justiça restaurativa na intersecção de algumas contemporâneas
compreensões da justiça………………………………………………………………….200  
5.4.1.   As teorias de Habermas e de Luhmann e a sua (des)adequação
à compreensão da justiça restaurativa………………………………..  204  
5.4.2.   John Rawls e a sua “teoria da justiça”………………………………..216  
5.4.3.   Amartya Sen e a sua “ideia de justiça”……………………………….221  
5.5.  Notas breves sobre a questão da democracia…………………………………..229  
5.6.  As exigências de liberdade, de responsabilidade e de solidariedade (o
pensamento republicano e a teoria da justiça)……………………….239  

762
5.7.  À procura de um sentido para a justiça a partir de interrogações sobre
alguma da sua simbologia  ………………………………………………………………249  
5.8.  Uma tentativa de síntese não conclusiva…………………………………………255  
6.   O conceito de justiça restaurativa: uma hipótese de compreensão………..  268  
 

PARTE II
JUSTIÇA RESTAURATIVA versus JUSTIÇA PENAL
 
1º CAPÍTULO

OS FINS, NA JUSTIÇA RESTAURATIVA E NA JUSTIÇA PENAL:


IDENTIDADE OU DIVERSIDADE?
 
 
1.   Considerações iniciais……………………………………………………………………………283  
2.   Brevíssimo excurso sobre os fundamentos e sobre as finalidades da
punição………………………………………………………………………………………………….291  
2.1.  Delimitação do problema: os “fins” da pena e os “fins” da intervenção
restaurativa……………..………………………………………………………………………293  
2.2.  A cominação de um mal: uma questão de fundo e (no fundo) transversal
às várias teorias sobre os fins das penas……………………..…………………..299  
3.   Uma comparação dos fins, entre o curar e o punir  ...................................315  
4.   A pena orientada pela prevenção e a solução restaurativa: uma diferença de
fins (afinal) essencial…………………………………………………………………….........321  
5.   Uma “vergonha que reintegra” por oposição a uma “vergonha que
estigmatiza”: uma especificidade da justiça restaurativa?.........................331  
6.   Uma finalidade específica da justiça restaurativa: a reparação dos danos
sofridos pela vítima……………………………………………………………………………….334  
6.1.  A quantificação dos danos sofridos pela vítima e o problema da sua
inadequação como critério principal para a punição do agente: as
vantagens da reparação restaurativa…………………………………………………346  
6.2.  A reparação restaurativa e as outras reparações……………………………….351  
 
 
 

763
2º CAPÍTULO
A PROPOSTA RESTAURATIVA E A QUESTÃO DA SUA
COMPATIBILIDADE COM PRINCÍPIOS ESTRUTURAIS DO ACTUAL
MODELO DE REACÇÃO AO CRIME
 
1.   Considerações introdutórias…………………………………………………………………..369  
2.   O princípio da culpa………………………………………………………………………………375  
2.1.  A resposta restaurativa em casos de inexistência de culpa………………384  
2.2.  A resposta restaurativa para além da culpa………………………………………401  
3.   Os princípios, relativos à promoção processual, da oficialidade e da
legalidade………………………………………………………………………………………………408  
3.1.  O problema……………………………………………………………………………………..408  
3.2.  Os limites já sedimentados dos princípios da oficialidade e da
legalidade: os espaços de relevância, na justiça penal, da vontade dos
intervenientes no conflito  ……………………………………………………………….412  
3.3.  Uma dificuldade para a proposta restaurativa: como responder à
dimensão pública do crime?...............................................................422  
3.4.  A existência (possível) de mais do que um conflito e a (in)existência de
um roubo do conflito (todo) pelo Estado…………………………………………423  
4.   O princípio da reserva de juiz e a proposta restaurativa…………………………427  
4.1.  Notas sobre as repercussões actuais do princípio da reserva de juiz no
direito processual penal português…………………………………………….......429  
4.2.  A solução restaurativa como solução “sem juiz”?..............................438  
5.   Uma tentativa de síntese………………………………………………………………………..442  
 
3º CAPÍTULO
JUSTIÇA RESTAURATIVA E JUSTIÇA PENAL: ESPAÇOS DE
(DES)ENCONTRO
 
1.   O principal espaço de desencontro: a pena privativa da liberdade………….445  
1.1.  O problema…………………………………………………………………………………....445  
1.2.  A ideia de socialização……………………………………………………………………452  
1.3.  Uma referência breve à distância entre o abstracto e o concreto, entre a
teoria e a prática e entre o dever ser e o ser……………………………………..457  

764
2.   Os principais espaços de encontro (ou os afloramentos restaurativos na
justiça penal portuguesa)……………………………………………………………………….463  
2.1.  Delimitação do problema………………………………………………………………..463  
2.2.  A “descoberta” da vítima e a justiça penal portuguesa……………………464  
2.2.1.   Considerações iniciais: que vítima e que protecção?............464  
2.2.2.   O esquecimento da vítima…………………………………………………..465  
2.2.3.   O conceito de vítima: reflexões em torno da (des)necessidade
de definição………………………………………………………………………..469  
2.2.4.   A “descoberta” da vítima……………………………………………………475  
2.2.5.   A reparação dos danos causados à vítima através da justiça
penal substantiva………………………………………………………………..481  
2.2.6.   A vítima e o direito processual penal português……………......483  
2.2.6.1.  A vítima no Código de Processo Penal antes da revisão de
2007 – uma tentativa de síntese do seu papel (ou
papéis)…………………………………………………………………………487  
2.2.6.2.  A revisão de 2007 do Código de Processo Penal na óptica
da vítima: uma tentativa de síntese……………………………….491  
2.2.6.3.  A questão da titularidade do conflito e a (in)existência de
uma mudança de paradigma…………………………………………495  
2.2.7.   A protecção da vítima como propósito de alguma legislação
“extravagante”……………………………………………………………………504  
2.2.8.   Os contra-argumentos do regresso da vingança privada e da
privatização da justiça penal……………………………………………….510  
2.2.9.   “Direitos das vítimas” e “direitos dos criminosos”: mais de uns
e mais dos outros?..................................................................518  
2.2.10.   A vítima, a justiça penal portuguesa e a proposta restaurativa:
uma tentativa de síntese………………………………………………………522  
2.3.  Os mecanismos de consenso no direito processual penal
português............................................................................................530  
3.   Justiça restaurativa versus justiça penal: a delimitação das distintas
intervenções………………………………………………………………………………………….541  
3.1.  As principais dificuldades da proposta restaurativa…………………………541  
3.1.1.   O problema dos agentes (imputáveis) perigosos e que
cometeram crimes graves……………………………………………………542  

765
3.1.2.   A ausência de vontade de participação nas práticas
restaurativas……………………………………………………………………….546  
3.1.3.   Os crimes sem vítimas………………………………………………………..547  
3.1.4.   Os contextos de grande desigualdade………………………………….553  
3.2.    A justiça restaurativa, a justiça penal e a sua ideia de ultima
ratio....................................................................................................556  
3.2.1.   Breve excurso sobre a natureza de ultima ratio da intervenção
penal…………………………………………………………………………………..560  
3.3.  Uma tentativa de síntese………………………………………………………………….575  
 
 

PARTE III
AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS E O PAPEL CENTRAL DA MEDIAÇÃO
PENAL

1º CAPÍTULO
A MEDIAÇÃO PENAL COMO INSTRUMENTO DA JUSTIÇA
RESTAURATIVA
 

1.Considerações iniciais……………………………………………………….581
2.A mediação penal: um “quase direito” ou uma opção estadual na “gestão do
crime”?........................................................................................................591
3.Uma reflexão breve sobre a expansão da mediação penal vítima-agressor e a
limitação do papel da comunidade……………………………………………604
4.   A mediação penal: um assunto (também) do Estado ou um mecanismo de
privatização da justiça penal?.......................................................................................608  
 
 
2º CAPÍTULO
A MEDIAÇÃO PENAL “DE ADULTOS” EM PORTUGAL
 
1.  O regime jurídico introduzido pela Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho: uma solução de
diversão…………………………………………………………………………………………………………………613  

766
1.1.  A contextualização e os principais antecedentes da Lei n.º
21/2007, de 12 de Junho………..  …………………………………………613  
1.2.  Uma opção “minimalista” quanto ao âmbito de aplicação
material e temporal…………………………………………………………….626  
2.   A Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho: um regime “minimalista” quanto às opções do
legislador……………………………………………………………………………………………………………….630  
2.1.  Algumas (in)certezas quanto aos participantes…………………..630  
2.1.1.   A pluralidade de ofendidos……………………………………631  
2.1.2.   A pluralidade de arguidos……………………………………..636  
2.1.3.   O sentido da intervenção do advogado………………….638  
2.1.4.   A ausência de previsão dos conteúdos possíveis para o
acordo e a questão da proporcionalidade………………642  
2.1.5.   O carácter nuclear da vontade do arguido e do ofendido
e a relevância do seu esclarecimento…………………….653  
2.1.6.   O sentido da intervenção, posterior ao acordo, do
Ministério Público  ……………………………………………….662  
2.1.7.   A opção sobre a autoridade judiciária competente para
a decisão de homologação…………………………………….668  
3.   O “caso especial” da violência doméstica e a possibilidade de um “encontro
restaurativo”……………………………………………………………………………………………………………….673  
3.1.  A delimitação do problema………………………………………………..673  
3.2.  A violência doméstica e a mediação penal: desadequação ou
especial adequação?...............................................................677  
3.3.  O problema do tempo e das finalidades do “encontro
restaurativo”………………………………………………………………………686  
3.4.  A violência doméstica e a “tensão” entre os espaços de solução
pública ou privada do conflito…………………………………………..688  
4.   Os crimes graves e o valor (também simbólico) das práticas restaurativas pós-
sentenciais……………………………………………………………………………………………………………………..694  
 
 
EPÍLOGO  
701  
 
 

767
BIBLIOGRAFIA
713  
 
ÍNDICE
759  

768

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